Cauê Krüger - Esocite.BR

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Cauê Krüger - Esocite.BR
Performance art versus performance studies? O conceito contestado de
performance e sua relação com a tecnologia, arte e identidade.
Cauê Krüger.
Graduado em ciências sociais pela UFPR, bacharel
em direção teatral pela FAP e Mestre em
Antropologia Social pela UNICAMP. Professor de
Sociologia e Antropologia pela PUCPR e de teatro
da UTFPR.
RESUMO: Assumindo a noção de performance essencialmente como um conceito contestado
(CARLSON, 1996) abarcando em seu interior noções contrastantes, a presente contribuição ao invés de
manter a oposição entre a performance art como objeto de pesquisa e os performance studies como
perspectiva teórica, busca, inspirado pela noção de estrutura de sentimento de Raymond Williams, ver a
performance para além desta polaridade, destacando suas relações com a tecnologia, o corpo e as
identidades.
PALAVRAS-CHAVE: Performance Studies, performance art, identidade
ABSTRACT: Assuming performance as a contested concept (CARLSON, 1996) the present article
refuses to keep the opposition between performance art as an object of study and performance studies as
its theoretic arena and, inspired by the concept of structure of feeling of Raymond Williams claims to
emphasize the relations between performance (as a concept that implies controversial notions) and
technology, body and identities
KEYWORDS: Performance Studies, performance art, identity
Performance: conceito indefinível?
Seria muito difícil tratar da noção de performance sem fazer referência a um de
seus mais ilustres divulgadores: o teatrólogo Richard Schechner. Seja por ter sido
diretor e fundador de um famoso grupo americano do final da década de 60 “The
Performance Group”, por ser o editor de The Drama Review (revista voltada ao estudo
do teatro e performance) mas também por ter escrito importantes publicações como o
clássico Performance Theory de 1977 ou seu Between Theater and Anthropology de
1985, Schechner vem construindo interações entre a performance e as ciências
humanas.
Além de Schechner há um grande número de autores fazendo uso da noção de
performance nas mais variadas disciplinas, empregando o termo como sinônimo de
ação, competência, desempenho ou eficiência nas mais diversas áreas: nas artes, nos
esportes, no mundo profissional, no sexo, nos atos religiosos, jogos e até mesmo usando
a noção para objetos, máquinas e dispositivos. Para além do modismo sobre o termo
(que existe obviamente) é interessante destacar que a noção de performance surge, seja
em sua emergência no campo artístico, seja no campo teórico, como um conceito que
busca ultrapassar barreiras e englobar diferentes eventos, fenômenos e também
contribuições analíticas diversas.
Neste sentido, a melhor abordagem ao tema parece ser a adotada por Marvin
Carlson (1996) no início de seu excelente livro introdutório Performance, que, baseado
em W. B. Gallie, argumenta ser a performance um conceito essencialmente contestado,
isto é, que abarca usos rivais, em especial na exibição de habilidades, de
comportamentos culturais ou no sucesso da atividade tida como performance.
Recentemente traduzido para o português (2009), este livro promove uma grande síntese
da discussão sobre performance nas ciências humanas, faz uma breve retrospectiva da
história da performance art e aponta para rumos contemporâneos de atuação e
investigação.
Nos capítulos destinados ao emprego do termo “performance” nas ciências
sociais, Carlson destaca como um dos primeiros usos o feito por William H. Jansen nos
estudos de folclore, baseado no grau de envolvimento da audiência do evento na ação,
construindo um espectro que iria da “participação” total, em que não haveria
praticamente a divisão entre atuadores e espectadores à “performance” em que tais
papéis seriam totalmente excludentes (CARLSON, 1996). Aponta para a definição de
Dell Hymes que procurava restringir a performance (compreendida como uma ação em
que uma ou mais pessoas assume a responsabilidade frente à audiência e à tradição) a
uma subárea da conduta (comportamento sob normas sociais e culturais) que por sua
vez seria uma subárea específica do comportamento (visto como categoria ampla,
abarcado todo e qualquer acontecimento).
Registra também as importantes definições de Richard Bauman, que vê a
performance como um ato de comunicação (com características expressivas ou poéticas)
demarcado em um determinado contexto e dotado de uma consciência de duplicidade,
isto é, em que uma ação é colocada em comparação mental com um modelo original
potencial, ideal ou já ocorrido; e de Gregory Bateson que compreende a performance
como associada à noção de jogo, destacando sua qualidade de metacomunicação. Estas
abordagens, bem como os estudos da noção de jogo de Roger Caillois (2001) e Johan
Huizinga (2004) dão ênfase ao processo de demarcação, ou “enquadramento” como
também aparece em Erving Goffman, como o aspecto central capaz de tornar o
fenômeno performance, isto é, um modo de diferenciar uma atividade das demais seja
pelo espaço, pelo tempo, atitude ou consciência.
Milton Singer (1972) tornou-se famoso por ter cunhado a noção de
“performance cultural” que compreendia como as mais concretas unidades observáveis
da estrutura cultural, incluindo o teatro, a dança, concertos, recitações, festivais
religiosos, casamentos etc., através das quais seria possível alcançar as estruturas mais
abstratas da cultura. Estas performances culturais não apenas tinham um tempo
limitado, um começo e um fim, um programa organizado de atividades, um elenco de
performers, uma audiência e um lugar e uma ocasião para a performance, como eram as
unidades essenciais de transferência e mudança social das grandes tradições culturais.
O mais notável expoente desta tradição de análise teórica, entretanto, é o
antropólogo britânico Victor Turner que procurará converter a tradição antropológica da
análise ritual para os mais diversos fenômenos simbólicos. Como nos diz Carlson, mais
do que a visão da performance como uma atividade separada da vida cotidiana como
vimos nos diversos autores apresentados, Turner, baseando-se em Arnold Van Gennep
(1978), irá enfatizar o caráter liminar, ambíguo, criativo e propenso à mudanças e
inovações destes fenômenos que compreenderá pela noção de antiestrutura, oposta à
estrutura dos papéis sociais da vida cotidiana. Trazendo sua noção de “drama social” da
análise dos conflitos dos Ndembu, Turner enfatizará os aspectos estéticos da noção de
conflito como um modelo capaz de compreender os valores culturais das variadas
sociedades e também de perceber sua dinâmica e sua mudança (KRÜGER, 2008). Em
sua última publicação Anthropology of performance (1988), Turner chega a
compreender a performance como elemento básico da vida social e destaca que a
análise mais adequada dos fenômenos contemporâneos, dos processos sociais, vêm
igualmente enfatizando a performance como elemento central.
Profundamente influenciado por Turner, Richard Schechner que em seu clássico
Performance Theory (1977) já tinha procurado compreender como performance uma
ampla constelação de eventos que abarcariam o teatro, o ritual, o xamanismo, o jogo em
sentido amplo, o desempenho de papéis na vida cotidiana, cerimônias, esportes,
entretenimento, etc. (diferenciadas apenas por uma relação dialética e diacrônica entre a
eficácia e o entretenimento), passa agora a ampliar seus horizontes teóricos, e em
Between Theater and Anthropology (1985) apresenta seis pontos de contato entre o
conhecimento teatral e a antropologia: 1) a transformação do ser e/ou da consciência; 2)
a intensidade da performance; 3) a interação atores-espectadores; 4) a sequência do
processo da performance; 5) a transmissão do conhecimento da performance e 6) a
avaliação da performance. Se por um lado o autor adota uma visão multidisciplinar,
dinâmica, simbólica e procura compreender a performance como um processo, por
outro busca encontrar como elemento definidor da performance uma determinada forma
de comportamento, que definiu como “comportamento restaurado” (ou duplamente
comportado).
Schechner (1985) vê as “tiras de comportamento” como o elemento cru, material
bruto sobre o qual a performance ocorrerá, seja a partir de ensaios, do aprendizado de
técnicas expressivas ou pela separação entre o “eu” e o comportamento. Tal perspectiva
vai de encontro à adotada por Mariza Peirano em um instigante artigo no qual busca
também questionar o estatuto da performance: deve ela ser vista como tema ou teoria?
A autora parte de uma problemática semelhante referente à noção de ritual, que
teria passado por uma transformação de tema empírico em teoria analítica. Ainda que os
rituais possam ser vistos “como tipos especiais de eventos, mais formalizados e
estereotipados, mais estáveis e, portanto, mais suscetíveis à análise” (PEIRANO, 2006,
p.10) a autora destaca que eles são e devem ser recortados em termos nativos e não em
critérios a priori. Isto é, não se deve separar (tal como Schechner, adicionaríamos) “em
termos absolutos, o que é ritual do que não é ritual. O motivo é simples: a concepção de
que um evento é “diferente”, “especial”, “peculiar”, tem que ser nativa” (PEIRANO,
2006, p.10). Respeitando esta orientação antropológica “(...) ritual deixa de ser um
objeto, um tópico de estudo, um tipo de comportamento, para transformar-se em
abordagem teórica” (PEIRANO, 2006, p.9). E neste sentido: “(...) a teoria antropológica
desenvolvida para o ritual adquire o papel de instrumento privilegiado de análise. Ritual
passa a ser abordagem, ferramenta, e não tema ou objeto de estudo” (PEIRANO, 2006,
p.10) o que permitiria “aplicar o instrumental desenvolvido para os rituais para os
eventos em geral” (idem).
Sempre atenta ao relativismo antropológico e também aos problemas envolvidos
nas análises comparativas dos fenômenos simbólicos, Peirano (2006, p.12) nos deixa
uma questão de grande importância: “Ao nos atermos a eventos específicos do “nosso”
mundo, não corremos o risco de deixar a ideologia moderna nos esmagar?”. E aguça seu
questionamento: “a idéia de performance não estará muito colada às categorias
ocidentais? Ou, melhor, aos objetos e aos temas do mundo ocidental? Na concepção da
antropologia da performance, performance é tema ou teoria?” (PEIRANO, 2006, p.13).
O objetivo da presente contribuição reside precisamente aqui. Trata-se aqui de
evitar a dicotomia e buscar um modo de relacionar o “tema” da performance com sua
“teoria”. Se compartilhamos a visão de Peirano no que se refere ao importante alerta
sobre uma possível imposição etnocêntrica de categorias ocidentais sobre a noção de
performance, por outro lado não vemos por que a estratégia analítica adotada pela
autora no que se refere à noção de ritual não possa ser também utilizada para o
tema/teoria da performance.
Com a notável exceção de Carlson (e em certos aspectos Schechner), os diversos
autores evitam relacionar a noção de performance (teórica) com a performance (art).
Propomos-nos aqui ensaiar uma ampliação desta relação de modo a destacar o impacto
dos movimentos de vanguarda associados à performance na própria visão de arte e de
maneira idiossociada, tratar também das possibilidades teóricas de pensar os impactos
desta expressão artística na reflexão sobre a identidade e o mundo social.
A performance sempre foi uma linguagem crítica e de ruptura, buscando expandir
os horizontes e desafiar as definições artísticas, portanto, ainda que haja determinados
pontos e tendências em comum, difíceis são os acordos consensuais acerca de sua
definição. Assim, ao invés de adicionar mais uma página ao debate acerca do rigor
conceitual da noção de performance, o ponto a destacar aqui, é perceber que a
performance art, ao procurar borrar as fronteiras artísticas e modificar a noção
“museológica” de arte, foi produto e agente de uma autorreflexão constante, uma
necessidade de se repensar a identidade dos artistas e provocou a abertura de novas
perspectivas teóricas para o estudo dos fenômenos expressivos.
De forma semelhante, as ciências humanas passam a interessar-se cada vez mais
sobre as metáforas do drama e dos jogos para tratar dos temas sociais (GEERTZ, 2003),
e ampliaram o interesse em tomar os fenômenos artísticos como objeto de estudo
específico, como evidencia a proposta de Victor Turner (1982) de buscar uma
“simbologia comparada” ou postular uma Antropologia da Performance (1988). Este
desenvolvimento foi acompanhado pela crescente legitimidade da sociologia da arte,
que consolidou sua institucionalização neste período (PEQUIGNOUT, 2005;
HEINICH, 2008). Lembrando que o mundo artístico constitui uma intelligentsia
própria, com seus porta-vozes, teóricos e eruditos, não é fortuito que os registros da
utilização da noção de performance sejam contemporâneos na teoria social e nas artes.
Talvez uma das melhores formas de pensar esta questão seja partir da noção de
Raymond Williams de “estrutura de sentimento” aplicada às diversas visões e ênfases
da performance, desde sua “pré-história” (GLUSBERG, 2003) nas vanguardas do séc.
XX, passando pela centralidade do corpo na body art, passando pelo happening e
performance art até as tendências mais politizadas da performance, ligadas às
identidades e ao ativismo político do final do século XX.
Para Williams, estrutura de sentimento é um conceito que visa descrever a
relação dinâmica entre experiência, consciência e linguagem, como formalizada e
formativa na arte, nas instituições e nas tradições (KRUGER, 2011). Conforme
Cevasco, uma das principais estudiosas de Williams no Brasil, pode-se compreender o
conceito como uma maneira de “descrever como nossas práticas sociais e hábitos
mentais se coordenam com as formas de produção e organização socioeconômica que as
estruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do vivido”
(CEVASCO, 2001, p.97). Tendo este horizonte teórico como inspiração, buscaremos
aqui realizar um breve resgate de três importantes momentos constituintes da história da
performance art.
Performance art entre a tecnologia, o corpo e as identidades
Como um dos principais antecessores da noção de performance art: “o futurismo
investiu em todas as formas possíveis de expressão artística, aplicando seu gênio às
inovações tecnológicas da época” (GOLDBERG, 2006, p.20), tendo explorado o
cinema, o rádio, dado ênfase ao cenário e luzes, proposto formas híbridas de mesclar
performers e objetos, adotando o ritmo, gestos mecânicos, ruídos e a velocidade das
máquinas como inspiração criativa, aliada a um espírito destrutivo, apologista da
mudança, crítico e irreverente, tornou-se um movimento de grande repercussão
mundial. Filippo Tommaso Marinetti, autor do manifesto futurista de 1909 (e de outros
de menor impacto) foi um de seus grandes propagadores, além de Alfred Jarry, autor de
Ubu Rei e os pintores de influência cubista Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi
Russolo, Gino Severini e Giacomo Balla. Não fazendo distinção entre a pintura, poesia,
música ou performance, estes artistas organizaram diversos saraus, que notabilizaram-se
por seu escândalo e tumulto.
Em seu manifesto “Dança futurista” Marinetti louva bailarinos seus
contemporâneos como Isadora Duncan, Loie Fuller e Nijinski e advertia ser necessário
“extrapolar as possibilidades musculares e buscar na dança aquele corpo ideal e
múltiplo do motor, com o qual sonhamos há tanto tempo” (GOLDBERG, 2006, p.14).
Em seus balés futuristas propunha a integração dos performers com o cenário composto
por blocos geométricos móveis formando um todo contínuo, como registra Goldberg
(2006, p.14) para a “Dança da Granada” na qual os performers deveriam “marcar com
os pés o bum-bum do projétil saindo da boca do canhão” e para a “Dança da Aviadora”
que “a bailarina simulasse, com contorções e meneios do corpo, os sucessivos esforços
de um avião tentando decolar” (idem).
Pode-se talvez compreender estas propostas futuristas como uma releitura do
teatro de variedades que buscava fundir a proposta sintética, de hibridismo artístico,
com um espírito de fé no progresso, na técnica e nas máquinas, que haviam
reestruturado as cidades, as relações humanas e as sensibilidades artísticas. Carlson
destaca que a predileção do futurismo pelo teatro de variedades ocorreu como uma
reação ao teatro tradicional e sua psicologia convencional em oposição ao saudável
dinamismo de forma e cor do gênero “que incluía acrobatas, bailarinas, ginastas e
palhaços” em uma fisicofilia ou “loucura corporal” (Goldberg, 2006). Segundo Carlson
(2009, p.104):
A despeito do forte interesse pelo corpo físico em manifestos como esse, as produções
futuristas frequentemente enfatizam o corpo do ator mecânico, circundante (e mesmo
escondido) nas armadilhas da tecnologia moderna pela qual o Futurismo tinha uma
paixão inesgotável. Transformar corpos em máquinas ou substituir corpos por máquinas
certamente pode ser encontrado na performance moderna, mas a tendência do Futurismo,
de mover-se em direção aos teatros de bonecas, às máquinas e mesmo às nuvens de gás
colorido, em geral, foi contra a performance mais recente, orientada para o corpo. A
maioria das performances futuristas também seguiu o formato de variedades com a
sequência ou a apresentação simultânea de trechos curtos – quadros, acrobacias, efeitos
mecânicos de som e de luz, exibição rápida de movimentos ou de objetos. Essa variedade
estonteante e movente era essencial para a estética da velocidade, surpresa e novidade do
futurismo, mas resultou num formato de apresentação, que, em geral, voltava-se para as
performances de cabaré vaudeville, do circo e do teatro de variedades e não para a arte de
performance de tempos mais recentes, que tem sido dedicada à exibição de atos
individuais, mesmo quando eles são de duração curta.
Foram necessárias à performance art “propriamente dita” (consolidada nas
décadas de 70 e 80) as vertiginosas mudanças sociais no comportamento e na teoria da
década de 60, que propiciaram uma nova visão do eu, a eclosão de novas identidades e
importantes modificações das análises teóricas, com destaque para o estruturalismo, a
psicanálise entre outras perspectivas que enfatizavam a cultura, os aspectos simbólicos e
inconscientes da vida social. David Le Breton (2003) frisa que a body art inscreve-se no
período da Guerra Fria e do Vietnã, da difusão das drogas, da liberação sexual, do
questionamento das moralidades antigas e que pode ser vista como:
“uma crítica pelo corpo das condições de existência. Oscila de acordo com os artistas e as
performances entre a radicalidade do ataque direto à carne por um exercício de crueldade
sobre si, ou a conduta simbólica de uma vontade de perturbar o auditório, de romper com
a segurança do espetáculo. As performances questionam com força a identidade sexual,
os limites corporais, a resistência física, as relações homem-mulher, a sexualidade, o
pudor, a dor, a morte, a relação com os objetos, etc. O corpo é o lugar onde o mundo é
questionado. A intenção deixa de ser a afirmação do belo para ser a provocação da carne,
o virar do avesso o corpo, a imposição do nojo ou do horror” (LE BRETON, 2003, pgs.
44-45)
Ainda que o termo body art agrupe diversas tendências internas, “o denominador
comum de todas essas propostas era o de desfetichizar o corpo humano (...) para trazê-lo
à sua verdadeira função: a de instrumento do homem” (GLUSBERG, 2003, p.43).
Tomando o corpo como matéria prima a body art explora suas capacidades, aspectos
sociais e individuais tornando o sujeito objeto da arte. Esta proposta tende a incorporarse à noção mais ampla de performance art, que segundo Carlson (1996, p.5)
apresentaria, já na década de 70, duas tendências: “o trabalho de um artista individual
que usa normalmente material de sua vida cotidiana (explorando sua auto-biografia)”
raramente valendo-se de uma “personagem” e enfatizando as atividades do corpo no
espaço e no tempo; bem como a “tradição de espetáculos mais elaborados já não
baseados no corpo do artista, mas sim na demonstração de imagens visuais, nãoliterárias, que envolvem a tecnologia emergente e uma mídia variada”. De forma
semelhante, um dos mais famosos estudiosos brasileiros da performance, Renato Cohen
(2002), registra duas mudanças importantes na estabilização do campo da performance:
a diminuição da hostilidade inicial da performance frente ao teatro convencional e a
diminuição da ênfase inicial centrada no corpo e movimento em detrimento de uma
linguagem mais discursiva, mais aberta às imagens, mídias e tecnologias.
Simpson Stern e Handerson, autores de Performance: Texts and Contexts citados
por Carlson procuram sistematizar algumas orientações gerais da performance art que
embora não funcionem como uma “definição” rígida, apontam para importantes pontos
em comum:
1) postura performática de anti-status quo, provocativa, não-convencional, eventualmente
intervencionista; 2) oposição à acomodação da cultura com relação à arte; 3) textura
multimídia tendo como materiais não apenas os corpos vivos dos performers, mas
também outras mídias, monitores de televisão, imagens projetadas, imagens visuais,
filmes, poesia, material autobiográfico, narrativa, dança, arquitetura e música; 4) interesse
nos princípios da collage, assemblage e simultaneidade; 5) interesse em utilizar materiais
“achados” bem como “feitos”; 6) dependência intensa em justaposições de imagens
incongruentes e aparentemente não-relacionadas; 7) interesse nas teorias dos jogos (...)
incluindo paródia, cômico, a quebra das regras e destruição de superfícies estridulantes e
extravagantes; 8) finalizações em aberto e indecisões de forma (CARLSON, 1996, p.5).
Para Carlson a consolidação desta arte solo baseada no corpo ou no self passa a ser
emblemática no mundo contemporâneo, sendo que a performance ou a metáfora da teatralidade
extrapolou o campo das artes:
(...) em direção a quase todos os ramos das ciências humanas – sociologia, antropologia,
etnografia, psicologia, lingüística. E como a performatividade e a teatralidade tem sido
desenvolvidas nesses campos, tanto como metáforas quanto como instrumentos
analíticos, os teóricos e praticantes da arte performática têm, por sua vez, se tornado
conscientes desses desenvolvimentos e encontrado neles novas fontes de estímulo,
inspiração e insight para seu trabalho criativo e para sua conseqüente compreensão
teórica. (CARLSON, 2009, pgs.17-18).
O autor procura dar grande atenção à relação entre a arte performática e as
interconexões com as idéias de performance de outros campos “dentre elas estão o que
significa ser pós-moderno, a procura de uma subjetividade e de uma identidade
contemporâneas, a relação da arte com as estruturas de poder, os vários desafios do
gênero, raça e etnia, para citar apenas algumas das questões mais visíveis” (CARLSON,
2004, pgs.17-18)
Este é um dos principais pontos de contato entre o desenvolvimento das
experiências performáticas e a eclosão das discussões acerca da identidade. Mais do que
algo “essencializado” a identidade passa a ser vista neste contexto como um processo de
construção, envolvido em uma dimensão necessariamente política e relacionada com a
cultura e a representação. (CUCHE, 2002). Segundo Stuart Hall (2003), no final do
século XX a fragmentação das paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia,
raça e nacionalidade abalam a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.
Hall destaca que a concepção de identidade do “sujeito do Iluminismo” que
compreendia a pessoa como uma entidade totalmente centrada, unificada, dotada de
razão, consciência e ação foi substituída pela noção de sujeito sociológico cuja
identidade preencheria o espaço entre o “interior” (o mundo pessoal) e o “exterior” (o
mundo público) que por sua vez foi descentrada pela identidade pós-moderna, múltipla,
fragmentada, e algumas vezes conflituosa “(...) em que o sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um
‘eu’ coerente. (HALL. 2003, p.13).
Conforme Cuche, as modernas concepções da identidade baseadas em Fredrik
Barth a compreendem como dependente dos contextos relacionais, isto é, menos como
uma ostentação dos seus traços culturais distintivos e mais como um processo resultante
das interações entre os grupos em que determinadas estratégias de diferenciação nas
relações são levadas a cabo. Esta perspectiva vê a identidade como algo dinâmico, em
um constante processo de construção e reconstrução a partir de operações relacionais
entre o que é considerado, em determinado contexto, “próprio do eu”. No mundo
contemporâneo, mais do que uma homogeneização, antropólogos, sociólogos e
estudiosos da cultura vêm destacando a proliferação das identidades multidimensionais,
dotadas de heterogeneidades, sincretismos e sínteses originais.
Esta perspectiva permite também compreender a dimensão política da negociação
da identidade, uma vez que é possível haver afirmação ou imposição identitária em um
processo que envolve preconceitos, estigmatização e reivindicação de uma identidade
“positiva” ou “negativa”. Para Cuche: “A identidade é o que está em jogo nas lutas
sociais. Nem todos os grupos têm o mesmo ‘poder de identificação’, pois esse poder
depende da posição que se ocupa no sistema de relações que liga os grupos” (CUCHE,
2002, p.186) e neste sentido, as possibilidades da performance art são extremamente
significativas.
Carlson registra performances importantes das mulheres desde a década de 60
(com nomes como Yvone Rainer, Yoko Ono, Meredith Monk entre várias outras) que
trouxeram contribuições fundamentais para a performance feminista colocando em
evidência as diversas formas de opressão, domínio e controle da sociedade patriarcal
sobre os padrões de comportamento, papéis sociais, gênero e sexualidade. Destaca
também o ativismo gay na performance e inúmeros trabalhos voltados à discussão de
classe, raça e meio-ambiente.
A noção de Raymond Williams de estruturas de sentimento demonstra como as
sensibilidades artísticas associadas ao processo de construção da performance art agem
e refletem processos socioculturais e, desse modo, não devem ser abordadas a partir de
uma perspectiva dicotômica entre performance como “objeto” ou “teoria”. Mais do que
um retrospecto exaustivo deste longo processo, o esforço aqui esteve centrado em
apontar esta perspectiva, ressaltando três momentos da história da performance art,
ainda que tal estratégia deixe evidente as grandes lacunas a serem supridas neste
desenvolvimento.
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