STF Jania Saldanha UF Santa Maria

Transcrição

STF Jania Saldanha UF Santa Maria
Excelentíssimo Senhor Min. Ricardo Lewandowski
Supremo Tribunal Federal
AUDIÊNCIA PÚBLICA
ADPF nº 186
Recurso Extraordinário nº 597285/RS
Yo soy un moro judío
Que vive con los cristianos,
No sé que dios es el mío
Ni cuales son mis hermanos.
Jorge Drexler
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, autarquia federal,
representada pela Profª. Drª. Jânia Maria Lopes Saldanha, vem perante Vossa
Excelência, na condição de uma das entidades e pessoas selecionadas para
participar da Audiência Pública prevista no artigo 9º, § 1º, da Lei 9868/99,
apresentar sua manifestação nos termos que seguem:
1.
Sobre a audiência pública
A UFSM agradece a oportunidade ímpar em poder participar do ato da
audiência pública e registra seu reconhecimento pela iniciativa desta Corte
Suprema em abrir-se mais uma vez à sociedade para ouvi-la sobre temas da
mais alta relevância para os destinos do Brasil. Trata-se da emergência da
abertura senão à democracia participativa, ao menos à democracia
representativa alargada por viabilizar à sociedade, por meio de seus
representantes, tomar lugar no processo, possibilidade impensável no processo
de perfil privatista e individual legado ao Brasil e que se tornou, ao longo das
últimas três décadas descompassado com o processo constitucional e com as
demandas produzidas no vigor da democracia. A audiência pública torna-se um
lugar de exercício da cidadania, portanto, da diferença e marca indelevelmente
a vida do processo brasileiro. Em tempos de virtualização resgata-se o papel da
oralidade. A palavra falada, vinda de muitas vozes, inverte a lógica da
decidibilidade judicial porque a decisão coletiva resulta do diálogo e do
trabalho coletivo de reflexão em matéria de alta complexidade social.
2.
Ações Afirmativas e Democracia: Apenas um prelúdio
A UFSM poderia invocar os grandes pensadores da teoria política clássica
para justificar, nesta oportunidade, a sua decisão em adotar política de ação
afirmativa de acesso e permanência por meio de cotas. Mas não. Lembra do
riso da mulher de Trácia que ao ver Tales de Mileto cair no buraco, deu uma
gargalhada. Afinal, olhando para o céu, o filósofo não viu o que estava à frente
de seus olhos. Por isso, inicia citando uma brasileira, que disse:
“PÁTRIA MÃE VIL: Onde já se viu tanto excesso de falta? Abundância de inexistência.
... Exagero de escassez... Contraditórios? Então aí está! O novo nome do nosso país!
Não pode haver sinónimo melhor para BRASIL. “ ..... A minha mãe não 'tapa o sol
com a peneira'. Não me daria, por exemplo, um lugar na universidade sem ter-me
dado uma bela formação básica.
E mesmo há 200 anos atrás não me aboliria da escravidão se soubesse que me
restaria a liberdade apenas para morrer de fome. Porque a minha mãe não iria
querer me enganar, iludir. Ela me daria um verdadeiro Pacote que fosse efectivo na
resolução do problema, e que contivesse educação + liberdade + igualdade. Ela sabe
que de nada me adianta ter educação pela metade, ou tê-la aprisionada pela falta de
oportunidade, pela falta de escolha, acorrentada pela minha voz-nada-activa. A
minha mãe sabe que eu só vou crescer se a minha educação gerar liberdade e esta,
por fim, igualdade. Uma segue a outra... Sem nenhuma contradição! ”
(http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf)
A UFSM escolheu essa passagem para dar início a essa breve intervenção
ao final desses 3 intensos, raros e ricos dias de reflexão sobre a política de ação
afirmativa de cotas nas IES do Brasil porque foi escrito por uma jovem
estudante brasileira – Clarice Zeitel Viana da Silva -, de uma universidade
pública, premiada em primeiro lugar pela UNESCO tendo concorrido com mais
50 pessoas e que, sabiamente, descreveu as desigualdades com as quais
convivemos há mais de 500 anos.
Assim, passado o período colonial, ao menos na sua feição jurídica,
países como o Brasil, herdeiros da cultura colonialista, muito longe estão da
superação do colonialismo social, como refere Boaventura de Sousa Santos.
Apesar de as Constituições dos Estados democráticos, como a do Brasil,
preverem o fim das desigualdades entre os indivíduos, que consistem, no geral,
em desigualdades coletivas, é notório que a sociedade mantém vivamente
mecanismos de exclusão social, seja em razão da condição social das pessoas,
da raça, da opção religiosa, da orientação sexual, da questão de gênero e da
condição física.
Há uma legião de cidadãos brasileiros à margem do processo educativo,
ausência que os mantém na condição de excluídos sociais, vivendo sem
dignidade, dentre eles os negros e os índios. Essa exclusão delineia um tipo de
desigualdade central que é aquela ligada ao acesso ao ensino superior e que
deriva de conhecidos fatores que produziram excludência histórica
paulatinamente “naturalizada” e, por isso, tornada ”invisível”.
Entretanto, o Estado brasileiro, por seus Órgãos, especificamente o
Ministério da Educação, tem empreendido nos últimos tempos verdadeira
campanha de inclusão dos historicamente excluídos aos bancos escolares,
particularmente os da Universidade, condição para sua emancipação individual,
como também de sua emancipação social. É o caso do PROUNI e do acesso
pelo sistema de cotas adotado por inúmeras IES brasileiras.
Ancorado na idéia de que a desigualdade nociva deve ser reduzida,
senão erradicada, por meio de ações afirmativas, o Estado, ao realizar uma
correta hermenêutica constitucional, reconhece na chamada “discriminação
positiva” para o acesso ao ensino superior um importante canal de
emancipação humana e de inserção social.
Assim, no que diz respeito às Universidades públicas brasileiras, deve-se
reconhecer que a universidade é um espaço de poder, uma vez que concede
aos estudantes o “passaporte” (José Jorge de Carvalho, Inclusão étnica e racial
no Brasil. A questão das cotas no ensino superior. São Paulo: Attar, 2005) para a
ascensão social por meio do trabalho.
Pouco se fala do saber que a universidade produz, como meio de poder,
algo, todavia, não esquecido e Michel Foucault. Mas ambos – poder e saber são inseparáveis. Comunicação e transmissão de saber entre indivíduos e
grupos, assim como recusa de transmitir saber – não dizem apenas respeito,
nas palavras de Norbert Elias (Os estabelecidos e os outsiders. Zahar, 2000, p.
208) ao aspecto cognitivo das relações humanas, mas incluem invariavelmente,
relações de poder que se corporificam na distinção entre establishment e
outsiders.
Daí decorre o poder conferido ao establishment, grupo de pessoas que
detém prestígio por ocupar, historicamente, os lugares estratégicos nas
estruturas de poder político e econômico e que somos todos nós, os brancos da
sociedade, com a conseqüente exclusão dos outsiders, (Elias, p. 199) aqueles
que estão fora da “boa sociedade” e afastados do saber, por isso, não
participam do exercício do poder não se constituindo em agentes de
transformação social. De outro modo, são os instrangeiros de que fala Sérgio
Buarque de Holanda.
É preciso reconhecer, evidentemente, que nas sociedades democráticas
as desigualdades são menores do que em sociedades não democráticas (Elias,
p. 199). Porém, absolutizada a distinção, tem-se uma falsa representação da
realidade que se torna perigosa e perversa, pois alimenta uma falsa visão do
mundo, como é a da democracia racial no Brasil. Em verdade, o que ocorre, sob
o ponto de vista antropológico, é que determinados grupos humanos – aqui do
establishment - percebem a determinados grupos como de menor valor do que
eles mesmos. A história que se passa em Maycomb, cidade situada no
Alabama, tal como descrito na obra de Herper Lee, confirma essa afirmação. O
personagem principal – Tom Robinson -, acusado de prática de estupro,
embora a ausência de provas no processo, foi condenado. Importava menos a
autoria e mais o fato de ser o principal suspeito porque negro. Resultado típico
da relação estabelecidos-outsiders (Elias, p. 200)
A Universidade Federal de Santa Maria, sendo uma autarquia federal que
presta relevante serviço público – a educação – reconheceu essa desigualdade
estrutural que se produzia e reproduzia em seu próprio interior e que é
expressão da relação establisment-outsiders. Do seu quadro de
aproximadamente 1.200 docentes, menos de 1% são negros. E o percentual
desse grupo junto aos alunos, historicamente, foi diminuto ou igual a zero,
sobretudo nos cursos considerados “nobres” como medicina, direito,
odontologia, engenharia, etc. Sua administração passada voltou-se
à
problemática do acesso e da permanência a ela, uma vez reconhecido que a
promoção da educação é um direito fundamental social, no âmbito do direito
interno e um direito humano, no cenário do direito internacional.
Experiências bem sucedidas da UFSM, como o PEIES não deixam dúvida
quanto a esse comprometimento assumido pela UFSM que diz mais com a
efetivação da democracia como valor republicano – e como prática - e menos
com o receio das contrariedades internas e externas que teriam de ser
enfrentadas, cujo argumento principal, invariavelmente, é o de que não existe
racismo no Brasil e a exclusão de negros e índios da universidade não passaria
de invenção. Trata-se da assunção da responsabilidade social que toda
universidade – porque comprometida com a universalidade – não pode se
furtar.
Nas democracias contemporâneas o papel da educação é de crucial
importância para que as sociedades e os povos historicamente vítimas da lógica
colonialista, atinjam sua emancipação. Ainda que o colonialismo como relação
política tenha terminado, enquanto relação social, caracterizada por uma
mentalidade e forma de socialização autoritária, discriminatória e excludente,
como lembra Boaventura de Sousa Santos, ainda está distante do seu ocaso.
Um número expressivo de Constituições dos Estados democráticos prevê
que a educação, em todos os níveis de ensino, é um direito fundamental social.
No entanto, para que esse direito seja implementado efetivamente, é
necessário suplantar, não só no plano teórico – então da positivação de direitos
-, mas também no plano prático – então da adoção de ações concretas -, alguns
legados perversos da modernidade.
Cabe relembrar que a modernidade Ocidental é resultado de um duplo
processo (Boaventura de Sousa Santos. As dores do pós-colonialismo. Folha de
São Paulo de 11 de agosto de 2006). Primeiro, o processo europeu que legou, a
partir da Revolução Francesa, instrumentos poderosos como a liberdade, a
igualdade, a secularização, a revolução científico-tecnológica e a idéia de
progresso. Segundo, o processo extra-europeu dotado de instrumentos
também significativos, mas com sentido invertido, como o colonialismo, o
racismo, a xenofobia, a escravidão, a destruição cultural e ecológica e a
pobreza.
O Brasil é um dos tantos países vítimas desse processo extra-europeu,
mas que tem dado mostras de que vive em suas entranhas a fase pós-colonial,
como repisado por Boaventura. Significa dizer que o colonialismo, longe de ter
terminado com a independência, continua sob outras roupagens, tendo como
princípio as mais variadas formas de exclusão social, com origem na raça, na
condição social, entre outros.
Tal constatação pública foi necessária para que fossem praticadas no País
ações voltadas à viragem descolonial (expressão de Boaventura), de que são
exemplo as políticas de ação afirmativas de acesso e permanência na
Universidade pelo sistema de cotas sociais e raciais, bem como por meio do
PROUNI – Programa Universidade para todos. A primeira, ao contrário do que
afirma o establisment, expressa uma política de ação afirmativa desracializante
e includente. A segunda, destina-se às universidades privadas, também
estabelece uma política de ação afirmativa baseada em critérios raciais e sócioeconômicos.
Nesse contexto, a universidade pública assume um lugar de destaque,
tempo em que é necessário resgatar sua legitimidade social, tarefa difícil e a
ser alcançada a médio prazo, pois implica na sua refundação e na aproximação
com a sociedade, abrindo-se às demandas complexas que o Século XXI
apresenta, sobretudo aquelas dos grupos historicamente excluídos e que não
têm poder de impô-las por si próprios.
Desse modo, a luta pelo resgate da legitimidade social da universidade
pública e pela concretização efetiva de sua responsabilidade social tende a ser
cada vez mais exigente (Boaventura de Sousa Santos. A universidade do século
XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade.
Disponível em http//www.ces.uc.pt , p. 48. Acesso em 27 de fevereiro de
2010). A materialização substancial da Constituição Federal no que diz respeito
à redução das desigualdades sociais com a agregação de conteúdo democrático
ao exercício da autonomia universitária em matéria de política de ação
afirmativa é antes do que uma escolha, uma imposição da democracia.
A adoção pela Universidade Federal de Santa Maria de uma política séria
e efetiva de ação afirmativa, que viabilize oportunidades mais democráticas de
acesso aos historicamente excluídos do processo educativo de nível superior,
implica em dar conformação material a esse acesso. Tal objetivo deverá ser
realizado não somente com a política de cotas para ingresso, mas através da
adoção de medidas acessórias aptas a garantir, ao longo do tempo, a
qualidade do serviço educacional prestado e a demonstrar a real intenção de
que a universidade se repense e se autorreforme democraticamente.
Na UFSM o processo de adoção da política de ação afirmativa ocorreu
como segue.
3.
Ação afirmativa na UFSM: Uma experiência em construção
A UFSM é considerada a maior universidade pública do interior do
Estado do Rio Grande do Sul. No segundo semestre de 2009 tinha
aproximadamente 21.500 matrículas (estudantes de ensino médio, pós-médio,
graduação e pós-graduação) em seus quatro Campi (Santa Maria, Frederico
Westphalen, Palmeira das Missões e Silveira Martins).
Em 2009 a UFSM passou a ter exatamente 100 cursos de graduação. Há
novos cursos previstos com várias comissões trabalhando em seus projetos. Há
a expectativa de criação de um novo Campus na cidade de Cachoeira do Sul.
3.1. Breve relato do processo de adoção da política de ação afirmativa para
acesso e permanência pela UFSM.
1ª Fase: Chamada da comunidade universitária e da comunidade em
geral – setembro de 2006 – em Seminário Internacional que teve os seguintes
objetivos:
a)
Apresentar experiências de ações afirmativas voltadas à educação
superior na América do Sul;
b)
Discutir os programas já aplicados em universidades públicas
brasileiras, tendo como foco o acesso e a permanência de estudantes oriundos
de grupos minoritários;
c)
Lançar o AFIRME – Observatório de Ações Afirmativas para acesso
e permanência nas Universidades Públicas da América do Sul.
2ª Fase: Janeiro de 2007 – entrega oficial ao Reitor da UFSM – minuta da
Resolução – previsão de cotas de 10 a 15% para negros, progressiva, 5% para
pessoas com necessidades especiais, 20% para oriundos de escolas públicas e
número de 5 a 10 vagas, progressivamente, para índios, pelo período de 10
anos. O Projeto previa que a UFSM no exercício de sua autonomia universitária
deveria, no vestibular, criar alternativas de acesso que efetivamente
concretizasse os termos do texto legal. A adoção do percentual para os negros
levou em conta os dados do IBGE relativos à população negra do RS e da região
de Santa Maria onde a UFSM localiza-se.
3ª Fase: Em maio de 2008 houve manifestação em audiência pública dos
diretores dos nove centros de ensino da UFSM, representativos de todos os
cursos de graduação e manifestação da comunidade em geral. No Seminário
contou-se com a presença do Presidente da Comissão das Ações Afirmativas da
UFBA e de dois juízes federais do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
4ª Fase: Votação pelo Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão da UFSM
do Projeto de Resolução, em julho de 2007. O projeto foi aprovado em sua
redação original dando origem à Resolução 011 de 2007.
5ª Fase: Nomeação de Comissão de Implementação e Acompanhamento
da Política de Ação Afirmativa. A Comissão é composta por 12 membros
efetivos, representantes da comunidade universitária e de segmentos da
sociedade. Reune-se ordinariamente a cada 15 dias.
3.2.
Implementação da política no vestibular:
A UFSM criou as denominações cidadão-presente A (para as cotas
raciais); B (para as cotas das pessoas com necessidades especiais); C (para os
alunos procedentes 100% de escolas públicas); D (para os índios) e E (para os
demais vestibulandos).
No vestibular de 2008 – o ingresso de alunos pelo sistema cidadãopresente A, B e D foi reduzido, uma vez ter permanecido um único critério de
seleção para todos, ou seja, um único ponto de corte. Com isso, a finalidade da
Resolução não foi atingida. Desse modo, a UFSM no exercício da autonomia
universitária, para o vestibular de 2009, reavaliou os critérios de seleção.
No vestibular de 2009 – criado ponto de corte específico por categoria o
percentual de preenchimento de vagas nas diferentes categorias mudou
significativamente.
No vestibular de 2010 – mais consolidada a política, uma maior
consciência dos direitos, aumentou o acesso e assim, o número de inscritos e
aprovados teve um aumento significativo
Registre-se que o impacto da adoção da política afirmativa no que diz
respeito à democratização do acesso à Universidade, considerando-se os
percentuais de reserva de vaga adotados, o quais ultrapassam a 50%
(cinquenta por cento) do total de vagas da UFSM, tem sido positiva. Tal
repercussão tende a acentuar-se no conjunto do processo de expansão
universitária proporcionado pelo REUNE.
Veja-se os números:
Vagas Oferecidas (cotas)
PROCESSO
ANO
A
B
C
D
N de classificados (cotas)
A
B
C
D
Vestibular
UFSM
2008
226
118
491
Até 5
vagas
63
10
445
0
Vestibular
UFSM
2009
262
118
464
Até 8
vagas
215
37
434
6
Vestibular
UFSM
2010
448
190
725
Até 8
vagas
208
45
691
5
Processo
Ingresso ou
Reingresso
2010
47
19
78
-
-
-
-
-
Vestibular
Unipampa
2008
52
26
104
Até 5
vagas
25
1
104
0
Vestibular
Extraordinário
2009
126
63
231
Até 8
vagas
81
13
202
2
Vestibular EAD
UAB UFSM
2008
35
21
70
Até 5
vagas
6
0
64
2
Vestibular EAD
UAB UFSM
2009
73
39
131
Até 8
vagas
32
1
118
0
Vestibular EAD
UAB UFSM
2010
100
50
165
Até 8
vagas
44
5
165
1
Vestibular EAD
UAB UFSM
Agric. Familiar
2008
10
6
20
Até 5
vagas
5
0
20
0
Vestibular EAD
UFSM
Sociologia
2009
20
10
40
Até 8
vagas
12
1
40
0
3.3.
Políticas de permanência: Desafios e possibilidades
Se o acesso à educação e à cultura são reconhecidamente indispensáveis,
mister é reconhecer a inadequação dos sistemas de acesso às mesmas. Mas é
preciso ir além. Acesso e permanência não podem andar separados. É
imperioso, senão vital, para o sucesso das políticas de ação afirmativa adotadas
pela universidade, que os grupos incluídos tenham efetivamente condições de
nela permanecer. No quadro das ações afirmativas, as políticas de permanência
são pressupostos para o sucesso daquelas e conformam-se com o princípio
contemporâneo de justiça distributiva.
Na medida em que as discussões relativas ao acesso democrático à
universidade pública encontram várias barreiras teóricas e práticas, desse mal
também padecem as políticas de permanência. Um dos principais argumentos
é o de que ao invés da universidade investir em políticas de permanência
deveria utilizar as verbas que lhe são destinadas, aos programas de pesquisa e
extensão. Entretanto, uma visão desse quilate, somente encontra justificativa
numa postura compartimentalizada do mundo e na perspectiva de
universidade como abstração, sem atores e sem destinatários reais ou, o que é
pior, se os reconhece, nega a desigualdade material entre eles. Mantém, assim,
seu histórico perfil elitista e excludente e, com isso, nega o próprio princípio da
sua existência.
É sabido que algumas universidades públicas brasileiras, que já adotam
sistemas de ações afirmativas através da democratização do acesso,
contraditoriamente possuem tímidos programas de permanência, cuja
conseqüência mais expressiva é o alto índice de evasão.
A Universidade Federal de Santa Maria fez o percurso inverso. Há mais
de vinte anos as discussões sobre a permanência dos alunos hipossuficientes
economicamente tiveram início e resultaram na adoção de políticas afirmativas
de permanência concretas e com resultados positivos. As experiências com: a)
o Programa de Moradia Estudantil, implementado com a Casa do Estudante,
que teve nos últimos anos seu número de vagas significativamente ampliado.
Atualmente são 1.500 vagas. Em 2010 estas residências estudantis serão
ampliadas para dar conta da expansão do ensino de graduação e do programa
de ações afirmativas. Há novas casas de estudantes em contrução (fase final)
nos Campus de Frederico Westphalen e Palmeira das Missões; b) o Programa
de Alimentação, concretizado através do funcionamento do RU-Restaurante
Universitário (em número de três em Santa Maria e e dois nos Campi de
Frederico Westphalen e Palmeira das Missões com oferta de refeições
subsidiadas para estudantes carentes (RS 0,50 almoço/jantar, R$ 0,20 desejum)
e; c) a Bolsa de Assistência ao Estudante – BAE, atualmente com valor
equivalente a R$ 150,00 que beneficia mais de 3.000 estudantes, são exemplos
dessas políticas.
Outras ações afirmativas de permanência que levam em conta a
hipossuficiência em sentido lato também foram implementadas pela UFSM,
tais como: a) o Programa de Informática desenvolvido pelo Laboratório de
Informática (Labinfo) da PRAE – Pró-Reitoria de Apoio ao Estudante e que
oferece cursos de informática do nível básico ao mais sofisticado aos
estudantes que fazem parte dos Programas de Apoio Estudantil; b) o Programa
de Linguagem desenvolvido em parceria com o Laboratório de Redação e
Leitura do Curso de Letras, o qual oferece cursos de inglês, francês, espanhol,
alemão, italiano, português e redação oficial e; c) o Programa de apoio psicopedagógico ANIMA em parceria com o Centro de Educação, oferecido
preferencialmente aos moradores das casas de estudantes CEU I e CEU II.
3.4. Os eixos de trabalho propostos pela Comissão de Implementação e
Acompanhamento da Política de Ação Afirmativa:
EIXO I – Ações voltadas para a preparação dos candidatos ao Concurso
Vestibular
Essas ações da UFSM visam a uma melhor qualificação, para a
concorrência no Vestibular, dos candidatos que concorrem ao ingresso na
Universidade
Contribuições para a melhoria da qualidade da educação ministrada nas
escolas públicas de ensino fundamental e médio:
• Formação inicial de professores – oferta de cursos especiais de
licenciatura para professores das redes públicas – presenciais e a
distância;
• Formação continuada de professores – oferta de cursos de
especialização, de cursos de extensão e de cursos seqüenciais,
produção de materiais didáticos, organização de sites informativos
em cada área de conhecimento e de caráter interdisciplinar,
acompanhamento pedagógico;
• Elevação do nível de informação dos candidatos sobre o próprio
Concurso Vestibular (cursos oferecidos e suas características,
exigências, tipo de provas etc.), bem como da divulgação do
AFIRME – Observatório das Ações Afirmativas para acesso e
permanência nas Universidades Públicas da América do Sul;
• Preparação dos candidatos nos conteúdos específicos exigidos nas
provas do Concurso Vestibular, através da atuação dos cursos: PréVestibular Popular Alternativo e Pré-Vestibular Práxis, apoiando
assim a oferta regular de cursos pré-vestibulares gratuitos e(ou)
em condições de serem freqüentados por alunos menos
favorecidos.
• Publicação de materiais (livros, fascículos, textos, etc) sobre
conteúdo avaliados no Concurso Vestibular.
• Encontros periódicos com estudantes de escolas públicas para
discutir temas de interesse para o processo seletivo.
EIXO II – Ações voltadas especificamente para a realização do Concurso
Vestibular
Essas ações, que pretendem a criação de condições objetivas para acesso
ao Vestibular, envolvem:
• Consolidação dos critérios e manutenção ou ampliação do
quantitativo de isenções de taxa de inscrição oferecido pela UFSM
para o Concurso Vestibular;
• Divulgação, por meio de Edital, dos critérios de isenção, inscrição
de candidatos e seleção dos isentos, de acordo com os critérios
definidos;
• Ampliação do numero de vagas de ingresso por meio de Vestibular
e diversificação da oferta de cursos de graduação
• Reserva de vagas, de acordo com a Resolução 011/2007 e o Edital
de Vestibular, cujos critérios serão amplamente divulgados, para
os públicos interno e externo;
• Realização de estudos comparativos sobre o desempenho dos
candidatos no Concurso Vestibular
EIXO III – Ações voltadas para o favorecimento da permanência dos
aprovados
São ações que visam a implementação de mecanismos de apoio a
estudantes, para que eles tenham condições de trabalhar e estudar, ou
simplesmente de se dedicar ao curso escolhido. Considera-se necessário:
• Concentrar a oferta de cursos em um único turno;
• Ampliar a oferta de cursos noturnos;
• Aumentar o numero de bolsas oferecidas a estudantes de
graduação;
• Estruturar o sistema de acompanhamento acadêmico (tutorial) dos
estudantes nos cursos em que se identifique necessidade e
viabilidade;
• Reforçar a política de assistência estudantil – residência,
alimentação, transporte, etc.
• Criar outros programas de reforço para o aprimoramento do
processo de aprendizagem
EIXO IV – Ações voltadas para o acompanhamento e avaliação das
políticas adotadas
Essas ações envolvem levantamentos e organização de dados estatísticos
que subsidiem relatórios avaliativos quanto aos resultados da adoção de
políticas
afirmativas
na
UFSM,
orientando
a
manutenção,
ampliação/potencialização ou a revisão das medidas adotadas.
•
Realizar estudo sobre perfil sócio-econômico dos estudantes
ingressos no percentual de cotas, para orientar a adoção e o desenvolvimento
das ações;
•
Monitorar os resultados acadêmicos dos ingressos no percentual
de cotas, em comparação com os demais alunos;
•
Realizar estudos de egressos, para avaliar a inserção no mundo do
trabalho dos beneficiados com a adoção de cotas.
4. Considerações Finais
Ao apresentar seu processo de adoção e continuidade da política de
adoção das ações afirmativas a UFSM visou cumprir dois papéis. O primeiro foi
o de demonstrar a esta Suprema Corte que tem consciência da sua
responsabilidade social em dar cumprimento efetivo à Constituição Federal no
que diz respeito à implementação do acesso e permanência ao ensino de
qualidade àquelas pessoas que por razões históricas, políticas e sociais estão
excluídas da Universidade, como negros. O segundo, como autora e
testemunha que é desse processo histórico, embora ainda recente e com prazo
definido de duração, relaciona-se ao fato de que a ação afirmativa de inclusão
racial não radicaliza o racismo presente na sociedade. Ao contrário. Quanto ao
modo de reconhecimento desse direito, (Axel Honneth. Luta por
reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 211), estimula a estima social.
No que se refere às dimensões da personalidade, favorece as capacidades e
propriedades de cada indivíduo. Quanto à forma de reconhecimento busca
criar uma comunidade de valores baseada na solidariedade e na
responsabilidade. Apresenta como potencial evolutivo, a individualização e a
igualização (a dimensão material da igualdade). Na autorrelação prática
promove a autoestima. Virar as costas a essa demanda histórica da sociedade
brasileira significa dar continuidade ao histórico desrespeito, consubstanciado
em privação de direitos e exclusão, em degradação e ofensa, cujos bens
maiores violados são a honra e a dignidade (expressões de Honneth ao tratar
da luta por reconhecimento).
Adotar política de ação afirmativa de cotas raciais para inclusão na
universidade pública brasileira é ter a pretensão e a ousadia de reduzir, senão
erradicar, os efeitos perversos da escravidão, o que não permite esquecer que
os homens “criaram fronteiras, ergueram bandeiras, mas só há duas nações: a
dos vivos e a dos mortos.” (Mia Couto)
Por Jânia Maria Lopes Saldanha