Dissert Kassia da Cu.. - Estudos de Paisagem nas Literaturas de

Transcrição

Dissert Kassia da Cu.. - Estudos de Paisagem nas Literaturas de
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA
MESTRADO EM LITERATURAS PORTUGUESA E AFRICANAS
DE LÍNGUA PORTUGUESA
KASSIA FERNANDES DA CUNHA
PAISAGENS NA POÉTICA DE JORGE DE SENA:
PEREGRINAÇÃO, VISÃO DE MUNDO E TESTEMUNHO
NITERÓI
2010
2
KASSIA FERNANDES DA CUNHA
PAISAGENS NA POÉTICA DE JORGE DE SENA:
PEREGRINAÇÃO, VISÃO DE MUNDO E TESTEMUNHO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre em Literaturas Portuguesa e Africanas de
Língua Portuguesa. Área de Concentração:
Estudos de Literatura.
Orientadora: Profª. Drª. IDA MARIA SANTOS FERREIRA ALVES
Niterói
2010
KASSIA FERNANDES DA CUNHA
3
C972 Cunha, Kassia Fernandes da.
Paisagens na poética de Jorge de Sena: peregrinação, visão de mundo e
testemunho / Kassia Fernandes da Cunha. – 2010.
140 f.
Orientador: Ida Maria Santos Ferreira Alves.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto
de Letras, 2010.
Bibliografia: f. 132-140.
1. Sena, Jorge de, 1919-1978; crítica e interpretação. 2. Poesia
portuguesa – Século XX. 3. Visualização. 4. Paisagem. 5. Testemunho.
6. Memória. I. Alves, Ida Maria Santos Ferreira. II. Universidade
Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
CDD 869.1009
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PAISAGENS NA POÉTICA DE JORGE DE SENA:
PEREGRINAÇÃO, VISÃO DE MUNDO E TESTEMUNHO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre em Literaturas Portuguesa e Africanas de
Língua Portuguesa. Área de Concentração:
Estudos de Literatura.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________________
Profª. Drª. IDA MARIA SANTOS FERREIRA ALVES – Orientadora
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________________________________
Profª. Drª. GILDA DA CONCEIÇÃO SANTOS
Universidade Federal do Rio de Janeiro
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. SILVIO RENATO JORGE
Universidade Federal Fluminense
SUPLENTES
Prof. Dr. JORGE FERNANDES DA SILVEIRA – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr. LUIS CLÁUDIO DE SANT’ANNA MAFFEI – Universidade Federal Fluminense
Niterói
2010
5
À memória de meu pai, de meus avós, da prima
Ana Paula e de tia Izabel, pelo afeto semeado
enquanto compartilhamos a grande aventura
da vida.
A Thereza, minha mãe, à irmã Nice Maria e ao
filho Daniel, cuja presença constante me
transmitiu a coragem necessária para superar
as dificuldades.
A Rosemary Granja, amiga de longa data, pelo
apoio incondicional nos momentos mais
críticos.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, por ter permitido que eu cumprisse mais uma etapa da vida.
A minha família, pequena, mas unida: tia Leninha, Hyder e meus sobrinhos, por me
compreender, amar e relevar minhas atitudes durante momentos tão delicados.
A minha orientadora, Ida Alves, por ter confiado no meu trabalho, cuja execução só
foi possível graças à paciência e à generosidade a mim dispensadas, bem como por suas aulas,
que me permitiram desenvolver conhecimentos mais profundos sobre a poesia.
Aos professores que me honraram com sua presença ao participar das bancas de
avaliação do projeto de pesquisa e da dissertação.
Aos professores da UFF, de quem tive o privilégio de ser aluna desde a Graduação,
dentre os quais agradeço especialmente aos que me incentivaram a intensificar a paixão pela
Literatura Portuguesa: à memória do Prof. José Carlos Barcellos, a Sílvio Renato Jorge, Dalva
Calvão, Laura Padilha e Mário Lugarinho.
Aos amigos de longa data, que, sempre ao meu lado, compartilharam os momentos
difíceis, oferecendo seu apoio de alguma forma: Adriana, Leila, Denise, Andréa, Albertinho,
Renato, Lucinda, Danielle e Michelle.
Ao amigo Ricardo Alfaya, escritor, poeta e crítico literário, notadamente por ter sido
um grande incentivador ao longo do meu processo de escrita.
Aos amigos que dividiram comigo momentos tão especiais durante o tempo em que
fomos companheiros de leituras, seminários, congressos, formando um ambiente de
descontração e carinho. Obrigada, em especial, Marleide, Leonardo, Débora, Elaine, Ana
Cristina, Otávio, Loyana, Carla, Denise Grimm, Luíza, Juliana, Maria Cristina, Jane, Rita
Maia, Flávia, Gabriela, Viviane, Luana, Raquel.
Aos meus amigos, colegas de trabalho da E.M. Profª Iramar da C. Lima Miguel, em
Nova Iguaçu, especialmente Sílvio e Raphael, com quem também compartilho a paixão pelas
Letras.
Aos amigos da “família Duque de Caxias”, escola estadual onde também tenho o
privilégio de uma convivência harmoniosa com colegas de trabalho. Agradeço especialmente
ao Alexandre, meu tradutor de plantão, a Cristina e Gláucia, particularmente envolvidas em
me auxiliar na realização deste trabalho.
A todos que tenham me dado uma palavra, um olhar de carinho, um incentivo, a minha
gratidão.
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RESUMO
No âmbito da poesia portuguesa do século XX, a obra de Jorge de Sena insere-se em posição
de relevo. O principal objetivo deste trabalho consiste em analisar sua atividade lírica sob
uma perspectiva imagética que privilegia o ponto de vista do viajante o qual, à medida que
percorre o mundo, percebe a paisagem de forma subjetiva, associando visibilidade e memória.
Considerando o testemunho categoria basilar da escrita seniana, examinaremos sua
experiência de paisagem, sob a ótica cultural, como reflexo da ação humana sobre o espaço,
para além do aspecto puramente geográfico da peregrinação do sujeito. Para esse fim, é feito
um recorte de sua obra poética que busca evidenciar poemas que retratam viagens e reflexões
sobre a condição humana, articulando as bases teórico-críticas inerentes à investigação sobre
paisagem, subjetividade e visualidade.
Palavras-chave: Jorge de Sena; poesia portuguesa moderna; visualidade; paisagem;
testemunho; memória.
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ABSTRACT
In the realm of Twentieth Century Portuguese Poetry, Jorge de Sena’s work is in privileged
position. This paper aims to analyze his lyrical writing under an iconic perspective which
highlights the traveller’s point of view who, in the length of his journeys, notices the
landscape in a subjective way, associating visibility and memories. Considering eyewitnessing as basic premise for the Senian writing, we shall examine his sightseeing
experimentation, under a cultural view, as a reflection on the human action in the space,
beyond one’s merely geographical pilgrimage. In order to achieve this goal, it has been made
a collection of his poetical work so as to put in evidence poems which portray trips and
reflections about the human condition, articulating the critical-theoretical basis inherent to the
questionings about sightseeing, subjectivity and viewing.
Key-words: Jorge de Sena; modern Portuguese poetry; visuality; landscape; witness;
memory.
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A FORMA JUSTA
Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
(Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977, p. 70)
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................11
2. A POESIA SENIANA: UM TRABALHO ÉTICO E ESTÉTICO...................................19
2.1 O intelectual Jorge de Sena ........................................................................................20
2.2 Reflexões sobre a poesia seniana................................................................................39
3. A CONSTRUÇÃO DAS IMAGENS DA PEREGRINAÇÃO.........................................62
3.1 O mundo visto e a visão de mundo.............................................................................63
3.2 A experiência de um sujeito exilado...........................................................................82
4. PAISAGENS CULTURAIS: UM PERCURSO PELAS OBRAS HUMANAS..............96
4.1 O mundo infecto.........................................................................................................97
4.2 Obras humanas: espaços de dignidade.....................................................................115
5. CONCLUSÃO...............................................................................................................127
6. BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................133
6.1 Fontes primárias .....................................................................................................134
6.2 Fontes teórico-críticas ............................................................................................135
6.2.1 Sobre Jorge de Sena .........................................................................................135
6.2.2 Sobre outros temas............................................................................................136
____________________________________________________________INTRODUÇÃO
I- INTRODUÇÃO
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso
que me alegra, montão. (ROSA, 1986, p. 15)
A fala do personagem Riobaldo, de Grande sertão: veredas abre a discussão a respeito
da natureza humana e suas vicissitudes. Ao concordarmos com Guimarães Rosa, que “as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas”, assumimos a consciência de
fazermos parte de um mundo imperfeito, inacabado, que ainda se encontra em estado de
metamorfose. Viver é uma viagem constante, cujo percurso constitui-se em fonte de valiosas
descobertas, que, acumuladas, configuram a experiência de cada indivíduo. No entanto,
descobrir e pensar o mundo não são atos simultâneos, embora sejam sempre interligados, já
que a memória se encarrega de deixar no homem as impressões das experiências vivenciadas.
Em sua condição terrena, o homem apresenta características paradoxais: em um
momento é capaz de lutar por um ideal; em outro, pode sucumbir à vaidade e a outros
sentimentos menores ao ser constantemente tentado ou desafiado. Seja qual for o caminho
escolhido, é inevitável que durante o trajeto venha a defrontar-se com obstáculos, os quais
durante todo o tempo colocam a humanidade à prova. É a partir dessa reflexão inicial que
perscrutaremos a escrita poética de Jorge de Sena, seguindo por seus meandros em busca de
evidências de que seus poemas se inserem nesta discussão acerca da experiência humana, da
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travessia de um mundo imprevisível, assustador e às vezes inóspito. Desse modo, o tema de
nossa pesquisa gira em torno da visão de mundo de um sujeito que “peregrina” por vários
lugares, o que nos leva a pensar sobre que caminhos são esses os trilhados pelo poeta, e,
principalmente, como o eu-lírico constrói as paisagens dessa peregrinação. Mais do que
paisagens geográficas ou simples recolha de fotografias do mundo, o que se percebe em Sena
é uma paisagem subjetiva, configurada por intermédio de um olhar sobre o mundo, cujas
imagens são guardadas com o auxílio da memória.
O “grande sertão” rosiano não se limita ao espaço geográfico do norte de Minas
Gerais, mas compreende a travessia existencial do homem dentro de si próprio, como viagem
de provações e de engrandecimento através da experiência. Da mesma forma, nos poemas
senianos, Portugal, Brasil, Estados Unidos e outros países da Europa não são simples
referentes em torno dos quais se constrói uma paisagem. A peregrinação por esses lugares
forma no sujeito uma estrutura de sentidos que reúne o eu, o mundo e as palavras. A visão de
mundo em Sena aproxima-se da de Guimarães, já que no dizer de Riobaldo, “o sertão está em
toda parte” – repetido insistentemente pelo narrador ao longo das páginas do livro – , “Sertão:
é dentro da gente”.
O termo peregrinação é largamente mencionado na obra seniana em razão das viagens
empreendidas pelo poeta ao longo de seu prolongado exílio, que acabaram por dar origem ao
livro Peregrinatio ad loca infecta, dividido em quatro segmentos, correspondentes aos locais
em que Jorge de Sena residira ou apenas visitara: Portugal (1950-59); Brasil (1959-65);
Estados Unidos (1965-69); Notas de um Regresso à Europa (1968-69). Precisamos ter em
mente que a escrita seniana é permeada por uma marca indelével: o testemunho, através do
qual o poeta oferece-nos sua valiosa contribuição, como um atento observador e questionador
do mundo em que vive. Dessa forma, fica ressaltada sua tendência humanista, ao pensarmos
que Sena valoriza ao máximo a dignidade do homem e a sua memória. No caso peculiar da
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paisagem, o testemunho adquire a função de verbalizar a experimentação do espaço visível
marcado pela ação do homem. Logo, o sujeito vê, sente e testemunha o mundo como uma
construção cultural.
Jorge de Sena nasceu em Lisboa, a 2 de novembro de 1919, e faleceu em Santa
Bárbara, na Califórnia, a 4 de junho de 1978. Sua infância é marcada pelas expectativas que o
pai, comandante da marinha mercante, alimenta para ele como futuro oficial da Armada, que
vai de encontro à educação musical que a mãe procura proporcionar-lhe. Em setembro de
1937 ingressa na Escola Naval como primeiro cadete do “Curso do Condestável”, mas, após
uma “viagem de instrução” no navio-escola Sagres, não obtém aprovação (por razões ainda
hoje discutíveis) para o acesso a Oficial da Marinha.
Na busca de uma nova profissão, que atendesse aos padrões de aceitação pela família,
opta pela engenharia civil, curso que conclui na Universidade do Porto, em 1944. Antes disso,
porém, já começara a escrever, em 1936, estreando-se em livro, com Perseguição, de 1942.
Ainda trabalha como engenheiro civil, de 1948 a 1959, ano em que se exila voluntariamente
no Brasil, receando as perseguições políticas resultantes de sua participação numa tentativa de
golpe de estado. Ressaltamos que, para Jorge de Sena, o exílio já havia se iniciado no seu
país, já que a crítica portuguesa lhe parecia indiferente à sua atividade literária, advindo daí a
origem de sua angústia: o não-reconhecimento de sua contribuição à cultura portuguesa e de
sua ação intelectual como escritor.
A mudança para o Brasil permite-lhe alcançar a perspectiva profissional ambicionada:
a obra de criação e investigação. Dedica-se então ao ensino da literatura e defende em 1964
tese de doutoramento em Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara,
conquistando simultaneamente o diploma de Livre-Docência, para isso tendo adotado a
cidadania brasileira, em 1963, que conservaria até morrer. Todavia, com o golpe militar de
1964, altera-se a situação democrática no Brasil, o que o faz reviver o passado e as mesmas
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dificuldades, tanto políticas quanto econômicas. Aceita então, em 1965, a oportunidade de se
mudar para os Estados Unidos, com Mécia de Sena e os seus agora nove filhos – dois
nascidos no Brasil. Em outubro desse ano passa a integrar o corpo docente da University of
Wisconsin, Madison, onde é nomeado professor catedrático efetivo em 1967. Transita, em
1970, para a University of California, Santa Barbara (UCSB), onde permanece até o fim da
vida.
A obra de Jorge de Sena é monumental e multifacetada: poesia, ficção, teatro, crítica,
ensaio, história, história literária, organização de antologias e tradução. Na ficção, há um
pouco de tudo: três coletâneas de contos: Andanças do Demónio (1960); Novas Andanças do
Demónio (1966); Os Grão-Capitães (1976); uma novela, O Físico Prodigioso (1977) e um
romance, de cunho altamente autobiográfico, Sinais de Fogo (1979). Na poesia, destacam-se
Perseguição (1942), Coroa da Terra (1946), Pedra Filosofal (1950), As Evidências (1955),
Fidelidade (1958), Poesia I (1977), Metamorfoses (1963), Arte de Música (1968),
Peregrinatio ad Loca Infecta (1969), Exorcismos (1972), Poesia II (1978), Poesia III (1978),
40 Anos de Servidão (1979), Visão Perpétua (1982), Post Scriptum II (1985) e Dedicácias
(1999).
Na produção ensaística, são notáveis os seus estudos sobre vida e obra de Camões e de
Fernando Pessoa, poetas com os quais a sua poesia estabelece um importante diálogo. Grande
analista e admirador de Camões, Sena publicou uma série de trabalhos sobre o poeta
renascentista, trilhando linhas de análise inovadoras nos estudos camonianos portugueses.
Entre os principais títulos incluem-se O Poeta é um fingidor (1961), O Reino da Estupidez
(1961), Uma Canção de Camões (1966), Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista
Peninsular (1969), A Estrutura de Os Lusíadas e Outros Estudos Camonianos e de Poesia
Peninsular do Século XVI (1970), Fernando Pessoa & Cia. Heterônima (1982).
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Apesar de não se filiar assumidamente a nenhum movimento literário, Jorge de Sena
dialogou com várias correntes – notadamente o surrealismo. No entanto, a aspectos modernos
da sua poesia aliou recursos da tradição literária, o que se tornou um diferencial para sua obra:
simultaneamente presa à tradição e revolucionária. Exemplo disso é a utilização que fez do
soneto: através dessa forma clássica, produz um experimentalismo que subverte as fronteiras
entre classicismo e modernidade, superando-as 1 . A literatura portuguesa da época clássica,
aliás, mereceu-lhe particular atenção, o que se reflete na sua própria escrita poética, nas suas
múltiplas intertextualidades com o texto de Camões e não só.
O corpus de nossa pesquisa será constituído de um expressivo número de poemas do
livro Peregrinatio ad loca infecta, incluído em Poesia III, assim como de outros títulos que
fazem parte dessa mesma coletânea: Exorcismos, Camões dirige-se aos seus contemporâneos,
Conheço o Sal... e outros poemas, além de alguns poemas de Metamorfoses e de Arte de
Música, pertencentes à Poesia II, e de 40 anos de servidão, através dos quais tentaremos
demonstrar como a poesia de Jorge de Sena constrói paisagens sob o enfoque cultural, ao
colocar em evidência as obras humanas.
A fim de mapearmos as questões abordadas nos poemas, visando a uma melhor
organização dos temas, procedemos a uma divisão de nosso trabalho em três momentos
distintos: no primeiro, que recebe o título “A poesia seniana: um trabalho ético e estético”,
discorremos sobre a atividade intelectual de Jorge de Sena, seu amor e ódio por Portugal e os
efeitos de sua ativa participação no mundo em seu fazer poético, baseado na biografia e no
testemunho, que, como procuramos demonstrar, contrapõe-se à poética do “fingimento” de
Fernando Pessoa. Nessa parte inicial da pesquisa, contamos com o suporte teórico de Hannah
Arendt a respeito de questões filosóficas sobre o homem e sua condição no mundo, das
1
Podemos observar esse experimentalismo, por exemplo, nos Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena, inclusos
em Poesia II, de cujo primeiro soneto extraímos um fragmento como ilustração: “Dentífona apriuna a veste
iguana / de que se escala auroma e tentavela. / Como superta e buritânea amela / se palquitonará transcendia
inana!” (SENA, 1988b, p. 147).
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reflexões de Jeanne Marie Gagnebin sobre a relação entre memória e história e do ensaio
crítico de Edward Said no que tange ao papel do intelectual. Com referência exclusivamente a
Jorge de Sena, encontramos nos estudos de Jorge Fazenda Lourenço uma contribuição
excepcional para a interpretação da obra.
No segundo momento, intitulado “A construção das imagens da peregrinação”,
orientamo-nos pela filosofia de Merleau-Ponty, que tornou mais inteligível o mecanismo da
visão e também pelas reflexões de Paul Ricoeur, que clarificou o processo mnemônico,
permitindo que tivéssemos condições de aplicar suas teorias à análise dos poemas.
Relativamente ao aspecto cultural da noção mais atual de paisagem, servimo-nos dos estudos
dos geógrafos Paul Claval e Augustin Berque. E, para reforçarmos essa noção como uma
ligação subjetiva entre o eu e o mundo, tornou-se indispensável o ensaísmo de Michel Collot,
que desenvolve um profundo estudo das relações entre a paisagem e a poesia.
No terceiro e último momento, “Paisagens culturais: um percurso pelas obras
humanas”, nosso texto está mais voltado para o material literário em si. Recorremos ainda a
Hannah Arendt e Merleau-Ponty para comentários pontuais, mas nosso interesse maior está
em atrair a atenção para o contraste entre os mundos entrevistos pelo sujeito poético: o infecto
e o não-infecto, com vistas a interpretar o que Jorge de Sena deu a ver em seus poemas,
apresentando, neles, evidências de mundos imperfeitos, mal-acabados, afetados pela própria
ação do homem com seus vícios e defeitos. Em seguida, intencionalmente, apresentamos
poemas que claramente mostram mundos mais edificantes, nos quais ainda há homens com
alguma virtude, onde se desfruta de liberdade e prazer.
Estamos conscientes de que a obra de Jorge de Sena já possui um número considerável
de pesquisadores e trabalhos de relevo: dissertações e teses de inquestionável qualidade.
Porém, dada a sua importância no panorama da poesia portuguesa do século XX, Sena é um
autor que precisa ser ainda mais estudado, notadamente pela extensão de sua obra, através da
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qual atestamos sua capacidade literária e crítica e também por haver se tornado referência
para os poetas das gerações que se seguiram. Dessa forma, persistimos no objetivo de
investigar os aspectos culturais da paisagem na poesia seniana, uma vez que, sob o viés
paisagístico, acreditamos que a obra ainda não tenha sido tão explorada. Na verdade, viajar
pelo texto de Jorge de Sena é seguir por uma larga estrada. Há uma multiplicidade de opções,
mostradas ao longo do trajeto, a provocar o nosso olhar, o que, com certeza, a cada novo dado
depreendido suscita-nos o desejo de ir sempre além.
____________________A POESIA SENIANA: UM TRABALHO ÉTICO E ESTÉTICO
ENVOI
Há quantos anos convosco vivo
poetas deste mundo e todos os feitios,
como com tudo quanto seja criação humana,
desde as fantasias da carne à contemplação do espaço!
Se vos traduzo para vós em mim,
não é porque vos use para dizer o que não disse,
ou para que digais o que não haveis dito –
– mas para que sejais da minha língua,
aquela a que pertenço e me pertence,
e assim nela eu me sinta em todo o mundo e sempre,
por vossa companhia.
Pois para quem haveis escrito
senão para quem vos ame e queira.
(SENA, 1982, p.108)
2.1 O intelectual Jorge de Sena
Estar no mundo, viver o mundo, é para Jorge de Sena uma continuada superação de
si próprio, naquela constante dialéctica entre o conhecer e o agir, superação que só
(lhe) é factível através da e na criação estética. Superar, transpor, transmutar,
transformar, transfigurar, são os verbos-chave de Jorge de Sena. E todos eles se
podem fundir numa só palavra: metamorfose. (LOURENÇO, 1987, pp. 26-27)
A epígrafe é de uma pertinência absoluta quando o objetivo é descrever Jorge de Sena
e sua valiosa contribuição ao mundo, na condição de homem e de escritor. A consciência de
fazer parte desse mundo, como atento observador das atitudes humanas, manifesta-se em Sena
como profunda atividade reflexiva, pensando o homem como agente de grandiosas obras
edificadas ao longo dos tempos. Assim, como ponto de partida do resultado que ora pretende
esta pesquisa, discutiremos a atuação do poeta ao contemplar seu tempo e sociedade,
ajustando o que vê a um conhecimento previamente adquirido. Em seguida, analisaremos de
que forma as impressões captadas por esse olhar se tornam matéria de sua produção poética.
Através das “metamorfoses” senianas, somos colocados diante de um universo
literário considerável que demonstra a enorme capacidade laborativa de seu autor, o qual alia
competentemente a preocupação estética a um senso de responsabilidade ética, na medida em
que dá o seu testemunho sobre o mundo apreendido, visando sempre a sua transformação.
Metamorfoses é o título dado por Sena ao livro que engloba uma série de poemas sobre
objetos pictóricos, escultóricos, arquitetônicos e fotográficos, considerados pelo seu autor
como “inter-metamorfoses propriamente ditas”, organizados por um critério de cronologia
histórica dos objetos estéticos que os motivam, desde a escultura que reproduz uma gazela,
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datada do século VII ou VIII a.C., até uma imagem do Sputnik, da nossa era. A princípio, essa
coletânea de poemas receberia o nome de Museu 2 , mas prevaleceu o título Metamorfoses, que
sustenta a ideia de transformação. Logo, os poemas, motivados pela visão ou pela memória
visual de objetos de arte, são a transposição verbal desses objetos, enquanto passagem de uma
forma a outra. A poesia evidencia seu poder de recriação ou reconstrução hipotética da
realidade, e, portanto, de recriação do mundo por meio da linguagem verbal.
A poesia envolve uma certa maneira de “dizer” o mundo, a partir de um bem
elaborado trabalho ético e estético do seu criador. A própria Literatura pode se apresentar
como um agente transformador da realidade e, para que haja a transformação, é primordial o
empenho por parte do divulgador da mensagem. Ao posicionar-se, o poeta, por via da
linguagem, questiona, rejeitando categoricamente as “verdades acabadas” 3 , já que nenhuma
verdade deve ser acatada como definição dogmática. Altera-se, assim, a ordem existente no
âmbito do “senso comum”, regido por padrões já estabelecidos. O poeta, por sua vez, ao fazer
exposição de suas ideias pode ser considerado nocivo a uma organização social e política que
já se encontrava assentada. Dessa forma, seu papel o coloca em um elevado grau de polêmica,
o que já se verifica desde tempos remotos, na Grécia antiga, com Platão. O filósofo expõe, no
Livro X da República, seus motivos para que o poeta seja banido da cidade, advertindo os
cidadãos de que, se derem acolhida à musa prazenteira, seja em versos épicos ou líricos,
reinarão na cidade o prazer e a dor em lugar da lei e da razão, que em cada caso aponta o que
melhor convém a todos. Nem mesmo Homero escapou de ter sido considerado uma “má
2
Em seu POST-FÁCIO à Poesia II, p. 157-158, Sena explica o motivo de ter escolhido provisoriamente o título:
após ter lido, na tradução inglesa do Dicionário das Antiguidades Clássicas, de Oskar Seyffert, que museu foi
originariamente um templo dedicado às Musas, e depois local dedicado às obras delas. Para o poeta, essa era
uma palavra plena de sugestão para as pessoas cultas que apreciassem esses requintes, mas a grande maioria
associaria o título “a pó e a animal empalhado”. E “metamorfoses” eram já os dois poemas que, manifestamente,
haviam surgido para enquadrar o grupo central das meditações aplicadas.
3
Jorge de Sena usa o termo “verdades acabadas” no poema “Independência”, de Coroa da Terra: “Recuso-me a
aceitar o que me derem. / Recuso-me às verdades acabadas; / recuso-me, também, às que tiverem / pousadas no
sem-fim as sete espadas./ [...]” (SENA, 1988, p. 114),
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influência” para a cidade, e esta, em nome do bem-estar coletivo, no pensamento platônico,
deve renunciar à própria poesia:
Inspira-nos esse amor a ela [a poesia] que nos infundiu a educação de nossas
preclaras repúblicas, e por isso nos sentiríamos felizes se se mostrasse boa e
verdadeira no mais alto grau; mas enquanto não for capaz de justificar-se havemos
de ouvi-la repetindo a nós mesmos, como um esconjuro, o raciocínio que acabamos
de fazer, para que não venhamos a cair novamente num amor-próprio das crianças e
das multidões. Escutá-la-emos, portanto, convencidos de que tal poesia não deve ser
tomada a sério, por não ser ela própria coisa séria nem achegada à verdade; e quem a
ouve, é mister que se acautele temendo por sua própria república interior e que faça
de nossas palavras sua lei. (PLATÃO, 2000, p. 227)
A poesia investe-se de um poder renovador, potente o bastante para, através da
linguagem de que se constitui, questionar a sociedade e apontar possibilidades de mudança.
Ao experimentar o contato com o poema, o leitor o interpreta, assimila a sua mensagem
implícita – às vezes bem explícita –, passando a questionar também. Nesse sentido, a poesia é
então considerada perigosa para o poder instituído. Reportando-se ao século XX, temos em
Jorge de Sena um legítimo representante dessa missão, como participante ativo das questões
do seu tempo, no trabalho de observar e transformar a realidade do mundo que o rodeia,
conforme demonstra, podemos dizer, toda a sua obra.
A trajetória desse homem português pelos diversos países e seus costumes
proporcionou-lhe uma incontestável habilidade de passar à ficção, sob a forma de testemunho
e com admirável linguagem poética, o que ele mesmo vivenciara, conforme atestamos nas
suas próprias palavras:
Todo o poeta digno desse nome se compraz, por extrema e inadiável necessidade,
em meditar pelo menos os problemas de ordem técnica ou psicológica ou
sociológica ou religiosa que a sua ‘arte’ exige e lhe sugere. É evidente que, como
homem consciente e lúcido, os meditará num plano que, naturalmente, deveria
transcender o mero ‘profissional’. E, de facto, raro terá sido o grande poeta que não
comunicou resultados da sua própria experiência, e que não disse, pelo menos acerca
de poesia, conclusões de maior interesse que as investigações dos melhores críticos.
Apenas, se, na mais favorável hipótese, o poeta assim procedeu, precisamente para
tal não abdicou da sua faculdade (da sua ‘especialidade’) de transmitir, com meia
dúzia de dados concretos, uma visão de mundo; [...] (SENA, 2005, p. 54).
Ao transmitir sua própria experiência, Sena demonstra ser consciente da necessidade
de artistas no mundo, já que dentro de suas áreas de atuação específicas, são eles que agem
23
em prol de uma coletividade, que registram os gestos, feitos e emoções dos outros homens,
imortalizando-os. Os homens comuns precisam da ajuda do artista, de poetas e historiógrafos,
de escritores e construtores de monumentos, pois, sem eles, o único produto de sua atividade,
a história, que eles vivem e encenam, não poderia sobreviver 4 .
Na concepção moderna de mundo, houve preocupação em melhorar a qualidade de
vida humana na terra, em termos pragmáticos. Para que isso acontecesse, tornou-se necessário
fomentar o progresso científico, o que consequentemente trouxe modificações a um estilo de
vida antigo, no qual existia uma hierarquia: primeiro a contemplação; depois a ação. Passouse então a atribuir menos importância à chamada vita contemplativa e conceder privilégios à
vita activa, promovendo assim uma inversão de posições entre a Contemplação e a Ação.
Essa inversão é mencionada por Hannah Arendt:
Seja como for, a experiência fundamental que existe por trás da inversão de posições
entre a contemplação e a ação foi precisamente que a sede humana de conhecimento
só pôde ser mitigada depois que o homem depositou sua fé no engenho das próprias
mãos. Não que o conhecimento e a verdade já não fossem importantes, mas só
podiam ser atingidos através da ‘ação’, e não da contemplação. Foi um instrumento,
o telescópio, obra da mão do homem, que finalmente forçou a natureza ou, melhor, o
universo a revelar seus segredos. As razões para que se confiasse no fazer e se
desconfiasse do contemplar ou observar tornaram-se ainda mais fortes após o
resultado das primeiras pesquisas ativas. Desde que o ser e a aparência se
divorciaram, quando já não se esperava que a verdade se apresentasse, se revelasse e
se mostrasse ao olho mental do observador, surgiu uma verdadeira necessidade de
buscar a verdade atrás de aparências enganosas. (ARENDT, 2009, p. 303)
Mais que contemplar o mundo, é preciso agir. Não adianta estar ciente dos problemas
e não movimentar-se para resolvê-los. Sena não apenas contempla, mas age: como intelectual,
acompanha os avanços da ciência e reconhece o progresso como conquista do homem. Diante
desses avanços, o poeta não se furta a dar suas impressões, valorizando ao máximo a
inteligência e a dignidade humana. Dotado de um talento incomum, de uma intelectualidade
que transita da ética à estética, é uma voz de resistência através da palavra, à qual vem somarse uma notável erudição.
4
Cf. ARENDT, 2009, p. 187
24
Ao estabelecermos uma relação entre a visão de mundo de um escritor e sua produção
literária, estamos diante de elementos que nos permitem avaliar o quanto a obra é capaz de
dizer sobre ele. Torna-se primordial reconhecer de que lugar escreve o poeta, em que contexto
ele está situado, que posição ocupa no mundo sobre o qual nos transmite suas impressões.
Jorge de Sena fala do alto de sua experiência de privação de liberdade, oriundo de um
Portugal salazarista, que não lhe permitia exercer sua vocação literária. Em 1955, publicou As
Evidências, conjunto de 21 sonetos. O livro foi apreendido pela PIDE (Polícia Internacional e
de Defesa do Estado) sob a acusação de “subversivo” e “pornográfico”. Não apenas esta
arbitrariedade, como muitas outras, provavelmente o atingiram em sua dignidade, como
literato e como homem, o que favoreceu seu exílio voluntário para o Brasil. Antes da partida,
em 1959, o escritor estivera envolvido no fracassado Golpe da Sé 5 . Por sempre dizer o que
pensa e não temer arrostar-se com ninguém, Sena esteve invariavelmente na berlinda, julgado
– e às vezes condenado – por suas palavras, assumindo todas as consequências.
Diante de uma relação tão tensa com Portugal ao longo dos anos, é característica
arraigada em sua escrita um misto de amor e ódio pela pátria – em altas doses –, expressos
por uma linguagem que, recorrentemente, traduz amargor e sarcasmo. Ainda quando produzia
dentro do território português, Sena sempre desejou o reconhecimento da crítica, por ter exata
noção de sua excelência no campo literário. Nunca usou de falsa modéstia, ao contrário, se
autoproclamava, sendo por essa razão tachado de vaidoso, acusação da qual, naturalmente, se
defendia. Em entrevista conduzida por Arnaldo Saraiva, cujo trecho é reproduzido por Júlio
Conrado, Sena responde à insinuação de que seria o maior admirador de si próprio: “A única
5
Na madrugada de 11 para 12 de março de 1959, deveria ter eclodido o “Golpe da Sé”, assim chamado porque
os conspiradores se reuniram na Sé Patriarcal de Lisboa, de que era pároco o padre João Perestrelo de
Vasconcelos, um dos participantes. A intentona se propunha derrubar o governo de Salazar, na sequência da
burla eleitoral das eleições presidenciais de 1958, com a derrota do general Humberto Delgado perante o
candidato do regime ditatorial vigente, Américo Tomás. A situação causou descontentamento geral no país,
houve uma grande mobilização envolvendo nomes de relevo, mas a tentativa de golpe foi falhada porque a
polícia teria sabido de sua eclosão com antecedência e conseguiu abortá-la.
25
razão pela qual parece que eu proclamo a cada instante o meu talento é porque, até muito
recentemente, se eu não o fizesse, ninguém o faria. E, se eu sou agudamente sensível a todas
as formas de injustiça, haveria de deixar que ela se exercesse impunemente comigo?”
(CONRADO, 1999, p. 130).
Temos, dessa forma, condições de compreender os motivos da contundência do escritor,
que talvez tenha sido mal interpretado nos seus atos e palavras. O fato é que, desde sua
primeira publicação em Portugal, muito tempo se passou até que o país atribuísse importância
significativa ao seu trabalho. Apenas quando sua reconhecida fama de pesquisador e docente
ultrapassara os limites das Américas – Brasil e Estados Unidos, países onde residiu – é que as
elites culturais portuguesas parecem reconhecer o enorme talento de Jorge de Sena. Sua
produção poética e ficcional, no entanto, ainda permanece na sombra, não tendo a mesma
receptividade que os trabalhos ensaísticos, o que o deixa ainda insatisfeito.
No caso específico de Portugal, logo que se instaura, a ditadura salazarista provocou
uma tomada de posição por parte dos escritores, exigindo um engajamento mais declarado da
literatura frente às condições sociais. Mais do que nunca se fez necessária a intervenção do
intelectual, como voz de resistência, que efetivamente “falasse a verdade ao poder” 6 . Essa
atitude compromissada alimentou o neo-realismo, cujos escritores polemizaram com os
envolvidos na revista Presença, acusados de se preocuparem apenas com a “arte pela arte”, de
não se importarem com o mundo que os cercava. Os neo-realistas defendiam e praticavam
uma escrita engajada, mas foram também criticados pelo desinteresse de um trabalho mais
elaborado com o uso da língua, acusação que não correspondeu exatamente à verdade, já que
escritores como Carlos de Oliveira e José Cardoso Pires, por exemplo, realizaram trabalhos
primorosos com a linguagem.
6
Cf. a expressão em SAID, 2005, p. 15
26
Sena prefere não tomar partido de nenhum dos dois grupos, ao contrário, assume uma
posição diferenciada. Na sua concepção, poesia não é uma atividade gratuita, elitista, que se
isente de participar dos problemas do mundo, nem tampouco uma atividade panfletária,
associada a modismos ou ideologias políticas. Por isso, opta por outro caminho, rejeitando
qualquer rótulo que o associe a algum “ismo”, o que é por ele abordado, na própria poesia,
com o poema “Deixem-se de fingir...”:
Deixem-se de fingir de heróis da esquerda,
com bancos e bancas de advogado, redacções,
editoriais, automóvel, bolsas e cátedras,
quintas herdadas, páginas literárias.
Deixem-se de uivar em defesa de ismos
que nenhum vos pertence ou a que pertenceis
a não ser para dançar a dança desnalgada
dos que não têm vergonha do povo português.
O único ismo em consonância com os arrotos
de bem comidos, e os rosnidos de instalados
naquilo que criticam disfarçando-se,
é o relismo – de reles. Nada mais.
(SENA, 1982, p. 130)
Ressaltamos que Sena sempre foi a favor da liberdade de expressão, mas avesso a
qualquer tipo de partidarismo, jamais quis ser vinculado a nenhum tipo de instituição, política
ou religiosa, nada que o impedisse de ser independente em toda a sua plenitude. Até mesmo
na arte, afirmou-se em seu próprio caminho, e, no que diz respeito ao surrealismo, fez questão
de frisar sua importância como “técnica” e não como “modismo”. O poema acima critica
claramente a posição de alguns portugueses, que, para serem seguidores de determinada
tendência, fingem ser o que não são: “Deixem-se de fingir de heróis da esquerda,”. O verso
“Deixem-se de uivar em defesa de ismos”, reforça a posição do poeta, enaltecendo que o
único ismo a ser atribuído à atitude de seus criticados é o “relismo – de reles”.
Para Jorge de Sena, o fato de ser poeta não o torna um homem singular. Sua aptidão
para enxergar mais longe, não aceitar a pequenez da condição humana, talvez o distancie um
pouco dos homens comuns, o que é por ele refutado com veemência ao discorrer sobre a
função do poeta:
27
Nós, os poetas, não somos profetas, contrariamente às ilusões românticas. Somos
aqueles que, falando poeticamante, devem continuamente recordar àqueles que
pensam que sabem muito, que nós ⎯ seres humanos ⎯ não sabemos nada, para
além da gramática convencional de algumas ciências. Mas assim sendo, sabemos
mais num plano diferente, uma vez que somos, como somos, os registos e arquivos
da experiência humana através da linguagem. (SENA, 1977, p. 271)
Na verdade, pelo fato de ser um intelectual, o poeta não poderia se comportar de outra
forma, já que em princípio, os intelectuais são movidos por um desejo de justiça, cujo papel é
denunciar a corrupção e defender os mais fracos como forma de combater a opressão. A fim
de reafirmar o que é atribuído em torno do intelectual e de sua missão, acorremos ao texto de
Edward Said:
As representações do intelectual, suas articulações por uma causa ou idéia diante da
sociedade, não têm como intenção básica fortalecer o ego ou exaltar uma posição
social. Tampouco têm como principal objetivo servir a burocracias poderosas e
patrões generosos. As representações intelectuais são a atividade em si, dependentes
de um estado de consciência que é cética, comprometida e incansavelmente
devotada à investigação racional e ao juízo moral; e isso expõe o indivíduo e colocao em risco. Saber como usar bem a língua e saber quando intervir por meio dela são
duas características essenciais da ação intelectual. (SAID, 2005, p. 33)
E Sena sabia perfeitamente usar a língua e, por meio dela, intervir no que achasse
necessário. Em sua escrita prepondera uma vigorosa capacidade combativa e um perene
questionamento das atitudes humanas, das condições políticas, econômicas e sociais e da
dignidade do homem, em consonância com um discurso que demonstra sua habilidade com a
linguagem. O resultado é um texto cuidadosamente pensado, construído com palavras ferinas,
porém, muito bem arquitetadas, como vemos em um fragmento do poema “A Portugal”:
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido dela.
(SENA, 1982, p. 89)
Tais versos exprimem literalmente o sentimento do sujeito poético em relação à pátriamadrasta, com a qual mantém uma relação, por vezes, violenta:
Torpe dejeto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
28
[...]
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
(SENA, 1989b, pp. 89-90)
Percebe-se que o poeta não mede as palavras para descrever o seu país, fazendo uso de
formas pertencentes a um campo semântico bastante negativo: “dejeto”, “porca”, “esgoto”,
“irrisória”, “mesquinhez”, “ignorância” e muitas outras em todo o poema, num discurso
completamente antilírico, mais preocupado talvez em externar suas impressões sobre o mundo
que vive ainda em um considerável atraso e que tanto o oprime: “terra de monumentos em
que o povo / assina a merda o seu anonimato; / terra-museu em que se vive ainda, / com
porcos pela rua, em casas celtiberas;”. No entanto, não podemos deixar de notar nesse
conhecido poema a extensão do amor de Sena por Portugal, tão grande quanto o ódio que
nutre:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas ser’s minha, não.
(SENA, 1989b, p. 90)
O sujeito poético reconhece pertencer a essa “terra de ninguém”: “eu te pertenço. És
cabra, és badalhoca, / és mais que cachorra pelo cio,”, apesar de tudo o que ela lhe representa
de nocivo. Mesmo que seja “peste e fome e guerra e dor de coração”, ele lhe pertence, embora
a recíproca não seja verdadeira.
29
Convém que retomemos aqui um assunto já recorrente na literatura portuguesa: o
atraso de Portugal. Contudo, a crítica incisiva de Sena a sua terra não pode passar
despercebida. É verdade que Sena é apenas mais um poeta a se pronunciar a esse respeito,
pois desde o século XIX, sobretudo, esse atraso é alvo de discussão, inicialmente por Almeida
Garrett e Alexandre Herculano, ganhando maiores proporções no final daquele século, com a
Geração de 70, formada por jovens intelectuais liderados ideologicamente por Antero de
Quental e José Fontana e dela fizeram parte alguns dos mais referenciados escritores da
Literatura portuguesa, como Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Téofilo Braga e Guerra
Junqueiro. No século XX, Eduardo Lourenço elaborou vários estudos sobre Portugal e sua
situação frente à Europa e o mundo. Reproduzimos um fragmento da posição de Lourenço em
relação à realidade portuguesa:
Quando, nas primeiras décadas do século XIX, Portugal, pela pena dos primeiros
representantes de um novo Portugal — saído da Revolução Liberal —, faz o balanço
da sua situação no mundo, quer dizer, na Europa, e, ao mesmo tempo, se volta para
o passado para saber se ainda terá futuro, fá-lo já como se não fosse Europa ou então
uma outra espécie de Europa. É então que se dá conta até que ponto a sua situação é
singular. E dessa singularidade faz parte o estranhíssimo fenômeno, mais do que
paradoxal, de ter sido durante séculos uma nação que viveu simbolicamente como
uma ilha, sendo ao mesmo tempo um povo que desde os séculos XV e XVI se
instalara no papel de descobridor e colonizador, em terras de África, do Oriente e do
Brasil. (LOURENÇO, 1999, pp. 94-95)
É este o Portugal de Jorge de Sena e de tantos outros escritores, que, como salienta
Lourenço, “viveu simbolicamente como uma ilha”, mal conhecendo o progresso. Em
consequência, pelo menos contemporaneamente a Sena, a nação não havia desenvolvido ainda
uma mentalidade cultural mais aberta à divulgação literária, o que é agravado pela censura
implacável, passando pelo deficiente nível educacional e consequente fraca tiragem de livros
nas gráficas. Sena, em O Reino da Estupidez I, livro de ensaios de sua autoria, já elaborava,
no fim da década de 50, considerações a respeito desse atraso, compatíveis com as de
Lourenço, mais recentes, citadas acima:
De facto, é ridículo discutir proficientemente de literatura, viver imbuído de
literatice, num país que não consome culturalmente em escala apreciável coisa
alguma, desde o mais alto poema ao mais singelo manual técnico — um país que,
em pleno século XX, e apesar do esforço de muitos, se mantém sob muitos aspectos
30
medieval nas suas estruturas econômico-sociais, ou corresponde citadinamente à
Inglaterra dos primórdios da Revolução Industrial. (SENA, 1984, p. 85)
Fica ratificada, portanto, a situação incômoda de Jorge de Sena dentro de sua própria
terra. Ao levar-se em conta um cenário de tantas adversidades, é mais que justificável que o
poeta tenha se ausentado da pátria, embora, como é sabido, ele a amasse com convicção. No
entanto, estar ausente não prejudicou o seu compromisso ético, já que ética e estética são
inalienáveis no autor de Metamorfoses.
Ao falarmos em Jorge de Sena como intelectual, precisamos penetrar em um terreno
mais ou menos tortuoso, que é a realidade portuguesa, na qual nutriu-se o poeta e, como já
dissemos, onde partilhou um ambiente que não oferecia espaço para a atividade literária. Por
isso mesmo, de geração em geração, o papel do intelectual é progressivamente acentuado na
sociedade, compelido cada vez mais a uma tomada de posição, na expectativa talvez de que,
com seu ofício de artista, escritor ou mesmo de atuação em outras áreas, venha a tornar a vida
de outros melhor. Segundo Said, “Cada região do mundo produziu seus intelectuais, [...]. Não
houve nenhuma grande revolução na história moderna sem intelectuais: de modo inverso, não
houve nenhum grande movimento contra-revolucionário sem intelectuais.” (SAID, 2005, p.
25).
Para Said, o intelectual é um indivíduo com um papel público, alguém que não pode,
como membro competente de uma classe, dedicar-se exclusivamente a seus interesses, mas
sim representar, criar e articular uma mensagem, um ponto de vista, enfim, dar voz a uma
coletividade. Esse é o protótipo do intelectual universal, correspondente, como pensa o
professor, ao modelo sartriano, que gradativamente cedeu seu lugar a outro tipo: o
“específico” 7 . Há ainda um terceiro tipo, o “mediático”, não citado por Said, mas por António
7
É conveniente que reproduzamos em pormenores o conceito de Said sobre este tipo de intelectual: o autor
afirma que, de modo semelhante, o filósofo francês Michel Foucault disse que o chamado intelectual universal
(provavelmente tendo Jean-Paul Sartre em mente) viu seu lugar tomado pelo intelectual “específico”, alguém
que domina um assunto, mas que é capaz de usar seu conhecimento em qualquer área. Foucault estava pensando
concretamente no físico americano Robert Oppenheimer, que saiu de sua área específica quando atuou como
31
de Sousa Ribeiro, autor de detalhado estudo sobre a atuação do intelectual após a Revolução
de Abril, intitulado “Configurações do campo intelectual português no pós-25 de abril: o
campo literário”, publicado no livro Portugal: um retrato singular, de Boaventura de Sousa
Santos 8 .
O intelectual “mediático” tende a ser o centro das atenções, entregue à “sede de
sensação”. Esse indivíduo, que parece ser um cultuador do ego, age como se estivesse a
desempenhar um espetáculo, obedecendo às exigências de uma sociedade cada vez mais
culturalizada, mas nem por isso mais culta 9 .
Todavia, as alterações na maneira de agir e de se comportar do intelectual não
extinguiram a sua responsabilidade política, muito pelo contrário, acentuou-a nos últimos
tempos. No caso português, imediatamente após o histórico dia 25 de abril de 1974, quando
eclode a Revolução dos Cravos, a situação dos intelectuais encontra-se bem definida, em
particular, nas pessoas de seus escritores, que constituem a plêiade de uma frente relevante de
resistência antifascista, altamente credenciados para serem ouvidos no novo ambiente
democrático.
O período pós-revolução é de transição política e social, em que fulgura, com
destaque, o escritor, e em torno do qual todos os desafios e problemas surgidos no novo
contexto far-se-ão presentes. Porém, apesar de toda a importância imputada aos intelectuais
nesse momento, recorda-nos Ribeiro que não foram estes, nem qualquer movimento insuflado
por eles, os responsáveis pela queda do fascismo, cabendo tal mérito ao Movimento das
Forças Armadas. Da mesma forma que a maioria dos portugueses, os escritores também
foram tomados de surpresa pelo 25 de abril.
organizador do projeto de uma bomba atômica em 1942 e depois se tornou uma espécie de comissário de
assuntos científicos nos Estados Unidos. (SAID, 2005, p. 24)
8
É evidente que o trabalho de António de Sousa Ribeiro, bastante minucioso, abrange questões muito amplas,
que não nos cabe reproduzir no âmbito desta pesquisa, mas fornece subsídios importantes para refletirmos a
extensão dos acontecimentos daquele inesquecível dia de abril e o que ele trouxe em seu bojo, assim como as
questões surgidas em torno do escritor e de sua missão.
9
Cf. RIBEIRO, 1993, p. 485.
32
Apesar de tão ansiosamente esperada, a Revolução não surtiu o efeito desejado no
instante de sua irrupção, e, na verdade, mesmo depois de algum tempo, ainda são detectadas
algumas frustrações. Na época, pronunciou-se a respeito Eduardo Lourenço, que já se incluía
no círculo dos mais respeitados intelectuais portugueses da área literária, o qual, através de
Ribeiro, citamos:
Ao contrário do que passou no começo do século XIX, na queda da monarquia em
1910 ou até no advento do regime de Salazar em 1933, o 25 de Abril, chegado de
surpresa, não conseguiu ainda inspirar uma verdadeira imagem de marca política,
ideológica e cultural. A invenção de tal imagem era justamente a tarefa mais urgente
da ‘intelligentsia’ libertada pela Revolução. Só ela teria permitido articular a
vontade de mudança e de ruptura institucional expressa pelo 25 de Abril com a
experiência média do cidadão português, a sua herança moral, os seus mitos, as suas
mais legítimas esperanças. 10
Ribeiro ressalva que esta é a visão do ensaísta, enquanto produtor e estudioso dos
grandes mitos nacionais, não devendo ser acatada como a única. O fato é que, ainda pela ótica
de Lourenço, nos primeiros anos pós-25 de abril, apesar de a Revolução ter oferecido
condições para um “reencontro de Portugal consigo próprio”, na ordem cultural isto não se
operou. Com efeito, ainda demorou algum tempo para o país se adaptar à nova situação:
mesmo sentindo o gosto da liberdade, ainda parecia preso às amarras do Estado Novo.
Poucos meses após o 25 de Abril, a problemática cultural e literária vai-se dissipando
da imprensa, que deixa aos poucos de dar relevância às poucas intervenções significativas,
assim como a participação de escritores nos jornais, através de artigos e crônicas, torna-se
incipiente. Conjuntamente, a ação dos escritores no âmbito de sua função de pessoas públicas,
formadoras de opinião, capazes de influenciar as massas, não atingiu proporções relevantes.
Com o decorrer de 1975, tudo apontava para intervenções mais ligadas ao campo da
política 11 . Dessas implicações políticas, surgem outras questões preocupantes: o momento
vivido, em que impera a euforia da liberdade, é propício à formação de utopias poéticas, com
10
11
LOURENÇO, Eduardo. Apud RIBEIRO, António de Sousa, 1993, p. 487.
Entre os escritores que também fazem intervenção política encontram-se Vergílio Ferreira e Sophia de Mello
Breyner Andresen. (Cf. RIBEIRO, 1993, p. 493).
33
o risco de que seja formada uma imagem mítica da Revolução, haja vista já existir na nação
uma tendência para cultuar os mitos.
Teme-se, na verdade, que haja uma nova marginalização do escritor, diante da
tendência que vinha despontando nesses novos tempos: o discurso público altamente
influenciado pela política. 12 Na ocasião, Fernando Namora, reconhecido escritor e poeta,
parece acercar-se da situação, conforme atestamos em Ribeiro:
A literatura parece estar de quarentena. Nem os escritores escrevem [...], nem os
leitores lêem, nem sequer emergiram para o sol da liberdade aquelas obras que se
supunham no limbo das interdições. Os escritores portugueses, nessa fase, como que
se encontram expectantes, aturdidos, fulminados — escolham o qualificativo que
preferirem. E, pelo menos, acham-se esquecidos. Como o foram ontem, como o
foram sempre. 13
No entanto, Namora pondera em seguida que, mesmo que a missão de reagir à nova
situação caiba ao campo literário, aos escritores, o abuso do poder sempre foi empecilho para
tal. Foram décadas de repressão, a subjugar um país já tão combalido. Jorge de Sena parece
comungar da opinião de Namora, no tocante à inércia de seus conterrâneos. De longe, de
Santa Bárbara, acompanha esse acontecimento histórico, o qual julgava que já não veria
nunca.
Ao prefaciar a terceira edição de Poesia I, volume que inclui poemas escritos no
período entre 1938 e 1974, o poeta afirma que o que escreveu ou escreverá depois dessa data
“pertence já a um outro mundo e uma diversa vivência”. Sena ratifica ainda que o que viveu –
em si – “como poeta, como ser humano, como cidadão, como pessoa politicamente envolvida
e sempre independente”, nunca o fará pedir nada que não seja “a alegria de ver a liberdade, a
justiça e sobretudo o amor das verdades instalado em Portugal e na conspurcada língua
12
Diante da nova realidade, cogitou-se ser possível uma “ressurreição” do neo-realismo, devido a tantas
cobranças de compromisso dos escritores, tentando impetrar-lhes a missão de produzir textos que os
aproximassem de questões sociais, do povo. Porém, esse medo logo se dissipou, diante da inviabilidade de tal
fato acontecer. A essa altura, após a década de sessenta, os pressupostos neo-realistas já haviam cedido lugar a
outras concepções estéticas e outras concepções da relação entre arte e política. Mesmo dentro do campo neorealista, as posições que vinham se fortalecendo já muito pouco tinham em comum com o fanatismo do
“realismo socialista”. Pode-se dizer que nenhum autor de relevo pertencente a esse campo que pode ser
designado genericamente de “marxista” se coloca nessa linha.
13
NAMORA, Fernando. Apud RIBEIRO, 1993, p. 495.
34
portuguesa,” 14 . É com esse espírito que escreve o poema “Cantiga de Abril”, precisamente
entre 26 e 28 de abril de 1974, o qual dedica às Forças Armadas e ao povo de Portugal,
expressando em versos a alegria de, finalmente, poder ver “a cor da liberdade”. Porém, em
1977 retornaria ao país, para proferir o “discurso da Guarda”, no Dia de Portugal. No texto,
Sena assinala que
[...] os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que
nunca se livraram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança
adulta sob a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do
cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril
de 1974, com a experiência de liberdade. Isto não sucedeu só agora, e não é senão
repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de
uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as
liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um
pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades,
seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião. (SENA, 1980, p. 255)
Sempre adiante de seu tempo, o poeta demonstrou, em atitudes e palavras, mais
precisamente na profusa obra que legou ao mundo, que para ele não foi preciso chegar o ano
de 1974, um mês de abril, para que fizesse valer sua qualidade de interventor da humanidade.
O célebre poema de Metamorfoses, “Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” é
exemplar como forma de manifestação ética, pois nele lê-se um grande senso de justiça e a
necessidade de reverenciar uma memória de humanidade:
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós.Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
(SENA, 1988, pp. 123-124)
Nos primeiros versos desse longo poema, o eu-lírico questiona se haverá possibilidade
de um futuro sonhado para os filhos. As dúvidas são muitas, mas há otimismo, há esperança
14
Cf. Prefácio de Poesia I, 3. ed 1988, p. 11
35
de que esse futuro se cumpra, mesmo que seja necessário lutar por liberdade e justiça, pelo
imperioso motivo de se estar vivo: “[...] Tudo é possível, / ainda quando lutemos, como
devemos lutar, / por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, / ou mais que qualquer delas
uma fiel / dedicação à honra de estar vivo.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
(SENA, 1988, p. 123)
No âmbito da atividade intelectual que lhe é inerente, Sena pensa o bem-estar da
humanidade e as injustiças que podem ser cometidas contra ela, privando-a de um futuro
digno, o que pode suceder por diversas vias: uma delas é o abuso de poder pelos governantes,
exercido numa guerra desigual e desumana, que reprime, discrimina e mata: “foram
estripados, esfolados, queimados, gaseados, / e os seus corpos amontoados tão anonimamente
quanto haviam vivido,”. Mesmo na atualidade, o poder ainda legitima as guerras, nas quais
um número elevado de vidas é sacrificado, em nome de interesses mesquinhos.
Pensar a guerra e suas consequências remete-nos às reflexões de Walter Benjamin,
filósofo alemão que sofreu diretamente os seus efeitos, já que, justamente por causa da guerra,
cometeu suicídio 15 . O lembrar e o esquecer perpassam todo o pensamento benjaminiano, que
aborda a temática da guerra, a partir de um estudo aprofundado do historicismo, podendo-se
citar o ensaio “Sobre o conceito de história”, no qual formula diversas teses sobre o passado e
seu processo de reconstituição histórica:
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os
pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser
perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá
apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade
15
Devido à ascensão do nazismo ao poder, Walter Benjamin, de família judaica, exilara-se em Paris, em 1935.
Com a invasão da França pelos alemães, em 1940, o filósofo juntou-se a outros refugiados para tentarem a fuga
pelos Pireneus. Porém, na fronteira franco-espanhola o grupo foi detido pela polícia espanhola, que ameaçou
entregá-lo à Gestapo. Sem saída, Benjamin suicidou-se, embora no dia seguinte, a passagem do grupo tenha sido
permitida pelas autoridades.
36
redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. (BENJAMIN,Tese 3,
1994, p. 223)
De acordo com Benjamin, nenhum fato, por mais insignificante que seja, deve ser
menosprezado pela história, porém, o lado conhecido é geralmente o dos vencedores, na
maioria das vezes perde-se de vista o número de mortos, cujos corpos, como diz o poema,
foram amontoados ou reduzidos a “cinzas dispersas para que delas não restasse memória”. A
banalização da morte nos leva a concordar com a professora Jeanne Marie Gagnebin, que vem
produzindo fecundos estudos sobre a obra de Walter Benjamin: “O esquecimento dos mortos
e a denegação do assassínio permitem assim o assassinato tranquilo, hoje, de outros seres
humanos cuja lembrança deveria igualmente se apagar.” (GAGNEBIN, 2006, p. 47). Assim,
os mortos permanecem no anonimato, reduzidos a simples números.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
(SENA, 1988, pp. 123-124)
O quadro descrito é o da injustiça e da inutilidade de um gesto brutal, que ceifou vidas,
sonhos e o futuro de um número considerável de homens: “Estes fuzilamentos, este heroísmo,
este horror, / foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha”, que “ofendeu o coração de
um pintor chamado Goya”. Ao que parece, a sensibilidade implícita através do traço do artista
ao pintar o Três de Maio suscitou reações em outro coração, igualmente dotado de “fúria e de
amor”: o coração seniano, que, ao contemplar a cena retratada e sobre ela meditar
profundamente, estendeu suas reflexões para outros dramas registrados pela história, devido
certamente à sua visão de mundo tão ampla.
Dessa maneira, a terrível cena dos fuzilamentos metamorfoseia-se em versos. A
dimensão pictórica ganha outras proporções, outros significados no interior do poema: não
37
são os fuzilamentos que entram em questão, mas sim, outros genocídios, como a execução
dos primeiros cristãos por Nero, a queima das bruxas nas fogueiras da Inquisição, a Segunda
Guerra, que usou as câmaras de gás. Em vista da atualidade de que se constitui, o poema
permite pensar em guerras hodiernas, como a do Oriente Médio, que condena à morte um
número incalculável de inocentes.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
(SENA, 1988, p. 124)
Mesmo ao considerar que “tanto sangue, tanta dor, tanta angústia” não sejam em vão,
o sujeito poético admite que não há quem possa reparar os danos de todos os tipos, causados
por milhões de mortes: “Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes / aquele instante que
não viveram, aquele objecto / que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam ‘amanhã’.”.
O que Goya, o pintor, transmite com imagens e cores, Sena transmite com palavras,
demonstrando mais uma vez que para o artista, o intelectual, é inaceitável assistir
passivamente aos fatos: é necessário um posicionamento crítico com relação ao mundo que o
cerca, sem jamais faltar com a verdade no que diz respeito a guerras e massacres. A fim de
dar continuidade a essa linha de reflexão, novamente recorremos à pertinência do texto de
Gagnebin:
38
Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar
contra a repetição do horror [...]. Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo,
especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do
passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto
que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos para melhor viver
hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de
um presente que, também, possa ser verdadeiro. (GAGNEBIN, 2006, p. 47)
O trabalho do historiador se inclui no do intelectual, pois faz parte de uma classe que
também não pode ficar à margem dos acontecimentos. O luto é necessário, para que se deixe
aflorar as lembranças do passado, tocar nas consciências adormecidas, para então viver-se
bem no presente. A tarefa “altamente política” e “igualmente ética” pode ser lida com todas as
letras nesse poema seniano. Conquanto todas as adversidades, o poeta acredita que vale a
pena resistir, lutar, transformar, como ele sempre o fez. Na sua concepção, é aqui, neste
mundo a ser criado por nós, que, enquanto indivíduos dotados de vida e “em memória do
sangue que nos corre nas veias”, devemos pensar em realizar o melhor. E o melhor é
preservá-lo e tê-lo como uma dádiva, como garantia de um “amanhã” que outros não tiveram.
Graças ao Movimento ocorrido em 1974, a partir do qual também conheceram a
liberdade as colônias portuguesas em África 16 , a condição de escritor sofreu modificações
significativas, e mesmo após a morte de Jorge de Sena, em 1978, continuou a evoluir. Nos
tempos vindouros, o intelectual tornar-se-ia alvo de mais olhares e atenções, o que certamente
lhes trouxe algum desconforto, deixando-os à mercê de novas aporias, desafios surgidos por
conta de um mundo cada vez mais turbulento.
16
A independência das colônias portuguesas africanas foi acordada em 1975.
2.2 Reflexões sobre a poesia seniana
CONTRAPONTO
Nós, aqueles poetas exigentes...,
que procuramos, para os poemas, títulos completos
– e criamos dois poemas sobrepostos.
Nós, aqueles poetas inteligentes...,
que damos títulos irónicos aos poemas
– e sofremos o sentido de um poema duplo.
(SENA, 1989b, p. 32)
Ao enveredarmos pelos caminhos da poesia, em especial a poesia testemunhal de
Jorge de Sena, lembramos que ela é, antes de mais, literatura. Estamos diante de uma área do
saber que envolve muitos outros conhecimentos, incluindo em seu universo informações de
cunho político, econômico e social, ou seja, elementos que a aproximam de uma figuração do
real. Esse aspecto da área literária é definido muito claramente por Roland Barthes, em Aula:
A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um
saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico
(Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou
de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto
numa [sic], é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão
presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a literatura,
quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente,
categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real.
(BARTHES, 1978, p. 18)
Dessa forma, somos levados a concordar com a afirmação barthesiana, no que diz
respeito à presença da realidade, já que na poesia, objeto de nosso estudo, não é diferente. O
cerne de nossa discussão acerca da poesia de Jorge de Sena é o testemunho, compromisso
basilar de seu fazer poético. Convém que façamos desse testemunho uma abordagem
40
minuciosa, cuja definição envolve alguma complexidade. No passado, muito do que se sabia
da vida de um poeta, inferia-se do que ele deixava transparecer em seu texto, e podemos citar
Camões como exemplo, cuja biografia foi quase impossível recuperar, pela imprecisão das
datas, dada a falta de documentos comprobatórios. Então, os primeiros biógrafos procuraram,
a partir das próprias obras camonianas, entrever pistas, indícios que dessem conta de sua vida.
Mesmo assim, ainda permaneciam lacunas e resultou que, na falta de outro meio, tiveram de
ser preenchidas com a imaginação.
Frequentemente, ao ser invocado como testemunho biográfico aquilo que Camões diz
de si mesmo, convém que o leitor tome tais alusões com rigorosa cautela, tendo sempre em
mente que a matéria lírica era, naqueles tempos remotos, um patrimônio comum, tanto no
domínio temático quanto no das figuras de estilo. Não raro, como os críticos de hoje têm
pertinentemente observado, onde parece estar uma referência pessoal, um dado da realidade
vivida, o que está é afinal a reminiscência de uma leitura, um tópico ou motivo obrigatório no
lirismo do tempo – como as famosas glosas –, embora artística e originalmente reelaborado às
vezes 17 .
No século XX, a considerar o conceito de fingimento de Fernando Pessoa, por
exemplo, essa possibilidade foi definitivamente derrubada; não havia mais meios de acatar as
palavras do poeta como expressão da verdade, nem de julgar reais suas emoções, se ele é,
afinal, “um fingidor”. Torna-se necessário, portanto, reportarmo-nos a Fernando Pessoa e a
sua estética do “fingimento”, para que possamos discorrer sobre o testemunho com certa
segurança. A esse respeito, Jorge de Sena, pesquisador do poeta, assumirá uma posição
definida, contrária a esse “fingimento”, esclarecendo muito bem seu ponto de vista, conforme
17
Na lírica camoniana encontramos vários indícios de uma biografia contida nos versos. Porém, devemos relevar
que no Classicismo era uma prática comum glosar e, ao mesmo tempo, homenagear outros célebres poetas, de
épocas mais antigas, como o fez Camões com Petrarca. A obra do italiano serviu-lhe como um manancial de
inspiração, que valeu um comentário de Fernando Pessoa: “As lágrimas camonianas, como ele escreve, correm
da fonte de Vaucluse, dos olhos de Petrarca. Camões, enquanto lírico, seria assim, um ‘médium’, não um eu
lírico de substancial originalidade.” (Cf. LOURENÇO, 1983, p. 247)
41
seguimos em seus diversos trabalhos ensaísticos dedicados à obra pessoana. Em O poeta é um
fingidor (Nietzsche, Pessoa e outras coisas mais), Sena aborda o tema “fingimento”, fazendo
alusão a um breve ensaio, mais antigo, sobre Fernando Pessoa e a Literatura Inglesa, no qual
demonstrara ter captado um paralelismo de tom entre a prosa pessoana e o ensaísmo inglês
dos anos noventa, “tom este ao mesmo tempo sentimental e agressivo, irônico e
profundamente empenhado em afirmar contraditoriamente a verdade, e que preparava, por um
lado, Pessoa para as eventuais aventuras ‘futuristas’.” (SENA, 1961, p. 21).
Assim, Sena parece depreender uma certa tendência ao “fingimento”, que antecede
Fernando Pessoa. Não tenta contestar essa estética, mas entendê-la, segundo uma perspectiva
nietzscheana. A partir de um fragmento poético de Nietzsche, escrito no outono de 1884,
anterior, portanto, ao nascimento de Pessoa, Sena expõe como o “fingimento” já era abordado
entre outros poetas, não sendo propriamente uma invenção pessoana:
OS MAUS
O poeta capaz de mentir
conscientemente, voluntàriamente,
só ele é capaz de dizer a Verdade. 18
Pela análise dos versos, Sena afirma que, de acordo com Nietzche, o poeta, para dizer
a Verdade, precisa de, em consciência e vontade, ser capaz de mentir, mas observa que
[...] esta capacidade de mentir não significará o ‘criar ficções’ — terminologia que
durante tantos séculos dominou a poética ocidental —, nem significa o pura e
simplesmente fingir, qual os detractores de Fernando Pessoa leram no primeiro
verso (e não nos outros) da Autopsicografia que de ‘ele-mesmo-ele mesmo’ o poeta
de Ode Marítima escreveu. A ‘mentira’ consciente e voluntária do poeta, qual
nietzscheanamente é proposto, no fragmento citado, refere-se especificamente à
ordem do conhecimento, ou mais exactamente, à ordem da expressão autêntica de
um conhecimento de Mundo. (SENA, 1961, p. 22)
Logo, Sena demonstra compreender a despersonalização do sujeito poético que se
operou em Pessoa, característica de uma estética que buscava o distanciamento de expressões
artísticas advindas do individualismo, de um “eu” dominante, centralizado. No entanto, de
forma ousada, irá propor uma ruptura com os pressupostos estéticos de Fernando Pessoa
18
Esta é uma proposta de tradução do próprio Jorge de Sena, obtida a partir do texto da edição: Nietzche –
Poésies Completes – texte allemand presenté et traduit par Ribemont-Dessaignes, Paris, Seuil, 1948.
42
(sobretudo a respeito da despersonalização poética), ao optar pelo testemunho, uma outra
maneira de fazer poesia, conseguindo assim uma superação dialética capaz de atingir elevadas
proporções.
No Prefácio à Poesia I, o poeta reconhece que poesia não é confissão, sendo esta
apenas uma parte que contribui com a atividade poética, para ser transfigurada, aperfeiçoada
pela arte, mas também pondera que a poesia não é de fato um fingimento. Mesmo assim,
busca interpretar essa particularidade inerente ao “ser poético” de Pessoa:
É certo que o ‘fingimento’ dele não é, por forma alguma, uma arte de iludir, mas
antes a acentuação muito justa, exposta por uma individualidade eminentemente
analítica, de que as virtualidades que contemos são mais que o continente, e de que a
actividade poética sobreleva o que precariamente a cada instante nos dispomos ser.
O seu ‘fingimento’ valeu como uma lição e um exemplo, que estão longe de ter sido
compreendidos num país em que ser-se poeta é ser-se um profissional do sentimento
oportuno. [grifos nossos] (SENA, 1988, p. 25)
Ainda que justifique a asserção pessoana, Jorge de Sena aponta as dificuldades de sua
aceitação entre os portugueses, pela incapacidade destes de compreender aonde queria chegar
Fernando Pessoa com sua “impessoalidade”, já que, segundo Sena, ser poeta no país é ser
“profissional do sentimento oportuno”.
Para o autor de Metamorfoses, a poesia deve assumir o compromisso de transformar o
mundo. É através de suas vivências que transforma em material poético, o produto final – o
poema –, que se dará a revolução necessária. Partindo dessa premissa, vai defender o
testemunho como a forma mais elevada de proceder a essa transformação:
Se o ‘fingimento’ é, sem dúvida, a mais alta forma de educação, de libertação e
esclarecimento do espírito enquanto educador de si próprio e dos outros, o
‘testemunho’ é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta
forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes
de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias
aceites, dos hábitos sociais inconscientemente vividos, dos sentimentos
convencionalmente aferidos. [grifos nossos] (SENA, 1988, p. 25).
Levando-se em conta que o “fingimento” se apresenta como educação do espírito, o
testemunho, em contrapartida, torna-se o agente da transformação que deseja a poesia. Da
mesma forma que o “fingimento” não deve ser lido simploriamente como ato de “iludir” ou
“criar ficções”, também não deve o testemunho ser lido como estritamente autobiográfico,
43
mas sim como um testemunho que se concretizará no plano da linguagem. Conforme elucida
Luís Adriano Carlos, poeta e estudioso de Jorge de Sena em Portugal, “não é a reprodução de
um real que está em causa. O que está em causa é a vivência na realidade da linguagem. O
mundo intencionado não é o mundo visto, mas a visão do mundo...” (CARLOS, 1998b, p. 63).
A título de ilustração, tomemos o exílio: na poesia seniana, é um tema recorrente, que
coincide com a experiência de vida do poeta. Não significa, porém, que seja baseado em um
sentimento estritamente fiel à realidade, mas que engloba a realidade e a sua reconfiguração
lírica. A fidelidade testemunhal do poema depende menos da precisão descritiva e mais da
visão no interior da linguagem, que reenvia à estrutura essencial do objeto. A proposta de
Sena consiste em imaginar a realidade, conforme defende em “Post-Facio” à Poesia II,
comentado por outro pesquisador português, Jorge Fazenda Lourenço, especialista na obra
seniana:
[...] se ‘a poesia como criação de linguagem é supra-real, isto é, engloba a realidade
e a sua mesma representação lingüística’, para ele, ‘o tudo, expressamente dito, é, e
tem de ser cada vez mais, o apanágio da ficção’. E diferentemente da ficção realista
tradicional, do ‘naturalismo’, do ‘neo-realismo’ ou do ‘realismo social’, Jorge de
Sena propõe-se um ‘realismo absoluto’, que consiste em ‘imaginar a realidade’. É
que imaginar não significa evadir-se. E, por seu lado, ‘imaginar a realidade’ não é o
mesmo que ‘imaginar o sonho’ — o que não quer dizer que o sonho não faça parte,
como faz, da realidade. Simplesmente, em Jorge de Sena [...] predomina uma
‘imaginação realista’, por contraposição a uma ‘imaginação onirista’, embora esta
não esteja ausente, mas antes submetida, por assim dizer, àquela. (LOURENÇO,
1987, pp. 47-48)
Ao longo de sua escrita, percebe-se essa poesia “supra-real”: o ato de observar os
aspectos da vida constitui-se numa profunda meditação, ou seja, o que transporta para a ficção
encerra não aquilo que é, mas o que poderia ter sido. Ao explorarmos seu texto mais
detidamente, constatamos que o seu testemunho não é meramente documental, não são apenas
“esparsos diários de viagem” escritos ao longo de seus prolongados exílios, mas, sim,
impressões captadas do mundo que o rodeia, um testemunho na linguagem. Para Jorge de
Sena, no fundo, nem “a vida imita a arte”, nem a arte imita a vida, ou melhor explicando, a
chave da sinceridade estética está em aceitar-se que a vida, efetivamente, e num sentido
44
amplo, imita a arte, mas também em saber, ao contrário dos esteticistas, que essa imitação se
dá em termos de experiência humana vivida ou imaginada, como ressalta Fazenda Lourenço:
Deste modo se desenha, uma vez mais, uma tensão dialéctica, agora entre o que seja
experiência existencial e experiência estética, sem que uma anule a outra. Muito
pelo contrário, o que Jorge de Sena propõe é uma consideração do estético como
uma das possibilidades do vivido existencial, ou seja, uma inclusão da ‘arte’ na
‘vida’. Não porque tudo seja arte, o que implicaria uma exclusão da vida, e sim
porque uma experiência das virtualidades humanas só pode ser representada em
termos estéticos. (LOURENÇO, 1988, p. 95)
Realmente, existe uma tensão dialética que nos convida a enxergar com clareza o
impasse entre ‘experiência existencial’ e ‘experiência estética’: ambas encontram-se liadas na
obra seniana. Para que as experiências vividas sejam processadas no âmbito da linguagem, é
mister que sejam transmitidas de uns para outros para que permaneçam na história, ou então
as informações sobre os fatos desapareceriam sem deixar vestígios. O que aconteceu no
passado só existe se passou pela linguagem, se foi narrado. Foi dessa maneira que as
epopeias homéricas chegaram até nós: primeiro, pelo processo de se contar histórias
oralmente, para uma multidão; depois, por via escrita. São registros de uma história narrada,
que não se perdeu através dos séculos, pois, apesar da morte inexorável, há algo que perdura:
a memória. Mesmo que pereça a matéria, a lembrança permanece, por intermédio da palavra,
da tradição de se narrar os feitos de alguém. Portanto, narrar é transmitir a história e lutar
contra a violência da morte 19 .
O poema, parte integrante dos produtos da atividade narrativa, pode ser, de acordo
com o pensamento de Hannah Arendt sobre a obra de arte e sua durabilidade no mundo, um
objeto bastante palpável:
De todas as coisas do pensamento, a poesia é a que mais se assemelha a este último;
e, entre todas as obras de arte, a que menos se assemelha a uma coisa é um poema.
No entanto, até mesmo um poema, não importa quanto tempo tenha existido como
palavra viva e falada na memória do bardo e dos que o escutaram, terá, mais cedo ou
mais tarde, que ser «feito», isto é, escrito e transformado em coisa tangível para
habitar entre coisas; pois a memória e o dom de lembrar, dos quais provém todo o
19
Sigo de perto anotações de aula da Professora Doutora Jeanne Marie Gagnebin, da UNICAMP, em minicurso
que ministrou na UFF: “MEMÓRIA, ESCRITA E FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM WALTER BENJAMIN”,
no período de 14 a 16/04/2010.
45
desejo de imperecibilidade, necessitam de coisas que os façam recordar, para que
eles próprios não venham a perecer. (ARENDT, 2009, p. 183)
A palavra poesia corresponde ao étimo grego poíēsis, do verbo pŏiĕō (fazer, fabricar,
compor um poema). Dessa forma, semanticamente, o que se depreende desse vocábulo é que
um poema, antes de ser escrito, é produzido por uma atividade poética, compreendido como
um processo de “fabricação”. Paradoxalmente, o poema é visto como um objeto estético
tangível, mesmo que composto por imagens. Porém, é justamente por pertencer ao reino das
palavras, que pode proporcionar a recordação, e, portanto, o não desaparecimento.
A poesia é então, novamente citando Fazenda Lourenço, o que resulta poeticamente de
uma experiência de mundo:
[...] o poema não é já o vivido, e sim uma experiência de linguagem. Ou, de outro
modo ainda: o vivido não se traduz imediatamente em poema. A experiência a que o
poema dá expressão é uma experiência rediviva, mais até que revivida. É um afluir à
consciência da recordação de um vivido, o qual, uma vez que foi esquecido nos
armazéns da memória, regressa, não só «vestid[o] de outra expressão» (Melo Neto
14), como caldeado e refractado por outras experiências, e as mais diversas, no
momento em que o poema emerge... (LOURENÇO, 1998, p. 101)
O que ocorre é um déjà vu, a recordação de um possível vivido anterior, ou seja, é a
memória reconstituindo um fato verídico, mas total ou parcialmente esquecido e que agora é
invocado, acrescido de novas formas, enriquecido por outras tantas experiências. Segundo
Gagnebin, ao pensarmos o tempo, obrigatoriamente fazemos a distinção entre passado e
futuro, pois só a partir dessa noção temporal podemos situar os fatos e falar deles. Portanto,
ao contarmos o passado, verificamos sua veracidade, se determinado acontecimento se deu ou
não. Analogamente, podemos testar se é plausível alguma expectativa de um acontecimento
vir a se concretizar no futuro. Gagnebin observa ainda que esse raciocínio se aplica à
atividade narrativa de Santo Agostinho em suas Confissões:
Se não pudesse lembrar do passado, saber o que nele aconteceu, não poderia
narrar sua infância e sua juventude — tema dos primeiros livros das
Confissões — nem chegar a esse momento de auto-reflexão narrativa que
constitui a especulação do Livro XI sobre o tempo, ou ainda: a própria
narração das Confissões pressupõe, como condição transcendental, a
existência do passado, portanto do tempo passado e do tempo presente em
46
que se escreve, mesmo que não se saiba como explicar ou definir essa
existência. (GAGNEBIN, 2005, pp. 72-75)
A autora conclui, com base no pensamento do filósofo, que pensar o tempo significa a
obrigação de pensar a linguagem que o diz e que ‘nele’ se diz. O tempo deixa um rastro na
alma, que seriam as “imagens” por ele impressas. Diz Agostinho, em trecho que
reproduzimos na íntegra através de Gagnebin: ‘ainda que se narrem os acontecimentos
verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram,
mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos
sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígio’. (GAGNEBIN, 2005, p. 73)
Voltando-nos agora para a produção poética e o momento de sua execução no tempo,
diríamos que o poema é sempre o presente, para ele confluem, atualizadas, todas as vivências
do poeta. Há, na obra seniana, numerosos exemplos que poderíamos usar para ilustrar o
processo de recordação de experiências vividas e arquivadas que depois vão resultar em um
poema. Optamos por “La cathédrale engloutie, de Debussy” porque nele, através de uma
digressão do eu-lírico, fatos ocorridos na infância do poeta – o caráter autobiográfico é óbvio
– vêm à tona após lembrar-se de uma música. É de conhecimento geral que Jorge de Sena
estudou música quando criança, tempo em que não tinha sido ainda tocado pela poesia:
Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria
para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música,
eles achavam-na de mais, imprópria de um rapaz
que era pretendido igual a todos eles: alto ou baixo
funcionário público,
(SENA, 1988, p. 165)
Porém, ao ouvir a música de Debussy, foi como que despertado pelos sinos da
Catedral de Ys 20 , cuja lenda ficara conhecendo através de suas muitas leituras:
20
Ys seria uma ilha da mitologia bretã, construída abaixo do nível do mar, com uma muralha cercando-a. Um
dia, a muralha rachou e a cidade foi inundada. Diz a lenda que, de tempos em tempos, quando o mar está calmo e
a maré baixa, é possível ver, em meio à bruma, as torres da catedral, que logo a seguir serão novamente cobertas
pelas águas.
47
Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi
uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam
pensativos,
mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante
daquelas fendas ténues que na vida,
na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam.
Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos,
os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres
sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas.
(SENA, 1988, p. 165)
Encontramos, nesse poema, todo o processo de reconstituição de um fato que marcou
a existência do poeta. Este não está pretendendo falar simplesmente de música, mas sim,
reviver uma experiência, contar como se desencadeou o processo da poesia em sua vida:
Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas
só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou
mas sem palavras. Escrevi. Como o vaso da China,
pomposo e com dragões em relevo, que havia na sala,
e que uma criada ao espanejar partiu,
e dele saíram lixo e papéis velhos lá caídos,
as fissuras da vida abriram-se-me para sempre,
ainda que o sentido de muitas eu só entendesse mais tarde.
(SENA, 1988, p. 165)
O que ele só percebe mais tarde, como adulto, ao rememorar aquele tempo longínquo,
seria uma metáfora de reconhecimento. Diante do vaso chinês quebrado pela criada, a vida se
mostra finalmente: “as fissuras da vida abriram-se-me para sempre,”.
É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo — esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
(SENA, 1988, pp. 165-166)
Em suas reflexões, o homem parvo – como se autodefine o sujeito poético – cedeu
lugar a um outro:
Os acordes perpassam cristalinos sob um fundo surdo
que docemente ecoa. Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez poesia,
esta desgraça impotente de actuar no mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.
Ó catedral de sons e de água! Ó música
sombria e luminosa! Ó vácua solidão
tranqüila! Ó agonia doce e calculada!
(SENA, 1988, p. 166)
48
O parvo tornou-se poeta, com todas as implicações que cercam aqueles que são
distinguidos com o dom da poesia: “esta desgraça impotente de actuar no mundo, / e que só
sabe negar-se e constranger-me a ser / o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.” Nunca
mais a vida seria a mesma, estava aberto um caminho difícil, de muitas contendas e poucos
resultados satisfatórios.
Ao analisarmos mais detidamente o presente poema, vislumbramos uma correlação
entre o conteúdo de seus versos e um famoso episódio da história da literatura: a cena clássica
narrada logo no início de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, na qual o narrador
mergulha uma “madeleine” em uma xícara de chá. A partir desse simples ato, desencadeia-se
em sua mente todo um processo de resgate do passado, o que vai levá-lo a percorrer várias
fases da vida, desde a infância até à idade adulta, quando frequenta os salões da elite
parisiense de final do século XIX. É como se o passado irrompesse no presente: a degustação
do tradicional bolinho ressuscita paisagens que, no momento da enunciação do texto, só
existem nas lembranças do autor, mas que constituirão uma viagem repleta de idas e vindas
no tempo e no espaço, proporcionando ao leitor uma gama de sensações e de conhecimento.
A audição da música por Sena serviu como ponto de partida para que a poesia
aflorasse em sua vida, suscitando incontáveis questões; para Proust, o sabor agradável de um
bolinho misturado ao chá e o contato das migalhas com o palato propiciaram-lhe sensações
tais, que trouxeram à luz um reconhecimento, um exercício mnemônico, capaz de gerar um
gigantesco processo de conhecimento e de produção da escritura do extenso romance.
Seguindo esse mesmo caminho, Jeanne Gagnebin faz uma associação entre memória,
sinestesia e produção literária. Ao discorrer sobre a obra do escritor francês, a autora dá
ênfase a um trabalho de escrita no processo de invocação do passado:
[...] não é a sensação em si (o gosto da ‘madeleine’ e a alegria por ele provocada)
que determina o processo da escrita verdadeira, mas sim a elaboração dessa
sensação, a busca espiritual do seu nome originário, portanto, a transformação, pelo
trabalho da criação artística, da sensação em linguagem, da sensação em sentido.
Não se trata simplesmente de reencontrar uma sensação de outrora, mas de
49
empreender um duplo trabalho: contra o esquecimento e a morte, um, o lado
‘objetivo’ do tempo aniquilador; contra a preguiça e a resistência, outro, o lado
‘subjetivo’ do escritor que se põe à obra. [grifos nossos] (GAGNEBIN, 2006, pp.
154-155).
O sabor da “madeleine” atuava na memória do narrador, induzindo-o à criação
artística, à elaboração de uma “sensação em linguagem”. O mesmo efeito foi obtido por
aquela determinada música em Jorge de Sena, impelindo-o a seguir por uma senda que o
levou a descobrir o universo da Poesia. Através do enorme sucesso alcançado por Proust com
Em busca do tempo perdido, não só Sena, mas certamente outros autores que utilizam a
memória como recurso de escrita ficaram mais atentos à sinestesia como recuperação de fatos
esquecidos do passado, seja através de cores, odores, sabores, toques ou sons.
Quando o narrador cria relatos a partir de uma experiência vivenciada, entramos no
campo da autobiografia. Jorge de Sena produz abundantemente nessa área e saber distinguir
biografia de outros gêneros literários torna-se uma das condições necessárias para uma
profícua leitura de seu texto. Gilda Santos, dedicada pesquisadora da obra seniana no Brasil,
comenta: “Para ler bem este autor, é preciso convocar ao diálogo muitas e várias esferas do
conhecimento – inclusive o biográfico.” (SANTOS, 1996, p. 160). Porém, escrever sobre a
própria vida não é tão somente “falar de si”, mas a exposição de um “eu” que se dá a
conhecer, que se mostra perante o olhar do outro. A autobiografia tende a assimilar técnicas e
recursos estilísticos que são próprios da ficção. Fica evidente então, um paradoxo entre o
discurso verídico e a sua representação artística.
Mesmo se limitada a uma simples narração, a autobiografia é sempre uma
autointerpretação, pois o “eu” que se manifesta, ao tentar recuperar o próprio passado, corre o
risco de desviar-se do autobiográfico e penetrar no mundo ficcional, permitindo-se, dessa
forma, certa liberdade imaginativa. Entendemos que Sena, ao longo de sua obra, parece
“colocar-se” dentro do texto, mas, ao mesmo tempo, procura manter uma distância segura da
realidade conforme afirma no Prefácio a Os Grão-Capitães:
50
Não creio que, nos tempos de hoje, se possa honestamente fazer ficção de outra
coisa, se se quer falar do mundo em que vivemos e da vida que nos foi dado ter, ou a
que nos foi dada assistir, nele. Mas seria um erro pensar-se, como correntemente se
pensa, que a fantasia não é feita da mesma matéria: na verdade, um dos contos meus
em que há mais de mim mesmo e da minha vida é o mais fantástico que escrevi, O
Físico Prodigioso. (SENA, 2006, p. 15)
É evidente que a vivência no mundo real acaba por tornar-se matéria para a poesia ou
outra manifestação literária, como o romance. Porém, pode ocorrer que o escritor, ao
estruturar a linguagem no momento da enunciação do texto, privilegie mais a técnica da
escrita que o caráter de fidelidade à sua reminiscência. Escrever sobre a própria vida não é
mera reprodução do real, não há meios de transportar o passado integralmente para o
momento atual, pois muitos elementos se perdem na tentativa de reconstituição de um fato.
Trata-se de procurar uma relação viva com o passado e não enumerar fatos do passado como
morto. Não é uma imagem fixa que se produz na mente, mas uma articulação, ou seja, um
movimento de mexer com algo entre o passado e o presente: não é somente passado nem
somente presente, mas uma articulação dos dois; não é apoderar-se de uma lembrança, mas
um olhar rapidamente para trás. Além do mais, o intento de reproduzir o real pode distorcer a
própria realidade e empobrecê-la. Enfim, “Por paradoxal que pareça, só pode contar tudo
quem tiver muito pouco para contar.” (SENA, 2006, p. 15).
A distinção entre autobiografia e ficção pode se mostrar muito ambígua, tornando-se
difícil enxergar uma linha de separação entre ambas. Um estudo aprofundado do crítico e
professor Wander Melo Miranda clarifica bastante a questão, uma vez que sua reflexão se dá
em torno dos limites entre o discurso memorialista e o discurso ficcional:
[...] em muitos casos a fronteira entre ‘fato’ autobiográfico e ‘ficção’ subjetivamente
verdadeira é bastante tênue, podendo o grau de ‘fingimento’ de determinados textos
ser tão variável que torna difícil a diferenciação entre uma autobiografia autêntica e
uma composição já romanceada. Muitos romances em primeira pessoa podem
‘fingir’ o relato verídico de uma experiência pessoal, sem que o leitor seja capaz de
desfazer a ambigüidade entre a história concreta de um eu real, que remeteria ao
autor, e a sua recriação metafórica em termos de invenção ficcional. (MIRANDA,
1993, p. 33)
O mundo real pode ou não participar na formação de mundos ficcionais: no primeiro
caso, fornece modelos de sua estrutura, nos quais pode ser inserida inclusive a experiência do
51
autor – haja vista o testemunho seniano – relacionando vivências pessoais à ficção. Sendo
assim, o material fornecido pelo mundo real precisa sofrer uma transformação para ser
admitido no mundo ficcional: convertido em mundos possíveis imaginários, com algumas
alterações de sentido, que podem ocorrer a partir da presença de agentes modificadores
acrescentados ao texto, como figuras de linguagem: comparação, metáfora, alegoria, entre
outras.
No segundo caso, há a possibilidade de um conjunto de mundos ficcionais,
interpretados como mundos possíveis, pelo critério da verossimilhança. Ao admitirmos que
eles são possíveis, a literatura adquire maior liberdade para se distanciar e não ficar vinculada
a uma reprodução do mundo real. Dentre esses mundos possíveis incluem-se tanto mundos
análogos ao real quanto os mais fantásticos, que também são aceitos pelo leitor no universo
ficcional. Nesse sentido, encontramos acolhida em um texto de Linda Hutcheon: “Do ponto
de vista do leitor não é mais fácil criar e acreditar no mundo bem documentado de Zola do
que imaginar hobbits ou elfos; o salto imaginativo para o mundo e o tempo deve ser dado em
ambos os casos” 21 .
Seguindo na esteira do comentário de Hutcheon, somos arremessados a um outro
aspecto literário, explanado por José Guilherme Merquior 22 , no que concerne à realidade
factual: o realismo, que acostumou o leitor à ideia de que a literatura espelha a aparência
sensível da realidade, o caráter empírico do processo histórico, tal como acontece nos
romances de Balzac, Flaubert e o acima citado, Zola. Os estudos sociológicos da literatura
desenvolvidos durante o século XIX sempre tomaram por base a narrativa, não a lírica.
Porém, houve uma reação da elite poética, obrigada a polemizar contra a poesia retórica e
propagandista da era vitoriana, o que propiciou uma autonomia da função estética, mas
21
HUTCHEON, 1984, p. 78: «From the point of view of the reader it is no easier to create and believe in the
well-documented world of Zola than it is for him to imagine hobbits or elves; the imaginative leap into the
novel's world of time and space must be made in both cases.»
22
Cf. MERQUIOR, 1999, passim.
52
deixou em segundo plano a capacidade de alusão ao mundo característica das grandes obras
líricas. Chegou-se a uma insustentável convicção de que o romance reflete a realidade,
enquanto a poesia seria simples questão de “imaginação”.
Temos plena consciência, na atualidade, de que o realismo não é mais um estilo
dominante e a referência histórico-empírica de que se nutre não é mais a única forma de
presença da realidade do discurso literário. Na lírica, em virtude da faculdade de
interiorização que lhe é peculiar, é raro nos defrontarmos com um mundo de aparência factual
bem delineado. O foco referencial não consiste sempre, nem mesmo na narrativa, na matriz
histórico-empírica. Em Flaubert já se fazia notar essa tendência, conforme assinala Merquior:
Na Recherche, que representa a culminância de um deslocamento já sensível em
Flaubert e mais ainda no romance russo, a referência cultural — os modos de vida e
o reino dos valores culturais — toma a dianteira estética em relação ao processo
histórico stricto sensu; este muda de plano, sem por isso desaparecer [...]. Em Kafka,
onde a observação realista se transforma em relato maniacamente minucioso de
acontecimentos fantásticos, a referência em foco não é mais, obviamente, qualquer
processo histórico, quer político-social, quer cultural: uma visão arquetípica do
homem ocupa o lugar mais saliente. (MERQUIOR, 1999, p. 32)
Entretanto, isso não significa que todo trabalho literário não reflita, de alguma forma,
alguns aspectos imanentes da vida humana, dentro da sua realidade político-social e cultural.
A lírica, por sua vez, elabora geralmente uma cena em termos de dados culturais e de
arquétipos humanos, mais do que na linha de referência histórico-empírica. Porém, ao
procedermos à análise literária, convém termos em mente as várias dimensões do real, qual
delas é a mais favorecida pela mímese particular de cada estilo e de cada obra. O poema
“Camões na Ilha de Moçambique”, oportunamente expõe, dentro da linguagem seniana, como
se manifesta o verossímil na representação do real. Sena desvela, através de seu testemunho,
em uma escrita predominantemente subjetiva, a vida que, baseada no critério da
verossimilhança, teria vivido o poeta, apresentando ao mundo um Camões inusitado, mas
possível.
Parada obrigatória de todas as esquadras portuguesas que faziam a rota das Índias, a
Ilha de Moçambique sempre motivou, ao longo dos séculos, o canto dos poetas: desde
53
Camões e Tomás Antônio Gonzaga, que a habitaram, até os contemporâneos Rui Knopfli,
Alexandre Lobato, Alberto de Lacerda e Jorge de Sena, que direcionaram o olhar para a sua
decadência e o passado que evoca. Uma das raízes do testemunho poético de Sena, senão a
mais importante, aponta ter origens no poeta quinhentista, sobretudo no que concerne à
dialética entre poesia e experiência, vínculo entre o autor e a obra, que permeia a poesia
camoniana. A história conta que Camões, em seus anos de aventura pelo Oriente, vivera
diversas experiências, tão dolorosas quanto excitantes. Nessa longa peregrinação, pobreza e
perseguições não são invenções de curiosos nem simples paramentos da tradição.
Moçambique seria mais um capítulo de sua vivência itinerante, outro local por onde “deixaria
a vida em pedaços repartida”.
O poeta chegara até lá iludido com promessas, para afinal se ver desprovido e carecido
de tudo, em estado de extrema penúria, segundo testemunho do historiador Diogo do Couto,
também seu amigo íntimo, “tão pobre que comia de amigos” 23 . Foram dois anos terríveis,
durante os quais Camões sucumbiria se não fosse socorrido pelos amigos, que se cotizaram
para pagar-lhe dívidas, provendo-o também do necessário para a viagem de volta ao Reino.
Apesar de tais adversidades, termina Os Lusíadas e escreve o Parnaso, livro que ainda
segundo Diogo do Couto, lhe foi furtado e jamais recuperado. Na ficção, ali se deu o encontro
deste com Jorge de Sena, quando visitou o local em 1972, ano do quarto centenário da
publicação d’Os Lusíadas, e escreveu o poema objeto de nossa análise.
No poema em questão, a ilha é vista como uma parte representativa do momento de
expansão do império português, cujo movimento também está conduzindo Camões na grande
aventura:
23
“Em Moçambique achamos aquele Príncipe dos Poetas de seu tempo, meu matalote e amigo Luís de Camões,
tão pobre que comia de amigos, e, para se embarcar para o reino, lhe ajuntamos toda a roupa que houve mister, e
não faltou quem lhe desse de comer. E aquele inverno que esteve em Moçambique, acabando de aperfeiçoar as
suas Lusíadas para as imprimir, foi escrevendo muito em um livro, que intitulava Parnaso de Luís de Camões,
livro de muita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhe juntaram (roubaram). E nunca pude saber, no reino dele,
por muito que inquiri. E foi furto notável. “ Apud //pt.wikipedia.org/wiki/luis_Vaz_de_Camões, citando, por sua
vez, Mourão e Vasconcelos, p. 40-41 e Le Gentil, p. 27-29.
54
É pobre e já foi rica. Era mais pobre
quando Camões aqui passou primeiro,
cheia de livros a cabeça e lendas
e muita estúrdia de Lisboa reles.
Quando passados nele os Orientes
e o amargor dos vis sempre tão ricos,
aqui ficou, [...]
(SENA, 1989, p. 185)
Ao viajar para o Oriente, passando por Moçambique, ainda pode-se vislumbrar um
Camões otimista: “cheia de livros a cabeça e lendas / e muita estúrdia de Lisboa reles.”
Porém, ao se estabelecer na ilha, já haviam “passados nele os Orientes / e o amargor dos vis
sempre tão ricos”, já havia sofrido as decepções que lhe indicavam o desconcerto do mundo.
Assim como Camões, passaram pela ilha outros aventureiros anônimos se dirigindo ao
Oriente, com os mesmos sonhos: “mas antes dele, como depois dele / aqui passaram todos:
almirantes, / ladrões e vice-reis, poetas e cobardes, / os santos e os heróis, mais a canalha /
sem nome e sem memória...” (SENA, 1989, p, 185). Sena reflete sobre o efeito do tempo,
como tudo é passageiro: todos passaram, já foram, não têm mais como serem nomeados ou
recuperados:
Jazem aqui em lápides perdidas
Os nomes todos dessa gente que,
Como hoje os negros, se chegava às rochas,
Baixava as calças e largava ao mar
A mal-cheirosa escória de estar vivo.
Não é de bronze, louros na cabeça,
nem no escrever parnasos, que te vejo aqui.
Mas num recanto em cócoras marinhas,
soltando às ninfas que lambiam rochas
o quanto a fome e a glória da epopeia
em ti se digeriam. [...]
(SENA, 1989, p, 185).
Todas essas pessoas cujos nomes “jazem em lápides perdidas”, e na atualidade, alguns
habitantes da ilha, têm em comum um mesmo hábito humano, ditado pela necessidade física:
defecar. O ato é visto com bastante naturalidade, mas para gente comum e para os animais,
não para um mito como Camões, a quem os olhos da nação se acostumaram a enxergar como
monumento, um “Camões brônzeo”, como já fora outrora descrito por Cesário Verde, em “O
sentimento dum ocidental”:
55
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
(VERDE, 1984, p. 73)
É esta imagem estática de Camões que Sena rejeita, conforme demonstrado em seu
poema, ao oferecer-nos um Camões pleno de humanidade, que contrasta com o da estátua:
“Não é de bronze, louros na cabeça, / nem no escrever parnasos, que te vejo aqui.”. O
advérbio de lugar “aqui” – com cinco ocorrências em todo o poema – corresponde, é claro, à
Ilha de Moçambique, mas situada em outro tempo, o da enunciação, que é o tempo de Jorge
de Sena. Portanto, é outra ilha, assim como é outro o Camões.
Sena coloca diante de seu leitor a cena escatológica: Camões, “em cócoras marinhas”,
em atitude peculiar não apenas ao homem, mas a qualquer ser vivo sobre a terra. Porém, há
um fator que o diferencia dos outros homens, conforme discorre Gilda Santos:
O que o individualizava era a natureza da fome que sentia: não só alimentos para o
corpo lhe bastavam; necessitava nutrir-se ainda de algo além, impalpável, como ‘a
glória da epopéia’. Ou seja, também a poesia lhe era alimento indispensável à
sobrevivência, tão concretamente ingerível como todos os mais. Portanto, como
resultado último da digestão insólita, na ousada visão de Jorge de Sena, ‘versos de
soneto’ perpassam ‘junto de um cheiro a merda’. (SANTOS, 1995, p. 160).
Em meio a excrementos, Camões reúne o significado literal ao metafórico, já que
encontrar-se entre dejetos simboliza o seu estado de absoluta miséria. Nem mesmo seus
versos escapam ao significado escatológico: metaforicamente, lançar fezes ao mar no
contexto desse poema é também desprender-se de versos, oferecer às ninfas “o quanto a fome
e a glória da epopeia / em ti se digeriam.”.
Ainda sob o critério da verossimilhança, nos fragmentos seguintes, temos indícios da
fragilidade do corpo humano, suscetível a sensações diversas, como a dor e até mesmo o
desejo:
[...] Pendendo para as pedras
teu membro se lembrava e estremecia
de recordar na brisa as croias mais as damas,
(SENA, 1989, p. 186)
56
Estamos diante de um Camões que faz lembrar aquele que “cantou o amor até a
destruição da carne” e praticou o sexo como quem queria “amor somente”. “Pendendo para as
pedras”, o membro de Camões estremece com as recordações das “croias mais as damas”.
Depois de obrar, a figura do poeta alevanta-se das rochas, com a mão no sexo, distraído, e
sobe aos baluartes, sonhando com outra Ilha, aquela que seria a pátria ideal: “sonhavas de
outra Ilha, a Ilha única, / enquanto a mão se te pousava lusa, / em franca distracção, no que te
era a pátria / por ser a ponta da semente dela” (SENA, 1989, p. 186).
Em Sena, o sentimento por Portugal aparece sob uma visão dessacralizadora, irônica,
atribuindo ao país uma conotação fálica: Camões descansa a mão sobre o sexo, como se este
fosse a sua pátria. O uso do pênis como metáfora de Portugal assume um caráter que não pode
ser desprezado, pois simboliza a relação tensa entre o poeta e a pátria. Curiosamente, essa
associação verifica-se em outro texto seniano, no conto Capangala não responde, de Os
Grão-Capitães: também há uma alusão fálica à Pátria: “— Não admites o quê? Não admites o
quê? Olha, sabes que mais? Mete a tua pátria no cu. Sabes o que é a pátria que a gente tem?
Que tu e os outros nos deixaram? Sabes aonde está a nossa pátria? A pátria está onde está isto
— e agarrou com a mão no sexo.” (SENA, 2006, p. 205).
As cenas de “humanidade explícita” às quais Jorge de Sena submete Camões nesse
poema não são gratuitas. É de conhecimento público o fato de Sena ser um grande admirador
de Camões e um dos maiores analistas de sua obra, além de manter com ela inúmeras
referências intertextuais. Acontece que o momento em que o poema foi escrito, coincide com
o ano de comemoração do quarto centenário da publicação de Os Lusíadas e o país prepara-se
para mais uma vez fazer uso da imagem do “Príncipe dos Poetas”, aquela mesma,
monumental, a que já nos referimos. Jorge de Sena, como homem íntegro e poeta que trabalha
com todo um conceito de ética, não poderia assistir impunemente ao Estado Novo servir-se de
Camões dessa maneira. A esse respeito o poeta se pronuncia no Prefácio de Poesia III:
57
Nesse ano de 1972, por obra e graça do centenário de Os Lusíadas, andei Seca e
Meca e Olivais de Santarém, pelo mundo adiante, e, entre América e Europas, fui à
África também — revi Luanda ao fim de cerca de trinta e cinco anos, e visitei pela
primeira vez Moçambique que me maravilhou — , [...]. Aí, ao visitar a Ilha que deu
o nome ao país, a passagem de Camões por ela inspirou-me um longo poema que era
expressão da minha admiração por ele e do meu instinto de ir contra tudo o que tente
oficializar seja o que for. Por isso, e creio que com comovida e respeitosa estima, o
pus a cagar para o mundo que o lixava e lixa até hoje, com perdão destas palavras
aliás hoje parte da oratória nacional do mais elevado estilo. (SENA, 1989, p. 14).
Portanto, o fato de expor o seu Camões sem os louros na cabeça, defecando, de modo
oposto àquele exibido num pedestal, teve um propósito antiépico. Dessa maneira, Sena tenta
desconstruir o mito, minimizando uma exacerbada manifestação de nacionalismo, a qual
maneja o imaginário popular, no intuito de coibir a capacidade do povo português de pensar
na situação do país e na sua própria, continuando assim, manipulável pelo poder.
Como vimos, a linguagem se propõe uma função representativa, mas não tem o poder
de substituir o mundo. O mundo criado por ela nunca está totalmente adequado ao real, jamais
será uma reprodução da verdade, dos fatos, mas apenas uma possibilidade do que poderia ter
acontecido. A partir do mundo dado, o autor faz surgir um outro, que em parte repete –
mímese – em parte diverge do original. Em relação a esse aspecto, acatamos aqui as
considerações de Leyla Perrone Moisés:
Narrar uma história, mesmo que ela tenha realmente ocorrido, é reinventá-la. Duas
pessoas nunca contam o mesmo fato da mesma forma: a simples escolha dos
pormenores a serem narrados, a ordenação dos fatos e o ângulo de que eles são
encarados, tudo isso cria a possibilidade de mil e uma histórias, das quais nenhuma será
a ‘real’; e muitas vezes se estará criando, na história, algo que faltava no real. Ou
melhor, algo que, ao se produzir na história, revela uma imperdoável falha no real.
(MOISÉS, 1990, p. 105)
O Camões reinventado por Jorge de Sena foi apenas um entre muitos que poderiam ter
sido criados, baseando-se na realidade, mas investindo-o do acréscimo da imaginação, onde
existia alguma lacuna a ser preenchida. Essa foi a perspectiva desse poeta, um outro já teria
visto o personagem por um ângulo diferente. A História atesta que Camões partiu da ilha, mas
sempre fará parte desse espaço, cuja presença será sentida por outros poetas, como sentiu-a
Jorge de Sena, outro exilado como ele. No final da nota que acompanha o poema: “Agasalheio num poema [...]. Mas amigo dele verdadeiro, não lhe dei o dinheiro para que volte à pátria.”
58
(SENA, 1989, p. 258). Evidentemente, Sena faz menção ao fato de amigos terem-lhe
franqueado a passagem de volta e por conhecer em detalhes a biografia e obra de Camões,
está ciente da enorme decepção que o aguardava no retorno a Portugal.
Como bem observa Jorge Fazenda Lourenço 24 , Sena olhou a ilha de Moçambique com
seu “olhar de exilado” transformando o que viu – e sobretudo o que não viu – em matéria
poética. E esse olhar crítico, lúcido, sensível, possibilitou fazer do poema “Camões na ilha de
Moçambique”, um monumento de louvor ao “engenho e arte” do poeta renascentista.
Ao abordarmos a construção de mundos imaginários, como a ilha sonhada por
Camões, não podemos deixar de mencionar o poema “Em Creta com o Minotauro” (SENA,
1989, pp. 74-75), datado de julho de 1965, época em que Jorge de Sena está prestes a se exilar
nos Estados Unidos. Trata-se de uma síntese de toda a amargura com a qual o poeta convive
no desterro, a visão de um sujeito poético que tem a alma corroída por se sentir sem pátria.
Os versos iniciais são uma reflexão da própria vida errante do autor e fazem referência aos
países de sua peregrinação:
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Como vemos, é um desabafo de sua condição de emigrado, que não pertence, na
realidade, a lugar nenhum.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. [...]
O poeta compara as diferentes nacionalidades que adquiriu com camisas, usadas e
descartadas quando já não se precisa delas. No fim, depois de tantas nacionalidades, resta-lhe,
na realidade, nenhuma. No verso “Eu sou eu mesmo a minha pátria. [...]” há, sem dúvida, uma
24
Cf. LOURENÇO, 1988, p. 166
59
alusão a Fernando Pessoa, através de seu semi-heterônimo Bernardo Soares 25 , no trecho em
que este afirma: “Minha pátria é a língua portuguesa.”. Ora, ausente da terra natal, é através
da posse de outro objeto estimado – a língua – que o indivíduo se relaciona com o mundo. A
língua passa então a ser o seu refúgio, a maneira de suprir a ausência da pátria distante,
juntamente com a memória: ela perde o seu atributo geográfico para ser transformada num
atributo do ser – a escrita –, que se efetua através de uma língua específica, que
circunstancialmente é a do lugar de nascimento do poeta.
Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
Essa Creta do Minotauro é utopicamente recriada pelo sujeito poético, dando lugar a
uma Creta arquetípica, povoada por um ser que também não é real: o Minotauro, um ser
mitológico. Dentro do universo ficcional proposto no poema, a cena que toma forma na mente
do leitor é perfeitamente verossímil: ao assimilar a realidade interna do poema, é tão
aceitável, por exemplo, um personagem de Eça de Queirós andando pelas ruas de Lisboa
quanto qualquer outro dentro de um país de Conto de Fadas. No trecho seguinte:
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
[...]
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O eu-lírico se identifica e solidariza com o Minotauro, que também é uma criatura
marginal, rejeitada, pois foge aos estereótipos de perfeição aceitos pela sociedade, é diferente:
“Tem cornos [...]”, um ser híbrido: “É metade boi e metade homem, como todos os homens”.
25
Cf. Bernardo Soares no Livro do Desassossego. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p. 259: “Não tenho
sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é
a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem
pessoalmente, mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português,
não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa
própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como escarro direto que me
enoja independentemente de quem o cuspisse.”
60
Contemplado na visão particular do sujeito poético, o Minotauro é tão comum quanto os
outros homens. Na história conhecida, o Minotauro é a fera; Teseu, o herói, e aí atestamos
mais uma marca arraigada em Jorge de Sena: o sarcasmo, quando o sujeito inverte a situação
dos dois personagens, atribuindo maior respeito ao monstro que ao herói, que segundo ele, é
“[...] como todos os gregos heróicos, um filho da puta,”.
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
O poeta se refere a Camões – aquele pobre diabo –, ao mencionar “a vida pelo mundo
em pedaços repartida”, fazendo um comentário sobre pátria e língua de forma irônica: “[o
Minotauro] como toda a gente, não sabe português.” [será que nem os portugueses?] Também
o Minotauro não fala grego, sequer é grego, então se comunicam em volapuque, uma língua
inventada, “que nenhum de nós o sabe.”. A língua portuguesa é aqui caracterizada como o
único modo de ter pátria, fundindo no mesmo conceito “poesia e pátria”. No verso “Também
eu não sei grego, segundo as mais seguras informações”, Sena está se referindo aos
comentários depreciativos que teria recebido a respeito de sua própria erudição, vindos de
Óscar Lopes 26 .
O mundo entrevisto na ficção não pretende, dentro da poesia, isolar-se ou “fugir” do
real, mas fazer o real ser lido nas malhas da ficção. A linguagem é capaz de criar mundos
próprios e é a partir de um mundo aparentemente absurdo que se enxergam verdades
universais. Fazendo uma analogia, percebemos que não há nenhuma alusão a fato histórico,
social ou político, ou que realmente tenha acontecido, mas sim uma visão do poeta sobre o
mundo, carregada de subjetividade e que constrói, a partir da memória, um arquétipo de
homem e de cidade.
26
Informação fornecida pela estudiosa seniana, Gilda Santos, em conversa informal.
61
Nuno Júdice, professor, poeta e ensaísta português, esclarece que o texto representa
uma ordem que engloba tanto o mundo representado no espaço do texto quanto o modo de
representação desse mundo, em duas vertentes: o espaço mimético e a linguagem que
autoriza a mímese: “Estamos perante uma dupla realidade, relevando do mundo e da língua,
que coincidem no texto numa aliança que é sempre artificial – consistindo o engenho (o
génio) do escritor na sua capacidade de superar (esconder) o artifício.” (JÚDICE, 1998, p.
32). Dessa forma, o “engenho” de Sena consiste em nos mostrar, com estética
minuciosamente trabalhada, a situação do sujeito poético, que assim como o Minotauro, está
preso no seu labirinto/exílio, impedido que é de desfrutar de sua Creta/Portugal.
________________________ A CONSTRUÇÃO DAS IMAGENS DA PEREGRINAÇÃO
NUM APURAR CONSTANTE...
Num apurar constante da visão
como o que melhor vê porque melhor prolonga
de finos aparelhos os sentidos,
e encontra porque busca onde antes outro
olhar pousou apenas distraído
por outras profundezas de visão em espaços
que vão perdendo após o seu valor e o fundo,
sempre diversas, renovadas, generosas
ideias e visões se abrem mais amplas,
e delas se arde e de pousada vida,
em sonhos tão felizes, tão libertos!
(SENA, 1982, p.109)
3.1 O mundo visto e a visão de mundo
Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós
para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si.
Porque estamos certos de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos,
expondo nosso interior ao exterior, falamos em janelas da alma. (CHAUI, 1988, p.
33)
O texto de Marilena Chaui evoca o famoso termo de Leonardo da Vinci, “janela da
alma” 27 , em torno do qual a filósofa elabora suas reflexões no ensaio “Janela da alma, espelho
do mundo”, coligido em livro que, sob a organização de Adauto Novaes, reúne outros
ensaístas de renome, cujas produções textuais abordam o “olhar” sob variados enfoques. A
coletânea constitui-se em importante referência para nosso trabalho, mais especialmente neste
capítulo, o qual, com relativa frequência, trará à tona o assunto visualidade.
A janela transmite a ideia de que o olhar projeta o que habita em nosso interior para o
mundo exterior. Quando pensamos em um verbo designativo para o uso do sentido da visão,
vem-nos à mente todo um repertório de vocábulos do campo semântico visual: ver, olhar,
enxergar, observar, reparar, contemplar e suas derivações. Ao falarmos em visão de mundo,
ver pode assumir tanto o aspecto literal quanto o figurado: é preciso ver as coisas para delas
se extrair as informações; a partir da experiência obtida através das coisas vistas ao longo da
vida, adquire-se visão de mundo. Entre ver e olhar existe certa confusão de conceitos. Os dois
27
Leonardo da Vinci, apud CHAUI, 1988, p. 31. “Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? [...] É
janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que,
sem esse poder, seria um tormento [...] Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido
seria capaz de absorver as imagens do universo? [...] O espírito do pintor deve fazer-se semelhante a um espelho
que adota a cor do que se olha e se enche de tantas imagens quantas coisas tiver diante de si.”
64
termos geram uma ambiguidade de interpretações em todos os campos. Na literatura, apenas
como ilustração, lembramos José Saramago, que na epígrafe de seu romance Ensaio sobre a
cegueira diz: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”, expressão retirada do Livro dos
Conselhos 28 . A ambiguidade vai além dos verbos “ver” e “olhar”: há também o sentido duplo
do verbo “reparar”, que pode assumir o sentido de consertar, no contexto da epígrafe. Porém,
nosso interesse concentra-se nas propriedades do ato de olhar. De acordo com a citação do
Livro dos Conselhos, então, “ver” depende de “olhar”. Porém, há controvérsias quanto ao
sentido imputado aos dois verbos. Segundo o professor de filosofia política da USP, Sérgio
Cardoso:
O ver, em geral, conota no vidente uma certa discrição e passividade ou, ao menos,
alguma reserva. Nele um olho dócil, quase desatento, parece deslizar sobre as
coisas; e as espelha e registra, reflete e grava. Diríamos mesmo que aí o olho se
turva e se embaça, concentrando sua vida na película lustrosa da superfície, para
fazer-se espelho... como se renunciasse a sua própria espessura e profundidade para
reduzir-se a esta membrana sensível em que o mundo imprime seus relevos. Com o
olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e às virtudes do sujeito, e
atesta a cada passo nesta ação a espessura da sua interioridade. Ele perscruta e
investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre da
necessidade de ‘ver de novo’ (ou ver o novo), como intento de ‘olhar bem’. Por isso
é sempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor... [grifos
nossos] (CARDOSO, 1988, p. 348)
O texto de Cardoso baseia-se, fundamentalmente, na teoria de Merleau-Ponty, fonte
indispensável de consulta para estudiosos de todo o mundo, à qual também recorremos na
tentativa de minimizar a flutuação em torno da conceituação dos dois vocábulos. A poesia é
domínio do subjetivo (ainda que se pretenda objetiva...), portanto, o que está em questão é
como o eu-lírico capta e configura as impressões do mundo à medida que o percorre. É nosso
propósito então, investigar a maneira de Jorge de Sena perceber o mundo. A importância que
28
A autoria do referido livro é atribuída ao rei D. Duarte, segundo monarca da dinastia de Avis, que ficou
conhecido como um dos reis mais cultos da História de Portugal. Foi um rei muito bem preparado para o poder,
cujo gosto pelas letras se tornou célebre. De sua autoria conhecem-se duas obras, ambas excelentes exemplos do
seu caráter erudito e da sua personalidade madura, mas também dos gostos literários da época: o Leal
Conselheiro e o Livro da Ensinança de Bem-Cavalgar Toda a Sela. Em uma trata dos problemas que enfrenta e
das regras de justiça que deverá seguir o bom governante; na outra, da arte de montar, da caça e da guerra.
Porém, há ainda outro título, o chamado Livro de Conselhos de El-Rei D. Duarte, ou Livro da Cartuxa, pequeno
conjunto de textos de origens diversas, espécie de bloco de apontamentos onde o rei anotava vários temas de seu
interesse. Cf. em http://forumpatria.com/historia-de-portugal/d-duarte-o-eloquente-ou-o-rei-filosofo/
65
atribuímos em nossa pesquisa aos mecanismos visuais ratifica-se, pois as imagens se formam
no sujeito a partir do que ele vê no mundo. Logo, a visão é o primeiro dos sentidos
convocados para a discussão a respeito desse aspecto da obra em particular. Conforme
discorre Merleau-Ponty:
O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro
para ser ele mesmo, e, na palheta, a cor que o quadro aguarda; e, uma vez feito, vê o
quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas
outras a outras faltas. [...] Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa
seus próprios fins, o olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo
e que o restitui ao visível pelos traços da mão. (MERLEAU-PONTY, 1997, p. 263)
No caso da poesia, o objeto estético restituído é o poema, resultado do que o olho do
sujeito captou e recriou textualmente. O ato de captar ou depreender os aspectos mundanos
remete de imediato para uma interioridade do indivíduo, é através dos sentidos que os homens
apreendem o mundo, que assimilam a imagem que se oferece aos olhos e ao espírito. O olho
então, possui papel fundamental nesse processo, conforme assinala o geógrafo Paul Claval:
“O olho não é um instrumento neutro. O que nós vemos nos agrada, nos incomoda ou nos faz
medo. O olhar participa da experiência emotiva e, por vezes, estética, que temos dos lugares.”
(CLAVAL, 1999, p. 83). Logo, a formulação ou o enquadramento depende do ponto de vista
que o observador escolheu.
Um dos prováveis motivos pelos quais a visão se sobrepõe aos demais sentidos em
relação à percepção, encontra abrigo na afirmação de Merleau-Ponty de que ver é ter à
distância: “O olhar, dizíamos, envolve, apalpa, esposa as coisas visíveis. Como se estivesse
com elas numa relação de harmonia preestabelecida, como se as soubesse antes de sabê-las,
move-se à sua maneira, em seu estilo sincopado e imperioso.” (MERLEAU-PONTY, 2007, p.
130). Mesmo com a liberdade de apalpar as coisas, pousar sobre elas e nelas penetrar, o olhar
não pode se apropriar. O olhar seria uma síntese, uma experimentação dos outros sentidos,
quando pode chegar aos objetos e depois se afastar sem alterar-lhes a materialidade.
66
Entre o vidente e o visível estabelece-se uma familiaridade estreita, defendida pelo
filósofo, quando sustenta que dizer que o corpo é vidente, nada mais é dizer que ele é visível,
pois para entender que é o corpo que vê, este precisa estar de algum “lado” (do ponto de vista
de outrem; para si mesmo, no espelho) visível no ato de olhar. Desse modo, a visão brota do
meio das coisas e não de fora delas. É quando um visível se dá a ver que consegue se ver
vendo, tornando mais sólida essa relação entre vidente e visível:
Mais exatamente: quando digo que o meu corpo é vidente, há, na experiência que
tenho disso, algo que funda e enuncia a vista que outrem possui ou que o espelho dá
de meu corpo. I. e: é visível para mim em princípio ou pelo menos concorre para o
Visível de que o meu visível é um fragmento. I. e, nessa medida, o meu visível virase sobre ele para ‘compreendê-lo’ — E como é que eu sei disso senão porque o meu
visível não é de modo nenhum ‘representação’ minha, mas carne? I. e, capaz de
abraçar o meu corpo, de ‘vê-lo’ — É através do mundo que sou visto ou pensado.
(MERLEAU-PONTY, 2007, p. 245)
É a partir dessa reflexão sobre o ato de ver que tentamos assimilar a noção de “carne
do mundo” tão insistentemente sublinhada pelo pensador, que diz existir a carne do mundo e a
carne do corpo e que estas se fundem em uma relação de percepção mútua: “A carne é
fenômeno de espelho e o espelho é extensão da minha relação com meu corpo” (MERLEAUPONTY, 2007, p. 231). É compreendendo então, que ambos (corpo e mundo) são possuidores
de uma “carne”, que se alcança o reconhecimento de um no outro. Uma outra dúvida, porém,
nos ocorre: de que é feita a carne do mundo? De acordo com o filósofo:
A carne não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria preciso, para designála, o velho termo ‘elemento’, no sentido em que era empregado para falar-se da
água, do ar, da terra e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa geral, meio caminho
entre o indivíduo espácio-temporal e a idéia, espécie de princípio encarnado que
importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua.
Neste sentido, a carne é um ‘elemento’ do Ser. (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 136)
Sendo as coisas do mundo revestidas por uma “carne”, ou “elemento do Ser”, também
vamos encontrar no poema a sua respectiva “carne”, uma vez que o poeta, para concretizá-lo,
faz uso de sua vidência, experimenta o contato com o mundo através de seu próprio corpo.
Assim, ao procedermos a uma abordagem paisagística da poesia seniana, lendo os poemas sob
uma perspectiva imagética, é importante vincar a presença do testemunho, para o qual,
segundo Luís Adriano Carlos, a vidência torna-se o termo mediador:
67
[...] o poeta vê o infinito no finito, a essência das coisas na contingência das coisas.
A revelação testemunhal é, contudo, menos visionarismo do que visão múltipla da
revelação que se manifesta na linguagem, projectada sobre o horizonte da existência
e da história. Deste modo, a interrogação imanente ao testemunho aparece na forma
de um olhar que se fixa sobre o mundo e sobre os outros. Um olhar da liberdade
convertendo-se em liberdade do olhar, à medida que é mediado por um olhar
responsável. Porque a testemunha, que difere do voyeur precisamente no desejo de
dar a ver o seu olhar e de ver sendo vista, só pode empreender uma cumplicidade e
uma participação que para o poeta têm a forma e a visibilidade da evidência da
linguagem. (CARLOS, 1999, p. 98)
O testemunho manifesta-se, dessa maneira, como um intercâmbio entre o ver e o ser
visto, uma forma de ver e ao mesmo tempo experimentar o espaço visível. Marcado pelo
trabalho do homem, esse espaço permite ao sujeito ver além da coisa vista, através de um
olhar muito próprio, como o mundo é uma construção cultural, o resultado de gestos
humanos.
Ao mencionarmos uma abordagem paisagística da poesia seniana, é necessário pensar
o significado do termo-chave paisagem dentro de um contexto reflexivo que inclui tanto a
geografia cultural quanto a filosofia e a arte – esta última engloba também a literatura, nosso
objeto de pesquisa. Todos os estudiosos da paisagem são unânimes em mostrar que este é um
termo de longa história e com muitas consequências na compreensão da cultura. Em uma
conceituação primeira, “o termo paisagem surgiu no século XV, nos Países Baixos, sob a
forma de landskip. Aplica-se aos quadros que apresentam um pedaço da natureza, tal como a
percebemos a partir de um enquadramento – uma janela, por exemplo.” (CLAVAL, 2004, p.
13).
Porém, a conceituação de paisagem modificou-se através dos séculos. Como assinala
Alain Roger, filósofo e autor de vários textos sobre paisagem, existem duas maneiras de
artializar 29 um país para transformá-lo em paisagem. A primeira é o código inscrito
diretamente na materialidade do local, sobre o terreno, a base natural: a artialização in situ
que é, desde o século XVIII, a antiga arte dos jardins: o paisagismo, mais perto de casa, a
29
Artializar é um termo de Roger que define o processo de conquistar os territórios para a paisagem por um
processo de artialização, ou seja, transformar o espaço visível através de uma apreciação estética positiva. Cf.
Roger, Alain. “La naissance du paysage em occident”. In: SALGUEIRO, Heliana Angotti (coord.). Paisagem e
arte. São Paulo: H. Angotti Salgueiro, 2000, p. 33)
68
Land art. A outra forma é indireta: não é mais a artialização in situ, mas in visu, que opera
sobre um olhar coletivo, fornece modelos de visão, esquemas de percepção e de deleite.
Michel Collot, teórico francês que se dedica a realizar um depurado estudo sobre a
relação entre a paisagem e a subjetividade lírica acrescenta que
A noção de paisagem é, também, por natureza polissêmica; desde sua aparição nas
línguas românicas, a palavra significa tanto ‘uma extensão de país’ como sua
representação pictórica; e sua evolução reflete uma ambiguidade constitutiva entre o
real e o imaginário, o objetivo e o subjetivo, o geográfico e o estético. Ela se
envolve com questões tão complexas como a relação entre homem e mundo,
natureza e cultura, arte e ciência, sensível e sentido, indivíduo e comunidade,
invenção e tradição... E a cada momento da história, essas questões surgem em
novos termos. 30
Dessa forma, concluímos que, a essa visão inicial de paisagem, hoje somam-se outras
noções oriundas de áreas de conhecimento diferentes das da arte pictórica. A noção de
paisagem ganha, assim, outras abordagens, constituindo-se conceitualmente como resultado
de uma grafia da subjetividade sobre o mundo, no qual se encontra expressa a marca do
homem em todos os sentidos. Prossegue Collot:
Não se pode falar da paisagem senão a partir de sua percepção. Com efeito,
diferentemente de outras ideias espaciais, construídas por intermédio de um sistema
simbólico, científico (o mapa) ou sociocultural (o território), a paisagem se define
inicialmente como espaço percebido: constitui ‘o aspecto visível, perceptível, do
espaço’. Mas, se essa percepção se distingue de construções e simbolizações
elaboradas a partir dela, e exige outros métodos de análise, sua aparente
imediatidade não deve fazer esquecer que ela não se limita a receber passivamente
os dados sensoriais, mas os organiza para lhes dar um sentido. A paisagem
percebida é, portanto, já construída e simbólica. 31
Ao pensarmos a paisagem nessa perspectiva e aplicarmos seus conceitos, devemos
reconhecer que não se trata de apontar meramente nos poemas a ocorrência de uma paisagem
30
BERGÉ; COLLOT, 2007, p. 8: « La notion de paysage est, elle aussi, foncièrement polysémique; dès son
apparition dans les langues romanes, le mot désigne à la fois "une étendue de pays" et sa représentation picturale;
et son évolution fait apparaître une ambiguité constitutive entre le réel et l'imaginaire, l'objectif et le subjectif, le
gèographique et l'esthétique. Il engage des questions aussi complexes que celles des rapports entre l'homme et le
monde, la nature et la culture, l'art et la science, le sensible et le sens, l'individu et la collectivité, l'invention et la
tradition... Et à chaque moment de l'histoire, ces questions se posent en termes nouveaux. »
31
COLLOT in ROGER, Alain, 1995, p. 210: « On ne peut parler du paysage qu'a partir de sa perception. En
effet, à la différence d'autres entités spatiales, construites par l'intermédiaire d'un système symbolique,
scientifique (la carte) ou socioculturel (le territoire), le paysage se définit d'abord comme espace perçu: il
constitue ‘l'aspect visible, perceptibile de l'espace.’
Mais si cette perception se distingue des constructions et symbolisations élaborées à partir d'elle, et réclame
d'autress méthodes d'analyse, son apparente immédiateté ne doit pas faire oublier qu'elle ne se borne pas à
recevoir passivement les données sensorielles, mais les organise pour leur donner un sens. Le paysage perçu est
donc déjà construit et symbolique.»
69
sobre a qual o sujeito tenha olhado e falado – a paisagem como tema, como enunciado
descritivo (in situ) –, mas principalmente, de refletir sobre a paisagem que se organiza a partir
de um sujeito, como uma estrutura de sentido, em um processo de configuração/desfiguração
a respeito do que ele olhou e transformou através de uma relação entre o sujeito, a palavra e o
mundo por intermédio de um olhar (in visu) 32 . Essa constatação apóia-se também na teoria de
Collot: “[...]pode-se dizer, numa primeira aproximação, que a paisagem, segundo a crítica
temática, une estreitamente uma imagem do mundo, uma imagem de moi, e uma construção
de palavras.” 33 .
Sendo assim, precisamos associar essa relação sujeito-mundo para uma pertinente
leitura do poema, fixando e analisando, dentro da obra, nas andanças do sujeito lírico seniano,
o que vê esse homem português e como isso se reflete no seu fazer poético. A partir de um
ponto de vista imagético, não vamos simplesmente aplicar aos poemas este ou aquele
esquema ou modelo explicativo, mas entrever neles a questão da paisagem como “um efeito
cultural, um modo de ver e pensar identidades e subjetividades, em uma tensão que transita
continuamente entre o dentro e o fora, a ipseidade e a alteridade, o visível e o invisível.” 34 .
Na escrita seniana, temos as referências do mundo real: sua vivência como exilado, ao
passar por vários paises, com realidades e culturas diferentes 35 , mas à proporção que as
imagens se sucedem, tais referências são transformadas a partir do ponto de vista de um
sujeito, que produz assim, na expressão de Collot, “uma certa imagem de mundo”:
Nesse contexto, a palavra não designa evidentemente a ou as paisagens descritas por
tal autor ou por tal texto, mas uma certa imagem de mundo, intimamente ligada à
32
Sigo aqui de perto anotações de aula durante o curso Geografias da Subjetividade ministrado pela Prof. Drª
Ida Alves, na UFF, 1º semestre/2009.
33
COLLOT, 1997, p. 192: « [...] on peut dire, em une première approximation, que le paysage, selon la critique
thématique, unit étroitemente une image du monde, une image du moi, et une construction de mots.»
34
Cf. ALVES, I. 2008, pp. 66-67.
35
A partir de Portugal, sua pátria de origem, Sena viveu no Brasil de 1959 até 1965, quando se mudou para os
Estados Unidos da América, onde faleceu em 1978. Também consideramos de grande importância para a
aquisição de seu conhecimento de mundo a passagem por países na Europa e na África: Angola e Moçambique.
70
sensibilidade e ao estilo do escritor: não tal e tal referente, mas um conjunto de
significados 36 .
A obra passa a ser considerada então “um conjunto de significados”, uma vez que o
autor já aplicou seu ponto de vista ao que lhe serviu de referente. E o referente de Sena são as
culturas que ele visitou, pensou, experimentou. Podemos identificar no poema “A noite
profunda”, alguns dos aspectos levantados em nossas reflexões sobre determinadas imagens
do mundo:
É de repente que a noite profunda chega,
como um enjoo, uma agonia, uma vertigem,
uma queda irreparável, no vácuo, no vazio,
na treva em que tudo perde significado,
em que não há gestos, palavras, sombras,
nem memórias de espectros e remorsos,
nada senão a queda repousada e lenta,
a descida tranquila, inenarravelmente amarga
de tranquilidade, indiferença, de abandono.
Repentinamente (a música tocava, a noite
física do mundo viera serena e perpassante
para ficar), a outra noite chegou
abrupta, inexorável, impiedosa,
feroz, cruel, tirânica, no entanto
extensamente e vastamente alheia,
tomando posse do que um corpo é,
posse por dentro, por fora, não deixando um vão,
um vão sequer que seja livre.
(SENA, 1989, p. 56)
Através de uma busca bastante cuidadosa na poesia seniana, constatamos que o poeta
possui fixação pela noite, motivo recorrente em vários poemas. “A noite profunda” deixa
entrever como o espaço dominado pela noite é para o sujeito um espaço de mal-estar, atestado
nas várias comparações: a noite “como um enjoo, uma agonia, uma vertigem, / uma queda
irreparável...”, na ideia da noite como um ambiente caótico, que nem sequer ao Érebo pode
ser comparado, já que é uma queda na treva, “em que não há gestos, palavras, sombras, / nem
memórias de espectros e remorsos,” e nos vários adjetivos de campos semânticos bastante
negativos que a designam: “abrupta, inexorável, impiedosa, / feroz, cruel, tirânica...”.
36
COLLOT, 1997, p. 191: «Dans ce contexte, le mot ne désigne évidemment pas le ou les paysages dépeints par
tel auter ou par tel texte, mais une certaine image du monde, intimement liée à la sensibilité et au style de
l’écrivain: non tel ou tel référent, mais um ensemble de signifiés.»
71
Ao qualificar a noite como “tirânica”, palavra habilmente escolhida, o poeta faz
lembrar a situação política em que se encontra seu país natal no momento: sob a ditadura
salazarista. A leitura do poema permite-nos perceber a existência de uma paisagem humana
de um contexto social, a “noite profunda” do título é nada mais do que a noite política, que
abarca a escuridão da perda da liberdade.
Tal como veio, partirá. De súbito,
o claro dia está. O sol de coisa alguma.
e é como se nada tivesse acontecido,
e o enjoo, a agonia, a vertigem, a queda,
não houvessem sido mais que imaginados.
(SENA, 1989, p. 57)
Por fim, as sensações nocivas que a noite provoca no sujeito poético permanecem
como uma reminiscência, como imagens que ele apreendeu do mundo, quando olhou além do
que realmente viu e sobre as quais transmite agora as suas impressões. É nessa relação
estabelecida entre sujeito, mundo e palavra que as imagens se sucedem, de acordo com o que
as coisas lhe dão a ver, produzindo assim, dentro da linguagem, as paisagens do poema. A
memória também possui o seu papel de destaque nesse seguimento, por representar o real de
uma forma bastante subjetiva, ligando as impressões deixadas pelo que foi efetivamente
vivido à sua reprodução na escrita. No capítulo anterior, já houve menção à memória, com as
reflexões de Santo Agostinho; neste, ampliaremos nossa base teórica no que diz respeito à
formação das imagens, reportando-nos novamente à questão da memória com Paul Ricoeur e
à da visão com Merleau-Ponty.
Em Matéria e memória, Henri Bergson (BERGSON, 1999, p. 59 e passim) busca
compreender os mecanismos de memória e enfatiza a relação entre a realidade da matéria –
mundo objetivo – e a apreensão dessa realidade pela via da memória – mundo subjetivo. Para
ele a lembrança é a interseção entre esses dois mundos, mas cada sujeito tem uma forma
particular de perceber e arquivar suas experiências de vida. Esse arquivo será
permanentemente atualizado pelos estímulos externos – experiência – que recebe ao longo da
72
vida. Assim, através da lembrança será possível resgatar de novo o passado, ou retomar
atitudes em que o passado irá se inserir. Por isso, a memória é reconstrução, é lugar de
arquivamento da experiência subjetiva.
Ao tentarmos reconstituir um acontecimento passado, temos dele uma imagem
gravada, que, para ser construída, apela para os sentidos. Essa sensação, na maioria dos casos
é visual, mas pode ser auditiva, ou até mesmo olfativa. Porém, por pertencer ao passado, a
cena não tem como ser reproduzida com exatidão, apoiando-se então na faculdade
imaginativa. A memória, ou de forma mais simplificada, a rememoração, caminha ao lado da
imaginação.
Para Paul Ricoeur, a ameaça permanente de confusão entre rememoração e
imaginação, que resulta desse tornar-se imagem da lembrança, põe em dúvida a pretensão de
fidelidade da memória. O problema gerado pela confusão entre memória e imaginação não é
recente, uma vez que o tema remonta à filosofia socrática, da qual derivaram dois topoi rivais
e complementares, um platônico, o outro aristotélico:
O primeiro, centrado no tema da eikōn, fala de representação presente de uma coisa
ausente; ele advoga implicitamente o envolvimento da problemática da memória
pela da imaginação. O segundo, centrado no tema da representação de uma coisa
anteriormente percebida, adquirida ou aprendida, preconiza a inclusão da
problemática da imagem na da lembrança. É com essas versões da aporia da
imaginação e da memória que nos confrontamos sem cessar. [grifos nossos]
(RICOEUR, 2007, p. 27)
E é no interior desse universo aporético que também nos confrontamos ao analisar a
poesia seniana pela perspectiva imagética. O que entrevemos em seus poemas faz-nos hesitar
entre o topos platônico e o topos aristotélico: no primeiro, a recordação como imagem ou
ícone (eikōn) do passado (“representação presente de uma coisa ausente”), defende a ligação
entre memória e imaginação; no segundo, a “representação de uma coisa anteriormente
percebida, adquirida ou aprendida”, ou seja, visão de mundo, experiência. Esses fatores irão
trazer à baila a problemática da imagem aliada à da lembrança.
73
Desde Platão e Aristóteles pensa-se na memória de forma paradoxal. Os gregos
antigos já possuíam duas palavras para se reportarem à memória37 : a mnēmē e a anamnēsis. A
distinção entre ambas apóia-se em duas características, que tentaremos expor de forma
concisa: de um lado, a simples lembrança sobrevém como uma afecção – um sentimento, um
pathos –, enquanto a recordação consiste numa busca ativa. Por outro lado, a simples
lembrança está sob o domínio do agente da impressão, enquanto os movimentos e toda a
sequência de mudanças que vamos relatar têm seu princípio em nós. Para fixarmos bem a
distinção entre uma e outra forma, recorremos à metáfora do bloco de cera, largamente
mencionada por Ricoeur: a alma é um bloco de cera. A imagem mnêmica é como um sinete
que se imprime com mais ou menos força. Lembramos então de vestígios deixados em nossa
alma igualmente com mais ou menos força. O que fica gravado depende da qualidade da alma
(da cera) e da força de impressão do rastro.
Lidamos com dois tipos de imagem: a que provém do imaginário e a imagemrecordação, oriunda da memória. A teoria platônica parece não fazer distinção entre elas, pois
ao admitir o eikōn simplesmente como a presença do ausente, não considera a marca temporal
da anterioridade, portanto, não leva em conta a função temporalizante da memória. Já para
Aristóteles, “a memória é do passado” (RICOEUR, 2007, p. 34), de um fato ocorrido
anteriormente à imagem que se presentifica. Em síntese, a mnēmē (memória) seria a
impressão passiva no âmbito da memória 38 , que pode ser acionada de forma espontânea; a
anamnēsis (reminiscência) seria a forma ativa de exercitar a memória para recordar-se de algo
que se deu anteriormente.
Diante desta divergência tipológica quanto à imagem, persiste a aporia aristotélica que
Ricoeur simplifica: “como podemos, ao perceber uma imagem, lembrar-nos de alguma coisa
37
RICOEUR, 2007, p. 37
Ricoeur se refere à essa atividade da memória como simples presença no espírito, à qual passará a chamar de
evocação simples em relação à recordação enquanto busca. (p. 34)
38
74
distinta dela?” (RICOEUR, 2007, p. 36) A tentativa de colocar fim ao dilema encontra-se na
introdução da categoria de alteridade, um legado da dialética platônica:
A associação da noção de desenho, de inscrição, à noção de impressão, diríamos
hoje (graphē), aponta para a solução. De fato, cabe à noção de inscrição comportar
referência ao outro; o outro que não a afecção enquanto tal. A ausência, como o
outro da presença! Tomemos um exemplo, diz Aristóteles: a figura pintada de um
animal. Pode-se fazer uma dupla leitura desse quadro: considerá-lo quer em si
mesmo, como simples desenho pintado num suporte, quer como uma eikōn (‘uma
cópia’, dizem nossos dois tradutores). É possível, porque a inscrição consiste nas
duas coisas ao mesmo tempo: é ela mesma e a representação de outra coisa...
(RICOEUR, 2007, p. 36)
É nessa possibilidade de associarmos a noção de inscrição à de impressão que nos
firmamos para adensar nossa investigação da poesia de Jorge de Sena sob o viés paisagístico.
Muitas vezes o poeta aliou o que adquiriu como experiência de mundo a grafias deixadas pela
vida em algum local ou objeto: quadro, escultura, obras arquitetônicas, cidades, etc.
Concordamos com o estagirita que, como uma eikōn, um objeto pode ser ele mesmo ou,
ainda, suscitar muitas outras reflexões para além dele, por intermédio da impressão que foi
deixada. A essa ação poder-se-ia atribuir um processo de reconhecimento via memória: a
anamnēsis “buscando” o passado pelo que o desenho representa, e, simultaneamente, através
da mnēmē, termos presente o ausente.
A partir das questões sobre imagem que vieram a lume com Ricoeur, fomos encontrar
também no pensamento de Merleau-Ponty, em “O olho e o espírito”, elementos que ratificam
nossas reflexões. No referido ensaio, o filósofo não discute a memória, mas discorre sobre a
relação do pintor com as coisas que este vê do mundo e enfatiza o quanto nosso corpo dá
acolhida para que o que vemos em um quadro possa surtir efeito em nossa consciência:
[...] Este equivalente interno, esta fórmula carnal da sua presença que as coisas
suscitam em mim por que não haveriam de, por seu turno, suscitar um traçado,
visível, onde qualquer outro olhar reencontrará os motivos que sustentam a sua
inspeção do mundo? Então aparece um visível na segunda potência, essência carnal
ou ícone do primeiro. Não é um duplo enfraquecido, um trompe-l’oeil, um outra
coisa. Os animais pintados na parede de Lascaux ali não estão como lá está a fenda
ou o empolamento do calcário. Mas também não estão alhures. Um pouco para
diante, um pouco para trás, sustentados por sua massa da qual se servem habilmente,
eles irradiam em torno dela sem jamais romperem a sua inapreensível amarra.
Achar-me-ia em grande dificuldade para dizer onde está o quadro que eu olho.
Porquanto não o olho como se olha uma coisa, não o fixo em seu lugar; meu olhar
75
vagueia nele como nos nimbos do Ser e eu vejo, segundo ele ou com ele, mais do
que o vejo. (MERLEAU-PONTY, 1997, pp. 261-262)
Merleau-Ponty também menciona o ícone, como representação de algo que não está
ali, diante dos olhos, mas que também não está em outro lugar – “alhures”, como os animais
do desenho da gruta de Lascaux, seres que, “sustentados por sua massa”, “irradiam” em torno
dela. Assim, como acontece com determinadas imagens que contemplamos, é difícil precisar
“onde” está o quadro, bem como abarcar com o olhar tudo o que se dá a ver nele: “... eu vejo,
segundo ele ou com ele, mais do que o vejo.” Trata-se, portanto, de um “ver” além da coisa
olhada.
Todos esses aspectos que examinamos até o momento têm como fim único tornar mais
consistente nosso estudo sobre a manifestação da paisagem na poesia seniana. Portanto, ao
trazermos a pintura ao cerne da discussão, abrimos espaço para uma análise comparativa entre
as artes, o que torna a obra de Jorge de Sena um vasto campo de pesquisa, já que o poeta cria,
em suas múltiplas “metamorfoses”, esse diálogo interartes. Desde a antiguidade clássica, as
artes são submetidas a comparações por críticos literários e filósofos. A pronunciação mais
antiga a esse respeito é conferida a Simônides de Ceos, recolhida por Plutarco, de que a
poesia é uma pintura falante e a pintura uma poesia muda. Entretanto, é o axioma formulado
por Horácio: ut pictura poesis: (a pintura é como a poesia) 39 que fomenta a polêmica em
torno das semelhanças e diferenças entre as formas de manifestação artística.
No âmbito literário, é a poesia que mais comumente se vê comparada às outras artes: à
música, à arquitetura e, com muito mais frequência, à pintura. A consonância entre pintura e
poesia torna-se possível desde que haja um traço de semelhança entre o que os objetos
estéticos representam, recuperando assim o seu caráter iconográfico. Trata-se de estabelecer
uma analogia entre a imagem pictórica e a verbal, de encontrar-se nelas uma intermedialidade,
ou seja, a capacidade de um diálogo entre ambas, tendo como elo o referente ou a ideia por
39
Essa formulação consta em Ars poética, uma de suas mais célebres obras. Ver vv. 9-10, 19-20 e 361-365.
76
este sugerida. Uma das diferenças mais acentuadas entre os dois tipos de arte é quanto ao
aspecto sensível, no significado mais literal do termo, conforme expõe Inazo Ambrogio:
“somente na arte pictórica (ou musical) a imagem sensível vem fixada esteticamente, e sob
esse olhar, a poesia não pode competir com ela: as prerrogativas da poesia são outras: a de
buscar algo mais além, antes de tudo, em sua própria matéria, isto é, na palavra.”
(AMBROGIO, 1971, p. 135).
Com efeito, não tendo como ser experimentada pelos sentidos da visão ou da audição,
a poesia precisa buscar algo mais, através das palavras. Porém, analisada por esse ângulo,
talvez resida nela uma enorme vantagem em relação à pintura: a palavra é um instrumento
poderoso. Através da transposição verbal de um objeto pictórico para um poema, a pintura
adquire movimento, aquilo que falta no quadro, uma vez que a imagem que lá foi fixada
encontra-se em estado “congelado”. A receptividade da imagem por seu observador adquire
um valor tanto objetivo quanto subjetivo, a exemplo dos desenhos de Lascaux: de forma
objetiva, os animais estão lá, na parede; se apreciados de forma subjetiva, as imagens passam
a ter dimensões múltiplas, pois a subjetividade tem o poder de sugerir, afastando-se do caráter
puramente designativo. O que é impossível de ser realizado no plano visual o é por intermédio
do texto, graças à palavra, que pode ser transmitida e conservada, dar uma continuidade ao
que para a visão é intransferível e efêmero.
Podemos atestar, de forma exemplar, a ocorrência desses elementos na transposição
verbal de uma famosa tela de Fragonard para um não menos famoso poema seniano: “‘O
Balouço’, de Fragonard”, que integra o livro Metamorfoses.
Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
77
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!
(SENA, 1988b, p. 107)
O quadro que serve de referente ao poema retrata uma jovem que cruza o ar num
balouço, embalada por um homem de idade e observada com admiração por um outro, mais
jovem, oculto atrás de um arbusto. Como pano de fundo, vê-se uma vegetação exuberante,
uma nesga do céu, duas estátuas e um muro. A vertente descritiva da poesia seniana aqui se
mostra no fato de reconstruir com precisão a cena pintada por Fragonard. Simultaneamente, o
texto recupera e reproduz, em pormenores, os elementos presentes no quadro. Porém, tal
descrição é feita com a percepção de um “eu poético”. São as impressões dele que vêm até
nós, transformando a imagem em um texto verbal, o próprio poema, carregado de sensações e
emoções despertadas pela cena contemplada.
Percebe-se o quanto este sujeito poético sensibiliza-se com o que vê, devido à
quantidade de expressões “Como” e “Que” usadas ao fazer suas observações: “Como balouça
pelos ares no espaço”, “Que pernas se entrevêem, e que mais”. As exclamações, carregadas de
subjetividade, conferem movimento à cena, como se o espectador estivesse acompanhando o
movimento de vai-e-vem do balouço. O olhar do leitor é conduzido para os detalhes da
pintura: as saias, pernas, sapato, a folhagem, estátuas e o muro, e para as figuras humanas: a
jovem do balouço, figura central, e dois homens, um jovem e um mais velho, a quem o poeta
atribui os papéis de “amante” e “marido”, respectivamente.
78
O texto extrapola o campo estritamente visual, ampliando para outras sensações o que
a imagem suscita. A partir dos detalhes materiais que compõem o quadro – todo o vestuário
da jovem, principalmente –, a imaginação se encarrega de fornecer os elementos abstratos,
como saias esvoaçantes, pernas entrevistas (e que mais!). É evidente o diálogo entre as duas
obras: a pictórica e a poética, que possuem como ponto comum o caráter icônico, já que
ambas representam a sensualidade, o erotismo, cada qual com seus recursos representativos e
o olhar específico de um pintor e de um poeta.
De acordo com o próprio Sena, na fase de composição de Metamorfoses, “O Balouço”
nasceu do seu desejo de que “ainda viesse um poema que trouxesse ao conjunto um prazer
gratuito, malicioso, irônico e licencioso, com que certo século XVIII soube apreciar a vida”
(SENA, 1988b, p. 154). E conseguiu. O erotismo do poema fica além da visualização das
figuras humanas, encontra-se na própria linguagem, em palavras que carregam uma conotação
erótica: “lânguidas”, “gozo”, “ardente”, “sexo”, “seios”, “volúpia”, etc., auxiliado pelo uso de
figuras de estilo, complementares à carência de vocábulos que, no seu sentido literal, não
dariam conta de exprimir o êxtase do sujeito poético.
Entre as figuras mencionadas encontramos uma hipálage, nas saias “que lânguidas
esvoaçam indiscretas!": as saias pertencem à jovem, assim como a ela deveria ser atribuído o
adjetivo lânguida. Verificamos uma sinestesia em “névoa ardente”, e mais figuras de
pensamento: a personificação confere aos objetos inanimados desejos e sensações próprios
dos seres humanos: “...palpitar de entranhas na folhagem!”, “Como um jardim se emprenha
de volúpia,”, “Que estátuas e que muros se balouçam”, o que torna mais interessante o jogo
de sedução sugerido pela cena.
Finalmente, a presença de um oximoro ajuda a exprimir semanticamente o desejo
reprimido, o constrangimento, a tensão existente entre “o sexo e os seios que avolumam
presos,”, através da confrontação dos opostos: “não se vê o que indiscreto se reclina / no gozo
79
de escondido se mostrar!”. O verso “Como ele a despe [com o olhar] e como ela resiste”,
reafirma a esfera de erotismo do poema. O último verso: “Como do mundo nada importa
mais!”, valoriza aquele momento, único, cuja imagem da jovem no balouço ficara eternizada,
função, aliás, que a arte pictórica procura cumprir. Da mesma forma que a pintura, a escultura
também é uma representação instantânea de algo, ao passo que a poesia permite uma
sequência à cena estática. Enfim, somente através de uma linguagem é possível prolongar um
objeto no tempo.
Pela análise de “O Balouço” avaliamos que, dentro de um conceito de homologia
estrutural, artes plásticas e literatura produzem um interessante encontro. Dando seguimento a
nosso diálogo interartes, examinaremos outro poema seniano, também de Metamorfoses,
“Encontro com Vermeer em Delft” lido sob a ótica da paisagem, mas que também coloca em
evidência a visão do poeta dentro de uma perspectiva cultural.
Fui deambulando pelas ruas,
cruzando canais, seguindo à margem de outros,
em direcção à praça principal,
e a esparsos vultos que da quietude emergem
(como na vista da cidade, com o petit pan de mur jaune)
pergunto onde Vermeer morara.
Ninguém sabia. E fui de rua em rua
até chegar a uma pequena loja
que vendia simples lembranças da cidade
(azuleijinhos, porcelanas, etc., para turistas).
A dona por certo saberia.
Ela sorriu, trouxe-me à outra porta
que dava para a grande praça, e mostrou-me
a placa na fachada do prédio.
(SENA, 1989, p. 101)
O poema cita Johannes Vermeer, também conhecido como Vermeer de Delft, segundo
pintor holandês – depois de Rembrandt – mais famoso do século XVII, período conhecido por
Idade de Ouro Holandesa. Grande pintor do cotidiano, seus quadros são admirados pelas
cores transparentes, composições inteligentes e brilhante uso da luz. O que primeiro chama a
atenção neles é o caráter voyeurístico, pois mais parecem retratos da vida doméstica. Porém,
não era intenção do pintor documentar cenas, e sim mostrar como elas podem ser construídas
80
para seduzir o espectador. Talvez isso explique porque até hoje as telas de Vermeer ainda
causem tanto impacto sobre o público.
Uma pergunta, porém, nos inquieta: onde está Vermeer? Diríamos que somente no
interior do sujeito, inscrito na paisagem de uma cultura. O poema é curto, porém são muitas
as implicações que dele advêm. Notamos que há uma presença marcada do sujeito: “Fui
deambulando pelas ruas”, “pergunto onde Vermeer morara.”, “E fui de rua em rua”, entre
outras ocorrências. Temos também um espaço real: ruas, canais, praça, loja, etc. Porém, não é
desta paisagem que Sena quer falar, não é de um objeto visível, daquilo que se encontra do
lado de fora, mas de uma realidade interior, da realidade do poema. Dessa maneira, queremos
ressaltar a existência do olhar sobre uma paisagem, delineada a partir dessa perspectiva
subjetiva: “A paisagem, que não é mais o país real, é o país percebido do ponto de vista de um
sujeito. Não pertence mais à realidade objetiva, mas a uma percepção sempre irredutivelmente
subjetiva” 40 .
Ainda levando-se em consideração a visão do sujeito, da realidade experimentada no
interior do poema, um outro elemento requisita nossa atenção: o petit pan de mur jaune
(pequeno pedaço de muro amarelo), detalhe que passaria despercebido talvez, não fosse Sena
tê-lo apontado, em “Notas” aos seus poemas, estimulando o seu leitor, ao fornecer pistas de
que existe algo mais a ser buscado. O petit pan de mur jaune suscita muita curiosidade, uma
vez que é discutível a sua existência dentro de um quadro de Vermeer: Vista de Delft, pois
não é possível de ser enxergado por todos que o contemplam. A famosa tela retrata a cidade, e
já foi objeto de ficção, citada por Proust em um dos volumes de Em busca do tempo
perdido 41 . Dessa forma, interligam-se o discurso verbal de Proust e as tintas dos
40
COLLOT, 1997, p. 193: «Le paysage, ce n’est pas le pays réel, c’est le pays perçu du point de vue d’un sujet.
Il n’ appartient pas à la réalité objective, mais à une perception toujours irréductiblement subjective».
41
Uma vez mais convocamos o nome e a obra de Proust à nossa discussão, agora sob o ponto de vista da
analogia existente entre a arte pictórica e a literária, nosso foco de interesse nesse momento. No romance Em
busca do tempo perdido, Proust cita mais de cem obras de arte, e a tela Vista de Deltf, de Vermeer, é uma das
mais mencionadas. No quinto volume, A Prisioneira, o personagem Bergotte visita em Paris uma exposição do
81
procedimentos estéticos de Vermeer. O escritor francês faz um inteligente uso da linguagem e
alcança assim a magnitude do ícone, ao inserir no texto a tela do pintor, que se torna alvo de
interesse, despertando tanta atenção quanto seu quadro. Por intermédio da habilidade
proustiana, é possível que Sena também tenha sido inspirado para fazer do pintor motivo de
poesia.
Reportando-nos ao poema seniano, temos, em seu conteúdo, uma descrição visual da
cidade que abrigou o artista, mas o detalhe que possui real importância para o sujeito poético
está contido no verso: “pergunto onde Vermeer morara”. E é mesmo o que conta: saber onde
morara o pintor que contribuiu para o engrandecimento da arte holandesa, ao inserir o
elemento humano nos seus quadros, deixando assim sua marca naquela cultura. O interesse do
observador, “deambulando pelas ruas”, não está concentrado nas imagens do lugar ou em
“...simples lembranças da cidade” / “(azuleijinhos, porcelanas, etc., para turistas).”, mas no
fato de estar o indivíduo situado no seio de uma cultura, atribuindo, dessa forma, um sentido à
sua relação com o mundo.
O sujeito caminha pela cidade, procura por Vermeer, mas em momento algum se
avista com o pintor, que não se encontra na concreção do objeto, que é o poema. Sua
existência, no entanto, é percebida pelo “eu poético”, por intermédio das imagens sugeridas
pela tela. De uma forma objetiva, lá está o quadro, com a cidade holandesa ao fundo, talvez
até com o muro amarelo... mas Vermeer, estaria ali ou alhures? Através da subjetividade,
poder-se-ia considerá-lo um ausente tornado presente, na visão de um sujeito que passeia por
Delft, impregnado das marcas deixadas pelo mundo.
referido pintor. De frente para o famoso quadro, contempla-o fixamente em busca de um detalhe: o pequeno
muro amarelo, descrito por um crítico da época como “tão precioso quanto uma pintura chinesa” e que Bergotte
não conseguia enxergar nas reproduções. Ao deparar-se com a manchinha amarela na extremidade direita do
quadro tem uma epifania, a revelação de que toda a sua obra não vale aquela mancha de pintura. O escritor então
tem um ataque fulminante e morre, ali mesmo, no chão do museu.
3.2 A experiência de um sujeito exilado
A HUMANIDADE É SEMPRE A MESMA
A humanidade é sempre a mesma, sim.
Mas quando se muda de país, como é difícil
interpretar os gestos e os sinais que podem ser
desejo, sedução, atracção física!
Os mesmos são, e os fins também os mesmos.
O código, porém, tem divergências
que podem estragar tudo.
(SENA, 1989b, p. 108)
Peregrinação é uma das palavras-chave da obra de Jorge de Sena, dada sua
importância significativa, que abrange também a biografia do autor: viajante, cidadão do
mundo, exilado... De acordo com o dicionário Michaelis de Língua Portuguesa, assim é
definido o verbete peregrinação: sf (lat peregrinatione) 1 Viagem por terras longínquas. 2
Romaria a lugares santos. Peregrinação deste mundo: a existência neste mundo; a vida. De
origem remota 42 , o termo admite, nos dias de hoje, também uma atribuição semântica: “a
existência neste mundo”, “a vida”, ou seja, as peripécias por que cada indivíduo passa ao
42
Obras literárias antigas já citam romeiros e peregrinos, cujos famosos personagens evocamos, como o
“Romeiro”, do drama Frei Luís de Sousa, escrito por Garrett no século XIX, mas que remontava ao início do
século XVII. Peregrinar era uma atividade comum em tempos remotos, o que motivou um número elevado de
obras sobre o tema, como Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. O livro, que narra as aventuras dos
descobridores do século XVI, constitui-se em um contributo maior para o conhecimento do Oriente, sendo a
mais conhecida e cara obra portuguesa de literatura de viagens e o primeiro testemunho direto de um europeu
sobre o Japão. Também é digno de citação o relato de uma freira que peregrinou pela Terra Santa nos primeiros
séculos da era cristã, Peregrinatio ad loca sancta, de que falaremos a seguir. Finalmente, lembramos o mais
antigo peregrino da literatura ocidental: Ulisses, cujas aventuras no retorno para casa forneceu o enredo da
célebre epopeia de Homero: Odisseia.
83
longo da vida. E peripécias nunca faltaram à vida deste lusitano, que, se não chegou a ter
momentos dignos de tragédia, foi marcada por pontuais incidentes de teor dramático.
Através de seus exílios, Sena percorre os caminhos, experimentando e arquivando as
sensações do trajeto, o que produz um conjunto inigualável de elementos que,
consubstanciados em seu ser, são devolvidos ao mundo sob a forma de poesia. Imbuído desse
espírito “peregrino”, cria numerosos poemas, recolhidos na coletânea Peregrinatio ad loca
infecta (Peregrinação pelos lugares imperfeitos, conforme tradução literal do latim), composta
de quatro blocos espácio-temporais, relativos aos quatro momentos de sua peregrinação
existencial: Portugal (1950-59), Brasil (1959-65), Estados Unidos da América (1965-69) e
Notas de um Regresso à Europa (1968-69).
O livro engloba alguns dos seus mais amargos poemas de exílio, a maioria inspirados
pela vivência em Portugal, seu lugar de exílio por excelência. Retrata sua peregrinação pelos
lugares inacabados ou imperfeitos do mundo que lhe foi dado, revelando, destarte, uma
historicidade que se constrói como errância e destino. O próprio autor, no Prefácio à obra,
adianta-nos que seu título é parodístico: Peregrinatio ad loca sancta era uma espécie de guia
e relatório do peregrino da Terra Santa, de pretensa autoria de uma freira, talvez de Braga, que
em 395 da nossa era viajou à Palestina, ao Sinai, ao Egito e a Constantinopla e relatou a
peregrinação por esses lugares santos. A escolha do título foi pela razão de os poemas,
segundo Sena, representarem “momentâneas descidas críticas do poeta ao seio da sua visão de
mundo.” Se no livro do passado os relatos são de uma freira que peregrina por lugares santos,
na obra seniana o poeta peregrina pelos lugares imperfeitos ou inacabados. Contudo, o autor
assinala que nos dez anos de “peregrinação” não percorreu apenas os lugares “infectos”:
[...] Mas, por certo, nestes dez anos, eu não visitei apenas — como sempre fiz —
«loca infecta» da alma: vivi, fosse onde fosse, no lugar infecto que é o nosso mundo
de hoje, em que brutalmente, insidiosamente, e teimosamente persiste, seja em que
hemisfério ou regime, uma concepção do mundo e da vida como um tirânico vale de
lágrimas.[...] Não quer isto dizer que não haja, neste livro bastante sarcástico,
amargo, ou desesperado, alguns momentos de profunda reconciliação. (SENA, 1989,
pp. 21-22. “Isto não é um prefácio”).
84
Tal asserção nos encoraja a buscar em seu trabalho literário uma perspectiva otimista e
aventar a possibilidade de uma reconciliação entre o homem e o mundo, com a superação do
infecto. Os dez anos mencionados por Sena, compreendem o período entre o primeiro exílio
voluntário para o Brasil (1959) e o regresso à Europa (1969). As “Notas de Regresso à
Europa” referem-se a relatos pormenorizados, recolhidos no livro intitulado Diários, que
agrupa os cadernos e agendas onde Sena redigiu o “relatório” de sua grande viagem europeia
de setembro de 1968 a fevereiro de 1969. No volume constam também várias anotações de
outras fases da vida do poeta, como o período em que fora cadete da Armada e Chefe do
Curso do Condestável, no Navio-Escola Sagres 43 . De acordo com Gilda Santos, o primeiro
diário em causa é iniciado a 23 de Agosto de 1953 e encerrado a 20 de Outubro de 1954, “sem
qualquer justificativa explícita para as datas. Pela sua leitura depreende-se, além da situação
pessoal amargurada do autor ao tempo da escritura, um painel do Portugal culto e citadino sob
a ditadura salazarista.” (SANTOS, 2009, p. 79).
Mais tarde, a atividade diarística se repete, mas com diversas interrupções, por
motivos vários, conforme conta Mécia de Sena 44 : falta de tempo – com tantas atividades
concomitantes – e principalmente, falta de liberdade para expressar os pensamentos. Houve
muitos intervalos entre a largada e a retomada dos registros. Já no Brasil, em 1964, retorna
aos diários, mas novamente é obrigado a interrompê-los, já que o que se passava, segundo a
viúva, “não era registável sem perigo – tudo tinha que ser, mais uma vez, objecto de arquivo
da memória.” (SENA, 2004, p. X). A memória de Sena é um gigantesco arquivo, que tudo
registra à medida que percorre o mundo. Todas as etapas das viagens que realizou, por força
dos exílios ou não, são experiências de mundo, em que sempre há algo a ser apreendido. Em
um dos trechos de Diários, quando se desloca, de navio, de New York para a Europa, em
43
44
Cf. SENA, 2004, p. 3
Cf. “Breve Introdução”, de Mécia de Sena. In SENA, 2004, p. IX.
85
dezembro de 1968, o poeta demonstra um pouco de insatisfação por não poder abarcar todos
os detalhes da viagem:
O navio tem 9 andares, e está preparado para ‘ter o ar fresco do mar, sem o vento’
— quer isto dizer que quase não há um convés de onde a gente possa ver a água
correr junto do navio. Aliás, é curioso como a maioria dos americanos viaja a bordo:
ignorando o mar, da mesma maneira que de avião ignoram a terra. As vistas são para
ver só nos lugares turísticos especialmente designados. Viagem é só viagem. [...]
Dia chuvoso, escuro, sombrio, mas mar calmo. (SENA, 2004, pp. 173-174)
Ao criticar os americanos para quem “viagem é só viagem”, o poeta demonstra
valorizar a viagem em si mesma, como um grande observador do mundo, que não despreza
nenhum detalhe. Em sua peregrinação, Sena é comparável a um Ulisses: não faz uma viagem
comum, ele “erra” e passa por provações; não viaja para tirar fotografias, mas para se perder,
e, de repente, se achar. Ulisses encarna a figura do eterno viajante que, ao passar pela
“odisseia”, corre todos os riscos. Esta é a verdadeira narração: só passando por experiências
fortes é que se pode contá-las. Afinal, existiria a homérica Odisséia se Ulisses não tivesse
sido desviado do caminho, se houvesse voltado confortavelmente para Ítaca? E existiria uma
obra seniana tão interessante sem as experiências que a enriquecem? Provavelmente não, pois
mais importante que chegar a algum lugar é o percurso. O caminho é inventado ao fazê-lo,
parafraseando o poema “Provérbios e Cantares”, de Antonio Machado. Associamos a vida de
viajante de Jorge de Sena aos versos do poeta espanhol, que falam do caminho e do
caminhante:
Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar.
Ao andar se faz caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar.
Caminhante não há caminho
senão rastros no mar... 45
45
“Caminante, son tus huellas / El camino y nada más; / caminante, no hay camino, / se hace camino ao andar. /
Al andar se hace camino / y al volver la vista atrás / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar. /
Caminante no hay camino / sino estelas en la mar...” (MACHADO, 1973, p. 158. XXIX “Proverbios y Cantares”
86
Ao considerarmos a “peregrinação” de Sena, colocamo-nos diante da metáfora do
caminho: não há caminhos traçados previamente, “se faz caminho ao andar”. O caminhante
vai ao encontro do conhecimento de si mesmo e do mundo, o que é adquirido com a jornada,
através dos percalços da travessia, que o ajudam a recolher e arquivar experiências.
O livro Peregrinatio ad loca infecta contém, em sua maioria, poemas escritos em um
período de prolongadas viagens, assim como Exorcismos e ...Conheço o sal e outros poemas.
Conforme Sena registra em “Notas” a alguns poemas, em Poesia III, alguns deles coincidem
cronologicamente com o momento de tais viagens, outros são rememorações de viagens
anteriores, sem fixarem-se exatamente em determinada data ou lugar:
[...] só no espírito do autor esses poemas são de onde foram escritos. Assim, o
informar das datas e lugares, se por um lado é um risco que os poemas correm de ser
levianamente identificados com poesia «turística», é sobretudo indicação de que
poderiam ter sido escritos noutros lugares e sem referência a nenhuns (como várias
vezes aconteceu), por um poeta para quem, todavia, a criação poética não é abstracto
exercício sobre indefinidas experiências. Quanto às viagens, inevitável seria que, no
espírito do autor, persistam como marcos dessas experiências [...] (SENA, 1989, pp.
258-259)
Portanto, pouco importa quando e onde o poema foi escrito, já que não investigamos
aqui um roteiro de viagens de Jorge de Sena, e sim, o ponto de vista de um sujeito e suas
impressões sobre o que lhe serviu de referente. Há, porém, uma contradição no fato de o poeta
cuidar da datação dos poemas e depois declarar que não se devem seguir à risca aquelas datas
e lugares. Esse detalhe fora observado por Jorge Fazenda Lourenço, que dá seu parecer,
arrematando que, não obstante aparente refutação da data nessa nota geral, o mais importante
nela é o “todavia” usado pelo poeta, que aponta uma vez mais, para a ‘co-responsabilidade do
tempo e nossa’ na criação poética 46 .
A preocupação com as datas começa a partir de As Evidências (1955) e, após esse
trabalho, nos poemas passam a constar o dia, mês e ano, além de, por vezes, até o local em
que foram escritos. Para Fazenda Lourenço, a data é um elemento primordial para a
configuração da escrita diarística, já que a ideia de diário traz implícita a inscrição de datas
46
Cf. LOURENÇO, 1998, p. 327.
87
sucessivas. Este gesto de datar, então, parece altamente significativo, como inscrição de uma
marca temporal, compatível com o gesto de registrar, característico de uma postura
testemunhal. Existem realmente poemas que dão a ver essa atividade de registro, dos
acontecimentos diários, do que se pensa em determinado momento, das ideias que perpassam
na mente nessa atividade sistemática que é o fazer de um diário, “porque a anotação não
exclui a meditação, uma meditação que progressivamente se adensa,” (LOURENÇO, 1998, p.
329), como é mostrado no poema “Relatório”, de Peregrinatio ad loca infecta:
Sessenta cidades (com os museus, as ruas, castelos, catedrais, etc.)
em doze paízes em quatro meses (very american)
além de manuscritos em várias bibliotecas, conferências
em Londres, Paris, Bruxelas, Nimega, Utrecht,
e os príncipes de Portugal (medievais e Renascença) pela Europa adiante,
e alguns cinemas, exposições, teatros, muita vadiagem
altamente imoral (mais os desejos que as ocasiões),
e honestos encontros com amigos velhos e com amigos novos,
um incidente de fronteira, muitas entrevistas,
leituras públicas de poemas, um calor de glória
(oh efêmera, já Salomão sabia), uma
operação à vesícula. E numa tarde chuvosa
o navio largando. Os amigos sob os guarda-chuvas.
E a falta de palavras com os que estavam a bordo
a despedir-se. E na bruma tempestuosa
subitamente
nada.
(SENA, 1989, p. 106)
Em vários versos do poema atestamos fatos verídicos da vida do poeta, que
poderíamos enumerar: a quantidade de cidades visitadas, as conferências feitas, os cinemas,
exposições, teatros, etc., o desagradável incidente na fronteira, quando tentava entrar em
Portugal, a cirurgia... todos esses acontecimentos estão registrados em Diários, com data e
local. Até mesmo a informação contida no verso “e os príncipes de Portugal (medievais e
Renascença) pela Europa adiante,” figura no referido livro, fornecida por Mécia de Sena, de
que o real objetivo da viagem de 1968 era colher elementos para um bem arquitetado estudo
sobre “Príncipes de Portugal que viveram no estrangeiro”, cuja investigação seria concentrada
nas “dinastias de Borgonha e Avis”, mas que não se efetivou 47 .
47
Cf. “Breve Introdução”, de Mécia de Sena. In SENA, 2004, p. XI
88
O livro idealizado por Sena, que não chegou ao seu termo, provoca-nos certa
curiosidade e suscita elucubrações em torno do assunto: pesquisar príncipes portugueses que
viveram no estrangeiro seria um interesse gratuito do escritor? Ao que tudo indica, mais uma
vez Sena colocaria na criação literária um pouco de si mesmo, de sua vivência, a exemplo de
um já consagrado número de obras de cunho autobiográfico. O que propomos exatamente é
demonstrar o quanto o fato de ser estrangeiro, de estar fora de sua terra,
cria marcas
profundas no indivíduo e o influencia em suas atividades, literárias ou não. Em se tratando de
Jorge de Sena, a cada estágio da peregrinatio, a cada tribulação, é experimentada uma
subjetividade.
O exílio, mesmo quando voluntário, é uma viagem forçada, ditado certamente por
alguma razão, mais forte que a vontade de ficar em casa. O emigrante, sem data certa para o
retorno à pátria, sente uma saudade intensificada pela sensação de ser um forasteiro, o que faz
com que o país distante se transforme num objeto de desejo, num local de referência para
onde um dia anseia voltar. Viver fora da pátria promove na alma uma grande sensação de
vazio, e tal conflito torna-se referência constante na obra daquele que vivenciou o exílio,
principalmente dos portugueses, acostumados desde longa data à diáspora: primeiramente, a
da aventura, nos séculos XV e XVI, da descoberta de novas terras, quando sairam de casa
“para ser ou tentar ser senhores: em Goa ou Malaca onde era fácil, para muitos, o acesso à
asiática riqueza; no Brasil, onde era necessário inventá-la, lavrando com escravo e caçando
índio.” (LOURENÇO, 1991, p. 125).
Toda a exploração, no entanto, não resolveu a situação econômica de Portugal, tanto
que trezentos anos depois, em fins do século XIX, ocorreu uma nova diáspora, ainda pela
busca de dias melhores, mas dessa vez a prioridade era fugir da miséria, buscar trabalho
digno, e não apenas perseguir de forma aventureira fortunas em terras brasileiras, africanas ou
asiáticas. No século XX, ainda ocorreria um outro tipo de diáspora: aquela em que o
89
indivíduo se vê obrigado a dizer adeus à pátria por esta não lhe oferecer condições políticas
favoráveis, negar-lhe o direito supremo da liberdade. Porém, qualquer que seja a razão do
exílio, quem se encontra nesta condição será sempre considerado estrangeiro, sem uma
sensação de pertença a nenhum lugar, o que certamente lhe traz dissabores, como assinala
Julia Kristeva:
Eles [os dissabores] o depuram imperceptivelmente, deixam-no liso e duro como um
cascalho, sempre pronto para prosseguir a sua caminhada infinita, mais longe, para
além, em outros lugares. O objetivo (profissional, intelectual, afetivo) que alguns se
dão nessa fuga desenfreada já é uma traição à condição de estranho, pois ao escolher
um plano, o estrangeiro se propõe uma trégua ou um domicílio. E, ao contrário,
segundo a lógica extrema do exílio, todos os objetivos deveriam se consumir e se
destruir no louco impulso do errante em direção a um alhures sempre recuado,
insaciado, inacessível. (KRISTEVA, 1994, pp. 13-14)
Sena nunca se esqueceu de que estava em território estrangeiro, e, como acontece com
tantos outros exilados, também experimentou a mesma melancolia, por estar fisicamente em
um local e mentalmente em outro, à procura de uma impossível ubiquidade, que torna mais
difícil a integração à rotina do exílio. A grande quantidade de traslados que se viu obrigado a
fazer, mudanças de país e até de nacionalidade, gerou para o poeta alguns momentos
confusos, muitas vezes até carregados de hostilidade por parte do outro, que, por não aceitar
as diferenças, comete uma rejeição velada. Em várias oportunidades Jorge de Sena foi
“rejeitado”, ou no mínimo depreciado, ao declarar sua nacionalidade, o que se reflete em sua
escrita, no famoso poema “Em Creta, com o Minotauro”:
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
(SENA, 1989, p. 74)
Como vemos, é um desabafo de sua condição de emigrado, que não pertence, na
realidade, a lugar nenhum. A tensão existente com a identidade portuguesa é amplamente
demonstrada em um número incalculável de páginas, tanto literárias quanto ensaísticas, como
é o caso que destacamos agora:
No Brasil, ninguém me considera brasileiro, porque me mantive sempre um escritor
português. Com um passaporte brasileiro, a América considera-me português. E em
90
Portugal, sempre que lhes convém, lembram-se logo de que isso da dupla
nacionalidade é uma grande conversa, e de que eu sou é brasileiro. 48
Outras situações desagradáveis ocorriam, onde quer que fosse. Na viagem à Europa,
ao procurar as Embaixadas Americana e Brasileira enfrentou o problema da dupla
nacionalidade, conforme conta detalhadamente em Diários 49 . Encontramos também esse
aspecto biográfico no poema “O ecumenismo lusitano ou a dupla nacionalidade”, que integra
o livro Exorcismos. O poeta, português naturalizado brasileiro, tem uma dupla experiência a
esse respeito em visita à Alemanha:
Pela porta lateral da catedral em Colónia
(construída –é vero– para os ossos dos Reis Magos)
eu saía para o branco sol da manha de inverno,
quando um rumor de português subia
em negros hábitos a escada. Freiras
a quem falei sim brasileiras peregrinas
de pouso em pouso a Roma. Quando eu disse
que eu era brasileiro a madre cujo véu
rodeava um rosto emaciado e luso
disse: –Ah, naturalizado, não é brasileiro–.
(SENA, 1989, p. 171)
O sujeito poético, ao ouvir as vozes de um grupo de freiras e identificar o idioma que
falavam como o português: “quando um rumor de português subia / em negros hábitos a
escada [...]”, aproxima-se de uma delas e declara-se brasileiro. A religiosa, “[...] cujo véu /
rodeava um rosto emaciado e luso”, rebate: “–Ah, naturalizado, não é brasileiro–.”.
O outro caso foi em Hamburgo na
Hauptbahnhof. O quiosque dos jornais
de todas as línguas. Chega uma mulher
morena –um traço dentro de opulentas peles– e pergunta
por jornais lusitanos em alemão razoável.
Era evidente que só um português dos tais desejaria
em Hamburgo informar–se assim do estado do universo.
É portuguesa? Sou. Palavra puxa palavra,
eu também era. Mas ela exclamou:
–Brasileiro naturalizado? Ah, não é português–
E voltou–me as costas com o periódico na mão,
48
SENA, Jorge de. “Ser-se Imigrante e Como...”, in Gávea-Brown, 1,1, Janeiro-Junho, Providence, R.I. p. 13.
Apud GÂNDARA, Paula. “Jorge de Sena, ou para o Exílio na palavra”, in SANTOS, Gilda (org.), 2006, p.284.
49
“[...] saí para ir à Embaixada Americana buscar a carta de recomendação para o permit permanente no Museu
Britânico. A dita cuja recusou, por eu não ser cidadão (ainda que funcionário público lá...), e, por falsa indicação
de um polícia, andei à procura da Brasileira, que enfim encontrei, depois de muitas pessoas solícitas me
mandarem nas direcções erradas. Fui recebido pela secretária (adida cultural interina), dama que esteve em
Portugal, e com muita desconfiança me perguntou porque é que eu não ia à Embaixada Portuguesa, pois que o
meu ‘sotaque’ era português...” (SENA, 2004, p. 177).
91
equilibrando as pernas ainda de varina
dificilmente nos tacões finíssimos.
(SENA, 1989, p. 171)
Aqui, ao conversar com uma mulher, diz ser português e a não-aceitação é a mesma:
“– Brasileiro naturalizado? Ah, não é português –”. Nesse caso, a mulher ainda volta-lhe as
costas, atitude que inferimos como desdenhosa. O fato de as duas mulheres serem portuguesas
deixa implícito o conservadorismo lusitano, que não o aceita em nenhuma das duas
nacionalidades. Verificamos um conteúdo sarcástico por conta de alguns comentários do
sujeito poético, que observa criticamente a aparência da segunda mulher: “um traço dentro de
opulentas peles”, evidenciando o quanto ela parece inadequada dentro daquele invólucro.
Ao descrever aquela figura feminina, oportunamente aproveita para alfinetar os
hábitos tipicamente portugueses: “Era evidente que só um português dos tais desejaria / em
Hamburgo informar–se assim do estado do universo.”. Novamente, sua crítica pousa na
indumentária da mulher: “equilibrando as pernas ainda de varina / dificilmente nos tacões
finíssimos.”. As “pernas ainda de varina” indicam que a dama bem vestida não consegue
livrar-se da imagem de mulher rude e trabalhadora portuguesa, exaltada por Cesário Verde:
“[as varinas]Vêm sacudindo as ancas opulentas! / Seus troncos varonis recordam-me
pilastras;” (VERDE, 1984, p. 72), revelado na pouca intimidade com um sapato de salto alto,
mais um reflexo do provincianismo português.
O fato de um exilado sentir-se longe de tudo e de todos faz com que procure abrigo em
pelo menos um objeto amado, a língua. Ao relacionar-se com língua e pátria, a situação
parece ser remediada através da criação literária. À medida que se distancia de suas raízes,
suas referências, o autor procura, através do desabafo permitido pela escritura, quebrar o
silenciamento que lhe foi imposto, superando a amargura causada pela ausência prolongada. E
esse esvaziamento, que é o exílio, nutre a criação literária, pois o escritor é aquele que
pertence ao exílio, não só por estar fora do mundo, mas também por se colocar fora de si,
92
como diz Maurice Blanchot: “O poema é exílio, e o poeta que lhe pertence, pertence à
insatisfação do exílio, está sempre fora de si mesmo, fora de seu lugar natal, pertence ao
estrangeiro, ao que é exterior sem intimidade e sem limite...”(BLANCHOT, 1987, p. 238).
O poeta, porém, ao mesmo tempo em que erra, que não pertence a lugar nenhum,
paradoxalmente, pertence a todos os lugares, pois estar do lado de fora é a condição para que
suas palavras possam pertencer a todos. E é dessa maneira, fora do mundo e de si mesmo,
através da escrita, que Jorge de Sena dá vazão à sua mágoa, canalizando-a para o a atividade
intelectual e literária. Essa atitude é, de acordo com o pensamento de Edward Said, a mais
coerente com relação a quem se encontra no exílio, que para o ensaísta não é nenhum
privilégio, mas alternativa às instituições de massa que dominam a vida moderna: “o exílio
não é uma questão de escolha, nascemos nele, ou ele nos acontece. Mas, desde que o exilado
se recuse a ficar sentado à margem, afagando uma ferida, há coisas a aprender: ele deve
cultivar uma subjetividade escrupulosa (não complacente ou intratável).” (SAID, 2003, p. 57).
A experiência de exilado do poeta contribuiu sobremaneira para seu conhecimento e
visão de mundo: se há a desvantagem de que ser um exilado caracteriza o intelectual como
figura privada da comodidade, bem-estar e segurança de viver em sua própria casa, há o outro
lado, que contraria essa condição: aprender com a adversidade e tirar partido de situações de
instabilidade. Tendo em vista o histórico de vida de Jorge de Sena, sabemos que, graças a sua
habilidade e labor, adaptou-se aos locais onde se estabeleceu, mas como hóspede temporário,
não como parasita, conquistador ou invasor 50 . Essa peculiaridade colabora para que pesemos
em uma imaginária balança os prós e contras do seu exílio, que, afinal, produziu bons frutos,
se não relevarmos o plano afetivo. Said observa uma perspectiva muito prática, bem adequada
50
Cf. SAID, 2005, p. 67: Said compara o intelectual a “um náufrago que, de certo modo, aprende a viver com a
terra e não nela; não como Robinson Crusoé, cujo objetivo é colonizar sua pequena ilha, mas como Marco Pólo,
cujo sentido do maravilhoso nunca o abandona e que é um eterno viajante, um hóspede temporário, não um
parasita, conquistador ou invasor.”
93
aos padrões da modernidade, na qual o homem, para viver bem, deve considerar-se
perenemente em terra estrangeira, ao citar o monge saxônico Hugo de Saint Victor:
Portanto, é fonte de grande virtude para a mente exercitada aprender, pouco a pouco,
primeiro a mudar em relação às coisas invisíveis e transitórias, de tal modo que
depois ela possa deixá-las para trás completamente. O homem que acha doce seu
torrão natal ainda é um iniciante fraco; aquele para quem todo solo é sua terra natal
já é forte; mas perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é uma terra estrangeira.
A alma frágil fixou seu amor em um ponto do mundo; o homem forte estendeu seu
amor para todos os lugares; o homem perfeito extinguiu isso. [grifos nossos] 51
É interessante o fato de esta citação, formulada por um monge do século XII, parecer
gerada por uma vivência de tempos modernos. De acordo com o sábio, o homem perfeito não
cria laços afetivos em lugar nenhum porque considera o mundo inteiro uma terra estrangeira.
Há também nas palavras do monge a questão religiosa: todo o mundo é considerado exílio
porque só o Céu seria a verdadeira Terra. O sentido atribuído à expressão “cidadão do
mundo” é, então, contrária a esse pensamento, já que o indivíduo designado como tal sente-se
em casa em todos os lugares. Dessa forma, perdura o dilema cruel entre ser-se forte ou
perfeito para que se viva melhor no exílio. Porém, existe a consciência de que na humanidade
não há lugar para a perfeição, dada a sua natureza imperfeita.
Atualmente, em plena era espacial, há na humanidade uma tendência aparentemente
contraditória: ao mesmo tempo em que se descobre que o universo é maior do que
imaginamos, visa-se um estreitamento cada vez maior do globo terrestre, conhecido como
globalização. Na verdade, a globalização já se havia iniciado desde a descoberta da América,
que motivou a humanidade a ampliar seus territórios, sempre à procura de outras terras para
conquistar e colonizar. Inicialmente, o mar era o caminho; hoje, todo o céu, sem limites. O
grande salto para a corrida espacial aconteceu em 1957, quando foi lançado ao espaço pela
União Soviética, o Sputnik, primeiro satélite artificial da Terra. Na mesma época, com as
reflexões inerentes ao momento que o mundo estava testemunhando, Hannah Arendt observa
que cada homem é tanto habitante da Terra como do seu país:
51
Hugo de Saint Victor, apud SAID, 2003, p. 58.
94
Os homens vivem agora num todo global e contínuo, no qual a noção de distância,
inerente até mesmo à mais perfeita contigüidade de dois pontos, cedeu ante a furiosa
arremetida da velocidade. A velocidade conquistou o espaço; e, ainda que este
processo de conquista encontre seu limite na barreira inexpugnável da presença
simultânea do mesmo corpo em dois lugares diferentes, eliminou a importância da
distância, pois nenhuma parcela significante da vida humana ― anos, meses ou
mesmo semanas ― é agora necessária para que se atinja qualquer ponto da Terra.
(ARENDT, 2009, p. 262)
Desde então, o mundo parece girar mais depressa. Com um espaço tão dilatado, perdese a noção de distância, ao misturar-se a noção de tempo e espaço: aumenta o espaço, mas
diminui o tempo necessário para percorrê-lo. Arendt escreve em uma época do início da
conquista espacial, em que o homem está eliminando fronteiras, o que causa alterações
significativas no mundo, traz novos e sérios questionamentos, e, principalmente, institui
modos diferentes de viver. Ao homem, afetado em seu estilo de vida, só resta se readequar.
Uma década após o texto de Arendt, Jorge de Sena demonstra pensar os efeitos da
modernidade, no poema “Noutros lugares”, datado de 1967, no qual a nostalgia de mundos
felizes se faz presente, quando o sujeito poético parece olhar para trás e refletir sobre o que se
perdeu no mundo. O poema sintetiza esse sentimento de perda:
Não é que ser possível ser feliz acabe,
Quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura;
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam, ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem.
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
[...]
Constatamos a correspondência entre espaço e tempo, que, aliás, percorre todo o
poema: “O tempo nos afina e nos apura;” e o espaço é transformado após isso. O que restou
foi um lugar estranho com o qual esse sujeito não se identifica, por já haver construído uma
95
ideia anterior do que era felicidade, seja com imagens arquivadas de locais ou da presença
humana, que, no fim, relacionam-se entre si: “É que os lugares acabam, ou ainda antes / de
serem destruídos, as pessoas somem.”. A análise do poema nos fornece uma noção de como o
espaço se modifica com o passar do tempo:
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
[...]
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
(SENA, 1989, pp. 88-89)
No desdobramento temporal, nada permanece da mesma forma. No século XVI já
dizia Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Assim também os hábitos, os
valores e os desejos humanos. Na passagem “Desertas ficam praias que brilhavam / não de
água ou sol mas solta juventude.” Observamos que não são os elementos da natureza que
conferem o brilho à paisagem, mas o elemento humano, o que realmente importa para o eulírico. As paisagens familiares sobre as quais o sujeito um dia pousara os olhos deixaram
vestígios, o que lhe permitiu construir sua visão de mundo. Porém, munido de novos
parâmetros, passa a estabelecer diferenças e inevitáveis comparações, a questionar a vida, que
constantemente se renova, na impossibilidade de manter-se estática: “E o medo de que a vida
seja isto: / um hábito quebrado que se não reata, / senão noutros lugares que não conheço.”
__________ PAISAGENS CULTURAIS: UM PERCURSO PELAS OBRAS HUMANAS
DE CORRER MUNDO...
De correr mundo as terras e os humanos
como paisagem que ante os olhos passa,
e às vezes percorrer umas e outros
nos breves intervalos entre duas viagens,
uma incerteza deixa que é diversa
da que se aprende no convívio longo:
quem se demora vê, sob as fachadas
ou as perspectivas de alta torre feitas,
um gesto em que se mostra uma outra vida,
ou troca frases que desnudam crua
o que de interno ser sob as fachadas vive;
mas quem só passa e mal aos outros toca
com mais que olhares ou fugidias vozes,
mais adivinha o que não é paisagem
mas dia a dia tão diverso dela
ou pelo menos para além ansioso.
(SENA, 1982, p.159)
4.1 O mundo infecto
REQUIEM PARA O MUNDO PERDIDO
É noite, eu sei. Mas como é tanta a noite
que nada resta humano entre os mortais?
Como tão negra e espessa, tão nocturna
ainda se esconde em luz do sol e em estrelas,
ainda a atravessa, embora fluído, o luar?
(JORGE DE SENA, 1989b, p. 89)
Os versos da epígrafe são de um poema intitulado “Requiem para o mundo perdido”,
bastante sugestivo para nossa incursão pela obra de Jorge de Sena sob o ponto de vista da
existência humana e seus efeitos no mundo. O sujeito compõe, portanto, um réquiem, um
canto fúnebre em honra do mundo perdido, conspurcado, infecto, sobre o qual a noite
pesadamente se abateu. A noite, intensamente marcada nesses versos, simboliza o fim: é o fim
do dia, quiçá também dos tempos. Na poesia seniana, conforme já ressaltamos, a simbologia
da noite é recorrente, como a presença do mal e do negativo. Neste poema mais uma vez ela
se manifesta, impactante, plena de agressividade: “[...] tão negra e espessa, tão nocturna”. O
mundo descrito pelo eu-lírico parece imerso em trevas, conforme intuímos da leitura de outro
trecho do mesmo poema:
Nesta noite do mundo, nada resta
de humano e de sensível; nada resta
que tempo seja e que limite o espaço,
precisamente quando o tempo é espaço
que em si mesmo se move limitado.
(SENA, 1989b, p. 89)
98
Este momento gera mais uma oportunidade para citarmos Camões, ou cometermos
uma injustiça, caso não o façamos, já que o “Príncipe dos poetas” com frequência é evocado
nos textos de Sena. Através da reflexão do sujeito de que “[...]o tempo é espaço / que em si
mesmo se move limitado”, somos levados a recordar “a máquina do mundo”, referida no
Canto X d’Os Lusíadas, em que a ninfa Téthis conduz Vasco da Gama ao alto de um monte e
lá lhe apresenta uma miniatura do universo, como augúrio de glórias futuras a que os
portugueses estariam destinados:
“Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de com os olhos corporais
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
[...]
(CAMÕES, 1980, X:76)
Assim, ao Gama é concedida a contemplação do universo, a “Sapiência Suprema”,
inacessível aos “míseros mortais”:
Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada,
Que cerca em derredor esse rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
(CAMÕES, 1980, X: 80)
Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que Ele só entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.
(CAMÕES, 1980, X: 81)
A máquina do mundo camoniana, “etérea e elemental”, ratifica o clima
antropocêntrico, era das grandes conquistas do homem, exaltando o valor dos “barões
assinalados”. Surge como símbolo de elevação, de magnitude, como um orbe radiante, tanto
que “a vista cega e a mente vil também”. Porém, o espaço tal como é percebido pelo sujeito
99
no poema seniano, objeto de nossa análise, contrasta com essa claridade, já que é dominado
pela noite e pela escuridão. Cabe-nos aqui, então, apreciar a criação poética de Carlos
Drummond de Andrade, que também produziu um diálogo interessante com Camões: “A
máquina do mundo”, (DRUMMOND, 2001, pp. 264-269).
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
De forma oposta ao que encontramos no poema camoniano, o estado do sujeito
poético é de desilusão e de ceticismo; o espaço descrito, predominantemente escuro e hostil:
em uma estrada pedregosa, um eu caminha, aparentemente sem destino. Nos instantes que
precedem o encontro desse eu com a máquina do mundo, observamos a presença de aves que
pairam no “céu de chumbo”, com suas “formas pretas”, que se diluem “na escuridão maior”.
Como podemos constatar, vários elementos do poema drummondiano pertencem a um campo
semântico da obscuridade. Logo, a descrição de tal mundo é a que mais se aproxima do
testemunhado por Jorge de Sena, que motiva um réquiem. É o mundo que passaremos agora a
perscrutar, com foco nas ações do homem sobre o espaço que habita, do qual já se acostumou
a sentir-se proprietário.
A humanidade permanece a mesma, o homem continua em viagem, expandindo
territórios e modificando as paisagens, que nada mais são que reflexos de sua passagem. Hoje,
já não existe a aventura do desconhecido: nos limites do globo terrestre, a maior parte da área
100
já foi desvendada, medida e avaliada. A atenção volta-se para fora do planeta, para o desejo
de ultrapassar fronteiras no espaço sideral. É interessante observarmos como a degradação da
humanidade preocupa os poetas, desde tempos tão longínquos, cujas ideias perduram até
nossa era graças à fortuna que nos deixaram em textos. Tal preocupação não nos surpreende,
já que o poeta e os artistas em geral são também intelectuais e humanistas, portanto, interessalhes o destino do homem. Em qualquer século, ocorre-lhes sempre a mesma pergunta: “que
mundo é esse em que estou vivendo?”. Em torno dessa interrogação, meditam e criam suas
obras.
Em pleno século XVI, paradoxalmente ao triunfo do homem que canta na epopeia,
Camões já reconhece o “desconcerto” do mundo e sua poesia reflete, tanto nas composições
líricas quanto na épica, o mundo “infecto”, dominado por valores negativos como a injustiça,
a exploração e a ganância. É memorável a passagem de Os Lusíadas, quando irrompe, na
praia do Restelo, “um velho, d’aspeito venerando” (CAMÕES, IV:94-1), que se dirige a
Vasco da Gama e aos outros que embarcam, com visível indignação. A voz profética do velho
a admoestar os navegantes nesse momento da partida das naus representa uma crítica à
política ultramarina de Portugal, já que o empreendimento das navegações contrasta com a
triste condição do povo, que, dependente de uma economia de base agrária, vive à margem
dos grandes feitos. Há uma outra crítica ainda mais radical ao sistema, que é a condenação
dos valores bélicos cavaleirosos, da “glória de mandar”, da “vã cobiça”, da vaidade nomeada
por Fama 52 :
– Ó glória de mandar, ó vã cubiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cũa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades, neles exprimentas!
(CAMÕES, 1980, IV:95)
52
Cf. LOPES, Óscar. Cifras do Tempo. p. 24
101
Na mesma obra, o poeta quinhentista ratifica suas preocupações com a cobiça, agora
não mais através das vociferações do Velho, mas das advertências de Téthis, que, após uma
série de profecias sobre as glórias dos portugueses, aconselha-os a ter cuidado com a cobiça e
a ambição:
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
[...]
(CAMÕES, 1980 IX:93)
A célebre fala do Velho do Restelo inspirou, no século XX, outro famoso escritor,
José Saramago, que, em diálogo com a epopeia camoniana, reflete poeticamente sobre a
condição humana atual:
FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
(SARAMAGO, 1966, p. 76)
No poema de Saramago, o Velho se dirige ao astronauta, não mais a Vasco da Gama.
A preocupação com os efeitos das atitudes humanas volta-se agora para o céu e não para o
mar. De nada adiantaram as advertências feitas por Camões através das falas do Velho e da
ninfa Thétis. Os limites foram extrapolados – os “vedados términos”, para usar uma expressão
camoniana –, os caminhos, abertos para novas investidas. Ainda impera a “vã cobiça”, que
não conseguiu ser detida, ou, ao menos, “freada”. A ambição por lucros e poder valida todas
as imoralidades, a justa distribuição de riquezas nunca existiu: se uma minoria detém
incalculáveis fortunas, uma grande parte da população mundial vive abaixo da linha de
102
pobreza. As guerras, geralmente movidas por interesses individuais, são agora incrementadas
pela bomba atômica e pelas minas terrestres. É esse o mundo infecto percorrido por Jorge de
Sena, que, assim como Saramago, medita sobre a situação do homem: apesar do avanço da
ciência, das vitórias obtidas com o programa espacial, ainda não conseguiu vencer as mazelas
da Terra.
Desde o início da civilização, a opulência e a miséria convivem no mesmo espaço.
Atualmente, mesmo de posse de uma visão de mundo mais ampla, a natureza humana
continua com as mesmas imperfeições: egoísmo, estupidez, injustiça... A pequenez de espírito
e a hipocrisia de um número absurdo de espécimes humanos ainda oferecem resistência ao
exercício de uma liberdade plena, direito de todos. Como a liberdade é um valor tão caro a
Jorge de Sena, a privação dela torna-se um elemento a mais para piorar o mundo. Somado a
tais questões, um outro fator, lembrado por Hannah Arendt, merece relevância: a moderna
perda da fé. A humanidade toma outros rumos, quando o homem coloca em dúvida a
influência divina e atribui a si mesmo as conquistas e a própria felicidade, conforme ocorreu
no Renascimento, cuja doutrina reconhece o homem – e não Deus – como medida de todas as
coisas.
O homem, dessa maneira abalado em sua fé na imortalidade da alma, voltou à sua
forma mortal, como o fora na antiguidade; o mundo passou a ser menos estável, a exercer
menos confiança do que na era cristã. Ao constatar fora de seu alcance uma possível salvação
futura, o ser humano moderno tornou-se cético, impelido para dentro de si mesmo e não na
direção do mundo ao seu redor. Justamente quando deveria confraternizar com o progresso
contínuo da ciência, vê-se em um profundo estado de alienação, onde o que mais conta é a
satisfação individual. A nova era permite ao homem alcançar o espaço, mas rouba-lhe a
segurança do chão. Arendt arremata que
[...] o homem moderno não ganhou este mundo ao perder o outro, e tampouco, a
rigor, ganhou a vida; foi atirado de volta a ela, lançado à interioridade fechada da
introspecção, na qual suas mais elevadas experiências eram os processos vazios dos
103
cálculos da mente, o jogo da mente consigo mesma. Os únicos conteúdos que
sobraram foram os apetites e os desejos, os impulsos insensatos de seu corpo que ele
confundia com a paixão e que considerava «irrazoáveis» por não poder «arrazoar»
com eles, ou seja, prevê-los e medi-los. Agora, a única coisa que podia ser
potencialmente imortal, tão imortal quanto fora o corpo político na antiguidade ou a
vida individual na Idade Média, era a própria vida, isto é, o processo vital,
possivelmente eterno, da espécie humana. [grifos nossos] (ARENDT, 2009, p. 333).
A humanidade, incitada a seguir o seu caminho, passou a conviver com os valores que
restaram no mundo. Sem o arrimo da fé, necessitava de algo que a impulsionasse, ou seja, o
seu “processo vital”. Em sua peregrinação, Jorge de Sena testemunha considerável parte desse
mundo tão imperfeito, cujas impressões traduzem-se em poemas, inúmeros, dos quais
recolhemos uma pequena amostra para compor este aspecto de nossa pesquisa. Ao
perscrutarmos o “mundo infecto”, deparamo-nos com poemas cujo tema é o exílio interior do
poeta: a ditadura, a falta de liberdade, principalmente de expressão, enfim, um
espartilhamento total, que indica um sujeito sem possibilidades de viver dignamente em seu
país. O poema que reproduzimos a seguir demonstra exemplarmente essa evasão de Portugal,
voluntária ou não, de filhos ilustres que não permaneceram no “pátrio ninho” ou que nele não
foram devidamente laureados:
DIZIA UMA VEZ AQUILINO...
Dizia uma vez Aquilino que em Portugal
os filósofos se exilavam ainda em seu país
(v.g. Spinoza). O curioso porém
é que também ninguém foi santo lá:
os nascidos em Portugal foram todos sê-lo noutra parte
(St. António, S. João de Deus, etc.)
e outros santos portugueses, se o foram,
terá sido, porque, estrangeiros que eram e em Portugal
vivendo, não tiveram outro remédio
(v.g. Rainha Santa) senão ser santos,
à falta de melhor. Oh país danado.
Porque os heróis também nunca tiveram melhor sorte
(Albuquerque e outros que o digam) a menos que
tivessem participado de revoluções feitas
em vez de (v.g. o Condestável que fez
fortuna e a casa de Bragança e acabou só Santo quase).
(SENA, 1982, p. 103)
Um único poema faz menção a diversos nomes conhecidos da História de Portugal,
desde filósofos, passando por santos e heróis. O “Aquilino” a que se refere o título trata-se do
104
escritor português Aquilino Ribeiro, falecido em 1963. Com a mesma disposição combativa
de Jorge de Sena, poder-se-ia considerá-lo um verdadeiro "homem de ação", um tipo social
bastante exaltado no princípio do século XX, quer através de seu posicionamento pela escrita,
quer através da participação em atividades que acabam por levá-lo à cadeia53 . Como “dizia
uma vez Aquilino”, os filósofos exilavam-se ainda em seu país. Um dos filósofos lembrados é
Baruch Spinoza, nascido na Holanda, de família tradicional judia, mas de origem portuguesa,
a quem Sena, inclusive, dedicou um poema: “Homenagem a Spinoza”, de Exorcismos. Nas
considerações do sujeito poético, o país é um lugar tão desprezível que até mesmo os santos
se expatriam: “os nascidos em Portugal foram todos sê-los noutra parte / (St. António, S. João
de Deus, etc.)”.
Com efeito, os santos portugueses nasceram em Portugal e lá viveram certo tempo,
depois foram dar continuidade à sua missão religiosa fora do país: Santo Antônio partira para
o Marrocos e depois fixou-se na Itália; São João de Deus, para Granada, na Espanha. Restou à
D. Isabel, infanta aragonesa, nascida em Saragoça, ser a “Rainha Santa” em Portugal, já que,
como outros, “não tivera outro remédio”. Sena arremata: “Oh país danado. / Porque os heróis
também nunca tiveram melhor sorte”. Os heróis em referência são Afonso de Albuquerque,
militar e político português 54 e Nuno Álvarez Pereira, conhecido como “O Condestável”, que
ao lado do Rei D. João I, o Mestre de Avis, ficou célebre pelas muitas e importantes vitórias,
nomeadamente na Batalha de Aljubarrota, em 14 de agosto de 1385. Curiosamente, na época
em que Sena produziu esse poema, “O Condestável” era mesmo “só Santo quase”,
53
Cf. detalhes na página www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_942.html.
Afonso de Albuquerque é, sem dúvida, a figura mais emblemática da expansão portuguesa no Oriente.
Oriundo de uma família nobre, é criado na corte de D. Afonso V, serve em praças-fortes portuguesas de
Marrocos e integra a guarda pessoal de D. João II. Entre 1503 e 1505 D. Manuel confia-lhe a sua primeira
missão na Índia. Funda a fortaleza de Cochim e trava combate com os turcos e com tropas muçulmanas do reino
de Calecut. Em 1506 volta à Índia, portador de uma carta secreta do rei na qual é nomeado governador, em
substituição de D. Francisco de Almeida quando este, em 1508, conclui os três anos do seu mandato. Ainda antes
de iniciar as suas funções, assalta e toma os portos de Omã e de Ormuz; acaba repelido desta última praça. Cf.
em http://www.vidaslusofonas.pt/afonso_de_albuquerque.htm.
54
105
encontrava-se apenas beatificado. Finalmente, em Abril de 2009 a Igreja Católica reconhece a
santidade de D. Nuno Álvarez, canonizado pelo Papa Bento XVI, seis séculos depois 55 !
Ficou evidente, uma vez mais, a crítica ácida de Sena à sua pátria. Com efeito, a
questão do atraso português, da estreiteza de mentes, levantada amiúde pelo poeta, torna-se
substrato para compor um mundo infecto. Ainda há, atravessando sua poesia, muitas
imperfeições da humanidade a serem apontadas sem sairmos do âmbito dos problemas de
Portugal, como o próprio título do poema indica, em “L'été au Portugal”, de Exorcismos:
Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
[…]
Apesar da sugestão amena do título, que significa “O verão em Portugal”, o poema
nada mostra de amenidades. Em 1971 (ano em que foi escrito), a ditadura ainda está imposta.
A questão é simples e direta: todas as perguntas a respeito do que se espera da nação já têm
resposta, ou seja: Nada!
Emigram-se uns para as Europas
e voltam como se eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.
(SENA, 1989, p. 177)
[...]
Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
— mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?
(SENA, 1989, p. 178)
[...]
O sujeito critica a situação absurda de um país, do qual mesmo aqueles que saem e
permanecem certo tempo na Europa (como se Portugal não pertencesse a esse continente),
voltam os mesmos ordinários, “só mais ricos”. Nos versos “Que Portugal se espera em
55
Cf. em http://www.dodouro.com/noticia.asp?idEdicao=253&id=14973&idSeccao=2811&Action=noticia
106
Portugal? / Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?” parece não haver mais solução para
este tipo de gente, que subjaz à falta de escrúpulos.
Velhos e novos, moribundos mortos
se arrastam todos para o nada nulo.
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais singelo pulo.
Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.
(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende).
(SENA, 1989, p. 178)
Está explícito que, não importa de quem se trate, velhos ou novos, o destino é o
mesmo para todos: são “moribundos mortos”, arrastando-se para “o nada nulo”, uma vida sem
futuro, como quem já perdeu todas as esperanças e agora só lhes resta “sentar no próprio
mijo”, ou seja, arcar com as consequências do mal que conduziram com as próprias mãos,
como a guerra, a tortura, a castração imposta àqueles que não se vendem.
De forma decisiva, a visão do poeta é de um Portugal que está a soçobrar, no próprio
mar de lama que criou. No entanto, cometer barbaridades não é privilégio apenas desse país
da Península Ibérica. Ao examinarmos o problema das guerras, concluímos que toda a
humanidade está vulnerável, como assinala Sena em “O beco sem saída, ou em resumo...”
(SENA, 1989, pp. 181-182), também de Exorcismos, do qual destacamos algumas passagens
pertinentes. Os primeiros versos denotam a imperfeição da humanidade:
As mulheres são visceralmente burras.
Os homens são espiritualmente sacanas.
Os velhos são cronologicamente surdos.
As crianças são intemporalmente parvas.
Claro que há as excepções honrosas.
A humanidade, que o sujeito poético olha individualmente, por gênero e faixa etária,
recebe dele um atributo em forma de adjetivo precedido por um advérbio de modo. Ou seja, a
cada tipo é atribuída uma qualidade pejorativa, que com o advérbio torna-se acentuada ou
amenizada. Por exemplo: “visceralmente burras” intensifica essa característica das mulheres –
107
na visão do sujeito –, como se fossem burras em seu âmago; os velhos, “cronologicamente
surdos”, não o são desde sempre, ficam mais surdos à medida que o tempo passa. Destarte, o
que adquire relevância é a humanidade em si, como ela se manifesta nas coisas, qual o seu
valor:
Humanamente feitas são as coisas,
e as ideias, as obras de arte, etc.
Mas que diferença há entre ser-se uma besta na Ilíada
ou no Viet-Nam?
As falhas da humanidade, além de universais, são também atemporais: a Ilíada e o
Viet-Nam servem de exemplos para ambos os parâmetros.
Que haja Deus ou não
e a humanidade venha a ser ou não
e os astros sejam conquistados (ou não)
apenas terá como resultado o que tem tido:
uma expansão gloriosa do cretino humano
até ao mais limite.
[...]
Gloriosos, virtuosos, geniais,
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Ignorados, viciosos, ou medíocres,
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Do primeiro, do segundo, do terceiro ou quarto sexo:
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Em Neanderthal, Atenas, ou em Júpiter
– burros, sacanas, surdos, parvos.
Peremptoriamente, em qualquer condição, a humanidade possui uma tendência
acentuada a agir com imperfeição: “uma expansão gloriosa do cretino humano / até ao mais
limite”. A repetição sistemática dos adjetivos nos últimos versos: “burros, sacanas, surdos,
parvos” ratificam a impureza da natureza humana. Não importa se na pré-história ou na era
espacial, onde e quando haja seres humanos, “Em Neanderthal, Atenas, ou em Júpiter”.
Em outros poemas, Jorge de Sena aborda a mesma questão sobre Portugal, mas de
uma maneira tácita, que permite apenas entrever a visão que o sujeito poético construiu de sua
terra natal, sintetizada em “Ave nocturna...”, de Peregrinatio ad loca infecta:
Ave nocturna ponte de cometas
invalidada túnica de simples pregas
direi que me conheces quando pelas suas
108
as luzes na manhã futura já se apagam
como pensamentos que se fecham sobre o impossível
[...]
ventos que cruzavam com mais ventos
doutras eras
doutros lugares
de sítios
a que nunca fui senão comigo mesmo e aonde
levarei ardente nas mãos entreabertas
só memória das tuas
entre os dedos se partem
e são pedaços pousados no chão sujo
de tantas poluções perdidas
que os pés pisam
nesta viagem à beira de outro rio
negro oleoso crespo e oleoso e crespo como sabes
nunca mais.
(SENA, 1989, p. 26)
O poema deixa entrever uma impossibilidade de dias melhores. No verso “as luzes na
manhã futura já se apagam”, nota-se que não há esperanças de nada, não se pode esperar pelo
futuro, não há a perspectiva de luzes de um amanhã que virá. A vivência concreta do homem
que experimenta tal situação reflete-se no sujeito poético: é a visão de Portugal sob o domínio
salazarista. A memória aqui desempenha uma função primordial: “ventos que cruzavam com
mais ventos / doutras eras / doutros lugares”. Os tempos e os lugares parecem se fundir e
confundir; passado e presente, lugares visitados apenas na imaginação: “de sítios / a que
nunca fui senão comigo mesmo e aonde / levarei ardente nas mãos entreabertas / só memória
das tuas”.
Percebe-se ainda uma clara alusão a Cesário Verde, em “O Sentimento dum
Ocidental”, quando o eu-lírico deambula pelas ruas de Lisboa: as sensações sentidas pelo
sujeito ao andar pela cidade, as lembranças partidas e pousadas no “chão sujo”, rememorando
a Lisboa de Cesário, que bem poderia ser a representação de um mundo infecto, de finais do
século XIX:
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
(VERDE, 1984, p. 71)
109
O rio – que agora é outro – parece ser, no entanto, o mesmo: “nesta viagem à beira de
outro rio / negro oleoso crespo e oleoso e crespo como sabes”. O passado, reconstruído no
presente pela memória, faz retornar a imagem do “rio viscoso” cesarino. No poema, mesmo
rico em imagens, predomina uma visão voltada para dentro do sujeito, o eu-lírico vê muito
mais a si próprio que o espaço exterior. Fica entrevisto, portanto, que esse sujeito se relaciona
com um espaço de aprisionamento, fora do mundo real, o que se dá devido a uma relação
tensa com a pátria. Este é o seu testemunho, com ele tece o poema, baseado no que viu e
assimilou, compatível com o que diz Collot em passagem já citada anteriormente a respeito da
participação do sujeito na construção/interpretação da paisagem:
A configuração que a percepção impõe aos elementos da paisagem encontra seu
prolongamento na sua refiguração pela escritura. A ‘paisagem’ de um escritor não se
reduz a nenhum dos lugares em que ele viveu, viajou ou trabalhou. Ela não é nem
mesmo uma composição mais ou menos sutil desses referentes geográficos ou
biográficos, mas uma constelação original de significados produzidos por sua
obra 56 .
O fato de o poeta conhecer ou citar algum lugar reconhecível pelo leitor não significa
exatamente uma alusão à determinada paisagem olhada. A paisagem é fruto de sua percepção
e também de sua vivência, mas englobada em uma “constelação” de significados, ou seja, um
conjunto de elementos que, associados ao que o sujeito viu e assimilou, constitui uma visão
voltada para o seu interior.
O poema “Aves na baía de Luanda” (SENA, 1989, p. 197), incluso em ...Conheço o
sal e outros poemas, adequa-se com perfeição à questão que ora trabalhamos, por representar,
exemplarmente, mais um mundo infecto: é a expressão de um olhar que transita pelo espaço
da memória. Em sua passagem por Luanda, em 1972, retornando de Moçambique, o poeta
escreveu cinco poemas, entre eles, o acima referido, o qual reflete as suas impressões de uma
cidade que revia após trinta e quatro anos. O poema retrata a vivência familiar que lhe era a
56
1997, p.201: «La configuration que la perception impose aux éléments du paysage trouve son prolongement
dans leur refiguration par l’écriture. Le “paysage” d’un écrivan ne se réduit à aucun des sites où il a vécu, voyage
ou travaillé. Il n’est pas même un composé plus ou moins subtil de ces référents géographiques et biographiques,
mais une constellation originale de signifiés produits par son oeuvre.»
110
África quando a conheceu na infância, reconstruindo uma paisagem que se formara em sua
lembrança:
Cegonhas? São marinhas e se pousam
ora nas águas baixas, ou telhados
de cumeeira embranquecida a pensamentos
de uma ave que medita intestinal
sobre as alfândegas da terra firme.
As aves – as cegonhas – são um pretexto para comparar tempos antigos com tempos
atuais, demonstrando o quanto a ação humana é capaz de criar paisagens:
Pescoço curvo atrás do longo bico
pairam-se lentas entre os seus dois pousos.
Água de espelho estanho sem reflexo.
não creio que de imagens tão pernaltas
se adense por tranqüila neste céu de névoas
que se concentram amarelas sobre
uma cidade agora boçalmente nova
onde não há lugar para cegonhas.
As paisagens aqui vislumbradas pelo sujeito poético não parecem harmonizar com a
humanidade. As paisagens africanas de agora, especificamente as de Luanda, são carregadas
de elementos negativos, presentes na terra, na água e no ar: “Água de espelho estanho sem
reflexo. / não creio que de imagens tão pernaltas / se adense por tranqüila neste céu de névoas
/ que se concentram amarelas sobre / uma cidade agora boçalmente nova / onde não há lugar
para cegonhas.”:
Cegonhas que não sejam – como podem
ficar nesta poeira de bancárias
e militares empresas que se espetam
em doze andares na névoa, em vez das casas [...]
Nessa cidade “boçalmente nova” contemplada pelo sujeito, o que se dá a ver é um
espaço melancólico, insalubre, proporcionado pelas mudanças causadas no país por conta de
uma dominação militar – trata-se ainda de uma colônia portuguesa. Não há lugar para sonhos
nem motivo de realização do ser humano, nem que promova sua elevação. O que se encontra
de elevado nesse novo mundo é tão somente o edifício: “em doze andares na névoa, em vez
de casas ...”.
111
Em nossos deslocamentos pelo mundo infecto, as misérias da guerra continuam a ser o
tema central, pelos danos irreversíveis causados ao planeta e à espécie humana. Em um tom
apocalíptico, Sena reconhece essa evidência, no poema “Tentações do apocalipse” (SENA,
1989, pp. 66-67) que propõe a destruição de tudo o que existe, para que novamente possa-se
fazer a luz:
Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
Na visão do eu-lírico, diante de um mundo sem qualquer expectativa de melhora, a
poesia é dispensável: “Não é de poesia que precisa o mundo. / Aliás, nunca precisou. [...]”. O
sentimento de aniquilação é tão pungente que ele não aceita a proposta artística da arte
poética: “[...] ainda quando finge / que de sobreviver se faz a vida.”
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
De nada adianta a poesia com sua força, porque o mundo precisa, realmente, é da
morte. Não há outro remédio senão este a “[...] quantos teimam / em dizer-lhe da grandeza de
estar vivo.”. Porém, a morte proposta pelo sujeito não é a morte natural, testemunhada no diaa-dia, “[...] de que todos se livram no enterro dos outros.”, e sim, violenta, implacável, brutal:
[...] que o mate como um percevejo, / uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.”, talvez
com a bomba, fruto do engenho e da bestialidade humana ao mesmo tempo.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
112
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
A intenção seria que tudo voltasse ao início para ser refeito, mesmo que em um
ingênuo recomeço... Através de uma série de imprecações o sujeito poético se expressa em
tom apocalíptico: “Que os sóis desabem. / Que as estrelas morram. Nesses versos, Sena
dialoga claramente com Camões, rememorando o conhecido soneto “O dia em que eu nasci,
moura e pereça” 57 , cujo tema é o desconcerto pessoal que permeia a poética camoniana, e que
alude, por sua vez, a uma passagem da Bíblia Sagrada 58 , mais precisamente ao Livro de Jó,
no trecho que reproduzimos:
Depois de tudo isto, Job abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu nascimento. E falou
desta maneira: Pereça o dia em que nasci [...] Converta-se esse dia em trevas! [...]
Apoderem-se dele as trevas e a obscuridade. Que as nuvens o envolvam e os
eclipses o apavorem! Que a sombra o domine; não se mencione esse dia entre os
dias do ano, nem se conte entre os meses! 59
Retornando ao diálogo que se dá entre as obras dos dois poetas, verificamos o mesmo
clima de disforia, o mesmo tom aziago. A ênfase na escuridão encontrada em Sena também é
observada em Camões, inspirado pela fala de Jó: “eclipse nesse passo o sol padeça. / A luz lhe
falte, o sol se [lhe] escureça, / mostre o mundo sinais de se acabar,”. Continuemos com Sena:
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)
“Que tudo recomece desde quando a luz / não fora ainda separada às trevas”: o aspecto
desiderativo dos verbos no modo subjuntivo configura a maldição lançada, para que nada
reste, nem na terra nem no espaço. Que se estabeleça, então, o caos, tal como era no início! O
57
“O dia em que eu nasci, moura e pereça, / não o queira jamais o tempo dar, / não torne mais ao mundo, e, se
tornar, / eclipse nesse passo o sol padeça. / A luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça, / mostre o mundo sinais de se
acabar, / nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, / a mãe ao próprio filho não conheça. / As pessoas pasmadas,
de ignorantes, / as lágrimas no rosto, a cor perdida, / cuidem que o mundo já se destruiu. / Ó gente temerosa, não
te espantes, / que este dia deitou ao mundo a vida / mais desgraçada que jamais se viu!” (PASCOAL, Isabel.
Poesia lírica – Luis de Camões. [s.l.]: Biblioteca Ulisséia de Autores Portugueses / Verbo, [s.d.], nº 13. pp. 173174).
58
Ao longo de sua obra, Camões recorre a outras passagens bíblicas, por exemplo, no poema “Super flumina...”,
em que o sujeito poético relembra os tempos de Babilônia e Sião.
59
Bíblia Sagrada, apud MONIZ, 1998, p. 42
113
último verso contradiz o desejo inicial de um recomeço: “(O mais seguro, porém, é não
recomeçar.)”. A proposta seria a exterminação definitiva da humanidade, já tão corrompida
para não merecer outra chance de existir na face da terra?
Após o que vislumbramos em “Tentações do Apocalipse” como opção única de
expurgar a imundície do mundo, ocorreu-nos um outro poema, que nos leva ao mais profundo
das excrescências humanas: “Homenagem a Sinistrari (1622-1701) autor de ‘De
daemonialitate’”. Nele, Sena coloca-nos diante da influência demoníaca, ao qual a
humanidade está permanentemente exposta, dada a fragilidade de sua natureza. Nossa análise
apenas tangenciará outro aspecto da obra seniana, o demoníaco, o qual encerra questões que
exigem um estudo mais denso. Nosso interesse é esquadrinhar o mundo infecto sob variadas
perspectivas e esta é apenas mais uma, à qual o texto de Jorge de Sena nos conduz na busca
de elementos para a compreensão de um poema. O poeta dispensa tanta atenção ao assunto
que dedicou um livro inteiro ao tema: Exorcismos.
O título do poema alude a Ludovico Maria Sinistrari, frei italiano da Ordem de São
Francisco, que se dedicou a estudos sobre a demonologia. Considerado experto em
exorcismo, também escreveu sobre os seus efeitos. O poema se inicia com uma citação das
Metamorfoses (I, 85-6) de Ovídio, que diz respeito à criação do homem, diferenciado dos
outros animais porque é capaz de elevar os olhos para o céu e contemplar os astros 60 .
Ó Belfagor Rutrem e Bafomet
Baclum-Chaam Sabazius Basiliscus
Multinus Hautrus Chin Líber Strenia
Tchu-vang Tulpas Egrigors Churels
Lâmias Larvas Telazolteotl
Caballi Caballi Caballi Caballi Caballi Caballi Caballi.
Melav oan em sonamuh euq
mim a edniv! Ó Laquiderme efiast!
Caste castina castinata cast!
(SENA, 1989, p. 148)
60
A citação latina que lê-se no poema é: “Os homini sublime dedit, coelumque tueri / Iussit et erectos ad sidera
tollere vultus”: (Deus) deu ao homem um semblante elevado e mandou olhar o céu, e voltar o rosto para as
estrelas.
114
Para Sena, a humanidade já irremediavelmente perdida (incluindo a portuguesa),
necessita ser exorcizada. No entanto, ao invés de esconjurar o demônio, há uma invocação
dele, através de uma sequência de vocativos que correspondem aos nomes de entidades
demoníacas. Uma delas, a mais conhecida, Bafomet, é descrita em alguns livros sobre o
assunto com uma forma de meio homem, meio bode. A invocação, proferida em latim, é uma
das fórmulas utilizadas no exorcismo. Não obstante, o poeta não se serve somente do latim
como materialidade gráfica no interior do poema, mas mescla outras criações linguísticas,
como as que usou em “Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena”, em que a combinação dos
elementos faz com que “as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem
um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as
compõem.” (SENA, 1988b, pp. 158-159).
Os versos “Melav oan em sonamuh que / mim a edniv![...]”, inclusos no jogo de
palavras arquitetado pelo poeta, são o reverso de “Vinde a mim, que humanos me não
valem!”. Este trecho conduz-nos a uma leitura que contrasta com o que é esperado do homem
quando da sua criação, já que a expressão “Vinde a mim…” é reconhecida através do
Evangelho, proferida por Jesus Cristo: “Vinde a mim as criancinhas”, “Vinde a mim, todos os
que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”. Podemos interpretar a frase que se
lê ao contrário então como uma degradação da humanidade, já que “humanos não valem” ao
sujeito que no poema invoca as criaturas maléficas. Logo, na visão do eu poético, os homens
são inferiores às criaturas por ele chamadas, impedindo, dessa maneira, que haja alguma
esperança na retomada do progresso espiritual da espécie humana. Ao que parece, o mundo
estaria novamente entregue ao caos.
4.2 Obras humanas: espaços de dignidade
GLÓRIA
Um dia se verá que o mundo não viveu um drama.
Todas estas batalhas, todos estes crimes,
Todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se em carne viva
e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta,
todos estes poetas furados por balas
e todos os outros poetas abandonados pelos que
nem coragem tiveram de matar um homem,
toda esta mocidade enganada e roubada
e a outra que morrer sabendo que a roubavam,
todo este sangue expressamente coalhado
à face íntegra da terra,
tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros.
Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer.
(SENA, 1988, pp. 124-125)
A humanidade, em essência, é imperfeita e há humanos de todos os tipos, cuja atitude
boa ou má perante o mundo assemelha-se aos dois lados de uma moeda, que se manifestam na
mesma medida, alternando-se entre as criaturas. Alguns homens lutam contra o seu
semelhante; outros travam combates consigo próprios, o maior deles. O homem, mortal, não
poderia ser perfeito, nunca o será, sua natureza é dotada de paixões, desejos e vaidades.
Sentimentos antagônicos como o amor e o ódio podem habitar um mesmo peito. O mundo é a
fonte do bem e do mal, cujos habitantes convivem em um relacionamento ora conflitante, ora
116
pacífico. Nessa oscilação de ânimos, podemos entrever, então, uma faceta do bem: o mundo
tornado infecto pelas próprias ações humanas também pode mostrar-se mais purificado, mais
“acabado”. Há possibilidades de uma superação ao direcionarmos o olhar para outras atitudes
positivas, que possam equilibrar a balança entre bons e maus momentos da humanidade. As
potencialidades para tal residem na ética e na inteligência construtiva legada à nossa espécie,
capaz de deixar marcas no mundo e valorizar nossa existência.
Nossa reflexão é norteada pelas sábias palavras do grande pacifista Mahatma Gandhi:
“Nunca perca a fé na humanidade, pois ela é como um oceano. Só porque existem algumas
gotas de água suja nele, não quer dizer que ele esteja sujo por completo.” 61 . Inspirados pelo
pensador, buscamos em Jorge de Sena, indícios de alguma fé nos gestos humanos. Conforme
o poeta já havia declarado, sua peregrinação não se deu apenas na “loca infecta” da alma, em
sua escrita houve também momentos de “profunda reconciliação”. Nosso objetivo consiste
agora em demonstrar de que forma isso acontece em seu fazer poético. Em primeiro lugar,
fizemos um recorte de poemas que mostraram o lado obscuro da humanidade, refletido em
temas como a noite, a treva, a escuridão, principalmente da alma.
Após ter acompanhado a descida aos mais baixos níveis da existência humana,
intentamos agora um resgate, a emersão deste mundo que havia se esboroado, através de
poemas que frisam o lado positivo da humanidade, com temas que celebram as grandes obras
humanas. Para demonstrarmos como o sujeito poético faz essa construção de imagens,
procuramos estabelecer semanticamente uma gradação do escuro para o claro; do infecto para
o puro. Entrementes, isto não se dá cronologicamente com a obra nem com o poeta. Os
poemas selecionados expressam esses momentos de subidas e descidas, que se alternam à
proporção que os caminhos são percorridos. Em “Não posso desesperar da humanidade...”, de
40 anos de servidão, Jorge de Sena reafirma essa alternância de estados de alma, indicando
61
Fonte: http://www.pensador.uol.com.br/frase/MjA4NTY/
117
partilhar do mesmo pensamento de Gandhi a respeito da humanidade. Um poema que se
autoexplica:
Não posso desesperar da humanidade. E como
eu gostaria de! Mas como não posso
pensar que há povos maus, há maus costumes?
A América é detestável. Mas deu – americanos –
Walt Whitman e Emily Dickson. Posso
não confiar neles? A Rússia é
detestável. Mas Tolstoi é tão russo!
São maus os japoneses? Como podem
sê-lo, se têm Kurosowa e o sr. Roberto
que me vendia hortaliças lá no Brasil?
E o meu Brasil tão infeliz amor, e tão
ridículo? Mas não são brasileiros Euclides
e o coração dos meus amigos? E
Portugal, como pode ser mau e detestável,
se mesmo eu que amo sobretudo o vário mundo,
o amo – ao mundo – como português?
(SENA, 1989b, p. 96)
Fica evidente que o mundo foi abastecido de homens do bem, conforme são nomeados
a cada país que o poeta cita. Apesar de fornecerem motivos para serem detestáveis, maus e
também ridículos, esses países produziram alguma gente de valor, desde escritores
consagrados àqueles humildes desconhecidos, como “o sr. Roberto”, vendedor de hortaliças
no Brasil e tantos outros, anônimos, que contribuem para um mundo melhor. É esse o
caminho que procuramos trilhar, o do equilíbrio, sem ensaiar uma remição da humanidade
através de suas obras, mas mostrar do quanto ela é capaz, mesmo limitada em sua condição de
imperfeita.
Nossa pesquisa neste momento final vai ao encontro de poemas que retratam
paisagens urbanas. Encontramos em Peregrinatio ad loca infecta bastantes poemas que
possuem cidades europeias como referentes, nos quais podemos inferir uma grande mudança
– em relação aos poemas analisados até agora – na maneira com que o sujeito poético olha o
mundo ao seu redor: o que se põe em evidência agora são imagens de grandes metrópoles,
embora o foco principal não seja a paisagem em si, mas o fato de as cidades terem sido o local
onde o homem construiu a sua existência, interagindo com o mundo. A cidade passa a ser,
então, o palco da grande história da humanidade. Passamos a entrever, nessa busca, o produto
118
das ações do homem sobre o espaço. Para o geógrafo Denis Cosgrove, a paisagem está ligada
a uma nova forma de ver o mundo, é resultado da intervenção humana, no sentido de modelar
e remodelar o mundo:
Assim, paisagem é um conceito unicamente valioso para uma geografia
efectivamente humana. Ao contrário do conceito de lugar, lembra-nos sobre a nossa
posição no esquema da natureza. Ao contrário do meio ambiente ou espaço, lembranos que apenas através da consciência e razão humanas este esquema é conhecido
por nós, e apenas através da técnica podemos participar dela como seres humanos.
(COSGROVE, 2004, p. 100)
Dessa
forma,
acatamos
com
segurança
o
comentário
de
Cosgrove.
Na
contemporaneidade, à medida que o mundo evolui em velocidade assustadora – a tecnologia
se supera a cada instante – a paisagem sofre os efeitos da presença humana. Por ser espelho de
uma cultura, reflete as ações do homem, de acordo com seu estilo de vida e modo de (se) ver.
Voltamos a falar então em paisagem como uma estrutura de sentidos, o que nos envolve não é
mais visto como uma realidade objetiva. Também Claval se volta para essa direção:
A paisagem desempenha um papel na aquisição, por cada um, de conhecimentos, de
atitudes e de reflexos dos quais temos necessidade para viver: ela constitui o quadro
em relação ao qual aprendemos a nos orientar; ela fala da sociedade na qual se vive,
e das relações que as pessoas aí estabelecem com a natureza; este cenário está
carregado de lembranças históricas cuja significação é apreendida pouco a pouco. A
paisagem é, assim, uma das matrizes de cultura. [grifos nossos] (CLAVAL, 1999, p.
92)
Claval acrescenta ainda em sua exposição que a paisagem, além de matriz, é também o
lugar onde as atividades humanas gravam sua marca, podendo inclusive, deste ponto de vista,
ser também considerada marca – utilizando o termo de Augustin Berque 62 .
À medida que diversificamos os temas da poesia seniana, tentamos demonstrar que o
mundo infecto vai-se amenizando, configurando-se em um mundo mais suave, mais
acolhedor, mais claro. Tal impressão é ratificada no poema “Chartres ou as pazes com a
Europa” (SENA, 1989, p. 102), que possui como referente a cidade francesa que figura no
título:
Em Chartres, ó Péguy, eu fiz as pazes
com a Europa. Não que eu estivesse zangado,
62
Cf. BERQUE, A. 2004, pp. 84-85.
119
mas estava esquecido. Primeiro
o almoço num pequeno hotel da praça
nem sequer de luxo, e todavia,
no domingo burguês com as famílias
“déjeunant en ville”, tão “vieille France”,
e os criados felizes de servirem bem,
e a gente feliz de assim comer com tempo,
gosto, prazer, e elegância. Da Réserve
Couronnée, ou do meio-dia planturoso e fosco,
fiquei tocado até às lágrimas.
Estou a ficar gagá, “tout doucement”.
No verso inicial, o eu-lírico dirige-se explicitamente a Peguy 63 e com ele parece
compartilhar suas reflexões. O título do poema sugere que “neste livro bastante sarcástico,
amargo, ou desesperado”, este seja um dos “momentos de profunda reconciliação” 64 . Nessa
ocasião em que o poeta desfruta novamente do convívio com os hábitos sofisticados do Velho
Mundo, parece haver um resgate de algo há muito esquecido e que, ali em Chartres, viera à
tona: “o almoço num pequeno hotel da praça”, o “domingo burguês com as famílias”, enfim,
o “comer com tempo, / gosto, prazer, e elegância.”. De tal maneira dominado pela emoção,
Sena é novamente “inundado” pela poesia e compõe na mesma data o referido poema,
conforme registra em Diários:
10 de Novembro, domingo —
Saí cerca das 9,30 para ir a Chartres, decisão que tomei ao acordar. [...] Chartres foi
uma experiência extraordinária: a paz dominical da cidade, o almoço à antiga com
floreados dos criados (num hotel bem mediano), a catedral, as reminiscências
literárias, tudo junto produziu-me um choque extraordinário: uma das grandes
emoções por que tenho passado. Mandei postal à Mécia, à Isabel Maria e ao Casais
— espero que não me achem gagá, mas a Catedral comoveu-me até às lágrimas.
Antes, no fim do almoço, com só a visão dela por entre as casas, escrevera — depois
de tanto tempo — um poema. Mandei também um postal “péguyano” ao Cinatti.
[...]. (SENA, 2004, p. 229)
Como podemos atestar, as observações feitas no diário correspondem ao que se lê no
poema: o almoço, o sentir-se “gagá”, as lágrimas diante da visão da Catedral... A cidade, entre
outros aspectos culturais, abriga a Catedral Nôtre Dame de Chartres. Minuciosamente
63
Charles Péguy, poeta e filósofo francês, combinou cristianismo, socialismo e patriotismo num pensamento
único. Nascido em 1873, cursou uma Escola Superior, mas abandonou, assim como a prática do catolicismo,
embora mantendo uma fé fervorosa. Na 1ª Guerra Mundial, foi para as trincheiras como tenente e faleceu. De
acordo com Gilda Santos, Péguy foi o escritor mais declaradamente apaixonado pela cidade de Chartres.
(SANTOS, 2009. p. 87).
64
Sena refere-se ao livro Peregrinatio ad loca infecta, do qual extraímos o poema em questão. No capítulo
anterior, já citamos essa expressão usada pelo poeta, que aqui repetimos para fixar a importância da
reconciliação por ele aventada. Cf. SENA, 1989, pp. 21-22. “Isto não é um prefácio”.
120
descrita pelo poeta, a igreja é uma obra-prima da arte gótica, dedicado à Santíssima Virgem.
O templo é famoso em todo o mundo pela riqueza de suas esculturas e beleza de seus
numerosos vitrais, cujas cores são impressionantes e retratam imagens como em um
caleidoscópio, desde passagens bíblicas e vidas de santos até cenas cotidianas da Idade
Média. Convém esclarecermos o que a arte gótica representa:
O gótico conclui um período da cultura ocidental, denominado a ‘idade da fé’, no
qual o homem experimenta uma progressiva compreensão da revelação divina e sua
relação com o mundo. No gótico, Deus se aproxima de nosso mundo e se apresenta
plenamente como a fonte de todo significado existencial, sem o qual nada se
compreende. A fé é o ponto de partida; a igreja é a fonte das verdades. A catedral
gótica é por onde Deus se aproxima do mundo dos homens. [grifos nossos]
(BRANDÃO, 1991, p. 46)
A filosofia gótica defende a pequenez humana diante da grandeza de Deus,
influenciando o estilo arquitetônico de toda uma era. Por serem as torres da nave
extremamente altas, seus pináculos parecem perfurar o céu azul. No interior da Catedral de
Chartres é impossível não “fazer as pazes com a Europa”: é tanta a beleza que a paz e outros
sentimentos elevados afloram, a capacidade artística do homem parece transcender o plano
físico. Trata-se de um espaço sagrado, lugar onde pessoas se reúnem em busca do divino. A
respeito desse tipo de construção, em que, sob o ponto de vista cultural, observa-se a
exploração de mundos interiores, pronuncia-se Claval:
Os valores em torno dos quais se articulam os sistemas culturais, interiorizados e
sem cessar reinterpretados e reestruturados por cada um, se definem pela referência
feita às coisas do além. A abordagem cultural não pode ignorar o papel do céu ou do
inferno, do bem ou do mal, da razão, da utopia, da idade de ouro ou da terra sem
mal, sob o pretexto de que estas são construções do imaginário: é a partir delas que
cada um define aquilo que ele considera como verdadeiro, autêntico, fundamental.
Não existe ordem cultural que não proponha uma concepção filosófica ou religiosa
de substâncias e de forças que compõem e estruturam o mundo, sem uma ontologia
do tempo e do espaço. (CLAVAL, 1999, pp. 75-76)
A referida catedral é de extrema importância para os místicos. Como a maioria das
igrejas góticas, foi construída de maneira que quem a observe direcione seu olhar para o alto,
na busca de um mundo elevado. A própria construção arquitetônica favorece, através de
arcos, abóbadas e rosáceas, que obrigam o espectador a olhar para cima.
121
Depois, Nossa Senhora, Chartres, Idade Média,
e a paz desta saudade n’alma
e a certeza de que este mundo tem de resistir
– e há-de resistir – à grosseria,
às bestas e ao vulgar, às multidões, a tudo:
como o “veau flambé”, como os vitrais de glória,
como esta flecha erguida sobre a Beauce,
imagem tão viril de Nôtre-Dame
Os famosos vitrais da catedral de Chartres encerram um ensinamento magnífico: o
espírito da Igreja é o espírito de Deus: sabe unir com sabedoria o prático ao belo. O objetivo
do prático é servir ao corpo do homem sem atrapalhar a alma; a finalidade do belo é encantar
a alma e elevá-la a Deus. Então, o vitral, além de belo é útil, pois através dele a luz espalha-se
pelo interior da nave. Ao considerar alguns elementos típicos da cidade, como a flecha
erguida sobre a Beauce, a catedral e seus vitrais, o sujeito poético inclui o “veau flambé”
(carne de vitelo flambada) entre os pilares de resistência “à grosseria”, “às bestas”, “às
multidões”... Quanto a esse aspecto, Gilda Santos tece um interessante comentário: “[...] é
sobretudo o recorte de uma paisagem cultural que encontramos neste poema, articulada entre
dois espaços-síntese – o restaurante e a catedral – que metonimicamente abrigam os alimentos
do humano corpo e da humana fé, [...]” (SANTOS, 2009, p. 88).
Há indícios de que a igreja foi edificada sobre os restos muito antigos de templos
pagãos, de acordo com o fragmento seguinte, em que a cripta se transforma na maravilha dos
vitrais:
a meio das campinas infinitas
que os séculos dos séculos calcaram
até fazê-las este plano horizontal de que,
portais de majestade, concreção de fé,
a nossa humanidade é pedra sem retorno
à natureza informe. Tal como a Deusa-Mãe
na cripta contida se transforma
nesta de vidros ascensão fremente
de cores que a luz acende mas não passa.
Europa, minha terra, aqui te encontro
e à nossa humanidade assim translúcida
e tão de pedra nos pilares sombrios.
O edifício constitui-se numa formidável analogia entre a beleza da criação divina e a
obra de arte humana, capaz de redimir o homem, impuro e imperfeito por natureza, fazendo-o
122
transcender, simbolicamente, do estado empedernido para outro superior, como lemos nos
versos: “a nossa humanidade é pedra sem retorno / à natureza informe. [...]”. Seria essa
magnífica construção um reencontro com a humanidade, uma reconciliação? Diríamos que
sim, pelo que depreendemos no verso: “Europa, minha terra, aqui te encontro”. Uma vez mais
nos acorre o texto de Gilda Santos: “Chartres, emblematizada como súmula do saber ocidental
cristão, faz-se oficiante e testemunha da reconciliação do desterrado com suas origens
espaciais e matrizes culturais.” (SANTOS, 2009, p. 87).
Os dois versos finais: “e à nossa humanidade assim translúcida / e tão de pedra nos
pilares sombrios.” remetem a outro poema seniano, “A nave de Alcobaça”, do livro
Metamorfoses, cujo referente é uma catedral gótica:
Vazia, vertical, de pedra branca e fria,
longa de luz e linhas, do silêncio
a arcada sucessiva, madrugada
mortal da eternidade, vácuo puro
do espaço preenchido, pontiaguda
como se transparência cristalina
dos céus harmónicos, espessa, côncava
de rectas concreção, ar retirado
ao tremor último da carne viva,
pedra não-pedra que em pilar's se amarra
em feixes de brancura, geometria
do espírito provável, proporção
da essência tripartida, ideograma
da muda imensidão que se contrai
na perspectiva humana. Ambulatório
da expectação tranquila.
Nave e cetro,
e sepulcral resíduo, tempestade
suspensa e transferida. Rosa e tempo.
Escada horizontal. Cilindro curvo.
Exemplo e manifesto. Paz e forma
do abstracto e do concreto.
Hierarquia
de uma outra vida sobre a terra. Gesto
de pedra branca e fria, sem limites
por dentro dos limites. Esperança
vazia e vertical. Humanidade.
(SENA, 1988a, p. 79)
A arquitetura da igreja de Alcobaça é um reflexo da regra beneditina da procura da
modéstia, da humildade, do isolamento do mundo e do serviço a Deus. Os seus fundadores
partilhavam estas ideias, ornamentando e construindo a estrutura de suas igrejas de forma
123
simples. Apesar de sua enorme dimensão, o edifício apenas sobressai através dos seus
elementos estruturais necessários que se dirigem ao céu – tal como a Catedral de Chartres. A
sintaxe desse poema é muito significativa, metaforicamente é o espelho do seu conteúdo. A
descrição da nave, em seus detalhes concretos: “vertical, de pedra branca e fria” acaba por ser
análoga à descrição do próprio poema como forma vertical que se ergue na página,
preenchendo o vazio do papel: “vácuo puro do espaço preenchido”. Dessa forma, verso a
verso completa-se o poema, tal como pedra por pedra conclui-se a igreja.
Podemos apontar outro elemento que aproxima ainda mais o conteúdo dos dois
poemas, como a relação entre pedra e humanidade: “pedra não-pedra que em pilar’s se
amarra”, / em feixes de brancura, geometria / do espírito provável, proporção / da essência
tripartida, ideograma / da muda imensidão que se contrai / na perspectiva humana. [...]”. As
imagens concretas do início vão pouco a pouco se abstraindo, a realidade objetiva da pedra,
das paredes, se dilui para outras questões, para o aspecto humano, para a meditação sobre a
vida: “[...]Paz e forma / do abstracto e do concreto.”, que ratificamos ao observar o aspecto
concreto do primeiro verso: “Vazia, vertical, de pedra branca e fria,” e o completamente
abstrato contido no último: “[Esperança] vazia e vertical. Humanidade.”.
Após termos refletido sobre a paisagem como símbolo da união entre o divino e o
humano através da arquitetura das igrejas, examinamos agora outro aspecto cultural da
paisagem sob o enfoque da representação de poder no poema “Vila Adriana” (SENA, 1989, pp.
104-105). O local, que inspira o título do poema, reproduz a forma perfeita de uma Roma
idealizada. Ou melhor, do desejo de um único cidadão romano que podia sonhar em construir
uma cidade ideal, exclusivamente para ele, o imperador. É o maior exemplo do que podemos
reconhecer como poder imperial.
De súbito, entre as casas rústicas, e a estrada,
e o monte agreste e Tivoli, o invisível
oásis gigantesco.
Ao sol que passa
um arvoredo esparso, os campos verdes e
124
paredes, termas, anfiteatros, lagos,
e a paz serena e longa do Canopo
onde como antes cisnes vogam.
Da mesma maneira que Roma experimenta uma eternidade, vivendo sobre suas ruínas
ao longo dos séculos, a Vila Adriana é a ruína que sobrevive, como realização de uma ideia
extraordinária do imperador Adriano, cujo sistema de edifícios, de ruas, de águas e de todos
os monumentos, reunisse as funções de cidade, vila, museu, teatro de toda uma civilização. O
Canopo trata-se de um plano de água situado num pequeno vale parcialmente artificial. Deve
o seu nome a uma cidade egípcia conhecida pelos seus cultos a Ísis e Sarapis, e igualmente
dedicada a Antínoo, favorito de Adriano, que morreu afogado no Rio Nilo.
Palácio, o império em miniatura,
e sobretudo a solidão povoada
de guardas, secretários, servidores,
e gladiadores, e de uma sombra hercúlea,
ao mesmo tempo tênue e flexível,
e em cuja fronte os caracóis se enredam.
O poema evoca a necessidade de o homem construir obras capazes de dar sentido à
sua presença no mundo, ou antes, de imortalizar o seu nome através de glórias que o façam
viver eternamente: “A história do grupo do qual fazem parte está ali, nas lembranças das
batalhas, nos monumentos herdados do passado e no conjunto das histórias e das lendas que
dão um sentido ao destino coletivo.” (CLAVAL, 1999, p. 90).
Nos fragmentos “e sobretudo a solidão povoada / de guardas, secretários, servidores, /
e gladiadores, e de uma sombra hercúlea,” todos esses elementos se presentificam, mas
apenas no plano da subjetividade, no interior do eu-lírico. A “sombra hercúlea”, segundo o
próprio Jorge de Sena em suas “Notas” aos poemas, pertence a Antínoo.
Neste silêncio em ruína, as sombras descem frias.
Mas para sempre o Imperador está vivo.
e o sonho imenso de um poder tranqüilo
em que até mesmo escravos fossem livres
e as almas fossem corpos só tementes
de não salvar na vida o ser-se belo e jovem.
A ruína, com todos os significados que encerra, aciona, através da memória, uma
existência passada, intensamente vivida, capaz de recriar o presente e sonhar o futuro. Assim
125
como os geógrafos se tornam sensíveis à dimensão cultural das paisagens, da mesma maneira
fá-lo o poeta, que, ao estender os olhos sobre as ruínas, capta o grande sentido que existe
nelas: a eternidade do ser humano, a capacidade de olhar para trás para poder ter esperanças
num futuro por nascer, na vida que se renova sempre, construindo e reconstruindo a paisagem
quantas vezes seja necessário.
Enquanto acompanhamos a viagem existencial de Sena, por intermédio de seus
poemas, é-nos possível detectar uma correspondência positiva entre o homem e a paisagem,
com a exaltação dos grandes feitos da humanidade através dos tempos, representados por
ícones de cultura: cidades, catedrais e até mesmo ruínas, denunciadoras da passagem do
homem e de sua capacidade de interagir no mundo. Em várias oportunidades, percebe-se que
Sena ainda coloca sua fé no ser humano e na sua capacidade de superação, pelas admiráveis
obras que suas mãos tecem no mundo. Para finalizarmos nossa pesquisa, ocorre-nos um
poema de Metamorfoses, que possui o Sputnik como referente: “A morte, o espaço, a
eternidade” (SENA, 1988b, pp. 135-138), no qual o sujeito propõe a negação da morte:
De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
[...]
A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
[...]
A morte, na visão do sujeito poético, não é aceita com naturalidade, como é ratificado
nos versos: “De morte natural nunca ninguém morreu.”, “A morte é natural na natureza. Mas /
126
nós somos o que nega a natureza.[...]”, e nos questionamentos sobre a finalidade das
conquistas humanas: “Não foi para morrermos que falámos, / que descobrimos a ternura e o
fogo, / e a pintura, a escrita, a doce música.” O homem, por sua natureza terrena, efêmera,
encontra-se ligado às coisas mundanas: “ao Sol, à terra, às águas.”
O sol, a Via Láctea, as Nebulosas,
teremos e veremos, até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.
[...]
O sujeito poético, desejoso de todas as maravilhas celestes: “O sol, a Via Láctea, as
Nebulosas,”, crê na imortalidade do ser humano, à medida que, como diz, “da morte nos
soltamos.”. A morte é deste mundo, só se justifica para quem a aceita sem contestação, preso
à derrota e a pequenez de uma existência. Porém, entrevemos a possibilidade de que tal
condição seja superada através de uma emersão:
Para emergir nascemos. O pavor nos traça,
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos
há-de encontrar em que se continue.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.
O fragmento acima nos permite supor que a “Vida” não termina com a morte nem com
o fim dos mundos, porque sempre haverá outros, um “Espaço”, no qual seja possível uma
continuação da humanidade, cujo ciclo tende a ser eterno. Tal eternidade, para o sujeito,
encontra garantia na convicção de que, mesmo que o infinito um dia encontre um limite, “a
Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,”.
________________________________________________________CONCLUSÃO
5. Conclusão
Jorge de Sena é um nome reverenciado na poesia contemporânea, de elevada
importância, tanto para Portugal quanto para os demais países de língua portuguesa. O fato de
ser conhecedor de várias partes do mundo e de culturas tão diversificadas reflete-se em seu
texto, onde se destaca o teor autobiográfico. Sua vivência, que através do testemunho
constitui-se em matéria para a ficção e a poesia, foi bastante relevada na pesquisa que ora
concluímos. Dado o caráter testemunhal, sua escrita carrega uma gama de elementos da
realidade, mas recria linguisticamente novos mundos, novas possibilidades, sob o critério da
verossimilhança.
Através de declarações do escritor e de poemas aqui comentados, dimensionamos o
que foi para ele o exílio: um verdadeiro mecanismo de ação e reação. Ação, por não
permanecer acomodado na sua situação de exilado; reação, por precisar se defender de quem
ele incomodava com seu discurso tão direto e palavras nem sempre doces. Em todo o período
de peregrinação, predominou, no poeta e homem, o sentimento de amor e ódio por Portugal,
pátria que ele amou desmedidamente, pois, mesmo estando fora, não deixou de dispensar-lhe
os seus pensamentos nem de escrever sobre ela. Não houve forma de apaziguamento nem
após o 25 de abril, com a chegada tardia da liberdade, já que Sena não estava lá para
comemorar.
Examinada em suas múltiplas faces, a obra seniana oferece um leque de questões a
serem investigadas. Ao optarmos por uma perspectiva imagética, demos início à identificação
de algumas paisagens, verificando como o sujeito as constrói: de forma subjetiva, através de
129
um olhar que consegue “ver” além de um referente puramente material. O livro Metamorfoses
é um bom exemplo deste aspecto, fruto de meditações do poeta, através das quais executa
uma transposição de objetos do plano visual para o verbal, inspirado em obras de arte e outros
referentes visuais. Por intermédio das peças visualizadas, das quais reteve as imagens, Sena é
conduzido pela memória ao seu museu particular, onde faz profundas reflexões, relacionando
o que contemplou com o que ficara impresso em suas lembranças, ao longo do tempo que lhe
foi fonte de sólidas experiências. Sena, como intelectual e ativo observador do mundo, passa a
questioná-lo através da criação poética, função, aliás, inerente a todos os artistas.
Dessa maneira, o poeta convida o seu leitor a também refletir sobre a condição do
homem e seu destino na terra, como verificamos em vários dos seus poemas. Referindo-nos
inicialmente a Metamorfoses, percebemos sua preocupação com os males da humanidade,
como a guerra e o destino humano em “Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de
Goya”, a partir de um quadro do pintor de mesmo nome; uma cena altamente sedutora
inspirada em uma jovem em um balanço – “O Balouço, de Fragonard”; a analogia entre o
concreto e o abstrato, presente em “A nave de Alcobaça”, cuja materialidade da pedra abstraise em outras questões inerentes à humanidade. Somente através da poesia, então, torna-se
possível dizer o indizível, prolongar um momento que, no plano visual, ficara limitado.
Assim, a poesia tem o poder de criar mundos ficcionais, mesmo quando pretende-se valorizar
o seu caráter testemunhal, como é o caso de Jorge de Sena.
A interpretação simbólica da peregrinação não significa que o poeta não se tenha
utilizado da realidade espacial, física, das coisas. Usou-as larga e poeticamente, até. Porém, a
materialidade contribui como uma adesão do mundo físico ao estado moral do homem,
formando neste uma construção subjetiva. O sujeito da poesia seniana, ao lançar seu olhar
sobre o espaço, não se mostra ali apenas como o homem de uma região e de uma época
específicas, mas um homem universal, capaz de construir sua visão de mundo como um todo,
130
impregnado de percepções adquiridas ao longo do caminho, analogamente à metáfora da cera,
a que mais uma vez aludimos: é a força da impressão que produz as marcas na cera, no caso,
na alma.
Nos sinuosos caminhos trilhados pelo poeta, o mundo mostra-se sempre dividido, o
que nos faz retomar o sertão de Guimarães Rosa, citado no início deste trabalho: no sertãomundo de Riobaldo, o caminho é repleto de veredas, o que não difere muito das estradas da
peregrinação seniana: há sempre uma vereda onde mais um desafio pode ser vencido. Em
diversos momentos de nossa incursão pela obra de Sena, buscamos com afinco, nos poemas
selecionados, destrinçar as suas minúcias, as suas pistas implícitas, que só nos instigam a
aprofundar as pesquisas. Através da sondagem efetuada em cada questão que trouxemos a
exame, acreditamos ter apontado a presença de uma paisagem predominantemente cultural,
que deixa entrever a atuação do homem no mundo em que vive.
O mundo infecto foi amplamente exemplificado com poemas que se associam
semanticamente ao negativo, aos mais baixos níveis da humanidade: paisagens que retratam
as guerras, a degradação do homem, as referências do sujeito poético a um inevitável
apocalipse e até mesmo a necessidade de exorcizar o ser humano, já irremediavelmente
perdido. No entanto, o poeta reconhece e parece relevar as imperfeições humanas, em outros
momentos. Na verdade, são momentos que se alternam, assim como o temperamento do
homem. Retomamos então a mensagem contida no já comentado poema “A morte, o espaço,
a eternidade”: “Para emergir nascemos”, na qual o sujeito poético ratifica que vale a pena
viver, que nenhum ser humano há de ficar submerso nas profundidades do mundo infecto, já
que ele nasceu para o progresso e a ascensão.
Durante a pesquisa que gerou esse trabalho, avaliamos como cada poema encerra em
sua construção um olhar diferenciado de um sujeito, uma “metamorfose do ser em sua visão”,
(MERLEAU-PONTY, 1997, p. 264). Adquirimos, assim, elementos para observar de que
131
maneira o poeta, em sua “peregrinação”, interroga as paisagens e o modo como elas se
mostram, “tal qual a montanha se mostra ao pintor” (Idem, p. 264), e de que forma, com essa
imagem captada do objeto, ele nos dá seu testemunho. Ao tomarmos sua peregrinação como
um todo, temos nas mãos os registros da percepção de um sujeito que viu, sentiu e
testemunhou, positiva ou negativamente, as paisagens de um mundo imperfeito ou inacabado.
As grandes construções culturais da humanidade interiorizam-se no poeta, que
confraterniza com elas, meditando e expressando em poemas o processo magnífico que se
opera dentro dele: a fé na capacidade do homem de construir obras elevadas, como as do
pintor Vermeer; a fantástica construção arquitetônica que parece transcender o mundo físico,
que é a Catedral de Chartres, onde o poeta “faz as pazes” com a Europa, e por fim, de
acreditar nos seus sonhos, imortalizados em monumentos que representam a realização do
Imperador Adriano. As marcas deixadas pelo homem, de forma irrevogável, contam a sua
história, podendo-se ler nelas, através de seus vestígios, como era determinada cultura, ou o
que valorizavam em determinada época.
O olhar do poeta mostra-nos a sua maneira de ver o mundo, mas que pode ser limitada,
por não ser a única. Portanto, se nas múltiplas visões que o mundo oferece, está o poeta com
sua arte, a captá-las, cabe ao leitor interpretá-las, buscando sempre novas relações entre o
homem e a paisagem. Trinta e dois anos se passaram da morte de Jorge de Sena e sua
peregrinação pelo mundo não terminou, pelo menos simbolicamente: não podemos deixar de
mencionar que, em setembro de 2009, seus restos mortais foram trasladados da América para
Portugal. Finalmente, o homem que nasceu português, era naturalizado brasileiro e faleceu
nos Estados Unidos, ganha uma sepultura portuguesa. Não obstante, sua obra ainda se
encontra aberta, à espera de novas leituras, sob diferentes vieses, constituindo-se num campo
assaz fértil: loca infecta (lugares imperfeitos), homens ainda não terminados, caminho ainda
não todo percorrido... Ocorre-nos mais uma vez uma particularidade de Grande Sertão:
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Veredas, que não termina com um tradicional “Fim”, mas com um signo matemático que
representa o infinito: ∞, que, com referência ao tema que aqui abordamos, a peregrinação,
poderia ser comparado ao ciclo interminável da vida humana no mundo, que está
constantemente a se transformar.
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