Elisza Peressoni Ribeiro

Transcrição

Elisza Peressoni Ribeiro
ELISZA PERESSONI RIBEIRO
O PAPEL DO DIRETOR NO TEATRO DE BONECOS
FLORIANÓPOLIS - SC
2009
1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC
CENTRO DE ARTES - CEART
DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS - DAC
O PAPEL DO DIRETOR NO TEATRO DE BONECOS
Elisza Peressoni Ribeiro
Trabalho de Conclusão de Curso como
requisito para obtenção do título de
Licenciado em Educação Artística com
Habilitação em Artes Cênicas, sob orientação
do Prof. Dr. Valmor Beltrame e coorientação
de Alex de Souza.
FLORIANÓPOLIS – SC
2009
2
O PAPEL DO DIRETOR NO TEATRO DE BONECOS
Elisza Peressoni Ribeiro
Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito parcial para obtenção do
grau de Licenciado, no curso de graduação em Licenciatura em Educação Artística
com Habilitação em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Banca Examinadora:
Orientador:
______________________________________________
Prof. Dr. Valmor Beltrame
UDESC
Coorientador:
______________________________________________
Alex de Souza
UDESC
Membros:
___________________________
Prof. Dr. Valmor Beltrame
UDESC
___________________________
Ms. Paulo César Balardim Borges
UDESC
___________________________
Prof. Roberto Gorgati
UDESC
Florianópolis – SC, 07 de dezembro de 2009.
3
Às minhas avós, Lina e Aracy.
4
Agradecimentos
A meus pais, Deleo e Tetê, que prescindem de explicações.
A Dona Tereza que me ensinou que na vida o plantio é opcional, mas que a
colheita é sempre certa.
A professora Nara, com quem tudo começou.
As amigas e amigos que conheci antes: Tati, Thais, André Felipe e Paulo que,
mesmo sem saber, também fazem parte desta história.
As amigas e amigo que conheci agora: Ligia, Maria, Ana Luz, Helô, Potyra,
Lucrécia e Diogo. Sou muito grata por ter vivido com vocês estes 4 anos e meio.
A toda a turma de artes cênicas 2005/02 pelos momentos de discussão e
principalmente de risadas e companheirismo.
A turma 2007/02, que neste finzinho de curso tive chance de conhecer e
admirar.
Aos amigos da Cia Cênica Espiral, Alex, Jaque (obrigada pelo tema!), Rhaisa,
Carol e Juliano, muito obrigada por compartilhar com vocês a arte que quero fazer.
Obrigada também pelos momentos de risadas, de lágrimas e de conquistas.
Ao Jorge Lucas, que apareceu faz pouco, mas que me ajudou muito com sua
paciência e carinho.
Ao professor Stephan Baumgärtel que é exemplo para mim como professor e
pesquisador. Agradeço pelos anos de orientação.
Ao Ivo que me ajudou a aprender além do curso.
A Valmor “Nini” Beltrame que, sem pestanejar, aceitou essa orientação e
durante todo o processo acreditou no trabalho.
Ao meu coorientador, diretor e amigo Alex de Souza, que, além de me
apresentar ao Teatro de Bonecos, foi uma grande ajuda neste trabalho.
A todos os bonequeiros que pude ler, entrevistar e assistir, e que com seus
trabalhos me servem de inspiração para seguir esta estrada que escolhi.
5
O PAPEL DO DIRETOR NO TEATRO DE BONECOS
Elisza Peressoni Ribeiro
RESUMO
O presente estudo trata sobre o papel do diretor no Teatro de Bonecos, com
foco em trabalhos de manipulação direta. São analisados alguns aspectos relativos
a esta linguagem e sua relação com a direção. O objetivo é estudar funções
atribuídas ao diretor e seu vínculo com os códigos próprios da linguagem. Para isso
o trabalho analisa procedimentos que caracterizam o trabalho do diretor e os
conhecimentos específicos que ele deve possuir. Ao longo de toda a pesquisa há
falas de dois diretores contemporâneos de Teatro de Bonecos que são citadas e
relacionadas com os assuntos. Estas falas são retiradas de entrevistas realizadas
especificamente para este estudo.
PALAVRAS-CHAVE: Direção Teatral; Teatro de Bonecos; Teatro de
Animação
6
Sumário
Introdução .................................................................................................................. 7
1 Contextualização .................................................................................................. 10
1.1 Nomenclaturas .................................................................................................... 11
1.2 A polivalência do bonequeiro .............................................................................. 15
1.3 Um Teatro Renovado .......................................................................................... 20
2 O diretor e as especificidades do Teatro de Bonecos ...................................... 25
2.1 Dramaturgia......................................................................................................... 26
2.1.1 Dramaturgia do movimento: o diretor e a construção da partitura .................... 32
2.2 A construção do boneco e as possibilidades expressivas de seu material ......... 35
3 Técnica e Imaginação: A direção do espetáculo ............................................... 39
3.1 Ator-animador também é ator.............................................................................. 41
3.2 Ator-animador também trabalha com princípios .................................................. 43
3.2.1 A neutralidade .................................................................................................. 46
3.2.2 A dissociação ................................................................................................... 51
3.3 Outros aspectos relevantes sobre a direção no Teatro de Bonecos. .................. 54
Considerações Finais ............................................................................................. 59
Referências .............................................................................................................. 61
Anexos ..................................................................................................................... 64
ANEXO A - Transcrição da entrevista com Dario Uzam Filho ................................... 64
ANEXO B - Transcrição da entrevista com Miguel Vellinho ...................................... 74
7
Introdução
Neste trabalho estudo o papel que exerce o diretor no Teatro de Bonecos com
foco na técnica da manipulação direta. A ideia de estudar este assunto surgiu de
meu interesse por ambas as áreas: Direção e Teatro de Bonecos. Unir os dois
temas foi uma forma de conciliar a vontade de pesquisar e aprender mais sobre
ambos e a necessidade de escrever um trabalho de conclusão de curso.
Ao refletir e discutir sobre as funções que o diretor realiza no Teatro de
Bonecos a intenção é ressaltar algumas tarefas inerentes a prática deste
profissional. Para isso, ao longo de todo o trabalho seleciono especificidades da
linguagem do Teatro de Bonecos, como a dramaturgia e a composição de cena, e as
relaciono com o trabalho do diretor.
O diretor no sentido abordado por este trabalho surge, no Teatro de Persona1,
no final do século XIX. André Antoine (1858 – 1943) com seus estudos sistemáticos
sobre a prática da encenação é o primeiro a esboçar o papel do diretor no teatro
contemporâneo. Antoine acreditava na encenação como um conjunto de confluentes
que devem ser harmonicamente trabalhados a fim de, juntos, formarem o
espetáculo. Neste estudo assumo que o diretor é justamente o ponto que une todos
esses confluentes.
Desta forma, o objetivo principal é pensar a relação do diretor com as
especificidades da linguagem do Teatro de Bonecos contemporâneo. As discussões
relativas a concepção e direção de espetáculo no Teatro de Bonecos popular não
serão aqui abordadas.
É importante destacar que a bibliografia sobre o trabalho do diretor no Teatro
de Animação é quase inexistente, por isso o caminho foi revisar estudos de
pesquisadores que se dedicam a essa arte, garimpando ideias que pudessem
colaborar para o presente trabalho. Encontrei alguns trechos de autores como o
sueco Michael Meschke e o polonês Henry Jurkowski que eventualmente, em seus
estudos, se referem ao trabalho deste profissional. Por esse motivo trabalhei com
alguns princípios técnicos desta linguagem já discutidas em textos de Paulo
1
Por falta de uma nomenclatura adequada e definição que satisfaça o contexto deste trabalho,
utilizar-se-á o nome “Teatro de Persona” quando se tratar de espetáculos que não estão incluídos na
definição de Teatro de Animação.
8
Balardim, Valmor Beltrame, Caroline M. H. Cavalcante, Felisberto Sabino da Costa e
Rafael Curci e os relacionei com a função que o diretor pode realizar dentro de
especificidades selecionadas.
Para a pesquisa prática foram realizadas entrevistas com dois diretores
contemporâneos em exercício: Dario Uzam e Miguel Vellinho. Estes diretores foram
escolhidos por sua experiência na área e constância de produção.
Dario Uzam é fundador e diretor da “Cia Articularte de Teatro de Bonecos”,
criada em 1999 e sediada desde então em São Paulo. A Cia. conta atualmente com
oito espetáculos em atividade e é reconhecida no país pela qualidade técnica e
artística de seus trabalhos.2
Miguel Vellinho é fundador e diretor da “Cia PeQuod”. Em atividade desde
1999, no Rio de Janeiro, a “Cia PeQuod” é atualmente uma das companhias de
Teatro de Bonecos mais atuantes do Brasil, prestigiada internacionalmente, e a
maioria de seus trabalhos utilizada bonecos de manipulação direta.3
As falas destes dois diretores permearão todo o texto e estarão relacionadas
com os temas tratados em cada capítulo. Ao final deste trabalho estão anexadas as
transcrições completas das entrevistas.
Ainda para a coleta de dados assisti ao vivo e em vídeo espetáculos dos
diretores entrevistados. Pude assistir ao espetáculo O Velho da Horta, dirigido por
Miguel Vellinho, e ao espetáculo Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Marrom dirigido
por Dario Uzam. Trabalhei com imagens gravadas em DVD dos seguintes
espetáculos: A Cuca Fofa de Tarsila e Portinari Pé de Mulato, ambos dirigidos por
Uzam; Filme Noir e Peer Gynt, ambos dirigidos por Vellinho.
A monografia está dividida em três capítulos. No primeiro são apresentados
termos importantes com os quais trabalho. Em seguida discuto sobre o surgimento
do papel do diretor no Teatro de Bonecos e faço uma breve explanação sobre as
mudanças ocorridas nesta linguagem no séc. XX, destacando acontecimentos que
favoreceram a fixação do papel do diretor.
O segundo capítulo dedica-se ao estudo da dramaturgia e algumas de suas
particularidades, bem como a materialidade do boneco e suas possibilidades
2
3
Para maiores informações ver: http://www.articularte.com.br.
Para maiores informações ver: http://www.pequod.com.br.
9
expressivas, evidenciando a importância do conhecimento destas especificidades
para o trabalho do diretor.
No terceiro e último capítulo abordo a relação do diretor com o trabalho do
ator-animador. Nesta etapa do estudo dialogo mais intensamente com os dois
diretores, Miguel Vellinho e Dario Uzam, e para isso utilizo as entrevistas com eles
realizadas como forma de apontar procedimentos recorrentes nas atividades do
diretor.
10
1 Contextualização
Diferentemente do que acontecia na primeira metade do século XX no Brasil,
o diretor no Teatro de Bonecos é um profissional cada vez mais presente no trabalho
dos grupos que se dedicam a essa linguagem. Observando as programações de
festivais dedicados a esta arte, percebem-se ali os nomes dos espetáculos, dos
grupos e não faltarão os nomes de quem assina a direção. Também é comum
encontrar, atualmente, diretores que se aventuram pelo campo da teoria, seja
através de estudos acadêmicos (graduação, mestrado e/ou doutorado) ou através
de publicações que revelam suas experiências e organizam alguns de seus métodos
de trabalho.
Função que surge mais tardiamente no Teatro de Bonecos do que no Teatro
de Persona, o diretor aparece neste último na primeira metade do século XIX, e
atinge seu auge no século XX. No Teatro de Bonecos, entretanto, o papel do diretor
surge na Brasil com mais recorrência apenas na segunda metade do século XX,
como consequência de transformações filosóficas, poéticas e estéticas pelas quais
passou essa linguagem.
Atualmente os diretores de Teatro de Bonecos, em diversos grupos em
atividade, são os responsáveis pela definição da estética e da poética do espetáculo.
O público mais familiarizado consegue notar linhas de escolhas que são recorrentes
em vários trabalhos de um mesmo diretor. Esta relação já ocorre no Teatro de
Persona
e
muitas vezes
o
nome
do diretor é
mobilizador de
público
independentemente do texto que está em cartaz. O diretor de Teatro de Persona
configurou-se, ao longo do tempo, como uma grande figura no cenário teatral, não
raro superando a importância de atores e autores. Já no Teatro de Bonecos esta
presença do diretor assumindo a responsabilidade pela configuração do espetáculo
é muito mais recente.
A partir destas constatações surge a discussão a respeito do papel que
exerce o diretor no Teatro de Bonecos. Questiona-se quando surgiu, como surgiu,
por que surgiu e qual é sua importância e função dentro do espetáculo. Pouco se
tem estudado sobre este profissional. Para tratar destas questões faz-se necessário
iniciar a discussão apresentando algumas expressões e nomenclaturas recorrentes
11
nessa linguagem para, posteriormente, contextualizar o aparecimento desta função
e em seguida refletir sobre o papel deste profissional no processo de criação de
espetáculos.
1.1 Nomenclaturas
Para a melhor compreensão do papel do diretor no Teatro de Bonecos faz-se
necessário definir alguns termos que estarão presentes ao longo de todo o trabalho.
O intuito é tanto delimitar as áreas de abrangência deste estudo, quanto deixar claro
à que me refiro quando utilizo um desses termos.
Nas publicações sobre Teatro de Bonecos é possível encontrar distintas
definições de termos-chave como, por exemplo, ator-animador e ator-bonequeiro.
Essas definições variam de acordo com o autor e com a época em que foram
escritas e, ainda que cada autor argumente a favor do uso da definição que elege, é
difícil escolher uma que seja a correta ou canonizada.
Os primeiros termos necessários a distinguir são: Teatro de Animação e
Teatro de Bonecos. Segundo Paulo Balardim:
O termo Teatro de Animação é a forma específica de animação realizada
com fins teatrais e engloba todas as formas de representação cênica na
qual a aparência de vida é dada, seja a objetos, luzes ou sombras, seja a
uma parte objetivada do corpo humano ou, ainda, qualquer outra forma que
simule uma vontade autônoma. As espécies conhecidas deste gênero são
extremamente variadas, as mais populares sendo as seguintes: máscaras,
fantasias (forma habitáveis), bonecos (luvas, varas, marionetes de fio,
bonecos de mesa, bonecos gigantes), sombras, teatro de objetos e certas
espécies de autômatos. (2008, p.21)
Como indica o autor, Teatro de Animação é uma nomenclatura ampla que
abrange diferentes formas de teatro, na qual está incluído o Teatro de Bonecos, uma
vez que se trata de uma linguagem que tem como objetivo a manipulação de
bonecos, manipulação esta que pode ocorrer de distintas maneiras. Portanto, Teatro
de Animação é visto aqui como um campo mais amplo de expressão, no qual está
inserido o Teatro de Bonecos.
O próximo termo a ser definido, e que diz respeito ao tema central deste
trabalho, é o termo diretor. A definição que escolho delimita o diretor como aquele
12
que conduz a montagem de um espetáculo, estando à par de todos os seus
aspectos e especificidades, orientando as escolhas estéticas e poéticas. Patrice
Pavis faz semelhante definição para o termo encenador: “Pessoa encarregada de
montar uma peça, assumindo a responsabilidade estética e organizacional do
espetáculo, escolhendo os atores, interpretando o texto, utilizando as possibilidades
cênicas à sua disposição.” (1999, p.128).
Mesmo que a definição de Pavis para encenador seja o que defino como
diretor, opto aqui por manter a utilização do segundo termo e não alterá-lo para
encenador. Faço isso porque no Brasil é este o nome mais comumente utilizado
para definir a pessoa que organiza e conduz a montagem de um espetáculo. Essa
confusão entre os termos encenador e diretor é discutida por J. Guinsburg, João
Ribeiro Faria e Mariângela Alves de Lima no “Dicionário de Teatro Brasileiro”. Eles
explicam que:
O termo encenador vem a ser a tradução direta de seu correspondente
francês metteur em scène. Entretanto, junto aos práticos do teatro, à crítica
especializada e ao público, o termo empregado mais frequentemente, entre
nós, para expressar esse ofício, como foi descrito acima, é o de diretor
teatral (2006, p.123).
Os autores deixam claro que o termo diretor é, no Brasil, o termo mais
utilizado e mais difundido. Desta maneira o diretor a que me refiro neste trabalho é
aquele que mantém a unidade e a coesão do espetáculo, é responsável por
coordenar e orientar os artistas e técnicos envolvidos no processo, faz as opções
estéticas da obra e está a par de tudo o que engloba o espetáculo. Ele pode
trabalhar com maior ou menor intervenção e colaboração por parte de atores e
técnicos, mas é ainda nele que se concentra a ligação de todos os aspectos da
montagem.
Depois de definir a função do diretor é necessário definir e distinguir três
outros termos: ator, ator-animador e bonequeiro.
O ator é “o intérprete do personagem de ficção, ou seja, aquele que dá forma
e vida ao personagem do drama” (Vasconcellos, 1987, p.23). É aquele que através
de seu próprio corpo, sem nenhuma forma de mediação, dá vida, em cena, a um
13
personagem4. Ele é um intérprete do texto e/ou da ação e, em cena, representa
através de sua presença “um outro” que não ele mesmo.
O ator-animador ou apenas animador é aquele que dá vida a um
objeto/boneco que, em cena, representa um personagem. O ator-animador é
também definido por muitos autores como ator-manipulador. No entanto, escolho
utilizar o termo ator-animador por um motivo relativo à etimologia destas duas
palavras.
Segundo Houaiss (2009), “manipular” é derivado do francês “manipuler” e
significa “manejar substância ou instrumento para fins científicos ou técnicos;
influenciar”. Já a palavra “animar” surge do latim “animo” que significa “soprar, dar
vida, animar”. Acredito que o ator em um espetáculo de Teatro de Bonecos, ao
tocar o que antes era um objeto inanimado para dar-lhe ação e movimento, tem
como objetivo inicial “dar vida” àquilo que toca, insuflando o boneco de existência.
Mais do que manejar algo com técnica para simular vida o trabalho do ator-animador
consiste em deixar de ser o foco da cena para, desta forma, dar a vida ao boneco.5
Por isso prefiro definir este artista como ator-animador e não como atormanipulador e entender a manipulação, assim como a interpretação, como uma das
técnicas necessárias ao ator-animador para dar vida ao boneco.6
O ator-bonequeiro, ou apenas bonequeiro, é aqui considerado como aquele
que além de animar seus bonecos em cena, ainda é responsável pela sua
concepção e confecção. Além disso, também executa outras atividades dentro do
espetáculo, num acúmulo de funções raro de ser encontrado atualmente.
Assentados os termos ator, ator-animador e bonequeiro, é interessante
destacar como Ana Maria Amaral os define e distingue:
Bonequeiro é aquele que não só dá vida aos personagens, mas também os
concebe, constrói, dirige, quando não é também o dramaturgo, o
iluminador, o produtor, numa polivalência de responsabilidades muito
questionáveis [...]. Todo bonequeiro é um ator manipulador [...] O ator é
4
Restrinjo-me aqui a definir do ator do teatro dramático tradicional, sem especificar as novas funções
e definições do ator no teatro contemporâneo. Também não trato do ator de cinema, televisão, circo e
outros.
5
As afirmativas de que o ator-animador “dá vida” ou “simula vida” fazem parte de uma discussão
ampla e há muitas divergências entre autores da área. Opto aqui por entender que o ator-animador
“dá vida” ao boneco por motivos etimológicos e por explicar mais satisfatoriamente minha experiência
enquanto atriz-animadora.
6
Desta maneira, todas as vezes em que em alguma citação constar as palavras ator-manipulador
entenda-se ator-animador.
14
aquele que no palco é visto, encarna e tem a imagem do personagem. O
ator manipulador é um ator que eventualmente se propõe, ou num
determinado espetáculo, tem necessidade de animar e dar vida a
personagens inanimados. Enquanto ator-manipulador, nem sempre é visto
[...] (2002, p.22).
Amaral deixa clara a distinção entre os termos e suas especificidades. A
diferenciação entre eles é fundamental para que se possam entender as
particularidades que o ator-animador tem em sua atuação, se comparado ao ator de
Teatro de Persona.
Definidos os termos mais importantes para este estudo, passo agora à
definição da técnica que elegi como foco do trabalho: a manipulação direta. Paulo
Balardim define o termo da seguinte maneira:
Essa expressão, de uso comum no sul do Brasil, designa a técnica de
operação em que o contato do manipulador com o boneco é “direto” através
do seu toque, sem intervenção de fios ou varas (...). Também, na
manipulação direta, o movimento da mão do manipulador nem sempre
condiz com o movimento executado pelo boneco, como geralmente ocorre
na luva. Ou seja, um gesto mínimo da mão pode provocar um amplo
movimento no boneco (2004, p.72).
Ou seja, na manipulação direta o ator-animador tem contato direto com o
boneco a ser animado. Isso significa que ele move o boneco através do contato do
seu corpo com o objeto animado, sem mediação.
Desta maneira, a técnica da
manipulação direta pode ser executada por um ou mais atores-animadores, porém é
mais comumente encontrada sendo executada por três atores-animadores que,
juntos, animam um boneco. Normalmente um ator-animador controla a cabeça e o
braço esquerdo do boneco, outro ator-animador controla o tronco e o braço direto do
boneco e o terceiro controla os pés do boneco. Esta disposição, no entanto, não é
fixa e pode variar de acordo com a quantidade de articulações do boneco e os
movimentos que se quer que ele realize, bem como de acordo com a quantidade de
atores-animadores em cena. Esta configuração tem influência do Bunraku7, teatro de
bonecos tradicional japonês.
Quando o ator-animador trabalha com a técnica da manipulação direta ainda
precisa definir se estará oculto ou à vista do público. Estar oculto significa ser ou não
ser percebido pelo público ou ainda estar pouco visível na cena. Deste modo ele
7
Para maiores referências ver: Giroux e Suzuki, 1991.
15
está o máximo possível escondido, seja por uma vestimenta que o homogeneíze
com o fundo do cenário, seja pela iluminação, recorrendo ao que se denomina no
teatro de “cortina de luz”. Na animação direta à vista, o ator-animador é percebido
pelo público durante o espetáculo, sendo mais um elemento de leitura para o
espectador.
Ao definir estas técnicas não excluo de meu trabalho outras que são utilizadas
no Teatro de Bonecos8, mas afirmo que o tema central desta pesquisa é o trabalho
do diretor teatral e sua atuação em espetáculos nos quais se dá a manipulação
direta do boneco.
1.2 A polivalência do bonequeiro
O Teatro de Bonecos, em sua origem, está ligado às manifestações
religiosas. Mais tarde ele se desvincula deste universo e assume características do
que hoje pode ser denominado Teatro Popular. Atualmente, mesmo tendo ampliado
seu espaço de atuação para festivais exclusivos desta linguagem e ser objeto de
estudo em universidades, continua presente dentre as expressões folclóricas e
populares.
No Brasil o Teatro de Bonecos popular tem como manifestação mais
conhecida o Mamulengo9, o Teatro de Bonecos tradicional do estado de
Pernambuco. Também existem em outros estados bonecos tradicionais, como o
João Redondo, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, e o Casimiro Coco em
Sergipe, em Alagoas e no Maranhão. No entanto, dentre eles é o Mamulengo o mais
conhecido no panorama nacional e internacional. O mamulengueiro é o exemplo
brasileiro de um artista que apresenta uma capacidade polivalente, característica
8
Para esclarecimento a respeito de outras técnicas do teatro de animação ver: Balardim, 2004, p. 67
– 77.
9
“Espécie de divertimento popular em Pernambuco, que consiste em representações dramáticas por
meio de bonecos, em um pequeno palco alguma coisa elevado. Por detrás de uma empanada,
esconde-se uma ou duas pessoas adestradas, e fazem com que o boneco se exibam com movimento
e fala. A esses dramas servem ao mesmo tempo de assunto cenas bíblicas e de atualidade. Tem
lugar por ocasião das festividades de igreja, principalmente nos arrabaldes. O povo aplaude e se
deleita com essa distração, recompensando seus autores com pequenas dádivas pecuniárias.” (Luiz
da Câmara Cascudo, APUD Revista Mamulengo, nᵒ 1, 1973.)
16
recorrente em vários artistas de Teatro de Bonecos populares pelo mundo. Ou seja,
ele é responsável e executa variadas funções dentro de seu espetáculo.
Esses artistas de Teatro de Bonecos apresentam seus espetáculos, na
maioria das vezes, em ruas e praças, e sua sobrevivência financeira é fruto destas
apresentações. Muitos deles trabalham com auxiliares, membros de sua própria
família, e outros trabalham com ajudantes que se mostraram interessados em
aprender o ofício de mamulengueiro. No entanto, não há divisão instituída de
tarefas, pois é o mamulengueiro (também chamado mestre) quem assume todas as
funções. Os auxiliares executam apenas as tarefas ordenadas por ele. Desta
maneira, várias manifestações de Mamulengo têm nome homônimo ao do mestre, e
são eles os artistas reconhecidos pela população.
Essa relação entre o nome do mamulengueiro e o nome do grupo pode ser
confirmada na “Revista Mamulengo”, publicação da “Associação Brasileira de Teatro
de Bonecos - ABTB” que teve tiragem de 13 edições entre os anos de 1973 e 1989.
Em vários exemplares podemos observar que havia diferentes grupos de
Mamulengo com nomes de seus mestres, e a revista não se preocupava em divulgar
quem eram os ajudantes. Um exemplo é uma reportagem da Revista Mamulengo
nº5, datada de 1976, que trata do “I Encontro de Mamulengos do Nordeste”. Ali lê-se
a seguinte lista de grupos que se apresentaram:
Apresentaram-se nesta semana de pura alegria que terá sido o I Encontro:
O Grupo de Manuel Lucas (Várzea Nova-Pb), Grupo Zé-Relâmpago (Rio
Grande do Norte), Mamulengos de Antônio Pequeno (RN), Invenção
Brasileira (PB), Mamulengos de Joaquim Guedes (Pb), Mamulengos de
João Redondo (Pe) e grupo de Antônio Relâmpago (RN). (p.05)
Pode-se notar que de sete grupos que se apresentaram, cinco tem o nome do
grupo homônimo ao mestre. Esse dado confirma que era este mestre que
coordenava toda a execução, era ele que, apesar de não se falar neste termo em
seu contexto, era também o diretor do espetáculo.
Ao procurar registros sobre diretores de Teatro de Bonecos no Brasil, a
pesquisa na sua etapa de revisão bibliográfica conseguiu identificar alguns
espetáculos, principalmente na década de 1970, que já contavam com assinaturas
de diretores. Apesar de a função não ser predominante nesta década, já é
17
registrada. No entanto, além de ser uma função incipiente, estes diretores ainda se
configuravam como diretores que atuavam e dirigiam.
Existem registros anteriores, datados na década de 1960 que já atestam o
trabalho de direção em espetáculos de Teatro de Bonecos. Gianni Ratto dirigiu El
Retablo de Maese Pedro, texto de Miguel de Cervantes com música por Manuel de
Falla, em 1966 e Ubu Rei, de Alfred Jarry, em 1969. Nestes dois casos, no entanto,
é importante ressaltar que Ratto não dirige a montagem com um grupo de Teatro de
Bonecos e tampouco pode ser considerado diretor de Teatro de Animação. Trata-se
de uma incursão do diretor italiano pela linguagem, que como grande conhecedor do
teatro sabia que tais textos foram seguidamente montados com bonecos na Europa.
A Estréia de Ubu Rei se deu em Rennes, França, no final do Século XIX, com
bonecos e tendo o próprio autor no elenco. El Retablo é um clássico da língua
espanhola da dramaturgia para bonecos. A parceria do músico Manuel de Falla
e Federico Garcia Lorca deixou uma produção muito importante nessa área. A
constatação da existência de espetáculos que utilizavam bonecos naquela época
demonstra que as primeiras iniciativas na renovação da linguagem do Teatro de
Bonecos não têm data precisa, exata, mas são dispersas e ocorrem em diferentes
lugares.
É interessante destacar que ainda na revista Mamulengo nº 5 há uma
reportagem sobre o grupo teatral “TIM - Teatro Infantil de Marionetes”, da cidade de
Porto Alegre. Este grupo não tem origem popular e não é formado por um artista
polivalente, como no caso dos grupos de Mamulengo. O TIM é um grupo tradicional
da cidade de Porto Alegre que atualmente já tem 50 anos de atividade ininterrupta.
Mesmo assim, nessa reportagem, apesar de haver o registro nominal de todos os
seus integrantes, o responsável pela direção é registrado, mas ainda não é
destacado:
Os integrantes do TIM são: Odila Cardoso de Sena, que cria e fabrica as
marionetas, Antônio Carlos de Sena, que dirige, manipula e faz os cenários,
além de dar voz aos bonecos. Os outros manipuladores e técnicos são:
Reneidi Mezeck de Sena, Fernando Cardoso de Sena, José Luiz Cardoso
de Sena e Carlos Mezeck de Sena.” (Idem, p.54).
Pode-se notar que os artistas envolvidos, além de serem da mesma família,
trabalham em diferentes funções dentro do espetáculo. Além disso, é interessante
18
salientar que Antônio Carlos de Sena é formado em direção teatral pelo DAD
(Departamento de Artes Dramáticas) da UFRGS. Sua data de formação é 1962.
Esses dados permitem, senão afirmar, mas pelo menos desconfiar que Sena talvez
seja o primeiro diretor de Teatro de Bonecos no Brasil com formação acadêmica em
direção teatral.
No Brasil, o papel do diretor no Teatro de Bonecos começa a aparecer com
mais frequência e destaque a partir da década de 1970, como pode ser observado
ainda em outras revistas Mamulengo, com as nº 09, 10, 11, 12 e 14, nas quais, não
sempre, mas recorrentemente, há referência à direção dos espetáculos. Na revista
nº 09, por exemplo, pode-se encontrar nomes de diretores como: Ana Maria Amaral,
Cláudio Ferreira, Maria Luiza Lacerda, Lucia Coelho, Ilo Krugli, Flávio Bianconi.
Voltando a Revista Mamulengo nº5, há ali uma reportagem sobre o grupo
Mamulengo Só-Riso, criado na cidade de Olinda, estado de Pernambuco, em 1975 e
que, apesar do nome, não tem origem popular, mas sim inspira-se no Mamulengo
tradicional. Entretanto, pode-se observar que também não havia divisão de tarefas
dentro do grupo, pois todos os componentes da companhia realizavam todas as
funções:
Os artistas mamulengueiros do SÓ-RISO são: Fernando Augusto Santos,
Pedro Celso, Luiz Maurício, Carvalheira, Nilson de Moura, Ari Luiz da Cruz,
Tereza Eugênia Veloso, que se encarregam de todas as tarefas do grupo:
criação dos bonecos, manipulação, iluminação, som e direção. (p.60).
A partir destas informações surgem as seguintes questões: por que o
bonequeiro sai da cena e passa a dirigi-la? Por quais razões ele deixa de exercer
sua função polivalente e, aos poucos, passa a supervisionar as etapas do processo?
Por que nasce a necessidade de definir alguém para exercer esta função?
No início do século XX muitos artistas se inspiram no Teatro de Bonecos para
repensar o teatro. Eles se apropriam dessa linguagem para refletir sobre o papel do
ator em cena e propor renovações ao que vinha sendo produzido. Desta maneira
passou-se a discutir mais esta linguagem e o Teatro de Bonecos renasce: “seu
renascimento no século XX fez com que o Teatro de Bonecos se tornasse mais
artístico que popular ou plebeu.” (Jurkowski, 2000, p. VI). No entanto, a renovação
estética surge com mais evidência na segunda metade do século XX, quando os
artistas se descomprometem com princípios estéticos tradicionais e com uma arte
necessariamente dramática.
19
Essas mudanças estéticas provocadas pelas vanguardas surgem com mais
evidência a partir das décadas de 1950 e 1960 na Europa e, como afirma Balardim:
O sonho de aneantização – a redução do intérprete ao nada frente à efígie
do personagem - e a organização da ação cênica sobre modelos mecânicos
e plásticos foram fundamentais para o desenvolvimento do teatro de
animação no séc XX, fazendo-o ascender, renovado, ao mesmo patamar
das outras expressões artísticas. (2004, p.28).
Dentre estas renovações surge a divisão de tarefas dentro da montagem.
Essa divisão tem relação com a preocupação com a qualidade dos espetáculos
tanto em relação à técnica quanto em relação às escolhas estéticas. Apenas uma
pessoa encarregada de realizar várias funções não poderia mais dar conta de
acumular todas as etapas de montagem de um espetáculo, uma vez que as
exigências técnicas e estéticas crescem.
Surge o diretor que, apesar de realizar outras tarefas, como, por exemplo, a
confecção dos bonecos, sai de cena para, de fora, observar e conduzir o espetáculo.
Há desta maneira, um rompimento fundamental em relação ao artista polivalente:
apesar de o diretor ainda realizar outras funções ele não é mais ator-animador na
peça teatral. Graças a isso ele pode dirigir com um olhar externo, mais crítico e mais
exigente, no sentido de garantir a qualidade artística do espetáculo.
No último exemplar publicado da revista Mamulengo, sob o número 14 e
datado de 1988-89, há um artigo sobre o Prêmio Hermilio Borba Filho, em que a
atriz e bonequeira Ana Deveza ganha o prêmio com sua obra “Trem de Lata”. Sobre
o fato, lê-se o seguinte:
A atriz tem vários textos escritos, mas “Trem de Lata” foi a primeira
montagem de sua autoria. O grupo “Teatro Cais de Ferro” levou a peça para
o palco no 1ᵒ semestre de 1988, com a direção de Maria Idalina e a própria
autora participante do elenco. (p.43)
Nesta reportagem está claro e em destaque que há uma diretora, que assume
e assina a direção do espetáculo, e é apenas essa sua responsabilidade.
O bonequeiro polivalente, no entanto, não desapareceu e parece que não
desaparecerá. Atualmente é visível que a polivalência é cada vez menos recorrente,
porém ainda é uma característica de alguns artistas bonequeiros, como afirma
Rafael Curci: “Originariamente, o realizador (ou construtor) de bonecos era o próprio
20
bonequeiro, inclusive são muitos os que atualmente continuam confeccionando de
maneira integral os bonecos que utilizam em cena.” (2007, p.41, tradução nossa)10.
Estes artistas bonequeiros polivalentes podem ser encontrados principalmente em
Teatros de Bonecos de tradição popular que ainda continuam atuantes, como no
Mamulengo. No entanto não são exclusivamente artistas ligados à estas tradições
que apresentam dotes polivalentes. Existem bonequeiros contemporâneos como o
argentino Sérgio Mercúrio e o catarinense Marcelo de Souza, que também realizam
quase todas as funções de seus espetáculos. Eles são artistas que trabalham
principalmente como solistas. Mesmo assim é comum que eles tenham técnicos que
trabalhem junto, principalmente quando apresentam em casas teatrais e necessitam
de assistência de palco, iluminação e operação de som.
As transformações no processo de criação e na estética do Teatro de
Bonecos que acarretam o aparecimento do papel o diretor são marco fundamental
na renovação desta linguagem. Essas transformações mudam não apenas o modo
de criar espetáculos, mas também a maneira pela qual ele é visto por artistas de
outras áreas e pelo público. Por esse motivo faz-se necessário apontar estas
mudanças.
1.3 Um Teatro Renovado
No século XX, o crescente reconhecimento desta arte provoca uma
renovação estética e conceitual que a moderniza e aumenta suas possibilidades
técnicas. Vários códigos característicos do Teatro de Bonecos tradicional são
quebrados, bem como se alteram procedimentos de criação e realização de um
espetáculo. Estas mudanças acarretaram importantes transformações na ideia do
que significa trabalhar com bonecos e, consequentemente, na função que deve
executar um diretor que trabalha com esta linguagem.
Uma das mudanças mais importantes se deu na utilização do boneco
antropomorfo. Antes do séc XX este boneco aparecia com quase absoluta
predominância nos espetáculos. Com as transformações o boneco antropomorfo
10
“Originariamente, el realizador (o constructor) de títeres era el mismo titiritero, incluso son muchos
los que em la actualidad siguen confeccionando de manera integral las figuras que luego utilizan en
escena.”
21
cede espaço a bonecos cuja morfologia não representa ou imita a figura humana e
há uma valorização do uso de figuras abstratas. Além disso, a utilização de apenas
uma técnica de confecção e manipulação do boneco não é mais regra e se torna
recorrente o emprego de diferentes procedimentos e recursos de construção num
mesmo espetáculo.
Outra mudança relevante se deu em relação ao uso da tradicional empanada
que deixa de ser o espaço cênico predominante do bonequeiro que trabalha com
bonecos de luva ou vara, e que, desta maneira, já não precisa mais estar
obrigatoriamente oculto do público. Essa mudança permite a criação, em cena, de
relações entre ator-animador e boneco animado e amplia as possibilidades
narrativas da linguagem.
A narrativa, por sua vez, deixa de ser baseada na dramaturgia tradicional.
Começa-se a utilizar narrativas fragmentadas que já não estão tão preocupadas em
contar linearmente uma história.
Muitas destas transformações podem ser explicadas pelo fato de que não
são apenas artistas bonequeiros que as propõe, mas também e principalmente,
artistas de outras áreas:
A renovação do Teatro de Bonecos é assegurada por uma geração de
artistas, pintores ou escultores que não são bonequeiros profissionais. Eles
introduzem imitações de bonecos nas peças de teatro (Picasso), nos balés
(Léger) ou no cinema (Alexandra Exter). (Jurkowski, 2000, p.11)
Desta forma o Teatro de Bonecos se aproximou de outras artes,
principalmente das artes plásticas, e firmou um diálogo com elas. Criam-se
espetáculos de Teatro de Bonecos que se inspiram ou recriam obras de pintores e
escultores e estes também passam a confeccionar bonecos. Na Espanha o trabalho
do diretor Joan Baixas é um exemplo desse diálogo estabelecido com Joan Miró. No
Brasil as obras, desenhos e pinturas de Cândido Portinari inspiraram durante anos o
trabalho do diretor Manoel Kobachuk. Os bonecos também começam a aparecer
com mais frequência no teatro tradicional de Persona, no cinema e na televisão.
Graças a esta ampliação de visibilidade que o boneco adquire ao dialogar
com outras artes, o Teatro de Bonecos, que antes era predominantemente
considerado como teatro popular ou exclusivamente infantil, é revisto e passa a ser
considerado uma arte plural que abrange diferentes áreas de conhecimento. O
22
Teatro de Bonecos passa a ter um estatuto equivalente ao das outras artes. Ele
continua a ter forte relação com o teatro infantil e popular, porém se expande e a
renovação estética pela qual passa o torna uma arte híbrida e aberta às
possibilidades de misturas e experimentações.
Desta maneira o Teatro de Bonecos contemporâneo se caracteriza por ser
uma arte multidisciplinar e heteróclita, o que a diferencia fundamentalmente do
Teatro de Bonecos tradicional.
Existem ainda reflexões importantes para este estudo, apresentadas por
Henry Jurkowski, à respeito das diferenças entre o Teatro de Bonecos homogêneo e
o Teatro de Bonecos heterogêneo.
O Teatro de Bonecos homogêneo “não é nada mais do que um Teatro de
Bonecos não contaminado por outros meios de expressão” (Jurkowski, 2000, p. 48).
É um teatro que respeita os cânones clássicos de representação e dramaturgia, não
permitindo a mescla de técnicas nem de materiais na manipulação e na confecção
dos bonecos em cena.
Após ler-se esta definição pode-se pensar que este é um Teatro de Bonecos
limitado e em extinção, o que não é verdade. Ainda hoje podemos encontrar
espetáculos de Teatro de Bonecos homogêneos sendo montados com muita
frequência.
O Teatro de Bonecos heterogêneo surge com artistas que decidem romper as
fronteiras entre o Teatro de Bonecos e outras áreas artísticas. Ele tem relação direta
com as transformações sofridas por essa arte. Neste teatro “o boneco deixa de ser o
elemento dominante. Ele não é mais do que um componente entre outros, com o
ator bonequeiro à vista, o ator mascarado, os objetos e os acessórios de todos os
gêneros.” (Idem, p. viii)
A partir destas transformações “inicia-se a ruptura do Teatro de Bonecos com
sua prática tradicional. O primeiro obstáculo a ultrapassar é o das convenções do
Teatro de Bonecos homogêneo.” (Idem, p.56). Dentre estas convenções estão a
ocultação do ator, a não-miscigenação com diferentes técnicas, como a máscara ou
o objeto e a dissimulação de procedimentos frente ao espectador.
A partir do impulso de quebrar com essas convenções, muitos artistas
começam a experimentar novas relações do boneco com do ator-animador. Surgem
experimentações de espetáculos com animação à vista do público, bem como novas
23
relações do ator-animador com o próprio boneco. O ator-animador pode, ao mesmo
tempo em que atua, animar o boneco e travar relações com este.
Outra característica muito encontrada no que Jurkowski classifica como teatro
heterogêneo é o uso de animação de objetos utilitários11. Na maioria dos casos em
que encontramos esses dois elementos, boneco e objeto, a animação do objeto
serve para complementar a narrativa das ações do boneco, seja simbolizando uma
lembrança sua, seja representando algo ou alguém.
Desta forma, fica claro que a função do diretor surge juntamente com as
reivindicações de reconhecimento do Teatro de Bonecos enquanto arte e também
pela necessidade dos artistas de mais apuro estético e técnico. Também fica claro
que a tarefa do diretor varia se ele trabalha com um Teatro de Bonecos no qual
predomina a homogeneidade ou a heterogeneidade.
No Teatro de Bonecos homogêneo o foco de trabalho do diretor está na
direção das ações do boneco. Neste teatro é o boneco o ponto principal e todo o
espetáculo desenvolve-se em função dele. Por esse motivo o diretor precisa se
preocupar, antes de tudo, com a visibilidade e a organicidade de movimentos do
boneco.
No Teatro de Bonecos heterogêneo o boneco deixa de ser o único foco da
encenação, portanto o diretor precisa estar mais atento aos outros elementos que
estão em cena, como a presença do próprio ator-animador. O diretor precisa
trabalhar a relação não apenas do boneco com os outros elementos, mas também
dos outros elementos entre si como, por exemplo, a relação do ator-animador com a
iluminação; ou a relação dos objetos animados com o cenário. Obviamente o diretor
não perde sua função fundamental de guiar esteticamente o espetáculo, nem de
manter sua coerência. Mas, além disso e da direção do boneco, precisa estar atento
aos outros elementos que predominam no Teatro de Bonecos heterogêneo.
Com as reflexões acima apresentadas vale destacar que:
A metamorfose do boneco não está em contradição com a existência de um
Teatro de Bonecos dramático. Mesmo se o boneco, hoje, não ocupa mais
exatamente a mesma posição, ele conserva toda a sua força e manifesta
claramente sua presença. (Idem, p.54).
11
Objetos com funções outras que não teatrais.
24
Esse destaque se justifica pela recorrência de espetáculos de Teatro de
Bonecos heterogêneos nos quais se pode encontrar uma linha narrativa dramática
estruturada. Miguel Vellinho, por exemplo, nas seis montagens que realizou com a
“Cia. Pequod” respeitou uma dramaturgia estruturada com início e fim, mesmo que a
narrativa fosse fragmentada ou não cronológica, como no espetáculo “Filme Noir”.
Figura 1 - Espetáculo Filme Noir, Cia PeQuod.
Fonte: http://www.pequod.com.br.
Miguel também encenou o texto de Gil Vicente, intitulado “O Velho da Horta”,
fazendo adaptações no roteiro mas mantendo a história original. Além disso, na
maioria dos seus espetáculos essa “presença clara” do boneco, tratada por
Jurkowski na citação acima, é visível e o boneco é o protagonista do espetáculo,
mesmo dividindo a cena com outros elementos ou com o ator-animador.
Figura 2 - Espetáculo O Velho da Horta, Cia PeQuod.
Fonte: http://www.pequod.com.br.
25
2 O diretor e as especificidades do Teatro de Bonecos
O Teatro de Bonecos possui técnicas particulares que precisam ser
dominadas por aqueles que decidam trabalhar com a linguagem. Sua diferença
fundamental em relação ao Teatro de Persona está justamente na presença do
boneco como personagem.
Consequentemente, o diretor que trabalha com Teatro de Bonecos, além de
estar a par dos componentes gerais de uma montagem teatral, precisa conhecer as
especificidades que permeiam a animação de bonecos. Essas especificidades
perpassam todos os aspectos da montagem e têm relação direta entre si. Elas
variam, entre outros fatores, de acordo com a técnica de animação utilizada e com a
quantidade de atores-animadores em cena.
Dentre estas particularidades destacam-se a iluminação, que pode ser usada
para evidenciar a presença do boneco e sublimar a presença dos atores que atuam
à vista do público; o espaço da encenação e a cenografia, que devem ser adaptados
para não prejudicar as ações e movimentos dos atores-animadores; e a maquiagem,
que pode ser realizada para valorizar ou tornar as expressões faciais dos atoresanimadores discretas. Todos estes elementos, além de estarem em conformidade
com as necessidades específicas do Teatro de Bonecos, são trabalhados de acordo
com a intenção da obra.
No entanto, dentre todos os aspectos que permeiam uma montagem de
Teatro de Bonecos, analiso dois que merecem muito cuidado e atenção: a
dramaturgia e as propriedades do boneco (técnicas, materiais e formais). É
importante que o diretor tenha um conhecimento refinado a respeito destes dois
pontos, tanto para poder orientar os atores, quanto para poder conceber e/ou
conduzir uma montagem.
A escassa publicação de textos dramáticos escritos especialmente para
Teatro de Bonecos faz com que vários diretores tenham de exercer, também, a
função de dramaturgos. Mesmo sem muito interesse pelo tema, muitos deles
acabam realizando mais esta atividade dentro do espetáculo. Desta forma, o
conhecimento das particularidades da dramaturgia no Teatro de Bonecos se faz
necessário por duas razões visíveis: de um lado por que é preciso conhecer as
26
características de um texto dramático para essa linguagem e, de outro, ao ter que
assumir a tarefa de dramaturgo, as exigências para tal atividade também são
complexas.
2.1 Dramaturgia
O Teatro de Bonecos é essencialmente um teatro de imagens. O boneco,
predominantemente se manifesta através de ações, pois é fundamental ultrapassar
a aparente contradição que existe entre a sua condição de forma inanimada e a
forma animada que precisa atuar dramaticamente diante da plateia. Esta contradição
é logo superada pelo público graças à função poética do espetáculo que cria uma
realidade intraficcional coerente, que extrapola as referências e padrões da
realidade.
É comum encontrar espetáculos que prescindem da palavra. Nestes casos a
música, normalmente, é um elemento presente que colabora na construção da
dramaturgia textual e preenche possíveis lacunas deixadas pela ausência da
palavra. No entanto, existem espetáculos de Teatro de Bonecos, principalmente os
de origem popular como o Mamulengo, nos quais a palavra é essencial, uma vez
que é condutora da ação e determinante do riso na plateia.
Uma das características mais evidentes do Teatro de Bonecos é a negação
do realismo. Essa negação já está presente antes mesmo do enredo. Ela começa na
própria forma de realização do espetáculo: o boneco é um objeto inanimado, há
alguém (que pode ser visto ou não) que o manipula e o espectador está consciente
destas condições. Uma vez que o espectador tem consciência destas negações do
realismo é fundamental a sua pré-disposição para aceitar a ilusão proposta pelo
espetáculo: “Quando um boneco se anima, todos sabem que ele é manipulado, a
vista ou não. Creio que o próprio prazer do espectador vem da dupla visão (duplo
conhecimento) do jogo de ida e volta entre o que é mostrado e o que é oculto.”
(Heggen, 2006, p. 61).
Este jogo entre o espectador e o espetáculo é marcado essencialmente pela
relação entre ator-animador, boneco animado e plateia. Esse tripé é o primeiro
aspecto a ser levado em consideração ao se estudar a dramaturgia no teatro de
27
Bonecos. Nas palavras de Felisberto Costa: “É na mediação do objeto interposto
entre ator e público que reside o fator determinante desta dramaturgia.” (2000, p.
24).
Essa mediação é orientada pelo diretor que muitas vezes exerce o papel do
dramaturgo. Estando consciente deste princípio que rege a animação o diretor, ao
conceber uma cena, pode trabalhar com estas relações e explorar este princípio.
Costa destaca ainda a reconfiguração da cena com a presença do objeto/boneco:
Na relação ator-plateia, a interposição do objeto estabelece uma nova
configuração cênica. O ator passa a condição de ator-manipulador ou
animador. Como signo visual, o objeto torna-se protagonista, estabelecendo
uma relação dinâmica com o ator e a plateia. O dramaturgo deve ter em
conta esse procedimento, uma vez que a prática da animação se estrutura
segundo este princípio. (Idem, p.44)
Historicamente um elemento que marca o Teatro de Bonecos é a adaptação
de textos escritos clássicos, dramáticos ou não (como Hamlet ou Chapeuzinho
Vermelho), sobretudo textos de muito sucesso: “[...] durante muito tempo o teatro de
bonecos serviu-se das obras do teatro de atores, ora adaptando-as ora utilizando-as
como modelo em escala reduzida.” (Idem, p.55). Essas adaptações de textos
clássicos permitem várias alterações na estrutura e no enredo como, por exemplo, o
acréscimo ou a retirada de cenas. Essas alterações podem servir também para
transformar o novo texto em uma paródia do texto clássico, tornando cômico o que
antes era grave.
Desta maneira entende-se que não é fato exclusivamente atual a escassez de
dramaturgia
escrita
especificamente
para
Teatro
de
Bonecos.
Além
de
historicamente essa produção ser rara, essa escassez é explicada pelo fato de que
o dramaturgo que decida escrever para esta linguagem obrigatoriamente ter que
possuir conhecimentos específicos sobre a linguagem. Esta escassez também é
debatida por Luiz André Cherubini:
Não só a popularidade, a tradicional oralidade e o estatuto inferior do Teatro
de Bonecos são responsáveis pela quase inexistência de textos para esta
Arte. Também a inexistência, para o títere, de um padrão de tamanho,
forma, plástica, repertório de gestos, técnica de animação; a não existência
de uma gramática de recursos expressivos do titiritero (talvez mesmo a
impossibilidade de fixá-la), as diferentes relações possíveis entre espetáculo
e público, entre outros fatores, dificulta, se não impede, a construção de
uma dramaturgia isolada de uma encenação. (In: Beltrame, 2008, p.56)
28
Dentre o que Cherubini apontou como “outros fatores” está o fato de o
boneco, nas encenações contemporâneas, precisar mais de movimento do que de
palavra, o que explica o porquê de frequentemente podermos assistir a espetáculos
de Teatro de Animação nos quais a palavra é inexistente.
Além disso, o autor de textos para Teatro de Bonecos precisa conhecer as
limitações e possibilidades de cada técnica de manipulação para poder escrever
ações e movimentos possíveis de serem realizados. Esse conhecimento
especializado torna ainda mais raro encontrar dramaturgos para esta linguagem. No
entendimento de Álvaro Apocalypse:
[...] à maneira do compositor que escreve a música para uma variedade de
instrumentos, aquele que escreve para teatro de bonecos tem que escrever
para uma grande variedade de técnicas e gêneros e isso torna esse raro
ofício mais complexo ainda. (2000, p.78)
Dadas
essas
circunstâncias
compreende-se
que
é
mais
recorrente
encontrarmos textos dramatúrgicos escritos especificamente para Teatro de
Bonecos que surgem no processo de montagem de espetáculos e, posteriormente,
são escritos e registrados. Dramaturgia e encenação, nestes casos, estão
intrinsecamente ligadas: após a criação do espetáculo o grupo registra o texto como
forma de documentá-lo ou torná-lo público e permitir que se realizem outras
montagens. Também é comum que os textos escritos antes do processo de
encenação sofram adaptações na montagem da cena.
Outro elemento importante no texto escrito para Teatro de Bonecos são as
rubricas:
As rubricas têm um papel muito importante nos textos para Teatro de
Bonecos, pois, através delas se obtém a intenção do autor quanto a gestos,
entradas e saídas, postura e caráter da personagem, oferecendo dados
para o cenógrafo, para o construtor de bonecos, para o diretor, para os
atores/manipuladores.
Sendo assim, maior ainda a necessidade de o autor conhecer a técnica
para a qual escreve, não sendo demasiadamente econômico em rubricas,
deixando os demais participantes da encenação perdidos, ou, ao contrário,
jorrando rubricas ao ponto de afogar a criatividade do encenador. (Idem,
p.77).
Através das rubricas o dramaturgo consegue esclarecer as intenções dos
personagens em seu texto, facilitando o entendimento do diretor do que ele deseja
29
que seja realizado. Existem obras escritas, não apenas para bonecos, que são
grandes rubricas12, excluindo a fala e o diálogo verbal.
Felisberto Costa (2000) descreve 12 procedimentos dramatúrgicos relativos
ao Teatro de Animação. Dentre os aspectos estudados pelo autor, dois julgo
necessário discutir com mais atenção neste capítulo: a consciência do personagem
e o recurso narrativo. Ambos são descritos por Costa e seguirei a nomenclatura por
ele proposta. Esse destaque a esses recursos é feito dadas as suas ligações com a
função do diretor que, como já dito, precisa muitas vezes ser também o dramaturgo
do espetáculo, seja adaptando, seja criando textos. Mesmo que esse diretor não
escreva o texto e apenas tenha uma ideia de roteiro que transformará em texto
durante a montagem, esses recursos dramatúrgicos são explorados em cena ao
longo da construção do espetáculo e orientados pelo diretor.
A consciência do personagem, segundo Costa (2000) pode ser separada em
três níveis: a consciência da condição de personagem, os personagens conscientes
de seu estado objetal e os personagens conscientes dos acontecimentos.
A consciência da condição de personagem pode variar de acordo com o nível
de consciência: o personagem pode estar ciente de si e alterna entre a sua
personalidade e a personalidade do personagem que representa; o personagem
pode, também, apresentar uma consciência dupla, ou seja, ele está consciente de
sua condição dramatúrgica da mesma forma que o personagem que ele representa
também está. É como um boneco que representa um rei e este tem consciência de
que é um personagem. (Ibidem)
Nos personagens conscientes de seu estado objetal ocorre que “o
personagem tem consciência de que é um boneco” (Idem, p.32) Ou seja, ele sabe
de sua condição de manipulado e de sua dependência do manipulador. Essa relação
pode gerar cenas muito bonitas e reflexivas, como é o caso do espetáculo “O
Princípio do Espanto” do grupo MorpheusTeatro 12, de São Paulo.
12
Uma das obras teatrais mais famosas da dramaturgia do século XX que utiliza apenas rubricas é
“Ato Sem Palavras”, de Samuel Beckett. Essa obra, inclusive, já foi montada com a utilização de
bonecos pelo grupo “Sobrevento”, de São Paulo.
30
Figura 3 - Espetáculo O princípio do Espanto, Grupo Morpheus Teatro 12.
Fonte: http://lauraveridiana.blogspot.com
Nesta peça, que conta com apenas um ator-animador e um boneco, este
último descobre ao longo do espetáculo sua condição de manipulado e sua
resistência em aceitá-la gera conflitos existenciais muito interessantes.
Outra forma de consciência do personagem acontece quando ele é ciente dos
acontecimentos. Neste caso “o personagem tem o atributo do conhecimento espaçotemporal das situações dramáticas.” (Idem, p.33). Felisberto ilustra esta questão com
o seguinte exemplo: “Em Mistério da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, de
Ghelderode, os personagens apresentam a consciência dos acontecimentos
vindouros. A peça é estruturada em episódios, nos quais a divisões das cenas são
determinadas pelas mutações no local da ação.” (Ibidem)
Em todos esses casos o envolvimento do diretor se dá à medida que, ao
dirigir as cenas, ele orienta o ator para explorar essas possibilidades de consciência
que, em realidade, só podem existir a partir das mãos do ator-animador. Todas
essas consciências se resumem a uma única consciência real: a do ator-animador.
Um espetáculo que utiliza qualquer uma dessas possibilidades sem o devido
tratamento pode se tornar confuso. Cabe ao diretor orientar as cenas a fim de que a
obra seja, em algum nível, inteligível.
Por sua vez, no recurso narrativo descrito por Costa (Idem, p.30), cabe ao
narrador onisciente conduzir a história interrompendo-a ou comentando-a quando
deseja. Esse narrador pode ser tanto o boneco quanto o ator-animador, ou até
mesmo ambos, e ele pode também se relacionar com o público e conduzir os
acontecimentos de acordo com sua vontade. Essa função pode culminar em uma
ilustração do espetáculo: “muitas vezes, a ação teatral é negligenciada em
31
detrimento da simples ilustração dos fatos. Nesse caso, as imagens limitam-se à
corporificação das falas, e não são tomadas pelos seus valores plásticos e
dramáticos próprios.” (Idem, p.30).
É tarefa do diretor evitar essa narratividade conduzindo propostas de
montagem que afastem o ator-animador deste problema. Quando esse recurso é
utilizado, o viés mais simples recai nessa ilustração e muitas vezes é difícil para
quem está em cena perceber até que ponto a narração se tornou ilustração.
Todos estes procedimentos dramatúrgicos, no entanto, quando postos em
cena, só tem fundamento se os atores-animadores conseguem causar na plateia a
impressão de que o boneco é um ser autônomo, um ser verdadeiro. Essa verdade
do Teatro de Bonecos só pode ser construída a partir do momento em que o boneco
se movimenta, olha e vê, age e reage. Falar ou emitir sons também podem fazer
parte da animação, mas essas ações só existem se vinculadas ao movimento do
boneco, que não precisa ser grande nem expansivo, mas precisa acontecer. Sergey
Obraztsov diz:
O destino do boneco é mover-se. É justamente a conduta, o comportamento
físico do boneco que cria se caráter. O texto, se existe, tem também uma
grande importância, mas se as palavras pronunciadas pelo boneco não se
materializam de certa forma em gestos, elas se desligam do boneco e caem
no vazio. (In: Mamulengo nᵒ 03, p.15)
Podehl, com outras palavras, confirma as colocações de Obraztsov:
[...] a dramaturgia do Teatro de Bonecos não repousa unicamente nas
palavras e na ação, mas com frequência e muito simplesmente em
pequenos gestos, no silêncio, no jogo de luz, no abandono ou na
reanimação de tal ou tal “figurinha” chamada boneco, e enfim na
perturbação, na movimentação do espaço cênico. (Podehl, apud Jurkowski,
2000, p.77)
Por esse motivo ao se falar de dramaturgia no Teatro de Bonecos é
necessário estar atento a que tipo de dramaturgia se trata, a dramaturgia escrita
textual, da qual tratei até aqui, ou a dramaturgia do movimento. Nesta linguagem a
dramaturgia está intrinsecamente relacionada com a criação de partitura de
movimentos antes de estar ligada à escrita textual pautada em falas e diálogos.
32
2.1.1 Dramaturgia do movimento: o diretor e a construção da partitura
Dada a importância do movimento para a dramaturgia do Teatro de Bonecos,
o diretor, mesmo que utilize uma dramaturgia textual, precisa estar atento para o que
hoje se denomina dramaturgia do movimento. Esse conceito surge a partir de
pesquisas sobre dança-teatro e trata do estudo de uma dramaturgia composta pelo
corpo em movimento e não por palavras escritas13. A dramaturgia do movimento, no
Teatro de Bonecos, é constituída por movimentos executados pelos atoresanimadores para animar o boneco. Essa dramaturgia é regrada e dialoga com
princípios próprios da técnica de manipulação com qual se trabalha.
De acordo com Caroline Cavalcante:
Cada movimento tem um significado e o ator-animador que trabalha com
essa referência concentra-se não apenas nos movimentos do objeto
animado, mas também nos movimentos de seu próprio corpo. A forma como
se organiza esse conjunto de movimentos reorganiza também o significado
emitido. O mesmo movimento pode ser realizado de distintas maneiras,
produzindo em cada variação diferentes conteúdos de significação do
movimento. É trabalho do ator-animador (em conjunto com o diretor, quando
é o caso) experimentar e descobrir os movimentos que melhor se adaptam
às demandas artísticas e técnicas da personagem. (2008, p.90)
No Teatro de Bonecos os movimentos realizados pelo boneco são pensados
e estudados para que transmitam o significado escolhido pelo ator junto ao diretor.
Durante os ensaios, diretor e atores-animadores escolhem movimentos (que serão
combinados com falas e/ou sons) a serem fixados e repetidos a cada apresentação.
A fixação destes movimentos compõe as partituras de movimentos:
Na dramaturgia específica de um trabalho não verbal, que utiliza objetos ou
bonecos, precisamos criar uma partitura de movimentos que traduza
gestualmente intenções e conteúdos. Essa partitura não é mímica [...] é um
complexo de ações e movimentos corporais estudados, recortados e
elaborados com clareza e síntese do que se quer dizer. (Gabrieli, 2007,
p.234)
Esse “complexo de ações e movimentos corporais” executado pelo atoranimador está relacionado às possibilidades físicas do mesmo, às possibilidades do
material do qual é feito o boneco e aos movimentos que se intenciona que o boneco
realize. Também tem ligação com as escolhas estéticas do espetáculo como, por
13
Para maiores informações ver:
http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Milton%20-%20Juarez.pdf
33
exemplo, se ocultam ou não o animador. O responsável por “recortar e elaborar com
clareza e síntese o que se quer dizer” é o diretor que, com o olhar de fora, pode
analisar e selecionar ou excluir ações. Não afirmo aqui que essa tarefa seja
impossível ao ator-animador, mas o diretor, como já dito, ao olhar à distância vê
mais criticamente a cena e isso permite seu refinamento e apuro técnico.
Segundo Cavalcante, existem três níveis (que a autora chama de esferas) da
partitura: partitura da encenação, partitura do ator-animador e partitura da
personagem. Ela afirma que “a partitura da encenação se dispõe a dar conta do
conjunto dos elementos presentes na encenação, buscando criar e visualizar o todo
como os diversos instrumentos de uma orquestra.” (2008, p.118). Ou seja, essa é a
partitura de responsabilidade imediata do diretor, pois está diretamente ligada à
estética de movimento do boneco e consequentemente à estética do espetáculo.
Além disso, o diretor por estar fora de cena pode observar todos os movimentos de
todos os bonecos e, desta maneira, coordená-los tanto na relação entre eles, quanto
na relação deles com os outros elementos do espetáculo.
A partitura do ator-animador e a partitura do personagem têm ligação direta. A
primeira consiste nos movimentos e intenções do corpo do próprio ator-animador, ao
mesmo tempo em que ele executa a partitura do personagem, que consiste nos
movimentos do boneco. Cada ator-animador possui sua própria partitura de
movimentos, que é pessoal e varia de acordo com suas possibilidades físicas, com o
tipo de boneco e ainda com a parte do boneco da qual é responsável a animar. Por
exemplo, se em um espetáculo três atores-animadores dividem a animação de um
mesmo boneco cada um deles construirá sua própria partitura de movimento e, a
conjunção destas partituras, comporá a partitura de movimento do boneco.
As
partituras
são
construções
realizadas
simultaneamente
com
as
contribuições do ator-animador e do diretor. Ao solicitar que os atores-animadores
realizem um determinado movimento com o boneco e não outro, o diretor escolhe de
que maneira tecerá as sequências e construirá as relações entre o boneco e o
público, bem como as relações entre os atores-animadores que se revezam para
manipular os bonecos. Quando estas relações são bem estruturadas, dão
veracidade ao movimento do boneco, mas se mal articuladas podem desqualificar o
espetáculo.
34
Todas estas partituras auxiliam na criação de um espetáculo orgânico e na
repetição dos movimentos com qualidade, e mantêm as intenções desejadas nas
apresentações. Sobre isso Cavalcante afirma:
A partitura no teatro de animação possibilita a organização de uma série de
dados que emergem no processo criativo de uma obra teatral,
consolidando-se como uma ferramenta de apoio à realização da animação
de um objeto, trabalho que pode muito exigir da precisão e de uma seleção
de signos mais expressivos, numa linguagem onde vale mais a qualidade
do que a quantidade de cenas, elementos e movimentos selecionados.
(2008, p.126)
As partituras são, desta forma, um meio pelo qual atores-animadores e
direção trabalham tanto a precisão de movimentos quanto a qualidade da cena.
Como afirmou Cavalcante, no Teatro de Bonecos o ditado de que “menos vale mais”
é procedente.
Miguel Vellinho, durante a entrevista, enfatizou a importância de se estudar os
movimentos dos bonecos:
[...]no movimento do boneco tudo é pensado. Não tem um movimento do
boneco que a gente não pense, que a gente não veja o melhor desenho
para aquele gesto. Tudo acaba virando uma partitura gestual mesmo. O
boneco por si só não se movimenta. Então toda a construção de
movimentação é algo pensado.
O trabalho do diretor no Teatro de Bonecos está, por todas estas razões,
geralmente mais ligado a uma dramaturgia do movimento do que à uma dramaturgia
textual. Mesmo quando Vellinho dirigiu um texto dramatúrgico clássico, “O Velho da
Horta”, não bastou que ele colocasse o texto em cena, foi preciso também adaptar
este texto à realidade da linguagem, aos requisitos do boneco e aos recursos dos
atores-animadores.
Tanto na dramaturgia de movimento quanto na dramaturgia textual também
irão influenciar o tamanho, a estrutura e o material de que é feito o boneco. Esta
escolha de como será construído o boneco pode ser feita a partir de distintos
motivos, como os requisitos dramatúrgicos ou as possibilidades físicas dos atores,
mas em qualquer caso faz parte da função do diretor mediar essa relação entre a
construção do boneco e a cena.
35
2.2 A construção do boneco e as possibilidades expressivas de seu material
Com as mudanças pelas quais o Teatro de Bonecos atravessou no século
passado, é possível registrar que a construção dos bonecos para determinados
espetáculos descentralizou-se da figura do bonequeiro polivalente. Em muitos
grupos passou-se a dividir esta tarefa entre os integrantes da companhia ou até
mesmo passou-se a contratar um construtor de bonecos. Esse artista, normalmente
relacionado com as artes plásticas ou o artesanato, não necessariamente precisa
ser um ator-animador, porém precisa dominar as técnicas de construção de bonecos
para que ele seja animado.
Diversos grupos ou mesmo artistas solistas trabalham atualmente com
pessoas contratadas para construir os bonecos de seus espetáculos. Estes artistas
são orientados, normalmente pelo diretor, sobre as necessidades específicas de
cada boneco, bem como sobre o material do qual eles precisam ser feitos. Estes
construtores podem ter relação, ou não, com o espetáculo ou o grupo.
Frequentemente são pessoas que já tem alguma relação com Teatro de Bonecos.
Na “Cia PeQuod Teatro de Animação”, por exemplo, Vellinho esclarece que
são pessoas da própria Cia. que confeccionam os bonecos. Elas decidem se irão
trabalhar na confecção e são orientadas por ele. Já na “Cia Trip Teatro de
Animação”14, de Santa Catarina, todos os bonecos são confeccionados por pessoas
que não integram a Cia. Nos espetáculos O Incrível Ladrão de Calcinhas e O
Flautista de Hamelin, por exemplo, os bonecos foram confeccionados por Paulo
Nazareno, bonequeiro que não faz parte do grupo.
14
Para maiores informações ver: http://www.tripteatro.com.br.
36
Figura 4 - Espetáculo O incrível ladrão de calcinhas, Cia Trip Teatro de Animação.
Fonte: http://teatro-de-bonecos.blogspot.com
A confecção dos bonecos é uma etapa muito importante na encenação do
espetáculo, pois a matéria do qual o boneco é feito vai definir suas possibilidades de
articulação e movimentação:
Obviamente, o desenho plástico no Teatro de Bonecos não é tudo, mas
pode influenciar favoravelmente na possível claridade, organicidade,
simplicidade e originalidade dos distintos componentes que formam esta
15
arte singular e requintada. (Curci, 2007, p.50, tradução nossa)
Além das questões apontadas por Curci é importante frisar que o material
escolhido, as dimensões e o peso do boneco também devem ser pensados de
acordo com a proposta do espetáculo. Destas escolhas dependerão a estética final
da obra e a técnica de manipulação que terá de ser usada pelo ator-animador. Se os
bonecos escolhidos são de fios, por exemplo, tanto o construtor do boneco quanto o
ator-animador terão que dominar esta técnica, o primeiro para saber como construir
as partes do boneco, as articulações, a cruz de manipulação e suas ligações16, e o
segundo para saber como manipular este boneco, que exige uma técnica específica.
15
“Obviamente, el diseño plástico em el teatro de títeres no lo es todo, pero puede influir
favorablemente en la posible claridad, organicidad, sencillez y originalidad de los distintos
componentes que conforman esta singular y exquisita forma de arte.”
16
A cruz de manipulação é o objeto no qual são ligados os fios com os quais o marionetista manipula
a marionete. Para maiores esclarecimentos a respeito de diferentes cruzes de manipulação ver:
Giramundo, 2005.
37
Da mesma maneira, se o espetáculo for construído com bonecos de
manipulação direta o construtor precisa estar consciente das articulações
necessárias para que o boneco seja manipulado, das posições nas quais os atoresanimadores pegarão no boneco e até mesmo de quantos atores-animadores
animarão o boneco. Já o ator-animador precisa estar consciente das limitações do
boneco, precisa saber de seu peso e qual a forma adequada de movê-lo e, para
isso, o domínio técnico se distingue da animação de marionetes ou bonecos de fios.
Essa relação entre construção, manipulação e proposta estética do trabalho é
mediada pelo diretor que está consciente de todos os níveis da realização do
espetáculo. Desta maneira o diretor não precisa confeccionar e nem conceber os
bonecos, mas precisa orientar o construtor sobre as necessidades e especificidades
que o boneco a ser criado deve contemplar.
Sobre a importância da presença do diretor na orientação da construção dos
bonecos Vellinho relata o que se passou em seu último trabalho denominado
Lampião:
Neste último espetáculo, no Lampião, a gente teve muito problema, porque
justamente foi um espetáculo no qual eu me ausentei completamente da
confecção. E foi complicado, porque teve questões que não ficaram
totalmente concluídas e que talvez a gente desenvolva em um outro
momento. Foi onde eu realmente senti que eu não posso me afastar tanto
assim da confecção, acho que foi um erro meu [...] É que os procedimentos
dentro da confecção foram muito confusos, mas deu tudo certo no fim. Mas
eu sinto real necessidade de estar junto. Não dá, não é uma direção fria,
acho que tem que estar junto ali também, porque são os meus atores
também. Os bonecos são os meus atores também, então o diretor tem que
estar junto também dos bonecos. Teve um problema sério ali de condução
que quase desandou uma coisa que ia ser trágico. Mas não foi. Deu tudo
certo no final.
Portanto, Miguel afirma, por empirismo, que a presença do diretor na
coordenação e supervisão da confecção dos bonecos é ponto chave no seu
trabalho, pois desta construção dependerá muitas resultados do espetáculo.
Semelhantemente ao que ocorre na “Cia PeQuod”, na “Cia Articularte de
Teatro de Bonecos”, Dario explicou que quem constrói todos os bonecos é Surley,
sua esposa e também atriz-animadora do grupo. Dario dá indicações do que deseja
e ela constrói, muitas vezes acrescentando algumas ideias próprias.
Outro aspecto expressivo ao qual o diretor precisa ater-se durante a
confecção, além do material a ser utilizado, do peso e do tamanho, é a
expressividade do rosto do boneco. A maneira como seus olhos, bocas,
38
sobrancelhas e outros elementos da face serão moldados definirá muito da
personalidade deste boneco. A opção pela ausência de algum dos elementos, como
o nariz e a boca, também vai definir seu caráter.
Também não há como desvincular a expressividade do boneco da
expressividade da material da qual é feito. Um boneco construído com materiais
puídos ou grosseiros causará distinta impressão no público do que um boneco
construído com materiais que permitam que ele tenha um rosto liso e harmônico. Da
mesma maneira, um boneco muito pesado ou com poucas articulações terá
diferentes possibilidades em cena do que outro leve e com várias articulações.
O diretor de Teatro de Bonecos, desta maneira, precisa saber articular com
coerência todas as características das quais são feitas os bonecos. Essa relação
precisa ser pensada considerando todos os outros aspectos da montagem. Um
diretor que não conheça diferentes maneiras de construção de bonecos e as
possibilidades expressivas de distintos materiais poderá apresentar limitações e
dificuldades técnicas em seu trabalho. Seu conhecimento precisa abranger estes
aspectos, independentemente de sua habilidade para construir o boneco. O diretor,
como em todas as outras fases da montagem, antes de ser um executor, é alguém
que domina a fundo a linguagem com a qual trabalha e tem conhecimento e
sensibilidade suficientes para saber pelo que optar.
As possibilidades do material e da composição física do boneco também
podem ser exploradas pela dramaturgia textual. Como afirma Costa: “muito utilizado
pelos autores-bonequeiros, o recurso às propriedades corporais do boneco permite
qualificá-lo e especificá-lo comparando-o ao corpo do ator.” (2000, p.34). Ou seja, o
autor de Teatro de Bonecos pode utilizar-se de possibilidades do boneco, como
desmembrar-se ou voar, para ajudar em várias intenções de comicidade ou em
relações metafóricas.
A direção, ao conhecer as especificidades com as quais o Teatro de Bonecos
precisa lidar, conduz o processo de montagem articulando todos os âmbitos que o
compõe. Desta maneira, o conhecimento abrangente do diretor a respeito da
dramaturgia e das características expressivas do material permite a ele pesquisar
novas estruturas de cena, bem como conduzir um trabalho que dialogue com
diferentes possibilidades estéticas.
39
3 Técnica e Imaginação: A direção do espetáculo
Mesmo com o crescente desenvolvimento de estudos sobre Teatro de
Bonecos, a falta de registro e teoria sobre processos de encenação e sobre o
trabalho do diretor teatral ainda é uma realidade no Brasil. Na revisão bibliográfica
feita para esta pesquisa não foram encontrados estudos, artigos, ou mesmo
apontamentos dedicados à direção de espetáculos de Teatro de Bonecos. As
reflexões sobre este tema, escassas, foram encontradas diluídas em diferentes
artigos que abordam temas diversos. No entanto, na etapa de observação de
espetáculos e realização de entrevistas percebi que existem diretores que, na
prática, organizam seus procedimentos e sistematizam seus trabalhos de modo
coerente com suas escolhas estéticas e poéticas.
Pude perceber na entrevista tanto de Miguel Vellinho quanto de Dario Uzam
que ambos possuem certa constância na condução dos seus espetáculos. Suas
estruturas de montagem e suas escolhas estéticas são fruto de anos de trabalho que
permitiram o desenvolvimento de técnicas e processos, os quais eles julgaram
adequados.
A seguir apresento reflexões oriundas da bibliografia estudada e da
observação das práticas dos dois diretores de Teatro de Bonecos entrevistados,
evidenciando especificidades e características do trabalho do diretor.
Para discutir essas características é pertinente refletir sobre o que se
caracteriza como fundamental no trabalho do diretor de Teatro de Bonecos, e sobre
as eventuais diferenças e semelhanças com a função do diretor de Teatro de
Persona. Sobre o assunto, Michael Meschke, diretor do Marionettentern, de
Estocolmo, discute:
A direção do teatro de bonecos é diferente da direção do teatro de atores?
O diretor de teatro de bonecos tem, naturalmente, que definir sua forma de
arte e estar consciente das propriedades específicas do teatro de bonecos,
o que exige profundos conhecimentos de diferentes técnicas de
representação. Para interpretar os movimentos é preciso saber o que se
pode realizar com a técnica escolhida e, também, como se realiza. O
conhecimento técnico é parte do abc do diretor de teatro de bonecos. (1988,
17
p.73, grifos do autor, tradução nossa)
17
“¿Es diferente la dirección del teatro de títeres de la de actores? El director de teatro de títeres
tiene, naturalmente, que definir su forma de arte y ser consciente de las propiedades especificas del
teatro de títeres, lo que exige profundos conocimientos de diferentes técnicas de representación. Para
40
O autor esclarece que o diretor de Teatro de Bonecos não pode prescindir
dos conhecimentos específicos da linguagem. Ele precisa aprender suas técnicas a
fim da saber o que se pode realizar com cada uma e como utilizá-las. Por mais que
ele não esteja em cena, este conhecimento técnico é necessário para que ele dirija
quem está em cena. Sem estes conhecimentos, fica difícil para o diretor conceber a
cena a ser realizada.
Meschke continua suas reflexões discorrendo:
Talvez se confunda a profusão de ideias com a boa direção. Eu não creio
que as boas ideias sejam o mesmo que a boa direção. Ao contrário os
efeitos técnicos podem camuflar uma falta de interpretação mais profunda.
18
Nisto a direção de bonecos não se distingue da de atores. (Ibidem)
Neste trecho o autor esclarece que a direção do Teatro de Bonecos também
divide com a direção do Teatro de Persona alguns procedimentos. Para ele, em
ambas, o excesso de técnicas ou de ideias não são o que definem uma boa direção.
Um boneco que possua diversos mecanismos não necessariamente será um boneco
funcional, da mesma forma que um espetáculo cheio de recursos de iluminação ou
cenográficos não necessariamente será um bom espetáculo.
Meschke afirma na sequencia do seu estudo:
Todavia, a riqueza de invenção, a fantasia e a imaginação, o rico fluxo das
ideias parecem qualidades particularmente úteis para o diretor de bonecos,
19
porque sem elas é difícil dar vida a matéria morta. (Ibidem)
Desta maneira ele reafirma que para o diretor de Teatro de Bonecos a técnica
é importante, mas não é apenas o seu domínio que garante uma boa direção. Além
da técnica este profissional deve ser criativo e ter capacidade de invenção e
imaginação, pois ele dirigirá cenas nas quais será atribuída vida à matéria
interpretar los movimientos hay que saber que puede realizarse con la técnica elegida y, también,
como se realiza. El conocimiento técnico forma parte del abc del director de teatro de títeres.”
18
“Tal vez se confunde la profusión de ideas con la buena dirección. Yo no creo que las buenas ideas
sean lo mismo que la buena dirección. Al contrario los efectos técnicos pueden camuflar una falta de
interpretación más profunda. En esto, la dirección de títeres no se distingue de la de actores.”
19
“No obstante, la riqueza de invención, la fantasía y la imaginación, el rico fluido de las ideas
parecen cualidades particularmente útiles para el director de marionetas, porque sin ellos es difícil
dar vida a la materia muerta.”
41
inanimada, e a demonstração das possibilidades de vida no boneco pode se dar de
diferentes formas e ir além das possibilidades apresentadas pelo corpo humano.
Por isso, o diretor precisa conhecer os princípios da animação de bonecos
pois sem esses conhecimentos terá dificuldades para guiar os atores na realização
de seus trabalhos. Sem tais conhecimentos ele corre o risco de cometer erros
primários sobre a ação dos bonecos e as especificidades da dramaturgia,
distanciando-se das características dessa linguagem. É fundamental que ele possua
domínio desses conhecimentos para conceber adequadamente um espetáculo
dentro desta linguagem artística e conduzir os atores-animadores em cena, bem
como toda a equipe envolvida no projeto.
3.1 Ator-animador também é ator
Considerando as especificidades inerentes ao trabalho do diretor de Teatro de
Bonecos e a importância de ele conhecer os códigos e registros de seu trabalho,
não é de se surpreender que o ator que decida a trabalhar com esta linguagem
também deva se apropriar de conhecimentos específicos.
São raras, no Brasil, as instituições de ensino técnico ou superior que
propiciem formação profissional para atores-animadores20. Essas escolas são
destinadas predominantemente à formação de artistas de Teatro de Persona, sendo
que em algumas delas há poucas disciplinas que abordam conteúdos sobre Teatro
de Bonecos. Considerando que a maior parte dos cursos de teatro objetiva formar
atores, diretores e/ou professores, a formação em Teatro de Bonecos (assim como
em outras linguagens teatrais) não é priorizada na carga horária dos cursos e por
isso não é possível que a formação ali oferecida forme profissionais dessa área.
No Brasil não existem cursos superiores destinados à formação profissional
de atores-animadores. Essa formação se dá de distintas maneiras: por meio do
empirismo; por meio da observação e do contato com artistas que há tempos
trabalham na área; por meio de oficinas e workshops de curta duração; pela troca de
experiências em festivais de privilegiem essa linguagem.
20
Para maior esclarecimento sobre a formação profissional do ator-animador no Brasil ver: MóinMóin nº 6.
42
Também acontece, como é o caso de alguns atores-animadores da “Cia
Articularte”, de os atores terem o primeiro contato com a manipulação de bonecos
ao ingressarem na companhia. Eles, normalmente, já são atores e aprendem o ofício
de atores-animadores na prática, seja montando espetáculos, seja substituindo um
ator-animador em espetáculos em cartaz. Dario Uzam relata que a seleção dos
atores da sua companhia é feita por uma entrevista e seu treinamento se dá durante
os ensaios, em cena. Assim, segundo Uzam, a “Cia Articularte” já possuiu uma
maneira própria de trabalhar: “Nós pegamos um traquejo. Começamos [a ensinar a
manipulação] pelos pés. Historicamente começa-se pelos pés.”21
Para Dario a formação de um ator de Teatro de Persona pode ser
complementada e enriquecida se ele aprende as técnicas de manipulação. O
mesmo afirma o diretor francês Dominique Houdart em recente artigo publicado no
Brasil:
Seria útil, pois, dar a todos os jovens atores em formação um conhecimento
das bases da utilização do objeto, elementos referentes à energia, à
transmissão, à dissociação, à coordenação, à distanciação – outros tantos
elementos básicos para o manipulador, mas úteis – e como! – para a
formação do ator, ainda que sem marionete. (2007, p.27).
Nesta citação Houdart trata dos “elementos básicos” para o manipulador,
elementos estes que podem ser compreendidos como uma das diferenças entre o
trabalho do ator e do ator-animador. De maneira semelhante, Beltrame afirma:
O conhecimento necessário ao trabalho de ator ainda que seja
indispensável para sua atuação, não é suficiente. Ser ator, não significa,
necessariamente, ser ator-animador. A animação do objeto, incumbência
principal do ator-animador exige domínio de técnicas e saberes que não são
necessariamente do conhecimento do ator. Ao mesmo tempo, é preciso
salientar que se o ator-animador se confina nas especificidades desta
linguagem, dissociando-se do trabalho do ator, tem uma atuação incompleta
e inadequada. Ou seja, o ator-animador não pode prescindir dos
conhecimentos que envolvem a profissão de ator. (2008, p. 38-39).
Ou seja, por mais que o ator-animador precise ter domínio de técnicas
específicas de manipulação, ele também precisa ser ator, precisa dominar as
21
Quando Dario especifica que a manipulação historicamente começa pelos pés refere-se
provavelmente ao Bunraku, o Teatro de Bonecos Tradicional Japonês.. Para maiores informações
sobre essa linguagem ver nota nº 6.
43
técnicas da profissão e somar a elas os conhecimentos específicos do Teatro de
Bonecos.
Para Rafael Curci, essa diferença entre ator e ator-animador acontece ainda
antes da técnica, quando afirma:
A diferença fundamental entre um ator e um ator-animador está na forma
expressiva em que cada um elege para comunicar-se, e mesmo que
pareçam compatíveis no terreno das artes dramáticas, não o são nem em
princípio nem em essência.
O instrumento expressivo do ator é seu próprio corpo, seus movimentos e
motivações, sua gestualidade, enquanto o ator-animador faz isso através
22
de um objeto. (2002, p.23, grifos do autor, tradução nossa)
No entanto, é importante frisar que essa escolha feita pelo ator-animador de
expressar-se através de um objeto só é possível pelo aprendizado das técnicas.
Porém, o trabalho do ator-animador vai além do treino da manipulação e da
perfeição na execução dos movimentos do boneco. Ele também precisa criar
sintonia entre seus movimentos e os movimentos do boneco que anima,
aproveitando as possibilidades expressivas do boneco para conferir-lhe vida. Como
afirma Margareta Niculesco: “a técnica não é tudo... se não há imaginação, se não
existem sonhos artísticos, é somente técnica.” (apud Beltrame, 2008, p.27).
O ator-animador, como já diz o nome, além de ser ator precisa ir mais
adiante: ser animador. A soma destes conhecimentos lhe caracteriza como um
profissional que além de expressar-se com seu próprio corpo se expressa através do
objeto/boneco. Em ambos os casos a expressividade é alcançada com algo que vai
além do domínio da técnica: o sonho artístico.
3.2 Ator-animador também trabalha com princípios
É necessário frisar que o trabalho do ator-animador se distingue do trabalho
do ator, primeiramente, pela questão mais imediata: o ator-animador expressa-se
artisticamente através do boneco. A personagem não é apresentada no corpo do
22
“La diferencia fundamental entre un actor y un titiritero radica en la forma expresiva que elige cada
uno para comunicarse, y más allá que parezcan compatibles en el terreno del arte dramático, no lo
son em principio ni en esencia.
El instrumento expresivo del actor es su propio cuerpo, sus movimientos y motivaciones, su
gestualidad, mientras que el titiritero lo hace a través de un objeto.”
44
ator, a personagem é o boneco e a relação com a plateia é mediada pelo boneco.
Rafael Curci apresenta de forma clara essa distinção entre o trabalho do atoranimador e o trabalho do ator:
[...] o ator-animador deve atuar com um personagem que em momento
nenhum pode ser confundido fisicamente com ele, que está fora dele, e que
lhe é estranho por sua própria natureza e o qual, não obstante, deve fazer
viver cenicamente outorgando movimento e voz. (2007, p.97, tradução
nossa).
O autor aponta um problema recorrente no trabalho do ator-animador
principiante: atuar de modo que sua presença se evidencia tanto a ponto de diluir a
presença do boneco.
Se esta não é a intenção da cena, a persistência desta
situação denota desconhecimento ou negligência do diretor, uma vez que também é
de sua responsabilidade resolver o que se torna um problema para o espetáculo.
Como resolução, Curci afirma na sequência:
Ele consegue isso mediante um método de atuação peculiar que se
caracteriza não só por um estranhamento físico total, mas também por um
desdobramento em sua atuação, a qual, todavia, deve se manifestar no
23
personagem como uma ação dramática única, integrada. (Ibidem)
A superação do problema levantado por Curci é tarefa do ator-animador, no
entanto o diretor tem função importante nessa etapa. Cabe a ele evidenciar em que
momentos o ator-animador já atua de modo adequado, quando apresenta limitações
e como proceder para que as dificuldades sejam suplantadas. Quando o diretor
desconhece os princípios de trabalho que regem a prática do ator-animador ele
deixa de cumprir uma função importante na formação deste artista.
Existem alguns princípios de manipulação com os quais o ator-animador e o
diretor trabalham na criação de um espetáculo. Estes princípios podem variar de
nomes e em número, de acordo com o autor com o qual se trabalha. No entanto, há,
na maioria dos casos, apesar das distintas terminologias e definições, uma
coincidência destes princípios entre os teóricos que discutem o tema.
23
“[…] el titiritero debe actuar con un personaje que en ningún momento puede confundirse
físicamente con él, que está fuera de él, que le es extraño por su propia naturaleza y al que, sin
embargo, debe hacer vivir escénicamente otorgándole movimiento y voz. Esto lo consigue mediante
un método de actuación peculiar que se caracteriza no solo por un total extrañamiento físico, sino
también por un desdoblamiento em su actuación la cual, no obstante, debe manifestarse en el
personaje como una acción dramática unitaria, integrada.”
45
Beltrame (2008) aponta 16 princípios de linguagem para o Teatro de
Animação, por ele denominados como: economia de meios, foco, o olhar como
indicador da ação, triangulação, partitura de gestos e ações, subtexto, o eixo do
boneco e sua manutenção, definir e manter o nível, ponto fixo, relação frontal,
movimento é frase, a respiração do boneco, a “neutralidade” do ator-titeriteiro em
cena, dissociação, apresentação do boneco e concentração.
Balardim (2004) define 14 princípios: efeito retórico, técnica do ator, partitura
corporal, neutralidade, dissociação de movimentos, dissimulação de manipulação,
contraste e intensidade, hipertactibilidade, controle atencional, desvio de foco e de
atenção, técnica indutiva, decupagem de movimentos, eixo interno e externo e
reprodução das funções biológicas. O autor lembra que os princípios não devem ser
vistos como independentes, pois estão interligados e acontecem simultaneamente
na manipulação.
Por sua vez, Curci (2002) divide os princípios em duas vertentes: ações
psicofísicas do ator-animador durante a interpretação24 e ações físicas objetivadas
para o objeto25 (traduções nossas). Esta segunda engloba técnicas que se
assemelham aos princípios colocados por Beltrame e Balardim: nível (altura),
verticalidade, controle do olhar, sincronização voz-movimento, representação clara
de intenções/vontades/reações/etc, relação palavra-gesto, interação com outros
personagens, ponto fixo e deslocamento dentro do plano da ficção, exposiçãovínculos-situações-conflitos e desenlace mediante a interação do personagem no
espetáculo (tradução nossa).26
Independentemente das nomenclaturas, os princípios de manipulação são os
meios pelos quais o atores-animadores animam o boneco e também pelos quais o
diretor conduz o trabalho destes atores. É de responsabilidade do diretor, que deve
olhar de modo crítico e distanciado a obra que encena, cuidar para que estes
princípios sejam usados de maneira adequada para tornar a personagem boneco
crível diante do público. Para realizar esta ‘supervisão’ o diretor precisa conhecer
24
Acciones psicofísicas del titiritero durante el acto interpretativo.
Acciones físicas objetivadas hacia el objeto.
26
Nivel (altura), verticalidad, control de la mirada, sincronización voz-movimiento, representación
clara de intenciones/voluntades/reacciones,etc., relación palabra-gesto, interacción con otros
personajes, punto fijo y desplazamiento dentro del plano de la ficción, planteo-vínculos-situacionesconflictos y desenlace mediante la interacción del personaje en la obra.
25
46
estes princípios, pois torna-se mais difícil orientar um ator sem saber indicar o que
se quer que ele faça.
Dentre os princípios discutidos pelos autores estudados, a fim de restringir o
foco da pesquisa, seleciono dois para serem aqui analisados sob o ponto de vista do
diretor. A escolha dos princípios neutralidade e dissociação se dá porque os dois
diretores entrevistados nesta pesquisa os apresentam como fundamentais nos seus
trabalhos como encenadores.
3.2.1 A neutralidade
A neutralidade27, segundo Beltrame, é “a predisposição do ator-animador para
estar à serviço da forma animada, tornar-se ‘invisível’ em cena, atenuar sua
presença para evidenciar as ações do boneco.” (2008, p.36). Ele ainda afirma que
quando os gestos do ator-animador não são discretos, ou quando ele exagera em
caretas ou movimentos expressivos “cria-se um duplo foco que desvaloriza a cena.”
(Ibidem). O domínio do próprio corpo é uma exigência que o ator-animador
compartilha com o ator do Teatro de Persona. Ambos necessitam de uma
consciência corporal aguçada para animar ou representar, pois qualquer
desatenção, movimento improvisado ou fora de controle poderá influenciar tanto na
movimentação do boneco quanto na sua presença em cena.
Nas palavras de Balardim:
A verdadeira neutralidade implica “estar neutro”, e estar neutro é uma
espécie de não-ser. Estar neutro é esvaziar-se de qualquer coisa que possa
ser ao mesmo tempo que o objeto é. Pois, o objeto sendo, é ele que
assumirá toda a importância no momento em que é o foco da atenção. Estar
neutro neste momento é concordar que nada mais importa além daquele
objeto naquele momento. Neutralizar-se significa anular-se, eliminar
qualquer resquício da própria personalidade e do próprio corpo, para deixar
que o objeto-personagem imponha sua vontade sobre o corpo vencido do
ator-manipulador. (2004, p.89, grifos do autor).
O autor esclarece que a função primordial da neutralidade é permitir que o
foco da cena esteja no objeto/boneco. O ator-animador, para isso, deve se deixar
27
A discussão sobre a utilização termo ‘neutralidade’ é ampla e por vezes contraditória entre os
autores. Nesta pesquisa opto pelas definições de Beltrame e Balardim.
47
levar pelo objeto/boneco, respeitando os movimentos que este impõe. O autor afirma
ainda que:
Não é nenhuma alusão esotérica sobre uma “força do além” que irá
apossar-se do corpo humano. Nada disso. Ao contrário, é um ato
consciente de indução psíquica. Uma espécie de auto-hipnose, um
momento em que nosso racional permite que nos levemos pela abstração
do real, incorporando o jogo, a brincadeira e vivenciando, assim, um
momento onde renasça em nós a sublime inocência infante. (Ibidem)
Balardim também chama a atenção para o fato de que a neutralidade pode
ocorrer de distintas maneiras, com o manipulador oculto ao público ou com o
manipulador a vista do público28. Não discutirei aqui as variadas possibilidades de
aplicação da neutralidade, mas sim a relação do diretor com esse princípio. Em
todos os casos nos quais o ator-animador utiliza esse princípio, seja ocultando-se
através de luz e/ou vestimenta, seja estando completamente visível, seja
misturando-se ao cenário, ou atuando junto com o boneco, o trabalho do diretor
consiste em orientar o ator para que atue adequadamente no espetáculo.
Um ator-animador em cena pode acreditar estar neutro, com o rosto e corpo
relaxados, tentando ao máximo não expressar seus sentimentos e emoções
pessoais. No entanto, é comum vê-lo demonstrar em suas próprias feições corporais
e faciais os sentimentos que intenciona fazer transparecer no boneco. Dependendo
de como o ator-animador controla suas expressões, movimentos e até mesmo
respiração, a plateia dificilmente deixará de notá-lo e pode criar-se uma duplicidade
de foco de atenção em cena e, consequentemente, uma diluição na presença do
boneco. Neste caso o trabalho educativo do diretor é fundamental. Cabe a ele ajudar
o ator-animador a contornar a situação. É papel do diretor estar atento e indicar aos
atores-animadores os momentos nos quais suas emoções se sobressaem às do
boneco indesejavelmente.
A neutralidade como recurso na interpretação e trabalho do ator-animador se
torna ainda mais complexa quando há desdobramentos na interpretação. Esses
desdobramentos podem gerar diferentes situações de neutralidade do atoranimador.
28
Para maiores informações sobre as distintas possibilidades de neutralidade do ator em cena ver o
capítulo “A neutralidade” (p.67 – 86) In: Cavalcante, 2008.
48
Na primeira situação o ator-animador pode estar em cena, mas não fazer
parte do enredo, como é o caso do espetáculo Filme Noir, da “Cia PeQuod”. Nesta
obra o público vê claramente os atores-animadores que manipulam os bonecos. Não
há, por parte da direção, a intenção de escondê-los. No entanto eles não fazem
parte do enredo, não dialogam com os bonecos nem contam a respeito da história.
Sua presença em cena é visível, mas sua intenção é a neutralidade.
A segunda situação consiste no ator-animador que está em cena e alterna o
personagem da história entre ele mesmo e o boneco, às vezes fazendo parte do
enredo e às vezes não. No espetáculo Peer Gynt, também da “Cia Pequod”,
personagens ora são representados pelos bonecos, ora são representados pelos
próprios atores num jogo de troca de foco.
Figuras 5 e 6 - Espetáculo Peer Gynt, Cia PeQuod.
Fonte: PEER, 2006. (Imagem extraída de vídeo)
Uma terceira situação na qual o ator-animador precisa trabalhar sua presença
e também a neutralidade consiste no ator-animador que está em cena, faz parte do
enredo, mas seu personagem é distinto do personagem do boneco. Além de
manipular, o ator-animador atua representando uma segunda personagem distinta
da personagem do boneco.
Ainda uma quarta situação pode ser facilmente encontrada. O ator-animador
está em cena, manipula o boneco e representa ele mesmo (o ator) em cena, como
parte do enredo. Ou seja, ele relaciona sua própria presença enquanto ator ao
mesmo tempo que anima o boneco. Esta situação pode ser encontrada, por
exemplo, no espetáculo da “Cia Articularte” intitulado Portinari Pé de Mulato. Logo
no início boneca a ator-animador conversam, travando uma breve relação que inicia
o espetáculo de maneira divertida e alegre.
49
Figura 7 - Espetáculo Portinari Pé de Mulato, Cia Articularte.
Fonte: MULATO, 2002. (Imagem extraída de vídeo)
Essas situações de jogo entre neutralidade e presença do ator podem variar
de muitas maneiras. A sutileza das passagens entre essas situações que mudam o
foco exclusivamente do boneco e o dividem com o ator são ajustadas pelo diretor
que orienta o ator-animador a diminuir ou ampliar seus gestos e expressões, de
acordo com as necessidades da cena.
Sobre a neutralidade, Dario Uzam relata que quando ao estrear o espetáculo
João Cabeça de Feijão, o grupo recebeu críticas negativas que apontavam uma
presença excessiva dos atores em cena:
E realmente estava. Como a gente tinha estreado recentemente, estávamos
todos muito felizes. Então, depois, a gente ‘baixou um pouco a bola’,
colocou para os atores que não dava para ficar fazendo careta. É uma
sintonia que o ator tem que ter para poder emprestar a voz para o boneco.
[...] O ator estava meio misturado em cena.
Após ouvir as críticas, Dario, enquanto diretor, orientou os atores a evitarem
caretas e movimentos excessivos afim de não desviar o foco da atenção dos
bonecos. Desta maneira ele pode separar com clareza, durante o espetáculo, os
momentos em que o foco deveria estar apenas nos bonecos e os momentos em que
ele era compartilhado com os atores-animadores. Segundo Dario, ao assistirmos o
espetáculo João Cabeça de Feijão atualmente, podemos notar que esta divisão está
bem clara. Foi a visão à distância, de fora da cena, que lhe possibilitou ponderar e
equilibrar os momentos nos quais os atores-animadores deveriam trabalhar com a
neutralidade e suas diferentes maneiras.
50
Figura 8 - Espetáculo João Cabeça de Feijão, Cia Articularte.
Fonte: http://www.enteatro.com.br/
Um dos problemas recorrentes em espetáculos cuja manipulação se dá à
vista do público é o que se poderia denominar de afetação do ator-animador. Esse
problema se manifesta de modo visível quando ocorre uma espécie de disputa para
o ator se tornar mais visível que o boneco em cena. O ator-animador concorre com o
boneco para ser o centro das atenções. A impressão é de que ele não suporta a
ideia de estar a serviço do boneco, seu ego fala mais alto e exige visibilidade à sua
presença. Isso pode ocorrer tanto por vaidade dos próprios atores quanto por
esgotamento de recursos da linguagem ou presença dos bonecos, ou até mesmo na
própria dramaturgia. Nestes casos o diretor precisa buscar uma solução que resolva
o espetáculo esteticamente.
O diretor Miguel Vellinho afirmou que a disputa pela presença em cena
desencadeada pelo ator-animador já ocorreu com seu elenco. Recentemente, na
montagem de Peer Gynt o problema foi vivenciado pelo grupo:
As pessoas estavam querendo fazer outra coisa. Teve muito material aí,
real, visível, tátil. Porque era um grupo de atores que queria conquistar um
pouco mais de espaço da cena. Não sei se por vaidade, não sei se por
enfado de achar que não estava mais acrescentando. E a gente viu que a
única possibilidade de continuar juntos era dar essa ‘virada de mesa’. Para
mim foi uma mexida violenta, porque eu vinha com uma concepção e tive
que mudar. [...] Mas era uma necessidade real daquele grupo, de atuar um
pouco mais à frente. Então eu acatei a vontade da maioria. Pedi uma
semana para pensar em casa, e então recomeçamos.
Neste espetáculo é visível, se comparado aos outros espetáculos da “Cia
PeQuod”, a predominância do ator em cena. Miguel explicou que essa mudança
teve relação com o desejo dos atores de estarem mais em cena, menos
51
“escondidos” atrás do boneco. É interessante reparar que Vellinho, enquanto diretor,
optou por reavaliar o projeto para satisfazer a necessidade dos atores.
Ainda sobre este espetáculo Vellinho afirma:
Precisamos de um trabalho muito rigoroso de foco, de onde está o boneco e
onde está o ator, agora é o boneco, agora é o ator. De uma consciência
corporal muito violenta, de uma noção de neutralidade cada vez maior.
Também porque além de tudo a gente resolveu fazer tudo em um espaço
em branco. Então o cenário é todo branco, o fundo branco, o piso branco,
que reflete. Os atores todos vestidos de branco. Não um branco absoluto,
algumas coisa em creme. Figuras muito escuras, bonecos muito escuros e o
fundo todo claro. Então tudo revelado, tudo à mostra. Nenhum resquício de
ilusão. Nenhuma vontade de enganar o público, mas mostrar este jogo de é
boneco ou não é, agora é ator, agora super dimensiona o boneco, agora é
ator. E é o tempo inteiro isso. A gente foi construindo a partir disso, e essas
foram as grandes exigências de direção dessa montagem. Ficar atento
à neutralidade, em relação a essa divisão do ator. (grifo nosso)
É importante observar que o desejo de estar mais visível em cena
apresentado pelo elenco exigiu do diretor a revisão do projeto da montagem de Peer
Gynt. O seu papel de diretor também foi redefinido para estar mais atento a
questões como a neutralidade e ao jogo de foco entre atores-animadores e boneco.
Certamente foi um grande desafio para a direção e estar fora de cena ajudou para
que ele orientasse os atores nesta nova construção do espetáculo.
Já no espetáculo dirigido Dario, João Cabeça de Feijão, a presença dos
atores em cena se deu mais como acaso indesejável. A presença supervalorizada
dos atores foi apontada por colegas de profissão e esse problema foi solucionado na
prática com orientações da direção. Tanto em Peer Gynt, quanto em João Cabeça
de Feijão, a atuação dos diretores assumindo suas funções técnicas e artísticas
foram fundamentais para manter a coerência estética do trabalho. Ao assumirem a
responsabilidade de dirigir espetáculos, deixando de estar em cena, a percepção
dos problemas e sua superação se efetiva. Assim, o espetáculo ganha em
qualidade.
3.2.2 A dissociação
A dissociação pode ser utilizada, de acordo com Beltrame, de três maneiras
distintas. A primeira delas é “tornar os movimentos do boneco independente dos
52
movimentos do corpo do ator-animador” (2008, p.36). Isso significa que o atoranimador deve possuir uma capacidade de desagregar os movimentos que faz com
seu corpo para manipular o boneco, dos movimentos do boneco. Por exemplo, se
um ator-animador segura o braço direito do boneco com sua mão direita, não é
necessário que ele levante seu braço inteiro ao levantar o braço do boneco. Apenas
um movimento de seu punho pode realizar todo o movimento de erguer o braço do
boneco. Da mesma maneira, se há uma cena em que o boneco dança ao som de
uma música, o ator-animador precisa estar atento para que, embebido da música,
ele não utilize seu próprio corpo para marcar o ritmo, ‘dançando’ atrás do boneco. É
difícil para o ator-animador, concentrado nos movimentos do boneco, também
prestar atenção nos movimentos de seu próprio corpo. A presença atenta do diretor
nesse momento é indispensável para o bom trabalho do ator-animador.
A segunda maneira de entender a dissociação, ainda de acordo com
Beltrame, é “fragmentar os movimentos do boneco para que o mesmo não se dê
num bloco, para que não seja compacto. Isso colabora para propiciar uma atuação
antinatural sem perder a fluidez.” (Ibidem). Uzam relata que no espetáculo João
Cabeça de Feijão, no qual atuação de atores com animação de bonecos, teve que
tomar esse cuidado e revelou: “Eu pego muito no pé porque às vezes a pessoa faz
os braços regendo e iguais [movimentos dos braços que não geram ação, mas que
são redundantes à palavra]. É mais fácil fazer os braços iguais. Mas eu acho que
não, [...] tem que ter coisas no esquerdo e no direito.” Ou seja, para os atores é mais
simples executar os movimentos do boneco sem dissociação. Muitas vezes o atoranimador não percebe que está movimentando o boneco em um bloco. Cabe ao
diretor, como coube a Dario neste espetáculo, orientar o ator a treinar a dissociação
para dar maior veracidade aos movimentos dos bonecos.
Beltrame, ao tratar desta forma de dissociação, ainda coloca que para realizála é interessante que o ator-animador pratique o movimento que fará com o boneco
em seu próprio corpo a fim de fragmentar esse movimento em si mesmo para, com
mais entendimento, movimentar o boneco. Essa prática é recorrente em grupos de
Teatro de Bonecos, como conta Vellinho em seu processo de direção com a
personagem Verônica em Filme Noir:
53
Tem essa particularidade de pegar os movimentos humanos e adaptá-los
para uma situação com boneco e quando a gente acha uma necessidade
muito intrincada, como foi o caso da Verônica, a gente recorre a alguém que
trabalha com o corpo. E não só o elenco aprende a coreografia em si
próprio, como depois a gente passa para o boneco. Muitas das coisas que
a coreógrafa cria não dá para fazer com o boneco, temos que fazer outra
coisa. É um período muito bacana, porque você vê os dois lados da
questão. Uma ideia sendo jogada e a adaptação dessa ideia para o boneco.
Vellinho fez com que os atores-animadores aprendessem em seu próprio
corpo a coreografia destinada à boneca para que, ao adaptar esses deslocamentos
ao corpo do boneco, eles tivessem domínio e consciência sobre cada movimento
realizado.
A terceira forma de compreender a dissociação é posta por Beltrame como a
“capacidade do bonequeiro manter a postura de um personagem manipulado pela
mão direita sem perder as características de outro personagem que se encontra na
mão esquerda.” (2008, p. 37). Essa dissociação é muito necessária principalmente
no trabalho com bonecos de luva no qual, normalmente, o ator-animador trabalha
com dois personagens distintos simultaneamente, um em cada mão. Nessa situação
de dissociação a dificuldade encontrada pelo ator-animador é muito grande, pois
além de movimentos diferentes, muitas vezes é preciso ter também velocidades e
ritmos distintos.
A dissociação, desta forma, é atributo indispensável para qualquer ator que
decida trabalhar com a linguagem do Teatro de Bonecos, independentemente da
técnica
escolhida.
Assim
afirma
Jurkowski:
“De
minha
parte,
acrescento
tranquilamente que essa necessária dispersão da atenção do bonequeiro sobre
varias ações simultâneas marca toda a diferença entre o jogo do bonequeiro e o do
ator.” (2000, p. 23).
Cavalcante em sua pesquisa (2008) ainda especifica mais uma possibilidade
de entendimento para o termo “dissociação”. Neste caso o ator-animador dissocia o
seu plano espaço-temporal do plano do boneco. Essa dissociação está relacionada
ao fato de que “o ator encontra-se na condição simultânea de observador e
protagonista da representação, devendo dissociar o seu plano e aquele do objeto.”
(p.63)
O diretor executa seu papel orientando os atores no cumprimento destes (e
também dos outros) princípios. Para isso, ele próprio deve saber do que se tratam
os princípios e de que maneira pode explicar aos atores como realizá-los. Configura-
54
se aí uma relação de ensino-aprendizagem. O diretor observa durante os ensaios
não apenas os movimentos dos bonecos, mas também os movimentos e expressões
dos atores para compor as cenas. Sua atenção é dividida entre atores-animadores e
bonecos como se, ao dirigir um espetáculo, ele sempre tivesse que estar atento a
um elenco duplicado.
3.3 Outros aspectos relevantes sobre a direção no Teatro de Bonecos.
Uma vez apontados alguns aspectos sobre as relações do diretor com a
dramaturgia do espetáculo, com a construção dos bonecos e com a direção dos
atores convém situar outras especificidades relacionados ao papel do diretor.
Tratarei aqui das seguintes questões: ritmo, excesso de informação e o diretor que
atua em seus próprios espetáculos. Para finalizar, exponho uma situação específica
do trabalho da direção na “Cia Articularte”.
Nos espetáculos de Bonecos existem alguns detalhes que devem ser
observados para que o espectador se mantenha atento à cena, e não somente nos
mecanismos de construção e de manipulação dos bonecos. Nesta linguagem
artística é comum que isso ocorra uma vez que a plateia sabe, antes de tudo, que
existem atores-animadores por trás do boneco e que, através de sua técnica, estes
bonecos parecem ganhar vida.
Um destes importantes detalhes é a constância de ritmo do espetáculo. Não
se trata de velocidade de manipulação nem fluxo de entradas e saídas de
personagens, mas sim do que Balardim chama de “tempo morto”: “É importante não
deixar um ‘tempo morto’ em que o espectador reste passivo e possa refletir sobre
como é executada a manipulação.” (2004, p.96).
No Teatro de Bonecos este “tempo morto” pode acarretar a perda da atenção
do público comprometendo assim a qualidade do espetáculo. É o diretor que,
observando, indica aos atores-animadores em quais momentos isso ocorre. Cabe a
ele, também, fazer propostas para a solução desse problema. Um grupo que não
recorre ao trabalho do diretor terá muita dificuldade de perceber, dentro de cena,
quando há este “tempo morto”.
55
Outro detalhe que deve ser observado pelo diretor está relacionado com a
quantidade de bonecos e a quantidade de informações que eles apresentam em sua
forma. Excesso de informação não garante a funcionalidade do boneco e nem do
espetáculo. Pelo contrário, pode distrair o olhar do espectador. Mais uma vez, é o
olhar privilegiado do diretor, que ensaia e assiste ao espetáculo, que pode indicar
aos atores-animadores em quais momentos o excesso atrapalha a cena.
Outro ponto interessante de ser observado e que pode ser encontrado com
certa frequência são os diretores que além de assinarem a direção do espetáculo
também são atores-animadores dos mesmos. Os dois entrevistados neste trabalho
têm ao menos um espetáculo no repertório de seus grupos no qual essa situação
ocorre. Quando pensamos em todas as funções relativas ao papel do diretor de
Teatro de Bonecos estudadas neste trabalho, é difícil entender como eles
conseguem desdobrar-se em múltiplos papéis. Afinal, como manter seu importante
olhar de fora, uma vez que está dentro do espetáculo? Como orientar os atores
quando falham nos princípios de manipulação se ele está ao lado deles animando os
bonecos?
Questionado acerca desta situação, Vellinho, (que atuou com seu grupo em O
Velho da Horta) respondeu:
Quando eu vim em 2004 com O velho da Horta para o “Palco Giratório” uma
das pessoas do elenco não podia fazer a viagem, daí eu voltei a manipular.
Mas é só porque o espetáculo estava pronto. Então eu fiquei com
segurança de entrar no espetáculo. Mas enquanto eu estou criando eu fico
de fora, totalmente, porque senão não tem como.
Foi sem espanto que ao tratar com Uzam sobre o tema, (que faz parte do
elenco de Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Marrom e de A Cuca Fofa de Tarsila),
recebi a mesma justificativa de Vellinho: “Eu dirigi um elenco antes [...] se tiver que
entrar eu entro depois.”
56
Figura 9 - Espetáculo Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Marrom, Cia Articularte.
Figura 10 - Espetáculo A Cuca Fofa de Tarsila, Cia Articularte
Fonte: http://www.articularte.com.br
Como é possível perceber, nos dois casos os diretores passaram a atuar nos
espetáculos porque fizeram uma substituição de elenco. Os dois relataram que
durante o processo de montagem acham impossível fazer parte do elenco, pois
conduzir a montagem do espetáculo exige o olhar externo do diretor. Isso possibilita
ver a cena de outro modo, com olhar mais crítico e atento, o que permite que
realmente execute sua função.
Ainda seguindo no tema, questionei Uzam a respeito de sua entrada em cena
enquanto ator-animador que substitui alguém. Perguntei se havia sido fácil, uma vez
que ele, diretor do espetáculo, conhecia o papel de todos os atores. Assim ele me
contestou:
Conhecer é uma coisa, fazer é outra. Eu também passei por isso. Falei “Ah
eu sei” e da primeira vez eu me dei mal. Porque o diretor está exatamente
ao contrário da pessoa, está de fora e vê do lado contrário. Muitas vezes na
29
“Cuca” eu me pego entrando do lado do diretor e eu já vi diversas vezes.
As respostas dos dois diretores remetem a pensar sobre a importância de o
diretor de Teatro de Bonecos também ter experiência como ator-animador. Sendo
ator-animador ele tem domínio, não apenas teórico, mas também prático, dos
princípios de manipulação. Com esse conhecimento é mais fácil orientar os atores
nas especificidades da linguagem. Da mesma maneira, confirmado pelas falas dos
entrevistados, é compreensível que diversos espetáculos contemporâneos de Teatro
29
Aqui Dario se refere ao espetáculo A Cuca Fofa de Tarsila.
57
de Bonecos exijam um diretor que saia de cena para dirigir a obra, uma vez que o
diretor é aquele que está a par de todas as etapas do espetáculo e coordena todos
os envolvidos. Sua participação direta como ator-animador no processo de
montagem dificulta sobremaneira realizar sua função de articulador e responsável
pelo espetáculo.
Julgo interessante registrar ainda outra situação, vivida especialmente na “Cia
Articularte”. Uzam conta um aspecto muito importante em seu trabalho de diretor,
que diz respeito à ajuda que recebe de Surley30 na direção dos atores-animadores:
Eu fico do lado de cá do palco. Fico aqui. Sou o público, sou o diretor e
público e a Su é como a diretora de cena. Eu não sei se o nome é
exatamente esse, mas acho apropriado. Ela ajuda muito porque ela tem
mais experiência que o pessoal. Às vezes é uma torção de corpo para
favorecer a toda uma colocação de cinco ou quatro pessoas. A gente
descobre que uma pessoa está meio tensa e não se posiciona tecnicamente
bem, e a Surley vai descobrindo esses detalhes, o que ajuda muito.
Entradas e saídas normalmente a gente vai pedindo, eu indico muita coisa
porque eu sei o tempo que dá para a pessoa se mover, sair um boneco,
entrar o outro. Então tudo o que está piscando aqui na televisão é questão
minha, e lá é muito da Surley.
Dario evidencia a importância do trabalho que Surley realiza junto aos outros
atores-animadores no palco. Seu trabalho, que ele considera como o de uma
assistente de direção, complementa o trabalho de direção de Dario sob um ponto de
vista que para ele é impossível ter enquanto diretor. Esses problemas de postura
corporal e posição física dos atores, ao compartilharem simultaneamente a
manipulação de um mesmo boneco, muitas vezes são solucionados pelos próprios
atores sem que seja necessária a intervenção do diretor. Ele solicita que seja
realizado um movimento com o boneco e os atores-animadores se distribuem no
espaço da melhor maneira possível para realizá-lo. Surley, com mais experiência,
ajuda os atores a encontrarem a melhor maneira de se posicionar. De modo indireto,
Uzam reafirma a importância do diálogo entre direção e elenco. Muitos problemas
técnicos são resolvidos pelo próprio elenco. Cabe ao diretor apontar a existência
deles, mas é importante solicitar a ajuda dos atores-animadores e ouvir suas
sugestões.
30
Surley Uzam é fundadora e atriz-animadora da “Cia Articularte” e também confecciona todos os
bonecos do grupo.
58
Em todas essas especificidades da linguagem e situações expostas o diretor
exerce papel importante na condução da montagem. Seu trabalho se dá à medida
que ele conhece profundamente a linguagem com a qual trabalha e se posiciona
fora da cena. Nestas condições ele pode fazer observações pertinentes para o
desenvolvimento do espetáculo e acompanhar a obra por completo.
59
Considerações Finais
Nesta etapa do presente estudo, a primeira observação a ser feita é a
necessidade de continuação da pesquisa sobre o tema: direção no Teatro de
Bonecos. As reflexões presentes neste trabalho ainda merecem aprofundamento. A
carência de publicações sobre o tema e a necessidade de ampliar o tempo para a
realização da pesquisa impediram maior aprofundamento da mesma.
Como
apontado no início, a função de diretor no Teatro de Bonecos é relativamente
recente e isso provoca uma redução na produção teórica sobre o assunto. Porém, é
evidente a relevância do tema e urgência da realização de estudos nessa direção
Após identificar os primeiros registros que deram início à atividade desse
profissional no Brasil, percebi que uma das mais importantes características do
trabalho do diretor de Teatro de Bonecos é o conhecimento que ele deve ter sobre
essa linguagem. A função do diretor não se realiza apenas pela intuição e pelo
espontaneísmo. Dirigir espetáculos exige o domínio de saberes da arte do teatro,
bem como sobre o papel do diretor teatral, além dos códigos, normas e técnicas
próprias da arte do Teatro de Animação. Há algumas décadas, a direção era
assumida inteiramente pelo bonequeiro polivalente. No entanto, hoje, essa arte se
tornou mais complexa, o público mais exigente, sendo necessária a especialização
dessa função.
Um aspecto importante identificado no presente estudo e que distingue o
trabalho do diretor de Teatro de Bonecos na contemporaneidade, principalmente
quando comparado com as formas tradicionais de organização do espetáculo é o
fato de ele estar posicionado fora de cena. Desta maneira, ele coordena o processo
com um olhar amplo, diferenciado, tendo a visão completa da encenação. Assim, ele
eventualmente pode se colocar no lugar do público e avaliar o trabalho na
perspectiva de agregar seus espectadores, criando condições para o encontro,
impedindo que a encenação seja impenetrável ao público.
No entanto, apesar desta coincidência espacial com o espectador, o diretor
está temporalmente “adiantado” (e este é seu maior privilégio!), uma vez que ele foi
e continua sendo o responsável pela criação e organização da obra. Já o
espectador, de fora, aprecia, contempla e “participa” do acontecimento.
60
Essa posição de responsável pela organização e criação do diretor o
distingue do bonequeiro polivalente incumbido de organizar as etapas do processo,
como também por executá-lo. O diretor, ao contrário do bonequeiro, não está em
cena e não necessariamente é ator-animador. Com isso, o estudo destacou funções
que o diretor exerce na montagem do espetáculo evidenciando que o domínio e
amplo conhecimento de tais funções é fundamental em sua atividade profissional.
Com esta pesquisa pretendi abrir um panorama sobre as possibilidades de
estudo acerca da direção. Muito estudo ainda é necessário e espero que este
trabalho estimule novas pesquisas.
61
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Henrik Ibsen. Apresentação gravada no SESC Copacabana, em set. 2006. Produção
de vídeo: Daniel Belquer. 1 DVD. 1h 50 min.
TARSILA, A cuca fofa de. Cia Articularte. São Paulo: 1999 [S.I] . Direção: Dario
Uzam. 1 DVD, 32min.
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Anexos
ANEXO A - Transcrição da entrevista com Dario Uzam Filho e Surley Valerio Uzam
realizada em 02 de outubro de 2009, em Jaraguá do Sul.
ELISZA: Bem acho que a gente já se conhece, o Nini já me apresentou por e-mail.
Sou estudante da UDESC, estou na última fase do curso de teatro. Estou fazendo meu TCC
e é sobre direção no teatro de bonecos. Então o Nini deu dois nomes pra eu entrevistar e
um deles é você. Elaborei, junto com ele, algumas perguntas voltadas bem pra questão da
direção.
Queria começar te perguntando, até a gente estava falando lá fora, que tu fostes ator
do Antunes, começastes como ator de teatro de atores. Como é que tu te descobristes ator
manipulador, como tu chegastes a isso?
DARIO: Nessas andanças tanto com o Abujanra como com o Antunes, você tem a
sensação... tem a noção da sincronia das coisa. Acho que é até por aí. É, tudo sincroniza.
Ensaia-se por exemplo, o que esta rolando e você entra com seu pique, com sua energia,
com sua dinâmica. Acho que é muito assim. Até o Antunes é chamado de o alemão
brasileiro. Coisa assim. Porque ele tem a.. cronometria deles, a sincronicidade deles e a
energia nossa que é impagável, ela é saltitante e ela não é uma coisa só, não é uma energia
que fique lá, ela quebra vai, não sei o que. Você viu o espetáculo ontem?
E: Qual?
D: Da borboletinha
E: A sim...
D: Então, acho que o brasileiro faz isso, de repente uma cena acontece, é um ‘crak’
de energia eu acho. É a partir daí. A gente viu uma mostra da Tarsila do Amaral. Porque o
Antunes sempre falava: “vejam mostras, vejam museus, vocês não sabem como isso
agrega. A princípio não porque quadro é morto, esta parado, mas vá ver cultura, não
descansa. Você trabalha com cultura, tem que mexer com cultura, observar”. A gente viu
uma mostra da Tarsila do Amaral e tivemos um ‘insight’ na hora. Eu conheci a Surley a
gente já era casado, e ela trabalha muito bem com espuma. Então fez um..
SURLEY: Eu já trabalhava com bonecos, fazia confecção. Eu com a minha irmã a
fazíamos teatro de bonecos mas mais caseiro, a gente nunca tinha feito profissional. A
gente fez vários cursos. Então eu entrei na companhia de teatro do Dario antes de ele entrar
no Antunes. Era teatro amador ainda. E lá eu entrei em contato como atriz. Ate então eu só
mexia com bonecos.
D: Eu sabia que ela, que ela mexia bem com bonecos de espuma. Então a gente
olhou pra Tarsila e pensou ‘nossa, parece macio ’. Então começamos a brincar com essa
ideia. A gente foi assistir o que estava passando na época. Então ficou boneco de espuma
macio que lembrava a Cuca fofa de Tarsila. Fofa de... Tanto fofa de uma cuca impagável.
Ela transformou o parnasianismo. [...] A gente é assim, não é só fazer retratinho, também
retratinho, mas a gente é colorido, a gente e pungente, a gente saltita nas coisas. E a partir
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daí a gente montou a Cia. E deu muito certo, a gente fez uma mixagem e depois só nos
debruçamos sobre manipulação e direção.
E: É isso que eu ia te perguntar. Tu começastes no Antunes, e depois fostes para
bonecos. Da onde veio teu interesse por dirigir. Porque eu tava olhando no site, consegui
algumas informações, e tu diriges todos os espetáculo da Articularte. Da onde que surgiu
esse teu interesse pela direção?
D: Bem, tanto no outro grupo amador, lá atrás, como nesse eu era meio cabeça de
chave. Sempre fui muito enfurecido em escrever encenar e tal. Atá para ver o ciclo, esse
ciclo artístico. Você escreve, encena, trabalha com um grupo, dirige e pode fazer a técnica.
Eu sempre fui fascinado por esse ciclo. Não que hoje a gente não tenha técnico. A gente
tem técnicos. Mas esse ciclo pra mim é um negócio, não sei se eu busco, se é meio uma
loucura da cabeça. Acho que é muito mais você começar teu parto, como um filho que vai
até o final do ciclo dele. Como hoje são os espetáculos. Um belo dia você pode largar na
rua. E tem que encarar assim mesmo, é como um filhote, seu, um filhote artístico, ele vai
sair, vai criar pernas. Vai poder andar, é mais ou menos assim. Talvez seja muito cansativo
porque muitas vezes como diretor você tem que ter atenção em todas as áreas , música,
luz, então a gente dá palpite em tudo e graças a Antunes Filho, ‘Abujanras’ da vida a gente
vai aprendendomuito. E você tem uma noção legal. Não que chamando um técnico você
não vai aprender. Claro que aprende. Um cara que raciocina cenografia, é importantíssimo.
Um cara que raciocina luz, a gente já teve contato e sabe que é importante, é fundamental.
Mas talvez seja essa questão de gostar tanto da coisa que você quer ficar com ela até
completar o ciclo.
E: E qual que é atualmente a tua maior preocupação ao dirigir um espetáculo de
bonecos porque vocês lidam muito com criança também . O que primeiro te chama a
atenção, o que primeiro te preocupa em fazer?
D: Observar o ser humano. A gente só consegue fazer uma boa animação se imitar,
se trabalhar boas imitações, e isso não tem regra nunca. Porque você pode estar imitando
Guliver, que a gente vai montar ano que vem, ou ta imitando o lobo mau, ou ta imitando a
chapeuzinho. A questão é assim, a gente tem que ficar muito atento em como [...] poderia
ser. Possibilidades artísticas. E as possibilidades só vem se você observou bem. Ela não
vem ‘a quero fazer e pode ser que de certo’. Não. Se você tem uma carga legal de observar,
e ensaios e desenvolvimento de improvisações você consegue imitar ou transferir, ou
extravasar a mímica. Ela deixa de ser a própria imitação e ela fica criação da imitação. É
bacana esse fundamento. Você trabalha a partir de alguns princípios, sempre imitando
porque o ser humano é referencia, sempre. Se for fazer uma coisa sem referência ficará
estranho...
E: Não vem nada...
D: É, e eu me preocupo muito com o comportamento. Comportamento para mim é
uma peça chave de tudo o que a gente faz. O comportamento da figura. As vezes o exagero
dela ou a timidez dela. Então a gente vai jogando com esses comportamentos. É daí que
vão surgindo as possibilidades melhores ou não.
E: E tecnicamente tu notas em ti uma constância na maneira de dirigir?
D: Tecnicamente a gente é assim. Como lá na “Cuca”, a 10 anos atrás, como com o
“Trenzinho” e o “Portinari”, a gente se debruçou totalmente porque foi nossa primeira
entrada nesse universo delicado de teatro de bonecos e formas animadas. Então lá o
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trabalho foi muito grande, a preocupação muito grande, e a gente acha que lá ficou um
legado muito legal e técnico. O que fazer, como fazer. Eu gosto dessa de pensar o que que
entra agora, o que que vai sair e tal. Tanto que os nossos elencos começam e acabam.
Ninguém fica marcando. É Tudo muito aeróbico na coxia. Eu tenho medo por exemplo, de o
boneco chegar daí sair o terceiro manipulador, dar a volta no cenário, pegar outro, tal... Pra
mim tem que ser ilusão. É meio mágico. A gente tem que dar um jeito. A gente faz com
quatro atores dois dos espetáculos, a “Cuca” e o “Portinari”, e o “Portinari” é uma
intensidade incalculável. Você fala “não é possível”. As pessoas falam “nossa só quatro?!”.
Porque entra coisa, entra favela, entra sacaria, sai, cai, não sei o que, entra um pulando, tal,
tem as cenas paradas também. Mas a gente ve alguns modelos, alguns exemplos de gente
querendo montar, forçar o grupo com 3 pessoas e você fala “não sei se é assim”. Você tem
que achar a identidade do grupo. Você tem que trabalhar senão vê claramente, que não
tem ação porque o ator vai dar a volta...E então tecnicamente a gente fica preocupado
também com o pulso da vida e da atenção das pessoas. Você tem que tentar seduzi-las sim,
artisticamente, de uma forma amigável sem forçar a barra e sem também ser preguiçoso.
Tem que trabalhar muito pra eles, porque vai voltar. Se trabalhar bem vai voltar, o resultado
bem. Então tecnicamente é assim, existia uma grande preocupação depois a coisa começou
a se tornar um pouquinho mais colaborativo dos atores. E ai vem uma nova estética junto. O
colaborativo sugere uma direção coletiva. Então tem que estar muito atento, porque a
direção coletiva ela pode ser muito legal. Mas as vezes... eu sou de uma geração também
que a gente viu a direção coletiva. Você acha maravilhoso mas é um samba do crioulo doido
maluco porque não tem uma linha artística. E é bacana a arte ter uma uniformidade porque
não dá pra você fazer qualquer traço, é legal você ter um projeto
E: Geralmente é o diretor que mantém essa coerência?
D: É ele que diz “o projeto é esse”. É se o grupo for muito bom, e eu já vi grupos
muito bons dirigindo coletivamente, mas eles tão muito integrados, aí sai, é a cara do grupo,
aí e maravilhoso. Porque a arte é obra pensada, não e de outro jeito, é pensado. Ah quero
fazer porque eu gosto, para as minhas coisas, meus orgulhos, não tem isso, tem um gosto
pela coisa e desenvolvimento. Então a gente está ainda tentando entender essa coisa
colaborativa, essa participação.
E: Mas ainda és tu que assina a direção mesmo?
D: Sim, sim.
E: Como tu dissestes la fora que trabalhas com diferentes elencos, existe uma
preparação específica para os atores-animadores ou essa preparação acontece na medida
que vai montando o espetáculo? Como que funciona isso dentro da Articularte?
D: Su, quer falar um pouquinho?
S: É, é assim, a gente já tem uma cara. Então as pessoas que vão entrando já vão
incorporando pelo comportamento, pelas nossas posturas, enfim. A pessoa já entra no clima
de como a gente pretende ensaiar o espetáculo.
D: E tem muita substituição, as vezes o novo ator é uma substituição. Então ele entra
como um aprendiz do que já foi feito. Então se essa pessoa ela corresponde, ela chega
junto, ela traz material vamos fazendo um espetáculo com essa pessoa. Porque ela vai
agregar para o grupo.
S: [..] Dario tem a sua estrutura de direção, a linha de direção, mas as pessoa que
vão entrando podem acrescentar.
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E: Vocês fazem audições?
D: Não, é muito simples. É uma conversa e a gente faz, um teste para ver a mão da
pessoa. Pra ver...
S: Tem muita indicação...
D: É normalmente é um amigo que não é muito espalhafatoso, ou a menina não é
muito espalhafatosa. Porque o ator ele é grandão. Um dos nossos grandes atores, um dos
nosso melhores, o Toni, ele hoje faz “A Bela e a Fera”, musical importante. E ele era
totalmente espalhafatoso no começo, ele quebrou dois microfones que só ele conseguiu
quebrar, o Toni. Mas a gente viu a transformação dele, ele conseguiu ir se concentrando e
hoje ele não consegue muito trabalhar com a gente mas, em alguns exercícios que a gente
faz hoje, depois do “Portinari”, que são 6 anos, você vê que ele já e um ator de bonecos
também, é técnico, super técnico, canta muito bem também e já consegue criar, ele é
palhaço nas movimentações, nos pés, ele não precisa andar bonitinho, ele já anda com uma
coisinha a mais, já tem uma coisinha a mais no braço. A gente estava observando que é
legal, alguém que não tinha nada a ver com a gente, veio, passou, foi doloroso pra ele
trabalhar esse espetáculo, o “Portinari”, aprendeu a concentração, ajudou muito na carreira
dele, porque ele quer ser primeiro o musical, fazer o musical. Ajudou lá, e toda hora ele liga
!tô morrendo de saudade” ...
E: Acabou sendo um treinamento implícito na montagem.
D: Como o teatro de bonecos pode transformar também o ator. Porque é técnica, é
muita técnica.
S: Ele começa a prestar atenção em outros detalhes.
D: E ele diz, ele liga super feliz. E tem ator que você ensina, e o cara daqui a pouco
diz assim “não, eu sempre soube”. É muito legal isso.
S: Ou que esquecem.
D: Que esquecem que aprenderam. Mas não teve muita substituição, né Su?, Mas
nós pegamos um traquejo. Começamos pelos pés. Historicamente começa-se pelos pés.
Apesar de que as mãos são mais fáceis. Eu acho que são mais fáceis. Acho eu, posição
minha. A cabeça é mais difícil sim. Então eu acho que teria que começar pelo braço, pé e
então cabeça. Eu não concordo com a coisa do ‘Bunrako’, que é pé, braço e tronco e
cabeça. Eu inverteria. Porque o braço não é que não é difícil, é difícil sim. É muito difícil
porque ele tem que reger com a cabeça. Então a cabeça está falando e o braço tem que
estar muito atento. Eu pego muito no pé porque as vezes a pessoa faz os braços regendo e
iguais. É mais fácil fazer os braços iguais . Mas eu acho que não, temos um hemisfério de
cada lado do cérebro. Você tem que ter coisas no esquerdo e no direito.
E: E, por exemplo, se acontece uma situação, que muitas vezes acontece, de o
diretor imaginar e conceber um movimento e na hora de realizar o ator não conseguir
realizar ou por deficiência do próprio ator ou do boneco. Como que tu, na postura de diretor,
reages a isso? Como que tu ‘arrumas’ isso?
D: A gente fez alguns exercícios de visão periférica. Tinha uma menina que a gente
acreditava no talento dela. Mas ela estava muito medrosa e queria anotar tudo. E eu falei
que não podia,que não dava para anotar tudo. Não é assim. Não é engessado nada, a gente
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faz uma marca que o boneco tem que ir em tal direção, depois faz tal movimento. E a gente
pouco marca, até. Porque a situação vai surgindo. O trenzinho tem que entrar e cai um
galinho da árvore, ele pega o galinho, passa pra outra mão e brinca. Então o movimento é
esse: vai até o canto e volta, vai passar pra cá, bate na arara que está ali e tem um diálogo
com a arara. Esse tipo de coisa. O que é importante para nós? É essa passagem.
S: Na verdade a gente dá uma dividia. Porque o Dario olhando de fora ele pede pra
gente o que ele quer, como ele quer a cena, qual é o espírito da cena. E nós, lá dentro, a
gente soluciona. Então fica basicamente para mim..
D: A Su é como se fosse uma diretora de cena. Ela dirige lá dentro e eu aqui fora.
Isso é importante porque ela sente as dificuldades lá.
S: É, ele pede e a gente tenta solucionar aquilo. Porque o Dario ele não é
conformado com uma cena simples, então ele vai exigindo cada vez mais. E é legal porque
a gente vai tentando explorar o boneco até o limite. Para ver até onde o boneco consegue
fazer aquilo, da melhor maneira, mais bonito possível e poder fazer o que o diretor está
pedindo. É um jogo, nosso, dos atores, e do diretor. Ele joga a necessidade dele naquela
cena e a gente soluciona. Para ele não ter que se preocupar em como a gente vai
solucionar mecanicamente os bonecos. Então a posição dele é lá de fora.
D: Eu fico do lado de cá do palco. Fico aqui. Sou o público, sou o diretor e público e a
Su é como a diretora de cena. Eu não sei se o nome é exatamente esse, mas acho
apropriado. Ela ajuda muito porque ela tem mais experiência que o pessoal. As vezes é uma
torção de corpo para favorecer a toda uma colocação de cinco ou quatro pessoas. A gente
descobre que uma pessoa está meio tensa e não se posiciona tecnicamente bem, e a
Surley vai descobrindo esses detalhes, o que ajuda muito. Entradas e saídas normalmente a
gente vai pedindo, eu indico muita coisa porque eu sei o tempo que dá para a pessoa se
mover, sair esse boneco, entrar o outro. Então tudo o que está piscando aqui na televisão é
questão minha, e lá é muito da Surley. É assim, sem parecer ostensivo, a ideia é essa.
S: É boneco é uma coisa bem gostosa de se trabalhar.
D: E acho que essa falta de ostensividade faz o cara dizer “não eu sempre fiz isso, a
minha vida inteira, eu nasci pra...”. E não, e a gente colocou coisa por coisa. Mas é
interessante isso. Esse aprendizado que vai lentamente, infusão lenta e a pessoa daqui a
pouco ta fazendo isso com se fosse desde sempre.
E: No espetáculo “João Cabeça de Feijão” há um situação que imagino ser mais
difícil de dirigir, que é a situação do ator que está manipulando e ao mesmo tempo está
atuando. E do ator que também manipula e as vezes atua como se fosse o próprio
personagem que ele já manipulou. Como vocês lidam com essa relação? Porque manipular
já é difícil, e manipular e atuar junto...
D: Esse elenco basicamente é um elenco que primeiro ele foi ator. O elenco do “João
Cabeça de Feijão”. Então a gente fez de cima para baixo, vamos dizer assim. Não de cima
para baixo a manipulação. Mas a gente fez primeiro um posicionamento de cada
personagem, tanto que a dança era para a menina fazer agachada. E a gente tinha foto pra
isso, tinha informação, tinha pesquisa pra isso. Mas na hora eu achei que ia forçar, ia
parecer teatro infantilizado, e agente não foi por aí. A questão era assim. Uma das ideias
principais era confundir, era de repente a criança dizer assim: “Mãe, pai, o cara virou
boneco”, ou “O boneco virou o cara”. E a gente já ouviu isso do público. Isso que é legal.
Porque começa com os atores e daqui a pouco o boneco atua sozinho, aos poucos a gente
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vai colocando os bonecos. E ele vai subir no pé de feijão, que é um ator, com tiras, tudo.
Tem toda uma transformação para isso. E a questão é assim, é fazer a dicotomia, quando é
o ator é o ator, quando é o boneco é o boneco. Como você deve ter visto o clipe parece que
é tudo misturado. O clipe tem essa característica de ser tudo tumultuado. Mas tem toda uma
colocação. Começa com o ator. Então o boneco sai da cesta. O menino cria o boneco, o
boneco sai como ele, e o boneco já sai como ele e começa a interagir com a mãe que está
fora.
E: Mas tem um primeiro momento de relação entre os dois, menino e boneco?
D: Tem. Os dois são muito parecidos. O boneco está vivo e a mãe fala. O menino se
assusta, acha que a mãe está falando com ele e diz: “eu?”. E o boneco responde: “não, eu
aqui!”. E então ele (o boneco) começa a dialogar com a mãe. Então cria-se uma discussão
que envolve. E agente acha muito legal, e a criança gosta demais dessa passagem. E nós já
ouvimos várias vezes: “Mãe, virou boneco”.
E: E para o ator tu sentes que é muito difícil fazer isso?
D: Não se ele encara como ator. Como a gente começou com exercício de ator no
palco, andando de lá para cá. Começou assim e depois a gente foi afunilando para a
manipulação até o final.
E: Então começou com a direção de atores?
D: Sim.
E: Quando se começa a pesquisar sobre o teatro de animação pode-se encontrar
muita discussão sobre a relação de disputa entre o ator e o boneco. Que o ator tem que se
anular frente ao boneco. Isso já aconteceu em algum momento, esta disputa, tu já pudestes
perceber isso em algum espetáculo, e se aconteceu como que tu lidaste com isso?
D: No “Portinari”. Acho que porque o Portinari tem um ritmo bem dinâmico. No
festival de Curitiba a crítica disse que estávamos muito presentes no espetáculo. E a gente
realmente estava. Como a gente tinha estreado recentemente, estávamos todos muito
felizes. Então depois a gente ‘baixou um pouco a bola’, colocou para os atores que não dava
para ficar fazendo careta. É uma sintonia que o ator tem que ter para poder emprestar a voz
para o boneco. Mas a gente teve que ir devagar também para não perder, a peça ela faz
uma festa. A proposta é a festa. É festa e o ator estava na festa. Mas foi ali que a gente
também aprendeu muito com o próprio processo. Mas foi uma peça que pro público foi boa.
É o olhar do bonequeiro que tecnicamente não gostou. O ator estava meio misturado em
cena. Mas a gente dividiu um pouco melhor. Eram algumas cenas só, porque tinham cenas
em que os atores ficavam muito de fundo, não tinha nenhum problema lá. Mas a gente
aprendeu muito tecnicamente que tudo é foco.
E: E o olhar do ator..
D: A gente enxerga que é um tutor. A criança entende que é um tutor Ela olha a
pessoa, olha o boneco, e pronto. Ela já entendeu que pode ser a figura do pai ou a figura da
mãe, ou um tutor que está ali e para ela tudo bem, está amparada pelo adulto. Se tiver
atuando direitinho, sem extravasar, sem ideias que possam romper uma linha, a tendência é
dar super certo. Mas é o foco. Se não tomar cuidado com o foco ele vai embora. Desfoca a
atenção, causa outro entendimento. Em “Trenzinho Villa-Lobos”, por exemplo, a gente tem
uma sequencia e de repente corta o espaço -tempo. O único problema que a gente tem com
as crianças é elas perguntarem a mãe o que esta acontecendo, mas elas logo entendem,
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porque vem uma explicação. Mas é uma ruptura, uma ousadia que a gente fez. Cortar o
espaço cênico e transferir para outro lugar e não explicar. Para ver até aonde vai o
entendimento. Para também não ficar tudo muito explicadinho, a gente também não gosta
que a criança aprenda no “beabá”. Entrou um cara carregando uma coisa, não tinha nada a
ver com o que acontecia antes, mas foi um corte cênico e daqui a pouco a criança vai
entender. A gente não teve grandes problemas, entra bem na ação. Estava acontecendo
uma ação, a gente invadiu com outra, é um jogo de ações e de invasões. A gente brinca
muito com essa coisa de invadir, mas é invadir com proposta, com técnica. Criar um gráfico.
O gráfico acorda as pessoas. O gráfico depois de uma situação colocada que vai se
desenvolvendo.
E: Tu falastes agora pouco sobre a voz. Todos os espetáculos de vocês trabalham
com voz, com fala?
D: Sim, todos. Só a “Cuca” trabalha com som gravado. A gente fica mais na
manipulação, o que é delicioso porque a gente fica só com um elemento.
E: Enquanto diretor, tu percebes que os atores tem dificuldade maior na hora de
colocar a fala, porque também é algo que chama muito atenção. É difícil se manter neutro
botando intenção na voz. O que tu reparas de diferenças em dirigir um espetáculo sem fala,
no caso de vocês gravado, e um espetáculo com fala? Isso no procedimento de direção do
ator.
D: No gravado você fica com uma preocupação que é caprichar e infinitamente
melhorar a manipulação. A “Cuca” não tem fim, sempre estamos descobrindo coisas novas.
S: Na “Cuca” você realmente não se manifesta porque você não fala.
D: Temos um elenco novo, são quatro atores ótimos, mas estão ‘apanhando’.
Tecnicamente, eu digo. Esta tudo certinho no espetáculo, mas falta ‘cozinhar’ um
pouquinho, que é uma tranquilidade natural que não adianta, se você muda o elenco você
tem que dar um tempinho para ele se aquecer naturalmente. Isso é evidente. Tecnicamente
é fácil, mas vai criar complicações, porque você não pode errar nada na “Cuca”. Você tem
que estar muito atento, e também o grau de intimidade pesa.
E: Então acaba que fica mais difícil fazer com fala gravada...
D: Sim, porque tem duelos, uma série de coisas que são cronometradas, não dá para
sair de cena e ficar ‘fazendo a unha’ como a gente diz. Agora o falado, é a mesma coisa, só
que é assim, como a gente ensaia, e o teatro é ensaio, as pessoas rapidamente entendem
que tem que falar, atuar e manipular. E a gente trabalha por pequenas sintonias. Se o
boneco está provocando um outro diálogo, outro duelo, você tem que sintonizar para ficar
temático naquele microcosmo em volta do boneco. [...] Então cada propósito a gente coloca
que deve estar temático. As vezes o ator esta fazendo algo que dá certo mas que não tem
nada a ver com o que esta rolando. Você tem que ser alguma parcela do que esta
acontecendo, alguma coisa você tem que ligar no elemento. Isso é atuação, e não precisa
ser expressiva, é uma sintonia. Tem grupo que provoca muito, que vai para o lado cômico.
Bonequeiro se divertindo, ou apontando a direção do que o boneco esta fazendo. A gente
trabalha em outra linha, mas no tema de fundo do que esta acontecendo.
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E: No começo a gente falou que tu assinas a direção e o texto. Nessa relação de
diretor-roteirista, quando prepondera a função diretor e quando prepondera a função
roteirista?
D: O texto na “Cuca” ele veio antes, a gente pouco mexeu. “Trenzinho” mexeu
bastante. É um desafio pra mim. A gente faz um pré-texto e depois trabalha para ajustar as
falas que estavam na minha cabeça para a boca do boneco, que é outra coisa. Essa
adaptação é difícil, demora um certo tempo. Mas a “Cuca” foi um presente, pesquisamos 4,
5 meses, cabeça cheia. De repente em dois dias vem o texto, você tem que ser muito bom
em datilografia senão você não alcançar o que estão dizendo. É quase manifestação, mas
eu não trabalho assim, não é isso. Mas você teceu um universo, tem um enredo, as figuras.
Abaporu, Negra... Os quadros me deram muitas dicas, o quadro ‘antropofagia’ é o fim da
peça, que é Abaporu e a Negra sentados, abraçados. A cena do Boi tem um quadro do Boi,
a cena da Cuca tem um quadro da Cuca, que ela vem como guardiã ajudar a Negra, que é a
heroína, a encontrar Abaporu, que se perdeu com aquela chifrada. O texto é uma coisa, eu
não sei porque, mas eu gosto de ver o ciclo se completando. Ganhei um texto no premio
Nacional de Dramaturgia, lá atrás. Foi fruto de pesquisa folclórica, de brasilidade. Isso me
encantou bastante e eu pensei que é possível você dirigir e ver realizado seu texto. Tem
muito autor que escreve e não consegue que ninguém leia nem recite seu poema. Então eu
pensei em ver completo esse ciclo. E é paixão pela coisa também, talvez seja um defeito
até. Já fui chamado muitas vezes só para dirigir, ou só para criticar. As vezes te chamam só
para criticar e depois você vira diretor, porque gostam de suas opiniões e você acaba
ficando. Mas tem todo esse aparato que é complexo. Começa e termina nisso que eu te falei
da observação.
E: E está bem ligado ao papel do diretor que acaba acumulando funções não?!
D: Acumula, acumula sim. Mas eu logo abandono o escritor. Depois de ter contato
com Abujamra, Antunes, alguns outros diretores, você vê que é uma farra também dirigir, é
muito legal. Muito legal porque você coordena, você dá ideias, você recebe ideias, é um
debate artístico-criativo E me interessa muito essa participação, esse contato com o ator,
contato com os bonecos.
E: Como que tu diriges, por exemplo, a “Chapeuzinho”, em que tu estas em cena?
D: Sim, mas eu dirigi um elenco antes.
E: Tu nunca te diriges então? Sempre diriges outros e...
D: Se eu tiver que entrar eu entro depois. Porque assim, esse elenco ele foi até certo
ponto e eu pensava que dava pra ir muito mais. A Surley também não estava no início. Não
que a gente vai roubar peça das pessoas, não faz sentido. Se tivesse indo bem ficava, mas
estancou. E eu não admito. Eu perguntei se a Su queria pegar, tivemos um tempo e
começamos a ensaiar. Ela me dirigindo por dentro.Ela me ajudou muito, foi então que eu
entendi os procedimentos que ela faz. O pulso da Surley que é diferente. Se eu ver um
pulso de um ator eu posso dizer se é bonequeiro ou não. O pulso, ele tem que ser meio
invisível, meio mágico. As vezes bonequeiros nossos, bons, gente esperta, talentosa, você
vê que ele é marcado. Ele não tem um abandono. Tem que ter abandono A Surley está
fazendo alguma coisa e não mexe mais nada, mexe só ali. É o boneco já respirando no
meio dos dedos, é algo que você não percebe numa primeira leitura, percebe depois. Então
ela tem este talento que é meio natural, mas é paixão pelo boneco também.
E: E quem constrói os bonecos da Cia?
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D: Ela.
E: A Surley constrói todos?
D: Sim. Então tem hoje 150 bonecos, mais ou menos.
E: Ela constrói a partir de indicações tuas?
D: As vezes só indicações e ela ‘dorme com o barulho’ quando não consegue
resolver. Então eu dou indicações, para tentar por ali ou por aqui. Tem um boneco nosso
que é uma paleta. Eu inventei e ela produziu. Um mancebinho com rodinhas e ele escreve
as sensações que ele esta sentindo. Um boneco muito legal, construtivista ao extremo.
E: Então acontece de tu conceberes e ela construir?
D: Então ela capricha.
E: E aparecem mais coisas do que tu havias pensado?
D: Sim, sim. Tranquilamente. Tem um boneco que tem braços longos. Começamos
brincando e depois ele ficou marcante. É uma mãe. Para a criança a mãe é gigantesca, ela
é protetora, então o molequinho pequeno chama e o braço da mãe vai lá atrás buscar ele. É
um efeito de formas animadas totalmente ligado com um conceito, a função cênica de mãe e
filho, a proteção. A gente fez em Blumenau e a critica gostou muito. A mão e a mãe, que
são essas proteções, essas grades de carinho, podem amparar a criança, podem pegar no
colo, podem bater também. Então as vezes eu provoco e a Surley acaba construindo,
desenvolvendo.
E: Uma última pergunta, que exigirá um pouco de imaginação... Se te convidassem
hoje para dirigir um teatro de atores, qual tu imaginas que seria tua maior facilidade ou
dificuldade por estar a tanto tempo trabalhando com direção de teatro de bonecos?
D: É mais a cabeça das pessoas. Se deixar levar, rodar as ideias. É uma indicação e
um retorno. O que eu tenho muita dificuldade é com ator que tem muito ‘truque’. Eu
acompanhei um trabalho que eu via o ator de frente e achava legal. Era um ‘Santos
Dumont’. O ator de frente era muito bom. E o diretor me chamou, como autor de texto, para
acompanhar. Um dia eu precisei tomar água e eu vi a peça de lado. E esse cara, num
diálogo do Dumont com Ícaro, um diálogo impagável, nesta cena esse ator esta meio virada
para o público e riu, e eu vi essa risada e vi que o cara era um mentiroso. Fazendo errado o
tempo inteiro. Era uma coisa estranha, porque o outro personagem, o mecânico do Dumond,
ele tirava gargalhadas da plateia. E tinha uma mulher, que era fascinada por ele, e que
tentava uma aproximação num diálogo lento, muito bonito. Mas sempre eu via e pensava
que havia algo estranho com aquele ator. Depois eu descobri que ele era só técnico. Ele era
até o autor do projeto. Mas era técnico, sem coração. Não tinha coração. E se não tiver
coração, se o elenco vier sem projeto não dá. Mas se vier com coração aberto vai dar certo.
Porque na arte tem isso, no sistema de atores tem gente muito oportunista. Infelizmente
ainda tem. Gente que quer entrar no SESC, quer vender, e que quer ser rápido. Isso não dá
certo. Porque a arte sabe a hora de ir. Como um texto, se eu tiver escrevendo e forçar muito
a barra não vai. O Luiz Alberto Abreu, trabalhei muitas vezes com ele, ele é o autor de “Hoje
e dia de Maria”, sucessos muito legais, ele sempre dizia que é importante sentar na
máquina. Mesmo que não saia uma linha, senta na máquina e isso vai contar ponto. Ele fala
que o processo artístico é doloroso, é uma sintonia, uma FM perdida no espaço. Não é a
qualquer momento que vai pegar. Você tem que estar lendo, estudando, você não pode
perder o foco, você vai aquecendo o quadro e daqui a pouco as coisas vão saindo, se
73
colocando. A mesma coisa com o ator. Tem que chegar, ter calma, ter colocação, não pode
ter truque. Truque é o grande problema. A rapidez é um truque. A gente briga muito com
Dionísio, ele vê tudo, ele não enxerga nossa roupa, ele enxerga nosso coração. O que você
fizer de errado vai voltar para você. Então a gente fala sempre nos ensaios para tomarem
cuidado com o que estão fazendo, porque tudo está sendo observado. Se você tentar
enganar, não adianta, vai voltar. O Édipo não tentou? E isso não e só grego, a filosofia, o
conto indígena trabalha muito assim. Porque você é provocador das coisas que vão
acontecer mesmo não querendo, ou não querendo você está fazendo uma ação. E essa
ação é o oráculo de tudo o que vai acontecer e voltar. Agora, eu não teria dificuldade, a não
ser que eu pegue esse ator que seja técnico, porque não adianta, tem que ter alma, o
princípio e a jogada. E eu insisto, como eu vi o teatro lá de fora, vi muitos, é lindíssimo, mas
você olha e vê só luz, direção, não tem as pessoas, não estão ali. Você não sente muito
uma pulsação, o teatro que é feito na Europa é muito técnico. Eu gostava muito mais de
dança por isso. Mas ator eu tive muita dificuldade de ver lá, a não ser coisas grandes, como
Bob Wilson, e coisas assim que você fica impressionado. Mas você estava falando de voz, e
a voz a gente trabalha assim, é uma coisa muito simples e bacana. O que suscita, o que
sugere um personagem? Por exemplo a gente tem no Portinari um personagem que é o
amassador de cacau, é para criança, pensamos em o que lembra o cacau, e a gente
começou a brincar com isso. Como se ele estivesse mastigando o cacau falando. Fica muito
legal, fica gostoso de ouvir ele falando. É muito simples, o ator vai emprestar um pouquinho.
Trabalhamos eixos. Trabalhamos localidades vocais, e depois pegamos a ideia e
trabalhamos ela. Fazemos exercícios para ver o que de melhor podemos encontrar. O Lobo
também tem uma reverberação, e o Caçador, por exemple é um pouquinho mais afetado.
E: E ele é meio medroso...
D: Ele é medroso, voz de cabeça um pouquinho. Mais ou menos isso. Eu tenho mais
dificuldade na borboleta, e a Surley me critica, pede outra voz. E eu acho que falta sim, falta
trabalhar uma velocidade, uma coisa mais flutuante na voz.
E: Bem, acho que é isso.
D: Espero que tenha te ajudado.
E: Ajudou muito sim, muito obrigada
D: É, eu sempre fiquei fora da cena, depois eu entro sim porque o grupo ele tem
reveses, tem um projeto que dura tantos meses. Depois tem que mexer no elenco, e pra
não perder projetos legais tem que substituir.
E: E tu enquanto diretor conheces o papel de todo mundo também. Por mais que não
saibas a manipulação..
D: Mas isso também é difícil. Conhecer é uma coisa, fazer é outra. Eu também
passei por isso. Falei “Ah eu sei” e da primeira vez eu me dei mal. Porque o diretor está
exatamente ao contrário da pessoa, está de fora e vê do lado contrário. Muitas vezes na
“Cuca” eu me pego entrando do lado do diretor e eu já vi diversas vezes. A “Cuca” deve ter
sido apresentada mais de 1000 vezes. Mas é uma alegria.
74
ANEXO B - Transcrição da entrevista com Miguel Vellinho realizada em 02 de
outubro de 2009, em Jaraguá do Sul.
Elisza: Bem, Juliano e eu conversamos sobre como estruturar esta entrevista, uma
vez que temos temas bem diferentes. Então decidimos que começarei com minhas
perguntas, logo em seguida ele fará as dele e então temos uma pergunta final.
Juliano: Totaliza 16 perguntas.
E: E acontece que uma já acaba completando a outra. A primeira pergunta e que
achamos indispensável fazer, é que quando estudamos tua carreira para fazer este
questionário percebemos que tua formação é de ator. Como tu te descobristes diretor? A
partir de quando e por que?
Miguel: Eu era do “Sobrevento”, fundei o “Sobrevento” também. Mas havia uma
questão ali no “Sobrevento” que era muito complicada, de cada um querer ‘vender seu
peixe’. E tinha uma questão desequilibrada, uma vez que havia um casal e eu. Então eu vi
que com o passar dos anos, o poder de voz do Luiz André, que era o diretor da companhia
cresceu. Eu comecei a sentir que o projeto da companhia não era muito mais meu. Fui
ficando preocupado com isso e fui vendo que as minhas vontades de experimentação não
estavam mais tendo eco ali dentro. E foi um momento muito crucial. Tivemos um espetáculo
que foi um divisor de águas. O espetáculo Ubu que era a partir do Ubu Rei do [Alfred] Jarry,
que montamos em 1996. E acho que ele foi muito definidor dos destinos. O Ubu era um
espetáculo super barulhento, com uma banda de rock ao vivo, e a gente vinha de uma série
de espetáculos totalmente diferentes daquilo. Era algo em que a figura do ator estava mais
em evidência, os espetáculos eram muito mais ‘boneco’ do que aquele ali. Então aquela
‘explodida’ do Ubu mexeu muito comigo Não que eu não gostasse do Ubu, eu gostava do
Ubu, mas a sequencia do que a gente ia fazer depois do Ubu me desagradava. Então eu saí
com uma falta de sintonia tremenda daquela situação. Mas eu pensei que eu queria
experimentar algo que no grupo não estava tendo mais muito espaço. Neste momento eu
juntei algumas pessoas que estavam em torno, algumas pessoas que até vinham
trabalhando como “Sobrevendo” e a gente montou uma grande oficina já pensando que dali
poderia sair um grupo onde eu poderia fazer o trabalho que eu queria fazer no “Sobrevento”,
que era o Sangue Bom. O Sangue Bom eu cheguei a propor para o “Sobrevento”. Montar
um espetáculo sem fala, uma história de vampiros, uma história de uma hora seguida.
Porque a gente vinha de uma sequencia no “Sobrevento” de dois espetáculos de
manipulação direta o Mozart e o Beckett, que eram espetáculos de quadros. O Beckett eram
três quadros de adaptações de peças do Samuel Beckett e o Mozart era um espetáculo de
cinco quadros contando a vida do Mozart. Depois disso teve o Teatro de Brinquedo que tem
um hiato, que eu considero como um hiato dentro dessa técnica da manipulação direta, mas
que era uma técnica que eu gostava muito. E eu queria experimentar o limite desta técnica
dentro de um espetáculo de uma hora, ao invés de quadros. Então eu propus isso e não tive
muito retorno. Então eu decidi fazer. Levei um tempo pra fazer, tiveram umas questões
internas do grupo, que acabou indo embora para São Paulo, e eu fiquei no Rio. Então eu
decidi, depois de um ano, montar este grupo de pessoas que acabou gerando o Sangue
Bom.
E: Bem, então desde o primeiro espetáculo da “PeQuod”, o Sangue Bom, até o
Lampião, que é o último, totalizando seis espetáculos...
M: Mais um quadro do Primeiras Rosas31, que apresentou aqui no início do festival.
E: Qual foi o quadro?
31
Espetáculo do Grupo “Pia Fraus”, de São Paulo, para o qual Miguel foi convidado a dirigir uma das
cenas em 2009.
75
M: A Terceira Margem do Rio.
E: Quando eu assisti pensei que este deveria ser o que tu dirigistes. Bem, mas em
todos estes espetáculos a direção é tua, e em alguns o Nini me falou que tu atuas correto?
M: Mais ou menos. Foram substituições que eu tiver que fazer. Quando eu vim em
2004 com O velho da Horta para o “Palco Giratório” uma das pessoas do elenco não podia
fazer a viagem, daí eu voltei a manipular. Mas é só porque o espetáculo estava pronto.
Então eu fiquei com segurança de entrar no espetáculo. Mas enquanto eu estou criando eu
fico de fora, totalmente, porque senão não tem como.
E: E tu identificas nos teus trabalhos uma constância nos procedimentos de direção?
Seja na ordem de execução, até porque tu também assinas os roteiro, então seja de repente
na ordem, primeiro o roteiro, depois o boneco, depois a cena, como isso acontece?
M: Primeiro vem a ideia da pesquisa. Isso acaba levando sempre um ano
pesquisando, lendo, e checando se é isso que eu quero fazer. Neste mesmo ano é o ano
onde a gente começa a fazer o projeto para tentar captar os recursos. Então é sempre um
ano de preparação que tanto é preparação da produção, de tentar levantar dinheiro, quanto
a preparação em que eu fico me preparando, me alimentando, pesquisando, lendo. E depois
mais um ano ou oito meses ensaiando. Geralmente é assim. Então a companhia acabou
ficando na manipulação direta, porque todo mundo gosta, porque eu particularmente sempre
acho que tem mais alguma coisa a ser explorada junto com essa técnica. A gente meio que
ficou nesta técnica. Novas questões apareceram. Nos dois últimos espetáculos existe uma
interação com o ator muito maior do que tinha do Filme Noir para trás, que até chamo de um
segundo capítulo dentro de nossa trajetória. Quando começou esta mescla. E acho que o
Primeiras Rosas também tem isso, de uma mescla muito evidente, de juntar
harmoniosamente no mesmo espaço o boneco e o ator. Então a gente se fixou nessa
técnica, acho que ainda não apareceu nenhuma outra técnica que nos mobilizasse tanto.
Até tem uma questão da sombra que estamos ‘namorando’, mas ainda não achamos algo
que dá pra fazer com a sombra. Mas a gente tem um leve ‘namoro’ com ela. Então na
verdade estes procedimentos partem primeiro de uma pesquisa e depois de um
estabelecimento. Já que estamos continuando a trabalhar com a mesma técnica
procuramos agregar coisas diferentes, é o mesmo ‘quebra-cabeça’ mas tentamos fazer uma
figura diferente com esse ‘quebra-cabeça’. É mais ou menos assim que a gente trabalha.
Num primeiro momento nós tivemos essa a linguagem cinematográfica muito à frente de
nossa pesquisa, e que acabou gerando dois espetáculos que são o Sangue Bom e o Filme
Noir. E acho que isso do cinema acaba permeando o resto. Depois tiveram questões
isoladas, por exemplo, mesclar música ao vivo, algo cantado, onde os atores manipulem e
cantem também, e então foi o Auto de Natal que a gente fez. Então sempre tem alguma
coisa que a gente ou coloca ou retira. No Filme Noir a gente voltou às questões do Sangue
Bom, mais aprofundadas.
E: E essas ideias de tirar ou colocar vem de ti ou também dos atores?
M: Olha, até o Filme Noir era muito minha. No Peer Gynt teve uma ‘virada de mesa’,
que até hoje a gente não entendeu o que aconteceu. Tiveram uns desacertos dentro do
elenco. Então eu falei: “ah, então vocês querem algo onde o ator esteja mais a frente?
Então vamos fazer.”
E: E deu certo, na relação entre diretor e atores?
76
M: Sim. Num primeiro momento existia uma pré-ideia do Peer Gynt de montar com
bonecos. Era um cenário muito bacana, eu ainda quero fazer um espetáculo com esse
cenário. Tem essa questão espacial que sempre vem na minha cabeça também junto com a
ideia do espetáculo. Depois a gente fala disso. Chegou num momento em que algumas
pessoas do elenco disseram: “outra vez um espetáculo de boneco, igual ao outro...”. Eu falei
que não era igual ao outro, era uma coisa nova, um texto novo, pegar Ibsen e trazer para o
Teatro de Bonecos. E num primeiro momento as pessoas ficaram bastante incomodadas
com esse novo trabalho. Na verdade eu tinha montado um esquema de um ator tal fazer o
Peer Gynt, a atriz tal fazer a mãe, alguns personagens eu já sabia o que iam fazer. E o ator,
justamente o ator do Peer Gynt, estava completamente insatisfeito com o processo e caiu
fora. Então eu propus: “Então se vocês não estão contentes, ok, a gente muda. Mas vamos
mudar radical. Vocês estão dispostos?” Então aquele ator estava fora do projeto, e a gente
voltou a ensaiar, eu mudei toda a concepção do espetáculo e ele pediu para voltar. Eu disse
que sim, mas ele não voltou para o papel do Peer Gynt, porque nesse meio tempo outra
pessoa entrou, eu fiquei muito feliz com a energia que essa pessoa deu pro personagem. Eu
falei que não mexia mais, que ele podia entrar, tinha até um personagem bacana para ele,
mas que ia ficar assim agora. E deu muito certo. Uma pena que a gente não tenha
conseguido trazer nem pra Jaraguá, nem para Florianópolis. Foi um espetáculo ‘ultra’
elogiado no Rio de Janeiro. A Bárbara Eliodora considerou um dos dez melhores
espetáculos do ano. Teve duas indicações muito importantes para o [Prêmio] Shell, que é
melhor cenografia e melhor direção. Foi muito feliz. Foi um resultado muito especial para
gente. E colocou a “PeQuod” em outro patamar dentro do panorama do Rio. Muitas outras
pessoas vieram ver. Pessoas de influência, formadores de opinião. Também pessoas que
nunca se ligaram em Teatro de Bonecos. Que nunca acreditaram ser possível Ibsen com
Teatro de Bonecos. Então, essa coisa dessa margem, de ficar empurrando essa linha do
que pode e do que não pode, o Peer Gynt é um exemplo muito claro de um lugar que a
gente conquistou, que a gente não tinha chegado até então.
E: Neste espetáculo, que infelizmente ainda não tivemos a oportunidade de assistir,
mas pelo o que conseguimos de informações, há uma relação bem clara do ator que
manipula e do ator que atua. Não sei se nesse espetáculo há, mas em outros sei que há a
relação do ator que anima o boneco, e que em certos momentos atua enquanto mesmo
personagem que o boneco. Enquanto diretor, quais tu consideras as maiores necessidades
dos atores para conseguirem fazer esses dois papéis e ao mesmo tempo manter uma boa
relação entre animar e atuar?
M: Vou falar um pouquinho do porquê disto. Tinha uma questão na própria peça do
Ibsen de que o Peer Gynt é um cara em cima do muro. Ele é um cara que a vida coloca
situações para ele, e ele totalmente amoral sempre arranja um jeito de tirar o corpo fora.
Tem uma coisa meio Macunaíma nesta história, meio malandro, de não se posicionar. E a
vida vai dando coisas para ele e as consequências são cada vez mais graves. Até que uma
pessoa morre por consequência de uma decisão errada dele e em determinado momento a
vida vem cobrar essa falta de postura do Peer Gynt. Nessa mesma época a gente estava
lendo muitos textos de filosofia de determinados autores que falavam daa perda deste eu,
do sujeito contemporâneo, e que nos instigava muito. Eram coisas muito bacanas que
tinham a ver com o Peer Gynt. Você fica tão embriagado que você vê referencia em tudo. E
na verdade a forma final do espetáculo é justamente materializar essa perda do eu
moderno, que o Ibsen já anunciava lá no início do século XX, final do século XIX. Então
estes dois sujeitos, sujeito boneco e sujeito ator, Peer Gynt ator e Peer Gynt boneco era a
fórmula perfeita para fazer este espetáculo. Era a nossa tese, digamos assim. Pegamos
essa peça por isso. Quando você pergunta de dificuldades, acho que tiveram questões
técnicas muito visíveis nessa divisão. Precisamos de um trabalho muito rigoroso de foco, de
onde está o boneco e onde está o ator, agora é o boneco, agora é o ator. De uma
consciência corporal muito violenta, de uma noção de neutralidade cada vez maior. Também
77
porque além de tudo a gente resolveu fazer tudo em um espaço em branco. Então o cenário
é todo branco, o fundo branco, o piso branco, que reflete. Os atores todos vestidos de
branco. Não um branco absoluto, algumas coisas em creme. Figuras muito escuras,
bonecos muito escuros e o fundo todo claro. Então tudo revelado, tudo a mostra. Nenhum
resquício de ilusão. Nenhuma vontade de enganar o público Mas mostrar este jogo de é
boneco ou não é, agora é ator, agora superdimensiona o boneco, agora é ator. E é o tempo
inteiro isso. A gente foi construindo a partir disso, e essas foram as grandes exigências de
direção dessa montagem. Ficar atento a neutralidade, em relação a essa divisão do ator.
Era uma coisa que a gente ‘raspou’ em algum momento mas não era tão claro assim. Nunca
teve isso, teve alguns ‘relampejos’ disso no Filme Noir, no Velho da Horta, onde a situação
estava exposta, mas era de outra maneira.
E: Eu pude assistir O Velho da Horta mês passado em Florianópolis, e percebi que
não há uma preocupação em deixar o ator-animador neutro.
M: Não, exatamente. Ele está ali e a brincadeira é todo aquele jogo ultrarrealista ali
embaixo, com flor, chuva, água. Algo ultrarrealista, mas claro que não é realista, porque a
proporção é outra, os atores estão ali. Eles tem um ‘quê’ de neutralidade, mas também a
gente não está escondendo.
E: Se fala e escreve muito sobre esta disputa entre ator e boneco, sobre o boneco
ser o ator ideal, sobre a marionetização. Tu já reparaste em alguma montagem tua se houve
essa disputa, e se houve como tu resolveste?
M: Sim, no próprio Peer Gynt. As pessoas estavam querendo fazer outra coisa. Teve
muito material aí, real, visível, tátil. Porque era um grupo de atores que queria conquistar um
pouco mais de espaço da cena. Não sei se por vaidade, não sei se por enfado de achar que
não estava mais acrescentando. E a gente viu que a única possibilidade de continuar juntos
era dar essa ‘virada de mesa’. Para mim foi uma mexida violenta, porque eu vinha com uma
concepção e tive que mudar. Acho que até mostra um pouco da minha maleabilidade de
aceitar o que para eles estava esgotado, mas que para mim não estava. Acho que eu posso
retomar em um outro momento, recuar de uma outra forma, em algum momento, ou com
outro elenco. Mas era uma necessidade real daquele grupo, de atuar um pouco mais a
frente. Então eu acatei a vontade da maioria. Pedi uma semana para pensar em casa, e
então recomeçamos. Foi isso.
E: Tu abdicaste da tua ideia em prol do grupo.
M: Sim, em prol do grupo. E acho coerente. Acho que naquele momento as coisas
faziam sentido. E com o pessoal da “PeQuod” eu cobro muito uma postura mais ativa, que
eles proponham também o que montar, porque só eu proponho. Tem algo de dispersão lá.
Eles tem vontade de fazer coisas com outras pessoas, e ter ideias com outras pessoas, mas
nunca trazem uma ideia para dentro do grupo. Então acabo eu com a responsabilidade de
trazer e dizer: “quero montar isso.” E então é um processo de convencimento, de porque eu
quero montar, porque tem a ver com algo que aconteceu antes. Eu acho que os espetáculos
da companhia tem um encadeamento. Porque isso veio depois daquilo, porque algo
aconteceu em determinado momento. Se você pega a trajetória pelos espetáculos, eles
contam e encadeiam toda uma investigação, uma curiosidade, uma pesquisa que
desenvolvemos ali dentro.
E: Mudando um pouco o foco, mas que tem a ver com a minha pesquisa e que me
interessa saber sobre teus procedimentos de direção. As vezes o diretor concebe uma ação
para o boneco, ele pede que o ator execute e as vezes por incapacidade da estrutura do
boneco, ou mesmo do ator, esse movimento não se realiza. Tu, enquanto diretor, qual é teu
78
procedimento para resolver esse problema? O que tu fazes para conseguir chegar naquela
imagem que tu imaginastes?
M: A gente sempre faz a confecção no final, quando a gente definiu o personagem, a
roupa, quando a gente achou um desenho, uma foto, uma imagem, que o boneco deva ter
mais ou menos essas características. A confecção sempre chega num período final, quando
a gente já sabe muito bem o que a gente quer dos personagens. E quando os atores
também deram informações para aquele personagem que a gente acaba incorporando na
escultura dele, ou no corpo, no jeito de ser, na forma. Então a gente sempre acaba
trabalhando com bonecos antigos de outros espetáculos ou com uns protótipos que a gente
tem e que acabam sendo manuseados por um grande tempo durante o processo de ensaio.
Então não temos muito problema neste sentido porque, para o bem ou para o mal,
acabamos trabalhando sempre com uma mesma proporção de bonecos. Então nós não
temos muita diferenciação. A questão dos movimentos, das ações, muitas das coisas são
levantadas em ensaio a partir do trabalho dos atores. A gente faz as ações e então fazemos
uma adaptação daquela ação para o boneco. Por exemplo, a dança da Verônica, no Filme
Noir, eu não tinha capacidade de criar uma coreografia para uma música. A cabeça de uma
coreógrafa faz daquela música, daquele ritmo, daquele refrão, daquela estrutura musical,
traduz aquilo em movimentos, muito melhor do que eu e em muito menos tempo. Então a
gente chamou uma coreógrafa para coreografar a dança da Verônica. Assim como a
chegada do caçador no Sangue Bom também é toda coreografada. Tem essa
particularidade de a gente pegar os movimentos humanos e adaptá-los para uma situação
com boneco e quando a gente acha uma necessidade muito intricada, como foi o caso da
Verônica, a gente recorre a alguém que trabalha com o corpo. E não só o elenco aprende a
coreografia em si próprio, como depois a gente passa para o boneco. Muitas das coisas
que a coreógrafa cria não dá para fazer com o boneco, temos que fazer outra coisa. É um
período muito bacana, porque você vê os dois lados da questão. Uma ideia sendo jogada e
a adaptação dessa ideia para o boneco.
E: E tu trabalhas com algum treinamento específico para o ator-animador, ou esse
treinamento se dá a medida que tu estas construindo a cena e ensaiando?
M: Quando é alguém que tem que entrar para a companhia, a gente faz um trabalho
específico, diferenciado, e que não une as questões da cena. Mas que une as questões
daquele tipo de boneco, de um tipo de trabalho que a gente executa constantemente, de um
jeito de levar a cena como a gente leva. Tem várias questões que até é difícil de explicar.
Mas é um jeito que a gente achou de trabalhar e que a pessoa tem que entender aquele
jeito. Então passamos por um período de experiência onde a gente trabalha com a pessoa
para determinadas questões muito presentes o tempo inteiro do trabalho. Depois ela
incorpora um espetáculo e então ela vai trabalhar a questões deste espetáculo.
E: Já na montagem?
M: Sim, já na montagem do próprio espetáculo.
E: Voltando a questão de tu também seres o dramaturgo, eu pude perceber na
minha pesquisa que é constante isso de o diretor no Teatro de Bonecos ser também o
dramaturgo. Tem várias pessoas que trabalham assim. Mas para ti onde está a separação
destes dois? Onde acaba o dramaturgo e começa o diretor? Ou o dramaturgo está o tempo
todo? Para ti, pelo o que eu percebi é essencial ser o dramaturgo também, acho que faz
parte da tua direção, não?!
M: Não, não. Se você for ver, autoria mesmo é só o Filme Noir. Porque o Sangue
Bom é uma coisa de todos, praticamente. Um espetáculo onde eu tinha um início, tinha um
79
fim e todo mundo criou. Eu tinha um roteirinho, tinha um final, mas não sabia como chegar
nesse final. Ficamos um ano treinando dentro de uma sala para fazer um início, meio e fim.
A autoria mesmo só tem o Filme Noir. E te digo mais, acho que a gente cresceu com o
contato dos autores de fora. Nessas duas grandes experiências. Numa experiência que
posso chamar de embrionária que foi O Velho da Horta. Mas que foi muito bacana naquele
momento do grupo. O Velho da Horta é o terceiro espetáculo. O Sangue Bom foi um
processo conjunto, o Noite Feliz também foi um processo conjunto, mas com texto, e O
Velho da Horta foi o primeiro momento em que chegou um texto para gente. Um texto difícil.
Um texto que era todo em versos. Um texto que precisou de uma adaptação violenta
internamente. Ou seja a gente destruiu toda a peça por dentro, mas manteve toda a
estrutura. Porque eu queria manter a estrutura. Queria um espetáculo em versos, mas não
aqueles versos porque as rimas daqueles versos eram impossíveis, as pessoas não
entendiam nada. Então a gente refez O Velho da Horta do jeito que ele é. Mas com um texto
não totalmente diferente, mas bastante modificado. E acho que foi um momento dentro da
companhia de um crescimento, de um amadurecimento artístico muito grande. De um
amadurecimento interpretativo, de um amadurecimento artístico. Acho que a gente viveu um
momento ali muito interessante. Foi um momento de descoberta eu acho, para alguns
atores isso é muito claro, o contato com aquele texto do Gil Vicente foi importante. A compra
da minha ideia em relação ao que a gente poderia fazer com aquele texto foi um momento
muito interessante. E que depois se repetiu com Ibsen. Superdimensionado em tudo. Com
muito mais dinheiro, com uma verba muito maior do que a que a gente teve com O Velho da
Horta. Com ambições muito maiores. A gente queria trabalhar também como ator.
E: Eles cantam também no Peer Gynt?
M: Tem uma atriz que já havia trabalhado com a gente... Bem, vou explicar
rapidamente, isso eu nunca falei, isso é preciosidade. Tinha uma menina do grupo que
estava saindo da companhia. Estava indo morar em São Paulo. E inicialmente eu tinha
pensado para ela o papel da Soulvake, que é o grande amor do Peer Gynt. Eu tinha
pensado que ela iria fazer a Soulvake, e estava tudo resolvido. Então ela me veio com essa
história que estava ia embora do Rio de Janeiro. Então pensei em inúmeras possibilidades,
e uma das possibilidades, que foi um risco mesmo, foi trazer uma atriz que é cantora e que
havia feito Noite Feliz com a gente, que é um espetáculo que é cantado, é musical. Foi uma
aposta minha. Pensei: “Será que essa menina vai dar conta do texto? Porque cantar eu sei
que ela canta maravilhosamente bem.” E ela topou, eu topei. E a questão da entrada dela
no elenco modificou todo o final do espetáculo. O espetáculo é cantado no final, ela canta
uma área porque é ela, senão o final teria sido outro. Tem outro momento no espetáculo que
ela canta também uma música à capela, e tem um final que é... não vou falar porque vocês
não viram. Mas que foi todo modificado também pela entrada dela, pela entrada de uma
cantora. Uma atriz que canta, ela mais canta do que propriamente representa.
E: Tu vês alguma dificuldade em dirigir um ator que está manipulando e cantando, e
ao mesmo tempo que estar um pouco neutro. Quando ele canta já perde muito desta
neutralidade. Como que tu procedes nesta situação?
M: Ficar gritando o tempo inteiro: “Menos, menos, menos, olha essa cara!”
E: Tu chamas a atenção deles então?
M: Sim, sim. E esse final era totalmente inesperado para mim, mas quando ela
entrou no elenco ela me deu o final da peça. E foi muito legal, porque eu não sabia como eu
ia terminar. Quando eu tive a Mona no elenco, quando ela me disse sim, eu já sabia como
terminar. E o final é muito bacana. É lindo porque é ela cantando, é uma outra coisa que se
abre.
80
E: Pelo o que tu estas falando tu que selecionas quem vai manipular os bonecos, e
tu já escolhes ou pões eles para manipular antes? Apesar de que tu já conheces eles...
M: É, eu já conheço. Raramente tem um: “ah não, achei que era você, mas era
outro..”. Raramente tem isso. Na verdade as coisas são bem direcionadas. Te confesso que
fiquei bastante decepcionado quando o ator saiu do Peer Gynt, porque eu estava fazendo
para ele, porque eu acho que ele é um ator maravilhoso, e que precisava de um
protagonista na vida dele. Mas ele tem uma ‘protagonismofobia’ e pulou fora. Mas adoro ele.
Então é isso, as coisas são muito pensadas. Porque é um grupo, estamos a dez anos
trabalhando juntos. Tem uma razão de ser de a gente estar junto esse tempo todo. Tem um
carinho, tem um olhar meu e penso: “Pô, quero que você faça tal coisa.” O modo de seu ser
carinhoso é assim: “Estou fazendo isso, quero que você faça, é pra você, a princípio você
pode achar que isso não e a sua cara, mas eu só consigo imaginar você fazendo isso aqui.”
E: E tu não tens vontade de voltar a atuar?
M: Tenho.
E: E é um plano?
M: É um plano que esteve perto de se concretizar. Mas a gente perdeu um edital, e
eu engavetei.
E: Mas quem irá dirigir se tu atuares?
M: Ah, é um segredo...
E: Partindo agora para o tema do Juliano, é uma pergunta bem simples. Quem
constrói os bonecos da companhia?
M: Isso varia, porque assim, tem umas pessoas que sempre permanecem na
confecção que são pessoas de dentro da Cia. e que gostaram desse ‘barato’ de confecção
que não é para todo mundo. É um trabalho chato, difícil cansativo, eu também não obrigo
ninguém a fazer a confecção, faz quem quer.
E: Mas tu orientas?
M: Tem uma orientação minha. Neste ultimo espetáculo, no Lampião, a gente teve
muito problema, porque justamente foi um espetáculo no qual eu me ausentei
completamente da confecção. E foi complicado, porque teve questões que não ficaram
totalmente concluídas e que talvez a gente desenvolva em um outro momento. Foi onde eu
realmente senti que eu não posso me afastar tanto assim da confecção, acho que foi um
erro meu, mas assim, deu tudo certo. É que os procedimentos dentro da confecção foram
muito confusos, mas deu tudo certo no fim. Mas eu sinto real necessidade de estar junto.
Não dá, não é uma direção fria, acho que tem que estar junto ali também, porque são os
meus atores também. Os bonecos são os meus atores também, então o diretor tem que
estar junto também dos bonecos. Teve um problema sério ali de condução que quase
desandou uma coisa que ia ser trágico. Mas não foi. Deu tudo certo no final.
J: Bem, o tema da minha pesquisa é bem mais específico, trata-se de um espetáculo
em especial, que é o Sangue Bom. Então elaborei algumas perguntas sobre ele. O que
surgiu primeiro neste espetáculo, a forma de manipulação, a ideia do cenário, o texto...?
M: O tipo de manipulação?
81
J: Isso.
M: Então, é isso que eu estava falando antes, era um desejo meu fazer um
espetáculo de tempo corrido, de uma hora, só com uma técnica, sem texto. Conforme eu
disse, eu vinha do “Sobrevento” com dois espetáculos de manipulação direta, mas os dois
eram quadros, um era o Becket e o outro era o Mozart Moments. Queria ultrapassar essa
questão do tempo do quadro, de 15 minutos, de 20 minutos, queria fazer um espetáculo de
uma hora, com manipulação direta. Nunca tinha feito isso na minha vida, queria
experimentar isso, e então essa foi a primeira ‘parada muito antes de aparecer a ideia do
vampiro, muito antes de vir a história, muito antes de vir o cenário. A primeira questão foi
essa: “o que é o tempo corrido com essa técnica e sem texto? O quanto esses bonecos sem
a utilização do texto podem ser expressivos? Será que dá pra contar uma história sem texto
com essa técnica?” Eram essas as primeiras indagações em relação ao Sangue Bom, as
primeiras, absolutamente primeiras. “Será que dá pra fazer um espetáculo de uma hora sem
texto?” Isso acabou norteando uma ‘coisa’ que depois foi uma vontade pessoal minha, de
trabalhar com uma figura que ajuda a contar a história. Aquela figura que se metamorfoseia,
que vira vampiro, que vira morcego, que desaparece, que flutua e que, com os pés fixos no
chão, tomba com o corpo reto, lentamente até o chão. Isso é boneco. A figura do vampiro,
por N questões, pela questão cinematográfica mesmo, por ser uma figura sedutora, por ser
essa figura que voa. Isso tudo era muito instigante, e também pra trabalhar uma hora tem
que ser uma personagem que gere surpresas a cada cena. Então aí acho que foi entrando a
figura do vampiro e veio a ideia de um triângulo amoroso entre uma suicida, um vampiro,
que é um morto-vivo e um caçador de vampiros, que é também um vivo e que quer eliminar
o morto. É em cima de uma brincadeira clássica de triângulo amoroso, de mil armadilhas pra
um eliminar o outro, e um atrás do outro, e uma menina que a principio tem uma falta de
apreço pela vida, que quer se entregar à morte, e um vampiro não deixando que ela morra
porque ele está perdidamente apaixonado por ela. Mas ele é uma figura que causa medo,
então até ela ter consciência que ele não quer apenas o sangue dela, mas sim ela, porque
ela pode ser a fonte de vida dele. E foi essa brincadeira que acabou empurrando o
espetáculo para frente.
J: E o cenário surgiu em que momento?
M: O cenário surgiu muito depois, num ‘insight’ que eu tive. Um ‘coisa’ que eu queria
é que esse cenário não fosse fixo no palco – já falei isso em texto – queria um espetáculo
em que cada cena acontecesse em um canto diferente. Queria que tivesse mobilidade, que
não fosse um cenário estático, mas sim que fosse um cenário que transitasse pelo palco
todo. Então vieram as rodinhas, e com as rodinhas nos praticáveis veio a ‘sacação’ de que
aqueles cenários se mexendo, davam a ideia de ‘traveling’, de movimento de câmera. Então
veio a ideia de agrupar a isso os bonecos duplos, para dar uma rapidez maior de edição.
Assim veio a questão da linguagem cinematográfica. E quando chegou a hora de amarrar a
‘coisa’, veio essa questão das caixas, de que um vampiro tem que ser transportado no seu
caixão, junto com a terra da cidade natal dele, que já é uma indicação do conto do Drácula
mesmo, do vampiro. E por isso a ideia de caixas que se abriam e revelavam não só o
interior do castelo, mas também a ideia da caixa pela caixa mesmo. E as caixas é que
ditaram os figurinos dos atores, ditaram as posturas dos atores. São caixas que estão na
beira de um porto, onde eles estão trazendo um carregamento e então uma dessas caixas
se rompe, e do rompimento dessa caixa aparece um ‘caixãozinho’ e sai de dentro dele um
morcego deflagrando toda a ação da peça. Então eles são estivadores de um porto, estão
vestidos como estivadores, todos em farrapos. Estivadores de um momento histórico
anterior. E assim as coisas foram se amarrando, com as caixas, com o porto, com o trabalho
braçal – braçal como é a manipulação também.
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J: Tudo isso já responde praticamente a minha segunda questão que é sobre o que
foi levado em consideração no momento de conceber o cenário. Vamos para a terceira que
é sobre a influência de outros segmentos (artísticos, tecnológicos, etc). Houve alguma
influência deste tipo além do cinema?
M: Muito da nossa brincadeira com o Sangue Bom – porque foi uma brincadeira
mesmo – veio também dos desenhos animados. Eu falava: “gente, a gente tem que ver, tem
que assistir, tem que ver, tem que ver”. Porque estava ali o cerne da brincadeira da peça.
Era o desenho do papa-léguas e do coiote. O coiote sempre armando armadilhas para o
papa-léguas, mas ele nunca conseguia. Então a gente queria fazer essa transposição na
qual o caçador de vampiros era o coiote, sempre armando mil ‘parafernálias’ que nunca
davam em nada e o vampiro era o papa-léguas que está aqui e está lá, ultrarrápido, voa.
Então essa brincadeira do desenho animado, a linguagem do desenho animado, estava
muito presente nesse momento de olhar as figuras como se fossem figuras de desenho
animado, de brincar com as impossibilidades de gravidade, com essa ideia de perseguição
constante que é a mola mestre do espetáculo. Dramaturgicamente podia ter muito pouco ali,
mas havia um campo de investigação muito grande nessas questões espaciais, nessas
questões da linguagem cinematográficas, nessa apropriação do desenho animado. Acho
que não só o papa-léguas, mas outras coisas, o caçador de vampiros é declaradamente
copiado do Jonny Bravo, que era uma figura legal daquele momento do final dos anos
noventa. Então tem essas figuras que fomos aproximando. O desenho animado era grande
fonte de inspiração.
J: E o cinema está ligado também ao desenho animado...
M: É, pois é, também estava muito ligado a cinética do que estávamos querendo
trabalhar. Mas acho que a linguagem cinematográfica ali, está muito mais numa questão de
encenação e o desenho animado está muito mais na questão dos personagens, das ações
dos personagens, de como eles poderiam se estruturar, quem eram eles e tal.
J: Poderia dizer da confecção inclusive?
M: Inclusive!
J: Houve alguém responsável por essa área especifica, da cenografia, da confecção
plástica dos espetáculo??
M: Do Sangue Bom?
J: Sim, sempre do mesmo espetáculo.
M: No Sangue Bom havia uma cenógrafa, Andréa Henk Reis, que também era
manipuladora do espetáculo. Mas a ideia das caixas, foi uma ideia que eu ‘joguei’ para ela.
Ela havia trazido uma ideia de um cenário estático, e eu falei pra ela: “não Andréa, acho que
não pode ser isso”. Porque era algo que eu não estava querendo, uma ‘coisa’ estática que
entregasse o cenário desde o início do espetáculo, e tudo iria acontecendo em cima de um
‘balcãozinho’ – que aliás, acho que é a minha grande ‘pinimba’ com o teatro de animação –
essa ‘coisa’ que... você chega, você olha e decifra o percurso do espetáculo... “ah ta, vai vir
dali, vai atravessar por lá, ok, já posso ir embora”. Não precisa mais assistir. Porque não tem
surpresa, não tem ‘virada de mesa’, não tem nada. Acho que existe certa preguiça de olhar
o teatro como uma arte cênica com todas as maiúsculas possíveis que possam ser
colocadas aí. Preguiça de se apropriar do espaço cênico. Acho que muita gente sobe no
palco tímido, traz um cenário tímido, traz uma postura tímida, traz uma proposta tímida e
assim, de certa maneira, eu sou bem escandaloso nesse sentido, porque eu acho que é isso
aí, se apropriar cada vez mais, revelar cada vez mais. Acho que o Peer Gynt tem muito
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disso, de dizer: “não gente, é tudo branco, tudo branco e a gente quer estar neutro aqui, e
tudo vai ser igual, tudo vai ser lindo, mas agora é tudo branco, é tudo revelado e a gente não
quer esconder nada”. Então tem essa questão. Eu falei para Andréa: “não Andréa, esquece
essa ideia de cenário estático, porque não pode ser isso”. Então eu fiquei meses
‘matutando’ atrás desse conceito das caixas, de caixas que se abriam. E aí ela trouxe a
forma final das coisas, como essa caixa abre, qual é a aba que abre primeiro. Tudo isso foi
ela, o formato das caixas, caixas que juntas formavam um castelo. Então a quantidade de
caixas e toda essa questão mais técnica, foi ela quem trouxe. Mas a questão da caixa foi
mais minha.
J: E ela tem alguma formação?
M: Ela é cenógrafa.
J: Mas cenógrafa de formação, ou vem das plásticas antes de ir pro grupo?
M: A Andréa é cenógrafa e ela só trabalhou no Sangue Bom. Era uma indagação
momentânea da vida dela trabalhar com bonecos, ela ficou um ano com a gente trabalhando
com afinco todos os dias. Ela não estava numa postura de cenógrafa do grupo, ela era a
figura de uma curiosa do teatro de bonecos que resolveu se aventurar numa situação de
atriz-manipuladora. Ela até já havia dançado, houve um momento de dança na vida dela,
mas na época ela era uma aluna de cenografia que estava se formando, e que queria ir a
frente com cenografia. Não queria ficar como atriz-manipuladora, integrante de um elenco.
Então depois de um ano nós estreamos, fizemos várias apresentações depois da estreia,
mas ela disse que essa não era a vontade dela, disse que queria ser cenógrafa. E também
por uma questão de visão, eu achava que não seria ela a cenógrafa da Companhia. Acho
também que não existe este cargo, acho que acabou vindo outra pessoa que soube suprir
as questões cenográficas da Companhia. Naquele momento foi um ‘bate bola’ meu com a
Andréa e a gente conseguiu resolver. Sobre o Sangue Bom, é isso que eu tenho pra te
responder.
J: Essa próxima questão também já foi um pouco respondida nas anteriores. É sobre
a relevância do cenário para este espetáculo.
M: Pois é, o cenário do Sangue Bom dita a encenação. E eu acho que não só o
Sangue Bom... Acho que sou bastante visual, que consigo chegar nos cenógrafos já com a
ideia do que eu quero muito levantada. Os cenógrafos acabam complementando a minha
ideia, ou formatando a ideia para aquilo acontecer. Eu digo: “quero que aconteça isso nesse
espetáculo, vai ter que existir um lago”. Eu já chego com a ideia bem avançada. No Sangue
Bom o cenário é a mola mestre de tudo, até por essa percepção cinematográfica que
tivemos durante os ensaios, no momento em que colocamos rodinhas nas caixas. Não
tínhamos dinheiro nenhum quando começamos a trabalhar nesse espetáculo, não havia
nada. Para você ter ideia, começamos a trabalhar em cima de mesas e quando vimos que
as mesas não seriam estáticas, arrumamos várias caixas de geladeira e ficávamos
arrastando essas caixas deitadas para fazer as composições que precisávamos. Não
podíamos ficar levando mesas para os ensaios, então a gente montava e desmontava
caixas de geladeira todos os dias para ter essa cinética no espaço. Eu acho que ela [a
cenografia] acabou ditando tudo o que é o espetáculo. E acho também que ela acabou
ditando uma cara da companhia. Afinal o que queríamos? Queríamos apenas montar um
espetáculo, ou queríamos propor artisticamente outra coisa? E acho que essa outra ‘coisa’
que queríamos propor vem muito do espaço, vem dessa utilização do espaço, do uso da
cenografia como uma contadora, também, da ação. Então o cenário do Sangue Bom conta a
história, vai te apresentando a história. “Agora você vai ver isso. Agora nós giramos e você
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vê isso. Agora nós fechamos porque agora haverá outra caixa que abrirá e contará outro
pedaço da história”. Então ele conta a história, ele é ultra importante.
J: Um dos motivos da escolha deste espetáculo da “Cia. PeQuod” foi esse. Porque
quando comecei a pensar na pesquisa, tinha outro viés, que era trabalhar a ampliação do
espetáculo, incluindo, também o manipulador na cena, na linha narrativa do espetáculo.
Quando comecei a ler o seu artigo na Móin-Móin, eu pensei que esse seria um dos
espetáculos que deveria entrar nessa pesquisa.
M: Que legal.
J: Mudou um pouco o conceito da pesquisa, deixei um pouco de lado aquela ideia da
cenografia como ampliadora da linha narrativa, mas ainda assim continuo com a ideia de
pesquisar cenários...
M: Que contam?
J: Isso, e que fogem ao padrão do tradicional.
E: Que não são adereços, que são cenários.
J: E mais uma vez não daria para deixar de fora algum espetáculo da “PeQuod”,
então escolhi Sangue Bom por toda essa exploração, o cinema, a ideia dos manipuladores
estarem na cena como personagens daquela história também.
M: E é o que se fala muito hoje, do teatro em camadas A cena se problematizou,
sobretudo no teatro de bonecos onde você tem camadas de representação ali, você tem o
ator, o manipulador, o boneco, às vezes a miniatura daquele boneco em outra situação,
então você vê as camadas de representação ali colocadas. Acho que Peer Gynt é mais
revelador nesse sentido porque nós ficamos transitando de uma camada para a outra, mas
o Sangue Bom já tem isso, porque há ali uma situação de palco que já se expõe em
camadas.
J: Não sei exatamente qual o ano de criação do espetáculo...
M: 1999.
J: Mas me parece ser um dos primeiros espetáculos que declara mais – pelo menos
que eu consegui investigar pelo Brasil – essa exploração do cenário. Parece que é uma
característica muito forte da “PeQuod”, inclusive a nível de Brasil.
M: É, eu acho que tem essa minha preocupação que vem das artes plásticas, que
vem, portanto, de visualidade. E eu acho que muita gente não está preocupada com a
visualidade do espaço cênico, acho que as pessoas pensam que resolvendo o suporte de
manipulação, está resolvido. Exemplo: “qual o balcão que vamos fazer agora? Porque
trabalhamos com teatro de bonecos de manipulação direta, e necessariamente devemos ter
um balcão”. Mas a preocupação ‘morre’ no balcão, no tipo de balcão, quando na verdade,
tem as pernas, o fundo, o chão. Parece que existe... Não digo um desleixo... Mas até uma
inconsciência de que está tudo ali atrás chamando. Pô, não vai trabalhar isso também, vai
desperdiçar esse espaço? Eu acho que é um medo de trazer uma informação que possa
complementar aquele balcão que vai estar ali na cena. Medo de pensar o espaço como um
todo, de pensar que tem pernas que podem ser verdes, que tem um fundo que pode ser de
outra cor ou de outro padrão, ou cheio de escadas, sei lá. Pelo menos eu penso assim, você
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não pode tomar conta daquele espaço por uma hora ou uma hora e meia, só com um
‘balcãozinho’, são poucas ambições. Nesse sentido acho que somos muito ambiciosos.
J: É deixar de ‘estrelar’ demais o boneco. Parece que no Teatro de Bonecos tem
muito isso.
M: Mas eu acho que não deixamos de focar no boneco. Mesmo quando entrou a
questão dos atores no Peer Gynt, e agora no Lampião, eu acho que o boneco continua com
a mesma importância, com a mesma preocupação que sempre tivemos. Não estamos num
momento de transição, estamos em um outro momento, isso não significa que logo
abandonaremos os bonecos, pelo menos não é essa a minha intenção, porque não tem
sentido uma Cia. de Teatro de Bonecos querer virar uma Cia. de atores. Eu já falei pra eles:
“faremos um recuo, o próximo espetáculo é todo de bonecos, haverá muito pouca
participação de atores”. Porque agora eles querem um recuo. Ok. Acho que o Lampião,
acabou dando umas respostas que no Peer Gynt não completamos. Mas agora estou
satisfeito com essa intromissão do ator mais presente, ‘dando fala’ e tal. Agora vamos
recuar de novo. Então tem essa questão em detrimento de uma questão espacial, o próximo
espetáculo é investigação espacial o tempo inteiro... do espaço cênico. A gente pensa muito
por aí, pelo menos eu penso muito por aí. Existe uma preocupação espacial muito clara na
trajetória da “PeQuod” porque eu acho que a gente não tem como entrar no palco pra ficar
num ‘balcãozinho’. Acho que isso é pensar pequeno a essa altura do campeonato.
E: A pergunta final. Pensando agora na tua maior preocupação, desafio ou foco em
dirigir um Teatro de Bonecos, se te convidassem hoje para dirigir um Teatro de Atores, qual
tu achas que seria teu maior desafio, ou a maior dificuldade?
M: Minha maior dificuldade, acho que é estar com o olhar aguçado para os
movimentos que ao atores fazem sem pensar. Porque eu acho que todo o movimento do
boneco... é tudo pensado. Não tem um movimento do boneco que a gente não pense, que a
gente não veja o melhor desenho para aquele gesto. Tudo acaba virando uma partitura
gestual mesmo. O boneco por si só não se movimenta. Então toda a construção de
movimentação é uma coisa pensada. É uma coisa estruturada. É uma coisa que se vai sair
do ‘A’ para chegar no ‘B’, toda essa trajetória é repetida quinhentas mil vezes de uma
mesma forma. E acho que se eu encarasse agora um elenco de atores, eu acho tem os
vícios, as questõezinhas pessoais nos atores, as gestuais, que talvez eu não esteja com o
olhar tão aguçado assim para dizer: “para de fazer isso, você está fazendo coisa que não é
para fazer.” Eu acho que talvez eu não tenha mais esse olhar. Por inexperiência mesmo.
Acho que é uma questão muito por ai. Mas ao mesmo tempo, talvez eu consiga engessar o
ator numa construção formal, que eu espero que ele fique repetindo como os bonecos
repetem. Mas eu não sei, teria que ver isso. Por exemplo, no Primeiras Rosas, no quadro
que eu dirigi, é tudo ‘formalzão’. Aquilo ali foram horas e horas de ensaio para chegar aos
mesmos gestos. E agora a mãe entra assim, carregando não sei o que, sai cadeira, entra
cadeira. É tudo desenhado ali. Mas nos dias anteriores a estreia eu fui vendo que algumas
coisas me escaparam mesmo. Quando eu vi um ator agachado e não era para ele estar ali.
Mas ele já ganhou aquilo, ele já dominou aquilo. Então deixei ele lá. Mas eu nunca tinha
marcado: “Lucas, fica ai nesse cantinho agachado, olhando o que esta acontecendo”. Um
belo dia eu fui vendo: “caramba ele está ali, achei que ele estivesse só olhando”. Mas ele já
estava fazendo cena. Então é isso, um olhar que talvez não esteja tão afiado assim. Mas eu
achei bonito ele ali agachado, não estava atrapalhando, está em cena. Por mim não estaria
em cena, mas ele foi conquistando. Então tem essas coisinhas. Mas “A terceira Margem do
Rio” é toda ‘formalzona’, toda construída.
E: Tem muito ator ali.
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M: É tem muito ator ali. Bons atores. Eu fiquei muito contente porque deu para contar
com uma galera que estava disposta a encarnar aqueles personagens de uma forma muito
bacana.
E: Tu achas que seria a questão do movimento do boneco o teu foco principal na
direção?
M: Não, acho que não é só isso.
E: Então é um conjunto? Porque no fundo tu encabeças a montagem. Tens que estar
ali com o figurinista, concebes o cenário. Por mais que tenhas colaboração, a linha estética
se mantém numa figura que, no caso, és tu. Então talvez não tenha uma preocupação
maior, um foco?
M: Pois é, é porque na verdade tudo é uma preocupação. Então sempre alguma
coisa acaba escapando. E não que eu seja centralizador. Eu acho que as pessoas se
remetem muito ao que eu estou querendo naquele momento da vida, do projeto do
espetáculo. Por exemplo o Carlos Alberto Nunes, que é o cenógrafo da companhia, ele se
reporta muito a mim, eu sinto que ele está ali para executar uma coisa que eu quero. Então
as vezes eu falo: “Faz também, propõe uma coisa diferente!” E acho que é uma cenografia
sempre pensada para resolver as questões da cena, isso é bacana. E mais bacana ainda é
ele ser paulatinamente indicado para prêmios por cenário de espetáculo da “PeQuod”.
Sempre. Os quatro últimos espetáculos sempre tiveram indicação de cenografia. Então tem
algo bacana aí. Na verdade alguma coisa acaba repercutindo para um olhar leigo que é
diferente. É um tipo de teatro de bonecos que tem um cenário que merece ser indicado, que
merece ser premiado. Enfim, tem alguma coisa ali que é diferente. Mas as vezes ele acaba
se reportando muito ao que eu estou pensando, podia não ser tanto assim.
E: Bem, acho que é isso, muito obrigada.
J: Muito obrigado.
M: Eu que agradeço.

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