GUAVIRA LETRAS

Transcrição

GUAVIRA LETRAS
ISSN 1980-1858
GUAVIRA
LETRAS
Programa de Pós-Graduação em Letras
UFMS/Campus de Três Lagoas
Guavira Letras
Três Lagoas, MS
n. 19
403 p.
ago./dez.2014
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Reitora
Célia Maria da Silva Oliveira
Vice-Reitor
João Ricardo Filgueiras Tognini
Diretor do Campus de Três Lagoas
José Antônio Menoni
Editores
Rauer Ribeiro Rodrigues (Chefe)
Kelcilene Grácia Rodrigues (Adjunta)
Editoração e Diagramação
Rauer Ribeiro Rodrigues
Organizadores do Dossiê deste volume
Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa)
Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
Os autores são responsáveis pelo texto final, quanto
ao conteúdo e quanto à correção da linguagem.
© Copyrigth 2014 – os autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(UFMS, Três Lagoas, MS, Brasil)
G918
Guavira Letras: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras
/ Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e PósGraduação em Letras. – v. 19 (2. semestre, 2014), 403 p. - Três Lagoas, MS, 2014 Semestral.
Descrição baseada no: v. 11 (ago./dez/ 2010)
Tema especial: Literatura e Cultura Portuguesa: Diálogos, crítica, pensamento,
trânsito, (re)apropriações, outras vozes
Organizadores: Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa)
Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
Editor: Rauer Ribeiro Rodrigues
ISSN 1980-1858
1. Letras - Periódicos. 2. Estudos Literários
I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de
Graduação e Pós-Graduação em Letras. II. Título.
(Revista On-Line: http://www.pgletras.ufms.br/revistaguavira/revista_online.htm)
CDD (22) 805
_____________________________________________________________________________________
____________________
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
GUAVIRA LETRAS 19
Conselho Editorial
Eneida Maria de Souza (UFMG)
João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis)
José Luiz Fiorin (USP)
Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD)
Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara)
Maria José Faria Coracini (UNICAMP)
Márcia Teixeira Nogueira (UFCE)
Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG)
Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra – Portugal)
Roberto Leiser Baronas (UNEMAT)
Sheila Dias Maciel (UFMT)
Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM)
Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS)
Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália)
Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre)
Conselho Consultivo
Águeda Aparecida da Cruz Borges
Alexandre Huady Torres Guimarães
Amanda Eloina Scherer
Ana Lúcia Trevisan Pelegrino
Angela Stube
Angela Varela Pessoa Brasil
Arlinda Cantero Dorsa
Aurora Gedra Ruiz Alvarez
Beatriz Eckert-Hoff
Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento
Diana Luz Pessoa de Barros
Elisa Guimarães Pinto
Elzira Yoko Uyeno
Eunice Prudenciano de Souza
Fátima Cristina da Costa Pessoa
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4
Gloria Carneiro do Amaral
Graciela Inés Ravetti de Gómez
Ivânia Neves
João Cesário Leonel Ferreira
José Batista de Sales
José Guilherme dos Santos Fernandes
Kelcilene Grácia Rodrigues
Lília Silvestre Chaves
Lílian Lopondo
Luís Heleno Montoril del Castilo
Maralice de Souza Neves
Marcelo Módolo
Márcia Aparecida Amador Máscia
Márcia Regina do Nascimento Sambugari
Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões
Maria José Rodrigues Faria Coracini
Maria Lucia Marcondes C. Vasconcelos
Maria Luiza Guarnieri Atik
Mariana de Souza Garcia
Marilúcia Barros de Oliveira
Mário Cezar Silva Leite
Marisa Philbert Lajolo
Marlon Leal Rodrigues
Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos
Rauer Ribeiro Rodrigues
Regina Celia Fernandes Cruz
Regina Helena Pires de Brito
Regina Mutti
Ronaldo de Oliveira Batista
Sílvio Augusto de Oliveira Holanda
Simone de Souza Lima
Simone de Souza Lima
Tania Maria Sarmento-Pantoja
Thomas Massao Fairchild
Valéria Augusti
Vera Lucia Harabagi Hanna
Véronique Marie Braun Dahlet
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5
Todos os pareceristas são professores doutores. Os
laudos, circunstanciados, foram — quando
necessário — enviados aos autores, para que os
artigos passassem por revisão, correções e ajustes.
Os artigos que compõem esta edição foram
recebidos ou reapresentados no segundo
semestre de 2014 e aprovados até meados
de dez./2014.
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APRESENTAÇÃO
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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DIÁLOGOS COM A LITERATURA E A
CULTURA PORTUGUESA
Guavira Letras 19 - Apresentação
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)
Editor-Chefe da Guavira Letras
Este número da Guavira Letras reúne, no
Dossiê “Literatura e Cultura Portuguesa: Diálogos,
crítica, pensamento, trânsito, (re)apropriações, outras
vozes”, organizado pelos Professores Pablo Javier
Pérez López (Universidade Nova de Lisboa) e Rosana
Cristina Zanelatto Santos (UFMS), congrega trabalhos
sob as seguintes diretrizes:
1. Diálogos.
2. Crítica.
3. Pensamento.
4. Trânsitos.
5. Outros textos, outras vozes.
6. (Re) apropriações.
A edição se apresenta com ensaios, análises e
estudos dos pesquisadores Benjamin Abdala Junior,
Consuelo de Paiva Godinho Costa, Michael Douglas
Silva Dias, Edvaldo A. Bergamo, Elias J. Torres Feijó,
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8
Laura Cavalcante Padilha, Isabel Cristina Rodrigues,
Jane Tutikian, Manuel Ferro, Maria do Amparo
Tavares Maleval, Tatiana Batista Alves, Luciana
Ferreira Leal, Antonio Cardiello, Pablo Javier Pérez
López, Filipa de Freitas, Ana Paula Arnaut, Petar
Petrov, Teresa Cristina Cerdeira e Maurício Silva. Traz,
ainda, na Seção de tema livre, estudos de Suzel Domini
dos Santos e Susanna Busato, e de Kamila Rodrigues
Lima e Tânia Sarmento-Pantoja.
Entre os autores estudados, Fernando Pessoa e
seus heterônimos, Saramago, Vergílio Ferreira,
Camões, Ana Miranda, Conceição Lima, Gil Vicente,
Eça, sem esgotar a lista; os temas vão da guerra ao
feminismo, da lírica à narrativa, da tradição à
modernidade.
Acrescente-se estudos de lín gua portuguesa,
comparativo de autoras latino-americanas e de
semioses distintas, e temos um volume que une o
prazer do estudo ao prazer da leitura.
Confira a seguir.
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SUMÁRIO
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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Guavira Letras 19
julho/2014
Guavira Letras 19 - Apresentação
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Rauer Rbeiro Rodrigues (UFMS)
DOSSIÊ
Literatura e Cultura Portuguesa: Diálogos, crítica, pensamento,
trânsito, (re)apropriações, outras vozes
Organizadores:
Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa)
Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
O FATALISMO DA POBREZA(?): O MIÚDO PORMENOR
INTERESSA À HISTÓRIA (LEVANTADO DO CHÃO, DE
JOSÉ SARAMAGO)
Ana Paula Arnaut
15
A LITERATURA, A POLÍTICA E O COMUNITARISMO
SUPRANACIONAL
Benjamin Abdala Junior
35
O ROMANCE HISTÓRICO DA COLONIZAÇÃO
PORTUGUESA DO BRASIL: O RETRATO
DO REI, DE ANA MIRANDA
Edvaldo A. Bergamo
62
A QUESTÃO AFRICANA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA
PORTUGUESA E A SUA CONFIABILIDADE: O CASO DA
HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA DE
ANTÓNIO J. SARAIVA E ÓSCAR LOPES
Elias J. Torres Feijó
73
ENTRE-DOIS: TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NA NARRATIVA
106
PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
Isabel Cristina Rodrigues
124
O POEMA “PORTA ABERTA TOCHA ACESA”, DE
CONCEIÇÃO LIMA
Jane Tutikian
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
11
DO SILÊNCIO À CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA
FEMININA DAS GUERRAS EM ÁFRICA
Laura Cavalcante Padilha
143
A TRADIÇÃO E (RE)APROPRIAÇÃO DOS CLÁSSICOS NA
PÓS-MODERNIDADE: O CASO EXEMPLAR DO DIÁLOGO
DA LUSOFONIA COM CAMÕES E A OBRA CAMONIANA
Manuel Ferro
153
DA RETÓRICA DO FRANCISCANISMO NAS MORALIDADES
DE GIL VICENTE
Maria do Amparo Tavares Maleval
175
IBERIA Y BRASIL EN FERNANDO PESSOA
Pablo Javier Pérez López
192
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA EM QUESTÃO: ENSAIO
SOBRE A CEGUEIRA E ENSAIO SOBRE A
207
LUCIDEZ, DE JOSÉ SARAMAGO
Petar Petrov
POÉTICA CORPORAL E ERÓTICA VERBAL:
A ESCRITA DE JOSÉ SARAMAGO
Teresa Cristina Cerdeira
223
ÁLVARO DE CAMPOS: DÚVIDAS E QUESTÕES DE MÉTODO
Antonio Cardiello
243
ÁLVARO DE CAMPOS: AS DISPOSIÇÕES DO POETA NA ODE
269
MARÍTIMA
Pablo Javier Pérez López
Filipa Freitas
A EFABULAÇÃO TRÁGICA EM A TRAGÉDIA DA RUA DAS
FLORES E OS MAIAS
Luciana Ferreira Leal
297
A FICÇÃO DO PORTUGUÊS
316
Tatiana Batista Alves
337
VERGÍLIO FERREIRA E O ESPANTO DE EXISTIR:
UMA INTERPRETAÇÃO DE APARIÇÃO
Maurício Silva
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
12
345
O ACENTO NO PORTUGUÊS DO BRASIL: ANÁLISE
ACÚSTICA DOS GRAUS DE TONICIDADE EM
DIFERENTES POSIÇÕES SILÁBICAS
Consuelo de Paiva Godinho Costa
Michael Douglas Silva Dias
DIVERSOS
Estudos Linguísticos
Estudos Literários
ESTUDO COMPARADO ENTRE CIRANDA DE PEDRA E A
CASA DOS ESPÍRITOS: A LITERATURA E O PENSAMENTO
PÓS-GUERRA NA PROSA LATINO-AMERICANA
Kamila Rodrigues Lima
Tânia Sarmento-Pantoja
358
RENÉ MAGRITTE E MANOEL DE BARROS:
INTERSECÇÕES ENTRE PINTURA E POESIA
Suzel Domini dos Santos
Susanna Busato
380
NORMAS PARA SUBMISSÃO
397
403
Contato
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DOSSIÊ
Literatura e Cultura Portuguesa: Diálogos, crítica,
pensamento, trânsito, (re)apropriações, outras vozes
Organizadores:
Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa)
Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
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O FATALISMO DA POBREZA(?): O MIÚDO
PORMENOR INTERESSA À HISTÓRIA
(LEVANTADO DO CHÃO, DE
JOSÉ SARAMAGO)
Ana Paula Arnaut 1
RESUMO: Partindo da análise de alguns excertos de Levantado do
Chão, propomo-nos avaliar as estratégias utilizadas por José Saramago
para veicular a ideia de manutenção de quadros opressivos (e de
pobreza) no latifúndio alentejano do Portugal do Estado Novo. Em
simultâneo, verificaremos a evolução da tomada de consciência de
classe trabalhadora e as implicações ideológicas daí decorrentes.
Palavras-chave: Miséria; Opressão; Dor; Ideologia; Revolta.
ABSTRACT: Beginning with an analysis of selected extracts
from Levantado do Chão, we propose to evaluate José Saramago’s
strategies for conveying a sense of how the structures of oppression on
the great landed estates of Portugal’s Alentejo region (and in
consequence poverty) were maintained during the years of the Estado
Novo (the ‘New State’). At the same time we will examine the
development of class consciousness among the workers of that region
and the implications that arise from it.
Key words: Misery; Oppression; Suffering; Ideology; Revolt
Os meus heróis / Prezo os símbolos, o rasto e
os sinais / da minha nostalgia portuguesa. Mas /
os meus heróis verdadeiros não vêm na
história, / não têm monumentos nas praças
domingueiras / nem dias feriados a lembrarlhes o nome, / são heróis dos dias úteis da
1
Centro de Literatura Portuguesa / Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra.
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semana / levantam-se antes do sol e recolhem
apenas / quando a noite se fecha nos seus
olhos, / lavram a terra, o mar, e são jograis /
colhendo a virgindade pudica da vida, / sobem
aos andaimes, descem às minas / e comem
entre dois apitos convulsivos / um caldo de
lágrimas antigas, / são os construtores do meu
país à espera / mouros no trabalho e cristãos na
esperança / famintos do futuro, como se a
madrugada / fosse a seara imensa apetecida /
onde o sol desponta nas espigas
sobre o casto silêncio da montanha.
António Arnaut, in Recolha poética (19542004)
Os meus heróis verdadeiros não são, também, os heróis que a
História oficial se encarregou de não esquecer e de não fazer
esquecidos. São-no, pelo contrário, aqueles que uma certa Literatura
tem vindo gradualmente a recuperar, concedendo-lhes honras de
primeiro plano narrativo e, desse modo, impondo a sua presença em
memórias individuais que, em tudo, contribuem para a construção da
memória coletiva.
Talvez devêssemos, então, incorporar neste nosso breve estudo
algumas das mais conhecidas obras do Neorrealismo, pelo que nelas se
configura em “batalha pela dignificação dos homens aviltados”, em
denúncia da “exploração descarnada do homem pelo homem”, tomada
“nos seus aspetos mais crus, na lâmina viva do dia-a-dia”, como
escreveu Alves Redol (REDOL, 1965, p. 22 e 28). Talvez devêssemos
avaliar a forma como se acentua a pragmática ideológica, como se dá
conta das desigualdades sociais, do abismo existente entre ricos e
pobres, em romances como Gaibéus (1939), do já citado Alves Redol,
ou Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes, para mencionar apenas
dois dos mais importantes nomes de neorrealistas portugueses.
Talvez devêssemos, ainda, proceder a uma ilustração objetiva de
que, como um dia escreveu Josué de Castro, a pobreza, ou na sua
dimensão mais estreita, “a fome[,] não é um fenómeno natural e sim
um produto artificial de conjunturas económicas defeituosas: um
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produto de criação humana e portanto capaz de ser eliminado pela
vontade criadora do homem” (CASTRO, 1960, p. 26). Porém, não o
faremos. Ou melhor, fá-lo-emos, mas recorrendo, antes, a um romance
que, embora com evidentes afinidades com o Neorrealismo, faz já
parte de uma outra ordem estética: a do Post-Modernismo.
No romance que abordaremos, Levantado do Chão, de José
Saramago, a temática da pobreza, entendida em primeira instância no
seu plano material, traduzir-se-á, ainda, no uso de estratégias
simbólicas profundamente significativas no que toca à ideologia do
autor e permitirá, também, convocar, em segunda instância, uma outra
variante: a que se refere à sua dimensão intangível, isto é, a que
respeita à pobreza de espírito e à(s) reapropriação(ões) da dignidade do
Homem, resultado, sempre, afinal, de ancestrais desejos materiais que
transformam o ser humano em predador do seu semelhante. E, por
isso, falaremos, necessariamente, de dor, ou, de modo mais explícito,
de representações literárias da dor e, naturalmente, da forma como se
constroem os dignos heróis de um mundo que se quer livre, justo e
fraterno.
Assim, é certo que o romance de 1980 (aqui citado a partir da 3ª
edição de 1982) oferece, desde o início, com a geração de Domingos
Mau-Tempo, a hipótese de lermos relatos que, de modo claro e
objetivo, denunciam a fome e a miséria da classe trabalhadora. Tal
sucede quando sabemos, por João Mau-Tempo, e por oposição ao
“latifúndio [que] alimentava a família com largos excedentes”
(SARAMAGO, 1982, p. 54), da necessidade de o seu irmão Anselmo
pedir esmola porque a “mãe não tem dinheiro para o avio”
(SARAMAGO, 1982, p. 52), ou quando o narrador dá conta de que o
dinheiro que conseguiam juntar dava, apenas, para “não gemerem de
fome constante” (SARAMAGO, 1982, p. 60), ou, ainda, quando, de
forma pungente, se apresenta o conflito que, por questões salariais,
opõe os trabalhadores do norte e os do sul:
Dizem os do norte, Temos fome. Dizem os do
sul, Também nós, mas não queremos sujeitarnos a esta miséria, se aceitarem trabalhar por
este jornal, ficamos nós sem ganhar. Dizem os
do norte, A culpa é vossa, não sejais soberbos,
aceitai o que o patrão oferece, antes menos que
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coisa nenhuma, e haverá trabalho para todos,
porque sois poucos e nós vimos ajudar. Dizem
os do sul, É um engano, querem enganar-nos a
todos, nós não temos que consentir neste
salário, juntem-se a nós e o patrão terá de pagar
melhor jorna a toda a gente. Dizem os do norte.
Cada um sabe de si e Deus de todos, não
queremos alianças, viemos de longe, não
podemos ficar aqui em guerras com o patrão,
queremos trabalhar. Dizem os do sul, Aqui não
trabalham. (...) Então o primeiro do norte
avançou para o trigo com a foice, e o primeiro
do sul deitou-lhe a mão ao braço, empurraramse sem agilidade, rijos, rudes, brutos, fome
contra fome, miséria sobre miséria, pão que
tanto nos custas (SARAMAGO, 1982, p. 3738).
Outros exemplos, entre muitos, podem ser colhidos quando se
expõem as assimetrias sociais e, progressivamente, o jogo de forças
entre opressores e oprimidos. Recordem-se, a propósito, os episódios
que envolvem os grevistas (inicialmente constituído por Manuel
Espada, Augusto Patracão, Felisberto Lampas e José Palminha e,
depois, engrossado com nomes de outros trabalhadores, como João
Mau-Tempo (cf. SARAMAGO, 1982, p. 101, 103, 142-145), ou
relembrem-se, em concomitância, duas citações que contêm, ainda, a
ideia da manutenção e da fatalidade da pobreza:
Então, porque entre o latifúndio monárquico e
o latifúndio republicano não se viam diferenças
e as parecenças eram todas, porque os salários,
pelo pouco que podem comprar, só serviam
para acordar a fome, houve aí trabalhadores
que se juntaram, inocentes, e foram ao
administrador do concelho pedir melhores
condições de vida (SARAMAGO, 1982, p. 34).
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Não mudaram as coisas depois de Lamberto
Horques (SARAMAGO, 1982, p. 115),
numa referência ao episódio em que, quinhentos anos antes, um dos
estrangeiros que viera com o “alcaide-mor de Monte Lavre” obriga
uma donzela a deitar-se com ele (SARAMAGO, 1982, p. 24).
Se os comentários que acabamos de apresentar se revelam
ilustrativos da existência de linhas de objetividade narrativa (que,
porém, sempre denunciam a sensibilidade de quem escreve), outros há
mais elaborados e mais trabalhados artisticamente. Comentáriosrelatos onde a pobreza e a dor não são manifestamente expressas, mas
que antes se adivinham nas entrelinhas de jogos simbólicos, de
comportamentos e de estados de espírito.
Atentemos, a título de exemplo, que, mais uma vez ilustra o
carácter continuado (a fatalidade?) da pobreza, no seguinte excerto:
O latifúndio é um mar interior. Tem seus
cardumes de peixe miúdo e comestível, suas
barracudas e piranhas de má morte, seus
animais pelágicos, leviatãs ou mantas
gelatinosas, uma bicheza cega que arrasta a
barriga no lodo e morre sobre ele, e também
grandes anéis serpentinos de estrangulação. É
mediterrânico mar, mas tem marés e ressacas,
correntes macias que levam tempo a dar a volta
inteira, e às vezes rápidos surtos que sacodem a
superfície, são rajadas de vento que vem de
fora ou desaguamentos de inesperados fluxos,
enquanto na escura profundidade se enrolam
lentamente as vagas, arrastando a turvidão da
nutriente vasa, há quanto tempo isto dura.
São comparações que tanto servem como
servem pouco, dizer que o latifúndio é um mar,
mas terá sua razão de fácil entendimento, se
esta água agitarmos, toda a outra em redor se
move, às vezes de tão longe que os olhos o
negam, por isso chamaríamos enganadamente
pântano a este mar, e que o fosse, muito
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enganado vive quem de aparências se fia,
sejam elas de morte.
(…)
A este mar do latifúndio chegam ressacas,
pancadas, empurrões das águas, é quanto às
vezes basta para derrubar um muro, ou
simplesmente saltá-lo, como em Peniche
soubemos que aconteceu, por aqui se vê como
sentido tem virmos nós falando de mar, que
Peniche é porto de pescadores, e forte prisional,
mas fugiram, e deste fugimento muito se irá
falar no latifúndio, qual mar, qual nada, o que
isto é, é terra as mais das vezes seca, por isso é
que os homens dizem, Quando será que
matamos a sede que temos, e a outra que
tiveram os nossos pais, e mais a que debaixo
desta pedra se prepara para os filhos que
havemos de ter, se assim será. Chegou a
notícia que não foi possível ocultar, e o que os
jornais não disseram não faltou quem
explicasse, debaixo deste sobreiro nos
sentemos, esta é a informação que tenho. É a
ocasião de levantarem mais alto voo os
milhanos, gritam sobre a grande terra, quem os
entendesse muito haveria de contar, por agora
baste-nos esta linguagem de homens. Por isso é
que dona Clemência pode dizer ao padre
Agamedes, Acabou-se o sossego que nunca
houve, parece uma contradição, e contudo
nunca esta senhora foi tão certa no seu falar,
são os tempos novos que estão a vir muito
depressa, Isto parece uma pedra a rolar pela
encosta do monte, assim lhe respondeu o padre
Agamedes porque não gosta de empregar as
palavras próprias, ficou-lhe o hábito do altar,
mas enfim tenhamos nós a evangélica caridade
de o entender, quer ele dizer na sua que se não
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se afastarem do caminho da pedra, sabe Deus o
que acontecerá, perdoemos-lhe esta nova
negaça, bem se vê que não é preciso esperar
por Deus para saber o que acontece a quem se
deixar ficar no caminho da pedra que rola, nem
cria
musgo
nem
poupa
Lamberto
(SARAMAGO, 1982, p. 319-320) (destacados
nossos).
Como já escrevemos em outra ocasião2, os sentidos implícitos no
primeiro parágrafo apresentam-se sob a forma de uma alegoria em que
a vida no latifúndio é veiculada através da imagem do mar interior.
Neste encontramos: “cardumes de peixe miúdo e comestível”
(trabalhadores), “barracudas e piranhas” (latifundários, os -bertos,
feitores), “animais pelágicos, leviatãs ou mantas gelatinosas”
(representantes da igreja/guarda, criada e sustentada para bater no
povo). Esse mar/latifúndio contém, enfim, “uma bicheza cega que
arrasta a barriga no lodo e morre sobre ele” – deste modo se
(re)inscrevendo a manutenção do quadro social opressivo – e,
“também[,] grandes anéis serpentinos de estrangulação”. Estes são
passíveis de ser entendidos em duplo sentido: por um lado, podem
remeter para a opressão exercida pelos senhores e seus acólitos e, por
outro lado, podem aludir à revolta que vai germinando no seio da
classe oprimida.
Note-se, no entanto, que, na impossibilidade de falar de todos
aqueles que sofreram na pele a indignidade de um tratamento subhumano (SARAMAGO, 1982, p. 152) é, essencialmente, a partir das
vidas dos Mau-Tempo (quatro gerações, desde antes da Primeira
República até à Revolução de Abril de 1974 e à subsequente ocupação
das terras) que o leitor toma conhecimento das misérias vividas e das
atrocidades sofridas. Em termos mais particulares, podemos dizer,
ainda, que é em João Mau-Tempo que se centra a ilustração da tomada
de uma consciência político-social.
2
Ver ARNAUT, 2002.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
21
É ele o símbolo de todo um povo-bonifrate que, antes de se
consciencializar de que a união faz a força, unindo-se em “cardumes
de peixe-miúdo” que sacudirão as águas do latifúndio pela oposição
aos senhores sem rosto (SARAMAGO, 1982, p. 96), parece aceitar ter
sido feito “para viver sujo e esfomeado” (SARAMAGO, 1982, p. 73),
para viver oprimido pela santíssima trindade (igreja, estado e
latifúndio, (SARAMAGO, 1982, p. 223-224 e 119) num longo espaçotempo em que, todavia, se verificam as tais “marés e ressacas,
correntes macias que levam tempo a dar a volta inteira, e às vezes
rápidos surtos que sacodem a superfície”. Surtos de revolta passiva,
como a que decorre nos encontros clandestinos na Terra Fria
(SARAMAGO, 1982, p. 205-213); surtos de revolta mais ativa, como
a que ocorre depois de chegada a República (SARAMAGO, 1982, p.
33 ss) ou como a protagonizada por Manuel Espada, Augusto Patracão,
Felisberto Lampas ou José Palminha (SARAMAGO, 1982, p. 103 ss) e
por causa da qual “virá a guarda buscá-los pelas orelhas e a pontapé no
rabo” (SARAMAGO, 1982, p. 104), por causa da qual, também, não
arranjarão patrão nem trabalho (SARAMAGO, 1982, p. 108). Revoltas
várias, portanto, que culminarão no confronto que ocorre em
Montemor, em 23 de Junho de 1958 e onde é assassinado José Adelino
dos Santos (SARAMAGO, 1982, p. 313-316).
O mar do latifúndio não foi, nunca, pois, um pântano, já que os
“cardumes de peixe miúdo” sempre se encarregaram de agitar as
águas, de mudar as marés e de, perseverantemente, tentar trazer novos
ventos a esse opressivo e hipócrita continuum espácio-temporal. Um
continuum de violação aos mais elementares direitos do Homem que
não é dado, apenas, pela exposição repetida das duras condições de
vida dos trabalhadores. O poder continuado, ancestral, dos que
controlam os homens tornados bonifrates é passível de ser lido
simbolicamente através do exercício de uma estratégia bem peculiar.
Referimo-nos, em primeiro lugar, ao facto de o nome dos latifundiários
apresentar o mesmo segundo elemento: -berto (Norberto, Alberto,
Dagoberto, Sigisberto, Adalberto, Ansberto, Gilberto, Contraberto,
Angilberto, Floriberto, ou, tão somente, Berto – SARAMAGO, 1982,
p. 139, 196). Numa linha extensional, a manutenção do quadro
opressivo decorre, ainda, do facto de espaços e situações do passado
recente serem nomeados com vocábulos que remetem para um espaçoGUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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tempo de um passado remoto. Assim acontece quando, na insurreição
de 23 de Junho, em Montemor, se “ouve gritar do castelo” o “Matemnos a todos” (SARAMAGO, 1982, p. 315); assim acontece, também,
quando, já depois da revolução, se refere estar “toda a dinastia de
Lamberto Horques” “reunida em cortes, ou sentada ao redor de suas
távolas redondas” (SARAMAGO, 1982, p. 354) (destacados nossos).
O mesmo tipo de estratégia é aplicado ao nome das mulheres dos
-bertos, as que brincam à caridadezinha e à santa compaixão à quartafeira e ao sábado. Também a estas é atribuído o mesmo irónico nome –
Clemência. De uma dona Clemência diz o narrador ser a “esposa e o
cofre de virtudes desde Lamberto ao último Berto” (note-se que, no
caso, a relação de superioridade é simbolicamente lida no facto de a
esmola distribuída vir de um nível superior àquele em que se
encontram as crianças que pedem, através de uma lata pendurada por
um cordel; além disso, o narrador sublinha que a caridadezinha
praticada decorre mais do desejo de assegurar a salvação da alma do
que propriamente de razões humanitárias – SARAMAGO, 1982, p.
187-189);
De modo semelhante, em terceiro lugar, também o padre mantém
o nome inalterado – Agamedes era na geração de Domingos,
Agamedes continua a ser na geração de João e de Maria Adelaide
Mau-Tempo (a confirmação, praticamente desnecessária, vem do
próprio narrador, (SARAMAGO, 1982, p. 219). O mesmo parece
acontecer, em quarto lugar, com um dos representantes do poder
estatal, na pessoa do tenente Contente, zeloso defensor dos
latifundiários no início do século e não menos zeloso repreendedor do
povo em geração posterior à de Domingos (SARAMAGO, 1982, p. 34,
162, 311, por exemplo).
A história contada por Sigismundo Canastro (SARAMAGO,
1982, p. 228-229) no casamento de Manuel Espada com Gracinda
Mau-Tempo acaba, então, por poder ser lida como a metáfora das
tensões entre opressores e oprimidos, entre os dois sentidos que
atribuímos aos “anéis serpentinos de estrangulação”. O esqueleto do
cão Constante, com o nariz esticado, a pata levantada a marrar o
esqueleto da perdiz retrata a perseverança dos trabalhadores na sua
luta.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
23
Esta perseverança é provocada por uma progressiva tomada de
consciência de que é necessário passar de um estado de submissão a
um estado de rebelião, de que é essencial acabar com o sossego “que
nunca houve”, provocar a vinda dos “tempos novos”, qual pedra que
rola encosta abaixo sem criar musgo nem poupar Lamberto. Referência
que, claramente, remete para o desfecho da Ação, para esse dia
“levantado e principal” da ocupação das terras; o mesmo dia em que
João Mau-Tempo porá “o seu braço de invisível fumo por cima do
ombro de Faustina”, acompanhando assim tantos “outros de quem não
sabemos os nomes, mas conhecemos as vidas (...), os vivos e os
mortos” (SARAMAGO, 1982, p. 365-366), unidos na tentativa de
fazer cumprir o seu tempo...
Antes que chegue, contudo, a ocasião de “levantarem mais alto
voo os milhanos”, João Mau-Tempo, como já dissemos o representante
dos “cardumes de peixe miúdo e comestível”, o cão que marra contra a
perdiz, deverá passar por um processo lento e difícil de heroicização,
de aquisição de uma consciência social e política. Esta, depois de uma
fase respeitante à falta de forças para discordar do poder
(SARAMAGO, 1982, p. 90, 95), levará à instalação do gérmen da
revolta (SARAMAGO, 1982, p. 119-120) e completar-se-á pela
informação, e também pela formação, que recebe dos papéis que lê e
do que ouve nos encontros clandestinos (SARAMAGO, 1982, p. 141),
até que, finalmente, depois de anos a sentir na pele a indignidade de
um tratamento que não mata a sede (que, vinda do passado, se estende
pelo presente e se projeta no futuro), conscientemente se verbaliza a
insubmissão e a revolta: “Ficará a seara no pé, que nós não vamos por
menos” (“trinta e três escudos” a jorna) (SARAMAGO, 1982, p. 141)
(ARNAUT, 1996, p. 33-34).
Paralelamente ao tratamento da temática da opressão exercida
pela santíssima trindade, da consequente revolta dos trabalhadores e da
não menos consequente exposição dos valores de liberdade e de
igualdade, outras linhas temáticas se consubstanciam no excerto
apresentado. Referimo-nos, agora, quer à denúncia da censura
existente no regime ditatorial quer ao ateísmo tantas vezes confesso de
José Saramago.
A problemática englobante da censura, ou, se preferirmos, dos
diversos tipos de censura obliquamente denunciada ao longo do
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
24
romance através dos vários modos da repressão exercida, aflora
claramente no excerto apresentado a propósito dessa “notícia que não
foi possível ocultar”, mesmo não tendo os jornais fornecido as
informações devidas. A notícia, clandestinamente explicada sob um
qualquer sobreiro (SARAMAGO, 1982, p. 320), é a da fuga de Álvaro
Cunhal (e de outros militantes da esquerda oposicionista ao regime de
Salazar) do Forte prisional de Peniche, em 3 de Janeiro de 1960. Um
‘saltar do muro’ que não se pretende noticiado com demasiados
pormenores, pois a sobrevivência do sistema opressivo/de exploração
social passa pelo facto de se manter o trabalhador alienado, na
ignorância – “A grande e decisiva arma” (SARAMAGO, 1982, p. 72)
– de que, algures, outros lutam também para trazer novas marés e
novos ventos ao país.
Menos claro no excerto, mas subliminar e ironicamente
apresentado na globalidade da tessitura narrativa é a crítica à pobreza
de espírito de um Deus e de uma religião que, ao invés de se colocar ao
lado dos mais desfavorecidos, se posiciona do lado dos poderosos.
Relembre-se a convivência do padre Agamedes com os -bertos, note-se
o comentário à ausência de necessidade de esperar por Deus “para
saber o que acontece a quem se deixar ficar no caminho da pedra que
rola” (SARAMAGO, 1982, p. 320); registe-se a desalentada, dolorosa
e irónica constatação de que “a prova de que Deus não existe é não ter
feito os homens carneiros, para comerem as ervas dos valados, ou
porcos para a bolota” (SARAMAGO, 1982: 79).
A presidir a este e a outros comentários afins que, de diversas
maneiras, ilustram a estupidez humana, encontra-se um narrador
claramente preocupado em pautar o romance quer por alusões a
personagens e entidades reais (Salazar, Germano Santos Vidigal, a
PIDE), quer por efemérides acreditadas pela História oficial (a
implantação da República, as duas Grandes Guerras ou a Revolução de
Abril de 1974).
Tal como acontece em outros romances do autor, também neste é
a arraia-miúda que sobe para primeiro plano. O que de facto parece
interessar é dar voz aos mais desfavorecidos, seja diretamente, seja por
via dos comentários de um narrador ideologicamente empenhado em
contar o outro lado da História, até porque, “tudo isto pode ser contado
de outra maneira” (SARAMAGO, 1982, p. 14). E nesta outra maneira
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
25
contam-se os triviais pormenores que não interessariam à História
oficial. De acordo com o próprio autor, corrige-se a História, não no
sentido de “corrigir os factos da História, pois essa nunca poderia ser
tarefa do romancista, mas sim de introduzir nela pequenos cartuxos
que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras
palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido” (SARAMAGO,
1990, p. 19).
E nessa substituição fica bem patente, pela ironia ou pelos
elementos simbólicos usados, a dor dos trabalhadores, obrigados a
trabalhar de sol a sol por mísero salário, e, evidentemente, a dor do
autor, ou do narrador por ele, ao constatar o quadro opressivo em que
se vive no grande espaço do latifúndio. Fica ainda bem clara a dor
sentida pela alienação dos trabalhadores, já que, sendo “a ignorância”
“a grande e decisiva arma” em que se tenta manter o povo, o latifúndio
consegue roubar os indivíduos/trabalhadores a si mesmos, não lhes
permitindo, pela instrução, desenvolver a sua personalidade e, por
consequência, reconhecer as injustiças e os desajustes sociais do
mundo em que vivem. Significativa a este propósito, num registo cujo
tom oscila entre o humor dorido e o desencanto, é a perplexa resposta
da mãe da criança (bem como o comentário do pai) que, ingenuamente,
se interroga sobre o facto de o povo não ter quem o defenda:
Mas diga-me, senhora mãe, bate também a
guarda nos donos do latifúndio, Credo, que esta
criança não regula bem da cabeça, onde é que
tal se viu, a guarda, meu filho, foi criada e
sustentada para bater no povo, Como é
possível, mãe, então faz-se uma guarda só para
bater no povo, e que faz o povo, O povo não
tem quem bata no dono do latifúndio que
manda a guarda bater no povo, Mas eu acho
que o povo podia pedir à guarda que batesse no
dono do latifúndio, Bem digo eu, Maria, que
esta criança não está em seu juízo, não a deixes
andar por aí a dizer estas coisas, que ainda
temos trabalhos com a guarda (SARAMAGO,
1982, p. 72-73).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
26
Registe-se, também, extensionalmente, a dor, de um narrador que
se sente indignado pela opressão religiosa exercida sobre os
trabalhadores, numa linha temática ilustrada quer através da aceitação
de que, como tranquilamente diz Sigisberto, “Foi Deus que quis assim
as coisas” (SARAMAGO, 1982, p. 72), quer, de modo (mais)
recorrente, através do controle exercido pelo padre Agamedes. Este,
nos seus sermões, encarrega-se de caucionar a ordem estabelecida,
pregando a obediência “aos que mais sabem da vida e do mundo” e,
por conseguinte, fazendo do púlpito lugar de combate (contra)ideológico, recomendando (num registo discursivo semelhante ao do
tenente Contente por ocasião da libertação dos conspiradores –
SARAMAGO, 1982, p. 163) a que não deem “ouvidos a esses diabos
vermelhos que andam por aí a querer a nossa infelicidade, que não foi
para isso que Deus criou a nossa terra”. Na tentativa de conservar
aquela sua terra “no regaço amantíssimo da Virgem Maria, e dirigindose em particular aos que não têm coragem para o fazer no posto da
guarda (contrariando aberta e assumidamente a lei do sigilo), oferece o
confessionário como espaço de denúncia dos que os querem
“desencaminhar com falinhas mansas” (SARAMAGO, 1982, p. 120).
Mas é, sem dúvida, no episódio da tortura de Germano Santos
Vidigal que melhor se patenteia a dor causada pela violência e pela
pobreza de espírito, agora respeitante a uma polícia política, a PIDE,
encarregada de garantir uma ordem só conveniente para alguns.
Vejamos a citação, longa mas necessária:
Tomemos esta formiga, melhor, não a
tomemos, que seria pegar-lhe, consideremo-la
apenas por ser uma das maiores e levantar a
cabeça como os cães (...). Caiu o homem outra
vez. É o mesmo, disseram as formigas (…),
não há confusão possível, porque será que é
sempre o mesmo homem que cai, então ele não
se defende, não se bate. São critérios de
formiga e sua civilização, ignoram que a luta
de Germano Santos Vidigal não é com os seus
espancadores Escarro e Escarrilho, mas com o
seu próprio corpo, agora a fulminante dor entre
as pernas, testículos em linguagem de manual
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
27
de fisiologia, colhões neste grosseiro falar que
mais facilmente se aprende (…). A formiga
maior deu a volta ao que faltava de parede (...),
vai decorrer seu tempo antes que volte e então
achará tudo mudado, é um modo de dizer, três
continuam a ser os homens, mas os dois que
não caem nunca entretêm-se (…) a empurrar o
outro contra a parede, agarram nele pelos
ombros e atiram-no de cambulhão e então é
conforme calha, ou bate de costas e vai dar
com a cabeça em cheio, ou vai de frente e é o
pobre rosto já pisado que se estampa na cal e
nela deixa ficar, não muito, algum sangue,
deste que lhe corre da boca e da arcada direita.
E se aí o largam escorrega sem sentido, o
sangue não, o homem, pela parede abaixo, até
ficar no chão enrodilhado, ao lado do carreirito
das formigas, de repente assustadas ao sentirem
cair aquela grande massa do alto, que afinal
não as atinge nem de raspão. E pelo tempo que
ali o deixaram ficar, uma formiga se lhe
agarrou à roupa, quis vê-lo de mais perto, a
estúpida, vai ser a primeira a morrer, porque no
preciso lugar onde agora está cai a primeira
cacetada, a segunda já não a sente, mas sente-a
o homem, que, com a dor, não ele, mas o
estômago lhe salta, e outra vez se derruba, em
ânsias, é o estômago, o violento coice em cheio
ou patada e outro logo a seguir nas partes,
palavra tão de comum que não ofende os
ouvidos. (...) a formiga grande, que calhou
estar na sua sétima viagem e vai agora a passar,
levanta a cabeça e olha a grande nuvem que
tem diante dos olhos, mas depois faz um
esforço, ajusta o seu mecanismo de visão e
pensa, Que pálido está este homem, nem parece
o mesmo, a cara inchada, os lábios rebentados,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
28
e os olhos, coitados, dos olhos, nem se vêem
entre os papos, tão diferente de quando chegou
(...). (...) Germano Santos Vidigal deixa cair os
braços, a cabeça descai-lhe para o peito, a luz
apaga-se dentro do seu cérebro. A formiga
maior desaparece debaixo da porta depois de
ter completado a sua décima viagem. (...)
(SARAMAGO, 1982, p. 169-175).
E para que a memória da ficção se torne consciência do real,
citamos breves mas elucidativos excertos de um vero relato de uma exprisioneira da PIDE:
Fui presa no dia 21 de Abril de 1965. (...).
De madrugada, levaram-me para o Forte de
Caxias (...).
No dia 6 de manhã levaram-me outra vez na
carrinha celular para a sede da PIDE, na Rua
António Maria Cardoso. (...) Os interrogatórios
foram feitos pelo [inspector] Tinoco e pelo
Serra. Nesse mesmo dia o Tinoco deu ordens à
mulher «pide» desse turno (...) que não me
deixasse ir à casa de banho enquanto não
falasse e que as necessidades eram feitas ali na
frente deles e limpas com a minha própria
roupa. (...).
Primeiro tiram-me a camisola de malha, depois
a blusa e a seguir a saia, para limparem as
necessidades (...).
No dia 7 já não consegui comer. (...) Tinha
febre e pedi um médico. Foi-me recusado. (...).
No dia seguinte comecei a ver bichos nas
pernas de uma mesa, coisas monstruosas nas
paredes e no chão. Já mal me aguentava de pé.
(...).
Os agentes saíram e ficaram só as «pides».
Continuaram as provocações e as palavras
obscenas. A Madalena começou aos pontapés e
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
29
a puxar-me o nariz, a bater-me na cara. (...)
Surge então um «pide» a dizer que me vinha
ver nua e ela respondeu-lhe que não valia a
pena ver uma «merda» destas, mas para os
comunistas qualquer coisa serve; basta ter um
buraco e fazer movimentos. Disse ainda:
«Vamos embora, que esta puta, esta merda, não
diz nada, não fala, e se eu fico aqui mais tempo
espatifo-a toda».
Veio um «pide» com uma máquina fotográfica.
O Serra dava-me murros no queixo para eu
levantar a cabeça e nessa altura o flash batiame nos olhos. Tiraram-me imensas fotografias
(ou fingiram que tiravam), sempre o Serra a
empurrar-me, a pegar-me pelas axilas, pois, já
sem forças, não conseguia manter-me de pé.
(...)3.
Mas voltemos ao romance de José Saramago. O episódio que
referimos, bem mais longo do que a transcrição que fazemos, recupera
a importância da simbologia dos nomes escolhidos para as
personagens. Não se trata, agora, contudo, como no caso dos -bertos,
ou do Padre Agamedes, de evidenciar a manutenção do quadro
opressivo, também não se trata de recorrer a uma nomeação irónica,
como no caso da(s) Dona(s) Clemência(s). Trata-se, sim, lembrando o
dito atribuído a Roque Lozano (SARAMAGO, 1986, p. 71), sobre a
necessidade de duas condições “para que as coisas existam” (“que
homem as veja e homem lhes ponha nome”), de optar, precisamente,
por denominações cuja carga semântica é, neste como em outros
contextos, profundamente negativa.
Referimo-nos à escolha dos nomes Escarro e do seu derivado,
Escarrilho, para os dois espancadores de Germano Santos Vidigal.
Com efeito, sendo embora reflexo de uma condição física (libertação
3
Maria da Conceição Matos Abrantes, “Testemunhos sobre a PIDE”, in
MEDINA, 1990: 188.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
30
do muco causado pelo inchaço das mucosas do corpo), a verdade é que
o escarro (e, com ele, o neologismo escarrilho) não só não é um ato
socialmente aceite, como, além disso, convoca a impressão, se não a
certeza (do narrador e no leitor) de algo (e por consequência, de
alguém) repugnante, asqueroso, imundo e nauseante.
Acresce ao exposto que o excerto citado conta, ainda, e agora em
uma outra dimensão, situada no polo oposto à que acabamos de propor,
com o uso de uma interessantíssima estratégia que não veicula só,
simbolicamente, as dores sentidas pelo autor e pela personagem, mas
também as transporta além texto para o mundo do leitor, pelo menos
do leitor sensível às atrocidades cometidas no regime ditatorial.
Referimo-nos ao facto de toda a cena ser narrada recorrendo ao ponto
de vista de uma formiga que, no decurso das dez compridas viagens
entre o formigueiro e o quarto em que se encontra Germano
(SARAMAGO, 1982, p. 169-176), se encarregará de mostrar a forma
como os agentes da PIDE quebram – até à morte – a vontade de um
homem que mais não fez do que defender os seus direitos. O efeito que
se obtém ao seguir a marcha lenta, lentíssima, da formiga de cabeça
grande é, em primeiro lugar, o de um processo de isocronia que, pelo
viés da extensão, isto é, do “prolongamento artificial do tempo da
história” (Reis e Lopes, 1996, p. 34, 154), contribui para a sensação de
alongamento do tempo4 do discurso e, por conseguinte, intensifica a
duração da violência exercida (a resistência do homem, também). Mas,
em segundo lugar, o efeito que decorre desta delegação de
competências de focalização, contribui, inegavelmente, para a
instauração de um processo de reflexão extratextual5 que, em última
análise, levará, em convergência com o posicionamento da entidade
4
A consciência da dificuldade em narrar o tempo fica patente no seguinte
excerto: “Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a
contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba,
dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo,
pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é
esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais”.
(Saramago, 1982 [1980]: 59).
5
“Escrever”, como afirma Saramago, “é uma transfusão de sangue para o
lado de fora” (apud Gómez Aguilera (ed.), 2010: 207).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
31
narrativa, à regulação da simpatia do leitor pelos mais fracos e, quem
sabe, ao despertar de consciências ideologicamente adormecidas.
De acordo com o que vimos dizendo, não se estranha, pois, que,
no decorrer de um enredo onde a arraia-miúda é diariamente
protagonista de tratamentos indignos e aviltantes (contra os quais,
apesar das contrariedades, e como já dissemos, alguns se vão
gradualmente insurgindo), a revolução de Abril6, tardiamente
conhecida no latifúndio, surja, num primeiro plano (centrado na
personagem Maria Adelaide Espada), como episódio redentor,
induzindo a choros e a abraços de alegria ao “ouvir na rádio, Viva
portugal” (SARAMAGO, 1982, p. 351-354).
Num segundo plano, no entanto, que em muito contribuirá para o
ensombramento destas alegrias e contentamentos, o narrador dá-nos a
saber que, tal como no passado (em que não se viam diferenças entre
“o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano” – SARAMAGO,
1982, p. 34), também agora, depois da Revolução, a fatalidade da
pobreza continua a perseguir o Povo. É certo que os tempos se tornam
outros, ou não soubéssemos nós que os senhores sem rosto do grande
mar do latifúndio choram em cortes reunidos com os seus acólitos (por
motivos bem diversos dos de Adelaide Espada, porém) (SARAMAGO,
1982, p. 356). Sem força e sem poder para continuar a manipular o
Povo, uns fogem para o estrangeiro, outros ficam pelo Alentejo. Em
todo o caso, azeda a esperança na mudança propugnada pelos ventos
da revolução e se começa a ouvir-se que acaba a guerra em África, não
se ouve falar do acabar da guerra no latifúndio (SARAMAGO, 1982, p.
357). Não deixam os -bertos que restam ceifar o trigo das suas searas e,
não havendo trabalho, continuam os rigores e as dificuldades do
passado próximo, como se “o futuro” nada mais fosse do que “o
presente a andar lentamente para trás” (JORGE, 1980, p. 159).
A revolução parece anoitecer “tão pouco tempo (…) depois de
Abril e de Maio” (SARAMAGO, 1982, p. 357) e, longe de Lisboa, o
povo alentejano parece ter sido abandonado pelos ideais democráticos
e pelos responsáveis pela sua consecução. Assim, numa tentativa de
6
Sobre algumas representações do 25 de Abril nas obras de José Saramago e
de outros autores portugueses, ver ARNAUT, 2005.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
32
recuperar os direitos não atribuídos, a população subleva-se, fazendo a
sua própria rebelião, ocupando, nesse dia que, como já dissemos, se
apoda de “levantado e principal” (SARAMAGO, 1982, p. 366), os
montes e herdades dos Norbertos e Gilbertos ausentes (SARAMAGO,
1982, p. 364).
Atitude extrema para uma situação extrema, não restam dúvidas.
Não parecem restar, pelo menos, para um narrador ideologicamente
empenhado que, desde o início, vinha sintonizando o seu ponto de
vista e a sua simpatia com os mais desfavorecidos. E se acreditarmos
que quem lê a obra lê o autor, então não ficam, também, quaisquer
dúvidas sobre o posicionamento social de José Saramago. Afinal,
como afirmou em entrevista de 1982, “O escritor é um homem do seu
tempo ou não é. O que escreve será sempre acção política ou omissão”
(SARAMAGO, apud GÓMEZ, p. 205), mas desta última não corre o
escritor o risco de ser acusado.
Bibliografia
ARNAUT, Ana Paula, Memorial do Convento. História, ficção e
ideologia. Coimbra: Fora do texto, 1996.
ARNAUT, Ana Paula, “Leituras da obra literária e ensino da literatura.
Processos simbólicos em Levantado do Chão”, in Actas das II
Jornadas Científico-Pedagógicas de Português (5 e 6 de novembro de
2001), Coimbra: Almedina, 2002, pp. 209-221.
ARNAUT, Ana Paula, “Representaciones del 25 de abril en la
literatura portuguesa”, in Cuadernos Hispanoamericanos, nº 660,
Junio 2005, pp. 23-36 (Artigo também publicado em Rivista di studi
portoghesi e brasiliani, VI, 2004, pp. 13-22).
CASTRO, Josué, O livro negro da fome. Editora Brasiliense: São
Paulo, 1960.
GÓMEZ Aguilera, Fernando (ed.), José Saramago. Nas suas palavras.
Lisboa: Caminho, 2010.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
33
JORGE, Lídia, O Dia dos Prodígios, 2ª ed. Lisboa: Europa-América,
1980 [1980].
MEDINA, João (dir.), História contemporânea de Portugal. Vol. I /
Estado Novo. Camarate: Multilar, 1990.
REDOL, Alves, “breve memória para os que têm menos de 40 anos ou
para quantos já esqueceram o que aconteceu em 1939”, in Gaibéus. 6ª
ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965.
REIS, Carlos e LOPES, A. C. Macário, Dicionário de narratologia. 5ª
ed. Coimbra: Almedina, 1996.
SARAMAGO, José, Levantado do Chão. 3ª ed. Lisboa: Caminho,
1982 [1980]).
SARAMAGO, José, A Jangada de Pedra. Lisboa: Caminho, 1986.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
34
A LITERATURA, A POLÍTICA E O
COMUNITARISMO SUPRANACIONAL
Benjamin Abdala Junior 1
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo um estudo sobre os
diversos tipos de diálogos, sejam eles culturais, literários, políticos etc.
que ocorrem na literatura explanando sobre um contexto de criação a
partir de interações que permitem um “acesso” à tradição para uma
nova formulação literária. Assim, durante a redação do texto nos
valeremos de estudos acerca de diálogos interculturais/interliterários a
fim de que possamos traçar uma trajetória de relações acerca da
literatura, política e seus possíveis diálogos em formação.
PALAVRAS-CHAVE:
Comunitarismo.
Interações;
Literatura;
Política;
RESUMEN: El presente artículo tiene como objetivo un estudio de los
diferentes tipos de diálogos, ya sean culturales, literarios, políticos, etc
que se manifiestan en la literatura explicitando un contexto de creación
a partir de interacciones que permiten un “aceso” a la tradicción en una
nueva formulación literaria. De este modo, durante la redacción del
texto nos haremos valer de estudios sobre los diálogos
interculturales/interliterarios con el fin de que podamos esbozar una
trayectoria de relaciones sobre la literatura, política y sus posibles
diálogos de incipiente formación.
PALABRAS
CLAVE:
Comunitarismo.
Interacciones;
Literatura;
Política;
1. Comparações/interações entre sujeitos e o lugar de onde
acessamos o mundo
A primeira consideração que nos parece fundamental na
análise comparatista é a necessidade de o crítico ter consciência de
1
USP/CNPq.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
35
seu lócus enunciativo, o lugar de onde ele acessa o mundo. Esse
lugar, como todas as formações socioculturais, é de natureza híbrida
e envolve análises tanto em termos multi/interdisciplinares, como
também em termos político–culturais. É importante que tenhamos a
consciência de que os campos do conhecimento, estabelecidos pela
práxis social em nossa trajetória histórica, constituem escaninhos de
ordem prática. Não obstante, em razão da dialética de nosso
processo histórico, podem vir a espartilhar os horizontes de seu
próprio campo, pois que o conhecimento está sempre em
interações/fricções,
motivado
sobretudo
pelas
relações
interdisciplinares com outras áreas do conhecimento. Vêm
justamente dessas interações/fricções a possibilidade que se abre
para novas e criativas conformações.
As interações, se inovadoras, pressupõem reciprocidades,
quer em relação a esses campos, como também a situações políticosociais. Importa, nesse sentido, que se leve em conta que o pólo de
que partimos não pode subordinar ou, se quisermos do ponto de
vista da história política, “colonizar” o outro; ou, em sentido
contrário, deixar-se “colonizar” por ele. Se acessamos o mundo
através da literatura, isso significa que o modo de conhecimento da
realidade para quem se situa nesse campo pode se abrir à política,
sociologia, história, linguística etc., para nos ater às esferas das
Humanidades, mas também às áreas das chamadas ciências duras,
biológicas e da saúde. Não podemos, entretanto, nos deixar
colonizar por critérios dessas outras áreas, como muitas vezes
ocorre. A atividade crítica deve partir e voltar para o próprio objeto
literário que está sendo analisado, que é um modo de conhecimento
da realidade afim das ciências humanas e sociais.
Nossa posição, quando buscamos articulações com outras
áreas, é colocarmo-nos igualmente como sujeitos do conhecimento.
Num outro campo podemos encontrar formas de conhecimento que
vêm de experiências históricas que não figuram nos escaninhos de
nossa área. Cabe-nos, então, incorporar criticamente essas
experiências, revitalizando a nossa práxis, através de
reconfigurações em que sejamos igualmente sujeitos e não objetos,
reproduzindo especularmente o conhecimento.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
36
Trata-se, pois, de comparar, para com isso afastar práticas
rotineiras em torno de mesmices que se estabelecem em nosso
campo e, ao mesmo tempo, aberturas para articulações da vida
cultural em sentido amplo, abarcando inclusive a cultura material.
Observação semelhante vale para o comparatismo entre objetos
literários. Uma inclinação, pois, entre sujeitos que se comparam,
considerando o sentido das diferenças, sem deixar de considerar o
lócus enunciativo de quem compara. Por extensão, o afirmado sobre
as interações entre as áreas do conhecimento vale para o
comparatismo literário dentro ou fora de fronteiras políticas
estabelecidas. A tendência a ser evitada é a deixar-se “colonizar”
por parte de quem se reveste de hegemonia em termos de poder
simbólico, isto é, das assimetrias dos fluxos culturais. E também em
sentido oposto, ao analisarmos narrativas de um povo ágrafo,
precisamos considerar o fato de que esse povo possui uma
experiência que não temos. Não podemos impor uma metodologia a
eles estranha, apenas para procurar legitimar nosso ponto de vista,
colocando-os subalternamente nos “devidos” compartimentos
administrados por formulações que possam legitimar nossa
hegemonia.
Vem dessas postulações, em relação aos países
hegemônicos, que administram a hegemonia dos fluxos culturais, a
inclinação para não aceitar tais imposições, embora sabendo que
eles possuem formas de saberes diferentes dos nossos e que
podemos aprender com a experiência deles. É imprescindível,
entretanto, considerarmos devidamente, a condição política de
sujeitos do conhecimento, matizando essas experiências nas redes
do lócus de onde eles falam, que tem sua historicidade e
configurações socioculturais, que não deixam de configurar
geneticamente o sentido das assimetrias dos fluxos culturais
subjacentes.
Nesse sentido, no campo dos estudos comparados das
literaturas de língua portuguesa, para quem se situa no Brasil, impõe
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
37
relevar circunstâncias político-culturais que apontamos em
Literatura Comparada & relações comunitárias, hoje2:
1º) o fato de estarmos num momento de crise do modo de
pensar a realidade que veio das esferas financeiras, que culminou no
crack de 2008, em que foi naturalizada a “imagem utópica do
mundo das finanças: desregulamentação e flexibilidade como
modelo para a economia, um desenho “naturalmente” extensivo às
práticas sociais e culturais. De acordo com a reiterada agenda que
vem pautando os meios de comunicação, nesse processo de
naturalização de hábitos, desregulamentação se afinaria com
liberdade e, esta, nas esferas socioeconômicas, com a
competitividade, colocada, assim, como critério de eficiência e
aspiração maior não apenas das empresas, mas também do
indivíduo e da própria democracia. O individualismo associado à
condição da vida democrática, e, mais, como uma das inclinações
fundamentais do humanismo”3;
2º) relacionado a essa situação, temos de levar em
consideração que o “atual momento político solicita, no âmbito do
Brasil e da comunidade mundial, reconfigurações de estratégias e
repactualizações, o que já vêm ocorrendo nas relações
internacionais. No plano da vida cultural, em nosso país, a
compreensão do sentido dessa repactualização ainda é muito ligeira,
desconsiderando as esferas culturais. Nossa intelectualidade, em
geral, tem-se colocado a reboque dos acontecimentos, com
discursos legitimadores das hegemonias, voltando-se mais para a
administração da diferença nas balizas do sistema estabelecido. E
diante das novas solicitações é de se entender que essas vozes da
intelectualidade, muitas vezes melancólicas e contemplando ruínas,
devem assumir atitudes mais ativas e prospectivas, para criar ou
redesenhar, com matização mais forte, tendências de cooperação e
solidariedade, que sempre embalaram ideais democráticos. Pelas
margens do sistema das assimetrias hegemônicas, abre-se a
possibilidade real de se estabelecer efetivos contrapontos ao
2
Cotia: Ateliê Editorial, 2012. 327 p.
3
Op. cit., p. 9.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
38
paroxismo da competitividade, que envolve e se coloca como
paradigma da vida econômica, social e cultural, de acordo, com a
lógica dessas assimetrias dos fluxos econômicos e culturais”4;
3º) essa inclinação para a “regulação da vida social já se
manifestava, na situação anterior ao crack, justamente como reação
aos efeitos perversos dos modelos articulatórios do capital
financeiro, que flexibilizaram fronteiras nacionais para impor as
assimetrias de sua ordem hegemônica. Foi pelas brechas desse
sistema – já que toda hegemonia é porosa - que se firmou a
necessidade de conexões amplas, abrindo a possibilidade de
articulações comunitárias de sentido supranacional. Nesta nova
situação, essas associações comunitárias tornam-se ainda mais
urgentes, e envolvem a possibilidade de novas articulações, amplas
e estruturadas em múltiplos níveis, desde a vida econômica às
esferas da vida sociocultural”5.
4º) entre os comunitarismos supranacionais (que são
múltiplos e envolvem as porosidades das fronteiras hegemônicas) é
politicamente relevante que desenvolvamos laçadas de cooperação e
solidariedade com os países de língua portuguesa e espanhola,
enlaçando a iberoafroamérica. Mais particularmente, devemos
considerar que “inclinações comunitárias linguístico-culturais
sempre embalaram as tendências democráticas, nos países de língua
portuguesa. A situação atual é evidentemente diferente do que
acontecia no período colonial e também no estabelecimento e
consolidação de nossos sistemas republicanos, como o próprio
conceito de fronteiras. O comunitarismo afirma-se, na atualidade,
envolvendo pluralidade nas articulações políticas, pautadas sempre
pela supranacionalidade. Relevantes são as ações políticas na forma
de blocos, com linhas de ação amplas, da vida econômica à cultural.
Blocos politicamente mais eficazes para estabelecer contrapontos às
assimetrias dos fluxos hegemônicos supranacionais do novo
4
Op. Cit., p. 10.
5
Op. cit., p. 10-11.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
39
imperialismo, e também em suas correspondências nacionais e/ou,
mesmo, estratificações sociais”6;
5º) impõem-se, pois, mudanças de atitudes também em
termos de comparatismo literário. Não podemos nos limitar à
análise das redes estabelecidas entre as esferas do conhecimento,
mas que problematizemos os fatores que lhes são subjacentes e que
geraram sistemas de hierarquização em suas articulações
econômicas e socioculturais. Como indicou Lucien Goldmann em
seu “Balanço Teórico” (em cores talvez excessivamente fortes e que
devem ser em parte mediatizadas), é necessária a busca dessas bases
para que a crítica se afaste “de qualquer posição moralizante como,
por exemplo, a da Escola de Frankfurt e, em especial a de Herbert
Marcuse. Para esses pensadores, que criticam e condenam a
sociedade contemporânea sem perguntar em que medida essa crítica
é baseada numa força social interna a essa sociedade, as únicas
perspectivas tornam-se o isolamento do pensador no mundo de seus
pares, ou a ditadura provisória e temporária dos filósofos que
deveriam transformar a sociedade”7.
Diríamos, nessa perspectiva, como afirmamos em nossa tese
de livre-docência na Universidade de São Paulo (1988), com o
título Imagem (n/a/ç/ã/o) política, como a imaginação política, pela
ação de escritores, pode reconstruir cacos da nação, advindos das
assimetrias dos fluxos culturais (hegemonias evidentemente que não
se limitam apenas ao colonialismo). A versão em livro foi publicada
um ano depois, com o título Literatura, história e política8 Essa
imaginação política é fundamental também para a atividade critica,
pois remove os muros da especialização meramente acadêmica, que
a circunscreve apenas à chamada “produtividade”, como numa
esteira industrial, ou mesmo ao estabelecimento de laços de
solidariedade restritos aos atores dessa área do conhecimento. Na
verdade, o campo meramente acadêmico acaba assim por ser
6
Op. Cit., p. 11.
7
Löwy, M. e Naïr, S. Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 153.
8
2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. p. 278-279.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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administrado, levando-o a pairar como nuvens distantes da vida
social, como pode ocorrer inclusive com a própria imaginação
sociológica que por ali acaba por circular apenas entre pares. Para
além dos escaninhos do ensimesmamento desse campo intelectual9,
importa que sejam configuradas articulações contextuais mais
amplas e problemáticas pela diversidade das esferas econômicas,
sociais e culturais envolvidas, que levem esse campo de produção
do conhecimento a interagir com as esferas públicas, de sentido
político.
2. Cooperação/solidariedade e o princípio de juventude
Neste momento de repactualização internacional, por
oposição ao império do mercado, são relevadas formas de
cooperação à escala planetária. São enfatizados, pela hegemonia
que busca legitimidade e também por aqueles que se colocam contra
essa hegemonia, ideais de respeito às diferenças de toda ordem e à
democracia. Não obstante, as inclinações comunitárias, a contrapelo
da hegemonia que pretende administrar a diferença, emergem para
primeiro plano, como forma de mediação entre os múltiplos campos
da vida social e do estado. Diante dos novos desafios de ênfase no
comunitarismo, particularizando nosso campo de trabalho, parecemnos importantes que os estudos de literatura comparada, sejam
vistos numa dimensão política e sociocultural. Sabemos que veio de
nosso processo histórico as assimetrias de poder simbólico afeitas
ao processo de colonização e, depois, da permanência dos hábitos
de colonizados, comutando centros hegemônicos. Verificar essas
bases da circulação cultural, com viés crítico e sem
assimilacionismos, pode ser uma forma de nos situar criticamente
9
O conceito de campo intelectual e, mais especificamente, literário, foi
cunhado por Pierre Bourdieu em 1992 (Edição brasileira: As regras da arte:
gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras,
1996). Trata-se de uma estrutura complexa que vai da economia à cultura
em sentido amplo, envolvendo relações entre escritores e seus leitores,
editores, críticos etc. Isto é, articulações múltiplas em que o autor e suas
produções mostram-se imbricados com a vida social.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
41
diante dos fluxos inclinados à continuidade dessa colonização de
nosso imaginário.
Nas atitudes de atores culturais do passado, podem ser
configuradas, assim, linhas que são imprescindíveis para a melhor
compreensão de nossa atualidade sociocultural. Entretanto, a
restrição às assimetrias desse comparatismo, mesmo se nos
pautarmos pela criticidade, não é suficiente. Temos proposto outra
forma de comparatismo. Um comparatismo prospectivo, pautado
por relações comunitárias, um comparatismo da solidariedade, da
cooperação. Comparar diante de problemáticas que nos envolvem a
todos para nos conhecer naquilo que temos de próprio e em comum.
Enlaces comparatistas em que as particularizações do passado
devem ser reconfiguradas em termos prospectivos e tendentes a
ações de reciprocidade. Não mais a histórica relação sujeito/objeto,
mas agora de sujeito/sujeito, que se comparam em aproximações e
fricções, tendo em conta desafios que se colocam em termos da
atualidade sociocultural.
Neste momento de crise e de repactualizações políticas,
tornam-se importantes atitudes pautadas por otimismo crítico.
Acreditar que o mundo possa ser diferente e melhor do que ele é.
Para além da necessária inclinação da negatividade inerente ao
pensamento crítico, a motivação e o embalo de um princípio de
juventude, consubstanciado em projetos e ações político-culturais
mais amplos.
Se é próprio da melhor literatura se voltar para aquilo que
falta, há, pois, que renovar atitudes no âmbito da crítica literária, em
sentido prospectivo, para nos valer ainda de um paralelismo com os
anos de 1930, descartando agora o enredo de ambiência
melancólica, que veio das frustrações que marcaram a
Modernidade. Uma nova atitude implica ter a esperança como
princípio10. Ao contrário da ideologia do fim da história e da
inculcação de que vivemos no melhor dos mundos, é imprescindível
acreditar em nossa potencialidade subjetiva e objetivá-la em
10
Cf. Bloch, Ernst. O princípio esperança. 3 volumes. Rio de Janeiro:
Eduerj/Contraponto, 2005/2006.
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projetos inclinados para o futuro. Como explicita o poeta Carlos de
Oliveira,
“Na poesia,/ natureza variável/ das palavras,/ nada se perde/
ou cria,/ tudo se transforma:/ cada poema, no seu perfil/ incerto/ e
caligráfico,/ já sonha/ outra forma.11”
Articulações, como as do poema de Carlos de Oliveira,
disputam o poder simbólico no campo intelectual. Elas se atualizam
através da porosidade do modo dominante de pensar a realidade,
articulando-se contra a estaticidade das formas poéticas. O poeta ao
se valer de articulações provenientes do campo científico, atualiza,
na simbolização do texto literário, um modo dinâmico de pensar a
realidade onde as formas, inclusive as políticas, devem ser vistas em
movimento, em processo. E essa permeabilidade de articulações que
migram de um campo para outro nos leva a considerar as
imbricações mais gerais, que saem do campo econômico e atinge as
esferas políticas, sociais e culturais. Uma articulação hegemônica só
provoca impactos nas esferas culturais sob a mediação da sociedade
e do estado. Se nos estados democráticos atuais há uma relativa
autonomia entre essas formas de organização e de poder (não cabe
aqui falar em neutralidade), suas conformações formais favorecem a
permeabilidade dessas articulações dominantes. Por entre as formas
do estado, são exercidas hegemonias que vêm do campo social e das
formas mentis dominantes. E também, por serem hegemônicas, elas
desenvolvem estratégias de legitimidade e podem acabar por serem
naturalizadas, fazendo parte do senso comum. Ou, se nos
recorrermos a Terry Eagleton, que, por sua vez cita Pierre Bourdieu,
“Qualquer campo social é necessariamente
estruturado por um conjunto de regras não
enunciadas para o que pode ser dito ou
percebido validamente dentro dele, e essas
regras, portanto, operam como um modo do
que
Bourdieu
denomina
‘violência
11
“Lavoisier”. Obras de Carlos de Oliveira. Lisboa: Editorial Caminho,
1992. p. 223.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
43
simbólica’. Como a violência simbólica é
legítima, geralmente não é reconhecida
como violência. Trata-se, como observa
Bourdieu em Outline of a Theory of Pratice
(BOURDIEU, 1977: 192), ‘a forma suave,
invisível da violência, que nunca é
reconhecida, a violência de crédito,
confiança, obrigação, lealdade pessoal,
hospitalidade, presentes, gratidão, piedade’.
No campo da educação, por exemplo, a
violência simbólica opera não tanto porque
o professor fala ‘ideologicamente’ com seus
alunos, mas porque o professor é percebido
como tendo a posse de uma quantia de
‘capital cultural’ que os estudantes precisam
adquirir (EAGLETON, 1997, p. 142).
Para quem se situa no Brasil, no âmbito da cultura, o
momento é de relevar blocos de nossa comunidade linguísticocultural, de forma correlata às estratégias de ordem econômica que
vêm sendo desenvolvidas pelo país. Mais particularmente, importa
estreitar relações com nosso bloco linguístico-cultural e também,
numa laçada mais ampla, com os países iberoamericanos. As redes,
na atualidade, são mais amplas, planetárias, e envolvem desde as
esferas dos recortes do conhecimento até às da geopolítica.
Configuram um mundo de fronteiras múltiplas e as questões
identitárias devem ser vistas no plural12. Outras articulações
supranacionais se configuram, ao lado daquelas que vieram de
nossa formação histórica, como ocorrem igualmente nas relações
econômicas. O comunitarismo linguístico-cultural constitui um
ponto de partida político e estabelece, para nós, um “nó”, em termos
de redes comunicacionais, de onde abrimos “janelas” igualmente
múltiplas. Pelo comunitarismo cultural, podemos mostrar rostos
12
Cf. Abdala Junior, Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais.
São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
44
diferenciados, em diálogo com outros. Num mundo em que o inglês
tornou-se uma espécie de língua franca, é importante que também
falemos em português como língua de cultura, numa associação
mais particularizada com a língua espanhola.
Importa à crítica literária, para tanto, uma mudança de
atitudes, descartando a melancolia. É necessária uma perspectiva
otimista: ter esperança, pautando-nos pelo princípio de juventude, o
que implica a atualização de gestos prospectivos, tal como ocorreu
no passado com a literatura social do período entre-guerras,
posterior ao crack financeiro de 1929. A grande diferença de
situação, quando se compara os dois cracks financeiros (de 1929 e
de 2008), é que em 1929 a intelectualidade acreditava que as coisas
poderiam ser diferentes e agora essa manifestação do desejo se
mostra mitigada, envolvida pelos modelos articulatórios da utopia
do mundo desenhado pelas finanças. De acordo com esses modelos,
viveríamos no melhor dos mundos – um eterno presente, da
produção e competição. Mais do que a força das idéias e da
reflexão, continuam dominantes sistemas de modelizações do
pensamento e de condutas afinados com um individualismo
narcisista reverenciado pela mídia, que só destaca quem se coloca
nas passarelas daquela que já foi chamada “sociedade do
espetáculo”.
3. Marcas eurocêntricas e a sobrevivência das formas
Estamos longe, nos estudos comparatistas, das tendências
eurocêntricas positivistas dos estudos das “fontes”, mas os cânones
continuam a vir dos países hegemônicos da Europa Ocidental e em
suas reconfigurações norte-americanas. São as literaturas “maiores”
e as outras, ao sul da Europa e próprias do mundo colonizado, as
“menores”. Em literatura comparada, esse primeiro modelo de
estudo correspondeu à hegemonia teórica francesa, substituída pela
norte-americana em meados do século XX, onde os recortes
nacionais, pelo viés formalista, foram vistos em suas interações
supranacionais. Como indica Cláudio Guillén, afirma-se, então, o
momento da supranacionalidade, para além das fronteiras
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
45
nacionais13. Desloca-se a hegemonia, em termos de literatura
comparada, para a outra margem do Atlântico Norte.
As hegemonias nunca são absolutas, mas porosas, é de se
reiterar. Se nessas teorizações da década de 50 aparecem
formalismos e desconsiderações político-sociais, surgirão, nas
décadas finais do século, novas perspectivas para os estudos
comparados, imbuídos de sentidos políticos, presentes, por
exemplo, nas obras de Fredrick Jameson14 e de Edward W. Said,
para nos referirmos aos EUA. São as contradições dentro do mesmo
sistema, que envolvem a imagem de vida democrática, um princípio
de legitimidade de quem se vale das assimetrias dos fluxos culturais
e que não deixa de estar presente nos discursos oficiais da
hegemonia.
Na atualidade e em decorrência desse comparatismo
Leste/Oeste em que foram importantes teóricos que se deslocaram
para os centros hegemônicos, surge uma outra tendência
comparatista, a da chamada “Literatura Mundo”. Do ponto de vista
político, consideramos necessário, como estamos argumentando, a
consideração de laçadas comunitárias, por sobre a porosidade das
hegemonias estabelecidas. A articulação comunitária configura
formas de poder simbólico contra uma pastichização que interessa
apenas para as configurações hegemônicas.
Edward W. Said desenvolveu a tese, na perspectiva de sua
crítica política, de que a cultura integra a ação colonizadora, um
espaço de tensões/conflitos. O próprio conceito de Oriente foi
cunhado para justificar o domínio imperial sobre os “outros”,
sempre inferiores15. Um desenho análogo ao dos povos africanos,
para justificar sua escravidão pelos “civilizados” colonialistas. Para
Said, a análise dessas tensões entre o império e as colônias envolve
13
Introducción a La literatura comparada (Ayer y hoy). Barcelona:
Tusquets Editores, 2005.
14
Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. Trad.:
Simon, I.; Xavier, I. e Oliboni, F. São Paulo: Editora HUCITEC, 1985.
15
Cf. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad.: Tomás
Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
46
tratar cultura e imperialismo numa relação de interdependência. E é
com esse horizonte, que é importante estudar a forma mentis desse
processo. Em termos de intersubjetividade, o desenho que envolve
relações de dominação, no plano interno dos blocos hegemônicos e
das regiões subalternas, corresponde aos gestos coloniais, que
continuam a marcar a vida subjetiva e cultural desses povos, seus
universos simbólicos.
Foi assim que desde os tempos coloniais o eurocentrismo
procurou estabelecer a inteligibilidade e, principalmente, a
legitimidade necessárias às práticas de dominação, justamente
porque inferiorizavam, tanto em discursos científicos quanto leigos,
os espaços, povos e culturas das colônias e apontavam a sua
necessidade de evolução em amplos sentidos. Hoje, essa inclinação
persiste nos olhares, práticas e representações que permitem a
continuidade da dominação e manutenção de determinadas
hegemonias e hierarquizações, mesmo que de forma sutil,
ininteligível, naturalizada ou compartilhada por todos. Um amplo
sistema de modelização de pensamento e de conduta, em dimensão
planetária. Não podemos nos esquecer de que na Europa e nos EUA
há numerosas comunidades marginalizadas, como os irlandeses,
ciganos, negros, latino-americanos, judeus, muçulmanos, os
habitantes das periferias, gays, lésbicas etc. Foi nesse contexto
situacional híbrido e de fricções que apareceram as obras de
Fredrick Jameson, Edward W. Said, Homi K. Bhabha16 e Stuart
Hall17, entre outros.
O eurocentrismo corresponde hoje à ocidentalização, que
não tem precisão geográfica, mas tem suas bases políticas e
econômicas. Envolve toda uma série de repertórios secularmente
acumulados, de onde vêm as reflexões e práticas espalhadas pelo
mundo, ao ritmo das assimetrias dos fluxos culturais.
Evidentemente, convém enfatizar, aprendemos com a experiência
16
O local da cultura. Trad.: M. Ávila, E. L. L. Reis, G. R. Gonçalves. Belo
Horizonte: UFMG, 1998.
17
Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org: Liv Sovik. Belo
Horizonte-Brasília: Editora UFMG/UNESCO, 2003.
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47
do outro. Afinal, somos todos misturados. As identidades são
sempre plurais. Não obstante, uma certa hibridização que conflui
para uma espécie de pastichização indefinidora de fronteiras, que,
na verdade, são configuradas e múltiplas, pode ser estratégia similar
à da mestiçagem das elites brasileiras: mesclagens tendentes a
formulações eurocêntricas.
Preferimos considerar que as fronteiras são múltiplas e não
líquidas, indefinidas. Se existe a tendência à fragmentação
posmoderna, afim do modo de administrar e pensar o mundo pelo
viés das finanças, podemos situar as fronteiras de acordo com
processos de articulações que se alternam, sobrepõem e se
imbricam, mas que não se liquefazem, de acordo com a teorização
de Zygmunt Bauman18 Somos igualmente múltiplos do ponto de
vista identitário e, na verdade, uma visão crítica das implicações
políticas desses caracteres (nível individual, nacional, social),
verificará que eles se atritam e não deixam de estabelecer
hegemonias ou dominâncias, que podem ser reversíveis.
Assim são os hábitos19, que em suas linhas articulatórias
impregnam os atores sociais, mesmo em situações políticas que
poderiam contraditá-los. Observe-se, nesse sentido, o romance
Mayombe, de Pepetela, escrito em plena guerrilha das lutas de
libertação nacional de Angola. O sentido crítico do narrador destaca
linhas de articulação de hábitos, que impregnam suas personagens,
18
Tempos líquidos. Trad.: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2006.
19
Associamos o conceito de habitus, de Pierre Bourdieu, ao de modelo de
articulação que vem da práxis (o homem com ser ontocriativo). Para
Bourdieu o “habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e
também um haver, um capital (de um sujeito transcendental da tradição
idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural
-, mas sim o de um agente em acção: tratava-se de chamar a atenção para o
`primado da razão prática´ de que falava Fichte, retornando ao idealismo,
como Marx sugeria nas Teses sobre Feuerbach, o `lado activo´ do
conhecimento prático que a tradição materialista, sobretudo com a teoria do
reflexo, tinha abandonado (O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz.
Lisboa: Difel / Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. p. 61.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
48
deixando à mostra as reais motivações dos guerrilheiros, mitificados
pelos discursos oficiais. Citemos uma personagem feminina, que de
um ângulo periférico analisa a situação que experimenta:
“Isso é que me enraivece. Queremos transformar o mundo e
somos incapazes de nos transformar a nós próprios. Queremos ser
livres, fazer a nossa vontade, e a todo momento arranjamos
desculpas para reprimir nossos desejos. E o pior é que nos
convencemos com as nossas próprias desculpas, deixamos de ser
lúcidos. Só covardia. É medo de nos enfrentarmos, é um medo que
nos ficou dos tempos em que temíamos a Deus, ou o pai ou o
professor, é sempre o mesmo agente repressivo. Somos uns
alienados. O escravo era totalmente alienado. Nós somos piores,
porque nos alienamos a nós próprios. Há correntes que já se
quebraram mas continuamos a transportá-las conosco, por medo de
as deitarmos fora e depois nos sentirmos nus.”20
Vieram de nossa formação hábitos alienados e as formas
culturais, tal como as formas políticas, sociais e econômicas,
resistem. Há nelas, de um lado, uma experiência acumulada; e, de
outro, implicações ideológicas que tendem a justificar hegemonias.
Constituem desenhos ou linhas que resistem e determinam a
formação de caracteres, com papéis sociais marcados. O grande
problema, do ponto de vista político, é que tais impregnações fazem
parte do cotidiano e configuram as expectativas de cada ator,
dirigente ou dirigido.
Nos EUA, houve um transplante mais efetivo da população
européia e o estabelecimento de um estado dos “brancos”,
originalmente puritanos, que se recusaram à mistura. Consequência:
extermínio dos ameríndios e o apartheid dos ex-escravos. Só a
partir da segunda metade do século XX, essas populações das
margens começaram a fazer valer seus direitos de cidadania. E
ganharam peso político-social e cultural, mais recentemente, pela
presença ativa da grande população de migrantes, que vieram de
outras margens. A discussão sobre a mestiçagem, escamoteada
pelas elites norte-americanas, ganhou então as universidades e já é
20
São Paulo: Ática, 1982. p. 208.
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49
matéria de sua indústria cultural, tendo em vista a busca de
legitimidade para a preservação da hegemonia desse país.
4. Experiência histórica e fronteiras culturais
O processo colonial fixou hábitos, repertórios literários e
culturais, que vieram dessa experiência histórica e dos contatos
culturais entre povos que até então não se conheciam. Se há hoje
toda uma inclinação crítica para mudanças de paradigmas, sejam
eles filosóficos, estéticos, em relação às áreas do conhecimento,
entendemos que essa tendência não pode se naturalizar sobre um
rótulo genérico de um “pós”, uma redução ao obsoleto de toda uma
experiência que se consubstancia no presente. Pior ainda pode
ocorrer em relação às instâncias políticas, onde o “pós”, afeito às
condições da mídia e dos produtos moda, procura tudo reduzir a
uma tabula rasa, sem passado. A experiência histórica e suas
realizações passam a ser situadas como um repertório passivo, para
a estilização sem história, formas restritas a uma espécie de
repertório passivo, desconsiderando-se o processo que as
modelizou.
Temos de levar na devida consideração o fato de que a
teorização pós-colonial tem discutido convenientemente questões
relativas à mundialização econômica, com implicações
socioculturais, aos deslocamentos dos povos e ao processo de
americanização do mundo, sob o impacto da mídia e do consumo
mercadológico. Em relação às questões político-sociais, entretanto,
ela pode tender a inclinações genéricas. São igualmente póscoloniais quaisquer sociedades marcadas pelo colonialismo, sem
maior consideração sobre sua historicidade, nivelando países que se
emanciparam no período pós-Segunda Guerra Mundial, aos que se
emanciparam desde o século XIX. Falar de pós-colonialismo, sem
consciência dessas especificidades, implica nivelar uma cultura
como a do Canadá, ou da África do Sul, por exemplo, à complexa
situação cultural da Índia – ambas ex-colônias britânicas. Só uma
análise das redes políticas, econômicas e socioculturais pode revelar
de que pós-colonialianidade se trata. Essa situação se torna ainda
mais complexa, se vinculada – como acontece - à ênfase ao
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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nomadismo diaspórico dos estudos pós-coloniais. Coloca-se
novamente a necessidade de se considerar nesse processo de onde
fala o crítico e os laços socioculturais que acabam por enredar suas
formulações discursivas.
São muitos os pós-colonialismos. Há, por exemplo, o póscolonialismo do ex-colonizador, que encontramos num romance
como Os cus de judas, de Lobo Antunes21; e, para contrastar, o do
ex-colonizado, como em Mayombe, de Pepetela22. O primeiro vai
desconstruir mitos e fazer de sua memória individual um
depoimento que se quer história. Pepetela, numa direção oposta,
embala-se por mitos, sem deixar de criticar indivíduos que se
querem mitos. Nessa crítica, evidencia posturas etnocêntricas do
passado que se reproduzem no presente. Em Lobo Antunes,
enfatiza-se a desconstrução dos mitos e a distopia; em Pepetela, na
formação de um novo estado nacional, a construção e a utopia. Há
ainda o pós-colonialismo dos colonizadores que permaneceram na
metrópole e dos ex-colonizados que migraram. A clara delimitação
do chamado lócus enunciativo e de sua historicidade é, pois,
imprescindível para uma crítica que pretenda afastar-se da
generalidade.
Refletir sobre especificidades nacionais implica situá-las
num processo de agenciamentos comunitários que tem um solo
histórico e relações de poder simbólico. Temos destacado o sentido
político de se discutir literatura no âmbito do comunitarismo
iberoafroamericano, mas – voltamos a insistir - as articulações
comunitárias podem ser de muitas ordens e politicamente nos
parece importante relevar que o mundo atual é de fronteiras
múltiplas e identidades plurais, seja numa perspectiva individual ou
nacional. São interações que levam à consideração de um complexo
cultural híbrido, interativo, onde a cultura brasileira, por exemplo, é
multifacética e se alimenta produtivamente de pedaços de muitas
21
Os cus de judas. Lisboa: Editorial Vega, 1979.
22
São Paulo: Ed. Ática, 1982.
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culturas, sem deixar de sofrer os efeitos das assimetrias dos fluxos
culturais.
Tais considerações, para além das especificidades nacionais,
torna necessária a associação com o repertório enfaticamente
híbrido de nossa formação cultural. Na apropriação desse repertório,
a consciência dessa historicidade e relações de poder que ensejou,
pode contribuir para o afastamento de produções miméticas, afins
da convenção ou do estereótipo.
A criticidade é necessária para o desenvolvimento de
inclinações abertas à criatividade e que às vezes acabam para o
questionamento de espartilhos ideológicos e identidades míticas.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com o poema “Camões: história,
coração, linguagem”, de Carlos Drummond de Andrade, escrito
numa situação histórica pós-Revolução dos Cravos. Ao se apropriar
de imagens e procedimentos poéticos camonianas, o poeta brasileiro
estabeleceu um diálogo com a historicidade das leituras do poeta
português e a da nova situação histórica, democrática, de Portugal.
Diz Drummond:
Dos heróis que cantaste, que restou
senão a melodia do teu canto?
As armas em ferrugem se desfazem,
os barões nos jazigos dizem nada.
Nessa desideologização das apreensões conservadoras, em
especial da época salazarista, sem deixar de seguir imagens e ritmos
camonianos, o poeta brasileiro termina por afirmar:
Luís, homem estranho, que pelo verbo
és, mais que amador, o próprio amor
latejante, esquecido, revoltado,
submisso, renascente, reflorindo
em cem mil corações multiplicado.
És a linguagem. Dor particular
deixa de existir para fazer-se
dor de todos os homens, musical,
na voz de órfico acento, peregrina . (Abdala Jr.,
1993, p. 62).
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52
Em Literatura, história e política, analisamos a circulação
cultural entre o Brasil, Portugal e África, tendo como motivo
condutor a imagem de Pasárgada, de Manuel Bandeira. Procuramos
então discutir essa figuração utópica por recorrência ao poeta
caboverdiano Osvaldo Alcântara (pseudônimo poético de Baltasar
Lopes) . Osvaldo Alcântara, com os “pés” em Cabo Verde, sonha à
Bandeira com uma pasárgada que existiria em outra margem do
oceano. Se o poeta brasileiro imagina um reino com um rei
bonachão que lhe permitiria todas as “libertinagens” (título da
coletânea do poeta brasileiro), Osvaldo Alcântara tem saudade de
uma pasárgada futura que encontraria no “caminho de Viseu” (valese da referência à canção popular portuguesa “...indo eu, indo eu,/a
caminho de Viseu”23) . Osvaldo Alcântara, repetimos, estava com
os pés em Cabo Verde, mas a cabeça inclina-se para fora, para as
possibilidades de se encontrar plenitude na imigração. Sua
perspectiva é aquela que historicamente sempre se colocou para seu
povo de migrantes e ele não deixa de ter consciência crítica de que
“esta saudade fina de Pasárgada/é um veneno gostoso dentro do
meu coração”24, em outro poema.
A identificação no repertório comum não implica
mimetismo, tanto em Osvaldo Alcântara, como em Drummond. A
distância crítica advém de fricções de quem estabelece suas bases
poéticas na persistência de uma mesma linguagem comunitária.
Ampliando essas observações, podemos afirmar que são
importantes do ponto de vista crítico estudar esses diálogos,
embutidos – explicitamente ou não - nos repertórios literários, que
circulam entre os países de língua portuguesa. Por outro lado, não
se pode deixar de relevar do ponto de vista críticos as relações de
poder que envolvem essa circulação que pode ser uma forma de se
afastar da celebração, seja da mimese ou de um pretenso
sincretismo ou do hibridismo, que desconsidera as relações de poder
e encaminha atitudes assimilacionistas tendentes à cultura do
23
24
ABDALA Junior, Benjamin. 2. ed. Literatura, história e política. Cotia:
Ateliê Ed., 2007. p. 81.
Idem. Ibidem. p. 81.
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colonizador. Não se pode, entretanto, deixar de considerar
devidamente o fato de que a plasticidade da língua literária
portuguesa vem desde sua formação nos tempos medievais e só
pode ser estudada adequadamente na dinâmica das tendências dos
campos intelectuais supranacionais, nos processos de mundialização
das culturas européias.
5. A administração da diferença
À flexibilidade da circulação dos produtos culturais, ao
ritmo nômade do capital financeiro, que se articula em rede, sempre
reduzindo distâncias por velocidade, sempre desdobrável, parecenos importante contrapor estratégicas contra-hegemônicas,
associadas aos comunitarismos supranacionais. Esse processo
vertiginoso de estandardização dos produtos culturais, por parte da
economia de mercado, não se restringe à estandardização de massa.
Convém não nos esquecermos de que a hegemonia possui bases
amplas, que não deixam de ser mercadológicas, e procura
incorporar em suas redes mesmo a contestação de seu próprio
sistema. Trata-se da perspectiva da administração da diferença, que
temos insistido em apontar. A diferença como administração
política e abertura de nicho de mercado. Noutro sentido, esta
incorporação pode contribuir para a dinamização do sistema: mudar
para que as coisas continuem estruturalmente as mesmas. Ou, como
aparece
no
livro/filme
O
leopardo,
de
Giuseppe
Lampedusa/Luchino Visconti, “É preciso que algumas coisas
mudem, para que tudo continue na mesma”. A emergência parcial
do novo, sob controle político-social das estruturas préestabelecidas e que faz valer sua hegemonia para controlá-lo, ao
mesmo tempo em que se beneficia de sues influxos para atualizar
suas redes numa nova configuração histórica.
Neste momento que se afigura em processo pós-neoliberal, a
afirmação de uma tendência mais tolerante, que procura valer-se da
estratégia de administrar da diferença, afim, por exemplo, do
multiculturalismo de matização liberal, pode constituir uma maneira
mais inteligente e de longo prazo de se preservar e mesmo
promover a hegemonia. Estratégia para um capitalismo
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administrado, um retorno, em nossas bases, dos princípios
norteadores do governo Roosevelt. Seria uma espécie de um novo
New Deal, de onde – já que as coisas são misturadas - foi possível
surgir, não obstante, a obra de um Caldwell, Hemingway, Dos
Passos, Gold, Steinbeck, Faulkner etc. E também a organização das
Nações Unidas e da carta que estabelecia o princípio da
autodeterminação dos povos.
Tal eurocentrismo de matização norte-americana pode vir a
ser agora atenuado, na nova configuração que se esboça, como uma
das tendências possíveis da política imperial. Fala-se
insistentemente na necessidade de “tolerância”: tolerância liberal,
uma nova modalidade dos pressupostos de caridade, uma via de
mão única, sem reciprocidade. A aproximação dos excluídos, que
foi uma das bases fortes da eleição do presidente Barack Obama e
que fez a diferença, não é evidentemente relevada. Para além dessa
modulação da tolerância, é imprescindível ao pensamento crítico
descortinar também as relações de poder envolvidas. Sem a
discussão dessas relações, o discurso multicultural que, ao que
parece, pode se afirmar ainda mais, apesar do ultraconservadorismo,
não deixará de ser um veículo conceitual de administração da
diferença, tendo em vista a manutenção da hegemonia norteamericana, vale dizer, de suas elites. Falta a esse multiculturalismo
de tintas liberais a consideração de vozes simultâneas em tensão,
uma espécie de um áspero concerto polifônico construído pelas
diferenças. Logo, uma perspectiva crítica capaz de contraditar
formulações discursivas hegemônicas, tendentes ao nivelamento de
uma espécie de “branqueamento” eurocêntrico, uma forma mentis
análoga à que se produziu nas elites brasileiras, desde o século XIX.
Reiteramos, pois, no contraponto ao que naturalizou até o
momento do crack econômico de 2008, de que o acesso à rede
supranacional se faz num lócus enunciativo determinado e ele é
fundamental para a crítica. Se na vida universitária, por exemplo,
um docente situa-se numa universidade norte-americana, ele não
pode desconsiderar o fato de que seu discurso pode estar associado
a estratégias hegemônicas desse país. Estas são considerações
relativas a uma hegemonia que procura legitimar-se nas esferas
intelectuais e públicas, em que a sociedade civil se articula com as
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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esferas de estado, formando um consenso supranacional. Junto com
tais estratégias que procuram legitimar assimetrias, em que a ação
da mídia é igualmente importante, há evidentemente formas de
dominação despótica que operam desde o campo econômico ao
militar, mais ou menos atuantes, conforme as oscilações das
relações políticas, estabelecidas sobretudo por motivações
econômicas.
Em termos de consenso hegemônico, na atualidade, ele se
efetua não apenas no sentido da aceitação, mas sobretudo de
promover a capitalização da diferença. Uma diferença que se
consubstancia em produtos, desde o da imagem democrática do país
hegemônico
até
a
mercadorias
mais
explicitamente
comercializáveis.
Para ilustrar a abrangência do processo de mercantilização
que atinge inclusive a identidade individual, podemos nos valer de
um poema de Carlos Drummond de Andrade, “Eu Etiqueta”
(Corpo, 1984). As mercadorias aí já não apenas espreitam, mas
introjetam-se em todas as pessoas, inclusive e de forma irônica, no
próprio poeta. As pessoas perdem suas identidades, transformadas
numa espécie de vitrine de mercadorias. E as marcas consumidas
(etiquetas) valem menos pelo valor de uso e, mais, pelo status que
conferem. Um consumo acrítico que, no processo de simbolização
literária, não deixa de se associar a hábitos que vêm desde os
tempos coloniais, como o autoritarismo denunciado em A rosa do
povo (1945), do mesmo poeta. Etiquetas, quase sempre produtos,
marcas ou modelos importados situados como superiores. E talvez
pudéssemos acrescentar, já que a simbolização poética o permite:
esse mesmo gesto é correlato a hábitos que perduram no campo
científico ou na crítica literária – a importação sem sentido crítico.
Uma citação nos estudos literários não poderia ter a função de uma
etiqueta? Uma etiqueta conforme foi similarmente observada pelo
olhar irônico, pretensamente menor do poeta, que se vê como
“homem-anúncio itinerante, / Escravo da matéria anunciada. /
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56
Estou, estou na moda. / É doce andar na moda, ainda que a moda /
Seja negar minha identidade (...)”25.
Em relação a essas práticas que oscilam entre a hegemonia
que procura se legitimar e o despostismo de quem tem o poder, não
se pode esquecer a posição dos Estados Unidos como único país a
defender a inserção da cultura como “produto”, na Organização
Mundial do Comércio. Para além do produto diretamente
comercializável – particularizando nosso campo de atuação
profissional -, a hegemonia implica um “reconhecimento”
internacional da instituição onde esse crítico trabalha, o que
certamente atrairá alunos e docentes, inclusive dos países nãohegemônicos. A partir dessa situação, serão criadas condições para
convênios interinstitucionais com esses países, tendentes à
preservação da hegemonia estabelecida. Só uma efetiva
reciprocidade entre os atores da comunidade universitária envolvida
poderá atenuar essas assimetrias. Isto é, a consciência da dimensão
política que envolve a pesquisa científica. A busca da “eficácia”,
aparentemente neutra, mas no fundo mimética e sem criticidade,
pode mascarar processos que respaldam a continuidade das
assimetrias dos fluxos culturais e também da legitimidade do poder
simbólico hegemônico a elas associado.
6. Imagens literárias, para finalizar
O romance A jangada, de Júlio Verne, vale-se, além de
fontes documentais, de um imaginário literário que aponta para
mundos paralelos. São mundos que estão em nossa cabeça, como a
ilha utópica. A ilha da Utopia, de Morus, como a “ilha
desconhecida”, de José Saramago.
Há toda uma tradição literária que se alimenta dessas
formulações. Dialogar com ela é uma forma de exteriorizar nossa
vontade, nossos desejos. E, de uma certa forma, impulsionar nossos
gestos. Em Júlio Verne, o fluxo do rio Amazonas (do interior do
continente para o Atlântico) leva as riquezas para fora. Para dentro,
25
ANDRADE, Carlos Drummond. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.
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57
vem a modernização européia que cria as bases para a exploração da
natureza. A imensa jangada de madeira que segue o “fluxo natural”
do rio Amazonas, se desfaz quando chega a Belém (Pará), para que
sua estrutura de madeira (troncos de árvores) seja vendida para a
Europa, enquanto o proprietário da imensa jangada de madeira,
onde coube toda uma propriedade rural, com a família e
empregados voltam para o interior da Amazônia num barco a vapor.
Não é o que ocorre com o romance A jangada de pedra, de
José Saramago, publicado um século depois. Este romance, escrito
quando se discutia a integração de Portugal na então Comunidade
Econômica Européia, hoje União Européia, é exemplar para a
discussão do sentido comunitário entre as nações ibero-afroamericanas., como o fizemos no ensaio “Necessidade e
solidariedade nos estudos de literatura comparada”.26 Organizado
em torno de estratégias geopolíticas e associado à situação histórica
pós-Abril, esse romance permite repensar a cultura portuguesa em
face da dupla solicitação: a integração européia e a singularidade
peninsular. Esta singularidade liga-se às perspectivas que marcaram
a história de Portugal: a atlanticidade, a ibericidade e a
mediterraneidade.
Se a jangada de Júlio Verne desfaz-se em contato com o
Atlântico, a jangada de Saramago, que reúne o conjunto das regiões
e comunidades ibéricas, tem nesse oceano uma de suas razões de ser
históricas. É a atração atlântica que leva a Ibéria a se desprender da
Europa. Sem o peso do império, podem agora os ibéricos se
aproximar para o diálogo com suas ex-colônias. Do ponto de vista
literário, embora Saramago faça referências, às vezes irônicas, à
literatura de seu país e também dos países hegemônicos, ele tem em
mira o realismo maravilhoso latinoamericano. O direcionamento
vetorial da factura da escrita e as formulações do imaginário
subjacente não vêm assim da Europa, mas da América Latina.
Em epígrafe ao romance de José Saramago, o cubano Alejo
Carpentier opõe ao ceticismo que a enunciação credita à Europa a
26
Revista brasileira de literatura comparada. “Necessidade e solidariedade
nos estudos de literatura comparada”. Rio de Janeiro: ABRALIC, 1996. p.
87-95.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
58
perspectiva de que "Todo futuro es fabuloso". Tão fabuloso na
efabulação desse romance que esse futuro, na vida como na arte,
torna-se avesso ao pragmatismo cético da Europa. Um "futuro
fabuloso" próprio de um momento de fratura, onde "principia a
vida". "Todo futuro es fabuloso", diz Carpentier. Tão maravilhoso,
diríamos, que permite uma efabulação - fabula ficcional de ação
política - que, num direcionamento temporal inverso, permite a
atualização, na jangada de Saramago, de matéria sonhada para
amanhã ou depois.
Esse deslocamento temporal operado pelo jogo artístico do
sonho do escritor não nos traz imagens literárias à deriva, mas
imagens-ação que aportam no presente da escrita literária,
impulsionando-a por "mares nunca dantes navegados" (Camões).
São imagens-ação políticas que motivam uma nova épica, agora
social, num movimento recursivo que é, ao mesmo tempo, partida e
encontro. Desprende-se a península de uma situação convencional
de apêndice europeu para, no faz-de-conta ficcional, encontrar-se
consigo mesma. Quando se encontra em sua identidade, a jangada
ibérica é capaz de movimentos surpreendentes, já que não se
(con)forma ao cais europeu, para ela "cético" e "rotineiro", onde
aportou há muito tempo, com dificuldades, dando origem à
calosidade dos Pirineus. "Mudam-se os tempos" e a "vontade"
(Camões) aponta para outras perspectivas, para driblar, pelas
laterais do jogo ficcional, um outro jogo, geopolítico, que acabou
por enredar a Ibéria.
Numa espécie de útero aquático, o conjunto comunitário
ibérico estaciona numa região geopolítica que não é de calmarias,
só para contrariar nações hegemônicas: o presidente norteamericano dá um murro na mesa. Preserva-se assim a especificidade
ibérica, como se ela fosse uma ilha. Envolvida no útero aquático, a
Ibéria, como uma criança, espera onde aportar, sem calosidades
como as das regiões pirenaicas, ficando num ponto de diálogo entre
a América Latina e a África. Num mundo de fronteiras múltiplas,
relevar o comunitarismo cultural é uma forma compartilhada de
fazer face ao processo de estandardização assimétrica que move as
estratégias globalizadoras.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
59
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VERNE, Júlio. A jangada. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
61
O ROMANCE HISTÓRICO DA COLONIZAÇÃO
PORTUGUESA DO BRASIL: O RETRATO
DO REI, DE ANA MIRANDA
Edvaldo A. Bergamo1
RESUMO: O retrato do rei (1991), de Ana Miranda, figura a Guerra
dos Emboabas, no século XVIII, pelo controle do ouro encontrado nas
Minas Gerais. Em destaque, o misterioso desaparecimento do retrato
do rei de Portugal, D. João V, correlacionado diretamente com a
trajetória existencial de Mariana de Lancastre, protagonista do enredo.
Discutindo literatura e história, analisaremos a colonização lusitana por
uma perspectiva que privilegia o olhar feminino acerca do mencionado
conflito.
PALAVRAS-CHAVE: Romance histórico; Colonização lusitana; Ana
Miranda; Feminino.
Considerações iniciais
Nosso objetivo, neste trabalho, resultante de um projeto de
pesquisa em andamento sobre a ficção histórica contemporânea em
Língua Portuguesa com o título “Literatura e História: diálogos
transatlânticos na ficção de Língua Portuguesa”, é analisar as
implicações estéticas e ideológicas da relação literatura e história no
romance brasileiro O retrato do rei (1991), de Ana Miranda, por meio,
principalmente, do exame do itinerário da personagem-protagonista
feminina que dá a ver, na composição narrativa, o processo de
colonização do nosso território, sob domínio luso na época do ciclo do
ouro, e, assim, a obra em tela, no intuito de reimaginar o passado,
evidencia um ângulo de visão inquiridor, reflexivo e problematizante
de acontecimentos marcantes da empresa colonial lusitana em terras
tropicais, num século caracterizado pela disputa desenfreada pelas
riquezas minerais em abundância no solo brasileiro.
1
Curso de Letras da Universidade de Brasília (UnB)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
62
1. Romance histórico: aportes teóricos
Para Fredric Jameson,
O romance histórico [...] não será a descrição
dos costumes e valores de um povo em um
determinado momento de sua história (como
pensava Manzoni); não será a representação de
eventos históricos grandiosos (como quer a
visão popular); tampouco será a história das
vidas de indivíduos comuns em situações de
crises extremas (a visão de Sartre sobre a
literatura por via de regra); e seguramente não
será história privada das grandes figuras
históricas (que Tolstói discutia com veemência
e contra o que argumentava com muita
propriedade). Ele pode incluir todos esses
aspectos, mas tão-somente sob a condição de
que eles tenham sido organizados em uma
oposição entre um plano público ou histórico
(definido seja por costumes, eventos, crises ou
líderes) e um plano existencial ou individual
representado por aquela categoria narrativa que
chamamos personagens (2007, p. 192).
Os parâmetros do romance histórico foram delineados
durante o período romântico, no início do século XIX (Lukács, 2011).
O escocês Walter Scott foi o responsável pela criação e divulgação das
convenções formais modelares desse subgênero narrativo, apesar delas
serem alteradas, já na mesma época, pelo francês Alfred de Vigny.
Entre os princípios básicos dessa modalidade romanesca, destacam-se
a reconstituição rigorosa do ambiente focalizado, o distanciamento
temporal bem demarcado, o convívio de personagens fictícios e
históricos e, principalmente, a movimentação de um herói mediano,
protagonista de uma intriga fictícia, dentro de um enquadramento
histórico que caracteriza a atmosfera ideológica de um determinado
tempo.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
63
A ruptura do modelo scottiano estabeleceu-se em definitivo
com a crise mimética instaurada pelo romance moderno, colocando-se
em xeque alguns pressupostos básicos do romance histórico
tradicional, principalmente a possibilidade de reconstrução fidedigna
do passado, mediante uma recomposição totalizadora de fatos
fundamentais de outrora. O descrédito do relato linear e da noção de
tempo cronológico inviabilizou o enredo romântico e/ou realista típico
e a reconstituição naturalista de certos ambientes, abalando-se a
confiança do romancista num acesso irrestrito ao passado.
O romance histórico contemporâneo (Esteves, 2010),
tendência literária iniciada na segunda metade do século XX, é
tributário dessa renovação que deu amplo fôlego a esse subgênero,
caracterizada pela reformulação dos parâmetros estéticos e ideológicos
do romance histórico clássico, cuja influência provinha fortemente das
diretrizes conceituais da Nova História. Ao retratar o passado, essa
tipologia romanesca procura explorar os meandros negligenciados ou
intencionalmente obscurecidos pela chamada história oficial, de
orientação positivista, ou, ainda, intenta proceder à humanização e
reavaliação de importantes heróis que o mármore da história parecia
haver esculpido em definitivo. Esse subgênero possui, igualmente,
como característica fundamental, a releitura crítica da História, como
acontecimento social e ação individual. Sem desprezar prontamente as
fontes documentais, o romancista prefere retratar os fatos por uma
perspectiva preferencialmente paródica ou carnavalizada, procurando
reavaliar/reaver os eventos por um ângulo desestabilizador de padrões
estereotipados. Assim, no afã de revisitar o passado, o escritor procura
demonstrar que não tem compromisso com nenhuma ideologia vigente,
optando por uma visão dialógica dos acontecimentos.
O interesse crescente pela temática histórica demonstra que
o "breve século XX" não superou terminantemente a crença no
historicismo, desencadeada pelo Romantismo. Porém, sob novos
pressupostos estético-ideológicos, o romance histórico contemporâneo
revisita a história, preferindo uma visão porventura mais
problematizadora do passado e procurando compreender tanto a ficção
quanto a história como formação discursiva manipulável e
questionável, numa evidente tentativa de subverter modelos
conceituais como “verdade”, “realidade”, “certeza”, “fidelidade”, etc.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
64
O romance histórico contemporâneo pode ser examinado,
ainda, levando-se em conta certos parâmetros teóricos dos chamados
estudos pós-coloniais (Leite, 2012). Os debates recentes sobre
identidade cultural de países colonizados e colonizadores fomentam o
debate sobre nação, história e sujeito. O termo pós-colonial, para uma
subseqüente acepção cronológica, pode significar um modo de
desmistificar, de superar os discursos hegemônicos representados pelo
pensamento eurocêntrico, discutir o período de pós-independência das
colônias americanas e africanas, e mesmo as conseqüências da
descolonização em ex-nações imperialistas, além de problematizar o
legado do processo de colonização européia. Cada processo histórico
resultou em identidades culturais específicas, com situações de
dominação peculiares, o que, todavia, não impossibilita a comparação,
a aproximação de experiências sociais análogas vislumbradas no
romance histórico contemporâneo. O modelo de colonização lusitano,
particularmente, impôs, de maneira similar, estratégias violentas de
conquista e dominação, mesmo assim, a identidade o sujeito póscolonial continua historicamente assinalada por diversos aspectos da
identidade individual e coletiva múltipla, que dizem respeito à classe
social, à etnia e ao gênero em território geográfico, social e cultural
marcado pelo legado da experiência colonial inapagável. A propósito,
Renato Cordeiro Gomes (1996, p. 124), no artigo “O histórico e o
urbano – sob o signo do estorvo duas vertentes da narrativa brasileira
contemporânea” afirma:
(...) o viés que essas narrativas elegem, são as
ligações, os nós, entre a literatura e a mímesis
da História, tentando ler os claros que a
História oficial deixou. Tecem uma história
outra de que não exclui os vencidos e o
cotidiano até então desprezado. De maneira
muitas vezes alegórica, lêem as ruínas do
passado na mira do olhar do presente. Lêem
no passado as ruínas do agora. História e
memória imbricam-se. Os relatos extraem um
momento do passado, para perturbar a sua
tranqüilidade, para redimi-lo, desrecalcando-o
através da lembrança. E ainda mais: frente a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
65
um presente esfacelado nas cidades ilegíveis,
onde o homem fragmentado pelas vivências de
choque
fecha-se
no
individualismo
exacerbado, perdida a possibilidade da
experiência válida para a comunidade, voltamse esses relatos para o passado em busca da
possibilidade da narrativa. Nostalgia da
história, da estória, de ter o que contar parece
ser o signo com o qual pretendem preencher o
vazio do presente.
Sendo assim, vejamos sucintamente como o romance
selecionado, O retrato do rei, de Ana Miranda, aborda as contradições
próprias da condição colonial, sob uma perspectiva pós-colonial,
dando ênfase ao olhar feminino sobre o acontecimento, no âmbito de
uma revisitação histórica problematizadora do império lusitano.
2. O retrato do rei: a colonização lusitana no feminino
De maneira geral, os romances de Ana Miranda focalizam,
na narrativa de extração histórica, o contexto social e ideológico de
cada momento singular vivido pelas figuras ilustres ou anônimas,
fazendo transparecer a complexidade das opções políticas e
ideológicas de cada um deles. E, ao mesmo tempo, os processos de
formação, afirmação e reafirmação da condição nacional. Os romances
revelam outras fronteiras marcadas pelo contexto espacial e temporal,
mas igualmente delineiam, de certo modo, a revisitação dos discursos
sobre o Brasil produzido por cronistas e/ou historiadores.
O projeto romanesco de Ana Miranda percorre os caminhos
da nossa história, num tempo colonial ou não, dando a ver uma
reflexão sobre o caráter nacional de nossa literatura. Assim, apropriarse do estilo e da linguagem de escritores e/ou historiadores, de forma
intertextual ou paródica, significa apropriar-se dos discursos sobre a
nação, ou mesmo do modo de pertencimento a uma determinada
“comunidade imaginada”, que estes intelectuais problematizam no
curso da história da literatura e da cultura brasileira, em romances
como Boca do inferno e Desmundo, para citar obras bem
representativas da questão.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
66
O retrato do rei (1991), segundo romance de Ana Miranda
(1951), é uma narrativa que recria o episódio histórico da Guerra dos
Emboabas, considerado por historiadores como o primeiro movimento
nativista brasileiro, na qual paulistas e portugueses se defrontaram, no
início do século XVIII, pelo controle da região do ouro nas Minas
Gerais. No centro desse embate, paira o mistério do desaparecimento
do retrato de D. João V, o único elemento que talvez pudesse ter
evitado o colapso social de uma batalha sangrenta. Trata-se, na
verdade, de um mote narrativo diretamente correlacionado com a
trajetória existencial de Mariana de Lancastre, protagonista do enredo.
Tal correlação entre a simbologia da efígie de um rei poderoso e a
trajetória de autoconhecimento de uma aristocrata arruinada é o eixo e
cerne do mencionado romance histórico contemporâneo.
O livro é organizado em seções: O contrato da carne; O
retrato do rei; A herança; A guerra; À ventura; Pós-escrito. O conflito
começa em razão de o contrato da carne ter sido retirado das mãos do
frei Francisco, o qual passa a arquitetar ações para que a guerra ocorra
e depois ajuda os portugueses a vencer o mesmo entrevero. O retrato
do rei de Portugal foi enviado a Minas Gerais para ficar com os
paulistas e mostrar aos portugueses de que lado o monarca estava, mas
a efígie acaba sendo escondida por Mariana de Lancastre, que é uma
fidalga portuguesa que vai a Minas para reatar relações com o pai
prestes a morrer, o qual manda um paulista desbravador ir buscá-la no
Rio de Janeiro: Valentim Pedroso. Um longo e penoso caminho rumo
ao interior do Brasil marcará suas vidas no plano individual com um
saldo amoroso jamais quitado.
Os paulistas são representados como mais valentes e
habilidosos no combate, mas os portugueses conseguem confiscar as
armas deles de forma habilidosa. Refugiam-se em Sabará para
fortalecerem-se para a guerra, e cortarem a estrada que traz a carne a
ser comercializada vinda do norte. Os adversários, por seu turno,
atacam, ateando fogo em todo o vilarejo. Outras batalhas acontecem,
mas os paulistas só são definitivamente derrotados quando são
covardemente massacrados pelos portugueses depois de seis dias de
fome e cerco. Mariana, que estava vagando por Minas atrás de Bento
do Amaral, que lhe roubou o retrato do rei, assume para si o amor que
sente por Valentim e vai para São Paulo atrás dele. Ao chegar lá e vêGUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
67
lo noivo de outra, rouba novamente o retrato da Câmara dos
vereadores e foge para o mato, onde, num cenário feérico, joga-se
entre as chamas de uma grande queimada, segurando o famigerado
retrato do rei.
A matéria histórica de O retrato do rei fica por conta da
Guerra dos Emboabas e do ciclo do ouro em Minas Gerais, episódio
relativamente pouco valorizado pelo discurso historiográfico oficial.
Como em Desmundo, essa narrativa também acomoda os
acontecimentos em berço colonial, no século XVIII. Bandeirantes
paulistas e forasteiros portugueses reclamavam o direito de explorar
terras, e as jazidas de ouro existentes no território mineiro. O
desaparecimento de uma relíquia, o retrato de D. João V, personagem
histórico insofismável, desencadeia a guerra, bem como é um dos
vetores das idas e vindas de Mariana de Lancastre, personagem
principal do livro.
Uma mulher/aristocrata arruinada é a personagem basilar
do conflito da Guerra dos Emboabas e do sumiço do retrato do rei D.
João V. Mariana de Lancastre é uma heroína em seus atributos
convencionais, vivendo os dilemas do início do século XVIII. A
narrativa se desenvolve em, basicamente, três territórios: um Rio de
Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Mariana descobre que está falida e
que seu pai, à beira da morte em Minas Gerais, lhe deixou uma
herança. Segue, então, em busca da legítima na companhia da figura
heróica da trama, Valentim Pedroso, um dos principais representantes
paulistas dos conflitos nas Minas. Em meio à sua bagagem, Mariana
descobre o retrato do rei, o qual decide salvar das mãos dos emboabas
e dos paulistas. A presença da imagem do rei é venerada por quem se
vê diante do retrato, é uma compleição constante em toda a narrativa e,
talvez, esse retrato, se entregue como combinado aos paulistas, tivesse
evitado a guerra travada pelo ouro.
O retrato do rei representa/figura a Guerra dos Emboabas e
algumas das personagens mais “ilustres” desse acontecimento de parte
da História do Brasil. A História “oficial” da Guerra dos Emboabas é
bastante lacunar, sabe-se os motivos que levaram ao entrevero entre
paulistas e portugueses, os nomes dos principais envolvidos no conflito
e pouco mais. Na versão oficial dos acontecimentos, a guerra eclode e
não há mais como o governador do Rio de Janeiro, menos ainda o rei
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
68
D. João V, controlar as armadilhas e as cruéis chacinas promovidas em
nome da posse do ouro. Nomes são citados como importantes nesse
acontecimento: Manuel Nunes Viana, Frei Francisco de Meneses,
Fernando de Lancastre, Francisco do Amaral, Bento do Amaral
Coutinho, Valentim Pedroso de Barros. Apesar de o retrato ser inserido
na ficção para dar movimento e caráter simbólico à trama, a imagem
do rei - se o fato estivesse nos compêndios de História -,
provavelmente, não seria tratada de forma muito diversa, como o foi
no âmbito ficcional. O rei D. João V é descrito pelo cânone
historiográfico com os cognomes de o magnânimo ou o rei-sol
português, em virtude do luxo de que se revestiu o seu reinado; alguns
historiadores recordam-no também como o freirático, devido à sua
conhecida apetência sexual por noviças. O narrador de Ana Miranda
mostra-se um conhecedor da monarquia absolutista portuguesa, atuante
nos conflitos desencadeados nas Minas, a ponto de tomar o partido dos
paulistas. A recorrência à efígie na ficção levanta questionamentos sem
respostas, próprios do texto literário: qual a importância do retrato do
rei D. João V para a eclosão e resolução dos conflitos?
Mariana aparece e desaparece ao longo de toda a narrativa,
mas sempre que ressurge é como se fosse um recomeço, com a
hipótese de que Valentim a encontrará e que os dois lutarão juntos
contra os emboabas, e contra certas convenções sociais vigentes. Além
de tudo isso, a introdução de uma personagem com o perfil de
Mariana, em meio à luta pelo ouro, desperta outras indagações, como a
situação da mulher do início do século XVIII: como era a
sobrevivência daquela que não tinha a proteção financeira e/ou
familiar? Como sobrevivia no tempo das minas de ouro, numa época
de homens ávidos pela sua posse do ouro e pelo desejo de luxúria? A
desventura de Mariana deixa muitos questionamentos, afinal, certas
versões históricas não estão preocupadas em investigar tais aspectos,
ou não estavam tempos atrás, mas apenas em apresentar os fatos,
aqueles que tiveram “real” importância para a História. Ana Miranda,
entretanto, com muita sagacidade, mostra as razões conhecidas para o
trágico desfecho histórico, apresentando outras possibilidades
historiográficas, nas quais a mulher daquele tempo poderia apresentar
atuação pública e privada significativa.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
69
As referências às figuras femininas nos episódios que
configuram a Guerra dos Emboabas são uma constante em O Retrato
do Rei. Ao saber que seu pai está morrendo, Mariana começa a pensar
se deve realmente ir para Minas Gerais, questiona seu amanuense a
respeito das mulheres que vivem lá, se existem “damas”. O retrato
delineado das mulheres do início do século XVIII desperta um
sentimento de solidariedade com a figura de Mariana, ao se imaginar
uma menina de apenas treze anos sendo obrigada a casar-se com um
velho e atender às expectativas de semelhante marido que faz dela a
imagem do sofrimento e da incompreensão. Por isso quando, já em São
Paulo, ela retira - novamente - o retrato do rei D. João V da moldura e
se martiriza numa queimada, abraçada ao retrato do soberano de
Portugal, para livrá-lo da indiferença dos súditos brasileiros, é que se
compreende a solidão existencial que domina Mariana, a falta de
esperanças e sonhos, pois sem Valentim Pedroso, só lhe resta o retrato
e com ele em mãos procura a autodestruição. É significativo verificar
que com esse desfecho - morte de Mariana e o sumiço definitivo do
retrato do rei – desaparece na verdade da trama/da ficção os
personagens que nunca “existiram” na versão histórica consagrada,
talvez nem nas variantes mítico-lendárias, mas que são centrais na
trama de Ana Miranda. Parece haver um consenso entre a narrativa
literária e a narrativa histórica de que Mariana de Lancastre e o retrato
português do rei D. João V não devem fazer parte do campo de atuação
da história-ciência, visto que, como a Mariana do romance de Ana
Miranda, muitas outras Marianas desapareceram para sempre,
consumidas no fogo metafórico da História, talvez sem deixar
vestígios.
Considerações finais
Face ao exposto, podemos afirmar que o romance O retrato do
rei, de Ana Miranda, incorpora diversas características consideradas
fundamentais para a configuração do romance histórico na
contemporaneidade, tais como a ressignificação de acontecimentos
pretéritos sob o ponto de vista do subalterno, a dilatação de fatos
históricos relevantes, o uso do paratexto, o redimensionamento de
certas figuras históricas, dentre outros recursos temáticos e formais.
Assim, a reescrita da História, sob a ótica de uma voz narrativa que
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
70
privilegia o ponto de vista de uma fidalga arruinada e abandonada,
redimensiona o discurso historiográfico e reavalia o passado, dando
nova espessura ideológica, por certo um significado alternativo ou
divergente a acontecimentos pregressos, nos quais o olhar privilegiado
do oprimido pode perscrutar, vislumbrar outros modos de revisitar a
história e reescrevê-la por uma perspectiva disjuntiva, tão
problematizadora quanto reveladora de uma “História vista de baixo“
(BURKE, 1992, p. 39).
SUMMARY: O retrato do rei (1991), Ana Miranda, figures
Emboabas War in the eighteenth century, for control of the gold found
in Minas Gerais. Featured, the mysterious disappearance of the portrait
of the king of Portugal, D. João V, correlated directly with the
existential trajectory of Mariana de Lancastre, the protagonist of the
story. Discussing literature and history, we analyze the lusitanian
colonization by a perspective that privileges the feminine look about
the cited conflict.
KEYWORDS: Historical Romance; Lusitanian colonization, Ana
Miranda; female.
REFERÊNCIAS:
BURKE, Peter (org.). A escrita da História. Trad. de Magda Lopes.
São Paulo: Unesp, 1992.
GOMES, Renato Cordeiro. O histórico e o urbano – sob o signo do
estorvo: duas vertentes da narrativa brasileira contemporânea. Revista
Brasileira de Literatura Comparada. Rio de Janeiro, nº 3, p. 121- 130,
1996.
ESTEVES, Antonio Roberto. O romance histórico brasileiro
contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2010.
JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível? Trad. de
Hugo Mader. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, nº 77, 185-203,
2007.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
71
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas pós-coloniais. Estudos
sobre literaturas africanas. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.
LUKÁCS, Georg. O romance histórico. Trad. de Rubens Enderle. São
Paulo: Boitempo, 2011.
MIRANDA, Ana. O retrato do rei. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
72
A QUESTÃO AFRICANA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA
PORTUGUESA E A SUA CONFIABILIDADE: O CASO DA
HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA DE
ANTÓNIO J. SARAIVA E ÓSCAR LOPES
Elias J. Torres Feijó1
RESUMO: A Historiografia portuguesa, aqui no caso a obra de Saraiva
e Lopes, apresenta défices importantes de confiabilidade em relação ao
tratamento de autores, obras e conteúdos relativos aos países africanos
de língua portuguesa, ex-colônias, que mostram o seu caráter
dependente do campo do poder e a impossibilidade de uma História
literária como alegoria nacional.
Palavras-chave:
confiabilidade.
Historiografia;
literatura,
Portugal,
África,
Os objetivos do presente texto são os de conhecer os eventuais
róis de algumas produções literárias vinculadas ao mundo africano de
língua e/ou colonização portuguesa (como corpus previsto de histórias
e dicionários de literatura portuguesa) e focar o tratamento da questão
e as eventuais mudanças ao longo do tempo; por razões de espaço, fica
restrito a edições da obra presente no título. Pretende-se inserir em e
contribuir para estabelecer quadros de reflexão sobre as coordenadas
epistemológicas, académicas e ideológicas da crítica e da análise
cultural, investigar as relações cultura-linguagem-poder, compreender
a estrutura e a dinâmica dos campos culturais e propor eventuais vias
de trabalho e pesquisa historiográficos.
É a nossa hipótese que a Historiografia literária costuma
apresentar uma componente heterónoma e subjetiva nas suas
elaborações seletivas que não obedecem a critérios que garantam a
veracidade das propostas de verdade que elas fazem. As Histórias da
Literatura costumam aparecer e ser recebidas como coerentes
biografias literárias da nação (e a nação como estado); e os Dicionários
1
Grupo Galabra – Universidade de Santiago de Compostela
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
73
como repositórios do inventário dos membros mais destacados dessa
literatura nacional, certamente, respondendo aos objetivos da
historiografia clássica que podemos sintetizar em três: inventariação ,
fixação e consagração, delimitando, assim, quem deve entrar, quem
deve ser transmitido e como, qual a hierarquia relativa e a posição a
ocupar no conjunto. O presente trabalho insere-se, igualmente, na
sequência de outro do mesmo teor, dedicado, fundamentalmente, à
questão galega e, menos, à brasileira na historiografia portuguesa, com
um corpus similar (TORRES FEIJÓ, 2012). Utilizarei, por isso, o
mesmo corpus ali selecionado: a História da Literatura Portuguesa
(HLP) de António J. Saraiva e Óscar Lopes, mas não o Dicionário das
Literaturas Portuguesa. Galega e Brasileira dirigido por Jacinto do
Prado Coelho. Pola continuidade que esta obra apresenta, de revisão no
tempo e sucessivas edições (é o único corpus elaborado durante o
Estado Novo que percorre com continuidade datas chave do processo
dos países africanos de língua portuguesa e de Portugal), o facto de ser
a obra presumivelmente mais utilizada no âmbito acadêmico dos
estudos literários portugueses, ao menos até ao surgimento das
possibilidades da internet e de fontes como wikipédia, e a sua índole de
principal instrumento (in)formativo de muito do professorado de
Literatura Portuguesa, considerei a HLP como o corpus central deste
trabalho; como no caso do artigo citado, restrinjo-me, para manejar um
corpus abrangível e elucidativo, no caso da HLP, às edições primeira,
1955, sexta, 1970; oitava, 1975, a décimo primeira, 1979, décimo 1985
e a décimo sétima, 1996, primeira após a morte de António José
Saraiva. Utilizo-as como exemplos relevantes da problemática que me
proponho analisar, podendo, naturalmente, fenómenos anotados para
uma edição já estarem presentes ou com variantes noutras.
I.
Um repasse aos casos galego e brasileiro:
Remeto para o trabalho citado (TORRES FEIJÓ, 2012) quanto às
considerações mais alargadas sobre o caráter do escolha e contexto de
publicação e desenvolvimento das produções selecionadas; apenas
quero resgatar aqui alguns dados, úteis para a compreensão do assunto
que me ocupa, particularmente referidos à consideração da literatura
nacional, explicitamente focada na introdução da HLP. Com efeito,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
74
quanto à questão da delimitação e inventariação da literatura
portuguesa, no Prefácio da primeira edição da HLP (1955) pode ler-se
que é tomada como base a existência da “comunidade nacional
polìticamente diferenciada que se exprime numa língua literária
determinada”, considerando-se ser a literatura “a expressão cultural
mais completa de uma nacionalidade” (SARAIVA & LOPES, 1955, p.
52), cujos traços, aliás, nunca são definidos. Aludindo à relação entre
“Literatura e nacionalidade”, definem, como “universalmente
adoptado” ser a literatura nacional a escrita na língua nacional por
autores considerados nacionais (p 5); nesta sequência, Lopes e Saraiva
anotam que “quando duas nacionalidades bem caracterizadas e com
centro político e cultural próprios falam uma mesma língua, admite-se
a existência de duas literaturas de língua comum”; e que, “quando, por
outro lado, em dado território nacional se fala e escreve mais de uma
língua, admitem-se tantas literaturas quantas as línguas em que se
escrevem obras literárias”. Enfim, a argumentação das balizas literárias
não é consistente para o caso galego, ao, por exemplo, introduzirem
autores da época Medieval acreditadamente do outro lado do Minho; e
também não o é para o caso brasileiro: para este âmbito, eles afirmam:
“O mesmo [que com o ccaso galego] acontece com o Brasil a partir da
data da proclamação da sua independência”, e que, apesar de que no
século XIX consideram que os escritores brasileiros “estão ligados a
tradições literárias comuns”, de que “as influências luso-brasileiras
nunca deixaram de ser notáveis” e de que “é certo que uma
comunidade lingüística tem enorme importância natural e humana”,
“um sentimento de diferenciação nacional que se exprimiu
polìticamente corresponde aos contornos de uma realidade ocmplexa
que os autores preferiram respeitar”. O carregado é meu,
pretendendo mostrar como o texto torna evidente uma decisão política
por parte dos autores da HLP no que diz respeito ao Brasil, vinculada à
independência também política do país americano, cujo espaço social,
em caso nenhum é tomado como enclave, como espaço social
vinculado a uma metrópole que não convivem no mesmo espaço
2
Desde este momento, para evitar redundâncias que dificultem a leitura, no
caso do corpus, só indicarei a página e, havendo ambiguidade, o ano de
edição.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
75
geográfico (vid. BASSEL, 1991; TORRES FEIJÓ, 2011), da literatura
portuguesa até esse momento. Precisamente, o caso é o contrário do
galego. Agora é invocada a baliza política quando antes se fazia
funcionar a inclusividade lingüística. E isto, note-se, apesar doutras
balizas, de ligações e tradições, que poderiam ser invocadas. De resto,
por exemplo, que fazer com Gregório de Mattos ou Tomaz Antônio
Gonzaga, onde e como situá-los? O assunto (ainda que poderia
começar a falar-se de o problema) prolonga-se em edições posteriores,
que aprofundam mais na delimitação do corpus identitário português.
Tanto assim que a sexta, de 1970, retira do Prefácio toda a alusão aos
casos galego e brasileiro, enfim, a todo e qualquer critério delimitador;
mesmo assim, é rotulado como “Prefácio da 1ª Edição”. Convém reter
particularmente às alusões ao caso brasileiro, porque será na sua
sequência que, em dada altura, os autores comecem a referir-se ao caso
africano.
II.
O campo dos estudos literários dominado polo campo
do poder. A definição das literaturas africanas de língua
portuguesa
Como indiquei noutro lugar (TORRES FEIJÓ, 2012) o corpus
da HLP é delimitado polos seus autores com elementos objectiváveis:
língua e território/espaço social, só perturbado polas agregações e
desagregações ao longo da história dessa naturalidade dóxica: Brasil e
países africanos ex-colónias lusas, por um lado, e o eventual caso
fronteirizo da Galiza por outro. A mesma ausência de explicação do
caráter literalmente ideológico da elaboração historiográfica, que faz
funcionar estas obras como resultado de uma eventual lógica natural e
naturalizadora, afetará o caráter epistemológico dessa elaboração.
A concretização dos critérios enunciados no Prefácio, revela as
primeiras dificuldades no caso galego e, depois, no brasileiro que
contradizem a impossibilidade de discernir a nacionalidade antes
invocada e estaria por isso mesmo interdito. O acúmulo de variantes
observadas nas diversas edições da HLP permitem afirmar que os
critérios invocados apresentam problemas de aplicação mesmo no caso
normal da literatura portuguesa e que a sua problematização começa a
ser um (implícito) problema em si mesmo. Na edição de 1970, a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
76
problematização traslada-se para a epígrafe “Literatura, cultura,
nacionalidade”, que substitui a prévia de “Literatura e nacionalidade”,
onde começa a discutir-se o indiscutido até ao momento: “A história da
literatura levanta problemas muito seus” (1970: 11). A questão é assim
encarada em 1970 e só modificada em 1996, note-se, com a alusão ao
caso africano desde 1975, (1970:12-13):
Nem sempre tal critério [o lingüístico] se
acomoda com outro que também deve ser tido
em conta: o critério da autonomia política
nacional. Assim, apesar de o domínio
linguístico português [olho, não do português]
abranger o Brasil, não há dúvida de que a
literatura brasileira adquiriu características
diferenciais, relacionadas com a progressiva
diferenciação nacional brasileira; e, como seria
difícil, se não mesmo impossível, apontar uma
divisória intrínseca, o mais razoável será deixar
de incluir no nosso estudo da literatura
portuguesa as obras de autoria brasileira
posteriores à data da proclamação da
independência desse país, embora a isso se
oponha a intimidade de certas relações que
chegam a pôr problemas de nacionalidade dos
autores (caso de Gonçalves Crespo).
As obras de naturais do [“Os autores radicados
no, cfr. 1996:12] Brasil anteriores a essa data
serão ainda objecto do noso estudo; conquanto
também julguemos legítimo encará-las, a elas
[1996:12: “eles”] e até a obras de
metropolitanos que viveram no Brasil (caso de
Tomás António Gonzaga), sob o ponto de vista
da formação da consciência nacional e literária
brasileira [desde 79, lê-se na continuação (12):
“O mesmo acontece com as literaturas dos
novos países africanos de língua portuguesa,
que registraremos em pleno processo de
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
77
autonomização”; frase substituída a partir de
edições da década de oitenta, por (1985:12): “o
mesmo acontece com as literaturas dos países
africanos de língua vehicular portuguesa, que
registraremos em graus diversos de autonomia;
e, em 1996 (12), por: “O mesmo acontece com
as literaturas dos países africanos de língua
oficial portuguesa, nos seus vários graus de
autonomia cultural”].
Essa décalage entre critérios e práticas nas edições da década
de 70 em relação ao caso africano, dá conta, precisamente, da
aleatoriedade dos critérios e da complexidade dos assuntos. E os
diversos modos de definir e classificar, uma instabilidade dependente
do campo do poder.
Como se observa, para a HLP, o problema situa-se ao nível de
poder balizar as nações e as nacionalidades, utilizando-se o critério
político (nunca justificado em termos de história literária) da
independência nacional, aliás, como o “mais razoável” (expressão que
não se argumenta, mas que abandona o carácter de decisão
autosuficiente e condescendente -em sentido literal- de 1955 e que
incide mais noutro aspecto negligenciado até ao momento: o da dúvida
epistemológica, que leva a uma exclusão, o que não apaga a insinuação
doutros critérios como possíveis e, ainda que não aplicados, portadores
de dúvidas inclusivas).
II.1. Seleção de parâmetros e indicadores de análise
Em relação ao caso galego e brasileiro, o caso das literaturas
africanas acresce ainda maiores problemas quanto aos três objetivos da
historiografia clássica antes indicados e evidencia o carácter de
apropriação (e, também, de não-apropriação e mesmo de
desapropriação, conforme) nacional e político das escolhas e os efeitos
do campo do poder no da historiografia literária. Para o exame deste
tratamento no meu corpus, utilizo como parâmetros de análise a
definição de “literatura Portuguesa” e o tratamento de diversos tipos de
autores e obras que vai sendo aplicada nas diversas edições em foco e,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
78
como indicadores, a coerência da definição/delimitação de literatura
portuguesa e a aplicação da mesma e o, e no, tratamento de autores
e/ou obras vinculados ao mundo africano de colonização portuguesa no
período objeto da nossa delimitação. A seleção de autores foi feita
tentando abranger o leque de possibilidades quanto às potenciais
vinculações estabelecidas entre o mundo africano e português e o tipo
delas; assim, selecionei para analisar o seu tratamento (e refiro,
também, algumas apreciações tomadas dos verbetes da
pt.wikipedia.org, ou de equivalentes, por serem estes, na autalidade, os
meios de maior difusão e uso quanto à informação e, portanto, as
ideias sobre as pessoas em foco de maior circulação e conhecimento;
quando aludo a Portugal é ao das atuais fronteiras políticas):
Castro Soromenho (1910-1968) nascido em Moçambique, em 1910;
viveu em Angola (1911-1916), Portugal (1916-1925); Angola (19251937); Portugal (1937-1960); França, USA (exílio: 1960-1965); Brasil
(1965-1968), onde faleceu; de família africana, vinculado ao Neorealismo e, anti-salazarista, relacionável com alguma concepção da
literatura africana de língua portuguesa, morto antes da independência
dos
PALOP,http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Monteiro_de_Castro_S
oromenho),
Francisco José Tenreiro (1921-1963) filho de português e africana
sãotomense, vinculado ao Neo-realismo, autor. Em 1953, juntamente
com o angolano Mário de Andrade, publica, em Lisboa, Poesia Negra
de Expressão Portuguesa, uma antologia de textos de novos
intelectuais africanos e vinculável à negritude ou à africanitude, morto
antes da independência; viveu muito tempo em Lisboa e foi deputado
em
Portugal
representando
S.
Tomé
http://global.britannica.com/EBchecked/topic/587486/Francisco-JoseTenreiro;
http://lusofonia.com.sapo.pt/tenreiro.htm,
Baltasar Lopes (1907-1989) nascido em Cabo-Verde, vinculado à
Claridade e ao Neo-realismo, vinculável a de algum modo à eventual
fundação da literatura moderna cabo-verdiana, autor do Chiquinho;
morou em Portugal e em Cabo Verde; foi professor de licéu; faleceu
em Lisboa. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Baltasar_Lopes),
Brito Camacho (1862-1934) português, médico, publicista e político,
autor de textos de temática africana, caso de Contos selvagens, 1934;
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
79
entre outros cargos de relevo, exerceu as funções de Alto Comissário
da República em Moçambique, embora apenas tenha permenecido
em Lourenço
Marques até 1922
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_Brito_Camacho),
Manuel Ferreira (1917-1994); nasceu e morreu em Portugal; viveu
em vários países africanos e em Portugal. Casou com a escritora caboverdiana
Orlanda
Amarílis.
“Quer pelo ambiente da sua obra literária, quer pela divulgação que
fez das literaturas africanas de língua portuguesa, Manuel Ferreira,
português, pode ser considerado como um escritor africano de
expressão portuguesa, que conferiu uma maior universalidade à língua
de Camões” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Ferreira_(escritor),
Luandino Vieira (1935-) nascido em Portugal, depois residente em
Angola, vinculado ao movimento independentista africano, com
produção
literária
antes
do
25
de
Abril,
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Luandino_Vieira).
Vive
presentemente em Portugal.
Estes parâmetros querem selecionar um leque de possibilidades
e vínculos possíveis em relação à nacionalidade (literária africana):
desde um português nascido em Portugal e cidadão português sem
vínculos africanos (além de ter passado dous anos em Moçambique
como representante da administração colonial, Brito Camacho) até a
um africano nascido em Portugal e angolano depois, Luandino Vieira).
III.
2. Definições, inclusões e exclusões
A evolução do tratamento das hoje maioritariamente
denominadas “literaturas africanas de língua portuguesa” correspondese nitidamente com as circunstâncias políticas não só nem
fundamentalmente dessa produção literária, como especialmente da
sua elaboração historiográfica por portugueses residentes em Portugal
e publicada em Portugal. O estado do campo do poder, em cada
momento determina e domina o campo dos estudos literários quanto
às tomadas de posição dos seus membros. No nosso corpus, essas
literaturas são inexistentes na edição de 1955, excepto esta única
referência, dentro do tratamento do Neo-realismo português e sob a
epígrafe “Rumos actuais do realismo (1955:871-873): “Uma das
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
80
fraquezas do realismo em idioma português é o desconhecimento dos
ambientes coloniais. Apesar das tentativas como as do grupo
caboverdeano mais ou menos ligado com a revista Claridade, as de
Castro Soromenho (Terra Morta, 1949) e outros, a de uma recente
antologia de poetas negros, o pitoresco e o ponto de vista
metropolitano continuam a dar a nota literária dominante (1955: 873).
Não parece errado interpretar que alguma tensão sobre o
colonialismo pode ser deduzida nesse trecho transcrito: faltam textos
da ótica africana, parece indicar-se, que possam contrabalançar o mui
implicitamente criticado olhar colonialista. Mas, ao mesmo tempo, os
historiadores não desenvolvem mais o assunto: ou por não nacional ou
por não relevante.
Na edição de 1970, com a guerra em plena fase de guerrilhas
independentistas, e, note-se, imediatamente depois da década da última
grande descolonização africana, encontramos o rótulo de Literatura
Ultramarina, expressão aparentemente neutra mas de fácil assimilação
à declaração oficial da Constituição do Estado Novo de 1951 de
“províncias ultramarinas”, que usa sistematicamente esta expressão no
seu Título VII (DIÁRIO DO GOVERNO, 1951, p. 409-412), logo a
seguir da epígrafe “Realismo ético ou crítico” e seguido do subcapítulo dedicado ao “Vanguardismo vindo dos anos 40”. A questão
africana é tratada dentro do
“realismo contemporâneo”,
pormenorizando que se deu em condições “muito próprias” a partir da
década de 1940 (1970:1064: “embora as suas manifestações mais
evoluídas se possam clarificar de neo-realistas e algumas das obras
capitais sejam da segunda metade do século, o seu desenvolvimento
processou-se em condições muito próprias e deu os passos decisivos
pela década de 1940”).
É a primeira vez que alguma singularidade é dada à produção
africana mas para utilizar, acompanhar e assumir a terminologia do
Estado Novo e são citadas obras como o Chiquinho, que não
apareciam na primeira edição ainda que o romance de Baltasar Lopes
já fora publicado anos antes, em 1947, na Claridade.
Dentro desta epígrafe, são vários os autores citados, ao aludir a
textos, escritos “sob o ponto de vista do colonato” (1970:1064)
histórico-geográficos ou etnográficos, descrições de viagens,
reportagens, entre os quais Brito Camacho; assoma no texto a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
81
referência a uma incipiente regionalidade/nacionalidade africana ou
africanidade, nessa aludindo ao facto de que a autoria “de origem
europeia” “largamente dominante” tem lugar na “literatura
continental africana de língua portuguesa” (carregado meu).
Na continuação, indica-se que, “passada a fase eufórica” (a das
primeiras décadas do século XX , (1970:1064-65) “assiste-se desde a
última guerra ao surto de uma literatura que encara de um modo mais
desassombradamente realista, quer a aclimação do europeu, quer as
relações entre as populações indígenas e alienígenas”. Nesta esfera,
aparecem os nomes de vários autores, sem informação e distinção de
origem entre eles, uns nascidos em Portugal com permanência durante
tempo na África portuguesa e outros nascidos nas colónias, como J.
Augusto França, Maria Graça Azambuja, Reis Ventura, Alexandre
Cabral, Nuno Bermudes, António de Almeida Santos, “além de
Luandino Vieira, a cujos contos, reunidos em Luuanda, 1964, foi
atribuído o Prémio da Novelística que determinou, em 1965, o
encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores”, informa-se3.
A principal atenção no âmbito proposto é dada a Castro
Soromenho, de que se afirma ser “sobretudo significativa” a sua
“evolução” “vinculado ao neo-realismo” 1065): dele afirma-se ter
principiado por textos em que tentava “apreender a sensibilidade
indígena através do folclore, do pitoresco e reacções externas”,
chegando “por fim à maior tensão realista da nossa ficção de
ambiente continental africano, focando os pontos mais típicos de
contacto entre o nativo e o branco”. E alude-se a Tenreiro, ao observar
que a poesia de autor “de ascendência ou raça negra principia a
encontrar mais depressa uma voz própria em língua portuguesa” e em
que “o sãotomense Francisco José Tenreiro é qualificado como
precursor (1970:1065). No entanto, outros autores como Baltasar
Lopes, agora aludido, não aparecem vinculados ao âmbito africano;
Lopes surge, com Manuel da Fonseca e Vergílio Ferreira, no capítulo
“Surto e evolução do Neo-realismo”, no sub-capítulo “Realismo ético
ou crítico” (1055):
3
Os carregados são sempre da minha responsabilidade exceto indicação
expressa.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
82
o romance da adolescência”, pode ler-se “fora
trazido à literatura portuguesa pela geração
presencista [...] Cerromaior, 1943, de Manuel
da Fonseca, Chiquinho, 1947, de Baltasar
Lopes, e Manhã Submersa, 1955, de Virgílio
Ferreira, assinalam alguns dos melhores
momentos da apropriação do tema ao neorealismo.
Dentro da focagem aqui colocada, o mais relevante é o facto de
começarem a assomar alguns outros aspectos caracterizadores (não
invocados como delimitadores) como referências, sobretudo na alusão
a Tenreiro, à negritude, conceito que estava conhecendo auge
importado dos contextos africanos de (ex-)colonização francesa
[négritude, utilizado por Aimé Cesaire em 1935 no jornal L’Étudiant
Noir que fundaram em Paris ele, Léon Gontran Damas e Léopold
Sédar Senghor, entre outros, e começado a ser difundido, com impacto,
na revista Présence Africaine, fundada por Alioune Diop em 1947,
tendo em Senghor o seu difusor fundamental] e ao regional. Na
continuação, nessa atmosfera de eventual negritude, alude-se a que, em
1953,
era já possível a Tenreiro e a Mario de
Andrade publicarem um caderno de Poesia
Negra de expressão portuguesa, depois
ampliado pelo último numa Antologia de 1958,
a quase seguiram em 1962 as antologias
copiogravadas de poetas angolanos e
moçambicanos pela «Casa dos Estudantes do
Império» e ainda, em Angola, as publicações
da colecção «Imbondeiro», Sá da Bandeira, e
«Bailundo», Nova Lisboa, além da de «Autores
Ultramarinos» da referida «Casa dos
Estudantes do Império».
São depois citados alguns autores (1970:1065-1066), indicando
a maioria não ter publicado “ainda um livro pessoal”.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
83
E singular é também o aparecimento de uma epígrafe dedicada
à literatura de Cabo Verde (nunca caboverdeana), diferenciada da
continental antes referida, por merecer, segundo os autores, uma
“consideração à parte” que, aliás, munca é justificada; (1970:1066):
Apesar
de
circunstâncias também
desfavoráveis, como as de nível de vida e a
distância a que o português literário se
encontra do crioulo falado, a maior
proximidade da cultura metropolitana (e
sobretudo da brasileira) e certos fermentos
mais antigos de vida literária possibilitaram um
surto de escritores em torno das revistas
Claridade (…) e Certeza (…).
O tratamento dado é, também, o da deteção de alguma
regionalização (conservando, no entanto, a fórmula metrópole-colónia)
e são citados obras como o Chiquinho do Baltasar Lopes, e a Antologia
de Ficção Cabo-verdiana Contemporânea (1970: 1067).
Imediatamente antes desta referência, lê-se (1970: 1066) esta ambígua
ubiquação:
A vida cabo-verdiana inspira também várias
obras de autoria metropolitana, entre os quais
salientaremos o livro de contos Morna, 1948, e
o romance Hora di Bai, 1962, de Manuel
Ferreira, que, apesar da sua naturalidade
europeia e da sua restante obra de assunto
europeu, está muito ligado à sua expansão da
literatura de Cabo Verde.
Há algumas mudanças de relevo; maior atenção, mesmo que
sendo proporcionalmente mui pouco significativa; uso de expressões
como “sensibilidade indígena” ou “ficção de ambiente continental
africano”, que, ainda que precedida do adjetivo nossa e não detetando
explicitamente autonomia nenhuma, podem ser lidas como
singularidades, reforçadas polo consideração particular da “literatura
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
84
de Cabo Verde”, embora a escolha das palavras (contacto entre nativos
e brancos), evite qualuer manifestação de eventual conflito ou
contradição; mesmo o facto de algumas alusões aparecerem sob o
rótulo do Neo-realismo parece mais subsequente de uma perspectiva
ideológica (política) do que acompanhando critérios estéticos ou
cronológicos: a existência de uma literatura que “problematiza o ser
humano” pode ser aí enquadrável, certamente, mas sobretudo a própria
existência dessa literatura escrita por naturais de ali parece ser ou ao
menos pode ser lido como fator determinante e, em todo o caso, de
uma leitura não condizente com o sistema político, embora a abalar
entre uma leitura mais próxima de um ponto de vista de conflito de
classe e outro mais de emancipação colonial.
Na continuação, é tratado o “Surrealismo vindo dos anos 40”, o
que deixa esta aproximações mais num parêntese inserido no curso de
uma HLP do que numa verdadira singularidade.
II.2.1. 1975: primeira edição pós-25 de Abril
A primeira edição após o 25 de Abril e a consequente queda da
Ditadura e da imposição do seu discurso unitarista em relação às
colónias africanas, dá mais um passo na direção autonomista e presenta
uma viragem no tratamento da “questão africana”. Continua tratandose (portanto, considerando-a portuguesa) e dentro do “Surto e
evolução do Neo-realismo” (rótulo mais próximo do caráter de
intervenção e de envolvimento político de autor e texto literários na
esfera da HLP, como um (1975: 1129) “aspecto particular na evolução
do realismo contemporâneo que precisa ser considerado à parte”, mas a
expressão (colonial) Literatura ultramarina passa para “literatura
colonial” (ou “literatura africana de língua portuguesa”; note-se:
traduzem em singular ultramarina para africana, sem falar na
pluralidade de literaturas e países, mantendo, pois, o englobamento
uniformado passado), cujo estudo é anunciado “até à
descolonização”. Observe-se: reconhece-se uma singularidade mais
explícita do caso africano, mas não suficiente para fazer dessa
singularidade capítulo à parte. Ao mesmo tempo, contempla-se como
baliza delimitadora a independência das colónias, passando, então e
como consequência, a atividade literária nelas desenvolvidas a ficar no
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
85
âmbito da literatura portuguesa. Mui provavelmente, as hesitações que
o conjunto da abordagem desta edição oferece, põe de manifesto
hesitações dos próprios autores num ambiente de mudança política
drástica, até do conjunto de possibilidades plausíveis meses atrás,
potencial geradora de algumas desorientações ou insuficiências à hora
de caraterizar a atividade literária (no seu presente e no seu passado)
decorrrentes das novas situações políticas; e indicia, igualmente,
alguma pressa por responder ou ir ao encontro das novas
circunstâncias; talvez isso explique que na seção de bibliografia
correspondente ao capítulo em causa, continue mantendo-se a epígrafe
“Literatura ultramarina”. Apesar do caráter provisório que estas
incongruências podem sugerir, elas mostram o caráter complexo e
dependente dos estudos literários da situação do campo do poder,
quando já as possibilidades enunciativas, do dizer, estavam mais livres
e abertas; e, do mesmo modo, a índole complexa das crenças de campo
a respeito da biografia da nação, que não sabe lidar com o passado
quando a articulação do presente, político e social, com o que se julga
o passado deve ser congruente, numa instalação no orgânicohistoricismo em relação ao conceito de nação em que o que a esta
defina deve estar articulado e servir para o que esta foi e no quadro em
que ela muda de maneira radical.
Do mesmo modo, mantém-se o matiz singular dentro do
realismo contemporâneo na consideração dessa literatura, a que já
assistíamos em 1970. É precisamente a índole autonomista da própria
existência e conteúdos dessas obras que parece conferir a essas
produções o qualificativo de neo-realista, classificação não transferível
à produção e evolução dessas literaturas exceto que consideradas parte
da literatura nacional portuguesa. Esta edição conserva o indicado
sobre Tenreiro, Mário de Andrade e a relação de escritores/as da
edição de 1970, com alguns acréscimos. Como for, o paradoxo e as
dificuldades de adscrição são evidentes; o uso de expressões como
“condições muito próprias” e “passos decisivos” mostram uma
singularidade sobre a qual os autores (ainda) não ditaminam, utilizando
fórmulas que podem insinuar tanto pertença como desapropriação. Esta
edição, aliás, continua distinguindo entre a “literatura continental
africana de língua portuguesa” e a reiterada “consideração à parte”
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
86
que lhes merece o caso de Cabo Verde, e assinalando a dominância da
autoria de origem europeia.
Portanto, o que mudam, substantivamente, são não tanto as
análises (nem mesmo os esquemas frásicos, ainda que certamente é
maior o espaço dedicado a esta alínea) mas as palavras e, assim, os
conceitos. Agora lê-se “literatura colonial” (o carregado é meu) no
título, o oposto à “literatura ultramarina”, em congruência com o
estado de cousas e de conceitos após o 25 de abril); se em 1970
tratava-se de uma “fase eufórica” até à “última guerra”, em que se
inicia uma literatura (1064-1065) “que encara de um modo mais
desassombradamente realista, quer a aclimação do europeu, quer as
relações entre as populações indígenas e alienígenas”, em 1975 isso
passa a ser uma literatura de “mistificação exotista” “esgotada” e não
apenas “passada” (“descrições de viagem e campanha, reportagens,
estudos histórico-geográficos ou etnográficos”, indicando-se que, “a
partir de 1930, surge um tipo de ficção, no romance, conto e drama,
que, sob o ponto de vista do “colonato”, tende a exaltar a exuberância,
a sensualidade e a cor da vida tropical”), cujo 'esgotamento', faz
aparecer uma literatura (1129-1130) “que encara de um modo mais
crítico, quer a aclimatação do europeu, quer as relações entre colonos
e nativos”; entre os autores citados volta estar Luandino Vieira, a
quem agora se presta maior atenção e desenvolvimento (frente à
manutenção de Soromenho e Tenreiro nos limites da edição de 1970),
e do qual é acrescentada agora a alusão à sua estada em prisão, num
tom patriótico angolanista (“preso durante 11 anos por colaboração
com os patriotas angolanos”), indicando a sua actividade literária
principiar “por obras de directa e linear denúncia anticolonialista”, e
agora indigitando o responsável do encerramento da SPE: “Salazar”. O
foco em Luandino leva a reofrçar a apreciação de Soromenho como
um antecedente, nosso (português vs. Luandino, devemos entender; o
itálico é meu):
Já antes Castro Soromenho (...), principiando
por uma série de contos e romances em que
tenta apreender a sensibilidade indígena através
do folclore, do pitoresco e reacções externas
(...), reduz depois a uma narração original A
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
87
Maravilhosa Viagem dos Exploradores
Portugueses oitocentistas (1846-1948), e chega
por fim à maior tensã realista da nossa ficção
de ambiente continental africano, focando os
pontos mais típicos de contacto entre o nativo e
o branco (…).
As mudanças também vão no sentido de tentar solucionar as
adscrições prévias à independência das colónias e harmonizá-las com a
nova situação política. É o caso da introdução da citação de Manuel
Ferreira que aparece na edição de 1970 cuja nova formulação é esta
(1132): “A vida cabo-verdiana inspira também europeus, como Manuel
Ferreira”. Quer dizer-se, Ferreira, em virtude de uma adscrição
nacional, passa de autor regional proto-cabo verdiano a europeu ligado
ao processo literário (e não à literatura) de Cabo Verde.
De resto, o caráter parentêtico conserva-se: a epígrafe é, mais
uma vez, continuada polo “Surrealismo vindo dos anos 40”.
Igualmente, mantém-se a alusão a Brito Camacho no contexto e termos
da edição de 1970, como também o Chiquinho na esfera do neorealismo português.
II.2.2. A viragem de 1979 e as contra-viragens seguintes
A edição de 75 mostra vários giros em relação à de 1970 para o
tema que me ocupa: maior dedicação e extensão no tratamento,
focagem anti-colonial dos assuntos africanos e novas adscrições de
autores à literatura dos respetivos países. Esta lógica é certamente a
existente na seguinte edição de 1979, que apresenta modificações no
Prefácio mas não afetando o assunto aqui analisado.
Mas sim na seleção e focagem dos conteúdos relativos à
questão africana. Com efeito, a edição de 1979, cinco anos após o 25
de Abril, passado o contexto do PREC e alicerçado o novo regime
parlamentar português, mostra a mudança mais radical neste sentido. A
começar
pola
inclusão
desta
epígrafe
(1979:1150):
“Da literatura colonial ao início de novas literaturas africanas de
expressão portuguesa”, assim, do singular para o plural, em que
parece evidenciar-se uma classificação sobre a atitude manifestada nos
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
88
textos e interpretada polos autores. A epígrafe conserva-se inserida no
capítulo habitual, “Do Neo-realismo á actualidade”, mas, agora,
encerrando-o, o que contribui para salientar mais a autonomia deste
âmbito. De resto, parece ter-se achado uma fórmula definitória dessas
literaturas mostrando alguma singularidade entre elas.
Em relação à edição de 75, poucas variações são introduzidas a
respeito da produção que aparece explicitamente como portuguesa e
elas vão dirigidas a salientar a produção africana e o caráter conflitivo
em termos colonialistas da situação vivida; assim, agora (1979:1150)
na “literatura colonial [em 1975: “continental”] africana” a produção
dominante “era” mas já não “é” a de “origem europeia”; e os autores
aludidos, entre os quais Brito Camacho, escrevem “sob o ponto de
vista do colonizador” e não do “colonato”, como na versão de 75 e de
70; ao aludir ao “esgotamento” da “mistificação exotista”) entre os
nomes incluídos no âmbito desta literatura, “que encara de um modo
mais crítico, quer a aclimatação do europeu, quer as relações entre
colonos e nativos”, desaparece Nuno Bermudes (por considerarem
colonialistas os textos deste escritor retornado a Portugal e 75?; já na
edição de 75 suprimiram o nome de Alemida Santos, em relação à de
70); a maior mudança neste âmbito é a ênfase dada a Soromenho, que
volta a ser tratado (1151), agora mais alargadamente e em termos
abertamente elogiosos no seu anti-colonialismo, em que se diz ele
elaborar “a mais conseguida e corajosa denúncia das condições de
exploração colonial vinda da parte de um dos seus involuntários
agentes”, que (carrego as diferenças significativas com a versão de 75):
tentou sobretudo apreender a sensibilidade
indígena através dos seus mitos e ritos tribais
e da sua estrutura social ameaçada pelos
europeus, entre outros temas (...) que se
interessou
depois
pelas
explorações
sertanejas, entre outros estudos históricos e
etnográficos, mas que, finalmente, se decidiu
a focar momentos patéticos e típicos do
colonialismo, como o imposto indígena
acarretando o trabalho forçado, o
desprestígio dos sobados tradicionais, as
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
89
violências mais desapiedadas e o próprio
esmagamento dos primeiros colonoscomerciantes através de sucessivos ciclos de
monocultura e mineração”.
Aquela pluralidade referida à produção africana, prolonga-se
num tratamento diferenciado por países; Luandino desaparece,
portanto, do espaço em que estava para ocupar um lugar de destaque
nas linhas dedicadas à literatura angolana. Depois do espaço dedicado
à produção portuguesa, lemos (1151-1152):
O processo de diferenciação da novelística
africana, quer temática, quer linguística (por
influência oral das línguas nativas), quer
mesmo como forma de consciência de uma
identidade nacional (ou africana), tem raízes
mais antigas e, por enquanto, atingiu formas
globalmente mais evoluídas em Angola.
Nestas informações, os autores salientam (1979:1152), e
evidenciam, assim, com hesitações e eufemismos, as dificuldades de
adscrição nacional:
o carácter complexo, por vezes muito
assinalável mas episódico, das diversas
contribuições individuais ou grupais, incluindo
negros de diversas etnias, classes e formações
culturais, mestiços em vários graus de
enraizamento, brancos portugueses ou outros,
mais ou menoss angolanizados.
Agora, começam a ser resgatadas produções da década de 40,
50 e 60 que antes não foram consideradas, com o qual se salienta a
desatenção a esta área nas edições historiográficas anteriores; observese, para o caso da já literatura angolana (1152):
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
90
Para a formação de uma literatura angolana
viriam a desempenhar um importante papel
correntes e órganos colectivos como o
movimento "Vamos descobrir Angola!", 1948,
a Antologia dos Novos Poetas de Angola, 1950,
pela Associação dos Naturais de Angola, a
revista Mensagem, 4 números, 1951-1952, a
revista Cultura (13 números, (1957-196), a
colaboração literária em Jornal de Angola
(1953-1965), as antologias de Poesia Negra de
Expressão Portuguesa de Mário de Andrade e
Francisco José Tenreiro, 1953, ou apenas do
segundo, Paris, 1958, que publicou os dois
primeiros volumes de Antologia Temática
Africana, Lisboa, 1975 e 1979, as edições da
Casa dos Estudantes do Império [várias, entre
59 e 62], as revistas Vector (…), Nogma (…),
as colecções Imbomdeiro (…), Capricórnio
(…), a revista Kuzuela e os cadernos Bantu da
direcção de David Mestre.
A atenção maior é dada a Luandino Vieira. Há acréscimos no
seu tratamento derivados do aumento da sua produção e algum outro
que parece tender a evitar qualquer tipo de percepção da sua literatura
como dependente de outra, o qual, no contexto, pode estar
manifestando a evitação de leituras mais genéricas ou categóricas, de
índole cultural, social ou política; assim, se os contos de Luuanda
‘revelavam’ antes (1975:1130) “uma assimilação da arte estilística e
efabuladora de Guimarães Rosa às virtualidades do português falado
nos musseques e às tensões coloniais aí vividas”, agora (1979: 1154)
“revelam uma arte estilística e efabulatória afim da de Guimarães Rosa
mas enraizada nas virtualidades so português falado nos musseques
sob tensões coloniais”.
A atenção à produção angolana estende-se polas páginas 1154 e
1155; na 1156 começa a dada à literatura moçambicana, até à metade
da página 1157, em que começa a referência à “situação específica” de
Cabo Verde; mais da metade da 1157 até bem entrada a página 1158 é
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
91
dedicada à “literatura caboverdiana”, seguida, brevemente, da alusão
(1158) à colectânea Mantenhas para quem luta! (antologia de poesia
guineense, de 1977) “a primeira manifestação de literatura em
português ( e em crioulo) de implantação guineense” “que abrange 14
autores, muito directamente empenhados na edificação revolucionária
de massa”, reforçando-se, pois, a sua índole com a linguagem própria
dos movimentos de libertação nacional da altura.
No caso de Cabo Verde, há mudanças significativas em relação
às edições de 70 e 75, já nas frases iniciais, que saliento em carregado
(1979:1157):
Apesar
de
circunstâncias particularmente desfavoráveis,
como as das secas cíclicas, o baixo nível de
vida, a existência de dialectos crioulos
possibilitando
intercomunicação
generalizada, a maior proximidade da cultura
portuguesa [antes “metropolitana” e da
brasileira, certos fermentos mais antigos de
aculturação e vida literária ocasionaram um
surto de escritores em torno das revistas
Claridade (…) e Certeza (…).
E prossegue, com entre outras, alguma menor, como a retirada
da qualificação de António Aurélio Gonçalves como “excelente,
embora parco” em 1975:1131, por exemplo) e outras mais profundas,
como a retirada, também deste parágrafo, procedente de 70 e 75 (1975:
1132): “A qualidade geral desta produção, que, em muitos casos,
atinge o nível do melhor realismo, é notável; e um estudioso não
poderá ainda perder de vista muita obra dispersa em revistas ou
circunscrita à área de difusão do crioulo”, uma observação, que, pondo
de parte riscos de subjetividades, incluia em cheio o “crioulo” na
literatura portuguesa, o que quebraria o princípio linguístico invocado,
a menos que o crioulo fosse considerado dialeto do português.
O acréscimo final é também de importância (1979:1158):
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
92
O espaço patético e pitoresco que vai desde a
miséria colonial até à emigração cabo-verdiana
é bem apreendido nos contos a que Orlanda
Amarílis deu o título de Cais-do-Sobré té
Salamansa, 1974, tal como no romance Voz de
Prisão, 1971, do seu marido o escritor
português Manuel Ferreira com obra dedicada
a Cabo Verde e a outros países agora
emancipados do regime colonial português.
Aparece Orlanda Amarílis (com obra eventualmente não
considerável até 75 pola prontidão da publicação) e, sobretudo, volta
refazer-se a apreciação sobre Manuel Ferreira, agora identificado como
“escritor português” mas ubiquado, sem a assistência da lógica
elaborada nesta HLP, na literatura de Cabo Verde.
Conclui o capítulo com referências, novas, a Francisco José
Tenreiro (que em edições prévias vinha logo a sseguir de Soromenho),
de quem agora se diz (1158) “primeiro poeta consciente dos valores
positivos da condição africana, então identificados com a chamada
negritude” e “de que o Novo Cancioneiro neo-realista publicou, em
1943, Ilha do Santo Nome”, mencionando igualmente como poeta
negro precursor” Costa Alegre, merecendo também “ser assinalados”
Alda do Espírito Santo, nacida em 1926, de quem é citada a colectânea
em É nosso o selo sagrado da terra, 1978, e ainda que, “sem
publicação de livro individual”, Marcelo Veiga, nascido em 1892,
Tomás Medeiros e Maria Manuela Margarido, da qual se cita uma obra
de 1957.
Como pode verificar-se, o conceito de negritude, marca sóciopolítica de primeira fileira no repertório anti-colonialista e traço
identificador da singularidade como identidade, é já explícito,
juntamente com o caráter prestigiado dele (os valores positivos da
condição africana), a manifestação de antiguidade como alicerce e
direito à existência diferenciada (raízes antigas), e a elevação à tona da
existência de línguas nacionais (prestigiadas e legitimadas, sem
recorrer a conceitos como dialetos ou locais). De facto, e
particularizado no caso angolano, este é focado com perspetiva
implicitamente protossistémica (TORRES FEIJÓ, 2011, para este
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
93
conceito), salientando fatores e elementos alguns dos quais já presentes
em períodos anteriores (e que podiam ter aparecido, portanto, em
edições prévias) mas que só agora são consideradas.
As novas circunstâncias do campo do poder, portanto, afetando
os campos dos estudos literários, no caso, reconfiguram o discurso
analítico e os items a considerar, contradizendo ou refazendo
afirmações, focagens e perspetivas de décadas passadas realizadas em
edições prévias desta HLP. O tratamento do “escritor português”
Manuel Ferreira é exemplo disto e do caráter justiceiro, compensador
na alegoria, que se atribui à história da literatura: ele continua o seu
trânsito para fixá-lo como escritor português mas permanecendo
alguma ambiguidade quanto a (o grau de) a pertença à literatura de
Cabo Verde, sendo ele afirmado como português mas não definindo-o
explicitamente numa ou nas duas literaturas (1158):
O espaço patético e pitoresco que vai desde a
miséria colonial até à emigração cabo-verdiana
é bem apreendido nos contos a que Orlanda
Amarílis deu o título significativo de Cais-doSobré té Salamansa, 1974, tal como no
romance Voz de Prisão, 1971, do seu marido o
escritor português Manuel Ferreira, a que é
justo aqui relembrar pela sua obra de
ficcionista e de estudioso especialmente
dedicada a Cabo Verde, mas também a outros
países agora emancipados do regime colonial
português.
A lógica fixada pola edição de 1979, quer dizer-se, o
tratamento da questão africana de língua portuguesa na HLP
salientando o caráter emancipante de vários textos e autores de antes
da descolonização e salientando alguns dos percursos seguidos depois
da independência das ex-colónias africanas, quebra-se na edição de
1985. Certamente, a lógica assentava em que a edição de 1979, ao estar
quatro anos distante da de 75 e da independência dos países afrianos,
permitia entender como estrutural o que as alusões na edição de 75
podiam ser interpretadas como conjunturais, fruto do estado de cousas
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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mudado tão drasticamente em 1974-75. Os autores, no entanto,
optaram por suprimir a epígrafe dedicada às literaturas africanas. Na
edição de 1985 ela e elas já não estão. O facto contrasta ainda mais
com outro: Dentro do corpus que utilizo, não existe referência alguma
à questão africana nos preâmbulos e introduções editoriais até 1985.
Quer dizer-se, em edições saídas depois do 25 de Abril não existe
reflexão de índole similar à referida à questão galega ou brasileira.
Mas agora, nesta de 1985, sim aparecem, e afirma-se, logo a seguir às
referências à literatura brasileita já citadas: “o mesmo acontece com as
literaturas dos países africanos de língua veicular portuguesa, que
registaremos em graus diversos de autotomia” (1985:12). Saltam as
contradições: é possível, na também lógica de Histórias da Literatura
como esta, que definem adscrição por nacionalidade e língua, e
manifestando a existência de “literaturas dos países africanos”, um
texto ou autor pertencer a duas literaturas? Como podem ser definidos
“graus diversos” de autonomia? E que significa, para o caso,
autonomia? Dependência/independência? Política? Cultural? Quando
fixá-las? Além disto, as consequências do novo estado do campo do
poder e as suas afetações ao campo dos estudos literários, fazem com
que a presença, mínima, de Brito Camacho, que era citado como autor
de Contos selvagens (1970:1129, por exemplo) agora desapareça,
embora se ,anenha nas edições posteriores desta HLP referência
bibliográfica sobre ele (1985: 1016) e, também, como seguidor
naturalista antecedente de tendências realistas (1985: 1071-1072, que
não aparece na edição de 1955); Henrique Galvão, que apenas era
citado na epígrafe colonial com Camacho (1970: 1150), e outros
desaparecem também; ‘saneados’, pois, por razões políticas da HLP,
cujos autores, aliás, não tomaram a previdência de revisar a
bibliografia, tornando mais flagrante o caso?
Ora, se estes autores, que desaparecem provavelmente pola
índole colonial(ista) das suas obras (portanto, pola assunção da
heteronomia do campo dos estudos literários em relação ao campo do
poder), o mesmo acontece com Tenreiro ou Luandino (este aparece
citado apenas no título de um texto dado como bibliografia no Capítulo
“Do Neo-realismo à actualidade”.), cujos textos e ações eram focados
no lado anti-colonial(ista), ocultados igualmente pola consideração
política mudável dos seleccionadores, que, talvez, cedem à
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
95
historiografia africana o seu tratamento mas que não se apropriam
deles, pois seria um ato (politicamente) errado (por) colonial. Fica ali,
na edição de 1985 (p. 1093) o Chiquinho, editado pola Claridade,
como resto contraditório, o que redunda mais na incoerência
ocultadora, numa obra que quer alicerçar-se, precisamente, na
coerência orgânico-historicista da nação, como vimos a partir das
definições da literatura que a precediam. Já na edição de 1996, a esses
desaparecimentos une-se o de Baltasar Lopes e o Chiquinho: quanto
aos nossos indicadores, de todos os autores citados, agora só resta
Castro Soromenho, desaparecendo os mais4, aparecendo, Soromenho
em “Surto e evolução do Neo-Realismo” (1996:1041):
Pelas suas afinidades com o neo-realismo,
embora tematicamente integrado na literatura
angolana, a que serviu de precursor, deve ser
aqui mencionado Fernando Monteiro de Castro
Soromenho n. 1910-01-31 – f. 1968-06-19),
que, depois de várias obras de fundo
etnográfico e histórico, se salientou plela
trilogia de romances do ciclo dito de Caxamilo
(Terra Morta, 1949; Viragem, 1957; A Chaga,
1972), que pateticamente denunciam a
violência colonial numa típica região do Norte
de Angola, com a degradação das estruturas
gentílicas e através de um processo inumano de
4
Confronte-se apenas como exemplo estes dous parágrafos:
1985 (p. 1088): Cerromaior, 1943, de Manuel da Fonseca, Chiquinho, 1947,
de Baltasar Lopes, e Manhã Submersa, 1955, de Virgílio Ferreira,
assinalam alguns os melhores momentos de apropriação deste tema [o
romance de adolescência] pelo neo-realismo
1996: (p. 1041): Cerromaior, 1943, 5ª edição, revista, 1982, de Manuel da
Fonseca, e Manhã Submersa, 1955, de Virgílio Ferreira, assinalam alguns
os melhores momentos de apropriação deste tema [o romance de
adolescência] pelo neo-realismo
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
96
que os próprios agentes administrativos de base
sofrem, por ressaca, as consequências
degradantes,
sem nunca ficar claro se é autor da literatura portuguesa ou da
angolana, tenuamente justificável polo entendimento, sempre
implícito, daqueles “diversos graus de autonomia” nunca definidos…
Finalmente: por exemplo, um precursor de uma literatura pertence a
essa literatura? E, não pertecendo, a qual pertence? Os restantes
escritores que apareciam neste âmbito em edições anteriores, por
razões, calculo ou, ao menos, assim pode ser interpretado, de índole
política, ficam fora. Castro Soromenho permanece sem deixar de
persistir a ambígua ubiquação, a permanente irresolubilidade da
questão.
Esta focagem, unida ao desaparecimento de referências a Brito
Camacho e aos outros autores que pareciam aludidos juntamente com
ele, salientam ainda mais o carácter de resto compensador e
oferendado que estas frases apresentam, no quadro propositivo que
aqui realizo. Apesar disto tudo, a edição mantém a referência às
literaturas africanas no capítulo introdutório, mesmo agora, ainda
modificada em relação à versão de 1985; o que não parece
razoável/razoado é para que é conservada a alusão5, exceto que seja
para justificar esas linhas dedicadas a Castro Soromenho…
A última das edições analisadas, 1996, pode aparecer como
síntese do desconcerto; os autores (agora, já, apenas, como principal,
Óscar Lopes, pois António José Saraiva falecera a 31 de dezembro de
19936) continuam modificando também os capítulos introdutórios, em
5 Agora, lê-se (1996:12): o mesmo acontece com as literaturas dos países
africanos de língua oficial portuguesa, nos seus vários graus de autonomia
cultural”.
6
A edição vem acompanhada de uma “Observação”, logo na página inicial:
“Óscar Lopes é responsável único pela redacção do texto referente à 7ª
Época (ÉPOCA CONTEMPORÂNEA). Por acordo entre os dois principais
autores, as edições futuras serão também actualizadas por Isabel Pires de
Lima, Margarida Vieira Mendes e Leonor Curado neves”. E numa nota na
página seguinte, pode ler-se: “António José Saraiva (1917.12.31 -
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
97
que definem e redefinem os seus conceitos de literatura, nação e
literatura nacional7. Em comparação com a edição de 1985, esta, na
alínea “Literatura, cultura, nacionalidade”, que vinha sendo modificada
desde a primeira edição, aparece sem o seguinte período (1985:11), o
qual pode estar manifestando algum descrédito na visão teleológica da
atividade literária e na detenção de métodos fiáveis:
Como história [a história da literatura], supõe
um certo progresso humano geral (que nela
está representado, quer pela complexidade
estrutural crescente de matéria e forma, quer
pelo melhoramento da apreciação subjectiva
postulado em qualquer juízo actual de de
valor), progresso humano geral com fases
qualitativas reconhecíveis e cujos lineamentos
gerais até, pelo menos provisoriamente, nos
considerámos já conhecidos, pois sem o
conhecimento de
tais
lineamentos
não
disporíamos de métodos de investigação, de
quadros de referência cronológica ou outra.
III.
Conclusões
Do ponto de vista epistemológico, a HLP oferece, neste aspecto e
comparado com o parâmetro da sua definição de “literatura nacional” ,
um leque de construção e deconstrução do conhecimento não
justificado nem alicerçado. O caso africano espelha que, de regra, não
existe autonomia dos estudos literários nem da historiografia literária:
não porque esta sirva, de alguma e não sempre simples maneira, a
1993.03.17). Este livro testemunha mais de quarenta anos de amizade viva,
firme e produtiva, entre duas pessoas cuja diversidade de opiniões apenas
fomentava a mais viva e contínua discusssão acerca dos textos aqui
presentes, e questionados até ao limiar imprevisível da morte”.
7
De modo contrário, agora são acrescidos novos parágrafos, em maior
medida relativos ao caso galego. Estas questões foram tratadas com maior
pormenor e abrangência em TORRES, 2012, para onde remito.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
98
interesses e disputas que se produzem no campo político (aceitando,
em ocasiões, as interdições ou orientações de dominantes ou
homólogos no campo do poder), mas sobretudo porque, na imensa
maioria dos casos, ao ser a história da literatura nacional/da nação, ela
interioriza como natural nacional todas as variações ou óticas
dominantes que podem produzir-se; e, derivada duma doxa de campo,
sem explicitá-las, porque seria aceitar o caráter heterónomo destes
estudos que de regra se apresentam como autónomos e com lógicas
próprias mas onde funcionam, à mistura, opiniões estéticas dos
autores, aceitações e/ou elaboração de cânones e apreciações de índole
social e cultural. Essa não explicitação, que exime de esclarecimentos,
conduz a apresentar como lógico o que é resultado seletivo e subjetivo
de determinadas escolhas e manifesta a insuficiência destas
abordagens. Ao mesmo modo, uma determinada conceção da nação/ da
comunidade, sinónimo de estado como entidade política, está presente,
habitualmente, sem que isso também não seja explicado ou seja
detetada contradição entre o enunciado e o seu desenvolvimento.
A evolução do tratamento das hoje maioritariamente
denominadas “literaturas africanas de língua portuguesa” correspondese nitidamente com as circunstâncias políticas. Entre os seus efeitos,
pode ser destacado que o silêncio sobre o processo colonial emerge
com força quando a liberdade está assentada; em ocasiões, a baliza que
era intransponível, da nação ou da língua, é transgredida. O problema
não está em determinadas atitudes dos compiladores (ainda que,
naturalmente, a ausência de liberdade condiciona, determina essa
produção, nas suas qualificações); o sistema de seleção utilizado,
combinando a nacionalidade com a língua encontra problemas.
Manifesta a forte componente heterónoma de propostas
historiográficas mesmo em literaturas estáveis e ainda em propostas
canonizadas como esta HLP. A obra deixa de ser confiável, a menos
que entendamos a historiografia como algo subjetivo e submetido ao
puro arbítrio do seletor.
O caráter patrimonial e a ocultação do corpus: Como tive
oportunidade de indicar ara o caso galego e brasileiro (TORRES
FEIJÓ, 2012, p. 26 e ss.) a consequência básica destes casos assentes
em considerações de grandes narrativas, alegorias nacionais e
consideração orgânico-historicista da literatura, que alertam, em geral,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
99
para a descnfiança da própria gênese e construção destas
historiografias, é a ocultação que geram de processos e, até, de autores
ou obras, e não por razões de espaço. Um dos fundamentais problemas
desas perspetivas historiográficas não está na vontade dos autores mas
nas balizas classificatórias, quase indiscutidas, que utilizam e que se
impõem a eles de modo coercitivo de tal intensidade que qualquer
explicação fora dessas balizas é imediatamente contraditória.
Referimo-nos às balizas do ser nacional e ao seu binarismo
consequente: nacionalidade A ou nacionalidade B, à necessidade de
situar autores/as e obras numa ou noutra literatura; a superação de
termos complexos como “luso-africano”, que dão conta difusa e
podiam aparecer como posição colonialista, conduz a um beco que
acaba por fazer que, para o caso aqui tratado, a edição de 1955
encontre o seu maior parecido com a de 1985: que as edições feitas
com as literaturas africanas em plena independência se pareçam mais
às que eram feitas em plena ditadura colonialista, e isto por razões
antagônicas. Estão em jogo mecanismos de compensação, modos de
patrimonialização, de apropriação e de cedências patrimoniais, em que
o historiador atua (e julga que deve atuar) como porta-voz da nação (de
determinado sentimento e setor nacional). Assim, segundo a HLP, em
1975 havia uma literatura colonial, mas tratada como reconhecimento
do outro, como substitutivo, como paliador do silêncio, o que se
prolonga até 1979; a partir de 1985 já eles podem tratar do seu
património; é devolvido, depois de penar e penitenciar e dar os
oportunos esclarecimentos. O conflito, frente ao caso galego ou
brasileiro, no caso africano, é vivido in situ, o que faz aumentar a sua
magnitude. A solução aqui adotada é, por exemplo, parcialmente
diferente à brasileira ainda que (isto é uma apreciação subjetiva) o peso
dos autores reivindicáveis polos patrimonializadores brasileiros frente
aos seus homólogos lusos pareça menor.
Como consequência disto, a proposta de verdade desta HLP, como
modelo doutros do mesmo teor, não é confiável; acertam-se e saldamse contas e deixa-se em terra de ninguém uma literatura que ninguém
explica, uns porque a consideram alheia ao processo nacional, outros
porque a repudiam O caso africano tem outras consequências: deixa de
considerar portugueses a quem antes considerava, sem que mudassem
as conjunturas de produção dos textos (deixando, momentânea e
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
100
contraditoriamente, só rasto do Chiquinho de Lopes), supondo-se que
eles devem ser já independizados também da Históira da Literatrura
Portuguesa, alegoria da nação lusa. Mas colocam fora da História os
que antes estavam nela: Galvão ou o Brito Camacho de Contos
Selvagens: por serem autores (coloniais) portugueses ou por serem
considerados na sequência africana?. A história da literatura aparece,
deste modo, como um panteão nacional em que se tem direito ou não
de entrada. O direito está em se alguém está disposto a patrimonializar
obra e/ou autor; e se tem autoridade, legitimação e capacidade para
impor o seu critério. Na realidade, o que está em jogo é a apropriação
patrimonial, a sua legitimidade e legitimação. As histórias da literatura
aparecem-se, na realidade, como histórias do património da
comunidade, com um tronco central indiscutido e indiscutível e um
conjunto, mais ou menos alargado desse potencial património objeto
de discussão ou disputa. A negociação, a compensação e a cedência de
património em função das circunstâncias do campo do poder e da
capacidade do Outro para ser ouvido e reccebido, para ser levado em
conta, é a chave e consequência destas dependências. Eis as tendências
das histórias a falar das atividades literárias num espaço social e, ainda
que aparentemente não o pareça, da actividade daqueles que
patrimonializa, mas só de alguma; património não é, para este caso que
trato, o conjunto de bens de uma comunidade mas o conjunto de bens
que uma comunidade considera seus e pode gestioná-los em todas as
suas dimensões, sobretudo simbólicas.
Destes pontos de vista, Luandino Vieira, por exemplo, pertence
a quem se aproprie dele e consiga legitimidade para fazê-lo; interna e
externa, acreditável para a sua comundiade e também no panorama
internacional e nos territórios em disputa (internacional quer dizer com
critérios homologáveis à conveniência doutras comunidades, a
francesa, a italiana, etc.); isto ganha importância se a literatura ganha,
por sua vez, importância escolar, etc. Assim, Luandino pode aparecer
como pertencendo aos dous patrimónios, apresentados como histórias,
próprias, da literatura. Ou a ser tratado ambigua ou provisoriamente
num como trânsito de cedência para outro, albergado a falta de
melhores possibilidades de adscrição, mas sempre numa instabilidade
epistemológica notável.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
101
O que se costuma negligenciar com essa tendência patrimonial,
é a descrição ou a análise das atividades realizadas num determinado
espaço geo-cultural ou num determinado sistema literário, balizado por
determinadas normas sistémicas, que o identificam e diferenciam de
outras. Paece claro que, deste ponto de vista, Luandino Vieira e a sua
obra devem estar presentes nessa análise (não na “Literatura nacional
portuguesa”, no que isto significar), porque eles ocupam posições
relativamente relevantes no sistema português e no espaço geo-cultural
português em termos literários, na década de 60 e na década de 90,
dado o modo particular em que a edição de textos africanos e a
distribuição dos mesmo e os autores se relacionam e se processua na
atualidade. Não há, na década de 60, um sistema cultural angolano
perfeitamente instaurado; há tendências proto-sistémicas, de que
Luandino é exemplo claro. Um ponto de vista sistémico pode ser um
bom instrumento para uma melhor compreensão da história da
literatura numa e até duma comunidade. Entender não apenas os
macrofatores em jogo genericamente, mas a presença de autores não
patrimonializáveis mas ao mesmo tempo importantes para essa
compreensão; ou não como uma influência em determinado autor ou
ambiente, mas um condicionante de presença. O caso de Luandino na
HLP ilustra como é a legitimidade da apropriação, da
patrimonialização e da compensação o que está em jogo. O importante
tratamento de Luandino em 1979 tem um valor de reconhecimento,
compensador; uma compensação que desaparece quando o património
é cedido ao seu legítimo dono, assim reconhecido.
Em síntese, o tratamento da questão africana na historiografia
literária portuguesa mostra a extraordinária dependência que do campo
do poder apresenta a elaboração académica nestas áreas, certamente.
Igualmente, a profunda ideologização e pouca confiabilidade do campo
académico, provavelmente mostrando as carências de método e
metodologia na elaboração historiográfica, como também qualquer
noção de inovação ou dinamismo dos estudos; e, em última análise,
revelando, também em casos como este, a impossibilidade de uma
historiografia literária, ao menos sem a explicitação de corpus,
metodologias e aplicação de parâmetros objetiváveis de trabalho.
Como indiquei no artigo várias vezes aludido (TORRES FEIJÓ, 2012:
26-31), em minha opinião, estes problemas podem, deste ponto de
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
102
vista, chegar a ser irresolúveis: apresentando-se como história dos
factos, o seu caráter conjuntural é superior a qualquer outro, pois
dependem das condições do campo do poder e obedecem a factores
heterónomos na sua elaboração: a consideração das histórias literárias
como histórias literárias nacionais (de uma nação; não numa nação); a
determinação do que seja a nação em cada momento (em que a
ideologia e o modo de aparecer do historiador joga também um rol) e a
carência de instrumentos metodológicos bastantes para delimitar o
objecto de estudo (acabam por ser muitos os objetos de estudo
envolvidos) e o seu corpus sem estar submetido às determinações do
campo do poder. É, realmente, uma questão difícil de resolver; e isto
sem entrarmos nos problemas que misturam nacionalidades de origem
com campos de produção. Em minha opinião, uma das vias de solução
pode estar no recurso à aplicação de metodologias sistémicas e
empíricas e (consequentemente) uma mais apurada delimitação do
objeto. Uma História da Literatura Portuguesa é, como qualquer outra,
uma proposta (em boa medida uma sistematização a posteriori) de um
património determinado, aqui literário, sobre determinadas bases:
indica aquiloque quer ser apropriado. Frente a isto, cabe introduzir
conceitos como o de espaço social e/ou sistema e campo, que
permitam delimitar as atividades literárias polo agregado social em que
têm lugar, primária e/ou secundariamente e, também, polos
intervenientes de forma forte nos mesmos, o que conduz a não
considerar as fronteiras políticas de cada momento como balizas nem a
colocar aprioristicamente uma determinada língua (a que funciona
como a língua da nação) como baliza. De resto, falar em tendências
protossistémicas e subssitémicas (TORRES FEIJÓ, 2011) pode ser
útil.
Não proponho como solução hibridações metodológicas ou
mistificações, mas explicações dos fenómenos, o qual não é atingido
por pertença ou apropriações ou pola capacidade de legitimar as
escolhas. Os objetivos da historiografia clássica: inventariação,
fixação, consagração devem ser substituídos por objetivos de uma
análise literária e cultural. É a análise dos procesos, incluindo a própria
construção histórica e da História, a que parece deve ser prioridade e
norte. Desse ponto de vista, podemos falar de uma História da
Literatura no espaço social português ou no campo literário português
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
103
(cujos limites variam ao longo do tempo). Isto, nos termos em que
falamos conduz a falar de Luandino Vieira, por exemplo, nos anos
sessenta como autore proto-sistémico e continuar a falar dele, do ponto
de vista do intersistema em língua portuguesa plenamente, ou ainda do
sistema literário português, como autor com forte impacto e
distribuição nesse sistema.
ABSTRACT: Portuguese Historiography, for the case, the work by
Saraiva and Lopes, shows significant deficits in its trustability for the
treatment given to authors, works and contents from Portuguese
speaking African countries, former Portuguese colonies. The
aforementioned deficits show its dependency from the field of power
and the impossibility of a Literary History as a national allegory.
KEY-WORDS:
trustability
Historiography,
Literature,
Portugal,
Africa,
CORPUS:
SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura
Portuguesa, Porto Editora, Porto, 1ª ed. s.d. (1955/7?).
SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura
Portuguesa, Porto Editora, Porto, 6ª ed. 1970.
SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura
Portuguesa, Porto Editora, Porto, 8ª ed. 1975.
SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura
Portuguesa, Porto Editora, Porto, 11ª ed. 1979.
SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura
Portuguesa, Porto Editora, Porto, 13ª ed. 1985.
SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura
Portuguesa, Porto Editora, Porto, 17ª ed. 1996.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
104
REFERÊNCIAS:
BASSEL, Naftoli. National Literature and Interliterary System. Poetics
Today 12.4, pp. 773-79, 1991
LEI nº 2:048. Introduz alterações na Constituição Política da República
Portuguesa. Diário do governo, . I Série, nº 117, 11 de junho de 1951,
pp
407-412.
Acesso
em
12
jan,
2014.
<http://dre.pt/pdf1sdip/1951/06/11701/04070412.pdf>.
TORRES FEIJÓ, Elias J. About Literary Systems and National
Literatures. CLCWeb: Comparative Literature and Culture 13.5
(2011). <http://dx.doi.org/10.7771/1481-4374.1901>. Acesso em 12
jan, 2014.
TORRES FEIJÓ, Elias J. Problems in National Allegory. The Galician
(and Brazilian) Question in Contemporary Portuguese Literary
Historiography., Portuguese Studies ,28, n. 1 pp. 5-30. 2012.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
105
ENTRE-DOIS: TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NA NARRATIVA
PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
Isabel Cristina Rodrigues 1
RESUMO: A partir da figura do entre-dois consignada na obra de
Sibony, propõe-se uma leitura não contrastiva da problemática do
cânone aplicada à narrativa portuguesa mais recente, a qual parece
querer caminhar no sentido da legitimação de um entre-dois canónico,
fazendo confluir, no espaço concreto da sua textualidade, o sentido de
inovação que lhe é próprio e o peso de uma tradição implícita ou
explicitamente convocada.
Palavras-chave: Narrativa; Cânone; Inovação; Tradição
Cada escritor cria os seus precursores
Jorge Luis Borges
No seu livro Entre-deux. L’origine en partage (publicado pela
primeira vez em 1991), o filósofo franco-marroquino Daniel Sibony
vem sublinhar a inoperante artificialidade dos conceitos de diferença e
de fronteira para catalogar, descrevendo-os, tanto o óntos constitutivo
do indivíduo como o espaço físico e simbólico da sua atuação. Como o
autor explica, «não que a ideia de diferença seja falsa: ela é justa mas
limitada, pertinente mas ínfima» (SIBONY, 1991, p. 11), razão pela
qual o autor propõe, enquanto formulação estruturante do juízo crítico
do Homem, a figura alternativa do entre-dois, «uma forma de ruturaligação entre dois termos, tão próximos um do outro quanto é verdade
constituírem, tanto o espaço da rutura como o espaço da ligação, um
território mais vasto do que imaginamos (…). Não existe um terreno
neutro entre os dois e não existe uma única fronteira que
verdadeiramente separe, existem duas fronteiras que se tocam e que o
1
Universidade de Aveiro - Departamento de Línguas e Culturas / Centro de
Línguas, Literaturas e Culturas (Portugal).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
106
fazem de tal modo que existem entre elas inúmeros fluxos
comunicantes» (SIBONY, 1991, p. 11).
Partindo da sugestiva figura do entre-dois consignada na obra
de Sibony, parece--me plenamente sustentável, de um ponto de vista
teórico-crítico, a defesa de uma abordagem não-contrastiva (ou nãodemarcativa) da problemática do cânone aplicada à narrativa
portuguesa contemporânea, com particular destaque para a obra de
alguns dos nossos romancistas mais recentes – refiro-me, em concreto,
a autores como Ana Margarida de Carvalho, Afonso Cruz, João Tordo,
Dulce Maria Cardoso e Nuno Camarneiro. Na verdade, a insistência
numa abordagem deste tipo implica a recusa de uma visão sistémica do
espaço literário sustentada pela demarcação judicativa entre o centro
(entendido como a memória institucional do literário) e a margem
recém-formada do contemporâneo, essa espécie de purgatório do juízo
estético constituída por um presente a meio ainda de fazer-se. Entre a
apologia da invariabilidade universal do valor (que legitimaria, como
defende García Berrio, a edificação patrimonial do cânone) e a
consciência do relativismo histórico-contextual desse mesmo valor
(entendendo-se assim o cânone como a deriva imaginária de um
modelo naturalmente avesso à incorporação da fixidez invariante do
literário), a narrativa portuguesa dos últimos anos parece querer
caminhar no sentido da legitimação de um entre-dois canónico,
fazendo confluir, no espaço concreto da sua textualidade, o sentido de
inovação que lhe é próprio e o peso de uma tradição acolhida em
registo de simbólica convocação autoral.
É certo que muito do que hoje em dia se publica, sobretudo no
domínio da narrativa, parece enfermar de um propósito (muito mais
editorial do que autoral) de explícita massificação do nosso capital
simbólico, promovendo-se por esta via a dessacralização da esfera do
literário em nome do mais desapiedado sentido de mercantilismo do
livro, o qual atinge, de modo incomparavelmente mais acentuado, os
autores mais jovens e que por isso habitam ainda, na volátil topografia
do cânone, a instabilidade contemporânea da margem – como se
pudéssemos dizer (tal como recentemente sucedeu) compre o livro A e
ganhe um livro em branco, adquira o livro B e receba um guardachuva. No seu importante estudo sobre a questão do cânone, intitulado
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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Revisão e Nação. Os limites territoriais do Cânone Literário, Osvaldo
Manuel Silvestre assinalava já, há alguns anos atrás, a recente
conversão da figura do escritor à religião profana do star system, no
seio da qual o mesmo escritor surge desinvestido da sua simbólica
auctoritas para passar a exibir um estatuto de mera «deixis do sistema
mediático-mercantil» (SILVESTRE, 2006, p. 127):
(…), já não são auctores mas sim uma deixis do sistema
mediático-mercantil – um star system –, transferindo
para um reinvestimento no seu nome, no seu corpo e na
sua capacidade performativa o esforço de alfabetização
que define historicamente a literacia enquanto «relação
com as linguagens». (SILVESTRE, 2006, p. 127)
Todavia, parece haver ainda uma espécie de justiça poética na
raiz deste desbragado mercantilismo literário, o qual, mesmo que tenda
a aproximar o leitor do corpo físico do livro, dificilmente o aproximará
da chama oculta da palavra. A literatura mora aí e não numa insidiosa
retórica comercial de guarda-chuvas e livros em branco, mas a verdade
é que (e por isso falo de justiça poética), para lá da epidérmica face do
star-system editorial português, julgo que é possível encontrar na
literatura portuguesa de hoje um conjunto de escritores cuja solidez
literária os afasta de uma conceção meramente deítica da escrita,
aproximando-os proactivamente de um futuro onde a voz de cada um
se encarregue de confirmar o potencial de ascendência cultural que, em
modo de embrionária latência, o presente das suas obras permite já
antever. De qualquer modo, não é minha intenção (nem seria
inteligente se o fosse) erigir-me aqui em premonitória voz de um
cânone a haver, até porque aquilo que, neste contexto, me interessa nos
autores já referidos não é tanto promover o ingrato (e inútil) exercício
da sua antecipação canónica, mas descrever o modo como neles se
opera a textualização de um diálogo entre a dimensão necessariamente
contemporânea das respetivas obras e a tradição literária ocidental,
instaurando-se assim uma multímoda harmonia convivial entre o
domínio periférico do cânone (de que cada um deles é ainda o
inevitável corpo) e a representação nuclear desse mesmo cânone, onde
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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avultam nomes como os de Borges, Pessoa, Saramago ou Lobo
Antunes.
Na verdade, as palavras de José María Pozuelo sobre os
movimentos de tensão dialética que, na topografia simbólica do
cânone, regulam os circuitos de mobilidade entre a veneranda estirpe
dos clássicos e a discursividade contemporânea do literário mostram-se
razoavelmente inoperantes para descrever, no que concerne a estes
jovens escritores portugueses, o sentido de fluidez discursiva que, no
concreto da obra de cada um, parece querer presidir ao comum
propósito de declinação da memória valorativa do sistema:
Há potentes forças reguladoras que actuam preservando
uma cultura da sua dissolução, mas, mesmo com essas
forças, há uma constante tensão dialéctica entre o novo
e o velho, o alto e o baixo, de forma que os estratos não
canonizados pugnam por um lugar no centro do sistema.
(POZUELO YVANCOS, 1995, p. 26)
Nos romances Que Importa a Fúria do Mar (2013), de Ana
Margarida de Carvalho, Anatomia dos Mártires, de João Tordo (2011),
Os Meus Sentimentos (2005), de Dulce Maria Cardoso, No Meu Peito
Não Cabem Pássaros (2011), de Nuno Camarneiro, e na inclassificável
Enciclopédia da Estória Universal (2009), da autoria de Afonso Cruz,
não é possível localizar a existência de um espaço tensional entre a
textualidade que os enforma e a reminiscência modelar para que
reenviam, mas antes uma distensão absolutamente inclusiva de nomes
e de autores implícita ou explicitamente convocados no solo palpável
da escrita, fundindo-se assim, na obra de cada um deles, o passado e o
presente numa espécie de corpo textual único, o qual, em programática
recusa de um entendimento demarcativo do cânone (como aquele que é
defendido, por exemplo, por García Berrio), acaba por assinalar nada
mais do que a existência de um claro sentido de parentesco
estabelecido entre a referencialidade canónica do valor e a textualidade
necessariamente periférica do presente. Talvez seja, então, possível ler,
na argumentação desenvolvida por José María Pozuelo sobre o
entendimento do cânone na teoria contemporânea, a chave da
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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sustentabilidade retórica deste singular parentesco estético-literário
insinuado pela obra dos cinco autores mencionados:
[O cânone] não se institui para recuperar um passado,
mas para ajudar a constituir e justificar um presente. A
eleição do corpus sobre o qual operar; o estabelecimento
dos critérios que tornassem coerente a inclusão /
exclusão de obras e autores, assim como a periodização
e a taxonomização do material não corresponderia, em
consequência, à existência de uma verdade exterior
comprovável, mas antes à vontade de construir um
referente à medida, capaz de justificar a maneira de
viver e de pensar o mundo por parte da sociedade actual,
a qual se veria protegida com o argumento da sua
autoridade. (POZUELO YVANCOS, 1995, p. 137).
Torna-se assim claro que, nos cinco livros a que passarei a
referir-me, o exercício de convocação poético-simbólica de certos
escritores que habitam hoje o núcleo mais restrito do cânone não visa
promover a mobilidade canónica dos textos onde esse mesmo exercício
se materializa (e será essa, julgo eu, a razão da inexistência, em
qualquer um dos textos, de qualquer movimento tensional entre o novo
e o clássico), buscando-se antes construir um referente à medida das
inquietações estético-literárias de cada um dos autores. E tendo
Osvaldo Silvestre chamado a atenção para aquilo que ele próprio
designou por patologias da mimese (SILVESTRE, 2006, p. 137) - e
que efetivamente corresponde à possibilidade de lermos, nas várias
faces de um cânone nacional, a representação mimética do espírito um
país -, atrevo-me a ir um pouco mais longe, ou se calhar um pouco
mais ao lado da certeira observação de Osvaldo Silvestre: os textos
contemporâneos, excluídos da representação nuclear do cânone em
função do seu inalienável estatuto de novidade, ao invés de
corporizarem patologias de uma mimese nacional que lhes é (ainda?)
impossível induzir, tendem a exibir sintomas mais ou menos claros de
uma patologia de orientação automimética, deslocando o objeto da
especificidade histórico-espiritual da nação para o universo especular
de uma auctoritas onde o seu próprio imaginário autoral se reflete.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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É, pois, neste sentido (ligeiramente diferente daquele que
presidiu à enunciação da já famosa frase de Borges, publicada no seu
ensaio «Kafka e os seus precursores», e que diz que «cada escritor cria
os seus precursores» (BORGES, 2007, p.129)) que Afonso Cruz, Nuno
Camarneiro, João Tordo, Dulce Maria Cardoso e Ana Margarida de
Carvalho criam os seus precursores (sejam eles o próprio Borges,
Kafka, Pessoa, Saramago ou Lobo Antunes): não porque os nossos
jovens escritores tenham vindo expor a uma nova luz, reinterpretandoa, a obra nuclear destes cinco vultos do cânone literário ocidental
(como sim fizeram Pessoa em relação a Camões ou o próprio
Saramago em relação a Pessoa), mas porque a si próprios se criaram na
duplicação imagética do outro, incorporando nas criações
empreendidas a herança voluntária dos mestres.
Publicado em 2013, o primeiro e, até agora, único livro da
jornalista Ana Margarida de Carvalho, Que Importa a Fúria do Mar, é
a prova em forma de romance de que é possível escrever sob a égide
da tradição, de que é possível fazê-lo em movimento denegativo da
tradição (basta recordarmos o higienismo prometaico das vanguardas
europeias de inícios do século XX), mas também de que é impossível
proceder à completa rasura, no corpo concreto dos textos, da memória
integrativa do literário. Na verdade, o peso da tradição literária
ocidental, de insuspeita filiação bloomiana, parece ter-se abatido sobre
o romance de Ana Margarida de Carvalho, como a imposição exterior
de um abrigo para o frio que afinal não havia – e isto porque Que
Importa a Fúria do Mar (cujo título reenvia diretamente para o verso
de uma das composições de intervenção do cantor português Zeca
Afonso), um dos mais belos e inteligentes romances publicados nos
últimos anos em Portugal, talvez não necessitasse de uma tão
expressiva (e heterogénea) abundância epigráfica ou citacional,
porquanto a verdadeira raiz da sua autoridade literária, mesmo no seio
deste presente onde não acabou ainda de instalar-se, radica
incomparavelmente mais na validade estética do seu discurso do que
no simbólico abono dos escritores convocados: Camões, Pessoa,
Régio, Cesário verde, Padre António Vieira. Machado de Assis,
Manuel António Pina, Luiza Neto Jorge, José Gomes Ferreira, Manoel
de Barros, Céline, Bertold Brecht, Chico Buarque, Sófocles, Mia
Couto (a lista continua e não é pequena). Creio, todavia, que é
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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justamente isto que a autora pretende lembrar-nos com a sua extensa
convocação autoral – de um modo ou de outro, todo o já escrito nos
pertence, como uma herança voluntária de que somos todos o produto.
Partindo da revolta do proletariado vidreiro na Marinha Grande,
em 1934 (nos primórdios do Estado Novo), a qual ditou a deportação
dos insurretos para a colónia penal do Tarrafal, em Cabo Verde, o
romance de Ana Margarida de Carvalho ocupa-se da desocultação, em
clave exclusivamente ficcional e por intermédio da jornalista Eugénia,
do impossível amor entre Luísa Fradinho e Joaquim da Cruz, um dos
prisioneiros do futuro campo ultramarino de tortura e que, com a
vivida tinta do próprio sangue, escreve da prisão as cartas que, mais
tarde, a caminho do embarque para Cabo Verde e através da janela do
comboio, haverá de lançar na incerta direção da amada. Eugénia busca
a história por detrás de Joaquim, uma espécie de personagem
neorrealista pós-moderna, sobrevivente do campo do Tarrafal; Joaquim
busca apenas, na fixidez obsidiante da memória, a quotidiana recusa do
esquecimento e ambos acabam por projetar-se e aos seus fantasmas na
imagem inacessível do outro, que assim lhes devolve a visão
inexpugnável de um amor fatalmente vivido como denegadora
projeção do real:
[Eugénia] foi encontrar, nesse dia, em que se sentia
subitamente cansada, grávida de pedras, como a pança
do lobo, Joaquim sentado na cama. De costas voltadas,
ainda sem a camisa vestida. Foi-lhe penoso contemplar
as costas de um velho, cheias de sardas, injúrias da
idade, sinais salientes murchos como borbotos, e a
flacidez do que antes era músculo, agora feito pendões
de pele, que se desembainhavam em várias pregas até à
cintura. Muito lentamente, Joaquim começou a envergar
a camisola branca interior de alças, depois a camisa. Os
velhos levam sempre a lentidão nos gestos. Eugénia
sabia que ele sabia que ela o observava. Havia muito
tempo não gastavam palavras, apenas as necessárias.
Nesse dia, salvo erro, pareceu-lhe, a Eugénia, que não
trocaram nenhuma. Sentou-se a seu lado na cama.
Joaquim mostrou-lhe uma moldura, nela estava
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amarelecido um retrato em papel encarquilhado,
esburacado, que já tinha sofrido tantas sevícias como
aquele que o transportara durante anos. Era a segunda
vez que Eugénia se confrontava com o retrato de Luísa.
(CARVALHO, 2013, p. 232-233) Não era fácil
confrontar-se com a sua rival, que assumia perante ela
todas as vantagens, inclusive e principalmente a de não
ser de carne e osso, mas de papel emoldurado. (…)
Guardou a humilhação para si. Eugénia amava-o, não
tinha dúvidas. Joaquim amava Luísa, também não
restavam dúvidas. Mas, até certo ponto, os seus
dissabores de coração confluíam. Estavam ambos
apaixonados por uma projecção. Ele pelo retrato de uma
mulher que nunca fora. Ela por um homem que há muito
deixara de o ser. (CARVALHO, 2013, p. 233)
Sendo, como é, um primeiro livro, o romance Que Importa a
Fúria do Mar é um romance que de primeiras linhas tem muito pouco,
porque não é um texto que surge como o prenúncio feliz da maturidade
futura da autora, mas, ao contrário, é já a prova visível de que há
escritores que parecem nascer assim, em modo de quase acabamento.
Há uma expressão muito bela do poeta português António Osório em
que ele se refere à necessidade de uma «vulcânica orquestração de
pianíssimos» (OSÓRIO, 2009, p. 262) no corpo da poesia (ou, mais
latamente, de toda a literatura), que é como quem diz, busque-se o
máximo de intensidade através de um mínimo de retórica, expurgando
da malha mais superficial das palavras o excesso para que elas depois
apontam. E este é um romance assim, de uma beleza vulcânica, brutal,
porém escrito a partir da surdina interna da lava.
Intitulado No meu Peito Não Cabem Pássaros (de 2011), o
romance de estreia de Nuno Camarneiro (o escritor que venceu, em
2012, o Prémio Leya com o livro Debaixo de Algum Céu) vem
justamente propor, na senda das afirmações de José María Pozuelo, a
validação estética do presente através do processo de conversão
ficcional de três dos maiores referentes da história literária do
Ocidente: Kafka, Pessoa e Borges. Todavia, ao caráter assumidamente
explícito deste exercício de voluntária retextualização do cânone, o
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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escritor parece querer contrapor a necessidade da sua fantasiosa
anonimização, ao instalar em três distintos espaços geográficos (Nova
Iorque, Lisboa e Buenos Aires, com uma pequena incursão final por
Genebra) uma tríade figurativa apenas reconhecível na trivialidade do
primeiro nome – Fernando, Jorge e Karl. Na realidade, ao contrário do
que sucede com Jorge e com Fernando, Karl era já produto de uma
ficção alheia, mesmo antes de adentrar o romance de Camarneiro:
trata-se da personagem Karl Rossmann, do incompleto primeiro romance
de kafka (A América – ou em português O Desaparecido) e que o seu
editor e amigo Max Brod publicou postumamente, em 1927.
Em melancólica deriva automimética do autor, e fluindo
sempre em paralelo (uma vez que as três personagens não chegam
nunca a habitar o espaço geográfico e discursivo da interlocução), os
monólogos de Jorge, Fernando e Karl correspondem à insanável
geografia de um desacerto entre a voz do sujeito e a instabilidade
macular de um mundo onde, apesar disso, e para cada um deles, é
preciso continuar a viver. O sujeito a várias vozes deste livro é, pois, o
de um peito onde não cabem pássaros, como confessa Fernando na sua
adiada febre de infinito: «-Vai um pássaro a voar baixinho, tia, é lindo
e vai perdido a voar. Aqui não é céu de pássaros. Tenho muito calor
dentro de mim, tia, tenho calor e falta-me o ar. Leve o pássaro para a
rua, lá para onde puder voar. No meu peito não cabem pássaros»
(CAMARNEIRO, 2011, p. 36). Em face do seu desajustamento num
mundo cuja possibilidade de leitura transcende a enciclopédica
obsessão de Borges, resta apenas a cada um deles (e a Kafka, por
intermédio de Karl) a trabalhada alternativa da imortalidade, de que o
livro de Camarneiro é talvez a mais justa das evidências:
Por alguma razão quis acreditar [está a falar-se de
Borges] que entre tanta folha escrita haveria algures de
estar o próprio. Passou muito tempo à procura em
enciclopédias, compêndios e romances, mais tarde em
contos e poemas, já com menos vida pela frente e outras
ambições. Num momento certo soube desiludir-se e
mudar de estratégia, passando a escrever-se.
(CAMARNEIRO, 2011, p. 181) Agora, que pensa nisso,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
114
Jorge não quer morrer. Além de ser um desperdício,
parece-lhe deselegante e banal, afinal de contas não
nasceu para isso. Lamentavelmente, existem poucas
alternativas, poderia não ter nascido, mas o mal está
feito e é irreversível. Resta então a imortalidade com
todas as dificuldades que representa. (CAMARNEIRO,
2011, p. 187) Resta-lhe imortalizar-se por obra feita,
deixar por cá coisa que se veja e não se possa ignorar,
um monumento que atrapalhe a humanidade toda.
(CAMARNEIRO, 2011, p. 188)
De explícita inscrição aforística, a Enciclopédia da Estória
Universal, publicada por Afonso Cruz em 2009 (e de que saíram
entretanto outros dois volumes, com os subtítulos «Recolha de
Alexandria» (2012) e «Arquivos de Dresner» (2013)) corresponde a
um simultâneo e singularíssimo exercício de mistificação do cânone
antologiado e de desmistificação do modelo canónico que a própria
obra toma por referente. Atestando, na sequência das palavras
proferidas por Jorge no romance de Nuno Camarneiro, o seu estatuto
nuclear de «monumento que atrapalhe a humanidade toda», Jorge Luis
Borges converte-se na sombra por trás da mão com que Afonso Cruz
pretende dar corpo ao seu propósito de cartografar enciclopedicamente
o universo, socorrendo-se, para o efeito, de factos que o são e de outros
que não são mais do que engenhosas ficções, que o mesmo é dizer,
evidências escandalosamente ignoradas pelo discurso enciclopédico
comum. A autorictas canónica dos autores que integram, como
guardiães ocultos de uma esquecida verdade, as páginas desta
Enciclopédia da Estória Universal (e cuja enunciação visa, justamente,
legitimar o singular mapeamento do mundo empreendido pelo autor) é,
pois, tão real como real é a sua mistificação.
Assim, os autores convocados ao longo da obra e
posteriormente reunidos na Bibliografia final, com honrosas exceções
como as de Homero ou Nicolau de Cusa, não têm existência empírica e
são, de acordo com a confissão expressa no texto final do volume,
«pura invenção» (CRUZ, 2009, p. 127) – nem o Visconde
Anagramático, o suposto autor de Memórias Geométricas, nem sequer
Théophile Morel, o enigmático autor de Ensaio sobre Livros que
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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Raramente Existem, têm de facto consistência real, o que,
curiosamente, em nada parece debilitar o sentido de autoridade apenso
ao seu nome e aos muitos ensinamentos que, ao longo da enciclopédia,
lhes vão sendo atribuídos. Creio que este facto ficará a dever-se à já
referida patologia automimética de que sofrem pelo menos alguns dos
escritores portugueses contemporâneos, como é o caso de Afonso Cruz
– o cânone imaginário reunido nesta Enciclopédia da Estória
Universal não vem propriamente validar a representação especular de
um real a reclamar a urgência da recolha enciclopédica, investindo
assim na visão pessoal do autor o seu potencial de representação e o
referente da sua ambígua autoridade. O texto final da Enciclopédia,
intitulado «Comentário à Enciclopédia de Estória Universal», da
autoria não de Afonso Cruz, mas de Théophile Morel (o tal autor
fictício que escreveu um ensaio sobre livros que raramente existem), é
bastante claro na denúncia dos labirínticos circuitos inerentes à
enciclopédica dizibilidade do real:
A Enciclopédia da História Universal é uma herança de
Ulisses, ele próprio motivo de apologia pelas suas burlas
(construiu a mentira mais famosa de sempre, de madeira
e com forma de cavalo), pelos seus esquemas, logros,
patranhas, manhas e artimanhas. (…) Está no pólo
oposto à enciclopédia de Diderot e d’Alembert, na altura
da sua edição. Hoje, podemos dizer que a dos
iluministas é também uma grande burla – e que as suas
verdades, ironicamente, são tão ficção como as desta
Enciclopédia. E se não são tão fantasiosas, para lá
caminham, como fazem todas as certezas. (…) Nada
neste livro pode ser considerado um facto objectivo e
tudo, ou quase tudo, podemos assegurar, é pura
invenção. (…) Creio que as referências bibliográficas
são falsas, bem como as citações. (CRUZ, 2009, p. 127)
O que sabemos é que não existe nenhuma realidade
factual, que as coisas são muito mais aquilo que
sentimos do que aquilo que realmente aconteceu. O
conteúdo da mentira ou da história, o seu caroço, é um
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arquétipo, e contém tanta verdade como qualquer
símbolo pode conter. (CRUZ, 2009, p. 128)
Num texto publicado em 1996, cujo título revela já a herança
pessoana do seu autor (estou a referir-me ao romance Outrora Agora,
de Augusto Abelaira), o narrador afirma o seguinte, a propósito de um
diálogo entre as personagens Jerónimo e Filomena: «Certos
sentimentos do Pessoa, nós interiorizámo-los. Sem o Pessoa seríamos
outros e é essa a diferença entre um grande escritor e um escritor
simplesmente bom» (ABELAIRA, 1996, p. 244). Na verdade, talvez a
grandeza última de Pessoa esteja no facto de ele ter sabido, como
poucos antes dele e não muitos depois dele, legar às gerações futuras a
sua forma de pensar e o seu modo de entender o labor oficinal da
literatura, inaugurando assim uma nova escala de pensamento e escrita
que nunca mais foi possível expurgar da memória coletiva da nação.
Deste modo, se submetermos a leitura desta frase, proferida pelo
narrador abelairiano, ao crivo epistemológico da teoria do cânone,
libertando-a em simultâneo da obrigatoriedade modelar de Pessoa,
facilmente concluiremos que os autores aos quais atribuímos um
posicionamento topográfico nuclear na configuração sistémica do
cânone não podem senão coincidir com aqueles que, sujeitos à alheia
interiorização do seu modelo, reconfiguram a forma de pensar de toda
uma comunidade cultural e ainda o modo como esse pensamento se
transmuda em palavra escrita. Dizendo-o de outra maneira, há de facto
escritores (como José Saramago ou António Lobo Antunes, apenas
para referir dois exemplos recentes) sem os quais a literatura
portuguesa de hoje seria necessariamente outra, tanto ao nível da
conformação imagética dos mundos possíveis veiculados, como ao
nível da disposição estilístico-estrutural da sua própria discursividade.
Creio, por isso, poder afirmar que, à semelhança de Augusto Abelaira,
também os jovens romancistas João Tordo e Dulce Maria Cardoso
terão desta realidade (a da reconfiguradora persistência modelar de
nomes como Saramago e Lobo Antunes) uma consciência
particularmente acutilante, porquanto as respetivas obras têm
permitido concluir da rendibilidade hermenêutica do seu diálogo com o
macrotexto de Saramago e de Lobo Antunes.
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117
Sabendo que, como se anuncia nas primeiras páginas do
romance As Três Vidas, «a própria realidade é objeto de ficção»
(TORDO, 2012 [2008], p. 15), os livros de João Tordo expõem um
universo narrativo marcado pela reiterada indecidibilidade entre os
conceitos de realidade e ficção, ficção e história, realidade e mito,
universo este que, sendo estruturalmente comum à globalidade dos
livros do autor, encontra no romance Anatomia dos Mártires (de 2011)
um espaço de acolhimento singularmente feliz. Obsessivamente preso
à impossível desocultação da verdade por trás do mito de Catarina
Eufémia (a camponesa tombada ao chão pelo fascismo e levantada
mártir pelo discurso programático do comunismo), o narrador de
Anatomia dos Mártires, jornalista de profissão, acaba por compreender
que os vários biombos que inviabilizam o nosso acesso à verdade do
real começam a erguer-se no exato momento em que olhamos esse
mesmo real, certeza esta que parece valer para qualquer visão possível
do mundo – História, romance ou memória do vivido, todas elas
razoavelmente reais e razoavelmente ficcionais. A reprodução da
verdade no discurso da História é, pois, uma construção geneticamente
manipulada pelo trabalho parcelar do olhar ou, se quisermos, pela
inevitabilidade do gesto efabulador subjacente a todo o processo
representativo: na impossibilidade de aceder à verdade por trás do mito
de Catarina Eufémia, o narrador acaba por concluir que «os mártires
são no fundo uma invenção nossa» (TORDO, 2011, p. 163), tal como
«a História é uma invenção nossa» (TORDO, 2011, p. 163) e «que, em
relação aos episódios remotos, a História tinha o carácter paradoxal da
ficção, mergulhando qualquer episódio num espaço de meias-verdades
e de meias-mentiras que, se não tivéssemos cuidado, poderiam levarnos ao cepticismo mais absoluto ou ao dogmatismo mais desenfreado»
(TORDO, 2011, p. 153).2
2
Aliás, na obra de João Tordo, a frequente migração de algumas personagens
entre os vários romances do autor vem justamente sublinhar o indecidível
estatuto destes seres (aparentemente de papel), mas cujo trajeto migratório
parece querer forçar a descrença do leitor relativamente à sua natureza
ficcional. Como quem diz: se há personagens capazes de transitar de um
romance a outro, e pela mão de diferentes narradores, é porque a sua
verdade é passível de transcender o limite restritivo da ficção.
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118
Ora, o relativismo perspetivista inerente a qualquer discurso
sobre o real (já presente, aliás, no livro de Afonso Cruz) é
precisamente um dos aspetos que, em meu entender, aproxima a obra
de João Tordo da cosmovisão literária de José Saramago, o que, é
preciso que se note, não faz de João Tordo um epígono de Saramago
(até porque não é visível, nos seus livros, nenhum propósito de
emulação do mestre de Ensaio sobre a Cegueira), mas acaba por
atestar a pertença de ambos a uma idêntica esfera de valores,
convertendo-os em artífices mais ou menos confessos do mesmo tipo
de inquietação.
Em Dulce Maria Cardoso, todavia, a sombra tutelar do cânone,
esse referente à medida de que fala José María Pozuelo, parece atingir
não apenas, como em Tordo, a sustentabilidade efabulatória do
romance, mas ainda (ou sobretudo) a conformação estilístico-estrutural
da uma escrita que, declinando o exemplo modelar do mestre,
igualmente recusa para si o desprestígio de um libelo de cariz epigonal.
O concreto da obra de Dulce Maria Cardoso, e em particular esse
extraordinário romance intitulado Os Meus Sentimentos (de 2005),
como que procede à cartografia imaginária das suas próprias
referências, onde pontuará algo da lição de Saramago (visível, por
exemplo, na escolha da vírgula como sinal de articulação preferencial),
mas cujo núcleo é efetivamente ocupado pela referencialidade
canónica de António Lobo Antunes:
inesperadamente
não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa,
não devia ter saído de casa, durante algum tempo,
segundos, horas, não sou capaz de mais nada,
inesperadamente paro,
a posição em que me encontro, de cabeça para baixo,
suspensa pelo cinto de segurança, não me incomoda, o
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
119
meu corpo, estranhamente, não me pesa, o embate deve
ter sido violento, não me lembro, abri os olhos e estava
assim, de cabeça para baixo, os braços a bater no
tejadilho, as pernas soltas, o desacerto de um boneco de
trapos, os olhos a fixarem-se, indolentes, numa gota de
água parada num pedaço de vidro vertical, não consigo
identificar os barulhos que ouço, recomeço, não devia
ter saído de casa, não devia ter saído de casa,
são tão maçadoras as lengalengas
durante algum tempo, segundos, horas, não sou capaz de
mais nada, devo ter caído muito longe da auto-estrada.
(CARDOSO, 2009, p. 9).
Esta é a voz de Violeta, projetada como num espelho invertido,
na gota de água em que, depois do acidente, o seu olhar se fixou e que
assim parece devolver-lhe, em desconexão não mais do que aparente,
as imagens de uma vida desde sempre marcada pelo anátema da
exclusão e do desajustamento. Sexualmente promíscua e doentiamente
obesa, com um irmão bastardo sobre o qual recai o ónus da paternidade
da sua filha Dora, Violeta é um exemplo paradigmático dessa solidão
gutural do ser humano de que se nutrem, em angustiada gula, as
ficções de Lobo Antunes, pelo que poderia integrar-se sem problemas
na imensa galeria de personagens construídas pelo autor de Memória
de Elefante, mais ou menos defluentes de uma imagética suburbana de
recorte ocasionalmente pós-colonial. Há ainda no romance Os Meus
Sentimentos, como de resto em quase todos os textos de Lobo Antunes,
a convicção subliminar de que não existe beleza sem violência e talvez
também por isso o livro de Dulce Maria Cardoso tenha tantas arestas,
tantos sobressaltos discursivos, intercalando o tempo das falas por
vezes até ao limite da sua perceptibilidade. Porém, a corrente sinuosa
de um refrão (por exemplo, «conheço o amor de ouvir falar»
(CARDOSO, 2009, p. 41, 50, 52) ou «tenho de fazer o que tenho de
fazer» (CARDOSO, 2009, p. 20, 22, 26, 28)), que se repete, como se
de um mantra diegético se tratasse, ao longo de toda a narrativa, vem
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120
sabiamente estender a mão ao leitor, tal como sucede nos livros de
Lobo Antunes, para que o mesmo leitor não se perca nos inúmeros
afluentes da escrita.
Embora o poeta Alberto de Lacerda não tenha entrado no
domínio restrito das minhas preocupações mais diretas, gostaria de
concluir com a referência a um poema da sua autoria (publicado em
Oferenda II), um poema que muito admiro e que, não induzindo sequer
uma reflexão sobre a questão do cânone (é apenas das paredes da
memória que o poeta se ocupa), ao colocar a tónica na
interdependência sistémica do que está antes e do que está depois, do
que está dentro e do que está fora, como que viabiliza uma leitura
lateralizante do cânone:
Hei-de ter coragem para enfrentar as gavetas
Para reler uma por uma as cartas todas
Apalpar as paredes da memória
Decifrar os fragmentos as fotografias
Hei-de ter coragem para quebrar
Certas lâminas do tempo
Hei-de ter coragem para abrir as gavetas
Hei-de ter coragem para rever a placenta
Investigar a poeira
Regressar para a frente
Avançar para trás
Hei-de ter a coragem de devolver ao tempo
O que pertence ao tempo e não
À árvore da minha vida
Hei-de descer as escadas do último andar
Onde os degraus são mais íngremes
Queimar os lenços da memória
Arder
Hei-de arder
Hei-de verificar os degraus heraclitianos (LACERDA, 1994, p. 147)
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121
Efetivamente, a construção do cânone literário de uma
comunidade, seja ela nacional, geograficamente localizada (como
pretendeu Bloom) ou de inscrição mais universalista parece erguer-se
através da sobreposição de uma série de degraus heraclitianos, cujo
movimento contínuo possibilita a alternância derivativa do entre-dois entre o novo e o velho, o antigo e o mais recente e que são sempre,
afinal, versões distintas do mesmo problema inicial. Impondo-se a
progressiva necessidade de se ir institucionalmente assinalando o que
pertence apenas ao tempo e não à instável árvore do cânone, é como se
alguns dos novos romancistas portugueses tendessem a regressar para a
frente de uma margem que a si própria se nega, avançando, todavia,
para trás na historiografia imaginária do valor.
ABSTRACT: By evoking Sibony's figure of the between-two, we
suggest a non-contrastive reading of the literary canon, illustrating it
with the most recent Portuguese narrative fiction which appears to be
moving towards the legitimation of a canonical between-two. Thus, in
the concrete space of its textuality, both its distinctive sense of
innovation and the weight of tradition, whether implicitly or explicitly
referred to, flow together.
KEYWORDS: Narrative; Canon; Innovation; Tradition
REFERÊNCIAS:
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1996.
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GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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Alfragide: Teorema, 2013.
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LACERDA, Alberto de. Oferenda II. Lisboa: INCM, 1994.
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SILVESTRE, Osvaldo Manuel Alves Pereira. Revisão e Nação. Os
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TORDO, João. As Três Vidas. Lisboa: D. Quixote, 2012 [2008].
TORDO, João. Anatomia dos Mártires. Lisboa: D. Quixote, 2011.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
123
O POEMA “PORTA ABERTA TOCHA
ACESA”, DE CONCEIÇÃO LIMA
Jane Tutikian 1
Para Inocência Mata
O degrau há-de ranger ao primeiro passo.
Subirás devagar, concreto
sem pisar a tábua solta no soalho.
A porta estará aberta, a tocha acesa
(C.L.)
Há poetas que lutam com as palavras e as aprisionam tentando
entender o mundo. Há poetas que lutam com as palavras e as libertam
para que o mundo, em liberdade, se entenda.
Os primeiros revelam, não raro, interesses convencionais
quanto ao comportamento social e literário.
Os outros, em contrapartida, complexificam para simplificar,
encontram para desencontrar e reencontrar, causam perplexidade e
comprometimento, impossibilitam o distanciamento entre o ser o que
se é e o viver o que se vive. Propõem o espelhamento em que vida,
pertença, humano se constituem.
Os outros não se submetem à seqüência tradicional nem do
verso nem do poema , num, por exemplo, eixo de acontecimentos de
causa-efeito, de uma passagem de um equilíbrio a outro equilíbrio, de
onde resulta o movimento e o seu ritmo, o que caracteriza a ação
canonizada.
Os outros, só eles são capazes de experimentar na carne de que
a alma é feita a casa do poema porta aberta tocha acesa e, não raro, o
encontro com a solidão, com a saudade, com a melancolia e com a
força de saber da sua própria força, o verbo: “Direi teu nome e tu
serás.” (Lima, 2004, p.49)
1
UFRGS.
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124
É porque esses, os outros, são especiais, são os que mergulham
no realismo percepcional ( de onde não excluo, no caso africano, as
crenças e suas práticas ou, em outras palavras, a cultura mítica) para
tirar dele uma realidade outra, mais sentida, mais vivida, porque vivida
também em outras peles. Eles são incapazes de se perceberem só no
tempo da vida, porque seu tempo são todos os tempos, é consciência
histórica é interpretação social.
Nesse sentido, mas com uma voz fortemente individuada,
Conceição Lima segue uma tradição, aquela que Inocência Mata
(1993, p.33) tão bem sintetiza: "Nessa poesia social, toda a História
das ilhas é "estoriada", segundo um percurso que remonta" à
escravidão, à profanação da terra com a entrada de elementos da
cultura ocidental, " dando forma a uma revolta centenária a que se
junta o projeto de salvaguardar a personalidade africana através de um
patrimônio cultural e transnacional." (Ibidem)
Mais adiante, comenta, ainda, Inocência, " mas a sageza
africana pressupõe a comunhão ancestral e a hierarquização
sociofamiliar que denuncia, uma mundividência comunitária."
(Idem,ibidem)
Pois esta é a matéria de criação de Conceição Lima: a casa
São Tomé e Príncipe e o Continente. Natural de Santana da ilha de
São Tomé, a poeta se situa na linhagem de poetas como o grande
Francisco José Tenreiro e de Alda do Espírito Santo, - grave voz
santomense - com quem dialoga para “resgatar a praça em nova festa/
para ressucitar o povo e sua gesta” (Lima, 2004, p.50), enfim, da
geração dos idos de 40 a 60. É a insularidade, comenta Inocência Mata
(1993), em toda a sua imanência geopsicoscultural e socioeconômica a
matriz das formas literárias de São Tomé e Príncipe, mas não a
insularidade do ilhamento, da solidão.
Jovem, ao mergulhar no Tellus Mater, numa expressão
singular, porque sua, a poeta vem se reafirmando a cada nova obra
como um dos grandes nomes da poesia do pós-independência.
Tomemos de O útero da casa (2004), o poema “Mátria”
(Idem, p. 17), que inicia o livro.
Quero-me desperta
se ao útero retorno
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125
para tactear a diurnal penumbra
das paredes
na pele dos dedos reviver a maciez
dos dias subterrâneos
os momentos idos
Esta é a porta de entrada, se entendermos que é o espaço e não
o tempo o que guarda a memória. E se o espaço é a casa, ela pode ser
revisitada, através da literatura, na tentativa de desvendar-lhe não
apenas os espaços iluminados, mas também os espaços sombrios, que
o tempo, por si só, não é capaz de reconstruir. É justamente na
penumbra que a poeta mergulha, tentando iluminar-lhe os sentidos.
A casa útero, a mátria, é templo, é sacralizada, e se há
melancolia da perda, há também uma grave crença:
Creio nesta amplidão
de praia talvez ou de deserto
creio na insônia que verga
este teatro de sombras
(Lima, 2004, p.17)
porque o corpo deste templo mátrio, do castelo melancólico, é força e é
rumo, é feito de “tabuas rijas e de prumos”.
O poema que segue é, então, “A casa”, a casa projetada num
outro aqui, um projeto inacabado porque a pertença, a verdadeira
pertença de quintal “plano, redondo sem trancas nos caminhos” é de
uma outra ordem, da geografia primeira. É da diáspora, “da casa do
exílio” como aparece no poema “Herança”, que Conceição Lima vai
construindo e reconstruindo sua imagem da casa da pertença, como um
universo que constrói para si mesma, imitando a criação paradigmática
dos deuses, a cosmogonia, para lembrar Eliade (1979). E como o faz
pelo poema, a poeta lida, simultaneamente com imagens dispersas e
com um corpo de imagens, valorando da realidade o real, tornando-o,
assim, consciência.
É como o eu enunciador vai revisitando as origens nas “Ilhas”:
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Em ti me projecto
para decifrar do sonho
o começo e a consequencia
Em ti me firmo
para rasgar sobre o pranto
o grito da imanência.
(Lima, 2004, p.27)
e reconstruindo, poeticamente, a história de São Tomé e Príncipe,
trazendo o drama do colonialismo e do que dele sobrou.
Nas palavras de Inocência Mata,
São poemas que, situando-se num plano
reflexivo, constroem o relato de uma geração,
metonímia de um segmento narrativo no relato
da nação. Nessa reconstituição narrativa da
nação, o sujeito enunciador combina
lembranças de um tempo politico e reúne
esparsos elos do passado nacional para lhe
conferir uma iluminura projectiva, pelo viés da
movimentação afectiva e intimista. O fluxo
histórico na poesia de Conceição Lima parece
ser a força motriz da produção de sentidos.
(Lima, 2004, p.12)
De fato, a história do País está lá e o processo do colonialismo
foi tirânico, paternalista, perverso, de sobreposição cultural, de
exploração.
Já no século 16 desenvolvem-se grandes plantações de açúcar,
havendo a necessidade de busca de milhares de escravos do continente
africano. As ilhas de São Tomé e Príncipe chegam a contar com cerca
de 60 engenhos de açúcar. É o tempo da revolta dos escravos
angolanos, ainda hoje verdadeiros símbolos desta região da África.
Aos poucos, estas ilhas assumem uma enorme importância
estratégica para os portugueses, como ponto de escala nas rotas de
navegação, mas também para o próspero comércio de escravos do
Congo e Angola.
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127
No século 19, são introduzidos o café e o cacau, criando-se
grandes plantações e, a abolição da escravatura, em 1869, não
terminou com o trabalho de escravo. Os escravos passam a ser
denominados "contratados". Milhares de africanos, sobretudo de Cabo
Verde, Angola e Moçambique, são forçados a trabalhar para os
grandes proprietários numa nova forma de escravidão. Daí o alerta de
Inocência Mata de que na mundividência santomense não há
possibilidade de se falar de dualidade cultural, mas de uma "
identidade de formação mestiça que nos meados do séc. XIX começa a
estruturar-se definitivamente como africana na sua matriz psicocultural
e antropológica". ( Mata, 1993, p.64)
O século 19, tido como o da segunda colonização, representa
uma ruptura na medida em que a figura do português cede lugar à
imposição de uma nova presença, que é a do africano. E, com a
exploração do café e do cacau, começa, também, a haver a distinção
social entre brancos e mestiços, que, então, se equiparam aos forros. Se
por um lado, esse século representa a implementação da agricultura,
por outro, reduz “ o já insignificante desenvolvimento social." (idem,
p. 109)
Um dos poemas mais densos de O útero da casa é o
belíssimo “ Manifesto imaginado de um serviçal” (Lima, 2004, p. 35),
ao cantar o chão inconquistado.
[...]
clamo o pó que reclama a exaustão serena do meu corpo.
Não mo podeis usurpar, ngwêtas, com o ferro da vossa força.
Não mo negueis, ó híbridos forros, com o vosso frio desdém de
séculos. Este barro é meu, espinho a espinho penetrou o osso dos
meus passos como um sopro cruel e palpitante. Até ao fim onde
[agora
começo porque a morte é o estuário de onde desertam os barcos
[todos
que cavaram meu destino.
Irmãos:
Pelo mar viemos com febre. De longe viemos com sede.
Chegamos de muito longe sem casa.
[...]
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Ilhas! Clamai-me vosso que na morte
Não há desterro e eu morro. Coroai-me hoje
de Raízes de sândalo e ndombó
Sou filho da terra.
Surgem revoltas contra o colonialismo e contra as atrocidades
e abusos praticados pelos grandes proprietários. Entre as ações
repressivas, a chacina que, em Fevereiro de 1953, realizou o
governador do território, Cel. Carlos Sousa Gorgulho, o massacre de
Batepá, recorrente nas três obras da autora.
Era Fevereiro e a infância sussurrava
Na varanda eterna da casa antiga
Onde como fogo aceso persiste a tua face
(Lima, 2004, p.56)
O principal problema da ilha, sobretudo a partir do século 19,
foi a distribuição muito desigual da terra. De um lado, nas mãos dos
grandes proprietários, plantações extremamente lucrativas, e do outro,
uma agricultura de subsistência. Em 1950-1955, por exemplo, aos
nativos (52% da população) pertencia menos de 1% dos totais dos
produtos ricos que estavam na base das exportações da ilha
(cacau, café, oleaginosas, quina, canela, banana).Esta situação acabou
por se tornar insustentável.
Em 1960, é fundado o Comitê de Libertação de São Tomé e
Príncipe, transformado em 1972, num Movimento de Libertação
(MLSTP).
Chega-se, então, à independência. Como em Cabo Verde, em
1975, foi instaurado um regime monopartidário. Nesta altura, as roças
foram nacionalizadas, provocando a saída de 4 mil portugueses. As
estruturas econômicas são afetadas. Os conflitos se sucedem. Em 1980,
entram no país cerca de 2.000 angolanos, conselheiros soviéticos e
cubanos. O desmoronar da União Soviética, a partir de 1989, provoca
o fim dos apoios internacionais deste regime.
Em 1990, é aprovada uma nova constituição, multipartidária,
pondo fim ao regime anterior, mas não às tentativas de golpes de
estado. Em 1995, um grupo de oficiais das forças armadas volta a
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apoderar-se do poder. Esta situação de conflitos latentes acaba por
depauperar a já frágil economia do país.
Conceição Lima evoca 1975, transformando em imagens seus
fantasmas. Se os heróis “indagam por suas asas crucificadas” (Lima,
2004, p.25), se os mortos perguntam “Que reino foi esse que
plantámos?” (Idem, p. 30), a geração da Jota (Lima, 2004, p.24)
encontra a distopia.
E quando te perguntarem
responderás que aqui nada aconteceu
senão na euforia do poema.
Diz que éramos jovens éramos sábios
e que em nós as palavras ressoavam como
barcos desmedidos
Diz que éramos inocentes, invencíveis
e adormecíamos sem remorsos sem presságios
[...]
Oh, sim! Éramos jovens, terríveis
mas aqui – nunca o esqueças – tudo aconteceu
nos mastros do poema.
A ideia da herança e da distopia retorna em “Afroinsularidade”
(Lima, 2004, p.39), porque
Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações
engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras
[…]
E nas roças ficaram pegadas vivas
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como cicatrizes – cada cafeeiro respira agora
um escravo morto.
E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
[…]
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.
Em A dolorosa raiz do micondó (2006), o segundo livro de
poemas de Conceição Lima, a inquietação da história permanece e
amplia-se, mas a casa, a casa está lá. É preciso mais, é preciso o
encontro com as raízes gentes, que também são casa, referência,
abrigo, porque as raízes gentes são como as do micondó, profundas,
capazes de sustentar vinte metros de altura e dois mil anos de tempo, a
árvore sagrada.
O poema “Canto obscuro às raízes” é, sem dúvida, um dos
grandes poemas da literatura africana de língua portuguesa, ele se volta
para a recuperação da ancestralidade num diálogo antológico com a
evocação de Alex Haley (1921-1992), jornalista e escritor afroamericano, que no romance Roots (1976) trabalha o tema da busca da
origem. E, aí, o sujeito lírico se agranda.
Eu que trago deus por incisão em minha testa
e nascida a 8 de Dezembro
tenho de uma madona cristã o nome.
A neta de Manuel da Madre de Deus dos
Santos Lima
que enjeitou santos e madre
ficou Manuel de Deus Lima, sumu sun
Malé Lima Ele que desafiou os regentes
intuindo nação — descendente de Abessole,
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senhor de abessoles.
Eu que encrespei os cabelos de san Plentá,
minha três vezes avó
e enegreci a pele de san Nôvi, a soberana mãe do
meu pai
Eu que no espelho
tropeço na fronte dos
meus avós...
Eu e o temor do batuque da puíta
o terror e fascínio do cuspidor de fogo
Eu e os dentes do pãuen que da costa viria me
engolir
Eu que tão tarde descobri em minha boca os
caninos do
[antropófago...
Eu que tanto sabia mas tanto sabia
de Afonso V o chamado Africano
Eu que drapejei no promontório do Sangue
Eu que emergi no paquete Império
Eu que dobrei o Cabo das Tormentas
Eu que presenciei o milagre das rosas
Eu que brinquei a caminho de Viseu
Eu que em Londres, aquém de Tombuctu
decifrei a epopeia dos fantasmas elementares.
Eu e minha tábua de conjugações lentas
Este avaro, inconstruído agora
Eu e a constante inconclusão do meu porvir
Eu, a que em mim agora fala.
(Lima, 2006, p.11-19)
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Eu, a que em mim agora fala é mais do que eu, é São Tomé e é
África, ainda que perdida na linearidade das fronteiras, é tradição, é
essencialidade, é oralidade e é história.
Aqui, ao colonialismo, a “Anti-epopéia” (Idem, p. 20) às
avessas, na colaboração dos negros, a denúncia da ganância e a avidez
por bugigangas como produto de troca. O poema que segue é
“Espanto” (Idem, p.21), onde Conceição Lima diz, com rara
sensibilidade e com grande força imagética o silêncio de quem partiu
como escravo.
“Zálima Gabon” (Idem, p.22) também retrata a escravidão e as
mortes decorrentes desse processo como uma memória que marca o
arquipélago:
Falo destes mortos como da casa, o pôr do sol, o curso
[d’água
São tangíveis com suas pupilas de cadáveres sem cova
a patética sombra, seus ossos sem rumo, sem abrigo.
Impressiona a consciência que Conceição Lima tem do seu
próprio processo de criação, daí o domínio que demonstra sobre a
palavra e o verso, porque o poema é também objeto do poema.
Referindo-se a Nigéria e Biafra, quando os EUA, através da Joint
Churches Aid , montaram uma ponte aérea a partir de São Tomé e
Príncipe, com o intuito de auxiliar o Presidente Ojukwu e o povo do
Biafra no abastecimento de necessidades básicas como alimentação e
medicamentos.Foi, na ocasião, criado um internato exclusivo dentro do
Hospital Central, bem como diversas casas de zinco para residência
oficial das crianças da Biafra, na sede da Quinta de Santo António. A
guerra deixou dois milhões de mortos. Ao mesmo tempo em que canta
o “Espectro de Guerra” (Idem, p.30-32),
[…]
Um dia fui ao hospital e vi esqueletos. Eram pequenos
como nós e eram esqueletos. Só tinham cotovelos olhos
e joelhos.
Estavam deitados nas camas, muito quietos, presos a uns
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133
fios com balões de vidro.
Eram muitos e vinham de noite nos aviões.
Não sei quantos saíram do hospital aumentado
para os seus ossos.
a poeta pensa o poema:
Sei que certos poemas juntam os versos como se os
deitassem numa vala comum.
Certos poemas sentem dó da metáfora, trancam a porta
na cara da rima.
São vítreos olhos em flácidos corpos.
[...]
O poema, a história, a casa, sempre a casa, porque “Inegável”
(Ibidem, p. 54):
Por dote recebi-te à nascença
e conheço em minha voz a tua fala.
No teu âmago, como a semente na fruta
o verso no poema, existo.
Casa marinha, fonte não eleita!
A ti pertenço e chamo-te minha
como à mãe que não escolhi
e contudo amo.
E conta a lenda, renovando as esperanças, que “Há-de
nascer de novo o micondó”... “Reabitaremos a casa, nossa intacta
morada” (Ibidem,p.67-68), num alerta de que o passado, anterior ao
sofrimento, não morre e a casa da pertença é também proteção. Se há,
em Conceição Lima, a denúncia de todas as destruições do processo
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
134
colonizador, há também a esperança e a simplicidade complexa da
constatação de o cosmos das ilhas é feito de matéria outra.
ARQUIPÉLAGO
O enigma é outro — aqui não moram deuses
Homens apenas e o mar, inamovível herança.
(Lima, 2006,p. 53)
O país de Akendenguê (2011), o terceiro livro de Coceição
Lima, é, por ventura, o mais elaborado, nele, anuncia o escritor Helder
Macedo, em excelente prefácio, há uma atitude cultural e uma
perspectiva literária. E, de fato, assim é.
A análise de Helder Macedo parte da referência, no título da
obra da escritora santomense, ao poeta e músico do Gabão, Pierre
Akendenguê,
cujas composições tem contribuído para a
definição de uma africanidade capaz de
integrar, como e enquanto
africana,
manifestações
culturais
tradicionalmente
associadas a outros povos e a outros
continentes.(…) E a
mitologia Africana
presente em muita da sua poesia corresponde a
arquétipos
míticos
universalmente
reconhecíveis. (Idem, p. 7)
E, então, estabelece o diálogo:
Se entendo correctamente, o título deste livro
de Conceição Lima aponta para uma partilhada
perspectiva africana universalizante e, desse
modo, define uma atutude oposta à que seria a
de uma cultura colonial que visasse integrar-se
numa cultura colonizadora. (Ibidem)
E continua:
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135
O “país” de Conceição Lima é uma ilha. (…) A
sua ilha é São Tomé, ponto de partida e de
chegada numa viagem entre a memória e o
desejo. (Ibidem)
E é aqui, nesta viagem anunciada não uma viagem de evasão,
mas reflexiva, crítica, libertadora, de encontro, que embarcamos, uma
viagem formada, na maior parte das vezes de poemas curtíssimos e
absolutamente densos. É próprio da poeta este talento de luta e de
persistência de luta com as palavras de que diz não estar farta e as
procura “Para que elevem, soberanas, o reino que forjamos.” (Lima,
2006, p.27)
Para te encontrar levantarei os prumos.
Inventarei a casa nos mesmos rios
Para nos descobrir.
(Idem, p. 28)
É o que caracteriza a primeira das sete, aliás, sete é o número
da perfeição, partes do livro, a busca e o encontro das palavras para
“nos descobrir”, porque
Tudo é profundo nos olhos da Cidade
Até a teia dos enganos desvenda a pertinácia deste rosto.
(Idem, p. 33)
A segunda parte é a da pertença. Se em “Viajantes” (2006,p.
31), a avó pergunta:
A quem pertences tu?
Quem são os da tua casa?
Vem do belíssimo “O amor do rio” (de que Helder Macedo faz
excelente análise) a resposta:
Este lugar é a minha casa, não tenho outra.
Esta casa é o meu lugar, não quero outro.
Ainda que o ventre da infância reconvoque outro
exílio.
Mesmo se a angústia das mães antecipa a aurora.
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Por isso trouxe ao teu jardim o odor do sal, a raiz
do mar que
[bordeja o baobá.
(p. 40-42 )
E, então, a fronteira, porque “Trespassar é sina dos que amam o
mar”(Idem, p.44). O primeiro trespassar é a terceira parte do livro,
cujo tom mitológico recupera o pastor lendário, semeador de mortes e
o guardião. A transição desta parte para o segundo trespassar, “Os
territórios deflorados” – “ Iremos/ sem temor dos fantasmas/
Conhecemos o trilho” – localiza-se no “Projecto de canção para
Gertrudis Oko e sua mãe”(Idem, p. 60-61)
Surge, aqui , o primeiro balanço da viagem:
Esta viagem não responde às minhas perguntas.
Trespassei o aço das certezas.
Herança, devorei-as.
A etapa seguinte rasga a prévia cartografia
Toda a fronteira é um apelo à renúncia.
Perscrutei mares cidades sinais nas pedras papiros.
Ao encontro da linguagem da tribo azul
cada passo me afasta de um rito sagrado.
Esta caminhada decreta um tráfico sem remissão:
a fortaleza do sonho pela metamorfose das feridas.
Vítima da memoria, nenhum deus me acolhe à chegada.
Dádiva é a parte seguinte, a quinta, aqui, Conceição Lima
homenageia o artista plástico Protásio Pina, já cantado no poema
“Mural” de O útero da casa. Por que Pina como dádiva? Porque
Protásio Pina foi grande artista plástico santomense e referencia de
gerações posteriores. Viveu entre 1960 e 1999, período em que
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137
demonstrou – como Conceição – todo o amor e devoção à natureza.
Naturalista e minimalista, buscou a perfeição em suas paisagens,
captou, como a poeta, a arte da fauna e da flora da ilha, dando a ela
vida em seus murais. Pintou com as cores que Conceição pinta com as
palavras, mas “O coração, que vinha ao encontro da sua mão,
anoiteceu” e “O coração ficou no jardim ardendo na roda das
estações.” (Idem, p. 78) O jardim de que o jovem pintor se condoeu ,
enquanto os deuses dormiam à sombra das ruínas.
É na sexta parte da obra que ressurgem os fantasmas
elementares, aqueles que, segundo Adonis, “ avançam/ Entre fogo e
metamorfose” (Ibidem, p.95) O primeiro deles é Kwame Nkrumah.
Líder político africano, foi um dos fundadores do Pan-Africanismo e
um grande lutador pela descolonização da África. Foi primeiroministro e presidente de Gana. A ele, Conceição Lima canta:
Kwame
Deixei longe o clarim.
[…]
Acostumo-me ao perpétuo fogo
Na fronte de Acra.
Que diriam as palavras
O que diriam
Sobre o árduo fulgor da tua mortalha?
(Lima, 2011,p.81)
O Segundo é Mwalimu (Idem, p.82), líder marcado pela
simplicidade, que lutou pela libertação da África, lutou contra a
injustiça e a indignidade a que foram submetidos os africanos, ele foi
O que cuidou das sementes e dos frutos
O que pegou na palavra
E arou um campo sem ossadas
O que teve as mãos calejadas
Adormeceu coroado de brancos cabelos (…)
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O terceiro, é o “Congo 1961”(Idem, p. 83), numa referência à
grande crise e a Patrice Lumumba, primeiro ministro daquele país.
Segue-se a série belíssima de poemas de todas as mortes de
Amílcar Cabral e as montanhas.
Fecha esta parte o inquietante e belo poema “Em nome dos meus
irmãos” (Idem,p. 93-94) , dedicado a Alda Espírito Santo, em seu 80º
aniversário:
Hoje cantarei o ferro da dor da nossa mãe,
chamarei musgo e rocha à
[tua mão,
pois do fundo dos dias mantenho na página
aberta, o perfil do
[archote.
Inquietante pela reiteração do pronome interrogativo.
(...)
Quem,altura e testemunha, vela no sopé do
Futa Jalon a pestana de [Amílcar, o riso de
Amílcar, as botas de Amílcar?
Quem decifrou o testamento de Kwame?
Quem nos mostrou as torrentes de Kwanza?
Que canto confortou a solidão de Pauline?
Pauline e sua carta de [saudade, sua fome de
futuro, Pauline e Patrice seu amor
[assassinado, esse amor transmutado em
minério do Congo?
Para responder:
Não, não falarei do profeta em teu peito: seus
sonhos, nossas [teimas, o limite da sua
clarividência , a inexorável estrela em nossa
testa.
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Entre os ramos das goiabeiras e a pele dos
livros, respiro.
Toco o mapa da lua, louças antigas, o vulto de
Maria de Jesus, os [longos brincos de Maria
Amélia, Vasco e Egídio, os espectros [amados.
Teus cotovelos fincados na borda da mesma
austera mesa.
Sirvo-te chá. Sento-me diante dos teus olhos.
Estamos em casa.
Encerra a obra a sétima – já disse, o número perfeito, macho e
fêmea – ilha e país , partida e retorno - parte - sétimo, como escreve
Conceição Lima, é " O coração da ilha"
Há, aqui, o alerta da sementes, e a consciência de que somente
os pensamentos e as experiências - transfiguradas ou não - sancionam
valores humanos, e de que " Na onda se inscreve todo o princípio/ as
sementes da blasfêmia e da redenção." ( Idem, p.97)
A casa, que percorre as três obras- tema obsessivo de
Conceição Lima, retorna grave em "A voz de pedra" ( idem, p.104) ,
ela é sacralizada por um simbolismo cosmológico. Ela é construída e
renovada poeticamente, envolvendo existência plena. " Amanhã
despediremos o muro - conhecemos a voz da pedra. "
Há, então, o retorno da viagem, na " Circum-navegação"
(idem,p.106), "sossegaram os mortos". A volta à casa em barcos
"carregados de cidades e distância." ( Idem,ibidem), representa abrigo
e paz, a integração, enfim, procurada nas lembranças, nos sonhos, nos
pensamentos. A casa está inscrita no corpo, comenta Eliade (1991) não
como traço mnêmico, mas como imagem de intimidade, como imagem
que busca um centro, que instaura um centro, que cria um universo.
Em Conceição Lima, o ponto de união entre imaginação e memória. O
universo, trazido pelos barcos, de lá do mar, também matriz e
recorrência da literatura santomense, o mar do ser santomense, é onde
se habita a casa, a ilha. A casa e a ilha como representação da terra, "
como fundadora de uma insularidade africanamente telúrica (raiz,
húmus, pátria", dirá Inocência (1998, p. 84), “o mar ( e seus elementos
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metonímicos, o barco, a nau[...] como contraponto diferencial de uma
insularidade que cada vez mais, vem afirmando, através de sua
peculiaridade histórica, uma ambivalente insularidade: mestiça,
crioula, mas profundamente africana."
Acontece a arte da viagem
Tanta aprendizagem de leme e remendo...
É quando o olho imita o exemplo da ilha
E todos os mares explodem na varanda.
Esta é já a marca de Conceição Lima na história da literatura. É
na casa, esta casa país e esta esta casa continente e na sua revisitação
politico-histórico-cultural que reside a qualidade inequívoca do fazer
poético de Conceição Lima, não há limite, nesta sua verdade poética,
entre a memória, a imaginação e sua transposição para o texto.
As grandes imagens trabalhadas por Conceição Lima tem ao
mesmo tempo uma história e uma história anterior à história, própria
da cultura mítica. São sempre lembrança do vivido e do não vivido e
tem , simultaneamente, a lenda e situações e personagens lendários.
Talvez por isso seu poema seja, de fato, porta aberta tocha acesa.
A porta instiga o leitor ao mergulho na memória-fantasiaimagem profunda, a tocha, por sua vez, é luz que evoca a memória,
revificando o passado para o presente, iluminando o presente. É que
há poetas, felizmente!, há poetas que lutam com as palavras e as
libertam para que o mundo, em liberdade, se entenda. São Lima é um
desses.
REFERÊNCIAS:
LIMA, Conceição. O útero da casa. Lisboa: Caminho, 2004.
______. A dolorosa raiz do Micondó. Lisboa: Caminho, 2006.
______. O país de Akendenguê. Lisboa: Caminho, 2011.
MATA, Inocência. Emergência e existência de uma literatura O caso
santomense.Lisboa: ALAC, 1993.
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141
MATA, Inocência. Diálogo com as ilhas (sobre cultura e literatura de
São Tomé e Príncipe. Lisboa: Colibri, 1998.
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DO SILÊNCIO À CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA
FEMININA DAS GUERRAS EM ÁFRICA
Laura Cavalcante Padilha 1
[...]a memória [é] um
elemento essencial do que se
costuma
chamar
de
identidade, individual ou
coletiva, cuja busca é uma
das atividades fundamentais
dos
indivíduos
e
das
sociedades de hoje, na febre
e na angústia.
(Jacques LeGoff)
O texto que agora se apresenta é um dos que comporão o
fechamento da pesquisa iniciada em 2010 e que encerrará seu primeiro
segmento em 2014. Seu título é “Memórias e testemunhos de guerra
em narrativas produzidas por mulheres de Angola, Moçambique e
Portugal”. A ela seguirá um segundo movimento, havendo apenas uma
mudança do corpus, pois pretendo trabalhar com a poesia feminina dos
cinco países africanos, publicada a partir de 1975. O objetivo se
manterá, ou seja, a busca de resgatar memórias de mulheres que
acabam por cartografar, linguajeiramente e pela escrita, suas
identidades postas em cheque tanto pelo colonialismo europeu, quanto
pelo neocolonialismo que o substitui depois das independências. Nasce
daí a insistência dessas mulheres em recuperar os marcos geodésicos
de suas memórias, ao mesmo tempo pessoais e coletivas, o que ganha
sentido mais denso quando se trata da memória de guerra(s) por elas
vividas.
Ficcionalizando ou testemunhando suas memórias, as mulheres
africanas, no presente caso, de Angola e Moçambique, rompem o
silêncio que sobre elas pesou e ainda pesa, no sentido posto por Le
1
UFF/CNPq.
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143
Goff, em História e memória (2003, p. 469), cujo fragmento foi por
mim resgatado na epígrafe. O mesmo se pode estender para as
mulheres portuguesas, principalmente, mas não só, as daquelas que,
acompanhando os combatentes diretos da guerra por Portugal
denominada “guerra colonial” e sem que vivessem diretamente os
confrontos (como o fizeram muitas africanas) os vivenciaram de perto,
já que, movidas pelo afeto, aceitaram o deslocamento compulsório
para os três palcos onde os enfrentamentos bélicos se deram: Angola;
Guiné Bissau e Moçambique.
Como bem conhece qualquer estudioso do continente africano, a
questão da guerra se torna um fato epistêmico incontornável quando
sobre ele nos debruçamos. Se olharmos para Angola, por exemplo,
veremos que o primeiro livro, lá produzido, foi História geral das
guerras angolanas, de António de Oliveira de Cadornega (1680). Sua
base histórica é inquestionável, mas não se pode esquecer, igualmente,
que a obra tangencia, em muitos pontos, o ficcional. Não é por mero
acaso que a História das guerras é retomada, direta e/ou
indiretamente, em diversos momentos da literatura moderna angolana,
como evidenciam, por exemplo, os romances A gloriosa família, de
Pepetela (1997) e De rios velhos e guerrilheiros I. O livro dos rios, de
Luandino Vieira (2006), para ficar apenas com duas ocorrências.
Assim, mesmo quando não se tem por objetivo trabalhar a questão da
guerra em si, mas tão somente suas memórias, como venho fazendo,
não há como deixar de lado o resgate de algumas questões que ajudam
a costurar melhor qualquer tecido analítico sobre a matéria.
Em primeiro lugar, devo apontar, como por várias vezes o fiz,
que algumas análises mais ligeiras costumam insistir na banalização da
guerra em África, tentando sempre comprovar que, antes da chegada
dos colonizadores europeus, já o continente era marcado por
enfrentamentos étnicos de toda a ordem. A isso responde a percuciente
análise do historiador Joseph Ki-Zerbo, de Burkina Faso, ao mostrar,
em entrevista concedida a René Holestein (2006), que nenhum povo
deixou de ter guerras e, por isso, “por toda a parte os Estados nacionais
nasceram no sangue” (p. 59). Também o ensaísta João de Melo deixa
claro, na abertura da antologia por ele organizada, Os anos da guerra
(1998), que “a resistência camponesa ao invasor faz parte da História
de todos os povos de África” (p. 12), embora a historiografia
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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portuguesa minimize ou mesmo rasure a importância dessas formas de
resistência. Para ele, também romancista, a colonização portuguesa se
fez “um prolongado, sistemático, difuso, surdo e continuado acto de
guerra colonial” (idem). Por essa razão, ele considera o confronto
bélico que eclode em 1961 em Angola, estendendo-se às outras
colônias de então, até 1974/75, como a segunda e, não, a primeira
guerra que se pode nomear colonial. Esta guerra, como sabemos,
ganhará uma dupla nomeação, de acordo com o lugar de pertença
histórico-cultural dos sujeitos do conhecimento e da ação política. Se
africano, nomeará a sua como guerra de libertação nacional; se
português, conforme já dito, como colonial. Fica nítida, assim, a
separação entre o eu e o outro e, mais, entre o sonho de uma nação por
vir e o pesadelo de um império a esboroar-se.
Mesmo com essa dupla nomeação, quando lemos textos
produzidos por mulheres de ambos os lados do confronto, vemos que
neles há claras interseções pelas quais se põe em cena uma mesma
“desobediência epistêmica e política”, retomando a formulação de
Walter Mignolo (2008, várias páginas). Tal modo de “desobediência”
permite que se estabeleça, segundo Zulma Palermo, uma perspectiva
crítica descolonizante que acaba por iluminar outras formas de
conhecimento, tornadas opacas, quando não rasuradas, pelos que
praticam a colonialidade do poder (2000, p. 240). Abre-se com isso a
possibilidade de que se chegue a formas de conhecimento em diferença
e sejam confrontadas as velhas e novas hegemonias dos outros e de
nossos tempos.
Já o segundo movimento de minhas reflexões, cujo foco são as
memórias das guerras civis, objetiva a análise dos elementos pelos
quais se constroem, nas malhas dos textos africanos de assinatura
feminina, espaços discursivos e imagísticos também de uma extrema
crueldade e violência. A análise que fiz de narrativas, literárias ou não,
assinadas por mulheres de Angola e Moçambique, aponta que as
guerras civis, de modo talvez mais contundente do que se encena
quando o objeto narrado é a guerra de libertação, ao romperem, com
força e vigor, o silêncio que sobre elas se abate, vão um pouco na
contramão do que geralmente se passa no âmbito de textos de
assinatura masculina. Basta que se ponha em relação, para comprovar
tal hipótese, no âmbito do romance moçambicano, por exemplo, a forte
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
145
carga alegórica de algumas produções de Mia Couto, confrontando-as
com outras de Paulina Chiziane, marcadas por intenso e muitas vezes
dramático realismo.
Analisar, portanto, textos literários, ou não, de assinatura
feminina é comprovar como, seguindo o que postula Beatriz Sarlo, em
Tempo passado (2007), “a memória e os relatos de memória se fazem
uma ‘cura’ da alienação e da coisificação” (p. 39). Por essa espécie de
resgate do vivido, continua a autora, “mesmo que não haja uma
verdade naquilo que se narra” (idem), os sujeitos dessas narrações
deixam-se conhecer melhor e, ao comunicarem suas experiências,
acabam por demonstrar o seu sentido e afirmar a natureza de sua
subjetividade, ainda de acordo com a ensaísta. É esta construção de
sentidos que me propus analisar, mesmo sabendo, com Derrida,
retomado ainda por Sarlo, que o “sujeito que fala é uma máscara ou
uma assinatura” (ibidem, p. 33). De qualquer modo, a experiência da
guerra, segundo ainda a crítica argentina, ao transformar-se em relato
do vivido, permite a reconstrução “da textura da vida e a verdade
abrigadas na rememoração da experiência” (ibidem, p. 17). É o caso da
produção narrativa de mulheres africanas e portuguesas, conforme
demonstram duas das obras sobre as quais me debrucei e que resgatam
entrevistas feitas por mulheres, a saber: África no feminino. As
mulheres portuguesas e a guerra colonial (2007), assinada por
Margarida Calafate Ribeiro e O livro da paz da mulher angolana. As
heroínas sem nome (2008), em cuja capa não há qualquer nomeação de
autoria. Só ao abrir o livro encontramos o nome das organizadoras,
Dya Kasembe (angolana) e Paulina Chiziane (moçambicana), sendo a
primeira a coordenadora da obra. Esta ausência de nomeação autoral é
simbólica e sintomática para que analisemos o desejo de ambas de
fixar o coletivo mais do que o individual.
As capas, desse modo e de partida, demonstram o impulso
descolonizante e desocultador que está na base do processo editorial
dos dois livros. O primeiro é assinado por uma professora e ensaísta
portuguesa que vai pôr, em uma espécie de roda, algumas das muitas
mulheres igualmente portuguesas por ela entrevistadas, como já aqui
afirmado, e que, não fazendo a guerra diretamente, a viveram pelas
bordas, e em nome do afeto. Já o segundo foi produzido por duas
escritoras que deixam a ficção para irem em busca da realidade de
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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outras mulheres que, como elas próprias, experimentaram o que é viver
em espaços assinalados pelo duro sinete de tantas guerras.
Ambas as obras, apesar do universo em diferença que resgatam,
se tocam em um mesmo ponto, ou seja, o desejo de romper as malhas
do silêncio o qual, como densa teia, se abateu sobre as guerras e suas
violências, encenando-as em suas telas de palavras que nos fazem
conhecer os corpos, vozes e imagens de muitas mulheres que sofreram
a guerra diretamente ou apenas a presenciaram de fora. Nesse sentido,
as vozes recuperadas se juntam às dos sujeitos que as recuperaram pelo
que o ético e o político se unem, a fim de que não se esqueça o passado
para que o futuro possa ser marcado com o selo da esperança.
Quero, neste ponto, apresentar o que me parece resultar desse
encontro dos dois livros.
A meu ver, ambos, estando tão perto da linha temporal, já que
publicados, respectivamente, em 2007 e 2008, se suplementam, pois
representam um modo de se evitar “o esquecimento e a denegação”,
como posto por Jeanne Marie Gagnebin, em Lembrar escrever
esquecer (2006, p. 41). Significam, ainda, a vontade de que a
densidade da experiência traumática das mulheres ouvidas não se
dissolva nas águas do tempo.
Também as três organizadoras, a portuguesa e as duas africanas,
parecem ter o mesmo interesse em analisar os rastros inscritos na
“lembrança de uma presença” – no caso a das duas guerras –, presença
“que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar
definitivamente”, ainda citando Gagnebin (idem). Elas resgatam, por
palavras escritas, os testemunhos de sujeitos pertencentes a seu mesmo
gênero, embora saibamos serem a memória e a escrita tecidos
igualmente frágeis. Pactuam elas, assim e ao mesmo tempo, com o
ético e o político, como atrás afirmei, tentando inscrever o que um
certo modo de conceber a história tentou apagar.
Lutam Margarida, Dya e Paulina, embora em campos diferentes,
e volto a Gagnebin, não só “contra o esquecimento e a denegação”,
conforme já referido, como também “contra a mentira, mas sem cair
em uma definição dogmática da verdade” (ibidem, p. 44). Elas sabem,
como sintetiza Susan Sontag, em Diante da dor dos outros (2003) que
“A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfrangalha, eviscera. A
guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta” (p. 13). Se as
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
147
imagens que vemos quase diariamente, pela mídia, provam isso,
também os relatos testemunhais dos que sofreram sua devastação, no
caso das mulheres angolanas, ou a intuíram, no caso das portuguesas,
se fazem também uma forma de luta contra a repetição do passado e
um modo de, em certa medida, contribuir para a reinvenção do
presente, para fechar com Gagnebin (ibidem, p. 57).
Torna-se árdua tarefa tentar resumir os dois livros, ou mesmo pôlos em diálogo, tal o campo de representação tenso e denso em que se
movem. Mesmo assim, tentarei, brevemente, pô-los em relação, pois, a
ligá-los, encontro um mesmo desejo que é anterior às pesquisas de
campo que deram origem aos textos, ou seja, o de mostrar como viver
a guerra é ficar frente a frente com o inominável e sucumbir ao medo,
mesmo no caso das mulheres portuguesas que, estando nas então
colônias-palco da guerra (Angola, Guiné Bissau ou Moçambique), dela
não participaram direta e perigosamente. Como diz uma das
entrevistadas por Ribeiro, ela, como as outras mulheres eram
“visitantes ainda mais alheias, porque mais alheadas de qualquer razão
de lá existir que não fosse a sua privada teimosia em viver com seu
marido ou com o seu amor” (2007, p. 50).
Confronte-se a percepção dessa mulher portuguesa de se ver
como uma visitante, em África no feminino, com o que diz a segunda
mulher, cuja voz é resgatada por uma das entrevistadoras de O livro da
paz, lembrando antes que, além de Kasembe e Chiziane, há uma
equipe formada por outras nove mulheres. Recupero a fala desta
segunda entrevistada, uma senhora mais velha de 80 anos, que assim se
expressa muito angolanamente, a meu ver:
Hé, hé hé, ché meninas, não me faz lembrar,
não me faz lembrar as coisas más que atraem
maus espíritos. Guerra? Guerra não presta.
Não gosto nem de ouvir falar. Eu aqui onde
estou já vi muitas guerras: a guerra do kwatakwata [...] Não gosto de recordar a guerra de
61. Morreu muita gente de minha família e
amigos. Meus olhos viram mais a guerra de
1975. (2008, p. 21-2)
As duas obras recolhem, assim, vozes, corpos e imagens de
sujeitos femininos, estejam eles fora ou dentro do espaço da luta direta,
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148
sujeitos que são mostrados de corpo inteiro ao leitor, no meu caso, a
uma leitora não angolana que, pelos relatos, vai podendo dimensionar
a diferença da “textura da experiência” das mulheres portuguesas e das
angolanas. De qualquer modo, não se vive a guerra ou dela se volta,
continuando a ser-se o que se foi antes dela, mesmo que a experiência
da dor não se faça sentir diretamente no corpo. Como revela uma das
mulheres ouvidas por Ribeiro, “tudo deixa de funcionar a preto e
branco”. E ela continua:
“Há uma paleta infinita. A experiência de África reforçou minhas
convicções [...] São aprendizagens que se fazem através do sofrimento
dos outros e do nosso próprio sofrimento e que nos fazem crescer
como pessoa” (2007, p. 79).
Separam-se, em blocos, a dor do outro e a própria, ao mesmo
tempo em que se mostra a virada ética e cognitiva do sujeito da
experiência. Ouçamos, por isso e já agora, o depoimento de uma outra
angolana que, após a vivência traumática, diz: “Por experiência,
também aprendi que a mulher é rija como o pau-preto, pau-ferro,
resiste a tudo, à violência, ao sofrimento. [...] Mulher é sabedoria.
Constrói a vida pela prática: a teoria vem depois” (p. 25).
Há pontos a ligarem as falas emersas dos dois livros: o não
querer falar da guerra; o não gostar de lembrar; o inadiável desejo de
viver a paz e em paz, passando a se ver como um novo sujeito; o tentar
levar a vida adiante, com fé no futuro, embora às vezes com um
enorme cansaço e sem nunca esquecer o medo, medo, aliás, muito bem
descrito pela primeira entrevistada da obra de Ribeiro: “Sabe, o medo é
como uma alergia, uma doença incurável [...] o nosso quotidiano era
habitado por um medo pequeno, fininho e vago, infiltrava-se na vida,
descaradamente” (p. 45).
É claro que essa “alergia” também atinge o corpo físico e
psíquico das angolanas no espaço direto da luta. Ele, no entanto, como
que se cura na hora em que é necessário combater na mata, quando o
cotidiano é virado pelo avesso, conforme mostra o depoimento de uma
combatente da luta de libertação nacional: “[...] na mata não tem água,
a pessoa tem fome, só tem farelo. O que é? Mudar de roupa? Você tem
roupa na mata?! Ali só tem sofrimento. [...] Você só querer acabar
vingança de português contra nossa terra” (p. 34).
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O sofrimento dessas heroínas sem nome assalta, como se dá
quando várias delas relatam cenas vividas na infância e que chocam
brutalmente o leitor, pois nelas se representa o pior dos pesadelos, o da
mutilação. Cito apenas um desses relatos, calando os que mais nos
assustam e atingem por serem relatos do vivido das próprias mutiladas:
Sou filha da guerra. Quando nasci a guerra
tinha 12 anos. Nasci no capim [...] Certa vez,
uma bala passou por cima da minha cabeça
[...] Uma vez, uma senhora pisou numa mina
[...] e impressionou-me ver a perna dela
saltitar até desaparecer no meio do capim [...].
Mas o maior susto mesmo, foi quando vi uma
mão decepada no meio do caminho. Só a mão,
sem o dono. (p. 85-6).
As palavras da antiga menina não deixam dúvida sobre a
natureza dos rastros traumáticos da guerra. A violência, o corpo por ela
atingido e a imagem de tudo o que fica gravado na memória, sempre
jogo de lembrar e esquecer, demonstram que o falar sobre o passado é
uma forma de vencer a denegação e dar fim ao silêncio.
O fecho deste último depoimento, talvez possa ser tomado como
uma metáfora possível a ligar as obras. Antes de resgatá-lo, porém,
gostaria de tecer rápidas considerações sobre os livros tomados em seu
conjunto.
África no feminino é uma obra realizada por uma pesquisadora
que já havia produzido um ensaio de inquestionável competência e
vigor: Uma história de regressos. Império, guerra colonial e póscolonialismo (2004). O enfoque desta obra tem como base a análise de
um corpo literário, por assim dizer. Depois dela, sua autora, parece-me,
decide realizar uma pesquisa de campo para saber como as mulheres
portuguesas pertencentes ao mundo real saíram do cais em que se fez
ouvir a voz do Velho do Restelo (que a autora recupera em ambos os
trabalhos) e seguem para a guerra em África, como ela diz, por amor.
O livro da paz é organizado por duas escritoras que igualmente
abandonam a solidão da escrita literária e, junto com uma equipe
formada por outras mulheres – coletadoras dos depoimentos, artistas
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150
gráficas, analistas dos dados, diagramadoras, etc –, percorrem várias
províncias de Angola (Bié, Cabinda, Huíla, Kwanza Sul, Luanda e
Malanje), realizando uma construção linguajeira e gráfica que quer ir
além das palavras, daí os anexos, com os nomes das colaboradoras
e/ou as fotos coloridas que resgatam o movimento do trabalho como
um todo, por exemplo.
Percebo que há, em África no feminino e em O livro da paz, a
busca de realização de um mesmo desejo: resgatar a ideia da urgência
de se solidificar um presente sem guerras, talvez não só no que diz
respeito à África, mas ao mundo como um todo. Utopia? Talvez. E o
que seria de nós sem ela? É em seu nome, portanto, que resgato o
fecho prometido. Diz a antiga menina que viu uma mão sem o dono e
uma perna a saltitar sozinha no meio do capim: “Paz para mim é
tudo. É dormir à vontade dentro da casa sem medo. É poder
pensar fazer alguma coisa amanhã. Espero que estas atrocidades
nunca mais hão-de-regressar” (p. 86).
Bem haja, eu diria. Esperemos também nós, leitores das obras –
e, no caso do Brasil, de onde falo, espectadores distantes de confrontos
como os do Sudão, Síria, Somália, Etiópia, Nigéria, etc – que chegue o
momento em que não se veja mais qualquer parte do mundo a arder em
chamas; em que não se projetem, nas telas da história, as imagens de
corpos de seres humanos destruídos pela mutilação ou mineralizados
pela morte e que cessem, para sempre, os relatos sobre as cenas
representadas em tais palcos históricos de destruição e horror.
REFERÊNCIAS:
CADORNEGA, António de Oliveira de. História geral das guerras
angolanas. 1680. Anotado e corrigido por José Matias Delgado. 3 v.
Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1972.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo:
Ed. 34, 2006.
KASEMBE, Dya e CHIZIANE, Paulina (Org.). O livro da paz da
mulher angolana. As heroínas sem nome. Luanda: Nzila, 2008.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
151
KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? Entrevista com René
Holestein. Trad. Carlos A. de Brito. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 5 ed. Trad. Bernardo Leitão e
outros. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003.
MELO, João de (Org.). Os anos da guerra: 1961-1975. Os
portugueses em África. Crônica, ficção e história. 2 v. Lisboa: Dom
Quixote, 1988. (Ensaio de abertura de Joaquim Vieira).
MIGNOLO, Walter. “Desobediência epistêmica. A opção descolonial
e o significado de identidade em política.” Trad. Ângela L. Norte.
Cadernos de Letras da UFF. Dossiê: Literatura, língua e identidade,
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PALERMO, Zulma. Inscripción de la crítica de género en procesos de
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GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
152
A TRADIÇÃO E (RE)APROPRIAÇÃO DOS CLÁSSICOS
NA PÓS-MODERNIDADE: O CASO EXEMPLAR DO
DIÁLOGO DA LUSOFONIA COM CAMÕES
E A OBRA CAMONIANA
Manuel Ferro 1
RESUMO: Se é indiscutível o reconhecimento da centralidade de
Camões e da obra camoniana na cultura e literatura portuguesa, o certo
é que em poucos momentos como atualmente foi tão sensível a
dificuldade em se compreender a sua obra em plenitude e aderir ao
discurso do grande Poeta. Proliferam, por isso, as edições em que o
aparato de notas facilita o acesso à mensagem poética e ajuda a
descodificar o estilo sublime e elevado, marcado pelos códigos do
tempo. No entanto, não perdeu o vigor na inspiração que proporciona a
escritores da contemporaneidade. Numerosos são, pois, os nomes que
se contam entre os mais ilustres da constelação de criadores dos nossos
dias e que são a face viva da identidade literária não só portuguesa,
como também lusófona, que se apropriaram da tradição literária em
que Camões serve de pedra angular e de expressão máxima de uma
mundivisão que subjaz aos países lusófonos, cada um, depois,
enriquecido pelas especificidades das tradições autóctones. Jorge de
Sena, José Saramago, Manuel Alegre, Lídia Jorge, Fernando Campos,
Mário de Carvalho, Luísa Costa Gomes, Vasco Graça Moura, Jacinto
Lucas Pires, José Luís Peixoto, entre os portugueses; Pepetela, José
Eduardo Agualusa, no âmbito das letras angolanas; Nélida Piñon,
Geraldo Carneiro, Álvaro Alves de Faria e Mílton Torres, no Brasil;
Xanana Gusmão, em Timor Lorosae, são apenas alguns entre muitos
mais, que pagam tributo ao épico maior das nossas letras. Variados são
igualmente os modos de reapropriação da tradição poética camoniana:
se alguns se inspiram em personagens, situações e motivos, quer da
epopeia, quer da lírica, outros valorizam vetores como a recuperação e
desconstrução do mito camoniano; havendo ainda outros que
1
Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal.
Investigador do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos. Email:
[email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
153
revalorizam a biografia do poeta para dela fazerem um eixo matricial
na narrativa histórica pós-moderna das últimas décadas. Por
conseguinte, pelo seu valor simbólico, que remete para e evoca épocas
douradas do passado, recordadas com nostalgia, sobremaneira em
momentos de crise como o que estamos a atravessar na atualidade, de
uma maneira ou outra, Camões continua estreitamente colado à
imagem que os portugueses sobre ele esboçam e a sua obra, muito
particularmente Os Lusíadas, foi, é e será a expressão acabada da
identidade de Portugal e da cultura portuguesa projetada “em pedaços
pelo mundo” e revitalizada nas novas fronteiras da lusofonia.
Palavras-Chave:
Camões;
Lusofonia;
(Re)Apropriação; Pós-Modernidade.
Tradição
literária;
No momento em que tem lugar a 2ª Conferência Internacional
sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial e se
retomam os grandes temas que foram objeto de estudo e debate na
primeira, ocorrida em Brasília em 2010, a fim de se analisar o
progresso alcançado em cada área e, necessariamente, o que há ainda
por fazer, acrescentando-se agora a complexa questão do Português
como língua de ciência e inovação, aspeto que merece a maior
reflexão, afigura-se-me de particular relevo o facto de uma das áreas a
granjear o merecido destaque ser o da difusão da língua de Camões à
escala mundial, com relevo particular para as comunidades emigrantes
da diáspora lusa em ambientes aloglotas, já para não referir aquelas
resultantes da expansão em séculos passados e que ainda hoje se
encontram entregues à sua própria fortuna, caídas no esquecimento dos
responsáveis pela dinamização e difusão da língua e da cultura
portuguesas no mundo.
Se a preponderância do inglês como língua franca a nível
internacional é incontestável, pode parecer inoportuno remar contra a
maré, mas a verdade é que, como Ivo de Castro defende,
“No caso da Língua portuguesa, facilmente se
reconhece o papel instrumental que tem
desempenhado, historicamente e na mais recente
atualidade, no desenvolvimento de domínios
científicos como a medicina tropical, a geografia
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
154
humana e a antropologia, as ciências da terra, os
sectores energéticos e outras atividades
económicas, de modo semelhante alimentadas por
contactos triangulares no Atlântico Sul; a
literatura pertinente nesses domínios continua a só
ter vantagens em ser veiculada em português”
(CASTRO, 2013, p. 2, col. 4-5)
Por conseguinte, como o mesmo Professor sublinha,
“Internacionalização não é sinónimo de exportação para o mundo
anglo-saxónico” (CASTRO, 2, col. 5) em exclusivo, pelo que a
intercomunicação com os agentes culturais e produtores científicos dos
países lusofalantes assume um genuíno caráter internacionalizante.
Recorde-se que também neste mês de outubro, mais
concretamente a 17, teve lugar nas instalações da Fundação Calouste
Gulbenkian, em Lisboa, outra Conferência subordinada ao tema “O
Futuro da Agenda Global de Desenvolvimento: visões para a CPLP”,
em que é manifesto o interesse pelas questões de ordem cultural e
linguística, abordadas, não obstante, à luz de uma vertente
economicista sobremaneira acentuada. Discutem-se aí os Objetivos de
Desenvolvimento do Milénio para os próximos quinze anos,
perspetivados, muito embora no contexto da CPLP, visando o
desenvolvimento económico; a paz, segurança e fragilidade; e o
respetivo financiamento, mais especificamente o auto-financiamento.
Neste contexto, a educação, a promoção cultural, a promoção do
empreendedorismo, bem como a potenciação de criação de riqueza,
tudo passa por um planeamento e projetos de educação das camadas
mais jovens, em que o papel do ensino da língua portuguesa assume
particular relevo. E ao escolher-se uma língua como suporte de
comunicação, além de fator de relacionamento espontâneo e familiar,
formula-se simultaneamente uma opção quanto à cultura e literatura
que plasma a mundivisão a elas inerente, bem como os autores que
preferimos e os modelos e estilos em que nos exprimimos.
Neste sentido, não será por acaso que, na generalidade, tocam
as entranhas mais vulneráveis da nossa sensibilidade, obras em que a
questão da língua é particularmente tratada. Mais ainda quando são
autores de relevo que o fazem ao longo dos séculos, figuras gradas da
nossa História ou vozes reconhecidas das nossas literaturas. Apenas a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
155
título de exemplo, recordemos o poema de Afonso Lopes Vieira
intitulado “Inês de Leiria”, por sua vez inspirado num episódio da
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto:
“Encontrou Fernão Mendes
No interior da China
(E em que apuros ele ia!)
A velha portuguesa,
Chamada Inês de Leiria,
Que de repente reza:
Padre Nosso que estais nos céus...
Era de português o que sabia.
Ouvindo Fernão Mendes
Esta voz que soava
(Fernão cativo e cheio de tristeza!)
O português sorria...
Padre Nosso, que estais nos céus...
A velha mais não sabia,
Mas bastava.
Boa Inês de Leiria,
Cara patrícia minha,
Embora te fizesse
A aventura imortal
De Portugal
Chinesa muito mais que portuguesa,
- Pois por esse sorriso de Fernão
Tocas-me o coração.
Deste-lhe em tal ensejo,
Entre as misérias da viagem,
O mais gostoso e saboroso beijo
- O da Linguagem!” (VIEIRA, 1940, p.
39-40)
Este sabor à pátria, à comunidade em que nascemos,
crescemos e vivemos, à família a que pertencemos, é a expressão de
uma constelação de topoi, que, nas palavras de Jacinto do Prado
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
156
Coelho, “correspondem a realidades específicas daquilo que se designa
como ‘ser português’” (COELHO, 2006, p. 9). Mais, “é um conjunto
de sinais, palavras, gestos, lugares, comportamentos que nos protegem
(COELHO, 2006, p. 9). Por conseguinte, tal atitude não só permite
aflorar delicadas vertentes relacionadas com a identidade das nações2,
2
Sobre esta matéria, veja-se o que foi exposto na comunicação de minha
responsabilidade integrada no 2. Kolokvium Společnosti Českých
Portugalistů / 2º Colóquio da Sociedade Checa de Língua Portuguesa,
realizado na Universita Karlova / Universidade Carolina, de Praga, em 23
de maio do corrente ano, por iniciativa da Faculdade de Letras da
Universidade Carolina e do Instituto Camões, e que subordinei ao tema
“Camões e a Obra Camoniana na configuração da identidade nacional e da
autoimagem de Portugal” (Texto em vias de publicação): “Na realidade, nos
nossos dias, quando as fronteiras se apagam e a integração europeia se torna
um processo dinâmico, como reação, o pós-modernismo suscitou a reflexão
sobre a identidade das nações, dos povos e das culturas locais. Autores
como Anthony Smith, com obras como The National Identity (1991); AnneMarie Thiesse, com La Création des Identités Nationales (2009); Patrick
Geary, com Europäischer Völker im frühen Mittelalter – Zur Legende vom
Werden der Nationen (2002); ou, em Portugal, José Mattoso, com A
Identidade Nacional (1998); Luís Cunha, com A Nação nas Malhas da sua
Identidade. O Estado Novo e a construção da identidade nacional (2001);
Rainer Daehnhardt, com Identidade Portuguesa: por que a defendo (2002),
entre outros títulos e obras afins, proporcionam um suporte teórico que
permite a realização de estudos desta natureza. Mais especificamente, no
plano dos estudos culturais e dos estudos literários, esmiuçados por Armand
Mattelart & Érik Neveu (2006), assim como por Ziauddin Sardar & Borin
Van Loon, (2010), livros como Letteratura, Identità, Nazione (2009), com
contributos de Bellini, Burgio, Conoscenti, Jossa, Pecora, Sanguinetti e
outros críticos e teóricos contemporâneos da literatura; Letteratura e
identità nazionale (1998), de Ezio Raimondi; o L’Italia letteraria (2006), di
Stefano Jossa, representam pontos de partida para a reflexão das questões
debatidas em colóquios e conferências a nível global, como, por exemplo, o
que teve lugar em Março de 2011, na Universidade de Palermo,
subordinado ao tema Letteratura Italiana e Identità Nazionale; além de
outro que se debruçou sobre Os Nacionalismos na Literatura do Século XX.
Os Indivíduos em face das nações (2010), coordenado por Ana Beatriz
Barel; ou ainda, em Craiova, na Roménia, em 21-22 de Setembro do
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
157
dos povos e das respetivas culturas, como se torna pertinente por
formular a questão:
“Afinal, que é ser português? É ter um
bilhete de identidade português. É ser de uma
família portuguesa. É ter nascido em solo
português. É ter tido o português como língua
materna. É considerar a terra onde nasceu
como verdadeira mãe. É sentir-se português por
dentro. É vibrar com a vitória de Portugal nos
grandes
acontecimentos
desportivos
internacionais. É ser reconhecido por gentes de
outros povos como português.” (COELHO,
2006, p. 9)
No campo da literatura, Camões há muito que se tornou o
símbolo máximo da imagem de Portugal e da portugalidade, lugar que
partilha, embora mais recentemente e com menos impacto nacionalista,
com Fernando Pessoa. Nos dias que correm, porventura ambos
acompanhados por José Saramago. Foi nos inícios do século XVII,
quando o reino, perdida a independência, integrava a monarquia dual,
que o contexto político e cultural arvorou o Poeta à condição de
símbolo nacional da nossa cultura e da pátria. A epopeia que nos legou
proporcionava o espelho em que no reino se revia a gesta de um povo.
passado ano, sobre Discorso, identità e cultura nella lingua e nella
letteratura italiana.
No contexto da cultura e literatura portuguesas valorizam-se e evidenciam-se
aspetos que nos diferenciam, que marcam a diferença sem cair no
desgastado lugar-comum do fado e da melancolia do nosso caráter. Eduardo
Prado Coelho configura as vertentes da identidade e as facetas da imagem
da cultura portuguesa em Nacional e Transmissível (2006), onde aponta
elementos tão díspares como os pastéis de nata, a presença do mar, o
bacalhau, as sardinhas, o vinho do Porto, a ginginha e o moscatel, a cortiça,
as saudades e o desenrascanço. Assim, constroem-se imagens, melhor dito,
autoimagens – por sua vez, objeto de estudo do ramo da imagologia – que
se projetam no exterior como rótulos de marketing cultural. Aí, Fernando
Pessoa e José Saramago constituem os nomes mais recorrentemente
referidos e referenciados. Camões é hoje mais usado para um auditório mais
culto e selecionado.”
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
158
No entanto, logo foi notado que pouco, muito pouco se sabia da vida
do autor e até a leitura d’ Os Lusíadas já levantava sérios problemas ao
leitor comum. Apressam-se alguns a redigir as primeiras biografias do
Poeta. Outros a fazerem as primeiras edições comentadas. Manuel
Correia edita em 1613 uma edição do poema com os comentários
considerados pertinentes e nela inclui a primeira vida de Camões da
responsabilidade de Pedro de Mariz. Depois, em 1624, Manuel
Severim de Faria compõe uma biografia mais completa, baseada em
depoimentos de contemporâneos, mas também incluindo elementos
colhidos da leitura da sua obra poética. Em 1639, Manuel de Faria e
Sousa dá aos prelos a monumental edição do poema com comentários
explicativos que o haviam ocupado durante cerca de vinte anos.
Também elabora uma biografia, muito ao gosto da época, em que
atribui particular relevo a aspetos como a ascendência dos Camões ou
o brasão de armas da família, mas no restante aproxima-se, de certo
modo de Severim de Faria (SOUSA, 1639/1972, I, col. 15-58). Desde
então é indiscutível o reconhecimento da centralidade de Camões e da
obra camoniana na cultura e literatura portuguesa, assumindo até um
lugar de particular destaque, de modo que Os Lusíadas são vistos
como a manifestação mais perfeita do modo de pensar e sentir do
coletivo lusitano.
Hoje, mergulhados noutro período de crise, com outras
ameaças que não a perda da independência, embora do ponto de vista
económico não se esteja muito longe dessa realidade, também pouco,
muito pouco sabe o leitor comum do Poeta e incontornáveis parecem
ser os obstáculos para proceder à leitura d’ Os Lusíadas, de modo a
compreendê-lo na íntegra.
Para superar essas dificuldades e aderir ao discurso do grande
Vate da língua portuguesa, proliferam edições em que o aparato de
notas facilita o acesso à mensagem poética e ajuda a descodificar o
estilo elaborado, marcado pelos códigos dominantes na época. Não
obstante, também hoje os escritores da contemporaneidade não
escapam ao poder de sedução que sobre eles Camões exerce,
proporcionando-lhes motivos de inspiração que, depois, se plasmam
em obras que atestam um efetivo e conseguido processo de receção
camoniana. Numerosos são, pois, os nomes, que se contam entre os
mais ilustres da constelação de criadores dos nossos dias e que são a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
159
face viva da identidade literária não só portuguesa, como também
lusófona, ao apropriarem-se da tradição literária em que Camões serve
de pedra angular e de expressão máxima de uma mundivisão que
subjaz igualmente aos países lusófonos, cada um depois enriquecido
pelas especificidades das tradições autóctones (SEABRA, 1998, p. 13).
É verdade que, na pós-modernidade, no que se refere à
recuperação de Camões, esse fenómeno se manifestou em primeiro
lugar num razoável número de romances históricos, em que se assiste à
revalorização da biografia camoniana. Neles, se o Poeta não é o
protagonista, é uma personagem com uma importância indiscutível ou,
então, a sua presença tutelar torna-se incontornável. Além de As Naus
(1988) de Lobo Antunes, A Musa de Camões (2006) de Maria Helena
Ventura, O Livro Perdido de Camões (2008) de Maria Coriel,
Adamastor (2008) de E. S. Tagino (pseudónimo de António José da
Costa Neves), Camões - Este Meu Duro Génio de Vinganças (2010) de
Maria Vitalina Leal de Matos e O Túmulo de Camões (2012) de
António Trabulo são obras que apenas constituem um núcleo, à volta
do qual gravitam outros títulos que reconstituem em simultâneo a sua
época.
Depois, foram surgindo as edições de Os Lusíadas com um
aparato de paratextos que facilitam o seu acesso e interpretação.
Consideramos aqui, então, aquelas que foram postas no mercado sem
um claro pendor pedagógico, não para serem usadas em situação de
sala de aula, muito menos em ambiente escolar, mesmo se tomado em
sentido alargado. Entre elas, merece particular relevo uma de 2003,
uma edição realizada por iniciativa do semanário Expresso, que coloca
em coluna paralela, uma paráfrase de cada estância, num português
atual e num nível de língua mais baixo, muito embora destruindo o tom
sublime e elevado do discurso épico. Desse modo, acede o leitor com
reduzida formação escolar com mais desembaraço ao conteúdo de cada
estrofe. Outra edição de divulgação, já de 2013, deve-se à revista
Visão, que, em vez de recorrer a notas explicativas, utiliza outras
estratégias, como o recurso à reprodução de composições de grafiti, de
modo a trazer o conteúdo do poema, nesse diálogo com a arte de rua,
ao contacto com o público leitor de forma sintética e recorrendo a uma
estratégia de matriz ecfrástica. Também as capas dos dez volumes são
concebidas pelo coletivo ARM, composto por dois dos mais talentosos
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
160
grafiters portugueses: Gonçalo Mar e Miguel Ram, com base em
composições murais executadas na Avenida da Índia, em Lisboa, junto
do novo Museu dos Coches. Quanto ao poema em si mesmo, sem
notas explicativas, retoma a lição estabelecida na edição de Álvaro
Júlio da Costa Pimpão.
Estas duas edições despertam, no entanto, ainda mais a nossa
atenção pelo facto de, em ambos os casos se recorrer a autores
contemporâneos de reconhecido prestígio para comporem textos
originais, de algum modo articulados com o poema, na generalidade
todos eles inspirados nos Cantos que introduzem, assumindo essas
composições um caráter mais ficcional ou, noutros casos, um tom mais
parafrástico. No caso da última edição mencionada, José Luís Peixoto
retoma a diegese de Os Lusíadas, de maneira que cada Canto dá lugar
a um conto, procurando assim o escritor responder ao desafio de
reescrever aquela obra com os traços que ela assumiria se fosse
composta nos dias de hoje. Num tom de aberto diálogo e de
cumplicidade com o leitor, em que não falta uma razoável dose de
ironia e humor, retomam-se os aspetos fundamentais e as personagens
de cada Canto, atualizados numa perspetiva contemporânea e com uma
linguagem que prima pela acessibilidade e vigor, sem que se perca, no
entanto, grandes detalhes da linha de ação principal e dos episódios
centrais. Até os passos que encerram as ingerências do Poeta no
discurso épico são acompanhadas, por sua vez, de intervenções
paralelas do autor atual, ouvindo-se assim duas vozes em simultâneo.
Alguns deslizes3 vêm macular a originalidade da edição, mas, na
3
No Canto VI, “Alencastro” (p. 9) é apresentado como um duque português;
já no Canto VII e seguintes, sempre que se alude a Calecut, no texto de José
Luís Peixoto erroneamente substitui-se tal topónimo por Calcutá; no Canto
VIII, decerto por lapso, em vez de Paulo da Gama, refere-se Pedro da Gama
(p. 6) e, se bem que D. Fuas Roupinho na realidade tenha caído em “tão
justa e santa guerra […], das mãos dos Mouros entra a felice alma, /
Triunfando nos Céus, com justa palma.” (Camões, VIII, 17, 5 e 7-8), fê-lo
como um combatente, distinguindo-se mesmo como o grande almirante que
havia infligido severas derrotas às galés sarracenas. Na versão de José Luís
Peixoto, omitida esta faceta de audacioso guerreiro, terror nos mares para a
armada infiel, e apenas apontada a sua morte como se de um “mártir de
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
161
globalidade, salda-se por uma experiência que decerto contribui para
atualizar e reforçar o lugar de posição do poema na memória dos
portugueses e revigorar a imagem de Camões como o poeta da
portugalidade.
Contudo, a primeira edição mencionada, a de Os Lusíadas
organizada pelo Expresso, tem ainda o mérito de contribuir para a
abertura do poema a horizontes mais amplos, os da Lusofonia.
Manuel Alegre, Lídia Jorge, Fernando Campos, Mário de
Carvalho, Luísa Costa Gomes, Vasco Graça Moura e Jacinto Lucas
Pires, entre os portugueses; Pepetela e José Eduardo Agualusa, no
âmbito das letras angolanas; Nélida Piñon, no Brasil, integram o escol
selecionado para entrar em diálogo aberto com Camões. A esses,
muitos outros podemos hoje acrescentar: além de José Luís Peixoto já
referido, também se podem mencionar Jorge de Sena, José Saramago e
Gonçalo M. Tavares, por exemplo; ou Geraldes Carneiro, Álvaro
Alves de Faria e Mílton Torres, no Brasil; ou ainda Xanana Gusmão,
em Timor Lorosae, entre outros mais, que tributam assim a sua
homenagem ao épico maior das nossas letras.
Manuel Alegre, com “Um Velho em Arzila” (ALEGRE,
2003, I, pp. [3]-[7]), é o primeiro a abrir a edição, com uma evocação
entre o sublime e o surreal, em que evoca as proezas no Norte de
África, com a figura singular de um português anónimo que ainda
aguarda a consumação do destino heroico de Portugal, sentado às
portas de Arzila. O profícuo diálogo entre ambos (a personagem e o
narrador) estabelecido, é alimentado pelas numerosas alusões e
ocorrências a Os Lusíadas, pela retomada de temas e motes, quantas
vezes inseridos como epígrafes em não poucas composições de Manuel
Alegre, fundadas em jogos de intertextualidade, como se evidenciam
nos poemas “Sobre um mote de Camões” em Praça da Canção (1965);
“E de súbito um sino”, “Peregrinação” e “Luís de Camões exilado” em
O Canto e as Armas (1967); “Super flumina” de Coisa Amar. Coisas
do mar (1976); ou Com que pena. Vinte poemas para Camões (1992),
em que o intertexto camoniano aflora no discurso de Alegre de
maneira ainda mais óbvia e intencional. Aí emergem os temas do
santo combate, passageiro direto entre o terreno de batalha e o céu” (p. 6) se
tratasse, distorce-se um quanto de modo redutor a imagem deste herói.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
162
exílio, do amor, do desengano, da inquietude, da ansiedade, do lamento
perante o desajustamento com a dura realidade…
Lídia Jorge, com “Invocação a Calíope” (JORGE, 2003, III, p.
[3]-[13]), transporta-nos para as dimensões do Oriente, numa aventura
protagonizada por Camões em cujas peias ele se vê enredado e vítima
de furtos variados. Fernando Campos, no “Sonho” (CAMPOS, 2003,
IV, p. [3]-[11]), joga com a oposição alegórica entre o passado e o
presente de Portugal, numa atmosfera adequada às potencialidades
sugestivas do título, em que põe em cena personagens simbolicamente
articuladas com essas duas dimensões temporais, mas em que o
ressurgir da mundivisão sebastianista se identifica com o contributo,
no momento da escrita, dado para a independência de Timor. Mário de
Carvalho, em o “O Apito de Prata” (CARVALHO, 2003, VI, p. [3][11]), opta por uma feição mais ensaística do Canto VI, muito embora
não descure a dimensão poética na textura do discurso utilizado. E se
Jacinto Lucas Pires trata em contexto ficcional da presença de Camões
e d’ Os Lusíadas num ambiente familiar, na composição intitulada
“Gente diferentíssima” (PIRES, 2003, VII, p. [3]-11]), Luísa Costa
Gomes faz regressar o leitor ao tempo da escola e do modo como o
poema era fulcral na formação escolar, se bem que nem sempre
utilizado e avaliado de modo muito positivo, com “Que” (GOMES,
2003, VIII, p. [3]-[11]). A encerrar a plêiade de escritores portugueses,
Vasco Graça Moura reconstitui magistralmente o ambiente dos prelos
e da impressão da epopeia, num ambiência em que Camões dialoga
com Pêro de Magalhães Gândavo e António Gonçalves, com “Diálogo
na Oficina” (MOURA, 2003, IX, pp. [3]-[13]). Se Manuel Alegre era
já um ‘peso pesado’ em matérias camonianas quando redigiu o texto
antes apontado, não menos o é Graça Moura. Toda a sua biografia de
escritor é um constante e aberto diálogo com Camões. Mais do que
uma insigne voz no âmbito da criação poética, é igualmente um
distinto crítico camoniano, contando com variados títulos de fundo
sobre a obra do Poeta (Camões e a divina proporção (1985), O
Penhasco e a Serpente (1987), Luís de Camões. Alguns desafios
(1989) e Adamastor, Nomen Gigantis (2000)), além de numerosos
estudos ensaísticos dispersos em muitos outros volumes, inserindo
ainda alguns no recentíssimo volume intitulado Discursos vários
poéticos (2013). Por outro lado, a questão da produção e reapropriação
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
163
da tradição literária acentua-se mais ainda na produção deste autor com
a reescrita dos próprios Lusíadas para gente nova (2012), uma
empresa bem conseguida com o intuito de envolver e levar os jovens à
leitura da epopeia e de levar o poema ao encontro dos interesses do
público leitor adolescente dos nossos tempos. Não admira portanto,
que se multipliquem projetos sobre o seu devir criativo, como o que
está a ser desenvolvido por José Manuel Ventura intitulado “Camões e
Vasco Graça Moura: Tradição e metamorfose” (VENTURA, 2013).
Em qualquer dos casos, porém, se a recuperação do mito
camoniano passa pela admiração e referência a Camões, tornando-se
uma constante ao longo dos séculos e mesmo na modernidade, o certo
é que a atitude dominante, na generalidade dos casos, consiste também
na desconstrução do mito camoniano, desmontando-o e aproximando a
figura do Poeta da realidade e do comum dos mortais. Jorge de Sena
revisita-o na Ilha de Moçambique (1973), no poema assim intitulado,
além de lhe dedicar toda uma vida de sereno estudo, patente na vasta
obra ensaística que a ele dedicou (Uma Canção de Camões (1966); Os
Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular (1969); A
Estrutura de Os Lusíadas e Outros Estudos Camonianos e de Poesia
Peninsular do Século XVI (1970); Trinta Anos de Camões, 1948-1978.
Estudos Camonianos e Correlatos (1980); Estudos sobre o
Vocabulário de Os Lusíadas: Com Notas sobre o Humanismo e o
Exoterismo de Camões (1982)). Semelhante atitude de desmontagem
do mito é a que encontramos no tratamento da figura camoniana em
obras como Que farei com este livro?(1980), de José Saramago, em
que um Camões envelhecido não é mais do que a máscara de
Saramago, possibilitando-lhe, assim, a verbalização de questões do
nosso tempo e a formulação de aspetos que o Romancista e, neste caso
específico, também o dramaturgo enfrenta, como os problemas do
envelhecimento e, entre outros mais, até o das dificuldades de edição
das obras literárias num mundo dominado pelas leis do mercado. E
depois disso, Gonçalo M. Tavares compõe Uma viagem à Índia
(2010), onde conta com o poema camoniano como subtexto,
reconstituindo um universo também ele inspirado na epopeia de
Camões, com o arquétipo da viagem como fator estruturante, numa
obra inquietante e perturbadora, dividida em dez cantos, em paralelo e
aberto diálogo com o modelo que segue (MOURA, 2013. p. 161-167),
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e que transpõe para o mundo da contemporaneidade o percurso dos
nautas e do próprio Camões, muito embora formulando uma pertinente
questionação não só sobre o universo literário em que se insere, como
da própria mundivisão que lhe subjaz.
Todavia, o contributo de autores da lusofonia não desmerece
do da constelação de autores até ao momento aduzidos. Pepetela, em
“Estranhos pássaros de asas abertas” (PEPETELA, 2003, V, p. [3][11]), posteriormente incluído no volume Contos de Morte. 5 Histórias
Dispersas (2008), reelabora o episódio de Fernão Veloso e o do
Adamastor, do Canto V, na perspetiva dos povos nativos africanos e
respetiva matriz cultural.
Por sua vez, José Eduardo Agualusa antepõe “A Casa
Secreta” (AGUALUSA, 2003, II, p. [3]-[7]) ao Canto II de Os
Lusíadas. Numa narrativa entrançada localizada em dois espaços, o
Brasil e Melinde, e dois tempos, o passado e o contemporâneo, o
enredo desperta o interesse do leitor pela maneira como se perspetiva a
condução de uma pesquisa para dilucidação de um mistério específico
de uma tribo da região daquela cidade africana, e pelo modo como se
articulam os registos diarísticos de Diogo Mendes, um marinheiro da
armada de Vasco da Gama que naquela zona havia ficado, em
flagrante contraste com o uso que deles é feito na atualidade pelos seus
descendentes.
Por último, “A Desdita da Lira” (PIÑON, 2003, X, p. [3][13]), de Nélida Piñon, é um balanço da criação épica camoniana, ao
mesmo tempo que apresenta um Poeta encanecido, que deambula por
uma Lisboa em contínua transformação, privilegiando-se o papel da
memória como uma forma de compensação das limitações da velhice e
favorecendo em simultâneo divagações diversas no universo
transcendente das suas recordações. Não esqueçamos também que já
antes esta escritora havia sucumbido ao fascínio de obra camoniana e
recriado a seu modo a figura de Adamastor, num conto do mesmo
nome, inserido no volume intitulado Sala de Armas (1973), em que se
procede igualmente a essa desmontagem e relativização do mito.
Na esteira desta autora e de outros, também no Brasil, que
anteriormente Gilberto Mendonça Teles estuda no volume por ele
dedicado a Camões e a Poesía Brasileira (1973), Geraldo Carneiro,
em Por mares nunca dantes (2000), transporta a figura do Poeta
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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através de um artifício de ficção científica, o de um buraco no tempo…
e no espaço, para o contexto cosmopolita contemporâneo do Rio de
Janeiro, evidenciando com agudeza e em clave humorística, os aspetos
resultantes do desfasamento histórico decorrentes da colisão temporal
da mundivisão dominante no tempo de Camões e que estrutura os seus
esquemas mentais, com a da realidade com que se vê confrontado.
Álvaro Alves de Faria, em A Memória do Pai (2006), inspira-se em
episódios do poema e a partir deles compõe um conjunto de poesias, de
que sobressaem aquelas que incidem sobre a figura e o drama de Inês
de Castro. Ampliando esse ciclo, deu forma a um volume posterior,
Inês (2007) consagrado a idêntica matéria. Mílton Torres, no livro No
Fim das Terras (2005), por sua vez, reconstitui um périplo por lugares
da expansão e do império, em que reconfigura um Adamastor mais
singelo no cabo Não e reelabora a gesta das descobertas com uma
geografia original nos meandros de uma sequência de poemas, bem
como através de um constante jogo poético de revelações e
ocultamentos propositados.
Por conseguinte, variados são, pois, os modos e as estratégias
de reapropriação da tradição poética camoniana: se alguns se inspiram
em personagens, situações e motivos, quer da epopeia, quer da lírica;
outros valorizam vetores como a recuperação e desconstrução do mito
camoniano; havendo ainda outros que revalorizam a biografia do poeta
para dela fazerem um eixo matricial da narrativa histórica pós-moderna
das últimas décadas. Exceção a toda essa desconstrução do paradigma
camoniano encontra-se, porém, na composição do poema épico
Mauberíadas (1973), de Xanana Gusmão, afinal por se tratar de uma
epopeia de fundação de uma nação, expressão acabada da autonomia
do povo timorense. Todavia, de uma maneira ou outra, em qualquer
dos casos apontados, atesta-se a vitalidade e importância de Camões e
da obra camoniana, longe de uma perspetiva que possa sugerir
contaminações de ordem neocolonial, mas antes como uma constante e
um denominador comum para todo aquele que se sente membro de
uma comunidade multicultural e multiétnica, no sentido da
universalidade e sob o signo da unidade na diversidade, como é a
galáxia literária de países lusófonos, a pátria de múltiplas pátrias, na
aceção que lhe confere José Augusto Seabra. Trata-se, isso sim, antes,
de um modo que sugere a reflexão em torno de questões
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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contemporâneas, facilitada pela estreita articulação da nossa memória
cultural comum com os fenómenos que a todos nos atingem neste
mundo ecuménico da aldeia global, que dilui as diferenças e anula as
distâncias com a iminência do ‘aqui’ e ‘agora’, não obstante as
constantes e profundas mudanças que, não raro obrigam a uma revisão
acurada de toda as questões antes aduzidas.
ABSTRACT: If it is unquestionable the recognition of the centrality of
Camões and of the Camonian work within the Portuguese literature
and culture, it is certain that in very few moments it was so sensible the
difficulty in understanding it in its fullness and in adhering to the
poetic discourse of the great Poet as it is today. Nowadays editions
proliferate, in which the apparatus of notes facilitates the access to the
poetic message and help to decode the elaborate style, marked by the
codes of the time. Nevertheless, he has not withered his influence if it
is considered the inspiration he exercises upon contemporary writers.
Multiple are the names that are included among the constellation of the
most brilliant creators of our time and that are the living face of the
literary identity not only of Portugal, but also of the Lusophone
countries. All of them have appropriated of the literary tradition in
which Camões serves as a cornerstone of the utmost expression of a
worldview that underlies to the Lusophone countries, each one of
them, afterwards, enriched by specificities of their native traditions.
José Saramago, Manuel Alegre, Lídia Jorge, Fernando Campos, Mário
de Carvalho, Luísa Costa Gomes, Vasco Graça Moura, Jacinto Lucas
Pires, José Luís Peixoto, among the Portuguese; Pepetela, José
Eduardo Agualusa, within the Angolan letters; Nélida Piñon, Geraldo
Carneiro, Álvaro Alves de Faria and Mílton Torres, in Brazil; Xanana
Gusmão, in Timor Lorosae, are only some of much more that pay
tribute to the biggest epic Poet of our letters. Varied are also the modes
of (re)appropriation of the Camonian poetic tradition: if some of them
are inspired in characters, situations and motifs, either of the epics, or
of the lyric; others appreciate vectors such as the recovery and
deconstruction of the Camonian myth; and there are others yet that
valorize the Poet’s biography in order to make out of it the matrix axis
of the post-modern historical narrative of the last decades. Therefore,
for its symbolic value, that forwards to and evokes golden epochs of
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the past, remembered with nostalgia, especially in moments of crisis,
such as the one we are going through nowadays, in a way or another,
Camões goes on closely attached to the image that the Portuguese upon
him outlined and his work, most particularly The Lusiadas, was, is and
will be the ultimate expression of the identity of Portugal and of the
Portuguese culture “scattered in pieces all over the world” and
revitalized within the borders of the young Lusophone countries.
Keywords: Camões; Lusophone
(Re)appropriation; Post-modernity.
countries;
Literary
tradition;
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DA RETÓRICA DO FRANCISCANISMO
NAS MORALIDADES DE GIL VICENTE
Maria do Amparo Tavares Maleval 1
RESUMO: Os autos de devoção ocupam lugar de destaque na
produção de Gil Vicente, feitos muitos deles a pedido da franciscana
rainha D. Leonor, viúva de D. João II e irmã de D. Manuel, que foi a
principal mecenas do dramaturgo. Dentre eles selecionamos os Autos
dos Mistérios da Virgem (ou da Mofina Mendes) e da Feira,
encomendados para o Natal, os Autos da Alma e da Barca da Glória,
representados na Semana Santa, e o Milagre de São Martinho, feito
para o Corpus Christi, analisando-lhes alguns elementos retóricos
utlizados para veiculação da doutrina do Franciscanismo.
Palavras- chave: Teatro; Liturgia; Retórica; Franciscanismo; Idade
Média.
Começamos por lembrar que o teatro no Ocidente medieval
nasceu intrinsecamente relacionado aos rituais religiosos, como de
resto já sucedera na Grécia, em que ter-se-ia originado nos cultos em
honra de Dionísio2. No interior dos templos, bem como nas
procissões, ocorriam representações relacionadas aos principais
ciclos e comemorações religiosos, desenvolvidas a partir ou a par dos
tropos do rito romano, isto é, de pequenas recitações ou diálogos
entre os oficiantes do culto e o coro, inseridos na liturgia da missa. A
gestualística ritual, bem como a mistura de música e palavras no
culto, aliadas à intenção didática, de comoção e/ou conversão dos
assistentes, propiciariam o nascimento desse teatro, destacando-se
que, como frisa Henrique Harguindey Banet (1999, p. 7), nessa
época de nascimento das línguas românicas as reuniões de cunho
1
Professora Aposentada do Instituto de Letras da Universidade Federal
Fluminense. Professora Associada e Procientista do Instituto de Letras da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do CNPq.
2
Cf., a propósito, PAVIS, 1999, p. 25, p. 52-54.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
175
profano seriam menos abundantes que as religiosas, como missas,
festas de santos padroeiros, peregrinações, etc.
A par dos tropos, e até considerado uma sua extensão, surgiu o
drama litúrgico, em torno da Paixão de Jesus: a Visitatio sepulchri,
representada nas matinas do domingo de Páscoa. Esta, conforme
demonstra Eva Castro (1997, p. 15), teve como base a composição
Quem queritis in sepulchro, também utilizada como tropo da missa
pascoalina nos séculos X-XI, como atestam códices monásticos
beneditinos (CASTRO, 1997, p. 15-16). Mas não se pode saber ao
certo se dita composição surgiu originariamente como texto do tropo
ou do drama3.
À época em que Gil Vicente surgiu no cenário da corte
manuelina – nos primórdios do século XVI –, o drama litúrgico não só
já se havia firmado na Europa, mas se desdobrara em autos de autoria
extraclerical e mesmo paródicos. As incipientes representações iniciais
ligadas à liturgia haviam evoluido para a encenação de episódios da
Paixão e/ou de outras passagens dos Evangelhos e do Antigo
Testamento, chamadas de mistérios; e, com o aumento dos elementos
profanos e ao se tornar mais complexo o aparato cênico, passaram a se
realizar no adro das igrejas. Nos pátios aconteceriam também
dramatizações profanas, ligadas ao cômico popular, proibidas por
3
Esse drama litúrgico é descrito por ela como “una ceremonia cantada, cuyo
modo de narración se realizó a través de um texto preexistente y de unos
actuantes, que prestaban su voz y su cuerpo para los diálogos” (CASTRO,
1997, p. 27). Com relação à encenação, era feita em um espaço determinado
e inclusive decorado em certas ocasiões, e “estaba destinado a una
comunidad, que no solo asistía de forma pasiva, sino que incluso
participaba activamente” (CASTRO, 1997, p. 27). Dessa forma, já
apresentava os componentes que hoje conhecemos do teatro, tais sejam o
libreto, os atores, o espaço do cenário, a decoração e o público participante.
Mas, como acentua a especialista, tudo parece indicar que nem os ‘autores’,
nem os ‘atores’ nem o ‘público’ do drama litúrgico “percibían en el una
manifestación teatral ajena a la dramaticidad propia de la liturgia, sino que
lo entendían y sentían como una ceremonia más, engastada en el ritual
romano oficial” (CASTRO, 1997, p. 27-28).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
176
Concílios e Constituições sinodais de serem realizadas nos recessos
dos templos. Daí se estenderiam aos burgos, aos mercados e feiras,
bem como às cortes reais e senhoriais  enfim, aos lugares de reunião
do homem medievo.
Os mistérios, originados na França, no século XII, a partir do
século XIV já compreendiam encenações de vulto, as quais, buscando
o realismo, contavam com numerosos figurantes e extensos textos de
muitos episódios. Nesta época surgiram as moralidades, com
finalidades mais explicitamente educativas, colocando em cena tipos
psicológicos ou alegorias críticas, que personificavam abstrações como
vícios e virtudes. E os milagres, originados a par dos ‘mistérios’ no
século XII, encenavam situações-limite da vida dos santos e suas
intervenções miraculosas.
Tais peças eram representadas não por atores profissionais, mas
por membros de confrarias estáveis, da mesma forma que as profanas.
E por ocasião do Carnaval e outras celebrações análogas, como a Festa
do Burro, a dos Tolos e a de Maio, dentre outras, que permitiam a
inversão da ordem estabelecida, a liberdade total e o destronamento
dos valores dominantes, aconteciam manifestações teatrais que
parodiavam as cerimônias ou expressões religiosas, além,
evidentemente de outros discursos e assuntos “sérios” não religiosos –
como lembra Harguindey Banet (1999, p. 11), eram também
parodiados “a vida administrativa e xurídica (ordenamentos reais,
cartas e privilexios, testamentos...), os xéneros literarios (cancións de
xesta e epopeas convertidas en batallas entre o Carnaval e a Coresma),
os prognósticos astrolóxicos, etc.”
Dessa forma, dentre as representações carnavalizadas se
encontravam os sermões burlescos, monólogos enunciados por atores
travestidos de frades, nos quais eram arremedados elementos do culto
religioso, como sermões, orações, ladainhas, hinos, etc.4. No lado
4
Existiam ainda outros ‘monólogos dramáticos’, representados por um único
ator, ridicularizando tipos sociais. Em Portugal, registrou-se o termo
‘arremedilho’, relacionado ao espetáculo proporcionado pelo ‘remedador’,
termo através do qual era chamado, no tempo de Afonso X de Leão e
Castela, o jogral ou bufão que juntava a declamação à mímica. Aliás, o
documento mais antigo que comprova a existência de dramatizações
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
177
oposto a esse teatro paródico, já mais para o final da Idade Media,
existiram os solenes momos, tão ao gosto dos monarcas de Avis. Estes
se caracterizavam pela semelhança estrutural com a procissão, pelo
caráter alegórico e espetaculoso, galante e solene, apropriado aos
temas representados, que compreendiam matéria cavaleirescoexpansionista. Apresentando raros ou mesmo inexistentes discursos e
ação dramática, utilizavam dança e mímica, além de muitos recursos
técnicos, de muitas maquinarias e seus truques, que causavam o
espanto e a admiração dos expectadores.
Importa salientar que também os momos se aproximavam
estruturalmente de um rito religioso – a procissão. E até mesmo as
farsas, geralmente satíricas e caricaturais, que foram o gênero mais
popular do teatro cômico medieval, ligavam-se ao sagrado,
constituindo inicialmente uma breve representação intercalada no
drama litúrgico, para distensão do público.
É no contexto do paulatino afrouxamento da austeridade na
liturgia imposta por cluniacenses e cistercienses que, no século XV,
documentam-se encenações ligadas à procissão de Corpus Christi em
Alcobaça; e em Caldas da Rainha, 1504, Gil Vicente, considerado o
criador do teatro português, representaria o Auto de São Martinho,
encomendado pela Rainha Velha, D. Leonor, também para o Corpus
Christi. Neste milagre moralizador, franciscanamente é feita a apologia
da verdadeira caridade, cuja prática não consiste em doações do
supérfluo, mas do essencial, uma vez que o santo divide com um pobre
a própria capa em rigoroso inverno, segundo a lenda atualizada na
peça.
Esse é apenas um dos muitos Autos “de devoção” vicentinos,
sendo a maioria composta para ser apresentada à família real durante o
ciclo do Natal, como indicam as didascálias das peças ou referências
intratextuais. Assim, para os festejos natalinos foram feitos5 os Autos
anteriores a Gil Vicente em Portugal concerne a uma doação de terras feita
por Sancho I (1154-1211) aos bufões Bonamis e Acompaniado, em troca de
um ‘arremedilho’.
5
Vale lembrar que Gil Vicente não escreveu para o Natal apenas obras de
devoção, mas também uma “farsa de folgar que trata como um Clérigo da
Beira béspora de Natal determinou de ir aos coelhos, e indo pera a caça com
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Pastoril Castelhano (1502), dos Reis Magos (1503), da Fé (1510?),
dos Quatro Tempos (1511?)6, da Sibila Cassandra (provavelmente
1513), do Purgatório (1518), Pastoril Português (1523), da Feira
(1527) e da Mofina Mendes (1534). Para o ciclo da Paixão, o Auto da
Alma, e o Auto da Barca da Glória (1519). Além destes, foram
compostos autos devocionais para outras ocasiões os autos da Barca
do Inferno (1517), da História de Deos, da Ressurreição de Cristo e da
Cananea.
Antes de irmos adiante, vale observar que nos autos de Gil
Vicente, e não só nos que abordaremos a seguir, em geral a dispositio –
composta de apresentação, desenvolvimento das cenas e epílogo – se
apresenta de forma processional, com o desfile dos personagens que se
expressam em versos, recriando formas tradicionais, e com recorrente
uso da música, aliás inseparável dessas formas poéticas no medievo,
tanto quanto dos ofícios litúrgicos. E, para um franciscano como
mestre Gil, o significado do Natal é de total alegria e esperança na
salvação, na vida eterna após a morte; daí a inclusão de farsas pastoris
na maioria desses autos, e com elas da música e dança características
do folclore ibérico, como por exemplo as chacotas serranas. Os cantos
de lamento foram por ele usados sim, mas não majoritariamente, e em
peças como o Auto da Barca da Glória, feito para o ciclo da Paixão de
Cristo, no qual as almas contritas e pesarosas por seus pecados entoam
cântico “a modo de pranto com grandes admirações de dor”
(VICENTE, 2002, p. 294).
Sobre o franciscanismo, lembramos que a sua influência foi
muito grande na corte portuguesa, e não só à época de Gil Vicente,
quando era da Ordem Terceira a sua principal mecenas, D. Leonor. Já
muito antes a rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, no século XIII,
abraçara o franciscanismo, a caridade e a humildade dele típicos,
fundando o convento das Clarissas e vestindo o hábito quando da sua
viuvez, só não ficando reclusa para continuar no século obrando em
um filho seu rezam as matinas” (VICENTE, 2002, Vol. II, p. 351).
Representada a D. João III em 1526, foge ao grupo específico dos autos de
devoção para o ciclo natalino, representados em capelas e outros locais
considerados sagrados.
6
Para as datações possíveis desses autos, cf. CAMÕES, 1991, p. 3.
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prol dos desvalidos. E destacado foi o papel dos Frades Menores na
revolução que elevou o Mestre de Avis ao trono de Portugal, sendo
franciscanos os confessores dos primeiros reis da dinastia de Avis.
Além do mais, é português, nascido em Lisboa em 1192, um dos
principais santos franciscanos, mais conhecido como Santo Antônio de
Pádua, em cujos arredores faleceu no ano de 1231; ao abraçar o
franciscanismo, revelou-se grande pregador e foi o primeiro mestre de
Teologia da Ordem, além de autor de profícuo e paradigmático
sermonário.
Mais que as regras elaboradas pelo Santo de Assis interessamnos neste momento trazer à baila as virtudes por ele mais prezadas. Em
texto de sua lavra, intitulado “Elogio das Virtudes” (FRANCISCO,
1988, p.166), exalta a “rainha sabedoria”, irmã da “pura simplicidade”;
a “santa pobreza”, irmã da “santa humildade”; a “santa caridade”, irmã
da “santa obediência”. E ensina que a nenhuma o cristão deve ofender:
“quem a uma ofender, nenhuma possui e a todas ofende”,
acrescentando que “cada uma por si destrói os vícios e pecados”.
Assim, a “santa sabedoria” “confunde a Satanás e todas as suas
astúcias”; a “pura e santa simplicidade” “confunde toda a sabedoria
deste mundo e a prudência da carne”; a “santa pobreza” “confunde
toda a cobiça e avareza e solicitudes deste século”; a “santa
humildade” o orgulho, a “santa caridade” “as tentações do demônio e a
da carne” e desta os temores; a “santa obediência” “confunde os
desejos sensuais e carnais e mantém o corpo mortificado para obedecer
ao espírito e obedecer a seu irmão, e torna o homem submisso” a todos
os homens e animais (FRANCISCO, 1988, p. 166-167).
Outro grande fator a ser levado em conta é o destacado lugar
ocupado pela arte do discurso persuasivo no contexto de produção da
obra vicentina. A retórica constitui, como se sabe, herança clássica
continuada no medievo, com importações da tradição bíblica e
patrística, pelas artes praedicandi. Inclusive o próprio dramaturgo foi
autor de “sermões”, como o Sermão de Abrantes, no qual demonstra
conhecer as técnicas da arte de pregar, que também utilizou em muitos
outros momentos da sua obra. E os gêneros de discurso dos quais fala
Aristóteles na Retórica podem ser facilmente reconhecidos no teatro
doutrinário de Gil Vicente, em peças que ora se revestem de
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180
dominância epidítica, ora deliberativa, ora judicial7. Dessa forma, têm
por finalidade principal, respectivamente, a louvação das virtudes e a
condenação dos vícios; o aconselhamento para a prática da
religiosidade verdadeira; a condenação da vida pecaminosa e o seu
contrário – a recompensa celestial aos praticantes das virtudes e a
salvação dos contritos pela Graça redentora decorrente da Paixão
Cristo.
Observaremos a seguir algumas técnicas retóricas, utilizadas
por Gil Vicente para apregoar os ensinamentos franciscanos nos autos
dos Mistérios da Virgem, da Feira, da Alma, da Barca da Glória e de
São Martinho.
O Auto dos Mistérios da Virgem (ou da Mofina Mendes)
apresenta um Prólogo que funciona a modo de exórdio, parte inicial do
discurso onde se intenta a captatio benevolentiae do auditório ou dos
juízes. Um frade, com um discurso aparentemente desconexo ou
amalucado, a modo de um sermão burlesco cheio de citações de
autoridades e de frases ou expressões em um latim “macarrônico”, na
verdade estabelece uma acirrada crítica ao juiz “que tem jeito no que
diz” mas “nam acerta o que faz”, aos ‘letrados de rio torto”, aos que se
ufanavam conhecedores dos “secretos divinais / que estão debaixo da
terra” (VICENTE, 2002, p. 113). Critica, portanto, a arrogância dos
intelectuais, a sua falha sabedoria, sendo a verdadeira sabedoria irmã
da santa simplicidade para S. Francisco, como vimos. Aliás, na
Legenda Maior de São Boaventura lemos que S. Francisco “dizia que
se devia deplorar como destituído de verdadeira piedade todo pregador
que na pregação procura mais a própria glória do que a salvação das
almas ou que destrói com seu mau exemplo aquilo que ele edifica com
a verdade de sua doutrina” (FRANCISCO, 1988, p. 516).
Outras críticas estabelecidas são à licenciosidade dos clérigos
e sobretudo à avareza, inimiga da “santa pobreza” e da “santa
caridade”, admoestando os ricos a se prevenirem do inferno através da
7
Cf., a propósito, a tese de Luciana Barbosa Reis, feita sob minha orientação,
intitulada “Retórica e religiosidade em cena: as moralidades de Gil
Vicente” (REIS, 2013). Defende ela que os Autos da Fé e da Mofina
Mendes correspondem ao gênero epidítico, o da Feira e o da Alma ao
deliberativo e o da Barca do Inferno e do Purgatório ao judiciário.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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adoção dos “enjeitados / filhos de clérigos pobres” (VICENTE, 2002,
p. 113). E termina a primeira parte da sua fala justamente evocando a
visão do “rico avarento / que nesta vida gozava / e no inferno cantava:
/ água Deos água / que lhe arde a pousada” (VICENTE, 2002, p. 113).
Utiliza-se, pois, de argumentos lógicos e patéticos. E, através dos
mesmos, fustiga os vícios mais combatidos no Elogio das virtudes de
São Francisco.
Após espicaçar dessa forma o seleto auditório que assistia ao
auto – foi representado a D. João III e sua corte nas matinas de Natal
de 1534, como indica a didascália inicial –, o frade inicia a segunda
parte do Prólogo, que também cumpre o que a retórica clássica
preconizava para o exórdio: apresentar o teor, a dispositio e as figuras
do discurso, no caso, do auto. E busca a credibilidade do auditório ao
indicar que os afastamentos da história eclesiástica ou da Bíblia se
fundamentam na devoção.
As partes do discurso, por ele indicadas, se reduzem a duas: a
Anunciação e o Nascimento do Redentor. Mas, como sabemos, o auto
possui um intermezzo, constituído por uma farsa campesina não
referida pelo frade mas que termina por ”roubar a cena” e substituir o
próprio título da peça, que se tornou famosa não como Auto dos
Mistérios da Virgem (assim chamado pelo frade-prólogo), mas da
Mofina Mendes.
Não será nossa intenção aqui desenvolver uma análise
minuciosa desse Auto, o que já realizamos em estudos anteriores
(MALEVAL, 2012). Apenas gostaríamos de ainda ressaltar-lhe alguns
aspectos retóricos, como o relativo à alegoria das virtudes que
acompanham a Virgem – nada menos que a Pobreza, a Humildade, a
Fé e a Prudência.
O Catecismo da Igueja Católica estabelece que as virtudes
teologais são fé, esperança e caridade; e que as cardeais são prudência,
justiça, fortaleza e temperança (CATECISMO, 1999, p. 486-488). Gil
Vicente conservou das teologais a Fé (que se fundamenta na crença), e
das cardeais a Prudência (alicerçada na razão, no discernimento)8; mas
8
Mas a prudência franciscana não é materialista, ao contrário. Ensinava ele
que “Quem pretende chegar ao cume da pobreza deve renunciar não
somente à prudência segundo o mundo, mas também às letras e às ciências;
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evidenciou, em detrimento das demais, justamente as preconizadas por
S. Francisco: Pobreza – para ele a rainha das virtudes, o caminho mais
seguro para a salvação (Cf. S. BOAVENTURA, in FRANCISCO, p.
506) – e Humildade – fundamentada na pobreza e contrária da soberba,
“origem de todos os males” e “mãe da desobediência” (S.
BOAVENTURA, in FRANCISCO, p. 506). Não bastasse isto, é
justamente na boca da Mofina Mendes, que inicialmente serve de
contraponto à Virgem – enquanto esta é a pastora dedicada, que se
preocupa com a salvação das suas ovelhas transviadas, a humanidade
pecadora, aquela é a antipastora, completamente descuidada do
rebanho que tem sob sua guarda e que termina por ser exterminado –,
que se condensa a mensagem maior do Auto: “todo o humano deleite /
como o meu pote d’azeite / há de dar consigo em terra” (VICENTE,
2002, p. 126).
Partindo de uma figura grotesca, tresloucada, tais palavras só
poderiam ter sido ditadas pela Graça que, como asseveram os grandes
teorizadores da prédica, como São Paulo e Santo Agostinho, é que
ilumina o pregador. Assim, mais uma vez Gil Vicente coloca em uma
personagem risível a lição maior da Ordem dos Menores, que
retomaram a de Jesus Cristo: o desapego aos bens materiais e a
sabedoria da simplicidade. Aliás, a perotatio do auto, sua cena final, é
o convite do Anjo aos simplórios e humildes pastores para o encontro
com o Menino-Deus a caminho de Jerusalém, levado pela mãe ao
templo. A rubrica final é festiva como ao acontecimento convém:
“Tocam os Anjos seus instrumentos, e as Virtudes cantando e os
Pastores bailando se vão. / Laus Deo” (VICENTE, 2002, p. 133).
No auto da Feira, também representado a D. João III, nas
matinas de Natal de 1527, o prólogo é constituído pelo discurso de
Mercúrio, que busca conquistar o público através da afirmação de sua
autoridade. Assim, apresenta-se como “estrela do céu” (VICENTE,
2002, p. 157) e profundo conhecedor da “verdadeira” astronomia,
ciência muito em voga na época. E, após discorrer sobre este saber, se
assume como “deos das mercadorias” (VICENTE, 2002, p. 162).
assim despojado daquilo que ainda é uma forma de posse, proclamará o
poder do Senhor (cf. Sl 73, 15-16)” (S. BOAVENTURA, in FRANCISCO,
p. 508).
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183
É estreita a relação entre o ato de vender e a retórica, dado
que o discurso persuasivo conquista o comprador. E Mercúrio era
considerado também o deus da eloqüência. Daí que, firmada a sua
autoridade, e desvelada aos leitores menos ingênuos a sua função
retórica, passe a justificar a composição do Auto: sua originalidade –
“E porquanto nunca vi / na corte de Portugal / feira em dia de Natal /
ordeno ûa feira aqui / pera todos em geral” – e sua adequação à época,
fazendo mercador-mor, alegórico, ao Tempo: “Faço mercador mor / ao
Tempo que aqui vem / e assi o hei por bem / e nam falte comprador /
porque o Tempo tudo tem” (VICENTE, 2002, p. 162).
Sabemos que o contexto é o do mercantilismo, como também
do combate, por Erasmo e Lutero9, da venda de indulgências pela
Igreja. Daí o Tempo, temendo os maus compradores que preferem a
“feira do demo”, invocar a ajuda divina, que se concretiza na figura do
Serafim. E a admoestação por este feita às “igrejas mosteiros / pastores
das almas, papas adormidos” é de orientação indubitavelmente
franciscana: “buscai as samarras dos outros primeiros / os
antecessores. / Feirai o carão que trazeis dourado / ó presidentes do
crucificado / lembrai-vos da vida dos santos pastores / do tempo
passado” (VICENTE, 2002, p. 164). O retorno ao cristianismo das
origens, onde as primeiras ordens de Jesus aos seus discípulos foram
abandonar todos os bens materiais e dedicar-se totalmente à pregação
do Evangelho a todas as criaturas, tal foi a proposta atualizada pelo
Santo de Assis.
É interessante observar que o Diabo, presente na feira, ao ser
expulso pelo Serafim se utiliza de um discurso próprio da retórica
judicial: “Senhor apelo eu disso”, argumentando, por exemplo, que “Se
me vem comprar qualquer / clérigo ou leigo ou frade / falsas manhas
de viver / muito por sua vontade / senhor que lh’hei de fazer?”
(VICENTE, 2002, p. 167). Lança mão, pois, de argumento
fundamentado no livre arbítrio dado por Deus aos homens, para
justificar o seu direito de feirar.
9
Erasmo viveu de 1469 a 1536, e, embora não se aliando a Lutero (14831546), autor das teses que deram início à Reforma protestante, lançou as
bases de uma nova teologia, fundamentada na Bíblia lida diretamente do
grego, não da tradução de São Jerônimo.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
184
Sem tempo para irmos adiante, lembramos ser significativo o
fato de até Roma vir à feira, intentando “comprar paz, verdade e fé’
(VICENTE, 2002, p. 168). E destacamos que é através das falas de
simples camponesas e serranas que a crítica à feira se estabelece de
modo contumaz. Umas se queixam da falta de alegria em uma feira
natalina: “Eu nam vejo aqui cantar / nem gaita nem tamboril / e outros
folgares mil que nas feiras soem d’estar. / E mais feira de Natal / e
mais de nossa senhora / e estar todo Portugal” (VICENTE, 2002, p.
180). Outras, da própria condição de feirar, incompatível com o divino:
“Porque nos dizem que é / feira de nossa senhora / e vedes aqui
porquê. / E as graças que dizeis / que tendes aqui na praça / se vós
outros as vendeis / a virgem as dá de graça / aos bôs como sabeis”
(VICENTE, 2002, p. 186).
Portanto, a crítica à venda de indulgências pela Igreja se
desvela mais e mais. Bem como à tristeza no culto. Daí que, reiterando
a necessidade da alegria na comemoração natalina já expressa
anteriormente por outras personagens, continuam: “E porque a graça e
alegria / a madre da consolação / deu ao mundo neste dia / nós vimos
com devação / a cantar-lhe ûa folia”. Propondo o fim da feira, como
indica a rubrica “ordenadas em folia cantaram a cantiga” mariana
“Blanca estais colorada / virgem sagrada // Em Belém vila do amor /
da rosa nasceu a flor / virgem sagrada”, etc. (VICENTE, 2002, p. 186).
Assim o Auto termina, com cânticos e danças sucedidos pela
rubrica final: Gratias agamus domino Deo nostro. Também nada mais
franciscana que esta situação: a da exaltação à Virgem e da alegria no
culto, principalmente o natalino, pois, como registram as crônicas
coevas de S. Francisco, foi ele inclusive o inaugurador da tradição do
presépio natalino.
Agora passaremos à observação de dois autos feitos para a
Semana Santa, época de dor instituída pela Igreja para rememoração da
Paixão de Cristo. A começar pelo Auto da Alma, considerado a mais
gótica realização do autor, dedicado à “muito devota rainha dona
Lianor” e representado a D. Manuel na noite de Endoenças, quintafeira da Paixão, 1508.
Temos visto o modo como Gil Vicente, nos autos já
comentados, lançou mão dos ensinamentos retóricos relativos ao
exórdio para conquistar os espectadores. Neste auto não é diferente:
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185
nada menos que o discurso de Santo Agostinho o inicia. Daí, não ser
necessário o recurso ao riso ou à demonstração do saber pelo
enunciador do discurso-prólogo, como no Auto da Mofina Mendes ou
no Auto da Feira, porque Santo Agostinho já possui a credibilidade
máxima que em um contexto cristão alguém poderia alcançar. Assim,
possuindo em si os valores éticos, a sua função será a de exaltar o
papel da “santa estalajadeira / Igreja madre” (VICENTE, 2002, p. 190)
no fortalecimento da “alma caminheira” exposta aos “mui perigosos
perigos / dos imigos” na “triste carreira / desta vida” (VICENTE, 2002,
p.189-190).
Em seguida ao seu discurso, e reiterando-lhe os
ensinamentos, vem o Anjo Custódio, que apresenta a Alma como
“formada / de nehûa cousa feita” (VICENTE, 2002, p. 190),
“caminheira” em direção à “pátria verdadeira” (VICENTE, 2002, p.
191), animando-a ao esforço contínuo que a salvação requer. A Alma,
que se reconhece fraca e temerosa, tem em sua peregrinatio de um
lado o Anjo, a encorajá-la a rechaçar vaidades e riquezas, de outro o
Diabo, a tentá-la com um discurso que lembra em tudo o dos sofistas:
não só se utiliza do próprio discurso bíblico, subvertendo-o, como
lança mão da lisonja para convencer a Alma: “Tam depressa ó delicada
/ alva pomba pera onde is? (...) ainda estais em idade / de crecer /
tempo há i pera folgar / e caminhar / vivei à vossa vontade / e havei
prazer. // Gozai gozai dos bens da terra / procurai por senhorios / e
haveres” (VICENTE, 2002, p. 193-194; cf. também p. 197-198). A
fonte bíblica é o Eclesiastes, III, 1-8. Não bastasse, argumenta ainda
com a opinião comum: “Oh descansai neste mundo / que todos fazem
assi” (VICENTE, 2002, p. 194).
Se o discurso do Anjo enfatiza o papel do livre arbítrio, como
também a necessidade de ajuda à matéria fraca e mortal de que é feito
o ser humano, já o Diabo a exalta como “senhora / emperadora”, que
não deve “a ninguém nada” (VICENTE, 2002, p. 195) e para quem
existem os prazeres e haveres. A Alma sucumbe à tentação, à vaidade,
aceitando os trajes e jóias preciosos que este lhe oferece. E, ao ser
criticada pelo Anjo, defende-se respaldando-se no senso comum, um
dos argumentos do discurso demoníaco, e diz: “Faço o que vejo fazer /
pólo mundo” (VICENTE, 2002, p. 196).
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Após o arrependimento, fortalecendo-se com a ajuda da
Igreja que a recebe com seus doutores Agostinho, Jerônimo, Ambrósio
e Tomás através das iguarias santas do flagelo de Jesus Cristo (açoites,
coroa de espinhos, cravos), adoram juntos a última iguaria – o
crucifixo apresentado por São Jerônimo. Com o cântico Te Deum
laudamus se encerra o auto, mas – e o que nos interessa ressaltar – não
sem antes Santo Agostinho referir-se à Alma como “bem
aconselhada”, que “venceu com fé / forte guerra” (VICENTE, 2002, p.
212) – a da persuasão demoníaca através de sofismas.
O auto da Barca da Glória foi também possivelmente
representado no ciclo da Páscoa, a D. Manuel, em Almeirim, 1519.
Diferindo dos demais aqui analisados, não apresenta uma fala inicial a
modo de exórdio. É apenas a rubrica inicial que indica as personagens
que o constituem –“dignidades altas: Papa, Cardeal, Arcebispo, Bispo,
Emperador, Rei, Duque, Conde” (VICENTE, 2002, p. 269), bem como
“quatro Anjos cantando” (VICENTE, 2002, p. 269) mais os Diabos e
a Morte.
Como é sabido, esse auto insere-se na chamada ‘trilogia das
Barcas”, iniciada pelo Auto da Barca do Inferno, de 1517, no qual
desfilam tipos medianos da sociedade da época, que são julgados após
a morte pelo Anjo. O papel do advogado de acusação cabe ao Diabo
que os quer em seu batel, à exceção do judeu. Conseguem permissão
do Anjo para o embarque no batel divino apenas um tolo e quatro
cavaleiros cruzados, mártires pela fé. No natalino Auto do Purgatório,
de 1518, de igual teor judicativo, segue para o Inferno um taful e para
o Céu uma criança, um menino “em idade de inocente” (VICENTE,
2002, p. 264), ficando no Purgatório os camponeses adultos, por seus
pecadilhos e revolta.
Voltando ao Auto da barca da Glória, vemos que a conversa
inicial é justamente entre o Arrais do Inferno e a Morte, acusada por
ele de atingir a numerosos “pobrecicos” e tardar tanto a atingir os
“grandes y ricos” (VICENTE, 2002, p. 269). Atendendo-o, são trazidas
as “dignidades altas”, que desfilam uma a uma, acusadas de vida
pecaminosa pelo Diabo, que as convida a entrarem no seu batel. Todos
têm consciência, em grau maior ou menor, dos seus pecados,
atribuídos por alguns à própria condição humana, ao pecado original
que desde Eva acompanha a humanidade. Mas carregam a fé e a
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187
esperança em serem salvos pela piedade divina, através da Paixão
Redentora do Cristo e do sofrimento da sua Mãe.
As invocações que cada um profere, a Deus e a Maria, não
surtem efeito e a barca da Glória já se prepara para a partida. Mas,
como indica a rubrica final, “os Anjos desferem a vela em que está o
crucifixo pintado e todos assentados de joelhos lhe dizem cada um sua
oração” (VICENTE, 2002, p. 293). Estas não comovem aos Anjos, que
já se afastam. Então “as almas fizeram em roda ûa música a modo de
pranto com grandes admirações de dor, e veo Cristo da ressurreição e
repartiu por eles os remos das chagas e os levou consigo”. Portanto,
quando falharam os demais argumentos, a peroratio do auto investe
nos recursos patéticos, que comovem ao Senhor. E o auto termina com
a fórmula recorrente, “Laus Deo”.
Finalmente, retomamos o Milagre de São Martinho feito para
o Corpus Christi10, 1504. Não pode ser considerada uma peça tão
artisticamente completa como as demais. A própria rubrica final
esclarece que “nam foi mais porque foi pedida muito tarde”
(VICENTE, 2002, p. 366). Mas o escolhemos para iniciar e terminar as
nossas considerações sobre o franciscanismo vicentino justamente
porque se trata de um exemplum – tão caro à retórica – que ilustra mais
que muitos outros recursos a caridade franciscana. A Legenda Maior,
biografia de São Francisco feita por São Boaventura e tornada a
oficial, destaca que nele se consubstanciara a verdadeira piedade: “a
devoção que o elevava até deus. A compaixão que fazia dele um outro
Cristo, a amabilidade que o inclinava para o próximo, e uma amizade
com cada uma das criaturas, que lembra nosso estado de inocência
primitiva” (VICENTE, 2002, p. 515).
O discurso inicial do auto, que como vimos tem uma
importância capital na estruturação de cada peça, é dado a um Pobre,
que se lamenta, não sem revolta, dos seus terríveis sofrimentos, que o
fazem desejar a morte, observando ser ela dada por Deus a tantos que
não a merecem – “Por qué me desdeñas / y matas sin tiempo quien
10
Como se sabe, é a festa do Santíssimo Sacramento, instituída pelo papa
Urbano IV no século XIII (1264) em honra da presença de Cristo na
eucaristia, e que se tornou muito popular sobretudo pela procissão que
sucede à missa desse dia.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
188
merece vida?” (VICENTE, 2002, p. 364). E implora por uma esmola,
apelando para a compaixão dos “devotos cristianos” (VICENTE, 2002,
p. 363). Então entra em cena São Martinho, a quem o mendigo dirige a
sua súplica. Compadecido, e sem ter nada mais que pudesse oferecer,
corta a capa ao meio, repartindo com o pobre aquilo que lhe era
também essencial: o agasalho. Esta a lição da verdadeira caridade, que
foi a praticada pelo santo de Assis. Nenhuma palavra poderia ser mais
convincente que tão grande exemplo.
E não importa que o mendigo seja um revoltado, que não
possua a paciência de Jó. Daí se segue outra lição: não julgar, não
maldizer. Aliás, a maledicência era condenada da forma mais radical
por S. Francisco “por ser mortal para a piedade e a graça, objeto de
abominação de Deus infinitamente bom” (FRANCISCO, 1988, p.
517). Se Gil Vicente apresenta a injustiça social e por vezes até a
divina – por exemplo através do seu personagem-lavrador, que
denuncia ser “vida das gentes” e morte da própria vida no Auto do
Purgatório (VICENTE, 2002, p. 248-249) –, no entanto o que
prevalece em seus autos é o elogio das virtudes, notadamente
franciscanas.
Enfim, é patente o conhecimento e utilização, por parte de Gil
Vicente, das técnicas de persuasão do discurso desde a elaboração dos
prólogos dos autos, que certamente conseguiram captar a benevolência
do auditório para os ensinamentos que intentavam perpetrar. E que têm
uma orientação claramente franciscana, elogiando as mesmas virtudes
destacadas pelo fundador da Ordem dos Menores. Também pudemos
comprovar que, à época de Gil Vicente, o teatro inserido nas
comemorações religiosas, escrito e encenado por um leigo, perpetuava
a tradição do drama litúrgico – salvo as devidas distâncias, já que,
como Eva Castro enfatiza, “tudo parece indicar que nem os ‘autores’,
nem os ‘atores’ nem o ‘público’ do drama litúrgico “percibían en el
una manifestación teatral ajena a la dramaticidad propia de la liturgia,
sino que lo entendían y sentían como una ceremonia más, engastada en
el ritual romano oficial” (CASTRO, 1997, p. 27-28). Se não desta
maneira, as rubricas e cânticos religiosos nos finais dos autos
devocionais analisados concorrem para inseri-los ainda mais na
comemoração religiosa para a qual foram encomendados. E funcionam
como verdadeiros sermões encenados, unindo o docere com o
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
189
delectare para comover e persuadir ou convencer o público acerca das
benesses de uma vida franciscanamente virtuosa.
RÉSUMÉ: Les actes de dévotion occupent une place privilégiée dans
la production de Gil Vicente, dont plusieurs ont été faits à la demande
de la reine franciscaine D. Leonor, veuve de D. João II et soeur de D.
Manuel, celle-ci ayant été la principale mécène du dramaturge. Parmi
eux, nous avons retenu les Actes des Mystères de la Vierge (ou de
Mofina Mendes) et celui de la Soeur, commandés pour Noël, les Actes
de l´Âme et de la Barque de la Gloire, représentés lors de la Semaine
Sainte , et le Miracle de Saint Martin, fait pour Corpus Christi. On y
analyse quelques-uns des éléments rhétoriques employés pour la
véhiculation de la doctrine des franciscains.
Mots-clés: Théâtre; Lithurgie; Rhétorique; Ordre franciscain; Moyen
Âge.
REFERÊNCIAS:
BÍBLIA de Jerusalém. S. Paulo: Edições Paulinas, 1973.
CAMÕES, José. Tempos. Lisboa: Quimera, 1991.
CASTRO, Eva. Teatro medieval. 1 – El drama litúrgico. Barcelona:
Crítica, 1997.
CATECISMO da Igreja Católica. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
FRANCISCO DE ASSIS, S. Escritos. In Escritos e biografias de São
Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século
franciscano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
HARGUINDEY BANET, H. Introducción a Tres pezas cómicas
medievais. A Coruña: Biblioteca-Arquivo Teatral “Francisco Pillado
Mayor”, 1999.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. dirigida por J. Guinsburg e
Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.
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MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Gil Vicente. In: MOISÉS,
Massaud (Org.). A literatura portuguesa em perpectiva. Vol. I –
Trovadorismo. Humanismo. São Paulo: Atlas, 1992, p. 97-190.
________. Gil Vicente e a arte de pregar: o Auto dos Mistérios da
Virgem ou da Mofina Mendes. Revista do CESP - UFMG, Belo
Horizonte, v. 32, n. 47, p. 163-184, jan.-jun. 2012.
REIS, Luciana Barbosa. Retórica e religiosidade em cena: as
moralidades de Gil Vicente. Tese de Doutorado em Literatura
Comparada, Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, 2013.
VICENTE, Gil. As obras de Gil Vicente. Ed. J. Camões. Vol. I.
Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, IN-CM, 2002, p. 294.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
191
IBERIA Y BRASIL EN FERNANDO PESSOA.
Pablo Javier Pérez López1
RESUMO: Propõe-se uma aproximação ao projecto ibérico de
Fernando Pessoa recentemente publicado na íntegra pela primeira vez
(“Ibéria. Introdução a um imperialismo futuro”) no contexto do lugar
que ocupa América e o Brasil nele e no seio da chamada acção
civilizacional pessoana. Uma melhor compreensão do iberismo
pessoano talvez proporcione chaves hermenêuticas mais apropriadas
para compreender de maneira mais abrangente a refundação mítica da
existência que se encontra inserida na estética pessoana.
PALAVRAS-CHAVE: Ibéria, Fernando Pessoa, Tragedia, América,
Brasil
Ángel Crespo ya dijo muy atinadamente que España es indisociable de
las reflexiones pessoanas sobre Portugal por dos razones
fundamentales:
Pero ¿qué tiene que ver España con todo esto? Mucho, y
por dos razones principales. La primera de ellas es que
una de las consecuencias inmediatas de la muerte de
don Sebastián fue el que reinasen en Portugal los
Austrias españoles; la segunda, que siendo la cultura
lusitana una parte de la ibérica, a la que el poeta
consideraba claramente distinta de la del resto de
Europa, el proyecto del quinto imperio no podía
prescindir de ninguno de los pueblos peninsulares.
(CRESPO, 1985, p.11).
Del mismo modo que Pessoa pasó toda su vida buscando su
verdadero rostro, el tacto preciso y claro de su verdadera alma,
vistiéndose de innumerables otredades, también se preguntó por el
1
Universidade Nova de Lisboa.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
192
rostro de Portugal, ese rostro esfíngico y fatal que alguna vez fue el
rostro de Europa (Véase Mensagem). Se preguntó por el alma de su
pueblo, y lo buscó, entre otros lugares, en el seno de la Ibericidad.
Toda la búsqueda de identidad pessoana, todo su gran proyecto
estético-filosófico, está, como veremos, ligado a este iberismo,
comprendido como refundación mítico-identitaria del origen de un
pueblo y como justificación, auto-justificación del regreso del
neopaganismo, de los dioses y de la religión natural de Iberia: el
paganismo trascendente (PESSOA, 2013, texto 13). Neopaganismo,
Neoarabismo, Sebastianismo, Sensacionismo, Quinto Imperio y
Heteronimismo estarán, por lo tanto, ligados a ese Imperialismo Futuro
que supone la refundación espiritual de lo Ibérico y al proyecto mítico
que representa y alberga en su seno, con el consabido grado de
mesianismo y mito, que una vez creados o re-creados nos ayudan a
comprender mejor la difusa organicidad del proyecto pessoano, pero
también las razones de la re-aparición del neopaganismo en el grupo
civilizacional ibérico, es decir, la aceptación del pueblo ibérico como
fatalmente vinculado al sentir y al pensar trágico de la vida y al pensar
poético. (No sería descabellado escribir aquí misticismo racional)
“No sé quién soy, qué alma tengo” repite Pessoa en sus versos
y sus prosas, como quizá también repite el pueblo portugués frente a
los espejos rotos de la Historia.2 Si existen hombres con almas
complejas3, los poetas, que hacen del yo, un universo, puede que
existan pueblos de almas tan complejas, que hagan de su yo, de su
identidad, de su unidad, una vasta pluralidad de identidades
complementarias y orgánicas. Este es otro de los supuestos o miradas
pessoanas sobre Iberia. Iberia tampoco sabe cuántas almas tiene, y
2
“Cualquier destino, por largo y complicado que sea, consta en realidad de
un solo momento: el momento en el que el hombre sabe para siempre quién
es” dice (BORGES, 2003, p. 65). Y donde se lee hombre, debe leerse
pueblo. Quizá el pueblo portugués vive artísticamente para buscarse
perpetuamente en una Nostalgia eterna de sí mismo.
3
“El alma de los pueblos […] no es seguramente menos compleja que el
simple individuo” (SARAMAGO en MOLINA, 1990, p. 6)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
193
cuántas debe tener4, ni cómo deben relacionarse sus identidades, cómo
deben unirse estando separadas o cómo y cuán separadas deben estar,
estando unidas.
Y es que esta lucha perpetua y agónica entre unidad y
pluralidad, entre el Unomismo (Sábato dixit) y el Universo, entre la
nación y el país, entre la unidad y la pluralidad, entre la identidad y la
alteridad, entre la homogeneidad y la heterogeneidad, entre el instinto
de representación y el instinto de creación, entre lo que soy y lo que
quiero ser, es la temática, única y esencial de la Tragedia. Tragedia en
la que parece inscribirse el pensamiento y el sentimiento de Fernando
Pessoa y a través de él, el de Iberia, comprendido como pueblo, como
confederación de almas, que sin saber qué son, cuántas son, y quiénes
son, buscan y luchan en ese seno tenso que es toda identidad, toda
alma de un pueblo5. Recordemos las palabras de María Zambrano “la
Tragedia estriba en que la pluralidad está dentro de la unidad misma,
en su seno”. (ZAMBRANO, 2004, p. 95)6
Parece pues que Pessoa mira desde la óptica del arte y de la
literatura a lo político y afronta artísticamente, poéticamente,
míticamente la identidad política, el misterio que funda toda nación 7,
4
Pessoa tampoco sabe cuántas almas (naciones) tiene Ibéria. Parece que duda
entre dos o tres. Cataluña es comprendida como nación cultural y no
política en algunas ocasiones: Cf. “Es el caso de países como Irlanda y
Cataluña. Son naciones virtuales y no naciones verdaderas, o reales.”
(PESSOA, 2000, p. 78), “Hay sólo dos naciones en Iberia –España y
Portugal. La región que no es parte de una, es parte de la otra. Es resto es
Filología” [texto 21], “El tercer grupo es el Ibérico, compuesto de tres
naciones reales y dos políticas, por las que está formada nuestra península”
[texto 36].
5
Cf. “Una nación es un organismo psíquico en que, como en todos los
organismo, luchan, sustentándola, fuerzas de integración y desintegración
[…]”(PESSOA, 2011, p. 61).
6
Cf. “Seamos múltiples pero señores de nuestra multiplicidad” BNP/E3 889v.
7
“Las naciones son todas misterios /Cada una es todo el mundo a solas […]”
son los dos versos iniciales del cuarto poema de Mensagem.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
194
pues es la literatura, comprendida como imposición de nuestro propio
sueño a los demás, un gran diálogo entre pensar y sentir, entre la
identidad y las máscaras, y patria fundacional de ese gran acto sagrado:
mezclarse, y decidir con quién mezclarse, a quién conquistar, quién
ser, en definitiva.
El primer paso importante para comprender bien el iberismo
pessoano es el que nos permite distinguir con nitidez la diferencia entre
Nación, Grupo Civilizacional y Civilización. El llamado Grupo
civilizacional ibérico, es, en este sentido, el compuesto por Portugal,
Castilla y Cataluña y caracterizado por la síntesis de Grecia y Roma
más su elemento propio y verdaderamente diferenciador: el elemento
árabe.
Grupo “Caracterizado por una especie de occidentalización de
lo europeo” [texto 348], “el espíritu ibérico es una fusión del espíritu
mediterráneo y el espíritu atlántico” [texto 22] Asimismo Pessoa
remarca que “Un grupo civilizacional es más útil cuanta más
conciencia tiene de sí mismo como grupo […]” [texto 16] para hacer
entender, quizá, que sólo la toma de conciencia de nuestra ibericidad
(objetivo prioritario probablemente de su proyecto) puede redundarnos
como pueblo y como mito ante el espejo del Destino.
¿Qué es ser ibérico? ¿Qué es la Ibericidad? No debemos
obviar en este punto el subtítulo del proyecto pessoano. Introducción a
un Imperialismo Futuro. La propuesta iberista pessoana supone el
deseo de “buscar ibéricamente la fórmula nueva para las sociedades”
[texto 3] para el que es necesario “crear una nueva literatura, una
nueva filosofía –ese es el primer paso” [texto 3]. Es este el lugar que
ocupa el modernismo literario y la voluntad de la estética y la filosofía
pessoana.
Se trata de recuperar la toma de conciencia de lo ibérico
“Creo que todo verdadero ibérico, una vez que haya leído esto,
reconocerá la voz íntima de su alma, lo que con sus instinto, siempre
inconstante, pensó y quiso” [texto 16] de “tomar conciencia de nuestra
ibericidad” y a su vez de “la creación de la tendencia ibérica, de la
ibericidad espiritual” [texto 22] a través del cultivo de una nueva
8
Todos los textos referidos en cuerpo de texto (PESSOA, 2013).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
195
literatura y una nueva filosofía, una cultura sintética frente a la cultura
analítica europea. Se trata de construir o reconstruir nuestra identidad
olvidada. ¿No es esto mismo la literatura?
Pessoa acomete la tentativa de esbozar la psique ibérica pues
“para que pueda haber una orientación ibérica común, tiene que haber
alguna cosa, psíquica, común a España y Portugal. ¿Existe ese
elemento, y cuál es, si existe?” –se pregunta– [texto 3]. Ese “fondo
común del alma ibérica” es su “carácter totalmente sintético” [texto 2].
“El elemento intelectual característico [de lo ibérico] es el predominio
de la imaginación sobre todas las otras operaciones intelectuales”
[texto 16] “Nuestra fórmula imaginativa es la de la imaginación
deformadora de la realidad. En el mejor caso es representadora de lo
real; nunca obedece a ella” [texto 16].“En el grupo ibérico [en
definitiva] no hay ni coexistencia, ni equilibrio, sino penetración de los
dos instintos [el instinto de lo real y el instinto de lo ideal]. Uno
perturba al otro porque vive dentro de él” [texto 16], nos dice Pessoa.
Puede comprenderse esta interpenetración de los dos grandes
instintos desde una perspectiva trágica, donde la complementariedad
de pensamiento y poesía, de verdad y pasión, del querer saber y querer
existir, es decir, de la voluntad de verdad y la voluntad de ilusión, son
fundacionales. ¿Será Iberia el lugar propicio para eso que Vico llamo
la Sabiduría Poética, para ese habitar poético que acaba por enlazar y
hacer complementarios realismo e idealismo hasta hacerlos
indistinguibles? ¿El lugar donde la gran filosofía, el pensamiento del
que se nutre su identidad, está en la literatura y los poetas, en sus mitos
literarios?
El pensamiento trágico, el sentimiento trágico de la vida
unamuniano, que tanto acercó a Don Miguel a Portugal, parece estar
estrechamente relacionado con este predominio de lo imaginativo, de
ese idealismo objetivista, de ese realismo poético del que se nutre toda
la literatura ibérica, incluyendo a Fernando Pessoa como poeta
máximo del conocimiento poético. Recordemos estas palabras de
Unamuno:
Aparéceseme la filosofía en el alma de mi pueblo como
la expresión de una tragedia íntima análoga a la
tragedia del alma de Don Quijote, como la expresión de
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
196
una lucha entre lo que el mundo es, según la razón de la
ciencia nos lo muestra, y lo que queremos que sea,
según la fe de nuestra religión nos lo dice.9
(UNAMUNO, 2003, p. 321).
¿No es esta la faústica lucha que envuelve el trasfondo
filosófico de la estética pessoana y de los grandes poetas ibéricos? ¿No
es este Quijotismo un hermano olvidado del Saudosismo en cuanto
expresión de la lucha entre la Razón y la Vida? Creemos que sí salvo
que bajo la complementariedad Presencia-Ausencia, IdentidadPluralidad en el caso del saudosismo y el sebastianismo portugués.
Esta Ibericidad, sintética, plural, imaginadora, soñadora, que
interpenetra lo real y lo ideal, bien puede comprenderse como
encarnación inmejorable de lo trágico en la que el alma española y
portuguesa se complementan10 e interpenetran.
Excesividad es lo ibérico, excesividad interior y/o exterior11,
locura. No olvidemos cómo Pessoa comprende, citando a Nietzsche, la
filosofía (Quizá también la de un pueblo. No olvidemos el interés de
Pessoa por la psicología de los pueblos.) como expresión de un
temperamento. Excesividad que puede comprenderse, en el contexto
de esa lucha entre lo real y lo ideal, como un incurable ansia de lo
10
Almada lo dice con mucha claridad: “La dualidad Portugal y España es al
final el secreto de la vitalidad de la península ibérica y de su civilización.
Portugal y España son dos opuestos y no dos rivales. Los opuestos son
complementarios iguales de un todo. Este todo está representado
geográficamente por la península ibérica y en espíritu por la civilización
ibérica.” (ALMADA, 1935, p. 5).
11
“Todo lo ibérico es, en realidad, esencialmente excesivo, sin embargo, el
español lo es exteriormente, solamente en su expresión (de ahí su
exageración notable), el portugués lo es, sobre todo, interiormente.
Exageramos menos en las palabras que el español típico: es en los
sentimientos donde somos típicamente desmedidos” Pessoa, Fernando, O
português, um povo antagónico, en Diario i, 17 de Diciembre de 2009.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
197
imposible: “El imposible como único horizonte”12 y como
antagonismo, agonía, la lucha interior entre lo que soy y lo que quiero
ser, propia de lo trágico y asumida como verdadera patria en el seno
del “alma saudosa-quijotesca”13.
“Nosotros, ibéricos, somos el cruce de dos civilizaciones, la
romana y la árabe” repite Pessoa mostrando las claves de la síntesis
ibérica [texto 22]. Frente a la idea de absorción o asimilación, la
síntesis cultural supone, en buena parte, la clave cosmopolita de lo
portugués, que no se refleja del mismo modo en lo español, la
asimilación cultural de lo extranjero para la identidad primitiva: “Nosotros […] sólo obtenemos principios nacionales a través de síntesis y
amalgamas de principios importados, cosmopolitas” (PESSOA, 2009,
p.67). Hacer, en definitiva, del cosmopolitismo un arte y una patria.
Ahora bien, ¿Qué tipo de unión, acercamiento o armonía
propone Pessoa exactamente? Existen muchas maneras de unir, de
relacionar las naciones ibéricas. ¿Debemos estar unidos o separados y
hasta qué punto? Pessoa es muy claro en este sentido:
En qué punto debe haber entre nosotros separación y en
qué punto combinación de esfuerzos. La cuestión es
exageradamente simple. Debemos estar separados en
todo lo que sean problemas nacionales, juntos en todo
lo que sean problemas civilizacionales […] la
Orientación frente a Europa conviene que sea en ambos
la misma. [texto 3].
“Separados, tendremos, cada uno de nosotros, un sentido
nacional, no tendemos sentido civilizacional” [texto 17] repite Pessoa
vez tras vez. Se trata de ir más allá de una amistad, cosa que para él no
quiere decir nada, se trata de alcanzar “un acuerdo que se sienta más
nítido y que se vea con más solidez” [texto 24] El nombre de ese
acuerdo es Confederación, una confederación de naciones enteramente
12
13
(ZAMBRANO, 2004, p. 149).
Cf. A alma ibérica, Pascoaes., Teixeira de, Revista Colóquio/Letras.
Documentos, n.º 1, Mar. 1971, p. 48-57.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
198
independientes: “porque no lo olvidemos nunca!- no se trata ni de
unión ni de federación sino apenas de confederación. Recordémoslo
otra vez, recordémoslo siempre!” [texto 27] “Este bloque ibérico no
podrá existir sino como conjunto de naciones independientes,
enteramente independientes” [texto 30]. Pessoa esboza la idea de una
Confederación ibérica, Confederación de naciones totalmente
separadas salvo exceptuando “(1) una alianza ofensiva y defensiva, (2)
una alianza cultural, (3) abolición de las fronteras de aduanas entre
todos” [texto 31]. Esta es la gran paradoja en la que se funda la
confederación ibérica pessoana: “Sólo separados estamos unidos”.
¿Será también este el lema de la Confederación de almas pessoanas
llamado Fernando Pessoa?
¿Pero qué nos dio la capacidad de hacer renacer el paganismo
trascendental en Iberia? El elemento árabe. Poco se ha valorado
tradicionalmente la atención que Pessoa puso en el pensamiento árabe.
Resulta clave el neoarabismo pessoano para comprender el
neopaganismo y todas las grandes intuiciones estéticas pessoanas. El
elemento árabe es el que dota al grupo civilizacional ibérico de su
identidad propia, nos repite una y otra vez Pessoa. La llegada del
elemento árabe, del Islam, permitió recuperar el fondo común del
espíritu ibérico, el fondo greco-romano del alma ibérica que se había
perdido después de la cristianización. António Mora, filósofo del
neopaganismo, afirma que es precisamente gracias a la emergencia del
espíritu árabe por lo que fue posible desarrollar un espíritu propio y
una identidad propia que se basa, precisamente en la fusión del
objetivismo y el subjetivismo. Ese objetivismo, ese ver las cosas tal
cual son, tan propio del maestro Caeiro, es el elemento que fusionado
con el subjetivismo da lugar al renacimiento del paganismo helénico,
al Regreso de los dioses. La emergencia del paganismo se produjo en
Portugal, en Iberia, por tanto, dice Mora, debido a la especificidad del
“cruce del tipo psíquico cristiano y árabe”, del cristianismo pagano y
del elemento árabe. [texto 36].
El propio Pessoa lo deja muy claro: “No hay profundo
movimiento portugués que no sea un movimiento árabe, porque el
alma árabe es el fondo del alma portuguesa” (PESSOA, 2009, p.229).
La síntesis ibérica expresa “el fondo romano-árabe de nuestra tradición
orgánica; no porque fuimos romano-árabes, sino porque aún lo somos”
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
199
[texto 6] El arabismo trajo consigo la posibilidad de diferenciar e
integrar el alma ibérica y por tanto de alcanzar el paganismo
trascendental: “Es en la medida en que fuimos mantenedores del
espíritu árabe en Europa en que tendremos una individualidad
diferente” [texto 22], “En Iberia el fondo [greco-romano] desapareció
con la cristianización. Cuando llegó el Islam, ese fondo emergió”14
[texto 17]
Especialmente importante parece la cuestión del fatalismo
árabe. ¿Hasta qué punto el fatalismo trágico, propio de lo ibérico, ese
amor fati ibérico, llega a nosotros desde el mundo árabe? En Pessoa
hay algunas ideas embrionarias sobre este asunto: “Llevados así a un
concepto de voluntad divina como fatalidad, los árabes, introdujeron
en su monoteísmo un elemento de evidente origen objetivista” [texto
38] Del mismo modo el rasgo específicamente propio de lo ibérico,
señalado por Pessoa, el carácter soñador, excesivamente imaginativo,
tiene un aroma profundamente árabe: “La síntesis ibérica es enemiga
de la cultura francesa porque la lucidez superficial de los franceses no
se puede casar con los elementos árabes, profundos e intensos, de
nuestra personalidad psíquica, con el elemento soñador, colorido,
incendiado, de nuestro arabismo nativo de hoy” [texto 24].
La intuición sebástica del proyecto pessoano no puede
comprenderse desconectada del iberismo pessoano. Esencialmente
porque el Imperialismo Futuro, el Imperialismo del Espíritu que
Pessoa proyecta y defiende como imperialismo cultural está incluido
en el seno de la voluntad de acción civilizacional ibérica. El propio
Pessoa reconoce que el regreso de D. Sebastião será un regreso “sobre
todas as Hespanhas” y que el nuevo imperialismo debe comenzar por
la “hegemonía intelectual de iberia”15. En la llegada de S. Sebastião
está incluida la reconstrucción de la unidad de Iberia:
14
“Venguemos la derrota que los del Norte infligieron a nuestros mayores los
árabes. Expiemos el crimen que cometimos, expulsando de la península a
los árabes que la civilizaran” [texto 22]
15
[D. Sebastião] “Reinará sobre todas las Españas, porque el nuevo
imperialismo debe comenzar por la obtención, que es fácil e inevitable –
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
200
… la fecha marcada para el Gran Regreso, en que el
Alma de la Patria se reanimará, se reconstruirá la
íntima unida de Iberia, a través de Portugal, se
derrotará finalmente el catolicismo (otro de los
elementos extranjeros que existen entre nosotros y
enemigo radical de la Patria) y comenzará el amanecer
del Quinto Imperio. (PESSOA, 1979, p. 191).
El Imperialismo futuro que se proyecta desde Iberia propone
un nuevo modelo civilizacional que está íntimamente ligado a la
oposición al imperialismo alemán de conquista y al imperialismo de
expansión propio del imperialismo castellano. Se trata de un
Imperialismo no colonial. El Imperialismo debe concebirse entonces
como “la orientación civilizacional en un pueblo; y no, como los
ingleses creen, una manera de tener derecho a lo que es de otros”
[texto 16]. Pessoa distingue tres tipos de Imperialismo; de dominio, de
expansión y de cultura.
El imperialismo cultural, el imperialismo “cuyo punto de
apoyo es la Cultura” [texto 40] es aquél que “busca no dominar
materialmente, sino influenciar, por la absorción psíquica”, aquél que
“busca crear nuevos valores civilizacionales, para despertar a otras
naciones”. Por ello está íntimamente ligado al arte, a la filosofía y
especialmente a la literatura y la lengua. Es un Imperialismo que
precisa del cultivo de la identidad propia de lengua y de los hombres
de genio, en otras palabras de “crear creadores”. Estamos ante un
“Imperio del Espíritu”, ante un “Imperialismo de Poetas” “La frase
[dice Pessoa] no es ridícula sino para quien defiende el antiguo
imperialismo ridículo. El Imperialismo de los poetas dura y domina; el
de los políticos pasa y se olvida, si no recordamos al poeta que lo
cante”.
“Todo Imperio que no está basado en el Imperio Espiritual es
una Muerte de pie, un Cadáver mandando”, y para muestra está el
antiguo imperialismo español y portugués. “La acción civilizacional
como se verá- de la hegemonía intelectual de Iberia” (PESSOA, 2009, p.
135)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
201
del antiguo Portugal y de la antigua España era fallida ibéricamente
pues […] no surgió un imperialismo cultural” y “puesto que separados,
esa acción imperialista resultó incompleta. […] al tener un verdadero
imperialismo, debemos tenerlo conjuntamente, ibéricamente.”. “Deben
desaparecer las colonias portuguesas […] Que el imperialismo sea
nuestra tradición; y no el imperialismo colonialista y dominador”
[texto 28], repite Pessoa.
Hacer de la lengua una patria, una civilización y la búsqueda de la
valoración intelectual de Iberia en el extranjero a través de la actividad
artística e intelectual son las claves del imperialismo espiritual que se
propone desde el seno de la aceptación de la ibericidad en Fernando
Pessoa.
Se trata por tanto de recuperar el rostro perdido y plural de
Iberia como un nuevo modelo de imperialismo cultural, que frente al
imperialismo de lo político y lo económico, devuelve a lo político a su
origen cultural y mítico-literario en eso que me gusta llamar
“refundación mítica de la existencia”, es, sin duda, una apuesta
interesante y necesaria en estos tiempos donde la crisis de identidad
individual, nacional y supranacional está más presente que nunca.
Salvarnos de ese lugar común que nos identifica como latinos
obviando la esencialidad de lo árabe, mientras repetimos el lema
pessoano “No Somos latinos, somos ibéricos”, mientras ahondamos en
la constitución de nuestra identidad compleja y difusa para recuperar
nuestras señas identitarias profundas y distintivas y a la par universales
(pues qué hay más universal que imaginar lo imposible y aceptar el
destino de soñadores) no parece una mala receta.
Al leer, a día de hoy “Todos nosotros, los de aquí –
portugueses, castellanos, catalanes– sólo alcanzaremos nuestra
mayoría civilizacional cuando, confederados en la Iberia, podamos,
instruidos en la desgracia y la experiencia triste de tanto pasado,
afrontar a Europa, otra vez, reconstruir nuestro predominio de los
tiempos en lo que el mundo era nuestro, de otra manera, para otros
fines […]” [texto 23] no podemos dejar de pensar en la actualidad del
proyecto ibérico que se nos presenta. Y lo leemos en diálogo con estas
otras palabras de José Saramago que también nos invitan a buscar,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
202
como el propio texto de Pessoa16, de nuevo a América y no tanto a
Europa por nuestra propia imposibilidad de ser europeos sin dejar de
ser nosotros mismos:
Quiero decir, en fin, que esta Península, que tanta dificultad
tendrá en ser europea, corre el riesgo de perder, en América
Latina, no el mero espejo donde podrían reflejarse algunos de
sus rasgos, sino el rostro plural y propio […] Admitiría que
América Latina quisiera olvidarse de nosotros, sin embargo,
si se me permite profetizar, preveo que no iremos muy lejos
en la vida si escogemos caminos y soluciones que nos lleven
a olvidarnos de ella. (SARAMAGO en MOLINA, 1990, p.
9).
Y estas palabras de Saramago recuerdan esa necesidad de
aproximación con América latina que de algún modo está también en
el proyecto iberista pessoano. Brasil no es una excepción, en este
sentido, y en la perspectiva pessoana aparece muchas veces enfocado
en la necesidad de una aproximación espiritual en el contexto de
aproximación espiritual y cultural que está en la base del iberismo y
también del iberoamericanismo que puede desprenderse fácilmente de
él. Pessoa lo deja intuir, quizá en alguno de los textos donde, con cierta
actualidad y profundidad simbólica habla del Brasil:
A memória de Antonio Conselheiro, bandido, louco e santo,
que, no sertão do Brasil, morreu, corrido por um exercito,
com seus companheiros,sem se render , batendo -se todos,
últimos Portuguezes, pela esperança do Quinto Impe[rio] e da
vinda quando Deus quizesse, d’El -Rei D. Sebast[iao], nosso
Senhor, Imp[erador] do Mundo. (PESSOA, 2011, p. 125).
16
“Dominio espiritual de la América Ibérica” [texto 6] “Dominio espiritual
de las Américas” [texto 22] “América comienza aquí” dice Pessoa al hablar
de la occidentalización de lo europeo, característica propia del grupo
ibérico. [texto 34]
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
203
[...] (1) Não ha separação essencial entre os povos que fallam
a língua portugueza. Embora Portugal e o Brasil sejam
politicamente nações differentes, não são nações differentes,
conteem por sistema uma direção imperial commum, a que e
mister que obedeçam. (PESSOA, 1993, p. 110).
Em primeiro logar, e como já o notou Joao de Castro Osorio
Portugal não e propriamente um paiz europeu: mais
rigorosamente, se lhe podera chamar um paiz atlantico — o
paiz atlantico por excellencia. Alem d’isso, Portugal, neste
caso, quere dizer o Brasil também. Como o imperio, neste
schema, e espiritual, nao ha mister que seja imposto ou
construido por uma so nação: pode sel -o por mais que uma,
desde que espiritualmente sejam as mesmas, que o serão se
fallarem a mesma língua. (PESSOA, 1993, p. 104).
A necessidade de tornar cada vez mais apertados os naturais
vínculos espirituais que nos unem ao Brasil leva a que se não
possa dispensar uma propaganda naquela República.
(PESSOA, 1993, p.181).
A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um
fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O
Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao
Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não
tem direito a impor-me uma religião que não aceito.
No Brasil a chamada reforma ortográfica não foi aceite, nem
ainda hoje, depois de assente em acordo entre os governos
português e brasileiro, é aceite. Quis-se impor uma coisa com
que o Estado nada tem a um povo que a repugna.
(PESSOA, 1993, p. 119).
El proyecto pessoano, por la lucidez, la actualidad y la
profundidad de su diagnóstico, merece estar más presente entre los
autores donde la cuestión ibérica, lejos del más superficial componente
político supone una reflexión profunda sobre el modo de ser y de sentir
de nuestro pueblo (nuestros pueblos) y la necesidad de repensar la
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
204
organicidad de nuestra propia identidad y las almas de otros pueblos
donde queramos buscar con éxito quiénes somos y quiénes queremos
ser, esa Matria de la que tenemos tanta nostalgia y en la que
“unificadamente diversos” para citar a Campos, seremos muchos,
diferentes, para ser más nosotros mismos. También en América.
También en Brasil.
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GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
206
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA EM QUESTÃO: ENSAIO
SOBRE A CEGUEIRA E ENSAIO SOBRE A
LUCIDEZ, DE JOSÉ SARAMAGO
Petar Petrov 1
RESUMO: A condição pós-moderna é vista como um período pósiluminista, uma época de indeterminação anárquica da civilização
ocidental e de decadência dos ideais humanistas, como a liberdade, a
fraternidade, a solidariedade e a razão. São precisamente estes valores
que estão em causa nos dois romances de José Saramago, surgindo
questionados em função de uma postura anti-neo-liberal. Merece
atenção também o modo como são tratadas as componentes
axiológicas, uma vez que a atitude artística do escritor português activa
determinadas estratégias do código literário do pós-modernismo.
Palavras-chave: José Saramago; romance; condição pós-moderna; pósmodernismo.
1. Examinar a problematização da denominada condição pósmoderna nos romances Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a
Lucidez, de José Saramago, implica, antes de mais, referir a teorização
do período de evolução social chamado “pós-moderno”, conhecido
também sob o rótulo de “pós-modernidade”, identificado por alguns
com a nossa contemporaneidade. Recorde-se que o epíteto “pósmoderno” foi utilizado pela primeira vez pelo historiador inglês Arnold
J. Toynbee, nas suas obras da primeira metade do século passado, para
referir uma fase da civilização ocidental que se desenvolvera a partir
de 1875. Na sua perspectiva, trata-se de um período de abandono das
tradições da Era Moderna, cujo início dataria do Renascimento,
afirmando-se no Século das Luzes, para terminar com a Guerra
Franco-Prussiana. Assim, do último quartel do século XIX até finais da
Segunda Guerra Mundial, a época seria “pós-moderna”, marcada por
uma crescente dificuldade de acompanhamento do rápido
1
Universidade do Algarve
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
207
desenvolvimento das novas tecnologias pelas capacidades morais e
políticas da sociedade. Precisando: o advento dessa era perturbaria a
prosperidade e a hegemonia das classes médias ocidentais devido à
ascensão de uma classe operária industrial e ao surgimento da
sociedade de massas. Definido de modo disfórico, o período traduziria
uma indeterminação anárquica da civilização ocidental, em crise e em
risco de desintegração e ruptura (cf. SMART, 1993, pp. 27-28;
CALINESCU, 1999, pp. 121-123).
Em 1959, o sociólogo Wright Mills utilizou o conceito “pósmoderno”, também em sentido negativo, para referir um novo período
histórico pós-iluminista, que pôs fim à “Era Moderna”. Esse
caracterizar-se-ia pelo colapso do liberalismo e do socialismo e
representaria uma época de decadência dos ideais modernos, como a
razão e a liberdade. A relação entre os ideais em causa, segundo Mills,
já não podia ser sustentada porque, na sociedade pós-moderna, o
aumento dos processos de racionalização não se traduzem
necessariamente num aumento de liberdade e de felicidade. Mais
ainda, os dois valores encontram-se em perigo, uma vez que os
pressupostos da modernidade, a objectivar a instauração da ordem, da
certeza e da segurança, estão longe de estar cumpridos (cf. SMART,
1993, pp. 29-30).
Vinte anos mais tarde, já o clássico estudo de Jean-François
Lyotard, intitulado A Condição Pós-Moderna (LYOTARD, s/d),
articula-se à volta do destino epistemológico das ciências humanas. A
questão central tem a ver com o declínio dos “grandes relatos”,
“narrativas mestras” ou “metanarrativas”, devido ao desenvolvimento
das ciência em geral e à pluralização de diversos tipos de pensamento.
Na perspectiva do filósofo francês, os relatos emancipatórios da
modernidade, que articulam uma determinada racionalidade e uma
estrutura de saber utópico, perderam a sua credibilidade, sob o efeito
da industrialização e das novas tecnologias, a partir dos anos 50 do
século XX. O advento da pós-modernidade estaria ligado à emergência
da sociedade pós-industrial e à cultura pós-moderna, a traduzir um
desencanto generalizado e uma radical crise de sentidos em função da
complexificação das estruturas culturais. As cosmovisões totalizantes
do mundo, como as metanarrativas de teor positivista, de ideário
marxista ou de orientação capitalista liberal tinham perdido a sua
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
208
sustentação, dando lugar a “pequenas narrativas” fragmentadas,
particularizadas, heterogéneas e locais.
Recorde-se, entretanto, a teoria de outro pensador que
problematizou a pós-modernidade, o filósofo italiano Gianni Vattimo,
no seu livro O Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na
cultura pós-moderna (VATTIMO, 1987), no qual se ocupa da
chamada
“ontologia
hermenêutica”,
considerando que
a
contemporaneidade está marcada por aquilo que designa de
“pensamento frágil”. Segundo Vattimo, a partir das filosofias de
Nietzsche e Heidegger assiste-se a uma crise universal dos valores
cartesianos e ao enfraquecimento das categorias ontológicas do ser,
isto no contexto da época pós-moderna da segunda metade do século
XX. Daí o surgimento do “pensamento frágil”, forma particular de
niilismo, cujo programa se resume à dissolução da racionalidade
iluminista, ao contrário do “pensamento forte”, conotado com sistemas
ideológicos como o Cristianismo e o Marxismo, entre outros.
Destaque-se, a propósito disto, a frase irónica de Vattimo a sintetizar a
ideia da crise do humanismo na condição pós-moderna: “Deus está
morto mas o homem não está lá muito bem” (VATTIMO, 1987, p. 30).
Como se pode depreender, na perspectiva das teorias referidas, a
pós-modernidade, cujo desenvolvimento se intensifica após a Segunda
Guerra Mundial, é entendida como uma condição sócio-cultural
caracterizada pelo gradual abandono das tradições da modernidade,
devido à emergência da sociedade de consumo ou pós-industrial, ao
extraordinário desenvolvimento das novas tecnologias e à proliferação
de diversos tipos de pensamento. Em consequência, o período é
entendido como pós-iluminista, uma época de desvalorização dos
valores supremos e de decadência dos ideais humanistas, como a
liberdade, a fraternidade, a solidariedade, a razão, a ordem e a
segurança. São precisamente estes os valores que estão em causa nos
romances Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, de José
Saramago, que surgem questionados em função de uma postura
manifestamente materialista e anti-neo-liberal.
Do ponto de vista axiológico, o que está em causa
nos dois romances de José Saramago é a condição humana na
sociedade contemporânea, ou seja, na pós-modernidade
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
209
finissecular, apresentada como carente de valores morais, éticos
e civilizacionais. Assim, a propósito de Ensaio sobre a
Cegueira, o autor tem exposto, por várias vezes, as razões que
o levaram a escrever a narrativa, como acontece numa
entrevista, conduzida por Maria Leonor Nunes, logo após a
publicação do livro, em 1995. Nesta, Saramago sintetiza a ideia
chave do romance na expressão “todos somos cegos da Razão”,
explicando-a do seguinte modo: “ a nossa razão não é usada
racionalmente. Nem sequer nos comportamos como irracionais.
Mas como qualquer coisa que está entre o racional e o
irracional. Como arracionais” (NUNES, 1995, p. 16). Noutra
entrevista de Clara Ferreira Alves, publicada no Expresso, as
mesmas ideias são reiteradas, com a alusão a que se trata de um
romance alegórico e “frontalmente ético”, porque, segundo o
autor, “usamos a razão para destruir, matar, diminuir a nossa
franja de vida. E é essa espécie de indecência do
comportamento humano, orientada pela exploração do outro, da
sede do lucro, da ambição do poder, que conduz à indiferença e
ao alheamento” (ALVES, 1995, p. 82). Para além da cegueira
da razão, tematiza-se também a cegueira relativamente aos
interesses dos outros, como atestam as palavras do escritor num
dos diálogos com Carlos Reis:
“O que eu critico é a facilidade com que o ser
humano se corrompe, com que se torna maligno. (…)
Falámos muito ao longo destes últimos anos (…) dos
direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de
uma coisa muito simples, que são os deveres humanos,
que são sempre deveres em relação aos outros,
sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro,
essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto
se tem algum sentido numa situação ou no quadro de
existência de uma espécie que se diz racional. Isto, de
facto, não posso entender, é uma das minhas grandes
angústias. O Ensaio sobre a Cegueira tem alguma parte
na expressão dessa angústia.” (REIS, 1998, p. 150)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
210
A “angústia” de José Saramago concretiza-se, de facto, no seu
romance, cujo enredo representa uma história sui generis sobre o surto
de uma “cegueira branca”, epidemia que contamina parte da população
de uma cidade e de um país não identificados, num tempo histórico
indefinido mas que, pelos indícios narrativos, se conclui tratar-se de
uma sociedade moderna da actualidade. Estruturada em dezassete
capítulos, não numerados, a composição pode ser dividida em três
partes: a primeira, constituída por três capítulos, relata os primeiros
casos de cegueira e a sua rápida propagação; a segunda conta com
nove capítulos nos quais são apresentadas as condições em que os
cegos e os suspeitos de contágio convivem, encarcerados num
manicómio por decreto do governo; a última, que se inicia no capítulo
treze, incide sobre a saída do asilo, a procura de meios de subsistência
e a progressiva recuperação da visão por parte dos cegos. Na trama
participam várias personagens, todavia o núcleo central é composto
por sete, seis cegas e uma que consegue ver, sem nomes próprios, que
o narrador trata por o primeiro cego e a sua mulher, o médico, a
mulher do médico, o velho da venda preta, a rapariga dos óculos
escuros e o rapazinho estrábico. A mulher do médico é a única que não
perde a visão e a sua função consiste em servir de guia, encaminhar e
proteger os restantes. É por intermédio dela que o leitor toma
conhecimento de um mundo deplorável, caótico e destituído de
atitudes humanas. Atente-se na segunda parte do romance que fornece
o quadro de desumanização ao qual estão sujeitos os infectados pela
cegueira, durante o seu internamento no manicómio. O que se
questiona, no caso, são as atitudes e decisões autoritárias tomadas pelo
governo, aparentemente democrático, que não chega a facultar as
mínimas condições de existência durante a clausura. Tematiza-se,
deste modo, a marginalização, a segregação, a discriminação e a
exclusão sociais, realidades que persistem na nossa pós-modernidade.
O ambiente em que vivem os cegos, por exemplo, é francamente
desolador: falta de água e de alimentação, imundície nas camaratas e
nos espaços comuns, degradação física e moral, fome e promiscuidade,
o que leva a comportamentos agressivos e repugnantes numa tentativa
de sobrevivência, a estados de desespero próximos da loucura, a
angústias e mortes. Recordem-se, quanto a isto, os seguintes episódios:
os litígios surdos entre os cegos que representam classes sociais
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
211
distintas, no capítulo quarto; as condições sub-humanas às quais estão
sujeitos os internados e a morte de um cego pelos soldados que
escoltam o manicómio, no capítulo quinto; as condições degradantes
de existência, a impotência e a violência que acompanham o dia-a-dia
dos cegos, bem como os conflitos abertos no seio dos reclusos, nos
três capítulos seguintes; a formação do grupo dos malvados, que
exigem dos restantes alimentação, dinheiro e sexo, e o inevitável
conflito com os habitantes da camarata dos honrados, nos capítulos
nove e dez; a primeira violação e a morte de uma mulher pelos
malvados, no capítulo onze; a segunda violação, a revolta e a morte do
chefe dos malvados pela mulher do médico, no último capítulo do
livro.
Se a segunda parte do romance aposta na exploração de
episódios atrozes, conotados com situações de crueldade, barbárie e
injustiça, a terceira apresenta a deambulação das sete personagens
pelas ruas da cidade, caracterizada por um pleno estado de decadência,
onde impera a violência, a fome, a miséria moral e social. Para o
reforço da informação semântica relacionada com a desumanização
generalizada no espaço citadino em autêntica degradação, uma espécie
de cemitério, é introduzida a figura do “cão das lágrimas”, cujo
comportamento contrasta com o ambiente desolador que oprime as
personagens e simboliza, no fundo, os valores humanos ausentes no
contexto do mundo actual pós-moderno.
Assim, do ponto de vista temático, desenvolve-se a ideia de que
a conjuntura social, pano de fundo da história de Ensaio sobre a
Cegueira, sofre de uma profunda crise de valores, uma vez que a
dignidade humana, a solidariedade e a fraternidade, por exemplo,
cedem lugar a atitudes comodistas e egoístas. Como assinalou Urbano
Tavares Rodrigues, o romance
“pretendia demonstrar que cegos empurrando cegos
atropeladamente caminham para um precipício, ou seja,
que o neo-liberalismo económico globalizado
conduziria a humanidade para um cataclismo de
insondáveis resultados, se ninguém abrisse os olhos para
mostrar aos outros que essa rota de egoísmo, erros de
injustiça é sem saída.” (RODRIGUES, 2004, p. 20)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
212
De facto, a actuação dos cegos, na sua generalidade, perante as
atitudes totalitárias dos agentes do governo e dos malvados
exploradores, pode ser interpretada como uma alegoria da sociedade
pós-moderna que promove o individualismo e a alienação. Sujeitam-se
às condições que lhes são impostas sem contestação, aceitam
passivamente o abominável. A propósito disto, recorde-se a mensagem
do narrador quando afirma “não há cegos mas cegueiras” e as
seguintes frases da mulher do médico, em diálogo com o seu marido,
no final do romance: “Penso que não cegámos, penso que estamos
cegos. Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” (SARAMAGO,
1995, p. 310). São palavras que remetem para a ideia de que a falta de
visão equivale à ausência de razão e clarividência dos homens
relativamente ao mundo que os rodeia. Mensagem um tanto pessimista,
se não fosse o papel da mulher do médico, cuja visão é utilizada pelo
narrador para descrever e desmistificar o status quo da sociedade
vigente. Num universo cruel, imoral e irracional, esta personagem,
certamente a protagonista da história, é a única que se mantém fiel aos
seus ideais, conotados com a preservação dos valores éticos e morais.
Transforma-se, assim, em símbolo de esperança e de lucidez, uma vez
que, detendo o poder da visão, detém também o poder da razão.
3. O funcionamento das sociedades pós-modernas é também
objecto de interesse de José Saramago na narrativa romanceada
intitulada Ensaio sobre a Lucidez, publicada em 2004, cujo enredo é
prolongamento da trama do romance anterior. Segundo Ana Paula
Arnaut, por exemplo, a obra “também poderia designar-se «Ensaio
sobre o desperdício da humanidade», tomo II. À semelhança do
romance anterior, cujos temas e personagens retoma (…), do que se
trata é de denunciar a irracionalidade, melhor será dizer as
irracionalidades” (ARNAUT, 2008, p. 46).
As irracionalidades em causa relacionam-se, a meu ver, com o
tema da inoperância dos sistemas democráticos, mais concretamente
com os meandros do poder das democracias de orientação neo-liberal.
A propósito disto, José Carlos de Vasconcelos, num artigo publicado
no Jornal de Letras, Artes e Ideias, assinala que o romance é
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
213
“uma poderosa fábula sobre a degradação ou o
apodrecimento da democracia nas actuais práticas de
regimes democráticos, quando comandados por partidos
ou pessoas sem princípios nem valores. Depois da
Cegueira, vem a Lucidez: ao branco de quem não vê
sucede-se o de quem, por ver, vota em branco, como
forma de protesto pela “democracia” que lhe dão. Uma
fábula, pois, como sublinha o escritor, “sendo fábula, é
uma sátira, e sendo uma sátira, é uma tragédia.”
(VASCONCELOS, 2004, p. 14)
A mencionada tragédia é concretizada numa história insólita
sobre acontecimentos relacionados com a eleição do presidente da
câmara na capital de um país democrático, não identificado, e as
respectivas consequências do escrutínio. Estruturado em XIX
capítulos, não numerados, o romance inicia-se com a apresentação dos
resultados das eleições: na primeira volta, mais de 70% de votos em
branco e, na segunda, 83%, facto que obriga as instâncias do poder a
decretar o “estado de excepção”.
A partir do capítulo três e até ao décimo, as iniciativas do
governo multiplicam-se no sentido de se descobrirem os responsáveis
pelo ocorrido durante os escrutínios. No entanto, os métodos utilizados
para o alcance dos objectivos não levam em conta os meios, ou seja,
não se fundamentam em princípios democráticos. Assim, com o
avançar da intriga, assiste-se a uma gradual perda de valores éticos, os
governantes assumem atitudes de natureza autoritária e, perante a
ameaça ao modelo político, tentam, a todo o custo, preservar o poder.
Tomem-se como exemplo os seguintes episódios, que atestam a forma
terrorista que o governo põe em prática para encontrar os culpados: no
capítulo três, desencadeia-se uma operação de espionagem, com a
infiltração de agentes da polícia entre a população, para se conhecerem
as razões do ocorrido; no quarto, o ministério do interior, recorrendo
ao detector de mentiras, resolve interrogar quinhentos suspeitos
caçados nas filas de voto e decreta o estado de sítio; no capítulo
seguinte, concretiza-se a retirada do governo, do exército e de todas as
forças policiais para outra cidade, deixando a capital insurrecta
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
214
entregue a si mesma, na expectativa que os “brancosos” se arrependam
dos seus actos; no capítulo sete, os governantes decidem obrigar os
trabalhadores da limpeza da capital sitiada a fazer greve, no intuito de
provocar reacções violentas por parte da população e, perante o
fracasso desta medida, homens do ministério do interior são
incumbidos de encenar um atentado à bomba, que é atribuído aos
cabecilhas dos “brancosos” e provoca a morte de vinte e três pessoas.
A prepotência do poder não se esgota com os acontecimentos
dos episódios referidos porque, a partir do capítulo décimo primeiro e
até ao final do romance, com a entrada em cena das personagens de
Ensaio sobre a Cegueira, está-se perante um novo ciclo de terrorismo
de Estado. Este inicia-se com a divulgação do teor de uma carta,
dirigida ao presidente da república e subscrita pelo primeiro cego do
romance anterior, na qual se aponta para uma possível relação entre o
facto de a mulher do médico não ter cegado e a maciça votação em
branco que criou a crise política. Seguem-se
interrogatórios
sucessivos, da responsabilidade de um comissário e dois agentes
policiais, com destaque para os que envolvem a mulher do médico.
Com base nas investigações, depreende-se que os governantes, na
impossibilidade de descobrir as razões do fracasso eleitoral, tentam
desesperadamente encontrar um bode expiatório da situação que o país
atravessa. Para tal, recorrem à comunicação social no sentido de
manipular a opinião pública, instigando a população a atribuir a culpa
dos votos em branco à mulher do médico. Ideia absurda na perspectiva
do próprio comissário que, num acto de lucidez, chega a denunciar a
estratégia do governo. Consequentemente, a sua atitude irá conduzir ao
final trágico do romance, com o assassinato, a mando do ministro do
interior, do comissário, da mulher do médico e do “cão das lágrimas”,
o símbolo dos valores humanos da narrativa anterior.
Do ponto de vista injuntivo, o desfecho da intriga veicula a ideia
de um certo pessimismo autoral, uma descrença no potencial
humanista dos actuais regimes que se rotulam de democráticos. De
facto, como observou Urbano Tavares Rodrigues,
“É já muito aceite, sobretudo pelas mais jovens
gerações, a ideia de que o modelo actual de democracia
representativa, especialmente quando há maioria
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
215
absoluta nas eleições, permite actuações praticamente
ditatoriais dos governos e afasta-se da essência do
espírito democrático, uma vez que reduz a voz das
minorias a ecos sem consequências e os grupos
parlamentares dos partidos no poder se transformam
muitas vezes em blocos de interesses e benefícios
particulares, económicos e sociais, ignorando as
aspirações de quem os elegeu.” (RODRIGUES, 2004, p.
20)
É este modelo democrático que surge problematizado por José
Saramago no seu romance, cujo enredo assenta numa manifesta
desconfiança relativamente ao funcionamento das sociedades pósmodernas. Deste modo, a narrativa representa uma denúncia dos
sistemas repressivos de orientação neo-liberal que não respeitam a
diferença de opinião ou outras orientações político-ideológicas dos
seus cidadãos. Assim, à intolerância e à prepotência do regime
retratado, a população responde optando por um protesto silencioso,
afluindo maciçamente às urnas para depositar o seu voto em branco.
Este facto pode ser interpretado como um sinal de esperança,
corroborado também pela tomada de consciência de algumas
personagens da narrativa no que diz respeito aos mecanismos
autoritários utilizados pelo poder. Refiro-me ao comissário da polícia
que se recusa a obedecer às ordens do ministro do interior, defendendo
a ideia de que a mulher do médico não deve ser responsabilizada pelo
sucedido nas urnas. Do igual modo, o presidente da câmara
desobedece às ordens, do mesmo ministro, de promover a greve do
pessoal do lixo, que causaria o caos na cidade, demitindo-se do cargo.
Mas há mais dois casos dignos de referência: numa reunião do
conselho de ministros, na qual se discute a hipótese de se construir um
muro à volta da capital, isolando-a do resto do país, os ministros da
cultura e da justiça, discordando frontalmente da ideia, apresentam as
suas demissões.
Trata-se de personagens que evoluem ao longo da diegese,
individualizando-se pelas atitudes tomadas e pela coragem com que
afrontam o instituído. Superando eventuais conflitos entre o dever
moral e o profissional, põem-se do lado da razão, alcançando a lucidez,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
216
uma vez que recusam pactuar com a injustiça e a arrogância dos seus
superiores (cf. BORGES, 2010, pp. 168-172). Veja-se, a este
propósito, o comentário do narrador acerca da consciencialização do
comissário pouco antes do desfecho da intriga:
“é outro homem este que avança por estas
ruas, é outra cabeça que vai pensando, vendo
claro o que antes era obscuro, emendando
conclusões que antes pareciam de ferro e agora
de desfazem entre os dedos que as apalpam e
ponderam (…).” (SARAMAGO, 2004, p. 316)
Por seu lado, o ministro da cultura chega a acusar frontalmente
os seus colegas do governo de continuarem cegos, na sequência da
cegueira generalizada do romance ensaio anterior, e o ministro da
justiça, contrariando as opiniões dos ministros do interior e da defesa,
considera o voto em branco “como uma manifestação de lucidez por
parte de quem o usou” (SARAMAGO, 2004, p. 176).
4. Se o contexto sócio-político dos países democráticos na época
pós-moderna surge questionado nos dois romances de José Saramago,
merece alguma atenção também o modo como são tratadas as
componentes axiológicas pelo escritor português. Trata-se do exame de
determinadas estratégias do código literário do pós-modernismo,
entendido este como um estilo estético cujos traços reflectem o clima
cultural que se vive na pós-modernidade.
Recorde-se que a designação “pós-modernismo” foi utilizada
pela primeira vez no contexto geográfico hispano-americano por
Federico de Onís na Introdução à Antologia de la Poesia Española e
Hispanoamericana (1882-1932), publicada em Madrid, em 1934. Após
um hiato de algumas décadas, a partir do início da década de 70 do
século passado é que a periodização do pós-modernismo literário passa
a ser objecto de atenção mais sistemática da crítica académica,
primeiro nos Estados Unidos da América e a seguir na Europa.
Observando o que se escreveu sobre o assunto nos últimos quarenta
anos, pode-se chegar à conclusão de que a questão continua na ordem
do dia, ou seja, não há consenso entre os teóricos relativamente à
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
217
periodização e à definição da estética pós-modernista. No entanto, com
base nos diferentes contributos, é possível distinguir duas posições
opostas: uma a sugerir uma ruptura mais ou menos radical entre o
modernismo e o pós-modernismo, a outra a defender a ideia de que o
pós-modernismo é uma configuração em continuidade com o
modernismo.
Em meu entender, a dicotomia das posições relaciona-se com
uma questão central sobre a qual os críticos não conseguem chegar a
uma conclusão unânime: considerar ou não as vanguardas históricas
como parte da estética do período modernista. Alguns teóricos norteamericanos, por exemplo, excluem o espírito vanguardista do alto
modernismo anglo-saxónico, vendo-o como dominante somente no
contexto do pós-modernismo dos anos 50 e 60. Para outros, a
dimensão futurante das vanguardas identifica-se com algumas
propostas modernistas na Europa e na América do Sul, como
aconteceu com os modernismos português e brasileiro, por exemplo.
Sem entrar em detalhes sobre a problemática, recupero, por agora, a
minha conclusão sobre uma eventual periodização e caracterização do
pós-modernismo, com base nas propostas de teóricos como I. Hassan,
H. Bertens, M. Calinescu, D. Fokkema, K. Varga, B. McHale, L.
Hutcheon, M. Köhler e Gulherme Merquior.
Assim, nos anos 50 e 60 teríamos a fase do neomodernismo ou
pós-modernismo vanguardista que se traduz na amplificação de certos
traços do modernismo tardio, tais como: a) experimentalismo, pela
“rejeição das hierarquias discriminadoras” ou descanonização
genológica; b) arquiludismo, espécie de anarquia criadora ou
“carnavalização”; c) fragmentação textual, com incidência na violação
do tempo cronológico; d) valorização da linguagem, pela “ênfase
posta no código”, “auto-reflexão” e “auto-consciência”. Já na fase
posterior, situada pela crítica nos anos 70, 80 e 90, o pós-modernismo
apresenta duas vertentes, pós-estruturalista e neo-conservadora que,
grosso modo, muda de paradigma neomodernista pelo: a) desgaste do
experimentalismo, devido a “eclipse das vanguardas” e surgimento do
revivalismo traduzido no retorno a processos experimentados e formas
definidas; b) regresso ao real, pelo resgate do sentido que assume, em
alguns casos, a forma de um “micro” ou “hiper-realismo alegórico ou
metonímico”; c) regresso à narratividade, com recuperação da intriga
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
218
ou “renarrativização”, com tendência de conjugação da literatura
erudita com géneros de massa, como o romance policial; d) utilização
deliberada da intertextualidade da paródia e do pastiche, pelo recurso
ao romance histórico que actualiza/reactualiza o passado à luz do
presente (cf. PETROV, 2000, pp. 291-292).
Das características apresentadas, pelo menos cinco me parecem
estar presentes na tessitura dos dois romances de José Saramago.
Refiro-me, em primeiro lugar, à mais evidente: a aposta na
narratividade que se concretiza na arquitectura de histórias bem
delineadas, com núcleos semânticos dispostos numa sucessão de causa
e efeito. O encadeamento das acções, neste caso, distancia-se dos
propósitos neo-vanguardistas que privilegiam a fragmentação mediante
a activação da chamada desconstrução espácio-temporal. Deste modo,
o leitor não é desafiado a reconstruir ou reordenar eventos, o acto
hermenêutico é facilitado e a história é fruída sem percalços.
Outro traço típico da estética pós-modernista é a descanonização
genológica, ou seja, o autor apresenta uma narrativa romanceada que
se quer ensaio. De facto, a dimensão ensaística nos dois romances de
José Saramago consubstancia-se em forma de exercícios reflexivos
relacionados tanto com aspectos das componentes semânticas, como
com o acto de criação literária. A metatextualidade, por exemplo, está
orientada no sentido de estabelecer diálogo com o leitor, desvendandolhe as técnicas de escrita, cuja função é sublinhar a ficcionalidade do
relato. Estratégia tipicamente pós-moderna, a metaficção questiona as
relações entre o processo narrativo e a realidade, contribuindo
decisivamente para a auto-representação da literatura. Quanto à
informação axiológica, as inúmeras intromissões dos enunciadores
omniscientes têm por finalidade elucidar o narratário sobre
determinados eventos, performance de personagens ou conjunturas
políticas e sociais. Trata-se de comentários de foro subjectivo que
veiculam posições ideológicas de distanciamento interessado
relativamente ao retratado. Assim, os apartes judicativos do narrador
de Ensaio sobre a Cegueira questionam a condição humana num
contexto marcado por violência explícita ou latente e por uma cegueira
consciente. Relativamente ao enunciador de Ensaio sobre a Lucidez, as
suas considerações sarcásticas e irónicas desmascaram as intrigas e os
métodos dantescos dos governantes das sociedades democráticas pósGUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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modernas. Note-se também que a ironia é largamente utilizada para a
desdramatização de certos acontecimentos que surgem veiculados por
um registo hiper-realista, outro traço do código literário do pósmodernismo. A violência verbal e a linguagem cruel, disfémica e até
obscena moldam uma espécie de retórica do excesso e estão presentes
na descrição do aviltamento dos cegos no manicómio, no primeiro
romance ensaio, e das atrocidades dos episódios que terminam com as
mortes gratuitas, no segundo. Acrescente-se outra atitude literária pósmoderna: a activação da chamada polifonia, técnica de exposição que
consiste na mistura de diversas vozes narrativas e na qual cabem, em
simultâneo, a narração, os comentários e as descrições da
responsabilidade do enunciador, bem como os diálogos mantidos pelas
personagens que actuam nas histórias. Do ponto de vista ideológico, a
estratégia em causa enfatiza a diversidade e o confronto de opiniões,
consciências e cosmovisões acerca do representado. Por fim, a
dimensão alegórica dos enredos dos dois romances do escritor
português é mais uma característica do código literário do pósmodernismo. No dizer de Isabel Pires de Lima a propósito de Ensaio
sobre a Cegueira, e que me parece extensível também à trama da
segunda narrativa, a alegoria, “pelo seu carácter dual” (…) é um
sistema de relação entre dois mundos” (LIMA, 2000, p. 24), ou seja,
remete para “um mundo possível, alternativo ao mundo actual, que o
leva a abandonar as leis deste último e a sua enciclopédia e a adoptar
temporariamente outra perspectiva ontológica, ou melhor, mergulhar
numa indeterminação ontológica de tipo pós-moderno” (LIMA, 2000,
p. 22).
Pode-se concluir, assim, que, para a problematização da condição
pós-moderna em Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez,
José Saramago recorre a estratégias retóricas pós-modernas, mas uma
questão continua em aberto: será que se trata de romances pósmodernos?
ABSTRACT: The postmodern condition is usually seen as a postEnlightenment period, an age of anarchic indetermination of Western
civilization and of decay of humanistic ideals such as liberty,
fraternity, solidarity and reason. These are precisely the values at stake
in the two novels of José Saramago, values that are questioned from an
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220
anti-neo-liberal perspective. The way the axiological components are
treated also deserves special attention, as the artistic attitude of the
Portuguese writer activates certain strategies of the literary code of
postmodernism.
KEYWORDS: José
postmodernism.
Saramago;
novel;
postmodern
condition;
REFERÊNCIAS:
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LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Lisboa,
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REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa, Caminho, 1988.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 17 de Março de 2004.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
222
POÉTICA CORPORAL E ERÓTICA VERBAL:
A ESCRITA DE JOSÉ SARAMAGO
Teresa Cristina Cerdeira1
“A relação entre erotismo e poesia é tal que se
pode dizer, sem afetação, que o primeiro é
uma poética corporal e a segunda, uma erótica
verbal. Ambos são feitos de uma oposição
complementar. A linguagem – som que emite
sentido, traço material que denota as ideias
corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz
e evanescente: a sensação; por sua vez, o
erotismo não é mera sexualidade animal – é
cerimônia, representação. O erotismo é a
sexualidade
transfigurada:
poesia.
A
imaginação é o agente que move o ato erótico
e poético. É a potência que transfigura o sexo
em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e
metáfora. A imagem poética é o abraço de
realidades opostas e a rima é cópula de sons; a
poesia erotiza a linguagem e o mundo, porque
ela própria, em seu modo de operação, já é
erotismo. [...] A poesia irrompe a comunicação
como o erotismo, a reprodução”.
Octávio Paz2
Ao citar explicitamente no título deste ensaio a definição de
erotismo dada por Octávio Paz em A dupla chama, pretendo enunciar
1
UFRJ / CNPq. É professora de Literatura Portuguesa da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pesquisadora do CNPq, com tese de Doutoramento sobre
José Saramago – Entre a história e a ficção, uma saga de portugueses. Lisboa,
Dom Quixote, 1987.
2
Octávio Paz. A Dupla Chama: amor e erotismo. SP, Siciliano, 1995. p.1213.
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mais do que a presença do tema do erotismo na escrita de José
Saramago, o que é, por si só, terreno fértil mas já amplamente
revisitado, pois que vem necessariamente acoplado a outro não menos
recorrente que é o do lugar ocupado pela mulher como personagem
motriz das suas narrativas. Mesmo onde menos se esperaria o fulgor
de uma presença feminina – refiro-me muito especialmente ao
romance Levantado do chão –, essa épica campesina sobre a luta
ancestral pelos direitos do trabalhador do campo, até o seu último
romance – Caim – que evoca mais uma vez o enfrentamento entre o
homem e Deus, numa fábula nada ortodoxa sobre a origem da criação,
há sempre uma mulher a apontar caminhos novos, a desinstalar
preconceitos, a inaugurar liberdades.
Contudo, ao lado desse evidente conteúdo erótico, agita-se,
também, na malha textual, um erotismo da linguagem, que está
presente não apenas nas cenas propriamente eróticas mas também no
gozo mais amplo que subjaz à invenção da escrita e que apela às mais
variadas estratégias a fim de corromper a língua por dentro da língua,
desalojando-a dos compromissos da comunicação, ali também
presentes mas numa escala inversa de prioridade, de modo a fazer
desse discurso um acontecimento de linguagem, tornando-o numa
camada opaca pela qual não podemos passar impunemente, com
aquela rapidez de quem deseja pragmaticamente chegar ao fim para
ver revelado um sentido.
Em literatura estamos sempre para além do sentido. Ao
aproximar erotismo e poesia, Octávio Paz formulava, na economia de
uma definição, a garantia de o verbo poético possuir uma dinâmica
própria que ultrapassa de longe os limites impostos pela língua
gregária, pela língua da comunicação. No avesso de uma vocação não
polêmica da língua consensual, feita de redundâncias que garantem a
transmissão eficiente da mensagem, precisa nas informações que
veicula, o corpo textual - corpo sensível da literatura - se configura
como uma camada densa de significados sempre novos, sempre em
estado de metamorfose, em que o peso do significante desdobra ao
infinito a objetividade e a unicidade dos significados, de tal modo que
o que era signo arbitrário torna-se, cratilianamente, signo motivado,
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224
palavra que é a coisa, ao menos em metáfora. De dentro da norma, de
dentro da lei, de dentro da codificação da língua, a literatura emerge para citar a Aula de Barthes - como esquiva, trapaça e logro –
palavras que ganham valor de oximoro quando aliadas aos adjetivos
salutar e magnífico3, que as relançam num patamar outro que o
previsto pela lógica, pela doxa, pelo senso comum. O trabalho de
criação textual deixa de ser, então, uma mera inquirição sobre o
sentido, porque é na materialidade da linguagem, no seu peso, na
consistência do significante que as significações se constroem. A esse
trabalho que se opera com a língua, mas também contra a língua, de
modo a fazê-la experimentar continuamente o novo, chamamos-lhe
poesia, verbo erotizado, ou em estado de tensão erótica. Não se trata,
pois, de lidar apenas com significados eróticos, mas com o corpo
erotizado da língua. Trabalho de escritura. Domínio do literário.
Só um recorte de pequenas cenas dos romances de José
Saramago permitiria, à guisa de amostragem, vislumbrar essa
encenação do jogo erótico da linguagem que se pode reconhecer
através de estratégias que brutalizam a sintaxe dando corpo sensível
ao significante. Nesse caso, a construção inesperada sobressalta a
leitura antes mesmo de atrair nosso compromisso de leitores para uma
também necessária reocupação semântica: elipses, montagens, métrica
que invade a prosa com os ecos da poesia, reiterações anafóricas,
supressão da pontuação canônica. É do texto de Costa Lima o eco
destas reflexões:
Assim se dá toda vez que, diante de uma formulação ou
mesmo pela posição de uma única palavra, suspendemos sua
decodificação – isto é, a pergunta por seu sentido – e nos
deixamos ocupar pela própria configuração conseguida. A
experiência estética implica tomar-se a sintaxe como espera e
3
“Cette tricherie salutaire, cette esquive, ce leurre magnifique qui permet
d’entendre la langue hors pouvoir, dans la splendeur d’une révolution
permanente du langage, je l’appelle pour ma part: littérature .” BARTHES,
Roland. Leçon. Paris, Gallimard, 1978. p.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
225
intervalo que, provisória e contingencialmente, antecede a
reocupação semântica.4
A literatura como textualidade exige pois essa espera e esse
intervalo porque inaugura um outro sentido para o tempo,
comprometendo consequentemente o processo de leitura. Como o
amante, o leitor tem que saber esperar sem a pressa que o levaria a
desistir diante da demora do outro5, ou a saltar o que não parece
imediatamente necessário, funcional, pragmático.
Alguns fragmentos lidos nesse compasso frutuoso de espera
poderão dar conta da experiência de gozo na linguagem. De
Levantado do chão elejo, com aparente arbitrariedade, o corte de um
capítulo e uma metáfora em fio. Este romance, bem o sabemos,
acompanha o processo de amadurecimento político do campesinato
alentejano e, nesse contexto, o seu herói, João Mau-Tempo, depois de
confessar a Faustina, sua mulher, o desconforto moral de se ter
deixado levar a contragosto a Elvas, pelos patrões, para um comício
contra os republicanos espanhóis, adormece, tem um sonho
freudianamente revelador da sua situação de oprimido – vê-se a ele,
um Mau-Tempo, ironicamente perseguido por um senhor a cavalo “e
o cavalo, é a única coisa que nesse sonho sei, chama-se Bom-Tempo,
afinal os cavalos têm vida longa” – , até que a mulher o vem despertar
dizendo: “Acorda, João, que são horas, isto diz a mulher, e no entanto
ainda é noite fechada”(LC, p.97). E o capítulo simplesmente se
encerra nesse aparentemente simples e unívoco chamamento ao
trabalho da ceifa.
4
Luis Costa Lima, Limites da voz, I, 1993. p.137.
5
“‘Estarei enamorado?’ - Claro que sim, já que espero.’O outro, este, nunca
espera. Às vezes, quero bancar aquele que não espera; tento me ocupar com
outra coisa, chehar atrasado; mas, nesse jogo, sempre perco; faça o que fizer,
acabo sempre ocioso, pontual, adiantado mesmo. A identidade fatal do amante
nada mais é que: sou aquele que espera”. Roland Barthes, Fragmentos de um
discurso amoroso, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 164
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226
O capítulo seguinte começa, contudo, de maneira inusitada, o
que obriga o leitor, pelo estranhamento sintático que aí se configura, a
uma reconsideração do significado da informação cênica anterior.
Outros, porém já se levantaram, não no sentido próprio de
quem suspirando se arranca ao duvidoso conforto da
enxerga, se a há, mas naquele outro e singular sentido que
é acordar em pleno meio dia e descobrir que um minuto
antes ainda era noite, que o tempo verdadeiro dos homens
e o que neles é mudança mão se mede por vir o sol ou ir a
lua, coisas que afinal só fazem parte da paisagem […]
(LC, 99)
Ora, o intervalo que a sintaxe surpreendente dessa passagem
revela ao seu leitor advém de uma quebra estrutural, nem sequer de
um período, nem sequer de um parágrafo mas, para o caso, de um
capítulo. E essa estranha quebra, que engendraria nos espíritos
cartesianos mais ortodoxos um desconforto de leitura pelo fato de o
capítulo iniciar-se por uma adversativa (“porém”) - sem que a oração
que contém a ideia a que esta se oporia se faça evidenciar in
praesentia -, resulta entretanto em multiplicadora de significados. O
que sucede é que a leitura nos obriga a subverter a ordem tradicional
que privilegia uma semantização interna dos capítulos, que
consensualmente entende uma autorregulação no que tange ao
fechamento semântico que cada um deles guardaria, para ir buscar na
página anterior, melhor dizendo, no capítulo anterior, a referência que
ali parece faltar. É então que retrospectivamente percebemos que, se
para João Mau-Tempo “ainda é noite fechada” (o que significara a
princípio tão somente que ele tinha sido obrigado a acordar demasiado
cedo para trabalhar, antes mesmo do nascer do sol) para os “outros” –
um grupo de quatro rapazes que trabalham na ceifa do trigo e que
esboçam, no espaço da repressão, um primeiro gesto de rebeldia
concreta contra o ritmo aviltante do trabalho comandado por uma
máquina debulhadora – para eles, repito, esse tempo da “noite” já não
existe, fato que descobrem aliás “em pleno meio dia”, que é quando o
sol escaldante lhes faz perceber que estavam expostos a um excesso de
dor que não podiam nem deviam suportar. Estamos longe – e o
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
227
narrador o registra – do sentido literal da temporalidade, para aceder
ao mundo metafórico em que noite e dia coincidem agora com os
sentidos de alienação e consciência.
A metáfora em fio, que vai de “acordar” , “ainda é noite
fechada”, “porém já se levantaram”, “acordar em pleno meio dia” até
“descobrir que um minuto antes ainda era noite”, desconcerta qualquer
possibilidade de assumir tais referências como meros dados da
“paisagem”, notações do tempo físico, e obriga a aprender, com o
narrador, que o processo de desalienação chega diversamente para
cada um, até que soe a grande festa da revolução agrária, um ano após
o 25 de Abril, ela que, muito coerentemente com aquele fio
metafórico já prenunciado, virá metaforizada também por uma
referência temporal: “Este sol é de justiça. Queima e inflama a grande
secura dos restolhos”(LC, p. 364).
Passando ao Memorial do Convento, a cena eleita é a que
narra, em elipse, o primeiro encontro de amor entre Baltasar e
Blimunda. Nada que se pareça, por conta dessa elipse, com uma
economia de tensão erótica ou como um desvio de pudicícia a deixar
apenas sugerido o que não foi narrado. Ao contrário, a cena não
descrita mas perfeitamente inferida pelo sintagma “já então” é o ápice
de um encontro de silêncio e fala, em claro-escuro, em que não apenas
os gestos de “pôr lenha na fogueira que esmorecia”, espevitar “o
morrão da candeia que estava comendo a luz” mas também as
palavras de oferta da casa e da cama por Blimunda a Baltasar – “Se eu
ficar, onde durmo, Comigo” –, tudo convoca o lugar do desejo e da
experiência amorosa que acontece, afinal, em não mais de três linhas:
“Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou
Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se
tornara muito mais velha” (MC, p.57 - negrito nosso). A elipse não é,
portanto, recusa de narrar, mas recusa da redundância. É antes
concentração diegética, exigência de reconsideração mais ampla da
cena do encontro dos dois personagens que se iniciara já, de certo
modo, desde o ritual de entrada metafórica de um no corpo do outro,
por decisão explícita de Blimunda:
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
228
Blimunda levantou-se do mocho, acendeu o lume na
lareira, pôs sobre a trempe uma panela de sopas, e quando
ela ferveu deitou uma parte para duas tigelas largas que
serviu aos dois homens, fez tudo isto sem falar, não
tornara a abrir a boca depois que perguntou, há quantas
horas, Que nome é o seu, e apesar de o padre ter acabado
primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para
se servir da colher dele, era como se calada estivesse
respondendo a outra pergunta, Aceitas para a tua boca a
colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o
que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e
tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e
como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada,
Então declaro-vos casados. (MC, 56)
O ato de comer, a escolha da colher de Baltasar para a sua
boca, o gesto repetido de penetração oral são alegorias da doação dos
corpos que, na resposta hipotética a um discurso que se tivesse travado
entre Blimunda e o Padre Bartolomeu, recuperam em metáfora o
“sim” da cerimônia ortodoxa do casamento, numa voluntária
transgressão que, contudo, continua ainda a referir os elementos de
base da ortodoxia sacramental: a confirmação do gesto – “aceitas”,
“sim” –, numa mesma necessária reciprocidade: “fazendo seu o que
era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele”. Tudo lá está sem
estar, fundamento possível da heresia, palavra aqui tomada em seu
sentido primitivo, que antecede a apropriação religiosa, do grego
airesis, que significa muito simplesmente escolha. Toda a cena é um
vasto gesto erótico feito, sobretudo, em linguagem comprometida com
os ecos culturais, com as fórmulas consagradas, e com um ritmo que
compromete a prosódia corrente e exige propriedades acústicas
especiais da fala, numa entonação ela mesma erotizada.
Mas o romance não finda sem que uma outra cena de êxtase
amoroso desse par de amantes em perfeita sintonia seja alegorizada
justamente por um voo metafórico da passarola que, continuando
pousada, mimetiza com perfeição a ascensão do desejo dos amantes.
Baltasar e Blimunda, que passaram a trabalhar na construção do
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
229
convento de Mafra, iam de vez em quando à montanha para verificar
se a passarola continuava íntegra, protegida pelos arbustos e galhos
que lhe tinham servido de amparo no momento do pouso e coberta de
outros com os quais eles dois a tinham escondido de algum quase
impossível passante que por aquelas terras ermas andasse. É aí, nesse
ambiente fechado, sombrio, resguardado do mundo, que é o interior da
passarola, que a cena de amor acontece:
Já antes tinha inspeccionado o interior, descendo por uma
abertura do convés, escotilha desta nave aérea, ou
aeronave, nome facilmente formável no futuro, quando for
preciso. Não havia sinais de vida, nem uma cobra, nem a
simples lagartixa que em todo o oculto corre, de aranhas
nem fio de teia, que moscas ali viriam. Era como o dentro
de um ovo, a casca dele, o silêncio que lá está. Ali se
deitaram, numa cama de folhagem, servindo as próprias
roupas despidas de abrigo e de enxerga. Em profunda
escuridão se procuraram, nus, sôfrego entrou ele nela, ela
o recebeu ansiosa, depois a sofreguidão dela, a ânsia dele,
enfim os corpos encontrados, os movimentos, a voz que
vem do ser profundo, aquele que não tem voz, o grito
nascido, prolongado, interrompido, o soluço seco, a
lágrima inesperada, e a máquina a tremer, a vibrar,
porventura não está já na terra, rasgou a cortina de silvas e
enleios, pairou na alta noite, entre as nuvens, Blimunda,
Baltasar, pesa o corpo dele sobre o dela, e ambos pesam
sobre a terra, afinal aqui estão, foram e voltaram. (MC,
270-1)
Fácil será verificar o modo como a cena erótica se constrói com
uma linguagem poética também altamente erotizada, seja pela
descrição de um espaço de perfeição para acolher os amantes, aqui
identificado pela metáfora “o dentro de um ovo”, espaço silencioso,
sem outros sinais de vida (cobras, aranhas, lagartixas ou moscas) que
não fossem os dos corpos de ambos os amantes, espaço protegido e
escuro; seja pelo ritmo acelerado do longo período, construído com
uma sucessão de sintagmas nominais e verbais (substantivos GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
230
escuridão, sofreguidão, ânsia, corpos, movimentos, voz, grito, soluço,
lágrima; adjetivos - profunda, nus, sôfrego, ansiosa, encontrados,
profundo, [grito] nascido, prolongado, interrompido, [soluço] seco,
[lágrima] inesperada; enfim os verbos - se deitaram, se procuraram,
entrou, recebeu, tremer, vibrar, rasgou, pairou, pesa, pesam, foram e
voltaram), todos eles separados por vírgula, numa enumeração em
crescendo que só finda com a alegorização do orgasmo no voo da
passarola. A hipálage que transfere o tremor dos corpos ansiosos para
o tremor de uma passarola que, parecendo em pleno voo, não sai
contudo da terra, é indicada pelo modalizador “porventura”, que nos
obriga a ler esse voo em metáfora. Porque são eles, afinal, - Baltasar e
Blimunda - os que vão e voltam, e se a máquina treme e vibra e rasga
e paira entre as nuvens, será por um efeito de contiguidade em que o
conteúdo (amantes) dá asas ao continente (passarola).
Em O Ano da morte de Ricardo Reis o jogo erótico do discurso
poético ainda uma vez será ilustrado por uma cena cujo significado
está longe de corresponder a uma referência de caráter afetivo ou
amoroso. Trata-se, ao contrário, do relato histórico da invasão de
Addis Abeba pelas tropas de Mussolini e do silêncio que a este ato de
desmesura do poder fascista italiano se fazia contra um país
independente, que era membro da Sociedade das Nações. Não será
contudo o objetivo desta sequência voltar ao tema do novo modelo ou
da nova proposta de romance histórico em José Saramago. De certo
modo esta é uma questão que já suscitou conclusões nem sempre
similares e por vezes polêmicas, e sobre a qual o próprio escritor não
se cansou de ser levado a refletir. Em textos anteriores já fizemos
parte desse debate e retomá-lo aqui não pareceria, ao menos por agora,
garantir avanços na questão. Preferimos privilegiar, numa leitura mais
detida da camada significante, o entrecruzamento no corpo discursivo
das referências históricas que, aliás, não são sempre necessariamente
acadêmicas, e fazem sobretudo parte de uma literatura jornalística em
que o escritor terá ido encontrar as bases para a sua construção
ficcional que não descuida nunca de uma relação engenhosa com o
referente.
O Ano da morte de Ricardo Reis é um bom exemplo para a
ilustração desse viés, até porque, em se tratando de história recente,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
231
são os jornais uma fonte rica para a documentação da história. Pouco
importa, na verdade, se tais documentos são monumentos do poder pois é evidente que o são - e velam mais do que revelam aquilo a que
aspiraríamos como “verdade” histórica. Afinal, como diz bem Jacques
le Goff 6 - com o acento dado ao fato de ser ele um historiador -, em
certa medida, todo documento é monumento, pois faz parte de um
esforço que as sociedades históricas, consciente ou inconscientemente,
fazem para deixar uma determinada imagem de si próprias para as
gerações por vir. Diante dos jornais, portanto, o ficcionista, que está
consciente desse tipo de armadilha documental, não pode fazer papel
de ingênuo, e deve aprender a indagar diferentemente os documentos
de modo a deixá-los surgir no espectro do seu próprio avesso.
Sabemos que hoje já faz parte do acervo da Biblioteca Nacional
de Lisboa, ao lado dos manuscritos de O ano da morte de Ricardo
Reis, uma agenda restaurada do ano de 1936 que, na altura da escrita
do romance, José Saramago completou com dados dos jornais
portugueses da época, selecionados para reconstituírem o espaçotempo da sua ficção. Lá estão inscritas a Guerra de Espanha, que
ocupava grande parte da matéria editada na época, modo de transferir
para o país vizinho as inquietações dos leitores portugueses sempre
orientados, evidentemente, a lerem os acontecimentos tal como o
poder o desejaria; e a força crescente do modelo épico alemão a servir
de exemplo à militarização da vida
portuguesa (Juventudes
Hitlerianas / Mocidade Portuguesa); mas também algumas
informações de caráter aparentemente anódino, como a meteorologia e
a publicidade, elementos relidos no romance, não como resgate
meramente especular dos acontecimentos, mas como ponto de partida
para uma possível simbolização que o contexto ficcional logra atribuir
aos dados referenciais. Se ficamos sabendo, pelas anotações do
diário, que o ano de 1936 foi muito chuvoso, o que importa na
verdade é verificar como este elemento circunstancial ganha foro
simbólico no corpo do romance. Reiterada insistentemente desde as
primeiras páginas -“Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio
6
LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento” In: ---.Memória/História.
(Enciclopédia Einaudi, vol. 1). Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
1984, p. 95-106.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
232
correm turvas de barro”(RR, p.11); “não hoje que está chovendo”(RR,
p.12); “os meninos espreitam a cidade cinzenta”(RR, p.12);
“movediça cortina das águas que descem do céu fechado’(RR, p.12);
“mas é a cidade silenciosa que assusta, porventura morreu a gente
nela e a chuva só está caindo para diluir em lama o que ainda está de
pé”(RR, p.13); “começa a cidade sombria, recolhida em frontarias e
muros” (RR, p.13); “De ombros encurvados sob a chuva
monótona”(RR, p.13); “os estrangeiros murmuram contra o temporal,
como se fôssemos nós os culpados desse mau tempo”(RR, p.14);
“aqui estamos calados, maldito inverno”(RR, p.14); “a tarde
escurece” (RR, p/14); “com um pouco mais de sombra se faria a
noite”(RR, p. 14); “e a melancolia alastra”(RR, p.14); “O viajante
olha as nuvens baixas, depois os charcos”(RR, p.15); “um único tecto
cor de chumbo”(RR, p.17) - a referência ao dia chuvoso ultrapassa de
longe a indicação meteorológica que poderia vir mencionada na
página do jornal, porque ela se alastra por outros sintagmas que
compõem uma ambiência moral da cidade. Nela se revela a cidade
pálida, cinzenta, sombria, triste, fechada, silenciosa, assustadora,
encurvada, recolhida, escurecida, monótona e de nuvens baixas, a
lembrar os versos fundadores da cena de Lisboa em “O Sentimento
dum Ocidental”. É pois nesse trânsito do referencial para o
metafórico, nesse jogo de alusões que remete a outras imagens
literárias, que a textura romanesca deixa-se erotizar poeticamente
É nessa mesma linha de leitura que se quer inscrever o recorte
textual do relato da invasão de Addis Abeba que ilustrará, com
extrema pertinência, um modo de apropriação de referências
documentais num dos momentos de maior virtuosismo de construção
de todo o romance. Aí se mesclam o resgate de manchetes de jornais,
de notícias da rádio, trechos de discursos políticos, um conto de
Borges, e, como citação exemplar, uma ode de Ricardo Reis que
ganha sua variante no relato do narrador com a a Pérsia anteriormente
referida ousadamente deslocada para a Addis-Abeba do presente.
No trecho constituído por um único parágrafo de duas páginas e
meia, que se inicia por “Addis-Abeba, ó linguístico donaire, ó
poéticos povos, quer dizer Nova Flor”(RR, p. 300) e termina por “o
doutor do segundo andar apenas ia a falar sozinho”(RR, p.303) essas
estratégias de apropriação suplementam o discurso narrativo
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
233
sobrecarregando-o eroticamente, naquele sentido que vimos
atribuindo ao termo quando falamos de literatura como uma “erótica
verbal”, língua deslocada da sua contingência referencial para o plano
poético, que admite desvios, deslocamentos, transgressões sintáticas,
em outras palavras, encenação.
A narrativa contida na ode “Ouvi contar que outrora quando a
Pérsia” feita no passado (“ardiam”, “eram”) 7 é transposta, no
romance, para uma constatação do presente (“ardem”, “está”)8,
embora se garanta sempre, em eco consentido, o mesmo ritmo frasal
do discurso referido ao qual se acrescenta a retomada do mesmo
cenário de mulheres violadas, de casas que ardem, de arcas saqueadas,
de crianças que sangram nas ruas. Somam-se a essa releitura
deslizante da ode a transcrição de falas da rádio - “Mussolini
anunciou, Deu-se o grande acontecimento que sela o destino da
Etiópia, e o sábio Marconi preveniu, Aqueles que procurarem repelir a
Itália caem na mais perigosa das loucuras” (RR, 301) - e a
apropriação de manchetes de jornal - “o Manchester Guardian, que é
órgão governamental inglês, verifica, “Há numerosas razões para
serem entregues colónias à Alemanha, e Goebbels decide, “A
Sociedade das Nações é boa, mas as esquadrilhas de aviões são
melhores”(RR, 301), além da citação de um livro inexistentes - The
God of the labyrinth - que só possui consistência literária no conto de
Borges (“Análise da obra de Herbert Quain”) - , elementos que vão
compondo, qual um mosaico, um outro texto voluntariamente
estilhaçado, que sugere com perfeição a avalanche de informações
controvertidas que atravessam a “fronte alheada e imprecisa de
Ricardo Reis” (RR, p. 301).
7
“Ardiam casas, saqueadas eram
/ As arcas e as paredes,
/ Violadas, as
mulheres eram postas
/ Contra os muros caídos,
/ Traspassadas de lanças, as
crianças
/ Eram sangue nas ruas...” Ricardo Reis, Odes (337). In Fernando
pessoa, Obra poética. Rio de Janeiro, Aguilar. 1969, p.267-269.
8
“Addis Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os salteadores
arrombam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres e crianças, enquanto
as tropas de Badoglio se aproximam” (SARAMAGO, José. O Ano da morte
de Ricardo Reis, Lisboa, Caminho, 1984, p.301)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
234
A conjugação desses recortes aparentemente díspares faz
portanto surgir um texto de múltiplas vozes, de variados ritmos, em
que o trágico e o irônico se tangenciam, e onde ficam claros os
empréstimos intertextuais de diferentes registros narrativos. Numa
espécie de vórtice rítmico exigem-se do fruidor, exposto a esse
turbilhão de imagens e informações, leituras variadas para um mesmo
fato; provocam-se nele comportamentos afetivos contraditórios,
enquanto ele próprio se vê obrigado a saltar por cima de discursos das
mais diversas origens e propostas. Nessa ágil ciranda textual a leitura
não se pode desligar do processo de construção e deve-se fazer atenta
para acompanhar ora a fúria, ora a comiseração, ora a ironia, ora o
espanto do narrador face à violência do destino que o fascismo
ensaiava no mundo.
Enfim, o último excerto escolhido para referir o processo de
erotização verbal da literatura está em O Evangelho segundo Jesus
Cristo e, neste caso, refere uma cena de amor, de alta tensão erótica,
construída como um experiência de aprendizado, em que caberá à
personagem feminina, Maria de Magdala, ensinar e explicar os gestos
amorosos a um insciente Jesus. A linguagem erótica é aqui a
linguagem da paixão, mas é sobretudo a linguagem de um generoso
saber. Gosto de lembrar mais uma vez as palavras de Barthes, nos
Fragmentos de um discurso amoroso, que parecem perfeitas para esta
confluência entre corpo e linguagem, entre erotismo e conhecimento.
Diz ele: “A linguagem é uma pele: roço a minha linguagem no outro.
É como se eu tivesse palavras em vez de dedos, ou dedos na ponta das
palavras. Minha linguagem treme de desejo.”9
O jogo erótico desta cena de amor entre Jesus e Maria de
Magdala está todo no compromisso da fala com o corpo. Deslocando
o modelo da subalternidade intelectual, física e social que sempre
definiram, para o senso comum, o lugar do feminino; deslocando
enfim e definitivamente o discurso da ideologia que construiu a
9
“Le langage est une peau. Je frotte mon langage contre l’autre. C´est comme si
j´avais des mots en guise de doigts, ou des doigts au bout de mes mots. Mon
langage tremble de désir.” Roland Barthes, Fragments d’un discours
amoureux. In : Œuvres Complètes, Paris: Seuil, 2002, p.103.
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235
imagem de uma mulher passiva e sempre à espera, Maria de Magdala
pode instituir-se – sem qualquer pejo – como agente de provocação do
gozo que nasce da experiência do erotismo e do ato de conhecer. Ela
ensina e Jesus aprende o corpo do outro e o seu próprio corpo, ela
ensina e ele aprende a conhecer o outro e a si mesmo. Daí que, na cena
amorosa, certas palavras retornem como um leitmotif para apontar
essa doação do ensinamento: “Aprende o meu corpo” e depois
“Aprende o teu corpo”:
O ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala
apareceu, nua. [...] Maria parou ao lado da cama, olhou-o
com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e
suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens de
abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente
os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante
soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do
rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como jóias, o
teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho
perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de
lírios, os teus dois seios são como os dois filhinhos
gêmeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e
definitivamente, quando Maria se deitou do lado dele, e,
tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar,
lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o
pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu,
o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e
a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e,
enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num
sussurro, Aprende, aprende o meu corpo. Jesus olhava as
suas próprias mãos, que Maria segurava, e desejava tê-las
soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma
daquelas partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra
ainda, e dizia, Aprende o meu corpo, aprende o meu
corpo. Jesus respirava precipitadamente, mas houve um
momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando as
mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a direita
sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na
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236
direção uma da outra, ambas atraídas ao mesmo ponto
central, onde, quando chegadas, não se detiveram mais do
que um instante, para regressarem com a mesma lentidão
ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento.
Não aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá
quisesse dizer que ele não aprendera a defender a vida.
Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu
corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma
palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo,
tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica,
Maria de Magdala, que dizia, Calma, Não te preocupes,
não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que
uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que
um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um
estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe
agitando-se, e que de súbito se escapava gritando,
impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim,
era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria,
gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo
beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que
desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável
frêmito. (EJC, p. 283).
Ensinar e aprender o amor. Ela a mestra, ele o aprendiz. Ela a
dona do saber, ele o insciente. Ela a agente, ele o paciente. Estão
assim definitivamente invertidos e problematizados os lugares
ideológicos do masculino e do feminino: a ação e a espera, a fala e o
silêncio. A sexualidade se desnaturaliza, torna-se imaginário e
encenação, e ganha a possibilidade de se reescrever a partir de outras
expectativas culturais.
Jesus tinha consigo apenas o arsenal teórico do amor que lhe
viera do Cântico dos Cânticos de Salomão. É portanto nele que muito
coerentemente se apoia para começar a entender o amor de uma
mulher. Mas o que ele então percebe é que Maria de Magdala ia muito
além do que significavam as palavras, pois ela era capaz de
transformar a metáfora do texto canônico em literalidade pura,
fazendo-o caminhar para além do modelo, para além das imagens
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237
previamente cifradas, levando-o a conhecer e a experimentar, ou a
experimentar para conhecer: “És belo, mas para seres perfeito, tens de
abrir os olhos.” (EJC, p.282) A perfeição humana, é ela quem o diz,
ele só a atingiria ao ver o outro como diferente de si, na materialidade
da experiência erótica. Seria esse o modo mais completo do
conhecimento dos corpos, e o modo mais generoso de aprender a
diferença, arriscando-se na caminhada para fora do já sabido.
Essa escrita, que parte do sagrado para encontrar para ele
sentidos inesperados, aposta numa revolução que, ao eleger o
sacrílego, aposta em suas raízes etimológicas que tanto podem ser as
de roubo do sagrado como as de leitura do sagrado ou de posse do
sagrado (cf. lego = ajuntar, recolher, mas também ler e, por litote,
tomar, apoderar-se de, roubar). O que aí se evidencia, nessa
linguagem altamente erotizada pela consciência da transgressão que
inaugura, é o jogo contraditório com o outro, que seduz e convoca à
reconsideração paródica. O que aí se realiza é a ousadia de tocar o
sagrado, aquilo que não é para ser tocado (entenda-se aqui não apenas
a fonte bíblica mas a função prescritiva do discurso da comunicação),
sob pena de sacrilégio, de manchar, de deixar marcas, de assinalar.
Mas o sentido novo que daí advém, a revolução que o discurso da
ficção impõe à linguagem da comunicação não é apenas o seu
sacrilégio mas, paradoxalmente, a sua consagração. Ele não se opõe ao
sagrado, apenas o recontextualiza.
Essa recontextualização do sagrado no Evangelho segundo Jesus
Cristo acontece nomeadamente na arbitrariedade do deslocamento
espácio-temporal de algumas cenas canônicas. É o caso, por exemplo,
da última ceia, que migra do contexto tradicional que antecede a morte
de Jesus para um outro momento de doação do corpo, que é o desse
encontro de amor entre Jesus e de Maria de Magdala.
Enquanto cearam, Maria de Magdala não fez perguntas
[...] Estavam sentados no chão, frente a frente, com uma
luz no meio, o que sobrara da comida. Jesus tomou um
pedaço de pão, partiu-o em duas partes, e disse, dando
uma delas a Maria, Que este seja o pão da verdade,
comamo-lo para que creiamos e não duvidemos, seja o que
for que aqui dissermos e ouvirmos [...] Agora Jesus já
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
238
pode começar a falar, porque ambos comeram do pão da
verdade, e em verdade não são muitas na vida as horas
como esta. (EJC, 307, 308)
A escolha simbólica dessa epifania da verdade amorosa já se
iniciara, aliás, um pouco antes, com outro deslocamento herético, o da
cerimônia do lava-pés, relido não mais como gesto de humildade do
Mestre diante dos discípulos, mas como uma antecâmara da paixão,
exercício sensual em que Jesus tem os próprios pés lavados por Maria
de Magdala, que ali se põe a tocar a sua pele para retirar dela a crosta
que a impedia de ser sensível, enfim, que ali se põe a educar os
sentidos do amado, ensinando-o a aprender o próprio corpo.
A mulher ajudou-o a entrar para o pátio, trancou a porta e
fê-lo sentar-se, Espera, disse. Foi dentro e voltou com uma
bacia, molhou o pano e, ajoelhando-se aos pés de Jesus,
sustendo na palma da mão esquerda o pé ferido, lavou-o
cuidadosamente, limpando-o da terra, amaciando a crosta
estalada através da qual surdia, com o sangue, uma
matéria amarela, purulenta, de mau aspecto. Disse a
mulher, Não vai ser com água que te curarás [...] Deita-te,
eu volto já. Fez correr um pano numa corda, novos
rumores de águas se ouviram, depois uma pausa, o ar de
repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala
apareceu, nua. (EJC, 278, 282)
Se a água tem esse poder restaurador da sensibilidade, Maria de
Magdala vai mais além, recuperando ainda uma vez, a ortodoxia
religiosa. Ao sugerir: “Não vai ser com água que te curarás” , ela está
a evocar o batismo do fogo que canonicamente só o Espírito Santo era
capaz de conferir, como sugeria a voz de João Batista no Rio Jordão:
“Eu te batizo com água, mas depois de mim virá aquele que te batizará
com o fogo”, com a diferença capital de que para ela, para a amante,
o fogo inferido em suplemento da água já não era o do espírito, mas o
da paixão.
Cuidadosamente lavado por ela, Jesus já não é também o
Mestre, mas um discípulo que precisa de mestres. Só então começa a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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perceber que ocupara até então o seu lugar de frustrado aprendiz
diante de um Pastor que cujas ordens ele antes não soubera
intelectualmente decifrar. Só então, por via da paixão por Maria de
Magdala, ele começa perceber o que antes lhe havia parecido obscuro.
Jesus fora incapaz de desvendar as metáforas do conhecimento,
desobedecendo à voz de Pastor para que não imolasse, como os outros
judeus, o cordeiro pascal e em breve iria entender que assinalara,
desde então, o seu próprio destino, assumindo no gesto indicial a
tragédia que se lhe impunha de vir a ser, ele próprio, o cordeiro da
prepotência de um absurdo Deus.
É no processo de desconstrução paródica que o texto de origem
se reinventa, que ele se metaforiza, que, tal como concebemos o
conceito, ele se erotiza, para negociar a desmontagem de significados
ideológicos que ali estão in absentia, e que só aparecem através de
uma presença transfigurada. É pelo exercício de linguagem feito de
apropriações deslocadas, de transgressões temporais (lava-pés,
batismo, última ceia), de inversas formulações, de literalizações de
metáforas, que o significado ortodoxo do plano de Deus, reconhecido
no seu avesso, passa de salvação a traição, pela evidência do seu
desmedido exercício de poder. A proposta de Jesus de corromper o
projeto divino, morrendo na cruz sem que fosse reconhecida a sua
divindade, é, nesse sentido, um gesto generoso mas insustentável por
inadequação histórica, já que equivaleria a inaugurar uma história que
não houve. Por isso a palavra autoritária de Deus, que identifica Jesus
na hora da morte – "Este é o meu filho muito amado" –, vem em
socorro dessa verossimilhança, trasladada da cena bíblica do batismo
para a cena ficcional da crucificação, quando os céus, como bem se
sabe, emudeceram.
A proposta textual de releitura da morte de Jesus acentua o gesto
sarcástico de Deus ao impor arbitrariamente a sua presença quando o
crucificado que ali estava não lhe fizera o conhecido apelo imemorial:
"Pai, por que me abandonaste?" . A violência irônica da divindade
torna-se então evidente: quando no texto canônico Jesus apela a Deus,
não é atendido; quando no âmbito do romance ele se cala, Deus
aparece para revelá-lo à sua revelia, para que ele não consiga operar a
desejada reversão da história, para que ele não possa evitar os
desastres do rio de sangue que a cultura cristã gerou no Ocidente.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
240
Contra o gesto autoritário de Deus, só se poderia opor, como
última defesa, o lamento do filho que, invertendo o discurso
paternalista para salvar em Deus os homens inconsequentes e
pecadores – "Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem" -,
escolhe uma outra fórmula, que contradiz a primeira e que o afasta de
Deus, identificando-o definitivamente com a humanidade - "Homens,
perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez" (EJC, 444).
Ao optar pelos homens, o que o discurso literário opera vai
muito além de uma mera confrontação dos valores ideológicos do
discurso canônico. Sua investida se faz no próprio tecido discursivo,
através da manutenção da mesma sintaxe e da mesma musicalidade da
fórmula congelada da tradição, quando esta, na verdade, está sendo
voluntariamente deslocada e invertida. À melodia da sintaxe do verbo
instituído, em que Pai e Filho se aliam para a salvação da humanidade
pecadora, sucede outra que, com mínima alteração morfológica - na
apóstrofe feita aos homens e não mais a Deus, e na necessária
inversão do sujeito no que tange à consciência do mal, atribuído agora
a Deus e não mais os homens - aponta para uma verdade nova que
nasce desse paralelismo transgressor, num discurso poeticamente
erotizado que promove e ex-cita o nosso diálogo com a voz da
tradição, obrigando a frase congelada a uma ressemantização em que
se recuperam o peso e o sentido de cada sintagma.
Os textos escolhidos, breves o suficiente para serem percebidos
para além do que significam, na sua densidade escritural, formam
uma breve amostragem do que seria a dinâmica associação de poesia e
erotismo. Não foram aí contempladas apenas as cenas de conteúdo
erótico, mas de modo mais amplo, cenas em que a erotização da
linguagem lança o discurso no domínio sensualíssimo da literatura que
é, ela mesma, um corpo sensível, atento a si, impossível de ser
obliterado na sua materialidade, feito de uma opacidade que impede a
mera travessia em busca do sentido. O significante desse signo
motivado tem peso e gramatura, porque nele comparecem, ao mesmo
tempo, a memória e a ousadia transfiguradora dessa memória; porque
nele se inventa um ritmo e uma melodia através de uma sintaxe
inesperada, deslocada, paradoxal.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
241
É desse modo que o sentido extrapola em significados. É por
esse caminho que se inventa uma erótica verbal. Verbo erotizado.
Poesia.
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242
ÁLVARO DE CAMPOS: DÚVIDAS E
QUESTÕES DE MÉTODO
Antonio Cardiello 1
RESUMO: Pretendemos, mediante a análise de alguns textos do
espólio de Fernando Pessoa, ilustrar um problema crítico-textual
típico, relativo à fixação de fragmentos e aos critérios metodológicos
adoptados a esse respeito, comparando as principais edições críticas da
obra poética do heterónimo Álvaro de Campos, desde 1944 até à data.
Em particular, serão motivo de confronto e reflexão as diferentes e
possíveis propostas de leitura textual do poema, datado de 1914, Dois
excerptos de odes. Com base nas teorias de Giorgio Pasquali e T.S.
Eliot, o objectivo é sugerir um modo de publicar Pessoa como uma
visão de conjunto. Nas nossas conclusões apelaremos, então, ao
diálogo aberto entre tradições e edições, enquanto premissa necessária
para o conhecimento mais fecundo com ambição de acabamento,
sendo que nenhum editor se pode arrogar o direito de fixação final da
fragmentação dos poemas, devendo sempre atender à verdade – quase
sempre inconclusa – dos textos e às escolhas perfectíveis dos editores.
PALAVRAS-CHAVE: Fernando Pessoa. Álvaro de Campos. Edição
crítica. Dois Excerptos de Odes. Giorgio Pasquali.
O convívio com um autor como Fernando Pessoa pode
despoletar uma sensação de profunda precariedade, para não dizer de
impasse, dentro de quem se aventura no mais árduo dos projectos: a
tentativa de deliberar classificações e elucidações em relação a uma
estrutura de pensamento, cuja complexidade implícita acaba por se
acentuar por causa da natureza fragmentária de toda a sua obra plural.
Mesmo assim, gostamos de acreditar na possibilidade que este
estado conflituoso possa, paradoxalmente, favorecer o percurso que
1
Investigador da UNL - Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas/Instituto de Filosofia da Nova, Lisboa,
Portugal,
Avenida
de
Berna
26-C
/
1069-061.
[email protected].
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
243
tencionamos acompanhar, porque o mergulhar nas dúvidas e nas
hesitações talvez seja a modalidade que mais próximo nos leva aos
segredos alquímicos do drama em gente pessoano.
Comprova-o a constatação que Pessoa e os inúmeros enigmas
sem resolução geralmente associados ao seu génio se situam para além
da epígrafe de Cícero, dubitando ad veritatem parvenimus, para além
de uma verdade alcançada ou alcançável, duvidando.
Na esteira de Ockham, Descartes e David Hume, Pessoa cultiva
“a dúvida universal” e insere-se naquele leque de pensadores que, tal
como Kant, sagraram a própria vida à individuação dos princípios e
das antinomias sobre os quais se erige a faculdade de conhecer.
Questionar ininterruptamente as nossas convicções mais inamovíveis,
sejam essas científicas ou derivadas de cultos religiosos é, certamente,
um dos magistérios mais marcantes da sua literatura. Acontece,
todavia, que no interior daquele mundo académico que em época
recente o elevou a nume tutelar, são deveras poucos os que souberam
colher este seu ensino.
Dirigindo a atenção para trás no tempo, ao longo destas várias
décadas de impressionante proliferação de miscelâneas pessoanas, o
olhar não pode evitar de parar sobre a primeira edição com pretensões
de completude da obra poética de Pessoa: a da Ática, detentora dos
direitos de autor do poeta até 1985. Surgiu em 1942, sete anos depois
da sua morte. Os responsáveis do ambicioso propósito foram, pelo
menos inicialmente, João Gaspar Simões e Luís de Montalvor que
decidiram imprimir, como primeiro volume da colecção, uma
antologia de poesia ortónima. Dois anos mais tarde apareceu uma
colectânea de poemas do heterónimo Álvaro de Campos2. O trabalho
2
Campos nasceu em 1890, depois de Ricardo Reis, 1887, de Fernando
Pessoa, 1888, e de Alberto Caeiro, 1889, mas surgiu na mente de Pessoa no
dia 8 de Marco de 1914, participou na revista Orpheu e no movimento
sensacionista, escreveu um Ultimatum apos o qual abandonou a cena
brevemente — até Pessoa ter iniciado o controverso relacionamento com
Ofélia Queiroz —, publicou textos nas revistas Contemporanea, Athena e
Presença, concedeu uma entrevista em 1925 acerca da situação da
Inglaterra, da Europa e de Portugal, escreveu o mais conseguido poema
português do século XX, Tabacaria, redigiu as Notas para a recordação do
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
244
pioneiro dos organizadores, em relação aos quais a cultura portuguesa
estará sempre em dívida pela forma como promoveram a estética
pessoana, “pecava”, todavia, por patentes erros de leituras, por
algumas graves omissões de partes julgadas inconvenientes e por “um
critério pragmático mas discutível de preferir a versão inicialmente
escrita por Pessoa às suas revisões” (CASTRO, 1993, p. 43), que tinha
a cativante prerrogativa de ser geralmente a mais clara e legível. Não
obstante os limites e as repetidas negligências imputáveis à dupla
Montalvor-Simões se tornarem, em época mais recente, cristalinos
para todos, alertando posteriores investigadores acerca das
coordenadas do caminho a não percorrer (isso aconteceu infelizmente
só após 1979, ano em que o espólio do escritor foi adquirido pelo
Estado e transferido para a Biblioteca Nacional de Portugal), temos de
registar outras páginas controversas relativamente à bibliografia das
edições da poesia pessoana.
Um exemplo, entre os mais estrondosos, talvez seja um artigo
assinado por Teresa Rita Lopes na revista Colóquio-Letras nº 125/126
de Julho/Dezembro de 1992, acutilante e avassaladora recensão
dirigida à publicação da primeira edição crítico-genética, jamais
tentada em Portugal, de um conjunto de escritos de Fernando Pessoa.
Mais concretamente, o alvo das suas violentas invectivas foi o trabalho
de organização e fixação de textos poéticos de Álvaro de Campos,
concluído em 1990, por Cleonice Berardinelli, com o apoio do “Grupo
de Trabalho para o Estudo do Espólio e Edição Crítica da Obra
Completa de Fernando Pessoa”, mormente conhecido por Equipa
Pessoa.
meu mestre Caeiro — enquanto Pessoa compunha alguns dos trechos mais
majestosos do Livro do Desasocego —, e, morto Caeiro, exilado Reis,
desvanecido o filósofo António Mora, tornou-se, sem dúvida, a presença
mais viva, constante e interveniente do drama em gente, o heterónimo mais
representado nas Ficções do Iinterlúdio ideadas por Pessoa (no plano de
publicação das obras heterónimas) é o participante mais importante de um
Congresso que faria parte dessas ficções, congresso ou colóquio que abriria
com o Ultimatum de Campos aos mandarins da Europa e seria encerrado
com uma resposta deste heterónimo à teoria da arte de Ricardo Reis.
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245
Sem pretender entrar nos detalhes das polémicas inauguradas
pela análise da autora de livros como Fernando Pessoa et le drame
symboliste - héritage et création e Pessoa por Conhecer I, a tese que
nos arriscamos a formular, longe de ser uma ulterior e desnecessária
defesa prestada ao universo das orientações editoriais dos responsáveis
do volume impresso pela INCM, limitar-se-á a um curto relatório de
pendor historiográfico de algumas das questões mais escaldantes e
paradigmáticas da antiga querela filológico-literária que se estendeu
também a Álvaro de Campos – Livros de Versos (Estampa, 1993),
onde Lopes repropõe, na íntegra, no espaço destinado à apresentação
do volume, a mesma intervenção corrosiva de 1992 e o mesmo título:
A Crítica da edição Crítica3.
Quanto aos ataques à deontologia profissional de Cleonice
Berardinelli, esses começam bem cedo, quando em rápidas passagens
lhe atribui os excessos de “separar em vários poemas diferentes partes
de um mesmo monólogo” e de “refazer a partir de fragmentos soltos
alguns dos poemas extensos do primeiro Campos”.
Teresa Rita Lopes sente-se revoltada pois julga que “não nos
compete a nós – subentende os editores – fazer colagens (como faz a
Edição Crítica) com os fragmentos e esboços que o Poeta deixou, a fim
de realizar a ‘grande ode’ que ele não compôs” (LOPES, 1993, p. 19) e
animada por um autêntico desgosto, falará abertamente na página 23
(201, para quem confere a versão em papel químico da introdução
guardada em Colóquio-Letras) de “operações cirúrgicas”,
3
Uma terceira versão deste artigo sairá quase 10 anos mais tarde (com
poucas e irrelevantes alterações) “anexada” a um outro volume antológico
de versos de Álvaro de campos: Álvaro de Campos, Poesia, Lisboa, Assírio
& Alvim, 2002. Neste livro, a investigadora pessoana decide “cindir” o seu
antigo texto em duas partes originando assim um prefácio e um posfácio.
Tal como a colectânea publicada por Estampa, a edição de Assírio e Alvim
colige 245 textos. Se aqui desaparecem alguns incluídos na edição de 1993,
no seu lugar encontramos 3 inéditos, cuja descoberta se deve ao trabalho de
pesquisa de Richard Zenith. Os poemas identificáveis pelos respectivos
primeiros versos são os seguintes: “Que imperador tem o direito” (pp. 157159); “Perto da minha porta” (pp. 229-230) e “Usas um vestido” (p. 376377).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
246
“esquartejamentos” sofridos pelos textos do heterónimo engenheiro e
de um desejo perverso do editor de se substituir ao autor.
As razões de tanto alarmismo encontram-se na recusa que
Teresa Rita Lopes manifesta, da assunção sistemática e a seu ver
inapropriada, das variantes de autor por conta dos responsáveis da
Edição Crítica grifada INCM. Todo o capítulo 2.1 de Álvaro de
Campos – livros de versos roda à volta desta disputa. Foca-se a
confusão que, nas opiniões da sua organizadora, Cleonice Berardinelli
terá produzido por causa do acolhimento do padrão teórico concertado
pela Equipa Pessoa. De facto, Lopes está convicta que para um leitor
prevenido, isto é, competente, é “repugnante” ter de lidar com um
“rótulo de variante de tão diferentes casos” (LOPES, 1993, p. 22).
A confusão dependeria do lugar atribuído às variantes do autor
que “não figuram em pé de página, tendo sido automaticamente
integradas no texto, substituindo a(s) palavra(s) da linha corrida que
Pessoa pôs em causa mas não recusou porque não riscou” (LOPES,
1993, p. 23).
Deixa-a atónita constatar que “no Aparato de rodapé aparecem,
como “variantes” à mistura com os verdadeiros erros cometidos pelos
editores, as honestas leituras do texto corrido que Pessoa nunca riscou
e que os ditos editores – refere-se à Ática e à brasileira Aguilar –
acertadamente fixaram” (LOPES, 1993, p. 19).
Na verdade, aqui há realmente uma confusão, mas não criada
pelos responsáveis da ostracizada edição: a confusão instala-se ao
trocar os significados de variantes de autor com variantes de tradição e
vice-versa, como Lopes fez.
Como ensina a moderna crítica textual, as variantes do autor
“estão no testemunho, cabendo ao editor observá-las e transcrevê-las
para um dos lugares que lhes estão reservados numa edição críticogenética: o texto crítico ou o aparato genético” (CASTRO, 1993, p. 57)
enquanto as variantes de tradição são aquelas produzidas durante a
transmissão de um texto, cabendo ao crítico seleccionar “aquela que,
em seu entender, mais próxima está do original e a integra no texto
crítico, […] deixando assim evidentes todos os elementos da sua
decisão, para revisão por parte do leitor” (CASTRO, 1993, p. 54).
Estas últimas, relembra Cleonice Berardinelli, “mais não são que os
erros introduzidos no texto pelas edições posteriores” (Ática e Aguilar,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
247
quase sempre coincidente com a primeira nas divergências e com a
Antologia de Fernando Pessoa estabelecidas por Casais Monteiro) que
foram postos em rodapé no volume da Série Maior4. Integrá-las ou
não, demarca a linha de separação que existe entre uma edição críticogenética e uma outra que nunca o será5.
Se uma edição “chama-se crítica quando resulta de uma dúvida
metódica em relação às condições existentes de um determinado texto
e de uma inquirição aos seus testemunhos mais autorizados, feita de
fresco e sem restrições” (BERARDINELLI, 1993, p. 43), Teresa Rita
Lopes, em 1993, parece então afastar-se desses princípios não
admitindo nenhuma hesitação ao agrupar, em três blocos distintos, as
múltiplas folhas (15) que constituem a extensíssima Passagem das
horas. Também rejeita a subdivisão em dois grandes acervos do
mesmo poema efectuada por Cleonice Berardinelli. Contudo, a nosso
ver, Lopes soube emendar as colagens efectuadas por Cleonice
Berardinelli questionando a subdivisão em dois grandes acervos do
mesmo poema e evitou a tentação de dar à ode uma estrutura
semelhante à da Ode Maritima, “com um ritmo crescente, encantatório
mesmo, até atingir o clímax – o seu meio-dia – decrescendo depois até
ao seu crepúsculo e à sua diluição na noite” (LOPES, 2013, p. 622).
Enfim, Lopes soube identificar bem os principais blocos líricos
desta composição poética:
4
Cf. BERARDINELLI, Cleonice. Consertando desconcertos, in AA. VV.
Defesa da Edição Crítica de Fernando Pessoa, p. 13.
5
«Há uma diferença fundamental entre a técnica de publicar inéditos e a
edição crítica: aquela considera cada manuscrito como um indivíduo, que
decifra, identifica, transcreve e publica, quer diplomaticamente, se lhe
conservar todas as características gráficas, quer modernizadamente; a
edição crítica, pelo contrário, reduz a um único texto vários manuscritos,
naquilo que eles têm de igual ou equivalente, valorizando apenas as
variantes que em alguns pontos os separam. Sucederá, assim, que um
manuscrito inédito, ao ser diluído dentro do texto crítico, acabará por nunca
beneficiar de uma publicação integral como a que lhe é dada pelo primeiro
processo» (CASTRO, 1990, p. 32)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
248
(a) 70-15, 19 e 21r. Começa com um título (A Passagem das
Horas, com o artigo «A») e o verso da última página, a 21, está em
branco. Pode considerar-se um fragmento fechado.
(b) 70-17 e 16. Começa com um título (A Passagem das Horas)
e termina com um grande espaço em branco depois do último verso.
(c) 70-13 e 14r. Começa com um título (Passagem das Horas,
abreviado, sem o artigo «A») e termina com um grande espaço em
branco depois do último verso.
(d) 70-18r. Começa com um título (Passagem das Horas) e
termina com um espaço em branco depois do último verso.
(e) 70-20. Não tem título. A metade inferior do verso da folha
ficou em branco.
Estes
textos
dactilografados
podem
considerar-se
complementados por dois manuscritos:
(e) 66A-29r. Um manuscrito que poderá datar de 1915, quando
o autor começou a conceber a Passagem.
(f) 64-27. Outro manuscrito que será por volta de 1918 e que,
tal como o anterior, está menos elaborado do que os cinco dactiloscritos já referidos.
Um outro grande objecto de disputa foi a assemblagem de
excertos que proporcionou as diferentes propostas editoriais do poema
Saudação a Walt Whitman.
A Saudação a Walt Whitman foi inicialmente publicada pela
Ática (1944), cujos editores apresentaram uma versão da ode baseada
num conjunto de folhas dactiloscritas numeradas pelos próprios.
Cleonice Berardinelli tentou, anos mais tarde (1990, 1999), a
reconstrução da ode, partindo fundamentalmente de dois esquemas
manuscritos de Pessoa em que o autor projectou a organização do
poema (71-11r e 71-2). Teresa Rita Lopes6 não concedeu a estes
esquemas validade suficiente para uma tentativa de unificação dos
diversos fragmentos de Saudação a Walt Whitman e, na sua proposta
de organização evitou colar uns versos a outros; mas esqueceu-se de
6
in: LOPES, T. R. Álvaro de Campos – Livro de Versos (Edição Crítica).
Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
249
que estas sinopses podiam servir, não para criar um todo inexistente,
mas para articular melhor as partes de um todo intuído e projectado.
Agora vale a pena recuar um pouco até ao capítulo 2.2 da
introdução (são as páginas 209 e 210 de Colóquio-Letras) onde o
discurso recai sobre os “maus tratos” reservados a um outro célebre
poema de Álvaro de Campos vindo à luz com as primeiras circulações
da vulgata. As gerações recentes de pessoanos ainda atentos ao
respeito pela ortografia do autor, conhecem-no com o título Dois
Excerptos de Odes e o subtítulo posto entre parênteses Fins de Duas
Odes, Naturalmente.
Conforme assevera Teresa Rita Lopes, “o leitor que tenha este
maravilhoso poema na memória, pelo menos passagens, passará do
espanto à indignação ao sentir-se despossuído de um dos mais belos
textos escritos em língua portuguesa” (LOPES, 1993, p. 33), porque é
“evidente que não pode ser verdade a versão que a EC – acrónimo para
Edição Crítica estabelecida por Berardinelli – propõe” (LOPES, 1993,
p. 33). O que mais indigna Lopes é Berardinelli ter privilegiado um
papel de que o escritor “se serviu para aí esgaratujar posteriormente
textos e planos” (LOPES, 1993, p. 34) e não um documento
considerado “a versão passada a limpo por Pessoa”, isto é, o texto
publicado postumamente na Revista de Portugal, n. 4, Julho de 1938,
seguido pela própria e pelos editores da Ática do volume Poesia de
Álvaro de Campos. O “pomo da discórdia” é um testemunho integral
dactilografado do poema (incorpora 149 versos, 7 mais do que o texto
fixado por Lopes) que Cleonice Berardinelli, no aparato crítico da
edição Maior, chama de γ (anexo 3), correspondente às cotas 70-3 e 4
do espólio 3 da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP/E3).
Deste poema existem, no total, quatro testemunhos: dois
parciais e dois completos. Parciais são A (70-1), que contém os versos
79-109, e B (70-2), que contém os versos 110-149. O testemunho B
ostenta a data «30-6-1914», dactilografada a tinta vermelha no canto
superior direito do rosto da folha. Cleonice Berardinelli indica que o
testemunho A está numa folha com marca-d’água almaço, tal como os
suportes que receberam as cotas 71-40 a 71-44. Ainda existem, como
dito, dois testemunhos integrais, C (Revista de Portugal, nº 4) e D
(70-3 e 4), sendo que Berardinelli optou por D e os editores da Ática
por C, tal como Lopes, que em 1993 criticou duramente Berardinelli
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
250
por não ter estabelecido o texto de Dois excerptos de Odes partindo de
C. A nosso ver, essa crítica faz e fez pouco sentido, pois D incorpora
lições de B (v. 136) e C (v. 109), tem versos que faltam na Revista de
Portugal (e portanto em Lopes) e Berardinelli argumenta, e é muito
provável, que o testemunho D seja posterior ao C. Lopes gosta mais
dos versos 93-99 na edição da Ática, mas essa é uma questão de gosto
que não devia originar maiores desacordos.
No pleno respeito por um dos princípios basilares da crítica
textual moderna, segundo o qual o primeiro trabalho do editor consiste
em ordenar um corpus de uma obra cronologicamente, e “em encontrar
o fio que relaciona os diversos testemunhos de cada texto” (CASTRO,
1990, p. 48), a investigadora brasileira alicerça a sua preferência por
esse testemunho após uma colação de outros dois autógrafos
dactilografados, provindos do mesmo espólio. Refiro-me a duas lições
com apenas segmentos parciais de poemas, diferentemente do que se
constata em γ, versão integral do texto: α7 (70-1rv) [anexo 1] e β (702rv) [anexo 2]. Sinceramente deixa-nos muito perplexos a abordagem
teórica e a observação material de Teresa Rita Lopes acerca dos
encimados documentos quando considera falsa a afirmação sustentada
por Cleonice Berardinelli, isto é, que γ incorpora alterações presentes
nos outros dois, negando a existência de correcções autorais em α e
atribuindo só uma a β; De facto quer α,quer β, apresentam duas
emendas bem visíveis que foram recolhidas por γ, respectivamente nos
vv. 99 e 108 (cf. Anexo com Anexo 3) e nos vv. 136 e 149 (cf. Anexo
2 com Anexo 3). Mais: os vv. 109 e 113 comprovam que α8 (cf. Anexo
7
Ambos os testemunhos α e γ apresentam, na margem superior da folha, a
data 30-6-1914 (dactilografada a tinta vermelha em α e manuscrita a lápis
em γ). Numa perspectiva bio-bibliográfica, o pormenor do ano reenvia a
uma sucessão de primados concomitantes: Pessoa em Fevereiro, publica na
revista A Renascença (número único), os poemas Pauis e O Sino da Minha
Aldeia; é de 4 de Março o primeiro poema datado de Alberto Caeiro; são de
12 de Junho as primeiras odes datadas de Ricardo Reis.
8
Temos de assinalar uma gralha cometida por Cleonice Berardinelli na
página 394 da série Maior da do volume das poesia de Álvaro de Campos.
Na nota relativa ao vv. 109, faz uma troca involuntária entre as letras gregas
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
251
1 com Anexo 3) e β (cf. Anexo 2 com Anexo 3) passaram lições a γ
que só numa fase posterior foi modificado.
Perante todos estes dados, e pelo aparecimento de outras
palavras no v. 108, não detectáveis em α, parece patente que γ não é
senão um “descendente” dos outros dois e um “avanço” na cadeia
genética da obra. Na ausência de outros testemunhos manuscritos (não
é de excluir que um dia poderão aparecer outros) e em acordo com um
axioma largamente partilhado ou partilhável entre filólogos mais e
melhor envolvidos em projectos de edições crítico-genéticas, “na quase
totalidade do texto de Pessoa, o trabalho do editor consiste em
reproduzir diplomaticamente a mais recente versão autógrafa e, na
falta de autógrafos, a mais recente edição contemporânea do poeta ou,
na falta desta, a mais antiga edição póstuma” (CASTRO, 1990, p. 52),
achar que γ deve servir de base à edição relativamente ao poema
examinado é a única escolha fiável. Uma escolha que Teresa Rita
Lopes ainda hoje descartaria (é o nosso receio), porque para ela “um
texto manuscrito é um objecto fechado, produzido num momento
inspirado e, em momentos separados, ornamentados com variantes que
nele não entram mas se destinam apenas a ser tomadas em
consideração numa eventual reescrita do texto” (CASTRO, 1993, p.
71).
No nosso entendimento, pelo contrário, todos os textos,
sobretudo inéditos, manifestam a exigência de “ser conformados com o
universo textual preexistente”, dado que “a sua decifração é validada
pela integração num quadro de estruturas linguísticas e lexicais
emanado dos textos anteriormente conhecidos” (CASTRO, 1993, p.
97).
Nomeadamente, no ensaio Storia della tradizione e critica del
testo, Giorgio Pasquali sublinha a necessidade de que as operações de
mera crítica textual sejam precedidas e suportadas por um aprofundado
estudo histórico da tradição textual, que não considere os distintos
testemunhos apenas sob o aspecto de siglas ou de simples
“depositórios de textos”; ao invés, é oportuno vasculhar
minuciosamente cada manuscrito, não esquecendo de observar a
α e β pelo que a variante autoral “a lua começa a ser real” está registada em
β quando na realidade pertence ao testemunho α.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
252
individualidade histórica do texto considerado. A forma através da
qual um texto chegou até nós é, por outras palavras, extremamente
relevante para compreender a natureza daquele texto.
Enquanto promove a importância do detalhe genealógico,
Pasquali denuncia toda uma série de problemas que o método
lachmanniano não é capaz de resolver, por não ter em conta variáveis
como a recensão aberta, a contaminação e as variantes de autor.
Recensão aberta: nem sempre a reconstrução do
stemma codicum permite uma adequada selecção das lições: se
estivermos a examinar uma recensão aberta ou horizontal, isto é, se a
inteira tradição não provir de só um arquétipo, é preciso recorrer a
instrumentos correctivos baseados em critérios internos, ou seja,
avaliando entre diversas lições, as que aderem maioritariamente ao
usus scribendi do autor e a lectio difficilior.
Contaminação: fenómeno frequente que se verifica
quando um testemunho contém erros conjuntivos que o assemelham a
mais famílias (no stemma tem a peculiaridade gráfica duma linha
tracejado). Isto origina-se porque muitas vezes nos scriptoria um
códice copiado era corrigido ou, em caso de lacunas, “preenchido”
mediante o confronto com a lição de um outro manuscrito da mesma
obra. Este fenómeno perturba a “mecanicidade” das ligações
genealógicas e para o método de Lachmann constitui um grande
problema. Daí o pressuposto de considerar que cada testemunho tem a
sua história.
Variantes de autor: é possível (como vimos
abundantemente em Pessoa) que o próprio autor altere a sua obra. É o
caso, por exemplo, da tornada, a última estrofe dedicatória, que o
poeta, por vezes, modifica segundo o tipo de público a que se dirige.
Por isso, também o texto do autor se encontra em movimento, aspecto
que representa uma nova complicação para o método lachmanniano.
No fundo, Pasquali não dirige as suas críticas contra o método
de Lachmann em si (Pasquali nunca tira ao método a sua utilidade
quando se trata de dar uma ordem lógico-racional aos dados
possuídos), mas contesta que se possa aplicar rigidamente em qualquer
situação. Daí a imprescindibilidade de conhecer a história de cada um
dos manuscritos, a tradição da sua recensio.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
253
Embora as linhas guia da crítica textual e da crítica literária
sigam divergentes microcosmos de nomenclatura e intentos, as
conclusões proferidas por Pasquali não me parecem ser totalmente
inconciliáveis com o seguinte princípio que, quer na visão de Pessoa
quer na de T.S. Eliot, é assumido como imprescindível numa óptica de
estética modernista: recuperar e reunir, integrando-os em contextos
actuais, conteúdos de pensamentos éticos, morais, religiosos e
estéticos, pertencentes ao património da Tradição, quase sempre
entendida por engano como alguma coisa de estático, caduco e
obsoleto, ou como a rota oposta ao caminho que leva ao novo e ao
original, e que ao invés representa a plataforma de onde se parte para
alcançar o novo por conhecer9. Essa posição justifica-se constatando
que, como Eliot declarará em dois textos capitais, “se o nosso
problema é construir o futuro, nós somente podemos fazê-lo a partir de
materiais do passado; devemos usar a nossa hereditariedade, ao invés
de negá-la” (ELIOT, 1936, p. 80) porque “ao perder de vista a
tradição, nós perdemos o contacto com o presente” (ELIOT, 1936, p.
62).
Transferida para o domínio da crítica textual, aplicada ao
estudo da obra poética de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, esta
reflexão apela ao confronto dialógico aberto entre edições, enquanto
premissa necessária para o conhecimento mais fecundo com ambição
de acabamento, sendo que nenhum editor se pode arrogar o direito de
fixação final da fragmentação dos poemas, devendo sempre atender à
verdade – quase sempre inconclusa – dos textos e às escolhas
perfectíveis dos editores.
9
Cf., DAUNT, R. T.S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New
Haven. Sao Paulo: Landy Editora, 2004, p. 61.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
254
Anexo 1
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255
Anexo 2
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256
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257
Anexo 3
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261
Anexo 4
[BNP/E3; 70 – 3 e 4]
Dois excerptos de ODES de Alvaro de Campos:
(fins de duas odes, naturalmente).
I
……………………………………………………….
Vem, Noite antiquissima e identica,
Noite Rainha nascida desthronada,
Noite egual por dentro ao silencio, Noite
Com as estrellas lantejoulas rapidas
No teu vestido franjado de Infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sósinha, solemne, com as mãos cahidas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longinquos para ao pé das arvores proximas,
Funde n’um campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um blóco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as differenças que de longe vejo de dia,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as varias arvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as arvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distancia imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distancia subitamente impossivel de percorrer.
Nossa Senhora
Das cousas impossiveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que veem ter comnosco ao crepusculo, á janella,
Dos propositos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hoteis cosmopolitas sobre o mar,
Ao som europeu das musicas e das vozes longe e perto,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
262
E que dóem por sabermos que nunca os realisaremos.
Vem e embala-nos,
Vem e afaga-nos,
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma differença na alma
E um vago soluço partindo misericordiosamente
Do antiquissimo de nós
Onde teem raiz todas essas arvores de maravilha
Cujos fructos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fóra de relação com o que pode haver na vida.
Vem solemnissima,
Solemnissima e cheia
De uma occulta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não sahem do nosso corpo,
E só alcançamos onde o nosso braço chega
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
[3v] Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angustias dos Timidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa-em-febre dos Humildes,
Sabôr de agua da fonte sobre os labios seccos dos Cançados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte livido,
Vem e arranca-me
Do solo da angustia onde vicejo,
Do solo de inquietação e vida-de-mais e falsas-sensações
D’onde naturalmente nasci.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
E entre hervas altas malmequer ensobrado,
Folha a folha lê em mim não sei que sina,
E desfolha-me para teu agrado,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
263
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje cujo ruido amei como a um corpo.
Outra folha de mim lança para o Sul
Onde estão os mares e as aventuras que se sonham.
Outra folha minha atira ao Occidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o futuro,
E ha ruidos de grandes machinas e grandes desertos rochosos
Onde as almas se tornam selvagens e a moral não chega.
E a outra, as outras, todas as outras folhas —
Ó occulto tocar-a-rebate dentro em minha alma! —
Atira ao Oriente,
Ao Oriente, d’onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanatico e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente buddhista, brahmanista, shintoista,
Ao Oriente que é tudo o que nós não temos,
Que é tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Christo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista com corpo e mandando tudo…
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre o mar sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão sobre o seu dorso de féra,
E acalma-o mysteriosamente,
Ó domadora hypnotica das cousas que se agitam muito!
Vem cuidadosa,
Vem maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquissima, que te sentaste
Á cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
e que viste nascer Jehovah e Jupiter,
E sorriste, porque tudo te é falso, salvo a treva e o silencio,
E o grande Espaço Mysterioso para além d’elles…
[4r] Vem, Noite silenciosa e extatica,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
264
99
Vem envolver no teu manto leve
O meu coração…
Serenamente como uma briza na tarde lenta,
Tranquillamente como um gesto materno afagando,
Com as estrellas luzindo (ó Mascarada do Além!)
Pó de ouro no teu cabello negro,
E o quarto minguante máscara mysteriosa sobre a tua face10.
108
109
Todos os sons sôam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes.
Ninguem te vê entrar.
Ninguem sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se fecha,
Que tudo perde as arestas e as côres,
E que no alto céu ainda claramente azul e branco no horizonte,
Já crescente nitido, ou circulo amarellento, ou mera esparsa brancura11,
A lua começa o seu dia12.
II
113
Ah o crepusculo, o cahir da noite, o acender das luzes nas grandes
cidades,
E a mão de mysterio que abafa o bulicio,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e activa13 da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tedios
E que mysterioso o fundo unanime das ruas,
Das ruas ao cahir da noite, ó Cesario Verde, ó Mestre,
Ó do «Sentimento de um Occidental»!
10
α E a lua mysteriosa <na tua <fronte> [face]> sobre a tua face
11
α Já crescente nitido, [↑ ou] circulo branco, [↑ ou] mera luz nova que vem,
12
α A lua começa a ser real. γ A lua começa <a ser real.> [↑ o seu dia.]
13
β exacta e precisa e activa γ exacta e <precisa> activa
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
265
Que inquietação profunda, que desejo de outras cousas,
Que nem são paizes, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longinquo!
Um horror somnambulo entre luzes que se accendem,
Um pavor terno e liquido, encostado ás esquinas
Como um mendigo de sensações impossiveis
Que não sabe quem lh’as possa dar…
Quando eu morrer,
Quando eu me fôr, hirto e differente como toda a gente,
Ignobil por fóra, e por dentro quem sabe que outro-ser,
Por aquelle caminho cuja idéa se não pode encarar de frente,
Por aquella porta a que, se pudessemos assomar, não assomariamos,
Para aquelle porto que o Capitão do Navio não conhece —
Seja por esta hora condigna dos tedios que tive,
v
[4 ] Por esta hora mystica e espiritual e antiquissima,
Por esta hora em que talvez, ha muito mais tempo do que parece,
Platão, sonhando, viu a idéa de Deus
136 Esculpir corpo e existencia nitidamente plausivel14
Dentro do seu pensamento exteriorisado como um campo.
Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu não sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por esta hora cuja misericordia é torturada e excessiva,
Cujas sombras veem de qualquér cousa que não as cousas,
Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensivel
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.
Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que não tenho nem quero
14
β <Toma> [←Esculpir] corpo e existencia nitidamente plausivel
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
266
149
ter,
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silencio,
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,
Olha-me em silencio e em segredo e pergunta a ti-propria
— Tu que me conheces — quem eu sou…15
ÁLVARO DE CAMPOS: DOUBTS AND
QUESTIONS OF METHOD
ABSTRACT: Through an in depth analysis of several textes from
Fernando Pessoa's archive, we aim at illustrating a typical problem of
textual criticism with relation to the organization of excerpts as well as
the implementation of methodological criteria in this field, comparing
the principal critical editions of the poetical work of the
heteronym Álvaro de Campos, from 1944 up to date. In particular, the
basis for confrontation and reflection will be constituted by different
and possible answers of the poem composed in 1914, Dois excerptos
de odes. The goal is to suggest a publication of Pessoa based on the
theories of both, Giorgio Pasquali and T.S. Elliot. In our conclusions
we will, hence, call for an open dialogue between traditions and
editions as the fundamental premise of the most fertile knowledge,
given that no editor may arrogate the right of the final organization of
poetical excerpts, with the need to adhere always to the truth- almost
always inconclusive- of rectifiable texts and choices of editors.
Keywords: Fernando Pessoa. Álvaro de Campos.Critical Edition. Dois
excerptos de Odes. Giorgio Pasquali.
REFERÊNCIAS
BERARDINELLI, C. Consertando desconcertos. In: Berardinelli, C.;
Castro I. Defesa da Edição Crítica de Fernando Pessoa, Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993.
15
β <Quem sou eu.> – Tu que me conheces – quem eu sou…
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
267
CASTRO, I. Intenções finais e mais intenções. In: Berardinelli, C.;
Castro I. Defesa da Edição Crítica de Fernando Pessoa, Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993.
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Moeda. Edição Crítica de Fernando Pessoa, Colecção «Estudos», vol.
I, 1990.
DAUNT, R. T.S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven.
Sao Paulo: Landy Editora, 2004.
ELIOT, T. S. The humanism of Irwing Babbitt. In: Essays ancient and
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__________. The possibility of a poetic drama. In: The sacred wood.
Essays on poetry and criticism. New York: Barnes and Noble, 1928.
PESSOA, F. Álvaro de Campos – Poesia. Edição de Teresa Rita
Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, 2.ª edição.
_________. Álvaro de Campos, Poesia. Edição de Teresa Rita Lopes.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
_________. Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice
Berardinelli. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Edição
Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. II, 1990.
_________. Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice
Berardinelli. Lis-boa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Edição
Crítica de Fernando Pessoa, Série Menor, vol. I, 1992.
LOPES, T. R. Álvaro de Campos – Livro de Versos (Edição Crítica).
Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
BIBLIOGRAFIA
PESSOA, F. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
268
ÁLVARO DE CAMPOS: AS DISPOSIÇÕES
DO POETA NA ODE MARÍTIMA
Pablo Javier Pérez López 1
Filipa Freitas 2
RESUMO: O objectivo deste ensaio prende-se com uma nova leitura
da Ode Marítima de Álvaro de Campos, à luz da tese sobre a natureza
ilimitada do poeta, revelada na procura exponencial de possibilidades
que assinala a paixão pela totalidade da vida. Autores como Whitman,
Keats e Emerson chamam a atenção para o facto de o poeta ser, na sua
condição poética, continuamente permeável à rotatividade das
possibilidades da vida como modo de constituição da sua própria
natureza ontológica. Assim, pretende-se evidenciar que a Ode
Marítima é um exemplo dessa procura inesgotável do poeta, patente na
interpretação das disposições que ilustram o funcionamento da relação
sujeito-mundo. Trata-se, então, de analisar o conteúdo disposicional do
poeta na sua paixão pela vida e as variadas formas desse intercâmbio.
Esta leitura permite constatar a complexidade do alfabeto disposicional
da natureza humana e a sua íntima relação com a percepção do mundo,
salientando a particularidade do ponto de vista do poeta, que assenta na
multiplicidade da própria vida. Mas este ponto de vista levanta alguns
problemas a propósito da sua viabilidade, na medida em que se afasta
dos parâmetros comuns em direcção a uma infinitude que o sujeito, na
sua irremediável finitude, parece não conseguir abranger.
PALAVRAS-CHAVE: Poeta. Disposição. Totalidade. Vida
1
UNL – Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas. Lisboa – Portugal. Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa [email protected]
2
UNL – Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas. Lisboa – Portugal. Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
269
I celebrate myself, and sing myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.
I loafe and invite my soul,
I lean and loafe at my ease observing a spear of summer grass.
My tongue, every atom of my blood, form’d from this soil, this
air,
Born here of parents born here from parents the same, and their
parents the same,
I, now thirty-seven years old in perfect health begin,
Hoping to cease not till death.
(Walt Whitman, 2007, p. 52)
A Ode Marítima é um dos poemas mais longos e mais intensos
de Álvaro de Campos. Com cerca de noventa estrofes, o poeta pretende
assinalar o seu desejo de abranger a totalidade da vida marítima,
através de descrições que desvelam a sua variedade disposicional. A
circunscrição das disposições, com ou sem consciência do poeta - mas
quase sempre ciente delas -, está intimamente associada à percepção do
mundo. E, neste caso, mundo não se limita, apenas, ao visível, mas
também ao que a memória e a imaginação apresentam. A análise que
doravante realizo centra-se, portanto, na tentativa de compreensão das
disposições em causa (e do que as caracteriza) e da relação do autor
com o mundo marítimo. Este estudo tem um intento mais lato, que
assinala, através desta Ode, mas presente noutros textos de Campos (e
noutros autores poéticos), a paixão absoluta pela vida, numa dimensão
que ultrapassa o mero desejo de existir em consonância com o mundo
marítimo e com as possibilidades que ele abre, e que se relaciona
intimamente com uma natureza ilimitada do poeta, que procura não
somente uma identificação com elementos específicos que o seduzem,
num apelo que a existência perpetuamente valida, mas uma
permanente identificação com a totalidade da vida. Como Emerson
assinala, «To the poet, to the philosopher, to the saint, all things are
friendly and sacred, all events profitable, all days holy, all men divine»
(Emerson, 1841). A Ode Marítima serve, então, o propósito de uma
primeira clarificação do ponto de vista em causa, especialmente
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
270
radicado no alfabeto disposicional que caracteriza o autor, na medida
em que é através daquele que se compreende a relação de afecção entre
o sujeito e o mundo.
Podemos dividir o poema em duas partes essenciais: a primeira
caracterizada pela fúria da vida marítima com o desejo de totalidade
implícito, e a segunda pela anulação deste êxtase. Perante estes dois
pólos, identificarei as principais disposições presentes e o modo como
se revelam na relação com a percepção e com a compreensão que o
poeta tem de si próprio. A ordenação da Ode não é arbitrária, mas não
sendo possível uma análise estrofe a estrofe, apontarei os elementos
mais relevantes, seguindo a apresentação de Campos, de modo a
clarificar a variação de perspectiva em causa.
As duas primeiras estrofes da Ode funcionam como uma
introdução do poeta e, como tal, menos marcadas por uma forte
disposição. Enquanto descrição inicial, há uma serenidade curiosa que
se desprende destes versos, e que acompanham um ligeiro
contentamento pelo surgimento de determinados elementos. Esta
serenidade é uma presença pouco assídua, e apenas vamos reencontrála no final do poema, também de forma muito breve. Na primeira
estrofe, Campos elucida-nos a sua localização - no cais deserto,
sozinho - e o tempo - uma manhã de verão. As coordenadas
estabelecidas pressupõem a solidão do sujeito como condição
imprescindível, como Rilke ilumina: «Só o indivíduo que está só é
como uma coisa submetida às leis profundas e quando sai, ao
despontar da manhã, ou contempla o entardecer tão cheio do que
acontece, e quando sente o que aí se sente, despe-de da sua condição,
como um morto, embora esteja pura e simplesmente no cerne da vida»
(Rilke, 2002, p. 60).
Nesta definição de coordenadas, prossegue imediatamente para
aquilo que lhe chama a atenção e que é o ponto de partida para toda a
descrição ulterior - a entrada de um paquete no cais, que corresponde à
aproximação da manhã e ao despertar da vida marítima. Este paquete,
apesar de ser o menos nítido no ambiente do poeta, não é só objecto de
percepção imediata, mas relaciona-se com as condições que o
envolvem: a Distância, a Manhã e a Hora. O paquete é esse paquete
enquanto visível àquela distância, rodeado por aquela manhã e
existindo naquela hora. A alteração destes pontos implica não uma
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
271
anulação do paquete, mas do paquete-como-visto, cujas coordenadas
variáveis condicionam a sua apresentação ao olhar de Campos. Por
outro lado, a aplicação das três condições parece remeter, pelo modo
como Campos as indica, para a existência perpétua desses fenómenos
incorporados em manifestações particulares para o poeta, i.e., a
Distância na sua totalidade, naquele caso aparecida como determinada
(logo parcial), a Manhã como fenómeno absoluto, e manifestado
repetidamente ao longo dos dias, e a Hora, não só como instante, mas
como aquela que comporta todos os momentos para além do presente –
a eternidade. A consciência destas condições, do envolvimento do
paquete e da sua representação, remetem, num momento, para algo
como a náusea do espírito do poeta, que acompanha, por um lado, a
consciência de uma aparente separação entre o que sente e o que vê, e,
por outro, a consciência de que o mundo pode e afecta a sua gama
disposicional.
O avistamento do paquete leva Campos à compreensão de que
o que está em causa não é o objecto em si, mas o que esse objecto
representa, no sentido em que comporta novas possibilidades. Cada
possibilidade expressa corresponde ao desconhecido para o poeta: o
que está em cada pessoa que chega e parte do cais; que memórias e
momentos estão registados de outros lugares nunca vistos, de outros
cais, de outras pessoas, de outros portos. É, por conseguinte, o paquete
um condutor de desconhecido e, como tal, de abertura de
possibilidades. E na consciência deste mundo incógnito o poeta sente
perturbação, medo, ameaça. A partida e a chegada ao porto
representam algo “terrivelmente/Ameaçador de significações
metafísicas” (Campos, 1915, p.131) . Através do desconhecido que
estas possibilidades carregam, a determinação do sujeito fica em
perigo, na medida em que pode ganhar uma nova dimensão existencial,
aumentar, restringir ou alterar o seu conjunto de modos de ser.
Perante a perturbação sentida, Campos estabelece, no início da
estrofe, o auge: todo o cais suscita saudade. Trata-se da abertura de
possibilidades que não fizeram parte do poeta e que, por isso mesmo,
redundam em saudade do que não foi. Mas o olhar de Campos
direcciona-se para a partida do navio que deixa um espaço entre si e o
cais, constituindo este, agora, o horizonte visual que “desperta”
Campos para outras disposições. O espaço entre a entidade que parte e
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
272
a que fica, numa espécie de preenchimento que falta, torna-se o ponto
que é focado e que leva o poeta a sentir uma “angústia recente”, uma
“névoa de sentimentos de tristeza” (Campos, 1915, p.132). O
aparecimento destas disposições é repentino e substitui a saudade
anterior, sem que seja clara a consciência do que realmente subjaz
nesta alteração. O carácter repentino desta transição disposicional
acompanha a variedade direccional do olhar do poeta e indicia, no
reconhecimento que Campos afirma delas, a sua própria
superficialidade, como um rodopio que abrange uma escala
diversificada, mas cuja instituição de cada disposição não é mais do
que momentânea - no presente. A própria descrição da tristeza é
assinalada como névoa, portanto indeterminada. Mas é importante
notar que há uma relação entre a angústia e a tristeza, por duas vezes
indicada por Campos. A primeira pelo seguimento que o poeta revela,
i.e, da angústia surgiu a tristeza, e a segunda pela ligação da última,
novamente, à angústia, pois a névoa de tristeza “brilha ao sol das
minhas angústias relvadas” (Campos, 1915, p.132). Parece esta indicar
uma estreita relação entre as duas disposições, na medida em que é
através da angústia que se ilumina a tristeza sentida. Por outro lado, a
qualificação da angústia como “relvada” remete para uma
intensificação da disposição, um preenchimento dela, talvez sugerindo
uma complexidade, quiçá profundidade que o reconhecimento prévio
anula enquanto sentida no imediato. A clarificação do seu estado,
mesmo que superficial, é acentuada pela comparação que o verso
seguinte contém: “Como a primeira janela onde a madrugada bate”
(Campos, 1915, p.132). Há, portanto, uma passagem do que estava
velado para o que é agora evidente. Mas esta percepção não é
transparente, pois acciona relações com Outro que o poeta desconhece
e que podia ser ele, mas não é para além desse reconhecimento de
possibilidade. A clarificação do que sucede que “o envolve como uma
recordação duma outra pessôa/Que fôsse misteriosamente minha”
(Campos, 1915, p.132) revela esta dualidade: a clareza é parcial e só
abarca, por um lado, o conteúdo disposicional e, por outro, o
aparecimento de possibilidades desconhecidas que continuam
desconhecidas. O resultado efectivo da abertura do conjunto de
possibilidades que cada chegada e partida humana proporcionam
permanece na escuridão para o poeta. Na angústia e no medo deste
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
273
reconhecimento do enorme desconhecido que a viagem e o mundo
comportam, Campos aventa a própria limitação do conhecimento que
tem de si e do significado do seu presente. Ciente disto, ainda mais
contribui para a sua ignorância o surgimento em si da descrição de um
mundo hipotético que sustentasse a sua actualidade, um mundo
platónico, a partir do qual tudo o mais seria réplica, numa tentativa de
encontrar um sentido: “O Cais Absoluto por cujo modêlo
inconscientemente imitado,/Insensivelmente evocado,/Nós os homens
construímos/Os nossos cais nos nossos portos” (Campos, 1915, p.132).
Estabelecido este outro mundo prévio àquele agora percepcionado por
Campos, a perspectiva do seu viajante também se altera: se Campos
agora observa estando no cais, o de outrora percepcionaria saindo do
cais, numa posição oposta ao primeiro (aquele que está no porto aquele que se afasta do porto), vendo “Um grande cais cheio de pouca
gente” (Campos, 1915, p.132), consciente de que esse cais não existe
por si só, mas dentro “Duma grande cidade meio-desperta,/Duma
enorme cidade comercial, crescida, apoplética” (Campos, 1915, p.132).
A perspectiva é, então, crescente, no sentido em que não só está focada
num determinado ambiente - o cais -, mas no envolvimento desse
ambiente - a cidade -, ciente de que não é possível pensar a
possibilidade fora das coordenadas espácio-temporais. A limitação do
Poeta revela-lhe que a sua percepção do mundo condicionará sempre
todas as suas criações. Para além desta inevitável apropriação do
mundo enquanto relacionado com o Espaço e o Tempo, a descrição
breve da Cidade-Outra é incisiva: meio-desperta, comercial, crescida,
apoplética. Paralelo evidente com o que está presente à vista do poeta
(a manhã, o início do movimento no cais, a cidade moderna das
máquinas), também é curioso que o último adjectivo da cidade não
seja, em princípio, arbitrário: apoplético, que tanto pode indiciar um
carácter de irritabilidade quanto uma (ameaça de) suspensão de
sensibilidade e movimento, sugerindo uma cidade num estado de
indefinição e de incerteza, num limbo, suspensa entre dois pólos
divergentes. A angústia que caracteriza esta possibilidade e que leva
Campos à expansão deste modelo ideal também lhe permite constatar
que a clarificação do mundo ocorre num instante, no aparecimento de
um horizonte total das coisas, i.e., uma abertura repentina e imediata
do que está no mundo, do perceptivo, da consciência num momento da
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
274
diversidade constitutiva desse horizonte, repleta de “Cousas-Reais,
Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas” (Campos, 1915, p.132).
É a abertura súbita deste horizonte, que assenta numa visão da
totalidade do mundo perceptivo num instante, numa passagem do nãovisto para o visto, um aumento de acuidade do ponto de vista, ou
aumento de lucidez, “Quando no mundo-exterior como que se abre
uma porta/E, sem que nada se altere,/Tudo se revela diverso” (Campos,
1915, p.132). Não é o que está no mundo que sofre alterações, mas é a
perspectiva, a interpretação do mundo que já não é igual, e, desse
modo, a amplitude do ponto de vista, a claridade do que é visível,
aumentam. Mas esta lucidez do poeta não lhe traz contentamento, mas
ansiedade e angústia, perante a abertura de um novo desconhecido
ainda mais assustador, que novamente acentua a sua limitação, através
da emergência de dúvidas: “De que porto? Em que ágoas? E porque
penso eu isto?” (Campos, 1915, p.132).
Da consciência prévia do desconhecimento do Cais Absoluto,
Campos retoma a visão do que está presente no imediato - o Caisréplica -, e do que a partir dele se proporciona. O cais à vista contém
navios ancorados com “bulício a bordo” (Campos, 1915, p.133), que
transportam gente de “alma errante e instável”, “que passa e com quem
nada dura” (Campos, 1915, p.133). A variedade e mutação contínua
serão os elementos que doravante despertarão a atenção do poeta,
salientando o constante movimento de perspectiva entre as várias
entidades visíveis - o cais e os navios - e menos visíveis - as pessoas a
bordo, carregadas de possibilidades que se alargam com a própria
acção de partida, numa instabilidade que Campos nomeia, e que ele
próprio desejará, resumida no adjectivo “errante”, denunciador da
condição apólida dos viajantes perpétuos. A permanente
movimentação e consequente alteração do que existe é sublinhada no
fim da estrofe, quando o poeta novamente redirecciona a atenção para
o navio que regressa ao porto, no qual “Ha sempre qualquer alteração a
bordo” (Campos, 1915, p.133). Do cais como imagem reflectida nas
águas sem movimento, toda a estrofe está assente na contínua agitação
de níveis espacialmente encaixados. O retomar do presente e das
possibilidades que a viagem contém aumenta a ansiedade do poeta e a
sua angústia da possibilidade, apesar do desejo que essa abertura
desperta. De tal modo é notória a ânsia que o poeta assume logo no
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
275
primeiro verso: “Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!”
(Campos, 1915, p.133). A viagem funciona, então, como uma fuga
contínua do que está presente, do que se é, fuga do conhecido e
familiar em direcção a outro horizonte, manifesto ainda pela
embriaguez do diverso, já indício do que Campos posteriormente irá
explorar na sua fúria de viver o mundo marítimo. A referência à
partida do Navio que “larga do porto” (Campos, 1915, p.133) marca a
transição para o poeta deixar de ver o que as entidades do mundo
significam e passar para uma perspectiva das possibilidades para si,
num estado de início de êxtase que as suas palavras marcam
fortemente. Com o desejo de “Fluctuar como alma da vida, partir como
voz” e “Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas”
(Campos, 1915, p.133), Campos mostra a sua vontade de experienciar
o presente da navegação, num agora que não existe enquanto ponto
fixo, tremulamente dividido entre o que foi e o que será, em transição
perpétua, num em-formação temporal. De seguida, o fenómeno de
acordar, o despertar repentino para um horizonte formado por “dias
mais directos que os dias da Europa” (Campos, 1915, p.133) prende-se
com a própria vivência de Campos, em que o arrastamento de si por
horas que passam sem interesse, cheios apenas do vazio que o
consome, contrastam com o desejo de vida - a avidez - que subjaz à
própria fuga para o longínquo. Não é apenas a visualização do que é
novo, inédito, mas a alteração da estrutura vivencial do poeta que,
perante um novo horizonte de possibilidades que se abre com a
viagem, pode ser realizada em direcção a algo que mais o familiarize
com a existência, que o misture nela, que o preencha alheiamente. Esta
noção do despertar para um novo estar no mundo intimamente se
relaciona com a visão, a percepção dele, onde cabe “Vêr portos
misteriosos sôbre a solidão do mar” (Campos, 1915, p.133),
acentuação da eterna ida e vinda da navegação, em que o plural de
porto remete para essa imparável viagem de exploração do
desconhecido - da possibilidade -, complementado com a ideia de
“Virar cabos longinqùos para súbitas vastas paisagens/Por inumeráveis
encostas atónitas” (Campos, 1915, p.133), que anunciam a vastidão do
desejo do poeta. A navegação é um instrumento que permite chegar a
diferentes destinos, nunca parar, nunca permanecer, e estabelecer a
existência como contínua transformação da experiência e do
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
276
percepcionado, anulando, assim, o fechamento de horizonte de
possibilidades e a manifestação de familiaridade com o mundo
perspectivado sempre diferente.
Continuando a descrição do que seria a viagem, ou viagens,
Campos refere agora a própria percepção variável do mundo com as
suas entidades. Das “praias longinqùas, os cais vistos de longe”
(Campos, 1915, p.133), de quem se aproxima do porto, passa-se para
“as praias proximas, os cais vistos de perto” (Campos, 1915, p.133), na
anulação da distância, no encurtamento do que é visível e do modo
como é visível, assinalando nesta dualidade de perspectiva “o mistério
de cada ida e de cada chegada” (Campos, 1915, p.133). Mistério que se
sente na angústia perante “A dolorosa instabilidade e
incompreensibilidade/Dêste impossível universo” (Campos, 1915,
p.133). Estamos, então, novamente, no ponto fulcral para o poeta: a
consciência da diversidade e das possibilidades encerradas na última
revela a ausência de sentidos subjacentes à multiplicidade, e a repetida
impotência proporcionada por ela, que a vida marítima, pelos seus
traços de contínua metamorfose, ainda mais evidencia. A familiaridade
que a imersão no mundo suscita é anulada nesta via primordialmente
vivida enquanto desfamiliarização no contacto permanente com a
novidade. E na consciência desta condição aparentemente inabalável,
irrompe o conflito entre o desejo do desconhecido e a incapacidade de
entrever sentido nele, estendido por “extensões de mares diferentes
com ilhas ao longe” e “ilhas longinqùas das costas deixadas passar”
(Campos, 1915, p.133), intercaladas com a percepção do “crescer
nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente” (Campos, 1915,
p.133). Temos novamente a multiplicação de planos de visualização,
encaixados espacialmente entre si, num alargamento do campo
visionado como uma abertura sequencial do envolvimento das
entidades, mas inverso - do cais, plano alargado, passa-se para as
casas, nele contidas e depois para as pessoas que habitam. A mudança
de ponto de vista entre o perto e o longe é um modo de relacionamento
com o mundo que atesta a sua diversidade, desejada e simultaneamente
temida por Campos.
Da visualização do que está presente, Campos envereda agora
para a afectação que esse mundo novo causaria em si (ou num Outro),
novamente iniciando a sua descrição por um contraste de chegada e
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
277
partida, cuja qualificação da manhã não parece despicienda: à chegada,
“a frescura das manhãs”; à partida, “a palidez das manhãs” (Campos,
1915, p.133). A realização de uma possibilidade - a chegada a
determinado lugar - comporta a clarificação dessa mesma
possibilidade, agora já não hipótese mas acto, elucidando o
alargamento do horizonte, perturbado novamente pela partida, que
dissolve a limpidez da aquisição em prol da opacidade que o
desconhecido sustenta. A clareza reduz-se no afastamento do familiar,
mas não só esta clareza se manifesta como sintoma da fuga, pois esta
está ligada a uma gama disposicional que o poeta revela, numa
transição entre obstrução física e não-física. Assim, a partida do cais e
do que tal implica sustenta-se como situação que permite ao poeta
assinalar o que sente, “quando as nossas entranhas se arrepanham”, e
surge uma “vaga sensação parecida com um mêdo” (Campos, 1915,
p.133). Este medo é uma disposição primordial, pois é o Desconhecido
que funciona aqui como impulsionador da disposição. Também não é
apenas o medo de um sujeito X que se aventura e compreende as
implicações temerosas dessa aventura, mas como o próprio Campos
refere, é “O mêdo ancestral de se afastar e partir,/O misterioso receio
ancestral à Chegada e ao Novo” (Campos, 1915, p.133). É uma
disposição primordial que assenta numa relação igualmente primordial,
ou ancestral, com o mundo: o confronto com o que não se conhece,
com o que não reside na área de familiaridade e conforto do
quotidiano, dentro das possibilidades que constituem o horizonte de
cada um. Este encontro em que a perspectiva é cega, pois carece de
elementos que a possam constituir como algo concreto, mesmo que
irreal, é provocador de sintomas que o medo corrobora ― “Encolhenos a pele e agonia-nos” (Campos, 1915, p.133) ― e que leva o sujeito
a uma tentativa de escapar desse medo, procurando, para isso, o
contacto com o familiar: “todo o nosso corpo angustiado sente,/Como
se fôsse a nossa alma,/Uma inexplicável vontade de poder sentir isto
doutra maneira” (Campos, 1915, p.133). A outra maneira, como
Campos entende, só ocorre mediante a anulação do medo e a sua
substituição por uma disposição menos repelente. No processo de
procurar o caminho que liberte o sujeito do medo sentido, ocorre, por
conseguinte, a urgência da sensação de imersão no mundo enquanto
íntimo do sujeito e, perante a separação desse ambiente habitual, é a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
278
saudade que desperta como resultado. Pergunta o poeta: “Uma saudade
a qualquer cousa,/Uma perturbação de afeições a que vaga patria?/A
que costa? a que navio? a que cais?” (Campos, 1915, p.133). E sem
resposta a estas indagações, i.e, sem familiarização localizada em
qualquer ponto espacial, sobra apenas, numa saudade que termina em
desejo infrutífero, o vazio do apátrida. Assim, “adoece em nós o
pensamento/E só fica um grande vácuo dentro de nós” (Campos, 1915,
p.133).
Este esvaziamento ou esta estranheza absoluta do mundo,
apesar de o sujeito já lá estar imerso, implica, por sua vez, uma
alteração disposicional relativa à prossecução da viagem e do desejo
marítimo. Da euforia causada pelas possibilidades que se abriam e da
ulterior consciência da dualidade entre o familiar e o estranho, a
procura do Novo perde a sua intensidade, e transforma-se numa “ôca
saciedade de minutos marítimos” (Campos, 1915, p.134), numa
anulação do despertar prévio e numa nivelação do que está agora
presente, mesmo como leque infinito de possibilidades. O
desconhecido perde a sua atracção e o poeta esmorece numa
“ansiedade vaga que seria tédio ou dôr” (Campos, 1915, p.134). Mas
esta ansiedade não se torna nem tédio nem dor, pois não sabe ser
nenhum, como o poeta ainda afirma, deixando a pairar, então, aquela
vaga ansiedade de algo que não se alcança.
Campos regressa, após esta revelação disposicional negativa, ao
presente que o envolve, recaindo neste e nas sensações provocadas, na
transição de um apagamento anterior para uma renovação do êxtase da
avidez da vida, ulteriormente levado ao extremo. Neste momento, o
“paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida”
(Campos, 1915, p.134), mas a distância do paquete é impossível de
determinar, e a sua aproximação deriva da interpretação da
probabilidade e não da percepção. A alusão a esta discrepância entre o
visto e o assumido como real tem pertinência para a função essencial
da imaginação, que será o grande motor do transe de Campos. A
imaginação constituirá, no poeta, o instrumento que lhe permitirá
constatar a multiplicidade da vida, como Keats ilumina:
I feel more and more every day, as my
imagination strengthens, that I do not live in
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
279
this world alone but in a thousand worlds—No
sooner am I alone than shapes of epic greatness
are stationed around me, and serve my Spirit
the office which is equivalent to a King’s
bodyguard (...). According to my state of mind
I am with Achilles shouting in the Trenches, or
with Theocritus in the Vales of Sicily. Or I
throw my whole being into Troilus. (Keats,
1925, p. 180)
A ânsia de Campos nunca desaparece, especialmente evidente
na sedução da vida marítima, como algo que faz parte do seu sistema e
que o leva a ser incapaz de virar costas à interpretação dos sentidos das
viagens. A ansiedade que anteriormente indicou espalha-se novamente
na persistente recuperação de imagens suscitadas pelo conceito de
viagem marítima: “as linhas das costas distantes, achatadas pelo
horizonte!/Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!/As solidões
marítimas” (Campos, 1915, p.134). Mais uma vez de uma perspectiva
longe-perto-efeito disposicional, o poeta interpreta as possibilidades. A
solidão a que se refere liga-se ao reconhecimento da pequenez de si
comparada com aquilo que avista. A vastidão pode “pesar sôbre os
nervos” (Campos, 1915, p.134) e anunciar o esvaziamento do poeta,
pois “o mundo e o sabôr das coisas tornam-se um deserto dentro de
nós” (Campos, 1915, p.134). Nesta percepção de vazio não só está
presente a insignificância do homem, nulo perante algo como o
oceano, mas particularmente a estranheza de tudo, de tal modo que a
relação com o mundo é como um deserto e o sentido da existência
perde-se. Mas se o oceano desperta este contraste, não é por isso que o
poeta se afasta do intento: o desejo de abarcar a imensidão do mundo
está constantemente presente, mesmo quando, ou talvez por essa
consciência, reconhece o vácuo em si. Assim, prossegue no seu desejo
de navegação absoluta: “Todos os mares, todos os estreitos, todas as
baïas, todos os gôlfos,/Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e
morrer!” (Campos, 1915, p.134).
Do desejo de sentir tudo e morrer, como num ímpeto a recolha
da totalidade da vida que após esse instante se pode apagar,
permanecendo, assim, fixada, Campos introduz uma nova alteração e
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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dirige-se directamente às entidades, num pedido que já evidencia a
mistura física como meio de pertença. Na frenética listagem de
algumas peças do navio, Campos compreende que não é apenas um
querer sentir em si cada uma separadamente, mas, ao invés, um
amontoado de coisas indefinidas, novamente num instante, de repente,
numa tentativa de totalidade fechada em unidade: “Caí, por mim
dentro em montão, em monte,/Como o conteúdo confuso de uma
gaveta despejada no chão!” (Campos, 1915, p.134). Num rompante de
sensações, o poeta encontra na vida marítima o conteúdo que despoleta
e o enriquece disposicionalmente, numa relação mais intensa de
afectação entre si e o mundo, de tal modo que a invocação continua
numa espécie de súplica e de ansiedade veemente: “Sêde vós o tesouro
da minha avareza febril,/Sêde vós os frutos da árvore da minha
imaginação,/Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha
inteligência” (Campos, 1915, p.134). Este conteúdo tem, por
conseguinte, uma dupla função: enquanto matéria de preenchimento
disposicional e enquanto matéria de inspiração discursiva. A
preciosidade que é constituída está ligada intimamente a um apego
extremo, a uma avareza, sintoma do seu desejo de nunca anular essa
pertença, tudo num registo de exaltação quase doentia, onde o poeta
pretende expandir a relação que estabelece com esse “tesouro”,
tornando-o, para tal, matéria de transformação e de afirmação/fixação
que a palavra confere, num deambular entre o que é visto, sentido e
imaginado. Enquanto material de criação artística, a entidade pode ser,
então, fornecedora de “metáforas, imagens, literatura” (Campos, 1915,
p.135), como o poeta o faz, consciente e incidindo agora nesse facto,
que o permite simultaneamente olhar-se a si mesmo, compreender a
estrutura que o rege enquanto ser, de modo que mais uma vez aponta
para si, iluminando a sua constituição: as sensações são como “um
barco de quilha pró ar”, a imaginação como “uma âncora meio
submersa”, a sempre presente ânsia como “um remo partido” e, por
fim, a tessitura nervosa como “uma rêde a secar na praia” (Campos,
1915, p.135). Assim, o conteúdo do navio é, como o poeta assume, a
fonte a partir da qual o poeta se vê, já não num desejo de querer aquilo
que não tem, ou melhor, de ser aquilo que não é, mas do ponto de vista
da qualificação de si a partir de elementos exteriores da vida marítima.
A qualificação é pertinente: as sensações são como uma quilha
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invertida, o que imediatamente aponta para o facto de a estrutura da
sensação estar ao contrário do que é expectável, do mesmo modo que a
quilha sustenta a estrutura do navio, virada para baixo; a imaginação é
um campo de possibilidades, pois uma âncora meio submersa
compreende a incapacidade de acesso à sua totalidade, do mesmo
modo que a imaginação é uma estrutura aberta, no sentido em que o
sujeito não sabe os seus limites nem o conteúdo que ali pode ser
constituído; a ansiedade como um remo partido pode remeter para a
presença contínua da disposição, na medida em que o facto de o remo
não funcionar parece implicar uma fixação (dali não pode sair) e, de
facto, é das disposições mais permanentes no poeta; por último, a
tessitura nervosa enquanto rede a secar na praia parece mais vasto,
uma vez que a tessitura refere-se à organização, o que assinala a
disparidade disposicional que assalta Campos, pois a rede tem uma
estrutura de fios entrelaçados que, estando na praia a secar, revelam o
seu carácter não funcional, mais uma vez alertando para uma
discrepância relativamente a uma qualquer ordem comum.
A acompanhar o reconhecimento da sua estrutura invulgar e da
ansiedade que se manifesta, Campos não consegue impedir o
aparecimento da nostalgia, na sua procura do pertencente ao passado.
Se, por um lado, o poeta deseja, enquanto totalidade, abarcar as mais
diversas manifestações da vida marítima, por outro, este desejo assume
feições nostálgicas quando há uma contraposição entre o presente
percepcionado e o passado ausente. O significado do passado marítimo
- dos veleiros e barcos de madeira - reveste-se do sentido do longínquo
e do desconhecido de modo nítido, caracterizado como uma “vida
melhor”, na qual o tempo e o horizonte de possibilidades são
diferentes.
Este desejo mais uma vez inconcretizável acentua a fúria de
Campos - o desejo da totalidade - e a imaginação toma novamente o
lugar preponderante, permitindo-lhe uma explosão cada vez mais
violenta de manifestar e de desenvolver os seus desejos, perdendo-se
num transe que anula a sua relação consciente com o imediato.
Campos afirma a força do chamamento da vida marítima,
irresistível, anunciadora de possibilidades, que desperta toda a
ansiedade do poeta que assim se descreve: “Sinto corarem-me as
faces./Meus olhos conscientes dilatam-se./O extase em mim levantaGUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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se, cresce, avança” (Campos, 1915, p.136). A vida marítima, vista
como um amor passado do poeta, não é apenas um apelo que o faz
desejar ir ao seu encontro, mas também instrumento que clarifica os
limites da sua própria situação. Assim, Campos deseja partir,
concretizar a abertura de possibilidades, “ir, ir, ir, ir de vez!” (Campos,
1915, p.137), num descontrolo com laivos histéricos: “Todo o meu
sangue raiva por asas!/Todo o meu corpo atira-se prá frente!Galgo pla
minha imaginação fora em torrentes!Atropelo-me, rujo, precipitome!/Estoiram em espuma as minhas ânsias/E a minha carne é uma
onda dando de encontro a rochêdos!” (Campos, 1915, p.137). É clara a
intensificação do desejo que acompanha a intensificação da disposição,
da fúria pela vida, cuja violência assalta toda a estrutura de Campos.
Na sua divagação enlouquecida, encontramos algumas vezes a
transição entre o desejo de totalidade e a consciência do poeta sobre a
sua própria limitação, e mediante isso, um novo rompimento da fúria,
até o transe abarcar completamente o autor. É no âmbito da violência e
da dor que todos os ímpetos de Campos se situam, ilustrados na vida
marítima, no desejo de excesso, decerto, mas principalmente da
anulação moral que a própria totalidade pressupõe, na medida em que
não é só uma procura do que causa prazer e do que satisfaz, mas,
largamente expresso, da dor e do horror que a destruição comporta,
isto é, de tudo o que constitui a vida.
Perante isto, Campos inclina-se primeiramente para o que há de
mais vivo na vida marítima e que a desenrola - o homem. Aqui,
significa todos os homens que de algum modo estão relacionados com
a viagem, não só o próprio viajante que tem esse fito, mas cada um dos
tripulantes do navio, para os quais a familiaridade é esta vida de
contínua alteração. Assim, Campos invoca cada um dos marinheiros:
“Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!/Navegadores,
mareantes, marujos, aventureiros!/Eh capitães de navios! homens ao
leme e em mastros!” (Campos, 1915, p.137). E após esta, chega a vez
de Campos assinalar, por um lado, as características marcadas pela
vida do mar e, por outro, as possibilidades que se abrem na viagem,
inéditas e sem realização para o poeta, mas familiares para os
viajantes/marinheiros ― “Gente escura de tanto sol, crestada de tanta
chuva,/Limpa de olhos de tanta imensidade diante dêles,/Audaz de
rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!” (Campos, 1915,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
283
p.137). É nítida a satisfação sentida nesta descrição extasiada, que
precede a enunciação de novos horizontes, cuja novidade retorna
Campos ao seu próprio esvaziamento, mediante aquilo que não
realizou.
Mas não é só o presente que o desperta, como outrora se
verificou, mas também os marinheiros passados, históricos, símbolos
da descoberta que permitiram o mundo presente: “combatentes de
Lepanto/Piratas do tempo de Roma/Navegadores da Grécia!/Fenícios!
Cartaginêses! Portuguêses atirados de Sagres/Para a aventura
indefinida, para o Mar Absoluto, para/realizar o Impossivel!”
(Campos, 1915, p.138). A fúria do poeta é crescente, e sucedem-se as
inclinações para vários ângulos, numa composição que vai abarcando
aspectos da totalidade da vida marítima.
A saudação final de Campos acentua o estado de agitação
furiosa, em que se pretende a reunião de tudo num único momento: “A
vós todos num, a vós todos em vós todos como um,/A vós todos
misturados, entrecruzados,/A vós todos sangrentos, violentos, odiados,
temidos, sagrados,/Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!”
(Campos, 1915, p.138). A vivência alheia, em extremo, é desejada com
o intuito de perder as amarras da civilização, numa tentativa de
libertação absoluta, numa fuga de si próprio: “Fugir comvôsco à
civilisação!/Perder comvôsco a noção da moral!/Sentir mudar-se no
longe a minha humanidade!/Beber comvôsco em mares do sul/Novas
selvagerias, novas balbúrdias da alma,/Novos fogos centrais no meu
vulcânico espírito!/Ir comvôsco, despir de mim — ah! põe-te daqui pra
fora” (Campos, 1915, p.138-139). Versos que mais uma vez revelam o
ímpeto extravagante e violento do poeta, neste desejo de tudo, mas
agora como instrumento claro de despedaçamento de si em busca de
um novo, de afastamento das convenções, da sociedade e da
civilização para um despertar da natureza mais básica, mais instintiva,
repleta de entusiasmo e dureza. Há, portanto, uma consciente
necessidade de transformação total, de procura de novos horizontes de
possibilidades como meio de mudança. Do “traje de civilisado” e da
“brandura de acções” (Campos, 1915, p.139), Campos quer o oposto, o
extravasamento das sensações, o despojar-se de uma máscara, em
direcção ao desregramento do puro sensacionismo, num desejo de
anulação da vida “sentada, estática, regrada e revista!” (Campos, 1915,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
284
p.139). É através do mar que o poeta vislumbra essa possibilidade, em
que as disposições se tornam mais intensas devido ao desejo
estonteante da absorção de outra vida. E de tal modo esta necessidade
de violentação de si está presente que toda a sua descrição histérica
promove esta ideia, como forma de acolher as sensações.
O poeta assume um prazer masoquista nestas divagações, que
mais enérgicas se tornam com o êxtase que aumenta, e neste fundo
disposicional, propõe-se a entrega completa, num despojamento de si
e, todavia, mantendo sempre o interesse em si: “Fazei o que quizerdes
de mim, logo que seja nos mares,/Sôbre convezes, ao som de
vagas,/Que me rasgueis, mateis, firais!/O que quero é levar prá
Morte/Uma alma a transbordar de Mar,/Ébria a caír das cousas
marítimas” (Campos, 1915, p.139). Nos vários desejos que o poeta
expressa, sobressai a brutalidade de uma esperada intimidade e a
tormenta que se torna contentamento pela expectativa da sensação. A
histeria do poeta é continuamente alimentada pelas imagens sangrentas
que a sua imaginação desvela e que acentuam a sensação e a
destruição, perdido num desgoverno em que a fúria, o ardor, a ausência
de limites morais subsistem veementemente. Neste desejo de
totalidade, o desvario alimenta a sensação e a sensação alimenta o
desvario, numa escalada ininterrupta e aniquiladora: “Pilho, mato,
esfacelo, rasgo!”(Campos, 1915, p.141).
Apesar de estar consciente de que o seu transe não passa de
divagação, de que tudo se concentra no sonhar acordado, o poeta
compreende que o desejo de totalidade sensacionista e a realização
fictícia dele funcionam como anuladores da insuportável lucidez que
aniquila a familiaridade da vida. Na enumeração enérgica procura
Campos abarcar os vários aspectos dos actos, desde a sua execução até
ao ambiente que os envolve e caracteriza, apenas para firmar o seu
desejo de ser a totalidade prévia, de tornar-se a vítima voluntária que
recebe o todo da acção e, a partir deste, que o próprio ser do poeta se
torne a acção, assinalando uma mudança, na medida em que do
anterior querer sentir tudo passa para o querer ser tudo.
O ímpeto histérico de Campos, que varia entre o desejo de
subjugação e de celebração, condu-lo a compreender a dimensão do
seu desejo: “Não era só isto que eu queria ser — era mais que isto, o
Deus-isto!” (Campos, 1915, p.143). Não se trata de um Deus cristão,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
285
mas, pelo contrário, de um Deus invertido, mais próximo do
paganismo, “monstruoso e satânico” (Campos, 1915, p.143), que
acolhesse também a violência do mundo, uma vez que a totalidade se
manifesta precisamente nesse englobar completo, sem limitações
morais, sem distinções, atentando apenas no que existe como existente:
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao
contrário,/Um Deus monstruoso e satânico, um
Deus dum pantheismo de sangue,/Para poder
encher toda a medida da minha fúria
imaginativa,/Para poder nunca esgotar os meus
desejos de identidade/Com o cada, e o tudo, e o
mais-que-tudo das vossas vitórias! (Campos,
1915, p.143)
Da vontade de ser este Deus, Campos retoma-se como assunto
directo, descrevendo aquilo que o constitui como vítima da acção
alheia, e, como vítima, ainda repleto de práticas sangrentas e
dolorosas, num processo de tortura que serviria como instrumento para
a realização do seu desejo megalómano: da carne “fazei dela o ar que
os vossos cutelos atravessam”; das veias, “os fatos que as facas
trespassam”; da imaginação, “o corpo das mulheres que violais”; da
inteligência, “o convez onde estais de pé matando” (Campos, 1915,
p.143). Como ocorrera anteriormente, determinado nível de explosão
sensitiva redunda no reconhecimento do esvaziamento do poeta, que se
inclina raivosamente para a sua inércia e fraqueza, onde abunda a
frustração: “Eu pr’àqui engenheiro, prático à fôrça, sensível a
tudo/Pr’àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;/Mesmo
quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil” (Campos,
1915, p.143). A consciência de que a histeria não passa de um delírio,
de um desejo que não tem possibilidade de realização pesa em Campos
como um fardo insuportável, que lhe revela permanentemente a sua
limitação e o vazio que sente perante, por um lado, o que a vida
oferece e, por outro, o que a sua ânsia ilimitada procura. O desejo de
Campos é um desejo impossível que apenas a imaginação pode tentar
preencher e apenas num transe passageiro que nunca satisfaz
completamente, uma vez que a consciência da sua falsidade retorna
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sempre, levando-o a um arrebatamento causado pelo malogro presente
e que o faz maldizer a vida actual, apontando-lhe a ausência de fortes
sensações e fortes disposições que rejam o quotidiano, substituído pelo
apagamento:
Arre! por não poder agir d’acôrdo com o meu
delírio!/Arre! por andar sempre agarrado às
saias da civilisação! (...) Estupôres de tísicos,
de neurasténicos, de linfáticos,/Sem coragem
para ser gente com violência e audácia,/Com a
alma como uma galinha presa por uma perna!
(Campos, 1915, p.143)
A crítica de Campos justifica o seu desejo de totalidade, quando
uma vivência mais pacata não pode satisfazer o poeta e, como tentativa
de escapar a esta deficiência, permite que a sua imaginação colmate as
lacunas sentidas e proceda a uma expansão de possibilidades,
interrompida pela lucidez que se interpõe no seu transe e que o obriga
a sair do fictício e a perspectivar-se no imediato, do qual procura fugir.
As febres que a sua ânsia desperta, pelo desejo nunca cumprido,
conservam o poeta extasiado na sua imaginação e a inclinação para a
pirataria é um dos seus acessos mais prementes, uma vez que é nesta
que a violência do mundo marítimo é mais evidente. É neste registo
que Campos gasta as suas últimas tentativas de sentir tudo: “Obrigaime a ajoelhar diante de vós!/Humilhai-me e batei-me!/Fazei de mim o
vosso escravo e a vossa cousa!/E que o vosso desprezo por mim nunca
me abandone” (Campos, 1915, p.144). O despedaçamento de si é a
ideia mais marcada nestes versos, que reflectem a fase final do transe,
e cuja descrição é amplamente violenta, expressando sempre o desejo
de destruição do poeta que, assim, se espalha pela vida marítima: “Ah,
torturai-me,/Rasgai-me
e
abri-me!/Desfeito
em
pedaços
conscientes/Entornai-me sôbre os conveses,/Espalhai-me nos mares,
deixai-me/Nas praias ávidas das ilhas!” (Campos, 1915, p.144). Da
ideia de dilaceração, que lhe dá claramente uma satisfação masoquista,
Campos passa para a ideia de se tornar algo pelos piratas, de se
constituir a partir da vontade deles, num real recipiente de sensações:
“Fazei de mim o pôço para o vosso desprezo de domínio!/Fazei de
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mim as vossas vítimas todas!/(...) Fazei de mim qualquer cousa”
(Campos, 1915, p.144). Mas este êxtase encontra, por fim, um ponto
de ruptura.
Este ponto de ruptura marca a segunda parte da Ode Marítima,
em que o poeta dará conta do apagamento do êxtase e da fúria
anteriores, acompanhado pela melancolia e tristeza perante a sua
consciência do vazio sentido. Toda a descrição doravante assenta no
propósito de revelar o outro lado, o da sua vivência real, afastado dos
sonhos de totalidade. O processo de preenchimento até agora tentado
através da imaginação leva Campos, então, ao esgotamento da
sensação: “Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho
anoiteceu./Senti de mais para poder continuar a sentir./Esgotou-se-me
a alma, ficou só um éco dentro de mim” (Campos, 1915, p.145). O
vazio que emerge e que caracteriza o poeta, não só enquanto
consciente dele, mas enquanto deseja a totalidade, como fuga, ganha
preponderância neste momento em que, com tristeza, Campos
compreende a sua dimensão: “Dentro de mim ha só vácuo, um deserto,
um mar nocturno” (Campos, 1915, p.145). Mas, simultânea à
consciência deste deserto disposicional, irrompe a tentativa de fuga
dele, o procurar sair desse estado e, nesse sentido, surge logo o apelo
do mundo marítimo, “outra vez, o vasto grito antiqùíssimo” que “nasce
do seu silêncio”(Campos, 1915, p.145) (do vazio), numa revolta
imediata contra o vácuo que já não pode ser anulado nem disfarçado. O
aparecimento da possibilidade da vida marítima é agora infrutífero e
causa ternura e nostalgia no poeta, como “Voz de sereia longinqùa
chorando, chamando,/Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da
alma dos Abismos” (Campos, 1915, p.145), revelando, nesse instante,
a perda. E se este mundo marítimo já não impele Campos para o
êxtase, como outrora, o fundo disposicional que agora possui estendese na abertura de um novo horizonte carregado de melancolia - a
infância. Do êxtase para a melancolia, e do presente para o passado, o
poeta recorre, agora, à sua infância como ponto regulador da sua acção
anterior, despertando uma relação completamente diferente com o
mundo desejado. É a partir da revolta automática contra o vazio,
perante o qual o apelo da vida marítima ressurge, mas cuja ruptura já
não permite o retomar efectivo da divagação, que Campos se orienta
para os momentos em que a felicidade se sobrepõe - na infância -,
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288
mostrando-lhe, também, o que nela está perdido e é irrecuperável. O
vazio que antes o impeliu para a satisfação da fúria sensitiva, impele-o
agora para a tristeza melancólica daquela felicidade perdida. Inclinado
para a rememoração do passado, Campos já não tem o mesmo desejo e
reside apenas nas disposições que essas memórias suportam,
susceptíveis de despertar o repúdio da violência prévia. Para além
disto, é na infância que Campos reconhece a fundação para o seu
desejo actual de vida marítima, relembrando a proximidade da casa
com o mar e o seu avistamento das janelas, imagens que não têm
repetição, que passaram “como o fumo dum vapôr no mar alto”
(Campos, 1915, p.146), e que despertam “Uma inexplicavel
ternura,/Um remorso comovido e lacrimoso” (Campos, 1915, p.146)
pela brutalidade que outrora imaginava. A memória da infância
permite-lhe o reconhecimento do sentido de ser criança e, perante isso,
a repugnância dolorosa e arrependida pelo que imaginou no seu delírio.
Depois, este arrependimento de quem recuperou o sentido perdido da
infância acompanha a lucidez de que o delírio fora apenas delírio e, por
isso, surge a alternância do repúdio com a ternura e suavidade do alívio
que provém da irrealidade imaginada. Esta complexidade disposicional
de Campos indica a complexidade da própria existência, onde se
misturam sonhos com memórias, presente com passado, desejo com
acção, numa “ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada”,
que “Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida” (Campos,
1915, p.146). Na amálgama confusa das disposições que emergem,
mantém-se sempre presente o horror do que desejou - “Ah, como pude
eu pensar, sonhar aquelas cousas?” (Campos, 1915, p.146) —, no
reconhecimento de que o delírio não o transformou senão
momentaneamente e que a histeria nada mais foi do que passageira:
“Que longe estou do que fui ha uns momentos!/Histería das sensações
— ora estas, ora as opostas!” (Campos, 1915, p.146). A infância surge
como o verdadeiro plano de fundo do poeta: “todo este tempo não tirei
os olhos do meu sonho longinquo,/Da minha casa ao pé do rio,/Da
minha infancia ao pé do rio,/Das janelas do meu quarto dando para o
rio de noite,/E a paz do luar esparso nas ágoas!” (Campos, 1915,
p.146). A melancolia do poeta está fortemente marcada nestes versos,
em que se assiste ao desenrolar do passado perdido e dos momentos de
comoção da infância, desde a velha tia “que me amava por causa do
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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filho que perdeu” e que “costumava adormecer-me cantandome”(Campos, 1915, p.147) a Nau Catrineta. A lembrança destes
episódios consola, mesmo que tristemente, Campos, cujas “lágrimas
cáem sobre o meu coração e lavam-o da vida” (Campos, 1915, p.147),
num aconchego que finalmente afasta o vazio da existência e o
preenche, por momentos, calorosamente. Mas o sentimento de amor
que perpassa nas memórias é, num instante, consolo e, noutro instante,
dor, quando o arrependimento de Campos e a tristeza de ser quem é se
evidenciam, e marcam a ausência, a perda e o esquecimento:
“Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim/E lembra-me
que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!/Como fui
ingrato para ela — e afinal que fiz eu da vida?” (Campos, 1915,
p.147). E a ternura retorna com a memória da canção da Bela Infanta e
da felicidade sentida, para mais uma vez surgir, de rompante, a
dolorosa tristeza do que já não existe: “Ó meu passado de infancia,
boneco que me partiram!” (Campos, 1915, p.147). A melancolia
perpassa as lembranças e a frustração da perda da infância e da
impossibilidade de retorno (“Não poder viajar pra o passado, para
aquela casa e aquela afeição,/E ficar lá sempre, sempre criança e
sempre contente!” (Campos, 1915, p.147)), que aumentam a sensação
de vazio presente e de desejo irrealizável, como uma “fome duma
cousa que se não pode obter” (Campos, 1915, p.147), e que firma mais
as suas sensações alternadas e indesejadas, em que o encontro com a
perda “Dá-me não sei que remorso absurdo” (Campos, 1915, p.147), e
revela-lhe o desassossego pelo que já não existe: “Furias partidas,
ternuras como carrinhos de linha com que as crianças
brincam,/Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos
sentidos,/Lágrimas, lágrimas inuteis” (Campos, 1915, p.147). E nesta
desolação interior o poeta não quer permanecer, e procura retornar ao
chamamento da pirataria, “com um esforço desesperado, sêco, nulo”
(Campos, 1915, p.147). A tentativa é vã, pois o esforço consegue
apenas uma aproximação da fúria sentida, “atravez duma imaginação
quasi literaria”, “Da chacina inutil de mulheres e de crianças,/Da
tortura futil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres/E a
sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos
outros” (Campos, 1915, p.148). Apenas uma aproximação do que foi
outrora, uma vez que o surgimento da melancolia presente no
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
290
arrependimento e na dor da infância perdida impede a libertação do
poeta e fixa-se como “um mêdo de qualquer cousa respirar-me sobre a
nuca” (Campos, 1915, p.148). A recuperação da memória da infância
já não permite a fúria da vida e leva Campos à identificação:
Lembro-me de que seria interessante/Enforcar
os filhos á vista das mães/(Mas sinto-me sem
querer as mães dêles),/Enterrar vivas nas ilhas
desertas as crianças de quatro anos/Levando os
pais em barcos até lá para vêrem/(Mas
estremeço, lembrando-me dum filho que não
tenho e está dormindo tranquilo em casa)
(Campos, 1915, p.148)
E todas as tentativas do poeta que tenta recuperar a violência
desejada falham, pois a “imaginação recusa-se a acompanhar-me”
(Campos, 1915, p.148) e as possibilidades de brutalidade anterior
passam a suscitar repugnância em vez de desejo, numa alteração
completa de paradigma. Nesta interposição melancólica, Campos é
assaltado, num instante, pela ideia do transcendental, de Deus, que o
deixa num estado de completo terror - “Tremo com um frio da alma
repassando-me o corpo” - que o obriga a abandonar o sonho, a abrir
“de repente os olhos, que não tinha fechado”(Campos, 1915, p.149) e a
retornar, assim, para o seu presente visível. Este reencontro com o
mundo percepcionado, fora da divagação do ímpeto anterior, alivia o
poeta, que compreende quão “bondoso para os nêrvos” (Campos,
1915, p.149) é o mundo real, próximo, numa familiaridade que não
necessita de extremos. Por isso, Campos inclina-se para o que vê como
suficiente:
Já não me importa o paquête que entrava.
Ainda está longe./Só o que está perto agora me
lava a alma./A minha imaginação higienica,
forte, prática,/Preocupa-se agora apenas com as
cousas modernas e uteis,/Com os navios de
carga, com os paquêtes e os passageiros,/Com
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
291
as fortes cousas imediatas, modernas,
comerciais, verdadeiras. (Campos, 1915, p.149)
Nesta mudança, o apelo provém da existência actual do poeta e
do mundo percepcionado, numa perspectiva oposta à que tinha. Agora,
Campos salienta a separação das entidades, a distinção efectiva de cada
componente e o seu lugar enquanto tal, numa limpidez que denuncia o
repúdio da mistura desenfreada de outrora. O desejo da totalidade
desapareceu e a disposição enraivecida foi substituída por uma
aparente harmonia com o mundo a que pertence, de modo que a
estrutura disposicional do poeta é reconhecida pelo próprio como
afastada da histeria anterior, em prol de uma breve serenidade. Com a
consciência de que a vida é “afinal, no fundo sempre, sempre a
mesma!” (Campos, 1915, p.151), Campos termina a Ode com a partida
do navio, fechando o ciclo que iniciou com a entrada do paquete, e, na
sua despedida, assume a perda total do desejo violento que o
caracterizou: “Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o
favôr/De levar comtigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,/E
restituir-me á vida para olhar para ti e te ver passar” (Campos, 1915,
p.151). O desapego do poeta ao navio que parte assinala a sua
transformação final, numa última invocação em que conscientemente
aceita a sua limitação: “Eu quem sou para que chore e interrogue?/Eu
quem sou para que te fale e te ame?/Eu quem sou para que me perturbe
vêr-te?” (Campos, 1915, p.151). E no fim deste triunfo desejado mas
infrutífero, consciente do seu vazio, Campos já não encontra na vida
marítima o mesmo ímpeto, e reduz-se à tristeza e ao silêncio do que
passou.
A análise da Ode Marítima permite constatar a complexidade
de um ponto de vista que assenta na inclinação para a totalidade da
existência (aqui representada pela vida marítima) e, como tal, dotado
de instrumentos que operam fora da “norma”, no sentido em que são
orientados numa e para uma relação peculiar entre sujeito e mundo,
onde se vincula a inseparabilidade de ambos e a sua conexão repleta de
mútuas interferências. Excluindo desta percepção da Ode Marítima o
facto de se tratar de um texto literário (e da problemática que isso
suscita) e, desse modo, fictício, mas também com essa noção, surgem
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
292
algumas questões complicadas mas relevantes. Assim, e desde já
anunciando a transição do ponto de vista literário para um ponto de
vista “real”, põe-se imediatamente a indagação da sua viabilidade, i.e.,
se uma perspectiva alicerçada na procura da totalidade poderia, de
facto, residir fora do fictício. Parece, à primeira vista, uma ideia
quimérica, na medida em que o quotidiano define-se pela sua finitude
continuamente anunciada, interligada à própria finitude do sujeito que,
assim, compreende-se enquanto determinado, o que anularia, em
princípio, o carácter infinito requerido por um ponto de vista da
totalidade, igualmente infinito. Nesta concepção de infinitude/finitude,
a realidade parece contrariar o ilimitado do poético. Mas também é
certo que o próprio sujeito poético - Campos - assinala a condição de
possibilidade que caracteriza o seu devaneio, assente na imaginação.
Neste sentido, podemos perguntar até que ponto poderia o sujeito
residir apenas neste carácter de possibilidade contínuo, sem realização,
sem fronteiras, de modo que o desejo de totalidade seria mantido aceso
nessa divagação imaginativa, seguindo o modelo de Campos que assim
o exercita até à ruptura. Mas poderia o sujeito permanecer apenas na
possibilidade, num estado de “loucura” que o desligasse, que o
alheasse completamente do mundo? Para que a possibilidade se
tornasse o modo de ser do sujeito, o quotidiano no mundo real teria de
ser eliminado e a vivência transportada apenas para um mundo
alternativo mental. Só enquanto não realizada a possibilidade se
mantém como tal e, deste modo, a acção mundana (no mundo)
contraria a condição de contínua possibilidade, quando a vivência
alterna entre a possibilidade e o acto.
A transição entre estados de vigília e onírico, ou entre graus de
consciência (da atenção ao imediato até ao sonhar acordado), como
Campos elucida, parece redundar na eliminação do desejo primário da
totalidade, na contradição de condições em cada estado e na querela
entre a possibilidade que a imaginação permite (ilimitada) e os limites
que a lucidez desvela, de modo que o sujeito parece não poder, sempre,
permanecer neste estado de indecisão. Não se trata da comum
alternância do sujeito entre a “realidade” e a “imaginação” ou o sonho,
mas o surgimento de uma condição que o conduz ao imaginário com
tanta força como o reconduz à realidade imediata. Esta suposta guerra
de forças parece levar à ruptura, à efectiva passagem para um dos dois
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293
planos, ao enfraquecimento de um em prol de outro, de forma que um
deles se torna transitório. E aqui se retoma o exemplo de Campos, cujo
conflito entre o devaneio da totalidade e a lucidez terminou na
destruição do primeiro.
Do ponto de vista das disposições, a Ode Marítima tem enorme
proveito, na medida em que toda a deambulação mais ou menos lúcida
do poeta está intimamente ligada a um alfabeto disposicional que vai
revelando ao longo do poema, salientando disposições mais e menos
passageiras, mais e menos apropriadas e suscitadoras de revelação do
próprio poeta e de conhecimento da sua própria natureza. A
constituição deste alfabeto disposicional marca o carácter de transição
que percorre a sua aparição, em que o plano de fundo, composto pela
angústia, a ansiedade e a nostalgia, enquanto disposições permanentes,
é mesclado pelo surgimento momentâneo de outras disposições que o
escondem, o confundem, que irrompem sem, todavia, se fixarem,
anuladas rapidamente pelo plano de fundo, residindo neste as
condições necessárias para um aumento de lucidez do poeta, que a
segunda parte da Ode Marítima evidencia. A presença das disposições
e o seu carácter transitório e/ou permanente torna-se ainda mais
complexo quando o que funciona como motor não é o mundo efectivo,
imediato, da acção, mas a imaginação que serve o desejo do sujeito,
enquanto elemento que o constitui e condiciona. É, por conseguinte,
através da imaginação que são encontrados focos de sentido, em que se
manifestam os múltiplos significados do objecto. E a propósito do
objecto, é interessante acentuar a relação invulgar de Campos com o
primeiro: o desaparecimento da função de cada objecto para o poeta - a
noção de instrumento com uma função activa - transformado em
instrumento de possibilidade (ligado à sensação). Assim, a relação do
poeta com o objecto é de multiplicidade de sentidos/significados,
alterando a percepção comum dentro do mundo: do desinteresse pelo
objecto (o uso quase indiferente dele ou mesmo o facto de não ser
sequer notado) passamos a uma extrema atenção às possibilidades que
ele abre (muitas vezes na relação com outros). Possibilidades que, mais
uma vez, só são alimentadas pela imaginação que dota o objecto de
sentido.
Mediante estas pequenas considerações, constatamos que a Ode
Marítima é material relevante para a compreensão não só do que está
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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em causa na perspectiva fictícia do sujeito poético Campos, mas
também de aplicação literária de condições continuamente presentes na
vivência real, de modo que este objecto assume duas funções: como
instrumento de análise do texto em si, do seu conteúdo e do que isso
representa para o poeta, e como instrumento que revela a relação,
muitas vezes peculiar, com o mundo, o já estar nele (e querer estar fora
ou dentro) e a complexidade que essa ligação comporta para a
compreensão do sujeito e do meio que o circunda.
ÁLVARO DE CAMPOS: THE POET'S STATES
OF MIND ON ODE MARÍTIMA
ABSTRACT: This essay aims to achieve a new reading of Ode
Marítima, by Álvaro de Campos, in light of the unlimited nature of the
poet, which is revealed through the continuous search of possibilities
that show a complete passion for life's totality. Some authors, such as
Whitman, Keats and Emerson, point out that the poet is, in his own
poetical condition, continuously permeable to the rotativity of life's
possibilities, as a way of creating his own ontological nature. As such,
we intend to clarify that the Ode Marítima is an example of that neverending search of the poet, visible through the interpretation of the
dispositions which show the relation between subject and world. It is
our purpose, then, to analyse the poet's states-of-mind in his passion
for life and the ways through which they - subject and world - are
interchangeable. This reading allows to see the complexity of the
dispositional alphabet of human nature and the close relation with the
world's perception, that points out the peculiar poet's point of view,
based on life's multiplicity. But this point of view brings some
problems related to its viability, in the way that it moves away from
the usual parameters, and follows a path towards infinity, which the
subject, through his finitude, seems uncapable of reaching.
KEY-WORDS: Poet. Disposition. Totality. Life
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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REFERÊNCIAS
PESSOA, Fernando. Ode Marítima. In:Pessoa, Fernando; Sá-Carneiro,
Mário (dir.). Orpheu, nº 2, Abril-Maio-Junho, Lisboa, Tipografia do
Comércio, 1915
EMERSON, Ralph Waldo. Essays: First Series. 1841 [Acesso em
16/09/2014.Disponível
no
endereço
http://www.emersoncentral.com/essays1.htm].
Keats,John. Letters of John Keats to his family and friends. Edited by
Sidney Colvin. Macmillan and Co., London, 1925
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta. Tradução de Vasco
Graça Moura, Lisboa, Edições Asa, 2002
WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. The Pennsylvania State
University, Eletronic Classic Serie, 2007
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A EFABULAÇÃO TRÁGICA EM A TRAGÉDIA
DA RUA DAS FLORES E OS MAIAS
Luciana Ferreira Leal 1
RESUMO: O artigo discorrerá sobre a efabulação trágica nas obras A
Tragédia da Rua das Flores e Os Maias de Eça de Queirós. O
Objetivo será o de discutir os elementos constitutivos da fábula trágica,
a peripécia, peripeteia, o reconhecimento, anagnorisis, e a catástrofe,
sparagmós nas duas obras em questão. O desenvolvimento da intriga,
visto que é descoberta a feição incestuosa dos amores de Victor e
Genoveva e de Carlos e Maria Eduarda, se dá de acordo com a
efabulação trágica definida por Aristóteles (1973). Tanto na obra A
Tragédia da Rua das Flores quanto em Os Maias ocorre a repentina
mudança das ocorrências, ocasionando a reviravolta do sucesso à
desventura. Em se tratando da catástrofe, ela é mais calamitosa em A
Tragédia da Rua das Flores, uma vez que Genoveva suicida-se, Victor
sofre e Timóteo, abatido, morre. Em Os Maias, a catástrofe se limita à
separação dos dois amantes e à morte de Afonso da Maia, que não
suporta viver em face do incesto dos netos e da insistência consciente
de Carlos no engano trágico. Eça de Queirós consegue representar, por
meio dos elementos constitutivos da fábula, a sua visão trágica do
homem e do mundo.
PALAVRAS-CHAVE: Fábula trágica. A Tragédia da Rua das Flores.
Os Maias.
Trama: introdução
A trama da tragédia é a estruturação artística que é dada à
fábula e é caracterizada pela mudança da “sorte” do herói. Na Poética,
Aristóteles determina, como elementos constitutivos da fábula trágica,
1
FACCAT/UNESP
–
Tupã
[email protected]
–
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
SP.
Brasil.
17600-090-
297
a peripécia, peripeteia, o reconhecimento, anagnorisis, e a catástrofe,
sparagmós.
A peripécia, peripeteia, definida pelo filósofo grego como a
repentina transformação dos sucessos no contrário (1973), é a
ocorrência que altera a face das coisas e modifica a ação e situação das
personagens. A peripécia diz respeito à inversão da situação da
personagem no estabelecimento da “contradição inconciliável”, já que,
para Goethe(Apud LESKY, 1996), o caráter contraditório,
inconciliável do trágico é a tradução mais fiel de sua essência. O herói,
por determinação dos valores tradicionais do lar (oîkos), entra em
choque com os valores dominantes e democráticos da pólis. A
peripécia consiste, pois, no estabelecimento do conflito.
O anagnorisis (reconhecimento) diz respeito, por sua vez, à
passagem da ignorância ao conhecimento, que não se dá por meio de
revolta da personagem; ao contrário disto, dá-se de forma com que a
personagem admita o erro e voluntariamente aceite o retorno à ordem,
mesmo que isto custe a própria vida. O reconhecimento ou anagnorisis
presentifica-se no final do enredo trágico.
A sparagmós ou catástrofe, última parte da fábula trágica, é
definida por Aristóteles (1973) como ação perigosa e dolorosa, como
mortes, sofrimentos,e dores veementes. A sparagmós ou catástrofe é o
registro da dor que acontece no final da obra. Tal registro da dor diz
respeito ao processo evolutivo iniciado com a peripécia e configurado
no reconhecimento. Frente a seu destino, o herói acaba por se mutilar
ou por se suicidar. O estabelecimento da ordem é o resultado desta
ação em que a hybris e a hamartia do herói atuam como desvio.
A trama da tragédia é constituída pelo estabelecimento do
equilíbrio perdido (nemesis). Acontece tanto por meio da exibição da
onipotência do destino exterior que é denominada moira e diz respeito
à expressão da essência divina, pela justiça e pela providência, quanto
pela onipotência da necessidade (ananké), que existe sem depender da
ação humana. O agente responsável pelo restabelecimento da nemesis
varia, uma vez que tanto pode ser a vingança de um deus, quanto de
um mortal, tanto pode ser a ação do acaso, quanto a organização das
ações do herói. A ordem restabelece-se transparecendo a existência de
lei, que pode ser tanto da natureza, quanto divina ou até mesmo uma
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
298
estrutura social rígida. Dessa forma, o indivíduo nunca sai vitorioso de
obra de arte literária trágica.
A trama em A Tragédia da Rua das Flores
A trama presente na tragédia ática é caracterizada através da peripécia, do
reconhecimento e, algumas vezes, da catástrofe configurada como espetáculo
grotesco, seja pela forma como se efetua a morte do herói, seja por sua mutilação.
A peripécia, o reconhecimento e a catástrofe são elementos
constitutivos da fábula trágica e estão presentes em A Tragédia da Rua
das Flores, de Eça de Queirós.
Constata-se a peripécia, que consiste na súbita inversão dos
acontecimentos, a partir do momento em que Timóteo manifesta a
oposição ao casamento de Victor com a estrangeira e,
inconscientemente, precipita a tragédia naquele 3º andar da Rua das
Flores. A visita de Timóteo à Genoveva a fim de dissuadi-la do
casamento com o sobrinho infunde toda a verdade, por meio de
revelações que evidenciam a verdadeira identidade dos amantes. Tio
Timóteo, como agente do destino, converte a felicidade de Victor e
Genoveva em infelicidade completa, desencadeando a tragédia, ao
descobrir que a aventureira é, afinal, mãe de Victor.
Com as revelações de Genoveva a Timóteo e vice-versa,
defronta-se com a segunda etapa básica da ação trágica: o
reconhecimento, isto é, a passagem da ignorância ao conhecimento.
Genoveva agora reconhece a condição em que se encerra e, em vez da
indignação, admite o desacerto, aceita o regresso à ordem, que tem
como valor a própria vida. Ante à enormidade da tragédia incestuosa
que vivencia sem saber, Genoveva suicida-se. Ao saber que é amante
do próprio filho que um dia abandona, Genoveva atira-se da varanda
de sua casa, na presença de Victor. Genoveva, pelo caráter forte e
resoluto, assim como pela profundidade psicológica, pode ser
considerada uma das mais realistas personagens queirosianas.
Assim como nas tragédias gregas, em A Tragédia da Rua das
Flores, há o momento da anagnorisis, da revelação ou do
reconhecimento. É tio Timóteo quem o ocasiona, pois é o responsável
pela educação de Victor e não aprova a ligação do sobrinho com
Genoveva. Na discussão travada com ela, descobre que ela é a mulher
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
299
que abandonou o seu irmão, Pedro da Ega, e, portanto, é a mãe de
Victor.
Ao reconhecimento segue-se, inevitavelmente, a catástrofe pelo
fato de inviabilizar-se o prosseguimento de vida ditosa. As marcas da
catástrofe estão patentes no suicídio de Genoveva, na morte de
Timóteo e na tristeza, infinita, de Victor. Observa-se que as
personagens, atingidas pela catástrofe, denotam certo sentimento de
padecimento atroz diante do conjunto de circunstâncias imprevisto e
infeliz. Os protagonistas, sofredores, são motivo de piedade e
compaixão. No final de A Tragédia da Rua das Flores a dor violenta é
registrada com a consumação da morte da personagem. A ordem
estabelece-se onde a hybris e a hamartia da personagem atuam como
desvio.
A tensão dramática progride até o suicídio de Genoveva. Após
o funesto clímax, o narrador aventa dois rápidos capítulos que
abrandam a tensão por meio de enumeração corriqueira e trivial de
acontecimentos. Sabe-se, por meio do que é relatado, que Victor não
vem a conhecer a legítima verdade acerca da própria condição,
ocultada pelo tio. Sabe-se, outrossim, que após o sentimento de pesar e
dor pela morte da mulher amada, retorna à vida de indolente e
medíocre e conserva, por meio dos versos, o sentimento de dedicação
absoluta por Genoveva, passando a viver em concubinato com Joana,
mulher de feição rústica e natural de grande sensualidade e
subserviente, que cobiça um dia, quando ainda é mulher do amigo
pintor Serrão. Joana é a figura feminina queirosiana de mais intenso e
violento sensualismo erótico.
Crê-se que tenha ficado claro ao leitor o vínculo da obra com o
conceito de trágico que hoje se tem. Genoveva, protagonista da ação, é
uma personagem cuja subjetividade é extrema. É esta subjetividade
que a conduz à ação, responsável por sua derrota: a infeliz constatação
de que é amante do próprio filho provoca-lhe o suicídio.
Existe, em A Tragédia da Rua das Flores, semelhança com a
tragédia Édipo Rei de Sófocles, visto que a decisão dos deuses colocase sobre a decisão dos humanos. O infortúnio, indiretamente, revestido
de subterfúgios, e por intermédio de identidades alteradas e
confundidas leva ao fatal desfecho (sparagmós).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
300
Há, na obra analisada, a peripécia, peripeteia, ou seja, a
inversão da situação da personagem que abandona a França e o amante
brasileiro rico para viver em Portugal, onde apaixona-se perdidamente
pelo próprio filho. Há o reconhecimento, anagnorisis, uma vez que tio
Timóteo, revela a Genoveva a adversa verdade de que é mãe de Victor.
Ocorre a catástrofe, sparagmós, pois o registro da dor acontece no final
da obra e é decorrência do processo evolutivo que se inicia com a
peripécia e se configura no reconhecimento. Genoveva finda por
suicidar-se.
Trama e personagem estão, pois, concordes com a
especificidade trágica. A fábula, por sua vez, trabalha com história
conhecida pelo público. Nada mais comum em sociedade
historicamente católica, que a irreverência do incesto. Se a fábula
trabalha com o conhecido, assim como nas fábulas da tragédia grega,
esta mesma é estruturada de modo a desconcertar o leitor e causar-lhe
estranhamento. Assim, a narrativa torna-se espaço para
questionamento de problemas concernentes ao universo do leitor,
obrigando-o a refletir sobre valores e formas de conduta da sociedade.
Há, portanto, como na tragédia grega, uma função cívica por trás do
romance apresentado. Como os valores se instituem? Qual o
posicionamento do homem frente aos valores aceitos?
Carlos Reis (1984), Óscar Lopes (1966)e Machado da Rosa (1963) admitem
a relação de Eça de Queirós com a tragédia grega. Para eles, o realista português
mantém vínculo e respeito com as regras e com os três elementos nucleares do texto
trágico, determinados por Aristóteles e expostos nos parágrafos anteriores.
A Trama em Os Maias
A peripécia, o reconhecimento e a catástrofe são elementos
constitutivos da fábula trágica e estão presentes na obraOs Maias de
Eça de Queirós. Verifica-se a peripécia, que consiste na súbita inversão
dos acontecimentos, na circunstância em que Guimarães denuncia a
consangüinidade entre Carlos e Maria Eduarda. O destino, eficaz e
encoberto, corporificado na missão de mensageiro interpretado por
Guimarães por ocasião das revelações fatídicas, é o impulso de
conseqüências trágicas e calamitosas que governa as ocorrências
conducentes aos acontecimentos finais.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
301
O clima trágico intensifica-se no momento em que
Guimarães, por meio do cofre de Maria Monforte, traz a revelação
que aniquila os amores de Carlos e Maria Eduarda e transforma a
felicidade dos dois amantes em completa desdita. O fatalismo, a
temática do incesto, o grande valor conferido ao destino, enquanto
impulso de aniquilamento, os presságios e os símbolos de natureza
trágica conjugam-se nesse momento funesto.
Sr. Guimarães, o “mensageiro de Corinto”, diga-se a propósito,
de Paris, chega a fim de acelerar a anagnorisis da tragédia de Carlos da
Maia e Maria Eduarda, entregando a Ega a irrevogável caixa de
charutos onde, colocado no meio de papéis de modista e outros sem
valia, esconde a confidência do incesto, o acontecimento maléfico e
danoso que recai sobre a família Maia. O portador da destruição tem
aspecto de apóstolo. De vestimentas e barba negras, Guimarães
prenuncia declaração danosa.
O cofre entregue a Carlos contém os documentos decisivos da
vida passada de Maria Monforte, responsáveis pela revelação à Maria
Eduarda e a Carlos do fado que os castigam. O cofre, assim como os
papéis nele contidos, adquirem a devida constituição oracular délfica.
Com as revelações de Guimarães a Ega, defronta-se com a
segunda etapa básica da ação trágica: o reconhecimento, isto é, a
passagem da ignorância ao conhecimento. Guimarães revela a
verdadeira identidade de Maria Eduarda. Quando ele diz para Ega
entregar o cofre a Carlos ou à irmã, o amigo, que não conjetura que
Carlos possui irmã, assombra-se, todavia a circunstância é esclarecida
e Ega entrevê toda a catástrofe: Carlos é amante da irmã. Assim como
nas tragédias gregas, em Os Maias, há o momento da anagnorisis, da
revelação ou do reconhecimento.
A relação com Maria Eduarda faz de Carlos um homem feliz,
vivem na Toca uma paixão intensa demonstrada no decorrer da
narrativa. Todavia, ao reconhecimento, sucede-se, fatalmente, a
catástrofe pela maneira de tornar-se inexequível a continuação de vida
venturosa. Os sinais do desastre se evidenciam na morte solitária de
Afonso da Maia e no total afastamento de Carlos e Maria Eduarda.
Guimarães aparece para revelar aos amantes o parentesco, a
consanguinidade. Tal revelação provoca reviravolta, peripécia,
mudança de situação, da felicidade para o infortúnio, da ventura à
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
302
infelicidade e provoca a catástrofe (catastrophe). A desgraça cai sobre
os irmãos que reconhecem (anagnórise) o incesto involuntário.
A catástrofe atinge diferentes personagens e a consequência é o
sentimento de horror que as domina, pois são confrontadas com
situações inesperadas e adversas que as transformam e as fazem
padecer, tornando-se objeto de compaixão.
Os Maias são, essencialmente, romance sobre o destino. O
núcleo central da obra é a tragédia, tanto pela irrealizável história de
amor entre Carlos e Maria Eduarda, quanto pelo fracasso dos planos e
das aspirações de Carlos da Maia e João da Ega, em se tratando da
modificação do país.
O esquema trágico da obra Os Maias tem como pano de fundo
a teoria aristotélica, porém afasta-se dela no que diz respeito à
fabulação trágica. Pois, de acordo com Aristóteles(1973), as
personagens trágicas conservam a índole engrandecida e forte até o
fim, sempre em condições para o bom exercício ou desempenho das
situações. Quando essas personagens enganam-se e cometem erros,
não é por imperfeição de índole, e sim pela interferência do destino
(fatum) que se encontra antecipadamente planeado.
ConsoanteElisa Valério (1997), ao cometer o incesto
consciente, Carlos afronta as leis da moralidade; mostra-se débil,
incapaz de resistir ao domínio da paixão, distanciando-se, assim, do
perfil da personagem clássica, que em tempo algum perpetra erros
consciente deles, ou seja, após certificar que os cometeu. Nesse
sentido, quando volta à cama da irmã, Carlos toma para si a culpa e
desafia a ira dos deuses. Ao repetir a falta, Carlos converte-a em crime.
Édipo, por exemplo, depois da fatal deliberação do embate,
padece pelas consequências da falta desintencional e assume a punição
dignamente. A solução encontrada por Carlos para fugir das
ocorrências desagradáveis é fazer uma viagem, o que não é, de maneira
alguma, uma punição. Quando retorna ao Ramalhete, lembra com
saudade de bons momentos ali vividos, todavia, não sente, em nenhum
momento, arrependimento ou remorso pela falta cometida. Maria
Eduarda também afasta-se e quando torna a aparecer figura como
Madame Trelain. Não se sabe qual o fim de Maria, todavia não há
dúvida de que Carlos continua a desfrutar da boa vida que o dinheiro
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303
lhe proporciona. Em lugar de purificado pelo horror da tragédia, tornase mais ocioso e boêmio.
Conforme Maria Manuel Lisboa, o amor de Carlos da Maia por
Maria Eduarda provoca a tragédia, mas – ao mesmo tempo –
possibilita a ele o único meio de fugir do diletantismo emocional e
existencial que, depois de perdê-la, se estabelece eternamente:
O crime do incesto (ou a sua eventual punição)
teria sido então o preço a pagar por uma vida
plenamente vivida. Dilema moral característico
de qualquer tragédia que se preza, mas aqui
resolvido não no banho de sangue da praxe,
mas simplesmente por via da desilusão, do
desencanto, e do retorno a uma moralidade
convencional (a vida respeitável sem a irmã
amada). Essa moralidade, porém, fica ela
própria
arguivelmente
maculada
pela
insignificância desmoralizante das existências
por si fomentadas. (2000, p. 392).
Encontra-se em Os Maias muitos dos elementos inerentes à
efabulação trágica: os três elementos nucleares, melhor dizendo, a
peripécia, oreconhecimento e a catástrofe; a disseminação de vaticínios
e presságios e a instauração de um fatum marcando os destinos
individuais.
Acontece, no romance Os Maias, a peripécia, peripeteia, ou
seja, a inversão da situação da personagem que abandona o amante
brasileiro rico e apaixona-sepelo próprio irmão. Ocorre o
reconhecimento, anagnorisis, visto que Guimarães revela a Ega a
consanguinidade de Carlos e Maria. Sucede a catástrofe, sparagmós,
pois o registro da dor acontece no final da obra e é decorrência do
processo evolutivo que se inicia com a peripécia e caracteriza-se no
reconhecimento. Afonso morre de desgosto ao constatar que os netos
mantêm relação incestuosa e que Carlos comete incesto consciente.
Carlos e Maria Eduarda também morrem. A morte de Carlos será a
vida futura no estrangeiro; ele atira-se à vida luxuosa “de aristocrata
rico, bem instalado num apartamento dos Campos Elísios” (LIMA,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
304
1987, p. 84), onde o imobilismo é completo. A morte de Maria
Eduarda é nominal. Ela é sepultada numa realidade campestre, longe
de Portugal e numa união sem amor com Monsieur de Trelain.
Eça de Queirós evoca a proposição demonstrada por Sófocles e o
pensamento dominante grego quanto à impossibilidade de reger a sucessão de fatos
que ocorrerão na vida de um homem, pois a vida é incoercível pela interferência da
força pertencente ao ser humano.
Pode-se dizer que três intervenções do destino concorrem para
o encadeamento dos incidentes que ocorrem em Os Maias, tendo como
consequência a contingência funesta do incesto. São elas: a fuga de
Maria Monforte, arrastando consigo a filha que ignora e é ignorada
pela família Maia, pois Afonso julga-a morta; as situações ou
condições que conduzem Maria Eduarda de volta a Lisboa e a relação
amorosa com Carlos e, finalmente, a coincidência do encontro de Ega
e Guimarães, provocando o desfecho trágico, com a declaração da
consanguinidade dos amantes e a dispersão da família Maia. Esses
lances da narrativa que alteram a face dos acontecimentos,
modificando a ação e a situação das personagens, estabelecem, no
romance, a aplicação de elementos da tragédia clássica.
A Tragédia da Rua das Flores e Os Maias:a fábula trágica
Em se tratando dos elementos constitutivos da fábula
trágica, pode-se dizer que estão presentes nas duas obras analisadas.
Peripécia, reconhecimento e catástrofe são elementos da tragédia
clássica, perfeitamente aplicáveis aos romances queirosianos em
questão. O desenvolvimento da intriga, visto que é descoberta a
feição incestuosa dos amores de Victor e Genoveva e de Carlos e
Maria Eduarda, se dá de acordo com a efabulação trágica definida
por Aristóteles.
Tanto na obra A Tragédia da Rua das Flores quanto em Os
Maias ocorre a repentina mudança das ocorrências, ocasionando a
reviravolta do sucesso à desventura. Na primeira, com a denúncia do
tio; na segunda, com a de Guimarães. Tanto numa quanto noutra, o
reconhecimento se dá com a transição do desconhecer ao conhecer:
Genoveva conhece a verdadeira identidade de Victor e Carlos, a de
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305
Maria Eduarda. Maria Monforte é a enunciadora ausente da declaração
catastrófica da procedência carnal de Maria Eduarda.
Em se tratando da catástrofe, ela é mais calamitosa em A
Tragédia da Rua das Flores, uma vez que, frente à descoberta da
relação incestuosa que vive sem saber, Genoveva suicida-se, Victor
sofre e Timóteo, abatido, morre. Em Os Maias, a catástrofe se limita à
separação dos dois amantes e à morte de Afonso da Maia, que não
suporta viver em face do incesto dos netos e da insistência consciente
de Carlos no engano trágico.
Em Os Maias, Eça de Queirós tenta desculpar a relação
incestuosa de Carlos da Maia e Maria Eduarda. O interdito social,
moral e religioso perde, em certa medida, o antigo valor de proibição e,
dessa maneira, ainda assim sem solução, o homem, não sabendo a
quem conferir as “arbitrariedades do destino” experimenta, inutilmente
é claro, retirar-lhes o valor.
No que diz respeito aos elementos da efabulação trágica, podese dizer que Ega exerce a função de coro trágico, uma vez que
prenuncia a sorte inevitável que definirá o futuro amor de Carlos e faz
comentários decisivos em pontos estratégicos da intriga. A personagem
João da Ega de Os Maias pode ser associada ao coro que existe na
tragédia grega – o seu comportamento possibilita tal ligação – ele
esclarece, alerta, aconselha, enfim, está sempre junto de Carlos para
qualquer eventualidade.
O tema da tragédia alcança, nessas duas obras, destaque
peculiar. A proposição do incesto, a fatalidade, o fado, os indícios de
acontecimento futuro, a desmedida, o patético e a efabulação trágica
concorrem para a efetivação do drama que envolve as personagens. A
tragédia se realiza sob a influência de um romantismo enganoso.
Victor, Maria Eduarda e Carlos, filhos da mulher romântica, padecem
todas as faltas do romantismo e todas as mágoas do naturalismo.
A morte, na tragédia clássica, é o termo de todas as
personagens maculadas pela transgressão. O papel do destino se fixa
ao mesmo tempo em valores determinados e sublimes. A magnitude
das personagens tem origem na luta com forças enigmáticas e invictas.
Afonso da Maia e Genoveva caem; no entanto, essa queda é digna. A
dignidade da queda é um dos requisitos para o trágico apontados por
Albin Lesky em A Tragédia Grega (1996). Genoveva e Afonso da
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Maia sucumbem com grandeza e magnitude. O destino fatal declara
culpados os inocentes. A morte confusa e dolorosa dessas personagens
desperta no leitor terror e piedade.
Ainda no que diz respeito à efabulação trágica, Genoveva se
aproxima da personagem clássica pela coragem, complexidade e
grandiosidade do seu ato. Diante da perplexidade da relação
incestuosa, põe fim à sua vida e atira à queima roupa contra todo o
seu engano. Opostamente, Carlos se distancia da personagem
trágica, porque comete o incesto consciente. Ao repetir a falta,
transforma-a em delito. Carlos não é punido como Genoveva, nem
sequer se sente arrependido por ter insistido no incesto quando já
sabe que Maria Eduarda é sua irmã.
Por mais que Maria Eduarda seja o duplo de Maria
Monforte, ela é mais juvenil, sedutora e pura, sendo, por esse
motivo, possível a obra findar com a separação “amigável” dos dois
irmãos, ao passo que A Tragédia da Rua das Flores acaba com a
mãe dando morte a si própria. O castigo de Maria Eduarda pela
culpa, mesmo que involuntária, é o de se separar de Carlos para
sempre. A paixão, apesar de superior, é impossível. Na dignidade de
seu sofrimento moral, no espanto diante do amor e futuro
destruídos, ela, trajada de luto e silenciosa, se retira para todo o
sempre. Mas se esse não for um castigo suficientemente trágico,
pode-se dizer então, de outra perspectiva, que ela também não é
castigada. O fato de cometer o incesto inconsciente não justifica a
ausência de punição, pois Édipo e Jocasta também desconhecem os
laços consanguíneos que os unem e são submetidos à pena. Diga-se
de passagem, Maria Eduarda é premiada no final da intriga com a
definição da situação pessoal e social, casando-se com M. de
Trelain. O casamento não se dá por amor, mas por conveniência,
para ostentar um nome, porque, apesar de descendente dos Maias,
não pode se reconhecer como tal, não pode usar esse nome. Quando
é revelado à Maria Eduarda que o homem a quem ela ama como
nunca amou outro é seu irmão, ela constata a verdade sarcástica e
dura de que outra vez, e para sempre, o coração ficará adormecido e
o corpo frio. Com o seu casamento, tudo se acaba, definitivamente.
Apesar da presunção e da fraqueza de vontade, Carlos ainda é
superior à sociedade que o circunda, porquanto apresenta certa
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307
sensibilidade e escrúpulo. A prova disso se dá na renúncia à amante,
quando vê Hermengarda com o marido e o filhinho; no trabalho
gratuito que presta a pessoas carentes e no desejo, ainda que ilusório,
de enfrentar o incesto, indo pessoalmente revelar à Maria Eduarda os
laços consanguíneos. É autêntica e grandiosa sua capacidade de amar,
desposar e respeitar uma mulher que já teve outros amantes, mas
também é perversa a incapacidade de a deixar de amar sensualmente,
no momento em que a descobre sua irmã.
Com a separação definitiva da irmã, Carlos passará a vida sem
grandes emoções, render-se-á ao tédio, a algum deleite ou satisfação,
deixará dominar-se pelo vício e nunca mais será capaz de amar. Carlos
é um fracassado. Em dez anos que fica longe do seu país, não lhe
acontece nada, se deixa atingir pelo malogro. Victor também fracassa
e, da mesma maneira que Carlos, não mais voltará a amar.
Vale ressaltar que, em se tratando da catástrofe, incesto é
suavizado em Os Maias. Em vez de mãe e filho tem-se o incesto entre
irmão e irmã. A tragédia, como se vê, também teve outro aspecto, pois
os que realizam incesto na obra não são punidos, separaram-se, apenas
e tão somente. O incesto em Os Maias é diferente daquele de A
Tragédia da Rua das Flores. A união sexual entre irmãos é, de acordo
com Maria Leonor Carvalhão Buescu (1990), sociológica e
antropologicamente diferente da união sexual entre pais e filhos. Dessa
maneira, a catástrofe é atenuada, apesar de que a morte física de
Genoveva, guardadas as devidas proporções, pode ser comparada à
morte, ainda que simbólica, de Maria Eduarda. Quando parte para
França, é como se morresse também, pois na única referência que se
faz a ela depois da partida, já não é mais à Maria Eduarda e sim à
Madame Trelain.
O incesto entre irmãos participa da vivência dos deuses
mitológicos e da existência dos heróis da lenda. O incesto realizado
por irmãos é, de certa maneira, abrandado, entretanto, o abrandamento
desaparece quando Carlos persiste no incesto consciente.
Após a detecção dos elementos constitutivos da fábula trágica
emOs Maias, verifica-se a presença de caracteres inerentes à tragédia
clássica, o que possibilita refletir acerca da herança cultural grega
presente nesse escritor do século XIX. Contudo, constata-se também a
presença, principalmente, de um elemento que não aparece na tragédia
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grega: nem Maria Eduarda nem Carlos são punidos rigorosamente.
Consoante Beatriz Berrini (1990), os dois protagonistas, implicados
incestuosamente, vivem comodamente como burgueses ricos, bem
instalados e bem acolhidos em sociedade.
Tanto em A Tragédia da Rua das Flores quanto em Os Maias,
o princípio ou causa da tragédia é a paixão. O sentimento e emoção
intensos despertados em Victor ao ver Genoveva pela primeira vez são
os mesmos provocados em Pedro ao ver Maria Monforte e em Carlos
ao contemplar Maria Eduarda. Está na paixão a origem de todo o
drama. Nenhum deles age com propósito de lesar, mas todos saem
lesados e ofendidos. Apesar da desmedida de todos eles, com exceção
feita ao incesto voluntário cometido por Carlos, nenhum deles tem
culpa, entrementes, Afonso e Timóteo são os mais puros inocentes.
O incesto, determinante da catástrofe nas duas obras,
frequente na manifestação artística literária e desenvolvido desde a
Antiguidade, é proposição tratada por Eça. A relação amorosa da
mãe com o filho, em A Tragédia da Rua das Flores, é substituída
por uma entre irmãos em Os Maias. Em nenhum dos dois casos, a
união sexual entre os parentes é impedida a tempo. Nas duas
circunstâncias também, a interferência do destino é responsável pela
realização do incesto, mas, no momento em que é voluntariamente
consumado por Carlos, deixa de ser de responsabilidade superior e
passa a ser de responsabilidade humana.
O destino em A Tragédia da Rua das Flores e em Os Maias é,
em certa medida, condicionado pela atuação e hybris, desmedida das
personagens. Genoveva abandona o filho bebê e suicida-se ao
certificar-se de que é amante do próprio filho; Pedro casa-se,
contrariando as ordens do pai, é traído e suicida-se; Carlos falha em
razão da falta de vigor e energia. São personagens impulsionadas pela
emoção e não pela razão. O impulso que rege o destino das
personagens dimana dos atos inconseqüentes e românticos delas
próprias.
A efabulação trágica, ou seja, a construção do enredo sobre o
fatalismo trágico afigura-se ao homem que o seu itinerário existencial
resulta inevitavelmente de forças superiores, contra as quais se faz
impossível combater. Victor e Carlos, do mesmo modo que Édipo, são
afetados inocentemente pelas malhas do destino. Assevera-se, pois,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
309
que é o destino o responsável pela aproximação e estabelecimento de
relações entre as personagens incestuosas e, do mesmo modo, é
também ele o responsável pela separação delas. Tanto Victor quanto
Carlos sentem e quase chegam a ter consciência de que são impelidos
por impulso e força incompreensíveis. Eles mesmos se perguntam
acerca do motivo da aproximação e do relacionamento com as
respectivas amadas.
Na ironia comovente de A Tragédia da Rua das Flores e de Os
Maias, as personagens sucumbem à desgraça, porque são vítimas
inconscientes de um destino demolidor. O destinolega vestígios por
onde passa e estes não são levados em conta pelas personagens. Elas
se enganam e se iludem irrefletidamente pelos próprios sentimentos e
avançam cegamente para o incesto.
Carlos ilude-se ao tentar persuadir a si próprio com argumentos
e razões justificáveis de que é sua obrigação ir dizer a verdade à Maria
Eduarda, pois são pessoas fortes e seguras. Carlos desafia as leis
morais ao estar novamente com ela. O incesto consciente de Carlos,
vítima de subjetividade e paixão que se sobrepõem à lucidez da razão,
é o resultado de uma ironia trágica que representa o homem como
vítima passiva de forças que desconhece e sobre as quais não tem
nenhum controle.
O fado favorece o encontro de Victor e Genoveva e de Carlos e
Maria Eduarda, provocando acontecimento funesto com a fatalidade
simbólica da tragédia grega.
Peripécia, reconhecimento e catástrofe se configuram no
incesto, que é, na própria essência, proposição trágica com fixadas
memórias na tragédia grega. Carlos desfruta de hábitos e costumes
elevados e deseja felicidade amorosa intensa, atraente e eterna; no
entanto, a ironia do destino ordena que seu amor converta-seno que há
de mais desprezível, mais repugnante e mais assombroso. Ele tem tudo
e por isso desperta a ambição desmedida dos deuses: é rico, bonito,
inteligente, jovem e tem o amor de uma sensível e formosa mulher. Por
isso, o seu destino não pode deixar de ser trágico, ao contrário do de
Dâmaso, uma personagem sem nenhuma espessura trágica, já que em
si nada tem que possa suscitar a cobiça dos deuses.
Carlos, apesar de não ser considerado totalmente um herói
trágico, porque não é punido com veemência, traz consigo alguns
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traços desse herói quando, por exemplo, afasta do caminho tudo o que
possibilite impedimento para a realização dos seus desejos, como, por
exemplo, o funesto mocho da alcova, mas mesmo assim não consegue
desviar da vida a infâmia da relação impura que aniquila todos os
sonhos e aspirações.
Os espíritos apolíneo e dionisíaco, referenciados por Nietzsche
(1996), estão presentes no espírito de Carlos. A medida, bem como a
desmedida, se instalam nos seus atos. Educado de acordo com o
princípio apolíneo, Carlos cai sob o peso do dionisíaco. A saciedade e
o asco que sente da relação antes sublime, agora marcada pela
estupidez alimária, são, em certa medida, um tipo de castigo.
Depois do indispensável afastamento de Maria Eduarda, Carlos
toma para si a pena capital do próprio crime, conferida pela morte do
avô. Já o aniquilamento de Maria Eduarda se dá por meio da abdicação
do desejo de tornar possíveis as aspirações de felicidade e de união por
amor para consentir ou conformar-se com casamento conveniente, que
concilia duas pessoas desenganadas da e com a vida.
Carlos afasta-se e deixa de ser visto durante dez anos. Poder-seia dizer que a personagem cumpre itinerário expurgatório no espaço de
todo o período de ausência. Assim, se em algum momento tem-se a
possibilidade de dizer que Carlos atinge, seguramente, a condição de
herói, e de herói trágico, é nesse.
Maria Eduarda, pode-se dizer, tem características do herói
trágico, porém não no conceito exato do clássico, mas na evolução
romântica da concepção de tragédia. Circunstâncias ruinosas a seguem
de perto desde o seu nascimento. Não aceita pelo avô, separada do pai
e abandonada moralmente pela mãe, tem de, desde cedo, entregar-se à
vida das paixões mundanas. Consoante Suely Flory (1983), a
subjetivação do trágico funda-se na modificação do sentido de culpa e
suas conseqüências. A culpa do herói romântico é relativa, porque a
sociedade é falsa e se fundamenta num mundo de dissimulações.
Assim, Maria Eduarda denota a subjetivação do trágico que
provém das tragédias românticas. Particularidades e condições
externas estabelecem as condições do seu comportamento, todavia,
conserva-se firme, fiel a si mesma, no princípio certo de seu
sentimento.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
311
Está-se diante de dois romances em que os elementos
constitutivos da fábula trágica estão presentes, até mesmo em se
tratando do aspecto ameaçador da morte que abarca as obras A
Tragédia da Rua das Flores e Os Maias.
O conflito, nos romances queirosianos em questão, manifestase através de uma oposição que põe em cheque a vida, assim como a
felicidade e o sucesso daqueles que estão implicados. Em ambos os
romances, depara-se com conflitos cerrados, em que as personagens
são aniquiladas. Em Os Maias, Pedro suicida-se por ter sido
abandonado por Maria Monforte, esta se arruina com a vida de andante
e prostituta. Afonso da Maia morre de desgosto ao descobrir que os
netos se relacionam incestuosamente. Maria Eduarda concebe uma
vida sem grandes emoções, ao lado de um marido mais velho e rico, e
Carlos Eduardo viajapelo mundo em busca de coisa alguma. Volta a
Portugal para matar alguns desejos, como, por exemplo, degustar a
comida tradicional; decide, por fim, viver em Paris. Contudo, não
consegue encontrar a felicidade, nem mesmo a paz de espírito que
tanto busca. Na Tragédia da Rua das Flores, Pedro da Ega morre logo
depois de ter sido abandonado pela mulher, que volta depois de muitos
anos ao país de origem a fim de refazer a vida, mantém relação
incestuosa com o filho que deixa bebê e, ao descobrir, endoidece e
joga-se da janela. Timóteo lamenta e não suporta. Victor, o filho,
enlouquece, viaja para Paris, sente uma saudade infinita, mas nunca
vem a saber que Genoveva é sua mãe.
Em Eça de Queirós, a busca do sentido termina por afirmar de
modo absoluto o sem-sentido de tudo, o desatino do incesto, da morte
e da completa incerteza da vida. A implacabilidade do destino, a
impossibilidade da real comunhão com o outro ou a transitoriedade dos
instantes de plenitude levam, inevitavelmente, as personagens
queirosianas, ao mais completo estágio de destruição, angústia, aflição
e amargura.
Não há dúvida de que a visão de Eça de Queirós é trágica. E
isso, possivelmente, deve-se à própria visão pessoal do escritor e de
sua geração, e não necessariamente à visão do que realmente foi
Portugal. Essa visão trágica muda nas últimas obras do escritor. Em
ACidade e as Serras, por exemplo,a crítica à decadência do país
diminui ou, pelo menos, está mais entranhada no texto literário. Eça
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
312
parece encontrar, segundo Antônio Cândido (1978), a tradição de
Portugal, pois cria narrativa integrada no espaço principal da
civilização portuguesa, afastando-se do naturalismo militante, do
realismo de combate e do romance social. A Ilustre Casa de Ramires e
A Cidade e as Serras perdem em consistência e força dramática,
porém, consoante José Maria Bello (1977), esses romances ampliam e,
ao mesmo tempo, abrandam a visão de mundo do autor. Nas últimas
narrativas que Eça de Queirós produz, o socialismo, assim como a
irreverência, apesar de não destruídos, são equilibrados, uma vez que a
convicção reformista da juventude é amortecida.
Para finalizar, acredita-se importante considerar que muito mais
que ideológica, a trajetória de Eça de Queirós é literária, mais que a
visão socialista e irreverente da obra, o que soa é o caráter artístico, o
que permanece é a realização do ideal de arte.
Conforme Etelvina Maria de Jesus Soares (1996), para ser
grande, qualquer obra literária tem de, concomitantemente, refletir os
problemas de determinado tempo e introduzi-los num plano histórico
importante para o desenvolvimento da civilização. Assim sendo, podese considerar que Eça de Queirós utiliza e explora o cenário local com
os seus dramas pessoais e consegue representar, com grande
propriedade, por meio dos elementos constitutivos da fábula, a sua
visão trágica do homem e do mundo.
THE TRAGIC STORYTELLING IN “A TRAGÉDIA DA
RUA DAS FLORES” AND “OS MAIAS”
ABSTRACT: The article will discuss about the tragic storytelling in the
books A Tragédia da Rua das Flores and Os Maias, by Eça de
Queirós. The objective is to discuss the constitutive elements of the
tragic fable, the adventure, the recognition, anagnorosis and the
catastrophe, sparagmós in the two books presented. The development
of the intrigue happens according to the tragic storytelling defined by
Aristotle as the incestuous affection of Victor and Genoveva and
Carlos and Maria Eduarda are discovered. In both books A Tragédia
da Rua das Flores and Os Maias, there is a sudden change in the
occurances, causing a turnaround from success to misfortune. About
the catastrophe, it is more calamitous in A Tragédia da Rua das Flores,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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because Genoveva commits suicide, Victor suffers and Timóteo,
miserably dies. In, Os Maias, the catastrophe is limited to the
separation of the two lovers and to the death of Afonso da Maia, who
could not live after the incest of his grandchildren and the conscious
insistence of Carlos in his tragic mistake. Eça de Queirós can
represent, through constitutive elements of the fable, his tragic point of
view of the men and the world.
KEYWORDS: Tragic fable. A Tragédia da Rua das Flores. Os Maias
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Presença, 1997.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
315
A FICÇÃO DO PORTUGUÊS
Tatiana Batista Alves 1
RESUMO: O artigo analisa como a obra Casa-grande & senzala, de
Gilberto Freyre, representa o português colonizador do Brasil. Ao
relatar minuciosamente a formação do povo lusitano e sua aptidão para
a miscigenação, o autor Gilberto Freyre transcende os discursos
oficiais da época e constrói um personagem empreendedor e
contemporizador, que se destaca positivamente dos demais
colonizadores europeus. Por sua vez, o português colonizador também
inventa a imagem da sociedade brasileira- a ficção da ficção. Ao
afirmar que a nossa colonização formou uma sociedade e uma cultura
híbridas, o autor não se esquece de apontar para o caráter híbrido do
português, no que diz respeito as suas origens. Análise polêmica, que
recebe críticas severas ao longo dos anos, a obra é também um das
maiores contribuições para o entendimento da formação da sociedade
brasileira patriarcal e escravocrata.
PALAVRAS-CHAVE: Ficção.
Sociedade.
Ciência.
Português.
Colonização.
O terceiro capítulo de Casa-grande & senzala procura definir
os contornos do colonizador português. Ao construir a imagem do
lusitano, muito mais que diferenciá-lo dos índios e negros, o ensaio
procura estabelecer as características que o fazem superior aos demais
colonizadores europeus, basicamente o espanhol e o inglês.
Figura vaga [a do colonizador], falta-lhe o contorno ou a cor
que a individualize entre os imperialistas modernos. Assemelha-se
nuns pontos à do inglês; noutros à do espanhol. Um espanhol sem a
flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador do México
e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do
1
Colégio Pedro II, Departamento de Língua Portuguesa e Literaturas, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil, CEP 2203-011, [email protected] .
Doutora em Literatura Comparada (UFF).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
316
contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos inflexíveis.
(C.G.S., 189)2
É pela imagem do colonizador “contemporizador” e flexível
que Gilberto Freyre ratificará a miscigenação no Brasil. A imagem
imprecisa do português nos retira a incapacidade de defini-lo com
objetividade e clareza, o que poderia ser um problema para o escritor,
mas, ao contrário, é encarado como um ponto positivo no português.
Se a sociedade brasileira é híbrida devido à fusão dos três grupos
étnicos, o próprio colonizador já vinha também de uma origem híbrida.
Essa característica tornou o português mais flexível frente às
diferenças culturais e religiosas dos nativos e dos escravos africanos.
Num movimento pendular, Gilberto Freyre procura equilibrar a
balança caminhando sempre de um lado para o outro — ora mostrando
o português como um genial colonizador, ora apresentando o seu lado
truculento nas relações de poder com os escravos. Entretanto, o ponto
de vista do autor fala mais alto e acabam se fortalecendo os aspectos
positivos do português.
O escravocrata terrível que só faltou
transportar da África para a América, em
navios imundos, que de longe se adivinhavam
pela inhaca, a população inteira de negros, foi
por outro lado o colonizador europeu que
melhor confraternizou com as raças chamadas
inferiores. O menos cruel nas relações com os
escravos. É verdade que, em grande parte, pela
impossibilidade de constituir-se em aristocracia
européia nos trópicos: escasseava-lhe para
tanto o capital, senão em homens, em mulheres
brancas. Mas independente da falta ou escassez
de mulher branca o português sempre pendeu
para o contato voluptuoso com a mulher
2
Todas as citações de Casa-grande & senzala partem da edição FREYRE,
Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o
regime e economia patriarcal. 36ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. Elas
serão referidas por C.G.S., para simplificar a leitura.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
317
exótica. Para o cruzamento e miscigenação.
Tendência que parece resultar da plasticidade
social, maior no português que em qualquer
outro colonizador europeu. (C.G.S., 189)
A maleabilidade do português favoreceu a deformação e a
caricatura de sua imagem no sentido de vulgarizá-la à medida que foi
se miscigenando com os negros e índios. Em estilo literário, o autor
mostra que o nosso colonizador é visto de forma achatada — a imagem
do bufão, do gordo e do guloso por quitutes e negras. Para Gilberto
Freyre, tal deformação seria um preconceito com o fundador da “maior
civilização moderna nos trópicos”. Portanto, a tentativa de torná-lo
herói aparece como um contraponto ao estereótipo do português como
figura engraçada e quixotesca difundida pelo resto da Europa e, de
certa forma, admitida pelos brasileiros após a proclamação da
República.
A deformação do português tem sido
sempre em sentido horizontal. O achatamento.
O arredondamento. O exagero da carne em
enxúndia.
Seu
realismo
econômico
arredondado em mercantilismo, somiticaria,
materialização bruta de todos os valores da
vida. Seu culto da Vênus fosca, de formação
tão romântica como o das virgens louras,
desfigurado em erotismo rasteiro: furor de donjuan das senzalas desadorado atrás de negras e
mulecas. (C.G.S.,190)
Mesmo tendo uma posição que enaltece o colonizador, Gilberto
Freyre nos oferece uma imagem múltipla e rica de tudo o que vê,
porque mostra os antagonismos das pessoas, de suas relações e da
própria história.
Outro aspecto importante é a distinção do colonizador e do
português da metrópole. A obra aponta que, na colônia, o poder da
Igreja foi substituído pelo poder da casa-grande de engenho, fato que
será determinante na nossa organização social, bem como nos nossos
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
318
costumes e cultura. Os jesuítas tinham como inimigos os senhores de
engenho, já os demais padres, “gordos e moles”, acomodavam-se à
casa-grande — muitas vezes morando nela — como pessoas da
família, como aliados do sistema patriarcal. É muito importante essa
caracterização freyreana do português colono, porque nos dá suporte
para compreendermos as
estruturas políticas e sociais da nossa sociedade, que bebem até hoje na
fonte do patriarcalismo, nas relações de senhor e escravo.
Para representar a imagem do colonizador, o autor se utiliza dos
mesmos recursos do resto da obra; dentre eles, conta histórias,
“causos” de que ouviu falar, para dar mais veracidade a sua tese,
deixando-nos a sensação de estarmos lendo algo íntimo, um segredo,
aquilo que é informal, como a passagem abaixo.
Narra Coreal que dizendo um dia a um
santista já ter servido entre ingleses flibusteiros
o homem imediatamente arrepiou. Perguntoulhe mais de trinta vezes se Coreal não era
herege. E apesar de todas as suas afirmativas
em contrário não resistiu ao desejo de espargir
com água benta o aposento em que estavam.
(C.G.S., 199)
A proposta de Gilberto Freyre é apresentar o português como o
homem cosmopolita, capaz de se relacionar com várias etnias e de
formar o brasileiro, homem híbrido, indefinido, amálgama de várias
origens. O ensaio nos mostra que o colonizador foi capaz de se
misturar não apenas com o índio e o negro, mas com europeus das
mais variadas procedências que aqui chegavam. Livres da suspeita de
heresia, todos eram recebidos amigavelmente. Essa liberalidade com as
demais etnias é resultado da própria composição cosmopolita e
heterogênea do povo lusitano, “formando um todo social plástico”. O
autor vai até o português histórico para demonstrar sua tese. Ao
apresentá-lo como um indivíduo híbrido já nas suas origens, o ensaio
procura, na verdade, saudar o português colocando-o como herói na
história da colonização brasileira, porque seria o verdadeiro
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
319
responsável pela maior riqueza da nossa nação — a diversidade
cultural e uma “etnia” formada a partir da mistura.
Sabemos que tudo isso só aconteceu por causa da capacidade
contemporizadora do lusitano. Contudo, esse caráter “plástico e
macio” do português vem da herança africana que suavizou a
inflexibilidade européia. Gilberto Freyre marca enfaticamente essa
diferença que existe entre a Península Ibérica, sobretudo em Portugal,
e o resto da Europa — o quente e
macio peninsular em oposição ao frio e rígido anglo-saxão. Quando
afirma que Portugal foi uma região de fácil trânsito “para onde
primeiro e com mais vigor transbordaram as ondas de exuberância
africana” (C.G.S., 208), Freyre não estabelece um confronto entre o
exotismo africano e a rigidez cristã portuguesa. Ao contrário, sugere
uma fusão no sentido de transformar a cultura lusitana em algo mais
suave e, agora sim, cordial.“De modo que ao invadirem a Península,
árabe, mouros, berberes, mulçumanos foram-se assenhoreando de
região já amaciada pelo sangue e pela sua cultura; e talvez mais sua
que da Europa” (C.G.S., 208).
A tentativa de exaltação do povo lusitano percorre toda a obra,
mas, sem dúvida, será mais recorrente no capítulo III de Casa-grande
& sensala, que tratará especificamente do colonizador. Chega mesmo a
ponto de confrontar a bondade cristã portuguesa com a frieza e
crueldade dos judeus que habitavam em Portugal. A criação do
Tribunal do Santo Ofício seria uma forma de “conter os ódios que se
levantaram quentes, fervendo, contra a minoria israelita”.
Os judeus haviam se tornado antipáticos
menos pela sua abominação religiosa do que
pela falta completa de delicadeza de
sentimentos, tratando-se de questões de
dinheiro com os cristãos. Suas fortunas
acumularam-se principalmente pela usura,
proibida pela Igreja aos cristãos, ou pelo
exercício, na administração pública, nas
grandes casas fidalgas (...). (C.G.S., 208)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
320
Dessa forma, o português, mais uma vez, é transformado em
herói. Contudo, não se pode associá-lo diretamente ao modelo de herói
cristão produzido pela literatura romântica do século XIX, que é
valorizado pelo fato de ser branco, europeu e, sobretudo, cristão. O
português de Casa-grande & Senzala é heroificado, porque possui a
superioridade da cultura europeia e a alma do continente africano, já é,
portanto, híbrido, vindo de uma sociedade “móvel e flutuante”, que se
desenvolvia através de intensa circulação horizontal e vertical entre
vários povos. Um povo “cujo passado étnico e social não acusa
predomínio exclusivo ou
absoluto de nenhum elemento, mas contemporizações e
interpenetrações sucessivas.” (C.G.S., 217) Configura-se, portanto,
uma tese baseada tipicamente na concepção dialógica.
Já contemplado em vários estudos, o português se afirmaria
pela sua transição entre o Oriente e o Ocidente e, mais tarde, pela
presença na América. No Brasil, será a partir dos estudos de Gilberto
Freyre que teremos dados, referências e informações baseadas em
profunda pesquisa para entender melhor a especificidade do português,
pois o autor afirmará a nossa pluralidade a partir da verificação do
“não-europeísmo” do colonizador lusitano. Pela comprovação do
caráter híbrido do português, apresentará e justificará sua tese sobre a
formação nacional brasileira a partir da miscigenação de raças e
cultura e, portanto, a partir de dialogismos étnicos e culturais. A
experiência portuguesa do bicontinentalismo começa em sua préhistória e é retomada com a colonização do Brasil. É a partir daí que se
justifica o processo da miscigenação: a capacidade do português de
existir a partir dos contrastes, do plural, das diferenças, e que mais
tarde é transferida à sociedade brasileira, torna-o capaz de conviver
com o outro em harmonia e de se adaptar a outros espaços. Assim, a
própria relação senhor e escravo permite que o africano (escravo)
assuma também o papel civilizador na sociedade patriarcal. Da mesma
forma, elementos que em muitos países são motivos de lutas e
separações, no Brasil acabam por se harmonizar.
Será a partir dos ensinamentos de seu maior mestre, Franz
Boas, e da observação de uma cultura mestiça no Brasil que Gilberto
Freyre perceberá a diferença entre os conceitos de raça e de cultura. A
idéia de uma raça híbrida estaria associada a uma noção de não-raça,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
321
isto é, o cruzamento impossibilitaria a existência de uma raça. Essa
inexistência ou “a-racialidade” (McNee, 2006) seria a base não só do
português, mas, sobretudo, do tipo brasileiro, porque “vira uma
racialidade hiperbólica. A singularidade da nação se apoia
precisamente no seu confronto com a raça” (McNee, 2006). Esse tipo
novo é concretizado no espaço da escrita e da poeticidade, formando,
dessa forma, uma verdade criada por ambivalências e interações de
ideias, espaço de fascínio e de repulsa.
Quando Freyre inova a partir de seu pioneirismo nos estudos
culturais e na micro-história, apresenta uma proposta de texto
extremamente inclusiva, na medida em que dá voz a pequenos
representantes da história e também a escritas não-hegemônicas, isto é,
que não eram tratadas como “disciplinas”. O grande liame da questão,
que deu espaço a inúmeras críticas posteriores, é que as pequenas
vozes que conversam em Casa-grande & Senzala acabam, muitas
vezes, cantando a música lusitana, no sentido de abrandar as imagens
truculentas produzidas no sistema colonial. Quando Freyre aponta para
o caráter plástico do português (o europeu com alma africana) através
da hibridez cultural, ele não só suaviza aquele que está no poder como
o próprio colonialismo, construindo um Brasil “cronicamente viável”.
O próprio autor entende que o português foi o colonizador capaz de
estabelecer “o sistema econômico que nos dividiu, como um deus
poderoso, entre senhores e escravos.” (C.G.S., 379)
Ao criticar o conceito de raça, Gilberto Freyre acaba tomando
também um pensamento a partir das bases econômicas, porque
direciona a análise para o modo de produção colonial, no qual a “casagrande” e a “senzala” dariam conta de explicar a singularidade
brasileira. O autor afirma também que a dualidade cultural e de caráter
dos portugueses, promovida pelo enlace com os povos árabes e
africanos, foi fortalecida pelo sistema de escravidão, que estreitava as
relações entre culturas e etnias diferentes. Após a afirmação cristã em
Portugal, os mouros tornaram-se escravos, favorecendo assim a
influência dessa etnia (leia-se escravo) sobre o povo português (leia-se
senhor). Diz o autor de Casa-grande & Senzala: “influência
que predispõe como nenhuma outra para a colonização agrária,
escravocrata e polígama — patriarcal, enfim — da América tropical”
(C.G.S., 208).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
322
É possível apontar para o autor romântico, mas é preciso
entender que se trata do seu caráter idealizado e subjetivo, não
podemos associá-lo à ideologia romântica da época. Seu nacionalismo
está muito mais em sintonia com a postura modernista, no sentido de
querer refletir e responder o que é o Brasil, através da combinação de
culturas. Essa sintonia, porém, merece algumas ressalvas
significativas: se pensarmos sobre a relação entre cultura e raça na obra
de Gilberto Freyre, verificaremos sua diferença com muitos
contemporâneos modernistas, embora todos tenham o mesmo objetivo.
Casa-grande & Senzala dialoga, sobretudo, com os modernistas de
1920, no sentido de apresentar outra tese que difere da deles. Se a 1ª
geração entendia a mestiçagem como mistura e cruzamento das três
etnias e culturas para formar um quarto produto — o brasileiro — que
não seria nenhum dos três, mas algo formado a partir deles, Gilberto
Freyre apresenta outra perspectiva. Para ele o brasileiro seria tudo ao
mesmo tempo, isto é, sua idéia de miscigenação seria o caráter plural
do indivíduo, a capacidade de ser múltiplo, vários ao mesmo tempo.
Não seria mais a mistura oswaldiana, formando um outro, mas a
presença de todos ao mesmo tempo, uma formação tipicamente
polifônica. Para comprovar tal tese, o autor decompõe o brasileiro
contemporâneo até chegar a seus mínimos denominadores — o índio, o
negro e o português — fazendo um grande inventário de cada
manifestação brasileira e de suas origens. A tese é fortalecida ainda
mais quando ele mostra a multiplicidade ao decompor a figura do
português — o colonizador formado a partir da união do ocidente com
o oriente — e, logo em seguida, ao transpor essa imagem híbrida para
o povo americano.
Nesse momento, é bem-vinda a reflexão sobre o conceito de
mestiçagem para Gilberto Freyre, porque se trata de uma idéia do povo
brasileiro/povo mestiço, a partir da noção do povo lusitano, também
povo mestiço. Esclarecendo melhor, a presença das várias culturas no
processo civilizatório do Brasil se daria pela capacidade do
colonizador de conviver com as demais culturas, dentro do espaço da
casa-grande. Essa capacidade se explicaria na própria origem da
cultura portuguesa — formada pela presença de várias outras, através
do convívio entre senhor e escravo.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
323
Há, portanto, nessa abordagem, uma transposição para os
trópicos desse mecanismo de hibridização ocorrido na Península
Ibérica, que só é possível, segundo Freyre, no sistema patriarcal de
escravidão. Nesse sentido, Freyre prova que a família patriarcal é a
base da formação não só da sociedade como da esfera pública. Através
da convivência, na casa-grande, entre as três culturas, formar-se-ão os
mecanismos de relação das instituições públicas e a cultura brasileira,
fundamentadas, principalmente, na confusão entre o público e o
privado. É evidente que Gilberto Freyre inaugura uma nova posição
que daria conta dessa sensação de indefinição no momento de se
definir o brasileiro.
distinguindo raça de cultura e por isto
valorizando em pé de igualdade as
contribuições do negro, do português e — em
menor escala — do índio. nosso autor [Gilberto
Freyre] ganha forças não só para superar o
racismo
que
vinha
ordenando
significativamente a produção intelectual
brasileira mas também para tentar construir
uma outra versão da identidade nacional, em
que a obsessão com o progresso e com a razão,
com a integração do país na marcha da
civilização, fosse até certo ponto substituída
por uma interpretação que desse alguma
atenção à híbrida e singular articulação de
tradições que aqui se verificou. (Araújo,
2005:28)
A heterogeneidade do português-colonizador, bem como a sua
integração com diversos grupos sociais, caracteriza a nossa
colonização e a formação da sociedade brasileira. Nesse sentido, a obra
construirá a imagem de um português rabelaisiano, cheio de contrastes,
porque foi habituado a viver no espaço da cultura oficial e da popular
ao mesmo tempo. Ricardo Benzaquen de Araújo (2005) já aponta para
a forte relação do estudo de Mikhail Bakhtin em A cultura popular na
Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais e de
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
324
Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala, porque ambos
preocupam-se com o universo de uma civilização baseada em
contrastes entre a “cultura oficial, baseada na seriedade, na hierarquia e
em aristocráticas separações, e uma popular, preocupada com a
promoção da familiaridade, da liberdade e do humor.” (Araújo,
2005:66)
Embora acabe volatilizando o problema da divisão de classes
entre pobres e ricos com sua ideia de miscigenação, Freyre inova
quando retrata poeticamente a vida privada das pessoas comuns e
quando destrói a hierarquização das raças e inventa um Brasil desejado
na imaginação utópica.
Apresentar uma leitura fechada de Casa-grande & Senzala é
algo extremamente contraditório, na medida em que a própria obra não
conclui, isto é, não constrói um sistema fechado. A obra é uma tese,
com suas hipóteses e comprovações, mas comprovações extremamente
vivas e abertas e, por isso, não comunga com os discursos acadêmicos
tradicionais. Ela permite múltiplas interpretações e um debate infinito,
pois, sendo sua grande questão o que é ser brasileiro, trata de algo que
está sempre em construção, uma vez que, enquanto o brasileiro existir,
estaremos sempre refletindo e ao mesmo tempo construindo a nossa
brasilidade.
Dessa forma, pesquisar o que nos faz brasileiros não se trata de
pensar em algo que foi, mas de alguma coisa que é e sempre será. Essa
perspectiva envolve a questão do tempo e da história em processo, em
que o passado, o presente e o futuro não devem existir de forma
isolada. O conceito de tempo tríbio, formulado por Gilberto Freyre, é
um dos pontos principais para se entender a tese contida em Casagrande & Senzala. Entender o que é ser brasileiro na visão de Gilberto
Freyre é analisar a partir de uma concepção de história, cultural e de
tempo contínuos, isto é, passado, presente e futuro estão conjugados
para sempre. O nosso presente é a continuidade de um processo
histórico, portanto, um tempo em formação, vivo, que se renova num
processo cíclico, no qual a história é eterna e infinita.
Casa-grande & Senzala deixa muito claro que a história do
Brasil não tem fim e deve ser vista a partir de várias vertentes. Gilberto
Freyre, para explicar o brasileiro, vai até o português histórico para
entender o nosso colonizador nas raízes. Da mesma forma, procurou
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
325
entender quem eram os habitantes que já aqui viviam, os índios, e, por
fim, quem foram as pessoas que formavam a força motriz da nossa
cultura e da nossa economia, os escravos africanos. Para se tentar
construir uma imagem do brasileiro, o autor segue um método indutivo
de raciocínio, ou seja, a reflexão parte de um dado particular para o
geral. No caso, através da indução, partimos de observações isoladas
sobre o índio, o negro e o português, seus hábitos, suas origens e suas
culturas para, então, examinarmos e chegarmos a um dado geral — a
sociedade brasileira. Portanto, o autor pressupõe que a cultura
brasileira é algo vivo, fruto de um constante diálogo com culturas que
se cruzam. Nesse sentido, Gilberto Freyre demonstra como culturas
anteriores a nossa foram reinterpretadas e absorvidas pela sociedade
atual e como aspectos do passado possuem vida na cultura brasileira. O
tempo tríbio freyreano entende que existe um diálogo entre culturas
distintas no tempo e no espaço, capaz de deixá-las vivas além do seu
tempo, herdadas, relidas e reformuladas por culturas posteriores. A
proposta fundamental de Casa-Grande & Senzala está ligada
diretamente à ideia do grande tempo. Trata-se de avaliar a capacidade
que a cultura portuguesa, a indígena e a africana tiveram de se manter
vivas na cultura brasileira, ganhando novos sentidos, através de um
grande diálogo entre si no grande tempo.
Essa leitura é muito clara na medida em que Gilberto Freyre em
nenhum momento faz análise de fatos isolados, ao contrário, os fatos
para ele estão sempre relacionados. E talvez seja essa uma questão
importante para tentar compreender a sua visão em relação ao sistema
escravocrata. Só é possível compreender sua posição se levarmos em
conta que seu olhar sobre o escravo está sempre relacionado com
outros grupos da civilização. Em artigo para o Diário de Notícia3, o
autor afirma
Quando se diz, por exemplo, que o escravo, de
modo geral, foi bem tratado no Brasil, não se
faz uma afirmativa absoluta mas relacionada
3
“Fatos isolados e fatos relacionados”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro,
23/04/1950. (Disponível na Biblioteca virtual Gilberto Freyre –
http://bvgf.org.br)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
326
com outros fatos. Relacionada com a vida
vivida por outros grupos da sociedade
brasileira, livres porém abandonados à sua
sorte pelo então vago paternalismo do governo.
Relacionada com a vida vivida por outros
grupos de escravos em outras sociedade
escravocratas da América. Relacionada com a
vida vivida por outros grupos escravocratas em
outras sociedades escravocratas ou quaseescravocratas da Ásia, da África, da própria
Europa. Relacionada com a vida vivida por
outros grupos de operários, aparentemente
livres, da Europa, nos primeiros decênios que
se seguiram à Revolução Industrial: período em
que o sistema escravocrata esteve entre nós em
pleno vigor. Relacionada com a vida vivida
pelos próprios senhores brasileiros da época:
pela maioria e não apenas pelos mais opulentos
ou fartos.
Sem dúvida, o artigo foi uma resposta às críticas que o
acusavam de fazer apologia ao sistema escravocrata e um
esclarecimento de que, para o autor, não se trata de ser a favor ou não
da escravidão no Brasil, mas de fazer uma análise a partir de um
contexto histórico e geográfico. Assim, a primeira conclusão a que
chegamos é que a leitura de Casa-grande & Senzala deve ser feita a
partir das concepções de tempo tríbio e de fatos relacionados, isto é,
não podemos fazer análise dos fatos isolados no seu tempo e no seu
espaço. Tal postura de observação mostra-se como uma questão
capital, quando se deseja fazer uma leitura crítica da obra. Gilberto
Freyre coloca os dois lados da moeda do sistema escravocrata, sem
deixar, porém, de eleger um lado como ponto de vista – o lado do
colonizador. A obra faz um movimento pendular — para mostrar que a
nossa miscigenação é marcada por antagonismos — mas não é
uniforme. Valoriza-se muito o sistema e o colonizador, e em alguns
momentos mostram-se as suas mazelas e fatos hediondos cometidos
com os nativos e com os escravos. Como se fosse uma estratégia
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
327
metodológica de persuasão, o autor vai de um ponto ao outro,
mostrando as contradições e os antagonismos da história, mas sem
deixar de colocar mais peso no lado benéfico da colonização
portuguesa. Percebe-se que é um ponto da obra em que o autor se põe
“em xeque”, na medida em que acentua a nossa cultura formada a
partir da relação do mais alto (o senhor) com o mais baixo (o escravo),
numa perspectiva muito festiva e utópica. É necessário considerar que
Freyre tenha “errado na mão”, ao desenvolver, a partir dessa relação,
sua tese de sociedade híbrida, pois, quando apresenta essa tese, acaba
amenizando as relações de poder e a hierarquia entre o senhor e o
escravo, gerando, assim, toda a polêmica em torno da ideia de
democracia racial.
Por outro lado, se o olhar predominante na obra é o do
português-colonizador, não podemos deixar de notar que,
curiosamente, Casa-grande & Senzala termina com o olhar do
dominado — a voz do escravo – mostrando que o dia-a-dia do negro
não foi só de alegria, que muitos escravos se suicidaram comendo
terra, enforcando-se ou se envenenando, por causa dos maus tratos ou
do “banzo”, saudades da África. Aponta para as doenças de brancos
que os negros domésticos adquiriram e as que se apoderaram deles
devido à má higiene no transporte da África para América. As
contradições são infinitas na própria história relatada e na forma de se
relatar. Sua conclusão se dá repentinamente e não representa o
apanhado da obra, isto é, não resume o viés que ele vai eleger como
ponto fundamental: o lado que diz que o Brasil só foi possível devido à
capacidade de contemporização e a maleabilidade do colonizador
português. Analisando a estrutura da obra, podemos notar também que
o último parágrafo termina subitamente, não seguindo o estilo
tradicional de um parágrafo conclusivo. O autor termina com uma
citação de outro estudioso, dando-nos a sensação de que o texto teria
prosseguimento. A sensação de algo inacabado é justificada porque,
em primeiro lugar, Casa-grande & Senzala é a primeira parte de uma
trilogia, que segue com Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso;
em segundo lugar, porque o autor entende que a história não tem fim,
ou seja, uma obra não deve ser conclusiva, já que os fatos possuem
continuidade, renovam-se. É como se a história da colonização do
Brasil não tivesse terminado, mas se renovado, estivesse em processo,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
328
readaptando-se e transformando-se à luz dos novos costumes e da nova
mentalidade da sociedade. A escolha dessa conclusão é realizada muito
mais pelo escritor do que pelo cientista, para poder seduzir o leitor.
Assim, elimina-se qualquer possibilidade de rejeição da obra por causa
de uma ideologia ou olhar único. Nas várias, porém pequenas
pinceladas em que ele mostra o grito da senzala e, sobretudo, também
na finalização do livro, o autor procura anteparar-se para uma crítica
que o acusaria de unilateralismo. Portanto, se o ensaio é a imagem da
intimidade da casa-grande, contraditória e inesperadamente, o último
flash é o da senzala. Dessa forma, as estratégias discursivas da obra
são elementos fundamentais na construção do sentido. O estilo
literário, a linguagem escolhida, a estrutura da obra e o uso da língua
devem ser levados em consideração para o bom entendimento da obra
freyreana. Não estamos diante apenas de um escritor “que fala bonito”,
mas diante de uma obra cujo sentido é produzido pela soma das
pesquisas e dos dados colhidos pelo autor, mais as imagens construídas
pela linguagem — o plano literário. Ler Casa-grande & Senzala é
perceber que estamos concomitantemente diante de conteúdos
científicos e de estruturas literárias. Nesse sentido, é muito importante
que o leitor saiba diferenciá-los, identificando o que é realidade e o que
é ficção para a construção do Pensamento Social Brasileiro.
Entender a obra como um texto inacabado, híbrido e
contraditório não significa falta de caráter analítico; ao contrário, a
ausência de uma conclusão fechada amplia a tensão argumentativa,
tornando possíveis revisões e releituras contínuas, haja vista a imensa
variedade de análises da obra. Ricardo Benzaquen de Araújo, por
exemplo, diz que o emprego da oralidade em Casa-Grande & Senzala
facilita o caráter inacabado da obra. Portanto, mais uma vez,
constatamos que a metodologia discursiva é tão importante quanto os
dados e conceitos presentes no texto. A oralidade, o falar comum, é o
instrumento que melhor ilustra as raízes da nossa tradição popular —
linguagem e objeto de estudo estão sempre em sintonia na obra. Esse
estilo permite que o autor transfira para o interior da obra a
ambiguidade, o excesso e a instabilidade próprios das relações sociais
da casa-grande. O tom de conversa, de bate-papo que a obra propicia
termina por subverter o pensamento científico estilizado e, ainda,
permite com que haja um raciocínio paradoxal, uma espécie de
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
329
reflexão dicotômica, na qual a cada avaliação positiva possa se suceder
uma crítica ou vice-versa. Logo, se a oralidade é um ponto negativo
dentro da ciência tradicional da época, nas análises freyreanas será um
elemento impulsionador da cadeia reflexiva. A sua argumentação será
enriquecedora justamente porque estabelece contradições entre
princípios coerentes, que, em vez de se anularem, caminham de forma
justaposta.
Portanto, é possível concluir que o discurso de Casa-grande &
Senzala está sempre em sintonia com seu objeto, sobretudo no terceiro
capítulo, em que se analisa a figura do português. Ao demonstrar que a
sociedade brasileira se formou a partir do cruzamento, das trocas, de
uma miscigenação cheia de contradições, Gilberto Freyre constrói um
texto híbrido, formado também pela pluralidade, pela miscigenação de
várias formas de representação da cultura brasileira e, também, pelo
equilíbrio de antagonismo, como se o texto, o próprio discurso, fosse
um monumento que representasse o caráter e a cultura brasileira, isto é,
como se o verbo se transformasse no objeto. Os antagonismos que se
equilibram são a principal marca da cultura brasileira e do próprio
ensaio freyreano. O vai-e-vem, o ziguezague discursivo e o caráter
inacabado também acentuam isso na obra. Assim, não se trata de um
processo dialético, em que a reflexão é marcada por progressivas ideias
que se opõem e se negam, mas sim de uma análise dicotômica, na qual
os conceitos se dividem em partes contrárias que se complementam.
A tensão intelectual entre o Gilberto Freyre e a escola paulista
(num primeiro momento, os modernistas dos anos 1920 e, depois, o
grupo da USP dos anos 1950 e 1960) ocasionou algumas leituras
equivocadas de Casa-grande & Senzala. Explicando melhor, ficamos
com a sensação de que ou devemos abraçar a corrente marxista dos
paulistas ou a corrente mais liberal do grupo pernambucano,
representado por Gilberto Freyre e José Lins do Rego. Tal
obscurantismo chegou ao limite de extinguir os estudos freyreanos nos
cursos de Ciências Sociais durante os anos 1970 e 1980, já que o
período da ditadura militar obrigava-nos a fazer escolhas políticas e
ideológicas. Infelizmente, algumas escolhas (inevitáveis e
necessárias!) conduziram-nos à desaceleração e ao empobrecimento do
pensamento intelectual brasileiro. A breve análise dessa questão não
deseja estabelecer as diferenças conceituais entre ambos os grupos, o
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
330
objetivo é mostrar que não se trata de escolher uma corrente, negando
cegamente a outra, nem muito menos desejar um equilíbrio
harmonioso das duas. O importante é que os estudiosos aproveitem
essa tensão intelectual positiva e, infelizmente, tão rara em nosso país
para promover conhecimento. Em vez de evitar um possível “malestar” acadêmico, são necessários a reflexão e o embate contínuo para
a evolução do Pensamento Social Brasileiro. Por isso, são corretas as
palavras de João Cezar de Castro Rocha (2004:249) sobre tensão no
sistema intelectual brasileiro, quando reflete sobre a cisão entre
paulistas e Gilberto Freyre:
Ler com olhos menos comprometidos a
tradição do pensamento social brasileiro talvez
estimule a escrita de relatos que, em lugar de
trincheiras,
estabeleça
pontes
para
compreensão mais fecunda, quer dizer, mais
complexa, especialmente de pensadores cuja
orientação não coincida com a nossa.
Nesse sentido, devemos reconhecer que Gilberto Freyre,
sobretudo em Casa-grande & Senzala, teve um papel fundamental,
senão revolucionário e inovador, nas Ciências Sociais e na
historiografia do Brasil. A preocupação com o singular, com a microhistória, com a experiência individual e com a sociologia na vida
cotidiana passou a ter, no Brasil, valor fundamental na investigação de
uma sociedade e de sua cultura. Essa metodologia inovadora já dava
seus primeiros indícios não só no Brasil, através de Freyre, mas
também nos EUA, com a New History, na U.R.S.S., nos estudos de
Mikhail Bakhtin, e na França, através da Escola da Annales. Portanto,
o sociólogo brasileiro passa a ser uma espécie de ponte intelectual
entre os trópicos e o mundo.Reconhecendo a importância de sua obra
nos estudos sobre o Brasil e a América Latina, Gilberto Freyre foi
convidado a fazer parte de várias comissões de revistas e de centros de
estudos dos mais renomados do mundo. Em 1942, por exemplo, o
autor foi convidado por Georges Gurvitch para ser membro do comitê
do Journal of legal and political sociology e, também em 1945,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
331
Fernand Braudel o convida para ser membro, representando o Brasil,
da Revista da Annales (Annales d’histoire économique et sociale).4
Na 2ª edição de Casa-grande & Senzala, já podemos verificar a
necessidade do autor em dialogar e acentuar suas posições e diferenças
com demais críticos e estudiosos. Examinando também os sucessivos
prefácios de Freyre a Casa-grande & Senzala, vemos ratificada sua
posição positiva no que diz respeito às divergências para a evolução do
pensamento intelectual. Nos prefácios, que vão desde a 1ª edição
(1933) até a 20ª edição (1980), encontramos reavaliações de
considerações passadas do próprio autor, e, ao mesmo tempo, uma
relação de diálogo com o leitor e com a crítica presente. Nem sempre
nomeando, mas recorrendo muitas vezes ao “dizem que eu...”, “dizem
que minha obra...”, Gilberto Freyre procura dialogar com as reflexões
que se opunham aos deles. Também nas notas de rodapé,
constantemente ampliadas e alteradas, o autor aproveita para
corroborar ou negar comentários sobre a obra de algum crítico da
época. Com isso, deduz-se que era intenção do ensaísta manter
atualizadas a reflexão e a avaliação sobre a sua obra. Estamos,
portanto, diante de um pensador que valoriza o debate e o confronto de
ideias. Como um verdadeiro produtor de conhecimento, não tem medo
das críticas, nem do mal-estar, não se fecha arrogantemente em seu
gabinete com livros “comparsas”. Ao contrário, possui uma visão de
quem prima pelo crescimento intelectual, ultrapassando o círculo de
pessoas que comungam com seu pensamento, para dialogar com as
mais diversas expressões.
A partir desse ponto, podemos passar exatamente para o outro
lado da moeda, no qual a idéia de democracia racial acaba fortalecendo
as diferenças entre classes. Ou seja, a sensação de miscigenação
cultural e étnica mascara a luta de classes. É importante percebermos
que, muito mais que ideologia, estamos diante de um mito que
intensifica a ideia de unidade nacional (do brasileiro híbrido, a mistura
de todos) e, consequentemente, a sensação de que a nação brasileira é
contemporizadora e, portanto, não-violenta. A nação fica preservada
4
As cartas encontram-se no nos arquivos do Centro de Documentação da
Fundação Gilberto Freyre
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
332
em sua integridade, a partir da noção de que a sociedade brasileira é
fruto de uma união democrática entre índios, negros e brancos. Se
fomos capazes de tal façanha, devemos estar associados à imagem de
pacificadores, e nunca ligados ao autoritarismo e à tirania. Esse é o nó
que Gilberto Freyre não foi capaz de desfazer.
Não obstante, gostaríamos de finalizar retornando à primeira
perspectiva desse jogo que é Casa-grande & Senzala, lembrando que,
pela primeira vez, um intelectual branco e brasileiro, amplamente
reconhecido, nos traz elementos de valorização da cultura negra numa
época em que a sua valorização era condenada pelos governos e pela
sociedade. Enquanto o mundo pregava a pureza racial, Gilberto Freyre
enaltecia a cultura brasileira afirmando, afirmando que o grande
diferencial do brasileiro, aquilo que o torna mais rico culturalmente
dos demais povos é justamente a sua composição híbrida, que o faz um
indivíduo plural e maleável. Para tal comprovação o autor desobedece
às linhas do pensamento e do discurso científico da época, criando uma
escrita híbrida, com estrutura e estilo que retratam o próprio objeto de
estudo – o brasileiro.
THE FICTION OF THE PORTUGUESE
ABSTRACT: The article examines how Casa-grande & senzala,
Gilberto Freyre, represent the portuguese colonizer of Brazil. To
thoroughly report the formation of the lusitanian people and their
ability to miscegenation, the author Gilberto Freyre transcends the
official discourse of the time and builds an entrepreneur and
temporizing character that stands out positively from the other
European colonizers. In turn, the Portuguese colonizers also invents
the image of brazilian society - fiction from fiction. To say that our
colonization formed a partnership and a hybrid culture, the author
does not forget to point to the hybrid character of the Portuguese,
regarding its origins. Controversial analysis, which receives severe
criticism over the years, the work is also a major contribution to the
understanding of the formation of patriarchal slavery and brazilian
society.
Keywords: Fiction. Science. Portuguese. Colonization. Society.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
333
REFERÊNCIAS:
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de
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in. O exílio do homem cordial. Rio de Janeiro:Museu da República,
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BIBLIOGRAFIA:
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Crítico), São Paulo: Duas cidades, 34. eEd. , 2003.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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senzala e a obra de Gilberto Freyre
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GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
336
VERGÍLIO FERREIRA E O ESPANTO DE EXISTIR:
UMA INTERPRETAÇÃO DE APARIÇÃO
Maurício Silva 1
RESUMO: O presente artigo procura analisar o romance Aparição de
Vergílio Ferreira, destacando aspectos que contribuem para a
constituição de um singular universo romanesco, caracterizado
sobretudo pela introspecção e responsável por sua inserção na
linhagem existencialista da literatura ocidental. Em Aparição, o
existencialismo conhece, por assim dizer, várias dimensões, pois
provoca a secção do eu em outro, cujo mútuo reconhecimento é apenas
pressuposto ou sugerido, jamais certo, fazendo emergir, repentina e
inexoravelmente, a consciência do próprio ser.
PALAVRAS-CHAVE: Vergílio Ferreira. Romance. Introspecção.
Existencialismo.
Publicado em 1959, o romance Aparição de Vergílio Ferreira
possui - a par de uma complexidade estrutural e simbólica flagrantes um enredo bastante simples: trata-se da história da ida do professor
Alberto Soares a Évora, onde permanece por um ano, ministrando
aulas no liceu local. Ali, passa a freqüentar a casa de Moura e sua
família, conhecendo suas três filhas (Ana, Cristina e Sofia), além de se
relacionar com outros moradores da cidade (Alfredo, Chico, Carolino
etc.). Sua estada em Évora acaba provocando - involuntariamente uma série de acontecimentos inesperados, culminando com a morte de
Sofia (com quem tivera um complexo relacionamento amoroso) e seu
afastamento da cidade.
Afora essa trama, como dissemos, simples, todo o restante
revela um inusitado enredamento, a começar pela caracterização das
personagens principais (Alberto e Sofia), as quais - na categorização de
Forster (FORSTER, 1969; CÂNDIDO, 1987) - podem ser definidos
1
Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Programa de Mestrado e
Doutorado em Educação. São Paulo - SP - Brasil. Email:
[email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
337
com personagens esféricas, isto é, construídas a partir de um
deliberado aprofundamento psicológico. Outra complexidade evidente
diz respeito, ainda, à constituição da narrativa, que se manifesta sob
dois planos distintos, mas inter-relacionados: o plano da enunciação e
o plano do enunciado, estrutura que se desdobra - consequentemente em presente e passado, narrador puro e narrador personagem,
macrofábulas e microfábulas, de acordo com a análise estruturalista de
Salvatore D’Onofrio (D’ONOFRIO, 1983).
Uma análise igualmente de natureza estruturalista - como a de
Maria Lúcia Dal Farra - dá conta não propriamente dos planos da
narrativa do romance, mas de suas consequências no âmbito do
discurso empregado na obra, em que a distância entre narrador e
personagem é eliminada por meio do emprego da função poética da
linguagem (DAL FARRA, 1978).
Mas é necessário que saiamos dos limites das análises
estruturalistas, para que possamos alcançar outros aspectos da
dimensão estética do romance de Vergílio Ferreira.
Narrado em primeira pessoa, Aparição possui, desde o
princípio, um incisivo tom memorialístico, mesclando - como um
caleidoscópio temporal - duas fases distintas, mas que se entrecruzam,
vividas pelo autor: uma presente, em que narra, num casarão solitário,
os acontecimentos vividos no agora; outra passada, que ganha
continuidade numa miríade de fatos pretéritos, por meio dos quais o
narrador recorda fatos vividos no outrora. No final das contas,
prevalece mesmo, como afirmamos, seu sentido memorialístico,
presente em quase todos os capítulos do romance, tudo resumindo-se a
um conjunto quase indistinto de recordações sem fim: “neste vasto
casarão, tão vivo um dia e agora deserto, o outrora tem uma presença
alarmante e tudo quanto aconteceu emerge dessa vaga das eras com
uma estranha face intocável e solitária” (FERREIRA, 1983, p. 22).
Assim, o autor - imbuído de uma personalidade única, no seu
imaginar-se a si mesmo - vai tecendo a existência presente com os fios
da memória do passado, fios que se multiplicam, fios que se
entrelaçam, fios que se ligam uns aos outros num contínuo e
ininterrupto gerar-se, reproduzir-se, desenvolver-se.
Neste sentido, pode-se dizer que Aparição é um romance, para
além de memorialístico, existencialista, em que o viver humano
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
338
apresenta-se construído sob o imponderável peso da solidão e povoado
por indefectíveis silêncios. Suspenso pelos fios da memória, esse
romance autenticamente proustiano - na acepção que tal designativo
possa ter de busca-do-tempo-perdido - pode, portanto, ser definido
como existencialista num sentido lato: reconstrói o mundo do narrador
a partir de indagações que nascem, simplesmente, do espanto de
existir, numa linhagem literária que vai de Camus a Artl, de Buzatti a
Malraux, de Lúcio Cardoso a Virginia Wolf: “lembro-me bem dessa
primeira chuvada de Inverno, porque a chuva tem para mim o abalo da
revelação e abre como auréola o halo da memória ao que nela
aconteceu" (FERREIRA, 1983, p. 70).
Com efeito, seu existencialismo manifesta - como em todos os
autores citados - como autêntica aventura humana, não isenta da
irrefreável consciência da morte, em sua luta insana contra um viver
irracional. É o resgate, sem dúvida, das mesmas inquirições essenciais
que, desde a tradição lírica camoniana, perscrutam infatigavelmente os
mais recôndidos segredos do ser: em Aparição, emerge como temática
principal do romance a própria condição humana, explorada no
indissolúvel dilema entre a vida-sem-sentido e a morte-sem-razão. De
fato, como já ressaltou uma vez Nelly Novaes Coelho,
“Aparição é o romance onde Vergílio se
debruça sobre o ser-em-si e projeta num plano
vertical a sondagem da aventura humana. Seu
herói, Alberto, busca o ‘eu’ essencial - aquele
que se oculta sob a forma do existente e cuja
verdade autêntica só é alcançada (...) numa
súbita e fugaz ‘aparição’, porém jamais
apreensível pelo conhecimento lógico-objetivo
(...) No conflito íntimo de Alberto e nos dramas
das demais personagens configura-se a
problemática existencialista: a conscientização
do ‘eu’ absurdamente voltado para a morte e a
obscura certeza de que é no Homem que estão
as respostas definitivas” (COELHO, 1973, p.
209-247).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
339
Em Aparição, o existencialismo conhece, por assim dizer,
várias dimensões, pois provoca a secção do eu em outro, cujo mútuo
reconhecimento é apenas pressuposto ou sugerido, jamais certo,
fazendo emergir, repentina e inexoravelmente, a consciência do
próprio ser:
“no outro dia, assim que me levantei, coloqueime no sítio donde me vira ao espelho e olhei.
Diante de mim estava uma pessoa que me
fitava com uma inteira individualidade que
vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me
fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a
face desse alguém que me habitava, que me era
e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu
tinha o alarme dessa viva realidade que era eu,
desse ser vivo que até então vivera comigo na
absoluta indiferença de apenas ser e em que
agora descobria qualquer coisa mais, que me
excedia e me metia medo” (FERREIRA, 1983,
p. 64).
Não é de se espantar que isso aconteça, pois para o autor esse
desdobramento do eu em outro nasce do reflexo da realidade que se
espelha no mundo das formas, lembrando o célebre mito platônico das
cavernas:
“há uma vida atrás da vida, uma irrealidade
presente à realidade, mundo das formas de
névoa, mundo incoercível e fugidio, mundo da
surpresa e do aviso. Assim, o próprio presente
pode ter a voz do passado, vibrar com ele à
obscuridade de nós” (FERREIRA, 1983, p. 71).
Nesse universo habitado por seres que, embora conhecidos,
parecem tão distantes, cuja intimidade necessita ser, a todo instante,
conquistada ou seduzida, há apenas uma figura que mantém contraditoriamente, por sua ausência física - uma presença
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
340
memorialística constante: a figura do pai. Com efeito, é essa mesma
figura que emerge, no romance, como ponto de partida e de chegada,
como modelo e referência existenciais, como meta a ser alcançada ânsia que se objetiva numa relação atavicamente metafísica. Porém - e
aí reside, ao mesmo tempo, a grandiosidade e a fragilidade da figura
paterna -, seu pai, na realidade, não passa de difusa e quase impalpável
lembrança:
“como os místicos em certas horas, eu sentiame em secura. Fechei os olhos raivosamente e
quis ver. Regressava à aldeia, a essa noite em
Setembro, quando meu pai morreu. Se tu
viesses, imagem da minha condição... Se
aparecesses... Como me esqueces tão cedo,
como te sei e te não vejo!” (FERREIRA, 1983,
p. 39).
Perseguido pela lembrança do pai - a qual, contudo, não deixa,
por sua vez, de perseguir -, o autor passa a fazer parte de uma
engrenagem em que o eu se revela múltiplo, buscando as similitudes
possíveis com a figura paterna. Com efeito, a hipertrofia do eu na obra
de Vergílio Ferreira é uma das questões mais candentes desse seu
romance, como já se disse uma vez: “em Aparição, ocorre a hipertrofia
do ‘eu’, tentando conhecer-se e ao mesmo tempo buscando integrar-se
com outros ‘eu’, no sentido de atingir a verdade” (DÉCIO, 1982, p.
87).
O autor tem consciência de que, não obstante, é a memória,
ainda uma vez, o fio condutor de sua existência humana, uma
existência vivida como mise-en-abîme. Para o autor, assim, viver se
resume à lembrança de um passado remoto, em oposição à realidade
mais imediata: “a evidência da vida não é a imediata realidade mas o
que a transcende e estremece na memória” (FERREIRA, 1983, p. 117).
Logo, toda essa dispersão do ser (aparente ou real), toda essa
inexorabilidade do existir (forçada ou consentida) é resgatada, no final,
pela profunda consciência da essencialidade do ser, uma idéia que,
conquanto se mostre conceitualmente pleonástica, possui o inestimável
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
341
mérito de expor a própria psicogêse dessa mesma consciência, como
revela uma das mais antológicas passagens do romance:
“SOU. Jacto de mim próprio, intimidade
comigo, eu, pessoa que é em mim, absurda
necessidade de ser, intensidade absoluta no
limiar da minha aparição em mim, esta coisa,
esta coisa que sou eu, esta individualidade que
não quero apenas ver de fora como num
espelho mas sentir, ver no seu próprio estar
sendo, este irredutível e necessário e absurdo
clarão que sou eu iluminando e iluminando-me,
esta categórica afirmação de ser que não
consegue imaginar o ter nascido, porque o que
eu sou não tem limites no puro acto de estar
sendo, esta evidência que me aterra quando um
raio da sua luz emerge da espessura que me
cobre. E estas mãos, e estes pés que são meus e
não são meus, porque eu sou-os a eles, mas
também estou neles, porque eu vivo-os, são a
minha pessoa e todavia vejo-os também em
cima, de fora, como a caneta com que vou
escrevendo...” (FERREIRA, 1983, p. 180).
Reflexão sobre a vida, sobre o ser-alguém-no-mundo, sobre como dissemos - a essencialidade do ser. Enfim, sobre a existência.
Num plano pouco conceitual, como é o da linguagem ou do estilo, a
narrativa de Aparição procura manter a mesma “introspecção”,
manifesta por meio de um jogo de tempos verbais, de insólitas e
inesperadas metáforas, de uma adjetivação difusa, um tanto simbólica,
como se percebe, por exemplo, em mãos subtis, silêncio inconsútil, céu
espumoso, dente ingênuo ou olhar oblíquo.
Desse modo, o autor procura aliar a essa linguagem singular
uma verdadeira profusão de sentidos, imagens e recordações, tudo a
compor o perfil psicológico do protagonista, o que quase nos faz
esquecer - como sugerimos no início - que há um enredo, uma trama,
uma ação romanesca. E, curiosamente, é essa quase falta de ação (ou,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
342
sob uma ótica diversa, essa ação em filigranas) - adensada pelos
contornos de uma psiquê sutil, mas caudalosa, introvertida, mas
abismal -, que faz do romance uma obra de impacto, capaz de causar a
mais profunda impressão, não raro um doloroso incômodo. É que,
pelos olhos do artista, perscrutamos nossa própria alma; com suas
palavras, falamos ao nosso próprio íntimo; e suas dúvidas, anseios e
angústias compõem, no final das contas, nossa própria vertigem de
viver, nosso mais inexplicável espanto de existir.
E, ao terminarmos o livro, já não somos o mesmo...
VERGÍLIO FERREIRA AND ASTONISHMENT TO EXIST: AN
INTERPRETATION OF APARIÇÃO
ABSTRACT: The present article analyzes the romance Aparição of
Vergílio Ferreira, detaching aspects that contribute for the constitution
of a singular fictitious universe, characterized for the introspection and
for existentialist meaning. In Aparição, the existentialism know
several dimensions, carrying leads to consciousness of self.
KEY WORDS:Vergílio Ferreira. Novel. Introspection. Existencialism.
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Antônio et alii. A Personagem de Ficção. São Paulo, Perspectiva,
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Humana”. Escritores Portugueses. São Paulo, Quíron, 1973, p. 209247.
DAL FARRA, Maria Lúcia. O Narrador Ensimesmado (O Foco
Narrativo em Vergílio Ferreira). São Paulo, Ática, 1978.
DÉCIO, João. “A problemática do ‘eu’ no romance de Vergílio
Ferreira”. Arquivos do Centro de Estudos Portugueses, Curitiba,
Universidade Federal do Paraná, Vol. 4, No. 1: 85-94, Jan. 1982.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
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D’ONOFRIO, Salvatore. O Texto Literário. Teoria e Aplicação. São
Paulo, Duas Cidades, 1983.
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FORSTER, E. M. Aspectos do Romance. Porto Alegre, Globo, 1969.
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Portuguesa. São Paulo, Ática, 1990.
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MOISÉS, Massaud. História da Literatura Portuguesa. São Paulo,
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SARAIVA, António José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São
Paulo, Companhia das Letras, 1999.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
344
O ACENTO NO PORTUGUÊS DO BRASIL: ANÁLISE
ACÚSTICA DOS GRAUS DE TONICIDADE EM
DIFERENTES POSIÇÕES SILÁBICAS
Consuelo de Paiva Godinho Costa 1
Michael Douglas Silva Dias 2
RESUMO: O presente trabalho faz uma avaliação instrumental dos
parâmetros acústicos de frequência fundamental, intensidade e duração
para investigar os graus de tonicidade no Português Brasileiro,
principalmente no que concerne às diferenças entre esses correlatos
acústicos nas posições tônica, pré-tônica e pós-tônica. O propósito é
verificar se a posição silábica influencia esses parâmetros e se o acento
relaciona-se mais com a tonicidade ou com o peso silábico.
PALAVRAS-CHAVE: Acento. Duração. Graus de tonicidade.
Introdução
Os estudos de fonologia numa perspectiva estruturalista não se
atêm suficientemente às características duracionais das sílabas, nem
dos segmentos, exceto quando se verifica uma oposição sistemática, o
que passa a ser usado como método de determinação de fonemas na
língua, pois têm valor distintivo. Durante o período de domínio do
pensamento Gerativo, entre as décadas de 1960 e 1970, as questões
prosódicas3, foram praticamente desconsideradas. Exemplo disso é o
1
Doutora em Linguística pela UNICAMP e professora do quadro permanente
do Programa de Pós-Graduação em Linguística – PPGLin/Capes –
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista – BA.
CEP 45083-900. Email: [email protected]
2
Mestrando em Linguística pela UESB, Programa de Pós-Graduação em
Linguística – PPGLin/Capes – Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia, Vitória da Conquista – BA. CEP 45083-900. Email:
[email protected]
3
De fato, os eventos suprassegmentais de maneira geral.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
345
próprio traço [+acento], ligado à matriz de traços da vogal acentuada, e
não ao nível da sílaba. Mais recentemente, no entanto, a fonologia tem
dado maior atenção aos fenômenos prosódicos e suprassegmentais
como unidades e processos constitutivos do sistema fonológico das
línguas, o que pode ser confirmado, por exemplo, pelos estudos
iniciados na década de 1980 nos moldes da Fonologia Métrica, da
Fonologia Prosódica, da Teoria da Sílaba, que foram os antecessores
dos novos estudos acerca da natureza duracional de segmentos
vocálicos e consonantais e outros voltados para a duração silábica.
Como já se sabe, no nível fonético, a ocorrência de sílabas
leves e pesadas está associada a fatores prosódicos. Entretanto,
Mattoso (2004) e outros teóricos já buscaram estabelecer um padrão
acentual para o Português Brasileiro (doravante PB), através de graus
de tonicidade. Segundo Mattoso (2004), existem, para o PB, no nível
do vocábulo fonológico, dois graus de acento: “A sua presença (do
acento) assinala a existência de um vocábulo. No registro formal da
pronúncia padrão do português do Brasil há a rigor uma pauta acentual
para cada vocábulo. As sílabas pretônicas, antes do acento, são menos
débeis do que as postônicas, depois do acento.” (CÂMARA, 2004,
p.63).
De acordo com o modelo de Hayes (1980), o qual desenvolve
uma teoria métrica do acento e do ritmo levando em consideração o
peso silábico, a sílaba é, em qualquer língua natural, a unidade que
carrega o acento. E sobre isso Cagliari (2007) observa que toda sílaba
carrega determinados parâmetros acústicos relevantes para sua
determinação e esses elementos são primordiais para a noção de
sílabas átonas e tônicas:
Toda sílaba traz consigo uma certa
intensidade acústica que pode variar muito
em diferentes circunstâncias. As sílabas
que são produzidas com um jato de ar
reforçado, mais forte, apresentam uma
intensidade acústica mais forte são
chamadas sílabas tônicas. A tonicidade de
uma sílaba pode ser reforçada por outros
parâmetros como a presença de um tom
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
346
melódico mais agudo, uma duração mais
longa e mesmo por fatores estruturais da
formação das palavras. (CAGLIARI, 2007,
p. 112).
Para o PB, falta-nos ainda uma análise plenamente satisfatória
do acento das palavras. No que concerne ao domínio de aplicação da
regra de acento, os trabalhos de Bisol (1992) e Massini-Cagliari (1999)
postulam que a regra de acento de verbos e não-verbos aplica-se no
domínio da palavra. Por outro lado, os trabalhos de Lee (1995) e
Pereira (1999) defendem que a regra de acento dos nomes aplicar-se-ia
no domínio do radical derivacional, ao passo que a regra de acento dos
verbos seria aplicada no domínio da palavra.
Tanto Bisol (1992) quanto Massini-Cagliari (1999) defendem
que o acento, no PB, é uma entidade fonológica, ou seja, são
favoráveis ao valor quantitativo do peso silábico nesta língua.
Diferentemente, Lee (1995) e Pereira (1999) postulam fatores lexicais,
morfológicos e rítmicos para a atribuição do acento no PB.
Partindo desses pressupostos, este trabalho objetiva investigar
os diferentes graus de tonicidade de algumas palavras, levando em
conta parâmetros acústicos como a duração, a frequência fundamental
e a intensidade, além de verificar se esses correlatos acústicos podem
fornecer indícios que levem a um melhor entendimento do acento no
PB. Investigamos, portanto, se o grau de tonicidade está acusticamente
mais relacionado ao peso (quantidade) silábica ou à posição tônica.
Este trabalho não pretende esgotar as discussões em torno da posição
do acento lexical no PB, mas busca apontar indícios de como uma
análise acústica pode enriquecer a discussão no tocante ao acento, pois
a influência da qualidade vocálica, a quantidade de segmentos na rima
e outros aspectos mostram-se bastante relevantes, como veremos, para
tal avaliação.
Existem na literatura convergências e divergências entre os
postulados das teorias fonológicas quanto ao peso silábico em relação
à duração intrínseca das sílabas na sua realização fonética. Desse
modo, pretende-se verificar se o grau de tonicidade está mais
relacionado com a estrutura silábica ou com a posição tônica da
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
347
palavra. Para tanto, levaremos em consideração a posição tônica, a prétônica e a pós-tônica.
Material e Método
Para a realização deste estudo, foi composto um corpus com
palavras trissilábicas e polissilábicas, que apresentam alternância
quanto às posições de acento, com o intuito de providenciar palavras
com diversos tipos de estruturas relacionadas à tônica, com uma ou
duas sílabas pré-tônicas e também uma ou duas sílabas pós-tônicas.
Além disso, algumas palavras que apresentam estruturas silábicas
complexas foram selecionadas, no intuito de verificar se a quantidade
silábica exerce influência sobre a duração em detrimento da sílaba
tônica. Têm-se, então, as seguintes palavras:
1. borboleta
2. cachaça
3. cinderela
4. espátula
5. espetáculo
6. liberdade
7. literatura
8. matemática
9. patrimônio
10. triângulo
Estas palavras foram inseridas numa frase-piloto (Digo “X”
baixinho), transcritas individualmente em cartões brancos e
apresentadas a três informantes (todos do sexo masculino, com perfeita
dicção, naturais de Vitória da Conquista-BA) de forma aleatória, com
um intervalo de tempo indeterminado entre uma frase e outra. Os
informantes foram orientados a ler cada uma das frases em voz alta da
forma mais natural possível. As gravações ocorreram numa câmera
acusticamente fechada, usando-se um programa de computador de alta
qualidade.
Depois disso, as palavras que constituem o corpus foram
analisadas por meio do software Praat, desenvolvido por Boersma e
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
348
Weenink (2002), que possibilita a segmentação da palavra da frase e a
mensuração dos parâmetros de duração, intensidade e variação da
frequência fundamental em cada uma das sílabas. Esse programa
converte os sinais acústicos em ondas e espectrogramas. Para medir a
duração das sílabas, considerou-se o mecanismo de manipulação da
sílaba dada pelo Praat e, consequentemente, o número que é
automaticamente fornecido pelo programa em milisegundos (ms.). A
intensidade foi medida levando em consideração o pico máximo da
mesma, identificada no espectrograma através de uma linha amarela e
medida em dB.
No tocante à frequência fundamental, em decorrência da
variação que é dada pela vibração das pregas vocais, ela foi medida
através da média entre o pitch máximo e mínimo, obtidos de maneira
bastante simples pelo Praat e calculada pelo Excel. As tabelas abaixo
apresentam as médias das repetições dos parâmetros acústicos dos três
informantes, com todos os cálculos feitos pelo Excel. Dessa forma, a
análise dos dados deu-se de maneira bastante cuidadosa, uma vez que
todos esses parâmetros apresentam um nível de variedade bastante
tênue entre eles, o que poderia comprometer o resultado da pesquisa.
Resultados e Discussões
De acordo com os resultados obtidos, pode-se verificar que, a
depender da estrutura silábica, há uma variação sistemática entre a
duração das sílabas. Geralmente as sílabas pré-tônicas apresentam um
valor relativamente maior da duração do que as sílabas pós-tônicas não
finais, que, por sua vez, apresentam duração maior do que as sílabas
pós-tônicas finais. Verifica-se, também, que a duração apresenta um
valor matematicamente maior para as sílabas tônicas, desde que tal
palavra não apresente outra sílaba com estrutura complexa. Sendo
assim, percebe-se que o peso silábico, de fato, contribui para a maior
duração da sílaba, em detrimento da sílaba tônica. Essa evidência pode
ser vista na tabela 1:
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
349
Intensidade
Pré-tônica 1 55,8
Tônica
53,7
Pós-tônica
53,6
1
Pós-tônica 52,9
2
Fo
21,6
20,9
41,9
Duração
0,27
0,23
0,12
50,2
0,11
Tabela 1 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da
palavra triângulo
Neste caso, observamos que a sílaba tônica não apresenta uma
diferença significativa quanto ao parâmetro de intensidade. Já em
relação à duração, a sílaba pré-tônica é maior em decorrência da
quantidade, ou seja, uma influência da estrutura silábica. O mesmo
pode ser verificado nas tabelas 2 e 3:
Intensidade
Pré-tônica 1 59,0
Pré-tônica 2 58,2
Tônica
52,9
Pós-tônica
53,6
1
Fo
33,8
21,1
12,4
19,5
Duração
0,20
0,16
0,18
0,17
Tabela 2 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da
palavra borboleta
Intensidade
Pré-tônica 1 50,9
Pré-tônica 2 56,4
Tônica
53,7
Pós-tônica
51,5
1
Fo
34,5
23,0
7,0
21,4
Duração
0,26
0,10
0,17
0,14
Tabela 3 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições
da palavra cinderela
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
350
É interessante observar que a duração da sílaba pós-tônica final,
neste caso, supera o valor da pré-tônica. Além disso, a intensidade
mantém uma média similar entre as diferentes posições silábicas das
palavras analisadas.
Pré-tônica 1
Pré-tônica 2
Tônica
Pós-tônica
1
Intensidade
57,6
55,6
52,6
50,0
Fo
4,2
21,9
17,2
55,1
Duração
0,17
0,20
0,26
0,21
Tabela 4 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições
da palavra patrimônio
Intensidade
Pré-tônica 1 53,2
Pré-tônica 2 53,2
Tônica
51,9
Pós-tônica
51,9
1
Fo
16,1
27,2
23,9
23,2
Duração
0,12
0,24
0,29
0,20
Tabela 5 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições
da palavra liberdade
As tabelas 4 e 5 chamam especialmente a nossa atenção no que
se refere à duração das sílabas pesadas das respectivas palavras. No
primeiro caso, nota-se que a sílaba pesada (tri) não supera o valor da
tônica devido ao valor bifonêmico da vogal presente na sílaba (mô).
Por outro lado, em liberdade, a qualidade vocálica da sílaba tônica
parece ser o aparente motivo para a maior duração em comparação à
sílaba pesada pré-tônica 2.
Segundo Major (1985), evidências instrumentais de correlatos
acústicos apontam para o fato de que sílabas tônicas apresentam maior
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
351
nível de intensidade, maior pitch e maior duração. Para ele, a duração é
o correlato mais consistente do acento, uma vez que os parâmetros de
freqüência fundamental e intensidade são mais inconstantes:
Os correlatos acústicos do acento nas
línguas naturais são um ou mais dos
seguintes: pitch, intensidade e duração.
(…) uma sílaba tônica é mais intensa e
mais longa. No PB, os dados mostram
os mesmos três correlatos do acento,
apesar de que a duração é o mais
consistente. (MAJOR, 1985, p. 260).4
De fato, a duração é maior para as sílabas tônicas, mas cumpre
observar que isso somente ocorre se não houver uma sílaba pesada na
palavra. Contudo, em relação à freqüência fundamental e à
intensidade, segundo os resultados da nossa pesquisa, não se confirma
a hipótese de Major, visto que não há uma sistematicidade entre estes
correlatos nas diferentes posições silábicas, como pode ser visto nas
tabelas 6 a 10:
Intensidade
Pré-tônica 1 54,6
Tônica
56,4
Pós-tônica
52,9
1
Pós-tônica
53,0
2
Fo
10,1
16,4
14,5
Duração
0,15
0,21
0,19
9,0
0,12
Tabela 6 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da
palavra espátula
4
Do original: “The acoustic correlates of stress in natural languages are one
or more of the following: pitch, intensity and duration. (...) a stressed
syllable is more intense, and longer. In BP, the data given show the same
three correlates of stress, although duration is the most consistent.”
(tradução de Michael Douglas Silva Dias).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
352
Neste caso, a sílaba tônica é aquela que
intensidade, maior duração e maior variação
fundamental. Quanto à intensidade, levando-se em
átonas, nota-se que a mesma não apresenta uma
grande entre as posições pré e pós-tônica.
Intensidade
Pré-tônica 1 53,9
Pré-tônica 2 52,1
Tônica
51,9
Pós-tônica
53,0
1
Pós-tônica
51,4
2
Tabela 7 – Média dos parâmetros acústicos
palavra matemática
Intensidade
Pré-tônica 1 54,3
Tônica
57,9
Pós-tônica
51,2
1
Tabela 8 – Média dos parâmetros acústicos
palavra cachaça
Intensidade
Pré-tônica 1 55,2
Pré-tônica 2 58,0
Tônica
53,7
Pós-tônica
51,5
1
Pós-tônica
52,1
2
Tabela 9 – Média dos parâmetros acústicos
palavra espetáculo
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
apresenta maior
da frequência
conta as sílabas
diferença muito
Fo
12,2
33,0
22,0
21,7
Duração
0,13
0,12
0,28
0,18
22,9
0,19
entre as três repetições da
Fo
19,7
19,8
20,0
Duração
0,22
0,34
0,23
entre as três repetições da
Fo
8,8
5,2
14,7
25,3
Duração
0,15
0,11
0,29
0,20
16,8
0,13
entre as três repetições da
353
Intensidade
Fo
Duração
Pré-tônica 1 54,4
56,7
0,13
Pré-tônica 2 55,5
14,8
0,13
Pré-tônica 3 54,3
13,7
0,12
Tônica
54,1
12,5
0,29
Pós-tônica
54,3
15,7
0,11
1
Tabela 10 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da
palavra literatura
Considerações Finais
Como colocamos anteriormente, ainda não há, para o português
brasileiro, uma análise do acento primário que seja plenamente
satisfatória. No entanto, as análises aqui feitas apontam para o fato de
que o português efetivamente é uma língua sensível ao peso silábico, e
o peso, além de estar associado à proeminência sonora, parece também
estar associado ao tipo de vogal que constitui as sílabas da palavra.
Outros trabalhos mais descritivos e mais amplos precisam ser feitos
para que se possa chegar a conclusões mais precisas no tocante a essa
controversa questão.
De qualquer maneira, as mensurações aqui feitas apontam que
não há uma grande diferença matemática entre as sílabas nas diferentes
posições no tocante à intensidade. Já a freqüência fundamental
apresenta maior variabilidade, o que confirma a hipótese de Major
(1985) de que, dentre os correlatos acústicos do acento, o mais estável
é a duração. Entretanto, apesar da maior manifestação do acento em
sílabas tônicas, a duração se apresenta maior quando levamos em conta
a estrutura silábica. Dessa forma, as análises acústicas desenvolvidas
aqui mostram que o grau de tonicidade está mais relacionado com a
estrutura da sílaba do que sua posição tônica.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
354
THE STRESS IN THE BRAZILIAN PORTUGUESE: AN
ACOUSTIC ANALYSIS OF THE DEGREES OF TONES
IN DIFFERENT SYLLABIC POSITIONS
ABSTRACT: The present work is an instrumental evaluation of the
following acoustic parameters: fundamental frequency, intensity and
duration and it aims at investigating the degrees of tone in the
Brazilian Portuguese, especially concerning the differences among
these acoustic correlates in tonic, pre-tonic and post-tonic positions.
The purpose is to verify if the syllabic position influences these
parameters and whether the stress relates more with the tone or the
syllabic weight.
KEYWORDS: Stress. Duration. Degrees of tone.
REFERÊNCIAS
BISOL, L. O acento: duas alternativas de análise. UFRGS/PUCRS.
Texto não publicado, 1992.
BOERSMA, P. & WEENINK, D. Praat software. Versão 4.0. The
Netherlands, Amsterdam: 2002.
CÂMARA JR., J. M. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis:
Vozes, 2001. 36ª edição: 2004.
CAGLIARI, L.C. Elementos de Fonética do Português Brasileiro.
Paulistana: São Paulo, 2007.
HAYES, B. A metrical theory of stress rules. Tese de doutorado. MIT,
1980.
LEE, S.H. A regra do acento do português: outra alternativa. IN:
Letras de Hoje. Porto Alegre. V. 29, nº4, p.37-42, 1995.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
355
MAJOR, R.C. Stress and Rhythm in Brazilian Portuguese. IN:
BRIGHT, W. Language: Journal of the Linguistic Society of America.
Vol. 61, number 2, District of Columbia: 1985.
MASSINI-CAGLIARI, G. Do poético ao linguístico no ritmo dos
trovadores: três momentos da história do acento. São Paulo. Cultura
Acadêmica Editora, 1999.
PEREIRA, M.I.P. O acento da palavra em português: uma análise
métrica. Dissertação de Doutoramento em Linguística Portuguesa
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1999.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
356
DIVERSOS
Estudos Linguísticos
Estudos Literários
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
357
ESTUDO COMPARADO ENTRE CIRANDA DE PEDRA E A
CASA DOS ESPÍRITOS: A LITERATURA E O PENSAMENTO
PÓS-GUERRA NA PROSA LATINO-AMERICANA
Kamila Rodrigues Lima1
Tânia Sarmento-Pantoja 2
RESUMO: O presente artigo proporciona um levantamento
panorâmico sobre a Literatura Comparada, a fim de subsidiar a
presente análise que tem como corpus de pesquisa os romances latinoamericanos Ciranda de Pedra, da brasileira Lygia Fagundes Telles e A
Casa dos Espíritos, da chilena Isabel Allende. Neles investigamos
como as relações familiares, ou melhor, os dramas familiares refletem
ou até mesmo metaforizam a atmosfera da época documentada pelas
autoras. Desta forma, a discussão proposta vem tornar possível uma
análise comparatista que pode ser estabelecida entre a produção
literária de Lygia e Allende, nos proporcionando um diálogo entre
literatura brasileira e literatura hispano-americana, através da produção
literária de duas autoras engajadas na vida política e social de seus
países de origem. A literatura e o pensamento pós-guerra na prosa
latino-americana são trabalhados pelas autoras por meio de uma
linguagem instigante que vai desde reflexões concernentes a sociedade
patriarcal até uma escrita que debruça-se sobre a ditadura na América
Latina.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada. Lygia Fagundes Telles.
Ciranda de Pedra. Isabel Allende. A Casa dos Espíritos.
1
Graduada em Letras. Aluna do Mestrado em Letras (Estudos Literários) do
Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA.
2
Professora Associada de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras e do
Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA. Doutora em Estudos
Literários, UNESP-Araraquara.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
358
Considerações iniciais
Este artigo constrói-se com base na produção de um panorama
com considerações a respeito da Literatura Comparada, bem como as
ressonâncias desse método de análise no âmbito literário. Observamos
que análises comparatistas proporcionam diálogos entre a literatura
brasileira com a literatura de outras nacionalidades, neste sentido,
segundo Nitrini (2000, p. 117), “uma das tendências atuais da teoria da
literatura comparada é antes de tudo transcender as fronteiras nacionais
e linguísticas, a fim de examinar as questões literárias gerais de um
ponto de vista tradicional”. Desse modo, os estudos comparados
podem ser realizados com vistas a confrontar diferentes produções e,
sobretudo, observar o lugar – enunciativo, etnogeográfico, cultural,
ético – ocupadas por essa produção. Considerando tais parâmetros
abordamos no presente trabalho a produção literária de duas autoras
latino-americanas engajadas na vida social da nação a que cada uma
pertence, estamos falando da autora brasileira Lygia Fagundes Telles e
da escritora chilena Isabel Allende.
Lygia e Allende no atual panorama da literatura contemporânea
conseguiram firmar-se no cânone literário brasileiro e hispanoamericano, respectivamente. Suas obras são dotadas de coerência
estética e lucidez histórica e social. No contexto brasileiro Lygia
integra um seleto grupo de escritores que abordam a realidade urbana
em suas produções, sobretudo em função do período de efervescência
cultural e intelectual vivido no Brasil pós-guerra. No contexto hispanoamericano, Allende sempre esteve envolvida na vida política do Chile,
chegando a tornar-se uma exilada política com a derrubada do governo
do seu tio Salvador Allende. A literatura comprometida de ambas as
autoras fez eclodir em suas obras o conturbado período histórico que
vivenciaram.
Desta maneira, selecionamos como corpus para este estudo os
romances Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles e A Casa dos
Espíritos, de Isabel Allende. Neles investigamos como as relações
(dramas) familiares refletem, ou metaforizam o clima da época
documentado pelas escritoras latino-americanas.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
359
Ressonâncias da Literatura Comparada no Âmbito Literário
Ao traçarmos um panorama concernente às ressonâncias da
Literatura Comparada no âmbito literário é válido salientar que seu
surgimento “está vinculado à corrente de pensamento cosmopolita que
caracterizou o século XIX, época em que comparar estruturas ou
fenômenos análogos, com a finalidade de extrair leis gerais, foi
dominante nas ciências naturais” (CARVALHAL, 2006, p. 8), embora
sua existência consista desde a época medieval com as literaturas grega
e romana, visto que, conforme afirma Carvalhal (2006, p.8), o adjetivo
“comparado”, derivado do latim comparativus, já era empregado “na
Idade Média”. Assim, é perceptível que “bastou existirem duas
literaturas para se começar a compará-las, com o intuito de se apreciar
seus respectivos méritos, embora se estivesse ainda longe de um
projeto de comparatismo elaborado, que fugisse a uma mera inclinação
empírica” (NITRINI, 2000, p. 19).
Apesar da difusão da Literatura Comparada em toda a Europa é
no território francês que esta expressão ganhará plenitude e se
consolidará. Ao que tudo indica foi o francês Abel-François Villemain
que iniciou em 1828 a propagação desse estudo na França, seguido dos
também franceses Jean-Jacques Ampère e Philarète Charles, em 1830
e 1835, respectivamente, que juntos deram início aos estudos
referentes à literatura comparada nas universidades francesas.
Segundo Carvalhal (2006, p.13) foi nas primeiras décadas do
século XX “que a literatura comparada ganha estatura de disciplina
reconhecida, tornando-se objeto de ensino regular nas grandes
universidades européias e norte-americanas e dotando-se de
bibliografia específica e publicações especializadas”. Aludindo aos
estudos considerados clássicos neste ramo, percebe-se que estes
seguiam duas orientações, também apontadas por Carvalhal: “a
primeira era a de que a validade das comparações literárias dependia
da existência de um contato real e comprovado entre autores e obras ou
entre autores e países”; “a segunda orientação determinava a definitiva
vinculação dos estudos literários comparados com a perspectiva
histórica” (2006, p. 13).
Precursores dos estudos comparados, os franceses ficaram
conhecidos como comparativistas clássicos, pois
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
360
A maioria dos manuais adota a denominação
“escola francesa” para designar um grupo
representativo de estudos onde predominam as
relações “causais” entre obras ou entre autores,
mantendo uma estreita vinculação com a
historiografia literária. Assim, a designação
indica menos uma restrição geográfica do que a
adoção de determinados princípios, que
assumiram também caráter doutrinário em
vários países, pois o comparativismo literário
foi dominado por personalidades francesas
durante muito tempo. (CARVALHAL, 2006, p.
14).
Um autor francês que deixou sua contribuição ao
comparativismo foi Paul Van Tieghem, segundo o qual o conceito de
literatura comparada, explícito em seu livro La littérature comparée, é
de “uma disciplina particular que se situa entre a história literária de
uma nação e a história mais geral” (NITRINI, 2000, p. 24). Nitrini
também afirma que “Paul Van Tieghem formulou a distinção entre
literatura comparada e literatura geral. A primeira tem por objetivo o
estudo das relações entre duas ou mais literaturas. Tais conexões são
argamassadas por contatos binários entre obra e obra, obra e autor,
autor e obra, etc.” (p. 25). Já a literatura geral se encarregaria por fazer
uma síntese dos estudos comuns que abarcam várias literaturas, sendo
que para o autor “são do domínio da literatura geral os fatos de ordem
literária que pertencem a várias literaturas” (TIEGHEM, 1951, p. 174
apud NITRINI, 2000, p. 25).
Além da “escola francesa” outra que se destacou no campo dos
estudos comparados foi a “escola norte-americana”, que se distinguiu
da francesa por não abraçar a doutrina clássica seguida na França,
devido ao fato de “privilegiar a análise do texto literário em detrimento
das relações entre autores ou obras, os comparativistas norteamericanos aceitam os estudos comparados dentro das fronteiras de
uma única literatura, atuação recusada pela doutrina clássica francesa”
(CARVALHAL, 2006, p. 15). Os nortes-americanos tinham em René
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
361
Wellek, crítico tcheco radicado nos Estados Unidos, a maior expressão
da “escola norte-americana”, o qual se opunha às distinções de
“literatura geral” e “literatura comparada” estabelecidas por Paul Van
Tieghem, ao afirmar que “literatura ‘geral’ e literatura ‘comparada’
mesclam-se inevitavelmente. Talvez fosse melhor falar simplesmente
de ‘literatura’” (WELLEK; WARREN, 2003, p. 51).
Outra grande “escola” que ao lado da francesa e da norteamericana ganhou seu espaço, porém com menor destaque, foi a
“escola soviética”, sendo que, conforme afirma Carvalhal (2006, p. 1516),
Os comparativistas soviéticos que têm em
Victor Zhirmunsky uma de suas figuras
exponenciais, adotam como princípio básico, a
compreensão da literatura como produto da
sociedade. Preocupam-se, sobretudo, em
distinguir entre analogias tipológicas e
importações culturais (outra forma de designar
as “influências”), que correspondem sempre a
situações similares na evolução social.
No que concerne à metodologia do comparatismo temos
novamente o contraste entre a tendência francesa e a americana. A
primeira tem sempre como ponto de partida o objeto da literatura
comparada e desenvolve-se da seguinte maneira:
Partindo-se do objeto da literatura comparada,
que é descrever a passagem de um componente
literário de uma literatura para outra, pode-se
estudá-lo sobre dois pontos de vista:
focalizando-se principalmente o objeto da
passagem, ou seja, o que foi transposto
(gêneros, estilos, assuntos, temas, idéias,
sentimentos) e observando-se como se
produziu a passagem. (NITRINI, 2000, p. 33).
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
362
Já no comparatismo americano, Wellek vem criticar “o fato de
a literatura comparada ter demarcado artificialmente seu objeto,
acumulando uma enorme massa de paralelismos, similaridades e
identidades que não contribuem em nada para uma teoria literária mais
geral, além de ter se estagnado na sua metodologia” (NITRINI, 2000,
p. 34-35). Como vimos, os contrates, ou até mesmo os conflitos, entre
as tendências francesas e norte-americanas sempre estiveram presentes
na história da literatura comparada.
No Brasil, os anos 80 marcaram a instituição da literatura
comparada neste país. Foi em 1986 que surgiu em Porto Alegre a
Associação Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC,
decorrente do I Seminário de Literatura Comparada no Brasil. Para
Cândido (1996, p. 214-215) a criação da ABRALIC “equivale a uma
certidão de maioridade da disciplina no Brasil. [...] A partir de agora
ela [Literatura Comparada] poderá assumir o papel que lhe cabe num
país caracterizado pelo cruzamento intenso das culturas, como é o
Brasil”. Apesar deste mesmo autor já ter afirmado anteriormente “que
‘estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada’, porque a
nossa produção foi sempre tão vinculada aos exemplos externos, que
insensivelmente os estudiosos efetuavam as suas análises ou
elaboravam os seus juízos tomando-os como critério de validade”
(1996, p. 211). Cândido complementa afirmando ainda que
“praticamente desde as origens da nossa crítica até quase os nossos
dias, um dos critérios para caracterizar e avaliar os escritores tem sido
a alusão paralela a autores estrangeiros” (1996, p. 211), sendo esta
prática um exímio exercício comparatista.
O Brasil também teve em Tasso da Silveira um seguidor fiel da
doutrina clássica francesa, do já citado Paul Van Tieghem, do qual
Silveira extraiu os fundamentos comparatistas instituídos num manual
brasileiro de sua autoria. Na visão de Carvalhal (2006, p. 20-21), neste
livro observa-se claramente que o autor brasileiro “absorve
integralmente as sugestões de seus mestres franceses, cuja receita era
pesquisar influências, buscar identidades, ou diferenças, restringindo o
alcance da literatura comparada ao terreno das aproximações binárias e
à constituição de ‘famílias literárias’”. João Ribeiro é outro autor
brasileiro que também disserta acerca da literatura comparada, num
capítulo do seu livro Páginas de estética, sobre o qual Carvalhal
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
363
observa que diferente de Silveira “é curioso como [João Ribeiro] não
se interessa pelo jogo dos confrontos, característico da visão clássica
da disciplina, prevendo para ela uma atuação ‘crítica’, mesmo sem
desvinculá-la da história” (p. 22).
A partir destas diferentes atuações a que se propõem os estudos
comparados, de acordo com a visão de cada autor, é que podemos
perceber como é vasto o campo da literatura comparada, o que torna
difícil delimitar seu conceito e sua área de atuação, talvez pelo fato
destes serem múltiplos. Contudo, Helena Carvalhão Buescu no EDicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia, aponta
quatro áreas de atuação deste campo: a primeira se refere à área dos
“estudos da recepção”, sobre a qual Carvalhão ressalta que “para a
literatura comparada, a recepção de uma obra não é um objeto de
análise isolado, um fim em si mesma, mas seu estudo é uma etapa das
relações interliterárias genéticas (nascidas dos contatos, diretos ou
não)” (2010, p. 71). Desta forma, “a obra não pode mais ser vista como
algo acabado a deslocar-se intocável no tempo e no espaço, mas como
um objeto mutável por efeito das leituras que a transformam (2010, p.
70).
A segunda área de atuação consiste nos “estudos de tradução”,
sobre estes estudos Alzira Allegro, em seu artigo Das relações entre
literatura comparada e tradução literária: algumas considerações,
alega se tratar de um “intercâmbio cultural, de um diálogo entre
culturas onde a tradução age como mediadora de relações
interculturais” (2004, s/p). Logo, “a tradução, ao colocar em jogo
conceitos de diferença cultural, histórica, social e até mesmo política,
produz ou detecta relações de alteridade através da língua,
evidenciando os íntimos laços existentes entre literatura, história e
cultura” (2004, s/p).
O terceiro campo de atuação referido por Buescu concerne aos
“estudos interartes” ou “Literatura e outras Arte”. Para a autora, “neste
contexto, a perspectiva comparatista oferece um campo
particularmente fecundo para a execução de tais trabalhos permitindo a
relação entre diversas manifestações da prática artística, como por
exemplo, as várias artes visuais, a música, a dança, o teatro ou o
cinema”. Para Carvalhal (1991, p. 10),
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
364
Este novo modo de entendimento acentua,
então, um traço de mobilidade na atuação
comparativista enquanto preserva sua
natureza
“mediadora”,
intermediária,
característica de um procedimento crítico
que se move “entre” dois ou vários
elementos, explorando nexos e relações.
Fixa-se, em definitivo, seu caráter
“interdisciplinar”.
Por último, Buescu aponta como a quarta especificidade
comparatista os “Estudos Leste-Oeste”, para ela “trata-se da
formalização da tendência anti-eurocêntica”. Neste sentido, Nitrini
(2000, p. 44) ressalta que “o aparecimento na cena internacional dos
comparatistas dos países do Leste também contribuiu para quebrar a
polaridade das aproximações francesa e americana”. Em contribuição
ao exposto Carvalhal (1996, p. 17) ressalta que
É preciso evocar que se o mapa da Europa tem
hoje outra configuração, diferentes questões se
propõem ao comparatismo, levando à retomada
de problemas como o dos nacionalismos,
regionalismos e suas relações com o universal.
Do mesmo modo, as conformações políticoeconômicas que se constroem, na América do
Sul e na do Norte, estão a instigar questões de
inter-relações culturais e literárias novas, o
estudo da constituição de cânones literários, da
análise de diferenças, de problemas de
representação e de expressão de identidade, de
estudo e confronto de imaginários culturais,
que interessam diretamente à Literatura
Comparada.
Contudo, inserido no ramo da literatura comparada, o objetivo
final do presente estudo é investigar com um olhar comparatista os
diálogos possíveis a serem realizados entre obras latino-americanas,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
365
levando em consideração seus respectivos contextos históricos,
políticos, sociais e culturais, realizando uma possível interação entre
elas, pois, como veremos, apesar das diferenças encontradas nos
contextos citados, os estudos comparatistas possibilitados pela
Literatura Comparada vêm aproximar a obra brasileira Ciranda de
Pedra (1954), da paulista Lygia Fagundes Telles e a obra hispanoamericana A Casa dos Espíritos (1982), da chilena Isabel Allende,
devido às autoras expressarem por meio do ciclo familiar a sociedade
marcada por transformações sociais vivenciadas por ambas. A hipótese
que sobressai da análise é a de que a liberdade enquanto princípio
serve de fio condutor para a constituição das protagonistas e
consequentemente também move toda a economia narrativa. Esse
princípio, por sua vez, é possível de ser observado como parte das
projeções de um ideário pós-guerra que dialoga com uma atitude de
resistência, ora confrontadora de um status quo patriarcalista no
romance de Telles, ora desafiadora do estado de exceção no romance
de Allende.
Lygia e Allende: A prosa latino-americana
A princípio, a confrontação entre a produção literária das
autoras Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende nos permite perceber
que tanto Lygia como Allende refletem e denunciam em suas obras,
em especial nos romances Ciranda de Pedra e A Cada dos Espíritos,
respectivamente, as problemáticas sociais vivenciadas por elas. No
contexto brasileiro, a produção lygiana é marcada pelos conflitos
psicológicos travados pelas suas personagens cujos comportamentos
refletem a realidade de um Brasil pós-guerra. Já no contexto hispanoamericano, a escritora chilena Isabel Allende relata com um olhar
jornalístico o comportamento das personagens que vivenciaram a
época de repressão ocasionada pela Ditadura Militar, ocorrida no
Chile.
Desta forma, temos em ambas uma literatura que se integra ao
momento histórico protagonizado pelas autoras, visto que,
Quando a atividade dos escritores de um dado
período se integra em tal sistema, ocorre outro
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
366
elemento decisivo: a formação da continuidade
literária, - espécie de transmissão da tocha
entre corredores, que assegura no tempo o
movimento conjunto, definindo os lineamentos
de um todo. É uma tradição, no sentido
completo do termo, isto é, transmissão de algo
entre os homens, e o conjunto de elementos
transmitidos, formando padrões que se impõem
ao pensamento ou ao comportamento, e aos
quais somos obrigados a nos referir, para
aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição não há
literatura, como fenômeno de civilização
(CÂNDIDO, 1981, p. 23-24).
Assim, tal como acontece com a literatura no Brasil, “a relação
entre literatura e História na América Hispânica sempre foi específica,
e uma tornou-se complemento necessário da outra. Submersos na
História – mesmo transformada em lenda –, os escritores recuperam a
vida em sua profunda realidade” (JOSEF, 1986, p. 28). Desta forma,
ainda segundo Josef (1993, p.15), “o romance nasce da História, mas a
transcende. Como forma particular da narrativa, é um dos modos de
nossa apreensão da realidade”.
Com efeito, vimos que a partir dos traços comuns entre as
autoras, podemos sintetizar que ambas são vozes femininas de
considerável expressão, que se destacaram pelo engajamento políticosocial que proporcionou à literatura produzida pelas mesmas um teor
histórico de denuncia a uma sociedade patriarcal marcada por
repressões sociais, devido o período pós-guerra no Brasil e pelo
período ditatorial no Chile. Nesse sentido, as narrativas de Lygia e
Allende contribuem para o enriquecimento da literatura latinoamericana, pois se aprofundam em aspectos históricos, sociais,
culturais que aproximam os países integrantes da América Latina, ao
passo que o romance contemporâneo tomou ares sociais ao retratarem
a sociedade através da ficção.
Portanto, a possível análise comparatista que pode ser
estabelecida entre Lygia e Allende vem proporcionar um diálogo entre
literatura brasileira e literatura hispano-americana, visto que, segundo
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
367
Nitrini (2000, p. 117), “uma das tendências atuais da teoria da
literatura comparada é antes de tudo transcender as fronteiras nacionais
e linguísticas, a fim de examinar as questões literárias gerais de um
ponto de vista tradicional”.
Contudo, o que em especial se perceberá na investigação dos
romances precursores da carreira literária das autoras é a questão
concernente às relações familiares. Nos romances Ciranda de Pedra e
A Casa dos Espíritos veremos como as relações familiares refletem ou
até mesmo metaforizam a atmosfera da época documentado pelas
escritoras latino-americanas.
O drama familiar e os conflitos sociais em um contexto pós-guerra
“O romance nasce da História, mas a transcende. Como forma
particular da narrativa, é um dos modos de nossa apreensão da
realidade” (JOSEF, 1993, p. 15). Partindo deste princípio, podemos
inferir que as autoras trabalhadas nesta análise abstraíram da realidade
as personagens que deram vida as obras Ciranda de Pedra e A Casa
dos Espíritos. Desta forma, Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende
têm como núcleo de suas obras a relação familiar. As autoras se valem
dos dramas familiares para retratar com fidelidade os conflitos sociais
perceptíveis na sociedade em que estiveram engajadas.
Lygia enfatiza em Ciranda de Pedra a degradação dos valores
patriarcais através da não inserção da personagem Virgínia no ciclo
familiar. Tal ciclo, metaforizado pela “ciranda de anões de pedra”,
representa as convenções sociais, caracterizadas por personagens que
mascaram valores autênticos dentro da história demoníaca, ou seja, o
romance como investigação de uma sociedade degradada, neste caso,
utilizou-se de personagens problemáticas, que refletiram durante a
narrativa uma vida social mantida pelas convenções da época. Allende,
em A Casa dos Espíritos, se vale da saga familiar de uma família
tradicional da sociedade chilena para contar através da ficção os
conflitos sociais ocorridos no Chile, os quais transformaram a vida em
sociedade naquele país. Com isso, nota-se em ambos os romances
como as relações familiares refletem, ou até mesmo metaforizaram o
clima da época, retratado tanto na obra brasileira como na obra
hispano-americana.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
368
O romance Ciranda de Pedra trata de uma trama degradada,
em que a personagem central caracteriza-se como uma heroína
problemática. Neste sentido, Virgínia, a protagonista da narrativa,
inserida num romance classificado como romance psicológico, no qual
a heroína trava conflitos externos a partir de sua realidade interior,
tenta inserir-se no ciclo familiar, que resiste a sua entrada, para então
aceitá-la no final da narrativa, quando tarde, a personagem já tinha se
libertado do desejo de fazer parte de uma sociedade degradada. Desta
forma, por mais que tivesse descoberto ser o centro da ciranda, já não
havia como fazer parte da roda. “A dança era antiga e exaustiva
justamente porque ficara de fora, desejando participar e sendo
rejeitada. E rejeitando-a para logo em seguida esforçar-se por entrar.
Admitiram-na, finalmente. Mas era tarde, jamais acertaria o passo”
(TELLES, 2009, p. 173).
A metáfora no romance de Lygia se inicia com a simbologia de
uma ciranda de anões de pedra que ornamenta o jardim da casa de
Natércio. A ciranda composta por cinco anões remete aos cinco amigos
da narrativa. Virgínia mostra seu fascínio em fazer parte do grupo em
diversas passagens da obra, tal como:
Aproximou-se dos anõezinhos que dançavam
numa roda tão natural e tão viva que pareciam
ter sido petrificados em plena ciranda. No
centro, o filete débil da fonte a deslizar por
entre as pedras. “Quero entrar na roda
também!”, exclamou ela apertando as mãos
entrelaçadas dos anões mais próximos.
Desapontou com a resistência dos dedos de
pedra. “Não posso entrar? Não posso?”, repetiu
mergulhando na fonte as mãos em concha
(TELLES, 2009, p. 79).
Cada um dos cinco amigos simboliza a falência com o sistema
opressor, que não permite a vivência fora das convenções, visto que,
no grupo temos a alienada (Otávia), os adúlteros (Bruna e Afonso), o
impotente (Conrado) e a lésbica (Letícia), personalidades não
acolhidas pela sociedade convencional. Portanto, os integrantes do
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
369
grupo vivem sob máscaras, para sobreviverem mantidos pelas
aparências num ambiente que não admitia a falência dos bons
costumes. Então, Virgínia liberta-se da tentativa de entrar na ciranda,
pois descobrindo o que está por trás do grupo, decide romper com uma
sociedade falida, pois percebe não ser possível a busca por valores
autênticos num ambiente degradado.
A queda do patriarcalismo marca o romance Ciranda de Pedra,
em que a protagonista, que desejou desde sua infância se inserir no
ciclo familiar, metáfora do ciclo social, percebe a falência do sistema
patriarcal. Com isso, rompe com a sociedade degradada e passa a
buscar novos valores. Assim, a narrativa encerra com a viagem de
Virgínia mundo à fora, sem rumo certo e sem data para voltar, pois
para ela “já que é preciso aceitar a vida, que seja então corajosamente”
(TELLES, 2009, p. 199). É válido ressaltar que Laura – mãe de
Virgínia, a qual abandonara o lar para viver uma relação extraconjugal
com Daniel, o verdadeiro pai de Virgínia – “não conseguiu sucesso ao
romper com os valores opressivos, mas Virgínia resgata a luta de
Laura, sai vencedora e obtém o prêmio da liberdade de viver feliz”
(MORAES, 2002, p. 39).
Esta aspiração por liberdade contra os valores opressivos é o
que move Alba, personagem do romance A Casa dos Espíritos de
Isabel Allende. A história de uma sociedade degradada é contada no
referido romance através da saga familiar dos Trueba. A saga da
família Trueba é marcada por conflitos dentro da própria família, que
refletem os conflitos sociais da nação chilena. O romance A Casa dos
Espíritos narra a história de várias gerações de uma mesma família que
vivenciaram as transformações político-sociais ocorridas na sociedade
chilena. A genealogia familiar é representada através dos tempos pelas
personagens femininas Clara, Blanca e Alba, esposa, filha e neta,
respectivamente, do patriarca da família, o senhor Esteban Trueba. A
saga da família Trueba traz à tona as transformações ocorridas no
Chile desde o período que compreende a Segunda Guerra na Europa
até o período ditatorial desse país, que culmina com a prisão da menina
Alba ao final da trama, visto que, é através da história da família
Trueba que a história recente da nação chilena é contada na narrativa.
Allende recompõe no interior de sua obra episódios históricos
ocorridos em seu país relacionados à presença do estado de exceção.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
370
Desta maneira, o romance histórico da autora debruça-se sobre
“narração de eventos, testemunho imediato, análise de sentimentos,
registro de vicissitudes sociais ou políticas, serviu a valores
ideológicos, refletiu aspectos da vida social como da política,
debruçou-se sobre angústias particulares e costumes coletivos”
(JOSEF, 1993, p. 15) e, sobretudo, sobre experiências individuais da
própria autora.
Alba caracteriza-se como uma personagem problemática,
inserida, tal como Virgínia (Ciranda de Pedra), numa sociedade
degradada. Porém, Alba está consideravelmente envolvida com os
conflitos políticos, e consequentemente sociais. Ela é símbolo de luta e
resistência de uma sociedade que vivenciou o caos social ocasionado
pela Ditadura Militar no Chile. Sua passagem na narrativa simboliza,
também, a libertação do sistema patriarcal e do regime ditatorial. As
posturas ideológicas e políticas da personagem aproximam-se do
pensamento da autora, pois, como já mencionado, esta esteve engajada
na política e na vida social chilena.
Dor, sangue e amor marcam a trama do romance A Casa dos
Espíritos, e Alba, seguindo os passos da mãe, vem romper com o
patriarcalismo de uma sociedade tradicional ao apaixonar-se por um
guerrilheiro de classe social considerada inferior para os padrões
conservadores da família da protagonista. Miguel era um dirigente
esquerdista que procurava por justiça. Ele “falava da revolução. Dizia
que à violência do sistema havia que opor a violência da revolução”
(ALLENDE, 2001, p. 344). Foi por amor a Miguel que Alba torna-se,
também, uma revolucionária. Ela,
Como todos os jovens que entravam [na
Universidade] nesse ano, descobriu o atrativo
das noites de insônia num café, falando das
mudanças que o mundo necessitava e
contagiando uns aos outros com a paixão das
ideias. Regressava a casa já de noite com a
boca amarga e a roupa impregnada de cheiro de
fumo ressequido, com a cabeça quente de
heroísmos, convicta de que, chegado o
momento, poderia dar a sua vida por uma causa
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
371
justa. Por amor a Miguel, e não por convicção
(ALLENDE, 2001, p. 344-345).
A saga familiar dos Trueba nos permite identificar Alba com o
símbolo de libertação com um sistema opressor, seja ele o sistema
patriarcal ou o regime ditatorial. Alba transcende os dois como uma
guerreira que luta pelos seus ideais e não se deixa intimidar pelos mais
fortes. Alba encerra a saga familiar dos Trueba, terminando sozinha,
com um filho na barriga. Assim, ela pensa: “Quero pensar que meu
ofício é a vida e que a minha missão não é prolongar o ódio [...]
enquanto aguardo que cheguem tempos melhores, gerando a criança
que trago no ventre, filha de tantas violações, ou talvez filha de
Miguel, mas sobretudo minha filha” (ALLENDE, 2001, p. 468).
Assim, em A Casa dos Espíritos, Allende “preocupa-se em dar seu
testemunho diante da repressão no Chile, recriando momentos que se
tornaram marcos na história do país” (JOSEF, 1986, p. 288).
Desta forma, percebemos nos romances analisados, Ciranda de
Pedra e A Casa dos Espíritos, que projeções da vida social são
reelaboradas e problematizadas pela ficção. Portanto, vimos que a
sociedade interfere na relação familiar em ambas as obras, mostrando a
desrealização do indivíduo dentro do círculo familiar. Alba e Virgínia,
filhas bastardas, cada uma em sua época (e em seu romance),
evoluíram nas narrativas em contradição às convenções
institucionalizadas. A degradada relação das personagens em
sociedade é fruto dos dramas familiares vivenciados por elas. A
presença da figura do patriarca, Natércio em Ciranda de Pedra e
Esteban Trueba em A Casa dos Espíritos, representa a falência e a
ruptura das personagens com um sistema opressor iniciado na família e
eclodido na sociedade, visto que, a família é a metáfora de um grupo
maior: a sociedade. No entanto, esta sociedade referida é uma
instituição degradada, marcada pelos conflitos sociais que interferem
na conduta moral das personagens. Em todo caso, é notável que a
realidade social interna das obras aluda a realidade social externa das
autoras latino-americanas Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende.
Neste sentido, vimos que em Ciranda de Pedra, a crise da
instituição familiar, bem como a percepção de valores amorais na obra
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
372
são consequências das transformações sociais ocorridas no Brasil,
numa época de efervescência, como foi o período pós-45, visto que,
Das desesperanças e traumas vividos no pósguerra, às frustrações nacionais correlatas aos
anseios
político-sociais
aspirados
pela
sociedade brasileira, é dada a gênese de uma
linguagem literária em que vêm suscitar as
incertezas e perturbações comuns do indivíduo
contemporâneo. (SILVA, 2008, p. 17).
Do outro lado, em A Casa dos Espíritos, o contexto vivenciado
pelas personagens, no que concerne a derrubada do governo socialista,
alude ao contexto histórico que Isabel Allende vivenciou no Chile.
Assim, o golpe militar ilustrado na obra chilena, a exemplo da
passagem em que o presidente socialista pronuncia seu último
discurso, equivale a fatos reais ocorridos naquele país:
“Dirijo-me àqueles que serão perseguidos, para
lhes dizer que não vou renunciar: pagarei com
minha vida a lealdade do povo. Estarei sempre
junto de vocês. Tenho fé na pátria e no seu
destino. Outros homens superaram este
momento e muito mais cedo do que se pensa se
abrirão as grandes alamedas por onde passará o
homem livre, para construir uma sociedade
melhor. Viva o povo! Vivam os trabalhadores!
Estas são as minhas últimas palavras. Tenho a
certeza de que o meu sacrifício não será em
vão” (ALLENDE, 2001, p. 399).
No tocante aos dados historiográficos, a História chilena nos
conta que
No dia 11 de setembro de 1973, as Forças
Armadas
chilenas
(60
mil
homens)
comandadas pelo o general Augusto Pinochet,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
373
com o apoio dos Carabineiros (30 mil homens),
deu um dos mais violentos golpes militares da
história latino-americana. O Presidente
Salvador Allende, eleito dois anos e dez meses
antes, viu-se sitiado no Palácio de La Moneda
pelas tropas e pela aviação golpista.
Percebendo a inutilidade da resistência e para
evitar mais derramamento de sangue, Allende
matou-se3.
Com o exposto, vimos que além do diálogo possível de ser
estabelecido entre os romances analisados, também podemos realizar o
diálogo entre a vida e a obra de cada uma das autoras, pois a família
paulistana ficcionalizada por Lygia reflete as problemáticas urbanas de
uma sociedade em plena transformação, ao passo que, Allende cria um
clima de tensão política em sua obra, tal como ocorreu em sua própria
realidade.
Contudo, de acordo com Goldmann (1988, p. 17),
Todo fato social é um fato histórico e
inversamente. Segue-se daí que a história e a
sociologia estudam os mesmos fenômenos e
que, se cada uma delas captura um aspecto real,
a imagem que ela dele nos dá não poderia ser
senão parcial, na medida em que não for
completada pelas contribuições da outra.
A narrativa contemporânea da América Latina caracterizou-se,
principalmente, pela oposição entre consciência estética versus
engajamento social, Esta oposição é marcada pela história políticosocial dos países latino-americanos. Para o crítico literário Eduardo F.
Coutinho (1984, p. 179) “a oposição entre esteticismo, ou melhor,
consciência estética, e engajamento social também pode ser
3
Citação
disponível
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/chile_golpe.htm
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
em:
374
representada [...] pela presença de duas linhas de ficção centradas em
torno de dois pólos distintos”. Neste caso, temos “a corrente esteticista,
de um lado, baseada primordialmente numa preocupação com a forma,
e uma outra dita ‘engajada’, voltada quase exclusivamente para o
conteúdo” (1984, p. 179). Segundo ainda Coutinho (1984,p. 181), no
romance contemporâneo “a realidade objetiva coexiste com o sonho e
a fantasia, o engajamento político ou social se casa à consciência
estética”, sendo a fusão destes “aparentes opostos” a essência de toda
narrativa latino-americana.
No que concernem os estudos dos fatos sociais, além da história
e da sociologia que investigam esses fenômenos, acrescentamos a arte,
principalmente quando se trata da arte de duas autoras engajadas na
vida social de seus países. Assim, realidade social interna das
personagens (ficção) e realidade social externa das romancistas resulta
no imbricamento permanente entre literatura e sociedade, e a literatura
comparada vem servir ao diálogo entre estas duas instâncias.
Considerações finais
Ao observarmos a construção textual de Lygia Fagundes Telles
e Isabel Allende, em que expõem as frustrações dos protagonistas a
partir de dramas familiares, percebe-se a aparente aproximação entre
ficção e realidade. Neste sentido, percebemos no corpus deste trabalho
como estes dramas familiares metaforizam os conflitos sociais que
marcaram a época em que as autoras produziram as obras Ciranda de
Pedra (1954) e A Casa dos Espíritos (1982), a primeira brasileira e a
segunda hispano-americana.
Como vimos, a multiplicidade dos estudos comparados abre um
leque de possibilidades para investigações literárias. Porém, Henry
Remak sintetizou com clareza as áreas de interesse da literatura
comparada ao afirmar que
A Literatura Comparada é o estudo da literatura
além das fronteiras de um país em particular, e
o estudo das relações entre literatura de um
lado e outras áreas do conhecimento e crença,
como as artes (pintura, escultura, arquitetura,
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
375
música) filosofia, história, as ciências sociais
(política, economia, sociologia) as ciências,
religiões, etc. de outro. Em suma, é a
comparação de uma literatura com outra ou
outras, e a comparação da literatura com outras
esferas da expressão humana. (REMAK, 1971,
p. 1 apud CARVALHAL, 1991, p. 12).
Contudo, inserido no ramo da literatura comparada, este
trabalho alcançou seu objetivo, visto ter proporcionado um
levantamento panorâmico sobre os estudos comparados no âmbito
literário, ao passo que estabelecemos uma revisão geral de algumas
publicações sobre esse método de análise conhecido por Literatura
Comparada, sob a ótica de alguns autores, dentre os quais podemos
destacar Tânia Carvalhal, Sandra Nitrini e René Wellek. Ainda, vimos
que, com um olhar comparatista é plausível ultrapassar as fronteiras e
investigar diálogos possíveis a serem realizados entre obras de
nacionalidades distintas em diferentes contextos históricos, políticos,
sociais e culturais, realizando uma possível interação entre elas, como
foi feito com os romances Ciranda de Pedra e A Casa dos Espíritos,
de Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende, respectivamente, bem
como os estudos comparados também podem ser realizados entre a
literatura e outras artes.
COMPARATIVE STUDY BETWEEN CIRANDA DE PEDRA AND
A CASA DOS ESPÍRITOS: THE LITERATURE AND THE POSTWAR THINKING IN LATIN AMERICAN PROSE
ABSTRACT: The present article provides a panoramic rising on the
Literature Compared in the literary extent, in order to subsidize to
present analysis that has as research corpus the novels Latin-American
Ciranda de Pedra, by Brazilian Lygia Fagundes Telles and A Casa dos
Espíritos, by Chilean Isabel Allende. In them, we investigated as the
relationships family, or better, the family dramas contemplate or even
metaphor the atmosphere of the time documented by the authors. This
way, the proposed discussion comes to turn possible an analysis
comparison that can be established between literary production by
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
376
Lygia and Allende, providing us a dialogue between Brazilian
literature and Hispano-American literature, through the two authors'
literary production engaged in the political and social life of their
countries of origin. The literature and the post-war thinking in Latin
American prose are worked by the authors through an exciting
language that goes from reflections concerning the patriarchal society
to a writing that focuses on the dictatorship in Latin American.
KEYWORDS: Compared Literature. Lygia Fagundes Telles. Ciranda
de Pedra. Isabel Allende. A Casa dos Espíritos.
REFERÊNCIAS:
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tradução literária: algumas considerações. Revista eletrônica Unibero
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Produção
científica,
mar.
2004.
Disponível
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<http://www.unibero.edu.br/dowload/
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mai. 2010.
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RENÉ MAGRITTE E MANOEL DE BARROS:
INTERSECÇÕES ENTRE PINTURA E POESIA
Suzel Domini dos Santos 1
Susanna Busato 2
RESUMO: Exploramos, no presente artigo, a possibilidade de
aproximação entre a poesia de Manoel de Barros e a pintura de René
Magritte. Para tanto, valemo-nos de uma abordagem comparativa entre
alguns trabalhos dos dois artistas. Mais precisamente, selecionamos
“La clef des songes” (1930) e “La trahison des images” (1928-1929),
de autoria de René Magritte, e o poema de Manoel de Barros intitulado
“O muro”, parte integrante do livro Poemas rupestres, de 2004. Com
tal abordagem, buscamos verificar o modo como os dois artistas, cada
um a seu modo, problematizam a questão da representação do mundo.
Fazendo uso do recurso da metalinguagem, René Magritte e Manoel de
Barros reiteram, em suas respectivas poéticas, um processo de
desnudamento da arbitrariedade dos códigos comunicativos e sistemas
de linguagem que balizam a realidade do homem. Além disso,
Magritte e Barros sustentam a concepção de legitimidade da arte na
proposição de formas diferenciadas de recodificação e percepção do
mundo.
PALAVRAS-CHAVE: Manoel
Metalinguagem. Surrealismo.
de
Barros.
René
Magritte.
1
UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Doutoranda em Teoria e
Estudos Literários. São José do Rio Preto – SP – Brasil – 15054-000 –
[email protected].
2
UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Departamento de Estudos
Linguísticos e Literários. São José do Rio Preto – SP – Brasil – 15054-000 – [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
380
1.
A poesia de Manoel de Barros – poeta que estreou no cenário
da literatura brasileira no ano de 1937, com a publicação de Poemas
concebidos sem pecado – caracteriza-se, em primeiro plano, pela
atuação de dois pontos de força, a saber, a grande potência imagética e
a presença constante da reflexão crítica acerca do ser e do fazer da
poesia no interior do próprio discurso poético. As balizas de
delimitação dos espaços imagético e metalinguístico perdem-se na
poesia de Barros, uma vez que o poeta funde estes espaços, fazendo de
sua poesia um universo figurativamente denso perpassado de ideias.
Conforme defendemos em Santos (2013), a fusão dos espaços
imagético e metalinguístico constitui o mecanismo de construção
predominante da poesia de Manoel de Barros:
Mais do que elementos de construção poética
que convivem lado a lado como partes distintas
e separáveis de um mesmo projeto de
elaboração poética, a imagem e a
metalinguagem estão intimamente entrelaçadas
na poesia barrosiana, de modo que constituem
uma imbricação tensional caracterizada pela
presença marcada do pensamento crítico acerca
da poesia nas malhas do próprio discurso
poético. Em outras palavras, esse entrelace
constitui uma imbricação tensional que se
firma pela caracterização da imagem como
signo que cifra a mensagem metalinguística.
[...] Segundo nosso ponto de vista, esse
entrelace
tensional
entre
imagem
e
metalinguagem constitui o ponto-chave da
poesia de Manoel de Barros, o ponto central a
partir do qual sua poética atua. (p. 123)
Manoel de Barros faz da própria poesia o principal objeto
temático de seus escritos. Tal característica nos permite entendê-lo
como herdeiro direto da modernidade lírica, haja vista que a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
381
preocupação incisiva com os aspectos formais da poesia evidencia a
busca por cravar uma assinatura poética particular em meio à tradição.
Ao levar a efeito a elaboração de um projeto estético particular,
fundando um modo próprio de organização estilística da linguagem na
cadência em que estabelece diálogos críticos com determinados
autores (como, por exemplo, Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé,
Arthur Rimbaud, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade),
Barros pode ser lido pelo viés da vertente que Octavio Paz (2013)
denomina “tradição moderna da poesia” (p. 15).
Para Paz, “a modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra.
O moderno não se caracteriza apenas pela novidade, mas pela
heterogeneidade.” (2013, p. 15; grifo no original). Sendo assim, “a
modernidade está condenada à pluralidade: a antiga tradição era
sempre a mesma, a moderna é sempre diferente.” (idem, p.15-16). Indo
um pouco mais além, o autor define:
Tradição do moderno: heterogeneidade,
pluralidade de passados, estranheza radical.
Nem o moderno é a continuidade do passado
no presente nem o hoje é filho do ontem: são
sua ruptura, sua negação. O moderno é
autossuficiente: cada vez que aparece, funda
sua própria tradição. (PAZ, 2013, p. 16)
Entre as muitas referências estéticas que aparecem na poesia de
Manoel de Barros, referências que acabam por constituir uma tradição
que o poeta constrói para si, encontramos o Surrealismo, movimento
artístico de vanguarda que eclodiu na Europa na primeira metade do
século XX.
O tecido imagético que caracteriza a poesia de Barros apresenta
um aspecto estranho3, visto que o poeta resgata, como princípio de
3
Assim como Compagnon (2010), utilizamos o termo estranho sem vistas à
evocação de qualquer conceito. Como o vocábulo em questão traz o sentido
de “fora do comum”, “singular”, o utilizamos como qualificativo, pensando
apenas na ruptura que as imagens poéticas criadas por Manoel de Barros
promovem em relação à lógica convencionada.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
382
base da construção da imagem poética, um princípio do qual lançaram
mão os surrealistas: a fusão de realidades dissonantes entre si atrelada
à coordenação de imagens descontínuas (ADORNO, 2003). Seguem
alguns exemplos dos muitos que encontramos em sua poesia: “Ando
muito completo de vazios.” (BARROS, 2010, p. 310); “Vou encher de
intumências meu deserto. / Sou melhor preparado para osga. / O
infinito do escuro me perena.” (idem, p. 311); “A lua faz silêncio para
os pássaros, / – eu escuto esse escândalo!” (idem, p. 313); “No
Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito: / Poesia é quando a
tarde está competente para dálias.” (idem, p. 300).
Por conta do princípio que mencionamos, a poesia de Barros
mostra-se um universo de aspecto onírico, supra-real. Nesse universo,
encontramos seres e objetos estranhos que, colhidos no âmbito do
mundo concreto por um olhar sensível e perspicaz, são transfigurados
pelo exercício poético.
Ao promover uma organização sintática, bem como uma
aproximação semântica, não convencionais e não previstas dos
elementos que pertencem aos semas da inferioridade e da natureza,
Barros recria-os. Nesse sentido, o leitor da poesia barrosiana tende a
topar com imagens poéticas formadas por elementos familiares
tornados irreconhecíveis pelo olhar automatizado por efeito das novas
roupagens que desnudam esses elementos dos matizes semânticos e
pragmáticos convencionais.
Assim como os surrealistas, Manoel de Barros constrói
imagens de aspecto estranho com o propósito de provocar no leitor o
efeito de estupefação, uma vez que, conforme afirma Peñuela Cañizal
(1986),
As palavras nos forçam a conviver com o
hábito e, desta maneira, transmutam os objetos
e as pessoas que nos rodeiam em significados
consuetudinários, repetidos, na manhã de cada
dia, no ritual de quem toma seu cafezinho
amarrado à convicção de que tal gesto se situa
longe das irradiações da fantasia. (p. 1)
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
383
O efeito de estupefação tende a redirecionar a percepção do
leitor/do receptor, levando-o a enxergar as coisas que compõem o
mundo por um prisma diverso, levando-o a enxergar as coisas como se
as visse pela primeira vez.
Dentro desse prisma de intersecções entre a poesia de Manoel
de Barros e o Surrealismo, encontramos, ainda, um ponto de encontro
bem significativo com a pintura de René Magritte, artista belga cujo
operar estético se aproxima da proposta surrealista por conta da
construção de imagens insólitas.
A obra de René Magritte está marcada por um jogo quase
obsessivo de contraste entre a noção de realidade e a de representação
da realidade. Partindo de um exercício metalinguístico, Magritte
desnuda, no âmbito do próprio objeto pictórico, o desvão que se coloca
entre a realidade propriamente dita, ou a realidade material, e os
códigos e linguagens engendrados pelo homem para nomeá-la e
expressá-la.
Conforme afirma Santos (2006),
Sempre há esse abismo, esse lugar
intransponível entre palavra e coisa. Jamais
elas se tocam. Talvez se esbarrem no jogo do
discurso, da linguagem, mesmo da literatura.
Mas não se tocam, não podem jamais chegar
tão perto uma da outra. Mesmo o que nos
parece correto, o que aprendemos tão
facilmente no cotidiano das coisas, mesmo o
que nos torna menos analfabetos, isso tudo não
serve para compreendermos a dimensão da
distância que há entre a palavra e a imagem. (p.
32)
Ainda de acordo com Santos, “René Magritte foi um artista da
imagem e da palavra, dos jogos, do cotidiano interrompido pela
surpresa, da banalidade dos objetos e da arbitrariedade da linguagem.”
(2006, p. 15). Tanto que o pintor colocou em evidência, na linguagem
pictórica, até mesmo o descompasso que se coloca entre as coisas que
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
384
compõem o mundo e a linguagem funcional, como é o caso da obra
que segue abaixo:
La clef des songes (1930). Figura 1.
Como se faz possível observar, Magritte expõe, neste trabalho,
a figura de objetos, e, sob elas, legendas que não correspondem aos
nomes que tais objetos receberam por convenção, e pelo qual são
reconhecidos e designados pelos falantes da língua francesa. Mais
precisamente, René Magritte usa o nome de outras coisas para designáGUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
385
los. Assim, temos aí um processo de renomeação das coisas, e, com
isso, uma proposta de reorganização do mundo. Enfatizamos, nesse
sentido, que os nomes que compõem as legendas aparecem com a
inicial maiúscula, mostrando-se nomes próprios, segundo a proposta de
renomeação das coisas elaborada pelo pintor.
Salientamos que, com exceção da figura do ovo, todos os
outros objetos que aparecem no quadro da Fig. 1 são criações do
homem: sapato, chapéu, vela, copo e martelo. Mais: tais objetos são
funcionais, todos foram criados com algum propósito de utilidade
prática. E, quanto aos novos nomes que esses objetos recebem – com
exceção do nome atribuído à figura da vela, “le Plafond” (o Teto, em
português) –, são todos nomes atribuídos a elementos ou fenômenos da
natureza: “l’Acacia” (a Acácia), “la Lune” (a Lua), “La Neige” (a
Neve), “l’Orage” (a Tempestade) e “le Désert” (o Deserto).
O modo como a obra de Magritte presente na Fig. 1 articula as
figuras e as legendas faz lembrar uma cartilha de alfabetização. No
entanto, ela funciona como uma proposta de realfabetização. René
Magritte “reinventou a maneira de olhar os objetos, ele desmascarou a
traição dos sistemas de representação e subverteu a noção habitual da
cartilha escolar”, pontua Santos (2006, p. 15).
Ao focalizar a arbitrariedade dos códigos que nos servem à
comunicação, Magritte problematiza a ideia de que o verdadeiro ser
das coisas escapa aos sistemas de linguagem. Não obstante, a arte pode
se dar ao exercício de inventar novas “verdades estéticas” (PAZ, 1992)
para as coisas, e, a partir disso, proporcionar visões imprevistas do
mundo.
Manoel de Barros também trabalha, fortemente, com o
contraste entre o mundo e seus sistemas funcionais e convencionados
de representação. A ideia de reorganização do mundo por intermédio
do exercício de reorganização da linguagem faz parte da visão do
poético de Barros, e pode ser notada, por exemplo, neste verso:
“Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.” (BARROS,
2010, p. 299). Fazendo uso da metalinguagem, que aparece mesclada a
uma composição metafórica, Manoel de Barros problematiza, com esse
verso, a ideia de que o processo de desapropriação das coisas que
compõem o mundo dos nomes e signos convencionados que as
demarcam – processo de “desaprendizagem” – pode levar o homem a
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
386
uma maneira desautomatizada de experimentar as coisas, uma maneira,
que, talvez, permita uma proximidade maior com o verdadeiro ser das
coisas, já que o vocábulo “princípios” evoca a noção ideal de origem.
2.
Com o propósito de explorar um pouco mais a possibilidade de
aproximação entre a poética de Manoel de Barros e a de René Magritte
– naquilo que concerne ao jogo que ambos os artistas promovem com a
noção de representação no interior do próprio objeto artístico –,
trazemos o poema de Barros intitulado “O muro”, parte integrante do
livro Poemas rupestres, que foi publicado pela primeira vez em 2004,
e o quadro de Magritte intitulado La trahison des images, de 19281929. Por intermédio do método comparativo, pretendemos tecer uma
leitura crítica desses objetos de estudo com o propósito de elencar
alguns dos elementos formais que os aproximam.
Eis o poema de Barros:
O menino contou que o muro da casa dele era
da altura de duas andorinhas.
(Havia um pomar do outro lado do muro.)
Mas o que intrigava mais a nossa atenção
principal
Era a altura do muro
Que seria de duas andorinhas.
Depois o garoto explicou:
Se o muro tivesse dois metros de altura
qualquer ladrão pulava
Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão
pulava.
Isso era. (BARROS, 2010, p. 441-442)
Observamos que Manoel de Barros aproveita características
próprias do texto em prosa para construir o poema em análise, o que é
feito, oportunamente, como procedimento apto a gerar um efeito de
contação de histórias. Apresentando-se, portanto, como uma espécie de
contador de histórias, o sujeito lírico reconta um episódio que pode ser
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
387
apreendido na seguinte fábula: um menino conta que o muro da casa
dele tinha uma medida especial que impedia a ação de ladrões. Faz-se
importante notar que todos os verbos que aparecem no poema estão
conjugados no pretérito. Mais que isso: a grande maioria dos verbos
está conjugada em tempos verbais que nos dão uma noção imprecisa
de tempo: o pretérito imperfeito do indicativo (“era”, “havia”,
“intrigava”, “pulava”), o futuro do pretérito (“seria”), o pretérito
imperfeito do subjuntivo (“tivesse”). Tal aspecto coloca o episódio
recontado pelo sujeito lírico em uma dimensão temporal em suspensão,
uma dimensão que não pode ser precisada: “era uma vez...”.
O título do poema, “O muro”, evoca, imediatamente, a visão de
um objeto comum, plenamente reconhecível pelo leitor. Não obstante,
há, no poema em si, um processo de singularização deste objeto que
acontece por meio da atribuição de uma característica peculiar a este
objeto. Tal processo torna o objeto irreconhecível, visto que se trata de
uma característica inventada, isto é, uma característica atribuída pela
imaginação do “menino”. Esta atribuição causa uma ruptura em
relação à lógica que rege a realidade material, e o faz na medida em
que estabelece, para “o muro”, uma medida que não existe, ou melhor,
uma medida que só se faz possível dentro da lógica engendrada pelo
poema. Se o título, em um primeiro momento, pode evocar o comum e
habitual, ou, para lembrar Chklovski (1973), o automatizado, a
atribuição de uma medida inventada, por sua vez, funciona como
mecanismo de singularização, provocando o estranhamento.
Enfatizamos, porém, que o procedimento de singularização não
é utilizado por Manoel de Barros nos mesmos moldes da teoria de
Chklovski. Para o formalista russo, o procedimento em questão é
responsável por gerar o efeito de estranhamento e, a partir disso, fazer
com que o leitor, ou o receptor da obra de arte, deixe de olhar as coisas
que compõem o mundo como reconhecimento, ou seja, para que deixe
de olhar as coisas em si mesmas de modo automático, sem percebê-las
de fato. Chklovski defende que a obra de arte deve provocar, por via
do estranhamento, um olhar para as coisas enquanto visão, para que as
ações do homem não aconteçam de modo inconsciente. Observamos
que, na poesia de Manoel de Barros, o procedimento de singularização
tem, mais propriamente, a função de proporcionar novos modos de se
ver as coisas, a função de reinventar as coisas que compõem o mundo
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
388
pela linguagem poética, ampliando as possibilidades de sentido.
Segundo a perspectiva que fundamenta o fazer poético de Barros, não
há nada além do poema em si, da realidade ficcional que ele engendra:
metalinguagem, o poema aponta para si mesmo. Dito de outro modo,
ao singularizar um objeto, a poesia de Barros não faz com que o leitor
veja as coisas habituais em si mesmas enquanto visão, como teoriza
Chklovski. Ao singularizar um objeto, Manoel de Barros recria-o,
promovendo a desreferencialização. O objeto poeticamente recriado
mostra-se outro, e enfatiza a si mesmo.
O “muro” que temos no poema de Barros é de propriedade
imaginativa do “menino”, e, sendo assim, pode ter as características
que ele bem desejar. No âmbito do convencional, as medidas estão
mais próximas do estável e são estabelecidas para precisar e/ou
delimitar as coisas. Ao eleger como medida do “muro” a “altura de
duas andorinhas”, o “menino” dá à noção de medida, dentro do poema,
um caráter de instabilidade e de imprecisão. Andorinhas são pássaros
migratórios, que voam alto e se deslocam a grandes distâncias. Como
precisar a altura do muro que temos no poema? Como encontrá-lo?
Para encontrá-lo, é preciso entrar no jogo que o poema estabelece, é
preciso ultrapassar as margens do convencional, deixando de lado a
lógica habitual, e aceitar a lógica construída pelo poema, uma lógica
própria, nova. Uma vez tendo aceitado as regras deste jogo, o leitor
poderá encontrar o “pomar”, segredo bem guardado entre parêntesis na
grafia do poema, que não pode ser descoberto por nenhum ladrão, mas
somente compartilhado com aquele capaz de adentrar os meandros da
poesia. O prêmio? O gozo da leitura: “É nos desvios que encontramos
as melhores surpresas e os ariticuns maduros” (BARROS, 2010, p.
319).
O título do poema de Manoel de Barros, “O muro”, em sua
relação com o poema em si, enreda o leitor, preparando-lhe uma
armadilha. Em um primeiro momento, o título poderá evocar a
referência comum do objeto. Contudo, uma vez tendo realizado a
leitura do poema, o leitor desconsiderará uma dimensão
completamente referencial ao perceber a dimensão estética que
caracteriza o objeto que o texto constrói. O “muro” que o poema
coloca diante de nós não é um objeto comum e reconhecível, um signo
convencionado que evoca uma referência automatizada. O “muro” que
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
389
o poema nos traz trata-se de um signo singular: é “o muro do menino”,
um “muro” com “duas andorinhas de altura” que guarda “um pomar”.
Segundo nos parece, há, neste poema de Manoel de Barros, um
processo semelhante àquele que caracteriza algumas obras de René
Magritte. De acordo com Compagnon (2010), Magritte enreda o
receptor e problematiza a questão da representação ao promover o
estranhamento por intermédio da tensão que a linguagem gera em sua
relação com a imagem. Tal processo acontece, por exemplo, em um de
seus trabalhos mais conhecidos, La trahison des images, que tomamos
aqui como objeto de estudo ao lado do poema de Barros.
Eis o quadro de Magritte:
La trahison des images (1928-1929). Figura 2.
Temos aí, destacando-se no quadro, uma figura que, por
semelhança, representa pictoricamente um cachimbo. Esta figura, solta
no espaço do quadro, mostra-se quase esquemática em seus contornos
simples, e, à primeira vista, parece ter, nada mais, nada menos, do que
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
390
o propósito de evocar a referência convencional, ou seja, o objeto
mesmo que representa. Porém, logo abaixo da figura, aparece a
seguinte legenda: “Ceci n’est pas une pipe.” / “Isto não é um
cachimbo.”
A princípio, parece haver um descompasso entre a imagem e a
legenda, o que tende a gerar no receptor o choque, o efeito de
estranhamento ou de estupefação. “Como pode não ser um cachimbo,
se o que vejo são os contornos de um cachimbo e não os contornos de
outro objeto qualquer?”, pode indagar o receptor, confuso. Neste
primeiro momento, em que a percepção do receptor sofre um abalo,
forma-se a impressão de que as regras habituais de uso do recurso da
legenda são contrariadas, tendo em vista que tal recurso tem como
função convencional descrever e/ou explicar algo a que se refere. O
descompasso entre a imagem e a legenda, porém, tem a exata duração
do efeito de estupefação. Explorando as relações entre a imagem e a
legenda do quadro da Fig. 2 com mais atenção, o receptor pode
perceber que, referindo-se à figura do cachimbo pelo uso do
demonstrativo (“Ceci”/“Isto”), a legenda afirma que a figura do
cachimbo, a representação pictórica que está sobre ela, não é um
cachimbo. Com isso, a legenda nomeia a figura, definindo-a, e,
portanto, cumprindo sua função. Por fim, a legenda mostra-se
perfeitamente precisa – e óbvia, até – na observação que traz: a figura
do cachimbo não é o cachimbo em si, mas, sim, uma representação
pictórica que se assemelha, em alguns aspectos, ao objeto real,
evocando-o.
No estudo que faz deste trabalho de René Magritte, Foucault
(1988) tece o seguinte raciocínio sobre o processo que observamos:
[...] talvez a frase [a legenda] se refira
precisamente a esse cachimbo desmedido,
flutuante, ideal — simples sonho ou idéia de
um cachimbo. Será necessário então ler: “Não
busquem no alto um cachimbo verdadeiro; é o
sonho do cachimbo; mas o desenho que está lá
sobre o quadro, bem firme e rigorosamente
traçado, é este desenho que deve ser tomado
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
391
por uma verdade manifesta”. (p. 13; grifo
nosso)
À luz do raciocínio de Foucault4, torna-se clara a aproximação
que fazemos entre o quadro de René Magritte e o poema de Manoel de
Barros: ambos, cada um operando por via dos recursos de construção
que lhe são próprios, defendem a concepção de que o objeto artístico
engendra uma “verdade estética” (PAZ, 1992) das coisas,
reinventando-as. Dito de outra maneira, ambos defendem a autonomia
do objeto artístico em relação ao mundo material, afirmando a arte
enquanto construção de uma realidade que transcende os limites do
convencional.
Se, por um lado, o quadro de René Magritte da Fig. 2 coloca
diante de nossos olhos um cachimbo, a legenda que aparece logo
abaixo deste cachimbo nos alerta: não é um cachimbo, é a
representação de um cachimbo. Neste movimento, a obra propõe a
seguinte reflexão: o objeto artístico engendra uma verdade particular
na medida em que recria, pela linguagem que lhe é própria, as coisas e
o mundo.
Afirmamos, aqui, que “O muro” (BARROS, 2010, p. 441-442),
poema de Manoel de Barros trabalhado anteriormente, problematiza a
mesma questão por intermédio de uma estrutura semelhante à do
quadro de René Magritte: o título do poema pode evocar, à primeira
vista, a referência convencional, mas o poema traz uma verdade única,
não convencional. O poema coloca diante do leitor um muro que só
pode ser encontrado por intermédio do exercício da imaginação. Nesse
sentido, parece-nos possível finalizar esta análise com a seguinte
4
Esclarecemos que elencamos, como fundamentação para o estudo
comparativo que desenvolvemos no presente trabalho, o primeiro nível de
leitura que Foucault (1988) tece, em seu Isto não é um cachimbo, do quadro
de René Magritte da Fig. 2. O autor desdobra seu raciocínio em outros
níveis de leitura, apontando La trahison des images como um caligrama às
avessas. Entretanto, o que consideramos relevante para o presente estudo é
a observação que Foucault faz de que a legenda do quadro de Magritte que
temos na Fig. 2 funciona como recurso que enfatiza o objeto artístico em si
mesmo, enquanto verdade construída.
GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014
392
elaboração comparativa: se, por um lado, o título do poema de Manoel
de Barros é “O muro”, por outro lado, o poema em si evidencia: “Isto
não é um muro”.
3.
Partindo do breve estudo que realizamos neste artigo, podemos
concluir que a arte não pode transformar o mundo material, mas, na
medida em que funda realidades ficcionais autônomas, pode, sim,
cavar meios de reorganização e desdobramento da realidade. Manoel
de Barros e René Magritte desnudam o desvão que há entre os sistemas
de representação do mundo e o próprio mundo, e empreendem, de
modo quase obsessivo, uma busca pelo verdadeiro ser das coisas. Tal
busca mostra-se um ideal, uma empreitada de impossível realização.
Contudo, realiza-se no limiar das possibilidades demiúrgicas da arte. O
que nasce, efetivamente, dessa busca é a possibilidade de expressão de
“verdades estéticas” (PAZ, 1992, p. 107) das coisas que compõem o
mundo. Pensamos, no entanto, que é justamente aí que se coloca o
diferencial, a originalidade e, até mesmo, a potência geradora da arte,
haja vista que a elaboração estética das coisas que compõem o plano
fenomênico configura uma nova maneira de percebê-las, para além das
convenções.
Se, por um lado, a arte não é, realmente, capaz de chegar à
essência das coisas, por outro lado, ela promove um desdobramento da
realidade humana em um nível tal, que proporciona ao leitor a
possibilidade de rever as coisas. Em outras palavras, sendo a realidade
do homem contornada e/ou desenhada pela linguagem funcional, pois,
como afirma Paz (1996), “a natureza é linguagem e esta, por sua vez, é
um duplo daquela” (p. 224; grifo nosso), a arte, especialmente a da
modernidade, propõe-se, às vezes, enquanto tentativa de recuperação
de uma linguagem original, adâmica. Todavia, a recuperação não
acontece de forma plena, e a tentativa acaba por gerar um
desdobramento da realidade, uma reorganização da linguagem.
Operando por via da subversão da lógica convencionada que os
sistemas funcionais de codificação e representação do mundo
estabelecem, a arte moderna visa roubar do receptor a segurança que a
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referência convencionada proporciona; e, com isso, pode ocasionar a
re-visão das coisas e do mundo.
RENÉ MAGRITTE AND MANOEL DE BARROS:
INTERSECTIONS BETWEEN PANTING AND POETRY
ABSTRACT: In this paper, we explore the possibility of
approximation between the poetry of Manoel de Barros and the
painting of René Magritte. For this, we use a comparative approach
between some works of both artists. More precisely, we select “La clef
des songes” (1930) and “La trahison des images” (1928-1929), from
René Magritte, and “O muro”, a poem of Manoel de Barros that
appears in the book Poemas rupestres (2004). From the comparative
approach, we analyse the way how Magritte and Barros work the
question about the world representation. Making use of metalanguage,
René Magritte and Manoel de Barros reaffirm, in their respective
poetics, a process of revelation of language systems arbitrariness.
Moreover, Magritte and Barros sustain the conception of legitimation
of art in the proposition of new ways of world recoding and perception.
KEYWORDS: Manoel de Barros. René Magritte. Metalanguage.
Surrealism.
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visível. 2006. 139 f. Dissertação (Mestrado em Artes). Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
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Normas para Submissão
1 – Arquivo apenas em extensão DOC.
2 – Os artigos deverão ter no mínimo 10 (dez) e no máximo 20 (vinte)
páginas e as resenhas no mínimo de 03 (três) e no máximo de 08 (oito)
páginas, respeitando-se a seguinte configuração, em papel A4: 1,25cm
de margem para parágrafo, com margens esquerda e superior de 3,0cm
e direita e inferior de 2,0cm, sem numeração de páginas.
3 – Os trabalhos de pós-graduandos, assim como os de Mestres e
Doutores sem vínculo com instituições de ensino e pesquisa, só serão
aceitos se apresentados em co-autoria com o Prof. Orientador.
4 – Os artigos, entrevistas ou resenhas devem ser enviados para o email [email protected], em programa DOC ou
compatível, em um arquivo com o título do trabalho e com
identificação do proponente e um arquivo com o título do trabalho e
sem identificação do proponente.
5 – O Conselho Editorial, ao qual serão submetidos os textos, poderá
sugerir ao autor modificações de estrutura e de conteúdo. Serão
devolvidos para correção os trabalhos para as modificações. Nenhuma
modificação de conteúdo ou estilo será feita sem o prévio
consentimento do autor. É do autor a inteira responsabilidade pelo
conteúdo do material enviado.
6 – Os artigos deverão ter a seguinte estrutura:
6.1 – Elementos pré-textuais:
• Título e subtítulo: na primeira linha, centralizados, negrito. Fonte:
Times New Roman, corpo 13, somente a primeira letra em maiúscula
em ambos.
• Nome do(s) autor(es): duas linhas abaixo do título, alinhado à direita,
com o último
sobrenome em maiúscula. Chamar para nota de rodapé, onde deve
informar: Sigla –
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Universidade. Faculdade/Instituto – Departamento. Cidade – Estado –
País. CEP – e-mail.
• RESUMO: três linhas abaixo do nome do autor; em português.
Colocar a palavra RESUMO em caixa alta, alinhado à esquerda, sem
adentramento e seguida de dois pontos. Redigir o texto em parágrafo
único, espaço simples, justificado, de, no mínimo, 150 palavras e, no
máximo, 200. Fonte: Times New Roman, corpo 10, para todo o
resumo. O resumo do artigo deve indicar objetivos, referencial teórico
utilizado, resultados obtidos e conclusão.
• PALAVRAS-CHAVE: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas
abaixo do resumo, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e
caixa alta. Fonte: Times New Roman, corpo 10. Cada palavra-chave
somente com primeira letra maiúscula, separada por ponto.
Para maior facilidade de localização do trabalho em consultas
bibliográficas, o Conselho Editorial sugere que as palavras-chave
correspondam a conceitos mais gerais da área do trabalho.
6.2 – Elementos textuais:
• Texto: O corpo do texto inicia-se duas linhas abaixo das palavraschave.
• Fonte: Times New Roman, corpo 12, alinhamento justificado ao
longo de todo o texto.
• Espaçamento: simples entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do
texto (tabelas,
ilustrações, citações em destaque, etc.).
• Citações: no corpo do texto, serão de até 3 (três) linhas, entre aspas
duplas. Fonte: Times New Roman, corpo 12. Quando maiores do que 3
(três) linhas, devem ser destacadas fora do corpo do texto. Fonte:
Times New Roman, corpo 10, em espaço simples, com recuo de 4cm à
esquerda. Todas as referências das citações ou menções a outros textos
deverão ser indicadas, após a citação, com as seguintes informações
entre parênteses: sobrenome do autor em caixa alta, vírgula, ano da
publicação, abreviatura de página e o número desta. Exemplo:
(CANDIDO, 1976, p. 73-88) (NBR 10520/03).
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• Evitar a utilização de idem ou ibidem e Cf. Quando utilizar apud, o
que também deve ser evitado, colocar as mesmas informações
solicitadas para o autor do texto da qual a citação foi retirada.
Exemplo: (BOSI, 2003, p. 1-10 apud SILVA, 1998, p. 23). Informar
em rodapé os dados da obra citada de segunda mão e colocar somente
as obras consultadas diretamente nas Referências.
• Notas explicativas: se necessárias, devem ser colocadas no rodapé da
página de ocorrência, numeradas sequencialmente, com algarismos
arábicos, fonte Times New Roman, corpo 10, justificadas, mantendo
espaço simples dentro da nota e entre as notas, no decorrer do texto.
• Títulos e subtítulos das seções: Referenciados a critério do autor,
devem estar alinhado à esquerda, sem adentramento, em negrito, sem
numeração, inclusive Introdução, Conclusão, Referências e elementos
pós-textuais, com maiúscula somente para a primeira palavra da seção,
fonte: Times New Roman, corpo 12.
• Elementos ilustrativos: tabelas, figuras, fotos, etc., devem ser
inseridas no texto, logo após serem citadas, contendo a devida
explicação na parte inferior da mesma, numeradas sequencialmente.
Serão referidas, no corpo do texto, de forma abreviada. Exemplo: Fig.
1.
Fig. 2, etc.
6.3 – Elementos pós-textuais:
Colocados logo após o término do artigo.
• Título: em inglês, centralizado, em itálico e caixa alta. Inserido duas
linhas abaixo do final do texto. Recomenda-se procurar revisão por um
especialista em língua inglesa.
• ABSTRACT: Duas linhas abaixo do título. Colocar a palavra
ABSTRACT, alinhada à
esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta, fonte Times New
Roman, corpo 10
para todo o texto, seguida de dois pontos. Texto em parágrafo único,
espaço simples e
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justificado. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em
língua inglesa.
• KEYWORDS: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo
do abstract, em inglês, alinhado à esquerda, sem adentramento, em
itálico e caixa alta. Colocar o termo Keywords em caixa baixa. Fonte:
Times New Roman, corpo 10, somente com primeira letra maiúscula,
separada por ponto. Recomenda-se procurar revisão por um
especialista em língua inglesa.
• Referências: seguir as normas da ABNT em uso (NBR-6023/02).
Duas linhas abaixo das palavras-chave em inglês, alinhada à esquerda,
sem adentramento, em negrito e caixa alta, corpo 11. Usar
espaçamento 1 entre as linhas da referência e uma linha em branco
entre uma referência e outra, em ordem alfabética, alinhamento à
esquerda, indicando-se as obras de autores citados no corpo do texto.
• Bibliografia: se considerada imprescindível, deve vir duas linhas
abaixo das referências, alinhada à esquerda, sem adentramento, em
negrito e caixa alta, corpo 11. Podem ser indicadas obras consultadas
ou recomendadas, não referenciadas no texto. Usar espaçamento 1
entre as linhas da referência e uma linha em branco entre uma
referência e outra, em ordem alfabética, alinhamento justificado.
7 – Exemplos de referências (NBR-6023/02):
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do
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Artigo em periódico:
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Artigo em periódicos on-line:
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Disponível em: ... . Acesso em: 15 jul. 2004. Trabalho de congresso ou
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CD-ROM:
KOOGAN, A.; HOUAISS, A. (Ed.) Enciclopédia e dicionário digital
98. Direção geral de André Koogan Breikman. São Paulo: Delta;
Estadão, 1998. 5 CD-ROM. Produzida por Videolar Multimídia.
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