Futurismo italiano
Transcrição
Futurismo italiano
Apontamentos sobre o Futurismo Italiano Em que se apresenta seu surgimento e desenvolvimento, além de algumas informações rapidíssimas sobre o Cubo-Futurismo russo. XI.1. – Introdução às questões postas pelo Futurismo. “Je suis ‘où’ je ne suis pas. Et, dans le fond, hein, à la reflexion, Être ‘où’ ne pas être. C’est peut-être aussi la question”. Jacques PRÉVERT. L’accent grave, In: Paroles.1 “o intelectual revolucionário aparece antes de mais nada como um traidor à sua classe de origem”. Jorge ARAGON. Apud Walter BENJAMIN. O autor como produtor. “O que o Teatro Futurista Sintético nos apresenta é a Belle Epoque vista pelo avesso, por aqueles que não aceitavam o doce aconchego moral e intelectual da burguesia florescente. Marinetti protestava contra a placidez do começo do século, em nome da violência, da energia, da função higienizadora da guerra – e pode-se dizer que o seu protesto foi ouvido, como duas Grandes Guerras e vários fascismos subseqüentes aí estão para atestar. Por este lado, a sua pregação irracionalista só merece ser perdoada na medida em que já se inscreveu na história, aparecendo datada e destituída da significação no mundo moderno”. Décio de Almeida PRADO. Exercício findo. “Senhoras e senhores, em algum lugar do mundo, acho que no Brasil, existe um homem feliz”. Wladimir MAIAKOVSKY. Wladimir Maiakovsky, a tragédia. “Não tem muito sentido falar em crise de teatro, em termos abstratos. Os candidatos à profissão de carpideira emitem, como de costume, seus uivos histéricos, dramatizando ritualmente – uma vez que o ritual virou moda teatral – as naturais flutuações do mercado, como se o teatro já tivesse baixado, em definitivo, à sepultura”. Anatol ROSENFELD. Prismas do teatro. Em 27/04/1934, Walter BENJAMIN proferiu uma conferência no Instituto para o Ensino do Fascismo cujo título era “O autor como produtor”2. Neste texto – resumidamente e tendo em vista o foco de interesse aqui presente – o filósofo afirmava, dentre outras coisas, que naqueles dias era necessária trazer à tona uma discussão acerca da tão esvaziada e problemática ilusão acerca da autonomia da arte e do artista. Tratava-se, na perspectiva posta em questão, de o artista – a partir de uma série de contraposições, para além de determinados condicionamentos redutores – posicionar-se politicamente e assumir, por exemplo, a serviço de quem sua obra estaria: se ao lado da burguesia ou ao lado dos proletários. Dessa forma, Benjamin defendia (reconhecendo 1 Trata-se da resposta apresentada por aluno, distraído e sonhador, de nome Hamlet quando seu professor insiste para que ele conjugue o verbo to be. Hamlet atende ao pedido do professor parafraseando o clássico to be or not to be, ‘emendando’ depois do professor chamar sua atenção com o verbo être. Cf. J. PRÉVERT. Op. cit. Paris: Éditions Gallimard, 1972, p.47. 2 Walter BENJAMIN. Walter Benjamin, 50. São Paulo: Ática, 1985, pp.187-201. tratar-se apenas de mais um ângulo a partir do qual a reflexão, ainda que estéril, poderia dar-se) a tese da necessidade da filiação do artista a uma determinada tendência político-estética, afirmando, ainda, que todos aqueles que imaginassem não ter nenhum partido, estariam ligados a uma certa ideologia, servindo-a de modo consciente ou inconsciente. Tal pressuposto benjaminiano significaria o fim da ilusória e liberal autonomia do artista,3 destacando, nesse particular, o não escamoteamento da questão que lhe parecia essencial, ou seja, a luta de classes. O reconhecimento desse histórico embate pressupunha que a arte, para além da necessária e característica aistesia, pudesse ser também mais uma ferramenta a partir da qual se conseguisse transformar qualitativamente as relações sociais, fundamentalmente aquelas ligadas às práticas de exploração e de exclusão, e que – no contexto mais imediato discutido por Benjamin– significava a luta contra a ascensão do nazismo e de todos os seus inúmeros processos de exclusão e barbárie, representados fundamentalmente pelos fascismos e nazismos de toda ordem.4 Para quem conhece um pouco a História – e nela a história das artes – sabe terem sido inúmeras e acaloradas as discussões ocorridas acerca da(s) função(ões) da arte, principalmente em fins do século XIX. Parte significativa dessas discussões, entretanto, não chegou ao nível daquilo propugnado por Benjamin (escolha política), sobretudo pelos aspectos cientificistas que embalaram parte dos artistas, sobretudo aqueles ligados ao Naturalismo, e às suas características mais distintas e, sobretudo aquelas ligadas às questões ideológicas. Nesse sentido, ao refletir sobre o Futurismo (e mais especificamente aos feitos da revolução industrial do século XVIII, comparando-a àquela semelhante do século XX), Paolo Angelieri afirma – comentando sobre a produção artística do século XX – que ela virá carregado “com todos os resíduos do positivismo e do cientificismo que arrasta 3 Nesse particular ainda, e aproximando-se do conceito de livre-arbítrio, Cf. Theodor ADORNO. Autoexperiencia de libertad y determinismo, In: Dialéctica negativa. Madrid: Taurus, 1975, pp.260-4. Para o autor é incorreto falar em livre-arbítrio e liberdade – que são representações ideológicas – numa sociedade dividida em classes. Ora, se a lógica desse sistema se estrutura a partir das relações de produção, é evidente que o indivíduo está submetido a essas leis e, nesse sentido mesmo, é mercadoria pela venda da sua força de trabalho. São, portanto, essas leis que requererão dele sua autonomia para poder funcionar. Dessa forma, e sempre de acordo com o filósofo, o que produz a liberdade se converte em seu contrário. 4 Talvez se deva buscar tais proposições defendidas pelo filósofo, num primeiro momento – além, naturalmente, daqueles ligados ao marxismo – no pensamento de Proudhon: que acreditava que uma sociedade racionalmente organizada não teria necessidade de alimentar seus sonhos de felicidade com, as por ele chamadas, ‘quimeras da beleza poética’ que se constituiria, de saída e de certo modo, em oposição às crenças de Jacques Copeau. Para Proudhon, uma sociedade socialista geraria uma arte a serviço de uma organização social racional e justa. Vale lembrar, ainda, nesse particular, que tais pressupostos foram retomados décadas mais tarde pelas vanguardas soviéticas. consigo”.5 Assim, e tendo em vista os ‘compromissos’ assumidos pelo movimento, não é pertinente exigir do Futurismo – para além do choque e de um certo deboche alienantes que o caracterizou – nenhum comprometimento com mudanças sociais qualitativas e orientadas para um caráter ‘denunciante’, das mazelas que se instalavam no país de origem (Itália) e a ascensão do fascismo. Aliás, muito ao contrário, dentre outras apologias, em muitos de seus manifestos, os artistas futuristas incentivam a guerra; a manutenção do colonialismo italiano; a existência de pequeno e ‘competente’ grupo detentor do poder, subjugando a maioria e outras excrecências da mesma natureza... Enfim, trata-se de um tendência política em arte que se pode adjetivar de retrógrada e [ultra]conservadora, cujos princípios – em sua evolução histórica – serviram, inclusive, de referência ao movimento fascista. De outro modo, as ideias ufanistaapologéticas dos futuristas apoiaram-se e apoiaram aquelas dos fascistas, em prol de um nacionalismo sempre problemático e exacerbado. Guilhermo Torre, apresentando outras facetas desse problema afirma: “Os futuristas cortaram não só as raízes, mas também o tronco e os ramos, assim se privando da seiva, assim se encerrando num recinto sem saída. Ao mesmo tempo que condenavam o passado, aboliam também a esperança de um futuro que no entanto ambicionavam. (...) Porque o futurismo absoluto, tal como o passadismo absoluto, são dois dos extremos que se tocam, são duas inanidades que se equivalem. Se, quando conjugados, podem formar uma imagem completa, isolados não passam de perfis ocos, e nenhum deles pode deixar vestígios duradouros”.6 Assim, ao fazer ‘justiça’ ao movimento – do ponto de vista histórico sem, entretanto, redimi-lo de seus compromissos e ações mais significativas retrógradas e conservadoras – não se pode afirmar (e seria algo despropositadamente pretensioso) que o Futurismo tivesse sido uma ou a estética do fascismo, mas parece evidente que ele ajudou a consolidar o modelo, a ideologia e as práticas de Mussolini e às de sua ‘capangagem’. O chamado, no bom sentido, naturalmente, de exotismo e o desserviço dos futuristas – com relação a um determinado engajamento político em arte, tomando como referência e/ou critério as proposições de Benjamin – levaram alguns dos artistas do movimento a serem reconhecidos e ‘agraciados’ pelos detentores do poder do período, sendo que o líder deles, Fillippo Tommaso Marinetti chegou, mesmo (o que não é pouco!!!) a ser condecorado pelo próprio ditador pelos ‘bons serviços prestados ao sistema’ em arte. 5 Paolo ANGELIERI. Atualidade do futurismo, Apud Aurora F. BERNARDINI (org.). O futurismo italiano. São Paulo: Perspectiva, 1980, p.17. 6 Guilhermo TORRE. História das vanguardas européias I. Lisboa: Presença, s/d. Dessa forma, o aluno Hamlet de Prévert, citado na epígrafe deste módulo, parece caracterizar de modo bastante explícito um determinado comportamento de alguns dos mais significativos artistas ligados ao movimento e, fundamentalmente, seu líder Marinetti. Assim, pode-se dizer que o ‘duplo’ e ambíguo ‘Marinetti’ representariam no texto, tanto o professor (como paridor de manifestos incendiários) que tenta despencar o aluno Hamlet das nuvens: sem o conseguir (claro!), como o próprio aluno (autor e criador de textos dramatúrgicos: muitas vezes, e no mal sentido, pueris) que consciente do ‘estado de coisas’ tergiversa, fazendo-se de bobo, muitas vezes, por conveniência e por esperteza. Ou seja, o primeiro é tido como uma espécie de intelectual sisudo e provocador, misto de Sorel, Papini, Nietzsche, Turati, Ferri, Labriola, Comte etc7 e, em oposição a este, também um provocador, misto dos bufões e dissimulado papalvo característico de muitas das formas de teatro popular. Nessa perspectiva, e em meio a muitas mudanças e novas experimentações estéticas em curso, o Futurismo italiano – que foi edificado a partir da tríade: liberdade narrativa (conceito de verso livre), o fetichismo do maquinismo e a anarquia (resvalada, politicamente para os ideais positivistas) - foi o primeiro e grande movimento artístico, ligado às vanguardas do século XX, a criar, por meio de um programa de ação, manifestos e apresentação de espetáculos nas serate,8 que veicularam as ideias dos artistas futuristas e ajudaram a fixar as características básicas de provocação do movimento. Pode-se dizer, então, que sem a criação e desenvolvimento das serate dificilmente as peças futuristas teriam permanecido e/ou atingido sua eficácia, digamos ‘revolucionária’ (esteticamente falando). Dessa forma, Angelo Maria Ripellino, ao analisar a produção dos cubo-futuristas na Rússia (movimento bastante diferente daquele desenvolvido na Itália, fundamentalmente pelos compromissos de seus artistas com a transformação radical da sociedade russa da época e como decorrência de um processo de revolução desencadeado desde 1905), afirma que o teatro desses artistas: 7 Tais e contraditórias influências são comentadas por Annateresa FABRIS. O pré-futurismo na Itália, In: Futurismo: uma poética da modernidade. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1987, pp.13-35. Desse modo, a autora, à p.3, afirma: “Consumada a aliança entre Lacerba e o grupo de Marinetti, a problemática dos precursores só reaparece no artigo ‘Futurismo e Marinettismo’ (14/12/1915), que sanciona o dissídio definitivo entre florentinos e milaneses, quando se opera a radical distinção entre ‘futurismo’, que Papini, Soffici, Palazzeschi reclamam para si, e ‘marinettismo’, corrente em que se inscrevem os nomes de Marinetti, Mazza, Folgore, Buzzi, Boccioni, Balla, Russolo, Sant’Elia. Nas raízes do marinettismo estão, segundo seus signatários, Rousseau, Hugo, Zola, Verhaeren, Ghil, Kahn, Adam, Beaudouin, D’Annunzio, Morasso, Delacroix, Rodin, Segantini, Signac, De Groux”. Outro autor a apresentar um quadro bastante interessante é Guilhermo TORRE. Futurismo, In: História das vanguardas européias, I. Op.cit., pp.106-266. 8 Com relação aos inúmeros manifestos futuristas, cf. Aurora F. BERNARDINI. Op. cit. Da mesma forma, com relação às serate, cf. Silvana GARCIA. As trombetas de Jericó: teatro das vanguardas históricas. São Paulo: HUCITEC, 1997. E Giovanni ANTONUCCI. Lo spettacolo futurista in Italia. Roma: Nuova Universale Studium, 1974. “não deve ser procurado apenas nos textos dramáticos, mas também nos seus espetáculos semeados de extravagâncias, de algazarras e bate-bocas com o público”. 9 XI.2. Surgimento e desenvolvimento do Futurismo10 “Eis as nossas conclusões incisivas: com esta entusiástica adesão ao Futurismo, nós queremos: 1.Destruir o culto ao passado, a obsessão do antigo, o pedantismo e o formalismo acadêmicos. 2.Desprezar profundamente toda forma de imitação. 3.Exaltar toda forma de originalidade, mesmo se temerária, mesmo se violentíssima. 4.Extrair a coragem e o orgulho da fácil pecha de loucura com a qual se criticam e se amordaçam os inovadores. 5.Considerar os críticos de arte como inúteis ou danosos. 6.Rebelar-se contra a tirania das palavras: harmonia e bom gosto, expressões demasiado elásticas, com as quais se poderia facilmente demolir a obra de Rembrandt e a de Goya. 7.Varrer do campo ideal da arte todos os motivos, todos os temas já aproveitados. 8.Exprimir e magnificar a vida hodierna, incessante e tumultuosamente transformada pela ciência vitoriosa. 9. Sejam sepultados os mortos nas mais profundas vísceras da terra! Seja limpa de múmias a soleira do futuro! Dêem lugar aos jovens, aos violentos, aos temerários!” BOCCIONI, CARRÀ, RUSSOLO, BALLA, SEVERINI. Manifesto dos pintores futuristas. “afastar a alma da plateia da realidade diária e alçá-la a uma atmosfera deslumbrante de intoxicação intelectual”. F.T. MARINETTI. Manifesto Futurista. Segundo algumas das análises a respeito do Futurismo (única das escolas de 9 Angelo Maria RIPELLINO. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971, p.22. Ainda segundo o autor e outras fontes bibliográficas, o futurismo russo foi articulado em dois ramos principais. O primeiro deles, chamado de ego-futurismo de Petersburgo, fundado em novembro de 1911 (em outras fontes, 1909), por Igor Sievierianin (ou Severjànin), foi um movimento que retomou fórmulas decadentistas superadas e cujos poemas eram amaneirados e repletos de expressões estrangeiras; o segundo, chamado de cubo-futurismo de Moscou, surgiu em abril de 1910 através da publicação do almanaque “Sadók Sudiéi” (Viveiro de Árbitros), dirigido por Vielimir Khliebnikov, David e Nicolai Burliuk, Vasseli Kamienski e Elena Guro. Em fins de 1912, no almanaque “Pochchótchina obchchéstvi Enomu Vkussu” (Uma Bofetada no Gosto do Público), os cubo-futuristas apresentam um manifesto exortando a repulsão a Puchkin, Dostoievsky e Tolstoi e a todo passado, defendendo a tese de ser direito dos poetas aumentarem o vocabulário existente com novas e arbitrárias palavras e derivadas. Adotando a excentricidade nos espetáculos futuristas, em um artigo: “I Nam Miassa!” (“Carne também para nós”) Maiakovski (para quem a poesia representava um ofício: chegando a declarar que ‘Também sou fábrica.’ – conceito de poeta operário) declarou que o futurismo representava para os jovens poetas a capa vermelha usada pelos toureiros. Além do texto de RIPELLINO, outra boa reflexão acerca do movimento em português pode ser encontrada em Silvana GARCIA. Teatro de militância. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, pp. 1-45. Ainda a respeito de Maiakovski, em 1913: “ele publicou ‘Teatro, cinematografia, futurismo’, artigo em que condenava o teatro moderno, e Stanislavski em particular, por conduzir o drama através do caminho estéril do realismo. O triunfo do cinema, dizia ele, que pode efetivar o realismo mais eficazmente, devia libertar o teatro para que ele se transformasse outra vez numa arte significativamente”. Cf. CARLSON. Op.cit., p.331. 10 Diferentemente de todos os outros movimentos do período: cubismo, fauvismo, expressionismo cujos nomes foram dados pelos críticos, o nome futurismo foi escolhido por Marinetti (que hesitava entre Dinamismo, Eletricidade e Futurismo). Por estes nomes fica mais ou menos claro por onde andariam e estariam os interesses de Marinetti. De maneira mais esquemática, o líder do movimento queria que as artes que viessem a ser paridas por eles e seus parceiros demolissem tudo o que tivesse sido criado no passado e que, em oposição a isso, pudesse celebrar “as delícias da velocidade e da energia mecânica”. vanguarda nascida na Itália), o movimento é apresentado como o primeiro dentre os de vanguarda, sendo – ainda de acordo com essas mesmas opiniões – o menos vivo e o menos atuante, mas acaba, de 1909 até 1920, deixando traços inconfundíveis na produção estética do mundo contemporâneo. Guilhermo TORRE, afirma que o futurismo: “inaugura o Sturm und Drang dos ismos da primeira metade deste nosso século tão confuso, absurdo e admirável”.11 Assim, passado esse primeiro momento de virulência fraseológica pelos manifestos bombásticos – tendo em vista que a rejeição ruidosa proposta pelos seus artistas, propondo a destruição das tradições, dos valores e das instituições consagradas – o movimento enveredou num maneirismo e academicismo ‘esperáveis’, de modo bastante dócil e facilmente esquadrinhado pelo sistema e o que, no caso específico, quis dizer neutralização e cooptação por parte dos detentores do poder fascista na Itália12, dos rebeldes e ufólogos, isto é, ufanistas do progresso, da ordem e da evolução técnica/tecnológica. Assim, segundo Guilhermo TORRE (Op.cit., p.232) “Nas águas turvas do futurismo encubavam desde o início larvas fascistas”. À luz do exposto, as análises mais apressadas do movimento parecem referir-se, fundamentalmente, ao fato de alguns de seus artistas mais importantes – e principalmente seu líder Fillippo Tommaso Marinetti (1876-1944)13 – terem assumido, de modo mais explícito e contundente, posturas políticas bastante retrógradas e regressivas, posto fundamentadas (desde sempre) no Positivismo de Augusto Comte. Como se sabe, e pela ótica do progresso preconizada por Comte, para o mundo burguês (retomando a vital importância ocorrida desde a Revolução Industrial) a ciência desempenharia papel fundamental e se caracterizaria em grande instrumento transformador da vida. O 11 Guilhermo TORRE. História das vanguardas européias. Op.cit., p.110. Silvana GARCIA. As trombetas de Jericó. Op.cit., p.144, afirma: “Giovanni Calendoli, na introdução aos três volumes da obra marinettiana, divide a produção dramatúrgica desse autor em quatro fases: na primeira, estariam três peças, entre as quais Rei Baldória, que antecederiam o lançamento oficial do Futurismo; a segunda fase compreenderia o Teatro Sintético, período mais turbulento e inovador do movimento; num terceiro momento, estaria a produção de peças de maior fôlego, de qualidade poética e estrutura tradicional, da qual a obra mais representativa seria Os prisioneiros (Prigionieri) e, por último, a fase final que, segundo o crítico, representaria o reencontro de Marinetti com seu ‘entusiasmo polêmico juvenil’, retomando ‘sob forma teatral sua batalha pelo aperfeiçoamento de uma civilização futurista’.” 13 No sentido de apresentar alguns e brevíssimos traços biográficos, vale apresentar as seguintes observações: italiano de formação cultural francesa, nasceu no Egito. Filho de advogado italiano que chegou ao Egito por volta de 1869 (momento próximo à abertura do canal de Suez), e com o qual – a partir da legalização das terras do Nilo – acabou por acumular grande riqueza. Com o enriquecimento do pai, Marinetti acabou tendo uma infância de grande luxo em Alexandria, e cujos estudos foram feitos em colégio jesuítico. Em 1893, chega a Paris e estuda na Sorbonne, momento em que na ‘cidade luz’ fez grandes amizades com decadentistas e simbolistas: empenhados na defesa e teoria do verso livre e com os quais compactua e passa, também, a defender. Em 1902, publicou em Paris seu primeiro livro de poemas: La conquête des étoiles (A conquista das estrelas). Em 1905, muda-se para Milão e funda a revista pré-futurista Poesia, que acaba tendo grande importância na renovação das letras italianas. Depois desse período, em 1909, e como já se viu, Marinetti lança o Manifesto Futurista. 12 pensador que sempre proclamou como um dever ser a necessidade de promover a ciência em grande instrumento transformador ou, ainda (e não de modo diverso), em uma certa psicologia do progresso, parece ter induzido muitos dos artistas do Futurismo a uma identificação deles com o fascismo italiano.14 A despeito da apologia irrefreada aos ideais positivistas não deixa de ser curiosa a produção, bastante paródica de Soffici, de 1910, mesmo ano, aliás, em que o artista adere ao movimento futurista, segundo o qual, em sua ‘Equação Crociana’ (‘Equazione Crociana’), Apud Gilberto Mendonça TELES. Op.cit., 82: “Crítica = história; história = filosofia; filosofia = espírito; espírito = tudo; tudo = nada; nada = Benedetto Croce” Além de Marinetti (e de um modo geral muitos dos futuristas) simpatizar-se com a Associação Nacionalista Italiana: centro de base corporativista e imperialista, vinculado aos interesses dos grandes capitais, cuja ‘bandeira principal’ e contraditoriamente defendia o nacionalismo, parece que o mesmo Marinetti interessou-se, também (e como se isso fosse possível!), pelos sindicalistas revolucionários e suas estratégias mais características. Dessa forma, e com ‘a cabeça’ virada: ora para a (e se pode dizer extrema) direita e ora para a esquerda, sua definição política deu-se por ocasião da Guerra da Líbia, em que trabalhou como correspondente de guerra. Contrário à libertação dos líbios à independência italiana, Marinetti afirma que a palavra Itália deveria predominar à liberdade. Por sua contestação e militância em prol do nacionalismo italiano, Marinetti foi preso em 1914 (pela defesa da participação da Itália ao lado da ‘Entente’15). 14 Paolo ANGELIERE. Op. cit., lembra-nos, entretanto, que tal procedimento denegritório ou apologético – ainda que corretos acerca dos ‘agitadores futuristas’ ou de quaisquer outros agitadores – caracteriza-se em sério problema, invariavelmente por conta de as análises apressadas tenderem a descontextualizar aspectos sócio-culturais relevantes dos momentos históricos em que determinadas produções se desenvolvam. 15 A respeito da Entente, o verbete assim aparece na Grande Enciclopédia Larousse Cultural, às pp.2116-7: “Entente (Tríplice), sistema de aliança fundamentado sobre acordos bilaterais concluídos a partir de 1907 entre a França e a Grã-Bretanha e a Rússia. Concebida por Delcassé com o objetivo de contrabalançar a Tríplice Aliança, alicerçava-se sobre o regulamento preliminar dos contenciosos entre a França e a Grã-Bretanha (Entente cordial, 1904) e entre a Grã-Bretanha e a Rússia (acordo anglo-russo, 1907). Permaneceu em vigor após o desencadeamento da I Grande Guerra.“Entente cordial, expressão inicialmente empregada para caracterizar as boas relações estabelecidas por Luís Filipe e a rainha Vitória, e posteriormente retomada em 1904, para definir a nova aproximação franco-britânica. Desejada pela França, que desejava escapar do isolamento diplomático no qual era mantida pelo sistema de Bismark e pela Tríplice Aliança, esta nova aproximação foi promovida graças à chegada de Delcassé (1898) ao ministério de Assuntos Estrangeiros, de Paul Cambon à embaixada de Londres (1898), assim como pelo advento de Eduardo VII (1901). Os acordos, assinados em 8 de abril de 1904, regularam as questões coloniais em litígio entre os dois países, delimitando, especialmente, as suas zonas de influência respectivas no Marrocos e no Egito. A Entente cordial foi uma etapa decisiva na constituição da Tríplice Entente e afirmou- Em 1915 Marinetti tem um encontro com Mussolini que, já expulso do Partido Socialista, militava na ocasião no Il Popolo de Italia, órgão que defendia o intervencionismo de esquerda. Com o final da Primeira Guerra Mundial, Marinetti divulga o “Manifesto do Partido Político Futurista” (1915-18) apresentando determinadas teses com as quais já comungava desde longo tempo. Dessa forma, o manifesto expressa, talvez de modo mais sistematizado, seus pontos de vista acerca da necessidade de um Estado intervencionista e forte, liderado e supervisionado por um conjunto de vinte homens, com idade inferior a trinta anos. Apesar de aparentemente haver no manifesto alguns pontos progressistas como a extensão do sufrágio universal às mulheres, a socialização dos grandes latifúndios e reforma da burocracia, tais propósitos atrelados ao nacionalismo, intervencionismo e corporativismo corresponderão, posteriormente àqueles mesmos aspectos propugnados pelos fascistas. Pelas ‘boas ideias’ defendidas por Marinetti e alguns outros companheiros mais próximos e ‘comungantes dos mesmos princípios’ – sistematizados no “Manifesto do Partido Político Futurista”, em 1919 – tais artistas foram convidados a engrossar as colunas que fundaram o Fasci di Combattimento16, sendo que Marinetti fez parte, inclusive, do Comitê Central. Em 1920, durante o Segundo Congresso dos Fasci, Marinetti desliga-se do movimento por achar que as ideias de Mussolini, com relação ao Vaticano e à monarquia, eram extremamente complacentes. Apesar desse rompimento Marinetti, de certa forma, sempre foi aceito pelo regime que levou Mussolini ao poder na Itália, tendo em vista os bons serviços desde sempre prestados à causa defendida pelos fascistas. Apesar de os artistas futuristas terem construído um movimento de ruptura às tendências burguesas mais conservadoras no aspecto formal,17 algumas de suas palavras se contra a Alemanha por ocasião da Conferência de Algeciras (1906) e da questão de Agadir (1911)”. 16 Trata-se de uma milícia fascista (‘camisas negras’) cujos integrantes pertenciam fundamentalmente à pequena-burguesia, agrupadas inicialmente em torno de um programa socializante, bastante vago e abstrato, mas essencialmente nacionalista, antidemocrata, antiparlamentarista e anticomunista. Em tese, os fascistas ao defender a ordem e ao esmagar greves e toda e qualquer forma de contestação, acabaram, na evolução do movimento, recebendo apoio de banqueiros, de industriais e de facções do exército, instalando-se firmemente no país. Transformando-se em partido político (através da utilização de todos os tipos de coação) os fascistas obtiveram grande sucesso eleitoral em 1921, chegando ao poder graças a uma crise ministerial conciliada pelo rei Vitor Emanuel III, que nomeou Mussolini para primeiro-ministro em 1922. A partir da vitória obtida por Mussolini com a chamada ‘Marcha sobre Roma’, em 1924, a oposição foi basicamente destruída, com uma série de assassinatos e atos terroristas de toda ordem e natureza. 17 O conceito de formalismo adota integralmente as observações apresentadas por Bertolt BRECHT. Sobre o caráter formalista da teoria do realismo, In: Apud MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. Um capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o expressionismo. São Paulo: EDUNESP, 1998, pp.2418. Segundo BRECHT, à p.244: “Podem se confrontar o naturalismo e uma certa montagem anárquica com os seus efeitos sociais, demonstrando como eles só refletem os sintomas de superfície e não os complexos de causas sociais mais profundamente enraizados. Há pilhas de obras literárias, na aparência (na forma) de ordem, fundamentalmente aquelas que exaltavam o movimento agressivo, a virulência, a revolta, o progresso e a velocidade, preconizando uma espécie de modernolatria;18 busca de insônia febril, do salto mortal, do bofetão e do soco19, do incitamento e gozo provocado pelas vaias e outras manifestações – estas sim problemáticas – elogiosas e também apologéticas à guerra (‘como única fonte de higiene do mundo’), à violência, à manutenção do colonialismo, ao patriotismo (claro!) e à militarização da sociedade: passando, naturalmente, pelas questões da necessidade de eugenia. Assim, a reunião de todas estas e tantas outras particularidades afins caracterizaram-se no detergente para o anseio moral e o princípio para que o povo pudesse, segundo Marinetti: “conceder-se a cada decênio uma glorioso ducha de sangue!”; tudo isso eivado por uma defesa intransigente de um caráter ‘absoluto e imanente’ às produções e práticas futuristas. Enfim, os arautos do movimento – fundamentados em ‘verdades-inteiras’, ‘meiasverdades’ e em ‘pseudo-verdades’ – adotaram, estrategicamente, o ‘efeito bombástico’ com o fito de chamar atenção sobre si mesmos e sobre sua produção, que do ponto de vista dramatúrgico, pode ser considerado como um conjunto de obras relativamente ingênuas e bastante tradicionais, como se poderá constatar mais adiante.20 Nesse sentido, Gilberto Mendonça TELES. Op.cit., p.80, afirma: “O futurismo foi, em linhas gerais, um movimento estético mais de manifestos que de obras. Assim, mais pelos manifestos do que pelas obras o futurismo exaltou a vida moderna, procurou estabelecer o culto da máquina e da velocidade, pregando ao mesmo tempo a destruição do passado e dos meios tradicionais da expressão literária, no caso a sintaxe: usando as palavras em liberdade, rompia a cadeia sintática e as relações passavam a se fazer através da analogia”. Por outro lado, é verdade que os mais de trezentos manifestos (trezentos e vinte de acordo com Bernardini e trezentos e vinte e três, segundo G. Bandini) ‘paridos’ de 1909 até o final da década de vinte, foram pouco-a-pouco perdendo sua força e virulência, principalmente por conta de as obras teatrais, como já comentado anteriormente, serem, do ponto de vista estrutural, bastante simples e pouco assemelhadas à ‘violência e radicais, que se podem apontar como esforços puramente reformistas, portanto, puramente formais, como solução no papel”. Tal comentário, como aliás todos os feitos por Brecht, durante toda sua vida, pautou-se, para além da produção artística propriamente dita, na denúncia das tendências artísticas retrógradas e conservadoras, fundamentalmente no concernente às questões políticas. 18 Vale lembrar que os símbolos adotados pelos artistas do movimento foram o poste elétrico e o automóvel como as expressões poéticas e, ao mesmo tempo, máximas do novo tempo. 19 Cf. o item número três do Manifesto de Fundação do Futurismo. 20 A esse respeito, inclusive, é bom lembrar que o movimento foi bastante histriônico e aparentemente popularizante. De certa forma, os freqüentadores das serate iam a elas imbuídos de um certo espírito lúdico e jocoso. A esse respeito P. ANGELIERE. Op.cit., p.113, afirma: “Marinetti, pelos manifestos que continuamente dava à luz, pelo seu comportamento excêntrico e pela aura de pitoresco que o rodeava, tornou-se numa personagem extremamente popular, meio revolucionário, meio bobo. Mas tinha uma fraqueza fundamental: era demasiado ingênuo e transparente, demasiado simples, muito facilmente compreensível”. virulência’ com a qual as palavras e ideias, eivadas de diferentes tipos de ódio, preenchiam os manifestos dos futuristas. À luz do exposto e de modo mais didático – e, nesse sentido, vários são os historiadores a afirmar que – o Futurismo, de 1909 até 1914, teve o seu período mais inovador, repetindo-se, sem nenhuma originalidade, posteriormente. Assim, a partir desse período, o ‘caracterizante’ constitui-se em um jogo fraseológico, facilmente, como foi, ‘abocanhável’ pelos detentores do poder. De outro modo, ainda, a partir desse curto período (do mesmo modo como para todos os outros movimentos de vanguarda), alguns dos princípios críticos e de energia criadora que originalmente constituíam o fazer artístico, deixaram, por incapacidade de ação, de representar – a pela adoção sistemática de procedimentos herméticos, opacos e niilistas – de maneira reflexiva e consciente o próprio futuro. Os textos dramatúrgicos que faziam parte dos espetáculos mistos21 adotaram, como estrutura básica, os expedientes característicos do teatro de variedade (cf. Manifesto do Teatro de Variedades de 1913), motivo pelo qual, em muitas das análises acerca do movimento, ser bastante comum popularidade granjeada comentários segundo os quais a pelos artistas futuristas muito deveu exatamente à carga histriônica e mesmo popularizante de suas manifestações e, segundo alguns historiadores, também, pelas próprias e outras ‘construídas’ características de seu líder. Dessa forma, não seria de todo apressado afirmar que – com as palavras de ordem mais características defendidas pelos artistas ligados ao movimento: com uma reiterada negação a tudo que pudesse ser considerado como fazendo parte ou representando o passado – os futuristas egóide e histericamente se autoproclamavam demiurgos, acreditando-se porta-vozes de uma espécie de desejo de totalidade e de absoluto: tão característico dos fascistas e dos ‘acarinhadores de ditaduras’ de toda ordem. Dessa forma, pontificaram, sem nenhum prurido, que sua produção artística constituiria-se em uma espécie de marco primicial.22 Essa prática, contraditoriamente 21 Mistos no sentido de, nas serate, haver apresentação de peças curtas, leitura de poemas e manifestos, todo tipo de provocação com relação ao público, exposição de obras de arte etc. 22 Gerd BORNHEIM. Compreensão do teatro de vanguarda, In: O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1975., ao discutir algumas das características dos movimentos vanguardistas e, naturalmente, o Futurismo) afirma que muitos desses artistas foram acometidos por uma espécie de “vertigem autista” a partir da qual esses autodenominados demiurgos colocaram-se na origem de todas as coisas e que, nesse caso, decretaram o fim caótico de toda ordem convencional. Dessa forma, situados num idealizado ‘ponto zero ou no infinito’, o homem poderia construir seu mundo original: alimentado pelo desejo de totalidade e de propósitos absolutos. Afirma, ainda, o autor que tal desejo teria como alicerce o conceito nietzschiano de super homem, segundo o qual o homem que adoraria um deus tenderia a abrigar em seu ato de adoração a VONTADE de ser o próprio deus. Dessa forma, o teatro das vanguardas teria realizado esta ideia saciando pela IMAGINAÇÃO a vontade do poder. Aurora F. BERNARDINI. Op.cit., p.9, de modo semelhante, apresenta Nietzsche e Sorel como alicerces das ideias de Marinetti. Além disso, é bom não esquecer, que a despeito de um caráter de alguma forma iconoclasta, em muitos de seus manifestos, Marinetti parece ter incendiária e iconoclasta, talvez se aproximasse muito do adágio popular, segundo o qual (e que me desculpem todos os puristas e apologistas do movimento: “Por fora bela viola. Por dentro pão bolorento!”.23 Mais que isso, trata-se de um movimento essencialmente italiano a despeito de sua origem ter se dado em Paris. Gilberto Mendonça TELES. Op.cit., 81, assim comenta a observação: “Levando-se em consideração que Paris era o centro internacional das ideias novas e revolucionárias e, ainda, que foi em Paris que Marinetti não só publicou seus livros como lançou o seu primeiro manifesto, pode-se concluir que o futurismo teve a sua gênese na França, ainda que, nos seus objetivos, se dirigisse ã Itália, onde, de fato, conheceu os seus dias de glória literária e política. Diga-se, de passagem, que o fato de a revista Poesia, fundada por Marinetti em Milão ser indicada pela crítica italiana como precursora do futurismo, não altera muito as origens francesas desse movimento, uma vez que as suas primeiras reivindicações podem ser relacionadas com algumas concepções científicas, filosóficas e literárias que fizeram da época o ponto de convergência das inquietações espirituais do fim de século e, também, o ponto de partida das grandes correntes literárias da poesia contemporânea”. O movimento futurista – vanguardas históricas – como aliás todos os outros ligados às chamadas teria se iniciado enquanto especulação intelectual, sendo precedido por manifestos e cuja origem deu-se na Itália. Isto é, em 1908, Marinetti escreveu um manifesto que funcionou como prefácio a um volume de seus poemas (editado em Milão). O impacto verdadeiro do manifesto deu-se, entretanto, em 20 de fevereiro de 1909, após a publicação de seu primeiro manifesto no “Le Figaro”, em Paris: que marca oficialmente o início do movimento, em âmbito internacional.24 De modo mais didático, portanto, e completando as várias observações já conservado muitos resquícios judáico-cristãos. No “’Manifesto técnico’ da literatura futurista”, em uma de suas passagens, afirma o autor: “Poetas futuristas! Eu ensinei vocês a odiar as bibliotecas e os museus, para prepará-los a ODIAR A INTELIGÊNCIA, despertando em vocês a divina intuição, dom característico das raças latinas.” [sublinhados por mim]. Afinal dom e divino não são conceitos usados por intelectuais sem referências explicitamente religiosas! Não é? 23 Segundo Aurora BERNARDINI. Op.cit., pp. 9-10: “Marinetti era uma pessoa completamente contraditória: irônica e significativa, entretanto, a compartimentação à qual sujeitará, em sua vida futura, todas essa tendências: anticlerical, mas as filhas estudam em colégios de freiras; anticlássico, mas vestindo a farda da Academia; indisciplinado, mas cumprindo rigorosamente o serviço militar; liberal, mas aderindo ao Fascismo. Como observa com sagacidade Benjamin Gorièly: ‘Acontecia-lhe ser indisciplinado no dormitório, mas nunca em sala de aula’.” Assim, Marinetti seria uma espécie de personagem de si mesmo, em constante processo de absoluta contradição. Daí, talvez, o autor, diferentemente do que pretendia, acabou por se tornar um homem-personagem bastante risível por seus opositores. 24 De certa forma e, também, com algumas restrições, este primeiro manifesto guarda alguma similaridade aos “Manifeste Naturiste” de Saint-Georges de BOUHÉLIER , de 1897 e ao de Jules ROMAIN, de 1905: “Les sentiments unanimes et la poésie”. Com relação ao fato de o primeiro manifesto ter sido publicado em Paris, e também no geral, as primeiras produções terem aparecido nessa língua, comenta Annateresa FABRIS. Op.cit., pp.4-5: “essa escolha derivaria do interesse pelo clima poético decadente – considerado o mais adequado para exprimir as neuroses da vida moderna -, pouco aceito na Itália, tanto em suas instâncias expressivas, quanto em suas propostas de novas temáticas para a poesia em consonância com o novo espírito da época. Declarar-se poeta francês significaria, para o primeiro Marinetti, afirmar-se como poeta moderno, polemizando com o provincianismo da cultura italiana, com sua receptividade para as inovações provenientes da área simbolista”. apresentadas, o movimento futurista pode ser dividido em três fases: • a primeira corresponde ao período que vai de 1905 a 1909, em que o princípio estético e ‘norteante’ do futuro movimento é uma apologia e exercício no sentido do verso livre; • a segunda corresponde ao período que vai de 1909 a 1914, em que foram redigidos a maioria dos manifestos defendendo uma luta pela ‘imaginação sem freios’: a partir do conceito de ‘palavras em liberdade’. Essa é, ainda, a fase em que a produção futurista foi a mais intensa e característica, tanto no concernente aos manifestos quanto às apresentações nas serate. Além disso, e para além do próprio discurso, com a eclosão da guerra: ‘como única higiene do mundo’, muitos dos futuristas acabaram se alistando, como voluntários, para serem mortos na guerra; • a terceira e última fase, vai do final da guerra até a dissolução do movimento, fundamentalmente por uma certa adesão ao movimento fascista italiano (e/ou consentimento no concernente à cooptação em relação a ele). XI.3. – Manifestações político-espetaculares nas serate futuristas “Tínhamos conculcado opulentos tapetes orientais nossa acídia atávica, discutindo diante dos limites extremos da lógica e enegrecendo muito papel com escritos frenéticos. Um orgulho imenso intumescia nossos peitos, pois nós nos sentíamos os únicos, naquela hora, despertos e eretos, como faróis soberbos ou como sentinelas avançadas, diante do exército de estrelas inimigas (...) Sobressaltamo-nos, de repente, ao ouvir o rumor formidável dos enormes bondes de dois andares, que passam chacoalhando, resplandecente, de luzes multicores, (...) escutamos, subitamente, rugir sob as janelas os automóveis famélicos. (...) Estendi-me em meu carro como um cadáver no leito, mas logo em seguida ressuscitei sob o volante, lâmina de guilhotina que ameaçava meu estômago.(...) Aqui e ali uma lâmpada doente, (...) E nós corríamos, esmagando nas soleiras das portas os cães de guarda que se arredondavam embaixo de nossos pneus ardentes, como os colarinhos embaixo do ferro de passar roupa. A Morte, domesticada, ultrapassava-me em cada curva, para oferecer-me a pata com graça, e de vez em quando se estirava no chão, com um barulho de maxilares estridentes, enviando-me de cada poça, olhares aveludados e acariciantes.(...) Entreguemo-nos como pasto ao Desconhecido, não por desespero, mas somente para encher os poços profundos do Absurdo! (...) Quando me levantei – trapo sujo e malcheiroso – debaixo do carro virado, senti o coração perpassado, deliciosamente, pelo ferro incandescente da alegria!” Fillippo T. MARINETTI. Fundação e manifesto do futurismo. As serate25 futuristas (ou noitadas provocativas ou, ainda, ‘barulhismo’26), próxima 25 Mais informações acerca das serate podem ser obtidas em Giovanni ANTONUCCI. Op.cit.; Silvana GARCIA. As trombetas de Jericó. Op.cit.; Romualdo MARRONE. F.T.Marinetti – futuriste: inediti, pagine disperse, documenti e antologia critica. Napoli: Guida Edit., 1977. 26 Este termo foi utilizado por Edgar Varèse que o levou para o universo musical. Assim, ao proceder dessa forma, Varèse acabou por dar continuidade às pesquisas e descobertas de Russolo, então criador do conceito de música-barulho. à tradição dos cafés-concerto e dos meetings políticos, caracterizaram-se no maior e grande canal veiculador dos textos e espetáculos dos apologistas de um teatro sintético, mágico27 e surpreendente. As ‘noitadas futuristas’ apresentavam uma teatralidade absoluta, correspondendo às atitudes que os futuristas imprimiam em seu cotidiano, vinculando-se de imediato ou como decorrência à natureza escandalosa de atitudes e postura com relação ao público. Essas atitudes escandalosas e surpreendentes estavam presentes desde as primeiras apresentações públicas dos futuristas. Em janeiro de 1909, a companhia de teatro dirigida por Andrea Maggi apresenta pela primeira vez a peça em três atos de Marinetti La donna é mobile, apresentando um estranho drama em que um casal encontra-se às voltas com seus criados mecânicos. Este drama doméstico já havia sido apresentado em Paris, então chamado Poupées électriques. Em princípio, o aludido surpreendente, prendeu-se às inúmeras performances a partir das quais os espetáculos eram apresentados, compreendendo: declamações de textos; leitura de manifestos; apresentação das peças futuristas; debates verbais entre os atores, artistas do movimento e o público; exposição das obras dos artistas plásticos ligados ao movimento, sendo que o público era incitado a participar das mais diferentes formas (e especialmente por meio de vaias) tendo, também, o direito à arremessagem de todo tipo de legumes.28 Dessa forma, é bastante consensual a afirmação segundo a qual sem as ‘noitadas’ dificilmente os espetáculos teriam tido qualquer significado mais especial para as artes do século XX. Assim, as observações apresentadas (em forma de epígrafe) do prof. Décio de Almeida Prado são parcialmente verdadeiras uma vez que sem essas noitadas dificilmente os futuristas, agitadores por excelência, teriam conquistado seus intentos e os espetáculos sua eficácia. Dessa forma, no Manifesto dos Dramaturgos Futuristas, publicado em 1911, Marinetti apresenta como única preocupação o desenvolvimento de uma ‘absoluta 27 Do aludido ‘maravilhoso’ fariam parte: caricaturas possantes; abismos do ridículo; ironias impalpáveis; símbolos definitivos e envolventes; cascatas de hilaridade irrefreáveis; analogias profundas entre homens, animais vegetais e o mundo mecânico; esforços de cinismo revelador; enredos de frases espirituosas, de trocadilhos e de adivinhações que serviram para arejar agradavelmente a inteligência; gamas de estupidezas, imbecilidades, parvoíces e absurdos que impeliriam a inteligência até a beira da loucura; pantomimas satíricas e instrutivas; apologia à tecnologia; decomposição irônica do sagrado, do sublime, do religioso etc; trabalhar com a simultaneidade da cor, da luz, da forma, dos movimentos prestidigitadores etc; utilização do público não como voyeur, mas como participante ativo, sendo que as ações eram desenvolvidas explodindo os limites tradicionais do palco; criação de atmosfera de perigo; destruição da lógica; exageramento no luxo das personagens e do cenário; multiplicar contrastes; fazer reinar no palco o inverossímil e o absurdo; introduzir surpresas de toda espécie... (ufa!) e outros expedientes. 28 Essa prática foi tão estimulada que o líder do movimento, em visita a diversos países do mundo (inclusive no Brasil), foi ‘recepcionado’ com muitos ovos! Afinal, esta manifestação, segundo os artistas do movimento corresponderia ao acalentado furor e volúpia pelas vaias como demonstração de incômodo às provocações dos futuristas. originalidade inovadora’, preconizando uma abstrata atmosfera de ‘ofuscante embriaguez intelectual’. A partir de 1913 os manifestos ligados à prática teatral começam a ser escritos (sendo o primeiro deles o Manifesto do Teatro de Variedades) e o movimento a se estender por toda Itália, a partir de excursões apresentadas pelos artistas futuristas em diversas capitais italianas, incluindo as peças sintéticas. As sintese futuristas eram peças curtas introduzindo soluções radicais e inusitadas, sendo que em muitas delas, à despeito do pretendido através dos manifestos, o tom era bastante simplório e ingênuo. “A inventividade dos futuristas no que concerne ao teatro foi inesgotável. Do teatro ‘tátil’ – no qual os espectadores poderiam apalpar ‘fitas táteis’ de diferentes texturas, da lixa aos ‘cabelo e pêlos humanos’–, ao Teatro Aéreo Futurista, de Fedele Azari, que encontra na acrobacia de aeroplanos um substituto para a cena, passando pelas propostas de maior consistência conceitual de Prampolini, o termo teatro assinala para os futuristas uma acepção mais ampla do que jamais teve na sua história. No entanto, depois do Teatro Sintético, pode-se afirmar sem muita hesitação que a veia mais criativa e inovadora do teatro futurista já se encontraria esgotada. As invenções seqüentes seriam basicamente novas combinações que teriam como fundamento esse teatro anterior e as criações essenciais das outras áreas, como o dinamismo plástico e a arte do rumor, além, evidentemente, do paroliberismo”.29 Ao se analisar as peças sintéticas30, escritas por diversos autores futuristas, percebe-se uma certa ingenuidade e – a despeito do desejo dos autores – uma certa previsibilidade dos acontecimentos depois da leitura de algumas delas. Tal evidência é tanto mais evidente quando se conhece, particularmente, a produção cômico-popular, desenvolvida ao longo da história do teatro ocidental. Notam-se, em muitas das peças características do movimento, influências da commedia dell’arte, dos sainetes31, das farsas (notadamente por seu caráter de irrealidade e exagero), dos expedientes mais característicos do chamado teatro ligeiro e daqueles particularmente do teatro de revista. Nessa perspectiva, no concernente à vislumbrada surpresa, que se caracterizou no alvo estético básico desses artistas, fosse ela, do ponto de vista dos assuntos a partir do qual 29 Silvana GARCIA. Op.cit.,p.39. Segundo MARINETTI e outros de seus ‘companheiros de batalha’, por sintético poderia se entender brevíssimo. Dessa forma, de acordo com a sensibilidade futurista, sintético seria, portanto, sinônimo de laconismo e velocidade que significando, ainda, a destruição da técnica teatral, dos gregos àqueles dias, posto que a dramaturgia padeceria de uma complicação, uma vez que (pela ‘lógica’ dos dramaturgos futuristas): “tornou-se cada vez mais dogmática, estupidamente lógica, meticulosa, pedante, estranguladora”. Assim, insistia o autor que seria necessário vencer as estupidezas da tradição, recomendando aos escritores que escrevessem apenas uma página, onde antes seriam necessárias cem; não satisfazer o primitivismo das multidões que estavam habituadas a exaltar as personagens simpáticas, necessitavam de histórias lineares, sendo que a vida era fragmentada... Cf. Manifesto do teatro futurista sintético, de 1915, In: Aurora F. BERNARDINI. Op.cit., p.180. 31 Segundo Luiz Paulo de Vasconcellos. Op.cit, p.172, o sainete é um: “Tipo de peça encontrada na Espanha do século XVII, consistindo numa CENA cômica curta destinada a ser representada no ENTREATO das peças sérias longas. O sainete é um GÊNERO bastante próximo do ENTREMEZ, diferenciando-se pelo uso de música e pela crítica social, que, embora muito superficial, mostrava-se sempre presente”. 30 muitos dos textos foram escritos; da tentativa de construção de uma nova dramaturgia; do ‘uso e abuso’ dos recursos de metalingüagem; da utilização inusitada e exagerada de ruídos vocais e sonoros e outros expedientes. Dessa forma, pode-se afirmar que o novo, preconizado por esses artistas, resultou da mistura desses diferentes elementos nos espetáculos ou técnica de montagem, representando uma nova síntese. Conclusivamente, apesar de os expedientes característicos das peças futuristas já estarem presentes na tradição histórica da comédia popular ocidental, foram menos as montagens dos textos, mas, sobretudo, a estratégia de ação utilizada durante os espetáculos que acabou por constituir-se no novo, vislumbrado pelo movimento futurista, como um todo. XI.4. – Dramaturgia e alguns textos futuristas32 “Nós acreditamos, então, que não se possa hoje influenciar guerreiristicamente a alma italiana a não ser através do teatro”. Emilio SETTINELLI, Bruno CORRA e F.T. MARINETTI. Manifesto do teatro futurista sintético. “A frenética paixão pela vida atual, veloz, fragmentária, elegante, complicada, cínica, musculosa, fugaz, futurista (...) moderníssima concepção cerebral da arte segundo a qual nenhuma lógica, nenhuma tradição, nenhuma estética, nenhuma técnica, nenhuma oportunidade é impossível à genialidade do artista que deve somente preocupar-se em criar expressões sintéticas de energia cerebral que possuam valor absoluto de novidade”. Idem autores e manifesto citados acima. “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonhos gênios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras”. Fernando PESSOA. Tabacaria. A leitura e análise de muitas das peças futuristas pode provocar, num primeiro momento, diferentes reações e determinados ‘males estares’ e, até mesmo, uma acusação (leviana, mas não de todo injusta) de reacionarismo. Evidentemente não está em questão o chamado, por muitos críticos, caráter de ‘obra datada!’, mas uma certa alienação veiculada em muitos dos textos no concernente a determinadas funções que a arte deveria ter e que não aparecem nas obras a que se pôde ter acesso, fundamentalmente pelos dias que corriam; a este aspecto é necessário acrescentar, ainda, o caráter apologético de muitas delas à necessidade da guerra e um certo 32 Os textos apresentados na seqüência encontram-se aqui presentes pelo fato de não ser possível encontrá-los facilmente traduzidos e publicados em livros. Dessa forma, optou-se por inseri-los neste estudo para facilitar o acesso a eles. incitamento à diferentes formas de violência. Contraditoriamente, entretanto, aos ‘aspectos’ acima mencionados, em muitos dos textos lidos, parece que a motivação intencional ou limitadora, mais objetiva dos futuristas teria resvalado no conceito de riso fácil e simplificador.33 De maneira mais genérica, os textos futuristas, segundo Marinetti, deveriam preferencialmente estruturar-se adotando o verso-libero: sem métrica pré-fixada e tido como perene dinamismo do pensamento, desenrolar ininterrupto de sons e imagens, em que a rítmica representaria um de seus elementos mais importantes da narrativa; proposição de uma nova sintaxe34, sugerindo que os verbos deveriam preferencialmente ser utilizados no infinitivo; eliminação de adjetivos e de advérbios; mudança na pontuação e, em sendo possível, substituição por sinais matemáticos e musicais, condensação dos assuntos a partir do conceito de “laconismo veloz”, que pressupunha um esforço dos autores no sentido de trabalhar e organizar todos os elementos da ‘narrativa cênica’, de tal modo que nada pudesse – a partir desse grande esforço de seleção e escolha – ser suprimido e/ou acrescentado; ênfase às imagens, que segundo Marinetti, tomando Voltaire, constituiriam o próprio sangue da poesia; utilização do estilo analógico; destruição do EU na narrativa; acrescentar gratuitamente novos elementos abstratos nos textos (sempre evitados) como: o ruído: correspondendo à manifestação do dinamismo dos objetos; o peso: que imprimiria a faculdade de voo dos objetos e o cheiro: que corresponderia a uma indeterminada faculdade de espalhamento dos objetos. Dessa forma, a partir da junção de tão díspares e diversos elementos, segundo Marinetti, os poetas conseguiriam alcançar o conceito de “palavras em liberdade”. Nessa perspectiva e a despeito do vislumbrado pelos artistas com relação a seu teatro, a totalidade dos textos do futurismo deve ser interpretada como obras cujas características estruturais estão 33 De todos os manifestos paridos pelos futuristas, o Manifesto futurista da luxúria, escrito em 1913, por Valentine de SAINT-POINT, parece exprimir de modo mais claro a ambivalência contraditória entre a guerra e o riso fácil, através do conceito de luxúria. Assim, dentre outras pérolas, presentes no texto, pode ser citada: “É normal que os vencedores, selecionados pela guerra, cheguem até o estupro, no país conquistado, para recriar a vida”; 34 ‘Brincadeiras’ com a linguagem e com a sintaxe têm sido desenvolvidas desde a muito tempo, sendo que talvez de modo mais sistemático e envolvendo um maior número de autores tenha surgido com o movimento simbolista, mas nem sempre elas foram aceitas de modo tão simples e sem argumentações contrárias. Dessa forma, entre consistentes e vazias críticas, e para nossa sorte; tendo em vista inserido na primeira proposição, Alfredo BOSI. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p.148, assim se manifesta acerca das proposições marinettianas: “Quem lê o ‘Manifesto técnico do futurismo” (...) topa com verdadeiras ‘ordens de serviço’ técnico-gramaticais: empregar o verbo só no infinitivo, abolir o adjetivo, (...)Trata-se de um caso de entrega à concepção tecnicista da linguagem poética que tem seduzido mais de um intelectual de nosso tempo. Querendo libertar o escritor, o futurismo dava-lhe novas fórmulas que acabariam compondo a nova retórica do texto. A estrutura que subjaz à poética da metalingüagem é o mito capitalista e burocrático da produção pela produção, do papel que gera papel, da letra que gera letra, da rapidez (time is money), da eficácia pela eficácia (o que interessa é o efeito imediato), da violência pela violência: guerra sola igiene del mondo”. ligadas à produção cômica, não havendo nessa escolha nenhum problema uma vez que tal escolha (e os procedimentos daí decorrentes), de modos mais e menos explícitos, é apresentado em muitos manifestos.35 No concernente aos assuntos a partir dos quais os textos foram escritos, pode-se perceber, de modo mais sistemático, os seguintes aspectos: ‘diferenças existentes entre homem e mulher, sendo que o sexo feminino, invariavelmente, aparece na condição/expressão (não tão distante dos dias atuais e) denominada de ‘objeto de desejo’ ou, mais correntemente de ‘mulher objeto’ (muitas vezes com os seios nus), volúvel e vazia36 - numa clara distinção sexista; crítica satírica a situações, a tipos e a determinadas instituições; reiteração à inúmeras formas de morte; guerra e violência; apologia à velocidade, às luzes e ao futurismo; situações metateatrais sempre apresentadas a partir de climas de non sense. A surpresa, que de certa forma caracteriza-se, também, num assunto, poderia ser definida como o elemento fabuloso por excelência buscado pelos futuristas: próximo a algo que eles consideravam (genérica e abstratamente) concentrador da audácia, da rebelião e do fragmento. Trata-se, pelo que se pôde perceber até agora (no processo de pesquisa), de um neoconvencionalismo estético com o qual os futuristas instauraram e conseguiram consubstanciar a acalentada agressividade, destruição da lógica cartesiana e tradicional (sem o conseguir, naturalmente!), destruição da tradição e de seus procedimentos de culto, mais característicos. ‘Executando’ sumariamente o passado, a surpresa facilitou-lhes trabalhar com o choque e acalentar a ideia segundo a qual: “a frenética paixão pela vida atual, veloz, fragmentária, elegante, complicada, cínica, musculosa, fugaz, futurista (...) modernísssima concepção cerebral de arte segundo a qual nenhuma lógica, nenhuma tradição, nenhuma estética, nenhuma técnica, nenhuma oportunidade é impossível à genialidade do artista que deve somente preocupar-se em criar expressões sintéticas de energia cerebral que possuam valor absoluto de novidade”.37 Em outros períodos históricos tal procedimento plenipotenciário e absolutista foi chamado de despotismo (não esclarecido, naturalmente), mas, no caso específico, acabaram por ser reincorporados e chancelados pelo ideário positivista e pelas práticas terroristas e assassinas dos fascistas. 35 Dentre os manifestos em que isso aparece mais evidente, encontram-se: Manifesto dos dramaturgos futuristas, 1911; Manifesto técnico da literatura futurista, 1912; Manifesto do teatro de variedades, 1913; Manifesto do teatro futurista sintético, 1915; Manifesto da cenografia futurista, 1915. 36 Neste particular, inclusive, vale destacar que a primeira peça de Marinetti, dirigida por Andrea Maggi, apresentada no Teatro Alfieri de Torino, em 15/01/1919, chamava-se La dona é mobile (traduzida do título francês, chamada Pupées électriques). 37 Cf. Manifesto do Teatro Futurista Sintético. As personagens dos textos são simples (não complexas) sendo que muitas delas, em decorrência desse fato, são estereotipadas, carregando uma certa ambigüidade ou contradição (se comparadas àquelas da comédia). Dessa forma, passando por um crivo ideológico explicitamente positivista (assumido – para não haver nenhuma dúvida – pelo Manifesto sobre o Partido Futurista, de 1918), dentre essas personagens mais característica encontram-se as mulheres, os criados, os críticos de arte e de teatro, os inimigos nas peças cuja temática aborda a guerra, as pessoas humildes. Ainda, com relação às personagens, o expediente surpresa pode ser percebido pelas suas atitudes, impressões e ações; pelas suas ‘relações naturais’ com coisas e outras personagensobjetos. Desse modo, e à guisa de ‘síntese’, podem ser apontados, segundo a pretensão dos dramaturgos futuristas, os seguintes alvos: • explosão das formas dramatúrgicas mais tradicionais (sobretudo aquelas ligadas ao drama), com a consequente desordenação dos conceitos de tempo e espaço: por meio do uso de novos expedientes como a simultaneidade, compenetração, esvaziamento da tensão dramática, eliminação da relação dialógica, utilização de referências metalinguísticas durante quase todo o tempo de apresentação dos textos etc; • busca de ‘humores inusitados e bizarros’ (hiperbolizando-os em seus esplendores coloridos e exuberantes); busca de novos sentidos de decodificação (participação) da obra: obrigando os espectadores a renunciar aos padrões consagrados de dramaturgia e cena; • construção de novas formas de apreciação do espetáculo, incitando, por inúmeras formas de provocação: uma vez que o que animaria os futuristas seriam as sínteses (ou, se se quiser seu espírito) seria tornar o espectador a configurar-se em um jogador. Para leitura/apreciação de algumas das obras dramatúrgicas apresentadas abaixo, vale a transcrição de trechos de dois manifestos, segundo os quais: “Prostituir sistematicamente toda a arte clássica sobre o palco, representando por exemplo em uma única noite toda a tragédia grega, francesa, italiana, condensada ou comicamente mesclada (...) Reduzir Shakespeare todo a um só ato. Fazer outro tanto com todos os autores mais venerados. Fazer recitar Hernani por atores metidos em sacos até o pescoço. Ensaboar as pranchas do palco para provocar tombos divertidos nos momentos trágicos”. “O teatro futurista saberá exaltar os seus espectadores, isto é, fazê-los esquecer a monotonia da vida quotidiana, jogando-os através de um labirinto de sensações marcadas pela mais exasperada originalidade e combinadas de modo imprevisível”. Por último, e à guisa de relembrança, a noção do NOVO no Futurismo (mas não exclusivamente nele) passa pelos seguintes expedientes: - retomada dos conceitos de paródia e de sátira: aproximadas e semelhantes àquelas do teatro popular; - busca do conceito de surpresa (e/ou inusitado): no plano da forma e no do conteúdo; - negação e repulsa à tradição: adotando como uma das estratégias mais contundente a criação de manifestos; - trabalho com a (irrupção da) imprevisibilidade: colocando em xeque os próprios códigos da linguagem teatral, fundamentalmente nas serate; - busca com o trabalho de montagem: montagem de fragmentos da realidade, sem reproduzi-la – neste processo muito se deve às características a partir das quais Picasso e Bracque organizaram o movimento Cubista; - valorização do gesto (performance) e não do resultado. XI.4.1. – Textos futuristas Hora certa (de Cangiullo, com tradução de Rodrigo Santiago) Dois senhores passeiam de braços dados e cruzam com um terceiro. O Terceiro (a um dos dois) – Desculpe, podia me dizer a hora certa? Um dos Dois – Sinto muito, está adiantado. O Terceiro (ao outro) – E o senhor? O Outro – Está atrasado. O Terceiro – Já é alguma coisa... E eu que não estou nem adiantado, nem atrasado. Os Dois – Excelente. Então tem a hora certa. O Terceiro – Não, não tenho não. Frente ao infinito (de Corra e Settimelli, com tradução de Rodrigo Santiago) Filósofo selvagem. Bem jovem. Moreno. Filósofo tipo ‘berlinense’. Anda de um lado para o outro: na mão direita tem um revólver, na esquerda, um número de Berliner Tageblatt. Filósofo – É inútil... Frente ao infinito, todas as coisas são iguais... todas as coisas ficam no mesmo plano... É um mistério o nascimento das coisas, a existência delas, a morte de tudo... E então, o que escolher?... Ah! A dúvida, a incerteza!... Eu mesmo, hoje não sei... 1915, se depois do meu café da manhã de sempre, devo começar a ler o Berliner Tageblatt38, ou então me dar um tiro... (Olha à direita, depois à esquerda. Depois levantando o revólver e o jornal, porém, displicentemente entediado.) Hum! Vamos ao 38 Trata-se de um jornal alemão, fundado por Rudolf Mosse, de ideias moderadas (e em muitos assuntos, da vida nacional alemã, bastante reacionário) e que refletia fundamentalmente as opiniões da classe média. tiro! (Atira e cai fulminado.) Ato negativo (de Corra e Settimelli, com tradução de Rodrigo Santiago) Entra um senhor preocupado, atarefado, tira o capote, o chapéu, anda furibundo dizendo: Homem – Uma coisa fantástica, incrível! (Vira-se para o público, fica irritado ao vê-lo, depois vai até o proscênio e diz categórico) Eu não tenho nada a dizer aos senhores... Fecha o pano! Para entender o choro (de Giácomo Balla, com tradução de Rodrigo Santiago) Senhor vestido de branco (roupa de verão) Senhor vestido de negro (roupa de mulher enlutada) Cenário – Telão quadrado, metade vermelho, metade verde. Os dois personagens falam muito seriamente. Negro – Para entender o choro... Branco – Desbatetitotiti. Negro – Quarenta e oito. Branco – Brancabatarse. Negro – Mil duzentos e quinze mas me... Branco – Ulubusssssssut. Negro – Um parece que você está rindo. Branco – Esnhacarsapinir. Negro – Cento e onze ponto cento e onze ponto zero vinte e dois te proíbo de rir. Branco – Parplicluplotorplanplint. Negro – Oitocentos e oitenta e oito mas pordeusissssssimo! Não ria! Branco – Iiiiirrrrriririririri. Negro – Doze trezentos e quarenta e quatro. Chega! Para com isso! Pare de rir! Branco – É preciso rir. Estribilhos vocais (de Cangiullo De Angelis, com tradução de Rodrigo Santiago) Versos da vida – Música da morte. Cena neutra. Sobe o pano. Estão em cena cinco personagens: quatro homens e uma mulher alinhados no centro da ribalta. A mulher é a última. O Senhor – O refrão do moribundo. Primeiro Personagem – Aaaaaah...! O Senhor – O refrão do médico. Segundo Personagem – Eh! O Senhor – Refrão dos pais. Terceiro Personagem – Iiiiiii! O Senhor – O refrão dos padres. Quarto personagem – Oh, oh, oh, oh, oh...! O Senhor – O refrão da multidão. Quinto Personagem (à mulher) – Uh!!! O Senhor Mecânico – A. E. I. O. U. Detonação (Detonazione) (de Francesco Cangiullo, tradução Silvana Garcia) Palco vazio e silencioso. Após um minuto, um estampido de revólver. Um minuto. Telão. O contrato (de Marinetti, tradução de Ana Rita Bueno) Quarto em penumbra. Se entrevê uma cama branca sobre a qual agoniza o senhor Paolo Dami. O Amigo (entra e se dirige à empregada) – Paolo está morrendo... Ele tem alguma esperança? A Camareira – Muito pouca. A bala atravessou o pulmão. O Amigo – Mas, me diga, foi mesmo por sua causa que ele tentou se matar? A Camareira – Eh... Não. O sr. Paolo tentou se matar por causa do apartamento. Vou lhe explicar o enigma. Ultimamente ele vinha implorando ao dono da casa para abrir uma janela que desse para a rua, por causa do grande desfile, sabe... Aquele cretino negou. Há três dias atrás o sr. Paolo soube por acaso que o dono da casa estava tratando com um novo inquilino. A ideia de perder o apartamento o fez enlouquecer de dor e isto o fez pegar o revólver e atirar no seu próprio peito. Paolo (falando em sonho) – Fogo! Fogo! O apartamento queima. Chamem os bombeiros. Ele se acalma. Logo depois entra o médico seguido de uma mulher loira. Vestida de preto, elegantíssima, que se aproxima do leito do moribundo, sempre virada de frente ao público. O Amigo (para o médico) – Não se pode fazer mais nada? O Médico (solenemente) – Nada!... Veja, o caso é gravíssimo... Quando um homem entra em um apartamento, o caso é grave, mas há sempre uma esperança de cura... Quando, ao contrário, é o apartamento que entra no homem, o caso é realmente desesperador. (Neste momento, a mulher vestida de preto passa para o outro lado da cama, dando as costas para os espectadores. Nas suas costas, há um cartaz onde se lê: ALUGA-SE.) Vazio pra cachorro (de Cangiullo) Síntese da noite Personagem: Ele que não está. Uma esquina deserta. Noite fria. Um cachorro cruza a rua. La garçonnière (de Umberto Boccioni) Interior de um apartamento de solteiro, quadros nas paredes, um divã baixo, alguns vasos de flores (como em todos os apartamentos de solteiro). Uma pintura recém adquirida está em frente ao divã em um cavalete. O Jovem (ouvindo com a orelha colada na porta) – Aqui estamos nós! (abrindo a porta). Bom dia!... Como vai? A Mulher (avançando com alguma reserva) – Bom dia. (ela olha em volta). Aqui é bem agradável. O Jovem (com fervor) – Como você é linda! Muito elegante! Obrigado por vir... Eu duvidei... A Mulher – Mas por quê? Onde está a pintura? Eu vim para vê-la. O Jovem – Está aqui. (apanha a mulher pelas mãos e a conduz até a frente da pintura. Enquanto a mulher olha parada a pintura, o jovem a abraça por trás e beija o seu pescoço). A Mulher (reagindo energicamente) – Senhor! O que o senhor está pensando? Isto é realmente uma covardia! O Jovem (ele a abraça e a força. Falando bem perto de sua boca) – Você é tão linda! Você é minha! Você deve ser só minha! A Mulher (reagindo de forma a parecer bem séria) – Senhor... Me largue! Eu grito! O Jovem (mortificado) – Você está certa. (deixando-a) Peço que me perdoe... Não sei o que estou fazendo... Vou deixá-la ir. A Mulher – Abra a porta pra mim. Quero ir embora daqui! O Jovem (indo abrir a porta) – Vá. A Mulher (enquanto fala, a mulher deixa seu casaco cair e aparece com suas meias de renda preta, umbigo, ombros e braços nus. Ela corre e deita no divã) – Além de tudo, você é tímido... Vire aquela pintura e venha aqui!... Flerte (de Volt, tradução Alexandre Mate) Uma mulher nua. Um homem jovem de smoking está refestelado numa poltrona com um jornal na mão. Ela (timidamente) – Sou uma mulher respeitável. (ele não se mexe. Ela com ostentação) Sou uma mulher respeitável. (Ele se volta, sem olhá-la e reinicia a leitura do jornal. Ela furiosa) Sou um mulher respeitável. Ele (levanta-se, abre as mãos e os braços, pega um copo na bandeja e com voz suave) – Minhas condolências. (Ela tem um ataque histérico). Luzes (de Marinetti) Levanta-se a cortina. No palco, cenário neutro. Palco e auditório permanecem no escuro por aproximadamente três minutos. Vozes do público Uma pessoa – Luzes! Duas pessoas – Luzes! Quatro pessoas – Luzes! Vinte pessoas – Luzes! Cinqüenta pessoas – Luzes! O teatro inteiro (de modo contagiante) – Luzes! A obsessão pela luz (não pela claridade, mas pelo recurso) deve ser provocada de maneira a se tornar selvagem, louca. Vários atores espalhados no auditório excitando os espectadores e encorajando sua manifestação. O palco e o auditório são, então, iluminados de maneira exagerada. Neste momento a cortina cai lentamente. Luta de telões (Lotta de fondali) (de Marinetti, tradução de Alexandre Mate) Telão Vermelho Rumores de passos, em off. Gritaria de multidão revoltada, pronta para atacar. Um minuto de silêncio. Entra o Desdenhoso. Fala incompreensivelmente. Critica o telão, gesticulando. Sai. Entra o Prepotente. Faz gestos e fala incompreensivelmente, com mais violência, critica o telão. Sai. Entra o Delicado. Gesticula confusamente de horror. Sai. Entra o Persuasivo. Faz gestos diplomáticos que acompanham a mudança do telão. Telão Azul Quatro bandolinistas tocam uma melodia suave, em off. Um minuto de silêncio. Burburinho e risada abafada, em off. Um voz amorosa de mulher, em off. Um gemido dilacerante. Em off. Três toques de bombo. Em off. A cena se apaga. No escuro, um ronco forte de homem. Gênio e cultura (de Boccioni) No centro, uma rica mesa de toalete, com espelho, diante da qual uma mulher elegantíssima (já vestida para sair), acaba de se maquilar. À direita, o Crítico, criatura ambígua, sem idade definida, está sentado à uma secretária atulhada de livros e cartas, sobre a qual reluz um grande abridor de cartas nem modernos nem antigos. Ele está de costas para a toalete. À esquerda, o Artista, jovem, elegante, que procura uma carta/bilhete, sentado no chão, sobre ricas almofadas, remexe nervosamente os desenhos contidos numa grande pasta. O Artista (deixando a pasta com a cabeça entre as mãos) – É terrível. (Pausa) É preciso sair daqui. Renovar-se! (levanta-se rasgando, nervosamente, desenhos que tira da pasta) Libertação! Todas estas formas gastas, vazias... Tudo é mesquinho e fragmentário... Oh! A arte! Quem, quem poderá ajudar-me? (olha à sua volta e continua a rasgar desenhos, em movimentos dolorosos e convulsivos. A mulher, que está pertíssimo dele, não o percebe. O crítico volta-se aborrecido e, enquanto se aproxima, vai abrindo as páginas de um livro de capa amarela.) O Crítico (em parte interrogando a mulher, em parte para si) – Mas que diabo terá acontecido àquele palhaço para se agitar daquela maneira? A Mulher – É um artista... Quer renovar-se e não tem aonde cair morto. O Crítico (muito espantado) – Coisa estranha... Um artista? Não é possível! Há vinte anos que estudo profundamente esse fenômeno maravilhoso, e não o reconheço como tal... (observando-o com grande curiosidade) Este homem é doido! Ou é aquele agente de publicidade. Diz ele que quer renovar. Mas a criação artística é uma coisa serena. A obra de arte se faz por si, no silêncio e no recolhimento, com a mesma naturalidade do rouxinol quando canta... O espírito, enquanto espírito, dizia Hegel... A Mulher – Então, se sabe como faz, porque é que não ensina a ele? Pobre rapaz! Dá dó... O Crítico (empertigando-se) – Minha senhora, há séculos que a crítica diz aos artistas como se faz uma obra de arte... É sabido que a ética e a estética são as funções do espírito... A Mulher – E o senhor já fez alguma obra de arte? O Crítico (surpreendido) – Eu? Nunca! A Mulher (rindo maliciosamente) – E então, sabe como se faz e nunca fez? Em outras palavras, não deve ter nenhum interesse na cama. (torna a ocupar-se com sua maquilagem) O Artista (sempre numa dolorosa agitação, passeando nervosamente e torcendo as mãos) – A glória, meu deus! A glória! (estendendo os braços) Sou forte! Sou jovem! Não há nada que eu não possa encarar! Oh! Divina luz elétrica! Sol... Eletrizar as multidões! Incendiálas! Dominá-las! A Mulher (olhando-o com simpatia e comiseração) – Pobrezinho... E tudo isso por não ter dinheiro... O Artista (levando a mão ao peito) – Ah! Sinto-me ferido... Não posso mais... (na direção da mulher, que não ouve) Oh, uma mulher! (ao crítico, que não parou de abrir e folhear o livro) O senhor1 O senhor que é um homem, ouça-me... Ajude-me! O Crítico – Vamos devagar... É preciso distinguir: eu não sou um homem, sou um crítico. Sou um homem de cultura. Pelo contrário, o artista é um homem, um escravo, uma criança, e por isso mesmo erra. O seu eu não é capaz de distinguir-se a si próprio. Nele a natureza é o caos. Mas entre a natureza e o artista, há o crítico e a história é a história: isto é, fato subjetivo, porque fato quer dizer história. Em contrapartida, se fosse objetivo... (Ao ouvir estas palavras, o artista cai sobre as almofadas como que fulminado. Mas o crítico não dá por isso. Volta-se para a sua secretária, onde continua sua consulta.) A Mulher (aterrada, levanta-se) – Meu deus! Mas este pobre rapaz vai morrer! (ajoelha-se ao lado do artista e o acaricia docemente). O Artista (reanimando-se) Minha senhora... Obrigado! Oh! O amor... Sim... Talvez o amor... Quero amar, entende? Quero amar... A Mulher (separando-se dele) – Sim, meu amigo, compreendo... mas agora não tenho tempo. Tenho de sair. O meu amigo me espera. E pode ser perigoso... É um homem que me dá uma boa situação... O Crítico (embaraçadíssimo) – Que se passa? Não entendo nada... A Mulher (irritada) – Cale-se imbecil! O senhor nunca há de perceber coisa nenhuma! Ande, me ajude a levantá-lo. Vamos desapertar esse colarinho que está sufocando o rapaz. O Crítico (cada vez mais embaraçado) – Um momento! (arruma cuidadosamente o livro que estava a ler e coloca as outras partes sobre a cadeira) – Hegel, Kant, Spinoza... A Mulher – Aproxime-se. Tem medo? Depressa... No fundo é um artista que morre de ideal... O Crítico (aproximando-se com extrema prudência) – Mas nunca se sabe... É um impulsivo... Um passional... Um indivíduo sem controle... sem cultura... Em suma, prefiro os mortos... Sinto-me melhor em companhia deles... O artista deve ser... (tropeça e cai pesadamente sobre o artista, ferindo-o no pescoço com o abridor de cartas) A Mulher (levanta-se gritando) – Idiota! Assassino! Matou-o! Está com as mãos vermelhas de sangue! O Crítico (levanta-se estupidamente) – Eu? Que quê você está falando? Não compreendo... As mãos vermelhas? Vermelhas? A senhora sofre de daltonismo. A Mulher – Basta! Basta! (volta à toalete) É tarde. Tenho de ir embora. O meu amigo está me esperando (enquanto sai) Pobre rapaz! Era simpático... Tinha uma bonita figura...(sai) O Crítico – Cada vez entendo menos... (olha demorada e atentamente o artista morto) Deus do céu! Está morto! (aproxima-se para observá-lo) O artista morreu! Enfim! Agora posso respirar Escreverei uma monografia... (dirige-se lentamente à sua secretária. Tira de uma gaveta uma barba com um metro de comprimento e coloca-a no queixo. Em seguida, põe os óculos, pega um lápis e um bloco e procura algo entre os livros sem encontrar. Irrita-se pela primeira vez, bate com os punhos e grita) A estética! Onde está a estética? (acaba por encontrar um grosso volume que aperta entre o peito, voluptuosamente) Aqui está ela! (Em passos lépidos, vai acocorar-se junto ao artista morto, semelhante a um corvo. Contempla o cadáver. Enquanto escreve, vai falando em voz alta). Cerca de 1915, viveu na Itália um grande e genial artista... (tira do bolso um metro, com o qual mede o cadáver) Como todos os grandes artistas, tinha um metro e sessenta e oito de altura... e de largura... A improvisação (L’improvvisata) (de Marinetti, tradução Alexandre Mate) Uma antecâmara. Ao fundo duas portas: a da esquerda dá para um corredor, a do meio deixa ver uma escada. Na parede da direita, uma grande janela, que dá vista para uma estrada. Ao lado da janela, e encostado à mesma parede, um grande divã. Na parede da esquerda, uma chapeleira e um banco. No meio uma mesa. A antecâmara está na obscuridade. Entram pela porta da escada o marido e sete amigos, todos caindo de bêbados (com fraques e fumando). O marido, procurando às cegas e comicamente o interruptor de luz. Dois ou três outros bêbados imitam as atitudes do marido. Enfim, a lâmpada, que pende do teto sobre a mesa, é acesa. O Marido – Psiu! (escutando) Minha mulher está dormindo... Seu quarto é longe daqui. Não escuto nada... Vamos fazer-lhe uma bela surpresa. Vamos acordá-la!... Todos – Não, não... Um – Sim! Isso aí!... Ótima ideia! Um Outro – Não, por caridade!... É uma senhora tão séria!... Um Outro – Mas é espirituosa... Marido – Ela compreenderá, imediatamente. Testemos. Gritemos juntos. Afinal, hoje é minha festa, e é natural que minha mulher participe de nossa alegria. Um Outro (sai cambaleando em direção à porta que dá para o corredor) – Conheço a casa... Vou descobrir é uma boa garrafa! (pode-se percebê-lo em dificuldade. Rumor de vidros quebrando na sala ao lado). A Mulher (fala distante) – Quem é?... Quem é?... (entra seminua. Toda culpada. O bêbado que foi à procura da garrafa segue-a, comicamente confuso). Um – Bom dia! Um Outro – Boa noite! Um Outro – Boa noite! Um Outro – Bom sono! Um Outro – Meus respeitos! Um Outro – Minhas homenagens! Um Outro – Permita-me beijar sua mão! A Mulher – Obrigada... Obrigada... Não os esperava... (ao marido raivosa). Poderia ter-me avisado... (a Outro) Desculpe-me... Nesses trajes... Algum – Pelo contrário! Pelo contrário! Lindíssima! Outro – Nós a admiramos! Um – Nós a adoramos! (abraça a mulher). Todos – Oh! Oh! Ooooh!... Mas que escândalo! Que mal educado!... Isso não se faz... Marido (comicamente) – Vou estrangulá-lo! (pega-o alegre e desajeitadamente pelo pescoço, jogando-o sobre o divã). Todos – Isso! Isso! É preciso estrangulá-lo! Ah! Ah! ah! ah! (todos torcendo-se de rir incitando o marido) O Marido (rindo, mas engrossando a voz) – Traidor! Sedutor! Don Giovanni! Ah! Ah! Ah! Está com medo de eu o estrangular! (todos o empurram, jogando-o sobre o outro bêbado que cai de bruços. Grande comicidade. A mulher, inquieta, roda pela sala. Um a um, os bêbados afastam-se do divã, sobre o qual estão o marido e o outro). O Marido – Ufa! Ufa! Me sufocaram! (olha, levantando-se, para o amigo que estava abaixo de si e que não se mexe mais) Sobe! Levanta! Em pé! Que esbórnia!... É preciso desabotoar o colarinho!... deus! Está morto! Os outros – Não! Não! É impossível! Sim, sim, está morto. Que se faz? Fujamos? Não! Sim! Temos dito! Coisa estúpida! Somos doidos! Sabia que acabaríamos mal (silêncio). Um – É preciso jogá-lo fora. Um Outro – Na estrada... Vamos deixá-lo sobre a calçada. Um Outro – Isso, isso... (olhando pela janela). Não há ninguém. A rua está deserta. Dois saem pela porta da escada carregando o cadáver. A mulher chora sobre o divã. Outros olham pela janela. Um – Já se passou da hora costumeira dos leiteiros... Um Outro (olhando o relógio) – Hoje estão atrasados. Um Outro – Ei-los. Um Outro – Quem? Um outro – São eles... Vamos deixá-lo no meio da rua! Boa ideia! Vamos colocá-lo sobre as linhas do bonde. Isso... Isso... (todos aglomeram-se sobre a janela, no exato momento em que se ouve o barulho de um veículo que se aproxima). Um – Não é um bonde... É um carro... Um Outro – É um carro fúnebre, vazio... Um Outro – Muito bem! Um Outro – Ele passou encima! Um Outro – Ele o esmagou. Estremeceu! Um Outro – O carro pára. O motorista desce... Coloca-o no carro... Um Outro – Como é bem organizado o serviço funerário!... À guisa de análise: Um bando de amigos bêbados é levado por um deles à sua casa para continuarem uma noitada feliz. Um deles, ao procurar uma garrafa em um aposento da casa, faz barulho e acorda a mulher do dono da casa. Naturalmente, como é comum no Futurismo, ela aparece em trajes sensuais e transparentes. Todos a cumprimentam respeitosamente, até que um deles, tentando fazer graça, abraça-a. O marido, fingindo-se ofendido, comicamente: “Lo afferra buffonescamente per la gola, lo spinge sul divano39” A brincadeira acaba resultando na morte acidental do amigo. Dessa forma, a conclusão do problema, com surpresa e de modo inusitado: “Bisogna portalo fuori. (...) In strada... Lo 39 Citações no original retiradas de Giovanni CALENDOLI (org.). Teatro de F. T. Marinetti. Roma: Vito Bianco Ed., 1960. deporremo sul marciapiedi. (...) Lo portano in mezzo alla strada! Che Bell’idea! Lo depongono sul binario del tram...” Ao ouvirem um barulho dirigem-se à janela e dela percebem que o carro fúnebre vem recolher o assassinado. Conclusão final do incidente, dito por um dos ‘brincadores’: “Com’è bene organizzato il servizio funebre!...” Trata-se, de certo modo, de um esquete (semelhante a inúmeros outros apresentados pela produção revisteira internacional) que hoje não provocaria nenhuma reação de surpresa (afinal o cotidiano é muito, muito mais violento e desumano...); entretanto, no momento em que a obra foi escrita, deve ter provocado certo estupor, sobretudo pelas personagens pertencerem à burguesia. A cena mostra um pequeno fragmento da vida burguesa de modo contundente, tendo em vista a frieza e hipocrisia (sempre escamoteada) deste segmento social. Ainda, além de A improvisação (ou A morte acidental ou A melhor forma para sumir com o cadáver?) contar uma ‘historinha’ linear talvez seja exatamente o seu final ilógico, carregado de morbidez que pudesse apresentar contundentemente o caráter de surpresa ou de situação inusitada. Finalmente como acontece na totalidade das obras futuristas, a Mulher – personagem nada desenvolvida – na condição de pivô do crime, quase não fala, mas chora todo o tempo. De outra forma, ela aparece como causadora da morte e, também, responsável pela frieza dos homens. Luzes (Luci) (de Marinetti, tradução de Alexandre Mate) Um telão branco Primeiro tempo Cena escura. Sobre o telão aparece a projeção, em sucessão rápida e violenta sucessão de um ônibus correndo. Barulho de ônibus. Um Homem (entrando) – Porca velocidade dos ônibus repleto de recordações. Ágil velocidade que persegue o futuro. Recorda e deseja lançar-se para o mundo. Olhos atônitos. Olhos aguçados que perscrutam dele a metrópole descoberta a toda curiosidade. Olhos preguiçosos sem cuidado sobre o verde macio molhado dos campos. Outro horizonte e sonhos insatisfeitos. Distantemente. Velozmente, velozmente, velozmente. Segundo tempo O telão é iluminado por luz intensa. Um Homem – Muro de calor contra o qual escapa a minha vontade. Muro de luz. Toda a visão tropical esmagada ao seu encontro. Calor sufocante arremessado. – Sete. – Contemplação. Terceiro tempo A cena escurece. O homem tira do bolso um copo com um facho de luz que o faz brilhar. Um Homem – Fantasia. Tudo se dá à vista, pressentido, sonhado. Agrado. Luxúria. Sonho. Prazer. Pérola sobre a colina nua. Dança de odalisca. Vela estelar. Chama. Centelha. Lâmpada. Explosão de gênio. (joga o copo no chão). Inutilidade. Quarto tempo Um Homem (tira uma navalha que cintila num foco de luz) Crimes, cobiças, cobiças (sai correndo enquanto berra). Sangue, sangue. Quinto tempo A cena ilumina-se. Uma Mulher (entra. Admirando-se num espelho) – Sou linda. Um luar Interpenetração alegórica (de Marinetti, tradução de Rodrigo Santiago) Um jardim. Um banco. Ele – Que noite linda! Ela – Que ar tão leve! Ele – Nós estamos aqui, só nós dois, neste jardim imenso... Você não está com medo? Ela – Não... Não... Estou feliz por estar aqui sozinha com você! (Um senhor gordo e barrigudo entra em cena e se aproxima dos dois. Senta no banco junto a eles, que não o vêem. Como se ele fosse uma personagem invisível.) O Gordo – Hum... Hum... (olha fixamente para a moça enquanto ela fala.) Ela – Você sentiu o vento? O Gordo - Hum... Hum... (olha fixamente o moço enquanto ele fala.) Ele – Não é o vento. Ela – Mas não tem ninguém mesmo neste jardim? Ele – Só tem o guarda. Lá na casinha dele. Está dormindo. Chega aqui mais perto... Me dá sua boca... Isso. O Gordo – Hum... Hum... (olha o relógio, a luz da lua, levanta, passeia moribundo na frente dos dois, enquanto eles se beijam e depois se senta de novo.) Ela – Que noite linda! Ele – Que ar tão leve. O Gordo – Hum... Hum... Ele – Por que você está tremendo? Ficou com medo? Ela – Não. Me beija mais. (O senhor gordo e barrigudo olha mais uma vez o relógio, a luz da lua, levanta, passa para trás do banco, sempre sem ser visto. Encosta primeiro a mão no ombro da moça, depois do moço e então se afasta lentamente em direção ao fundo.) Ela – Que arrepio. Ele – Está um pouco frio. Ela – Está tarde. Ele – Vamos voltar. Quer? OBS.- Em Um luar, o homem gordo não é um símbolo, mas uma síntese alógica de muitas sensações: medo da realidade futura, frio e solidão da noite, visão da vida vinte anos depois etc. Decisão (de Cangiullo, tradução de Rodrigo Santiago) Hall de entrada. Porta chapéu, com capote. Da direita vem um senhor distinto, com mais ou menos quarenta anos, decidido, agitado, gritando: Senhor – Mas não... mas sim! Mas isso é uma coisa que não pode continuar... (Tira o chapéu do móvel, põe na cabeça e vai colocando o capote.) Senhor – Estou por aqui. Ultrapassou os meus limites. (Uma senhora vem acudi-lo) Senhora – Escuta, Roberto, a opinião pública e a imprensa. Esta palhaçada tem de terminar! (Sai apressado) Senhora (pensativa, alucinada) – Terminar...? E no entanto é um infinito!... O quarteto tátil (Il quartetto tattile) Síntese tátil (Sintesi tattile) (de Marinetti, tradução Alexandre Mate) Telão cinza O Vestido de Negro, escrupulosíssimo (antiquário e bibliófilo), está afundado em uma poltrona que quase o faz desaparecer. Sobre uma mesa uma porção de porcelanas antigas, livros de luxo e cartas em profusão à direita e à esquerda. Passam dois estudantes, apressados. Chocam-se com a mesa, sem que dela nada caia. O Vestido de Negro levanta-se bruscamente; amedrontado verifica a mesa, com os braços prontos para defender seu tesouro. Relógio anuncia o meio-dia. O Vestido de Negro tira da gaveta central um pacote e come medrosa e pudicamente algumas frutas. Tira do pacote as cascas, levanta-se, escuta, escondido por trás da porta, os estudantes, seguro de não ser visto, arruma no chão, em volta da mesa, as cascas. Os Dois Estudantes passam novamente apressados falando confusamente com gestos perturbados. Chocam-se com os livros e cartas que caem. Escorregam e caem. Irritados, dirigem-se ao homem, obrigando-o a comer as cascas. Entra uma bela mulher, seminua; ri, olhando com paixão os livros de luxo. Folheia alguns. Pega aquele que prefere. Vestido de Negro toca uma das ricas folhas do livro desejado, levando-o ao coração. Depois, timidamente, roça sua mão direita no braço da moça. Com denguice e sensualidade. A Mulher abandona o braço por um momento, retesando-o, em seguida. O Estudante, que está ao seu lado, dá-lhe um violento beijo. O Vestido de Negro volta-se bruscamente ao estalo do beijo. O Estudante, ao seu lado, sem perder a ocasião, dá-lhe um soco forte no estômago. O Vestido de Negro volta-se, gritando de dor. Novo beijo estalado. Apalpadela na folha. Apalpadela no braço. Novo beijo. Novo soco. Assim, e à vontade, o quarteto continua. À guisa de análise: Trata-se de uma pantomima com quatro personagens: O Vestido de Negro (antiquário ou bibliófilo), dois Estudantes e uma Linda Mulher (naturalmente seminuda). Na obra, O Vestido de Negro – que representa o passado, a tradição e o academicismo (aspectos odiados, em discurso, pelos futuristas) – é levado a praticar determinadas ações, forçado que é, por dois jovens e velozes estudantes (representantes do futuro). Claro que na metáfora a partir da qual a peça se estrutura, o velho deve submeter-se, naturalmente, à superioridade dos jovens. Nessa perspectiva, portanto, é natural que o velho coma cascas de frutas e que manifeste interesses pela Mulher (espécie de bibelô ou de mulher-objeto: como se falava a pouco tempo atrás). Entretanto, o fato de ele ousar se interessar pela Mulher faz com que seja socado pelos jovens. O fato de o velho ser socado algumas vezes, do ponto de vista estrutural, corresponde aos expedientes de Henri BERGSON. Op.cit., pp. 41-69, nomeia de Fantoche e Cordões, Bola de Neve e Repetição. Nesse ‘Quarteto’ esses expedientes são mais claros uma vez que os jovens dominam a ação do velho, obrigando-o a fazer o que querem a seu bel-prazer (Fantoche e Cordões); e a propagação do efeito ‘beliscão e assopro’ (Bola de Neve): os jovens beijam a mulher, o velho imita o som do beijo e é socado, repetidamente. Finalizando, além de a peça apresentar os elementos mencionados, a pantomima oferecia aos atores, provavelmente, excelente oportunidade para a criação e inventividade (até o cansaço) ou até que alguém da plateia sugerisse sua finalização. A surpresa ficaria por conta do inusitado das ações: comer as cascas das frutas (sem um motivo aparente para isso) e os safanões (cena bufonesca e bem característica dos Zanni) depois de a Mulher ser beijada. Os vasos comunicantes (I vasi comunicanti) (de Marinetti, tradução Alexandre Mate) O palco está dividido em três partes, com biombos. Na primeira divisão (à esquerda): cena de velório. Caixão no meio, circundado de velas acesas, padre reza, muitos parentes choram. Segunda divisão (cena central): uma rua com uma porta de bar à frente, uma mesa e um banco, sobre o qual está sentada uma mulher. Terceira divisão (à direita): Campo com trincheira próxima à ribalta. Ao levantar a cortina, na primeira divisão, o padre resmunga pregar qualquer coisa e os parentes gemem: “uuuuuu”. – com decisão, uma voz, entre os parentes: “Um batedor de carteira!” Grande movimento com fuga do batedor de carteiras, este dirige-se em direção à ribalta e cruza para a Segunda divisão, sentando-se ao lado da senhora, com a qual bebe e conversa. Entretanto, na rua passa um bloco de soldados que se aproxima do casal. Um Soldado (ao ladrão) – Venha conosco! O Ladrão – Vou, sim! Morrer pela pátria! (levanta-se). A Senhora (detendo-o) – Como! Ora, se nós nos amamos, felizes, vais me deixar? (chora. O ladrão repele a mulher, confundindo-se entre os soldados; assim, volta-se para o biombo e cruza para a terceira divisão, ocupando a trincheira). Um Oficial – Foc! Foc! (Fuzilando-o em seguida) Avante! Derrubem esta muralha! Avante! (os soldados derrubam a trincheira, dirigindo-se em direção ao fundo da cena, derrubando o segundo biombo, fazendo grande algazarra na Segunda divisão.) O Oficial (em frente ao primeiro biombo) – Destruam esta outra muralha, vamos rodear o inimigo! Os soldados derrubam também o primeiro biombo, invadindo a primeira divisão, atravessando-a tumultuosamente. Derrubam o caixão e as velas, confundido os parentes. Colocam os parentes enfileirados em frente aos bastidores e com decisão, fulminam todos. Ocupação de luz (Cura di luce) (de Marinetti, tradução de Alexandre Mate) O Doutor – Eis a câmara de alta luz. Promove a cura de modo super eficaz. Seu corpo erótico voltará logo. O Corpo Erótico de Vontade (deitado sobre a cama) – Inundação! Salve-se quem puder! Socorro! Sufoco! Morro de frio!... Vontade – Quieta! Ah, finalmente sinto-me melhor! Já faz seis anos que caminho lado a lado com este animal! Me conduz aonde quer. Fixa em mim um odor: odor de meio de estrada como um porco que não teme os automóveis. Finalmente, meu corpo erótico encontra-se na horizontal. Com ele era impossível correr contra o vento. Precisava diminuir o passo, posto ocupar uma grande superfície de vento. O Corpo Erótico – Inundação! Frio! Gelo! Vontade – Sem inundação! Quieta! Acabará, seu pescoçudo, por acordar toda a casa, com essa choradeira!... Era realmente cansativo. Eu inclinado para a frente. Ele semivoltado para trás. Aproveitou-se de uma sonolência, no momento em que atravessávamos uma estrada barulhenta entre cinco bondes, que se cruzavam com ventos globais elétricos. Com uma sacudidela de ombros, meu sono parou... Quieta! Não tenho mais piedade de você... (barulho de gente na porta) Quem é? Vozes de mulheres – Somos nós. Vontade – Nós quem? Voz de mulher – Abra! Assassino! Está cometendo um delito! Ouvimos soluços assustadores ao luar! Vontade – Sem choradeira e sua lua!... (abre. Entram seis mulheres escandalosamente lindíssimas e com roupas íntimas) Quantas mulheres! Por que abandonaram seus leitos conjugais? Aonde estão seus maridos e seus amantes? Uma Mulher – Continuam a dormir pesadamente, apesar de nós não os termos balançado em seus berços como se faz com as crianças. Uma Outra Mulher – Eu bati no meu, como se bate uma salada de maionese até deixá-la no ponto. Agora, dorme mais do que antes... As Seis Mulheres (indo ao encontro do Corpo Erótico) – Como é bonito! Como é bonito! Como é bonito!... (o corpo pára de chorar, ergue-se com grande elegância sobre a cama) Uma Mulher – Venha conosco para o luar! O Corpo Erótico – Onde está meu corpo voluntarioso?... Não posso caminhar sem ele! Vontade (sentado a uma escrivaninha, fala a uma lâmpada de 60 W.) – Pirupum, pirupum, pirupu. Lâmpada Elétrica – Mamama mama ma ma gugu gugu gugu gu. Vontade – Entendi! (apaga todas as luzes. Penumbra. O aposento é banhado por luz lunar que entra pela janela) As Seis Mulheres – Ah! Sim respira! (falando ao Corpo Erótico) Vem, cuidaremos de você. (saem, levando-o como a um morto, passando pelos raios da luz solar) (Vontade anda pela penumbra da sala. Em dado momento seu peito ilumina-se de luzes em forma de rosa). Alteração de caráter (Alternazione di carattere) (de Arnaldo Corradini e Bruno Corra, tradução de Silvana Garcia) Marido – Não! É inútil! É o momento de terminar! Não me enganarás mais porque te abandonarei imediatamente! Mulher (chorando) – Não, Carlos, não!... Volte aqui... volte aqui... escute-me... Marido (chorando ternamente) – Perdoe-me, Roseta!... perdoe-me... Mulher (enfurecida) – Por Deus! Se não parar com esse sentimentalismo inoportuno eu o esbofetearei... Marido (auge da fúria) – Basta!... ou te atiro pela janela... Mulher – Amor! Amor! Como, quanto te amo... a ternura me comprime o coração... façame novamente tuas deliciosas censuras... Marido – Ah! Roseta... Roseta... amor, meu infinito... Mulher (exasperada) – Se o repetires ainda uma vez, eu peço o divórcio!... precisamente, o divórcio! Marido (explodindo) – Ah! desgraçada!... Vá embora!... vá embora!... vá embora!... Mulher – Jamais te amei tão suavemente! Marido – Ah! Roseta! Roseta!... Mulher – Basta! (dá-lhe um tapa) Marido – Basta digo eu! (dá-lhe dois tapas) Mulher (languidíssima) – Dê-me teus lábios! Dê-me teus lábios... Marido – Ei-los, tesouro! A ciência e o desconhecido (de Bruno Corra e Emilio Settinelli, tradução Olga Navarro) Quarto de dormir. O grande professor está fazendo a toalete. Entra outro grande professor, barbudo. Primeiro Sábio – Oh, bom dia!... madrugou, hoje!... Segundo Sábio (com ar contrariado) – Pois é! Acontece que necessito falar-lhe imediatamente... é por isso!... Primeiro Sábio (enfiando o paletó, depois de ter posto o colarinho) – Fale! Fale!... estou às suas ordens... Segundo Sábio – Ontem à noite fui me deitar todo triunfante, cheio do mais puro otimismo... Eh, sim!... a sua maravilhosa descoberta sobre as novas ondas magnéticas, tinha aberto o caminho às maiores esperanças... Mas, esta manhã... ai de mim!... nem me reconheço... tenho toda a psicologia do suicida... Primeiro Sábio – Mas, por quê? Diga-me! Segundo Sábio – Ah! meu amigo... porque o Desconhecido, o próprio conceito do Desconhecimento é suficiente para transformar qualquer nossa teoria de conquista... Explicamos um fenômeno o qual, para ser explicado, necessita de mil verdades não explicadas, e quando procuramos explicá-las... mil outras premissas, ainda não explicadas, pululam diante de nós... Não há ciência, não há certeza enquanto existir o Desconhecido... é suficiente admitir sua existência para não acreditar mais na ciência... e o Desconhecido existe!!... Primeiro Sábio – Oh, que pessimismo injustificado! Que loucura! Que loucura! Mas a ciência é tudo, a lógica é tudo! O homem se apoderou por elas da terra e do mar e do céu! Sim, também do céu! Por elas explicou e analisou o organismo de seu corpo, por elas transformou este velho universo e leu as leis que o acorrentam. Prevemos até os décimos de segundo para o encontro de dois cometas... Curamos os homens mais doentes... Multiplicamos a velocidade de nosso pensamento e de nossas pernas, navegamos na profundidade dos oceanos e furamos as montanhas mais compactas! A ciência é tudo! Sabe tudo! Faz transformar tudo! Faz tudo! Explicará tudo! Segundo Sábio – Eu também pensava assim! hoje só posso dizer: tudo isso anda porque anda! O sol se levantará até quando se levantar... Os trens correrão até quando correrem... Não podemos ter, existindo o Desconhecido, existindo no abstrato todas as possibilidades, a certeza destas leis, destas ordens fenomênicas! Primeiro Sábio – Mas o senhor está sonhando! O senhor está delirando! Tudo se explica e tudo se explicará! O Desconhecido não existe! Segundo Sábio (no auge da raiva, tirando o chapéu e deixando ver fincado na sua cabeça um prepotente charuto Havana) – Ah, é? Explique-me, então, o aparecimento deste charuto no meio de minha careca!... aqui brotou e cresceu enquanto eu dormia! Esta foi a agradável surpresa desta manhã... Vamos!... Explique!... Vamos!... Primeiro Sábio (perplexo, ofegante) – Hein? O quê?... um charuto?... Segundo Sábio (no cúmulo da desmoralização) – Sim, sim!... e precisamente um Havana! Primeiro Sábio (abismado, sem fôlego) – Mas, como?... mas como?... Segundo Sábio (tenteia a cabeça, como quem diz ‘infelizmente!’). XI. 5. – Excerto de uma proposta de serate Il tempo (tradução de Olga Navarro). O fragmento do texto transcrito a seguir aparece em material apostilado apresentando uma proposta de encenação com roteiro de Edoardo Bizzarri, chamado Teatro Futurista Sintético, tratando-se, portanto, de uma proposta de colagem de diferentes textos e manifestações futuristas (e fundamentalmente de Marinetti). Narrador – Pois bem, assim ele gosta de poetar. Poeta – AAAAA! Eeeee! Iiiii! Ooooo! Uuuuu! A! E! I! O! U! Segundo Ouvinte – Escute aqui, meu rapaz, está falando a sério, ou procurando cartaz? Poeta – Ruisc... Ruiusc Ruisciu... sciu sciu, Acikloku... kolu koku, Sciu Io Iu. Segundo Ouvinte – Não há quem possa entendê-lo! Veja a desfaçatez! Parece até que escreve em japonês. Poeta – Abi, ali, alari, Kiririri! Ki. Segundo Ouvinte – Deixem, deixem que se divirta, Deixem que brinque bastante; A brincadeira lhe custará caro! O chamarão de ignorante. Poeta – Abalalá Falalá Falalá... E depois lalá E lalalá emlalalá lalalá Segundo Ouvinte – Certo, é bastante arriscado Escrever tais horrores, Hoje em dia que há professores Por todo lado. Poeta – Alalalalalalalá! Alalalalalalalá! Alalalalalalalá! (levanta-se; dirige-se ao público) Afinal, Eu é que tenho razão, Os tempos mudaram muito, os homens não pedem mais nada aos poetas: então, deixem-me divertir! Segundo Ouvinte – Os homens não pedem mais aos poetas? Poeta (assertivo) – Os homens não pedem mais nada aos poetas. Primeiro e Segundo Ouvintes (deprimidos) – Os homens não pedem mais nada aos poetas. Todos – E então, deixem-nos divertir! Cortina (A cortina se abre apenas um pouco; aparece um painel com tela para a projeção de diapositivos. Entra o Narrador; durante as projeções, as falas de Marinetti, e, sucessivamente, durante as peças, ele irá sentar no canto direito do proscênio). Narrador – Meus amigos, hoje à noite queremos levar vocês para um pequeno e curioso passeio. Vamos dar alguns passos atrás no tempo – cinquenta anos, ou pouco mais – e reviver algumas manifestações teatrais de vanguarda daquela época. Aos mais novos, e adeptos da vanguarda de hoje, talvez não desagrade ver o que é que faziam seus avós vanguardistas; os outros, os que não simpatizam muito com as inovações, poderão simplesmente divertir-se: ou, querendo, depois do divertimento, até tirar suas conclusões quanto ao relativismo do conceito de novo. Enfim, cada um à sua maneira, como dizia Pirandello, que naqueles anos ainda não tinha manifestado interesse pelo teatro. Estamos no período que antecede a primeira guerra mundial, no declínio da belle époque. Que tal época pudesse parecer belle depois dos horrores da guerra e nas convulsões do pós- guerra, ainda se compreende; mas aos jovens de então, naquela época, com os seus preconceitos, seus conformismos, seus colarinhos duros, sua estagnação, devia parecer bem monótona, e monótona, chata – com perdão da palavra – era mesmo. Homem de categoria vestia-se só de escuro, usava chapéu coco, e à noite, quando ia dormir, colocava a bigodeira. A palavra cabaré tinha um sabor altamente pecaminoso. Nas reuniões de gente de bem, as meninas tocavam piano e cantavam romanzas de Tosti; as mais evoluídas declamavam poemas de Guido Cozzano, um especialmente, La signorina Felicita, e com olhar lânguido e voz velada pausavam nos versos: Non amo che le rose – che non colsi, non amo chle le cose – che potevano essere e non sono – state... Nos teatros, o público chora assistindo Addio giovinezza!, ou estremecia diante dos dramas histórico em versos, tipo La cena delle beffe. Agora imaginemos um distinto membro daquele distinto público que entre, numa noite de janeiro de 1913, no Teatro Costanzi de Roma. Está anunciada uma “Serata di poesia futurista”. No palco Marinetti está declamando o poema Bombardeio! Voz de Marinetti (enquanto aparece a imagem do poeta; a declamação é acompanhada pela projeção da capa de “Zang Tumb Tumb”, de duas tavole parolibere e de duas poesias tipográficas de Soffici) - ... ogni 5 secondi cannoni da assedio sventrare spazio con uno accordo tam-tuuumb ammitinamento di 500 echi per azzannarlo sminuzzarlo sparpagliarlo all’infinito Nel centro di quei tam tuumb spiaccicati 9 ampiezza 50 chilometri quadrati balzare scoppi tagli pugni batterie tiro rapido Violenza fecia reglaritá questo basso grave scander gli strani folli agitatissimi acuti della battaglia Furia affanno erecchie occhi narici aperti attenti forza che gioia vedere udire fiutare tutto tutto taratatatata delle mitragliatrici strillare a perdifiato sotto masi chiaff-ffi trask-trask frustate pic-pac-pum-tumb bizzzzarrie salti altezza 200 m. Della fucileria Giù giù in fondo all’orchestra stagni diguazzare buoi buffali pungoli carri pluff plaff impennarsi di cavalli flic flac zing zing sciaack ilari nirtiti iiiiii scalpiccii tintinnii 3 battaglioni bulgari in marcia croooc-craaac Sciumi Maritza o Kavarvena croooc-craac grida degli ufficiali sbatacccchiare come piatttti d’otttttone pan di qua paack di là cinq buuum cinq clak ciaciaciaciaciaak su giù l’intorno in alto attenzione sulla testa ciaack bello Vampe vampe vampe vampe vampe (berros, assobios, buzinas) Passadistas – Pazzi! Reclamisti! Futurista – Viva Marinetti! Passadistas – Abasso! Futuristas – Viva! Passadistas – Buffoni! Futuristas – Passatisti! Paralitici! Um Passadista (a Marinetti) – Cavadenti! (risadas passadistas) Marinetti – E lei è uno dente cariato che io estirperò! Passadistas – Uhuhuhuhuhuhuh! Um espectador – Scappate! Le guardie! Narrador – Assim acabavam, geralmente, le serate futuriste, as noites futuristas. Quer dizer, acabavam na delegacia mais próxima. Os delegados da belle époque eram muito tolerantes; talvez também porque não tinham o que fazer. O delegado procurava compreender o motivo da briga; não compreendia; ficava admirado que pessoas qualificadas descessem a manifestações de violência, socos e pontapés; passava uma reprimenda, e, enfim, mandava soltar todo mundo, recomendando bom comportamento. Em 1913, as ‘loucuras’ dos futuristas já tinham-se tornado proverbiais, pois o movimento – estendendo-se aos mais variados setores artísticos – já contava com quatro anos de vida. Tinha iniciado em 1909. A sua certidão de nascimento pode ser encontrada no manifesto publicado por Marinetti, aos 20 de fevereiro daquele ano, em Le Figaro. Porque num jornal parisiense? Bem, naquela longínqua época Paris era de fato uma espécie de capital artística do mundo; e o movimento de Marinetti se dirigia ao mundo. O manifesto, com que se lançava a palavra futurismo, era uma anunciação eloqüente e romântica, não tanto de princípios estéticos, quanto de princípios gerais e de intenções. Sobretudo com relação à poesia. Depois de ter exaltado a coragem, a violência, o amor do perigo, a beleza da velocidade e da técnica, os elementos primordiais, a guerra, o militarismo, o patriotismo, e ter manifestado o propósito de destruir os museus, as bibliotecas, as academias de qualquer espécie, e combater o moralismo, o feminismo, e “toda vileza oportunista e utilitária”, Marinetti declara: Voz de Marinetti (enquanto passam os seguintes diapositivos: Corra, Enterro de anarquista. Baldassarri, Galeria com bandeiras. Boccioni, A cidade que sobe. Boccioni, O adeus. Boccioni, Matéria. Sironi, Aeroplano. Sironi, Composição com hélice) – ‘Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fermento noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados pelas violentas luas elétricas; as estações insaciáveis devoradoras de serpentes que fumam; as usinas suspensas nas nuvens pelos fios transpondo os rios cintilantes ao sol com brilho de facas; os navios aventureiros que farejam o horizonte, as locomotivas de possante tórax estropiantes sobre os trilhos como enormes cavalos de aço embricados com tubos, e o voo deslizante dos aeroplanos, cuja hélice agarre o vento como bandeira e parece aplaudir como multidão entusiasta’... Narrador – E? Conclua... Voz de Marinetti (diapositivo de G. Balla, Mercúrio passa diante do sol) – ‘Em pé, no ápice do mundo, nós lançamos, uma vez mais, nosso desafio às estrelas!’... Narrador – Na verdade, a primeira vítima foi a lua. “Uccidiamo il chiaro di luna!” (Matemos o luar) é o título do segundo manifesto futurista, publicado dois meses depois. Um tanto vago e bastante literário, é preciso reconhecer; mas, rapidamente, congregaram-se no futurismo inconformistas e inconformados de toda espécie, os desejosos de uma integral renovação em todos os setores da expressão artística; e as linhas do movimento foram definindo-se. Numa cara de Marinetti a Mac Delmarle, publicada na revista Lacerba, em 15 de agosto de 1913, encontramos a seguinte definição de futurismo: Voz de Marinetti (enquanto diapositivos são mostrados) – ‘O futurismo, no seu programa total, é uma atmosfera de vanguarda; é a palavra de ordem de todos os inovadores e franco-atiradores intelectuais do mundo; é o amor pelo novo; a arte apaixonada pela velocidade; a denigração sistemática do antigo, do velho, do vagarosos, do erudito e do professoral; é o ruído estridente de todos os picos demolidores, é uma nova maneira de ver o mundo; uma nova razão de amar a vida, uma entusiasta glorificação das descobertas científicas e do mecanismo moderno; uma bandeira de juventude, de força, de originalidade a todo custo; de um colarinho de aço contra o hábito dos torcicolo saudosistas; uma metralhadora inexorável apontada contra o exército dos mortos, dos gostosos e dos oportunistas, que queremos exaltar e submeter aos jovens audazes e criadores; é um cartucho de dinamite para todas as ruínas veneradas’. Narrador – De fato, aos primeiros manifestos, coloridos, altissonantes, às declarações magniloquentes de princípios às várias artes, e sobretudo os manifestos, assim chamados técnicos, que investiam de forma direta ao problema da renovação da linguagem de cada arte, e constituem ainda hoje documentos do maior interesse e, às vezes, de vibrante atualidade. É curioso, porém, que não obstante seu caráter espetacular, não obstante ter sempre procurado de preferência as alas teatrais para realizar suas tumultuadas manifestações de poesia e de arte, é só no início de 1915 que o Futurismo enfrenta diretamente o problema do teatro e lança o manifesto sobre o teatro futurista sintético. Naquela data, já tinham saído cerca de vinte manifestos futuristas, abrangendo a pintura, a escultura, a música, a literatura, a arquitetura, até a pintura de sons, ruídos e odores. Tinha saído até um manifesto da mulher futurista. Desta vez, porém, junto ao manifesto, assinado por Marinetti, Bruno Corra e Emilio Settinelli – uma companhia teatral, a de Ettore Berti, começou a apresentar, em várias cidades italianas, as primeiras peças futuristas, ou sínteses teatrais; Marinetti já sonhava ter em Milão ‘um grande edifício metálico, aparelhado com todas as complicações eletromecânicas, que poderá consentirnos de realizar cenicamente as nossas mais livres criações’. Contra que e contra quem surgia o teatro futurista sintético? Deixemos a palavra a Marinetti. Voz de Marinetti – ‘Sem insistir contra o teatro histórico, forma nauseante e já posta de lado pelo próprio público passadista, nós condenamos todo o teatro contemporâneo, pois que todo ele é prolixo, analítico, pretensiosamente psicológico, explicativo, diluído, meticuloso, estático, cheio de proibições como um código dividido em celas como num mosteiro, coberto de bolor como uma velha casa desabitada’. Narrador – A proposta futurista era a de um teatro: sintético, atécnico, dinâmico, simultâneo, autônomo, alógico, irreal. De que forma? É o que veremos já, apresentando ao público algumas das peças futuristas que forma levadas à cena naqueles anos na Itália, e até em Paris, em 1918, onde provocaram – ao que diz Marinetti – vivazes discussões e agitaram todo o meio intelectual parisiense. Mas voamos, sem delongas, à primeira peça (...) Passadismo, de Bruno Corra e Emilio Settinelli. (enquanto vagarosamente se abre a cortina, o Narrador anuncia): Ato I (Um velho e uma velha estão sentados à mesa, um em frente ao outro. Perto deles uma folhinha). Velho – Como vai? Velha – Não posso me queixar. E você, como vai? Velho – Não posso me queixar. (Pausa) Acho que amanhã teremos um dia bonito. (Pausa) Vamos arrancar a folha de hoje: 10 de janeiro de 1860. (Pausa) Fez bem a sua digestão? Velha – Não posso me queixar. Velho – Sarou de sua dispepsia? Velha – Comi bastante e a digestão foi boa. Estou muito contente! Velho – Eu também estou muito contente! (Apaga-se a luz. Cortina) Narrador – Ato II (Mesma cena. Mesma disposição) Velho – Como vai? Velha – Não posso me queixar. E você, como vai? Velho – Não posso me queixar. (Pausa) Acho que amanhã teremos um dia bonito. (Pausa) Vamos arrancar a folha de hoje: 10 de janeiro de 1880. (Pausa) Fez bem a sua digestão? Velha – Não posso me queixar. Velho – Sarou de sua dispepsia? Velha – Comi bastante e a digestão foi boa. Estou muito contente. Velho – Eu também estou muito contente! (Apaga-se a luz. Cortina) Narrador – Ato III (Mesma cena. Mesma disposição) Velho – Como vai? Velha – Não posso me queixar. E você, como vai? Velho – Não posso me queixar. (Pausa) Acho que amanhã teremos um dia bonito. (Pausa) Vamos arrancar a folha de hoje: 10 de janeiro de 1910. Velha – Oh, meu Deus! Que pontada no coração! Morro... (Fica imóvel). Velho – Oh, meu Deus! Que pontada no coração! Morro! (Fica imóvel). (...) Narrador – Nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do XX, divulgando-se na Itália o pensamento de Nietzsche, muito se falou em super-homem. D’Annunzio – que, fora dos meios filosóficos, foi o maior divulgador do pensamento nietzschiano – fez do superhomem um personagem de romances e dramas, e o introduziu até em imaginárias situações políticas. É bom lembrar que as doutrinas totalitárias ainda não tinham tomado consistência, e ninguém imaginava que aquele personagem sairia da literatura para entrar de fato na vida política. O Futurismo já em 1911 tinha lançado em seu manifesto político (...) Mas a peça que vamos apresentar, de assunto político, não se prende àquele manifesto, e é ligada a motivações de natureza essencialmente literária. A peça se intitula justamente ‘O super-homem’ desta vez o autor é so Emilio Settinelli. (Sala. Ao fundo, uma sacada ampla. É noite. Verão.) Super-homem – Sim... a batalha terminou! A lei foi aprovada!... agora é so colher os frutos do meu trabalho. Amiga – E vai cuidar mais de mim, não vai? Confesse que você pouco se importou comigo nestes últimos dias... Super-homem – Confesso!... mas o que é que você quer! Somos tomados, envolvidos... o que podemos fazer? Afinal, a política não é tão simples como você imagina... Amiga – A mim me parece uma coisa bem ridícula!... (da rua, grande vozerio de povo, repentino, ensurdecedor) Super-homem – O que é?... Que barulho é esse?... Amiga (indo para a sacada) – Uma porção de gente... uma manifestação. Super-homem – É uma manifestação... Multidão – Viva Sérgio Walescki... Viva Sérgio Walescki! Viva o imposto progressivo... Viva Sérgio Walescki!... Queremos vê-lo... Queremos ouvi-lo!... Fale Walescki!... Fale! Amiga – Estão aclamando você!... Querem que você fale! Super-homem – Quanta gente!... A praça já está repleta! Devem ser uma dez mil pessoas!... Secretário – Excelência! Há uma multidão imponente. Querem ouvi-lo... Para evitar incidentes, seria bom que Vossa Excelência falasse... Amiga – Fale! Fale! Super-homem – Falarei... Mande trazer os lampiões... Secretário – Imediatamente. (sai) Multidão (sempre mais audível) – Wa-le-scki! Wa-le-scki!... Queremos Sérgio Walescki!... Fale! Fale!... Viva o imposto progressivo! Amiga – Fale, Sérgio!... Fale... Super-homem – Já disse que vou falar... (Criados trazem lampiões.) Amiga – Que lindo monstro, a multidão!... É a vanguarda de toda a geração que o seu gênio arrasta em marcha, a caminho do amanhã! Bela!... Maravilhosa!... Super-homem (nervoso) – Por favor, retire-se!... (vai para a sacada. Enorme ovação; gritos de ‘viva!’ Sérgio cumprimenta, depois faz sinal de que vai falar. Silêncio completo) – Obrigado, meus amigos, muito obrigado!... Confesso que prefiro falar a uma multidão livre do que a uma junta de deputados... (aplausos enormes). O imposto progressivo é apenas o primeiro passo para aquela justiça social que acabará triunfando! ... (ovação). Juro-vos, solenemente, que estarei sempre ao vosso lado! Juro que não iniciei a nossa marcha para dizer-vos um dia: paremos! Não! Nós continuaremos sempre para frente!... Hoje a nação inteira está conosco... por nós ela se move e se agigante!... (ovação). Continuai nessa manifestação! Expressai livremente a vossa alegria!... Que a capital saiba do triunfo da nação! (ovação prolongada. Sérgio agradece e entra. Aplausos e vozes de ‘Walescki! Walescki!’ Sérgio agradece e entra. (Aplausos e vozes de ‘Walescki! Walescki!’ Sérgio reaparece, cumprimenta e torna a entrar.) Amiga – Como é bela! Como é bela a multidão! (Sérgio é chamado novamente). Vai, vai, eles querem você ainda! Super-homem (volta a cumprimentar, depois chama o criado) – Retire os lampiões... Amiga – Esta noite senti que você é o dono do país!... Senti a sua força!... todos seguem você... Eu idolatro você, Sérgio... (abraça-o). Super-homem – Sim, Helena!...sou finalmente o árbitro; ninguém pode resistir-me!... é um povo em marcha que eu conduzo!... Amiga – Tive uma ideia, Sérgio... Vamos sair: quero saborear de perto esta cidade inebriada. Vou me vestir... está bem? Super-homem – Sim... vá... sairemos. (cansado, atira-se numa poltrona. Pausa. Levantase, vai para a sacada. De repente, entra um homem forte, rude, atravessa silenciosamente a sala, agarra Sérgio pela garganta e o atira pelo balcão abaixo. Depois, cauteloso e apressado, sai por onde entrou.) XI.6. – Excertos “eu ofereço à multidão dos criados a importância do meu próprio eu”. Igor SEVERJÀNIN. O ‘verdadeiro’ futurismo russo (Cubo-futurismo) contou com vários escritores e, dentre eles, com certeza: Klebnikov, Burliúk, Kruchënik e Maiakovski, tendo em vista serem os autores e/ou assinantes de um único manifesto, lançado em 1913. Algumas das ideias do grupo podem ser apreendidas por uma carta escrita por Maiakovski, datada de 1º de setembro de 1922, em que o poeta-militante apresenta alguns aspectos do movimento na Rússia. “(...) O futurismo como corrente precisamente formulada não existia na Rússia antes da revolução de outubro.” Com este nome os críticos batizaram tudo o que era novo e revolucionário. Um grupo de futuristas ideologicamente fundidos constituía o nosso grupo, os considerados (impropriamente) ‘cubo-futuristas’(...). O único manifesto desse grupo foi a introdução à coleção Bofetada no gosto público, saído em 1913. Um manifesto poético, que exprimia os fins do futurismo em palavras emocionais. A revolução de outubro separou o nosso grupo dos outros pseudofuturistas, afastando-os da Rússia revolucionária, e os transformou em um grupo de ‘comunistasfuturistas’, cujos compromissos literários eram os seguintes: 1) Afirmar a arte verbal como maestria da palavra, mas não como estilização estética, bem como capacidade de resolver qualquer problema na palavra. 2) Responder a todo problema posto pela vida contemporânea, tais como: a – cumprir um trabalho sobre o vocabulário (neologismos, instrumentação sonora e assim por diante); b – substituir a métrica convencional dos jâmbicos e coreus pela polirritmia da língua mesma; c – revolucionar a sintaxe (simplificação das formas dos nexos verbais, acentuação de usos verbais insólitos etc); d – renovar a semântica das palavras e dos nexos; e – criar modelos de estruturação dos sujeitos no enredo; f – fazer emergir a qualidade cartazística da palavra etc. A solução dos trabalhos verbais enumerados permitiria satisfazer a exigência das estruturas verbais nos mais variados campos (artigo, telegrama, poesia, folhetim, ensino, apelo, publicidade etc)”. BOFETADA NO GOSTO PÚBLICO Aos leitores do nosso povo, primitivo, inesperado. Somente nós somos o rosto do nosso tempo. A corneta do tempo ressoa na nossa arte verbal. O passado é estreito. A academia e Puskin são mais incompreensíveis que os hieróglifos. Lancemos Puskin, Dostoiévski, Tolstoi etc, do navio de nosso tempo. Quem não souber esquecer o primeiro amor não conhecerá mais o último. E quem será tão vil para recusar a arrancar a couraça de papel do negro fraque do guerreiro Briusov? Ou talvez se reflete nessa uma aurora de inéditas belezas? Lavai as mãos, sujas da lúrida podridão dos livros escritos por numerosos Leonid Andreiev. A todos esses Kuprin, Block, Sologúb, Remizov, Avertchenki, Cherny, Kusmin, Bunin etc etc, só está faltando uma casa à beira de um rio. Tal recompensa o destino reserva também para os alfaiates. Do alto dos arranha-céus discernimos a sua nulidade! Ordenamos que se respeite o direito dos poetas: 1. a ampliar o volume do vocabulário com palavras arbitrárias e derivadas (neologismos); 2. a odiar sem remissão a língua que existiu antes de nós; 3. a repelir com horror da própria fronte altaneira a coroa daquela glória barata que fabricastes com as escovas de banho; 4. a estar fortes sobre o escolho da palavra ‘nós’ num mar de assobios e de indignações. E se em nossos rabiscos ainda restam rastros do vosso ‘bom sentido’ e do vosso ‘bom gosto’, nestas, todavia, já palpitam, pela primeira vez, as lâmpadas de nossa futura beleza da palavra autônoma (auto-evoluída). D. BURLIUK, A. KRUCHËNIK, V. MAIAKOVSKI, V. KHLEBNIKOV. Moscou, dezembro de 1912.40 DI. O manifesto apresentado a seguir não é grafado exatamente do modo como aqui está transcrito, fundamentalmente nas palavras em vertical. Sua transcrição, entretanto (e a despeito da não fidelidade), deve-se ao fato de ser material de difícil acesso e, também, bastante ilustrativo de algumas das preocupações dos artistas ligados ao movimento. ANTITRADIÇÃO FUTURISTA Manifesto-Síntese 29 de junho de 1913 ABAIXO OPominir Aliminé SSkprsusu Otalo ADIScramir Monigme Este motor de todas as tendências Impressionismo Fauvismo Cubismo Expressionismo Patetismo Dramatismo Orfismo Paroxismo Dinamismo PLÁSTICO PALAVRAS EM LIBERDADE INVENÇÃO DE PALAVRAS. DESTRUIÇÃO Supressão da dor poética dos exotismos snobs A da cópia em arte I das sintaxes já condenadas pelo uso em todas as R do adjetivo Ó da pontuação línguas Nada 40 T da harmonia tipográfica I Os dois documentos acerca do Futurismo russo foram transcritos de Gilberto Mendonça TELES. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1977, pp.118-20. de S dos tempos e pessoas dos verbos lamentos I N da orquestra F H da forma teatral I DA do sublime artístico O do verso e da estrofe à das casas S da crítica e da sátira S da intriga nas narrativas V E do tédio O N I T I R P U S CONSTRUÇÃO 1. Técnicas ou ritmos renovados sem cessar Literatura pura Palavras em liberdade Invenção de palavras Plástica pura (5 sentidos) Criação invenção profecia Descrição onomatopéica Música total e arte dos ruídos Continuidade Simultaneidade em posição E Mímica universal e Arte das Luzes D Maquinismo Torre Eiffel Brooklin e arranha-céus A Poliglotismo D Civilização pura E Nomadismo épico exploratismo ao Particularismo I urbano Arte das viagens e R dos passeios eà Antigraça divisão A V Estremecimentos diretos em grandes espetáculos livres circos music-halls, etc A PUREZA 2. Intuição velocidade ubiqüidade Livre ou vida cativa ou fonocinematografia ou imaginação sem fio A Tremulismo contido ou onomatopéias mais inventadas que imitadas Dança trabalho ou coreografia pura Linguagem veloz característica impressionante cantada assoviada mimada dançada caminhada corrida Golpes Direito dos povos e guerra contínua Feminismo integral ou diferenciação inumerável dos sexos E Humanidade e apelo ao outro homem Matéria ou transcendentalismo físico Ferimentos Analogias e trocadilhos trampolins líricos e única ciência das línguas calicó Calicut Calcutá cachacia Sofia o Sofos suficiente oficiar oficial é fios Aficionado Dona-Sol Donatello Doador dei erradamente torpedeiro Ou ou ou flauta sapo nascimento das pérolas a premine MER.............................................................. DA..................................................... AOS Críticos Ensaístas as Irmãs siamesas Pedagogos Neo- e pós- D’Annunzio e Professores Bayreuth Florence Rostand Museus Montmartre e Quatrocentistas Munique Setecentistas Léxicos Ruínas Dandismos Pátinas Bongostismos Historiadores Espiritualistas ou Dante Shakespeare Tolstoi Goethe Dilentantismos merdolengos Ésquilo e teatro de Laranja Veneza Versalhes Orientalismos Indo Egito Fiesole Pompéia Bruges realistas (sem Oxford Neurenberg sentimento da Cientismo Toledo Benarés etc realidade e do Montaigne Wagner e a teosofia Defensores de paisagens. espírito) Filólogos Beethoven Academicismos Edgar Poe Walt Whitman e Baudelaire ROSA AOS MARINETTI PICASSO BOCCIONI APOLLINAIRE PAUL FORT MERCERAU MAX JACOB CARRÁ DELAUNAY HENRI-MATISSE BRAQUE DEPQUIT SÉVERINE SEVERINI DERAIN RUSSOLO ARCHIPENKO PRATELLA BALLA F. DIVOIRE N. BEAUDUIN T. VARLET BUXXI PALAZZESCHI MAQUAIRE PAPINI SOFFICI FOLGORE GOVONI MONFORT R. FRY CAVACCHILI D’ALBA ALTOMARE TEIDON METZINGER GLEIZES JASTREBZOFF ROYÉRE CANUDO SALMON CASTIAUX LAURENCIN AUREL AUGERO LÉGER VALENTINE DE SAINT-POINT DELMARLE KANDINSKY STRAWINSKY HERBIN A. BILLY G. SAUVEBOIS PICABIA MARCEL DUCHAMP B. CENDRARS JOUVE H. M. BARZUM G. POLTI MAC ORLAN F. FLEURET JAUDON MANZELLA-FRONTINI A. MAZZA T. DERÉME GIANNATTASIO TAVOLATO DE GONZAGUES-FRIEK C. LARRONDE ETC. Paris, 29 de junho de 1913, dia do ‘Grand Prix’, a 65 metros acima do Boulevard SaintGermain. GUILLAUME APOLLINAIRE (202 Boulevard Saint-Germain – Paris)