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A história do Fundador “Saotome, este degrau de pedra deve ser encostado um pouco mais à soleira; está difícil entrar.” Olhando para a sólida peça de mármore que o meu professor apontava, de uns dois metros de comprimento por mais trinta centímetros de largura, logo vi que era pesada demais para dois homens. Voltando do barracão de ferramentas, aonde fora buscar uma alavanca, já me dispunha a utilizá-la quando ouvi O-Sensei exclamar às minhas costas: “Saotome, o que está fazendo?!” Com impaciência, afastou-me de seu caminho e agarrou uma das extremidades do bloco. Emitindo um pequeno grunhido, ergueu-o e deslocou-o pelos quinze centímetros necessários; depois passou à outra extremidade e fez o mesmo, completando a tarefa. Fiquei ali parado, de boca aberta, enquanto ele resmungava em tom de desgosto: “Os rapazes de hoje são tão fracos!” Eu mal entrara na quadra dos vinte e tinha os músculos rijos e harmoniosos, graças a várias horas de treinamento duro no Aikido. Mas não podia mover o degrau de mármore que aquele homenzinho de metro e meio e setenta e oito anos de idade, meu mestre de Aikido, deslocara com tamanha desenvoltura. Quando Morihei Ueshiba beirava os oitenta e cinco anos, o tempo e a doença começaram a cobrar o seu tributo. Ele emagreceu e passou a caminhar lentamente. Precisava de ajuda para subir escadas e a cada movimento do corpo sentia dores lancinantes. Entretanto, mesmo doente, continuou a ensinar o Aikido. No momento em que pisava o tatame, deixava de ser o velhinho que suportava os derradeiros sofrimentos e se transformava num homem que não podia ser derrotado nem por outro homem nem pela própria morte. Sua presença era imponente. Brilhavam-lhe os olhos, o corpo vibrava de energia. Sem nenhum esforço superava os seus uchi deshi (discípulos), todos eles jovens, fortes, experimentados no treinamento diário e então no auge da condição física. Sem mostrar sinais de dor ou desconforto, ria-se de nossas insistentes tentativas de atacá-lo ou agarrá-lo. Como demonstração, estendia sua espada de madeira para diante e desafiava cinco de nós a empurrála de lado, com toda a nossa força. Não conseguíamos deslocá-lo, nem ao bokken (espada de treinamento de madeira), um centímetro sequer. Bem mais fácil seria mover uma parede de pedra. Um incidente se destaca dos demais na lembrança que guardo desse tempo. Aconteceu pouco antes de ele dar entrada no hospital. Ainda vejo o Fundador postado diante de mim. Enquanto o encarava, com o bokken pronto para golpear, o minúsculo e frágil homem desapareceu: em seu lugar, vi uma montanha formidável. Sua presença era temível, suas vibrações saturavam o dojo (sala de treinamento). Mirei seus olhos e fiquei paralisado pela poderosa gravidade de seu espírito. A luz que dali emanava continha a sabedoria e a força das idades. Meu corpo não se movia. As palmas de minhas mãos, agarradas à espada de madeira, estavam úmidas; o suor me porejava da fronte. Meu coração batia forte e eu sentia todo o vigor de suas pulsações ao longo das veias dos braços e das pernas. O-Sensei ordenou: “Ataque!” Concentrei toda a minha vontade num kiai, grito de supremo esforço, e ataquei com toda a rapidez e toda a força de que pude dispor. Houve um lampejo de movimento à minha frente – e O-Sensei já não estava ali. Eu dera um único golpe. Ao mesmo tempo, O-Sensei se esquivara dele e eu ouvira o sibilar de três cutiladas do seu bokken. Estava às minhas costas. “Saotome”, disse ele então, “você ataca muito devagar.” E há apenas dez minutos eu amparava penosamente um velho fraco por dois lances de escadaria, levando-o até o dojo! O inevitável aconteceu e sua saúde piorou. Os médicos mandaram-no para casa após uma curta estada no hospital, com a advertência de que a morte não tardaria. Durante as duas últimas semanas de sua vida, revezei-me ao lado da cama de O-Sensei, a observar aquele rosto familiar emoldurado pela barba rala e branca, que mais magro ia ficando a cada dia. Eu sentia uma dor como nunca antes sentira, à medida que as muitas lembranças de sua força quase sobre-humana me acudiam ao coração. Mas, embora o corpo se debilitasse, a mente continuava lúcida e os olhos tinham a limpidez, a serenidade dos de uma criança. Ele falava muito pouco, e no entanto a comunicação era intensa; ele continuava a pensar sempre no Aikido. Dois dias antes de morrer, fez um esforço para sentar-se, olhou para os estudantes ali reunidos e disselhes: “Vocês não devem preocupar-se com este velho. Toda a vida física tem seu limite. No curso da natureza o ser físico tem de se transformar, mas o espírito nunca morre. Logo entrarei no mundo espiritual, mas quero continuar protegendo este mundo onde ainda estou. Esta é a tarefa de vocês.” Mergulhou em profunda meditação e, depois de algum tempo, prosseguiu: “Lembrem-se todos os meus alunos: eu não criei o Aikido. Aiki é a sabedoria de Deus; Aikido é o Caminho das leis que Ele criou.” O-Sensei ergueu os olhos e fez sinal de que queria ir ao banheiro. “Sinto muito, mas depois de ficar na cama o dia inteiro minhas velhas pernas estão muito fracas.” Rapidamente segurei-o por um braço enquanto meu amigo Yoshio Kuroiwa segurava-o pelo outro. Passo a passo fomos descendo o corredor, amparando-o firmemente para que não caísse e se machucasse. De repente ele se empertigou, com o orgulho a brilhar-lhe nos olhos. “Não preciso de ajuda”, disse, e, com um rijo sacudir de ombros, libertou os braços. O velhinho débil e moribundo soltara-se de dois mestres instrutores. Ambos voamos de encontro às paredes, um de cada lado. A passos lentos, Morihei Ueshiba foi seguindo sozinho. Mas a cada passada sua vida ardia como o último brilho fulgurante de uma vela antes de se apagar. Calmo e em paz diante da morte que se avizinhava, vivia a realidade de cada momento à medida que este se apresentava. Só existia aquele momento; cada hausto era o infinito. Quantas lembranças não lhe ocorreriam a cada passo? Seus olhos reluziam, sua postura era imponente. Foi esse o seu desafio final. A vida intensa de Morihei Ueshiba constitui o processo que deu nascimento ao Aikido, cristalização de sua sólida formação espiritual e expressão criativa de sua busca empenhada e incessante da Verdade. O Aikido é a prova viva da transformação dos instintos egoístas de agressão por meio da severa disciplina pessoal e de uma atitude de devoção e reverência, que conduz a vida humana para planos superiores de consciência a fim de que receba a nobre inspiração capaz de subtrair o homem ao amor de si mesmo e confiá-lo ao amor e respeito pela humanidade e pela sociedade – a um amor Divino e universal que O-Sensei chamava “o amor de Kami”, de Deus. Ao longo da vida, o Fundador comportou-se como um verdadeiro samurai da antiga tradição japonesa. Ele encarnava um estado de unidade com as forças cósmicas que sempre foi o ideal espiritual das artes marciais em toda a história do Japão. Como alguém que levou esse ideal à derradeira realização trabalhando pelo bem da humanidade e do mundo, o nome e a vida do Fundador brilham intensamente na história do Budo, o Caminho do Guerreiro. A 14 de dezembro de 1883, no distrito de Motomachi da cidade de Tanabe, prefeitura de Wakayama, Japão, nasceu Morihei Ueshiba, quarto filho de Yoroku e Yuki Ueshiba. Criança delicada e sensível, o início de sua vida foi marcado pela doença. Costumava sonhar acordado, identificando-se com miraculosas histórias do grande mestre budista Kobo Daishi, da região vizinha de Kumano. Aos sete anos, começou os estudos básicos dos clássicos chineses numa escola particular da seita budista Shingon. Estudava muito para um menino de sua idade e mostrava extraordinário interesse pelas meditações, canções e orações dessa seita esotérica. Notando que o jovem Morihei se ocupava em demasia das questões mentais, seu pai, um homem forte e vigoroso, encorajou-o também a robustecer o corpo na prática da natação e da luta Sumo. Durante os anos que se seguiram, o jovem Ueshiba recebeu excelente educação na escola primária de Tanabe. Desenvolveu um espírito refinado e o corpo cresceu em força e saúde. Na escola secundária (para estudantes de treze a dezessete anos), tomou lições particulares de ábaco. Em pouco mais de um ano revelou tais progressos no ábaco que se tornou assistente do professor. Ueshiba mudou-se para Tokyo na primavera de 1901 e montou a Companhia Ueshiba, uma loja de artigos de escritório grande o bastante para empregar diversos vendedores. Entrementes, despertara nele um profundo interesse pelo Budo e, enquanto esteve em Tokyo, ele estudou tanto a Escola Kito de Koryu Jujutsu (luta sem armas) quanto a Escola Shinkage de Kenjutsu (técnicas de esgrima). Mas a doença havia de rondá-lo novamente, de sorte que, depois de distribuir sua empresa entre os empregados, voltou para casa, em Tanabe, a fim de apressar a convalescença. Uma vez curado, Ueshiba desposou Hatsu Itokawa, a quem conhecia desde a infância. A atitude de arraigada responsabilidade social que nele fora impressa pelo pai se robusteceu mais ainda ao assumir as responsabilidades da vida familiar. Acreditando que as mudanças só poderiam ocorrer por meio da ação, Ueshiba colaborou para muitas reformas sociais. Quando uma nova lei de pesca veio favorecer as grandes frotas pesqueiras comerciais impondo pesadas dificuldades aos modestos pescadores do distrito onde Ueshiba residia, ele aderiu à campanha pela revogação da lei e participou do “Incidente de Iso”, uma demonstração de protesto ocorrida na pequena aldeia pesqueira de Iso. Coma sua ajuda o problema foi resolvido e Ueshiba tornou-se muito conhecido pela sua atuação. Com a idade de vinte anos, alistou-se no exército e serviu no 37º. Regimento da Quarta Divisão de Osaka. Sua atitude sincera e devotada, bem como sua extraordinária habilidade, não tardaram a chamar atenção dos superiores. Considerado de longe o melhor baionetista do regimento, exibia uma técnica tão ágil e pura que mesmo o mais atento escrutínio dos juízes revelava-se incapaz de detectar como todos os seus adversários eram instantaneamente derrotados. Durante a Guerra Russo-Japonesa, as histórias que os camaradas de Ueshiba contaram a respeito de sua grande coragem sob o fogo inimigo transformaram-no numa lenda viva, e na tropa ele era respeitosamente chamado “o soldado Kami”. Reconhecendo seu talento e sua capacidade para tornar-se um futuro general, os superiores instaram-no a frequentar a escola de formação de oficiais, mas problemas domésticos obrigaram-no a abandonar a carreira militar depois de quatro anos de serviço. Levava consigo o certificado da Escola Yagyu de Esgrima, obtido graças ao estudo e à prática nas horas de folga, e a admiração e o respeito de todos quantos com ele haviam servido. Depois de seu regresso a Tanabe, canalizou toda a sua habilidade e energia para o serviço social e trabalhou arduamente pelo bem público. Alcançou popularidade entre o povo por sua honestidade e devotamento. Em 1912, o governo japonês anunciou o começo do Projeto Hokkaido, encorajando as pessoas a fixar-se naquela ilha inóspita, situada bem para o norte. Esse espaço adicional e novas terras de cultura eram necessários ao bem-estar da nação, tanto mais que os russos mostravam indisfarçável interesse por sua localização estratégica. A aventura de uma nova vida e a devoção ao Japão desafiaram Ueshiba outra vez. Assim, com a idade de vinte e nove anos, ele organizou um grupo de oitenta pessoas entre cinqüenta e quatro famílias da região e, juntos, rumaram para a aldeia de Shirataki, no condado de Monbetsu, Hokkaido. Essa terra gelada era selvagem e ingrata, incapaz de responder aos esforços dos novos habitantes. Viviam estes assolados por tempestades e pesadas nevascas, o que inviabilizava seus projetos de extração de madeira. Eles tentavam limpar a terra para o cultivo, mas logo as chuvas frias expulsavam-nos para as cabanas apressadamente construídas. O progresso era vagaroso e elevado o preço pago em tempo e sofrimentos. Os dois primeiros anos trouxeram colheitas pobres e muitas outras dificuldades. Os ânimos estavam abatidos, mas Ueshiba encorajava as pessoas, dando um exemplo de otimismo e trabalho incansável, bem como pleiteando financiamentos de todas as fontes possíveis. Dois anos mais tarde, no outono, a terra produziu sua tão esperada safra e o povo começou a acreditar na possibilidade real de um estabelecimento permanente. Todos os projetos que encetaram – cultivo de hortelã, exploração florestal, criação de cavalos, laticínios – baseavam-se no plano de Ueshiba e revelaram-se fator importante no desenvolvimento de Shirataki. A aldeia cobrou vida nova. As pessoas começaram a chamar Ueshiba de “Rei de Shirataki”, e quando tinham problemas, iam até ele em busca de aconselhamento e ajuda. Ele serviu como membro do conselho local e ajudou na prospecção de recursos minerais. Em 1915 conheceu Sogaku Takeda, professor da Escola Daito de Jujutsu, que por acaso passava pela região. Ueshiba ficou muito impressionado com a técnica de Takeda e continuou em sua busca do Budo estudando Daito Ryu. Em novembro de seu trigésimo sexto ano de vida, Ueshiba recebeu notícias de que o pai passava muito mal. Deixou tudo o que possuía ao Mestre Takeda, em agradecimento pelo que dele aprendera, e saiu de Hokkaido. Entretanto, no caminho de volta para Tanabe, ouviu histórias sobre um homem chamado Onisaburo Deguchi, da nova seita xintoísta conhecida como Omoto-kyo. Deguchi era professor da técnica espiritual chamada “chin kon kishin”, um método de comunicação com o Divino Espírito de Kami por intermédio da meditação concentrada. Na esperança de um milagre, Ueshiba foi para Ayabe, perto de Kyoto, a fim de pedir orações para melhorar a saúde crítica de seu pai. Ao chegar em Tanabe, soube que o pai falecera. Sua dor foi profunda, e Ueshiba passava cada vez mais tempo mergulhado em preces e meditações. Logo seus pensamentos se voltaram para a ternura de Deguchi e sua abordagem revolucionária dos ensinamentos espirituais tradicionais. Mudou-se com a família para Ayabe e adotou a vida religiosa da Omoto-kyo. Deguchi amava e respeitava Ueshiba, e o investiu de autoridade e responsabilidades. Dizia-lhe: “Você deve fazer do Budo a sua vida. Você tem força para mover montanhas. Faça isso!” Seguindo esse conselho, o Fundador abriu a “Escola Ueshiba” de artes marciais. Ensinava principalmente aqueles que tinham alguma ligação com a Omoto-kyo mas sua fama como artista marcial logo chegou aos ouvidos de outras pessoas. Ueshiba limpou e cultivou a terra próxima do edifício principal da Omoto-kyo, levou a vida auto-suficiente de fazendeiro e pôs em prática sua idéia da unidade essencial do Budo e do cultivo da terra. O estudo do “kotodama”, a função espiritual da vibração do som, tornou-se um dos aspectos-chave de sua pesquisa do verdadeiro espírito do Budo, e aos poucos ele começou a realizar a fusão de espírito, mente e corpo. Em 1923, o Fundador deu à sua arte o nome oficial de Aiki Bujutsu. Aiki Bujutsu é a harmonia do espírito baseada no movimento marcial clássico. Jutsu significa técnica, em contraposição a Do, que significa método ou caminho. No ano seguinte, ele acompanhou deguchi à Manchúria, buscando um lugar que servisse de centro espiritual para “um mundo de cooperação entre as cinco raças e cores”, visão da Omoto-kyo baseada na idéia de que todos os ensinamentos têm a mesma origem. Sua viagem conduziu-os a perigosos encontros com bandidos armados e soldados profissionais. Mas a esse tempo o Fundador atingira um nível tão avançado de consciência espiritual que, quando alvejado, podia perceber a agressão sob a forma de um minúsculo ponto de luz que precedia imediatamente o projétil. Assim descreveu a experiência: “Antes que o adversário acionasse o gatilho, sua intenção de matar gerava uma bolinha de luz espiritual que voava na minha direção. Se eu me esquivasse dessa bolinha de luz, nenhum projétil me atingiria.” Depois de voltar ao Japão, em 1925, o Fundador dedicou-se a dominar a arte da lança. Exercitava-se dia e noite, valendo-se de seus próprios métodos de treinamento físico e purificação espiritual, e, à medida que a sua prática alcançava níveis cada vez mais elevados, sua habilidade marcial ganhava uma qualidade quase sobre-humana. No ápice de um período de esforço particularmente intenso, por ocasião de uma prática de meditação/purificação, teve a realização daquilo que procurava a vida inteira. Nesse momento, enquanto o espírito do universo envolvia o seu corpo numa brilhante luz dourada, ele aprendeu a essência do Ki (força vital universal), compreendeu intimamente os processos do universo e soube que a fonte do Budo é o espírito de proteção a todas as coisas. “Budo não significa derrotar o adversário pela força”, disse; “nem é um modo de conduzir o mundo à destruição pelas armas. Seguir o verdadeiro Budo é aceitar o espírito do universo, manter a paz na terra e produzir, proteger e cultivar corretamente todos os entes da natureza.” Enquanto ele se devotava a estudos complementares e ao estabelecimento do novo Caminho do Budo, o nome de Morihei Ueshiba e a fama de sua incrível habilidade espalhavam-se pelos círculos Budo de todo o Japão. Ueshiba viajou pelo país ensinando o Aikido. Pessoas de todos os tipos pediam-lhe orientação. Com a ajuda de diversos colaboradores, em 1930 as instalações provisórias de treinamento foram ampliadas para incluir uma área de tatame de quase quinhentos metros quadrados. Essa sala de treinamento foi chamada de Kobukan Dojo e estava localizada no distrito de Wakamatsu, em Shinjuku, Tokyo. (Dojo é o lugar onde o Caminho é estudado; Kobukan indica a busca da verdade pela transcendência da consciência humana comum.) Nesse ano, Jigoro Kano, fundador do Judo Kodokan, veio visitar o Dojo. Depois de observar a suprema habilidade do Mestre Ueshiba, disse: “Este é o meu ideal no Budo”, e enviou a ele dois estudantes seus. Muitos jovens, praticantes de Judô, foram estudar na Escola Ueshiba. Um deles era Kenji Tomiki, chefe do Clube de Judô da Universidade Waseda. Mais tarde, Tomiki desenvolveu um ramo aiki-jutsu do Aikido que incluía lutas competitivas. Ao mesmo tempo, Gozo Shioda, Mestre-mor do Aikido Yoshinkan, ouvia as lições do Fundador como simples aprendiz. Não era fácil, para as pessoas do público em geral, serem admitidas ao Dojo. Somente aqueles que exibiam cartas de apresentação de dois patrocinadores confiáveis recebiam autorização para se tornarem alunos. A prática era tão intensa e rigorosa que o Dojo começou a ser chamado de “Dojo do Inferno”. Diversas personalidades famosas do exército, do governo, do empresariado, da educação e das artes entraram para a Escola Ueshiba e, por intermédio desses contatos, o Fundador instruiu a força policial e elementos da Corte Imperial. O ano de 1932 encontrou o Mestre Ueshiba extremamente ocupado em ensinar e fazer demonstrações de sua arte. Outros Dojo foram erigidos em Tokyo, Osaka e Kyoto. O Aikido ia se disseminando rapidamente pelo país. Em 1942, quando se intensificou o esforço de guerra, Ueshiba sentiu-se gravemente perturbado pela disparidade entre suas idéias de cooperação mundial e o estado concreto das relações internacionais. Acompanhado da esposa, Hatsu, foi para a cidade de Iwama, na prefeitura de Ibaraki, e mais uma vez dedicouse a cultivar a terra. Ali montou um Dojo ao ar livre e um Santuário Aiki para servir de reitro espiritual. O Fundador nos relatou que, nessa ocasião, ele disse: Um número cada vez maior de pessoas embrutecidas e violentas estão entrando para as forças armadas. Elas esqueceram a importância de ajudar o próximo e aliviar os sofrimentos. Um bando de tolos, vão por aí a alardear sua agressividade e sua estreiteza de espírito, a destruir insolentemente a vida. Que idiotas, indo contra a natureza, contra a Vontade de Kami! “O Caminho do Budo consiste em instalar uma nova vida na força vital original do universo, a qual dá nascimento a todas as coisas. Harmonia, amor e cortesia são essenciais para o verdadeiro Budo, mas as pessoas que hoje estão no poder só estão interessadas em brincar com armas. Elas interpretam erroneamente o Budo como um instrumento da disputa de poder, da violência e da destruição – e querem me usar para esse objetivo. Estou farto dessa estupidez. Não tenho a mínima intenção de ser um instrumento deles. Não vejo outra opção a não ser retirar-me.” O Fundador mantinha firme sua crença pessoal e ensinava para quem quisesse ouvir: “O caminho do Budo está na união do Budo e do cultivo da terra. É essencial pôr realmente em prática a produção da força vital por intermédio do Takemusu Aiki.” Durante e após a Segunda Guerra Mundial, o Fundador dedicou-se ao plantio e procurou a perfeição do ideal de Takemusu Aiki. Profundamente enraizada em seu coração estava a crença de que o caminho do Budo é o caminho da compaixão; de que a tarefa do verdadeiro samurai consiste em tornar o mundo fértil para a paz e em proteger todas as formas de vida. Em sua dor pelo sofrimento e destruição provocados pela guerra, passava horas a rezar. O Mestre Ueshiba atingira níveis de consciência espiritual que poucos conhecem, mas prosseguia ainda na busca do poder da verdade. Sem praticamente nenhuma renda, vivia na mais completa pobreza, adestrando o corpo e a mente e trabalhando o solo. Em 1948, o Japão ainda se recuperava do caos da guerra. Até então, o Quartel-General das Forças de Ocupação Americanas proibira todo ensinamento de Budo. Entretanto, devido à ênfase que dava à paz e à procura da verdade, permitiu-se ao Aikido retomar a sua parte ativa na sociedade. O nome do Dojo mudou de Kobukan para Fundação Aikikai, sendo dirigido pelo filho do Fundador, Kisshomaru Ueshiba. A atividade começou outra vez e os ensinamentos do Aikido atingiram o público em geral. O Fundador, respeitosamente cognominado O-Sensei (Grande Mestre), estava ainda em Iwama, levando uma vida de Budo e cultivando a terra, ao mesmo tempo que se exercitava e orava pela paz mundial. De quando em quando aparecia em Tokyo a pedido de seus discípulos, fazendo palestras sobre o princípio do Aikido e ensinando a técnica. Em 1959, quando se firmou o reconhecimento público do Aikido, a fama de O-Sensei espalhou-se pelo Japão e pelo exterior. Aumentou sensivelmente o número de pessoas que compareciam ao Dojo em busca de instrução, e alguns dos principais alunos começaram a divulgar ativamente seus ensinamentos em outros países. Todos quantos entravam em contato com O-Sensei, ainda que por pouco tempo, sentiam o coração tocado pela sua nobreza e força espiritual, ela radiante pureza de sua compaixão e desvelo, que nos faziam corar das agressões egoístas que descobríamos dentro de nós mesmos. Enquanto o Japão dava curso à sua política de acelerado crescimento econômico e material, havia gente que abraçava a pobreza a fim de levar ao público o Aikido de O-Sensei, uma prece viva pela harmonia, pela paz e pelo amor numa escala universal, sem igual na história do Budo. Entre essas pessoas destacavam-se Kisaburo Osawa, Shigenobu Okumura, Hiroshi Tada e Sadateru Arikawa, todos Shihan, mestres instrutores de Aikido. Eles trabalharam devotadamente nos bastidores do Dojo principal de Tokyo, ajudando Kisshomaru Ueshiba. Deve-se mencionar especialmente Seigo Yamaguchi, que abandonou uma carreira promissora e viveu na pobreza a fim de promover a expansão do Aikido. Outro Shihan, Morihiro Saito, assumiu a importante tarefa de cuidar do O-Sensei em Iwama. E Koichi Tohei foi o primeiro a introduzir os ensinamentos do Aikido nos Estados Unidos. Muitos Shihan conseguiram, mercê de muito tempo e grandes despesas, abrir filiais do Dojo por todo o Japão. Também houve inúmeras personalidades famosas e influentes da alta roda social e financeira que contribuíram para o crescimento do Aikido, prestando uma assistência inestimável. Entretanto, não podemos esquecer os esforços das pessoas anônimas, cuja dedicação ajudou a espalhar a luz desta arte. Foram realmente os milhares de estudantes anônimos e sérios que, impressionados pelos ensinamentos de O-Sensei, proporcionaram a base viva e o apoio para o conhecimento crescente do Aikido. Continua viva na minha memória o fato de que O-Sensei amava a todos os seus discípulos igualmente, ensinando-nos com profunda sinceridade. Em 26 de abril de 1969, o Grande Mestre Morihei Ueshiba completava o tempo natural de sua vida terrena. No mesmo dia, o governo japonês concedia-lhe a Ordem do Sagrado Tesouro, a mais prestigiosa das muitas honrarias e tributos que recebeu pela função e desenvolvimento do Aikido. Durante os anos de estreito contato com O-Sensei como seu discípulo pessoal fiquei extremamente impressionado pela sua honestidade e pela profundidade de sua reverência. A reverência e a compreensão de OSensei provinham diretamente de sua experiência da existência de Deus num vasto e indefinível universo. Não poderiam confinar-se a nenhuma seita religiosa ou nação em particular. O-Sensei manifestava uma clareza espiritual que ultrapassava grandemente nossa compreensão comum do mundo. Fomos verdadeiramente abençoados por ter tido a oportunidade de estudar com uma criatura tão iluminada. Certo dia, durante os anos de meu aprendizado com ele, O-Sensei acabava de fazer suas preces no Santuário Aiki de Iwama quando começou a falar em tom suave e pensativo: “Saotome, as pessoas costumam dizer que eu criei o Aikido graças ao estudo da muitas outras artes marciais. Mas o Caminho do Takemusu Aiki em que penso é diferente. Ele nasceu por ordem de Kami, a que eu apenas obedeci e transmiti aos outros. Eu não criei o Aikido. Aiki é o Caminho de Kami. É fazer parte das leis do universo. É a fonte dos princípios da vida. A história do Aikido começa com a origem do universo. Você acha que um ser humano poderia ter criado essas leis? A acanhada inteligência dos homens não basta para entender isso.” “Se esquecermos a gratidão para com Kami, nossas vidas nada valem. Se esquecermos os processos e a função do universo, nada pode nos proteger.” Quando os estudantes de Aikido pensam em O-Sensei, freqüentemente acham que sua vida estava repleta de misteriosos poderes sobrenaturais. Entretanto, analisando essa vida, percebo que essa atitude é incorreta. Sem dúvida, sua técnica marcial era um milagre: o milagre de um homem espiritualmente iluminado a manifestar a justiça e a proteção de Kami por intermédio de um corpo forte e bem-treinado; o milagre da capacidade do corpo e do espírito humano, da percepção, da sincronização. Sua iluminação espiritual não lhe foi concedida magicamente. Ele a conquistou com toda uma vida de devoção à verdade, dedicação à sociedade e coragem imensa. Ele se foi purificando por meio da adversidade e da amarga luta que é o constante adestramento pessoal. A atitude de O-Sensei era a atitude espiritual do devoto realista. Pensar de outra forma seria denegrir os princípios por ele ensinados, pois o Aikido é realidade. Ele tem uma missão vital a cumprir neste mundo como instrumento da educação e aperfeiçoamento da sociedade. É uma filosofia de ação. (Mitsugi Saotome – Aikido e a Harmonia da Natureza – Editora Pensamento – 1993).
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