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“I like Gods, I understand them”
3 declinações e outras tantas derivas em torno da cultura do poder e do poder da
cultura seguidas do esboço de um quadro de referências sobre políticas culturais
eventualmente reversível a favor de uma necessária ecologia política
Por Jorge Campos
Lidar com o mundo também é trabalhar sobre as suas representações, sobre essa teia de
sucessivas máscaras cujo reconhecimento autoriza a aproximação aos mecanismos que permitem
operar a metamorfose do real em realidade. Deuses caprichosos como os da mitologia podiam
usar e abusar dos seus poderes por forma a determinar o sentido do mundo e com ele o destino
do homem sobre a Terra. Pois assim parecem ser as divindades de hoje armadas do poder de
reproduzir à escala global um universo simbólico ajustado aos seus contraditórios desígnios e,
por estupidez ou imprudência, capazes de desencadear forças incontroláveis. Sempre assim terá
sido. Mas, quando a barbárie desvendou o horror do lado mais obscuro do rosto dos homens,
houve sempre como que uma luz a prumo incidente sobre o outro lado desse mesmo rosto, a luz
da cultura e da imaginação da qual se alimentam a coragem, a resistência e a cidadania. Disso
direi então falando do poder - sem inocência, porque nestas coisas não há inocência - e de
políticas culturais na convicção da necessidade de subverter modelos de intervenção que
favorecem protagonismos sem espessura nem memória, perdidos no efémero de si mesmos,
eventualmente no limiar do desastre. Este será um mosaico mais do domínio da efabulação e
menos do domínio da ciência cuja certeza, de resto, também não é certa.
1. Esta história, na qual se falará de cultura e eventuais declinações dela, começa na
Universidade de Salamanca no Dia da Raça em 12 de Outubro de 1936. O episódio é
conhecido e recorrentemente evocado. Os protagonistas são José Millán-Astray e
Miguel de Unamuno. O primeiro, fundador e comandante da Legião Estrangeira
Espanhola, de quem se diz ter derrotado durante as sublevações filipinas dois mil
rebeldes à frente de apenas 30 homens, façanha bastante para dele fazer um herói de
guerra coberto de louvores e de medalhas, prenúncio do mito fascista em que a
circunstância de ter perdido o braço esquerdo e o olho direito em combate em
Marrocos o viria a transformar: el glorioso mutilado. O segundo, escritor e filósofo,
autor de um célebre ensaio intitulado O Sentido Trágico da Vida, no qual procurou
lidar com o conflito existencialista do homem perante a incerteza trazida pela
presença da morte – afinal, tal como no Quixote, uma tentativa de conferir sentido
moral à vida – que, sendo embora basco, trocou, a partir de determinada altura, o
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internacionalismo pelo nacionalismo, para logo após se insurgir contra o
generalíssimo Franco e a sua ordem negra. Seja então este o ponto de partida para a
nossa primeira declinação e correspondente deriva sobre a cultura do poder e o poder
da cultura.
Reza a História, que aqui terá revertido em lenda sem, todavia, deixar de ser História,
que nesse Dia da Raça, expressão oblíqua e, porventura, suspeita, entendeu um tal
professor Maldonado fazer um discurso incendiário no qual a Catalunha e o País
Basco eram vistos como os cancros do corpo da nação que o feitiço do fascismo,
palavras dele, Maldonado, haveria de extirpar para expor sem falso sentimentalismo a
carne viva das gentes dessas terras. Alguém de entre a multidão rejubilou gritando
Viva la muerte! ao que Millán-Astray de olho vendado e prótese de luva branca
respondeu España!, dando início ao ritual falangista da saudação romana como se o
braço levantado conferisse irrefutável evidência à razão da vozearia levantada.
Quando finalmente se fez o silêncio conveniente à solenidade da ocasião, como
previsto, levantou-se para falar Miguel de Unamuno, Reitor da Universidade de
Salamanca. O seu olhar terá, porventura, embaraçado o Bispo, por sinal um catalão,
inquietado a turba inflamada de legionários e até, talvez, quem sabe, causado um
imprevisto estremecimento na sorridente Carmen Polo, La Señora, mulher de Franco,
como sempre devota e enrolada num colar de pérolas.
Disse Unamuno:
“Por vezes ficar em silêncio é mentir porque o silêncio pode ser interpretado por
consentimento. O general Milllán-Astray é um inválido. Não há necessidade de o
comentar em segredo. É um inválido de guerra. Tal como Cervantes. Mas,
infelizmente, em Espanha há hoje demasiados inválidos. E, se Deus não nos ajudar,
em breve haverá muitos mais. Atormenta-me pensar que o general Millán-Astray
possa ditar normas de psicologia de massas. Um inválido, a quem falta a grandeza
espiritual de Cervantes, espera encontrar alívio aumentando o número de inválidos à
sua volta.”
Fora de si, Mlillán-Astray gritou:
“Muera la inteligencia! Viva la muerte!”
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A vozearia, agora ameaçadora, só a custo foi em parte serenada pela intervenção de
alguns sábios de togas esvoaçantes em sobressalto pela aparência das coisas que, pela
sua natureza, deviam dar-se à aparência do respeito. Antes tivessem logo ali dado o
acto por terminado porque Unamuno prosseguiu:
“Vencereis porque tendes a força bruta. Mas não convencereis. Para convencer é
necessário persuadir e para persuadir é necessário ter algo que a si lhe falta: a razão
e a justiça. É inútil pedir-lhe que pense na Espanha.”
Não sei se o relato é rigoroso. Segundo alguns, a enormidade sobre os bascos e
catalães terá sido não do infeliz Maldonado mas do excêntrico general, algo, aliás, de
todo compatível com os dados constantes da sua aterradora biografia. Seja como for,
no plano simbólico, independentemente das questões de pormenor, o episódio não
deixa de ser exemplar. Em Unamuno a cultura é insurgente, inseparável da prática da
cidadania. Millán-Astray protagoniza a cultura de um poder cego e castrador, tal
como aquele outro inválido, Joseph Goebbels, que um dia proclamou:
“Quando ouço falar de cultura, puxo do revólver.”
Unamuno, para quem sabedoria e poética convergiam no mesmo propósito de
amadurecimento existencial, iria morrer dois meses depois da peculiar celebração na
Universidade de Salamanca. Ao cabo de mais de 40 anos a ensinar Filosofia afirmava,
nessa altura, não estar certo sobre o que seria exactamente a cultura. O mesmo
aplicar-se-ia ao ensino, paradoxalmente visto como um desígnio e uma ameaça.
Olhando para os manuais escolares fica-se com a ideia, dizia ele, de que as crianças
são vistas como uma espécie de cobaias dos psicólogos, podendo ser amestradas
como os animais. E reportando à cultura e à função de ensinar, acrescentava:
“Sócrates não era um professor, mas um vagabundo. Deambulava pelas ruas de
Atenas falando com toda a gente. É isso a cultura.”
Ao longo do percurso da sua vida – durante o qual produziu uma obra reflectindo, no
essencial, a ideia do primado da consciência moral do indivíduo como condição de
uma humanidade responsável – Unamuno teve seguidores, críticos e detractores.
Alguns, consoante as circunstâncias, foram tudo isso numa mesma pessoa, o que é
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razoável. Millán-Astray sempre teve ou serventuários fanáticos ou inimigos
implacáveis. Certo, a determinada altura tornou-se incómodo até para os seus
correligionários, mas na altura do episódio de Salamanca o seu elevado padrão de
pensamento dando vivas à morte e proclamando a morte da inteligência já lhe tinha
garantido o lugar de responsável falangista da Imprensa e da Propaganda. Asseguram
testemunhos da época que impôs uma disciplina de caserna nos meios de
comunicação e que bastava-lhe assobiar para ter à sua volta uma corte de jornalistas
que tratava como aos seus legionários nas campanhas de África. No seu meio, este
homem, sempre pronto a gabar-se dos actos de bravura e das proezas sexuais, era
considerado imensamente culto, admirador de clássicos japoneses e indefectível da
violência como forma de dirimir conflitos. A sua noção de cultura não seria
certamente a de alguém deambulando pelas ruas falando livremente com toda a gente.
Guernica
2. A cultura, seja qual for dela o entendimento, resulta naturalmente do pensamento
do homem e, assim sendo, pode ser encarada de múltiplos ângulos e suscitar
diferentes interpretações. Em todo o caso, será sempre uma ideia. Numa das suas
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versões mais consensuais, de carácter antropológico, corresponde a um conjunto de
práticas e acções sociais, as quais conferem identidade própria a um grupo humano e,
nessa medida, remetem para uma espécie de cosmologia social. Aí cabem as
manifestações artísticas, a língua, as crenças e os mitos, a religião, usos e costumes,
instituições, a organização social, enfim, tudo quanto nas sociedades humanas possa
dizer respeito à sua composição, estrutura e evolução. Assim sendo, é inevitável
inferir que as práticas e acções sociais não são exclusivamente conformadoras. Sendo
dinâmicas, são também agentes da mudança, eventualmente em conflito com a ordem
estabelecida, o que nos conduz a uma segunda declinação e a uma outra deriva sobre
a cultura do poder e o poder da cultura.
Sócrates, para além de se recusar a receber dinheiro dos seus discípulos ousara
questionar a ordem dos deuses, o que punha em causa a ordem da cidade. Os deuses
gregos eram tolerantes, mas a justiça foi cega e Sócrates, entendendo dever respeitar
as leis de Atenas, em consciência, bebeu a sicuta, ele e os seus discípulos. O
sacrifício, sendo um gesto de protesto, tal como o do monge vietnamita ou do
estudante checo que se imolaram pelo fogo, num caso para denunciar a brutalidade da
guerra levada a cabo pelos Estados Unidos no Vietname, no outro em sinal de repúdio
pela entrada dos tanques do Pacto de Varsóvia em Praga, foi um acto de cidadania.
Ou seja, a cultura tem um lado insurgente e todo o acto de cidadania – como todo o
acto político – tem ressonância cultural.
Em O Desprezo (1963), filme de Jean-Luc Godard baseado no romance homónimo de
Alberto Morávia, que trata da mercantilização das relações humanas e do valor de uso
atribuído aos bens culturais, é isso mesmo o que está em causa. Por forma a
problematizar o sentido da arte e da vida Godard imagina o cineasta Fritz Lang a
realizar uma adaptação de A Odisseia de Homero para um produtor americano
deslumbrado com o cinemascope e que acha que o filme deve ter tudo quanto ele
possa pagar. Explorando uma variedade de subtextos consequente de hipóteses
semânticas e narrativas contidas no universo dos deuses gregos e das suas mitologias,
O Desprezo acaba por reverter num argumento favorável à liberdade de criação
questionando o exclusivo do mercado para decidir sobre a legitimidade das politicas
da produção cinematográfica.
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Para tanto, Godard serve-se de alguns artifícios a começar pela escolha dos actores:
Brigitte Bardot, provavelmente o maior símbolo sexual do cinema dos anos 60;
Michel Piccoli, um dos actores fétiche da nouvelle vague; Fritz Lang, figura de culto
dos cineastas, mestre dos estúdios de Weimar e, mais tarde, realizador problemático
na indústria de Hollywood; e Jack Palance, vilão cínico das fitas de série B
americanas. Todos eles correspondem a uma determinada iconografia do cinema,
território propício à criação de mitos. Daí o primeiro artifício de Godard: Bardot,
ainda que represente Camille, nunca deixa de ser Bardot; Piccoli, sendo Paul Laval, é,
na verdade, Piccoli; Fritz Lang faz de Fritz Lang ainda que, como se verá, possa não
ser exactamente Fritz Lang; Jack Palance chamar-se-á Proshock, mas será sempre
igual à imagem que o público tem de Jack Palance. Ao proceder deste modo Godard
joga com as expectativas ou pré-disposições de um público à partida, pelo menos,
com um mínimo de informação sobre as múltiplas faces do cinema, as quais, no filme,
aparecem metaforicamente identificadas com os rostos dos protagonistas.
O segundo artifício de Godard é corolário do primeiro: se na Odisseia de Homero
prevalece uma certa ideia da viagem de Ulisses, herói de Tróia, e de todos os perigos
que ela encerra porque os deuses que comandam o destino dos homens são dados a
caprichos e não se entendem, em O Desprezo o sentido da viagem consiste em
explorar dialecticamente a deterioração e degradação das relações humanas no
contexto de uma ordem de produção simbólica baseada no poder do dinheiro o que,
eventualmente, conduz à prostituição.
Vejamos. Prokosh, o produtor americano, assiste à projecção de alguns rushes de A
Odisseia na companhia de Fritz Lang, de uma pragmática colaboradora para todo o
serviço e do dramaturgo Paul Laval chamado para alterar o argumento que não agrada
ao produtor. No ecrã vêem-se imagens de estátuas das divindades gregas recortadas
contra o azul intenso de um céu sem mácula. Prokosh reclama mais acção e só
manifesta agrado quando surge uma mulher nua, aliás, uma sereia, a nadar em águas
transparentes. Tudo o mais lhe parece inadequado, apesar do cinemascope
deslumbrante que Lang, de resto, desvaloriza, procurando, antes, defender o direito ao
ponto de vista do cineasta, para o caso a luta do homem contra circunstâncias
adversas, ou seja, Ulisses desafiando os deuses com o apoio de Minerva e a oposição
de Poseídon.
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Prokosh e a alegoria de JLG
Quando Lang sugere que os deuses são uma criação do homem e não o contrário
Prokosh, dando sinais de uma irritação crescente, sobe ao palco e assumindo a
posição do discóbolo lança violentamente a lata de um rolo de filme fazendo-a voar
sobre a cabeça dos presente. Diz:
“Quando ouço falar de cultura puxo do livro de cheques.”
Apoiado nas costas da colaboradora servil assina um cheque que é entregue a Laval
com uma pergunta exigindo resposta imediata: “Aceita ou não reescrever o
argumento?” Que quer isto dizer? Pois bem, se o cinema for encarado como um
desafio cultural, transportando consigo marcas no sentido de problematizar a vida,
então é legítimo puxar do livro de cheques para impor a funcionalidade sedativa do
entertainment que dá colorido à evasão. Laval dobra o cheque, guarda-o no bolso do
casaco e sai da sala acompanhado das palavras sibilinas de Prokosh:
“I like Gods, I understand them.”
Se necessário, portanto, Prokosh corrompe. Godard opera assim, no plano simbólico,
a metamorfose em função da qual o produtor toma o lugar de Poseídon, o deus
caprichoso, e ele próprio, Godard, através do seu alter ego Fritz Lang, é levado a
identificar-se com Ulisses, o viajante que ousara desafiar os deuses. Mas, não será
esse, justamente, o papel dos criadores, retirar aos deuses o exclusivo da criação?
Dito isto, esclareça-se: o entertainment não é necessariamente negativo, eticamente
reprovável ou artisticamente irrelevante. Numa conversa entre Fritz Lang e Jean-Luc
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Godard gravada para a televisão francesa algum tempo após a estreia de O Desprezo o
cineasta alemão, recordando a sua passagem por Hollywood, dizia nada ter contra a
filosofia da indústria cinematográfica americana. O problema, segundo ele, é que
todos os filmes produzidos nesse contexto se assemelhavam e, por isso, depois de ver,
por exemplo, Cleópatra, não sentia grande curiosidade em voltar a ver filmes
semelhantes – estávamos nos anos 60 e só na década seguinte, na América, haveria
um movimento com Bogdanovich, Cassavetes, Scorcese e Coppola, entre outros, a
reclamar o primado do director. De qualquer modo, o entretenimento – utilizo agora,
propositadamente, a palavra portuguesa cujo sentido é mais lato – também faz parte
da cultura sendo, como tal, tão legítimo quanto as manifestações artísticas mais
eruditas.
O que poderá ser inquietante, numa visão actualizada do que Prokosh representa, é a
aceitação da legitimidade do entretenimento como forma cultural dominante e
preferencialmente exclusiva em nome de uma pós-modernidade caracterizada pela
fragmentação do espaço e do tempo e de uma exacerbação do individualismo e do
consumismo que exige tudo fazer reverter em espectáculo porque tudo é mercadoria e
a mercadoria deve vender. A ser assim, há, evidentemente, uma pedagogia do
consumo de tal forma hegemónica que caberá perguntar se ainda sobra lugar, e onde,
para algum tipo de pedagogia da cidadania?
3. Esta pós-modernidade, para alguns equivalente à lógica cultural do capitalismo
tardio, para outros expressão das tendências e políticas neo-conservadoras, encontra
na televisão talvez a sua expressão mais acabada. Na televisão, com efeito, o
entretenimento alinhado pelo menor denominador cultural comum parece ter tomado
conta de tudo. Haverá certamente excepções, mas a verdade é que a pedagogia do
consumo associada à sociedade do espectáculo ocupa a esmagadora maioria da
programação, mesmo na televisão dita de serviço público. Nem o telejornal e outros
espaços noticiosos escapam a essa tendência dominante. Danny Schechter – o autor
do documentário Weapons of mass deception, filme sobre a opção pela propaganda da
televisão americana durante os primeiros tempos da guerra do Iraque – escreveu a
esse propósito um livro com um título revelador:
“The more you see, the less you know”
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E assim chegamos à nossa terceira e última declinação e uma nova deriva. Em
primeiro lugar importa reter que esta perversão do sistema democrático, aliás, sempre
justificada em nome da liberdade de informação, tem antecedentes. A partir dos anos
80, a transformação da paleo-televisão, com o seu contrato de comunicação espelhado
na delimitação dos géneros e numa divisão específica dos públicos, em neo-televisão
com a sua perspectiva participativa e de segmentação, entre outras múltiplas
consequências, alterou radicalmente o modo de fazer os telejornais. A televisão
passou a operar com base essencialmente em três pressupostos: a pretexto daquilo que
seria a sua natureza, teria de apelar fundamentalmente à emoção; o seu enfoque
centrou-se mais na esfera privada – o termo gossip utilizado por alguns analistas é
esclarecedor – do que na esfera pública e daí a fulanização da vida politica; a sua
missão inclinou-se a favor da frivolidade com prejuízo do esclarecimento plural para
efeito de formar opinião ou tomar decisões.
Perante estes pressupostos, dos quais releva como corolário, segundo os
programadores, uma maior eficácia na competição pelas audiências, o dispositivo
semiótico do telejornal concentrou-se na criação de uma atmosfera de entropia, na
qual os protagonistas se multiplicam em desempenhos e se opera a metamorfose do
espaço do estúdio em metáfora do mundo. Superfícies arrojadas, cores quentes,
silhuetas humanas activas em sucessivas escalas da profundidade de campo, múltiplos
ecrãs supostamente ligados às várias partidas do mundo e a figura totémica do
apresentador sobre quem o plano médio faz incidir todas as atenções e de quem se
espera venha introduzir alguma ordem discursiva e narrativa no caos do mundo. As
reportagens, por via de regra, são previsíveis: texto off, entrevista, repórter em campo.
Em muitos casos, a mediação jornalística é minimal obedecendo à perspectiva do go
between, embora o jornalista mensageiro possa alcançar notoriedade e tornar-se numa
espécie de oráculo falando sobre tudo e todos como em tempos ironicamente
demonstrou Alain Woodrow. Dada a sua notoriedade, pode até substituir-se à notícia.
Concebida para ser exibida num contexto de ruído, tendo de conviver com
informações variadas que passam ininterruptamente em rodapé, ocupando um espaço
saturado de signos, a reportagem tende, enfim, a tratar os assuntos como faits divers,
sem preocupações de ordem sintáctica ou sintagmática no plano da imagem e quanto
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á ética, bom, como afirma Hartley a necessidade de alcançar o máximo de audiência
obriga o jornalismo a servir dois donos, “info’ and ‘tainment.”
Neste contexto, os géneros jornalísticos passaram a adoptar procedimentos de
formatos não jornalísticos, podendo, por vezes, culminar pura e simplesmente na
invenção de notícias como Robert Greenwald fez prova no seu documentário
Outfoxed ao desmontar as múltiplas máscaras da Fox News de Rupert Murdoch – por
cá também não faltariam exemplos edificantes, mas evitemos o melindre. A Fox
News, cuja maior estrela dá pelo nome de Bill O’Reilly, nos meses subsequentes à
invasão do Iraque, apesar dos milhares de mortos e dos atentados diários, procurou
fazer passar a imagem de um País em vias de reconciliação consigo mesmo e cheio de
gente feliz. Quanto a O’Reilly trata-se de um entertainer peculiar. Nas suas
entrevistas supostamente jornalísticas não tem qualquer problema em julgar
publicamente os seus convidados, insultá-los, mandá-los calar e até chamar os
serviços de segurança para os pôr fora do estúdio como fez com o filho de uma das
vítimas do ataque terrorista às torres gémeas em 11 de Setembro.
A história conta-se em meia dúzia de linhas. Por qualquer razão o apresentador soube
da participação de Jeremy Glick, assim se chamava o jovem, em manifestações contra
a guerra. Entre outras coisas, exaltado e de dedo em riste, perguntou-lhe se não sentia
vergonha, tendo perdido o pai naquelas circunstâncias, de se manifestar contra o
presidente Bush. Como Glick argumentasse que era justamente por ser um patriota
que entendia ser necessário denunciar a politica da administração americana,
considerando-a até co-responsável pela morte do pai, O’Reilly deu ordem para o
retirarem do estúdio. Onze meses volvidos a estrela televisiva da Fox News ainda
falava do assunto. O caso foi comentado por todo o tipo de especialistas, a favor e
contra, mais contra, diga-se, mas depois de ter sido considerado mentiroso
compulsivo, paranóico, a nódoa do jornalismo e outras coisas mais O’Reilly viu,
naturalmente, digo eu, dadas as circunstâncias, a sua popularidade aumentar. Como
reagiram a este episódio, bem como à cobertura da Fox News da guerra do Iraque, as
principais estações americanas de televisão? Pois, sentindo as suas audiências
ameaçadas, com maiores ou menores cuidados, trataram de proceder mimeticamente.
Até a insuspeita CNN passou a ter, durante algum tempo, uma emissão diferente para
os Estados Unidos, mais “patriótica”, e outra para o exterior, mais “liberal”.
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Felizmente, há uma tradição recorrente na democracia americana de escrutínio da
coisa pública a qual, uma vez mais, permitiu abrir um debate sobre a qualidade da
programação televisiva, tal como acontecera pela primeira vez de uma forma
consistente ainda no tempo da “caça às bruxas” do senador Joseph McCarthy, tema
reciclado por George Clooney em Good Night and Good Luck com o intuito de,
invocando o exemplo do mítico jornalista da CBS Edward R. Murrow, chamar a
atenção para o estado actual do jornalismo televisivo americano.
Good Night and Good Luck: um caso exemplar da cultura do poder e do poder da cultura
Este descrédito em relação ao telejornalismo bem poderá ser, por outro lado, uma das
explicações para uma produção de documentários sem paralelo, uma vez que neles se
encontrarem respostas, obviamente obedecendo a diferentes pontos de vista, para
questões em relação às quais os espaços informativos convencionais ou nem sequer
encontram lugar ou se revelam simplesmente improcedentes
Quanto a mim, tenho-o dito reiteradamente, a melhor explicação sobre a lógica da
programação televisiva – comercial, generalista e, cada vez mais, também da
televisão pública – foi há muito formulada num encontro de publicitários em Cannes
por Sílvio Berlusconi:
“A televisão não tem de fazer programas para o público. A sua função é vender
público aos anunciantes.”
4. Em função do conjunto de declinações e de derivas proposto – dizem, afinal,
respeito ao nosso mundo, foram estas, poderiam ter sido outras – não será excessivo
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inferir que a cultura, seja qual for o ângulo de observação, está vinculada à cidadania
e, como tal, é indissociável da ideia de democratização social. Por outro lado, mesmo
não sendo isso imediatamente perceptível, os episódios elencados prendem-se
igualmente com a imaginação criadora ou a falta dela. Mal iria o mundo se os seus
protagonistas deixassem de ser capazes de o imaginar diferente e se o pêndulo da
mudança se inclinasse irremediavelmente para o lado das fantasmagorias de MillánAstray, dos desvarios de Prokosh ou do estertor patético das vedetas da televisão.
Feito o comentário, que é subjectivo e opinativo, estas notas ficariam incompletas
sem uma brevíssima tentativa mais formal, digamos assim, de balizar a questão das
políticas da cultura, embora reiterando, sem ambiguidade, o pressuposto segundo o
qual as práticas culturais produzem efeitos políticos, do mesmo modo que os actos
políticos têm ressonância cultural. Evitando cair num registo meramente académico,
tomarei como referência textos de Diane Crane, de mim próprio e sobretudo de José
Madureira Pinto.
Em primeiro lugar, parece-me razoável ponderar a elaboração de uma tipologia da
cultura e elaborar sumariamente uma grelha de classificação das práticas culturais.
Seguidamente, procurarei fazer uma combinação de ambas por forma a que dela possa
resultar a possibilidade de identificação de princípios cujo valor instrumental seja
aplicável a hipóteses de políticas culturais.
Comecemos então pela questão da tipologia. De entre as diversas tentativas de
arrumação uma das mais pragmáticas será a de Diane Crane. Contrapõe ela à
dicotomia cultura popular/ cultura de elite ou alta cultura três tipos de organização
cultural, abreviadamente, a saber: um núcleo de cultura global (core domain),
disseminado pela comunicação em larga escala, nomeadamente pela televisão, e ao
qual estão expostos todos os cidadãos; a um nível intermédio situa-se uma cultura de
base nacional (peripheral domain), cujos destinatários podem ser diferenciados de
acordo com diversos critérios, entre os quais, por exemplo, a idade, o género e o estilo
de vida; a um terceiro nível encontra-se um núcleo de cultura urbana, muito presente e
com características muito próprias, para públicos locais específicos (urban culture).
Perante este quadro, Crane sustenta que a principal característica das dinâmicas
culturais contemporâneas é a existência de uma tensão entre, por um lado, a tendência
dos core media para dominarem todo o sistema de comunicação e cultura e, por outro,
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a constante proliferação de organizações culturais novas nos domínios periférico e
local.
Sendo este um ponto de partida, cuja pertinência é evidente para efeito da
classificação das práticas culturais, importa fazer seguidamente o levantamento de
duas questões: uma respeita aos modos de relação com os bens culturais; outra
contempla o reconhecimento dos espaços sociais de afirmação cultural com diferentes
graus de institucionalização e, como tal, com níveis desiguais de legitimidade. No
primeiro caso, avalia-se a maior ou menor interacção do indivíduo com os bens
culturais. Essa interacção pode variar entre um máximo de participação –
nomeadamente, com reflexos no saber fazer e no saber reconhecer, bem como naquilo
a que Barthes chamou o prazer do texto – e uma relação mais ou menos passiva com
os bens simbólicos em circulação. No segundo caso, os espaços de afirmação cultural
são muito diversificados posto que passam pelo espaço doméstico, pelo espaço
colectivo, no qual tem lugar um conjunto de práticas culturais que se confundem com
as vivências, rotinas e solicitações do quotidiano, pelo espaço das sub–culturas
emergentes e das indústrias culturais e, naturalmente, pelo espaço da cultura erudita
ou alta cultura.
O passo seguinte respeita ao cruzamento do modo de relação com os bens culturais e
o grau de institucionalização dos espaços culturais operação essa que, não sendo de
ciência certa, permite, ainda assim, identificar questões em função das quais é
possível pensar estrategicamente a democratização da cultura. Dada a diversidade e
conflitualidade das variáveis em jogo seria um erro adoptar uma linha de prescrições
fechadas sobre si próprias, eventualmente constrangedora da iniciativa dos principais
protagonistas, os cidadãos. Só a flexibilidade e abertura dos enunciados possibilita,
com efeito, a participação plena tantas vezes associada à descoberta de percursos
criativos insuspeitados.
Concluída esta base preliminar, na qual se agrupam as variáveis nucleares de qualquer
política cultural, resta apontar os seus três princípios basilares, todos eles
compaginados por critérios que relevam, essencialmente, do bom senso democrático.
O primeiro princípio remete para a indispensabilidade de criar e salvaguardar infraestruturas básicas, os espaços naturais onde possam desenvolver-se todas as formas de
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produção e criação artística, sejam elas quais forem: das mais eruditas e esteticamente
mais exigentes até às expressões mais ou menos espontâneas de competências
simbólicas e comunicacionais, como sugere Madureira Pinto, passando por
intervenções de grau intermédio com diferentes níveis de elaboração. Para efeito da
optimização dos recursos, parece vantajoso, neste caso, optar por um sistema em rede
com conexões seja no plano dos saberes, infra-estruturas e equipamentos, seja no
plano institucional articulando, por exemplo, o poder local e as associações culturais,
seja, ainda, promovendo o envolvimento das políticas da cultura e do ensino numa
base de complementaridade e de abertura à comunidade. Este princípio será tanto
mais
estimulante
quanto
melhor
souber
dar
acolhimento
a
dinâmicas
descentralizadoras por forma a permitir a afirmação das vocações criativas dos
diversos parceiros num contexto de progressiva autonomia.
O segundo princípio consagra a necessidade da não exclusão de determinados
segmentos populacionais, sobretudo as camadas populares, do contacto com obras
mais exigentes a pretexto de uma alegada incapacidade de descodificação e, portanto,
de fruição. A observância deste princípio requer uma atitude iconoclasta porque passa
pela dessacralização de uma produção simbólica cujo estatuto, as mais das vezes,
sendo legitimado por mediações especializadas, resulta de um processo objectivo de
fetichização concorrendo, nessa medida, para o aparecimento de círculos fechados
sobre si próprios e, portanto, sem potencial de democratização. Complementarmente,
uma vez que os produtos das indústrias culturais, acessíveis quer no espaço
doméstico, nomeadamente através dos meios audiovisuais, quer no espaço público
destinado ao lazer consumista, desempenham um papel de substituição e até de
compensação a essa cultura erudita que intimida, justificar-se-ia uma profanação
controlada, mas deliberada, dos lugares institucionais da criação de modo a gerar
empatia onde antes havia recusa e rejeição. Numerosas experiências testemunham o
êxito do envolvimento de pessoas habitualmente proscritas da esfera da criação
artística em iniciativas onde acabam por ter uma intervenção autónoma e autoenriquecedora com efeitos no processo de democratização cultural. O Porto 2001 –
Capital Europeia da Cultura foi exemplar nessa matéria.
Quanto ao terceiro princípio, limito-me a citar Madureira Pinto:
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“Procurar, através do apoio ao associativismo e da multiplicação de estudos culturais
mobilizadores de energias comunicacionais e da participação dos cidadãos, que o
tempo de não-trabalho e as actividades de lazer contribuam, no seu conjunto, não só
para contrariar as tendências da evasão e demissão cívicas (associadas, nas sociedades
contemporâneas, à encenação mediática da política e à individualização/ privatização
das práticas sociais), como ainda para permitir a sobrevivência e/ ou afirmação das
culturas dominadas (populares ou marginalizadas) e emergentes”.
Como resultará claro, ainda que sumariamente desenvolvido, este modelo de
actuação, dada a sua flexibilidade, permite uma série operativa de combinações e
recombinações das diferentes variáveis contrariando preconceitos e subvertendo
barreiras artificiais com reflexos no quotidiano e na qualidade de vida dos cidadãos,
Tratando-se de um modelo aberto promove a participação e, nessa medida, exige o
escrutínio porque a necessidade de ser permanentemente avaliado é condição mesma
da sua vitalidade. Também deve ficar claro, apesar da simplicidade aparente, que não
se fazem projectos deste tipo sem vontade politica, sem massa critica qualificada e
muito menos com políticos incultos.
Alegoria para os tempos que correm: Sócrates, os discípulos e a morte pelo veneno
Agustina Bessa Luís tem um aforismo magnífico a fazer lembrar Sócrates, o filósofo:
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“Pensar é o acto mais violento que há.”
Perante os sinais de desagregação de um sistema económico-social provavelmente em
vias de deixar de fazer sentido tal como o conhecemos pensar será, com toda a
certeza, um acto violento, mas indubitavelmente necessário. Pensar é um acto de
cultura. Cultura é cidadania. Cidadania é democracia. Por isso, quando o
entretenimento subsidiado e adjudicado ao mercado da evasão se afirma por vontade
politica como exclusivo das práticas culturais bom será que apareça alguém a dizer:
“Quando ouço alguém falar da legitimidade do exclusivo do mercado do
entretenimento como referência da produção simbólica tenho a obrigação de puxar
do livro de cheques para investir em cultura.”
Nota Final
Este texto, redigido sem preocupações de rigor estritamente académico de modo a permitir maior
largueza ao voo da imaginação, recolhe contribuições muito diversificadas que passam tanto por
informação disponível na internet - Wikipedia, Enciclopédia Britânica, diversos sites de cinema
com destaque para Senses of Cinema - quanto por algumas obras de referência das quais
destacaria Madureira Pinto (Uma Reflexão sobre Políticas Culturais - in Dinâmicas Sociais,
Cidadania e Desenvolvimento, Actas do Encontro de Vila do Conde, Associação Portuguesa de
Sociologia,) e Diane Crane (The Production of Culture - Media and the urban arts, Sage, Newbury
Park, London, 1992). Importantes foram igualmente os numerosos documentários americanos e
canadianos que nos últimos anos têm feito uma critica radical do sistema de media que opera
quer nos Estados Unidos, quer à escala global. A título de mero exemplo cito Manufacturing
Consent: Noam Chomsky and the media de Marc Achbar e Peter Wintonick, Outfoxed: Rupert
Murdoch’s war on journalism de Robert Greenwald e Weapons of Mass Deception de Danny
Schechter.
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