ler - pedrinho fonseca

Transcrição

ler - pedrinho fonseca
Para
VOCÊ
.
da tela do computador para a folha de papel:
as palavras, aves migratórias, estão voando!
Desconfio. Não tenho certeza.
Desconfio, apenas: o dom de
escrever pode ser genético. Pode
ser. Ponto. Parágrafo.
Já faz décadas que conheci as
feras de sobrenome Fonseca:
Homero, repórter e editor,
sempre foi o feliz proprietário
de um texto limpo, claro e
livre de penduricalhos. Heber
Fonseca, meu colega de turma
no curso de Jornalismo, idem:
como o bicho escrevia bem...
Eis que Pedrinho Fonseca,
descendente direto da estirpe dos
Fonseca, herda do pai Homero e do
tio Heber o gosto pelo manuseio
das palavras. Dou um chute: tudo
pode pode ter sido por artes do
DNA. Quem sabe?
PF cultua virtudes que
fazem bem a quem vive de
tecer frases: um senso de
humor, uma pitada de ironia,
uma queda pelo lirismo na
hora certa.
O texto corre solto. Dispensa o tom
pomposo. É assim que deve ser.
O Império da Internet fez, entre
tantos outros, um grande favor a
este começo de século: bem ou mal,
restaurou o hábito de escrever. Nunca
se escreveu tanto. Thank you very
much, Bill Gates. Deus te pague. Já
pagou, aliás – em bilhões de notas de
um dólar.
Pedrinho Fonseca achou que o blog
linguadop.com.br era pouco. Resolveu
partir para a conquista do oeste, lançar
velas ao mar, levantar vôo rumo ao
Reino de Papel da Galáxia de Gutemberg:
assim, as palavras do blog voaram, feito
aves migratórias, para as folhas de papel.
Declaro a quem interessar possa: a
viagem se deu sem turbulências.
PF quer nos provar o seguinte: pode
ser na tela do computador, pode ser
na folha de papel em branco, não
importa, crianças. O importante é
voar com as palavras. Sempre foi
assim. E assim há de ser.
Então, queiram apertar os cintos.
Desliguem os celulares. Em caso de
turbulência, podem rezar à vontade. E
boa viagem!
GENETON
MORAES
NETO
CAPÍ
TULO 1,
Primeiro, era o verbo.
Daí a existência desse Blog.
Onde vai dar?
Terei paciência?
Levarei adiante?
Não me perguntem.
Já me questionei e só saberei (vi)vendo.
Bem-vindos.
VERSÍ
I.
CULO
lín
gua
do p.
9
ROUPA
lín 10
gua
do p.
Mas as roupas. Lá estão,
estendidas, desencardindo,
mas lembro - faço questão
e gosto - que são as sujas.
Nunca mais serão as
mesmas. Cada lavagem, cai
um pouco da tinta da vida
e desbotam certas crenças.
Minha vó que me ensinou a
ver o bonito no feio me vem
a cabeça agora. O que tem
de bom nisso? Qual será a
lição dessa vez? Como será
vestir novamente aquelas
roupas, depois de secas?
{por que tiraram o acento
da palavra secas? sinta
o quanto o circunflexo
dobra o coração e faz
poema: sêcas.}
A maior lição de agora,
minha vó, vai ser vestir
cada peça sem a mínima
pretensão de que estejam
SUJA NO
VARAL
novas, novamente. São as roupas sujas, minha vó.
Desbotadas. Surradas.
Mas o conforto não se paga. Nem se encontra
no novo. E mais. Deixa o novo para outro neto,
minha vó. Quero o novo não. O novo sou eu a cada
espelho com a mesma roupa antes suja. Mas como
me cai bem.
Nunca havia me despido com tanta rapidez e me
vestido com tanta honradez.
Deixo secar. Quero que seque bem. Que pinguem
os pingos. Que destinte a tinta. Que a chuva
manche de marcas do tempo de Deus. Minha
garagem está vazia. Meu sapotizeiro está cheio.
Tomo um sem nem usar ponta-de-pés. O prazer
está logo a mão. Me delicio com a chuva que
não cessa. Doce como mel. Talvez mais. E nem
domingo é.
AL
DA
Pendurei toda a roupa suja
no varal da alma, que me
fica por entre o quintal dos
sapotis (doces como mel,
talvez mais) e a garagem
das frustrações (amargas
como domingos). A
demora para secar não será
dolorosa. Tempos de chuva
são para que nos tornemos
mais pacientes mesmo. E
se a chuva cai, aprendo.
Cada gota é um segundo do
relógio de Deus. Esse tempo
passa, evapora, no calor dos
dias-a-dias e há dias e adias
o que tens para fazer com a
desculpa de que tempo não
há. Ah, há.
O
DRÁU
ZIO
QUE HÁ
EM
Azeite faz bem ao coração.
Vinho faz bem ao coração.
Amar faz bem ao coração.
A vida que levo me custará a eternidade.
MIM.
lín
gua
do p.
11
lín 12
gua
do p.
PÁ
GINA
Prefácios são fáceis
Posfácios são póstumos
Apóstolos, monótonos
Quero bons tons
E então
São estarei
(I)
Fazem você acreditar neles.
Depois, em si próprio.
Em seguida, você acredita
neles e em você, juntos,
mudando o mundo.
MUN
E ao final, já cheio de crenças, você
descobre que o princípio deles é mentir.
{O mundo não muda, meu caro. O
mundo é imundo.}
DO.
lín
gua
do p.
13
PELA
lín 14
gua
do p.
Verbo não é coisa que se desdiga, assim, apenas engolindo ditos.
Porque verbos acompanham ações e sensações e emoções.
E isso não se rumina.
GLO
ON
TEM,
VERSÃO 1
Hoje me deu uma ressaca.
Foram as frustrações que bebi
ontem. Ou o telefonema que
não recebi para me desejar
um feliz dia. Namorada,
tudo bem - não há. Mas
nenhuma amante. Uma ex
saudosa. Uma futura mais
atirada. Nem um amigo de
sacanagem. Aí já
foi demais.
VERSÃO 2
Li um poema de Clarice
Lispector ontem e tive
vontade de chorar. Mas o
dia estava feliz demais para
derramar qualquer lágrima
por um sentimento alheio.
Dei uma volta na rua para
sentir os pés no chão e
a cabeça na infinitude
TEM
(inquietude) das idéias
tentando se arrumar.
Dormi um pouco para
misturar sonho
e realidade.
VERSÃO 3
Ontem não tomei café
da manhã. Não era mais
hora, quando cheguei em
casa. Foi mais um dos
raros dias horizontais daa
minha vida nos últimos
tempos. Por várias vezes,
EM
QUA
TRO
vi o Cristo me chamar.
Braços abertos. E eu
ali, de coração aberto,
feliz com algo que nem
lembrava mais (ou o dia
cheirava a Gérbera?).
VERSÃO 4
Se o asfalto estivesse
mais quente, seria
impossível não sapatear
no meio da multidão.
Seria condizente com
o momento: feliz,
de mãos dadas com
o mundo, sentindo
calafrios ao som de uma
orquestra insuspeita.
Boa noite. O dia já era.
POS.
{Escolha a sua.}
lín
gua
do p.
15
OS LÍ
RIOS
lín 16
gua
do p.
Maria confiava nas
sete vidas que seu
pai lhe prometera
na infância. Nada a
ver com gatos; ela
os odiava, sendo
franco. Sete vidas
por nada, apenas por
sorte; por azar, os
mais nublados diriam.
Maria caminhava
de planta dos pés
fincadas. Nada de
levitar. Sublime, só
seu cheiro; carregava
jardins por onde ia e
ia sempre por muitos
lugares, que era para
não perfumar mundos
pequenos. Sua primeira
das sete vidas ainda não
perdera; e já tinha idade
de menina-mulher,
dezessete. Atravessava
sem olhar. Saía em
dia de tempestade
carregando um guardachuva fechado e um
livro aberto; lia na chuva
que era para disfarçar as
lágrimas
escorridas pelas
páginas de poesia.
Dava bom dia a
desconhecido;
tempos como estes
e essa menina a
sorrir para sujeitos
de barba grisalha
e pensamentos de
meninos despudorados.
Cantarolava;
lindamente cantarolava.
Maria tinha sete vidas.
Não perdera nenhuma.
Ainda. Quem sabe nunca
perderia. Seria sempre
viva aos olhos da sua
cidade. E aos narizes;
fiéis farejadores da sua
essência de vida.
DE
NÃO
SE ALI
MENTE
DE
Confinado, findou finado.
{Encapsular-se nem sempre é uma boa saída. Quase nunca, diria.
A liberdade começa em si. Pela decisão de não permanecer num
mundo criado para ser gaiola com alpiste fácil e visão para
uma janela que abre horizontes mentirosos.}
{Voa. Liberdade é ter medo das alturas.}
CÁP
SU
lín
gua
do p.
17
lín 18
gua
do p.
Fran
Seu nome é Francisco, mineiro. Mineiro que garimpa
amizade e se contenta com pequenas pedras e pequenos
Pedros. Porque para ele não é o que fica na peneira, é
o que passa. É o que transpassa a amizade e se torna
amor. Do jeito melhor de ser vivido: com o respeito que
não cabe no peito do mundo. Francisco, meu amigo
e meu irmão. Das Gerais. Você passar por aqui é feito
vento em tarde de calor.
cisco.
Na
ja
cu
zzi.
Receita para ser feliz.
1. Encha uma jacuzzi com água morna.
2. Segure suas mágoas pelo pescoço,
firmemente, com as duas mãos.
3. Afogue-as.
Sorria.
lín
gua
do p.
19
C
lín 20
gua
do p.
Grãos
de
uma
areia
Por trás dessa enfinge
está a menina que finge,
a chuva que não molha,
o vizinho que não olha.
que
não
seca.
Seremos felizes enquanto durar?
Pelo tempo que nos restar?
Senta e refaz o teu castelo
e deixa a onda, mais uma vez, levar.
+
CTRLZ
ás
atr
de
CTRL
+
Z
Quase todos os tipos de romance começam da mesma forma: você está praticamente
desistindo de si mesmo e aparece alguém para provar que o mundo é bom e o som de celular
tocando pode ser agradável. >delete
Amores à primeira vista sempre começam meio embaçados. >delete
As mulheres são todas iguais. Menos a que amamos. >delete
Se você está em dúvida entre duas mulheres, não fique com nenhuma delas. >delete
{Amar é parafrasear si próprio. >enter}
lín
gua
do p.
21
lín 22
gua
do p.
Boa noite.
Antes de dormir, releia a história da sua vida para si próprio.
Se der sono, acorde preocupado.
Muro:
de
um
lado, ou
do
outro
(nunca em cima).
“Vivre sans temps mort, jouir sans entraves.”
{- Num muro, na França (viver sem horas
mortas, gozar sem entraves).}
lín
gua
do p.
23
lín 24
gua
do p.
O maior mistério
não é descobrir para onde vai
cada linha
cada texto escrito
mas sim de onde sai
cada dito
cada palavra jogada ao infinito
cena1.
Mistério,
Dois
ois
.
a
Feijão e arroz
Colombinas e pierrôs
Antes e depois
Dois a dois
lín
gua
do p.
25
Sam
ba
lín 26
gua
do p.
Perdido.
Enquanto o dia vai
sigo sem rumo, procuro um prumo
caminho a passos
lentos
e o encontro casual
na esquina que vem
não vem
E na calçada
sem jardim, sem flor
esqueço a rua
onde mora o meu amor
Quem dera
essa espera, esse caminhar
numa esquina da vida
me fizesse te encontrar
Já andei demais
perdi meu mapa
e sem saber
me perdi de mim
e perdi você
O
As casas que morei não tinham cheiro, mas perfume.
Conservavam (e conservam, cada uma) um aroma
de tempo que não tem mofo. Que não tem dores,
nem agruras. São essências de memórias, que já vem
editadas, como as boas películas nos parecem aos
olhos.
perfume
Mas não quero falar de olhos. Volto a respirar fundo.
Um perfume puro tem invadido minhas
vias nasais, vitais: uma lembrança de uma
casa que deixei adormecer em sonhos que se
fantasiaram de pesadelos. O sonho voltou.
Com ele, o perfume. E sem saber os porquês
(vai entender-se a si próprio) tenho dormido
melhor. Em sonos. Em sonhos. Em perfumes
que não quero deixar de sentir.
E não vou. Não mais.
me
das
mó
lín
gua
do p.
27
gua
do p.
quintal.
No
lín 28
Nesse quintal, criança não chora
chuva grossa não demora
folhas secas caem pelo ar
para as horas passarem devagar
Nesse quintal, fruto proibido é tristeza
dúvida não demora para virar certeza
e o choro cantado pelo vento
é de alegria, não de sofrimento
Nesse quintal, dor não se planta
Não se planta dor nesse quintal
Caso você se torne
uma pessoa previsível,
saiba que seu fim* está
próximo**.
*Apenas uma previsão.
PRE
VISÃO,
**Apenas uma
visão.
lín
gua
do p.
29
lín 30
gua
do p.
LÓ
GI
Pensar antes de
agir antes que
seja tarde antes
que nunca antes
de você antes
de mais nada.
Uma valsa sem os
pés no chão. Dias
compassados
em três tempos:
acordar, viver um
pouco, dormir.
Pausas breves
para pensar em
notas suspensas
- enquanto o
primeiro violino
executa a melodia,
o segundo violino
cala, esperando
pacientemente
a sua hora de
harmonizar.
...
SINFONIA
Nº
Deus, maestro
irreverente,
conta três e lança
olhares sobre
a solista. Ela
devolve, segura
do que precisa
Amar é ato
ser feito (mas
contínuo.
não disfarça a
E quando
vontade de soltar
a melodia
a primeira nota).
finalmente
A platéia observa.
se encaixa,
A platéia sabe
a orquestra
o que vem a
funciona com
seguir. Mas só irá
perfeição.
aplaudir ao final.
...
...
Cortinas cerram.
Bravo.
{O segundo ato
será breve (digo,
em breve).}
lín
gua
do p.
31
lín 32
gua
do p.
04
Dois irmãos que se abraçam no horizonte
Bebem da mesma fonte
respiram os mesmos ares poluídos
e condoídos
perdem sua atenção na miséria alheia
H
Meninos de cuecas rasgadas
deitados em calçadas
de pedra e esgoto
o mundo está roto
e eu passo pela madrugada como quem dorme
31
{Clique de um Recife que não queria mais ver. Mas vi.}
Esse menino me diz que sabe sambar
sabe sambar
que arranca a sola do sapato
de tanto brigar com o chão
mas a mãe logo adverte
“sambar faz mal,
malandragem com cuíca
acaba virando marginal”
E ele desce o morro
pede socorro
na lotação
vê o mundo em sua mão
o terreiro do choro no
meio da praça
de graça
quem passa
não quer mais passar
Quem passa não
quer mais passar.
{Sábado, General
Glicério, bolinho de
bacalhau numa mão,
cerveja na outra.
Saudade dos irmãos e
irmãs.}
NAS
LA
RANJEIRAS.
lín
gua
do p.
33
lín 34
gua
do p.
OMENINO
O menino tinha uma mala
estranha e andava com
ela por onde ia. Era sua
companheira de viagem,
de descanso, de trabalho.
Uma mala com alças fortes
e seguras. Sem chave, sem
segredos, sem dificuldades
para se abrir. E o menino
carregou sua mala a vida
inteira. E todos tinham
vontade de saber o que havia
dentro. Mas achavam aquilo
tudo muito estranho. Até
aposta fizeram.
E
SUA
MISTERIOSA.
isso ao revés.
MALA
E a cidade inteira se
mobilizava naquela
busca, naquela aposta. E
- Sim.
ninguém levou o prêmio.
Ali, na mala, o menino
- E por que sempre andas
com eles, para cima e para
Seu Cético, dono de um boteco, carregava sonhos.
baixo?
apostou que havia ouro dentro. E a mala era leve, porque
seus sonhos eram
pequenos.
- Porque esperava que
Dona Filosofia, uma costureira
um dia a mala se abrisse,
que o conhecia desde pequeno, E a mala poderia até ser
frágil, mas seus sonhos
aos pés de alguém que,
acreditava que houvessem
vendo o seu conteúdo, me
retalhos da sua vida, fragmentos eram resistentes (e
enfrentaram tempestades
perguntasse o que seria
de todos os caminhos
e secas).
aquilo.
percorridos.
E a mala poderia ser aberta
por qualquer um, menos
- E eu te perguntei...
As irmãs gêmeas Certeza e
por quem só quisesse
Felicidade eram mais simplistas.
apostar, adivinhar o que
- E aqui eles estão, meus
Ali devia habitar sua despensa
sonhos.
pessoal de amores, recordações de lá havia.
momentos importantes.
Sua mala de sonhos jamais
- E agora, o que vais fazer?
havia sido aberta.
Uma velha senhora, a Sabedoria,
E o menino continuava suas
- Perguntar se queres
só espiava da janela quando o
caminhar comigo, me
menino ia e vinha com a mala. E foi viagens, feliz da vida.
ajudando a levar a mala.
taxativa: são roupas. Agasalhos da
alma, que o menino trocava quando
Um dia, a mala caiu e abriu,
E ali, diante do menino
seu coração teimava em passar
por si só, aos pés de uma
e da menina, da mala e
por inversões térmicas, deixando a
outra pessoa, que esbarrara no dos sonhos, o silêncio
frieza de lado e aquecendo-se - ou
menino.
se fez.
Era uma menina.
E ela viu seus sonhos.
Todos eles.
Ali, na mala aberta, no chão.
E finalmente, alguém descobriu.
- São seus sonhos, menino?
EU
OBJE
EO
TO.
Lonjura era uma terra esquisita, sem fronteiras. Um país
que tinha campos vastos, onde se plantava e se colhia calos
nos pés, de tanto se andar. Num dos extremos de Lonjura,
morava o Objeto. Um ser amável, que habitava uma casa
de portas sempre abertas, janelas baixas e parapeitos com
margaridas. No outro extremo, perto da Cordilheira da Alma,
morava o Eu. Um ser de binóculos, sempre à procura do
Objeto. Eu, desconhecendo os caminhos para se chegar ao
Objeto, binoculava dia e noite, pelo menos para avistar no
horizonte, mesmo que numa imagem míope, aquele Objeto que
julgava tão seu.
”A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela
se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre
dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para
que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de
caminhar.” Eduardo Galeano.
E Eu, esquecido do binóculo numa tarde chuvosa, com a Cordilheira
da Alma enevoada, surpreende-se com o Objeto ao seu lado. Do
seu lado. Eu e o Objeto, juntos, numa tarde chuvosa, num encontro
esperado desde que não haviam binóculos, apenas os olhos para se
enxergar o que havia no horizonte.
Lonjura nunca foi tão perto.
lín
gua
do p.
35
CAN
ÇÃO
lín 36
gua
do p.
PARA NINAR GABI.
A neném quer dormir
tá querendo cochilar
pra sonhar com o
irmãozinho
que em breve vai chegar
Vai fechando os olhinhos
e abrindo a boquinha
o soninho tá chegando
dorme bem, Gabizinha
{Para uma sobrinha linda que eu tenho – e para seus pais que amo.}
FERNANDO
EA
Fernando conheceu uma puta
sem querer. Caminhando em
direção à sua casa, onde por vezes
morava com sua mãe, em dias
que acertava os caminhos de volta.
Seduzido pelo Gin, encantou-se
com a moça. E ouviu juras de um
amanhecer do dia inesquecível num
motel logo ali. E foi, fazendo juras que
era a última vez que conhecia uma
puta. Sabia que iria ter ressaca, à tarde.
PU
TA.
{As ressacas vespertinas são as piores.
Não oferecem a brisa da noite, nem
a trilha sonora Walt Disney das
manhãs.}
Tirar sutiãs nunca fora seu forte. E aquelas mãos
frias descobrindo suas costas não colaboravam
na concentração. Fernando respirava ofegante. A
puta fingia respirar ofegante. E logo, duas raízes
fincadas na cama, observadas por luminárias
acesas e espelhos atentos. O gozo rapidamente
alcançado era mais alívio que prazer. Fernando
pagou e dormiu.
Era mais um cliente que a puta
conhecia. Mais um bêbado. Mais um
que ela prometia gozo. Sabendo que a
ela caberia não ter prazer. Apenas alívio.
lín
gua
do p.
37
lín 38
gua
do p.
Casa de porta e janela. Tinta em cascas
que caem no outono, junto com as folhas
e com as lágrimas de saudade. Desde
que se foi, o homem da vida de Luzia
só aumentou
as rachaduras
na casa. E ela,
como sempre,
apoiada com
os cotovelos
secos na janela
velha. Mais um outono, mais
uma espera pelo prometido e
não cumprido. Luzia chora. A
tinta escorre, não a da parede. A
dos olhos pintados para disfarçar a dor. Chora Luzia. Baixa a cabeça que
passa. O outono é para sofrer, todos na rua o sabem. E não experimentam
cumprimentá-la. Não no outono. Que é quando as lágrimas caem, a tinta
escorre e Luzia perde as cascas.
SEROSA
Um
risco.
Um trisco.
Um cisco.
Na tela.
Na janela.
Nela.
CENT
Por trás da retina se
esconde uma sombra.
À frente da mácula, uma
imagem imaculada.
RAL.
lín
gua
do p.
39
lín 40
gua
do p.
diz
Uma voz me
liz
fe
r
vai se
do
inho encontra
porque o cam
o
orrid
é para ser perc
ser desvendado
vido
para sempre vi
NHAR POR
SO CAMI
DO NOS
O.
M
S
E
M
I
S
E
D
O
DENTR
BRE
FE
LITE RIA.
RÁ
Ato con
tínuo De
folha em fo
lha passe
ando
Ando por pá
ginas em bran
co
Fogo bran
do
Em olhos
arden
do
por ver a vi
da pas
sar em pá
ginas em bran
co
lín
gua
do p.
41
lín 42
gua
do p.
SUA
MAJES
TADE, BA.
O SAM
- E sapatear?
- Sei. Estudei anos e anos, o balé. No decorrer, tive que aprender a sapatear.
- Mal danço samba.
- Samba não se dança mal.
Silêncio. Toca “Filosofia” na vitrola velha.
- ...então, mostra teu samba.
- Eu? Melhor não. Tenho medo.
- Vergonha? Mas mulheres adoram dançar.
- Não. Medo que te apaixones.
No salão, a luz incendiava olhos bebuns. Ela era majestosa.
Põe as roupas para quarar
a toalha rendada na mesa do jantar
Que o dia vai
se refazer, vai
em alegria
I
A
I
Á
.
CAN
TA,
Pede pro vizinho baixar o som
quando o violão chegar, pede o tom
E canta a melodia, Iaiá
que a vida
vai recomeçar
lín
gua
do p.
43
lín 44
gua
do p.
O HO
MEM
DE
AMA
RELO
NO
POR
TÃO.
s no portão.
O carteiro bate palma
da, chinelo
Chegou notícia. Bermu
no filtro,
se
qua
o
arr
de dedo, cig
de um
lá vai você. Na esperança
tal
pos
um
,
seja
que
telegrama
undós
de Santa Maria dos Caf
fim de
de Judas, uma carta em
a ganhar
Bic. Apaga o cigarro par
óteses.
tempo e pensar em hip
Conta de
O carteiro tem pressa.
Bradesco
luz para Luzia, carta do
de crédito
para seu Paulo, cartão
a de
novo para Mariana, filh
Januária.
tarde,
Boa tarde, diz você. Boa
de que
ejo
des
no
só
diz ele. E fica
realmente fosse uma.
a notícia.
Nada de carta, nenhum
ncia
agê
da
ção
mo
Só uma pro
levar
de turismo, querendo
ro por
você num incrível cruzei
Fernando de Noronha.
Você odeia golfinhos.
tarde.
Amanhã às quatro da
ex.
Sed
um
e
Quem sab
.
NTOS
JU
Amarverdadeiram
entedoisquesãoum
parasempre.
lín
gua
do p.
45
.
lín 46
SOLI_ÁRIO
gua
do p.
O solitário
morre
quando
o
solidário
nasce
.
PO
DE
O
Pode pisar na grama
Pode fumar no elevador
Pode ver tv na cama
Pode correr com o andor
Pode falar de boca cheia
Pode cochilar no sermão
Pode até matar baleia
Pode pisar descalço no chão
Pode estacionar na calçada
Pode furar a fila do banco
Pode deixar água parada
Pode descer do tamanco
Pode desafinar no refrão
Pode atender o celular
Pode falar palavrão
Pode fazer xixi no mar
Pode comprar no crediário
Pode xingar o presidente
Pode fingir que é otário
Pode deixar de ser crente
Não, só não pode dizer não
Não, só não pode dizer não
NÃO.
Pode o não
lín
gua
do p.
47
lín 48
gua
do p.
Ele foi para a sua obsessão
de terapia, cheio de calos
PSI.
Contou que bateu com o
no ego. No divã, falou
carro no poste. Chorou sem
da vida. Esculhambou o
motivos. Riu com vários. O
presidente da câmara.
ouvido de pinico do outro
Relembrou pesadelos
lado não tinha boca. E sua
de infância. Omitiu
alma foi ficando oca, sem
mentiras, reforçou
dor. E levantou levitando,
verdades próprias.
leve e leviano.
O
pé
formigando.
Aquela
dormência
típica. Mudo de posição
enquanto meu opositor raciocina
vagarosamente. Ninguém tem
pressa de perder, penso. Minha
cabeça sai dali por instantes.
Os olhos buscam a janela de
vidros impecavelmente limpos,
provavelmente naquela manhã, por
uma faxineira gordinha e sorridente,
trepada num dos bancos de couro que
ofereciam conforto ao lugar. Janela
alta, indecifrável - o que haveria do
outro lado? Campo? Uma garagem?
Provavelmente sujeira. Janelas altas
servem para isso. Esconder feiúra.
Certamente, com uma janela daquela
altura, não poderia haver um jardim
com esculturas de Rodin por trás.
À minha frente, um panaca pensativo.
Seria cômico, se não fosse trágico. Ele
fazia cara de quem lia Dom Quixote
e agia como quem gostava mesmo
era de palavras cruzadas de jornal de
domingo. Esbocei um bocejo. Só para
fazer pressão. A luz caiu pela janela, lá
vem chuva para molhar meu jardim de
ilusões do lado de fora.
Impaciência.
O pé não mais formigava.
O opositor se move. Finalmente.
Cavalo na casa E4. Minha vez.
Xeque-mate.
Vou ver o que há do outro lado da
janela. Antes que comece a chover.
lín
gua
do p.
49
lín 50
gua
do p.
O PO
NTO.
BA
TEN
DO
Psicólogo que se preza tem neurose
Advogado sempre quer mais uma dose
Jornalista de tudo sabe um pouco
Guitarrista, ou é rico ou muito louco
Arquiteto ainda não se decidiu
Delegado sempre finge que não viu
Cozinheiro vive para experimentar
Pescador, para histórias aumentar
Mecânico fica por baixo, piloto fica por cima
Cineasta faz imagem, poeta faz rima
Jogador anda com loira, sambista com mulata
Bicheiro gosta de ouro, deputado de mamata
Médico não tem hora pro trabalho
Puta trabalha para caralho
Gari está sempre no meio do lixo
Para subir na vida, ascensorista joga no bicho
Empregada vai de vale-transporte
Cobrador que nunca foi assaltado tem muita sorte
Policial tem pistola enferrujada
Enfermeiro tem seringa contaminada
Coveiro não tem medo de alma
Professora precisa de calma
Funcionário público sai no horário
Quem sai tarde é publicitário
Justo no dia do seu
aniversário, Teresa morreu.
Tinha festa preparada
e tudo, dividida entre o
terraço e suas cadeiras de
balanço com recosto de
náilon e o quintal, lotado
de tamboretes de madeira
suja. No quintal, Teresa
certamente desfilaria,
uma vez mais, suas
sandálias rasteiras com
miçangas que ela mesmo
confeccionara. E chamaria
a atenção de todos pela
jovialidade - ninguém
diria que naquela tarde
completaria, se estivesse
viva, seus 65 anos.
Ano após ano, o quintal
pedia mais tamboretes
e mais lâmpadas na
gambiarra elétrica que seu
irmão Noé fazia sobre as
cabeças dos convidados.
Ao anoitecer, era de praxe
esperar o acender das
lâmpadas e o grito de
Teresa, “a festa começou
foi agora, classe média!”.
E era como se os meninos
da Batucada de Bambas
recebessem uma injeção
de ânimo: puxavam
sambas de desabafo, como
chamavam. Enredos de
histórias de amor de todos
os presentes. E Teresa a
arrastar as sandálias de
um lado para o outro,
dando atenção a todos e a
ninguém ao mesmo tempo.
O terraço abrigava a turma
do colégio. A “velha guarda
- e bote velha nisso”,
como diria Teresa uma
vez mais, antes de servir
o sarapatel em cumbucas
plásticas, misturados com
a farofa mais deliciosa
que já houve. Seus
amigos de colégio, a cada
ano, comemoravam o
reencontro e choravam a
perda de mais um dentre
eles. Os últimos anos,
todos eles, haviam
sido assim.
Teresa sabia: seu dia era
dia santo.
Mas naquele ano, as
sandálias não foram ao
quintal. Não pisaram no
terraço.
Noé havia acordado
cedo, lavou o rosto e
comeu uma bolacha com
o restinho do requeijão
de copo que alguém da
casa esquecera do lado
de fora da geladeira.
Abriu a grade do quintal,
espreguiçou-se e foi logo
ao trabalho. Montou
a gambiarra (sessenta
lâmpadas, naquele ano!),
espalhou os tamboretes,
organizou as mesas e as
cobriu com as toalhas pano
padronizadas, emprestadas
por seu Juraci, dono do bar
da frente, que também se
responsabilizava por gelar
as cervejas desde a tarde
anterior. Noé arrumava
tudo calmamente quando
ouviu a música vindo de
dentro da casa. Teresa
acordara. Seu dia era
sempre assim. Acordava
e colocava Cartola para
cantar - um vinil que ela
tinha há pelo menos trinta
aniversários.
Ainda é cedo amor, mal
começaste a conhecer a
vida. Era a primeira frase
que Teresa gostava de ouvir
no seu aniversário.
O moinho estava girando
e Teresa não sabia. Era sua
vez. No quintal, Noé largou
a última toalha em cima da
mesa que ficava embaixo
do jambeiro carregado.
Apressou o passo para ser
o primeiro a dar bom dia
e parabéns. Sua irmã era
sua mãe, melhor amiga, a
mulher da sua vida.
...
No quarto, os vizinhos
encontraram Teresa
estendida no chão, ao
lado da caixa de som. Noé,
sentado na cama, chorava
silenciosamente. Cartola já
não cantava mais. O único
som era o da agulha
arranhando o final do lado
A do vinil velho.
SAN
TA TE
RESA.
lín
gua
do p.
51
lín 52
gua
do p.
O CHEI
RODOCE
Ah, se aquele cheiro doce ficasse até
o outono. Não, morria ainda no
final do verão. Abri meus braços
olhando do píer para todo o
horizonte, minuciosamente.
DE UM
VERÃO.
Fotografava tudo, com
grande angular, para
caber cada detalhe. O
açude à minha frente,
o espelho dos cascos
velhos de pequenos barcos
pesqueiros que flutuavam,
deslizavam. Respirei fundo.
Ah, o cheiro doce. Delícia.
No morro à frente, um colar
de mangue no pescoço da
ribanceira e uma coroa de
nuvens discretas, sempre
presentes. À direita do morro,
o braço rico do açude. As
mansões esquisitas, com
seus jet-skis estacionados e
impecavelmente polidos, com
palmeiras mentirosas, plantadas
por algum caseiro trânsfuga. Do
lado esquerdo, eu.
Esticado no píer. De frente para
minha despedida. O outono
chegara. E eu precisava ceder
espaço para ele. O outono e eu não
podíamos habitar aquele lugar ao
mesmo tempo.
Me despedi dos barcos.
Das palmeiras mentirosas.
Do colar de mangue. Olhei
pela penúltima vez para as
nuvens brancas acima da
testa do morro.
Caminhei para o interior
da casa com aquele vazio,
de novo, o vazio. Fechei a
vidraça. Olhei novamente,
agora pela última vez,
para aquilo tudo.
De onde estava, não mais sentia o cheiro
doce. Que minha memória me ajude
mais um ano.
I
ASSEVERA
ÇÃO DE SE
VERA,
RINO.
MÃE DE SEVE
- Severino, menino maluvido
deixa de ser astucioso
tira a mão do bolso
da calça do teu amigo
- Severino, tu tá me escutando, fingido?
vou aí te dar um bofete
que é pra tu deixar de ser moleque
e parar de roubar teus colega
- Severiiiino, fio da égua
se eu te pego, te arrasto pelos ovo
te fraguei roubando de novo
e tu ainda sai com essa cara lavada?
- Severiiiiiiiiiiiino, image do cão
se tu cresce desse jeito
ou vai ser político ou vai ser ladrão
Cresceu e virou os dois.
lín
gua
do p.
53
ZOEL
lín 54
gua
do p.
NA
O nome não poderia ser
melhor. Zona. Local que
abriga
o meretrício.
Ou ainda a outra
zona: bagunça,
confusão.
Vamos nós,
domingo 23,
escolher se
a gente proíbe ou não o
comércio das armas.
Uma vez mais, a ditadura
do voto. Eu sou obrigado
a ir. Não é foda mesmo,
cabos eleitorais.
um negócio desses?
Quero votar não. Aliás,
Morte ao referendo.
me diga você, que sabe
Mundo ganha pelo
de tudo. Se eu quiser
Morte às urnas eletrônicas e
Brasil.
votar TALVEZ? Tem essa
seus apitos insurpotáveis.
Qual a cor de
opção? Não tem.
quem é a favor do
Talvez eu precise saber,
desarmamento? E de Morte ao sim (com arma
conscientemente,
branca).
quem é contra?
quem está mentindo
menos. Quem está
Pronto, lá vou eu, com Morte ao não (com um
tentando me fazer
tiro de 12 no tórax).
meu porte de arma
menos de idiota.
eleitoral, no dia 23,
Quem está ganhando
Que o talvez sobreviva
caminhar pela zona,
menos sobre
uma vez mais, já que
vendo as putas fazerem
minha decisão.
não sabemos para onde
caras de políticos (talvez
Eu odeio armas.
vamos com isso tudo.
o contrário) e rodarem
Odeio violência.
as bolsinhas plásticas
Odeio votar em
que chamam de portareferendos.
{Não venham me
título. Tentando me
Gosto de votar em
falar em exercitar a
seduzir com um NÃO ou
eleições normais,
democracia. Nossa
um SIM estampado numa
quando o povo
democracia tem
camisa furta-cor. Mas furto
veste uma cor
obesidade-mórbida.
é proibido. Cabos policiais:
e come queijo
Está deitada em berço
prendam os
coalho assado
esplêndido, ao som
nas ruas, tal qual
do mar e à luz do céu
final de Copa do
profundo.}
EITO
RAL.
.
DE
NDEN
ED
OTRO
RT
PARA
FORA.
- Menino, vai fazer o quê
essa hora na rua, danado?
- Vou ver minha casa por
fora, mãe. Me deixa.
- Para quê isso, rapaz?!
Tá ficando maluco?
Vê de dentro.
- De dentro eu já vi, mãe.
E não me agrada. Deixa eu
ir. Volto já.
E nunca mais voltou. As
paredes descascadas,
o portão enferrujado,
o cachorro na calçada
lambendo suas partes. Foi
o que guardou dali. Do
que era sua casa. Ou do
que diziam ser.
lín
gua
do p.
55
lín 56
gua
do p.
Par. Ímpar. Francisco
ganhou. Enquanto João,
emburrado, se dirigia à
mancha, os outros corriam
para esconderijos cada vez
mais difíceis. Eles cresciam
e descobriam frestas nos
muros por entre os prédios,
portões retorcidos nos
fundos das garagens, portamalas de carros que jamais
fechavam. E com suas
descobertas, a brincadeira
ficava mais longa, mais
divertida, mais recheada
de histórias. Como aquela,
da tarde em que Francisco
ganhou o par ou ímpar
para João.
Um, dois, três...
Francisco saiu em disparada
sem se preocupar com
nenhum dos outros. Havia
descoberto uma porta
no subsolo do prédio que
dava para um enorme
salão, onde os porteiros
cochilavam após o almoço e
estendiam suas roupas num
varal sempre úmido. Olhou
para trás várias vezes, para
se certificar que ninguém
o vira. Aquele seria seu
esconderijo secreto para
sempre.
Cinco, seis...
Passou por trás da
caminhonete de seu
Haroldo, espremendo-se
contra a parede de cimento
coberta pela fuligem dos
escapes. Abriu lentamente
a portinhola e estremeceu.
Estava tudo escuro,
nenhuma lâmpada acesa.
Mas foi. Já conhecera o
lugar às claras, e tateando
seus peitos, primeiro por fora
da blusa, depois por dentro,
enquanto ela tirava sua bermuda.
Calor, escuridão, o rangido do
beliche. Ela levantou a saia, eu
não acredito.
chegaria ao beliche no
Vinte e um, vinte e dois, vinte e
fundo do salão, onde
três...
os porteiros dormiam.
Enquanto ela o conduzia
Fechou a porta bem
vagarosamente para dentro de
devagar e começou a
sua vagina úmida, o colchão
engatinhar pelo salão.
úmido, o ar úmido, o hálito
Oito, nove, dez...
quente junto do seu hálito aflito,
Sentiu uma calça
medroso, quem seria, quero um
molhada à sua frente e
interruptor de luz.
confirmou: estava no
Vinte e cinco...
caminho certo. Primeiro Freneticamente, foram se
o varal, depois a mesa
tornando mais barulhentos,
de plástico, depois o
suas respirações num uníssono
beliche. Continuou,
descobrindo o eco do salão, as
passou pela mesa.
roupas no varal secando e as
Achou o primeiro pé
suas ficando mais molhadas.
do beliche e levantouVinte e sete...
se. Acalmou-se. Tateou
Gozaram juntos, mas juntos não
o colchão e tocou em
ficaram. O corpo dela desgrudou
algo quente, assustourapidamente do de Francisco,
se, o que seria aquilo,
aonde você vai, volta aqui, tateou
pensou em correr, não,
o beliche, tentou ajeitar sua
é uma pessoa, quem
bermuda, viu uma fresta de luz
está aí, ouviu apenas um ao fundo e um corpo adolescente
“shhhhhhhhhh”. Calou- sair, em disparada.
se. Pernas quentes.
Trinta...
Ouviu um deita aqui,
Vou atrás dela. Eu acho essa
sussurrado. Deitou e as
menina.
pernas se entrelaçaram
Trinta e um alerta,
às suas. Uma saia. Que
lá vou eu.
pernas grossas. Só ouvia
sua respiração ofegante
e a dela, meu Deus,
quem é essa?
Doze, treze, catorze,
quinze...
As mãos por dentro das
suas calças, seu coração,
a língua úmida e quente
e áspera e carinhosa
pelo seu pescoço, a
escuridão. Quem é você,
shhhhhhhhh. Pulou para
cima de mim, o que ela
está fazendo. Francisco
jamais tinha sentido
uma mulher tão perto.
Não resistiu, entrou
no jogo e apalpou
ES
CON
DE-ES
CON
DE.
A
Um ano sem sol. Era um
aniversário sem festa para Lia.
Um ano sem as brincadeiras
na calçada, sob a vigia
constante da avó na cadeira
de balanço na calçada. Os
amigos se encontrando
debaixo de lâmpadas
fluorescentes, ficando cada
vez mais verdes, mais tristes.
Seu sorriso estava fosco e
cada dia mais duro de se
arrancar. Suas roupas sempre
limpas acusavam a chatice
das tardes televisivas, em
preto-e-branco. A única
diversão real, os mosquitos ao
redor da lâmpada do terraço
molhado, haviam deixado
de ser um mistério naquele
ano: iam procurar calor; e
não levar pequenos choques
na estrutura metálica para
ficar mais agitados, como
ela acreditou durante tanto
O cheiro não deixava dúvidas. Lia o conhecia
tempo. bem. Acordou, respirou fundo e arregalou os olhos. Era cheiro de sol. Olhou pela
fresta da cortina de linho amarrotada, arrancou o mosquiteiro das beiradas da
velha cama e deu um salto. Os pés caíram certinhos nas havaianas brancas com
tiras azuis. Pegou o elástico cor-de-rosa em cima da penteadeira de madeira
escura, prendeu o cabelo de qualquer jeito e saiu em disparada. O vulto acordou
a avó na poltrona, que não assistia, outra vez, aquele programa de culinária que
dizia ser ótimo. E antes que pudesse reclamar, a avó viu a menina abrir a grade
do terraço e se perder de vista. Lia parou na calçada, braços abertos, e deu bom
dia ao sol. Que retribuiu com um sorriso saudoso. {Antes da
ternura, muito
antes, vem o
frio, a nuvem, a
chuva teimosa.
E enquanto
gotejam do
telhado,
resistentes, as
lembranças, nos
recordamos do
que realmente
somos. Do que
verdadeiramente
nos ilumina o
caminho.}
TER
NURA.
lín
gua
do p.
57
lín 58
gua
do p.
BULA.
Não se alimente de dívidas.
Não se alimente de dúvidas.
Engula de uma vez, como sua mãe o ensinou na hora
de tomar Novalgina líquida.
SI
Dá choque. Não precisa haver
contato, não precisa haver olhar, não
precisa haver perfume no ar. A simples
desconfiança da presença dela dá choque.
NAP
E o encontro, sempre nervoso, estimula todo
o organismo ao redor, rios e ventos e sóis e luas e folhas. E leva a
informação em fibras óticas cegas, porque o amor é cego. E leva
a surdez momentânea ao labirinto, onde o Minotauro espera
os tontos de amor. E desequilibra. E dá choque.
lín
gua
do p.
59
lín 60
gua
do p.
ELA TEM
leza
Ela abusa da be
Deus lhe deu
e
qu
za
re
da natu
ha mesa
in
m
É a intrusa da
a minha vida
uz
nd
co
e
a
id
se conv
vício
Ela acusa meu
a burra
me empurra,
do precipício
rpente
se
de
lo
cabe
A medusa com
seu amor
o
eu
u
so
e
Não sente qu
do o poder
Ela abusa de to
do tempo,
na
do
a
r
pra se
nde
mo bem ente
co
Me lambuza
er
er
qu
bem
Acende o meu
Não usa
Não usa
Ela tem juízo
mas não usa
eiroga.}
.
A
S
U
MAS NÃO
frão: Lula Qu
{O dono do re
,
O
Z
JUÍ
Luzes apagadas. Lúcia
tateia ao seu lado. Sente a
respiração de Júlio, dormindo
profundamente. Liberta-se do
lençol, pisa suavemente nas
pantufas macias. Por instinto,
estica o braço e alcança o
roupão úmido. Caminha
lentamente para não acordar
o marido. Havia deixado a
porta entreaberta desde cedo.
Eram 3h15 de uma madrugada
fria e silenciosa. Poucas
sirenes naquela noite, poucos
gritos, nenhum gemido dos
vizinhos do andar de cima.
Uma bênção. Caminhou pelo
corredor repleto de mapas
na parede. Acendeu a luz
da escada e sentiu-se mais
segura. As filhas estavam
dormindo também, no
quarto com peixes e estrelas
refletidos na parede - abajour
comprado por ela assim que
BOA
NOI
TE,
LÚ
CIA.
No andar de baixo, as poltronas de couro que
tanto lembravam os domingos com seu pai
fumando charuto e tomando gim, enquanto
ouvia toda a sua coleção de Miles Davis. Lúcia
tinha arrepios de lembrar os finais de tarde,
as brigas constantes da mãe e do pai, tudo
culpa da bebida. Mas tinha conservado, com
alegria, as memórias do pai. Criança, entendia
a briga. Mas não enxergava a tal mudança de
comportamento da qual a mãe se queixava
sempre. O pai era ídolo, Miles Davis era ídolo e
até que gostava de gim, como ele.
Teve a impressão de escutar
passos na escada. Olhou, era impressão. Talvez
a ansiedade. A mentira aguça os sentidos. Foi
silenciosamente pela cozinha até chegar na geladeira.
Seus olhos brilharam. Comeu tudo que pôde. Um
pedaço de torta de amoras. Queijo. Um iogurte.
Encontrou uma pasta de atum deliciosa e logo
misturou ao pão italiano que repousava sobre a mesa.
Sorvete de pêssego com creme.
Subiu lentamente as escadas. Apagou
Duas salsichas.
a luz e continuou, sendo guiada pelos mapas na
parede. Paris. Recife. Lisboa. O maior de todos:
Londres. Empurrou a porta suavemente e entrou
devagar. Júlio continuava na mesma posição.
Deitou-se. Com um leve
sentimento de culpa, foi adormecendo.
lín
gua
do p.
61
lín 62
gua
do p.
Dois homens tão distintos
de lugares tão distantes
se encontraram no planalto
para assuntos delirantes
Do Texas, veio um xerife
de Garanhuns, um cangaceiro
Eram o manda-chuva americano
e o presidente brasileiro
O visitante não era bem-vindo
desembarcou e foi xingado
o anfitrião nem se preocupou
com vaia estava acostumado
GA
RANHUNS
FICA
NO
CORAÇÃO DO
TEXAS.
Falaram da gripe do frango
debateram sobre a aftosa
pareciam dois veterinários
mas era só propaganda enganosa
O texano, pra agradar,
disse que era lindo esse Brasil
o agrestino, pra retribuir
falou que igual aos estêites, nunca viu
O gringo elogiou o Fome Zero
e a preocupação com o povo
o brasileiro ficou olhando ao redor
só esperando de onde vinha o ovo
O brasileiro disse ao americano
que Bin Laden estava em xeque-mate
o americano sorriu amarelo
só se preparando pro tomate
Só sei que a conversa se estendeu
e a amizade dos dois aumentou
entre o americano que partiu
e o brasileiro que ficou Garanhuns ficou em festa
quando viu seu filho com o americano
o prefeito fez até discurso na praça
disse que amava o povo texano
No Texas foi a mesma coisa
quando os gringos viram na televisão
seu representante descobrindo o Brasil
conquistando mais uma nação
E assim se sucedeu
o encontro do ano
d’um nordestino arretado
com um poderoso texano.
ÁRVO
RES
DE
ALU
GUEL.
O negócio é alugar árvores
quem vier, ganha milhagem
pra subir na vida
Nas árvores de aluguel
cada macaco no seu galho
colhe o fruto com a mão
Olha a raiz, nega
Que no chão e no coração se fixou
Sobe em paz, nega
Cada qual tem a árvore de aluguel que plantou
lín
gua
do p.
63
PELOS
lín 64
gua
do p.
OLHOS
SEUS.
Você que acorda sorrindo
que toma conta
das flores
das dores
das cores
Você que caminha sem pressa
porque a vida não corre
o tempo não urge
o dia não cai
Você que se abraça
que não vê desgraça
que deita sorrindo
para assim acordar
novamente
Me deixa ver com seus olhos, esse mundo.
Palavras com artrose
demorando a levantar da cama
Porque cama tem amor, sexo,
paixão, sono, sonho, televisão
Dá preguiça mesmo da palavra
levantar
Mas uma hora ela levanta
e vira uma palavra maiúscula
toda grande
toda prosa
ou poesia
E algumas palavras gritam:
- Lá vai a palavra, talvez alegria,
depende do dia.
PALA
VRAS.
PE
QUE
NAS
Palavra que grita
palavra que chora
palavra que namora com palavra
palavra que se reproduz
e produz novas palavras
Pequenas palavras
que logo crescem
e por vezes viram palavrões
Pequenas palavras
que logo florescem
e por vezes viram lírios, ou cílios, ou filhos
Pequenas palavras
que andam unidas pelas cidades
em outras palavras como bonde
Pequenas palavras
que na dúvida não ficam
e perguntam quando, quem e onde
Pequenas palavras
que tateiam o escuro
para encontrar palavras iluminadas
Pequenas palavras
que não se conformam
e imploram pela palavra gesto
Pequenas palavras
que são como crianças
tem sempre algo a dizer
lín
gua
do p.
65
lín 66
gua
do p.
S
N
O
TELA
C
U
R
B
A
Em terra firme, olho para o
alto procurando as estrelas.
Do avião, olho para baixo.
As cidades são as estrelas de
quem voa.
ÇÃO
AN
A
Morreu Lindomar, filho de seu Agenor e dona Benedita. Morte
súbita, já que por essa ninguém esperava. Morre Lindomar,
aquele das latas de leite sem rótulo na extremidade de uma
vara de bambu, exímio tirador de jambo. Passava tardes
fazendo a festa das crianças da rua. Enchia primeiro
as latas, refletindo o sol da tarde no meio das copas.
Depois, enchia baldes. E enchia os olhos, as bocas
e os corações das crianças. Lindomar, irmão mais
velho de todas aquelas criaturinhas. Sempre
adiantado para o trabalho, sempre atrasado
para voltar para casa. Sempre encontrava
obstáculos no seu caminho de volta: os
jambos para as crianças, as peladas onde
ele assumia a posição de juiz, a ajuda
para colocar a cadeira de balanço de
dona Marisa na calçada, o bate-papo
com Manoel da venda, uma partida
de bola de gude na Rua de Areia.
Morre Lindomar. E com ele, são
enterrados os sonhos de uma
vida mais pura, de novo, na
cidade. Provavelmente, os
carros amanhã estarão mais
barulhentos, as pessoas
mais intolerantes e
o tempo, chuvoso.
Seremos enterrados
nós, nas covas de
concreto. Isso é
hora, Lindomar?
Ficava mais
um pouco. A
gente seria
mais feliz.
ta
No
faleciment
de
o.
lín
gua
do p.
67
lín 68
gua
do p.
A
a
moça n
janela.
No meio da rua
o devaneio
a moça nua de costas nas frestas
da janela do primeiro andar
o olhar preso, o olhar
Olhar e ver
do meio dessa rua calma
janela da tua alma
que revela teu cheiro e tua cor
A dor de não tocar
me deixa ao menos olhar, então
me deixa sorrir
E antes de partir
te vejo,
desejo teu beijo
sigo meu caminho em vão
Por quê a doçura?
Quero de volta a
amargura, a dor
fina num ponto
inconsolável, interno.
Uma ferida sem
cicatrizes, que não faça
lembrar, anos depois.
Pegue essa doçura e
saia. Só me volte aqui
quando tiver de novo o
sorriso frio e as mãos
quentes.
{E enquanto ela dava
as costas, ele dava
mais um passo em
direção ao profundo
abismo de estar
sem ela, mentindo
aos dois. Mais a si
próprio.}
A
no
A
de
mentira
lín
gua
do p.
69
Uma
versus
lín 70
gua
do p.
a
A psicanálise acaba com suas culpas, mas leva junto um
pedaço de felicidade, de irreverência, de irresponsabilidade.
Prefiro as cervejas seguidas de neosaldinas.
ma
versus
Antes de mais nada.
Entre
tantos
e
entre
Antes, demais, nada.
poucos
.
Antes de mais, nada.
lín
gua
do p.
71
lín 72
gua
do p.
P
a
Dê-me um quilo de palavras sem cascas
sem caroços
Lavadas nas bacias purificadas da alma
Cortadas em rodelas
- sem rodeios Por uma lâmina e língua afiadas
la
Dê-me um quilo de palavras sem bastas
sem muros
v
ra
Sopradas pelo canto da boca, um canto na boca
Ditas sem rodeios
- sem mazelas Por uma língua e lâmina afiadas
na
Dê-me um quilo de palavras
s
balanç
a.
Para os que estão longe, uma lembrança
Para os que estão perto, um abraço
Para os solitários, uma caminhada
Para os bandos, uma parada
Para os jovens, um futuro
Para os velhos, um presente
Para os que já se foram, todo o passado
Para os homens, mulheres
Para as mulheres, filhos
Para os filhos, homens e mulheres, pais e mães
Para os que muito trabalham, uma pausa
Para os ociosos, um livro
Para os livros, estantes
Para as estantes, os ociosos
Para o edredom, noite de chuva
Para os dias de sol, uma praia
Para os políticos, sanidade
Aos insanos, o mundo
Para os ouvidos, música
Para o corpo, mãos
Para as mãos, outras mãos
Para os que têm sede, água
Para os que têm fome, prato
Para quem tem fome e sede, dignidade
Para
desejos.
todos,
Para os irmãos, o amor
Para os amores, o calor
Para os amigos, amor e calor
Aos descrentes, jardins
Aos que em tudo crêem, cuidado
Para a grama, pés de criança
Para Deus, o Homem
Para o Homem, Deus
Para ontem, nada
Para hoje, nada
Para amanhã, tudo
Para o despertador, um tapa
Para o relógio, um lixeiro
Para os celulares, carregadores esquecidos
Para os automóveis, buzinas quebradas
Para os abandonados, uma palavra
Para os que acolhem, nem palavras
Para a caneta, idéias
Para as estrelas, olhos
Para a lua, olhos
Para luas e estrelas e olhos, um amor
Para quem quer bem, um bumerangue
Para quem quer mal, um espelho
Aos vinhos, taças
Para todos, desejos
{Para a minha Lua, meus olhos. E basta.}
lín
gua
do p.
73
lín 74
gua
do p.
Q
uietude
.
São tantas as palavras em dezembro que janeiro fica meio silencioso.
Nostalgia,
uma
senhora
a
caminhar
.
Naq
uele
dia,
saiu
de c
asa a
ndan
do d
e co
stas
para
ver s
e en
cont
rava
o qu
e pe
rder
a no
pass
ado.
lín
gua
do p.
75
lín 76
gua
do p.
Aben
çoados
por
Deus.
A freira passou pela frente da igreja
e fez um sinal. O padre entendeu e
apontou para a direção que ela deveria
seguir. Ela foi, sem olhar para trás.
Entrou no primeiro beco que encontrou.
Trêmula, tinha as mãos pingando.
Distonia pelo medo do que estava por
vir. A ansiedade da libido. Abaixou a
cabeça, olhou para o hábito, meio sujo
perto das sandálias de couro. Enxugou
o suor na testa com as costas da mão,
o suor das mãos nas costas do hábito.
Pensou em respirar fundo, mas não teve
tempo. O padre puxou-a pela cintura,
espremendo seus seios. Um beijo de
amor, contra a parede.
Demoraram muito descobrindo línguas
e dentes e saliva e lábios e bochechas
e queixo. Só Deus como cúmplice,
observando os dois a se amar.
Carnaval de Olinda tem dessas coisas.
Fantasias reais e paixões divinas.
O
O
Cada corpo com sua cabeça
esta com seu mundo
onde ruas e veias correm juntas
sangu
e
que
corre
pelas
Cada veia com seu sangue
cada rua com seu sangue
nestas cabeças e nestes mundos sem donos
veias
cdi
ad
da
lín
gua
do p.
77
M
Bom dia,
ur
be.
lín 78
gua
do p.
Despertou com
os edifícios mais
altos arranhando
o céu da sua
boca.
Mas
,
ur
.
antes
Deixa tudo aí
Os pratos
Os copos
Que eu cuido se acordar
Deixa tudo assim
Os partos
Os corpos
Que eu acordo para cuidar
Aceito suas condições
E confissões
Vou aprendendo e vivendo
Entre os senões
Mas antes de ir
Leia na porta o bilhete
de boas-vindas ao
lado de fora da
minha vida
Mas antes de ir
De partir
De fugir
lín
gua
do p.
79
lín 80
gua
do p.
Cho ve
b
o
r
s
e
Ela ama o que não tem
mas a vontade, tem
De refazer o que fez mal
e
De desfazer o mal que fez
l
Fica até o dia clarear
na frente da tv
pra se ver, se ele vir
e servir de reza na sua noite só
Só de esperar ele voltar
e
s
Ela dorme guardando o sorriso
para o dia que vem
.
e sabe que ele vem
ele vem para ela acordar
ver
da
dei
ra
Do que
ver
da
dei
ra
No estado em que te encontras
Não encontro a ti, mas a outra
E do que ruminas na parte do dia em que
há sol
Nada me lembro quando já não há
Esquecer o que foi dito
É lembrar-me do que verdadeiramente és
mente
lín
gua
do p.
81
lín 82
gua
do p.
A MENINA
CABEÇA
DA DE
O
L
G D
ÃO
.
A
em
nuv
m
e
ho em
sen
rg
r de ue su
e
v
q
e
ão
s
d
d
n
ca
ge
go
Brin as ima a de al
ç
com a cabe
su
a
n
a
alei
ia
de b a sere
s
o
n
c
e
o
l
u
F
q
a pe
ar
um da no indo
a
rr
t
i
o
s
e
d
njo saro
a
Um o pás ar
em
tu
nd
nuv
o li r, a flu
em
o
a
h
o
n
a vo
ese
odã
er d de alg ça
v
e
s
e
ca d gen
cab
Brin as ima a sua
n
com urgem
s
que
Abriu os olho
se
deu de cara co
m
o. Ficou tenso.
Ol
hou para cima e o
estava desliga
abriu os olho
do. Fechou s novamente,
e
para Sua não estava
curar. N ada.
mais.
Virou-se.
Tentou esticar
Ele
O HO MEM QUE
havia
E
P
a. Desespero.
o para alcanç
ar RDEU
perdido (
)I.
AS as.
lín
gua
do p.
83
Ali, todos os dias
eram domingo. As
saias passeavam
abertas em gramas
verdes, onde podiase pisar. Picolé
era almoço e sujar
as mãos na areia,
permitido. Havia
família na varanda
e pai cochilando na
rede. Não havia hora
de chegar, menos
ainda de sair. Música
era passarinho, cigarra
ou um ruído vindo da
biblioteca, onde o copo
de uísque descansava
enquanto a agulha
passeava no vinil.
Ali, todos os dias eram
domingo. A lua morria
de preguiça de levantar,
deixando a praia até
mais tarde para quem
quisesse. Não tinha
televisor ligado. Tinha
livro. Sapato, só para ir à
missa. E olhe lá.
Ninguém morria, porque
domingo não é dia de
enterro. Nem de vestir
preto. Nem de chorar.
Ali, todos os dias eram
domingo. A manhã recebia
a gente no teatro de
bermudas, para ver o lobo
mau se dando mal. Pipoca
salgada, chocolate meio
amargo, coca-cola doendo
nos dentes. E ainda tinha
parque e circo e cinema
e festa com brigadeiro e
passeio com o cachorro e
namoro no fim de tarde e
não tinha shopping - que
shopping não é lugar de
domingo se perder dentro.
As mães beijavam avós, que
beijavam netas, que beijavam
tias, que beijavam irmãs, se
que beijavam.
Ali, todos os dias eram
domingo. E o melhor de tudo
era que a segunda jamais
chegava.
DA L I
lín 84
OS
DOMINGOS
gua
do p.
Assustado, ca
lç
ou as.
Caminhou lent
amente, ten
desviar o olha
tando
r
do mais óbvio
que houvesse
chão muito. Ac
. ende
Abriu a do. Se
ntiu o
u a.
Respirava com
o um bicho en
curralado.
Olhou-se no es
pelho. Não sabia seu
O HO MEM PE
QUE
RDEU (
)II.
AS
nome.
lín
gua
do p.
85
lín 86
gua
do p.
UM
VAZIO.
Não que sejam muitas paredes. Apenas me faltam quadros.
.
Lavou o rosto
e escovou os.
Aturdido,
teve um súbito
raciocínio sobr
e um caminho
percorrer. Abriu
a
a porta girand
o
a,
rapidamente.
Desceu os três
que davam ac
esso ao. Aceler
ou
as
os.
Desatou a corr
er. Pulou um.
pessoas o olha
Notou que
vam
M
E
M
O
O Hapenas continuou co
QUE . Não encarou ninguém,
rrendo e pela frente de
um
a e viu seu desviando de.
depres
sa,
Passou
reflexo. Estava
nu. Correu m
ais
E
P
RDEU
em direção
a
(
)III.
AS
uma.
lín
gua
do p.
87
ACO
lín 88
gua
do p.
DA.
R
Palavras que são comportas.
Abrem caminhos.
Escavam túneis na montanha à minh
a frente.
Quebram rochas antes impenetráveis
.
Inundam o vale fértil e desconhe
cido de uma alma silenciosa, sono
lenta.
Acorda. Acorda. Acorda.
{Que eu sei que embaixo dessa neve
mora um coração} - Tom Jobim
Minhas palavras querem seus ouvi
dos.
Posso entrar?
É
MA
DRU
GADA
EA
CI
DA
DE
DOR
ME.
A casa demorou a acordar. As paredes,
sonolentas, espreguiçavam os pés direitos,
encostando no teto. Na cozinha, o frio da
madrugada se agasalhava com um café no
fogo, feito lentamente, como todas as coisas
deveriam ser feitas quando ainda é cedo e o
sol não invadiu a sala. {No lavabo, as mãos se apoiavam
firmemente, enquanto o rosto
mirava-se no espelho.}
Um vento frio soprou no corredor,
levantando as cortinas no último quarto.
Fui ver. Olhei pela janela e vislumbrei,
pela primeira vez, a cidade. Fechei a
janela em silêncio, para não acordá-la.
lín
gua
do p.
89
lín 90
gua
do p.
DE JO
ELHOS,
UMA
ORA
ÇÃO.
Você que sente na pele.
Que chora na chegada e
na partida. Usa a memória
para pode olhar para o
futuro. Você que respira
os aromas de suas próprias
pétalas. Inspira. Expira.
Inspira mais. Você que tem o
cofre da vida. Que oferece a
luz ao semelhante que chega.
Alimenta com um rio de leite e
um leito de amor. Você sozinha.
Você que nunca está só. Você
que manda. Que comanda.
Anda nas sombras e ainda
assim ilumina. Você que lambe
a cria. Você que tira proveito do
sorriso. Você que tem olhos que
ferem. Você que abraça o que vê
e caminha de mãos dadas com o
invisível aos outros. Você que sabe.
Você que é dona de todos os dias
do mundo e precisa aturar algum
estúpido do sexo oposto que
inventa de dizer que só há um dia
que seja seu.
Espinho
não
machucaa
É flor que se cheira
e se faz de louca
Me dá sua boca
com um sorriso só seu
E eu
só posso dizer
que ela é uma flor
Uma flor que se cheira
lín
gua
do p.
91
lín 92
Queria dar o melhor prefácio, você mal quis ler.
gua
do p.
Queria um enredo amarrado. Não, nós dois amarrados. Você se esquivou.
Queria poemas sussurrados e carinhos eternizados. Você bocejou.
Queria um final feliz. Você queria um final.
Meu
último
romance.
que
por ória
o
d
a
hist
ess
trav ma bela ta azul
a
a
lh
da
ne
eu
. Na
e ca
me o
e qu
{Ela ntend ecisa d omeçar lefone
e
c
e
pr
não or só o para ro de t
m
e
c
de a el bran m núm do.}
e
u
p
e pa Ou de em segr
s.
i
o
a
ad
m
hich
coc
último
?
Mãe,
o
que
é
amor
- Amor, filho, é quando, depois de uma noite inteira, o sol reaparece lá do outro lado do mar.
lín
gua
do p.
93
lín 94
gua
do p.
?
Mãe,
o
que é
mesmo
amor
- É quando tem manga madura no pé, filho.
Volto a
alugar
árvores.
árvores
.
árvores
.
árvores
árvores .
.
árvores.. . .árvores.
árvores
árvores
árvores.
árvores
árvores.
árvores .
árvores
árvores .
árvores
. .
E volto,
portanto, a
alugar árvores.
Meu negócio
preferido na
cidade cinza. Pincel e tinta
verde nas retinas de quem
passa assombrado com o nada,
em pânico inerte. Atravesse a
rua, imbecil. Sua calçada é do
lado oposto ao meu - lá, você
cruza a cidade inteira com sua
mentira, descalça sobre as brasas
que joguei. Deixe-me. A mim e às minhas
sementes. Alugo árvores novamente. E nesta
calçada que estou, teus pés não tocam.
Já vocês, não. Podem desfilar. Podem
flutuar entre copas verdes. Podem sonhar
com um hoje infinitamente melhor
que o ontem. Colham os frutos. As
árvores não são minhas. São suas.
lín
gua
do p.
95
lín 96
gua
do p.
Ohomem per
que
deu
as
Ao entrar na,
deu de cara com
uma velha conhecida,
mas não lembrava de onde
lembrava do seu. Pensou em
pedir ajuda, mas parou
na da loja. Pessoas o
olhavam como se
fosse um. Teve. Andou
na direção da velha
conhecida e puxou-a pela.
Assustada, sem reação, ela
apenas seguiu os passos
dele. Foram de encontro
à rua novamente,
ele guiando,
ela pensando
em como faria
para. Ele querer
dizer-lhe o que se
passava, mas ainda
não as tinha. As.
)
(IV .
Testamento em vida. Minha partida tem seus motivos. A velhice não é
um deles, meus amores. Nem o desencanto. Desperdicei os últimos tempos com amores
consolidados, sorrisos de muitos dentes dedicados aos tantos bons momentos. Fiz de
cada dia um motivo para consolar quem não teve, como eu, um bom dia açucarado na
cama. Ajudei amigos próximos e distantes. Aos próximos, dei minha mão enrugada, para
passeios à margem do rio, sempre contra a correnteza, para parecer que andávamos
rapidamente. Aos distantes, empunhei palavras em papéis de rascunho - forjando uma
emergência, fingindo escrever pelo mundo (na verdade, estava no meu mundo e tinha
folhas brancas e novas, que não combinam com esse tipo de carinho nostálgico).
Mas minha maior doação foi aos meus. Minhas filhas crescidas e infantis e seus maridos
frios. Creio ter dado contribuição às suas relações. O que não se recebe em casa, se
procura no mundo. Levei-as diversas vezes, nos últimos meses, para cinemas e parques e
exposições. E abracei-as o quanto pude. Meu neto sofreu com meus afagos também. No
seu caso, não eram abraços. Eram apertos. Gesto de carinho incontrolável, mesmo que
na porta da escola, onde os coleguinhas passavam olhando - certamente sem saber que
aquilo existia. Meu neto ganhou, de mim, poucas palavras. Mas me devolveu frases novas,
divisão dos seus conhecimentos recentes e descobertas de um mundo que deveria ser o
nosso. Mais simples, puro e feliz.
Confesso que deixo uma dívida para minha mulher. Ela que me ofereceu uma vida inteira,
agora precisa se despedir e continuar a vivê-la com meu silêncio. Desculpe, amor. Mas
preciso ir.
Vou e não tenho hora para voltar. Nem dia. Nem lugar. Mas de certa forma, estarei por
perto. Em algum espelho da casa que vocês se enxerguem.
lín
gua
do p.
97
lín 98
gua
do p.
?
,
Mãe
de novo
me
explica
esse
neg ó cio
amor
- É quando o mar manda as ondas se aquietarem um pouco, filho.
?
E
?
quando
nos
afogamos
mar,
nesse
mãe
– Esqueça isso, filho.
Se você correr perigo, há sempre alguém
de vermelho para buscá-lo no mar.
lín
gua
do p.
99
lín100
gua
do p.
UM QUASE-
POST.
Quase alegria. Quase melancolia.
{De quases, o inferno está cheio.}
BAR
CO NO
EU,
E quando ela soprava contra o vento, eu abria as velas do meu coração.
RUMO.
lín
gua
do p.
101
lín102
gua
do p.
CORUJÃO.
SESSÃO
Um dia você deita
e inventa de olhar
mais tempo que de
costume para o teto.
E um projetor, sabe-se
lá onde estará sua
lâmpada, reproduz sua
vida no fundo brancoescuro do quarto. E
você descobre que é
bom dormir depois de
um cineminha.
Vidas em praças,
conversas sobre
tabuleiros de gamão. E
uma emergência o revés, um
ponteiro preguiçoso de relógio
dizendo que é cedo, para quê medo,
não existe o agora. E uma hora
venta, na outra se experimenta o
lenço na testa. E a festa é ali, com
os sobreviventes da tevê, os bons
de ouvido esquerdo quando cantava
Elizeth antes da Ave Maria, que era
para autorizar o sol a dormir. E segue
o dia de alegria silenciosa, da praça, da
prosa, das verdades que não precisam ser
ditas para serem vistas.
L
O VE HO A D
PRAÇA.
E lá vai o malabarista de bengala,
atravessa com cuidado para não
atropelar quem já foi atropelado
pelo tempo das buzinas. Silêncio
que ele vai passar. E a vida se
curva na esquina.
lín
gua
do p.
103
lín104
gua
do p.
É tarde
preciso não te ver outra vez
pra dormir sossegado
pra fingir que não sinto sua falta
ao meu lado
É tarde
e uns que descem do morro cantam
desatam a lamentar,
em pranto
ÉTARDE.
Que o samba convida a sofrer
Me deixa em silêncio
que é tarde
pra te esquecer
{É tarde.}
UMA
CHUVA,
UMA
Conheço essa tua garoa. É choro de saudade da praia. Frio
nos pés descobertos, sem carinho gratuito. Essa tua garoa
é sentimento evaporado, dor de tristeza que passa muito
tempo presa em prédio, sem rua para brincar. Nem uso
guarda-chuvas, saiba disso. Deixo que tua garoa venha e me
beije. Aceito ser ombro para tuas lágrimas.
DOR.
FI
lín
gua
do p.
105
lín106
gua
do p.
PA
LA
VRAS
NÃO
SE
DÃO
BEM.
.
Palavras não se dão bem
vem
que
eis
E
.
-se
am
Provoc
maior
uma incontestavelmente
a
orm
nsf
tra
e
ras
out
que as
E ao
a frase em sua avenida.
, ela
surgir uma menor, sim
re as vias
parece desaparecer ent
relação,
sa
Des
.
rito
esc
o
de tráfeg
as,
tur
ma
nascem palavras pre
m
cisa
pre
que
,
am
pir
res
que mal
ro
out
do
a
do oxigênio da palavr
has
lado da janela. Há as vel
sempre
palavras, sábias mas nem
vezes
por
os
sam
pas
as
respeitad
uer
seq
sem
sem sequer olhá-las,
ra
out
a
um
ide
res
as
nel
saber que
é
e
Qu
po.
tão importante: o tem
o para
cura para uns, sofriment
mesma
outros, apesar de ser a
ras são
palavra. Verdade, menti
tumores
palavras. Mas antes são
levamos
que
s
ore
and
ou dores ou
so dicionário
em algum lugar do nos
ntiras são
de insignificâncias. Me
tas, mesmo
palavras de pernas cur
que em serifas longas.
. Conflitam.
Palavras não se dão bem
sumo de
a-re
Xingam. Guerra, palavr
s, como
feia
is
ma
da
ain
,
tantas outras
palavra
er
hav
e
morte. Genocídio - dev
o.
ord
rec
não
s
mais feia, ma
. E mesmo as
Palavras não se dão bem
paixão, quantas
lindas atritam. Amor e
com estas e
as
did
per
palavras-noites
amigas
os,
outra: insônia. Pais e filh
dias da
os
com
rdo
aco
e inimigas de
são sete.
só
si
por
que
,
ana
sem
quando viram
Palavras não se dão bem
m, tudo ao
ela
rev
,
em
números. Escond
din
fun do palavras
mesmo momento, con
r, tal qual
ona
uci
sol
a
que seriam par
ra.
ado
calcul
. Têm ódio de si
Palavras não se dão bem
saem de bocas
ou
m
cae
próprias quando
ustâncias devidas
erradas ou certas em circ
rrotados ou
aba
s
are
lug
ou indevidas em
inóspitos.
. Mas por vezes
Palavras não se dão bem
fazem as pazes.
FI
COU,
ELE
ELA
Ele havia preparado as palavras. Deixou-as apoiadas na ponta da língua,
prontas. E caminhou lentamente, mãos dadas, esperando apenas uma
respiração (ou uma pausa) para fazer o amor seguir o caminho do vento
noturno. Mas houve o abraço. Daqueles que calam, que pretendem dizer
absolutamente tudo de uma só vez.
Ele quis ficar ali até amanhecer o outro dia e a outra vida, mas ela
precisava ir. E partiu. O coração de quem ficou.
lín
O maior medo é perder o que ainda não se tem.
PARTIU.
gua
do p.
107
lín108
gua
do p.
VÃ
OS.
a trás
Peço que nem olhe par
fica
que
e
dad
Tamanha a sau
da dor
ain
s
ma
ca,
nifi
dig
que
Dor
Desejo nada
que a detenh
a
Nem um so
pro frio de
vento
Mesmo o al
ento da volt
a breve
mãos
E se perdem as
nós
os
m
ta
sa
de
Se
Criam-se vãos
os a sós
Onde não ficam
controlemos,
não o aproveitemos
como deveria ser.
Abro
um baú que
havia prometido
não tocar. Repleto
de rascunhos de
uma história que
escrevi para não
mais lembrar, para
não mais ler e me
rever. Lá deixei-os
por tantos anos,
intactos, pela minha
total incapacidade de
encarar uma vida que
se fez debaixo do meu
nariz – e que eu fingia
não ter olfato para
senti-la e degustá-la.
Passei pelo portão
enferrujado da casa
desbotada, piso frio.
Assim que cheguei
na calçada, o vi no
horizonte, passos lentos,
mãos apoiadas nos
muros alheios, muletas
cedidas pelos vizinhos,
um carinho silencioso
por parte deles. Olhei
fixamente, pois sua
cabeça estava baixa e
seus olhos não me viam.
Desisti de esperá-lo e fui
viver minha manhã, meu
futebol, minhas bolas de
gude, meus pés descalços
por aí.
HIL
TON
CELES
TINO.
Mais tarde,
você era alimentado como
uma criança e era quando
me sentia mais próximo.
Parecíamos ter a mesma
idade e isso de certa forma
me alegrava. Pelo menos
enquanto eu não entendia
o que se passava.
Fui crescendo e você,
definhando. E a cada novo
olhar, eu o via menos. E
quanto mais eu o queria,
menos o tinha. E a isso
serve o tempo: para que
não o tenhamos, não o
Quando você se foi, não
deixou uma lágrima no
meu rosto. Eu havia me
acostumado com seu
caminhar – nem mais
havia o muro-muleta, nem
as mãos, nem a cabeça
baixa. Seus últimos passos
não moveram a rua. Na
sua ida definitiva, eu já
entendera que a vida é
uma nuvem solitária no
céu branco. Se perdermos
muito tempo olhando,
logo ela estará no
horizonte distante.
Me despedi de você e um
pouco de mim quis ir
junto. E foi.
Mas você volta sem
avisar. E voltou hoje
pela porta da frente dos
meus pensamentos. Não
em forma de saudade
ou nostalgia. Volta
feito névoa cheirosa,
perfumado o ar de sua
presença. Descubro que
você não foi, nunca foi.
Quem partiu fui eu. Mas
você sempre esteve aqui,
este tempo todo. Sendo
meu muro, enquanto
ainda tento caminhar.
Fecho o baú. Até uma
outra vez, vô.
lín
gua
do p.
109
lín110
gua
do p.
pobres, mesmo sendo
cheios da grana.
Dava declaração
para os tios que
Desde
am graça
achav
pequeno, perguntava
em assunto sério e
a
queria
ça,
por heran
falavam de uns certos
moto se não estivesse
dentes-de-leite e uma
dos
livro
velha, o
tal de precocidade,
Sertões que a primeira
que achava ser uma
mas
chata
parte era
senhora que gostava
o resto não, a Olivetti
de ouvir conversas de
r
apaga
de
sem tinta
meninos pequenos.
tinta, a camisa azul
Mas dente-de-leite era
para
era
que
de botão
bola e sapato bom de
botar por baixo do
jogar era o pé, que
do
o
quadr
o
paletó e
chuteira faz a gente
menino chorando
perder equilíbro. Podia
se
Brasil
o
quando
comer queijo na brasa,
lascou na Copa da
salsichão e pastel de
ntava
Pergu
Espanha.
qualquer lugar, mas
o valor de tudo para
batata frita só no
de
s
meno
entender
Mustang que vinha com
economia e mais
queijo parmesão ralado
de vida, porque se
e quentinha para danar,
estava sentado na
feita na hora. Cadeira
mesa estudando era
de plástico sempre era
questionado sobre a
distante demais do
Constituinte, que era
chão, por isso preferia
um lugar onde todo
ficar zanzando e, se
mundo queria ajudar os
cansasse, tinha aquele
banco de praça
fugido de alguma, só
pode ser, para estar
ali bem encostado na
parede da pizzaria.
Garupa de moto não
era lugar de brincar,
menos no sábado.
Chicabon escorrendo
pelo braço é besteira,
pior é piolho. Fogão
de duas bocas porque
cada um da gente só
tem uma, ué. Uma
boca para cada. Uma
fome de cada vez. Café
da manhã na padaria
para todas as fomes. E
falar a verdade mesmo
na hora que dá frio na
barriga porque eu fiz
um negócio escondido
que é besteira mas foi
escondido, aí foi feito
errado. E recompensa
não existe, fazer certo é
obrigação. E obrigação
não é obrigado, que
é obrigatório quando
alguém ajuda.
A ME
NINA
PEN
SATI
Ei, você, sentada
olhando para o infinito
Mira no espelho
que o reflexo é mais bonito
lín
gua
do p.
111
lín112
gua
do p.
A
MOR
TE
DO HOMEM
QUE PERDEU
AS.
A falta de palavras havia o
deixado ausente. E, ao sair da,
não viu o, que se aproximava
rapidamente na contramão.
Seu futuro foi atropelado em
via pública.
No velório, as suas e os seus choravam
silenciosamente. Flores da cor
quebravam a monotonia das roupas
pretas e dos escuros. No esquerdo
e no lado, velas enormes eram as
únicas a viver, se mover, brilhar. A
morte é o quarto escuro de uma casa
sem piso. Junto ao seu, ajoelhada,
sua fazia uma silenciosa. Ele estava
imóvel, petrificado, frio. Não era nem
de longe o tão querido que as estavam
acostumadas a ver, em finais de semana
na casa de, vestindo avental enquanto
para os convidados, que quase sempre
eram a sua. O caixão foi
fechado e seus
carregaram até o
túmulo da família.
Não se ouvia um ruído no
cemitério. Era a última
homenagem ao homem
que perdeu as.
DEIXA
A CHU
VA
VIR,
MENINA.
Deixa a chuva vir, menina
Banhar a tarde que cai
Deixa molhar a avenida
Por onde você vai
E queira Deus
Que não haja porta aberta
Uma laje, uma coberta
Para você se abrigar
lín
gua
do p.
113
lín114
gua
do p.
DAS
GRA
ÇAS,
PAIXÃO DE
O
SÃO
ÃS JORGE.
Das Graças era mulher de subir
em árvore. De correr atrás de
sobrinho. Fazia bolo de laranja
e distribuía sorrindo, na janela.
E esperou sozinha o tempo
chegar. Mas ele não veio ao
seu encontro. Passou por cima
da sua casa, sem tocá-la.
E ria de si mais que todos
pudessem tê-lo feito.
Das Graças fazia do silêncio
da noite os ouvidos para
sua cantoria. Era o tempo
de dois cigarros de fumo e
algumas oito ou dez ou doze
cantigas de beira de rio, que a
lembravam sua avó.
Tratou de apagar o segundo
cigarro na noite fria. Pegou o
agasalho e um café quente e
puro na cozinha. Voltou à sala
e viu o chão pintado de branco
pela lua, que nem pediu
licença e foi logo se chegando,
querendo ouvi-la também,
como uma vizinha mais
distante que vem sem aviso
- mas é sempre bem-vinda.
E Das Graças sorriu para o
imenso espelho prateado.
Deu um gole no café e
prometeu a si própria que
assim faria até o último dos
seus dias. Cantaria para São
Jorge, mesmo nos dias de
lua nova. Que era quando ele
adormecia.
O
O MUNDO
DE
THIAGO
(OU:
PENSAMENTOS NO
MONTE
Saiu em silêncio da sala de aula. Atravessou o
corredor de cabeça erguida, mas fingiu não ver a multidão
de olhos que o acompanhava. E, já de costas para a
escola, pôde dedicar seu olhar ao ponto
fixo que mais o interessava. O Monte Baixo. Sorriso no canto de boca que diz tudo,
pensou. Chegou antes do anoitecer e saiu
antes do amanhecer. Mais uma noite em claro,
o melhor
combate para as trevas que dominaram seus dias.
Cumprimentou os pais, trancou-se e adormeceu.
{Nos dias em que Thiago deparavase com a solidão, travava a batalha como guerreiro tribal. Pintava o rosto de
alegria e, no Monte Baixo, via o mundo acontecer por fora. E deixava o mundo
que carregava dentro de si em festa.}
BAIXO).
lín
gua
do p.
115
lín116
gua
do p.
MAPA.
D
e
s
c
e
t
r
ê
s
r
u
a
s
e, em seguida, entra à direita.
Olha por onde pisa, moça
que nesse chão tem caco
tem caco de vidro
espalhado no barraco
OLHA
E se
você
pisar
com força
pode se machucar
POR
Olha por onde anda, moça
que nesse chão tem caco
tem caco de vida
espalhado no barraco
ONDE
E se
você
pisar
com força
vai se machucar
ANDAPisa. deva
gar
finge que é dia de avenida
pisa devagar
pro samba não deixar ferida
lín
gua
do p.
117
lín118
TIQUE
A.
gua
do p.
Convide para sua vida apenas
quem possa fazê-lo sorrir.
Ninguém a mais. Ninguém a
menos.
DE VÉSPE
RA.
Ele virá - e essa, caros, é uma das
poucas convicções que afirmo ter
hoje. Que venha com nuvens cinzas
e carregadas, ou que nos aponte
impiedoso um sol que não respeite
sombras, é certo que ele chegará.
Ainda poderia nos abençoar com
brisas calmas ou sopros ferozes de
uma ventania das que fazem bailar
nossas camisas no varal. Mas que
dane-se como ele virá. Meus desejos
foram curtos como este dia que os
escrevo. Vinte e quatro vontades
distribuídas graciosamente de forma
igual. Vinte e quatro horas e, em cada
uma delas, um pensamento me afligiu
por minutos - sendo o sentimento
substituído rapidamente por um conforto
que jamais imaginei poder desfrutar. Me
toca agora o vigésimo quarto sonho para
o que virá. E eis que chego onde talvez,
silenciosamente no meu canto secreto das
vontades, o quisera nas vinte e três horas
que antecederam tal momento. Desejo
simplesmente que me venha o amanhã.
E mais vinte e quatro possibilidades de
desejos.
lín
gua
do p.
119
lín120
gua
do p.
DE JO
ELHOS, COMO EM ORA
ÇÃO, NESTA
TERÇA-FEI
RA.
Vestido ainda molhado pela tarefa de
lavar as poucas panelas, pano de prato
encardido no ombro, Graça acorda na
cadeira de balanço no terraço, ofuscada
pelo clarão do início da tarde em Ouricuri.
Quarenta minutos diários de sono depois
do almoço, papa de arroz e uma coxa de
galinha para cada boca da família. Três
filhos, a essa hora de volta na roça, e o
marido doente, vivendo sua sobrevida na
cama toda mijada, com a mesma toalha
velha sobre o colchão. Mas Graça não se
queixava. Não às terças, como esta. Graça
estendeu o pano no galho de goiabeira que
adentrava a parte coberta do terraço e, com
passos curtos e frágeis, dirigiu-se à frente da
casa, interrompendo a busca de duas galinhas
de capoeira que procuravam restos de alimento
pelo chão árido.
A pouco mais de dez metros da casa, Graça ajoelhou-se
vagarosamente, cuidando para que o vestido protegesse seus joelhos,
que já nem serviam tanto assim. Apoiou a mão esquerda no chão e
reclinou o corpo para a frente, parecendo um cão se espreguiçando.
Encostou a cabeça lateralmente na terra e fechou os olhos. Levantou
um pouco e tornou a descer até encostar-se novamente, desta vez com a
orelha direita. Sorriu seu sorriso de sempre, das terças-feiras. Barulho de
água. Hoje é dia de encher panelas e garantir a semana. Bateu as mãos na
barra do vestido para tirar a poeira e entrou na casa, deixando o pano de
prato estendido na goiabeira sem frutos.
A
O
E fez da manhã o eterno parque das brisas e andou leve
por pontes e avenidas, observando as crianças e suas
pipas, flutuando, ambos. Em seguida fez a sombra,
e arrancou a carranca dos olhares dos velhos, que
já não temiam o abandono e encontravam-se no
banco da praça para discutir o que viria a seguir.
Fez as águas beijarem as margens onde antes
sentavam os namorados e hoje os
novos pares plantam um futuro
melhor. Fez o pai da criança chegar
ao escritório com nariz de palhaço,
jogando malabares de papel no chefe
e despertando o sorriso da bailarina ao
telefone que há tanto não sorria daquela
maneira. Correu ao restaurante e fez
o prato farto aceitar a companhia do
mendigo que deixara para trás suas vestes
acinzentadas. E fez buzinas de silêncio. E
fez os prédios com jardins a cada andar. E
na tarde chuvosa fez canteiros de jambeiros
frondosos que decoravam o piso molhado
com uma fina camada magenta por onde
caminhavam de mãos dadas os amantes. E
fez guarda-chuvas multicoloridos. Fez a noite
chegar sonolenta, dando o direito ao sol de
se despedir vagarosamente do seu dia. Fez a
lua visível aos cegos. Fez o dia mais longo,
ao fim.
O
FA
ZE
DOR.
lín
gua
do p.
121
lín122
gua
do p.
EU NÃO GOSTO DA PALAVRA
Vai ali passar uns dias. Como, se os dias não passam quando você não
está?
TCHAU. ACHO FEIA.
A
A
HISTÓRIA
CONTINUA.
Passavam o dia arenga
ndo. Mas no fim de tar
de não tinha como.
Sentavam no galho ma
is forte do pé de azeiton
lambuzavam, jogando
era homem de passos
a preta e se
os caroços no cucuruto
de seu Damião. Que
leves, andava pela cas
a sem ser notado.
Mesmo no piso de tac
o que corria da bibliot
eca para o quarto
escuro de Ruy, que jam
ais era visitado pelos bis
com a lenda do ronco
Assim contava Laerte,
netos, medrosos
maldito, que assombra
va suas noites.
filho mais velho e avô
, presepeiro que só
ele. Foi quem os ensino
u a trepar nas árvores.
caroços no cucuruto de
seu
passos leves e servia Ruy
companheiro de subir
em quem passava.
E ficar atirando
Damião, que era homem
de
desde menino, quando
Laerte era seu
em árvore para atirar
caroços das frutas
lín
gua
do p.
123
CAS
gua
do p.
Jogou as malas velhas no
chão de taco e tirou os
sapatos usando o método
da alavanca: dedão segura a parte traseira, o calcanhar
do outro pé levanta e joga longe o desconfortável tênis.
Estava feliz por ter voltado. Tanto tempo distante e
aquela casa continuava sendo sua. Tão sua. Sentiu
seu próprio cheiro no ar, aquele perfume de madeira.
Estendeu a camisa sobre a mala, para
não amassar, abriu as grandes janelas da
sala e fez daquele momento sua primeira
descoberta. Como a cidade mudara.
Lembrava de umas palmeiras à direita,
que não mais estavam lá. Uma construção
horrorosa bem à frente agora tapava sua
visão do braço de rio que cortava o bairro.
Mesmo o jardim da casa ao lado, que
continuara ocupando seu espaço, tinha ares
de jardim de infância, com brinquedos novos,
talvez para os filhos ou netos. Havia menos
flores.
Mas não desejou a nostalgia. Resolveu olhar o
que há de bom em mudar de paisagem. Dali,
de dentro da casa tão sua. E mesmo dentro
de si, que continuava a ser um homem com
muito mais jardins que prédios.
QU
E
E
R
A
T
Ã
O
S
U
A
.
DE DENTRO DA
lín124
ESSA
Seu sonho dizia
Para ela ser bailarina
Que vida de menina da vida
Não é fácil assim
Sua mãe dizia
Pra enfrentar sua sina
Que bailarina dança
E essa vida cansa
E ela se deixou levar
Pelo salão
Vendo o mundo girar
Vendo a menina da vida
Virar
A menina
Bailarina
VIDA
CANSA,
MENINA.
lín
gua
do p.
125
lín126
gua
do p.
E ASSIM,
O MUNDO
CORRE
PERIGO.
A cova é mórbida
A favela é órbita
A dor é sábia
A paz é óbvia
O pão é ótimo
O rosto é pálido
O amor é plácido
O amor é ácido
E assim, o mundo corre perigo
Girando em torno do próprio umb
igo
Menina olha pra cédula
Incrédula
Nunca viu
Nunca mais vai ver
Menino vê a cena
E acena
Nunca viu
Nunca mais vai ver
E assim, o mundo corre perigo
Girando em torno do próprio umb
igo
NA
PORTA
DE CASA
(III).
Estava nervoso. Girou a chave trêmulo, mas
conseguiu. Abriu a porta, deixando-a escancarada
e disse com os olhos para ela entrar. Dali, não mais
sairiam. Não mais.
lín
gua
do p.
127
lín128
gua
do p.
DA JA
NELA
PARA
LÁ.
Fosse outra primavera você não
estaria tão perto. De hoje para
sempre, sim. E aquele perfume da
janela para lá invadia o quarto de
cá, todas as manhãs, e convidava
ao despertar. Preguiçoso, lento,
quase uma desistência forçada da
noite santa. E o tempo para que
o bule apitasse coincidia com o
acordar definitivo, o sol oferecendo
um bom dia caloroso. Um beijo no
café, um gole de você. E seus olhos
apertados procuram o ombro para
o abraço matinal. E esse cheiro,
você pergunta. É primavera da
janela para lá, veja.
TESE:
O PEQUENO
COMPORTAMENTO HUMANO.
tador. Me
Ah, esse maldito desper
o Montenegro
ald
Osw
o
and
toc
r
rda
aco
tem como ser
não
dia
o
,
nte
- definitivame
elho e me vejo
esp
ao
bom. Passo em frente
o. Precisava me
and
inh
def
so,
ces
ainda no pro
u apetite saiu
me
s
dia
alimentar, mas há dez
o ainda mais
Fic
tar.
vol
is
ma
não
a
de casa par
ba, urgente.
bar
a
er
Faz
um pouco no espelho.
so uma
pas
ina desce,
Agora. Enquanto a lâm
lmente
fina
ira,
ece
cab
vez mais pelo livro na
o certo. {Deitada,
tud
dar
Vai
.
bem
da
Ain
terminado.
e aquele lençol alvo oferecendo aos
estudantes de medicina o relevo completo
do seu corpo esculpido, despertando
dúvidas nas cabeças dos pupilos. A geografia
humana dissecada
sem o uso das mãos.} Tiv
e que ler
aquilo, comecei por obr
igação, confesso. Mas
a esta altura, estou mu
ito mais interessado na
anatomia humana que
na sociologia do século
passado, o verdadeiro
alvo do meu estudo.
Estes últimos dez dias
foram meu calvário,
religiosamente falando
, nada de metáfora sóc
io
ou antropo ou biológica
. Mas enfim, resumo
sempre, nada de prolixi
dade, concentra: hoje
chegou meu dia. A lâm
ina desce pela última
vez. Meu reflexo já me
parece melhor, exceto
pelas olheiras que qua
se tocam o queixo.
Estou parecendo minha
mãe exagerando
enquanto fala. Tenho dua
s horas para chegar
na universidade e defend
er minha tese sobre o
pequeno comportament
o humano. Tranqüilo.
Vai dar tudo certo.
O despertador grita novamente, ligando
naquela rádio tenebrosa. Devo ter apertado
na função soneca. Toca Emílio Santiago.
Caminho lentamente até a mesa de
cabeceira, arranco o aparelho da tomada e o
destruo, jogando contra a parede. O pequeno
comportamento humano. Vai dar tudo certo.
lín
gua
do p.
129
lín130
gua
do p.
Entre abrir a primeira Original e cerra
r as portas de ferro no Bar Central,
uma vida acontece.
Olhos focados e palavras
afiadas, Jarbinhas desfila sabedorias populares, profecias
amarradas, paixões paternas, paus decapitados. Renata sai do
casulo, deixando os filhos lindos, mas participa da noite sem
medo do bicho-papão. Eis que ainda há Lydia, distribuindo seu
perfume de generosidade e um humor invejável. E Cris, que por
vezes abandona o silêncio de sempre e presenteia o ambiente
com o hálito que só a arte tem. Ao meu lado, dando sentido a
absolutamente tudo que é dito e ouvido, a que mais brilha. Lua.
E parece que são essas as noites que revelam quem somos, um
questionário aberto respondido com a franqueza dos olhos.
{Olhos? Homens
com muita ou pouca testosterona? Testosterona. Testosterona.
Testosterona. Repetidas vezes, um rap repente. Ela conseguiu.
E danouse a falar entusiasticamente - menos pelo tema, mais pelo fonema
.}
UM BAR NO
DO
NTRO
CEUNIVERSO.
E a palavra escapa para que ele diga em alto e bom som: vou
barbarizar. E isso não se explica. Mas tem sua graça. Gracinha.
Vêm as domésticas-freelancer e invadem o sertão
pernambucano, em busca da Pedra que não é do Reino, talvez de
Caíque. Digo, Buíque. {E quando a mulher viaja (outra que
embarca, não a nossa mainha) o marido judeu corre para o
quarto dos fundos onde a empregada toma banho. E bate na
da
porta, diversas vezes, aumentando a força e gritando o nome
E
moça, até que, apavorada, ela abre e pergunta: Que foi, dotô?
ele: Quer foder comigo? Ela sorri marotamente e pergunta tímida:
poxa.
Como assim, dotô? E ele: Esse chuveiro aberto há meia hora,
Jacó.}
Ele,
foder comigo? Ela, Maria.
Quer
Caminhamos ainda, seguindo pela
mesa, entre quitutes e gargalhadas.
E o passeio termina sobre a pont
e, onde
a Lua sorri. Vendo a outra, cheia,
no horizonte.
SÓ VOCÊ
EDSAOB P
.
R
E
O
.
A alma pede calma
ao corpo
Que teima em desbotar
Que insiste em fenecer
Me atormento nesse dia
Sem você
A paz já não me traz
contentamento
Nem me deixo sorrir
Pela imagem na memória
Me atormento nesse dia
Sem você aqui
Só você pode saber
Desse querer
Que é tão vil
Mas é meu, viu?
Meu querer em te ter
Eu te espero
Eu me esmero
Pra te ver
Mais uma vez
Aqui
lín
gua
do p.
131
lín132
No meio da
quermesse, fumaceira
para todo lado,
caramelo de maçã
na boca ainda sendo
gostado, olhou lá no
fundo do olho, bem
onde se olha quando a
gente anda apaixonado
e viu aquele brilho
de fogos de artifício,
naquele olho ali. E
tinha ensaiado trinta e
oito palavras para dizer,
tudo juntinha, fazendo
uma setença inteira,
completa, que era para
dizer tudo que coubesse
numa sentença de amor,
mas ali, naquele olho
que brilhava feito fogos,
esqueceu de todas as
palavras, as da sentença
de amor. E meio mudo,
meio surdo, quase cego
e totalmente bambo das
pernas, quase arrisca sair
correndo e fugir de novo,
que no ano que vem tem
São João de novo e ela vai
para a fazenda de novo,
como em todos os últimos
três, quatro anos. E ela,
com os olhos brilhando ali,
no meio daquele fumacê,
com aquela barraca de
algodão doce por trás,
estatalada, como quem
diz “o que foi, menino?”.
NA QUERMESSE.
gua
do p.
fez um bem danado à sua
boca que estava quase
muda.
- É que eu gosto de tu.
E faz é tempo que ele
gosta dela e ficava todo
sem coragem de chegar
junto, na festa de São João
que acontecia todo ano,
mas que de três ou quatro
para cá tinha ficado mais
bonita, mais divertida.
E a cada ano, ele botava
mais perfume, engomava
melhor sua camisa xadrez
e deixou até de pintar
os dentes de preto, que
isso é coisa de menino
buchudo, que ele não
era mais. Agora, pronto.
Resumiu bem resumido
a sentença de trinta e
oito palavras em uma de
seis, das quais só uma era
palavra de duas sílabas,
gosto, porque o resto só
tinha uma. Aí voltaram
os barulhos das crianças
correndo, do sanfoneiro
tocando, do milho
estalando na fogueira e do
buscapé correndo lá perto
do mato.
- O que foi, menino?
- Ôxe. E por que danado tu
nunca me dissesse isso?
Eu também gosto de tu,
mas achava que tu nem
sabia quem eu era.
Ela disse mesmo, o que
estava exatamente na
cabeça dele naquela
hora. Adivinhou o que ele
tinha pensado, naquele
mesmo instante que ela
poderia estar pensando,
e deixou as pernas ainda
mais bambas, seu ouvido
ainda mais surdo, mas
E assim começaram uma
conversa que teve muito
mais do que trinta e oito
palavras, muito menos
que duas pernas bambas.
E duas bocas, que de
mudas não tinham nada,
conversaram a noite
toda, até que cansaram e
resolveram se beijar.
P
PDAORRM A
IR
NO
CHÃO FRIO.
lçada escura
Não volte pela ca
e
gu
tre
en
,
em
Se pedir
dura e pouca
é
a
vid
é
sa
es
e
Qu
o risco de perder
e você ainda corre
esconde no fim da
Se uma sombra se
fuja, corra
mas
Que a noite é suja,
rra
mo
se
e
qu
não é justo
rua
Quero só
em paz
Voltar para casa
frio
ão
fácil, não
Para dormir no ch
o dia não vai ser
hã
an
am
e
qu
r,
E descansa
Não vai, não
ar ao
menos de se cheg
é uma chance a
o
ad
eim
qu
e
st
de po
{E cada lâmpada
o.
ar,
destino desejad
convite à queda.
ure não se molh
bo aberta é um
ure amigo, proc
oc
pr
o,
{Cada boca de lo
rig
ab
e
ur
uva caem, proc
afogar.
{E se gotas de ch
procure não se
lín
gua
do p.
133
lín134
gua
do p.
LIÇÃO
DE CASA
PARA
QUEM
NÃO FALA
QUANDO
SENTA.
O patife uma hora se espatifa.
,
QUANDO SE
SENTE
FAZ
SENTIDO.
Saudade é a distância
tro.
entre um beijo e ou
lín
gua
do p.
135
gua
do p.
R
E
D
N
SCE
lín136
Malandro bom que era,
deixou dois cigarros e beijou
a testa da sua preta doce.
O lençol desarrumado
revelava suas coxas nuas.
Sorriu e acendeu um.
Fechou a porta do barraco
suavemente, procurou
e não viu uma nuvem
sequer no céu azul.
Dali até o trabalho
seriam duas horas.
Primeiro de trem.
Depois, provavelmente,
numa kombi velha.
Atravessou o córrego
sobre a tábua azulada e
sorriu para a pequena
na casa da frente.
Recebeu um sorriso de
volta, escondido pelas
abas da chupeta.
{Vai, que o tempo
só corre quando a
gente pára.}
Deu bom dia a
todos, trocou de
roupa e sentou
sorridente no
banco de
madeira. Sobe?
SALA DOS
ESPELHOS.
Gecina passou a mão por baixo do vestido para ajeitar o tecido.
Espigou-se novamente e viu o resultado no espelho: multicolorida,
batom vermelho e olhos brilhando. Dia feliz, minha nossa senhora.
Aproximou-se para ver se não restava remela no canto do olho. Dormira
mal, verdade. Tensa, acordando de instante em instante, achando que já
fossem cinco horas. Mas nunca era. Até que dormiu profundamente por
meia hora. E aí veio o filho acordá-la com um beijo quente e molhado na
testa.
Agora lá ia ela. Vestido lindo. Batom novo.
{O espelho é instrumento feminino. Só elas o vêem como se deve. Não
é reflexo, pura e simplesmente. Sabem que é a imagem exata vista pelo
outro. E para isso se arrumam.}
Olhou as sandálias baixas. Passou o dedo na língua e limpou o bico,
empoeirado que estava. Ao abrir a porta do quarto, sentiu o silêncio no
interior da casa e estranhou. Filho, filha, outra filha maior com sua
neta.
Onde estariam? Caminhou já sorridente. Ninguém. Nada.
Entrou na cozinha e a cena estava montada, como imaginara. Um bolo
escuro, uma vela branca. Todos ao redor. E cantaram juntos em sua
homenagem. Gecina sorriu e viu-se no reflexo dos espelhos ao seu
redor.
lín
gua
do p.
137
lín138
gua
do p.
O pasto
É vasto
O susto
É justo
O custo
É vasto
O gasto
É justo
TE
GUS
A casta
A veste
A pista
A bosta
¿
E basta
?
HER
ME
T
I
CA
MENTE
A B E R
T O .
Pois d
es
gesso enclausuro
u-se. S
sobre
aiu do
ac
avesso
confin
, arran abeça e tac
amen
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só par
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to hab
made
a faze
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sempr
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b os p
ôs sap
ça. Qu
e salta
és. Ve
irinto
atos c
is e de
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stiu a
de
olorid
sceu o
s últim
camis
os. Ch
s onze
os qua
a ao
{Cada
a
m
andar
o
tro de
u
lance
o
ele
es
graus
da esc
a cada pela escada vador
ada é
,
andar.
a lan
Abriu
ça da
as
sua d
dia. Po portas de v
ança
id
rt
libert
dizem eiro sorri, o ro da recep
ária.}
ção gr
rgulho
que se
itando
so do
fossem
Olhou
s
b
en
om dia
à
v
Deixo direita. Olh ocê, seriam timento qu
a quem
us
ou
en
m
era do
de ma eu paradeir à esquerda ais você (n ão é seu porteir
dame
ã
o esta
. Olho
o
é
s
.
empre
talado
u
o
assim s
na calç ao redor. S
?).
eg
ada, a
Mand
tropela uiu em fren
ou pa
rar o t
t
do po
naque
râns
r um p e.
le
oodle
de me instante. P ito com a p
a
nina,
a
pirulit ssou a mão lma das m
agrad
ãos, o
o de m
na cab
ece o
nd
en
carinh
e
que es
o com ina, sorris ça da menin e o mundo
tá ali,
o
esta
s
ad
d
o
naque
e men
rriso p
le per
ina, m e vestido, r va
ouco.
curso
oupa
ã
E
e
Paraís
e
d
le não
e men
em cu
o.
sorri.
ina
rso.
Camis Cada um te
Espera
aa
m
o dest
quand o avesso. E o seu. Aqu
ino,
ele er
o saía
sorris
a
o
pelas
o
d
d
e
e
m
le
portas
.
e
de vid nina, que e Sapatos co
lo
ro sem
ra a re
sposta ridos.
quebr
ar.
do bo
m dia
lín
gua
do p.
139
D
lín140
gua
do p.
DE(S)
Propõe que ponham o pôr do sol num postal. E se prostram,
protagonizando o ato póstumo.
PROPÓ
{A propósito: é de propósito.}
DNG
OM I
O
P
E R
D I D
O.
Domingo é para ler jornal na cama, fazer café para dois, dizer
bem alto que ama, programar o ócio como se fosse, ele, o
melhor negócio.
Domingo é para o parque, para
desenferrujar o lombo, comer arrumadinho de charque,
comer algodão, o doce, lambuzando a mão. Domingo é
para ouvir um vinil, dançar com a esposa, gritar um puta
que o pariu, reafirmar a certeza, desse amor, que beleza.
Domingo é dia de livro bom, uma espiada na tarde azul,
escutar e fumar com Tom, se deliciar com comida,
na panela, e celebrar a
vida. Domingo é dia de desligar a tv na cara de Faustão,
assistir um filme, mas não na Fundação, tomar um café,
expresso, e andar devagar a pé. Domingo é dia perdido,
de deitar na rede, de sentir-se querido, e dormir cedo
porque o outro dia, esse sim, é dia de medo.
lín
gua
do p.
141
lín142
gua
do p.
Vende-se Deus.
De segunda mão,
mas conservado. Já
trabalhou muito por
você, mesmo sem ser
seu. Vende-se Deus.
Não é por quilo, não
é por metro. Vai o
pacote completo,
como foi criado.
Vende-se Deus a
quem tem alma, a
quem respira, a quem
almeja, a quem crê.
Vende-se Deus. Entre
na fila da fé, peça a
bênção e faça um
consórcio. A parcela é
decrescente. Mas não
descrente. Vende-se
Deus. Não é homem,
nem menino.
Nem mulher, nem
CLAS
SIFICA
DO
.S
bailarina. Já foi
menino-Deus, Deusme-acuda,
louva-Deus. Hoje só
tem nome, que é o
seu. Vende-se Deus.
Oração vale ação na
bolsa do céu. Boas
ações são cartões de
crédito sem limite.
Vende-se Deus.
Tratar aqui.
B
A L
B Ú D I A.
S
Certa vez, atravessou a rua de olhos fechados.
Ouviu freadas. Buzinas. Um cachorro acordou
com a confusão e já latiu.
Seu Antônio gritou um ave-maria sem levantar-se do banquinho do seu fiteiro.
Duas adolescentes apenas puseram a mão na boca e evitaram notas mais agudas.
Um filho da puta se ouviu do motoqueiro apressado.
Várias vozes da janela do ônibus. A madame que
conversava com a amiga deu sua contribuição
com um sonoro agora lascou. O vendedor de
flores do semáforo rezou baixinho e rápido. Uma
bicicleta caiu no meio da algazarra.
Abriu os olhos para não errar o meio fio. Seguiu
pela calçada, radiante. Em silêncio.
lín
gua
do p.
143
AS E R
lín144
gua
do p.
T
S
LA
E
S
- Eu já contei para vocês a
história do homem que não
via estrelas?
Pois vou contar.
DE
E a todos os ouvidos e olhos
abertos, inventou a fábula
do homem sem coração que
não via estrelas e por isso
era tão infeliz. E que a cura
chegou justo no dia em que
ele conheceu a mulher mais
linda, mais doce,
mais brilhante que Deus teria
posto de pé nesse mundo. E,
naquela noite, sentado num
banco de mãos dadas com ela,
ele finalmente vira as estrelas.
SABEL.
Era a primeira das suas doces tardes.
Caminhou até o pequeno banco de
madeira solitário, que morava na
sombra do jambeiro, e olhou o que
estava por vir. Uma casa inteira para
reconstruir. Novas cercas brancas, viase que era necessário. O jardim frontal
da casa, agora mato, poderia voltar a
ser o que fora. E voltaria.
Isabel era cuidadosa com o que não
era seu, desde sempre. E aquela casa,
ah, aquela casa jamais seria sua.
Sempre seria a casa do seu pai.
Sentia-se abraçada por ele, ali no
banco de madeira, onde ouvira
tantas histórias. E histórias com h,
como diria seu Bento, porque estória
com e não existe.
Como a da noite que não teve
estrelas. Coisa de uns trinta,
quarenta anos atrás. Ele, que
costumava caminhar sozinho para
fumar o último cachimbo do dia
antes de dormir, estava passando
justo ali, pertinho do jambeiro,
quando notou o céu. Nenhuma
estrela. Pensou em fim do mundo,
mas lembrou que o mundo não
acaba nunca se a gente não quer.
Pensou que estava cego, mas ao
olhar a brasa do cachimbo afastou
a temerosa idéia.
Era o que via. Melhor: o que não
via. O céu estava sem estrelas.
Nenhuma delas. Pensou em
acordar todos da casa, mas sentiu
que isso poderia amedrontar as
crianças. Principalmente a sua
filha Isabel, a caçula por quem
ele tinha desenvolvido maior
afeição dentre todos os
filhos. E no café da manhã,
contou em voz alta a história da
noite anterior, mas do seu jeito.
Um vento morno acalentava
os pensamentos e deixava
Isabel certa do que estava por
vir. Uma casa para ser refeita.
Uma vida para ser lembrada.
Estrelas para serem vistas.
O
ÚLTIMO
ANTOS.
DE
Pois
o que o
senhor tem feito
por mim eu vou ficar de
gratidão eterna, doutor
Tomé. Sempre tive apreço
por sua família, por dona
Judite e
pelos meninos. E cada
coisa que o senhor me fez,
cada coisa, cada mão, me
acomete o juízo na hora que
vou me deitar e rezo para
o Pai abençoar seus passos.
Eu me recordo quando
tive Bento. Eu parindo e
achando que ia morrer e o
senhor me acudindo. Isso
eu não esqueço, seu Tomé.
Minha vida não tem muita
coisa para contar, mas eu
tenho muita a coisa a dever.
E o senhor hoje, outra vez, o
senhor de novo foi um santo
homem de Deus hoje, seu
Tomé. Porque olhe. Eu não
nasci com a sorte da riqueza
não. E o que eu mais aprendi
a prezar, lição de minha mãe
- que Deus a tenha, foi rezar
todo dia para ter saúde. Que
não dá alegria feito gente rica
tem, sempre contente com os
filhos, com as comidas, com a
casa para morar e a água para
beber. Mas minha saúde deu
alegria para eu chegar aqui até
hoje. O senhor nunca deixou
a gente e sempre deu a mão
e eu sei disso. O senhor deve
lembrar mais que eu do dia que
Amparo caiu no poço no fundo
da fazenda. Eu já tinha dado
por perdida quando ela saiu
sem cor nos beiços e o senhor
socorreu.
Maria parou de falar
subitamente e Tomé apertou
sua mão. Ela ainda o presenteou
com um sorriso. O último de
tantos.
lín
gua
do p.
145
lín146
VE
FA RA
RO
I
R
PA
E
UM MO AD
A
RD
A
LS A
VA LS
gua
do p.
Diz
com quem andas
e direi
se vais feliz
Quis
te cantar uma valsa
falsa
e me fiz
E sim
veio o desejo
do longo beijo
o olhar
um lampejo
de um querer assim
que não tem fim
.
A
S
L
A
A
S
.
V AL A
O
R
F AR
I
R
P M O DE
U M DA
A R
BR
DO
S
I
M
IDE A
O.
NG
.
Vestiu-se de bolinhas e saiu rodopiando - que faltava vento
àquela tarde.
lín
gua
do p.
147
lín148
gua
do p.
I
FE.
O pífio pífano
Assovio que se ouviu
Nota que denota
O som e a cor
O dom e a dor
O pífio pífano
Se ouviu o assovio
Denota a nota
A cor e a dor
O som e o dom
O império de Quitéria
Morou
E desmoronou
A miséria de Quitéria
Amoral
E atonal
Pife de patife que pifa e puf
BEM
NO
OCO.
Abriu os olhos e deu de cara com o céu azul,
torrando o quengo. Piscou duas, três vezes
para certificar-se. Estava vivo. Todo moído,
mas vivo.
Que calor desgraçado. Pensou em cerrar os
olhos novamente e acreditar mesmo que
havia morrido, que o inferno era melhor,
mais ventilado e escuro que aquilo. Mas não
conseguiu convencer o corpo, que estava
entrevado e doido para se levantar e fazer o
sangue correr. Obedeceu.
Sentou, bateu na cabeça para tirar um pouco
de areia dos ouvidos e olhou a redor. Nada.
Aquilo devia ser mesmo o fim de mundo. Nem
vento passava por ali. Procurou uma árvore. Um
abrigo. Uma poça de água.
MEIO DO
Sua memória voltou a funcionar em forma de
lembrança visual. Um caminhão, muita gente em
cima, um peito. Sua mãe. Leite. Ele ali,
pendurado, mamando. Que lugar quente. Devia
estar delirando. Ou morto mesmo e aquilo era um
purgatório mais eficiente, para os que realmente
pecaram nessa vida. Que vida? De onde é que eu vim
para acordar todo lascado, sujo de areia, num lugar
feito esse?
Levantou-se lentamente, não porque quis, mas
porque suas pernas só
entendiam estímulos assim, naquele momento. Olhou
mais uma vez ao redor e viu o que vira antes. Nada.
Pensou em chorar, pensou em rir. Resolveu gritar.
Eeeeeeeeeeeeeeeei. Alguém respondeu de pronto.
Eeeeeeeeeeeeeeeei. Era o eco.
Onde tem eco, tem vazio. Estava bem no meio do oco.
Começou a caminhar. Não sabia direito para onde.
Mas como não sabia sua origem, isso não foi
necessariamente um problema.
{E assim, o conto chegou ao final.
Sem motivo para iniciar, sem
motivo para terminar. E o oco
eram palavras secando ao calor.
Tal qual havia se lido. E fim.}
lín
gua
do p.
149
lín150
gua
do p.
CIDADES
VISÍVEIS.
E por onde passei,
vi cicatrizes nas
ruas, calçadas e
campos de terra batida.
O rosto da cidade marcado por bombas
imaginárias que deveriam ter cortado o céu
verticalmente. E o sangue corria pelo rio,
artéria aberta, manchando as margens e os
marginais. E cada casa tinha sua própria
parede caída. Cada carro parado era uma
família inerte.
Meninos nus olhavam as feridas - as suas
e as dela. Mulheres levavam
camisas com a palavra
dor com a tipologia
de uma marca de tênis
qualquer.
E os homens eram todos
impotentes. Sua macheza
era arma sem bala.
E no pórtico de entrada, que
ironia, lia-se.
Bem-vindos.
N
.
TINHAS
Seja passo ou descompasso
Ou meta, metáfora
Assim posto, oposto ao decomposto
Afora o que se fora
Em linhas
Que não tinhas (tu)
Escrito
Nem dito
Bendito
Bendito seja
Bem, dito seja
Seja passo ou descompasso
NÃO
lín
gua
do p.
151
ROSAS DO
SEU
JARDIM
DE
lín152
gua
do p.
ME M ÓR I
AS.
Por enquanto, é isso. Se eu precisar do
senhor de novo, lhe telefono.
Transmita meu abraço à sua mãe, Gervásio.
Minha mãe faleceu ontem, dona Ana.
Silêncio. Homem de Deus, e como você está
Eu prec
iso. E m
aqui hoje, trabalhando?
inha mã
não foi
e esta
de s
Gervásio urpresa. Mas a va velha, doen
te,
ssim me
. Venha
cá
smo,
para Ne
ide lhe fa , entre de novo
.V
zer um
Neide. S
café bem ou pedir
enhora.
qu
Faça um
para Ge
café bem ente.
rvá
quente
precisão sio. Sim, senho
ra. Don
isso tud
a Ana, fa
o, não.
z
Você
.
io
ás
rv
Ge
z,
Claro que fa
as, lhe vi
nas redondez
cresceu aqui
no jardim,
i
ando seu pa
menino, ajud
rdade
ve
É
e.
ad
a id
temos a mesm
he
an
aí, vá. Se ac
mesmo. Sente
rvásio,
Ge
a.
An
na
do
não. Obrigado,
guma
al
o
Está faltand
mas me diga.
a irmã,
su
s,
ho
fil
us
? Se
coisa em casa
sim,
tá
Es
m saúde?
todo mundo co
rigado,
Ob
a.
An
na
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senhora. O ca
is está
Po
.
ho
ga, meu fil
Neide. Sim, di
.
sim
e,
úd
sa
m
todo mundo co
Graças a Deus. Que bom. Obrigado, Neide. De nada, seu
Gervásio. Então, Gervásio, fique sabendo que o que vocês
precisarem, estou aqui. Olhe, dona Ana, muito agradecido.
Mas não se preocupe, não. Está tudo na santa paz, inclusive
para minha mãe, que partiu dessa para melhor.
Agora eu vou indo que tenho um serviço lá em Candeias. Vai,
sim, Gervásio. E qualquer coisa me ligue. Ligo, sim, dona Ana.
A senhora quer que eu abra a porta? Não, Neide. Deixe que
eu vou. Tchau, Neide.
De nada, Gervásio.
Ana, muito obrigado, viu?
Tchau, seu Gervásio. Dona
O que precisar, conte comigo.
, Ana rebobinava
as escadas do grande casarão
Enquanto Gervásio descia
ela e o filho do
o,
ndid
ho de mangueira esco
sua vida e lembrava do ban
beijo.
jardineiro. O seu primeiro
Vai na ru
a e traz
Palavra q
ue pavim
ente
Pensame
nto trôpe
go
Que meio
-fio não su
ba
Que esqu
ina não e
ntre
Vai na ru
a e traz
Palavra q
ue atrave
sse
Pensame
nto
Que ponte bêbado
não levan
te
Que viadu
to não pa
sse
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Palavra-a
ndaime
Que edifiq
ue
Alicerce
Nossa co
nstrução
{Favor é
mentira
. Vou na
quiseres
rua e tra
, que o m
go o que
undo é t
Dei-te de
eu. Lemb
presente.
ro-me bem
}
.
A
RUA
É
TUA.
lín
gua
do p.
153
NÓDOA
QUE NÃO
SAI.
lín154
gua
do p.
Pode se perder por entre as sombras dos cajueiros
enormes, frondosos. O caminho de volta é o cheiro
de casa, o perfume dos abraços dos teus. E Deus,
ah, Deus. Esse aí dorme desde o sétimo dia.
Descansado está, pronto para acordar e te
salvar se necessário for. E colhe castanhas.
E tortura o tempo. Sorri para as raízes
secas. Corre sem medo de cair, que
abaixo é só areia. Só pense em voltar
quando saciar os desejos de ser
menino. Quando ralar o joelho
e cair na risada, que queda é
divertido. E volta. Mas não
precisa trazer nada. Aqui
estou para ver a ida e a
volta.
ELA JAMAIS VOLTOU A
USAR O MES
MO PE
RFUME.
Começou a desfazer as malas
lentamente. Mas não tinha mais forças
para conter o corpo. Caiu de joelhos e
desabou no choro. Não acreditava que
havia voltado, que desistira.
ele sabe o que fala
o que diz o seu velho avô,
{E há, meu caro - e escute
buscam o passado,
to
tan
que
s,
Este
s vestes.
- os que muito guardam sua
e o que há por vir.}
perdem dois tempos: o hoje
Começou a rasgar todas as roupas,
com ódio profundo do vazio vestido de
passado. Enxugou as lágrimas, abriu a
porta do quarto. Ela jamais voltou a usar
o mesmo perfume.
lín
gua
do p.
155
lín156
gua
do p.
Queria que fosse diferente, mãe. Mas foi do jeito que o destino
quis e quando ele quer, tem jeito para a gente não. Nasci Sol. E
sei que no teu ventre, foi a água que me protegeu - e a ela devo
minha chegada são ao mundo. E tenho maior respeito por aquela
que mata a sede de quem eu castigo. Fosse por mal, eu diria. Mas
não. Amor, para mim, é calor. Diziam os mais velhos que na cidade onde ele nasceu só
fazia escuridão. Um lugar sem sombras, sem suor na testa,
sem óculos escuros - esse, só por causa de conjuntivite.
Era terra de um antigo engenho, cuja família proprietária
morreu na noite de Natal com um incêndio provocado
pelo charuto do dono da casa grande. Mas dizem também
que era gente ruim. E quando é assim, tem que ser morte
trágica. Só quem morre de morte morrida mesmo, de alívio,
é quem vive de bem com os seus. Mas era. Só escuridão
na cidade, bem do lado de cá do rio, que servia de espelho
para menina moça que queria ver as partes com uma vela
iluminando o vestido. De longe, parecia candeeiro gigante
na beira da água. Teve muito rapaz que achava que
era monstro.
Deu-se que quando eu abri o olho, mãe, e me lembro direitinho de como foi,
clareou-se foi tudo pela frente e foi menino correndo tapando os olhos, velha
chorando ajoelhada com o terço na mão, casal se beijando para se despedir
porque a hora tinha chegado. Mas era nada. Era eu, mãe. E por isso fui
embora da sua casa e deixei seu peito. Porque o destino disse que ia ser desse
jeito, e destino é fogo.
Do lado de lá do rio era uma terra verde, bonita que só
vendo, diziam os velhos da calçada. Uns mentiam que já
tinham atravessado e visto tudinho. Menino pequeno era
que acreditava e sentava em roda na porta da casa para
ouvir. Gente crescida acreditava nisso não. Diziam que desde
seus tempos de criança era tudo tal qual se via hoje: o rio
e uma escuridão mais clara do outro lado. Mas que era
escuridão, isso era.
Sendo eu a decidir, decidia por outro.
Ia mandar mãe dos outros parir o sol,
mãe. Vida de iluminar vida dos outros
é esforço medonho, que gente não
faz juízo. Porque a gente mesma que
se assustou quando eu cheguei, essa
mesma gente agora só quer saber de
mim, reclama da vida de antes e diz
que eu é que fiz tudo diferente.
Agora eu tenho que ir, mãe. Que a senhora precisa descansar e
dar a vez para o dia que eu levo. E bem na frente de todo mundo,
na casa de muro baixo no fim da
rua da praça da igreja da cidade
da escuridão, nasceu um menino.
E nasceu junto com o dia.
ONDE
ANTES
ERA
ESCURIDÃO.
.
ELEFANTE.
GALO.
BEZERRO.
.
O
D
A
CÁG
PEIXE.
.
O
R
A
S
PÁS
Olhou para o horizonte e viu a tromba d’água que estava para cair.
Ouviu
Aquele tudo o que os
frango
a
me pag migos tinham
a.
a diz
er sobr
e seu fi
lho e te
Esse negócio de andar léguas atrás
Gostava mesmo era da mamata.
Dois dias
lo.
m torcico
. Ficou co
do tudo
, observan
ros espessos,
Cercado pelos vid
.
E nada
Conseguiu
a.
de um bom pasto não era com ele.
elo jardim
andando p
ve raiv
imaginou milhares
gir.
de maneiras de fu
nas.
s pe
voar. A dura
lín
gua
do p.
157
lín158
gua
do p.
.
A
N
A
B
R
U
O
Ã
D
I
OL
INTRANSPONÍVEIS DA
OS MUROS
Não sobrara um arranha-céus na sua
cidade imaginária. Sentou na calçada
com os pés no asfalto quente da tarde
que não ia embora. Enfiou a cabeça
entre os joelhos e vomitou outra
vez. A ânsia era o fim da náusea dos
seus labirintos mentais, construídos
e desconstruídos sem muito esforço
nas suas poucas caminhadas recentes.
Limpou a boca.
Mirou um poste do lado oposto ao seu
na rua deserta. Acendera. Apagara.
A companhia elétrica precisava cuidar
daquilo. A noite estava logo ali na
esquina e a penumbra dos espíritos
noturnos assombrava seus muros
intransponíveis de solidão urbana.
Quedou-se por mais uns instantes
e ainda a lâmpada do poste que
parecia não ter força. Ah, os tempos
de candeeiro. Um sopro e adeus. Um
estímulo e a luz. Com as palmas da
mão apoiadas na calçada, levantouse vagarosamente e continuou a
caminhar.
Tudo o que mais queria era um
arranha-céu no horizonte degradê.
AUS
D
M
ILHÃO
DE
ESTRELAS.
Todas juntas, olhando-nos.
E nós revirando o pescoço, quase pedindo um torcicolo. Mas continuamos,
olho a olho, olho no olho, com todas elas. Não conseguiríamos encarar
todas. Concentramo-nos num flanco que nos atacava com suas luzes que
viajaram anos e anos para mirar logo em nós, ali.
Devolvemos o brilho recebido com o espelho dos olhos. Aqui estamos.
Olhem bem nos nossos olhos.
Vêem que as vemos?
Sentem que as sentimos?
Sabem que o sabemos?
Sabemos os dois cá de longe: vocês são em um milhão.
Mas nós somos mais.
lín
gua
do p.
159
QUE ELE
gua
do p.
AS BRINCADEIRA
lín160
BRINCOU
Brincava de desadivinhar as
coisas. O que é aquilo? Era
árvore, mas agora é cabeça
de madeira enterrada na
calçada, com cabelo verde e
tudo, além de um pescoço
que, repare bem, é longo
que nem a estrada para o
sítio. E aquilo aceso no céu?
É vagalume gigante, não está
vendo? Voa lentamente e
cruza o horizonte durante
o dia. Quando se despede, a
escuridão da noite chega. E
algodão doce bem levinho,
que voa? Já foi nuvem, mas
isso faz tempo. Mergulhou no
que era mar e agora é tapete
de barco-passeio.
Desadivinhou tanto,
tanto, tanto, que quando
estava bem velhinho,
já era moço de novo,
menino mesmo. E aí teve
que voltar para o lugar
de onde tinha saído.
Barriga da mãe, foi? Foi
nada. Esperto que era,
desadivinhou a morte
e viveu de novo. Num
mundo seu.
C
O
B
O
G
.Ó
– Até orelha tem
parelha, Zé Preto.
Deixa de moganga e
pára de choro nesse
cobogó, senão vaza e
encharca o pilotis. Ôxe.
ELO
Zé Preto não acreditava
mais nesse negócio de
amor. Dizia ele que já tinha
tido muito trabalho com
mulher e que decepção é faca
corta-peito, que agüentava
isso não. Deixou a última
namorada ontem e foi-se
recuperar na casa da mãe, que
nem dava ouvido. Ela, sim, era
bicha sortuda na arte de viver
e amar. Depois de viúva, adotou
para mais de trinta meninos que
vadiavam no bairro de Santo Amaro,
pertinho da sua casa, e dividia o
tanto de amor acumulado entre eles.
Zé Preto enxugou
as lágrimas, pegou
o carro de mão e
continuou carregando
os tijolos. Precisava
levantar a lage enquanto
era verão. Porque no inverno,
os meninos tinham que ficar
abrigados. Chuva é ruim para
quem constrói, pensou e esqueceu
daquilo que ia ser uma decepção
- mas nem teve tempo para isso.
A mãe olhou pelo cobogó e viu o filho
mais velho de tantos. Virando gente.
lín
gua
do p.
161
lín162
gua
do p.
– Macarrão!
Novamente ela. Macarrão, vizinho
do lado, quebrava galho de todos os
tipos para os moradores da Travessa
– Macarrãuuuuuuô! São Pedro. Mas pelo grito de Sônia, o
problema na casa 47 era de parto para
cima. Parto, furúnculo, choque.
Só podia ser um desses três. Macarrão trocou a
calça e saiu em disparada, ainda amarrando o
cinto de cadarço pelo meio da rua. Cumprimentou
seu Evilácio com a Sônia estava acocorada na beira da cama,
cabeça e adentrou a onde Leninha fazia cara de quem está sentindo
casa da cumadre.
uma dor danada mas não dá o braço a torcer
para parecer mulher-macho. Macarrão sabia.
Conhecia os gritos. Era menino chegando.
Olhou em cima da tábua de passar e já estava
uma bacia com água quente e dois panos
novos, cuidadosamente dobrados. Pediu licença
a Leninha e revistou suas partes. Mulher
quando vai parir fica quente que nem braseiro.
Eita que falta pouco, Leninha. Foi até a cozinha
e lavou as mãos com sabão de pedra, até os
cotovelos.
A dona do grito era Sônia.
LOGO
A
L
O
MORA NDEI,
EVILÁ SEU
CIO.
Na parede, uma bandeira do Brasil e uma foto
Macarrão olhou bem fundo nos olhos de Leninha,
do finado Josuel, que Deus
enxugou sua testa e sorriu. Vai começar, Leninha.
o tenha, metido num terno
marrom feio de matar, mas se
{Seis anos depois.}
achando lindo de morrer. Josuel
ali por perto deixava Sônia mais
Sentado numa cadeira de balanço na calçada, seu
tranqüila.
Evilácio olhava o movimento dos meninos na rua. E
ficava espantado como aquelas criaturas cresciam
rápido. Dia desses, Leninha passeava com os gêmeos
de lá para cá, oferecendo o peito farto a um de cada
vez quando chegava na porta de casa. Agora, os dois
estavam ali, compridos, felizes, cheios de saúde. Seu
Evilácio acendeu mais um cigarro, no mesmo instante
que um grito saiu da casa 47. Macarrão saiu todo
desgrenhado de casa, arrumando as calças e o acenou
com a cabeça. Pelo grito, era menino. Ou furúnculo. Ou
choque.
O ETERNO E
Você, que é padroeira dos meus
dias. Gira o mundo porque da
inércia não quer notícia. Pila
cada grão dos meus pensamentos
para servir quente em tarde de
chá gelado rodeado por velhas
que fazem benfeitorias comendo
o biscoito alheio. Lava o dia.
Lava a alma. Lava que desce do
vulcão adormecido em
mim. Você, que é santa
da minha igreja. E o
fiel sou eu, que rezo
e prezo pelos seus
sonhos, que são meus.
Dê-me um pouco da
sua água, minha fonte.
Dê-me as linhas do seu
trilho, minha ponte.
Dê-me seu verbo,
conte.
Não é de hoje. Não é de
ontem. Não é do tempo.
É do que está por dentro.
O eterno eu.
lín
gua
do p.
163
lín164
gua
do p.
DIS
CRE
PÂN
Um crepe com copa.
O meu, com ricota e pêra.
Um aqui de camarões e geléia de damasco.
Por favor: um com ementhal e passas brancas.
E o meu, este aqui com frango e rúcula.
Ninguém concordou com os sabores dos crepes.
CIA.
C
S
COMO
SE
Como
Se contente fosse
Se de manso andasse
Se pra mim viesse
E em meus braços adormecesse
Em paz
Se
Fosse em uma praça
Andasse em um compasso
Viesse em estado de graça
E adormecesse em paz
Nos braços meus
Como se fosse
Como se andasse
Como se viesse
Assim
Sim
Simplesmente
Para mim
.ESSOF
lín
gua
do p.
165
lín166
gua
do p.
TE
ÓFI
LO.
Autoproclamara-se Guardião-carrasco das Entidades
Bestiais em cerimônia solene realizada na sua sala de estar.
Sozinho estava, sozinho fizera a celebração e asseverou o
título ungindo a si próprio com sangue do polegar do sujo
pé esquerdo. Perfurara a unha com uma agulha de tricô
velha. Desvencilhou-se da indumentária negra de alguma
seda barata rasgando de uma só vez do turbante aos
elásticos dourados que prendiam as vestes no tornozelo.
Bradou algumas palavras em
Uma torta de chocolate amargo desceu
latim tosco, bateu no peito e
observou o sangue escorrer da em disparada pelo corrimão em direção
ao grupo de anões albinos que faziam
sua unha ferida. Dali por
uma coreografia havaiana na borda
diante, livre de todo o Mal,
da piscina de chá verde.
o mundo percorreria seu
caminho em paz, livre das
Acordei. Nossa, que sonhos
atrozes Entidades que agora
estranhos estou tendo
faziam parte da sua lista de
ultimamente.
perseguição infindável.
PA R TI U.
O velho tirou o chapéu lentamente. É o que os velhos fazem
quando estão prestes a ensinar. Um movimento lento, que
defina a anti-pressa. A sabedoria é lenta, apressadinho,
dizia-me com aquele gesto.
- Filho, o único
drama da existência
é o desamor. Homem
algum tem contade
luz a pagar quando
dorme no escurinho
com a sua bela morena.
Nãoconheço aquela
que reclame dos muitos
pratos sujos quando o
amantechega em casa
com um sorriso e um beijo
pronto para ser ofertado.
Odesamor é cruel, entendame. Realça as sarjetas,
enfeia paisagens, quebra
dentes. Certa vez depareime com um vendedor de
algodão doce que não sorria.
Como se fosse permitido,
veja só. Era desamor puro,
abandono daquela que o fazia
feliz. E é deste único drama da
existência que falamos, não é
mesmo? Quando me perguntas
porque me contento com o
que tenho, se te parece pouco.
Não é isso? Pois se é, eis minha
resposta. Meu contentamento
é decisão perpétua, já que tudo
tenho. E tudo, para mim, é um
item só: ela. Se a tenho, que
me importa se te parece pouco
ou que para mim é tudo que
preciso? Aqui estou, preste
atenção, filho, debaixo deste sol
que nos torra a pele, esperando
há horas, quando sou abordado
por tua dúvida. Dúvida engana,
lembra Descartes? Não se deixe
enganar. Finja que me ouviu,
finja que minha resposta serve
a ti também, finja que não há
a tortura da espera e do calor.
Mentira será apenas hoje, que
chegarás em casa solitário e aí
compreenderás. Amanhã, não.
Serás um outro. Que, sem sofrer
dessa ausência, falo do desamor,
terás um sorriso e um beijo
pronto a ser ofertado. O desamor
é cruel, filho. Sei que sabes.
Agora, preciso partir.
Meu ônibus.
Partiu.
lín
gua
do p.
167
lín168
gua
do p.
SE
NÃO
ME
FA
LHA
A ME
MÓ
RIA.
Como é que são aquelas
palavras? Aquelas que aquele
cara usa? Aquele que escrevia
umas letras contundentes e
se contundiu numa pelada,
vestindo camisa do tricolor
fluminense? Contusão que
acabou com seu tesão.
Pelas palavras, diga-se.
Como é que são mesmo as
palavras dele? Eu lembrava.
Lembrava bem enquanto
as achava duras, mas hoje
não. Hoje são frouxas,
suas palavras. Melodias ao
revés. O empobrecimento
a favor da maioria branca.
Como se diz? Como se diz?
No intervalo da minha
memória, recordo Mautner,
cantando vampiros ou talvez
mosquitos da malária, os
verdadeiros guardiões. Rio
comigo mesmo, rio para não
chorar. Essas não são dele.
Suas palavras têm sempre o mesmo tom, a mesma ausência, a
mesma timidez duvidosa. Me ajudem. Como ele diz? Como ele
fala? Quais são elas? Como é que são aquelas palavras?
Ele trabalha aqui comigo na
agência. Boa praça, gente simples de
humorafiadíssimo. Estava se queixando
da vida enquanto eu ouvia tudo
preparando um chá, na copa, com
o rádio ligado numa fm qualquer. A
história foi complicando: dívida no
banco, namorada doente, cansaço, briga
com o pai, queda de moto. Até que o
rádio começa a tocar uma música do
Jota Quest. Disse a ele que fosse para
casa descansar, que hoje não é dia dele.
Definitivamente, não é.
ÃO.
HOJE
lín
gua
do p.
169
lín170
gua
do p.
Acordaram abraçados no sofá. A radiola repetia um ruído grave que
lembrava que aquela era uma manhã de vento.
ÁSPERA QUE NOS ESPERA
AO FIM DE CADA VINIL.
A FAIXA
OS
VIZINHOS DE
A
CIMA.
Que ninguém nos ouça, mas os vizinhos
de cima há meses não transam, acredite,
presto atenção nas noites de sexta-feira,
quando antes a cama arrastava no nosso
teto. Casal sem sexo é tevê sem antena,
carro sem pneu, vinho tinto sem taça. Outro
dia gritei a eles, do elevador: tenham uma
boa noite. Assim, alto, a porta já fechada e
eu tentando ser voz de anjo na consciência
alheia, vê que merda de idéia. Dia desses, vi
o porteiro espiar minha entrada no carro.
Brechando o imbrechável. O que há por baixo
do pano, seu fulano, é segredo guardado com
aquele que me vê nua vestida. Encara meu
reflexo no espelho comendo-me ali mesmo.
Pode tentar espiar. No máximo, vai ver a
etiqueta da Marisa.
Você viu no jornal? Estão colocando mais
policiais nas ruas. Aquele viaduto, onde a
gente foi assaltado, agora tem policiamento
ostensivo e blitz permanente. Eles acham que
os ladrões não conhecem o resto da cidade.
Idiotas.
Esqueci de avisar. Meu irmão disse que quer
passar aqui no fim de semana para conversar.
Parece que está se separando. Ou a mulher está
grávida de novo, não lembro. Senti que ele não
está legal. Ou está e quer dividir com a gente.
Sei não. Põe mais uma taça para mim?
{Deixou-se embebedar no colo do alguém,
que ouvia suas súplicas e desaforos aos
desumanos corações.}
lín
gua
do p.
171
lín172
gua
do p.
O
L
.
F R
É nela que pousam as borboletas.
ORC
A.
S_DD_M _US_EI_
lín
gua
do p.
173
lín174
gua
do p.
Nada o
incomodava mais
que o absoluto
silêncio dos fins de agosto.
Observava os que tentavam evitar o vento encanado e quente nas
esquinas, como se possível fosse chegar a uma grande avenida sem
passar pelos encontros das pequenas ruas. Era o mês em que os
postes acendiam mais cedo - e isso o deixava fascinado. Gostava de
debruçar-se na janela com grades do terceiro andar do manicômio
e brincar de adivinhar em que momento exato as lâmpadas
acenderiam, causando estradalhaço
entre os mosquitos, que logo se aglomeravam e davam
início a um balé interessante - diversas vezes, viu mosquitos
machos enormes enrabarem pequenas mosquitas, frágeis e
cintilantes.
Do último agosto tinha lembranças vagas, mas
suficientemente amargas para atormentar seu sono.
Aquele silêncio estava prestes a invadir os corredores
novamente. Estava logo ali, logo na esquina de ventos
quentes. Despertou do breve sonho acordado, aquelas
recordações que não precisam de olhos fechados
para se projetarem na mente. Resolveu dormir
e esperar a vinda do seu novo companheiro de
quarto. Que esperava não ser como aquele, do
último agosto. Antes de voltar-se e caminhar até
a cama, olhou uma vez mais para a cidade.
Já está na hora das luzes dos postes acenderem.
NOL E V Í S I V N I
ESCURO.
Cada canto que toco é outro.
Braços pedem dentes, pernas
exigem minhas mãos, nas
costas deito meu olhar. E
a busca do que não se vê a
olho nu, minha leitura diária,
faz da pele um milímetro
de superfície para um amor
profundo. O visível é nada.
No invisível escuro, um
espelho na frente do outro é o
infinito que há entre nós dois.
lín
gua
do p.
175
lín176
gua
do p.
TIMO
O ÚL
S
U
S
P
I
R
O.
A despedida foi ontem, em João Pessoa.
Na derradeira respiração, o fole abriu-se
lentamente, inspirando, preparando para
soar um acorde menor, triste e dissonante.
Uma pena. Melhor que fosse apenas o início
de uma nova e harmônica história.
Que fique a lembrança, como sopro de nostalgia
das boas, daquelas que nos faz acreditar
verdadeiramente que a música nunca pára. Pelo
menos em nossos corações.
Sivuca, 1930 - 2006.
A
N
A
V
A
R
O
M
P
E
R
IF
E
R
IA
.
Morava na periferia
mas preferia dizer que não
Tinha medo de perder
o que nem tinha
E tinha razão
Pois nas casas que ele ia
com o violão debaixo do braço
cada abraço
era uma mentira
camaradagem, meu amigo, é artigo em extinção
Cada noite, um lamento
cada samba, uma ilusão
O caminho de volta é o alento
Um choro feliz, um perdão
lín
gua
do p.
177
lín178
gua
do p.
A ME
NINA
SEM
ASAS.
Promessa fez e cumpria
Até o dia
Que atirou a moeda
E durante a queda
Caiu em desatino
Viu o destino
Olhar para ela
– Na parada, deu-me beijos assim, abraços assim. E assim, lá fui eu,
sem nada querer, pela vida.
Assim disse-me ela, que não parecia crer no que dizia.
SOU
Sou devoto dela
mo sou
Nossa senhora, co
la
de
to
vo
Sou de
joelhos, preta
Me deixa ficar de
o
pra ser abençoad
s
pé
Cair aos teus
azul
Eu visto branco e
Pra tu, preta
gão
Não me deixar pa
Sou devoto dela
mo sou
Nossa senhora, co
la
de
to
vo
Sou de
issão em teu
Eu organizo a proc
las
Acendo as ve
r
Eu carrego o ando
Pra tu, preta
Me livrar da dor
nome, preta
DEVOTO
DELA.
Preta
Santa
Divina e profana
guidor
Eu sou seu fiel se
Santa
Preta
Menina e mulher
or
Eu rezo por teu am
lín
gua
do p.
179
AS
lín180
gua
do p.
era conhecido por ser o mais animado quando
a sanfona começava a soprar. Eis que nessa
festa, parecendo coisa de destino ou de livro de
romance de Ariano Suassuna, Artur foi se engraçar
logo da irmã do seu amigo-aniversariante,
deixando contrariado o coronel, que na primeira
distração de sua filha pegou o galante Artur pela
gola da camisa para dar-lhe um carão bem
Artur foi menino buliçoso. Cresceu
dado que era para ele deixar de ser atrevido
levantando as saias das meninas mais
e deixar a menina em paz. Só que Artur era,
velhas no colégio público de Gravatá
além de mal-ouvido, corajoso. E, na frente
- que, por sinal, não se incomodavam
dos homens da família, olhou o coronel de
muito, porque por baixo dos panos,
cima a baixo e, antes que esse desse um
àquela época, mais pano ainda havia.
trago e começasse a esculhambar, disse
Só quem se alegrava mesmo eram os
a pérola:
meninos mais velhos, punheteiros
fotográficos, que ao menor sinal de
– Se o senhor tá pensando que vai me
uma batata da perna ficavam doidos de
impedir de ser seu genro, pode tirar seus
excitação. Não parou na adolescência
cavalos tudinho do relento que vem chuva.
com as tais delinqüências típicas, Artur.
E comeu galinha, cabra e até uma cadela
Deixou o coronel tão desconcertado, tão
muito arrumadinha da vizinha, Morgana.
tronxo, que a única coisa que conseguiu
Uma velha ranzinza e feia,
arrancar da boca dele foi um suspiro
que segundo ele só podia ser uma coisa
de desistência.
ou outra.
– A senhora já é feia, dona Morgana, não
tem o direito de ser chata.
Pois Artur foi crescendo e ganhando o
mundo. E pelas cidadelas da região que
ele conseguiu alcançar na juventude, foi
ganhando fama de agitador. Chegou a
peitar o coronel de Sairé na sua própria
fazenda, num dia em que o filho desse
respeitado senhor completava 21 anos,
ganhou dois bois para matar e fazer
um banquete para se amostrar para os
amigos - convidando, inclusive, Artur, que
BRUMAS
Foi ali, naquele instante, que Artur deixou
de ser menino e virou homem. Deixou de
ser um folclore e virou notícia nos quatro
cantos do agreste pernambucano.
Casou com a filha do coronel, dona
Mocinha, e comprou uma casa grande onde
cresceram suas cinco filhas mulheres, bem
na ribanceira da Serra das Ruças, onde a
névoa espessa cobria uma cerca de aveloz
que era tratada pessoalmente pelo dono
da casa. E que, segundo contam os mais
velhos, tinha na porta uma placa de madeira
talhada onde se lia: Aqui Vive o Rei Artur,
Presepeiro Maior de Gravatá.
DE AVE
Esculpida e pendurada pelo sogro.
Z.
EU
MESMO
NÃO.
Mesmo
se o tempo é curto
o caminho é torto
a vida é um parto
Mesmo
quando eu me engano
e sinto que está perto
Mesmo
se estou a esmo
se estou com asma
Mesmo
quando eu cismo
Mesmo
que você
me peça
me diga não
não
eu não
esqueço
de você
Eu mesmo não
lín
gua
do p.
181
lín182
gua
do p.
Leva minhas desculpas, meus abraços As lembranças de
uma noite entre tantas Que entretanto eu lembro bem
ETERNO .
O
R
T
ERENCON
Leva meus percalços, minhas
culpas Tantas dores dos amores
que fizemos E que me fizeram ser
Velhos amigos que se encontram
Num carnaval qualquer
Onde simplesmente
For conveniente
A troca de olhares
E juras
E promessas
E certezas
Do que foi
Do que é
Do que vai ser
Um eterno reencontro
Que acaba de nascer
A
RA
HO
BREQUE.
Sinto dizer
Mas você não sabe, meu caro
Nem vai saber
Nem vai
Que isso é coisa de berço
Não tem figura, nem adereço
Que lhe faça sambar
OD
Eu não me alegro em ver
Que o tempo perdeu-se de você
No intervalo de um acorde qualquer
Acorde
Para dar tempo de deixar uma herança
A uma pobre criança que ainda vai nascer
Acorde
Que morreu a esperança
E pelo que vejo
Não deu adeus a você
Eu sinto, sinto dizer
{Dedicado ao amigo e padrinho René
- conversa com Moreira na roda dá
nisso, velho.}
{Isso nem é música, nem poesia. Não
sou - nem jamais conseguiria tanta
pretensão dentro desse corpinho lindo
e enxuto que tenho - poeta, muito menos
músico. Sou apenas um rostinho bonito.}
{Viva o critério, quando se tem.}
lín
gua
do p.
183
D
lín184
gua
do p.
Lá ia, lá vinha. Um balanço onde colocava as palavras e
graciosamente empurrava, para que elas sentissem o vento dos
sentimentos no rosto. Ao final, dadas as mãos, caminhavam pelo
parque escrevendo histórias que não eram suas.
PENDULAR.
DO
CE
Sua lembrança mais marcante era de uma
cena na cozinha da casa da avó, devia ter
uns oito anos. Recordava perfeitamente
de uma panela velha, sem cabo, que dona
Inês segurava pela borda com um pano
úmido, enquanto mexia vagarosamente.
Entre experimentar na colher de pau e
mexer mais um pouco, o assunto era o
de sempre. As férias, os amigos de pelada
na rua de barro, Monteiro Lobato e suas
fantasias que se tornavam reais na cabeça
de uma criança.
Quando servido, o
brigadeiro era invariavelmente dividido apenas entre os
dois, avó e neto. Exceto quando a tia glutona chegava
mais cedo das suas aulas de piano e prejudicava a
partilha do doce, previamente combinada entre ambos.
Verdade que era uma delícia, com consistência que só
uma avó poderia conseguir alcançar. Mas representava
o prefácio do banho noturno, tomado de cueca ao lado
da caixa d’água no quintal. E isso não tinha o sabor de
uma doce lembrança. A água era tão fria que a única
maneira de se agüentar era pular enquanto derramava
o líquido na cabeça com um pequeno pote de barro.
Ainda com o gosto na boca e uma certa esperança de
que aquilo tudo durasse a vida inteira, ia para a sala
escutar o que estivesse passando na televisão - já que os
olhos, a essa altura, começavam a passar mais tempo
fechados que abertos.
Viu o cigarro cair no terreno baldio ao lado do prédio.
Soltou a fumaça como se suspirasse e olhou os arranhacéus que tomavam conta do horizonte. Ainda tinha a
mesma esperança.
Ç
. LEMBRAN
lín
gua
do p.
185
gua
do p.
D
E
P
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I
lín186
Dito
pelo
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r.
ILHO
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.}
EL
.
A mando de dona Julieta, correu ao armarinho na esquina, atravessando a
Rua das Creoulas sem olhar para os lados, contando com a sorte do
não-atropelo. Do último fôlego tirou o pedido, trocando a mercadoria
por duas notas amassadas pela ansiedade no caminho.
Voltou mais calmo. Fosse por cansaço ou pela certeza da missão
cumprida, certo era que estava mais calmo. Dessa vez, olhou para os
dois lados e viu passar lentamente o ônibus completamente abarrotado.
O cobrador entregou o troco a pequena senhora que espremia-se para
alcançar o assento prontamente oferecido pelo estudante com caderno de
capa suja. Sentou-se e ofereceu um sorriso de gratidão. O estudante
olhou pela janela e viu que estava próximo.
ES TR
Caminhou pelo labirinto de corpos quentes, uma orgia não consentida.
Tantos perfumes, tanta falta de perfumes e a vontade de mudar sua
rotina, estudar à noite para conseguir um emprego decente e ajudar o
pai, que levava vida dura ainda aos oitenta anos. Pediu descida e
despediu-se do motorista com um aceno discreto com a cabeça. O
engraxate do ponto de ônibus afastou-se para que o estudante descesse.
Não tinha clientes por aquelas bandas e não entendia porque a mãe
insistia em mandá-lo conseguir algum trocado no período da manhã. As
noites é que eram boas de negócio. Bêbados tentando seduzir mulheres de
maquiagem desbotada polindo seus sapatos de couro velho.
Contou as moedas para ver se dava para pegar um ônibus até o centro. Na
frente da Renner da Conde da Boa Vista havia movimento de bancários,
que comiam algo por perto e aproveitavam para tomar um café e engraxar
os sapatos. Não tinha.
O estudante, que esperava a saída do ônibus, viu o menino contando
moedas, mas não podia ajudá-lo. O jardineiro que se preparava para
atravessar a rua arrependeu-se de deixar o troco com o dono do
armarinho. O estudante seguiu seu rumo. O jardineiro atravessou a rua
lentamente. O engraxate olhou ao redor, procurando mais um cliente.
ÊS
lín
gua
do p.
187
lín188
gua
do p.
C HO
VE.
– O senhor precisa ter a receita, me desculpe.
Saiu atordoado da velha farmácia. A chuva, impiedosa, encharcou
suas vontades vespertinas. Nada de curar o Mal. Caminhou
vagarosamente até a faixa de pedestres e apertou o botão do semáforo.
Pedestres têm poder demais. Faça-os andar como em marcha pela mais
movimentada avenida da sua cidade e veja o transtorno que causam.
A passeata é a arma mortífera que ainda não foi usada contra forças
sombrias. Não da maneira certa.
Atravessou sem perceber que, do carro parado por sua causa,
uma menina solitária no banco de trás e seu pai mudo e
fumante ao volante o observavam com a piedade que os
passantes provocam nos motorizados - ainda mais em dias
de chuva como aquele.
A menina ainda pensou em perguntar ao pai se estava
vendo aquilo. Um homem nu, completamente encharcado,
atravessando à sua frente. Mas perdeu a vontade.
O pai procurou algo que pudesse distrair a filha. Não
encontrou e deu mais um trago antes de atirar o cigarro
pela janela.
A chuva o apagaria.
EU
ME
RENDO.
Pelo sim, pelo não
É justo que isso dure mais que uma canção
Porque se te fiz esperar
Agora vem minha redenção
Pelo sim, pelo não
Melhor levar o cavaco e o violão
Pra fazer tocar a melodia
Que um dia eu fiz em vão
Tenha dó de mim
Que só sei cantar assim
Tenha piedade
Desse velho sambista
Um pobre artista
Que viveu de amor
E morreu de ilusão
lín
gua
do p.
189
lín190
gua
do p.
Veja a inveja
Sinta a patada, o petardo
Tire os cabides descabidos
Escondidos nos escombros
Dos armários das armas
E revele e vele
A alma má
P
L
A
M
A
GA
MA
Coma um beijo, como um queijo
E aflore as flores
Do ventre que vem em vento
Desfaça
Faça
Peça
Mas não impeça
A fala
O falo
PO
DEL A.
L
BRE
Olhou a cidade com desprezo, lá no horizonte. Como quem vê a amante passar
perfumada enquanto lava as roupas na beira do canal.
lín
gua
do p.
191
lín192
gua
do p.
ME
NOS
BAR
BA,
MAIS
ALE
GRIA.
Aparou a
barba e
testou as
canelas.
Não: a
batata da
perna, que
também
atende pelo
incrível
apelido de
panturrilha.
Ia subir
aos céus,
onde estava
sentado o
pai, todo
poderoso,
com o
cajado
desbravante
de um
manco de
joelho podre
a maçã
,
do rosto
.
la
u
m
ê
fincado na tr
areia.
o
Desceram
e
o
d
ja
a
do c
Areia que
maçã.
a
d
a
tinha uma
om
Desceu c
quase
mais
s,
le
e
grama lá
pouco,
nos altos do um
ranja
la
o
tal alto.
do
ensolara
cuspia
e
u
q
Mãe, que
rde.
fogo na ta
não era sua
mas quase
E depois
era, espiava
foi ele.
os sorrisos
ha
Panturril
alheios
barba
,
a
testad
como
Para
.
a
d
ra
a
p
a
se cada
z.
li
ser fe
um fosse
também
o seu,
tamanha a
alegria que
possuía no
momento
e que
enervava
O
OUTROS
OS
Olhou os filhos
sentados e comendo
como alguém que
vai embora: aquele
olhar que não é dor,
nem sofrimento,
é saudade sentida
antes do que se
devia. Limpou a
boca de sopa quente
com as costas da
mão e respirou
fundo porque o
pulmão segura
lágrima. Levantou
sem pedir licença e
foi até a janela, ver
a rua. Só quem fazia
barulho lá fora era o
silêncio. Assim ficou
até a vista embaçar
num ponto fixo, que
é a quantidade de
tempo suficiente
para esquecer os
pensamentos ruins.
Sentou de novo
e olhou os filhos
sentados e
comendo. Segurou
a mão da mulher,
de leve, como
quem sente que
conseguiu.
E
U
S.
lín
gua
do p.
193
OS
AMIGOS
lín194
gua
do p.
DE
A MENINA
RODOL
FO E
VIRGEM
No banco de trás, um dos amigos de Rodolfo conta a piada sobre a
virgem. Conclui a piada, mas nenhum deles ri. Intrigado, pergunta
se eles sabem o que é uma virgem. Não, não sabem.
– Virgem é uma menina que tem hífen.
A mãe de Rodolfo riu sozinha, ao volante. Muito.
H
.
a.
nad
um
com
– Tô
– Am
or, j
á te
r
a do
fale
da
vido
u
de o
i. Vo
cê t
em
que
i
proc
He n
urar
um
orni
torr
inco
.
lín
gua
do p.
195
Deu
lín196
hojenUOL.
gua
do p.
o
Na capa do uol, estava estampada
a minha decepção: “Rede
contra tubarões é testada em
Pernambuco”.
Chorei lágrimas salgadas. Explico:
sou o líder pernambucano da
campanha Abrace um Tuba.
Queria que o tubarão se
tornasse o símbolo-mor do
Queria coordenar passeios pela orla
nosso estado. Queria ver
em catamarãs com piso de vidro
tubarõezinhos de pelúcia
– talvez até incrementar o traslado
sendo vendidos no shopping
com ataques ao vivo contra
para os turistas. Queria
surfistas.
ver camisas em varais na
Puxa vida. Acabou o charme. Vão
feirinha de Boa Viagem
instalar redes e os pobrezinhos
com os dizeres “Estive
vão ter que atacar em Alagoas.
em Recife e lembrei
Que fim trágico para uma
de você” com uma
espécie. Que dor sinto em
ilustração fofinha
meu peito.
de tubarão e uma
Acho que vou morar na
mordida na manga.
Austrália.
{Adendo 1: essa idéia das redes foi sugerida,
em 1998, por Rômulo Bastos, surfista amigo
nosso, numa conversa em Serrambi. Aí eu
pergunto: os estudiosos são muito lentos e só
pensaram nisso agora ou houve falta de vontade de
quem mandava no estado até dia desses?}
{Adendo 2: instaladas as redes, corremos o risco dos
tubarões migrarem de Boa Viagem para, por exemplo, Gaibu?
Porque se isso for rolar, passo a ser o maior defensor da idéia.
Tubarão adora farofa, até onde sei.}
{Adendo 3: aos familiares de pessoas que foram atacadas por
tubarão: esse texto é ficcional, pretende ter um pouco humor em
relação ao tema, mas de maneira alguma agredir (ainda mais) quem
sofreu o horror de um ataque de tubarão.}
{Adendo 4: vocês confiam nessa rede?}
em
S
.
sentir
Sem sentir
ela fez uma música para eu dormir
Sem sentir
ela cantou baixinho para eu ouvir
E eu
Sem sentir
Fui sentindo, sentindo, sentindo
Que tudo agora faz
Sentido
lín
gua
do p.
197
E sta
mos
s
ó
s
lín198
gua
do p.
dou
tor.
Tu e eu que vimos, doutor. Eclipse total dos sentidos, dormência no
músculo principal, vou morrer. E tu sorrias. De mim. Doutor, só tu e eu
sabemos que quem vai morrer primeiro é o cavalo do cão que pousa na
lâmpada, as formigas voadoras no inverno seco, a palha que cobre a
casa que eu queria morar na frente do mar. Estamos sós, doutor. Sós
nessa vida que não acaba nem tão cedo. Graças a Deus.
sta
mos,
.
p
e
a
.
C
Aquilo que me foi dito, em várzeas da Agamenon, perdura:
crescer sem perder o cheiro inocente da infância.
{O tronco familiar é firme e tem raízes fortes.}
lín
gua
do p.
199
lín200
Defi
gua
do p.
mar
nições
Popular é um cara que tem
barco e te convida.
Arrogante é um cara que
tem barco e convida o
escritório inteiro.
Fodido é o cara que nem
nadar sabe.
ítimas
.
{Politica
me
rreto é
nte inco
ue sac
o cara q
róprio.}
do a si p
cluin
aneia, in
es
Duas da tarde na Vila Madalena, 9 de março de 2007.
George W Bush desce do carro cercado por vinte e
dois seguranças particulares e metado do exército
brasileiro. Queria conhecer uma livraria. O trânsito
pára, motoristas xingam, manifestantes empunham
cartazes em inglês errado. Ele caminha lentamente,
mira a porta de entrada, mas não entra. É atingido
por uma bala perdida do PCC.
InGodwetrust.
A marinha americana começa a se deslocar rumo
ao Brasil. O exército afegão e uma força iraniana de
defesa tomam suas posições no Pará, Maranhão,
Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte. O incompetente
exército brasileiro convoca controladores de vôo
aposentados para a tarefa de rastrear todo o espaço
aéreo brasileiro. O presidente Lula pede desculpas ao
povo americano, afirmando que "os brasileiros estão
sofrendo com a tragédia acontecida ao presidente
americano em nosso território". O Pan é cancelado
e Manoel Carlos é chamado às pressas para escrever
outra novela, dessa vez com uma personagem
paulistana chamada Helena – que é filha de
americanos e ama os dólares que recebeu de herança
quando o pai morreu de leucemia. O senador
Fernando Collor defende o confisco da poupança
para garantir uma reserva pós-guerra. ACM vê, do
hospital, no You Tube, as cenas dos treinamentos do
exército americano e diz que se eles ousarem invadir
a Bahia ele coloca o trio do Chiclete na fronteira.
No sul, Pedro Simon declara independência do Rio
Grande, constitui um país e diz que não tem nada a
ver com essa confusão. O CPM 22 lança uma música
chamada Troque a Guerra pela Paz e Ivete Sangalo
lança o álbum Ivete in America. Claudio Assis faz um
filme rodado no interior de Pernambuco. A Globo é
vendida para a Warner.
***
Essa história é fictícia. Acho.
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gua
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Se quiser saber de mim
Procura o retrato na caixa de sapato
Que eu ainda sou aquele
Do sorriso aberto
Se quiser saber de mim
Toca a fita escondida na gaveta
Que eu ainda sou aquele
Da voz que não cala
Sou o mesmo que fugiu
Fingiu que estava longe
E de perto te viu
Me ver no retrato
Me ouvir no gravador
Chorar pelo meu amor
Meu amor
Voltei agora
Acor
gua
do p.
E vou ficar
Pra dormir aqui
E acordar
E acordar
E acordar
dado.
normalidade
A
ensurdece,
empobrece.
cega,
Tudo igual, tão normal. Músicas primas umas das outras, poesiasirmãs, palavras que já foram apresentadas mais de uma vez e
fingem não se reconhecer no novo encontro. Ignorância hipócrita
de quem se apresenta como intelectual na mesa do restaurante.
- Nós, intelectuais, é que precisamos dar um novo rumo.
Se você tivesse perdido um pouco,
digo pouco mesmo, de tempo a mais
exercitando a árdua tarefa de realizar, entenderia
a inteligência alheia e subestimaria os seus comparsas.
Mas não me espanto mais com o que dizes. Já fui apresentado às
suas palavras várias vezes. Mas eu as reconheço.
{No restaurante
Leite, meu intervalo
de garfada se torna
revolta. Cala-te, boca.
Não a minha.}
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gua
do p.
Quanto mais baixo falo, mais grito.
{Em resumo, é isso.}
MENOS É MAIS.
ERA AMOR
ALFORRIADO.
Palavra muda
silenciosa feito ve
nto em tempo de
estia
Que não é minha
apenas calou-se
por dentro
Feito menino qu
e brinca de escond
er
Fugida do nada
recolhida numa art
éria qualquer
Recém-saída do me
u pobre rico coraç
ão
palavra fugitiva
Das polícias que
tenho aqui no pe
ito
Calada e solene
minutos de silên
cio em respeito
Antes que se visse
o pavio
e bem no seu fim
Se ouvisse o grito
infinito
E não era dor
E não era dor
E não era dor
Era amor alforria
do
lín
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do p.
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lín206
gua
do p.
LH
O O
NA PRESSÃO,
TÁ FERVENDO.
Algo me diz que o melhor ainda está por vir.
I
A
O
PERD
MÃ
Mas o que sei, e só eu o sei, digolhes convicto, é que tenho perdido
a mão, cada dia, cada linha, cada
parágrafo que me passa e não agarro.
É sentir-me escorrer pelos dedos as
palavras mais tolas que possam haver,
tal qual houvera, frondosa e nódoa.
Desisti das cartas de amor, dessas
desisti, minha última arma com as
mulheres que ainda não amei – são
poucas – e que por acaso do destino ou
ocaso meu tornaram-se distantes como
bustos em praça pública, memórias
mortas de um tempo que não voltará
enquanto não se reinicie o ciclo das
vidas. Sim, porque o que me sobra hoje,
enquanto falo pela última vez, continua
sendo meu pensamento recorrente de
que um dia o relógio voltará ao ponteiro
original. Eis minha chance de recomeçar
– mas desta vez, aviso de pronto a Luzia,
Júlia e Virgínia, as três irmãs que me
faltam beijar dentre as poucas sobre as
quais me referi há pouco, que começarei
por elas, talvez ainda na infância, talvez
com beijos roubados no corredor da escola,
na parada da bicicleta antes de pedalar um
pouco mais, na queda proposital do galho
da goiabeira. Ah, se na volta dos ponteiros
ao recomeço não houver a goiabeira no
quintal. Me arrependeria de renascer.
Choraria todos os meus dias em saudade
da sombra que não verei em vida nova que
me será dada. E beijos não darei. Não sem
aquela sombra. Pois então, caros, despeçome desta em aguardo a que virá. Aceno
com apenas uma delas. Que a outra mão,
reconheço, a perdi. E não será ainda nesta vida
que a reencontrarei. Até a volta. Sem que o
líquido febril dos meus amores escorram-me
pelos dedos, como palavras que voam secas, da
minha goiabeira do quintal.
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gua
do p.
UMA
U
AMOR.
DE
Preso na garganta durante tantos obstáculos, aquela era a hora que ele
sairia, ali, defronte aos amedrontados ouvidos dos paspalhos:
– Fodam-se. Ouviram-me? Fodam-se.
Dois anos antes, Mauro havia corrido para saltar o muro da casa de Alice,
com quem aprendera a achar graça e ver ternura em fins de tarde sem
absolutamente graça alguma aos olhos descrentes de quem não ama. E
fez-se homem pelas escolhas não feitas, pelos sonhos abandonados ao se
despedir de Alice sem dizer adeus.
{Adeus dói tanto quanto cura. É veneno de cobra, antídoto para que
não morramos, apenas soframos.}
E a coincidência no mundo é coisa infinda. Dois anos depois, no agora, ele se
viu pulando o muro de volta. Arrependimento não passa, pensou. E mandou
que todos caminhassem no sentido certo, o oposto de onde ele viera.
– Alice, amor, voltei.
UMA
.
DE PAI
XÃO.
Nas menores esperanças residia o sorriso de
Bento. De memórias do arador que escorregava
pelas areias finas dos seus mais escondidos
quintais. Olhava sempre para ela, a balançar suas
pernas na cerca do terraço. Olhava sempre. Sempre.
E um dia deixou de olhar.
O arador caído por horas no seco, um longo caminho
traçado no solo, um desenho simétrico de hastes de ferro
quase cortantes. Lâmina afiada, essa, do dia em que Bento
trocou o olhar pelo tocar.
Tirou o chapéu no caminho e a puxou da sacada – com um
pouco de violência, um muito de paixão.
Antônia teve quatro filhos. Bento morreu depois do
segundo neto, vítima de um coração fraco. Ao menos
para bombear sangue.
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gua
do p.
A H
O
.
N
R
R
C
GA
mesa de
c
bar, hora que for - (agora se for?)
que seja e
screva-me un poema en su lengua
nõa me importa
que me basta que se abra umxxxx
uma porta
xxxdesteXX desse coração de réu
confesso
embriagado
d
e
d or
de d or de
amo r.
.
eufóricas.
Elas estavam
exiam,
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re
,
Pulavam
isso tudo
E
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es
o se quisessem
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co
o,
saltitand
ética cela
fugir da herm
remexidos,
s
ai
M
de ferro.
que a rebelião
sussurros, até
estopim.
u
se
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te
pareceu
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Pequenos estr
afados, mais
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s
do
estampi
fuga.
tentativas de
e elas tivessem
Logo, achei qu
ua. Mas não.
dado uma trég
de
alguns sinais
Ainda soavam
rebelião.
FOGO
NAS
RE
BELDES.
, cessaram.
Até que, enfim
E tirei o milho
Servi com sal.
tre os dentes
en
que me ficou
fazendo
linguais. Ou
malabarismos
?
os
ic
lingüíst
lín
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do p.
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lín212
gua
do p.
A
TODOS
A
QUEM
DIA
UM
Fui ríspido em determinado momento. Arrogante,
em outros tantos.
Insensível, fraco, prepotente. Você queria um ombro
e dei um tapa.
Precisava de colo e o máximo que ofereci foi um
sonoro não. Cansei de
tirar a sua paciência em dias de trabalho. Rejeite
i idéias suas sem
motivos. Disse que aquilo estava errado, que você
estava enganado
uma vez mais, o resultado do seu esforço não valia
muito.
Tirei seu sono com minha pressão absurda. Fugi
de conversas quando
você mais precisava. Fui ríspido novamente. Grosse
iro. Soltei aquela
piada de mau gosto com seu problema tão sério.
Não tive pena do seu
sofrimento, lembra? Chutei a sua alma de cacho
rro morto numa esquina
sem luz, cheirando a esgoto.
Fui pretensioso e cuspi na sua cara apenas por
discordar. Fui nada
cordial com suas ideologias. Não te apoiei. Não
te ouvi. Não te respeitei.
E assim você ficou magoado.
E assim, preciso dizer.
A todos a quem um dia magoei e até hoje alimen
tam essa dor: vão às
putas que os pariu.
MAGOEI.
O
O
C
OMEDOR.
Raspou o
último osso esfregando
vorazmente nos dentes da frente. Serrou
as lascas de carne nobre que sobravam
e esfregou as costas da mão na boca,
escondendo o sorriso que lhe escapulia.
Desde menino tinha disso, que a mãe Aurora
tinha fé que era coisa do satanás. Deu água de
benzer, levou o menino para batizar três vezes,
entregou o corpo do pobre até a um pai-de-santo
em Nazaré do Bruno. Rezou missa de despedida e
tudo. Não entendia e foi envelhecendo enquanto
ele virava rapaz e continuava daquele mesmo jeito.
Ele comia castigos. Os devorava.
Era cidade pequena, aquela, a dele. Ficava entre dois
morros altíssimos, que nem nuvem atravessava. E foi
nessa falta do que olhar, a não ser para o céu, já que
montanha enjoa, que ele começou a olhar ao redor. E
viu coisas estranhas.
Mulher culpando o marido. Mãe xingando filho. Avô
esquecido por neto. E no meio de tanta culpa, tanto
desassossego, resolveu devorar aquela coisa feia, o castigo.
Comeu todos os castigos entre as montanhas que cercavam
seus horizontes. E a mãe, coitada e culpada, achando que
tinha criado um monstro, escondeu-se na igreja, rezando e
chorando, querendo se castigar. Teve sua penitência engolida
pelo filho, que achava uma delícia digerir a dor alheia. E nunca
vomitou. E nunca nauseou.
Comeu os castigos da pequena humanidade que vivia ali. Que
foi feliz. Que passou a olhar mais para o céu. Que nem ele.
lín
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213
lín214
gua
do p.
PRO
ME
TO.
Nunca mais te olharei.
Nem mesmo com
aqueles olhares que
eu sabia que vias e
fingia estar fazendo
escondido. Não mais
tentarei sentir o cheiro
da tua nuca. Se queres
saber, quando eu te
tocar, daqui em diante,
será apenas para te
tocar. Antes, era para
trocar. A troca do amor
que eu tinha, pelo que
me davas. Se creio?
Sim, ainda. Mas agora
creio só para mim. A
partir do hoje, passo
a não ver o amanhã.
Vou tratá-lo como um
desconhecido, um
rosto perdido numa
multidão urbana,
alguém a quem nunca
fui apresentado, com
quem nunca poderia
ter sonhado.
Prometo te deixar em
paz.
Mas não sem antes
fazê-lo comigo mesmo.
Entre citar
SUCINTO.
ou recitar,
tar.
prefiro inci
lín
gua
do p.
215
www.linguadop.com.br
[email protected]
Uma imagem vale mais que mil palavras? Pobre da
semiótica. Recolhida ao revés. Uma palavra vale mais que mil imagens, isso sim. Matheus Barbosa
e Daniel Pinheiro, os designers que conseguiram transformar palavras em desenhos. Títulos que
são chuva. Textos disfarçados de escorregos para os olhos, ou gangorras, ou parques inteiros.
Letras soltas que só conseguem se juntar na órbita dos pensamentos de quem vê (e lê). O projeto
gráfico deste livro é deles. Nos títulos, a fonte utilizada é a Quadraat Display, projetada por Fred
Smeijers, editada pela FontShop Internacional (Berlim) e suas afiliadas.
Nos textos, os caminhos foram traçados pela família Fontin Sans, de
Jos Buivenga, distribuída gratuitamente (olha, que bacana) na Holanda,
em 2007. A impressão, da Gráfica
FacForm, Recife,
Pernambuco. Capa em
Supremo Duo 300g
com laminação fosca
e páginas internas em
Chamois Bulk 80g. Mil cópias insanamente impressas em
setembro de 2007, no Recife. O autor
acredita piamente que, destas, levará pelo
menos umas seiscentas para o caixão.

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