xXI 84 - Morashá

Transcrição

xXI 84 - Morashá
ANO
xXI
edição
84
julho
2014
ANO XXI - edição 84
ANO XXI - Julho 2014 - nº84
julho 2014
CAPA
Imagem estilizada do quadro
“A Sinagoga”, óleo sobre tela,
Marc Chagall, 1917
ANO
xXI
edição
84
julho
2014
26-Jun-14 7:15:33 AM
Carta ao leitor
Tishá b´Av, o nono dia do mês hebraico de Menachem
Av, é o dia mais triste do calendário judaico – a data em
que foram destruídos ambos os Templos de Jerusalém.
Desde a queda do Segundo Templo, vários eventos
trágicos – tanto para o Povo Judeu como para o restante
da humanidade – ocorreram nessa data.
finanças, medicina também estão fora de proporção com
seu pequeno número. Têm feito uma luta maravilhosa no
mundo, em todas as épocas; e o têm feito com as mãos
atadas nas costas (...)”.
O nono dia de Av e as Três Semanas de Luto que o
precedem são dias de autorreflexão, em que devemos fazer
um exame de consciência, tanto individual como coletivo.
As palavras de Mark Twain reverberaram ao longo dos
séculos. O que ele escreveu a respeito do Povo Judeu
vale especialmente para a geração que sobreviveu ao
Holocausto, reconstituiu um Estado Judeu na Terra de
Israel e fez com que o judaísmo voltasse a florescer.
Contudo, o judaísmo não vê com bons olhos a tristeza.
Diz um ensinamento judaico que tudo que ocorre na vida
é para o bem e que devemos nos esforçar para enxergar a
luz. Mesmo em meio à escuridão. Qual, então, o aspecto
positivo da data mais triste do ano judaico?
“Somos a geração de Jó e de Jerusalém”, escreveu Elie
Wiesel. De fato, a geração do Holocausto sofreu mais
do que qualquer outra. Mas foi ela que liderou o retorno
a Israel e Jerusalém e reconstituiu um Estado Judeu na
Terra de Israel.
Tishá b’Av é também uma data que simboliza a
eternidade judaica. É a própria evidência de que, apesar
de todas as adversidades e tragédias que vivenciou, o Povo
Judeu não apenas sobreviveu, mas floresceu. Qualquer
pessoa que tivesse presenciado a queda do Segundo
Templo de Jerusalém, o poderio romano e a destruição
da pátria judaica, poderia apostar que o poderoso Império
Romano duraria para sempre e que o Povo de Israel
logo desapareceria da Terra. Ocorreu o inverso.
O Império Romano desapareceu, tendo sido relegado
aos livros de História. Já o Povo de Israel, apesar do
exílio, das perseguições, dos massacres, da assimilação
e do genocídio, permanece uma nação forte e vibrante.
Um povo que foi expulso de sua pátria há dois milênios,
a ela retornou, construiu um estado moderno e, em
66 anos, tornou-se um oásis de democracia, tecnologia e
progresso no Oriente Médio.
Tishá b’Av é o dia de Jó e de Jerusalém. Por um lado,
é a data mais difícil do calendário judaico. Por outro,
celebra a imortalidade do Povo Judeu. No nono dia de
Av, jejuamos, lamentamos e nos enlutamos – tanto pela
destruição da Casa de D’us como pelo exílio e sofrimento
de nosso povo. Mas Tishá b’Av contém uma centelha sutil,
mas muito poderosa: a constatação de que sobrevivemos
aos assírios, aos babilônios, aos romanos, aos inquisidores,
aos nazistas e a todos aqueles que lutaram, em vão, contra
a eternidade dos Filhos de Israel.
Mark Twain,um dos grandes escritores norte-americanos,
escreveu o seguinte a respeito dos judeus: “Se as
estatísticas estão corretas, os judeus constituem apenas
um por cento da raça humana (...). Adequadamente,
jamais se ouviria falar dos judeus; porém se fala, e sempre
se ouviu falar deles (...). Suas contribuições aos grandes
nomes do mundo na literatura, ciência, arte, música,
Há uma tradição que ensina que Tishá b’Av, o dia em que
caíram os dois Templos, será a data na qual o Terceiro
Templo será erguido. A partir de então, o nono dia de Av
deixará de ser o dia mais triste do calendário judaico e
passará a ser o mais feliz.
Esperamos que essa era de paz se inicie em breve, para o
Povo de Israel e para a humanidade toda.
TANACH
A Terra de Israel:
Pátria Eterna do Povo Judeu
“O Eterno D’us disse a Avram: ‘De onde você se encontra, olhe
para o norte e para o sul, para o leste e para o oeste. Eu darei
a você e aos descendentes, para sempre, toda a terra que você
está vendo... Agora vá e ande por esta terra, de norte a sul e
de leste a oeste, pois Eu a darei a você’” (Genesis 13:14-17).
o
primeiro comentário de Rashi sobre a
Torá merece a devida atenção.
“No princípio, D’us criou os céus e a
terra...” (Genesis, 1:1). “No princípio”:
Declarou Rabi Yitzhak: a Torá não deveria
ter começado por nenhum outro verso a
não ser: “Que este mês (Nissan) seja para vós o primeiro
dos meses do ano” (Êxodo, 12:2), que é a primeira mitzvá
que o Povo Judeu recebeu como mandamento. Qual
a razão, então, para a Torá iniciar o relato da Criação
com Bereshit? Porque – “Ele revelou a Seu povo o poder
de Seus feitos, para lhe conceder a herança das nações
(Salmos, 111:6). Pois caso os povos do mundo dissessem
a Israel, “Vocês são ladrões, pois tomaram pela força
as terras de sete nações (de Canaã)”, Israel poderia
responder-lhes: “A terra toda pertence ao Santo, Bendito
é Seu Nome. Ele a criou – e a deu àquele que a Seus
olhos Lhe pareceu apropriado. E Ele a deu a eles (as
nações de Canaã) por uma expressão de Sua vontade; e
Ele a retirou deles e a deu a nós por uma expressão de
Sua vontade”. Rashi
Rashi é o “pai de todos os comentaristas” e Genesis é
o primeiro dos cinco livros da Torá – a única obra de
autoria Divina conferida ao ser humano, transmitida
por D’us a Moshé no Monte Sinai. O fato de Rashi
iniciar seu comentário sobre a Torá da forma como o
faz é altamente significativo, pois ressalta a inestimável
importância da Terra de Israel – para o Criador do
Universo, para a Torá – que é a Sua Vontade e Sabedoria
– e para o Povo Judeu.
O que é intrigante sobre esse primeiro comentário é o seu
timing. Rashi viveu há quase mil anos: um milênio após
a destruição do Segundo Templo Sagrado de Jerusalém e
o subsequente exílio do Povo Judeu da Terra de Israel, e
quase um milênio antes da criação do moderno Estado de
Israel. Quando Rashi escreveu seu comentário, os judeus
já viviam no exílio há mil anos e não podiam retornar
à sua pátria legítima. Naquele então, o assim-chamado
Novo Mundo nem sequer havia sido “descoberto”. Seu
primeiro comentário, portanto, é um anacronismo – um
assunto que deixou de ser relevante mil anos antes de sua
vida – ou profético – uma questão que seria extremamente
relevante quase um milênio após seu falecimento. Como
Rashi viveu uma vida sobrenatural e sua obra foi guiada
pela Divina Providência, podemos seguramente pressupor
que suas palavras foram proféticas. De fato, seu primeiro
comentário sobre a Torá é hoje mais relevante do que
nunca.
Posse da Terra
Um judeu que crê na Torá e um cristão que acredita na
Bíblia Cristã não necessitam de convencimento de que a
Terra de Israel é a pátria do Povo Judeu. Se há um tema
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Campo de flores no deserto do Negev
três vezes ao dia, para que D’us nos tire do exílio
e nos leve de volta à Terra de Israel. Ao término de cada
evento judaico significativo, como Yom Kipur e o Seder de
Pessach, proclamamos: “No ano próximo em Jerusalém”
– Bashaná haba’á b’Yerushalaim”, para nos recordar que
a vida judaica e o cumprimento de seus preceitos não
estão completos se estivermos fora de Eretz Israel e se
o Templo continuar em ruínas. Durante dois mil anos,
nem um dia sequer transcorreu em que o Povo Judeu se
tivesse esquecido da Terra de Israel ou tivesse renegado
seu direito à mesma.
que ecoa ao longo de todo o Tanach – a Torá, os Nevi’im
(os Profetas) e os Ketuvim (os Escritos), é o fato de que
a Terra de Israel é o presente eterno de D’us ao Povo
Judeu. Na Torá, vemos que D’us repetidamente reafirma
essa promessa a nossos Patriarcas e a Moshé, e lemos
sobre o Êxodo do Povo Judeu do Egito e sua jornada
através do deserto a caminho da Terra Prometida. Os
Nevi’im relatam como o Povo Judeu conquistou a Terra
e lá estabeleceu um país. Os Livros de Josué e dos Juízes
detalham as guerras travadas e vencidas. O Livro de
Samuel relata que o Rei David fundou e deu o nome
à cidade de Jerusalém, que estabeleceu como a capital
de Israel, e onde reinou por 33 anos. O Livro dos Reis
narra que o Rei Salomão, filho do Rei David, construiu
o Templo Sagrado de Jerusalém, e que a Terra de Israel
foi dividida em dois reinos – o Reino de Israel (Malchut
Israel) e o Reino da Judeia (Malchut Yehudá).
Historicamente é indiscutível que houve um Estado
Judeu na Terra de Israel durante mais de mil anos e que
a cidade de Jerusalém foi fundada e nomeada pelo maior
dos reis judeus, David. Outrossim, é inegável que a Terra
de Israel é um dos pilares do Judaísmo. É verdade que
continuamos judeus mesmo tendo vivido no exílio por
dois milênios, mas muitos dos mandamentos da Torá não
podem ser cumpridos se a Terra de Israel não estiver sob
soberania judaica. Por essa razão, nos últimos dois mil
anos, os judeus, em todo o mundo, oram, no mínimo,
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A alegação de que o Povo Judeu retornou a
Eretz Israel em virtude do Holocausto ou que o
Movimento Sionista influenciou os judeus a retornarem
à sua Pátria ancestral, portanto, é um absurdo. Durante
dois mil anos, dia após dia, temos ansiado pelo retorno
à nossa Terra e orado a D’us para permitir que tal
acontecimento ocorra. Fomos exilados de nossa
Terra não por opção, mas porque foi conquistada por
nações estrangeiras, que exterminaram milhões de
judeus e escravizaram e exilaram a grande maioria
dos sobreviventes. Através dos séculos, muitos judeus
tentaram retornar à sua Pátria, mas foram impedidos
pelas nações que a ocupavam. É importante observar que
todo judeu que crê na Torá não duvida que a Terra de
Israel seja nossa herança eterna. A diferença entre
os judeus que apoiam o Estado de Israel e aqueles que
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não o fazem não é que os judeus antissionistas negam
nosso direito à Terra de Israel, mas apenas acreditam que
um Estado Judeu somente deveria ser estabelecido após
a vinda do Mashiach. Mas, nenhum judeu que acredite
na Torá pode negar que Eretz Israel é a herança eterna do
Povo Judeu.
A presença judaica na Terra de Israel também é um
dos pilares do Cristianismo, pois Jesus foi um judeu
que vivia na Judeia, assim como os demais fundadores
do Cristianismo. Não surpreende, portanto, o fato de
milhões de cristãos de todo o mundo – não apenas os
evangélicos, mas também os católicos – serem ardorosos
defensores do Estado de Israel.
O Cristianismo se originou na Terra de Israel e seus
seguidores creem que um dos pré-requisitos da Redenção
Messiânica seja o retorno do Povo Judeu à Terra de
Israel.Como veremos abaixo, o comentário de Rashi não
se dirige a judeus e a cristãos que acreditam na Bíblia –
estes não necessitam de serem convencidos – mas àqueles
que questionam o direito dos judeus à Terra de Israel.
Rashi ensinou aos judeus e aos nossos aliados cristãos
a responder àqueles que desejavam – e que D’us não o
permita – apagar a presença judaica da Terra de Israel.
Para se entender o comentário de Rashi e sua profunda
relevância para os nossos dias, precisamos definir
adequadamente certos conceitos históricos e geopolíticos.
rio jordão
O “Testamento de Adão e Eva”
e a posse da terra
A quem pertence o mundo? A D’us ou aos homens?
Quem estipula os limites territoriais dos países? Será
a Organização das Nações Unidas – um organismo
fundado apenas em 1945, cujo Conselho de Segurança é
controlado pelas potências mundiais e cuja Assembleia
Geral é composta praticamente por países que não são
democráticos e que não respeitam os direitos humanos?
Questões de posse territorial são muito complexas e
controversas porque o mundo não foi criado com linhas
divisórias. A humanidade nunca chegou a um acordo
sobre como dividir o mundo.
Um incidente histórico envolvendo o Brasil serve
de excelente exemplo de quão complexos os direitos
territoriais podem ser. Nos idos de 1500, quando
Espanha e Portugal “descobriram” o Novo Mundo,
dividiram-no por meio do Tratado de Tordesilhas. Mas,
já por volta de 1504, os franceses marcavam sua presença
no litoral da América Portuguesa, por duas razões: eles,
também, estavam interessados no pau-brasil,
mas, o mais importante, eles desejavam desafiar a
política de Mare Clausum (“Mar Fechado”) acertada entre
Portugal e Espanha pelo Tratado de Tordesilhas.
O rei da França, Francisco I, insistia no “direito de
navegar no mar de todos”. Os portugueses sentiram
que suas possessões territoriais recém-adquiridas
estavam sendo ameaçadas pelos franceses. O rei de
Portugal, D. João III, queixou-se à sua contraparte
francesa, que lhe replicou: “Gostaria muito de ver o
testamento de Adão e Eva dividindo as terras do
Novo Mundo entre Portugal e Espanha”. Com
tal declaração, o rei francês expressava seu não
reconhecimento do Tratado de Tordesilhas. Afinal,
quem ou o que determinara que esses territórios
pertenciam à Espanha e Portugal? Por que teriam esses
dois países mais direito ao Novo Mundo do
que as demais nações europeias? A Coroa portuguesa,
percebendo que corria risco de perder a posse dos
recém-descobertos territórios para outras nações,
decidiu ocupar o Brasil. Percebeu que se não ocupasse o
país e o desenvolvesse, os franceses certamente o fariam.
Esse episódio histórico é extremamente revelador.
A monarquia francesa estava certa: em nenhum lugar
no “Testamento de Adão e Eva” (o Livro de Genesis,
que narra a Criação Divina do mundo) consta que o
Novo Mundo pertencia aos espanhóis e portugueses.
Ademais, que autoridade estabeleceu e legitimou o
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mapa desenhado por abraham bar yaaqov para uma hagadá, impressa em amsterdã entre 1695 e 1696, foi um dos primeiros
exclusivamente em hebraico. a rota do êxodo e a subdivisão das tribos de israel são claramente indicadas
milhares de anos, mas nunca construíram um país.
Nunca houve governo central nem jurisdição central.
Os ingleses não invadiram um país e o dominaram: não
havia país constituído. Ademais, pode-se argumentar que
o território foi adquirido pela guerra e não por roubo, pois
as tribos nativas do Novo Mundo haviam conquistado os
territórios de outras tribos. Os ingleses fizeram com as
tribos indígenas o que estas faziam umas com as outras.
Pode-se, então, argumentar que conquista e ocupação de
território são formas legítimas de uma nação adquirir um
território. Pertenceriam, então, os Estados Unidos à
Grã-Bretanha, que lutou com muita garra para conquistar
e ocupar o território e estabelecer as bases do país?
Tratado de Tordesilhas? Portugal alegava que as terras
recém-descobertas lhe pertenciam, mas se não se tivesse
apressado em habitá-las e as desenvolver em um país,
arriscava perdê-las aos franceses.
A propriedade territorial talvez seja uma das questões
geopolíticas mais complexas porque são inúmeros os
critérios que podem ser utilizados para determinar
quais territórios pertencem a que países. Com efeito,
qual deveria ser o principal critério para decidir a quem
pertence uma terra? A seus habitantes originais, àqueles
que a habitam por mais tempo, àqueles que lutaram e a
conquistaram ou àqueles que a desenvolveram?
Evidentemente, a maioria dos americanos não
acreditam que estejam vivendo em território roubado
e que devam abandonar o país e devolvê-lo aos
descendentes das populações nativas daquela terra. E,
apesar de o país ter começado como colônia inglesa, os
americanos achariam ridícula a ideia de que seu país
pertence à Inglaterra. Afinal, os americanos deram
tudo de si para construir uma nação. Declararam a
independência da Grã-Bretanha e lutaram uma guerra
longa e difícil para obter sua liberdade. Cultivaram a
terra e construíram suas instituições. Redigiram uma
Constituição e criaram um código de leis e sistema
jurídico. Construíram fazendas e fábricas, estradas e
serviços públicos, casas e edifícios, escolas e hospitais.
Adotaram uma bandeira e compuseram um hino, criaram
uma moeda nacional, ergueram um sistema de governo
e foram atrás, com sucesso, do reconhecimento de outros
países.
Falemos dos Estados Unidos, como exemplo. Antes
da chegada dos europeus ao que hoje é o território
americano, milhões de pessoas, a “população nativa”,
habitava aquela terra. Os europeus exterminaram quase
todos – milhões de pessoas – ativa ou passivamente. Os
poucos que sobreviveram foram expulsos de sua terra e
submetidos às leis do novo país estabelecido onde eles
e seus ancestrais viviam há milhares de anos. Será que
esse fato histórico indiscutível significa que os Estados
Unidos pertencem à população nativa daquela terra?
Serão os Estados Unidos um país ocupado? Será o
governo americano ilegítimo? Se a população nativa dos
Estados Unidos exigisse suas terras de volta, teria direito
a recebê-las?
Pode-se argumentar, contudo, que os habitantes nativos
da América do Norte viviam no território, mas não
eram seus legítimos proprietários. Eles lá habitavam há
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TANACH
A Cidadela de David foi construída no período hasmoneu
A população nativa pode ter habitado nesse território
antes dos americanos, e os ingleses podem ter
estabelecido as bases do país, mas os cidadãos dos
Estados Unidos da América construíram um país
praticamente do zero. A maioria das pessoas concorda,
pois, que o país é legítimo e pertence ao povo americano.
Os direitos religiosos e históricos do
Povo Judeu à Terra de Israel
À luz dos conceitos geopolíticos acima discutidos,
podemos começar a apreciar o primeiro comentário de
Rashi sobre a Torá.
Acerca do Tratado de Tordesilhas, o monarca francês
estava certo em sua resposta ao rei de Portugal: em
nenhum lugar no Livro de Genesis – o “Testamento
de Adão e Eva” – consta que o Novo Mundo pertencia
exclusivamente à Espanha e Portugal. Não encontramos
no Livro de Genesis ou em nenhum outro livro da Torá
ou da Bíblia Cristã que os Estados Unidos pertencem
à população nativa do território, aos ingleses ou aos
americanos. Em nenhum lugar está escrito que a
Crimeia pertence à Rússia ou à Ucrânia. Isso se aplica a
todos os países. Há apenas uma exceção – Israel.
O “Testamento de Adão e Eva” bem como o
restante do Tanach e da Bíblia Cristã afirmam explícita
e inequivocamente que a Terra de Israel pertence ao
Povo Judeu, tendo-lhe sido legada como herança por
Aquele que criou e detém todo o Universo. Essa verdade
foi eloquentemente expressa pelo Arcebispo de Viena,
Cardeal Christoph Schönborn, em 2005: “Uma única
vez na história humana D’us escolheu um país como
legado e o ofertou a Seu povo escolhido”. O Cardeal
declarou também que a obrigação que recaía sobre os
judeus de viverem na Terra de Israel continuava válida até
os dias de hoje. O primeiro comentário de Rashi sobre
a Torá é dirigido a todos que alegam crer na Bíblia, mas
que, no entanto, questionam o direito do Povo Judeu à
Terra de Israel. Por meio de seu comentário, Rashi lhes
diz: se vocês creem em D’us e na Torá (ou na Bíblia
Cristã), devem concordar que a Terra de Israel é a herança
eterna do Povo Judeu. Pois o Livro de Genesis nos diz
que D’us criou os Céus e a Terra – e, portanto, toda a
terra Lhe pertence, não ao homem –, e como detentor de
todo o mundo, Ele tem o direito de dá-la a quem quiser.
A Terra de Israel pertence ao Povo Judeu porque seu
Verdadeiro Proprietário a deu como legado a esse povo.
Esse comentário de Rashi é a resposta que o rei português
não pôde dar ao rei francês acerca do Brasil, mas que os
judeus podem dar a seus antagonistas quando se trata de
Israel: sim, está escrito no “Testamento de Adão e Eva”
que a Terra de Israel pertence ao Povo Judeu.
Mas, e aqueles que não creem no Tanach ou na
Bíblia Cristã ou não acreditam que política e religião
deveriam se misturar? Nossa abordagem em relação a
tais pessoas é perguntar-lhes: a quem pertence a terra?
A seus habitantes originais, àqueles que a conquistaram
por meio de guerras e ocupação, ou àqueles que nela
ergueram um estado? Independentemente da resposta,
a conclusão será que a Terra de Israel pertence ao Povo
Judeu. Pois nós, judeus, somos os habitantes nativos
dessa Terra. Por outro lado, nós a conquistamos – não
uma vez apenas, mas duas. E nela construímos um país
judaico por duas vezes – uma vez na época do Tanach,
e, novamente, há 66 anos, com a criação do moderno
Estado de Israel.
Os judeus são a população nativa da Terra de Israel.
Havia milhões de judeus que viviam em um próspero
reino judeu – de fato, dois reinos – Israel e Yehudá –
milhares de anos antes do surgimento do Cristianismo
e do Islamismo. Isso sem falar que quase todos os
países que hoje constituem as Nações Unidas nem
sequer existiam. Assim como as populações nativas
da América, também nós fomos massacrados por
invasores estrangeiros, que mataram milhões de judeus,
escravizaram e exilaram a maioria dos sobreviventes
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e destruíram nossas cidades e nosso Templo Sagrado.
Durante milhares de anos, nós, judeus, sonhamos por
nosso retorno ao nosso Lar. Nunca deixamos de ansiar
pelo retorno à Terra de Israel e particularmente à
Jerusalém. Através dos séculos, sempre que possível, os
judeus retornaram à sua Pátria. Mas, ao se estabelecer
uma analogia com a fundação dos Estados Unidos,
os judeus podem ser comparados não apenas com
as tribos nativas, mas com os colonizadores ingleses
e com os cidadãos americanos. Como os ingleses,
nós conquistamos o território – primeiro na época
de Yehoshua ( Josué) e, novamente, nas guerras que
o Estado de Israel moderno teve que lutar contra os
países vizinhos que almejavam destruí-lo. Finalmente,
como os americanos, expulsamos os colonizadores que
ocupavam nossa terra (ironicamente em ambos os casos,
os ingleses), declaramos a independência e construímos
um belo país.
à Terra de Israel como uma nação preparada para fazer
o que fosse necessário para erguer um país em um
território onde nenhum estado fora estabelecido desde a
queda do Reino de Yehudá. Após quase dois milênios, a
terra do Povo Judeu se tornou novamente um país – um
estado independente – e, Jerusalém, novamente a capital
de um país.
A transformação espiritual da Terra
Os argumentos acima apresentados – religiosos,
históricos e geopolíticos – são refutações claras a
qualquer alegação de que o Povo Judeu não tem direito
à Terra de Israel. O Estado de Israel é um dos poucos
países no mundo cuja legitimidade não pode ser refutada.
Contudo, nenhum outro país tem que lutar por seu
direito à existência como Israel. Além de lutar contra
países que querem destruí-lo fisicamente, Israel tem de
justificar sua identidade judaica e seu direito à terra que
é sua. Por que Israel, entre todos os países, é acusado de
roubo – de se apossar de território que não lhe pertence?
Por que essa acusação é levantada contra Israel – e não
contra países da Europa, Ásia e todos os países que foram
fundados nas Américas? O primeiro comentário de Rashi
sobre a Torá nos dá essa resposta.
O Povo Judeu na Terra de Israel transformou o deserto
em um pomar, construiu a única democracia do
Oriente Médio e desenvolveu as mais bem treinadas
forças armadas no mundo. O Estado do Povo Judeu
desenvolveu um dos melhores sistemas educacionais
do mundo, provê atendimento de saúde gratuito para
todos os seus cidadãos, judeus ou não. O Estado de
Israel também construiu uma economia sólida e estável
e conquistou não apenas reconhecimento internacional,
mas também a admiração de países em todo o mundo,
que se voltam a Israel em busca de auxílio em questões
tecnológicas, médicas, de defesa e na luta contra o
terrorismo.
É fato que os judeus apenas se tornaram maioria na Terra
de Israel após o Holocausto. Isso porque as potências que
a ocupavam apenas permitiam que um número muito
limitado de judeus fizesse aliá. Na verdade, se os ingleses
não tivessem imposto o Livro Branco, milhões de judeus
teriam ido a Eretz Israel e o Holocausto não teria custado
a vida de quase sete milhões de judeus.
É um fato histórico e incontestável que havia um antigo
país judeu na Terra de Israel. Mas o fato de que nós
éramos os habitantes originais daquela terra e que fomos
expulsos de nossa pátria foi ignorado pelo mundo por
quase dois mil anos. Como nossas legítimas alegações e
reivindicações foram ignoradas – e tiveram consequências
catastróficas –, tivemos que retornar ao nosso Lar
não apenas como seu povo nativo, mas também como
guerreiros – prontos para resgatar nossa Pátria – e como
os construtores de um novo estado. Os judeus retornaram
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A proibição contra roubo é um dos sete mandamentos
que se aplicam a todos os seres humanos – a todos os
descendentes de Noé. Se a conquista territorial por meio
da guerra é sinônimo de roubo, por que não encontramos
em nenhum lugar na narrativa bíblica menção à punição
Divina a uma nação por conquistar a terra (e seus
habitantes) de outro povo? É claro que a conquista
militar não está incluída na definição de roubo segundo a
Torá (V. Shulchan Aruch HaRav, 649:10).
No entanto, a conquista da Terra Prometida pelos judeus
e sua transferência de posse dos cananeus, nação que
originalmente a habitava e que já não existe, para o Povo
Judeu constituiu uma mudança muito mais profunda e
de longo alcance do que qualquer outra transferência de
terra por conquista. Quando o Povo Judeu conquistou a
Terra que D’us lhes legara, modificou a própria essência
da Terra. O potencial espiritual da Terra Prometida se
tornou realidade – passando por uma transformação:
tornou-se Eretz Israel, a Terra do Povo Judeu – para todo
o sempre. Nunca mais essa terra poderia essencialmente
pertencer a qualquer outro povo. Como está escrito
no Livro de Levítico (26:32), “E eu assolarei a terra, e
se espantarão disso os vossos inimigos que habitarem
nela”, o que significa que nenhuma outra nação poderá
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TANACH
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1. Vista aérea da Cidade de David e, ao norte, o Monte do Templo, Jerusalém 2. Nos restos de um jarro na Cidade de David uma
inscrição: “Jerusalém”, 4º seculo a.E.C. 3. Moedas datadas da época da Grande Revolta encontradas em Silwan, em Jerusalém
viver nela de forma pacífica e bem sucedida. A terra
não pode, em tempo e forma alguma, ser removida de
seu relacionamento intrínseco com o Povo Judeu. Por
essa razão, mesmo em nosso exílio, quando “estivemos
exilados de nosso país, e afastados de nossa terra”, ainda
nos referíamos a ela como “nosso país” e “nossa terra”.
Essa é a razão mais profunda, espiritual, para tantos países
odiarem o Estado de Israel – para sermos acusados de nos
termos apossado da Terra e para que as Nações Unidas
condenem Israel mais do que a qualquer outro país. Os
inimigos do Povo Judeu se ressentem de Israel pelo fato
de alegarem que não tínhamos o direito de conquistar e
transformar a essência da Terra Prometida, impedindo
permanentemente as outras nações de dela se apossarem.
Para os nossos antagonistas, essa transformação constitui
um ato de roubo, de apropriação indébita.
Não precisamos nos intimidar com tais acusações. Rashi
nos ensinou muito bem como responder a elas: “Toda a
terra pertence ao Santo dos Santos, Bendito Seja; Ele a
criou”. Em outras palavras, a Terra de Israel é a herança
eterna do Povo Judeu porque D’us assim o decidiu.
Se alguém não estiver satisfeito com essa situação, as
reclamações devem ser dirigidas ao Criador, Dono dos
Céus e da Terra. Muitas pessoas podem achar essa linha
de argumentação absurda. Podem não acreditar ou se
importar com o que dizem a Torá ou Rashi, e podem
achar que essa explicação espiritual é pouco convincente
para tanto sentimento anti-israelense. Nossa resposta a
tais céticos é que o fenômeno da transformação espiritual
da Terra de Israel foi corroborado pela História: desde
quando o Povo Judeu foi expulso da Terra de Israel até
quando para lá retornou – quase dois mil anos depois –
aquele território nunca se tornou um país independente.
Foi conquistado muitas vezes pelas potências mundiais,
mas nunca se tornou o país-sede de outra nação. A Terra
de Israel somente foi um estado independente quando
foi o país do Povo Judeu: durante templos Bíblicos, como
detalha o Tanach, e desde o estabelecimento do Estado
de Israel.
Quanto a Jerusalém, a cidade somente foi capital de dois
países – do Israel antigo e do Israel moderno. Vemos o
mundo proclamar, hoje, seu amor por Jerusalém – muitos
querem internacionalizar a cidade – mas, estranhamente,
nenhum país que a tenha conquistado a fez sua capital.
Os líderes muçulmanos alegam que a cidade é sagrada
para o Islã e, contudo, nem o Império Otomano nem a
Jordânia a fizeram sua capital enquanto a cidade esteve
em seu poder. Consideremos: Amã não tem significado
para o Islã e, mesmo assim, quando a Jordânia conquistou
a metade de Jerusalém na Guerra de 1948, não transferiu
sua capital de Amã para Jerusalém. O mesmo se aplica a
todos os seus demais conquistadores: o Vaticano organizou
as Cruzadas para conquistar Jerusalém, mas nunca a fez
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REVISTA MORASHÁ I 84
1
2
3
1. Vista aérea de Cesaréia 2. Vista aérea da cidade antiga de Cesaréia e do anfiteatro romano 3. Do Palácio de Herodes,
no extremo norte de Massada, uma vista privilegiada do Mar Morto
sua capital; preferiu permanecer em Roma, mesmo tendo
o Cristianismo se originado na Terra de Israel.
As palavras de Rashi foram, de fato, proféticas. Muitas
nações podem negar nosso direito à Terra de Israel, mas
como ela pertence a D’us – que a legou ao Povo Judeu
como uma herança eterna – e como a essência da terra foi
transformada em Eretz Israel, não há nada que algum ser
humano possa fazer para mudar essa realidade. A Terra
de Israel, em sua totalidade, pertence ao Povo Judeu, e
Jerusalém é sua capital, eterna e indivisível. Durante dois
mil anos, tanto a Terra Santa quanto a Cidade Santa
aguardaram pelo retorno de seus filhos. O desabrochar do
deserto e o crescimento de Jerusalém é uma indicação de
que a Terra e sua capital estão exultantes com a volta de
seus filhos ao lar.
Um ponto final e importante precisa ser esclarecido sobre
a Terra de Israel: suas fronteiras foram demarcadas por
Aquele que criou e detém o mundo todo. As fronteiras de
todos os demais países estão sujeitas a discussão: podem
ser conquistadas pela guerra, compradas ou renunciadas.
As de Israel, não. Pela lei Bíblica, os limites de Eretz
Israel não podem ser aumentados nem diminuídos.
Explicando: como muitas leis da Torá se aplicam apenas
à Terra de Israel, é imperativo que sejam estipuladas
corretamente. Isso significa que se o Povo Judeu fosse
conquistar territórios além das fronteiras da Terra de
Israel, o território conquistado não seria parte da Terra
13
Santa. Por outro lado, se o Povo Judeu fosse abrir mão de
partes da Terra de Israel, seria em vão: a terra não perderia
sua santidade nem receberia seus novos habitantes.
As decisões dos seres humanos – das Nações Unidas,
da União Europeia, dos Estados Unidos – mesmo do
Governo de Israel – não mudarão jamais essa realidade.
Aqueles que desejam desmembrar a Terra de Israel
– expulsando os judeus de sua legítima Pátria –
particularmente de Jerusalém e da Judeia e Samaria
(Yehudá v’Shomron) – estão na contramão da História.
Não terão êxito. Após dois mil anos de exílio, finalmente
voltamos para casa, para nunca mais sermos exilados.
Como o Primeiro Ministro Binyamin Netanyahu
declarou perante as Nações Unidas: “Em nossos dias,
as profecias Bíblicas estão-se realizando. Como disse o
profeta Amós: ‘Eles reconstruirão cidades arruinadas e
nelas habitarão. Eles plantarão vinhedos e beberão seu
vinho. Eles cultivarão jardins e comerão seu fruto. E eu
os fincarei sobre seu solo para jamais serem novamente
expulsos’. Senhoras e senhores, o Povo de Israel voltou
para casa para nunca mais ser expulso de lá”.
BIBLIOGRAFIA
The Lubavitcher Rebbe - Rabi Menachem Mendel Schneerson,
Studies in Rashi: The Land of Israel (Genesis 1:1) - by , Kehot
Publication Society
JULHO 2014
nossas festas
heróis judeus – presente
e passado
Tishá b´Av – o nono dia do mês hebraico de Menachem Av
– é o dia nacional de luto para o Povo Judeu. Nessa data,
jejuamos durante mais de 24 horas e choramos a queda
de Jerusalém e seu Templo Sagrado e os muitos outros
episódios trágicos na História Judaica, vários dos quais
ocorreram ou se iniciaram em Tishá b’Av.
C
omo tanto o primeiro
quanto o segundo
Templo Sagrado de
Jerusalém tombaram
em Tishá b’Av, esse dia
simboliza o exílio do Povo Judeu
da Terra de Israel e todos os
problemas e sofrimentos daí
decorrentes. Milhões de judeus foram
massacrados quando o antigo estado
judeu desmoronou e outros milhões
foram exterminados pouco antes do
moderno Estado Judeu renascer. No
meio tempo – quase 2.000 anos – o
Povo Judeu continuamente sofreu
horrores indescritíveis: discriminação
e demonização, expulsão em massa
e pogroms, conversões forçadas e
Inquisições – tudo isso culminando
no Holocausto.
Mesmo a fundação do Estado Judeu
não significou um fim ao violento
antissemitismo. Israel é o único
país no mundo cujos inimigos
conclamam à sua aniquilação. Além
de ter de lutar guerras por sua
sobrevivência, o Estado de Israel
sempre foi alvo de covardes atos
terroristas, que visam a assassinar
indiscriminadamente civis inocentes,
inclusive bebês e crianças, mulheres
e idosos. Mesmo após termos
retornado à nossa Pátria ancestral,
não encontramos paz.
Tishá b’Av é o dia mais triste no
calendário judaico, mas não é o
único dia de luto para o nosso povo.
Em Israel, o Yom HaShoá – Dia da
Recordação do Holocausto – ocorre
no dia 27 de Nissan. Nessa data,
recordamos os quase sete milhões
de judeus (não seis milhões, como
muitos pensam) exterminados pelos
vilões mais diabólicos da história da
humanidade. Alguns dias mais tarde,
no quarto dia do mês de Iyar, Israel
observa o Yom HaZikarón – Dia
da Recordação. Este ano, o Estado
Judeu recordou suas 23.169 vítimas
de guerra e terrorismo.
14
Tishá b’Av não é um dia apenas de
tristeza, mas também um dia em
que devemos fazer um balanço em
nossa consciência, um Cheshbon
Ha’Nefesh. Além de jejuar e observar
as restrições e costumes do dia,
relatamos os pecados e erros que
levaram à destruição e ao exílio – o
ódio infundado entre os judeus e
a guerra civil que eles enfrentaram
mesmo quando lutavam contra
Roma. No nono dia de Av, nós
também recordamos os pecados
que levaram à queda do Primeiro
Templo: idolatria, violência,
imoralidade e flagrante desrespeito
pela Torá.
O processo de Cheshbon
Ha’Nefesh é sempre benéfico:
sempre podemos melhorar, individual
e coletivamente. No entanto, uma
autocondenação excessiva não o é.
Não podemos culpar-nos por todas
as tragédias que se abateram sobre o
nosso povo. Não temos o direito de
REVISTA MORASHÁ i 84
julgar-nos e a outros judeus
de forma tão desfavorável. Nossos
antepassados que viveram no antigo
Israel podem ter feito escolhas
insensatas e erros graves – alguns
cometeram mesmo pecados
terríveis – mas nada justificou
2.000 anos de exílio e sofrimento.
Nada do que eles fizeram justifica
os pogroms, as humilhações e as
expulsões em massa, as fogueiras da
Inquisição, as câmaras de gás e os
diabólicos experimentos médicos
do Holocausto. Nada justifica o
assassinato de sete milhões de
pessoas, inclusive de quase dois
milhões de crianças, durante a Shoá.
As inúmeras perguntas acerca
da razão para os sofrimentos
desproporcionais do Povo Judeu não
são novidade, naturalmente. Estão
bem além do escopo deste artigo.
Talvez estejam além do escopo
de todas as palavras que já foram
pronunciadas por seres humanos.
A Torá, que é o projeto Divino
para o mundo e uma fonte pura
e não adulterada da Sabedoria
Divina, provê as respostas a todas as
perguntas, exceto a uma – a questão
do sofrimento humano. De fato, D’us
não nos forneceu respostas a tais
questões.
À luz do silêncio da Torá, como nós,
judeus, podemos lidar com
as questões levantadas por
Tishá b’Av? O que dizer a nossos
filhos quando eles nos perguntam
sobre o Holocausto? O que dizer
a nós mesmos? Como continuar a
ser um judeu que tem confiança
em D’us e orgulho de seu povo,
apesar dos dois milênios de
sofrimento?
A resposta não reside, como muitos
creem, na criação do Estado de Israel.
Os triunfos militares do Estado
Judeu não removem a dor inexorável
do Holocausto. É por isso que o país
inteiro para e observa dois minutos
de silêncio em Yom HaShoá e discute,
ano após ano, quais as lições que
devemos aprender do Holocausto.
Não podemos reescrever a História.
As palavras, por mais bonitas ou
inspiradoras que sejam, não podem
mudar o passado: elas servem
de pouco conforto para aqueles
que sofreram ou perderam entes
queridos. Só se pode mudar o
presente e o futuro. Há apenas uma
coisa que podemos fazer acerca do
passado: mudar a maneira como o
percebemos. Não podemos desfazer
as tragédias ocorridas em Tishá b’Av
ou as que ocorreram em virtude de
destruição de jerusalém pelos romanos comandados por tito, david roberts, 1850
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julho 2014
nossas festas
que estava enfermo. Este último,
preocupado com a segurança do
discípulo, volta-se para Rabi Chanina
e diz: “Chanina, meu irmão, não
sabes que dos Céus nos impuseram,
como governantes, esta nação
(Roma), que destruiu a Morada
de D’us, queimou Seu Santuário,
matou Seus filhos piedosos e fez com
que perecessem seus nobres, e esse
governante estrangeiro ainda vive...
E, no entanto, contaram-me que
você passa os dias dedicado ao estudo
da Torá, e realiza encontros públicos,
à luz do dia, para difundi-la, com
um rolo da Torá abertamente em seu
colo. Ficarei surpreso se eles não o
queimarem vivo, junto com o rolo da
Torá”.
Arco de Triunfo de Tito, Roma. Foi erguido no ano 81 E.C. em comemoração
à conquista de Jerusalém pelo imperador Tito Flávio.
Tishá b’Av, mas podemos perceber a
História Judaica de forma diferente.
Não podemos trazer de volta à
vida aqueles que morreram no
Holocausto, mas podemos vê-los sob
uma luz diferente.
Para manter nossa fé em D’us e nos
orgulharmos com nossa história e
herança, precisamos ver a História
Judaica sob diferentes lentes.
Precisamos entender que a história
de nosso povo é feita de heroísmo e
de martírio.
A história de Rabi
Chanina ben Teradyon
Um dos maiores Sábios da História
Judaica foi Rabi Chanina ben
Teradyon, sogro de Rabi Meir –
Rabi Meir Ba’al Haness (o Mestre
do Milagres). Rabi Chanina viveu
durante tempos muitos difíceis para
o Povo Judeu. O Império Romano,
que tinha ocupado a Terra de Israel e
destruído o segundo Templo Sagrado
de Jerusalém, desejava extirpar o
judaísmo da face da Terra mediante
a proibição, sob pena de morte, do
ensino da Torá. Apesar do decreto
romano, certos rabinos e líderes
judeus, Rabi Chanina ben Teradyon
entre eles, continuaram a estudar
e ensinar a Torá. Eles perceberam
– assim como o percebeu Roma –
que a Torá é o sangue vital do Povo
Judeu. Para difundir a Torá para o
maior número possível de judeus,
garantindo, assim, a sobrevivência de
seu povo, Rabi Chanina dava aulas
em público, apesar do perigo daí
decorrente.
O Talmud nos conta o seguinte
relato: Certa vez, Rabi Chanina ben
Teradyon fez uma visita a seu colega
e mestre, Rabi Yose ben Kisma,
16
Rabi Chanina ignora a advertência
de seu mestre. Faz, então, uma
pergunta a Rabi Yose ben Kisma,
cuja resposta devia ser óbvia: “Rebe,
merecerei um lugar no Mundo
Vindouro?”. A resposta de Rabi
Yose foi ainda mais desconcertante:
“Eu não sei”, disse. “Diga-me uma
ação positiva sua que justificasse o
seu mérito de receber um lugar no
Mundo Vindouro”.
Rabi Chanina conta a Rabi Yose
acerca de um ato de caridade que ele
realizou e, após ouvi-lo, Rabi Yose
lhe diz que ele terá, sim, seu lugar
assegurado no Mundo Vindouro.
Poucos dias depois, Rabi Yose ben
Kisma deixa este mundo. Ele era
um homem tão proeminente que
até mesmo os dignitários romanos
vão a seu funeral. Ao retornarem
do cortejo fúnebre, encontram
Rabi Chanina ensinando a Torá
em público, com um rolo da Torá
em seu colo. Enrolaram-no nesse
pergaminho da Torá e puseram
fogo nele. Para prolongar seu
sofrimento, os romanos trouxeram
tufos de algodão, molhados n’água,
REVISTA MORASHÁ i 84
colocando-os sobre seu coração,
para que ele morresse lentamente.
Enquanto o fogo cresce, os alunos
perguntam a Rabi Chanina: “Mestre,
o que vê?”. E ele responde: “O fogo
está consumindo o pergaminho em
branco da Torá, enquanto as letras
estão subindo aos Céus”.
Muitos comentários foram escritos
sobre essa enigmática passagem
talmúdica. Ela dá origem a muitas
perguntas. Como pôde Rabi Chanina
ben Teradyon, um Sábio que dedicou
e arriscou sua vida para ensinar e
difundir a Torá, duvidar que ele teria
um lugar no Mundo Vindouro?
Ainda mais perturbadora foi a
resposta de Rabi Yose, de que não
estava certo sobre o lugar de Rabi
Chanina no Olam Habá.
A resposta não é que eles eram
pessoas que duvidavam de seu valor.
A resposta é que para homens
da estirpe de Rabi Chanina ben
Teradyon, morrer pela Torá era um
privilégio e não um ato de sacrifício
que requeria a recompensa de um
lugar no Mundo Vindouro. Para
um judeu como ele, o ensinamento,
a divulgação e a preservação da
Torá eram atos supremos: ele iria
estudar e divulgar o judaísmo ainda
que arriscasse a sua vida. Ele estava
pronto a abrir mão de sua vida em
prol da Torá, independentemente
de receber como garantia uma
recompensa em sua vida futura.
Suas palavras finais a seus alunos
refletem sua atitude frente a vida e a
morte: a parte física do rolo da Torá
– o pergaminho – está queimando,
mas a parte espiritual – suas letras,
que transmitem santidade ao rolo
da Torá – estão subindo aos Céus,
retornando à Fonte de toda a
santidade. De modo semelhante,
Roma e os outros inimigos do Povo
Judeu podem queimar rolos de Torá
e destruir corpos judeus, mas não
conseguem tocar nossa alma e a luz
do Judaísmo – pois esta eles não
conseguem extinguir.
A história de Rabi Akiva
Ao longo de toda a História Judaica,
houve vários Sábios, que, como Rabi
Chanina ben Teradyon, abriram
mão de sua vida para assegurar a
eternidade do judaísmo. O mais
famoso deles foi Rabi Akiva.
O Talmud narra o seguinte: quando
Moshé subiu ao Monte Sinai para
receber a Torá, D’us lhe revelou os
feitos de Rabi Akiva, que iria viver
muitas gerações mais tarde. Após
ter uma visão da extraordinária
sabedoria e erudição desse Sábio,
Moshé perguntou a D’us:
“Mestre do Universo, tendo alguém
como ele, é a mim que entregas a Tua
Torá? Entrega-a através de
Rabi Akiva”. D’us lhe respondeu:
“Cala-te! Foi assim que decidi
e a ti não cabe opinar”. Moshé
então pergunta a D’us: “Mestre
do Universo, mostraste-me os
ensinamentos de Torá de Rabi Akiva,
agora mostra-me a sua recompensa”.
“Vira-te”, D’us diz a Moshé. Ele
assim o faz e o que vê o choca: ele
vê o corpo mutilado de Rabi Akiva,
após ser executado por Roma.
“Mestre do Universo!”, Moshé
protesta, “Esta é a Torá e esta é a sua
recompensa?!”. D’us lhe responde,
“Cala-te! Foi assim que decidi e a ti
não cabe opinar”.
Para apreciar quão significativa e
quão enigmática é essa passagem
do Talmud, precisamos entender
quem foi Rabi Akiva. Em toda a
História Judaica, ele foi o único a
ser comparado a Moshé Rabenu.
Segundo algumas opiniões, ele até
superou o nível espiritual do maior
profeta judeu de todos os tempos.
17
nem o judaísmo
nem o Povo Judeu
glorificam o martírio
e a morte. Valorizamos
a vida acima de quase
tudo. Grande parte
do destino de nosso
povo não foi
escolhido por nós.
Ruínas do Segundo Grande Templo
destruído no ano 70 E.C. quando
Jerusalém foi tomada pelos romanos
julho 2014
nossas festas
Fortaleza de Jerusalém, sem as muralhas, Torre de David, David Roberts, 1839
Rabi Akiva foi o maior mestre do
Talmud – pilar da Lei, Tradição e
Sabedoria Judaicas. Ademais, ele,
sozinho, salvou o judaísmo. Moshé
Rabenu trouxe a Torá dos Céus à
Terra, mas foi Rabi Akiva quem
assegurou que não fosse perdida. O
judaísmo existe hoje graças a Rabi
Akiva.
Como Rabi Chanina ben Teradyon,
Rabi Akiva também viveu na Terra
de Israel durante tempos muito
difíceis, quando o Império Romano
fez de tudo para extirpar o judaísmo
da face da Terra. Percebendo que
a Torá corria o risco de se perder,
Rabi Akiva organizou e sistematizou
seus ensinamentos para que fossem
adequadamente transmitidos de uma
geração a outra.
Ensinam nossos Sábios que
“Toda a Torá está de acordo com
os ensinamentos de Rabi Akiva”.
Isto porque graças ao seu trabalho
incessante em prol do judaísmo
e graças aos ensinamentos que
transmitiu a seus discípulos
principais – entre eles, Rabi Shimon
bar Yochai – autor do Zohar –
e Rabi Meir Ba’al HaNess –
o Mestre dos Milagres – a Torá não
se perdeu.
Por ter ensinado a Torá em público,
Rabi Akiva foi preso e encarcerado
pelas autoridades romanas, que o
sentenciaram à morte. O governador
romano na Terra de Israel não
se contentou com meramente
executar o maior Sábio judeu. Por
ter frustrado os malignos planos de
Roma, por ter salvo o judaísmo e,
assim, assegurado a sobrevivência do
Povo Judeu, Akiva seria torturado até
a morte. Roma escolheu para ele a
forma mais excruciante de execução:
ele seria rasgado, pedaço por pedaço,
até morrer, com rastelos de ferro.
Como Rabi Akiva reagiu à sua
morte? Protestou ao Mestre do
Universo, como Moshé havia feito
por ele?
18
Vejamos este relato talmúdico sobre
sua execução. Enquanto o carrasco
romano realizava a pavorosa execução
– e seu corpo era rasgado, em
pedaços – Rabi Akiva sorria – quase
rindo, mesmo. Ninguém entendia
o que se passava. O governador
romano, não acreditando no que via,
virou-se para ele e disse: “Você deve
ser um demônio! Não é possível que
um ser humano possa suportar tanto
sofrimento e fique sorrindo!”. Os
alunos de Akiva, chocados com o que
viam, perguntaram-lhe: “Rebe, o que
está acontecendo? Como pode sorrir
num momento destes?”.
Prestemos atenção às palavras finais
de Rabi Akiva – dirigidas tanto a
seus carrascos quanto a seus alunos.
“Este é o momento mais glorioso
de minha vida!”, declarou. “Todos
os dias, de manhã e à noite, recito
o Shemá: proclamo minha fé em
D’us, proclamo a unicidade de D’us,
proclamo como devemos amar a
D’us, assim como está escrito:
REVISTA MORASHÁ i 84
‘E amarás o Eterno, teu D’us, com
todo o teu coração, com toda a tua
alma e com toda a tua força’. Sempre
entendi a parte ‘com toda a tua alma’
como sendo ‘às custas de tua alma’,
e sempre me perguntei quando teria
a oportunidade de cumprir este
mandamento – sacrificar minha alma
em favor de D’us”.
“Hoje isso está acontecendo”, Rabi
Akiva concluiu. “Hoje estou sendo
morto por ser judeu. Hoje estou
sendo morto por minha fé em D’us
e por fortalecer esta fé entre os
demais. Não é, então, este, o grande
momento de minha vida – quando
posso renunciar à minha vida em
favor de D’us?”.
teste ainda mais difícil do que o de
Avraham e Itzhak.
Diz-se que “morre Al Kidush Hashem”
um judeu morto pelo simples fato
de ser judeu. Tal morte significa a
maior das elevações espirituais. No
entanto, nem o judaísmo nem o Povo
Judeu glorificam o martírio e a morte.
Valorizamos a vida acima de quase
tudo. Grande parte do destino de
nosso povo não foi escolhido por nós.
Não buscamos nem provocamos um
ataque a nosso povo e a nosso estilo de
vida. O Povo Judeu nunca constituiu
ameaça aos países onde viveu.
Uma nação de mártires
A grande maioria dos judeus
assassinados no Holocausto eram
pobres e religiosos. Não eram
ameaça para ninguém – política
ou economicamente, muito menos
em aspecto belicoso. Eles não
esperavam nem provocaram uma
confrontação com o mal. Mas, diz-se
que a verdadeira medida da força de
um povo é como eles se alçam para
dominar o momento quando
surge a confrontação. Apesar de
seu indescritível sofrimento,
o Povo Judeu manteve-se judeu
durante os 2.000 anos de sua
Diáspora, e, mais notadamente,
durante o Holocausto.
A história de Rabi Akiva não é
apenas a história de um único
homem, mas de uma nação. O maior
de nossos Sábios personificou seu
povo. Através de nossa história, mas
especialmente durante o Holocausto,
muitos caminharam para a morte
com o Shemá em seus lábios. Muitos
caminharam para as câmaras de gás
não apenas rezando, mas cantando.
No Holocausto, quase sete milhões
de judeus foram assassinados,
morreram Al Kidush Hashem – pela
santificação do Nome de D’us. Eles
pagaram o preço supremo por serem
judeus. Eles foram submetidos a um
Há inúmeras histórias de judeus
que deram sua vida para salvar a de
outros. Apesar de viverem à sombra
de seus carrascos, eles não perderam
a coragem nem a dignidade. Havia
judeus nos campos de morte que
colocavam diariamente os Tefilin,
que comiam Matzá em Pessach, que
acendiam velas de Shabat. Havia
judeus famintos – verdadeiros
esqueletos humanos – que se
recusavam a comer em Yom Kipur;
outros que abriam mão da ração
semanal para conseguir emprestado
um livro de orações, para poderem
recitar algumas rezas. Havia judeus
A seguir, Rabi Akiva recitou o verso
inicial do Shemá: “Escuta, ó Israel,
o Eterno é nosso D’us, o Eterno
é Um”, e sua alma ascendeu à
Eternidade.
Assim ensina o Talmud: no ponto
mais alto dos Céus reside a alma de
Rabi Akiva, bem como as almas de
todos os judeus de todas as gerações
que foram mortos pelo simples fato
de serem judeus.
19
que dançavam em Simchat Torá
enquanto eram conduzidos à morte,
o que levou seus carrascos nazistas
a comentarem, entre si, o que o
carrasco romano disse à Rabi Akiva:
“Não podem ser seres humanos.
É impossível que um ser humano
aguente tanto sofrimento e se alegre
desta forma...”
Durante o Holocausto, quando a
escuridão caía sobre o mundo e nosso
povo era consumido em chamas, os
Céus estavam lotados com milhões
de judeus que chegavam. Quando
pensamos naquela geração de judeus
– no que passaram e sobreviveram e
como foram capazes de reconstruir
o Povo Judeu e restabelecer a
Pátria Judaica na Terra de Israel e
revigorar o Judaísmo – torna-se claro
que a capacidade de nosso povo é
praticamente ilimitada.
A era do Holocausto foi uma era
de heróis e mártires judeus e eles se
alçaram mais alto do que as estrelas
– eles ascenderam à Eternidade.
Eles fizeram o impossível. Eles
conseguiram o impensável. E se
alguém se perguntar como o Estado
de Israel pôde vencer a Guerra da
Independência – como os judeus
de Israel venceram contra grandes
adversidades – foi porque eles não
lutaram sozinhos: lutaram ao lado de
uma legião Celestial de quase sete
milhões de judeus.
O Legado de Joseph
Trumpeldor
Através da História Judaica, muitos
judeus renunciaram à sua vida em
favor de D’us e do Judaísmo. Mas
sempre houve judeus que arriscaram
e até renunciaram à vida pelo Povo
Judeu e por nosso direito de viver
em liberdade e dignidade. Um dos
maiores mártires modernos do nosso
povo foi Joseph Trumpeldor.
julho 2014
nossas festas
Nascido em 1880, ele era um judeu
russo destemido – um socialista
ardente e precursor do sionismo –
que perdeu um braço no cerco de
Port Arthur durante a guerra russojaponesa. Trumpeldor mudou-se para
a Terra de Israel, tornando-se líder
da Legião Judaica – precursora das
Forças de Defesa de Israel. Em 1o de
março de 1920, centenas de árabes
atacaram o assentamento de Tel
Hai, na Alta Galileia. Trumpeldor
foi seriamente ferido na sangrenta
batalha que se seguiu. Quando
chegou um médico, era muito tarde.
Trumpeldor, ciente que estava prestes
a deixar este mundo, confortava o
médico e seus irmãos-em-armas
dizendo: “Ein davar, tov lamut be’ad
artzeinu” (Não faz mal, é bom morrer
por nossa terra).
As palavras finais de Joseph
Trumpeldor se tornaram o lema
oficioso do Estado de Israel. Mas
não visavam a promover a morte
para a Pátria. Ele estava dizendo
a seus irmãos-em-armas que não
chorassem pela forma de sua morte:
ele lhes reassegurava que aceitava
sua morte com bravura. Trumpeldor
entendeu que seu sacrifício
contribuiria, ao menos em parte, para
o restabelecimento de uma Pátria
judaica, e, portanto, para a salvação
do Povo Judeu. Em seus últimos
momentos de vida, esse herói judeu
percebeu que sua vida e sua morte
não tinham sido em vão: seu legado
contribuiria para a eternidade de seu
povo. De fato, ele foi saudado como
herói nacional por todos os lados
do espectro político antes e após a
criação do Estado Judeu.
abençoados por pertencer a uma
nação de heróis e mártires – do
passado e do presente. Neste último
Yom HaZikarón, o Primeiro Ministro
Binyamin Netanyahu fez uma
declaração sobre os 23.169 mártires
do Estado de Israel que se aplica
também a todos os judeus de todas
as gerações que morreram por serem
judeus. “Não estaríamos aqui se
não fosse pelo seu sacrifício. Não
estaríamos aqui não fosse por sua
disposição em entregar sua vida para
que pudéssemos estar aqui”. D’us
abençoe sua memória. D’us abençoe
o Povo Judeu, e D’us abençoe o
Estado de Israel.
Como Rabi Chanina ben Teradyon
e Rabi Akiva, Joseph Trumpeldor
teve uma morte famosa. Milhões de
judeus na Diáspora e mais de 20.000
judeus no Estado de Israel também
deram sua vida pelo judaísmo e
pelo seu povo, mas suas mortes não
foram famosas e seus nomes não são
encontrados no Talmud nem nos
livros-texto das escolas de Israel.
Tishá b’Av: O Dia da
Redenção
O tema do último Yom HaShoá em
Israel foi, “Toda pessoa tem um
nome”. De fato, cada um deles teve
seu nome. Eram filhos e filhas, pais
e mães, irmãos e irmãs, maridos e
mulheres, professores e amigos.
O fato de seus nomes não se terem
tornado famosos torna seu martírio
ainda mais significativo. Talvez não
saibamos seus nomes, mas jamais os
esqueceremos.
Joseph Trumpeldor
Neste Tishá b’Av, o Povo Judeu, a
mais antiga nação que vive na face da
Terra, se prostrará de luto e recitará
a Meguilat Eichá – as Lamentações
de Jeremias. Jejuaremos e rezaremos,
e, ao lembrarmos os sofrimentos
de nosso povo, lamentaremos e
choraremos – abertamente ou
em nosso coração. Mas ao fazêlo, também devemos sentir-nos
20
Agora concluiremos com uma
história do Talmud sobre Rabi
Akiva, que sempre insistiu que tudo
que D’us faz é para o bem e que foi
aquele que enfrentou sua morte com
júbilo e orações.
Após a destruição do segundo
Templo Sagrado, quatro Sábios –
Rabban Gamliel, Rabi Elazar ben
Azariá, Rabi Yeshoshua e Rabi Akiva
– estavam a caminho de Jerusalém.
Quando chegaram a Har HaTzofim
e viram a cidade de Jerusalém
destruída, rasgaram suas vestes em
sinal de luto. Chegando ao Monte do
Templo, viram uma raposa surgir do
local onde era o Kodesh HaKodashim.
Este era o local mais sagrado do
Templo, onde apenas o homem mais
santo de Israel, o Cohen Gadol, podia
entrar, e apenas no dia mais sagrado
do ano – Yom Kipur. Ao presenciar
essa cena, Rabban Gamliel, Rabi
Elazar e Rabi Yeshoshua começaram
a chorar, mas Rabi Akiva pôs-se a
sorrir. Eles então lhe disseram: “Por
que sorris?” Ao que ele respondeu:
“Por que estão a chorar?” E eles
disseram: “É um local sobre o qual
REVISTA MORASHÁ i 84
judeus no kotel hamaaravi. alexander bida, 1862
está escrito: ‘o não-Cohen que se
aproximar, morrerá’ (Números 1:51)
e agora ‘raposas vagueiam por lá’
(Lamentações 5:18). Não é para
chorarmos?”
Rabi Akiva replicou: “Por essa
exata razão, estou sorrindo. Pois
está escrito: ´Buscarei para Mim
testemunhas confiáveis, Uriah,
o Cohen, e Zechariahu ben
Yeverechiahu´ (Isaías 8:2). Qual a
ligação entre Uriah e Zechariah?
Uriah profetizou na época do
Primeiro Templo, enquanto
Zechariah o fez durante o Segundo
Templo. Por que, então, são
mencionados junto?”. Rabi Akiva,
então, explica: “Ao mencionar os dois
profetas junto, as Escrituras tornam
a profecia de Zechariah dependente
da de Uriah. Na profecia deste
último, está escrito: ‘Portanto, por
sua causa, Tzion será arado como um
campo’. Na profecia de Zechariah
está escrito: ‘Os idosos e as idosas
sentar-se-ão, novamente, nas ruas de
Jerusalém’.
Rabi Akiva conclui, então:
“Enquanto a profecia de Uriah não
tinha sido realizada, eu temia que
a de Zechariah tampouco o seria.
Agora que a de Uriah foi realizada
– e Jerusalém e o Monte de Templo
estão totalmente devastados – é
certo que a profecia de Zechariah – a
construção do Terceiro Templo –
será realizada”. Então os Sábios lhe
disseram: “Akiva, tu nos confortaste.
Akiva, tu nos confortaste”.
Há dois milênios, em Tishá b’Av,
caiu o segundo Templo de Jerusalém.
Fomos exilados de nossa Pátria.
Quatro milhões de judeus foram
massacrados apenas na cidade de
Bethar. A profecia de Uriah de fato
se cumpriu. E agora esperamos
o cumprimento da profecia de
Zechariah. Há uma tradição de que
Tishá b’Av é a data de nascimento do
Mashiach e a data na qual ocorrerá a
Redenção Messiânica. E quando isso
ocorrer, o 9 de Av se transformará do
dia mais triste para o mais jubiloso
do nosso calendário.
21
Ainda não há paz em Jerusalém
nem no restante do mundo, mas
está prestes a vir. Todos os judeus se
reunirão na Terra de Israel, o Terceiro
e eterno Templo será construído e o
sofrimento e a morte serão varridos
da face da Terra. Mais milagroso
ainda: todos os mortos retornarão à
vida – todos os entes queridos que
perdemos retornarão a nós.
Que seja a Vontade de D’us que esse
dia ocorra muito em breve, em nossos
dias – Bekarov BeYamenu Mamash –
Amén, ken yehi ratsón.
BIbliografia:
Talmud Bavli: Tratados Berachot,
Menachot, Avodá Zará, Makot
Talmud Yerushalmi: Tratado Berachot
Palestra do Rabi Dr. Schochet, Jacob
Immanuel, Judaism: Discourse - Questions
and answers with Immanuel Schochet www.youtube.com
Blum, Ruthie, Trumpledor Revisited
www.israelhayom.com
julho 2014
homenagem
Moise Safra z’l
Um homem bom e justo, um dos principais banqueiros
do Brasil, um grande filantropo que serviu de
inspiração para toda uma geração.
N
o dia 15 de junho de
2014 a comunidade
judaica de São Paulo
perdeu um dos seus
principais pilares,
fundador de importantes instituições;
o mundo das finanças perdeu uma
importante personalidade e o mundo
da benemerência judaica e não
judaica perdeu uma alma nobre, um
homem generoso, sempre disposto
a apoiar as causas dignas e a atender
os que necessitassem de sua ajuda.
Moise deixa uma grande lacuna
ou, como diria Rabi Nachman de
Bratislav, “uma Cadeira Vazia”.
Nascido em Beirute, Líbano,
Moise era o quinto dos oito filhos
de Jacob E. e Esther Safra. Seu pai
nasceu em Alepo, em 1891, na Síria,
então parte do Império Otomano.
Ali vivia uma florescente e estável
comunidade judaica, com instituições
culturais, educacionais e religiosas
sólidas, integrada economicamente
à sociedade síria. Nos anos de 1920,
Jacob E. foi enviado a Beirute, onde
se estabeleceu. Casou-se com sua
prima Esther e tiveram oito filhos:
Elie, Eveline, Edmond, Arlette,
Moise, Huguette, Gaby e Joseph.
Na cidade onde constituiu família,
Jacob E. foi um grande benemérito e
um dos líderes comunitários, exemplo
seguido pelos seus descendentes, que
se espalharam pelo mundo.
Na década de 1950, como
consequência do cenário político
no Líbano decorrente da
independência do Estado de Israel,
a família Safra deixou o país rumo à
Itália. Essa não foi a última parada
do clã, que começou a se espalhar
pelo mundo. Em 1954, três filhos
de Jacob E., Edmond, Moise e
Joseph, escolheram o Brasil para
recomeçar a vida, constituir família
e erguer um dos grupos empresariais
mais sólidos do País, com ênfase
no setor bancário. No início, Moise
22
trabalhou no ramo de importações e
exportações, mas, em 1957, a família
Safra formou uma financeira que
viria a se tornar o Banco Safra e
fundou a Filobel, uma das maiores
indústrias têxteis do país.
Em 1969, Moise casou-se com
Chella Cohen e teve cinco filhos:
Jacob, Azuri, Edmundo, Esther e
Olga. Apesar dos inúmeros negócios,
obrigações sociais e comunitárias,
Moise e Chella sempre dedicaram
tempo à sua família, a seus filhos,
genros, noras e netos. Eles sempre
foram sua prioridade.
Em 1998, ele fundou um Family
Office, M. Safra & Co., com
sede em Nova York e São Paulo,
independente do império bancário
familiar. Em 2006, Moise vendeu sua
parte ao irmão Joseph e começou a
diversificar seus interesses comerciais.
Em 2012, Moise comprou o prédio
comercial Plantantion Place, em
REVISTA MORASHÁ i 84
Londres, e, em 2013, em parceria
com a gigante chinesa Zhang
Xin, adquiriu 40% de participação
no edifício General Motors, em
Manhattan, Nova York.
Atuação comunitária
O nome Safra está inserido na
história da comunidade judaica
paulista em suas mais diversas
manifestações – educação, assistência
social, saúde, cultura. Com seus
irmãos Edmond e Joseph, Moise
foi, em 1959, um dos fundadores
da Congregação Beneficente
Sefardi Paulista, conhecida como
Beit Yaacov. A primeira Sinagoga
da Beit Yaacov está localizada
na rua Bela Cintra. Como
presidente da instituição durante
anos, acompanhou de perto o seu
desenvolvimento e fortalecimento,
a fundação de novas sinagogas,
como a sinagoga do Guarujá,
a Beit Yaacov Veiga Filho, bem
como o crescimento do Netzah,
seu movimento juvenil. Foi também
um dos fundadores da Escola
Beit Yaacov.
Não havia projeto comunitário de
que não participasse, junto com sua
esposa Chella, não apenas em São
Paulo e Rio de Janeiro, mas em todo
o Brasil e no exterior. Em Nova
York, Miami ou Israel, Moise não
limitou sua atividade filantrópica às
comunidades judaicas.
Chella e Moise Safra estão entre
os principais mantenedores do
Hospital Israelita Albert Einstein,
em São Paulo. Em 2010, a instituição
inaugurou um sofisticado auditório
com seu nome. O casal esteve
envolvido na reforma da unidade
neonatal do Hospital São Paulo,
ligado à Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), para a ampliação de
sua estrutura e instalação de novos
equipamentos.
23
Conhecido por fazer doações
regulares no Brasil e no exterior,
Moise jamais esqueceu suas raízes
familiares na Síria, apesar de nunca
ter vivido no país. Em homenagem
ao seu passado, destinou recursos
para a construção de um centro
comunitário para judeus oriundos da
Síria em Nova York. Com previsão
de inauguração no final de 2014,
o projeto será nomeado Centro
Comunitário Moise Safra.
Foram muitas as outras obras em
que o casal esteve envolvido além das
mencionadas. Durante a Mishmará,
os rabinos afirmaram que é difícil
enumerar os inúmeros atos de
bondade que Moise realizou durante
sua vida.
O rabino Efraim Laniado disse
que quando a pessoa termina sua
missão na Terra, D’us manda os
anjos ao mundo para ouvir o que
dizem sobre a pessoa. E não houve
julho 2014
homenagem
de um parente. Mas ela não sabia
usar um orelhão. Sem fichas para
usar o telefone, Moise deu-se o
trabalho de ir até um bar e comprou
uma ficha, ligou para o número
que a senhora tinha e mandou
chamar seu parente. Então, o filho
lhe perguntou por que se dera
todo aquele trabalho para uma
pessoa humilde e desconhecida.
Ao que Moise lhe respondeu que
era fácil fazer favores para um rei,
mas o difícil era ajudar uma pessoa
simples...
Moise e Chella Safra
quem não falasse belas coisas sobre
Moise. Lembrou-se, também,
de uma ocasião quando ele lhe
telefonou para dizer que chegara ao
seu conhecimento que alguns judeus
no Rio passavam necessidade e ele
queria enviar ajuda aos mesmos.
Já o rabino David Y. Weitman disse:
“No mundo atual, onde os perigos
do sucesso são óbvios, tais como
egocentrismo, perda de autenticidade
e sensibilidade, Moise Safra
conseguiu manter intactos os valores
milenares judaicos aprendidos
com seu pai, Jacob E. Safra. Grande
filantropo e mecenas ele atendia a
todos com seu coração generoso.
Ele estava ciente de que D’us o
contemplara com riqueza para que
ele pudesse ajudar os outros em sua
volta, e fazer do mundo um lugar
melhor”.
Todos os que o conheciam sabiam
que Moise era um homem que não
se contentava apenas em doar, mas
sabia ouvir, sentia empatia pelo
sofrimento alheio e, junto com
sua esposa, se envolvia nos problemas
das pessoas, sempre encorajando
os necessitados e procurando
soluções. Ele costumava visitar
doentes no hospital, fossem eles
amigos ou apenas conhecidos.
Ajudava jovens com poucas
condições financeiras a estudar
e a se casar.
Azuri, seu filho, relatou em um
discurso emocionado em nome
de toda família na cerimônia
da Mishmará, como seu pai lhe
ensinara, quando ele era ainda
uma criança de apenas 8 anos, que
quando queremos ajudar alguém,
devemos nos antecipar em atender
suas necessidades. Ele lembrou que,
numa ocasião, quando saíam juntos
da sinagoga, viram uma senhora
humilde que havia chegado a São
Paulo, vinda do Norte, e estava
perdida. Tinha nas mãos um pedaço
de papel com o número do telefone
24
Moise foi um homem que
sempre se manteve fiel às leis
e tradições judaicas, sendo mesmo
a personificação do mais importante
mandamento do judaísmo:
a prática de atos de bondade,
generosidade e caridade.
Rabi Moshe ben Maimon,
Maimônides, o maior filósofo judeu
e um dos principais legisladores
da Lei Judaica, escreve que há
oito níveis de Tzedaká – cada um
maior do que o outro. O nível mais
alto de todos – o insuperável e de
maior valor – é ajudar alguém que
esteja passando por dificuldades
financeiras, para que ele possa se
restabelecer e não mais ter que
depender dos outros. Esse grau de
Tzedaká se manifesta de diferentes
formas: emprestar dinheiro ao
necessitado, convidá-lo a participar
de algum negócio ou ajudá-lo a
encontrar trabalho. Moise cumpriu
esse e os demais graus superiores
do mandamento e o fez da melhor
forma possível – com o máximo de
discrição – preservando a dignidade
das outras pessoas.
Ensinam os nossos sábios que
todo ato de bondade que um ser
humano realiza cria um anjo para
si e que todos os anjos criados
acompanham sua alma quando ele
sai da dimensão terrestre e adentra
REVISTA MORASHÁ i 84
Moise e Chella Safra e seus filhos (da esq. para direita) Azuri, Olga, Edmundo, Esther e Jacob, São Paulo, 2013
o Mundo Superior. Não há dúvida
de que uma enorme legião de anjos
recebeu Moise Safra no dia em que
ele retornou sua alma ao Criador.
Todas as bênçãos das quais ele
usufruiu na Terra foram apenas um
vislumbre das recompensas eternas
e imensuráveis que o aguardam no
Mundo da Verdade.
Manifestações
Para Cláudio Lottenberg,
presidente do Hospital Albert
Einstein, “Moise era uma pessoa
dotada de uma sensibilidade
instintiva, para quem a palavra
amor era um exercício do cotidiano.
Ele conseguia conciliar a visão
de um empresário com a de um
humanista. É uma perda muito
grande. Moise era um grande
doador do Einstein e eu o
considerava meu conselheiro.
Muitas vezes conversei com ele
sobre questões do Hospital e ele nos
apoiava em todas as nossas obras”.
“Moise Safra deixa um legado
importante para o sistema financeiro
nacional e internacional”, disse
Roberto Setubal, presidente do Itaú
Unibanco.
Para Lázaro de Mello Brandão,
presidente do Conselho de
Administração do Bradesco,
“Moise foi um dos mais respeitados
nomes do mundo das finanças
nacional e internacional. Acreditou
e investiu no Brasil, representando
a melhor tradição do setor bancário
brasileiro”.
“Pessoas do mundo inteiro têm
feito declarações sobre seu papel
no setor financeiro, sobre suas
contribuições. Amigos mais próximos
compartilham lembranças e atributos
pessoais que fizeram dele uma pessoa
maravilhosa. Nesse momento, só
posso pensar nele como meu irmão
querido, com o qual compartilhei
durante toda a vida momentos
felizes, sucessos e dores. É muito
25
difícil descrever o sentimento de
perder um irmão. A perda de meu
irmão Moise deixa um vazio em meu
coração”. Joseph Safra
Por ocasião do seu 75o aniversário,
sua esposa, filhos, noras, genros
e netos lhe fizeram uma linda
homenagem, em que disseram:
“Moise Safra, um grande homem,
um grande marido, pai e avô está
sempre em nosso coração. Obrigado
por fazer parte de nossas vidas. Sua
história é um exemplo para todos
nós. Você é um mestre na arte de
viver, suas palavras são sempre sábias
e carinhosas, seu lema é honestidade
e sensatez, sua compaixão com o
próximo sempre nos emocionou.
Você sempre usou justiça e respeito
em suas decisões, seu olhar sempre
verdadeiro e amoroso, seu sorriso
contagiante iluminado, a vida inteira
nos ensinou e cativou com seu jeito
humilde e grandioso de ser. Este é o
seu legado”.
julho 2014
personalidade
BEN HECHT- um judeu
acima do bem e do mal
POR Zevi Ghivelder
Este ano assinala o 120º aniversário do nascimento de Ben
Hecht. Este notável jornalista, escritor, autor teatral,
roteirista de dezenas de filmes e sionista combativo,
avultou como uma das mais consagradas celebridades
americanas do século passado. Ao longo de toda a vida,
ele jamais foi indiferente aos rumos do mundo, em geral,
e ao povo judeu, em particular.
A
certa altura de sua
fascinante trajetória,
Hecht empenhou-se
com devoção em angariar
fundos destinados
aos judeus que confrontavam os
mandatários ingleses na antiga
Palestina. Nessa tarefa, decidiu
obter doações, talvez vultosas, dos
magnatas judeus que eram donos
dos maiores estúdios de Hollywood
porque o admiravam e respeitavam.
(No decorrer de sua prolífica carreira,
Hecht teve quatro indicações e duas
vitórias nos Oscars).
dos judeus mesmo porque ele era
antes de tudo um patriota americano.
Hecht não se abalou e fez-lhe uma
proposta: “Então, telefone para
cinco amigos seus, que não sejam
judeus, e pergunte se você é judeu
ou americano. Se responderem
americano, você ganha 20 mil
dólares; se disserem que é judeu,
eu recebo uma contribuição de 20
mil dólares”. Dito e feito: os cinco
disseram que Selznick era acima de
tudo judeu e Hecht, com o cheque
no bolso, partiu feliz em busca de
novos doadores.
Na ida para a Califórnia, tinha como
primeiro nome da lista o produtor
David O. Selznick, seu amigo
de longa data, responsável, entre
muitos outros, pela realização do
filme E o Vento Levou, cujo roteiro
foi escrito pelo próprio Hecht.
Não foi uma conversa agradável.
Irritado, Selznick disse que não
queria nem ouvir falar das agruras
Ben Hecht nasceu no Brooklyn,
Nova York, em 1894, filho de
imigrantes russos. O pai, alfaiate
no ramo de confecções, mudou-se
depois com a mulher e o único filho,
Ben, para Wisconsin. O menino
costumava passar o verão em
acampamentos perto de Chicago,
cidade aonde acabou se fixando e
onde começou no jornalismo como
26
repórter, cobrindo os mais variados
assuntos. Depois da 1ª Guerra
Mundial foi mandado para Berlim
como correspondente do jornal
Chicago Daily News. Permaneceu
durante dois anos na Alemanha e
ali escreveu seu primeiro romance,
intitulado Erik Dorn, que alcançou
significativo sucesso. Depois de três
peças encenadas na Broadway,
que tiveram pouca repercussão, a
fama chegou em 1928 quando
lançou a peça The Front Page (A
Primeira Página), em parceria com
Charles MacArthur. O espetáculo
teve 276 apresentações e, desde
então, tem tido frequentes novas
versões tanto nos Estados Unidos
como em palcos de todo o mundo.
É uma engenhosa e cativante
comédia que já foi vista no Brasil
e sua versão para o cinema, com
Jack Lemmon e Walter Matthau
nos principais papéis e direção de
Billy Wilder, também alcançou
expressivo êxito.
REVISTA MORASHÁ i 84
Ben Hecht, 1943
Ben Hecht foi um dos primeiros
homens de letras a perceber o perigo
do nazismo desde a sua tomada do
poder, em 1933. Passou a escrever
em sua coluna diária, publicada
em diferentes jornais americanos,
dezenas de artigos contra o regime
instalado na Alemanha e também
contra o fascismo que crescia na
Itália. Pouco depois da invasão da
Polônia, em 1939, e já sabendo dos
massacres contra os judeus, sentiu,
como ele mesmo escreveu, “ferver o
meu sangue judaico”. Assim anotou
em suas memórias: “O assassinato
em massa de judeus estava apenas
começando e todo o meu judaísmo
veio à superfície. Não sei se senti
pena das vítimas, mas sei que rugia
em mim um enorme impulso de
violência contra os criminosos
nazistas”.
Ao mesmo tempo, passou a escrever
ácidos textos dirigidos aos judeus
americanos que se alienavam em
face do que estava acontecendo
na Europa. Também conclamou
os governos dos Estados Unidos
e da Inglaterra a fazerem algo
em favor dos judeus e sua ira foi
aumentando na mesma proporção
em que suas palavras estavam sendo
ignoradas.
que optara por combater e sabotar
os ingleses na Palestina. A Irgun
não julgava que as ações políticas e
diplomáticas de líderes como Chaim
Weizmann e Ben-Gurion poderiam
fazer com que a Grã-Bretanha
abdicasse do seu mandato na Terra
Santa.
Em 1941, Hecht recebeu uma visita
que iria mudar os caminhos de sua
vida. O recém-chegado, vindo da
antiga Palestina, apresentou-se como
Peter Bergson, mas seu verdadeiro
nome era Hillel Kook, sobrenome
que preferiu esconder porque era
sobrinho do então rabino-chefe
de Jerusalém e assim evitava
comprometer sua família. Bergson
fora discípulo de Vladimir Jabotinsky
(falecido em Nova York no ano
anterior), fundador do movimento
revisionista no âmbito do sionismo,
que deu origem à
Irgun, organização clandestina
chefiada por Menachem Begin,
Bergson instou Hecht a atuar em
duas frentes: usar de sua influência
nos meios jornalísticos e artísticos
americanos no sentido de obter
apoio para a causa revisionista e
endossar a coleta de fundos para
as atividades da Irgun. Hecht
abraçou as duas tarefas com intenso
fervor. No dia 16 de fevereiro de
1943, já ciente do Holocausto,
redigiu um anúncio que foi
publicado em página inteira no
New York Times, provocando
inusitado furor. O texto dizia:
“À venda para a humanidade: 70 mil
judeus. Garantia de que são seres
humanos. 50 dólares por cabeça”.
27
JULHO 2014
PERSONALIDADE
No mesmo mês escreveu para a
publicação American Mercury um
artigo intituladoO Extermínio dos
Judeus, dramático relato ainda
desconhecido pelos americanos
sobre os horrores do Holocausto.
O texto foi reproduzido na revista
Reader’s Digest, a de maior circulação
nos Estados Unidos. A partir de seu
prestígio pessoal, organizou uma
reunião de jornalistas a escritores no
apartamento do famoso autor teatral
e romancista George S. Kaufman.
Em sua autobiografia, A Child of the
Century, escreveu: “Compareceram
30 pessoas, alguns amigos, alguns
inimigos, todos judeus. Disse-lhes
como seria importante se todos
nos uníssemos para denunciar os
crimes do nazismo. Se juntássemos
nossos talentos talvez fossemos
capazes de impedir os massacres.
Quando terminei minha fala, não
houve nenhum aplauso e eu nem
esperava que houvesse. O que me
espantou, foi que uma dúzia dos
convidados se levantou e foi embora
sem sequer se despedir. Na saída,
Beatrice, a mulher de George, disse
que estava muito sentida com o que
tinha acontecido e chamou a minha
atenção para o fato de eu ter tocado
no ponto fraco daquelas pessoas: eles
se consideravam mais americanos
do que judeus. Preferi não discutir.
Entretanto, Moss Hart (diretor de
teatro que veio a contar entre seus
grandes sucessos o musical My Fair
Lady) aproximou-se de mim e disse
que estava disposto a colaborar de
todas as formas. O mesmo me foi
repetido pelo compositor Kurt Weil”.
Entusiasmado com aquelas adesões
de tamanha relevância, Hecht
concebeu e promoveu um colossal
evento artístico na arena do Madison
Square Garden de Nova York, sob o
título Nós Jamais Morreremos. Com
música de Kurt Weil e texto do
próprio Hecht, a apresentação de
uma noite só contou com a presença
de 40 mil emocionados espectadores.
O espetáculo foi produzido por
dois grandes nomes: o cineasta
Ernest Lubitsch e o legendário
produtor Billy Rose, com direção
geral de Moss Hart, e tendo como
mestres de cerimônia dois dos mais
famosos atores do cinema daquela
época, ambos judeus, Paul Muni
(pseudônimo artístico de Meshilem
Meir Wiesenfreund) e Edward
G. Robinson (pseudônimo de
Emmanuel Goldenberg). Em julho,
o espetáculo foi apresentado no
Hollywood Bowl, em Los Angeles,
e transmitido pela televisão.
Entretanto, o grande êxito teatral de
caráter sionista da autoria de Ben
Hecht ainda estava por vir. No dia
5 de setembro de 1946 estreou no
teatro Alvin, na Broadway, a peça
A Flag is Born (Nasce uma Bandeira),
tendo nos principais papéis Paul
Muni, Celia Adler (da aclamada
dinastia teatral dos Adler) e um
ator principiante chamado Marlon
Brando. O filho de Celia Adler
conta que quando a mãe chegou em
casa, voltando do primeiro ensaio
da peça, disse: “Tem um rapazinho
no elenco, nem me lembro do nome
dele, que é um grande talento”.
Ellen, filha de Stella, a fundadora
do célebre Actor’s Studio, que
namorou Brando durante alguns
anos, recordou: “Num dos ensaios,
o desempenho de Marlon foi tão
intenso que Luther, o patriarca de
nossa família, chegou a chorar.
Na verdade, Brando não estava
apenas representando. Ele se
preocupava com o destino dos
refugiados judeus, assim como
anos mais tarde se empenhou na
campanha dos direitos civis e dos
direitos dos índios”. (No meio da
temporada, em virtude de outro
compromisso já assumido, Marlon
Brando foi substituído por Sidney
Lumet, que se tornaria um dos
maiores diretores do cinema
americano). Em princípio a peça era
para ficar apenas um mês em cartaz,
o tempo disponível do teatro, mas
acabou se prolongando por quase
um ano e depois percorreu diversos
estados americanos, e chegou,
inclusive, aos campos de refugiados
da Europa tendo sobreviventes do
Holocausto como intérpretes.
Um dos momentos mais
emocionantes da peça ocorria quando
o personagem David, interpretado
por Marlon Brando, dizia o seguinte
monólogo: “Judeus, onde estão
vocês? Onde vocês estavam enquanto
prosseguia a matança? Onde vocês
estavam enquanto seis milhões de
judeus eram assassinados? Onde
estavam suas vozes para impedir os
massacres?
Não houve voz nenhuma. E vocês,
judeus da Inglaterra? Judeus fortes,
judeus ricos, judeus aristocráticos,
poderosos e geniais. Onde estavam
seus protestos que poderiam ter
apagado os incêndios? Em lugar
nenhum! E isto porque vocês não
queriam se expor como judeus.
Vocês deixaram os judeus morrerem
Ben Hecht, 1944
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REVISTA MORASHÁ i 84
Tuxedo Park, NY. “Blue Moon”, com Ben Hecht ao piano e Jimmy Salvo cantando
contanto que vocês mesmos não
fossem identificados como judeus.
Seu silêncio merece a maldição. Vocês
se esconderam atrás de seus sotaques
britânicos, um bom disfarce para não
serem vistos como judeus”. Anos
depois, Brando lembrou que em uma
das apresentações, quando terminou o
monólogo, uma senhora levantou-se
na plateia e gritou, dirigindo-se a ele:
e você, onde estava? “Quis responder
que quando a guerra começou eu
tinha apenas 15 anos de idade, mas
preferi me calar para não interferir na
profunda emoção daquela mulher”.
O clímax do espetáculo acontecia
quando a música de Kurt Weil
entrava com vigor e o elenco agitava
uma bandeira azul e branca parecida
com a atual bandeira de Israel.
A escritora americana Miriam
Chaikin, uma das colaboradoras
de Bergson, escreveu: “É um canto
de esperança que dá lugar a um
sentimento de força e de orgulho
destinado a acordar os corações
adormecidos dos judeus americanos”.
O escritor Victor Navasky, então
fundos complementares, serviu para
que Hecht e Bergson comprassem
uma embarcação dos anos 1930,
caindo aos pedaços, chamada Argosy,
incorporada depois da 2ª Guerra
à Guarda Costeira dos Estados
Unidos, rebatizada como Abril, e
em seguida descartada como sucata.
A Tyre Shipping Company, uma
empresa de fachada do movimento
revisionista, comprou o navio de
400 toneladas que começou a
ser reformado para transportar
passageiros, ou seja, imigrantes ilegais
para a Palestina. Itzhak Ben Ami, um
dos colaboradores de Bergson, foi
incumbido de contratar a tripulação.
adolescente, ao fim dos espetáculos
percorria a plateia com uma cesta na
qual os espectadores depositavam
quanto dinheiro quisessem para
a causa sionista. Anos mais tarde,
já bem-sucedido, ele escreveu:
“O público assimilou com grande
entusiasmo a mensagem da peça.
Valeu-me como um despertar
político para a questão de os judeus
conquistarem sua pátria”. Walter
Winchell, o mais famoso e respeitado
jornalista americano daquele tempo,
assinalou: “É uma peça que deve
ser vista, ouvida e lembrada. Vai
mover seus corações e fazer derramar
torrentes de lágrimas dos seus olhos.
Aconselho que levem muitos lenços
para o teatro”. O texto continha uma
corrosiva crítica quanto à atuação dos
ingleses na Palestina. Em Londres, o
jornal The London Evening Standard
enfatizou: “Jamais um espetáculo tão
anti-britânico foi apresentado num
palco dos Estados Unidos”.
Anos mais tarde, ele recordou:
“Eu tinha que encontrar idealistas
e aventureiros dispostos a enfrentar
aquela dura missão. Acabei reunindo
20 homens com 20 razões diferentes
para se juntarem a nós. Não eram
todos judeus.
O volume de dinheiro arrecadado
pela cesta de Navasky no Alvin e em
outros teatros americanos, a par de
A maioria era composta por católicos
irlandeses dispostos a entrar em
qualquer briga contra a Inglaterra”.
29
julho 2014
PERSONALIDADE
A função de capitão coube ao
veterano comandante Robert Levitan,
que chamou para ser seu imediato
o experiente marinheiro Walter
Greaves, sobrevivente de três ataques
de torpedos durante a 2ª Guerra. Um
dos marinheiros, de 33 anos de idade,
era um negro do Brooklyn chamado
Walter Cushenberry: “Como negro,
eu sabia o que era a perseguição
e não me conformava com o fato
de os judeus refugiados da guerra
estarem sendo perseguidos”. Ainda
com o nome de Abril o pequeno
navio zarpou para o porto de Bouc,
na França, em dezembro de 1946.
Rumou para a Palestina em março de
1947, com 600 pessoas a bordo, e em
alto mar recebeu o nome definitivo de
SS Ben Hecht. No mar Mediterrâneo,
a embarcação foi interceptada por
um destróier britânico e escoltada
até o porto de Haifa. Os refugiados
foram levados para a ilha de Chipre
e a tripulação foi encarcerada na
fortaleza de Acre, de onde escapou
durante o célebre e espetacular ataque
conjunto da Haganá e da Irgun, tal
como mostrado no filme Exodus. O
navio Ben Hecht foi incorporado à
nascente marinha do Estado de Israel
em 1948.
Voltando a A Flag is Born, a
peça estava programada para
representações no National Theater,
em Washington, mas Hecht
rescindiu o contrato porque o teatro
não permitia a entrada de negros.
Ele soube, então, que o Maryland
Theater, na mesma região da capital,
aceitava negros, contanto que se
acomodassem no balcão. Na noite
da estreia, Ben Hecht sentou-se na
plateia acompanhado de dois amigos
negros. Em face disso, a direção
do teatro liberou ingressos para os
negros em quaisquer assentos. O caso
teve tanta repercussão, que a cidade
de Baltimore aboliu as restrições
aos negros em todas as suas casas de
espetáculos.
Entretanto, enquanto Hecht era
aplaudido e admirado nos Estados
Unidos, a reação inglesa à peça
Anne Sargent, Richard Kneeland E Terry O’Quinn NA TEMPORADA DE 1980-81.
PEÇA ESCRITA POR BEN HECHT E CHARLES MACARTHUR
30
A Flag is Born foi devastadora.
O governo britânico ficou
particularmente revoltado com um
artigo de Hecht sob o título
O Ataque É a Melhor Defesa, no qual
comparou a luta da Irgun à luta dos
americanos contra os colonizadores
ingleses. Lord Rothermere, dono
do jornal Daily Mail, escreveu
que Hecht “é um vulcão sionista
vitriólico”. A embaixada britânica
em Washington tentou convencer
o presidente Truman a ordenar a
deportação de Peter Bergson, mas
seu pedido não foi atendido. Mais
uma vez, Winchell saiu em defesa de
Hecht evocando o mesmo exemplo.
Os jornais ingleses reagiram, dizendo
de uma forma ou de outra que
Hecht e Winchell não passavam
de “uma praga de dois idiotas”. Em
1948, a Associação dos Exibidores
Cinematográficos da Inglaterra
proibiu que qualquer filme que
tivesse a participação de Ben Hecht
fosse levado às telas de cinco mil
cinemas do país. Foi uma medida que
doeu em seu bolso. Os produtores
de Hollywood, aos quais havia
proporcionado lucros de centenas
de milhões de dólares, nem mais lhe
atendiam seus telefonemas.
Não queriam correr qualquer
risco que lhes levasse a perder o
importante mercado inglês. Para
minimizar seu prejuízo, Hecht
concordou em receber a metade
do que costumava receber por seus
roteiros e inclusive concordou que
seu nome não constasse nos créditos
dos filmes de sua autoria. Essa
proibição só foi levantada quatro
anos depois e Ben Hecht fez o
seguinte comentário:
“Que coisa impressionante! Um
grande império declarou guerra
contra um homem só e depois fez a
paz!” Mas a animosidade de Hecht
com relação aos ingleses foi de tal
natureza que, em 1972, oito anos
depois da sua morte, o crítico teatral
REVISTA MORASHÁ i 84
Kenneth Tynan, então diretor do
National Theater de Londres, decidiu
encenar uma nova montagem da
peça A Primeira Página. A atriz
Helen Hayes, viúva de Charles
MacArthur, aceitou de imediato,
porém Rose, a viúva de Hecht, e
portanto herdeira meio a meio
dos direitos autorais, recusou-se a
dar permissão para a realização do
espetáculo “em um país que tanto
perseguiu meu marido”. Foram
necessárias muitas idas e vindas e
rendas diplomáticas por parte dos
britânicos até que ela permitisse o
projeto.
Há pessoas nos Estados Unidos,
notadamente em Nova York, que
até hoje se lembram dos peculiares
e inflamados discursos que Hecht
costumava fazer para convencer os
alienados ou para angariar fundos:
”Vou dizer-lhes algumas coisas que
vocês talvez não gostem de ouvir.
Eu recebi um telegrama de Tel Aviv,
assinado por Menachem Begin, no
qual ele me pede que façamos o
possível e o impossível para ajudar
os judeus que estão lutando na
Terra Santa e enfrentando enormes
dificuldades. Os inimigos são muito
mais numerosos do que nós, mais
bem equipados e contam com
recursos ilimitados. Por mais que
isto não nos agrade, esta é a verdade.
Vocês talvez me perguntem o que
os judeus americanos têm a ganhar
com o renascimento da nação de
Israel. Eu lhes respondo com outra
pergunta: o que vocês perderam
quando seis milhões de nossos
irmãos estavam sendo assassinados
na Europa? Se nossa vontade e
nossos espíritos forem despertados
decerto venceremos! Uma nação
judaica há de permitir que possamos
casa de ben hecht, construída
em 1888
31
viver lado a lado com as demais
nações do mundo. Sou obrigado a
recorrer à imagem da luta de David
contra Golias. Eu lhes peço, judeus,
comprem uma pedra para a atiradeira
de David!”.
Ben Hecht abandonou o
ativismo sionista pouco depois do
estabelecimento do Estado
de Israel por ocasião do polêmico
episódio do afundamento do navio
Altalena. Para quem não está a par,
vale lembrar que o Altalena foi
uma embarcação carregada de armas
que seriam entregues à Irgun
quando as forças de defesa de Israel,
embora já empenhadas na guerra
pela independência, ainda não
estavam organizadas em uma só
unidade e sob um comando central.
O julgamento de Ben-Gurion era
no sentido de que o país deveria
contar com um só exército e que a
Irgun não poderia constituir-se
como um exército em separado.
Em face da obstinação da Irgun
de não entregar os armamentos
em seu poder, só restou a BenGurion a amarga decisão de mandar
bombardear e afundar o Altalena,
ancorado próximo à costa de
julho 2014
personalidade
da peça O Mercador de Veneza, de
Shakespeare, que alguns estudiosos
apontam como uma expressão
de antissemitismo. Lê-se em seu
rascunho: “Eu sinto muito que os
judeus deixem de reconhecer Shylock
como seu irmão. Jamais o considerei
um vilão. Pelo contrário. Vejo-o
como um dos raros heróis judeus
da literatura clássica, talvez o único.
Shylock foi um vingador dos insultos
proferidos contra os judeus”.
hecht e selznick no set de filmagem de “adeus às armas”, 1957
Tel Aviv, fazendo vítimas fatais que
se encontravam a bordo. Para Ben
Hecht aquela foi uma ferida que
jamais se fechou.
Entretanto, seu judaísmo
permaneceu atuante. Em 1954
escreveu sua autobiografia A Child of
the Century, aclamada pelo público
e pela crítica. Em 1961 publicou o
romance Perfidy (sem tradução para
o português) sobre a controvérsia
até hoje existente a respeito da
deportação dos judeus da Hungria
para Auschwitz. Hecht deixou, ainda,
um projeto inacabado sob o título
Shylock, My Brother.
Trata-se de um estudo sobre a
personalidade do personagem judeu
Ben Hecht, um judeu acima do
bem e do mal, morreu de um súbito
ataque cardíaco, aos 70 anos de idade,
em seu apartamento da rua 67 West,
em Nova York. À beira do túmulo,
seu elogio fúnebre foi feito por
Menachem Begin.
BIBLIOGRAFIA
“Ben Hecht: The Man Behind the Legend”,
de William MacAdams, editora Scribner,
EUA, 1990.
“A Child of the Century”, de Ben Hecht,
editora Primus Plume, EUA, 1985.
ZEVI Ghivelder,
ESCRITOR E JORNALISTA
Principais roteiros escritos por Ben Hecht
1950 – Edge of Doom (Alma em revolta)
1951 – Strangers on a Train (Pacto sinistro)
1952 – Angel Face (Alma em pânico)
1955 – The Man With the Golden Arm
(O homem do braço de ouro)
1956 – Trapeze (Trapézio)
1956 – The Hunchback of Notre Dame
(O Corcunda de Notre Dame)
1957 – A Farewell to Arms (Adeus às armas)
1959 – John Paul Jones
(Ainda não comecei a lutar)
1962 – Mutiny on the Bounty (O grande motim)
1963 – Cleopatra (Cleópatra)
1974 – The Front Page (Nova produção)
1931 – The Front Page (A Primeira página)
1932 – Scarface (A Vergonha de uma nação)
1934 – Twentieth Century (Século Vinte)
1934 – Viva Villa! (Viva Vila)
1938 – Nothing Sacred (Nada é sagrado)
1939 – Gone With the Wind (E o vento levou)
1939 – Gunga Din (Gunga Din)
1940 – Foreign Correspondent
(Correspondente estrangeiro)
1940 – His Girl Friday ( Jejum de amor)
1945 – Spellbound (Quando fala o coração)
1946 – Gilda (Gilda)
1946 – Notorious (Interlúdio)
1948 – Rope (Festim Diabólico)
32
ATUALIDADEs
O avanço do
racismo na Europa
POR JAIME SPITZCOVSKY
A Europa, mergulhada na sua mais grave crise social
e econômica desde a 2ª Guerra Mundial, resgata
fantasmas como o terrorismo e o racismo, responsáveis
por instaurar no continente uma atmosfera de temor,
incerteza e desilusão.
E
m 24 de maio, um atirador
disparou no Museu Judaico
de Bruxelas, em uma
das principais capitais
diplomáticas do planeta,
e ceifou a vida de quatro pessoas.
No dia seguinte, eleições para o
Parlamento europeu produziram
contornos claros de um fenômeno
temido há anos: o avanço da extrema
direita, com raízes historicamente
fincadas na xenofobia e no
antissemitismo.
A votação para uma das instituições
mais opacas da União Europeia,
geralmente condenada às margens
do noticiário, ganhou destaque
inaudito. Serviu para uma miríade
de análises e interpretações, levando
em consideração as especificidades
de cada um dos 28 países que
integram o bloco sediado em
Bruxelas. No entanto, um fenômeno
inquestionável repousa sobre o
avanço das forças políticas ligadas
ao nacionalismo exacerbado, com
plataforma anti-imigração e rechaço
à integração do continente.
“É um terremoto político”, comentou
Manuel Valls, primeiro-ministro
francês, sobre os resultados inéditos
em seu país. A Frente Nacional, de
extrema direita, amealhou 26% dos
votos, deixando para trás a oposição
de direita, o UMP, e o governista PS,
do presidente François Hollande.
A líder do partido, Marine Le Pen,
persegue a estratégia de levar a
organização fundada por seu pai,
Jean Marie, aos holofotes principais
da política francesa, ambicionando
nada menos do que conquistar a
presidência do país em 2017.
Negacionista contumaz do
Holocausto, Jean Marie Le Pen
liderou a FN de sua fundação, em
1972, até 2011. Tentou a presidência
do país pela primeira vez em
1974, quando obteve escassos
33
0,74% dos votos, capitaneando um
partido formado, entre outros, por
ultracatólicos e colaboracionistas
franceses do nazismo. Na eleição
presidencial de 2012, Marine
alcançou a marca de 18%, avançando
sobre o voto de operários e da
classe média cercada pela crise
socioeconômica e por um horizonte
sombrio de futuro. O desemprego na
França orbita na casa dos 10%.
A herdeira de Jean Marie Le
Pen se esforça para reconstruir
a imagem do partido, tentando,
por exemplo, afastar o rótulo de
antissemita. Mas as conexões
familiares e as raízes históricas de
seu movimento alimentam uma
caudalosa desconfiança. Em nota
oficial, o Conselho Representativo
das Instituições Judaicas da França
(CRIF), organização “guardachuva” da comunidade francesa,
declarou: “A História nos ensinou
que crises econômicas promovem
JULHO 2014
ATUALIDADEs
nacionalismo e isolacionismo, que
são acompanhados pela rejeição
ao outro, por sentimentos racistas,
xenófobos e antissemitas”.
O fotógrafo e pintor francês Ron
Agam, expoente da comunidade
judaica, desenhou um quadro
desolador: “A democracia da França
corre perigo”, afirmou em entrevista
ao site algemeiner.com. “Judeus na
França estão agora ensanduichados
entre um crescente antissemitismo
dos elementos do islamismo radical
francês e, uma crescente extrema
direita que acabará revelando sua
face verdadeira mais cedo ou mais
tarde”.
Além da FN, cruzando o canal
da Mancha, o Partido pela
Independência do Reino Unido
promove ações para rejeitar o
rótulo de antissemitismo. Seu líder,
Nigel Farage, prefere descrever o
ideário como “anti-imigração e
anti-integração europeia”, e pode
atualmente gabar-se de um feito
histórico: com 27% dos votos, deixou
para trás os tradicionais trabalhistas e
conservadores, que monopolizam há
décadas a vida política britânica.
Na Alemanha, Grécia e Hungria,
grupos abertamente antissemitas
e embebidos no neonazismo
registraram conquistas. O Partido
Nacional Democrático alemão
recebeu 1% dos votos, responsáveis
por uma entre as 751 cadeiras do
Parlamento europeu. Udo Voigt, líder
do partido, tem enfrentado diversas
tentativas de banir o partido, criado
em 1964 e que nunca conseguiu
juntar eleitores em número suficiente
para participar do Parlamento
alemão. Agora, no entanto, o
neonazista Voigt frequentará a sede
do legislativo da União Europeia.
O húngaro Jobbik contabilizou 15%
dos votos, transformando-se na
segunda maior força política do país.
Outro partido antissemita, o grego
Aurora Dourada, ultrapassou a marca
de 9%. Os dois grupos também
alimentam racismo em relação a
ciganos e outras minorias.
“Acredito firmemente que deve ser
banido”, afirmou sobre o Aurora
Dourada o vice-ministro da Justiça,
Transparência e Direitos Humanos
da Grécia, Konstantinos Karagounis,
em entrevista ao jornal israelense
Manifestação em homenagem às vítimas do atentado do Museu Judaico da
Bélgica, Paris
34
“The Jerusalem Post”. Interessante
notar sua mudança de posição. Antes
da eleição de maio, Karagounis havia
classificado a proibição do grupo
neonazista de “contra- produtiva”.
Vários líderes do Aurora Dourada já
foram presos, depois do assassinato
de um militante esquerdista,
acusados de “dirigir uma organização
criminosa”. Uma batalha jurídica se
iniciou, e a Justiça grega terminou
liberando a participação dos
neonazistas gregos na eleição para o
Parlamento europeu.
Depois de apuradas as urnas, Marine
Le Pen se apressou a anunciar a
formação de um bloco de extrema
direita no Parlamento europeu, ao
lado de aliados vindos da Bélgica,
Holanda, Áustria e Itália. Brandiam
como prioridade impedir o avanço
da integração continental. Do lado
de fora do Legislativo, em Bruxelas,
manifestantes gritavam “fascistas na
prisão”.
Embora os partidos tradicionais
ainda mantenham a maioria dos
votos na Europa, a extrema direita e,
em geral, novos partidos à esquerda
abocanham fatias crescentes do
eleitorado, apoiados num discurso
de mudanças. Na Espanha, o
Podemos, criado a partir dos
protestos de rua, quase chegou à
marca de 10% dos votos, enquanto
na Grécia, com 26,6%, o vencedor
foi o Syriza, cujo líder, Alexis
Tsipras, qualificou de “catastróficas”
as condições impostas pela União
Europeia e pelo Fundo Monetário
Internacional em seu auxílio
financeiro a Atenas.
Pesquisa da Liga Antidifamação,
instituição norte-americana
arquitetada para auscultar a
antissemitismo no planeta, apontou
a Grécia como o país com maior
REVISTA MORASHÁ i 84
1
2
3
4
1. Gabor Vona, líder do Jobbik húngaro 2. marine Le Pen, A herdeira de Jean Marie Le Pen 3. Ronald Lauder fala com
jornalistas à saída do museu judaico de bruxelas 4. cerimônia religiosa pelas vítimas do museu judaico
índice do sentimento racista, excetuando
Oriente Médio e norte da África. Segundo
o levantamento, 69% dos entrevistados
sustentaram visões antissemitas. Um exemplo:
registrou-se 85% de aprovação ao mito “os
judeus detêm poder demasiado no mundo dos
negócios”.
Em Tessalônica, no final de maio, vândalos
atacaram o cemitério judaico. Hoje restam
na cidade 1,5 mil judeus, enquanto antes
do Holocausto a comunidade reunia 50 mil
pessoas. Após o ataque, Evangelos Venizelos,
ministro das Relações Exteriores da Grécia,
declarou que seu governo “fará tudo o que
for possível para encontrar e prender os
perpetradores desse ato antissemita e odioso,
que vai de encontro aos valores democráticos e
de tolerância da sociedade grega”.
JAIME SPTIZCOVSKY,
foi editor
internacional e
correspondente
da Folha de S.
Paulo em Moscou
e em Pequim.
Enquanto o governo grego promete reagir,
na Bulgária a comunidade judaica local pediu
às autoridades mais proteção e a prisão do
responsável pelas pichações antissemitas
feitas no muro da sinagoga da capital, Sofia,
no começo de junho. “Precisamos, também,
35
de mais diálogo sobre como combater o ódio,
a xenofobia e o antissemitismo”, exortou
comunicado das lideranças comunitárias
búlgaras.
Pululam no continente outros episódios de
intolerância. No dia 4 de maio, num subúrbio
de Bruxelas, a polícia recorreu a jatos d´água
para dispersar cerca de 500 participantes
da “Primeira Conferência Europeia da
Dissidência”, arquitetada pelo antissemita
belga Laurent Louis e que havia sido proibida
pelas autoridades locais. Entre os convidados
do evento, o infame artista francês Dieudonné
M´bala M´bala, um dos principais porta-vozes
do antissemitismo contemporâneo.
Dias depois, e às vésperas das eleições para
o Parlamento europeu, o atentado contra o
Museu Judaico de Bruxelas. A Europa do
século 21 não pode tolerar a volta da mácula
do antissemitismo, do racismo e da xenofobia.
Cabe às autoridades europeias agir, com vigor
e rapidez, para que a intolerância retorne à lata
de lixo da História.
JULHO 2014
BRASIL
A história do bar jacob,
referência para os judeus
POR Mariana Pollara Zylberkan
Entre garrafas de vinho, barris de arenque importado
e conservas de pepino azedo, muitos imigrantes judeus
encontraram a primeira referência familiar na nova cidade
que escolheram morar, a então quase rural São Paulo do
fim da década de 1920.
N
a rua central do bairro
do Bom Retiro, a José
Paulino, funcionou o
Bar Jacob, único
endereço que muitos
viajantes traziam no bolso no
longo trajeto entre o Leste europeu
e o porto de Santos, no litoral da
capital.
Aberto em 1928, o bar e mercearia
de Jacob Givertz já era um ponto
estabelecido quando as maiores
ondas migratórias de judeus
chegaram a São Paulo, no fim dos
anos 1930, em decorrência da eclosão
da 2ª Guerra Mundial na Europa.
Parentes e amigos informavam em
cartas aos interessados em cruzar
o oceano Atlântico que, quando
chegassem a São Paulo, procurassem
um judeu simpático, sempre atrás
do balcão do estabelecimento
administrado por Givertz, a mulher
Anna, natural de Odessa, na Ucrânia,
e as quatro filhas.
No endereço onde hoje funciona
uma loja de roupas de proprietário
coreano, um grande balcão de
madeira revestido com mármore
dividia espaço com poucas mesas
onde clientes se revezavam
para alimentar o corpo com as
especialidades iídiches e o espírito
das tradições que remontavam às
suas origens. Era no Bar Jacob que
muitos imigrantes judeus recémchegados ao Brasil recebiam as cartas
dos parentes que haviam deixado
para trás.
Nessa época, o Bom Retiro já estava
consolidado como principal destino
final de judeus vindos da Europa
atraídos pela presença de parentes
e conterrâneos. A formação da
colônia judaica no bairro intensificou
a atividade comercial praticada na
região, impulsionada, no início do
século 20, pela construção da Estação
da Luz, entre outras obras viárias,
que trouxe prosperidade ao bairro.
36
Antes disso, ainda nas últimas
décadas do século 19, o Bom Retiro
teve uma participação mais bucólica
na história de São Paulo. As margens
dos rios Tietê e Tamanduateí, que
circundam o bairro, abrigaram
chácaras e fazendas da elite
paulistana que para lá se dirigiam em
busca de momentos
de lazer.
A vocação pacata do bairro
mudou com a chegada da
estrada de ferro construída pela
São Paulo Railway, que ligava
o porto de Santos ao interior
paulista produtor de café. Nas
proximidades da Estação da Luz,
foram construídos galpões para
armazenar a carga a ser escoada
ao porto, dando início, assim, ao
desenvolvimento econômico do
bairro que, na década de 1930,
teve seu ápice com a consolidação
do comércio através dos imigrantes
judeus.
REVISTA MORASHÁ i 83
estação da luz, são paulo, 1920
No Bar Jacob, os recém-chegados
encontravam crédito para comprar
os primeiros insumos, recomendação
de emprego e fiador para assinar
o contrato de aluguel, no caso, o
próprio Jacob Givertz, que ajudou,
ao lado de muitos conterrâneos, a
estabelecer o primeiro polo judaico
na cidade de São Paulo. Em 1934,
o primeiro censo do estado de São
Paulo estimou em 4,5 mil os judeus
do bairro do Bom Retiro, número
que representava 36% dos moradores
do distrito.
A disponibilidade de estender a
mão a desconhecidos, além de
representar um dos valores judaicos
mais valiosos, era uma forma
desse imigrante da cidade polonesa
de Rubishoff, localizada a 18
quilômetros da fronteira com a
Ucrânia, multiplicar a prosperidade
que conquistou, apesar de tantos
quilômetros distantes de suas
origens.
O então rapaz de 18 anos, que
deixou a família para encontrar o
irmão mais velho, estabelecido há
alguns anos em Nova York, já não
teve muita sorte logo no início.
Diagnosticado com conjuntivite,
Givertz foi proibido pela vigilância
sanitária de desembarcar na cidade
americana, que sofria de um surto de
tracoma, doença oftalmológica mais
agressiva do que a branda inflamação
que o acometeu. Mesmo assim, ele
foi obrigado a seguir para a próxima
parada do transatlântico: a cidade de
Buenos Aires.
Às margens do Rio da Prata, o
jovem imigrante polonês encontrou
uma cidade pujante, com uma elite
disposta a desfrutar da recémadquirida prosperidade econômica.
Em 1914, um ano antes de o futuro
fundador do Bar Jacob desembarcar
em Buenos Aires, a Argentina havia
acabado de passar, em menos de 30
anos, de importador para principal
37
produtor de trigo da América do
Sul, o que fez da capital portenha a
segunda cidade mais importante das
Américas, atrás somente de Nova
York.
No mesmo período, impulsionada
pela riqueza vinda do campo, a
população de Buenos Aires saltou,
entre 1895 e 1914, de 660 mil para
1,5 milhões de habitantes, sendo que
um terço eram estrangeiros. Entre
os 94 mil russos e poloneses que
moravam na Argentina nas primeiras
décadas do século 20, Givertz logo
definiu o destino que parecia carregar
junto com o próprio nome. Givertz
é uma corruptela da palavra em
polonês que significa condimento.
Ele conseguiu emprego como
garçom em um bar à beira do rio
da Prata, na região da cidade muito
procurada, na época, para passeios
em família. Lá foi inaugurado o
primeiro passeio público de Buenos
Aires, o Alameda.
JULHO 2014
BRASIL
Sem dominar o idioma, ele soube
se destacar no trabalho ao treinar e
conseguir equilibrar no mesmo braço
até cinco pratos de uma só vez. Anos
depois, já dono do Buffet Jacob, o
imigrante polonês soube perpetuar a
lição aprendida para atrair a atenção
dos clientes ainda no primeiro
emprego em terras americanas.
Nos Bar Mitzvot e casamentos
que iria servir muitos anos depois,
Givertz ensaiava uma espécie de
coreografia com seus garçons para
anunciar o começo dos serviços.
Enfileirados e vestidos em ternos
brancos, os garçons atravessavam o
salão de festas carregando bandejas
na altura dos ombros recheadas
com gefilte fish e enfeitadas por velas
reluzentes. O efeito espetaculoso era
ainda maior quando as luzes do salão
eram apagadas e a iluminação era
feita apenas pelo fogo que vinha das
bandejas.
Jacob Givertz
Além do trabalho de garçom, Givertz
encontrou na cidade de Buenos Aires
a companheira de toda a vida e mãe
de suas quatro filhas: a judia natural
de Odessa, Anna Roubinovitch. Eles
se conheceram entre uma celebração
e outra da comunidade judaica
polonesa em Buenos Aires e se
casaram quando Anna completou
16 anos. Jacob tinha 21 anos.
Diante da escolha entre a Sibéria e a
América, Moshe Rabinovitch achou
que o segundo destino seria melhor
para sua família. Ele dera como certo
o envio da família para as terras
isoladas no norte do Cazaquistão ao
descobrir o envolvimento da filha
mais velha, Feigue, com grupo de
rebeldes comunistas contrários à
ditadura czarista.
Assim como o marido, Anna imigrou
para a cidade de Buenos Aires em
meio a circunstâncias determinadas
por terceiros. Caçula, Anna era
ainda criança quando embarcou
em um navio rumo à América do
Sul acompanhada da mãe, Fany
Roubinovitch, para reencontrar a
irmã mais velha, Feigue, que havia
imigrado para a Argentina para fugir
da perseguição da polícia czarista.
Anos depois, em 1913, saudosa da
primogênita e ansiosa para conhecer
os netos nascidos no além-mar, a
então futura sogra de Jacob Givertz
embarcou rumo à Argentina com a
filha caçula. Já em terras portenhas,
Fany foi informada sobre o
falecimento do marido e decidiu não
voltar mais a Odessa.
Por influência do namorado, Feigue
Roubinovitch pertencia a um grupo
de comunistas que enfrentavam a
estrutura política russa totalitarista.
O ativismo político da primogênita
era algo inimaginável por seus
pais, até o dia em que o namorado
comunista lhe confiou a guarda de
sua arma quando percebeu o cerco
do exército czarista se fechar ao
seu redor. Os oficiais chegaram a
vasculhar a casa de Fany e seu marido
em busca de armas e panfletos
propagandistas da causa comunista.
Para a sorte de todos na família,
sua mulher pensou rápido e, diante
do alarde dos vizinhos sobre a
invasão dos oficiais no vilarejo em
que moravam, escondeu o revolver
dentro do sutiã. Passado o susto, o
simples vendedor de frutas de Odessa
decidiu pelo bem de todos embarcar
a filha e o namorado comunista para
se casarem na América do Sul. Na
Rússia pré-comunista, os cidadãos
que ousassem se opor ao regime
czarista eram enviados a cumprir
penas perpétuas na Sibéria.
38
Em Buenos Aires, Jacob e Anna
geraram as filhas Rebeca e Olga.
Mais uma vez, o casal seria afetado
por circunstâncias externas que os
empurrariam a se mudar novamente.
A partir de janeiro de 1919,
Buenos Aires foi afetada pelo
seu primeiro pogrom contra os
judeus durante evento histórico
conhecido como Semana Trágica.
Uma série de motins foi deflagrada
na capital portenha por integrantes
do movimento socialista contra
as autoridades policiais e grupos
paramilitares.
Neste período, Buenos Aires se
tornou palco da deflagração de uma
greve organizada por trabalhadores
de diversos setores da economia
para exigir redução da jornada de
trabalho e validação dos direitos
trabalhistas. A força policial, então,
dirigiu seus contingentes a combater
o que a população acreditava ser a
razão do caos argentino no início do
século 20: a conspiração comunista
arquitetada por imigrantes judeus
vindos da Rússia que viviam no país.
REVISTA MORASHÁ i 84
Casas de famílias judias e sinagogas
foram destruídas arbitrariamente por
integrantes de grupos paramilitares
e muitos imigrantes tiveram que
sair da Argentina. Pelo menos, um
dos 700 mortos durante a Semana
Trágica era judeu.
Diante do clima de instabilidade,
Givertz e sua família decidiram
aceitar o convite do irmão de Anna,
que prosperava à frente de uma loja
de móveis usados na rua Dom José
de Barros, no centro de São Paulo.
Casado e pai de duas filhas, Givertz
se mudou para São Paulo.
Durou pouco o tempo longe das
mesas e panelas. Dois anos depois,
Givertz abriu o Bar Jacob que, mais
tarde, daria origem aos serviços de
bufê para casamentos e Bar Mitzvot
da comunidade judaica paulistana.
Desde o dia que abriu as portas, o
Bar Jacob sempre foi um negócio
estritamente familiar. No Brasil,
Givertz e Anna tiveram mais duas
filhas: Aida e Carlota. As quatro
moças se habituaram a dividir a
rotina entre as aulas no Grupo
Escolar João Kopke e na Escola
Tiradentes e o trabalho atrás do
balcão no bar do pai.
Anna e Jacob Givertz com o genro Leopoldo de avental
as encomendas, ele voltava para o
bar de charrete, onde a mulher e as
filhas o aguardavam para ajudar a
descarregar e guardar as compras.
A abertura das portas do bar todas
as manhãs era feita por elas, que
ainda lavavam o balcão de mármore e
recebiam os blocos de gelo entregues
pela Companhia Antártica, logo cedo,
antes de os clientes chegarem. Como
o bar ficava aberto até a madrugada,
Anna e o marido sempre pouparam
as filhas do trabalho noturno, ficando
eles responsáveis por encerrar as
atividades, todos os dias.
Quase diariamente era o próprio
Jacob quem abastecia os tonéis de
madeira onde eram feitas
as conservas de pepino azedo.
Os pepinos frescos eram lavados e
acomodados dentro de uma solução
composta por partes iguais de
vinagre e água, temperada com
cabeças de alho e ramos de dill.
A iguaria simples era também a
mais versátil e popular entre os
clientes – acompanha os sanduíches
de pastrami no pão preto ou servia
de acompanhamento para o arenque,
que repousava sempre à mostra
na vitrine refrigerada por enormes
barras de gelo.
Cotidianamente, Jacob pegava o
bonde na Avenida Tiradentes rumo
ao Mercado Municipal de São
Paulo para fazer as compras que
abasteceriam o bar. Após empacotar
Era sobre os tonéis de madeira, onde
as conservas de pepino eram curtidos
lentamente no tempero ácido, que as
filhas caçulas de Jacob costumavam
sentar-se para escutar as corridas de
39
Durou pouco o tempo
longe das mesas e
panelas. Dois anos
depois, Givertz abriu
o Bar Jacob que, mais
tarde, daria origem
aos serviços de bufê
para casamentos
e Bar MITZVOT da
comunidade judaica
paulistana.
julho 2014
BRASIL
cavalo transmitidas pelo rádio. Era
no mesmo canto do Bar Jacob que
a filha mais nova Carlota passou os
primeiros meses de vida, acomodada
dentro de uma caixa de maçãs,
forrada por cobertores, e sempre sob
o olhar atento da mãe Anna, que
assumia a dupla função de trabalhar
no bar e cuidar das quatro filhas.
No nascimento de Carlota, Jacob
tinha esperança de que seu desejo
de ser pai de um filho homem –
para perpetuar seu sobrenome nas
gerações anteriores – finalmente seria
atendido. Assim que a mulher Anna
começou o trabalho de parto na casa
da família, um sobrado a poucos
metros do bar, Jacob colocou sobre
o balcão do bar todas as garrafas de
bebida que dispunha e prometeu
uma rodada grátis aos clientes se a
parteira voltasse com a notícia de que
ele seria pai de um menino.
Enquanto de dia o Bar Jacob
funcionava como mercearia,
comercializava conservas e outros
produtos importados, à noite o
local virava ponto de encontro
de atores e atrizes do teatro
iídiche, que forravam as paredes
do estabelecimento com cartazes
escritos no alfabeto hebraico para
divulgar as peças que encenavam.
Era lá também que os grupos de
teatro vendiam ingressos para as
apresentações.
Tanto as filhas quanto Jacob
e Anna se habituaram a fazer as
refeições no próprio bar e, como
lembra sua filha caçula Carlota,
a única ainda viva, sempre após
os empregados. Ela conta que o
pai sempre colocava em prática
a máxima de que é preciso antes
garantir a alimentação daqueles que
dependem de você para só depois
sentar-se à mesa.
Apesar do clima familiar do bar
Jacob, não eram poucas as vezes
que clientes bebiam além da conta
foto: Arquivo Histórico Judaico Brasileiro - AHJB
Diante da frustração, Jacob guardou
calmamente as garrafas de volta nas
prateleiras e os clientes perderam
a chance de tomar um trago grátis.
Mesmo assim, ele conseguiu
suprir o desejo de ser pai de um
homem através da terceira filha,
Aida, de personalidade destemida
e companhia constante do pai nas
idas ao barbeiro. Jacob levava a
terceira filha e também a caçula para
cortar os cabelos no estabelecimento
voltado apenas para homens.
e, mesmo nesses momentos, a
autoridade imposta pelo carisma de
Givertz convencia os beberrões a
deixar as confusões da porta do bar
para fora. “Vamos brigar lá fora”,
repetiam os mais exaltados.
Foi justamente por ser pai de quatro
filhas que Jacob deixou o Bom
Retiro por volta de 1938. Nessa
época, o prefeito de São Paulo era
Prestes Maia que, empenhado em
concluir as obras de alargamento da
Avenida Ipiranga, parte integrante
de seu Plano de Avenidas, que
visava expandir o centro, proibiu as
prostitutas de trabalharem na avenida
o que empurrou o meretrício para as
pacatas ruas do Bom Retiro.
A transformação do bairro em
polo de prostíbulos se deu pela
proximidade com a linha de trem da
ferrovia Santos-Jundiaí e também
devido à própria formação pouco
planejada das vias, que desenhou
muitos becos e ruas sem saída,
onde qualquer atividade podia ser
praticada de forma escondida, longe
dos olhos de quem estava ao redor.
Assustado com a nova vizinhança
que passou a circundar o Bar
Jacob, seu fundador decidiu partir
com a família para a cidade de
Santos, no litoral paulista. Todas as
economias juntadas ao longo dos
anos foram empenhadas na abertura
de um restaurante no balneário.
Infelizmente, as circunstâncias não
favoreceram a nova empreitada e
após um par de anos todos voltaram
ao Bom Retiro.
Algum tempo depois de voltar a
São Paulo, Givertz percebeu que
seria mais rentável apostar na
diversificação do negócio e, por isso,
começou a se dedicar a organizar
festas de casamento e Bar Mitzvot
da comunidade judaica paulistana.
interior do Bar Jacob. as filhas Aida e Carlota
40
REVISTA MORASHÁ i 84
As festas do Buffet Jacob, sendo que a foto do meio é a do Barmitzvá de Sergio Ferd o primeiro neto de Jacob
As primeiras festas foram realizadas
em um salão no subsolo da sinagoga
localizada na Rua Newton Prado,
no Bom Retiro. As iguarias do Leste
europeu eram servidas à francesa
por garçons trajados de branco. O
próprio Jacob acompanhava o serviço
de perto e se tornava inconfundível
no salão graças à gravata borboleta
que sempre usava e se tornou sua
marca registrada. O requinte do
bufê era sempre finalizado com
a distribuição aos convidados de
maçãs devidamente arrumadas em
bandejas de prata. Importadas e
caras na época, as maçãs sempre
acabavam antes mesmo de os garçons
alcançarem o centro do salão com
suas bandejas.
Aos poucos os negócios foram
prosperando, apesar de Jacob sempre
receber os pagamentos de seus
clientes de forma parcelada.
Nessa época, o Buffet Jacob dividia
as atenções dos convidados de
seus clientes com outra atração
obrigatória nas celebrações da
comunidade judaica. A música ao
vivo ficava a cargo de Samuel e
sua Orquestra, conjunto musical
especializado em canções típicas
judaicas, liderado pelo barbeiro que
se transformava em violinista após
o expediente. Samuel dividia as
cadeiras na barbearia e também o
palco nas festas com um rapaz que
tocava acordeom. Além de músico
e barbeiro, ele também fazia bicos
como eletricista.
Com a saúde cada vez mais
debilitada pela evolução da
diabetes, que acometia seus pés com
infecções recorrentes, Jacob foi aos
poucos deixando os negócios sob
a responsabilidade do genro e da
filha Olga, porém, nunca deixou de
trabalhar. Alguns anos depois, ele
ainda abriu a Mercearia e Buffet
Jacob na Rua Prates, em frente ao
Parque da Luz.
Os anos foram passando e Jacob viu
uma a uma suas quatro filhas casarem
e também se despediu tristemente
de sua companheira de vida, Anna,
que faleceu jovem após sofrer cinco
ataques cardíacos.
Alguns anos depois de sua morte, as
festas no salão Maison Suisse, um
dos últimos endereços onde o Buffet
Jacob atuou, não tiveram mais forças
para continuar e cessaram. Mesmo
assim, a história de Jacob Givertz e
seu Bar Jacob ecoam na memória dos
muitos imigrantes que frequentaram
o estabelecimento e experimentaram,
além dos pratos lá servidos, a
simpatia do senhor sempre de
gravata borboleta.
Após a perda irreparável, Jacob se
associou ao genro Leopoldo, marido
de sua filha Olga, para abrir o Salão
Israel, em 1951. A nova empreitada
levou Jacob a voltar à mesma Rua
José Paulino que o acolheu quando
desembarcou com a família em
São Paulo e também onde ele se
consolidou como referência de
comida e solidariedade judaica.
41
mariana pollara zylberkan,
é bisneta de Jacob Givertz.
Baseou-se em relato e guardados de
ILDA KLAJMAN, neta de Jacob Givertz
julho 2014
PERSONALIDADE
Sergey Brin,
o homem por trás da Google
Aos 40 anos de idade, Sergey Mikhaylovich Brin é
cofundador e Diretor de Projetos Especiais na Google Inc.
Sergey é dono de uma fortuna pessoal avaliada, hoje,
em US$ 30 bilhões. Na lista da Forbes de 2013, ele estava em
21º lugar entre as 100 pessoas mais ricas do mundo.
b
rin recebeu vários prêmios pela contribuição
que deu ao mundo, juntamente com Larry
Page, também sócio cofundador da Google.
Em novembro de 2009, ainda segundo a
revista, Brin e Page estavam em 5º lugar
entre as pessoas mais poderosas do mundo. Seu invento
literalmente mudou a forma como o mundo funciona
e vem influenciando a vida de bilhões de habitantes do
planeta. Pode-se afirmar que a Google indiscutivelmente
entrou na cultura predominante – o verbo “to google”
foi recém-incluído no Oxford English Dictionary.
Em 1979, quando ele tinha apenas seis anos, Sergey
deixou a então União Soviética junto com os pais
e seu irmão mais novo, Samuel, rumo aos Estados
Unidos. A decisão de deixar a Rússia tinha sido tomada
por seu pai, desgostoso de como eram tratados os
judeus na União Soviética. Oficialmente, não havia
antissemitismo. Em 1931, o próprio Stalin escrevera que
“o antissemitismo era um fenômeno profundamente
hostil ao regime soviético”. Mas, na realidade, o milenar
antissemitismo russo permeava toda a sociedade e os
judeus eram muito discriminados.
A missão da Google Inc. com receitas de mais de
RS$ 6 bilhões ao ano é “Organizar o mundo da
informação e torná-lo universalmente acessível e útil”
e seu lema é “Não seja perverso”.
O pai, Michael Brin formara-se em Matemática
na Universidade Estadual de Moscou; sua esposa,
Genia, também se formara na Escola de Mecânica
e Matemática de Moscou. Apesar das dificuldades
que teve que enfrentar por causa do antissemitismo,
Michael conseguiu concluir seu doutorado, mas sua vida
acadêmica estava estagnada.
Deixando a União Soviética
Sergey nasceu em 21 de agosto de 1973, em Moscou,
na Rússia. Era o primeiro filho de dois matemáticos
judeus, Michael e Eugenia, ou Genia como é
chamada. Em Moscou os Brin viviam em um pequeno
apartamento de três quartos, com 35 metros quadrados,
no centro da cidade, que compartilhavam com a avó
paterna de Sergey.
Tentando impedir os judeus de ocuparem postos na
alta hierarquia profissional, os dirigentes comunistas
dificultavam e, em certos casos, negavam-lhes a
entrada às universidades. No Departamento de Física
da Universidade de Moscou, por exemplo, não eram
aceitos porque líderes soviéticos não confiavam neles
46
REVISTA MORASHÁ I 84
1
3
2
1 MIchael BRIN e euGENIA EM COLLEGE PARK, MARYLAND 2. SERGEY COM O PAI EM WASHINGTON, 1980 3. SERGEY BRIN
para trabalharem na pesquisa de
foguetes nucleares. O próprio pai
de Sergey teve que abandonar seu
sonho de se tornar um astrônomo.
Ainda na Universidade de Moscou,
as admissões de alunos para outros
departamentos eram decididas
através de exames. Os judeus eram
avaliados em salas diferentes das de
outros candidatos – morbidamente
chamadas de “câmaras de gás” – e
eram avaliados com severidade ainda
maior.
Numa entrevista, Sergey conta que,
em 1977, após ter participado de
uma conferência de Matemática
em Varsóvia, seu pai disse à sua
mãe que era hora da família
deixar o país. Na conferência, ele
havia interagido livremente com
os colegas dos Estados Unidos,
França, Inglaterra e Alemanha e
descobrira “que os intelectuais do
Ocidente não eram monstros”,
como a propaganda soviética queria
fazer parecer. Preocupava muito aos
pais que seus filhos enfrentassem a
mesma discriminação que eles, caso
permanecessem na Rússia.
Em setembro de 1978 seus pais
solicitaram formalmente um visto
de saída. Michael foi imediatamente
demitido e Genia também foi
obrigada a deixar seu emprego. Nos
oito meses seguintes, sem qualquer
renda fixa, eles viram-se forçados
a aceitar empregos temporários
enquanto esperavam, não sabendo
se seu pedido de visto seria
concedido. Foi nesse período que
Michael começou a ensinar a Sergey
programação de computadores.
Muitos judeus soviéticos nunca
conseguiram obter vistos de saída,
mas os Brin tiveram sorte e, em maio
de 1979, a família foi autorizada a
deixar o país. Eles estavam entre
os últimos judeus que tiveram
a permissão de deixar a União
47
Soviética antes da era de Gorbachev.
Com a ajuda da HIAS – Hebrew
Immigrant Aid Society, estabeleceramse nos Estados Unidos. No decorrer
de sua história, a instituição ajudou
milhares de judeus a deixar países
onde eles corriam risco de vida e
a construir vida nova no mundo
livre. Em reconhecimento, em
2009, Sergey doou US$ 1 milhão à
instituição, onde sua mãe, Eugenia, é
hoje membro do Conselho.
A vida na América
Quando a família finalmente
aterrissou na América, em outubro
de 1979, os Brin foram recebidos no
Aeroporto Kennedy, em Nova York,
por amigos de Moscou. A primeira
lembrança que Sergey guarda dos
EUA foi seu deslumbramento, sentado
no banco de trás de um carro, com
os veículos gigantescos voando pela
autoestrada, enquanto seus anfitriões
os levavam para Long Island.
JULHO 2014
PERSONALIDADE
Os Brin estabeleceram-se em
Adelphi, Maryland. Encontraram
uma casa para alugar, simples, de
blocos de concreto, em um bairro
de classe média baixa, perto da
Universidade de Maryland e
matricularam o filho na Paint Branch
Montessori School. Seu pai ingressou
no Departamento de Matemática da
Universidade e sua mãe conseguiu
um emprego na NASA, em pesquisa
na área de meteorologia.
Para Sergey, seu primeiro ano
nos Estados Unidos foi difícil;
seu conhecimento de inglês era
rudimentar e ele falava com um
sotaque pesado. Pressupõe-se sempre
que crianças e jovens aprendem
rapidamente um novo idioma, mas
ele teve dificuldades em aprender o
inglês.
Segundo seus professores, ele não
era uma criança especialmente
sociável, mas tinha autoconfiança de
ir atrás de suas ideias. Sua vida girava
em torno de quebra-cabeças,
mapas e joguinhos de matemática
que ensinavam a multiplicar.
Para os pais de Sergey, aquela era
uma vida nova e livre. Livres para
trabalhar e ir onde quisessem e serem
abertamente judeus. Eles nunca
foram religiosos. Para eles, como para
muitos outros imigrantes da Europa
Oriental, ser judeu era algo étnico,
baseado em valores e tradições, não
uma experiência religiosa. Michael
costumava dizer que se havia um
valor judaico que a família Brin
mantinha sem restrições este era o
amor aos livros e à educação.
Apesar de Sergey frequentar a escola
pública, recebeu a maior parte da
sua educação em casa. Seus pais,
ambos matemáticos, alimentaram o
seu interesse por essa ciência e pelo
domínio da língua russa. Quando
ele tinha nove anos, o pai lhe deu
seu primeiro computador, um
Commodore 64. A partir de então,
seu interesse pela Matemática e pela
Computação disparou.
Em setembro de 1990, após ter
frequentado o Ensino Médio na
Eleanor Roosevelt High School,
o rapaz entrou na Universidade de
Maryland, para estudar Matemática
e Ciências da Computação.
Em meados de 1990, semanas antes
de fazer 17 anos, seu pai chefiou
a família brin, 2002
48
um grupo de alunos superdotados
em Matemática em um programa
de intercâmbio de duas semanas
na União Soviética. Ele decidiu
levar também a sua família. Seria
uma oportunidade de visitarem
os familiares que ainda viviam em
Moscou, inclusive o avô paterno
de Sergey, ele também um PhD
em Matemática, como Michael.
Na época o império soviético se
desmoronava e, no olhar desanimado
de resignação das pessoas, Sergey
pôde ver, em primeira mão, o futuro
sombrio que teria sido o seu. No
segundo dia da viagem, chamou o pai
e lhe disse: “Obrigado, por nos ter
tirado da Rússia”.
Sergey formou-se pela Universidade
de Maryland em 1993. Seus dons
para as Ciências Exatas não passaram
despercebidos. Ganhou uma bolsa
da Fundação Nacional de Ciências e
foi para a Universidade de Stanford
para uma pós-graduação em Ciências
da Computação. O M.I.T. o
rejeitara... Já em 1993, era estagiário
na Wolfram Research, fabricante do
software Mathematica.
Atraente, com um sorriso fácil,
e uma energia sem fim, Sergey,
transborda uma grande
autoconfiança. Em Stanford,
era conhecido por seu hábito de
irromper na sala dos professores
sem bater à porta. Um de seus
orientadores se recorda: “Ele era
um jovem impetuoso, um tanto
atrevido, costumava entrar nas salas
dos professores sem bater na porta.
Mas era tão inteligente, que aquilo
se esvaía, e nós o relevávamos”.
Sergey participava da vida social da
Universidade e praticou todos os
tipos de esportes: gostava de esquiar,
patinar, tudo. O pai contou que certa
vez lhe perguntou se estava fazendo
algum curso avançado. Ao que ele
respondeu “sim, natação avançada”.
REVISTA MORASHÁ I 84
Continuou em Stanford para
fazer o doutorado em Ciências
da Computação, centrando
seu interesse na área de “Data
Mining” – exploração de grandes
quantidades de dados em busca de
padrões consistentes para detectar
relacionamentos sistemáticos entre
as variáveis. Foi quando ele começou
a pensar no poder de grandes
conjuntos de dados e como poderia
analisá-los para detectar padrões e
resultados inesperados.
Em Stanford, ele conheceu Larry
Page, judeu e filho de um cientista
da Computação da Universidade
Estadual de Michigan, Dr. Carl
Victor Page, que estava fazendo
o doutorado na mesma área.
Em entrevista para a revista The
Economist, Brin revelou que, num
primeiro momento, os dois jovens
“não se deram bem”: “Nós somos
ambos do tipo ‘detestável’. Mas,
apesar de discordar na maioria
dos assuntos, logo nos tornamos
almas-gêmeas intelectuais e amigos
íntimos”.
O foco de Sergey Brin foi o
desenvolvimento de sistemas de
classificação de dados, enquanto que
Page visava aprofundar “o conceito
de se inferir a importância de um
trabalho de pesquisa a partir de
suas citações em outros trabalhos”.
Era assim que se determinava a
importância de uma página na web –
baseando em quantas outras páginas
tinham links levando a ela. Juntos,
foram autores do que é considerada
Ferramenta de Busca é um programa
para procurar palavras-chave, fornecidas
pelo usuário, em documentos e bases de
dados. No contexto da internet, um motor
de busca permite procurar palavras-chave
em documentos alojados na World Wide
Web, como aqueles que se encontram
armazenados em websites.
1
sergey brin e larry page
a sua contribuição decisiva, um
trabalho intitulado “The Anatomy
of a Large-Scale Hypertextual Web
Search Engine”, ou “A Anatomia de
um Motor de Buscas na Web para
Hipertexto, de Larga Escala”.
Sergey conta que ele e Larry
“abarrotaram seus dormitórios com
computadores baratos” e testaram
uma nova ferramenta de busca1 na
Web. O projeto cresceu rapidamente.
Os dois logo perceberam que tinham
conseguido criar um mecanismo
de busca muito superior aos que
existiam até então.
Criando o Google
A ferramenta de busca criada por
Brin e Page classifica as páginas da
Web com base na popularidade e
possibilita fazer pesquisas na internet
sobre qualquer tipo de assunto ou
conteúdo.
Como vimos acima, a ideia do
Google nasceu quando Brin e
Page estavam trabalhando em
um projeto de pesquisa para sua
tese. Começaram por explorar as
propriedades matemáticas da Rede
Mundial (WWW). Seu projeto de
pesquisa foi inicialmente chamado
de “BackRub”. Era um mecanismo
49
de pesquisa usado para explorar a
Web. Juntos eles desenvolveram o
algoritmo PageRank. Após analisar
as informações do BackRub com
desse algoritmo, perceberam que
um mecanismo de busca baseado
no PageRank produziria melhores
resultados do que as técnicas
existentes. Baseavam-se na ideia
de usar os links entre as páginas
Web para classificar sua importância
relativa. Usando os conceitos
acadêmicos de citações nas pesquisas
como medida de local e valor, Larry
e Sergey aplicaram essa ideia à Web:
se uma página se liga à outra, de fato
estaria “citando” ou lançando um
voto para aquela página.
BackRub, sua primeira ferramenta de
busca, foi instalada nos servidores da
universidade em 1996, mas passou a
ocupar tanto espaço de banda larga
que ficou difícil para a instituição
gerenciá-la. Em 1997, os dois
“cientistas” decidiram renomear sua
ferramenta para “Google”, baseado
em “googol”, termo matemático
utilizado para um número muito
grande, mas não infinito. Um googol
equivale a 1,0 × 10100, ou seja, o
dígito 1 seguido de cem zeros.
Assim, Google se tornava um nome
que abria infinitas possibilidades de
informação.
JULHO 2014
PERSONALIDADE
No princípio, a ferramenta utilizou
o site de Stanford, sob o domínio
google.stanford.edu.
A missão da Google
Inc. é “Organizar
o mundo da
informação e tornálo universalmente
acessível e útil” e
seu lema é “Não seja
perverso”.
Larry e Sergey tentaram vender a
ideia por US $1 milhão, mas não
encontraram interessados. Durante
o boom da tecnologia da década
de 1990, o que interessava aos
investidores eram os portais, como
Yahoo! e AOL, que ofereciam
inúmeras ferramentas como e-mail,
notícias, meteorologia. Acreditavase que esses portais dariam maior
retorno financeiro. Ninguém estava
interessado em ferramenta de buscas.
Apesar da falta de receptividade, os
dois jovens sabiam que haviam criado
algo importante. Por isso, decidiram
trancar a faculdade e ir adiante com
o projeto. Os pais de Sergey não
receberam bem a decisão, estavam
céticos e “definitivamente chateados”,
como chegou a revelar a mãe de
Sergey. “Nós acreditávamos que
qualquer pessoa em seu juízo perfeito
deveria obter um doutorado”.
Levantaram os fundos necessários
para dar inicio à implementação
do projeto entre os professores
de Stanford, familiares e amigos.
Conseguiram juntar o suficiente para
comprar alguns servidores e alugar a
famosa garagem em Menlo Park de
uma amiga, Susan Wojcicki. Susan
é hoje a vice-presidente sênior da
Google e é encarregada na Youtube
de Engenharia e Gerenciamento de
Produtos. Nessa mesma época, Brin
conheceu a irmã de Susan, Anne, sua
futura esposa.
A decisão de levar o projeto adiante
logo deu frutos. Depois de uma
rápida demonstração, Andy
Bechtolsheim, co-fundador da
Sun Microsystems (ele mesmo
um imigrante judeu alemão), fez
um cheque de US$ 100 mil para a
50
“Google Inc.”. O problema era que
a “Google Inc.” ainda não tinha sido
formalmente criada e, durante duas
semanas, enquanto lidavam com a
papelada, os jovens não tinham como
depositar o cheque. Outro investidor
em empresas de tecnologia, David
Cheriton, professor de Ciências da
Computação de Stanford, foi um dos
primeiros a perceber o potencial da
Google e investiu outros US$100 mil
no projeto. Em 2013, a fortuna de
Cheriton foi estimada em US$ 1,7
bilhão.
Sergey Brin e Larry Page
conseguiram levantar US $1 milhão
e lançaram, em 4 de setembro de
1998, a Google, Inc. A empresa
ainda funcionava na garagem em
Menlo Park. No ano seguinte, a
empresa tinha oito funcionários e
transferia seus escritórios para Palo
Alto, na Califórnia – essas instalações
são conhecidas como Googlepex.
Fizeram sua oferta pública inicial de
ações em agosto de 2004, tornando
Brin e Page bilionários. Desde então,
Google tornou-se a ferramenta
de busca mais popular do mundo,
recebendo uma média de 5,9 bilhões
de consultas por dia (dado de 2013).
De 2001 a 2011 Brin atuou como
presidente de Tecnologia, dividindo
com Page a responsabilidade do dia
a dia da empresa. Page ocupou a
função de CEO e Eric Schmidt, a de
Presidente executivo.
Sergey é, hoje, o Diretor de Projetos
Especiais na Google, trabalhando
com os melhores engenheiros do
país. Ele se dedica agora ao Google
X, o “secret lab” da empresa. Os
óculos digitais, conhecidos como
Google Glass, foram o primeiro
grande projeto dele na X.
O Google Glass é um dispositivo
semelhante a um par de óculos,
REVISTA MORASHÁ I 84
2
1
3
1. com Anne Wojcicki 2. em israel, com shimoN peres. 3. saboreando um falafel
que, fixados em um dos olhos,
disponibiliza uma pequena tela
acima do campo de visão. A pequena
tela apresenta ao seu usuário mapas,
opções de música, previsão do
tempo, rotas de mapas e, além disso,
efetua chamadas de vídeo ou tira
fotos de algo que esteja dentro do
raio de visão e compartilha a foto
imediatamente pela Internet. Para
tirar uma foto usando os óculos basta
dizer “Tirar foto”. E pronto!
Segundo Sergey, a ideia que motivou
o desenvolvimento do Google Glass
foi que os smartphones inerentemente
nos distanciam das experiências
no mundo real – e ele queria um
dispositivo que nos permitisse
obter informações digitais sem nos
desconectar das demais pessoas.
Incomodava-o o fato de que o futuro
significava um mundo em que as
pessoas andariam olhando para baixo,
mexendo nos seus smartphones.
A Google X também está
desenvolvendo carros sem motoristas,
entre outros.
Vida fora da Google
Brin casou-se em 2007 com Anne
Wojcicki, numa cerimônia íntima
em uma ilha particular nas Bahamas,
totalmente não convencional.
Os noivos estavam num banco de
areia e os convidados os alcançavam
nadando. O traje dos noivos era um
maiô branco e uma sunga preta,
respectivamente. Eles ficaram
casados até 2013 e têm dois filhos.
Os interesses de Sergey vão além
da Google. Ele e Anne fundaram e
dirigem a Fundação Brin Wojcicki.
Classificada em 2012 como a quinta
organização beneficente dos Estados
Unidos. Naquele ano de 2012, a
fundação destinara mais de
US$ 223 milhões para seus projetos.
A fundação tem doados recursos
para as mais diversas causas e
projetos. Entre essas, a Michael
J. Fox Foundation para a cura do
Mal de Parkinson. Brin tem um
51
interesse pessoal nessa Fundação e
na descoberta da cura para o Mal de
Parkinson. A seguir, explicamos a
razão para tal.
Em 2006, sua esposa Anne fundou
uma empresa de genômica e
biotecnologia chamada 23andMe
que a produz kits para testes de
DNA. Quem estiver interessado em
mapear seu genoma precisa apenas
enviar pelo correio o kit com uma
amostra de saliva e, em pouco
tempo, recebe 600 mil marcadores
genéticos. O preço do kit da
23andMe é US$ 99, enquanto em
outros lugares pode chegar a
US$ 1 mil. O kit foi considerado
pela revista “Time” como a maior
invenção do ano de 2008.
Como testador da versão alfa,
Brin teve a oportunidade de analisar
seu genoma, descobrindo que
tinha uma mutação genética com
altas possibilidades de ser vir a sofrer
do Mal de Parkinson. Seu teste
deu positivo para o gene LRRK2.
JULHO 2014
PERSONALIDADE
Gigante da internet
Ao longo dos anos, a Google
lançou inúmeros novos produtos e
adquiriu várias outras empresas de
internet, além de fazer parcerias com
grandes companhias para se tornar
um dos negócios de internet com
crescimento mais rápido no mundo.
Em 2006, adquiriu o YouTube, o site
mais popular de streaming de vídeo
feitos pelos usuários, por US $1,65
bilhões em ações.
Google Glass, o primeiro grande projeto de brin na X
Nem todos com Parkinson têm uma
mutação deste gene e nem todos
com esta mutação têm a doença. Mas
este gene aumenta a probabilidade
da pessoa vir a ter a doença. Em
1999, a mãe de Sergey havia sido
diagnosticada com Parkinson, mas,
na época, as pesquisas indicavam que
a doença não era hereditária. Após
o mapeamento, Brin percebeu os
riscos que corria e se empenhou em
diminuí-los.
Ele chegou a doar US$ 50 milhões
para a pesquisa da doença.
Concentrou as pesquisas em
diferentes tipos de abordagem
científica, afastando-se do método
científico clássico.
Sergey acredita que se coletando
grandes quantidades de informação
e a análise de grandes conjuntos de
dados, pode-se perceber um padrão
que levaria a outros resultados.
Ele propõe que se ignore o uso do
método científico em favor de um
tipo de ciências mais “à la Google”.
Ele quer primeiro coletar os dados,
para então encontrar os padrões
que levem às respostas. E ele tem o
dinheiro e os algoritmos para fazêlo. Na lista da Forbes-2014 dos 15
Empreendedores que mais retribuem
à Comunidade, Brin está em 4º lugar.
Sergey produziu mais de uma dúzia
de trabalhos acadêmicos. É membro
da Academia Nacional de Engenharia
e recebeu o título de membro da
Fundação Nacional de Ciências,
além de participar do Programa
de Pós-Graduação em Ciências da
Computação na Universidade de
Stanford, onde fez o mestrado.
Sergey gosta muito de esportes,
pratica yoga, mergulho e kite-surfing
(surfe à vela). Em 2008, investiu
US$ 4, 5 milhões em uma
companhia chamada Space
Adventures - uma empresa
americana de turismo especial que
coloca viajantes em órbita.
52
O braço filantrópico da Google Inc.,
a Google.org, foi criado em 2004 para
atuar em áreas que afetam a sociedade
como um todo. Desenvolve, por
exemplo, tecnologias que ajudam a
abordar temas globais como educação,
crise energética, gerenciamento da
fome e outros. Entre os produtos
inovadores da Google estão AdSense/
AdWords, Google News, Google
Maps, Google Earth, Chrome, Gmail,
como também o sistema Android
para telefonia celular.
Prêmios e
reconhecimento
Em 2003, tanto Brin como Page
receberam o MBA honorário do IE
Business School, “por incorporarem o
espírito empreendedor e dinamismo
de comando para a criação de novas
empresas...”. Em 2004, a dupla
recebeu o prêmio da Fundação
Marconi, o maior em Engenharia,
e foram eleitos membros da
Fundação Marconi na Universidade
de Colúmbia. Ao anunciar a sua
escolha, John Jay Iselin, presidente
da Fundação, parabenizou os dois
pela sua invenção “que mudou
fundamentalmente a forma como a
informação é recuperada. Sergey Brin
e Larry Page hoje se juntam a um
quadro seleto de 32 pioneiros mais
influentes no mundo da Tecnologia
da Comunicação ...”.
israel
Para vencer a guerra que
a mídia faz contra Israel
O caminho para enfrentar esta nova batalha começou
a ser traçado há 14 anos, quando dois jovens estudantes
britânicos criaram, em Israel, o HonestReporting, uma
organização que tem como objetivo defender o Estado
Judeu e desmascarar a falta de equilíbrio das notícias
quando o tema é o Oriente Médio.
c
om uma equipe multidisciplinar de alto
nível, utiliza todos os recursos tecnológicos e
informações precisas para mostrar quem são
os verdadeiros vilões da história.
Israel está no meio de uma batalha para ganhar a
opinião pública – travada principalmente através da
mídia. Para garantir uma cobertura justa da mídia
internacional sobre Israel a HonestReporting foi criada
em 2000, em Israel, por dois estudantes britânicos.
Trata-se de uma organização não-governamental, sem
fins lucrativos, e sem vínculos com nenhum instituição
judaica da Diáspora ou do Estado Judeu, partidos ou
movimentos políticos. Esta desvinculação de qualquer
esfera oficial lhe tem garantido credibilidade junto à
opinião pública e, também, à mídia. Fundada por
Joe Hyams e Simon Ploske, em Yom Kipur, logo após
a eclosão da segunda intifada na Cisjordânia e na
Faixa de Gaza, pretende desmascarar o que considera
uma sistemática tendenciosidade em relação a Israel
na mídia ocidental. Como fazer isso, com tanta pressão
dos inimigos de Israel?
Quem responde a essa pergunta é Joe Hyams, atual
CEO da organização, em sua visita ao Brasil em maio
último quando concedeu uma entrevista à Morashá:
“Mostrar a realidade de Israel e do Oriente Médio
através de fatos, dados e análises para defender o Estado
de Israel, país demonizado pela mídia internacional nas
últimas décadas, não é uma tarefa fácil. Especialmente
quando sabemos que uma parte dos profissionais e
empresas do setor têm posições preconcebidas em
relação a Israel, independente do tema em questão,
e a outra tem um grande desconhecimento sobre o país
e as questões ligadas ao Oriente Médio, em geral.
A nossa preocupação é a influência e o impacto que
esses segmentos têm na opinião pública, de modo geral,
inclusive a juventude judaica. Por isso, este trabalho
exige perseverança, determinação e vigilância contínua”.
Durante sua permanência em São Paulo, ele participou
de encontros com pais e alunos da Escola Beit Yaacov
e com outras instituições da comunidade, explicando o
trabalho realizado pela organização, sua importância para
Israel e a Diáspora.
53
JULHO 2014
israel
1
Simon Plosker, editor no Media Center, apresenta o projeto “Combatendo a tendenciosidade da mídia”
Um levantamento de dados realizado
pela organização indica que, desde o
ano 2000, já foram obtidos mais de
centenas de pedidos de desculpas,
retratações e revisões de notícias.
“Nossos esforços estão mudando o
perfil da mídia e as reportagem sobre
Israel em quase todo o mundo. Nós
nos dedicamos a defender Israel
contra o preconceito dos meios de
comunicação e, também, a fornecer
ferramentas educativas e recursos
para quem estiver interessado em
trabalhar em prol de Israel ”.
A organização busca assegurar a
realização de reportagens honestas
e transparentes sobre o país, através
de um monitoramento constante
dos veículos de comunicação,
procurando detectar informações
erradas e, também, deturpadas.
Simultaneamente, presta assessoria a
jornalistas estrangeiros na cobertura
do Oriente Médio, tanto fornecendo
informações, dados e fatos, quanto
sugerindo pautas e intermediando
contatos para as matérias. Este
trabalho é realizado através do
Media Center, sediado em Jerusalém,
que conta com uma equipe
multidisciplinar de profissionais
preparados para cumprir esta tarefa,
assessorando jornalistas baseados
em Israel ou apenas em visita ao
país e aos territórios palestinos. Isso
garante o livre fluxo de informações.
O Centro recebe, em média, mais
de mil solicitações, por ano, de
jornalistas interessados em cobrir a
região.
“A guerra entre Israel e seus
inimigos não está mais sendo
travada apenas nos campos de
batalha. Tanques e bombas não
são as únicas munições capazes de
causar danos irreversíveis. Palavras e
imagens, quando bem manipuladas,
têm efeitos igualmente nocivos.
Infelizmente, esta é uma guerra na
qual Israel entrou há pouco tempo –
54
nossos inimigos estão nela há mais
de 40 anos – e a nossa desvantagem
é imensa. Mas nós acreditamos que
podemos diminuir os prejuízos e
reverter esse quadro desde que se
tenha consciência da realidade e da
gravidade da situação”, diz Hyams.
Ressalta, ainda, que é preciso ter a
percepção e a convicção de que este
é um trabalho importante e deve ser
2
realizado.
Para ganhar pontos nessa guerra
não basta conquistar o coração
do público, é preciso, também,
conquistar sua mente. Apresentar
fatos concretos, dados plausíveis e
explicações coerentes que façam as
pessoas prestarem atenção, ouvirem
e analisarem a situação sob novas
óticas, aprendendo a identificar as
calúnias, as distorções, as mentiras.
Para Hyams, o apoio de um público
bem-informado é fundamental para
o fortalecimento do Estado de Israel3
no cenário internacional. Neste
REVISTA MORASHÁ I 84
processo, não basta a correção dos
fatos distorcidos nem a exposição
das falhas da ética jornalística. É
necessário, também, incentivar
a publicação de reportagens
positivas e não apenas de correção
de fatos. “Nossa luta é contra a
desinformação e a manipulação de
fatos e imagens que dão às pessoas
uma falsa impressão sobre o conflito
no Oriente Médio. Infelizmente,
notícias negativas sempre ganham
manchetes lidas por grandes públicos
e, quando há retratação, geralmente
ninguém presta muita atenção e o
espaço dedicado não é o mesmo”,
ressalta Hyams.
Apesar de existir há apenas
14 anos, alguns números revelam
a força e a credibilidade
da organização, cujo site –
www.honestreporting.com – tem
mais de 140 mil assinantes. Cerca de
70% de seus recursos é decorrente
de doações particulares, 23% de
federações e fundações privadas e
1% de investimentos bancários e
anúncios. O orçamento anual incluiu
investimentos para manutenção
do Media Center, monitoramento
da mídia, direitos digitais, relações
públicas, construção de comunidades
online, conferências internacionais
e despesas gerais. No ano passado,
HonestReporting obteve a graduação
4 estrelas do Charity Navigator
para gerenciamento fiscal e
compromisso com responsabilidade e
transparência.
Dentro dessa perspectiva, o
HonestReporting organiza, também,
programas específicos para grupos
judaicos, tão suscetíveis à influência
da mídia internacional quanto os
demais. Segundo Hyams, é muito
importante que os jovens conheçam
a realidade para que possam se
sentir orgulhosos de Israel e,
consequentemente, atuem em defesa
do país. “Que não se deixem
enganar pelos que deturpam a
imagem do país, com ou sem
intenção”. Nos Estados Unidos, a
organização trabalha dentro das
universidades, através das Hillel
House, que congregam os estudantes
judeus.
Como parte de sua agenda anual,
HonestReporting organiza, ainda,
missões a Israel para judeus e não
judeus de vários campos de atuação,
que incluem uma passagem pela
sede em Jerusalém, com palestras
e várias outras atividades, que
permitem aos visitantes terem uma
noção concreta da realidade do país.
“A experiência nos mostrou que
uma viagem a Israel é, muita
vezes, mais eficiente do que várias
conferências, pois, quando estão no
país as pessoas conseguem visualizar
a geografia da região, sua extensão e
a complexidade regional. Elas têm
a oportunidade de ver de perto a
integração entre os grupos étnicos
que compõem a sociedade israelense,
a coexistência de diferentes
culturas,começando, assim, a ver de
outra maneira as notícias divulgadas
pela mídia”.
Nos últimos tempos, a
HonestReporting tem-se dedicado
a lutar contra a campanha
internacional denominada Boicote,
Desinvestimentos e Sanções – BDS
(em inglês, Boycott, Desinvestment
and Sanctions) cujo objetivo é, em
última instância, deslegitimar o país.
Lançada pelos palestinos e seus
aliados em 2005, propõe a adoção
de embargos a produtos e serviços
de empresas israelenses produzidos
nos territórios ocupados. Na verdade,
gradativamente foi ampliando seu
alvo para Israel como um todo. Isto
é o que a HonestReporting tem
procurado mostrar através de um
trabalho constante.
55
Nós nos dedicamos
a defender Israel
contra o preconceito
dos meios de
comunicação e,
também, a fornecer
ferramentas
educativas e recursos
para quem estiver
interessado em
trabalhar em prol
de Israel.
Joe Hyams, São Paulo, 2014
JULHO 2014
personalidade
Reuven Feuerstein,
além dos limites da mente
“Imagine um método além de limites, que melhora o
aprendizado das crianças pequenas com Síndrome de
Down e dos superdotados e de qualquer indivíduo entre
estes padrões; que abre as portas das universidades para
estudantes menos privilegiados e pode, também, evitar
demência nos idosos. pois Este é o Método Feuerstein”.
A
o afirmar que
“a inteligência não é uma
estrutura estática, mas um
sistema aberto, dinâmico,
que pode continuar a
se desenvolver ao longo da vida”,
o psicopedagogo judeu-israelense,
romeno de nascimento, revolucionou
os conceitos e dogmas vigentes nas
décadas de 1950 e 1960, relativos
ao desenvolvimento de indivíduos
com dificuldades de aprendizagem,
portadores ou não de necessidades
especiais. Ele foi o pioneiro na
criação e aplicação do conceito de
que a Inteligência Humana pode ser
trabalhada e desenvolvida.
O fundamento básico do pensamento
de Feuerstein é que todos os seres
humanos – independentemente
de sua idade, limitação ou
condição socioeconômica – têm a
capacidade de melhorar de forma
significativa seu aprendizado e,
consequentemente, seu nível de
funcionamento. Os resultados
obtidos em seu Instituto, ao longo de
décadas, e a aplicação de suas teorias
em mais de 80 países, demonstram
que ele tinha razão. Arrancando
aplausos efusivos sempre que falava
em público, Feuerstein era dono de
um bom humor contagiante.
Ao morrer em abril último, aos
92 anos, Feuerstein – cuja marca
registrada eram a barba espessa e
a boina que usava para substituir a
kipá – deixa como legado a gratidão
e o reconhecimento de milhares
de pessoas que viram sua vida
se transformar por acreditarem
nas teorias que ele criou, além
de seguidores em todo o mundo,
inclusive no Brasil. Atualmente, mais
de duas mil pesquisas estão sendo
realizadas inspiradas e baseadas em
seus trabalhos, com indivíduos das
mais variadas faixas etárias – de
crianças a idosos, com diferentes
perfis, em diversos países.
56
Suas teorias vêm sendo aplicadas
tanto em salas de aula quanto em
clínicas e consultórios. Em 1992,
recebeu o Prêmio Israel para Ciências
Sociais e, em 2012, foi um dos nomes
indicados para o Nobel da Paz.
Em seu velório, no pátio do Instituto
Feuerstein, foi homenageado como
o grande homem que inovou o
processo de educação de pessoas com
necessidades especiais, mudando
sua vida. “Ele foi o Einstein da
educação”, disse a professora Pnina
Klei, da Universidade Bar Ilan. Pai
de quatro filhos – o rabino Refael
Feuerstein (que continua sua obra,
no Instituto), Daniel Feuerstein,
Aharon Feuerstein e Noa Schwartz
–, o psicopedagogo tinha vários
netos, dois dos quais falaram em
seu funeral. Um deles é portador da
Síndrome de Down.
O Instituto Feuerstein está presente
em mais de 26 países, através
REVISTA MORASHÁ i 84
prof. reuven
feuerstein
de 70 Centros de Treinamentos
Autorizados (Authorized Training
Centers – ATC), que atuam sob a
supervisão do Instituto em Israel
e são gerenciados por especialistas
treinados e certificados em Israel.
Sua vida
Reuven Feuerstein nasceu em 1921,
em Botosani, na Romênia, no seio
de uma família chassídica, sendo o
quinto de nove irmãos. Desde cedo
já dava sinais de ser dotado de uma
personalidade especial. Começou
a ler aos três anos, em três línguas:
iídiche, o idioma materno; hebraico,
o paterno; e em romeno, o de sua
terra natal. Sua habilidade era tanta
que ensinava outras crianças, até mais
velhas, a lerem. Certa vez,
em uma das milhares de palestras
que proferiu ao longo de sua vida
– contou o seguinte episódio:
“Quando eu tinha oito anos,
mandaram-me um garoto de 15 que
não conseguia aprender a ler e eu lhe
ensinei a ler em hebraico. Como?
Ensinei-lhe a ler uma prece. E não
parei mais”.
Quando jovem estudou na Escola
de Professores de Bucareste. Na
época em que a Alemanha invadiu
o país, frequentava o curso de
Psicologia no Onesco College,
tendo que interromper sua formação
educacional. Durante a 2ª Guerra
Mundial, o jovem Reuven foi
prisioneiro um ano em campo de
concentração e depois em prisões
nazistas. Ao término do conflito, em
1945, emigrou para a então Palestina
sob Mandato Britânico, onde
começou a lecionar para crianças
sobreviventes do Holocausto.
“Elas foram para Israel depois
de passar três a quatro anos nos
campos de concentração. Seus pais
haviam morrido nas câmaras de
gás. Algumas chegaram a Israel
57
como esqueletos. Eram totalmente
analfabetas aos oito, nove anos de
idade. Eu não podia aceitar a ideia de
que fossem mentalmente limitadas.
Passei mais de sete anos trabalhando
com essas crianças. Não conseguiam
organizar o pensamento, nem suas
ações. Uma noite, em Jerusalém, um
dos meninos, de oito anos, deitou-se
ao meu lado e então começamos a ler
Filosofia juntos”. Este foi o começo
de uma longa carreira centrada
no atendimento das necessidades
psicológicas e educacionais dos
imigrantes, refugiados e outros
segmentos especiais da população
israelense.
Feuerstein retornou à Europa para
completar seus estudos em Psicologia
Clínica e Geral na Universidade
de Genebra, onde foi aluno de
acadêmicos como Andre Rey e
Jean Piaget, assistindo seminários e
palestras proferidos por intelectuais
como Carl Jung e Karl Jaspers.
julho 2014
PERSONALIDADE
Para Feuerstein o
homem tem capacidade
de reversão e de
superar as limitações,
desde que abordado
da maneira correta e
com os instrumentos
adequados. O
método Feuerstein
procura identificar
os pontos fortes dos
indivíduos e não suas
vulnerabilidades.
Em 1970 obteve o doutorado em
Psicologia do Desenvolvimento na
Universidade Sorbonne, na França.
Ao longo das décadas de 1950 e
1960, o professor Feuerstein ocupou
o cargo de diretor de Serviços
Psicológicos do Departamento
da Aliat Hanoar (a Aliá Juvenil)
na Europa. Nesta função, era o
responsável pelo encaminhamento
dos jovens imigrantes aos vários
programas educacionais de Israel.
No decorrer das entrevistas, ele
percebeu que quando os testes de
coeficientes de inteligência eram
aplicados às crianças marroquinas,
seu resultado era baixo. Porém, pôde
notar, também, que quando o formato
do teste era adaptado ao padrão
de pergunta-resposta e aplicado
por um mediador, o resultado era
muito superior. A experiência na
Aliat Hanoar levou-o a questionar
os rígidos conceitos sobre o fato da
inteligência ser estática e a considerar
que as diferenças culturais nos
modelos de aprendizagem eram
aspectos importantes a considerar no
processo de avaliação da inteligência.
Foi nessa mesma época que ele
começou a desenvolver estudos sobre
crianças com baixo desempenho e
seu potencial de mudança. Através
de pesquisas ele descobriu que
o ponto central para a educação
especial era o relacionamento
mediado. Inicialmente utilizava as
ferramentas que havia desenvolvido
para avaliar e ensinar cognição para
crianças com Síndrome de Down
e, eventualmente, com vítimas de
enfartes, demências e paralisia
cerebral e autismo.
Suas ideias e ideais
O método desenvolvido
por Feuerstein é único e
internacionalmente reconhecido
58
como tal. Concentra-se na pessoa e
no que é capaz de realizar, ao invés
de centrar-se em suas limitações.
Para isso, utiliza ferramentas que
estimulam os alunos a superar seus
limites preestabelecidos e conseguir
mais do que poderiam esperar.
Com base em tais conceitos, criou
as Teorias da Modificabilidade
Cognitiva Estrutural (MCE) e
da Experiência da Aprendizagem
Mediada (MLE), que o consagraram
como um dos maiores educadores
das últimas cinco décadas. É,
também, o autor do Programa
de Enriquecimento Instrumental
(PEI) criado a partir da demanda
de professores por métodos que
pudessem solidificar seu trabalho no
formato curricular. Ele desenvolveu
14 “instrumentos” com séries de
exercicios usados por mediadores e
estudantes para enriquecer funções
cognitivas e construir o hábito de se
ter um pensamento eficiente.
Dentro da perspectiva do psicólogo,
o educador é a peça-chave. Sobre
isso, dizia: “Ele transmitirá os
valores, as motivações, as estratégias.
Ajudará a interpretar a vida. Nós,
educadores, estamos mais em jogo do
que a criança e jovens. Se não formos
capazes de ensinar, será impossível
aprender”. Iniciado com crianças
sobreviventes do Holocausto, seu
método se concentra na figura do
mediador, aquele que enriquece
a realidade imediata com novas
informações e significados. Para ele,
o ser humano tem capacidade de
reversão e de superar as limitações,
desde que abordado da maneira
correta e com os instrumentos
adequados. O método Feuerstein
procura identificar os pontos
fortes dos indivíduos e não suas
vulnerabilidades.
Os resultados do programa já
foram documentados em mais de
REVISTA MORASHÁ i 84
1.500 pesquisas científicas, que
atestam resultados extremamente
positivos junto aos mais diversos
públicos. Diferente de programas
que objetivam apenas o conteúdo
do curso, o PEI (Programa de
Enriquecimento Instrumental)
proporciona aos estudantes conceitos,
habilidades, estratégias e técnicas
necessárias ao funcionamento do
pensamento. Corrige as deficiências
de estudantes, dando-lhes a
capacidade de pensarem de forma
a ter habilidades essenciais como
análise, interpretação e conclusão.
Mostra como usar estas habilidades
para melhorar o aprendizado e seu
currículo, ao mesmo tempo em que
desenvolve a motivação intrínseca
dos alunos.
O trabalho realizado com as crianças
sobreviventes do Holocausto foi
fundamental para o desenvolvimento
do método Feuerstein, porque
mostrou que os testes de coeficiente
de inteligência então realizados
não levavam em consideração a
experiência horrorosa que tinham
vivido. Sobre esse período, o
professor costumava dizer: “Quando
avaliamos as crianças diferentemente,
através de uma rotina para medir
a capacidade de aprendizagem ao
invés de seu desempenho presente,
descobrimos que todas elas tinham
um potencial que tinha sido
completamente camuflado nos testes
de QI padronizados”. Feuerstein
percebeu que os pais dessas crianças
não tinham podido dar ordem e
significado às experiências dos filhos,
como é geralmente o caso.
Sua intervenção chamada de
“Experiência de Aprendizagem
Mediada” ajuda a corrigir
deficiências cognitivas e mostra que
a inteligência é modificável, não fixa.
Feuerstein costumava dizer que as
habilidades cognitivas são ensinadas
e enriquecidas com experiências
culturais e que até mesmo os
indivíduos que eram mentalmente
limitados podiam estender sua
capacidade intelectual de forma
drástica”. Podemos contrariar o
determinismo genético”, repetia
constantemente.
A partir da década de 1980, o
professor e psicólogo desenvolveu
o Método Feuerstein para
aplicação em indústrias comerciais,
governamentais e militares, visando
o aprimoramento das ferramentas
cognitivas dos funcionários. Este
método é utilizado em inúmeras
indústrias na China, Índia, América
do Sul, África e Canadá.
Os resultados desse método são
conhecidos também no Brasil, há
anos. Em janeiro último, o SENAC
São Paulo, em parceria com o
Instituto Feuerstein, realizou um
seminário internacional com cursos
inéditos na América Latina. Foi o
primeiro evento sul-americano da
organização israelense realizado
em São Paulo e apresentou aos
participantes a teoria e a prática
da Modificabilidade Cognitiva
Estrutural, a Experiência de
59
Aprendizagem Mediada e o uso
e a intervenção cognitivas com
o Programa de Enriquecimento
Instrumental (PEI). Em 1999, o
SENAC São Paulo se tornou um
Centro de Treinamento Autorizado
do Programa de Enriquecimento
Instrumental e, desde então,
são ministrados cursos que têm
como fundamento o programa
desenvolvido pelo professor
israelense.
Feuerstein jamais desistia de um
indivíduo, lembrou, em seu funeral,
o Rabino Rafael Feuerstein, seu
filho e continuador de sua obra, não
se rendendo diante dos obstáculos.
Costumava dizer que a inteligência é
imprevisível e pode ser modificada.
O ser humano não é um objeto
imutável. Não interessa se o jovem
ou criança tem dificuldades, tem
síndrome de Down, é autista ou
cego. “Nós procuramos transformar
a inteligência na sua estrutura mais
significativa. Com nosso Programa
de Enriquecimento Instrumental,
ensinamos os alunos a organizar e
usar a informação. Mais importante
do que saber, é aprender como usar
este saber”.
julho 2014
história
Médicos cristãos novos
abandonam portugal em 1614
POR REUVEN FAINGOLD
Médicos e cirurgiões exerceram a medicina em Portugal
na Idade Média e início dos tempos modernos. Seus
sobrenomes são citados nos “Livros de Chancelaria
Real dos Reis de Portugal” ou em obras dedicadas à
medicina lusitana. Na “Lista de 1614”, encontrada em Lisboa
no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, achei dados
curiosos sobre esses profissionais da saúde.
H
á quatro décadas,
aproximadamente, a
pesquisa dos cristãos
novos ibéricos vem
fazendo avanços
consideráveis. Valiosos trabalhos
já foram publicados sobre a
dinâmica dos tribunais do Santo
Ofício, o modo de vida judaico e o
cumprimento de preceitos por parte
dos cristãos novos, a difusão de uma
literatura antijudaica em Portugal
durante os 300 anos em que atuou
a Inquisição e a inserção desses
conversos em suas novas comunidades
da Europa e do Novo Mundo.
No entanto, é bastante escasso
o material histórico acerca dos
itinerários e rotas de fuga escolhidos
pelos cristãos novos, principalmente
aqueles que exerciam profissões
necessárias para a sociedade ou a
corte real. Médicos de origem cristã
nova trabalhavam diariamente
na Península Ibérica e na Bacia
do Mediterrâneo entre 1580 e
1640, época em que Espanha e
Portugal constituíam um único
Reino. Muitos deles são lembrados
rapidamente nas fontes inquisitoriais.
No Arquivo Nacional da Torre do
Tombo conserva-se uma lista de
médicos cristãos novos que fugiram
de Portugal em 1614, no auge da
união hispano-lusitana. Esta lista
nominal (ANTT, maço 7, Mss.
2578-2644) inclui minibiografias de
quase 70 médicos cripto-judeus que
abandonaram o país rumo a “nações
livres”, como Marrocos, França,
Holanda, Inglaterra, o Império Turcootomano e, também, em direção ao
“Novo Mundo”, esquivando-se às
constantes perseguições organizadas
pelo Santo Ofício.
Physicus, cirurgicus e
boticarius
É comum fontes medievais
portuguesas elencarem profissões
60
específicas vinculadas à arte
da medicina. Primeiramente,
encontramos o physicus ou medicus,
responsável por detectar diversos
tipos de lesões e doenças (sejam
estas físicas ou psicológicas). Mas,
a partir do século 13, começou-se
a exigir do physicus o diploma de
cirurgicus, um especialista formado
nas universidades europeias,
profissional capacitado para operar
fraturas, realizar cirurgias de órgãos
vitais e efetuar qualquer tipo de
procedimento médico. Em Portugal,
contrariamente aos países da
Bacia do Mediterrâneo, tais como
Grécia, Itália, Creta, Espanha e
sul da França, o médico clínico e
o cirurgião portavam o título de
magister ou mestre. O farmacêutico
era o boticarius, mas a manipulação
dos medicamentos era feita pelo
apothecarius. Uma profissão menos
valorizada em Portugal era a de
barbeiro, o responsável pela extração
de dentes, infusões de sangue e
REVISTA MORASHÁ i 84
Boticario Judeu nas Cântigas de Santa Maria de Alfonso X, o Sábio. Miniatura do Manuscrito del Escorial. séc. 13
raspagem do paciente antes das
cirurgias.
Em Portugal regiam as mesmas
normas que vigoravam em outros
países da Europa. Neles havia uma
rígida fiscalização das atividades
médicas e os profissionais que
atuavam nessas áreas recebiam suas
licenças dos próprios governos,
entrando automaticamente nas
guildas (associações de profissionais)
destinadas aos médicos. Tanto
médicos como cirurgiões constituíam
“comissões especializadas”, cujo
objetivo era testar as aptidões
daqueles que desejavam ingressar
nas especialidades médicas. A
maioria dos judeus fazia parte dessas
comissões, que outorgavam aos
candidatos a tão almejada “licentia
practicandi” ou “licentia curandi”.
Segundo a tradição europeia, era
proibido aos médicos lusitanos
mudar de área de trabalho. Porém,
certas vezes, encontramos exceções,
como os médicos cristãos novos
Gaspar Lopes, que abriu uma loja
de fios de seda, ou Manuel de Mello,
que atuou como cônego na cidade
francesa de Nantes.
Como especialistas da saúde, os
médicos deviam comunicar aos
governos os nomes dos pacientes
doentes ou feridos sob seus
cuidados, o tipo de tratamento
por eles recomendados e as etapas
sugeridas para sua recuperação.
Também deviam informar todos os
casos de óbito. Quando as brigas de
rua causavam a morte de um dos
envolvidos, as partes sobreviventes
eram punidas. Este tipo de legislação
era bastante comum em países
mediterrâneos, tais como Espanha,
Itália, Grécia, Sicília e Creta e sul da
França.
Na Idade Média, os médicos
portugueses eram na sua maioria
61
judeus, atingindo 63% da população
médica do país. Este dado estatístico
derruba o preconceituoso mito
de que os médicos judeus tinham
repulsa pelas cirurgias, autópsias ou
por procedimentos cirúrgicos mais
delicados nos quais era necessário
abrir o corpo do paciente.
QUEM ERAM OS MÉDICOS?
A “Lista de 1614” fornece valiosa
informação acerca da origem, lugar
de nascimento, moradia e idade dos
médicos cristãos novos. Seus nomes
e sobrenomes aparecem sob a grafia
hispano-portuguesa, sendo possível
desvendar os motivos que levaram
seus ancestrais nos séculos 12-13 a se
assentarem em terras lusitanas.
O estabelecimento do Santo Ofício
da Inquisição em Portugal, em
1536, após longa negociação entre
o Estado e o Papado, gerou uma
violenta onda de perseguições com
julho 2014
história
frequentes ataques endereçados aos
novos convertidos. Este fato originou
uma fuga de médicos, a maioria deles
descendentes dos judeus “batizados
em pé”, à força, em 1497. Como
veremos a seguir, vários foram os
itinerários ou rotas de fuga dos
exilados.
Na lista aparece um número
considerável de médicos nascidos
em aldeias e vilarejos densamente
povoados por judeus, enquanto
apenas uma pequena minoria nasceu
em grandes centros urbanos de
Portugal. Assim, em Lisboa, capital
da metrópole, quase não achamos
médicos cristãos novos, à exceção
do “Physico-mór do Rei” e de um
número reduzido de boticários a
serviço da nobreza. O principal porto
do império ultramarino foi uma
“parada obrigatória” para aqueles
aventureiros que emigravam rumo ao
Oriente.
Dentre as regiões geográficas mais
procuradas pelos médicos criptojudeus, podemos mencionar a região
montanhosa das Beiras, com seis
localidades: Lamego, Covilhã, Viseu,
Trancoso, Fundão e Belmonte,
Alentejo, as vilas próximas ao Porto
e o cinturão de Lisboa. A “Lista de
1614” revela, também, que boa parte
dos médicos morava na Espanha, e
atravessava a fronteira para trabalhar
em Portugal.
Há, também, informação relevante
sobre as idades desses profissionais.
De um total de quase 70 médicos,
23 abandonaram Portugal na faixa
dos 40-50 anos. Os médicos jovens
(cinco entre 21-30 anos) raramente
deixavam o país, enquanto três
médicos mais idosos (entre 70-80
anos), tampouco abandonaram tão
facilmente seu território natal. Há
outros 33 médicos listados sem
registro de idade.
da Cunha, mulher do médico
Gaspar Lopes, é retratada como uma
“mulher de 40 anos, rosto pálido
e doente, boca torta desdentada e
fala defeituosa”. Leonor Rodrigues,
mãe do médico Antônio Lopes, era
uma “mulher de mais de 60 anos,
obesa, alta, nariz grande, boca torta
desdentada, muito doente, com
manchas no rosto, fruto de erupção
cutânea”.
antónio luís, cristão novo, lente de
medicina na universidade coimbra, na
época de d. joão iii
No que tange aos salários dos
médicos judeus, a “Lista de 1614”
nos fornece poucas informações,
registrando uma faixa salarial
razoável: um cirurgião recebia
1.600 réis e um médico-mór, 2.000
réis mensais. Consultando uma
obra sobre as profissões e a vida
econômica na sociedade portuguesa,
encontramos que, naquela mesma
época, um barbeiro da corte ganhava
entre 600-650 réis mensais, um
alfaiate entre 700-750 réis e um
ferreiro poderia receber até 1.200
réis/mês. Sendo assim, tudo indica
que a saída de Portugal não estaria
relacionada com reivindicações
salariais, pois todos se sustentavam
condignamente.
PERFIL FÍSICO DOS MÉDICOS
A lista dos médicos judeuportugueses descreve com detalhes
os traços físicos e as características
psicológicas desses profissionais,
encontrando-se, também, ligações
entre os próprios familiares. Fruto
de relações endogâmicas, eles se
casavam com “Mulheres da Nação”,
ou seja, com cristãs novas. Leonora
62
As mulheres dos médicos possuem
atributos e qualidades especiais.
A mulher de Pero Francês se chama
Catharina Alves. Viajou para a
França, onde ficou famosa por
ensinar “a Lei Hebraica”, ou seja,
ritos e preceitos judaicos. Há, ainda,
na lista descrições específicas dos
médicos lusos: Francisco Mourão
possui “corpo ereto, estatura baixa,
rosto delicado, barba ruiva, bons
dentes e, acima de sua orelha direita,
vestígios de uma cicatriz”. O filho
do cristão novo João Rodrigues é
um “médico de 50 anos, baixo e
magro, barba longa escura, olhos
grandes pretos e é tido como um
homem experiente, sábio e astuto”.
Já o médico Vasco Gomes aparece
retratado como “um homem de 33
anos, alto, louro, com pequenas sardas
no rosto, nariz largo, olhos grandes,
gosta de falar, tem mãos delicadas
e longas, com manchas, notando-se
uma lesão no dedo mindinho”.
O doutor Lopo Mendes, de 70 anos,
“tem barba e cabelos brancos, corpo
grande, com sinais de curvatura”.
Poucas são as descrições psicológicas
desses médicos se comparadas com
as físicas. Menciona-se o médico
Lopo Gil, que trabalhava em Vila
Viçosa, de vez em quando, “se faz
doudo” (doido), enquanto seu colega,
o médico Gaspar Lopes e sua esposa
Leonarda da Cunha, “caíram em
prantos” por terem que abandonar
Portugal.
REVISTA MORASHÁ i 84
MOTIVOS PARA DEIXAR
O PAÍS
ITINERÁRIOS DOS
MÉDICOS
Quatro seriam os principais motivos
para os cristãos novos “judaizantes”
abandonarem a pátria portuguesa
por volta de 1614. Em primeiro lugar,
as perseguições inquisitoriais.
O clima de extrema violência,
medo e terror instaurado pelo
Santo Ofício, originou uma fuga
coletiva rumo a países do norte da
África, Europa e regiões distantes
do vasto Império Turco-otomano.
A interferência imposta por
esta instituição na vida pessoal
dos médicos e suas famílias teve
motivações variadas: há os que foram
descobertos ainda antes de deixar o
território, como o licenciado Lopo
Nunes e sua esposa Antônia; há os
que escaparam sem serem pegos,
como o doutor André Vaz; e há,
também, aqueles, como Rui Mendes,
sua mulher e seu filho Antônio, cujos
familiares ou amigos foram tomados
prisioneiros, mas eles conseguiram
fugir. Outro grupo estava composto
por médicos que não conseguiram
escapar do Reino, pois respondiam a
processos inquisitoriais.
A unificação das Coroas de Espanha
e Portugal, que duraria 60 anos
(1580-1640), não alterou a política
persecutória imposta pelo Santo
Ofício aos conversos. Em ambos
os países, os olhos da Igreja e a
Inquisição continuariam a vigiar
aqueles conversos que pretendiam
deixar a Península Ibérica.
Especificamente em Portugal o
batismo forçado de 1497, o pogrom
de 1506 em Lisboa (ver Morashá 53)
e o estabelecimento da Inquisição
em 1536, pelo rei D. João III, foram
responsáveis por uma rígida política
de marginalização dos cristãos novos
da sociedade lusitana, perseguindoos ainda antes de abandonar o
Reino rumo às novas comunidades
florescentes da Europa. A fuga era
a única opção para salvar suas vidas.
Neste contexto, fica evidente que os
cristãos novos com profissões liberais,
dentre elas a medicina, conseguiriam
com maior facilidade sair e se
integrar às novas comunidades.
Em segundo lugar, havia médicos
e cirurgiões perseguidos por
participarem em atentados e
assassinatos. Eram tentativas
frustradas de atirar com armas de
fogo, que às vezes causavam lesões
físicas em cristãos. Na “Lista de
1614” há dois médicos cristãos
novos, Mestre Jorge e Joseph
Camelo, ambos indiciados por
causar danos físicos a cristãos,
acontecimentos que, certamente,
devem ter acelerado sua saída do
país. Joseph Camelo chegou a ser
procurado pelas autoridades locais
“por atirar com um pistolete e ferir
um certo Marcos D´Abreu”, mas
conseguiu fugir a tempo para o
Reino de Castela, na Espanha.
zacuti lusitani, medici, & philosophi
praestantissimi, praxis medica
admiranda. lugduni, 1637
A maioria dos médicos vivia
dignamente com seus recursos,
porém, como acontece em toda
sociedade, há, também, aqueles que
encontram dificuldades para obter o
sustento. A “Lista de 1614” relaciona
dois médicos de nome Manoel
Nunes e Lucas Fernandes, cuja saída
do país foi motivada por dificuldades
econômicas. Ambos saíram de
Portugal em “situação de extrema
pobreza, passando a viver no Brasil”.
E, por último, as pestes e epidemias
que atingiram boa parte da
população da Europa no século
17 foram a gota que faltava para
terminar com esse capítulo dos
médicos cristãos novos em Portugal.
A sociedade lusitana precisou
combater estes males em diferentes
épocas de sua história: 1348, 1356,
1384, 1415, 1432-1435, 1437-1438,
1464, 1477 e entre os anos 14801497. Nos anos 1599 e 1600, uma
devastadora epidemia dizimou
milhares de portugueses, o que levou
médicos como Luiz Gomes, de 50
anos, morador de Porto, a fugir com
toda sua família de sua cidade natal
para a França.
63
Dentre os médicos que fugiram de
Portugal é importante distinguir
aqueles foragidos após ser
concedido o “perdão geral” de 1605
e aqueles que não usufruíram desta
autorização por parte do Estado.
Diferente da política imposta na
Espanha, Portugal decidiu abrir e
fechar suas fronteiras por curtos
espaços de tempo. Cada cristão
novo disposto a deixar o país
devia encaminhar uma petição às
autoridades e pagar altas quantias
pela saída do Reino. Em 1605, por
exemplo, os foragidos pagaram
1.700.000 ducados à coroa. Nessa
política de enriquecimento dos cofres
públicos, encontramos aportes de
um grande número de cristãos novos
espanhóis (a maioria castelhanos)
bem como de portugueses.
julho 2014
história
CONCLUSÕES FINAIS
As informações recolhidas pela
“Lista de 1614” e “Livros de
Chancelaria Real dos Reis de
Portugal” nos permitem reconstruir
o perfil de uma verdadeira elite
cristã nova composta por rabinos,
cortesãos, administradores, fiscais de
impostos e, naturalmente, médicos e
cirurgiões.
Mesmo estudada parcialmente,
essa relação de nomes revela dados
biográficos bastante significativos
sobre os médicos que atendiam à
população lusa no início do século
17. O documento histórico nos
coloca diante de profissionais da
saúde pouco estudados, um grupo
seleto de enorme importância
na pesquisa da medicina judaica
portuguesa.
Cenas no interior de uma farmácia. ilustração nO “Cânone da medicina”
de Avicena, Florença.
BIBLIOGRAFIA
A “Lista de 1614” não fornece
informações sobre os perigos
eminentes encontrados pelos
foragidos rumo às novas
comunidades. Tampouco
menciona os falsos “salvo-condutos”
obtidos pelos médicos conversos
ou faz qualquer referência aos
familiares que fugiam junto
com eles. Os médicos levavam
consigo bens materiais, como
ouro e prata, no entanto, isto não
é mencionado na documentação
pesquisada.
Tudo indica que as condições para
abandonar o território luso rumo
à Europa eram difíceis e nem
todos os médicos cristãos novos
estavam dispostos a se aventurar por
itinerários geralmente desconhecidos.
A saída destes, com ou sem bens
materiais, foi sempre um projeto
pessoal de cada profissional, mas
nunca uma empreitada coletiva.
Segundo a “Lista de 1614”, na hora
da partida é possível detectar cinco
itinerários ou rotas de fuga: das
cidades de Portugal rumo às regiões
da Galícia e Madri (norte e centro da
Espanha); via Espanha rumo a Nantes,
no sul da França; rumo à Itália (por
terra ou via marítima); até os Países
Baixos: Flandres e Antuérpia; ou ainda
do porto de Lisboa rumo ao “Novo
Mundo”: Brasil, Peru e Nova Espanha
(região do México).
Driblando a presença permanente
dos corregedores (policiais que
vigiavam portos e fronteiras), os
médicos conversos conseguiam
ingressar nas pequenas cidades e
fugir das perseguições inquisitoriais.
Os pequenos vilarejos eram “postos
intermediários” nessa longa jornada
rumo às grandes metrópoles da
Europa.
64
Azevedo, Pedro, Médicos cristãos novos
que se ausentaram de Portugal no princípio
do século Xvii. Arquivo Histórico da
Medicina Portuguesa, N.S, Vol. 5 (1914),
págs. 153-172.
Gonçalves, I., Físicos e cirurgiões
quatrocentistas: As cartas de exame. Do tempo
e da história I (1965), págs. 69-112.
Lemos, M., História da Medicina em
Portugal. 2 vols. Lisboa 1889.
Pines, J., Essai sur l’Histoire des Medicins
au Portugal. Imprensa Médica XVII (1953),
págs. 265-274.
Roth, C., The Qualifications of Jewish
Physicians in the Middle Ages. Speculum 28
(1953), págs. 834-843.
Shatzmiller, J., On Becoming a Jewish Doctor
in the High Middle Ages. Sefarad XLIII 2
(1983), págs. 239-250.
Prof. Reuven Faingold é historiador
e educador, PHD em História Judaica pela
Universidade Hebraica de Jerusalém.
É sócio fundador da Sociedade
Genealógica Judaica do Brasil e membro
do Congresso Mundial de Ciências
Judaicas de Jerusalém.
COMUNIDADES
A vida dos judeus na Ucrânia
até início do século 20
Os judeus viviam no território da atual Ucrânia centenas
de anos antes do estabelecimento da nação ucraniana, no
século 9. Sua história foi marcada por sofrimento e muito
sangue judeu derramado em solo ucraniano. Mas foi, também,
o lugar dos shtetls, onde nasceu o Chassidismo e viveram
grandes Rebes, onde floresceu o sionismo e onde nasceram
e viveram personalidades da História e da Literatura judaica.
é
difícil traçar a história
dos judeus que viveram
nesse território, pois
esta se entrelaça com
a da região. Ao longo
dos séculos, a Ucrânia foi cobiçada,
conquistada e dividida entre inúmeras
nações. Khazares, varegues, mongóis,
lituanos, poloneses, russos, austrohúngaros e soviéticos dominaram, em
algum momento de sua história, parte
do território ucraniano. Assim como
o território, seus habitantes passavam
de uma soberania à outra. No caso da
população judaica, isso significava que
esta teria que se sujeitar à postura e às
discriminações e restrições do novo
poder dominante relativas aos judeus.
Gregos e Khazares
A partir do século 7 antes da
Era Comum (a.E.C.), os gregos
instalaram colônias na parte norte
da costa do Mar Negro (sul da atual
Ucrânia), uma área estratégica para
o comércio marítimo, e nas terras
férteis da Península de Taurica ou
Tauris (atual Crimeia). Desde o
início dessa colonização havia judeus
vivendo nas cidades-estados gregas.
Inscrições datadas do ano 80 da
E.C., descobertas no Bósforo, uma
das principais cidades-estados gregas,
testemunham a existência de uma
comunidade judaica estruturada, já
possuidora de uma casa de orações.
No século 7 da E.C., os khazares,
um novo poder militar vindo do
Cáucaso e da região Cáspia, subjuga
as tribos eslavas e conquista a região.
O Império Khazar (ca. 650 – ca.
965/968), que chegou ao seu apogeu
no século 8, durante o reinado
de Būlān, estendia-se das estepes
ucranianas às terras que se avizinham
ao Rio Ural, e da região do Meio
Volga ao Cáucaso do Norte, na cidade
de Astrakhan, no Mar Cáspio.
Acredita-se que durante o reinado
de Būlān, por volta do ano de 740
65
da E.C., a dinastia real, as classes
dominantes e, em seguida, parte
da população se converteram ao
judaísmo.
O século seguinte foi marcado
pela prosperidade. Uma das mais
importantes rotas de comércio da
época, que conectava as três partes
do mundo até então conhecido,
atravessava os domínios khazares.
Atraídos pela prosperidade e pela
possibilidade de viver numa nação
onde o judaísmo era a religião dos
governantes, um grande número de
judeus se estabeleceu no Império
Khazar. Muitos vinham dos
domínios bizantinos para escapar
às constantes discriminações,
perseguições e conversão forçadas
ao cristianismo grego-ortodoxo.
No século 9, havia judeus em todas
as regiões que hoje constituem o
território ucraniano, principalmente
às margens do rio Dnieper e no leste
e sul da Ucrânia.
julho 2014
COMUNIDADES
A existência de um reino judaico no
Cáucaso desperta, em meados do
século 10, o interesse de Rabi Hasdai
ibn Shaprut, médico pessoal dos
califas de Córdoba, Abd-al-Rahman
III, e seu filho, Hakam II. Rabi
Ibn Shaprut era, também, ministro
da corte e diplomata encarregado,
entre outros, das negociações
com delegações estrangeiras que
chegavam ao Califado.
Por volta do ano de 950, Ibn
Shaprut envia uma missiva ao rei dos
khazares indagando sobre a história
de seu povo. A carta chega às mãos
de Joseph, o rei khazar, através dos
bons ofícios de dois judeus que
haviam acompanhado uma delegação
a Córdoba. Em sua resposta, o rei
Joseph relata o início da história
dos khazares e sua conversão ao
judaísmo. A troca de correspondência
entre Rabi Ibn Shaprut e o rei
Joseph, que ficou conhecida como
a “Correspondência Khazar”, é um
dos poucos documentos conhecidos
de autoria khazar e uma das poucas
fontes primárias da história desse
império.
para o Rus’ Kievana (Kyivan Rus’),
o primeiro estado eslavo oriental.
A criação desse estado é de suprema
importância para a região, pois,
do ponto de vista historiográfico,
estabeleceu as bases da identidade
nacional dessas três nações.
Em 877, os rus’ conquistam Kyiv
(Kiev) e fazem dela a capital de seu
estado – Kyivan Rus’. Essa localização
estratégica da nova capital, situada
na confluência de dois rios, Dnieper
e Pripyat, e no cruzamento das
principais rotas comerciais Norte-Sul
e Leste-Oeste, vai ser fundamental
para a rápida ascensão de seu império.
Kyivan Rus’ atingiu seu apogeu nos
séculos 10 e 11, com um território de
800 mil km2, que se estendia desde
as montanhas dos Cárpatos até o rio
Volga, e do Mar Negro até o Mar
Báltico.
Estado Rus’ Kievana e a
identidade ucraniana
Um dos grandes pontos de inflexão
da história ucraniana foi a conversão,
no século 10, do povo ao cristianismo
greco-ortodoxo. Essa conversão
vai ser crucial, também, para a
história dos judeus da Ucrânia, por
ser marcada por um profundo e
endêmico antijudaismo. Logo após a
conversão, o clero ortodoxo passou a
incitar o povo contra os judeus. Em
Kiev, por exemplo, Theodosius (10571074), abade do Mosteiro Pechersk
Lavra, pregava a necessidade de “viver
em paz com os amigos e inimigos,
mas com seus próprios inimigos, não
os inimigos de D’us: os judeus e os
hereges”. Em Chernigov, uma das
mais antigas comunidades judaicas,
também os judeus passaram a ser alvo
da hostilidade da população.
Varegues da Escandinávia –
chamados de Rus’ – conquistam,
no século 9, o território que hoje
engloba três nações eslavas orientais
modernas: a Ucrânia, a Bielorrússia e
a Rússia Ocidental, lançando as bases
A partir de 1054, as lutas entre
príncipes de Rus’ levaram à
fragmentação do Kyivan Rus’ em
13 principados. Dois deles são de
grande importância na história da
região, em geral, e na judaica, em
Por volta de 966, tribos eslavas
lideradas por príncipes russos
invadem o Império. Os khazares
retiram-se para seus domínios na
Península da Crimeia, a Khazaria,
como era chamado seu estado, e
mantêm sua independência até
meados do século 11, quando são
conquistados pelos russos e pelos
bizantinos.
66
particular: o de Kiev e o da GalíciaVolínia. Em 1187, a palavra Ucrânia
(Ukrayina) é usada pela primeira vez
para descrever o principado de Kyiv
(Kiev) e o da Galícia.
O Principado de Kiev
O Principado de Kyiv, que ocupava
a área da Ucrânia da margem direita
do rio Dnieper, foi o mais importante
principado de Kyivan Rus’. Desde a
fundação de Kiev, mercadores judeus
haviam sido atraídos à cidade, que
era um próspero centro comercial
situado nos cruzamentos das rotas
de comércio, que uniam, de um lado,
a Europa Ocidental, e, de outro, as
províncias do Mar Negro, a Europa
Oriental e o continente asiático.
Uma carta escrita por judeus de Kiev,
encontrada na Guenizá do Cairo,
revela que havia judeus vivendo na
cidade e em outras partes na Ucrânia
central já no século 10. Sob o governo
do príncipe Svyatopolk II (10931113), os judeus eram protegidos
e usufruíam de total liberdade em
termos comerciais, tendo mesmo
confiado a alguns deles a cobrança de
impostos do principado.
Já era marcante a dicotomia entre
os interesses dos governantes e
o antijudaismo do povo, funesta
herança do cristianismo grecoortodoxo. Em 1113, logo após
a morte de Svyatopolk, os
judeus de Kiev foram vítimas do
primeiro pogrom. Mas, apesar das
dificuldades, continuaram a viver lá
e em outros locais do principado,
tendo sido fundamentais para seu
desenvolvimento comercial, ajudando
a conectar a região com os centros
mais desenvolvidos da época.
Com o crescimento econômico da
região, aumenta o influxo de judeus
oriundos da Khazaria, do Império
REVISTA MORASHÁ i 84
Shtetl em Tzostianetz, fotografia, Ucrânia, 1888
Bizantino e da Europa Ocidental,
particularmente da Renânia (em
alemão, Rheinland), uma região no
oeste da Alemanha. Em crônicas da
metade do século 12, há frequentes
citações do “Portão Judaico” de Kiev.
E os rabinos alemães do período
referem-se, em seus escritos, a judeus
que viajam com suas mercadorias
para a “Russ”. Há referência a Kiev,
também, nos relatos de viajantes
judeus da época, entre os quais,
Benjamin de Tudela e do Rabi
Petachiah de Ratisbon (Regensburg,
na Bavária).
de dois principados distintos,
Volínia (região oeste da Ucrânia) e
Galícia (hoje, Ucrânia Ocidental).
Durou 150 anos e foi um dos três
estados mais importantes que
emergiram da desintegração de
Kyivan Rus’.
No início do século 13, os mongóis
invadem a região semeando terror,
morte e destruição, e os judeus
sofrem amargamente, assim como
o restante dos habitantes. Em 1240,
liderados por Batu, neto de Genghis
Khan, os mongóis tomaram Kiev
pondo fim à independência do
principado, que passa a fazer parte do
Império Mongol.
A Galícia-Volínia atingiu o apogeu
nos séculos 12 e 13. Um grande
número de judeus alemães se
estabeleceu na Galícia e em outras
cidades na parte oeste da Ucrânia,
a partir do século 12. Em Lviv1
estabeleceram-se logo após a
cidade ter sido fundada, em meados
do século 13. Por causa de sua
localização mais no oeste da atual
Ucrânia, a Galícia-Volínia não foi
invadida por hordas nômades vindas
do Leste mantendo um considerável
grau de independência até 1340. Mas,
acabou sendo presa de seus vizinhos
católicos: a Polônia ficou com a
Galícia e a Lituânia, com a Volínia.
Principado de GalíciaVolínia
A Comunidade PolacoLituana
O Principado de Galícia-Volínia
surgiu em 1199, resultante da união
Enfraquecidos por conflitos internos
e invasão dos mongóis e dos tártaros,
os principados ucranianos ofereceram
pouca resistência à hegemonia
lituana. Progressivamente, a maioria
das terras de Rus’ Kievana, inclusive
Lviv – Quando a cidade foi tomada pela
Polônia, seu nome mudou para Lvov.
1
67
Kiev, foi caindo em mãos da
Lituânia.
A expansão do Grão-Ducado da
Lituânia atingiu o seu auge em
meados do século 14, quando
este incluía o território da atual
Bielorrússia e da maioria dos
territórios ucranianos, além de parte
da Polônia e Rússia.
Os grão-duques concederam
privilégios a todos os judeus em seus
domínios. Em Kiev, o número de
judeus aumentou consideravelmente
e eles desfrutavam de muita
prosperidade.
Em 1386, o casamento entre Jogaila,
grão-duque da Lituânia, e Edviges
I, rainha da Polônia, vai ser de
extrema importância na história
da região. Além de o casamento
ter sido condicionado à conversão
de Jogaila e outros nobres lituanos
ao catolicismo, criou-se uma
união dinástica entre a Polônia e a
Lituânia.
No decorrer do século seguinte, em
todo território sob a união dinástica
da Polônia e a Lituânia aprofundase o processo de “polonização”.
Quando passa a ser necessário ser
católico para fazer parte da cúpula
governamental e militar, a maior
julho 2014
COMUNIDADES
parte da elite ucraniana e lituana se
converte ao catolicismo.
Durante longo tempo, os judeus
sob o domínio dos grão-duques
lituanos gozavam de direitos sociais
e econômicos mais favoráveis do
que os vigentes na Polônia. Por isso,
em 1389, com a união da Polônia e
Lituânia, para assegurar aos súditos
judeus os seus direitos, outorgouse lhes uma carta-privilégio. O
documento não só lhes garantia
participação em pé de igualdade
com os comerciantes cristãos como,
também, assegurava-lhes a compra e
o uso de terras.
Cem anos mais tarde, em 1495, os
judeus são expulsos da Lituânia,
causando a emigração de muitos para
a Crimeia, mas serão readmitidos
em 1503. Em fins do século 15
havia judeus ocupando importantes
posições financeiras em Lvov e
Kiev, sendo que na corte circulavam
médicos, banqueiros, grandes
comerciantes e arrendatários judeus.
Vida judaica
No final da Idade Média, milhares
de judeus de várias partes da Europa
Ocidental se haviam estabelecido na
Polônia. As Cruzadas, as expulsões,
os pogroms, a Peste Negra os haviam
forçado a buscar refúgio no leste da
Europa. A grande maioria instalouse nos domínios da Coroa Polonesa,
que, a partir do final do século 13,
concedera condições favoráveis
ao seu assentamento, com amplas
garantias jurídicas.
Os direitos concedidos pela Coroa
Polonesa lhes haviam aberto novas
oportunidades econômicas tanto da
zona rural como nas cidades onde
lhes era permitido viver. Na medida
que prosperavam, a população
cristã se ressentia da competição.
Repetidamente, em inúmeras
cidades, durante os séculos 17 e
18, acumulavam-se os pedidos à
Coroa para que esta determinasse
que, naquela cidade, não podiam
viver judeus. Era o famoso non
O processo de “polonização” foi
concluído em 1569 com a União de
Lublin, que transformou o Reino
da Polônia e o Grão-Ducado da
Lituânia em um único estado,
a Primeira República da Polônia,
conhecida, também, como a
Comunidade Polaco-Lituana ou
das Duas Nações. Oficialmente, a
Polônia era uma república governada
por um rei eleito pela nobreza
polonesa, a szlachta.
Nos séculos seguintes, o estado
polonês continuou a se expandir para
o Leste, tornando-se um dos maiores
e mais populosos países da Europa. A
República abrangia os territórios do
que são hoje a Polônia e a Lituânia, a
Bielorrússia e a Letônia, grande parte
da Ucrânia e Estônia, além da região
ocidental da atual Rússia.
tolerandis Judaeis. Em Kiev, em 1619,
conseguiram, pela primeira vez,
expulsá-los.
Em meados do século 17, estavam na
Ucrânia 45 mil dos 150 mil judeus
que viviam nas terras sob o domínio
polonês na margem direita do Rio
Dnieper, nas províncias de Volínia,
Podólia, Bratislaw, Ruś Czerwona
e Kiev. A população judaica era
organizada em kehilot (congregações)
dirigidas por um conselho
comunitário composto de rabinos
e personalidades da comunidade.
Na Polônia, um nível adicional foi
acrescentado: um conselho nacional,
o Conselho das Quatro Terras (Vaad
Arba’ah Aratzot), composto pela
maioria dos rabinos proeminentes e
líderes leigos da época.
O ídiche era o idioma utilizado
por todos os judeus. A vidas girava
em volta de suas sinagogas. Sua
profunda religiosidade lhes era
fonte de consolo e determinava
todos os aspectos de seu cotidiano.
O estudo judaico era de primordial
importância. A fama de uma cidade
não residia em sua importância
econômica, mas no número de
suas ieshivot e na reputação de seus
rabinos. Em meio à população
polonesa, na qual só o clero e uma
minoria da alta nobreza eram
educados, e 90% do povo não
sabiam nem ler nem escrever, era
praticamente nulo o analfabetismo
entre os judeus.
O Sistema Arenda
Coroa em prata para enfeitar a Torá,
Ucrânia, primeira metade do século 19
68
A partir de1569, quando foi criada
a Primeira República da Polônia,
foram disponibilizados aos judeus
amplos lotes de terra, na Ucrânia,
pertencentes à alta nobreza
polonesa. Judeus vindos de toda a
Europa foram para essa região. Os
nobres poloneses lhes arrendavam
REVISTA MORASHÁ i 84
suas propriedades e os judeus as
administravam através do chamado
sistema arenda.
O nobre polonês, dono de enormes
propriedades de terra, era o
governante absoluto dos camponeses,
servos semi-escravizados, que viviam
em suas propriedades. O fato de os
senhores das terras serem católicos,
os servos ucranianos greco-ortodoxos
e os administradores judeus era fonte
de grande tensão.
Pelo sistema arenda, a nobreza
polonesa arrendava não apenas a
terra, mas todos os ativos fixos de
sua propriedade, tais como moinhos,
destilarias, hospedarias e outros.
O contrato incluía, também, o direito
exclusivo de destilar e vender bebidas
alcoólicas. Cabia ao arrendatário
coletar impostos, pagamentos e
produtos agrícolas dos servos.
O judeu que fechava o contrato
levava consigo, além de sua família,
todos os que quisessem acompanhálo como subarrendatários. Acabou-se
criando uma classe média judaica
na zona rural ucraniana e a receita
advinda da arenda e da venda de
bebidas alcoólicas constituía, em
grande parte, o esteio da economia
judaica.
Cresce o número de judeus de tal
forma que foi sancionada uma
lei transferindo o status jurídico
e fiscal dos judeus da Coroa aos
nobres. Esses passaram a construir
cidadezinhas, os shtetls, onde eram
judeus a maioria dos habitantes.
O sistema de arenda era um
verdadeiro barril de pólvora
pronto a explodir. Para aumentar
suas receitas, os latifundiários
exigiam pagamentos cada vez mais
elevados dos arrendatários judeus,
e o não pagamento tinha seríssimas
consequências. Para conseguir fazer
Interior da Sinagoga de Gvozdec, Ucrânia, século 17
face a tais compromissos, os judeus
pressionavam os camponeses. Líderes
judeus sensíveis aos males que
sofriam estes últimos tentaram aliviar
seu fardo. Em 1602, por exemplo,
rabinos e o conselho comunitário de
Volínia pediram aos arrendatários
judeus que os camponeses não
trabalhassem aos sábados e nas festas.
Para a grande maioria dos servos
ucranianos ortodoxos não importava
muito quem era o responsável por
sua miserável situação. Os judeus,
“infames infiéis e estrangeiros”,
representantes dos nobres poloneses
católicos, eram vistos como os
culpados por impor sobre eles um
pesado ônus econômico. O ódio
religioso e o profundo ressentimento
acabaram se concretizando em
perseguições violentas e massacres
terríveis. Para piorar a situação, não
sendo os judeus aliados formais da
nobreza polonesa, eles não estavam,
automaticamente, sob sua proteção.
69
Os massacres de
Chmielnicki em 1648-1649
Em meados do século 17 a Polônia
foi sacudida por duas décadas de
lutas internas e externas (16481667), chamadas na história polonesa
de “Dilúvio” (em polonês, Potop).
O ressentimento contra o poder
polonês veio à tona em várias revoltas
rapidamente reprimidas. Mas, em
maio de 1648, a situação saiu do
controle do governo.
Uma rebelião de cossacos e
camponeses ucranianos, liderada pelo
chefe cossaco Bohdan Chmielnicki,
alastrou-se por todo o território
da atual Ucrânia. Chmielnicki, à
frente de um exército de cossacos do
Dnieper e de tártaros da Crimeia,
transformou a insurreição numa
luta política para acabar com o
domínio polonês na região, que teve
repercussões internacionais. Suas
forças semearam morte e terror
julho 2014
COMUNIDADES
Reprodução do teto da Sinagoga de Chodorow, Ucrânia. Pintado por Israel Lisnicki em 1714 . Museu da Diáspora Tel Aviv
por onde passavam. Ao capturar
as cidades e os vilarejos poloneses,
judeus e padres católicos eram
cruelmente assassinados, sendo
poucos os que se salvaram. Apesar de
serem os poloneses o principal alvo,
foi sobre os judeus que se abateu
toda a sua fúria. Estima-se que havia
150 mil judeus vivendo no território
da atual Ucrânia.
Judeus das áreas rurais dirigiramse às cidades procurando proteção.
Milhares deles batalharam ao
lado dos poloneses nas cidades
fortificadas, que se transformaram
para eles em armadilhas mortais. Na
hora do perigo, os poloneses sempre
abandonavam os judeus sozinhos.
A literatura martirológica judaica
da época recorda o massacre de
comunidades como Nemirov, Ostrog
e Narol. Em Tulchin, soldados
poloneses entregaram os judeus
em troca de suas próprias vidas;
em Tarnopol impediram os judeus
de entrar, apenas para dar alguns
exemplos da barbárie. Em Dubno,
dois mil judeus que viviam na cidade
e redondezas foram massacrados
porque os poloneses não permitiram
que se refugiassem na fortaleza.
Segundo a tradição, os túmulos
estavam localizados próximos ao
muro oriental da Grande Sinagoga,
onde era costume orar pelos mortos
durante o jejum de Tishá B’Av.
O pesadelo chegou praticamente ao
fim em agosto de 1649, quando um
tratado assinado entre Chmielnicki
e a Coroa Polonesa restabeleceu o
domínio do governo polonês nas
partes da Ucrânia onde vivia a maior
população judaica.
Uma das crônicas judaicas da época
descreve a devastação e a obscena
brutalidade: “Muitas comunidades
além do Dnieper, como Pereyaslaw,
Baryszowka, Piratyn e Boryspolê,
Lubin, Lachowce (...) tiveram
morte cruel e amarga. Alguns de
seus integrantes foram esfolados
vivos e sua carne atirada aos cães;
outros tiveram as mãos e membros
decepados e seus corpos atirados na
estrada só para serem destroçados
pelos carros e esmagados pelos
cavalos (...). O inimigo massacrou
mulheres crianças no colo de suas
70
mães (...). Atrocidades semelhantes
foram perpetradas em todos os
lugares por onde passavam...”.
É muito difícil determinar o número
total de vítimas judias dos massacres
de 1648 e 1649, conhecidos entre
os judeus como Gzeyres takh vetat
(Malignos decretos). As crônicas
judaicas dizem que foram 100 mil,
mas há relatos de que foram 300
mil e que mais de 300 comunidades
foram destruídas. Foi decretado um
dia de jejum (20 de Sivan) e preces
especiais foram compostas em
memória das vítimas.
No entanto, apesar da magnitude do
desastre, muitos judeus retornaram
à Ucrânia após ter sido restaurada a
calma, mas décadas se passaram até
novamente se tornarem importantes
no contexto do judaísmo polonês.
A história da Ucrânia daria mais
uma guinada quando Chmielnicki
procurou a ajuda dos russos, que
invadiram o nordeste da Polônia
e a Ucrânia. Em 1655, os suecos
invadiram a Polônia Ocidental.
Ao final daquele ano, quase toda
a Polônia estava ocupada por
REVISTA MORASHÁ i 84
cossacos, russos e suecos. No ano
seguinte, todavia, o exército polonês
foi reorganizado e fez recuar
os invasores. Mas a Polônia se
encontrava em estado caótico e era
grande a deterioração econômica.
No século 18, o ódio acumulado
pelas massas ucranianas volta à tona.
A desordem geral e a agitação dos
padres greco-ortodoxos levaram à
formação de bandos conhecidos
como Haidamacks, compostos por
cossacos da Rússia, Ucrânia e servos
fugitivos.
Os Haidamacks atacaram a Ucrânia
em 1734, roubando e destruindo
muitas cidades e vilarejos,
assassinando grande número de
nobres poloneses e milhares de
judeus. O comandante das forças
Haidamacks, Wasski Washchilo,
proclamara que o objetivo da revolta
era “destruir o Povo Judeu para
proteger o cristianismo”. De acordo
com o censo oficial de 1764 viviam
no território da atual Ucrânia
258 mil judeus, mas acredita-se que
eram mais de 300 mil. Bandos de
Haidamacks acabaram destruindo
comunidades em Fastov, Granov,
Zhivotov, Tulchin e Dashev. Em
1768, os judeus de Uman foram alvo
de um terrível massacre. Segundo
relatos de testemunhas, entre 50 mil
e 60 mil judeus foram cruelmente
assassinados.
Os massacres não interromperam
a imigração judaica para a Ucrânia
apesar das tensões entre os judeus e
as populações ucranianas ao longo do
século 19.
Chassidismo
O Chassidismo apareceu
primeiramente nos povoados da
Ucrânia no início do século 18.
Uma mistura de sofrimentos e
sentimentos, aglutinada por uma
debilitante pobreza, serviu de pano
de fundo para o surgimento dos
movimentos chassídicos.
único vilarejo judaico na Ucrânia e
no resto da Europa Oriental que não
estivesse sob a influência do Baal
Shem Tov e de seus ensinamentos.
O fundador Rabi Israel Ben Eliezer,
o Baal Shem Tov (o Besht), nasceu
na Podólia, em 1700. Na época,
as comunidades judaicas estavam
afundadas em desespero, com a
intensificação dos pogroms e das
acusações de assassinato ritual
contra os judeus. Ademais, a Polônia
enfrentava graves dificuldades
econômicas e tensões sociais que
afetavam o dia-a-dia e sustento das
populações judaicas. Esses fatores,
aliados à desilusão decorrente do
episódio de Shabetai Zvi – um
pseudo-cabalista que alegara ser o
Mashiach –, reforçaram a procura de
sinais da redenção messiânica.
Com sua morte, a liderança do
movimento passa para o discípulo
que lhe era mais próximo – o
Maguid, Rabi Dov Baer (17101772), que se estabeleceu na cidade
de Mezeritch, na Volínia. Rabi Dov
Baer enviou discípulos para espalhar
os ensinamentos do Baal Shem Tov.
A cidade de Berditchev, localizada na
atual Ucrânia, está inexoravelmente
ligado ao nome de Rabi Levi Yitzhak
– “o advogado do Povo Judeu
perante o Trono Celestial”. Rabi
Levi Yitzhak foi dos mais famosos
alunos de Rabi Dov Baer. Este foi
Os líderes religiosos, à época
traumatizados pelo episódio de
Shabetai Zvi, baniram o ensino do
misticismo judaico, ficando o estudo
da Torá restrito à elite. Deve-se
lembrar que, naquele então, somente
a erudição da Torá era considerada
o caminho do judaísmo, mas eram
poucos os que podiam dar-se ao luxo
de estudar. Os livros sagrados eram
raros e caros e a maioria trabalhava
dia e noite para sobreviver. Barreiras,
incluindo diferentes sinagogas,
separavam os cultos dos incultos,
os ricos dos pobres, os líderes dos
homens do povo.
Grande parte da vida do Baal Shem
Tov foi dedicada a aliviar a sensação
de desespero – tranquilizar os judeus,
animar seu espírito deprimido e
eliminar temores e ansiedades.
Para os judeus da Europa Central
e Oriental, especialmente aqueles
que viviam na miséria e sofrimento,
ele passou a ser a materialização
da esperança. Quando deixou esse
mundo, em 1760, não houve um
71
Judeus ucranianos na sinagoga,
na visão do pintor Robert Guttman
julho 2014
COMUNIDADES
o Rebe dos Rebes foi o mestre dos
pilares espirituais do Chassidismo:
Rabi Shneur Zalman de Liadi – o
fundador do movimento ChabadLubavitch –, o Vidente de Lublin
e os dois “irmãos sagrados”, Rabi
Elimelech de Lizensk e Rabi Zusia
de Anipoli.
O domínio russo
Os 20 anos de guerra que colocaram
a Polônia contra invasores suecos
e russos resultaram em uma
deterioração econômica e em tensões
sociais, e no final do século 18, a
Polônia deixa de existir como país
soberano, sendo dividida entre seus
poderosos vizinhos em 1772, 1793
e 1795. A Prússia ficou com a parte
ocidental até o Mar Báltico, a Áustria
com um pedaço central que incluía
a Galícia, mas coube à Rússia ficar
com a maior parte do território- a
Ucrânia, Lituânia e Polésia.
Centenas de milhares de judeus
se tornam súditos indesejáveis dos
czares, antes disso não lhes era
permitido se estabelecerem nos
domínios dos czares. Sua história foi
bem diferente, mais sofrida do que
a daqueles que ficaram sob domínio
austro-húngaro, bem como das
populações judaicas que viviam na
Europa Ocidental e Central.
O regime czarista foi um dos
exemplos mais persistentes de
autocracia da História. Os soberanos
exerciam poder absoluto e, no século
19, ainda existia uma ordem prémoderna de classes sociais: de um
lado, privilégios aristocráticos, e,
de outro, um sistema legalizado de
servidão. No final do séc. 19 e início
do séc. 20, em todo o território
Cheder - Quarto, em hebraico. Pequena
escola onde se ensinava aos meninos
os fundamentos do judaísmo, da língua
hebraica e das orações.
2
russo, o antissemitismo era uma
política oficialmente sancionada
pelo governo, algo que não acontecia
em outros países europeus. Dentre
todas as minorias que viviam sob o
jugo czarista, a mais hostilizada era a
judaica; os maus-tratos, a hostilidade
e o desprezo eram uma constante. A
política czarista era uma mistura de
desprezo e medidas discriminatórias,
e de esforços para “regenerá-los”,
“russificando-os” e os obrigando a se
“amalgamar” com a população cristã.
Por breve tempo, depois de 1772,
a czarina Catarina II, a Grande,
expressou certa benevolência em
relação aos novos súditos judeus,
concedendo-lhes o direito de
residência. No entanto, pressionada
por negociantes cristãos de Moscou,
que queriam impedir a atuação
de comerciantes judeus, em 1791
a Czarina proíbe os judeus de se
estabelecerem na Rússia Central,
no “solo da Mãe Rússia”. Uma
exceção foi feita no antigo território
do sul da Ucrânia. Esta região, a
“Nova Rússia”, foi aberta aos judeus
e outras minorias com o intuito
de povoar a área e desenvolver
sua economia. A cidade principal,
Odessa, tornou-se rapidamente
importante centro de vida judaica.
Em 1775, a Czarina promulgou
um decreto determinando o
confinamento dos judeus – dessa
vez não em guetos, mas numa parte
de seu Império, a chamada “Zona
de Residência” ou “Território do
Acordo” – em russo, Cherta Osedlosti.
Na área que incluía a antiga Polônia,
Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia
passaram a viver mais de 90% dos
judeus do Império. Eles só podiam
se aventurar fora da área delimitada
com permissão especial, de curta
validade, de difícil obtenção. Esse
confinamento forçado prevaleceu até
72
a queda do regime czarista, em 1917.
Nos território da atual Ucrânia os
judeus ainda viviam em cidades
em shtetls, onde eram a maioria da
população. De acordo com o censo
oficial de 1847 por volta de 600 mil
judeus viviam no território da atual
Ucrânia, mas acredita-se que eram
mais de 900 mil. Suas vidas não
haviam mudado, continuavam a falar
o iídiche e seus filhos estudavam
nos cheders2. A vida ainda girava
em volta das sinagogas, dos Rebes,
das leis judaicas e das festas do
calendário judaico. No decorrer
do século 19, progressivamente, os
judeus dos vilarejos migraram para
povoados e cidades maiores, onde,
em muitos casos, se tornaram um
amplo segmento das classes pobres
trabalhadoras.
Súditos dos czares, os judeus
dos territórios ucranianos (com
exceção dos judeus da Galícia que
estavam sob o domínio austrohúngaro) estavam sujeitos a todas
as leis e imposições promulgadas
pelo governo imperial. Em 1804,
Alexandre I promulga o “Estatuto
dos Judeus”. Grande parte das
medidas visava sua “russificação”.
Outro estatutos atacava as bases
econômicas da população judaica,
proibindo-a de arrendar terras,
comercializar bebidas alcoólicas,
inclusive dirigir tabernas. Milhares
de judeus ficaram de um dia para
outro sem meios de sustento. O
governo czarista queria convencer
os servos de que sua vida miserável
e sofrida era “consequência” das
atividades econômicas dos judeus,
e não de sua exploração por nobres
latifundiários.
É difícil dizer qual dos czares russos
foi pior para os judeus. Mas, não há
dúvida de que Nicolau I foi um dos
piores. Odiava todas as minorias mas,
em particular, os judeus. Entre outras
REVISTA MORASHÁ i 84
medidas que atingiram a população
judaica Nicolau I reduziu ainda mais
drasticamente a área de residência
permitida aos judeus, proibiu o uso
de vestuário tradicional judaico e
do uso da língua iídiche. Ele foi
o responsável pelos famigerados
“Decretos Cantonais” publicados em
1827. Era obrigatório para todos os
homens do Império se alistar a partir
de 18 anos, com a duração de 25
anos, o decreto determinava, porém,
que os judeus se alistassem aos 12
anos e, até completarem 18 anos,
vivessem em escolas “cantonais”.
O objetivo era convertê-los; se
resistiam às pressões psicológicas,
eram submetidos a cruéis castigos.
Em 1844, o czar aboliu as kehilot
e colocou os judeus diretamente
sob a supervisão da polícia e das
autoridades municipais.
A situação dos judeus apresentou
alguma melhora com a subida ao
trono do Czar Alexandre II (que
reinou de 1855 até 1881), que
iniciou de imediato reformas para
implantar um sistema de produção
capitalista incentivando a indústria,
o comércio e a construção de uma
rede de estradas de ferro. Em 1861,
emancipou os 47 milhões de servos
russos.
Ninguém tinha mais esperanças no
novo Czar do que os 3 milhões de
judeus que viviam na Cherta. Durante
seu reinado: o odiado alistamento
compulsório foi reduzido para seis
anos, e foi abolido o “acantonamento”
dos jovens judeus. Em 1865,
permitiu que os chamados judeus
“úteis” – comerciantes, banqueiros,
artistas e artesãos qualificados e
os que tinham curso superior – se
estabelecessem na própria Rússia,
pois o Czar queria que o capital e o
talento judaicos fossem usados para o
desenvolvimento da economia de seu
império.
Sinagoga em Kiev, inicio séc.20
Comunidades judaicas formadas por
grandes comerciantes, financistas,
industriais, artistas e acadêmicos
surgiram em várias cidades,
principalmente em Odessa.
Esses judeus vestiam-se seguindo
os padrões ocidentais, falavam russo
e seus filhos frequentavam escolas
russas, e muitos adotaram as ideias
da Haskalá.
Nas duas últimas décadas do governo
de Alexandre II, a Rússia vivenciou
um impressionante desenvolvimento
econômico. Empresários judeus
destacavam-se no comércio e no
sistema bancário. Graças a seu acesso
ao capital e às relações internacionais,
eles estabeleceram as bases do
moderno sistema financeiro da
Rússia e foram responsáveis pela
construção e financiamento de 75 %
do sistema ferroviário do país.
Mas, nuvens pretas se avizinhavam
da população judaica. Na década
de 1870, Alexandre II deu uma
guinada reacionária adotando
ideias do nacionalismo eslavo, que
pregava uma volta aos valores russos
e desprezava qualquer ideia liberal.
Como era de se esperar, os judeus
foram os grandes alvos da nova
política. Até início do século 20,
foi-se gradualmente acumulando
contra eles uma enorme massa de
legislação discriminatória.
Placa para enfeitar a Torá, Ucrânia,
século 19
73
A fase relativamente liberalizada
terminou abruptamente em 1881,
julho 2014
COMUNIDADES
Ocidente. Calcula-se que, entre
1881 e 1918, cerca de 1 milhão e
300 mil judeus deixaram o Império
Russo. Com a subida ao trono do
novo czar, Alexandre III, o ódio aos
judeus assumiu inúmeras formas,
desde a organização de pogroms
até a falsificação e a publicação
dos famigerados “Protocolos dos
Sábios de Sião”. Sob a proteção de
“eslavófilos” – cujo credo centrava-se
no conceito da “Santa Madre Rússia”
e da “Rússia para os russos”, da Igreja
Ortodoxa – que deu sua aprovação
religiosa – e do governo – agindo
nos bastidores – o antissemitismo
se tornou um movimento bem
organizado, “respeitável” mesmo.
Judeus religiosos em frente à Sinagoga de Przemysl, na Galícia, em 1905
quando Alexandre II foi assassinado
por revolucionários. Seis semanas
após a sua morte, por ocasião da
Páscoa, inicia-se, no sul da Ucrânia,
uma onda de violência. Os pogroms
duraram dois anos, espalhando terror
e derramamento de sangue por cerca
150 localidades. Enquanto matavam
os judeus e suas propriedades eram
saqueadas e destruídas, a polícia e o
exército eram mantidos afastados,
por vários dias, antes de intervir.
Segundo vários historiadores, os
pogroms foram iniciados, acobertados
ou organizados pelo ministro do
Interior. Na época, o governo russo
negou qualquer responsabilidade,
mas não há dúvida de que se não
há “provas” de uma participação
direta do governo, há certeza, no
mínimo, de sua conivência, haja vista
o alastramento rápido e simultâneo
dos pogroms por toda a Rússia. Os
oficiais do governo cinicamente
justificavam-nos, afirmando que
eram “culpa” dos próprios judeus, já
que não passavam de “uma explosão
de raiva dos camponeses contra a
população judaica”.
Em 1882, o governo czarista deu
mais um passo contra a população
judaica. O novo conjunto de leis,
intitulado as “Leis de Maio”, era
extremamente discriminatório
e cruel, restringindo ainda mais
sua liberdade de movimento e de
residência. Tornava extremamente
difícil, senão impossível, seu acesso
à educação e à atividade econômica.
Os judeus russos não podiam
comprar terras, ter cargos públicos,
ser professores universitários.
Segundo o censo de 1897 viviam nos
territórios ucranianos sob domínio
russo 1.927.268 judeus. Pressionados
de todos os lados, a grande maioria
deles viviam em condições críticas. O choque emocional provocado
pelos pogroms de 1881-82 e
as Leis de Maio tiveram várias
consequências. Entre outras, acelerou
a formação do Movimento Sionista
e a fuga de judeus russos para o
74
A violência era abertamente
instigada pelo governo, que passou a
manipular abertamente o sentimento
antijudaico das massas russas, com
dois objetivos. O primeiro era tentar
reduzir a população judaica da forma
a mais rápida e drástica possível.
O segundo, canalizar a insatisfação
popular, especialmente entre os
camponeses, alimentando o seu ódio
contra os judeus.
O intuito do governo czarista era
controlar uma onda revolucionária
muito mais abrangente que acabaria
eclodindo no início do século 20 e
poria fim ao odiado regime czarista.
Para muitos judeus, parecia o fim de
seu sofrimento. Mal sabiam que era o
início de outro pesadelo...
Bibliografia:
Dubnow, Simon, History of the Jews in
Russia and Poland: From the Earliest Times
Until the Present Day, Ed. Nabu Press, 2010
Dubnow, Simon, Works of Simon Dubnow.
Kindle edition
Meir ,Natan M. Kiev, Jewish Metropolis:
A History, 1859-1914 (The Modern Jewish
Experience), Ed. Indiana University Press ,
2010
REVISTA MORASHÁ
CARTAS
Gostaria de agradecer por terem me enviado
a Morashá na hora exata! Fiquei emocionada
quando abri a revista lindíssima, com mensagens
fantásticas um pouco antes de iniciar o Seder. É
realmente um tesouro a ser colecionado.
Bruna Dayan
Por e-mail
Felicito toda a equipe da Morashá,
uma revista que honra a tradição
de bem educar do judaísmo.
O número de abril com o anexo
dedicado ao Seder de Pessach está
realmente irretocável. O capricho
não é só nos aspectos primordiais
da divulgação religiosa associada à
qualidade cultural. A impressão é
belíssima, a arte visual de alto nível
e a impressão em excelente papel.
Fazendo parte da pequena kehilá de
Vitória, Espírito Santo, gostaria de
saber da possibilidade de me tornar
assinante, pois os números a que
ocasionalmente tenho acesso são do
meu filho.
Renato Guéron
Vila Velha - ES
Quero agradecer por esses anos
todos de rica instrução que a equipe
de Redação da Morashá tem-nos
proporcionado. Nossa gratidão não
pode ser expressa em palavras, nem
mesmo um gadol assir tová, nem um
TODÁ RABÁ em letras maiúsculas
podem descrever como é bom receber
tantas informações sobre nosso povo
e sua herança milenar. Em especial
agora, com a chegada do meu neto
Isaac, terei motivos adicionais para
continuar amando a publicação e, junto
com a Hagadá, estudar cada mitzvá e
nossa Torá com meu pequenino.
Ivan Liñares
Por e-mail
Muito obrigado pelo envio da
Morashá. Gostei muito da Carta
ao Leitor e que belo o suplemento
para o Seder. Vale destacar, entre
outros, Os fundamentos do Judaísmo,
As 20 Crianças de Hamburgo e o
artigo sobre Moacyr Scliar.
Marcio Shmuel Gomes
Rio de Janeiro - RJ
Parabéns à Morashá. Quero agradecer
à equipe da revista pela felicidade
de poder receber esta relíquia, um
tesouro de ensinamentos que
enriquecem a nossa identidade judaica.
Inês Rosenthal
Rio de Janeiro - RJ
A Morashá é uma revista
maravilhosa e impressionante a cada
edição.
Fernando Boldrin.
Ribeirão Preto - SP
Gostaria muito de agradecer o
recebimento da Morashá de Pessach.
Parabéns pela excelente publicação
que muito honra ao povo judeu.
Choil Plosk
Rio de Janeiro - RJ
Desejamos parabenizar, mais uma
vez, pela excelência dos artigos da
publicação e agradecer pelos envios
que recebemos faz muitos anos.
David Gerzvolf Gubin
Manaus - AM
75
Frequentei por muito tempo o
Shil Da Vila, (Adat Yschurum) no
Bom Retiro, depois me mudei para
Joinville e passei a frequentar o
SIP Curitiba. Fiz aliá, fiquei dois
anos e meio em Beer Sheva, e
frequentava a Beit Knessset Ohel
Rachel e a Yeshivah Orot Ysrael, na
mesma cidade. Regressei ao Brasil há
dois meses e provavelmente retorne
ao Shil da Vila mais para festas e
alguns shabatot por mês. Não vi
até hoje uma revista tão bem editada
como a Morashá, feita com amor
e carinho, nos exemplares que
sempre recebia de amigos pode-se
notar o nível de empenho em sua
produção. Ela traz sempre temas de
muita importância para nós. E sem
dúvida para meus filhos será mais
uma fonte constante de informação
e ligação com nossas tradições e
interesses.
Vangelis Maciel Lopes
Votuporanga - SP
Nós, da Biblioteca “Olíria de Campos
Barros”, agradecemos a doação da
revista e suplemento da Morashá,
edição 83, abril 2014. Será um
prazer incluí-los em nosso acervo
e disponibilizá-los à população de
Diadema.
Fabio Orsi Meschini, Bibliotecário
Prefeitura do Município de Diadema
Secretaria de Cultura, Serviço de
Biblioteca e Documentação
Diadema, SP
julho 2014

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