Lucy de Jamaica Kincaid

Transcrição

Lucy de Jamaica Kincaid
A LITERATURA MIGRANTE DE LÍNGUA INGLESA NAS AMÉRICAS:
LUCY, DE JAMAICA KINCAID
Adriano Roberto Langa1
A imigração existe desde os tempos mais remotos, podendo ocorrer em razão de catástrofes naturais,
guerras, e outros fatores externos que contribuem para dificultar as condições sócio-econômicas, fazendo
com que certas comunidades se desloquem e se reorganizem socialmente em outras terras. No século XIX,
quando, com a constituição e consolidação dos estados-nação, cresce em importância a demarcação de
fronteiras e nasce a chamada “segurança nacional”, a imigração passa a ser tratada como um problema, e o
controle do fluxo migratório é alvo de mais cuidado e preocupação. No último quarto do século XX, o
sociólogo Emmanuel Wallerstein profetizava, em sua obra The Modern World System (1974), que os
cinqüenta anos vindouros testemunhariam grandes fluxos migratórios que mudariam drasticamente a
demografia mundial. A predição de Wallestein mostrou-se tão acurada que a intensidade dos movimentos
migratórios atuais acabou por subverter a tradicional distinção entre imigração, termo que apontava para o
deslocamento de alguns indivíduos, e migração, que designava o deslocamento o movimento de uma
população inteira de um território para outro. No primeiro caso, como distingue Humberto Eco, “os povos
podem pensar em manter os imigrantes em um gueto para que não se misturem com os nativos”; nos
segundo, “não há mais guetos e a mestiçagem é incontrolável” Na contemporaneidade, contudo, quando
“todo planeta está se tornando território de deslocamentos cruzados é muito difícil dizer se certos fenômenos
são de imigração ou migração (ECO, apud PORTO, 2005, p. 227). Atualmente, os estudos sobre (i) migração
e etnicidade nas sociedades industriais avançadas são de relevância crescente, porque nos ajudam a buscar
compreender as inter-relações entre fluxos migratórios internos e externos, visto que, muitas vezes, o êxodo
do campo para a cidade, em determinados países, freqüentemente leva ao cruzamento de fronteiras
internacionais.
Nas Américas a expressão “literaturas migrantes” designa a produção literária construída a partir da
perspectiva do (i)migrante, constituindo-se como uma prática concreta e crítica da desterritorialização (cf.
Nepveu, 1989, p. 21; Deleuze & Guattari, 1975; Garcia-Canclini, 1995). Situados em entre-lugares marcados
pela articulação de diferenças culturais, tais escritores encontram, nestes interstícios, a oportunidade de rever
o conceito fronteira, encarada como o “lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente” (PORTO. In:
1
Licenciatura em Letras – URI (em progresso). Bolsista PIIC/URI.
FIGUEIREDO, 2005, p. 228). No âmbito da produção migrante, o jogo de mão dupla, estabelecido pelos dois
lados em contato, torna evidente que nenhuma cultura pode absorver totalmente uma outra, nem se furtar às
transformações decorrentes de tal confronto. Daí decorre, em particular, o caráter transitório da cultura
(i)migrada que, pela impossibilidade de se manter inalterada no espaço Outro, pode fecundá-lo através de
trocas criativas, tão comuns em contextos diaspóricos.
Foi precisamente em situação diaspórica que tanto o termo “Literatura das Índias Ocidentais” ou
“Literatura Caribenha” como a produção literária originada nessa região começou a atingir grande força na
década de 1950, quando escritores caribenhos começaram a deixar seus territórios em busca de maior
visibilidade. A intelectualidade caribenha ainda hoje é caracterizada por intensa mobilidade; ontudo, tais
escritores costumam manter elos afetivos e imaginativos com seu território de origem.
No Caribe, cujas nações se formaram através da junção, em solo americano, de povos advindos da
Europa, África e Ásia, a produção literária a partir da ótica migrante tem sido uma constante. Freqüentemente
relacionados a essa literatura estão a tematização da velhice, infância, história étnica e/ou nacional, relação
com a (ex)metrópole muitas vezes, abordados sob o olhar saudosista ou inquiridor do migrante (MERAZ,
2007; DONNEL; WELSH, 1996). Lucy, romance de Jamaica Kincaid escrito sob a ótica migrante, aborda os
três últimos temas.
Percebe-se em Lucy que a protagonista homônima busca construir um espaço em seu território de
adoção, a América, o que é feito sob o ângulo estranhado da adolescente que compara sua nova ambiência
com a da terra de origem. Assim, o romance pode ser pensado como um romance de migração. Como
costuma acontecer nesse contexto, uma primeira dificuldade enfrentada é a decepção, motivada pela
diferença entre a pátria imaginada e a realidade de país de acolhida. A protagonista imigra impulsionada pelo
desejo de deixar seu pequeno quarto em sua terra natal, e de se mudar para uma América que povoava seus
pensamentos, cheia de construções, ruas e lindas pontes. Tais imagens são construídas com base nos livros
que estudara na escola; seu país, na qualidade de (ex) colônia britânica, adotava o sistema educacional
inglês, e os livros traziam uma visão bem distorcida da metrópole. Quando Lucy chega à América, tudo
estava lá: as pontes, as ruas e praças; porém parece-lhe que estas perdem o encanto que lhe despertavam
quando apenas imaginadas. Com isso, a repulsa pelo país que havia colonizado sua ilha e sugerido essa
imagem da América aumenta ainda mais. Passa, então, a se questionar se era realmente aquilo que desejara
ou esperara encontrar, e questiona-se sobre se teria sido realmente bom haver imigrado. Indaga-se também
se seria a única pessoa a experimentar a projeção da terra de acolhida como uma fixação fantasiosa (“a
fixture of fantasy”).
Frente ao desapontamento, sente-se muito infeliz e pensa em retornar à terra natal. Contudo, a
distância entre os Estados Unidos e a sua terra natal era enorme, não havendo possibilidade de retorno: “Eu
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me sentia muito infeliz. Olhei um mapa. Tinha todo um oceano entre eu e o lugar de onde vim, mas faria
alguma diferença se tivesse sido só uma xícara de chá de água? Eu não podia voltar mesmo”1 (KINCAID,
1990, p. 10).
Contudo, percebe-se que o sentimento da protagonista é profundamente ambíguo, pois deseja retornar
e ao mesmo tempo não quer fazê-lo, uma vez que tem receio de voltar a viver com sua mãe. Levando em
conta o longo percurso que representaria o retorno à terra natal, o desejo de não mais conviver com sua mãe
e a vontade de esquecer seu passado, Lucy conclui que, apesar da intensidade de seu desejo de retornar
seria uma ação precipitada e até mesmo impossível de ser realizada.
O que agrava a situação de Lucy é que, em contraste com o país natal, que compreendia
perfeitamente, desconhece como a América é em realidade, como funcionam seus costumes e modo de vida.
Com isso, imagina seu futuro cada vez mais negro, num crescente pessimismo: “Se eu tivesse que traçar um
quadro de meu futuro então, teria sido o de uma grande recorte cinza circundado de preto, mais preto, o mais
preto possível” (KINCAID, 1990, p. 7). Sente-se deslocada, como se não fosse ela mesma, e parece-lhe que
agora o mundo e o clima estavam contra ela, e tudo ao seu redor estava errado, até mesmo o ar, que lhe
parece frio mesmo quando o sol é quente. Avalia o clima, evidentemente, em relação à terra natal, Antígua,
onde até mesmo a brisa não é fresca. Julga, perplexa: “Estava tudo errado. O sol brilhava, mas o ar estava
frio. E era já o meio de Janeiro. Mas eu nao sabia que o sol podia brilhar e o ar continuar fio; ninguém jamais
tinha me ditto isso” (KINCAID, 1990, p. 5).
Lucy sente-se tão triste com o seu desapontamento que até mesmo Antígua, que a princípio lhe
parecia ser um lugar que não mais lhe interessava, passa a parecer melhor do que a fria América. Tem
saudade da previsibilidade do conhecido, do calor tropical:
Eu não estava mais numa região tropical, e essa compreensão invadiu minha vida como um jato de
água, dividindo terreno anteriormente seco e sólido, e criando dois bancos de areia, um dos quais
era o meu passado –– tão familiar e previsível que mesmo estando infeliz eu me sentia feliz só de
lembrá-lo –– e o outro, meu futuro, um espaço cinza, eu não mais estava numa região tropical, e
me sentia fria por fora e por dentro, e era a primeira vez que sentia essa sensação (KINCAID, 1990,
p. 5-6).
Lucy acaba por voltar atrás em suas convicções e não entende a si própria, pois o que sente é algo
profundamente estranho, já que passa a vida inteira querendo deixar sua terra e experimentar novos rumos e,
quando finalmente consegue, sente vontade de retornar ao seu antigo lar:
Eu tinha lido nos livros – de vez em quando, dependendo do conteúdo – sobre pessoas que sofriam
de saudade da pátria. Uma pessoa deixava um lugar que nem era tão bom assim e ia para um
outro lugar, um lugar muito melhor, e então tinha muita vontade de voltar para o lugar que nem era
tão bom. Como eu ficava impaciente com essas pessoas, pois eu sabia que eu mesma não estava
numa situação muito boa, e eu queria ir para outro lugar. Mas agora, eu também sentia que eu
queria voltar para o lugar de onde vim (KINCAID, 1990, p. 6).
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Porém, apesar das repentinas mudanças e da sua decepção inicial com os Estados Unidos, ao
escrever para sua família e os amigos, Lucy mascara o que está sentindo. Usa até de certo cinismo e
fingimento, ao afirmar que tudo em sua nova terra era maravilhoso, como se estivesse vivendo um conto de
fadas. Era necessário que pensassem que estava feliz e totalmente acostumada a seu novo mundo, para que
não se curvasse aos desejos da mãe, que várias vezes havia lhe solicitado voltar para casa.
Ao chegar à América, já tinha construído uma história vital, uma teia de relações sociais que tinham
contribuído para formar sua identidade. A partir do momento em que migra, enfrentando o desconhecido,
necessita criar um entre-lugar, ou seja, buscar uma nova rede de relacionamentos que lhe dêem a
possibilidade de se recriar como pessoa, um processo que muitas vezes se configura doloroso. Lucy apegase às memórias do passado a tal ponto que acaba dificultando a construção de seu espaço na América:
mesmo desejando abandonar as lembranças de sua terra, é incapaz de deixar de pensar nela, em sua família
e especialmente em sua mãe.
Tanto a América como sua patroa, Mariah, fazem-na lembrar de seu passado, e tecer comparações
entre a nova terra e Antígua. Lucy passa a viver um paralelo entre a sua vida no presente e sua vida no
passado. Tudo é comparado e, conseqüentemente, taxado como bom ou como ruim. O primeiro fator que se
constitui em foco comparativo é a família para qual trabalha, que compara com a sua, observando as
diferenças entre sua família de origem e a de Mariah. Um exemplo disto ocorre ao estarem sentados à mesa
para o jantar. Estavam todos felizes e até mesmo falando palavras nada apropriadas para esta hora, e tudo
era motivo para risos: “Eles diziam coisas tão bonitas um para o outro, e as crianças eram tão felizes. Eles
podiam deixar cair a comida do prato, ou nem mesmo comer, ou fazer rimas sobre o alimento terminando com
‘cheira mal`. ( KINCAID, 1990, p.13). Em seu lar em Antígua, caso Lucy se comportasse daquela maneira
seria punida severamente, uma vez que sua cultura era muito diferente da americana e não permitia esse
comportamento.
O fator ambiental é um outro elemento que faz com que a protagonista sinta-se deslocada em sua
nova terra. Percebendo as mudanças que ocorrem durante as estações, compara os Estados Unidos com
Antígua. A diferenciação é feita principalmente com relação ao fato de que em sua terra natal não havia as
quatro estações do ano bem definidas, como havia na terra de adoção. Na ilha de onde viera, o tempo todo
era verão e dificilmente chovia; a primavera era uma estação totalmente desconhecida, em contraste com a
América, onde essa estação é muito apreciada. Lucy chega mesmo a afirmar que estações bem definidas
exercem influência sobre a população: nesses lugares, as pessoas são mais felizes. Devido ao fato de ter
nascido em um lugar que possuía somente ma estação durante o ano, Lucy percebe a si mesmo como uma
pessoa sem disposição:
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Como a terra se inclina, se afastando do sol, e como isso causa as diferentes estações; embora eu
fosse bem pequena quando aprendi isso, notei que todas as pessoas prósperas (e, portanto,
certamente, felizes) moravam nas partes do mundo onde o ano-- todos os trezentos e sessenta e cinco
dias-- eram divididos em quatro estações distintas. Eu nasci e cresci em um lugar que não parecia ser
influenciado pela inclinação da Terra; tinha apenas uma estação –– ensolarada, sempre sujeita à seca.
E que efeito teve sobre mim crescer em tal lugar? Eu não tenho uma disposição ensolarada, e, no que
tange à felicidade real, venho sofrendo de longa seca (1990, p. 85).
No decorrer do romance, Lucy faz a transição de sua adolescência para a idade adulta, e acredita
que, deixando para trás de uma vez todas as lembranças de seu antigo lar, poderia se sentir melhor em seu
novo mundo. Pensa também que esta é uma necessidade, um pré-requisito para se tornar madura. Começa,
assim, sua dolorosa e quase solitária busca por uma nova identidade; deseja que esse período de transição
logo esteja concluído, que seu passado seja deixado para trás rapidamente, e que uma nova página comece
em sua vida. Contudo, não percebe que, apesar de sua vida ter tomado novos rumos, tudo segue seu curso
normal e a modificação será progressiva.
É exatamente por ser uma adolescente que sua permanência neste novo local torna-se ainda mais
complexa, pois além de estar longe de casa tem de buscar alguém que a ajude a aprender como lidar com
dificuldades e com os sentimentos novos que surgem nessa fase, quando muitas descobertas e
pensamentos, muitas vezes incompreensíveis e estranhos, afloram. Além disso, passa a viver num
cruzamento de culturas: sua própria herança cultural conflita com a de milhares de pessoas, especialmente
com a da família para quem trabalha, o que muitas vezes a deixa bastante perplexa e sem saber que rumo de
ação tomar. Passa, então, a viver em um lugar intermediário entre o passado e o presente. Vive no presente,
mas age pensando no passado. Lucy vivencia dois mundos: um que ela conhece muito bem e do qual não
gosta nem mesmo de ouvir falar, mas que insiste em acompanhá-la, e outro do qual ela pouco sabe, mas que
necessita conhecer para que possa nele sobreviver. Quem a ajuda a enfrentar este período é sua patroa,
Mariah, que, com a experiência que possui, sabe exatamente pelo que Lucy esta passando.
O que todo imigrante sonha é ser valorizado em sua terra de acolhida. Lucy encontra mais do que isto
em sua patroa, encontra um sentimento mútuo de amizade. Contudo, ainda assim a relação entre as duas é
bem complexa, e passa por algumas fases. Inicialmente, o sentimento é extremamente confuso, pois como
ela própria conclui, quando gostava de Mariah, era pelo fato de que ela lhe relembra sua mãe; quando não
gosta de Mariah, é também porque ela lhe lembra traços que não aprecia em sua mãe: “Quando eu amava
Mariah era por que ela me lembrava da minha mãe. Quando u não amava Mariah era por que ela me
lembrava da minha mãe” (1990, p. 58).
Cabe aqui lembrar que Lucy julga que esquecer sua mãe é condição indispensável para esquecer sua
terra. Contudo, com a progressiva aproximação entre Lucy e Mariah, esta última, cada vez mais, faz com que
relembre sua mãe. Mariah torna-se tão importante na vida de Lucy que passa a desenvolver o papel materno,
ajudando-a muito mais do que uma simples patroa, tratando-a como se fosse sua própria filha. Longe de
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casa, Lucy está iniciando sua vida sexual, e precisa de alguém com experiência que lhe ajude, dando-lhe
indicações de como deve prosseguir durante este novo conhecimento de si mesma. Mariah acaba sendo a
base do seu aprendizado e a fonte de conselhos para sua vida também nesta área.
Esse bom relacionamento entre elas reflete-se também no trabalho, pois apesar de ser uma
empregada, Lucy pode agora controlar sua própria vida, uma vez que Mariah lhe dá autonomia para fazer o
que quiser, desde que não atrapalhe seu rendimento no serviço ou venha a prejudicar suas filhas. Daí o
sentimento especial que Lucy veio a sentir por sua patroa, chegando a afirmar que: “Mariah era superior à
minha mãe, porque minha mãe nunca viria a ver que talvez minhas necessidades eram mais importantes que
os desejos dela” (1990, p.63).
Mariah deseja mostrar um novo mundo para Lucy, um lugar bonito que ela conhecia muito bem e do
qual ela gostaria que todas as pessoas passassem a gostar também, e com o mesmo entusiasmo. Isto se dá
no momento em que vai com as filhas para sua casa nos grandes lagos, levando Lucy com elas. Uma vez lá,
tenta transportar Lucy para lugares, esperanças e sonhos da sua própria infância: “Uma caminhada ao cair da
tarde no ar da primavera—aquilo era algo que ela realmente queria fazer comigo, para me mostrar a magia do
céu da primavera” (1990, p. 19).
Esse cenário constitui-se em lugar de memória para Mariah, já que a partir do momento em que se
depara novamente lá, passam a aflorar em sua mente várias lembranças de sua infância. Lugares de
memória, segundo Pierre Nora (1993), são os lugares em que a memória se depositou. Nascem da
percepção de que não há lembrança espontânea, e de que, portanto, há a necessidade de criar “arquivos”,
lugares materiais, funcionais ou simbólicos que ajudem a manter vivas as lembranças. Lucy é incapaz de
sentir-se comovida, de partilhar o sentimento entusiasmado de sua patroa, pois não havia em sua mente um
cruzamento de memória que a levasse a desfrutar esse compartilhamento, ou seja, a região dos lagos não
era um lugar de memória para ela. Percebe os grandes lagos como “her world” (“o mundo dela”), e precisa
esforçar-se para não parecer rude: “...sentada à beira do Grande Lago com uma mulher que queria me
mostrar seu mundo e esperava que eu gostasse dele também. Às vezes não há fuga, mas muitas vezes o
esforço de tentar dá bom resultado por um certo tempo” (1990, p.149).
Durante o tempo que passou na América Lucy experimentou muitas mudanças, tanto físicas como
psicológicas. Ao fim do romance, percebe que nada do que antecipara acaba se confirmando. Sua carreira de
enfermeira, que era seu grande sonho, não se torna realidade; deixa também de sentir o senso de obrigação
para com seus pais e respeito à lei e às convenções que antes a caracterizam. Acaba até por não respeitar o
período exato de um ano que devia trabalhar para Mariah. Embora seu exterior continuasse o mesmo, Lucy
percebe-se como se fosse uma estranha em sua própria pele:
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Eu não conhecia muito bem a pessoa que eu havia me tornado. Quer dizer, por fora tudo era familiar.
Meu cabelo era o mesmo, embora agora ele estivesse curto, rente à cabeça, e isso fizesse meu rosto
parecer redondo, e assim, pela primeira vez, eu alimentei a idéia de que eu podia ser mesmo bonita
(1990, p 133).
No entanto, Lucy sabe que mudanças físicas e emocionais são fatos normais para uma pessoa de
sua idade, e a cada dia sente que está mais madura, capaz de tomar decisões e de viver sua própria vida.
Cria então, um sentimento de vitória, pois ao menos alcança a autonomia que ela tanto desejava, e isto a
deixava profundamente feliz: “No dia seguinte, eu acordei em uma cama nova, e ela era minha. Eu a tinha
comprado com meu dinheiro. O telhado sobre a minha cabeça era meu, ou seja, enquanto eu pudesse me
dar ao luxo de pagar o aluguel dele” (1990, p.144).
A extensão de sua mudança é dimensionada, por exemplo, no episódio em que, ao encontrar em sua
gaveta alguns papéis legais, tais como passaporte e cartão de imigração, reflete que todos eles traziam tudo
sobre ela e ao mesmo tempo não traziam absolutamente nada, ou seja, mostravam-na como era perante as
outras pessoas, seus aspectos físicos, mas não como era sua interioridade. Como ela mesma declara,
mostravam que seu nome era Lucy, Lucy Josephine Potter, mas não eram capazes de mostrar o sentimento
de ódio que sentia por seu próprio nome:
Eu procurei dentro da gaveta e recuperei uma pequena pilha de documentos oficiais: meu passaporte,
meu cartão de imigração, a minha autorização para trabalhar, a certidão de nascimento, e uma cópia
do contrato de locação do apartamento. Esses documentos mostravam tudo sobre mim e, no entanto,
eles não mostravam nada sobre mim. Mostravam onde eu nasci. Mostravam que eu nasci no dia vinte
e cinco de maio de 1949. Mostravam minha altura. Mostravam que a minha pele e os olhos eram da
mesma cor, marrom, todavia, não diziam se as sombras eram idênticas. Esses documentos todos
diziam que meu nome era Lucy - Lucy Josephine Potter. Eu costumava odiar todos estes três nomes
(1990, p. 149).
No decorrer da narrativa, a protagonista afirma que passado é algo que não faz mais parte do
presente de alguém, que há simplesmente uma linha demarcatória que separa os fatos passados dos
presentes, e que não deixa conseqüências. Propõe a si mesma a idéia de que tudo que viveu não interfere
em sua vida, e as pessoas com quem conviveu ou as situações que viveu são fatos insignificantes agora:
Eu tinha começado a ver o passado como isto: existe uma linha, você pode desenhá-la por si próprio,
ou por vezes ela é desenhada para você; seja como for, lá está ele, seu passado, uma coleção de
pessoas que você costumava ser, e coisas que você costumava fazer. Seu passado é a pessoa que
você não é mais, as situações nas quais você não mais está (1990, p.137).
Contudo, depois de certo tempo sofrendo com o desejo de esquecer seu passado por completo,
começa a ser dar conta de que é realmente impossível se desvencilhar dele, que não existe a possibilidade
de simplesmente se passar uma borracha em tudo que se passou. Ela se conforma com o fato de que onde
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quer que vá, seu passado estará junto a ela, mesmo que não queira: tudo o que ela havia feito interferiu e
interfere de certa forma em seu presente.
Como se percebe, há uma clara evolução na protagonista, especialmente no que tange ao processo
de aceitação de si mesma e de seu passado. Lucy acreditava que o EUA era uma espécie de paraíso, o que
acabou não se confirmando; com a decepção tem que passar por um processo de recuperação, o qual
consegue com a ajuda de Mariah. Sua outra luta se refere à busca por uma nova identidade e sua
conseqüente briga com suas memórias, que tem de aceitar para que possa então conseguir viver em paz
com seu presente. Nota-se que Lucy não consegue cumprir aquilo a que se havia proposto, ou seja, relegar
seu passado a uma simples demarcação temporal na qual os fatos que aconteceram em sua terra natal em
seu passado não lhe causam nenhum efeito no presente. Cria a consciência de que, apesar de não mais
estar inserida nas ações do seu passado e situações de sua terra, já participou das mesmas e isto ninguém
conseguirá apagar, nem mesmo o tempo, nem a força de vontade. Lucy é a pessoa que é por que seu
passado foi vivido daquela forma e, portanto, está gravado em sua identidade. Lucy pode até mudar, como de
fato mudou, mas tudo que viveu de alguma forma terá que ficar marcado em sua vida. É, pois, somente a
partir da conscientização de que o passado não é uma linha demarcatória, mas um continuum, não aquilo que
demarca “a pessoa que... não mais [se] é”, mas o que alimenta aquela que nos tornamos, que finalmente se
encontra pronta para encarar de frente seu futuro e viver o que de bom sua nova terra pode lhe oferecer. Tal
conscientização se dá com a ajuda fundamental de Mariah, que faz com que ela perceba que não precisa
necessariamente ficar remoendo o passado como se não tivesse um presente e um futuro a viver: deve,
antes, aceitá-lo, o que equivale a aceitar-se. Somente então pode viver plenamente sua vida no presente.
Referências
<http://www.cwrl.utexas.edu/~bump/E388M2/students/meraz/thematic.html>. Acesso em: 20/10/2007.
DONNEL, Alison; WELSH, Sarah Lawson. The Routledge Reader in Caribbean Literature. London and New
York: Routledge, 1996.
KINCAID, Jamaica. Lucy. New York: Farrar, Straus e Giroux, 2002.
MERAZ, Cesar and Sharon. The thematic tradition in black British literature. Black British Literature, 2000.
Disponível em NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São
Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.
p. 225-260.
PORTO, Maria Bernadette; TORRES, Sonia. Literaturas migrantes. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org):
Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: Editora da UFJF. 2005.
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