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Desenhos da pesquisa:
conhecimento / produção
Universidade de São Paulo
Museu de Arte Contemporânea
Programa de Pós Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte
Desenhos da pesquisa:
conhecimento / produção
Organização
Carmen S. G. Aranha
São Paulo
– 2014 –
São Paulo 2014
© – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
de Arte / Universidade de São Paulo
Rua da Praça do Relógio, 160 – Anexo – sala 01
05508-050 – Cidade Universitária – São Paulo/SP – Brasil
Tel.: (11) 3091.3327
Agência Brasileira do ISBN
e-mail: [email protected]
ISBN 978-85-7229-066-1
www.usp.br/pgeha
Depósito Legal – Biblioteca Nacional
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Lourival Gomes Machado
do Museu de Arte Contemporânea da USP
Congresso Internacional de Estética e História da Arte (9,
2014, São Paulo.)
Desenhos da pesquisa : conhecimento / produção /
organização Carmen Aranha. São Paulo : Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2014.
Xxx p. ; il.
ISBN 978-85-7229-066-1
1. Desenho. 2. Estética (Arte). 3. Metodologia da Pesquisa.
4. História da Arte. I. Universidade de São Paulo. Programa
de Pós-Graduação em Estética e História de Arte. II. Aranha,
Carmen.
CDD – 741
Capa: Ismael Nery, Três mulheres com auscultador, sd
Nanquim s/ papel. Acervo MAC USP
A presente documentação é um desdobramento do IX Congresso Internacional de
Estética e História da Arte “Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção”, realizado
nos dias 3, 4, 5 e 6 de novembro de 2014 no Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo, organizado pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades
em Estética e História de Arte / Universidade de São Paulo.
IX Congresso Internacional de Estética e História da Arte
“Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção”
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e
História de Arte – PGEHA
Comitê Científico
Carmen S. G. Aranha
Jacques Lenhaardt
Katia Canton
Lisbeth Rebollo Gonçalves
Sylvia Valdés
Comissão Geral do Simpósio
Águida Furtado Vieira Mantegna
Ana Paula Cattai Pismel
Andrea de Lima Lopes Pacheco
Carmen S. G. Aranha
Eunice Silva
Evandro Carlos Nicolau
Guilherme Weffort Rodolfo
Joana D’Arc Figueiredo
Juliana Froehlich
Paulo Cesar Lisbôa Marquezini
Sara Vieira Valbon
6
|
Jack Becker
Assistência Editorial
Produção Editorial:
Revisão:
Projeto Gráfico:
Diagramação da Capa:
Diagramação:
Divulgação:
Organização:
Ana Paula Cattai Pismel
Evandro Carlos Nicolau
Guilherme Weffort Rodolfo
Juliana Froehlich
Águida Furtado Vieira Mantegna e
Paulo Cesar Lisbôa Marquezini
André Henriques Fernandes Oliveira e
Paulo Cesar Lisbôa Marquezini
Elaine Maziero
Roseli Guimarães
Tarlei E. de Oliveira e
Paulo Cesar Lisbôa Marquezini
Sérgio Miranda e
Guilherme Weffort Rodolfo (PGEHA)
Carmen S. G. Aranha
Apoio
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Ensino Superior – CAPES
Museu de Arte Contemporânea – MAC USP
| 7
Sumário
Apresentação ................................................................................................. 11
Ensaios
Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State
Penitentiary como lugares de cultura ....................................................... 17
HUGO SEGAWA
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação nas
artes digitais/contemporâneas .................................................................. 25
MASSIMO CANEVACCI
Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum of Modern
Art (MAM), and its primary collection .................................................... 43
ANA GONÇALVES MAGALHÃES
A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte
e da curadoria ........................................................................................... 59
CAUÊ ALVES
Arte e mercado: alguns conceitos e valores ................................................... 69
EDSON LEITE
O museu de arte e o contexto das imagens atuais .......................................... 79
CARMEN S. G. ARANHA e ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA
Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os
contos de fadas ......................................................................................... 89
KATIA CANTON
A construção do plano moderno: Planos em Superfícies Moduladas
nº 2 – Lygia Clark, 1956 ........................................................................ 103
RODRIGO QUEIROZ
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|
Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção ................................. 109
ANA PAULA CATTAI PISMEL
Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica
renascentista ........................................................................................... 123
GUILHERME WEFFORT RODOLFO
Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea ............................... 131
JULIANA FROEHLICH
Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira ............................. 143
SILVIA MIRANDA MEIRA
Novos caminhos na produção acadêmica
Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco
Juanito Laguna ...................................................................................... 153
SIMONE ROCHA DE ABREU e DILMA DE MELO SILVA
A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no
Brasil: identidades quilombolas ............................................................. 163
ISA MÁRCIA BANDEIRA DE BRITO
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface .......... 177
ISABELA UMBUZEIRO VALENT e ELIANE DIAS DE CASTRO
Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e
conceitualismos ideológicos .................................................................. 193
SILFARLEM JUNIOR DE OLIVEIRA e GISELE BARBOSA RIBEIRO
Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo
de Obás de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá ............................................. 205
MARCELO MENDES CHAVES
A influência de Paul Cézanne na pintura de Arturo Tosi: o caso Ponte di
Zoagli na Coleção MAC USP ................................................................ 219
DÚNIA ROQUETTI SAROUTE
Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho in situ de
Daniel Buren .......................................................................................... 229
TIAGO MACHADO DE JESUS
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Projeto BarcoR – estética tocantina: intervenção urbana ........................... 239
MAURÍCIO PINTO ADINOLFI e JOSÉ PAIANI SPANIOL
Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e
Cindy Sherman ....................................................................................... 249
ANDRÉIA PAULINA COSTA e RUY SARDINHA LOPES
Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes..................... 261
JANAINA BARROS SILVA VIANA
Dança contemporânea e o ciclo da arte ....................................................... 271
AILA REGINA DA SILVA e ARTHUR HUNOLD LARA
Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações .................... 281
HELOISA DE SÁ NOBRIGA
Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest
e Antonio Bento ..................................................................................... 291
ARACELI B. DA S. JELLMAYER BEDTCHE e LISBETH R. GONÇALVES
Tatuagem: ritual, arte e moda ...................................................................... 303
RICHARD DE OLIVEIRA e JOÃO AUGUSTO FRAYZE-PEREIRA
Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960 ......... 319
GRAZIELA NACLÉRIO FORTE
A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da
Cidade de São Paulo: restaurações ........................................................ 329
MARIA LUCIA BIGHETTI FIORAVANTI e PERCIVAL TIRAPELI
Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo ..................................... 337
LAUCI BORTOLUCI QUINTANA
Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora
da Paz com técnicas multiespectrais para caracterização executiva ...... 347
ELIZABETH A. M. KAJIYA e REGINA A. TIRELLO
A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível ........................... 361
ROSANA GARCETE M. FERNANDES DE ALMEIDA e EDSON LEITE
A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase ................................................ 371
ADRIANA BOMENY FREIRE e EDSON LEITE
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|
A intervenção no machinima ....................................................................... 381
FERNANDA ALBUQUERQUE DE ALMEIDA
Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais ................. 391
EUNICE MARIA DA SILVA e ARTUR MATUCK
Problemas estéticos do cinema experimental .............................................. 401
DONNY CORREIA e EDSON LEITE
História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar ................. 413
REGILENE SARZI RIBEIRO
A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: uma
investigação do papel das tecnologias de produção de imagens
no âmbito dos museus ............................................................................ 423
PAULA DAVIES REZENDE
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento
moderno na arquitetura e no design e sua relação com as
filosofias da existência ........................................................................... 435
LEONARDO G. SETTE GONÇALVES e RODRIGO CRISTIANO QUEIROZ
O aplat como figura: uma indiscernibilidade de fundo, entre
Deleuze e Lyotard .................................................................................. 451
CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA e OSVALDO FONTES FILHO
O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura ................................. 461
MARIA FERNANDA ANDRADE SAIANI VEGRO
O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração ......................................... 473
GABRIELA BORGES ABRAÇOS e LISBETH REBOLLO GONÇALVES
Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo 481
RENATA DIAS FERRARETTO MOURA ROCCO
Índice de Autores ......................................................................................... 491
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Apresentação
Buscando atender a necessidade de demanda profissional e de pesquisa
daqueles que atuam na área da Estética e História da Arte, o Programa de PósGraduação Interunidades Estética e História da Arte da Universidade de São
Paulo – PGEHA USP – procura estabelecer referências teóricas e práticas que
possibilitem situar e aprofundar a compreensão do objeto artístico. Assim, a
complexidade do conhecimento da área abarca a discussão sobre as condições
que envolvem o entendimento da obra de arte como patrimônio histórico,
expressão cultural/estética e circulação na sociedade, sempre repensando, reavaliando e redefinindo concepções sobre a arte atual, o papel do pesquisador da
área e, principalmente, os possíveis campos interdisciplinares correlacionados.
O Programa busca oferecer aos pesquisadores a oportunidade de sistematizar e
organizar seus estudos, objetivando definir um perfil que motive a discussão de
novos parâmetros para a área. Esses esforços surgem nos conteúdos programáticos das disciplinas oferecidas, projetos de pesquisa e, particularmente, nas
atividades de extensão e divulgação da pesquisa em arte.
As atividades interdisciplinares e a boa recepção dos mestres em Estética e
História da Arte frente ao mercado de trabalho motivaram a continuidade desses
estudos no nível do doutorado – reconhecido como porta de entrada da estrutura
acadêmica e fator indicativo de aperfeiçoamento profissional. Assim, com suas
atividades de mestrado iniciadas em 2003, o presente ano de 2014 marca o
instante de mudança em seus rumos, uma vez que o PGEHA está implantando
seu doutorado e recebendo dezenove novos estudantes, bem como outros vinte
para o mestrado, nas suas quatro linhas de pesquisa (Teoria e Crítica de Arte,
Metodologia e Epistemologia da Arte, História e Historiografia e Produção e
Circulação da Arte). Nesse momento que o Programa abre novas perspectivas
para a pesquisa na área, cabe-nos agora lançar um olhar sobre o percurso da
produção conceitual e prática dos seus pesquisadores em diálogo com pesquisadores de outros programas de Pós-Graduação em áreas afins. Pensando nessas
questões, organizamos o IX Congresso Internacional de Estética e História da
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Carmen S. G. Aranha e Guilherme W. Rodolfo
Arte – Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção. Em sua nona edição e
segunda relativa à temática da pesquisa em arte, procuramos congregar estudantes
de pós-graduação, professores, artistas e pesquisadores, bem como palestrantes,
nacionais e internacionais, para situar o debate sobre as mais recentes pesquisas
em arte tanto do ponto de vista estético e historiográfico, de suas construções
curatoriais, como da construção do objeto artístico atual. Desenhos da pesquisa:
conhecimento / produção é o resultado das reflexões originadas nessas proposições e dá continuidade à publicação do congresso anterior, Desenhos da
pesquisa: novas metodologias em arte, que procurou situar o debate referente à
compreensão dos propósitos, disposições e eventuais dificuldades que envolvem
tanto a esfera metodológica quanto o significado da pesquisa em arte.
A presente publicação agrega áreas aparentemente distintas. É uma tentativa
de situar a interdisciplinaridade entre os tantos campos de conhecimento. São
pesquisadores de mais de dez instituições versando sobre a arte barroca, ou seus
fundamentos ontológicos, até os pensamentos mais atuais sobre arte, o “contemporâneo”. São pesquisas sobre a obra em si, o acervo, dança, teatro, arquitetura,
cinema, escultura, moda, crítica e mais, um horizonte de significados alinhavados
e depositados em um canal conceitual apoiado na oposição conhecimento/
produção.
Por acreditar na produção acadêmica de forma progressiva, deu-se a preferência a artigos escritos em parceria de pesquisadores e seus professores/
orientadores. Esta prática propõe a troca tanto direta como indireta entre todos
os participantes. Quem passar pelo conteúdo do livro passará por períodos políticos, concepções epistemológicas, suportes artísticos, locais e datas que juntos
comporão o diálogo da cultura artística do Programa com outros Programas de
Pós-Graduação brasileiros. Melhor ainda, comporão a Estética e a História da
Arte sob a ótica destes que aqui colaboraram.
Em sua primeira parte, a publicação apresenta Ensaios dos palestrantes
convidados e de outros pesquisadores que assinalam aspectos de relevância para
a compreensão da pesquisa contemporânea em arte. A seguir, Novos caminhos
na produção acadêmica são traçados a partir de reflexões de pesquisadores dos
vários programas de pós-graduação das universidades brasileiras.
Em cada artigo temos a oportunidade de presenciar faces diversas da
produção de conhecimento que envolve a pesquisa em estética, história da arte,
na compreensão da obra de arte como patrimônio e como construção de linguagem curatorial, questões essas cercadas por suas possibilidades atuais.
Apresentação
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Hugo Segawa faz uma análise comparativa entre duas transformações de
espaços arquitetônicos do século XIX, originalmente destinados ao cárcere, em
espaços culturais e artísticos no início do século XXI. Esse percurso revela o
aspecto da construção reflexionada ao conteúdo cultural dos novos projetos.
O método etnográfico apresentado por Massimo Canevacci argumenta sobre
o desejo de auto-representar do corpo do artista e como suas relações com o
externo o expandem até o meta-fetichismo visual. Ao final, analisa através do
mesmo método a obra de Nele Azevedo.
Ana Magalhães apresenta a pesquisa sobre a formação do Museu de Arte
Contemporânea – MAC USP – iniciada pela doação da família Matarazzo nos
anos de 1946 e 1947. Ao avaliar as obras e suas origens, assim como seus percursos até a formação da coleção inicial, reavalia a relação entre Margherita
Sarfatti e o Novecento Italiano com o modernismo brasileiro.
Cauê Alves discute e amplia os horizontes sobre a formação em crítica de
arte e curadoria. Através da observação dos trabalhos de Bruno Faria e Jorge
Menna Barreto, trata a curadoria como capaz de formar o crítico e o curador além
de assinar sobre a arte, seus processos e suas reinvenções.
Edson Leite traz conceitos sobre arte e o mercado das artes demonstrando
que o valor adquirido por algumas obras em leilão transcendem suas propriedades, processos e métodos suscitando assim uma nova discussão estética sobre
as mesmas obras.
Esta primeira parte completa-se com a apresentação de pesquisas que
versam sobre temáticas como: – a profusão de imagens na sociedade e a discussão
do significado que isso possa ter na construção do conhecimento artístico atual;
o sentido de conceitos de Roland Barthes que subsidiam a criação de leituras de
narrativas na arte contemporânea; a análise da passagem do plano pictórico para
o próprio plano da obra de Lygia Clark, em Planos em Superfícies Moduladas
no. 2; a presença do físico Mario Schenberg como crítico de arte nas Bienais de
1965, 1967 e 1969; os elementos de análise fenômeno-linguística que possam
iluminar a compreensão pictórica renascentista; a metodologia que norteou a
construção da pesquisa sobre a criação artística de Inês Moura, enquanto fenômeno estético, e o entendimento de identidades regionais, locais e globais que
existem no conceito atual de brasilidade.
A segunda parte de Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção referese à produção acadêmica dos pesquisadores e docentes do Programa de PósGraduação Interunidades Estética e História da Arte, bem como de pesquisadores
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Carmen S. G. Aranha e Guilherme W. Rodolfo
e docentes de outros programas de Pós-Graduação da USP e de diversas
universidades brasileiras. Nessa edição, temos o privilégio de contar com artigos
provenientes de pesquisas realizadas em várias unidades da USP, na Universidade
Federal do Espírito Santo – UFES, Universidade Estadual de Campinas –
UNICAMP, Universidade Estadual de São Paulo – UNESP, Fundação Armando
Álvares Penteado – FAAP, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP,
Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP e Instituto de Arquitetura e Urbanismo de São Carlos – IAU USP.
Agradecemos à diretoria do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo pelo apoio ao evento. Agradecemos ainda à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – pelo apoio à presente
edição.
Nossos agradecimentos ainda aos funcionários do MAC USP que colaboraram para a realização do IX Congresso Internacional de Estética e História da
Arte Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção.
Desejamos que a publicação possa contribuir na discussão das pesquisas
em arte na atualidade.
CARMEN S. G. ARANHA
GUILHERME WEFFORT RODOLFO
Ensaios
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Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis
Potosí e Eastern State Penitentiary
como lugares de cultura
HUGO SEGAWA*
Resumo: A diferença de atitudes na transformação de duas penitenciárias do
século XIX (reconhecidas como patrimônios culturais) em espaços culturais,
na virada do século XX para o XXI, revela antinomias na forma de realizar tais
intervenções, quando a tipologia arquitetônica envolve temas complexos e polêmicos como a questão do sistema penitenciário e suas denotações e conotações.
Palavras-chave: Arquitetura – Preservação. Arquitetura – edifícios culturais.
Penitenciárias. Arquitetura – Reabilitação.
Memoirs of Prison: San Luis Potosí Penitentiary and Eastern State
Penitentiary as places of culture
Abstract: Different approaches in the transformation of two penitentiaries from
19th century (appointed as cultural heritages) in cultural spaces at the turn of the
20th to the 21st century, reveals paradoxes in how to deal with such interventions
as the architectural typology involves complex and controversial issues as the prison
system and its denotations and connotations.
Keywords: Architecture – Preservation. Architecture – cultural buildings.
Penitentiaries. Architecture – Rehabilitation.
* Diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
Professor Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
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Hugo Segawa
O título evoca um escrito incompleto e póstumo de Graciliano Ramos. São as
recordações de seus momentos na prisão nos anos 30, durante a ditadura de
Getúlio Vargas. Este ensaio poderia tomar a narrativa do escritor e suas angústias
como referências por uma aproximação à vida dentro de um espaço de opressão:
os cárceres. Mas a questão a se apresentar aqui também é uma reflexão cruzada
de fenômenos bem contemporâneos: a obsolescência de edifícios; o
reconhecimento da importância história arquitetônica e patrimonial de alguns
desses edifícios; a sua conversão para usos distintos daqueles originais; e a
tendência de convertê-los em edifícios com destinação cultural.
É quase um lugar-comum na arquitetura de reciclagem de edifícios antigos
atribuir usos culturais dentro de uma perspectiva de preservação ou conservação.
Intervenções que deveriam cuidar das referências anteriores, no âmbito da
memória e da história. Todavia, vamos tratar de uma tipologia arquitetônica com
alta carga simbólica e controvérsias: a penitenciária. Em especial, a antiga Penitenciária de San Luis Potosi, no México, e a de Eastern State Penitentiary, nos
Estados Unidos. Dois complexos do século XIX, reconhecidos como patrimônio
arquitetônico pelos organismos de preservação em seus respectivos países e que,
no século XXI, transformaram-se em ativos edifícios culturais.
A prisão é uma forma que preexistiu à constituição do cativeiro como punição nos moldes preconizados pelo pensamento do século XVIII. Com as mudanças filosóficas nesse período, observou-se um esforço em se instituir um programa
arquitetônico de prisões com a construção de estabelecimentos orientados por
regimes penitenciários. Esse desenvolvimento da arquitetura penitenciária
decorreu do reconhecimento da concepção que a prisão tem um “papel suposto
ou exigido, de aparelho para transformar os indivíduos”, segundo Foucault
(1983, p. 208).
Não é gratuita a proclamação de teóricos da arquitetura como Julien Guadet
ou Louis Cloquet, no final do século XIX, ao afirmarem que esse programa
arquitetônico é “criação moderna”. Guadet foi positivo:
Saberei eu fazê-los interessarem-se por esse objeto [penitenciárias] cujo estudo
é melancólico e bastante frequentemente desencorajador de melhores intenções? Eu o ignoro: tentarei ao menos fazê-los ver que ainda aqui a ação do
arquiteto pode ser humana e útil: o arquiteto de um edifício penitenciário deve
ser um filósofo e um moralista. Ele deve lembrar que concorre ao tratamento
de uma grande miséria social, e que se todos os progressos sonhados nem
Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State ...
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sempre se realizam, se muitas das generosas ilusões malogram, é preciso jamais
perder a esperança de realizá-las nem renunciar à esperança do progresso
(GUADET, 1910, p. 495).
A reclusão como martírio é uma manifestação antiga de fundo religioso,
intimamente relacionada com o recolhimento, o mosteiro, o convento. Todavia,
a dimensão social da custódia como punição não era uma prática reconhecida: a
retaliação física, mais que a supressão da liberdade, denotava o castigo pelo
delito, pelo pecado. A prisão era um componente de manutenção do equilíbrio
vigente, configurando uma solução para afastar do ambiente elementos
perturbadores da “ordem” e da “moral”: bêbados, mendigos, desocupados,
desvalidos, menores abandonados, prostitutas.
A sistematização das leis no espírito da reformulação penal setecentista
transformou o cárcere na instituição símbolo por excelência do “poder de punir
como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre
todos os seus membros” (FOUCAULT, 1983, p. 207). “Humanizava-se” a punição:
não mais um ato de humilhação moral e física, mas uma técnica de coerção
sistemática e onipresente, transformadora dos hábitos e comportamentos dos
indivíduos retirados do corpo social para uma reciclagem. No século XIX,
materializava-se a visão segundo a qual se atribuía à prisão a tarefa de “curar
doenças sociais”.
O arquiteto Julien Gaudet, ao teorizar sobre a essência do programa arquitetônico prisional, escreveu: “O aprisionamento é uma expropriação pelo bem
público, a prisão uma casa de saúde, o regime penitenciário um tratamento patológico.” (1910, p. 496) Assim se expressando no final do século XIX, ele vaticinava
a eficácia da regeneração dos condenados submetidos aos regimes penitenciários.
Com as reformas penais, desenvolveu-se uma nova disciplina: a Penologia. Foi
com a sistematização processada no âmbito de uma “ciência penitenciária” que
se desenvolveram e se aprimoraram doutrinas que orientaram o tratamento de
condenados nas casas de correção: eram os regimes penitenciários.
Não vamos entrar nos pormenores dos vários regimes penitenciários
debatidos até o início do século XX; nem como as várias tentativas de aproximação a uma estrutura arquitetônica “ideal” contemplando este ou aquele regime.
Não interessa aqui retomar essa crônica, como revisitar a influente concepção
de arquitetura de prisões elaborada em 1791 pelo jurista e filósofo Jeremy
Bentham (1748-1832): o panopticon (“visão total”, literalmente), que tinha como
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Hugo Segawa
princípio a organização do espaço arquitetônico visando a maior racionalidade
no controle e na vigilância dos presos. Basta recordar que o sistema de celas teve
como ascendente os primitivos cárceres de isolamento, infligindo o condenado
a um afastamento completo do ambiente, impedido de qualquer comunicação.
Silêncio e solidão formavam a base do sistema, também chamado de pensilvânico
ou filadélfico, por ter a tradição consagrado o pioneirismo de sua adoção com a
construção da Eastern State Penitenciary, na cidade norte-americana de Pensilvânia, a partir de 1821. O isolamento era recurso individualizador para abafar
revoltas e conluios, instrumento para fazer refletir e suscitar automartírio: “na
prisão pensilvânica, as únicas operações de correção são a consciência e a
arquitetura muda contra a qual ela esbarra” (FOUCAULT, 1983, p. 213).
Penitenciária de San Luis Potosí (esquerda) e Eastern State
Penitentiary em imagens do Google Earth.
San Luis Potosí, capital do estado mexicano de mesmo nome, fundada no
final do século XVI, é uma cidade de cerca de 770 mil habitantes (2010), situada
numa próspera região econômica e de atração turística daquele país. O seu atual
Centro de las Artes Centenario é resultado da transformação do antigo edifício
da Penitenciária de San Luis Potosí, que funcionou como cárcere de 1904 a 1999.
Sua arquitetura da reclusão, com módulos lineares dispostos radialmente, está
perfeitamente enquadrada na tipologia arquitetônica do século XIX. Com a
desativação da penitenciária, os esforços se concentraram na transformação do
edifício num centro cultural com patrocínio estatal, no contexto de uma política
cultural de descentralização das iniciativas de arte e educação artística no México.
O Centro de las Artes foi inaugurado em 2008, com o projeto arquitetônico
resultante de um concurso público nacional, cuja convocatória estabelecia a
seguinte concepção cultural, criada pelo Centro Nacional de las Artes
(CENART) e pela equipe da Secretaria de Cultura do município:
Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State ...
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Centro de las Artes Centenario. Projeto de transformação de Alejandro Sánchez
García/MAS Arquitectos. Entrada e ateliê de pintura, em 2009. Fotos Hugo Segawa.
É um espaço dedicado à profissionalização do setor artístico e cultural, a criação
de novas habilitações, o fomento de novos processos de formação-criaçãoprodução-fruição. É um lugar onde se constroem públicos para as artes, onde
se formam os produtores culturais do estado, das casas de cultura e dos centros
que atendem às comunidades, o lugar que articula a formação em gestão
cultural, tanto para os artistas, como para o setor cultural da entidade e mesmo
da região.” (Centro de las Artes Centenario, 2009, p. 46)
Em um texto da mexicana Lucina Jiménez, especialista em políticas
culturais, temos uma noção da narrativa justificadora da transformação:
Ainda recordo do calafrio que senti quando pisei nesse edifício [Penitenciária
de San Luis Potosí]. Senti que meus pés afundavam em algo úmido, frio. O
cinza das paredes contrastava com as portas com cores das celas. Muitas delas
pareciam, todavia, mover-se em seguida à saída dos presos. “Podemos romper
as paredes que criam as celas?”, perguntei ao representante do Instituto Nacional
de Antropologia e História. Se não podemos desfazer das celas é melhor nos
retirarmos. Não há possibilidade de aproveitar este espaço para a criação
artística, a menos que queiramos propor puras salas de ensaio de música
individuais. E ainda assim, disse: “o fechamento mata o talento.” (Centro de
las Artes Centenario, 2009, p. 45)
Em outro trecho, Lucina Jiménez ponderou:
Neste caso a recuperação do que foi um cárcere construído no final do século
XIX constitui uma grande obra pública. Recuperar um imóvel do castigo,
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Hugo Segawa
reclusão e proibição e convertê-lo em um espaço público para a criação, a
investigação e o desfrute das artes significava, em San Luis Potosí, a devolução
da liberdade antes negada. (Centro de las Artes Centenario, 2009, p. 46)
A Eastern State Penitenciary, na Filadélfia (a quinta mais populosa cidade
dos Estados Unidos, cem cerca de 1,5 milhões de habitantes em 2010), é um
marco fundamental na história da Penologia e dos sistemas penitenciários, como
mencionado anteriormente. Produto de uma iniciativa da Philadelphia Society
for Alleviating the Miseries of Public Prisons, criada em 1787, sua arquitetura
resultou de um concurso público, em 1821, do qual saiu vencedor o arquiteto
John Haviland. O complexo foi parcialmente inaugurado em 1829. Ao longo das
décadas subsequentes, ele foi ampliado com muitas modificações em relação ao
plano original. Funcionou como cárcere até 1970, tendo sido reconhecido como
patrimônio histórico nacional em 1965. Apesar dessa condição, ao longo dos anos
seguintes, seu estado degradação física (que permanece, mas hoje mais na
aparência) importunou a cidade e propostas de demolição ou de sua
transformação para uso comercial rondaram o complexo.
Em 1988, um grupo de ativistas, reagindo a esse último propósito, iniciou
uma campanha que resultou em criação e manutenção de um museu (talvez o
termo não seja preciso, neste caso) da penitenciária. Ele foi gradativamente
implantado a partir de 1998 pela Eastern State Penitentiary Historic Site,
organização privada sem fins lucrativos, que promove visitas guiadas, exposições,
curadoria de instalações de artistas plásticos, eventos teatrais (como Terror
Behind the Walls: a Massive Haunted House in a Real Prison), e outras
iniciativas, sempre em torno da memória do espaço prisional.
Os objetivos do grupo que dirige o museu são:
Preservar e restaurar a arquitetura da Eastern State Penitentiary; tornar a
penitenciária acessível ao público; explicar e interpretar sua complexa histórica;
colocar questões correcionais e de justiça no contexto histórico; e proporcionar
um fórum público no qual essas questões são debatidas. Ao passo que o
programa de intepretação não defende posições específicas sobre a condição
do sistema norte-americano de justiça, o programa é construído na crença que
os problemas enfrentados pelos arquitetos da Eastern State Penitentiary ainda
não foram solucionados, e as questões levantadas pelos pioneiros reformadores
permanecem como de importância central para nossa nação. (Eastern State
Penitentiary. Mission Statement).
Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State ...
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Eastern State Penitentiary: entrada e uma das naves de celas, em imagens de 2013.
Fotos Hugo Segawa.
Já a transformação da penitenciária mexicana em Centro de las Artes San
Luis Potosí foi um desafio de adaptar uma estrutura rígida – uma típica estrutura
de inspiração panóptica preservada por seu valor histórico-arquitetônico –, para
um complexo dedicado à formação de artistas, investigadores, promotores e
artesãos no campo da música, dança, teatro, escultura, artes plásticas, fotografia
e artes gráficas, com ateliês, auditórios, salas e residência artística. A proposta é
bem-sucedida em seu intento de oferecer à cidade um equipamento de alta qualidade arquitetônica-cultural e enorme potencial de apropriação pública. Todavia,
observa-se um paradoxo: um espaço cujo novo conteúdo cultural, questionador
e libertador em sua essência, encerra-se em uma estrutura arquitetonicamente
repressiva. A construção se mantém fisicamente isolada nos limites dos altos e
soturnos muros, preservando a aparência de cidadela da opressão na paisagem
urbana. A intervenção respeitou a integridade imagética do isolamento, sem que
a reciclagem apontasse uma tentativa de superação dessa contradição entre sua
imagem física lúgubre e seu interior alegórico libertário. Ou talvez, o isolamento
por trás dos muros configure uma metáfora incompleta de liberdade. Nesse
interior, reciclado, bem cuidado, há menos restauro e mais ação de adaptação aos
novos usos com intervenções arquitetônicas e paisagísticas com inserções
evidenciadas e contemporâneas de cuidadosa feitura. A memória do cárcere é
apagada. Os espaços interiores são eficientes e assépticos, fazendo desaparecer
a consciência da barbárie perpetrada por quase um século em seus recintos.
No outro extremo, no museu do pioneiro panóptico prisional na Filadélfia,
o sentimento da desumanidade e sufocamento é incessante. Exteriormente, os
altos muros, como em San Luis Potosí, enfatizam o sinistro objeto numa área
hoje com características residenciais e comerciais. A “não-intervenção” com o
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Hugo Segawa
aspecto degradado, ruinoso dos interiores mantendo a aparência da antiga
penitenciária, poder-se-ia suspeitar, é uma deliberada cenografia para incutir o
incômodo, a repulsa. Evoca a má-consciência e questiona os escrúpulos de uma
sociedade que erigiu monumentos à repressão, e para a qual ainda não vislumbra
saídas. É um permanente chamamento a uma ordem de morbidez que
paradoxalmente monumentaliza e torna turística a barbárie.
Entre esses extremos, muitos monumentos evocam as desumanidades dos
humanos: o campo de concentração de Auchwitz, os memoriais do Holocausto,
os memoriais e monumentos que na América Latina remetem aos horrores das
ditaduras da segunda metade do século XX. São questões que nos fazem pensar
o que queremos celebrar do passado. Ou esquecer. Uma angústia que pode se
tornar insuportável, fruto de nossas memórias. Memórias do cárcere.
Referências bibliográficas
CENTRO de las Artes Centenario – San Luis Potosí. México D.F.; San Luis Potosí:
Consejo Nacional para la Cultura y Artes; Secretaría de Cultura de San Luis
Potosí, 2009.
CLOQUET, L. Traité d’Architecture. Paris; Liège, Librairie Polytechnique, Ch.
Béranger, 1900, v. 4.
EASTERN State Penitentiary. Mission statement. Philadelphia: Eastern State
Penitentiary Historic Site. Página web da organização. Disponível em: <http:/
/www.easternstate.org/contact/mission-statement>. Acesso em 03 set. 2014.
EASTERN State Penitentiary. Philadelphia: Eastern State Penitentiary Historic Site.
Página web da organização. Disponível em: <http:// http://
www.easternstate.org/home>. Acesso em 03 set. 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 2. ed. Petrópolis, Vozes,
1983.
GUADET, Julien. Élements et théorie de l’architecture. 4. ed. Librairie de la
Construction Moderne, s.d. 4v., Paris, 1910.
JOHNSTON, Norman, FINKEL, Kenneth, COHEN, Jeffrey A. Eastern State
Penitentiary: crucible of good intentions. Philadelphia: Eastern State
Penitentiary Historic Site, 2010.
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Meta-Fetishismos:1 Etnografia ubíqua sobre a
autorrepresentação nas artes digitais/
contemporâneas
MASSIMO CANEVACCI*
Resumo: A imaginação sincrética e polifônica apresenta uma epistemologia
transitiva entre as artes e as perspectivas antropológicas. O corpo do artista
sempre foi conectado no desejo manifesto de se autorrepresentar. Nesta fase,
as relações entre consumo performático, tecnologia digital, autonomia individual
mobilizam em formas crescentes um sujeito expandido e cocriador de modelos
diferenciados de arte nos territórios material e imaterial da comunicação digital.
Assim, as dimensões indisciplinares e ubíquas aplicam o método etnográfico
até a revelação do metafetichismo visual e suas reverberações nas facticidades
contemporâneas. Ao final, o estupor metodológico observa como test case a obra
d’arte descongelante e perturbadora de Nele Azevedo.
Palavras-chave: Fetichismos Digitais. Sincretismos Culturais. Comunicação
Ubíqua. Artes Interdisciplinares.
1. Em italiano, referente à adoração extremada, ou sexual, relacionada a indumentária. Diferente de fetichismo, adoração fanática por algo ou alguém. (fonte: Dizionario
Grazanti 2.0)
* Professor de Antropologia Cultural e de Arte e Culturas Digitais na Faculdade
de Ciências da Comunicação, Universidade de Roma “La Sapienza”. Professor visitante
do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP).
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Massimo Canevacci
Metafetishism: ubiquitous ethnography on self-representation in
the digital/contemporary arts
Abstract: The syncretic and polyphonic imagination presents a transitive
epistemology between arts and anthropological perspectives. The artist’s body has
always been linked to the manifest desire of the self-representation. At this stage,
the relations between performatic consumption, digital technology, and individual
autonomy mobilize, in increasing forms, an expanded subject and co-creator of
different art models in material and immaterial territories of digital communication.
Thus, the ubiquitous and indisciplinary dimensions apply the ethnographic method
until the revelation of the visual metafetishism and its reverberation in the
contemporary facticities. After all, the methodological stupor treats the unfreezing
and disturbing artwork of Nele Azevedo as test case.
Keywords: Digital Fetishism. Cultural Syncretism. Ubiquitous Communication.
Interdisciplinary Arts.
Introdução-design
Desenhar um projeto de pesquisa empírica através de uma perspectiva
antropológica significa desenvolver visões baseadas sobre a imaginação exata
e aplicar uma etnografia ubíqua nas conexões entre artes digitais, fetichismos
visuais e performances urbanas. O método etnográfico se caracteriza por sempre
estar menos ligado a uma disciplina (antropologia cultural) e mais expandido
segundo características “não disciplinares” e “ubíquas”. As várias pesquisas no
âmbito dos estudos culturais têm necessidades de desenvolver métodos autônomos, descentrados, diferentes, para afirmar uma visão pragmática e experimental
transdisciplinar.
A visão crítica da teoria é adequada a este modelo pluralizado de fazer
pesquisa no campo em direção de um flutuante panorama das artes que, na sua
imanência, precisa incorporar referencias lógicas, estéticas, expressivas,
orientadas a relevar tendências progressivas das culturas contemporâneas. Por
isso, o modelo de influência e de transformação é a teoria crítica experimental,
por conseguir, conecta a abstração teórica, a interioridade empírica, a elaboração compositiva.
O conceito-chave – que influencia e mistura valores declarados, métodos
etnográficos descentrados, teorias críticas experimentais – é a autorrepre-
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ...
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sentação. Neste projeto-desenho, o etnógrafo está legitimado para interpretar o
outro – através da comunicação visual, escrituras polifônicas, composições
performáticas – apenas quando está disponível para se deixar interpretar pelo
outro. Este dialógico sincrético e este desafio polifônico apresentam uma
epistemologia transitiva da representação. O corpo do artista sempre foi conectado no desejo manifesto de se autorrepresentar. Nesta fase, as relações entre
consumo performático, tecnologia digital e autonomia individual mobilizam em
formas crescentes um sujeito expandido e cocriador de modelos diferenciados
de arte nos territórios material e imaterial da comunicação digital.
Método etnográfico indisciplinar, teoria crítica experimental, autorrepresentação dialógica: sujeitos transitivos que configuram a pesquisa em forma de
constelação móvel. Emerge uma etnografia ubíqua baseada sobre tensões
sincréticas e polifônicas verificável empiricamente entre identidades flutuantes,
fetichismos visuais e culturas digitais. A metrópole muda e a tríade comunicaçãocultura-consumo é sempre mais determinante na experiência cotidiana, em
particular das culturas juvenis, e se inserem nos fluxos contemporâneos da
autorrepresentação praticados nos interstícios transurbanos e nos social networks.
Neste contexto, uma cidadania transitiva e participada apresenta uma crítica
política horizontal sobre a divisão comunicacional do trabalho: uma crítica
pragmática além do poder vertical de “quem-representa-quem”. Este movimento
transitivo se manifesta em direções espontâneas de narrativas descentradas e
performances urbanas que misturam arte com publicidade, design, arquitetura,
música, moda, esporte e, atualmente, séries de TV mais que cinema (Black Mirror
ou Breaking Bad). A proliferação dos fetichismos visuais é o quadro teóricoempírico sobre o qual se enfocará a pesquisa, em conexão com culturas digitais
e identidades flutuantes praticadas através da autorrepresentação.
1. Autorrepresentação
A questão do trânsito da identidade individual – singular, compacta e
unitária, própria da era industrial – em direção a uma mistura de percepções e
práticas indenitárias mais ubíqua e transitivas no corpo do mesmo sujeito, precisa
ser focalizada teoricamente e, ao mesmo tempo, selecionada em contextos
empíricos onde se possa verificar as complexas problemáticas derivadas desta
mutação. Esta condição favorece, como nunca visto anteriormente, a proliferação
de tendências baseadas na autorrepresentação de um sujeito que foi, e em parte
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Massimo Canevacci
ainda é, representado e objetivado pelos “outros” (sociólogo, filósofo, antropólogo, artista, etc.). Nesse sentido, a autorrepresentação não informa só a
comunicação digital em geral e as artes em particular, mas determina o que se
entende agora como política: uma política comunicacional que precisa – na
hipótese a ser verificada – de um multivíduo que afirma a sua presença autônoma
nas culturas digitais. Ele desenvolve o desejo de manifestar a sua própria
autônoma visão de mundo ou, do que é afim ou quase idêntico, de si mesmo:
por isso, o contexto cenográfico da comunicação digital mistura a clássica
dicotomia público/privado. Assim, autorrepresentação e ubiquidade cruzam
comportamentos miméticos, difundidos e oscilantes entre um narcisismo
excepcional por reelaborar e os fetichismos visuais por focalizar (metafetichismo).
Desde o final dos 1990, as minhas pesquisas tiveram como posicionamento
afirmar tensões polifônicas, dialógicas, sincréticas, comunicacionais entre hetero
e autorrepresentação. Por isso, atualmente, a pesquisa criticamente posicionada
precisa enfrentar contextos descentrados, múltiplos, alterados. Os procedimentos
metodológicos, segundo os quais tradicionalmente o pesquisador representava
o outro – com suas lógicas externas, com escritas alheias, com autoridades
discutíveis –, foram em parte exauridos, talvez atenuados e às vezes inovados.
Os impulsos pós-coloniais, que denunciaram um persistente contexto políticocultural mundial ainda discriminativo, foram determinantes. Parece evidente que
“quem tem o poder de representar quem” está se tornando um nó central que se
emaranha no domínio do “científico” que uma parte majoritária do Ocidente
continua a exercer em direção e contra o “outro”.
A crítica sobre o poder da representação se posiciona do lado de quem entrou
na autonomia construtiva do próprio eu: individualidade que havia sido excluída
como subalterna e agora coloca em discussão as modalidades clássicas desta
representação monológica. A escrita aplicada na tradição etnográfica mostra todo
o seu domínio político estrito e controle retórico, como gênero linguístico não
neutral. Uma epistemologia transitiva da representação pode desenhar o tema
da autorrepresentação em diálogo com a heterorrepresentação, envolvendo as
subjetividades nativas ou dos jovens urbanos que praticam a expansão ubíqua
da comunicação visual e da cultura digital. Apresenta-se em um campo de
aplicação – comunicacional, iconográfico e artístico – crescente além da clássica
hegemonia de oralidade e escrita, ou, do decomposto dualismo modernista entre
centro e periferia.
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ...
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A questão “de-quem-representa-quem” retoma e amplia a crítica sobre a
divisão do trabalho assim como Marx a tinha representado, tornando insuficientes
as leituras dos séculos XIX e XX, baseadas na centralidade estrutural de estratificação social e processos produtivos. A atual fase pós-industrial e a aceleração
das culturas digitais incluem outras “divisões” entre sujeitos pertencentes a
culturas e experiências diversas, por exemplo: a divisão entre quem comunica e
quem é “comunicado”; entre quem tem historicamente o poder de narrar e quem
está apenas na condição de ser um objeto narrado. Tornou-se insuficiente até a
clássica vocação da antropologia de “colher o ponto de vista nativo”, que pode
manter uma parcial legitimidade apenas quando este mesmo nativo – individualizado e diferenciado – também consegue comunicar o próprio ponto de vista.
Por isso entre “quem representa” e “quem é representado” há um nó
linguístico específico, – dentro e fora das artes no sentido expandido – relativo
ao que chamo divisão comunicacional do trabalho, que precisa ser enfrentado
nos métodos e nas pragmáticas. Entre quem tem o poder de enquadrar o outro e
quem deveria continuar a ser enquadrado – para ser um eterno panorama humano
– se ossificou uma hierarquia da visão que é parte de uma lógica dominante a
ser posta em crise na sua presumida objetividade. As novas subjetividades que
estão se afirmando como “outras” têm a vantagem de poder usar as tecnologias
digitais que favorecem esta descentralização com um efeito de ruptura não
comparável com o analógico. Facilidade de uso, redução dos preços, aceleração
das linguagens, descentralização de ideação, editing, consumo. A divisão
comunicacional do trabalho entre quem narra e quem é narrado – entre auto e
heterorrepresentação – penetra na contradição emergente entre produção das
tecnologias digitais e uso destas mesmas tecnologias por sujeitos ubíquos com
autônomas visões do mundo, isto é, nos panoramas confusos e opacos das artes
contemporâneas.
Sincretismos culturais, pluralidades de sujeitos, polifonias de linguagens:
aí está a premissa de valores e metodológica das representações transitivas que
apoia as criatividades estéticas indisciplinadas.
2. Ubiquidade
Outro conceito-chave é a ubiquidade que determina as dimensões práticas
da comunicação digital e favorece, consequentemente modificando, a percepção
cotidiana das clássicas coordenadas espaços-temporais nas experiências do
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Massimo Canevacci
sujeito: um sujeito multivíduo. A ubiquidade permeia a experiência material/
imaterial de um sujeito ubíquo que transita entre a metrópole comunicacional e
as social networks. Por isso, nos últimos anos, houve um forte uso metafórico
do conceito de ubíquo para identificar um modus de atuar através da web-cultura
e, em particular, o design digital avançou muito em tal conexão: a web é ubíqua
e a ubiquidade caracteriza as relações espaço-temporais da internet.
A acepção atual de tal conceito herda e expande o de simultaneidade. Os
futuristas, em primeiro lugar, afirmaram e amaram tal conceito, aplicando-o seja
nas artes plásticas (pintura e escultura), seja naquelas performáticas, nas quais
as declamações de poesias, músicas e contos eram apresentadas simultaneamente
nos palcos. Esta escolha expressiva é de fundamental interesse para o meu discurso: os futuristas foram os primeiros que, como vanguarda, amaram a metrópole
contraposta ao tédio da campanha e aos raios de lua. Desta “metrópole-que-sobe”
(“La città che sale”, pintura famosa de Boccioni) emergem panoramas
dissonantes, extensões corpóreas, rumores deslocados, em suma todas as
sensorialidades aumentadas simultaneamente na experiência tecnológica urbana.
A simultaneidade se apresenta como a irmã “material” da ubiquidade. Para
os futuristas, a simultaneidade é a experiência estética feita de inserções
fragmentadas entre metrópole e tecnologia, um pulsar expressivo de imagens ou
“palavras livres”, do consecutio2 clássico que é possível graças a um sujeito
igualmente simultâneo: o futurista. Aquele que tem a subjetividade adestrada para
entender a flexibilidade estendida entre os espaços-tempos vividos nos
panoramas urbanos. Esta ótica simultânea é poesia em direção a um futuro
anunciado nos movimentos icônicos/sônicos que nascem na estrada, atravessam
a janela do atelier e se posicionam na tela do pintor ou na partitura do musicista.
O conceito de ubíquo é desvinculado de tal matriz só material da simultaneidade. Talvez esta maior autonomia derive de ser – a ubiquidade – uma
condição abstrata já ligada misticamente a um ser divino ou sagrado. O ubíquo
pertence a uma percepção visionária do invisível no qual a condição humana é
constantemente observada pelo divino e da qual não se foge escondendo-se em
2. Referente à consecutio temporum, ou seja, a norma que regula as conjunções
entre tempo e verbo. (lat.) – do latim: ação de seguir, acompanhar, ou ainda, consequência,
efeito, ligação adequada. (fontes: Dizionario Grazanti 2.0 e Dicionário do Latim Essencial
(REZENDE, A.M.; BIANCHET, SB)
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ...
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algum lugar secreto, enquanto isto (“o ser”) que é ubíquo atinge você enquanto
lhe transcende.
Na contemporaneidade, o ubíquo desenvolve a imanência lógico-sensorial
de caráter material/imaterial. Exprime tensões além do dualismo, isto é, o sentir
simplificado da condição humana na qual as oposições binárias são funcionais
para reconduzir a complexidade cotidiana no domínio dicotômico da ratio.3
Ubíquo é incontrolável, incompreensível, indeterminável. Fora do controle
político vertical, da racionalidade monológica, de cada determinação linear
espaço-temporal. Nesta perspectiva, é possível elaborar visões ubíquas em
direção àquelas invenções humanistas que se movem à beira do além: além da
fixidez identitária das coisas e do ser que, por esta qualidade, oferece visões
poético-políticas ilimitadas.
Ubíquo é a potencialidade da fantasia que se conjuga com a tecnologia. O
movimento ubíquo se ampliou nos últimos anos em relação à etnografia da web.
Desde então, as pesquisas sobre a web-etnografia se difundiram cada vez mais.
As trocas entre as diversas culturas, que no passado foram vistas e analisadas
como dissolução das culturas “fracas” crescem segundo misturas ativas
caracterizadas por hibridações-sincretismos e não por passivas homologações.
O etnógrafo não é mais só o antropólogo ou pesquisador de estudos culturais,
adestrado segundo procedimentos estabelecidos durante a pesquisa em campo.
No sentido que o campo se ampliou, estendeu-se numa simultaneidade diaspórica,
digital e multividual, na qual é cada vez mais imanente a ubiquidade material/
imaterial.
Tal ubiquidade da etnografia requer ser penetrada e precisada. A minha
identidade de pesquisador não permanece idêntica a si mesma, enquanto
desenvolve ao mesmo tempo relações diagonais que usam diferenciadas
expressões metodológicas em diversas zonas glocais.4 Tal identidade é mais
flexível em relação ao industrialista, é uma identidade em parte mutante acomodada numa balsa instável, que oscila entre sujeitos/contextos diversos na mesma
moldura. Por isto, o olho etnográfico é ubíquo enquanto adestrado para decodificar a coexistência de códigos discordantes (escritos, visuais, musicais, mixados, etc.) e a praticar módulos igualmente diferenciados.
3. Razão, motivação – em latim, o valor, o cálculo, avaliação.
4. Ligado ao local e ao global simultaneamente.
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Massimo Canevacci
As coordenadas espaço-temporais se tornam tendencialmente supérfluas e
expandem um tipo “confuso” de experiência subjetiva ubíqua. O mim pesquisador
se coloca na situação de ubiquidade imerso na própria experiência pessoal e na
relação instantânea com o outro; e este outro é igualmente ubíquo, no sentido
que vive onde está aquele momento ativo do seu sistema comunicacional digitalizado. Tal experiência não significa desmaterialização das relações interpessoais,
atesta uma complexa rede psicocorpórea, conexões óticas e manuais, seguramente
cerebrais e imaginárias que deslocam também na aparente mobilidade a
experiência do sujeito. O conceito de multivíduo (já precisado em diversos
ensaios)5 se manifesta plenamente em tais conexões ubíquas. A etnografia ubíqua
expande a multividualidade conectiva. São tramas que conectam fragmentos de
espaço-tempos sem a identificação determinada por “normal” além de multiplicar
identidades/identificações temporárias. O sujeito da experiência etnografia
ubíqua é o multivíduo.
Fazer etnografia significa que o sujeito da ubiquidade performática não está
na bibliografia acadêmica, mas entre sujeitos ativos da criatividade: em primeiro
lugar entre alguns arquitetos que sentem o pulsar da mutação e o endereçam a
composições inéditas. Zaha Hadid é uma destas fontes pulsantes. Ela é uma
filósofa expandida que inventa cenários presentes/futuros. É necessário saber
interrogar as suas obras, observá-las e participar delas, dialogar com cada detalhe
expresso pelas suas formas dispares, ler as suas entrevistas ou declarações de
estilo, endereçar sensibilidades óticas entre os contornos destas obras que deixam
o estupor que desenvolve geofilia redesenhando as geografias. Uma etnografia
performática dirige uma atenção ubíqua para esta antropóloga da arquitetura
dionisíaca que antecipa e plasma novas sensioralidades transurbanas. É ela a
filósofa do contemporâneo que desdobra o presente-futuro, antes e melhor que
os clássicos autores citados para cada ocasião.
3. Metrópole comunicacional
O processo que iniciou mais ou menos nos anos 70 no mundo, não só “ocidental”, foi a transição da cidade industrial para a metrópole comunicacional.
5. Ver “Multivíduo conectivo: Gregory Bateson” – In: Cienc. Cult. vol. 64 no. 1
São Paulo, Jan. 2012 – http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S000967252012000100016&script=sci_arttext
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ...
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Isto é, a cidade industrial tinha como momento central a fábrica. A fábrica era o
lugar não somente da produção econômica de valor, mas também o lugar de
produção política de valores. Era o centro do conflito. Era também o contexto
que desenvolveu a forma mais poderosa da lógica, isto é, a dialética e a formação
dos partidos. Então, a fábrica “produzia” o sentido da transformação não somente
econômica, como sociológica e urbanística da cidade. Naquela época, dava para
entender a cidade se relacionando à produção industrial, às classes sociais, à
dialética política. Aconteceu, nos últimos 30 anos, um processo que vem ocorrendo lentamente – e que ainda não acabou – de transformar esse centro urbanisticamente pesado num policentrismo flexível. A metrópole comunicacional
não tem um centro histórico e politicamente definido, mas uma constelação de
centros diferenciados e móveis, desenhados temporariamente pelos tecidos já
delineados. Visões poéticas sobre espaço/tempo são fundamentais por entender
e modificar esta metrópole material/imaterial.
O policentrismo “just-on-time” significa que consumo-comunicação-cultura
tem agora uma importância crescente em relação à produção. E que, em particular,
o consumo, que é baseado não somente sobre shopping-centers, também parques
temáticos, museus de arte, exposições universais, estádios de futebol, desfiles
de moda, etc., desenvolve um tipo de público que não é mais o público homogêneo e massificado da era industrial. É um público muito mais pluralizado, ou
podemos dizer, públicos fragmentados: públicos que gostam de “performar” o
consumo ativamente. Públicos de espect-atores. Por isso, os lugares do consumo
e os espaços da comunicação têm uma importância que aparenta, mais ou menos,
a da fábrica do passado. Para entender a metrópole comunicacional, precisamos
estudá-la, fazer pesquisa e também transformá-la. As artes sempre tinham,
implícita ou explicitamente, um poder transformador.
A comunicação na era digital é ainda mais importante: seja pelo aspecto
produtivo, seja pelo aspecto de inovações tecnoculturais, de valores comportamentais, linguagens icônicas, de relações corpo-metrópole, identidades ubíquas.
E a cultura – no sentido amplo antropológico que inclui os estilos de vida, visões
do mundo, mitos, artes, etc. – é cada vez mais parte constitutiva da metrópole
comunicacional. Para entender essa nova metrópole, é fundamental olhar o tipo
de reforma, não somente urbanística, mas de prédios, lojas, museus, estádios e,
em geral, de lugares de exposições que têm como modelo arquitetônico e
filosófico um tipo de desenho, de lógica pós-euclidiana. Arquitetura como obra
de arte e o design expandido nos territórios urbanos transitivos. Por isso, a citada
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Massimo Canevacci
arquiteta Zaha Adid é uma das máximas figuras filosóficas e artísticas contemporâneas: ela cria pensamentos que modificam a sensibilidade conceitual dos
indivíduos e dos públicos.
O conceito de cidade é baseado numa concepção de cidadania e de produção
que é desafiada nas novas culturas e nas subjetividades transitivas. O consumo
contemporâneo dos últimos anos favorece um tipo de dimensão pragmática mais
performática, desenvolve um diferente tipo de relação entre individuo e sociedade. Talvez o conceito de sociedade não seja mais forte como era antes. A
sociedade era baseada sobre a cidade industrial e aquela cidade desenvolveu um
tipo de identidade fixa na família, no trabalho e no território. Mas a metrópole
comunicacional é muito mais fluida e multíplice nas identidades de sexo-território-trabalho. Isso significa uma transformação não somente no modelo de trabalho: é quase impossível para cada pessoa fazer o mesmo trabalho por toda a
vida e morar no mesmo território. Por outro lado, a comunicação favorece quando
o público faz parte constitutiva da obra, onde seja possível presentear a sua
própria história, contos, figuras, imaginação. Marina Abramovich fica sentada
em uma mesa diante de um/uma convidado/a e juntos cocriam a obra performática
e pública que emociona e envolve. Por isso, o público, que era somente espectador, vem agora ser espect-ator, isto é, não só participa, mas é também ator-nosespaços. Espect-ator significa esse tipo de coparticipação que desenvolve um
tipo de atitude ubíqua nos públicos. Espect-ator performático não é mais passivo,
mas é parte constitutiva da obra aplicando a tecnologia digital nos espaços
metropolitanos.
Se a história da modernidade capitalista burguesa diferenciou o espaço
privado da cena pública, agora está acontecendo uma transição, em que o conceito
de espaço urbano não é mais bloqueado na distinção dualística público-privado:
há uma expansão da privacidade num território que antes era totalmente público;
e às vezes há uma expansão assimétrica de um território público num lugar que
era antes totalmente privado. Por exemplo, a comunicação digital é um espaço/
tempo ubíquo onde eu tenho direitos transitivos. A tela ubíqua do meu computer
é espaço/tempo onde, praticando uma social network, eu sou público-privado.
A cidade absorve o acontecimento como uma esponja e expulsa em sua linguagem, que as áreas metropolitanas reelaboram influenciando os comportamentos das pessoas. Por isso, a linguagem da metrópole-esponja é baseada sobre
lugares, espaços, zonas e interstícios (áreas in between entre um espaço conhecido
e um desconhecido). Esses interstícios favorecem um tipo de linguagem urbano
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ...
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dialogicamente entrelaçada com a linguagem do corpo, esta diferenciação baseada sobre um mix de linguagem do corpo/metrópole favorece uma extrema mobilidade dos sincretismos culturais como parte da experiência cotidiana. Ela se
desenvolve graças aos interstícios. Os interstícios favorecem um tipo de dialógica
entre body-scape e location. Body-scape é um corpo-panorama; location é um
corpo-esponja. A dialógica dissonante da metrópole comunicacional é essa
interação flutuante entre interstícios corporais. A dissonância dialógica mistura
o orgânico e o inorgânico, corpo e coisa, body e corpse: body como o corpo vivo,
e corpse como o corpo morto; no hífen, que separa e unifica body-corpse, acontece o trânsito post-human entre corpo vivo e corpo morto.
4. Fetichismos visuais
Os fetichismos visuais – material/imateriais – desenvolvem uma pragmática
além do dualismo clássico e da mesma dialética; “ele” (o fetichismo) pode liberarse das incrustações conectadas à reificação e alienação. Ele incorpora também
– misturado e sincretizado ao domínio – um desejo perturbado e parcialmente
desviado quanto difundido em culturas diversas e em modalidades diferentes:
enfrentar praticamente a relação orgânico/inorgânico, corpo/mercadoria, olho/
screen, carne/tecnologia (talvez vida/morte) numa maneira envolvida seja na
produção industrial e pós-industrial, seja nas relações míticas ou sagradas
(“artísticas”) que animam o que parece coisa morta. O fetichismo conecta, cruza
e mistura reificações e petrificações, histórias e mitos. Fica dentro do corpo do
capitalismo velho e novo e, no mesmo espaço-tempo, nos corpos arcaicos/
contemporâneos daquilo que chamamos mitologias. O fetichismo não anima só
mercadoria e reifica contextualmente os trabalhadores: ele vivifica o que é fixo,
um objeto ou uma coisa. Por isso, os fetichismos visuais se determinam no
conceito de facticidade (ADORNO, 1970), um conceito sensorial onde viajam –
em tensões híbridas e misturadas – coisas, objetos, mercadorias, pixel.
Neste conceito de matriz colonial, esconde-se um desejo obscuro/luminoso
que os portugueses tentaram fechar numa regressão primitivista e animista, sem
história e sem teologia. O animismo como uma anima secundária e inferior. Talvez degenerada. Uma possibilidade do fetichismo aspira a um desejo a se
relacionar e tentar resolver dia a dia as diferenças entre o que esta morto e o que
está vivo (body-corpse), entre o sagrado e o religioso, sexo e erótica, trabalho e
arte. Em conclusão, o fetichismo incorpora o desejo de perceber e vivificar os
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Massimo Canevacci
fragmentos (imóveis) dos mundos além do dualismo conceitual ou dos
paradigmas dicotômicos: ele é filosofia pragmática e perturbativa, que entende
a relação entre reificação e petrificação. E a resolve ou dissolve. Chamo este outro
lado meta-fetichismo. Nele, sobrevivem desejos transculturais, esperanças
políticas, desvios subterrâneos que flutuam, diferenciam-se e se misturam nas
diversas culturas. Os meta-fetichismos se cruzam com as metamorfoses e –
sincretizados – afirmam a potencialidade de subverter o “estado das coisas”:
porque as coisas são materiais/imateriais e não têm estado, mas movimento.
Desenho o fetichismo metodológico como aquela abordagem das facticidades fetish ou “coisas-animadas” que dissolvem o caráter reificado da mercadoria através do deslizamento semiótico dos códigos nelas incorporados. A
interpretação é, ao mesmo tempo, uma destruição. É essa destruição que assume
as espirais linguísticas da desconstrução. O fetichismo metodológico é, por assim
dizer, homeopático. Ele cura o fetichismo, exasperando e dilatando as construções interpretativas encenadas pelas próprias coisas, ao longo de sua vida
comunicativa.
Uma pesquisa sobre as artes necessita de um envolvimento fortemente
caracterizado no sentido “trans” ou “in” disciplinar, favorecendo em particular
as relações entre ciências humanas (antropologia cultural, psicologia social,
sociologia, filosofia, arquitetura). Focalizando a obras de Adorno, Benjamin,
Kracauer e outros representantes da assim dita “Escola de Frankfurt”, o projeto
enfrenta a indústria cultural na época da comunicação digital que, diferindo da
visão opositiva de Benjamin, mistura as dimensões auráticas e reproduzível. A
troca epistolar entre Benjamin e Adorno é fundamental: nas cartas, antecipa-se
um debate que ainda agora endereça à crítica e à experimentação na relação entre
arte reprodutível e tecnologia reificada. O conceito-chave é o estupor da
facticidade (Stauende Factizität).
O estupor como posicionamento do sujeito-pesquisador indica uma abertura
psicocorporal em relação ao encontro com uma coisa, um evento, uma pessoa
não conhecida: e que, justamente por isso, enquanto estrangeira, é desejada.
Estupor é a abertura porosa da sensibilidade intelectiva em direção de um
descobrimento não procurado ou não previsto. A facticidade é uma mistura de
coisas, objetos, mercadorias. É também próxima lexicalmente ao fetichismo e
as narrações. Fetichismo deriva da facticius; ficção da fictio; facticidade mistura
as duas filologias e as expandem nas produções material/imateriais atuais. Verifica nas áreas da estética digital a hipótese de meta-fetichismo e meta-morfose.
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ...
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A reflexão histórica sobre estes pensadores tem uma angulação caracterizada
na focalização de algumas tendências contemporâneas no tema da autorrepresentação e em relação à proliferação dos fetichismos visuais. Por exemplo:
nos anos 1930, Kracauer afirmou que “self-representation of the masses subject
to the process of mechanization is the conditions of possibility for a democratic
culture” (1995:34). Nesse sentido, aqui tento introduzir a hipótese conceitual
de meta-fetichismo que incorpora um potencial além do dualismo orgânicoinorgânico ou ainda da dialética sujeito-objeto, natureza-cultura, reificaçãoidentificação. O desenho apresenta uma perspectiva determinante ao experimentar pragmaticamente constelações performáticas que verificam e, assim,
pretendem aplicar provisórias conclusões.
No entanto, a perspectiva tradicional sobre o fetichismo e reificação (de
Marx a Freud para a Escola de Frankfurt) reproduz um ponto de vista antropocêntrico, bem como a dicotomia metodológica que pode ser possível superar
através de uma perspectiva eco-totêmica Batesoniana. Vou tentar reencenar o
duplo vínculo e a ecologia da mente de Bateson em minhas pesquisas
etnográficas. A comunicação digital está cruzando e misturando sujeito e objeto,
natureza e cultura, corpo e cadáver. Body-corpse, seres vivos são seres de transição: o material/imaterial do corpo/cadáver. Há um padrão sincrético que liga
as coisas, objeto e commodities além de seu histórico (reificado) destino como
um valor de uso ou valor de troca. Meu objetivo é desenvolver conexões ecológicas e sincreticas – além da dicotomia sujeito/objeto – entre culturas digitais,
mentes expandidas, facticidades viventes: uma comunicação transitiva através
de meta-fetichismos :: meta-morphosis :: eco-fisionomias.
Enfim, Edward Said enfrentou, em seu último livro, o desafio cultural
existente no pensamento de Adorno e, em particular, focalizou o conceito de late
style aplicado a Beethoven e que Said expande no mesmo Adorno e em outros
autores: “to explore the experience of late style that involves a nonharmonious,
non serene tension, and above all, a sort of deliberately unproductive
productiveness going against …” (2006:7). O estilo último é produtivo enquanto
elabora óperas e, ao mesmo tempo, coloca em discussão o princípio instrumental
da produtividade (Spätstil Beethovens é um ensaio de Adorno de 1937). “For
Adorno, far more than anyone who has spoken of Beethoven’s last works, those
compositions that belong to what is known as the composer’s third period (…)
constitute an event in the history of modern culture: a moment when the artist
who is fully in command of his medium nevertheless abandons communication
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Massimo Canevacci
with the established social order of which he is a part and achieve a
contradictory, alienated relationship with it. His last works constitute a form of
exile” (SAID, 2006:7-8).
Late style, exact imagination, Stauende Factizität, self-representation são
conceitos operativos que inspiram as perspectivas de um projeto-constelação
sobre as artes contemporâneas.
5. Estupor descongelante
Ao final, quero escolher como test case a arte descongelante e espantosa
da artista brasileira Nele Azevedo. Com a ajuda dos habitantes locais ou turistas
casuais, ela aplica, em determinados espaços urbanos públicos, uma quantidade
variável de pequenas estátuas geladas que chegam com um carro frigorífico. No
início, estes seres são todos iguais, gelo estampado reprodutível no centro de
uma praça. Foram expostas em diversas cidades do Brasil, em Paris, Porto e
Florença. Em geral, são cerca de 300 esculturas. Mas, em 2014, ela foi convidada,
em Birmingham, para comemorar o centenário do inicio da 1ª guerra mundial.
E a sua ideia foi colocar 5.000 seres de gelo.
The Minimum Monument project is a critical reading of the monument in the
contemporary cities. In a few-minutes action, the official canons of the
monument are inverted: in the place of the hero, the anonym; in the place of
the solidity of the stone, the ephemeral ice; in the place of the monumental scale,
the minimum scale of the perishable bodies. Thousands of small sculptures of
ice are placed in public space. The memory is inscribed in the photographic
image and shared by everyone. It is no longer reserved to great heroes nor to
great monuments. It loses its static condition to gain fluidity in the urban
displacement and in the change of state of the water. It concentrates small
sculptures of small men, the common men. (Birmingham Post, 01 Aug 2014).
Ao contrário de imaginar uma comemoração retórica – nacionalista ou
heroica –, a artista escolheu mostrar o simbólico no espaço público da cidade
uma obra multíplice que favorece o processo meta-fetichista através do estupor
do descongelamento do monumento mínimo e de cada espectador-ator presente.
E, ao final, o que fica são manchas de águas que em breve são absorvidas pelo
território. A comoção envolve a praça inteira, o público de diferentes idades e
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ...
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gêneros, a participação ativa das pessoas, a possibilidade de mover-se e contribuir
na construção da obra, não somente bloqueada na distância congelante e reificada
do espectador tradicional, mas solicitada por impulsos próprios a cocriar a obra.
O público acompanha o emocionante e comovido processo de uma memória
trágica que esta arte consegue realizar numa catarse aquática. Dor e sorrir, choro
e alegria, atividade e fixidez: tudo se mistura na experiência que desafia a noção
de arte tradicional.
A primeira vez que acompanhei a obra inteira, no Memorial da América
Latina, em São Paulo, fiquei preso num ambíguo desejo de olhar fixamente este
lento desaparecimento dos seres e, ao mesmo tempo, um frenesi de fotografar
tudo, quase por salvar um mínimo de lembrança. Experimentar a comoção reflexiva e, junto a isso, a mobilidade cognitiva ou estética, foi um trecho inesquecível.
Nele Azevedo, tímida e reservada, exprime e experimenta o existente além das
artes fixas. E posso concluir que a necessidade e o desejo de aprender a descongelar-se como identidade fixa a congelou no próprio passado. O descongelamento
dos seres acompanham a delicadeza do próprio descongelamento, frequentemente
bloqueado na repetição do passado e que não consegue aceitar a beleza da própria
“mutação” (mudança).
Mutação Máxima no monumento mínimo.
A artista Nele Azevedo com uma das 5.000 esculturas
“It is stunning art with a powerful message to melt the heart. All that will be
left to show for two weeks of intensive work are puddles of water in
Birmingham’s Chamberlain Square. But before they melt, 5,000 tiny ice
sculptures of figures will be placed by the public on the steps to remember those
men and women who made sacrifices in the First World War. Descendants of
those who fought in the conflict, especially those who are not remembered on
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Massimo Canevacci
war memorials, will be asked to place a figure on the steps. Then the public
can join in, helping to fill the wide steps in the square with thousands of the
figures before they all melt. Its creative programme director Paul Kaynes says:
“Watching the figures melt, and on such a vast scale, will undoubtedly effect
people in many different ways – the city will not have seen an exhibition like
it.”(ibidem)
A coisa mais impressionante é que cada ser ou escultura, descongelandose, é diferente da outra. É a afirmação da beleza da singularidade de cada sujeito,
de carne ou de gelo, que no processo vira multivíduo: uma polifonia sincrética e
extraordinária do eu pluralizado em “eus”. A beleza do transitório e da relação
constitutiva coagulada entre os corpos das esculturas e o gelo do público.
“No monumento mínimo, as pessoas cruzam, acariciam, dialogam com as obras
como seres que, na frente delas, começam na hora a perder força. Mas é esta
perda da identidade compacta que causa a libertação da mudança subjetiva. Se
percebe uma afinidade entre as metamorfoses processuais da arte pública e do
sujeito privado. As metamorfoses cruzam e modificam a distinção moderna
entre público e privado, cada vez menos dicotômicos e mais misturados e
conectados.
A arte processual pública difunde ternura. A obra que se derrete é um gelo
macio. Observando as fisionomias de cada ser que se modifica em relação ao
calor do ar, um sentimento de morte doce, progressiva, de um diminuir de tamanho, de um chorar lágrimas de água que molham o chão da praça e, de alguma
maneira, a intimidade de cada um. Ninguém pode ficar normal acompanhando
a progressiva metamorfose de seres em água. Um sentimento de ternura emociona o/a observador/a e os mesmos olhos se molham de lágrimas percebendo um
destino finalmente igual aos humanos. A obra de arte não é mais imortal ou
quase divina: é mortal e efêmera como nós” (CANEVACCI, 2013, p. 216).
Segundo Nietzsche, um monumento exerce o poder da mnemotécnica, com
isso, a vontade do filósofo é desmascarar a solenidade, gravidade, mistério que
continuam a exercer o seu poder através da memória: “quando o homem considera
necessário formar uma memória, nunca acontece sem sangue, mártires, sacrifícios... Tudo isto tem na dor o coadjuvante mais potente da mnemônica. O
monumento resume e bloqueia este ar cruel mascarado de solenidade” (1976, p.
45). Este derretimento dos corpos difunde um sentido de ternura e inquietação,
Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ...
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um desejo de parar este processo e ao mesmo tempo um desejo de vê-lo até o
fim, de assistir com olhares ambíguos de um espectador cúmplice, que, com o
seu próprio hálito, favorece este seu derretimento irreversível. Eis que começam
a pender de um lado ou de outro, deitam-se nos degraus já molhados, transformam-se numa pequena poça d’água. O ser se transformou em algo ou alguém
outro e, assim, realizou-se a metamorfose meta-fetichista da arte além da memória
monumental.
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Brazilian modernist narrative, the making of
São Paulo Museum of Modern Art (MAM),
and its primary collection1
ANA GONÇALVES MAGALHÃES*
Abstract: Ongoing research about the Matarazzo collections, now belonging to MAC
USP. The project started out through the critical revaluation of the cataloging system
of the Museum, and tackled the acquisitions of Italian works the couple Francisco
Matarazzo Sobrinho and Yolanda Penteado realised between 1946 and 1947, for
the first nucleus of the collection of the former São Paulo Museum of Modern Art
(MAM). The research dealt with their provenance, their relationship with Brazilian
artistic milieu and the so-called “Rappel à l’Ordre”. They allowed us to revaluate
this term and the relationship between Margherita Sarfatti and the Novecento
Italiano with Brazilian modernism.
KEYWORDS: Matarazzo Collections. Italian Modern Art. Margherita Sarfatti.
São Paulo Museum of Modern Art (MAM). Brazilian Modernism.
A narrativa de arte moderna no Brasil, a formação do Museu de
Arte Moderna de São Paulo (MAM) e sua coleção inicial
Resumo: Pesquisa em andamento sobre as coleções Matarazzo, atualmente
pertencentes ao acervo do MAC USP. O projeto começou com a reavaliação
crítica da catalogação do acervo do museu, e abordou a aquisição de pinturas
1. Este artigo foi originalmente publicado, numa versão mais curta, em: Ulrich
Grossmann e Petra Krutisch. 33rd Congress of the International Committee of the History
of Art (CIHA). Nuremberg: Germanisches National Museum, 2013, vol. 1, pp. 86-90,
resultante de comunicação apresentada no congresso do CIHA em 2012.
* Professora Doutora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo – Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica.
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Ana Gonçalves Magalhães
italianas que o casal Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado realizou
entre 1946 e 1947, para o núcleo inicial do acervo do antigo Museu de Arte
Moderna de São Paulo (MAM). A pesquisa tratou da procedência das obras,
sua relação com o meio artístico brasileiro e com o ambiente do chamado
“Retorno à Ordem”. Elas nos permitiram reavaliar esse termo e a relação entre
Margherita Sarfatti e o Novecento Italiano com o modernismo brasileiro.
Palavras-chave: Coleções Matarazzo. Arte Moderna Italiana. Margherita
Sarfatti. Museu de Arte Moderna de São Paulo. Modernismo Brasileiro.
MAC USP
The history of the Museum of Contemporary Art of the University of São
Paulo (MAC USP) unfolds into two aspects that allow one to enter the narrative
of modern and contemporary art in Brazil and reevaluate it in the light of new
elements. The first one stems from the fact that MAC USP is a university museum,
what has endowed it with an infrastructure of scholarly research.2 The second
one regards the connection of its institutional history to that of the former São
Paulo Museum of Modern Art (MAM) and the São Paulo Biennial (FABRIS;
OSORIO, 2008). The foundation of the Museum at the University, in April 1963,
was the result of the separation between the former MAM and the São Paulo
Biennial, the disappearance of MAM in the previous year, and the cession of its
collection to the University. Such events, narrated by Brazilian historiography
in a controversial and polemical tone, turned MAC USP into the owner of the
most important collection of modern art in the country.
Its course in the University has turned it into a privileged site for the
dissemination of modern and contemporary art, as well as a place for artistic
exchange. As proposed by its first director, Walter Zanini, MAC USP was a
“laboratory of experimentation,” and since 1964, by the elaboration of exhibition
programs geared towards young artists, it continued to update its collection.
Zanini was engaged in a two-fold duty: thinking about the museum in a
retrospective way, through the collection received from the former MAM, by
updating the research on the history of modern art in Brazil; and in a prospective
2. On the issue of considering MAC USP a university museum (and not a “museum
at the university”), see Aracy Amaral, 2006, pp. 207-212.
Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ...
| 45
way, while promoting the update of its collection, by assimilating the most
relevant trends in contemporary art. This project, which remained asleep in the
last two decades, is starting to be revised by the current director, Tadeu Chiarelli
(2011), when MAC USP is being given a new venue, at Ibirapuera Park in São
Paulo, which has presented itself as an opportunity for the research department
to reevaluate the narrative of modern art projected by the museum.
Critical Reevaluation and Revision of the Records of the MAC USP
Collection
In 2008, we started out a research project the main aim of which was to
reevaluate the procedures of registry of the MAC USP collection, and allow the
updating of its records database, so as to provide the means for the publication
of a new version of the general catalogue of the collection. The museum had
previously had three opportunities to document its collection. The first general
catalogue of the collection was published in 1973, by Walter Zanini, almost in
an inventory format (ZANINI, 1973). Perfil de um acervo, organized by Aracy
Amaral in 1988, while inventorying works that had entered the museum collection
until 1987, sought to reevaluate the knowledge on the main works in the collection
through a series of entries created with the collaboration of various researchers
and authors (AMARAL, 1988).
The last general catalogue of our collection, organized by Ana Mae Barbosa
in 1992, benefited mostly from the first record review of the collection, carried
out from 1985 onwards, with the creation of our Registrar Section, when the basic
documentation of the works was systematized in curatorial records for the first
time (BARBOSA, 1992). After seventeen years, and on account of the fact that
important sets of the collection had no published record, it was vital for us to
rethink the procedures by which we were to publish and document our collection.
The reevaluation of the museum records was addressed taking into
consideration the fact that this was not a neutral procedure, insofar as we were
working with very distinctive categories, construed by paradigms very different
from what one can understand by art. The collection of MAC USP was formed
in a context that defines a watershed in art history. On the one hand, we have
objects which conception is based on a set of modernist notions that define what
we call modern art; on the other, a second set that emerged while confronting
that former set of paradigms, testing the boundaries of the museum, which is what
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Ana Gonçalves Magalhães
we call contemporary art. Therefore, any criterion to be adopted to the description
of our collections, in an apparently simple procedure – of the basic constitution
of a records chart with technical information of the artworks – would require a
deeper conceptual discussion.
Another issue that was raised regarding the records review and the
reevaluation of the MAC USP collection has to do with its “gaps”. The expression
is used here between inverted commas, because for Brazilian historiography, it
derives from the fact that MAC USP has suffered, along the years, with a lack of
understanding from the part of the university central administration of the
importance of an acquisition policy (AMARAL, 2006; CHIARELLI, 2011). However,
it seems to be a fruitful exercise to review such “gaps” by comparing them to the
notion of discontinuity, as conceived by Michel Foucault (2008).
Foucault construed the critique to the history of mentalities by means of what
historians of the Annales School called the “long duration,” and which, therefore,
implied working with the notion of continuity. He proposed an interpretation of
historiographical discourse that could encompass and deal with discontinuity,
from the aporia of such discourse to work with such notion, at the same time that
it was already given by the very object of study of the historian.
His argument proved quite relevant in the museum collection context, in
which we have to constantly deal with discontinuity, while bringing to the surface
what he called “white spaces” (FOUCAULT, 2008, p.17) left by narratives of art
history. To work with a museum collection means, above all, to confront oneself
constantly with its relation to its own territory, its local dimension, as well as
reviewing the roles and places given to certain artworks and artists in different
contexts.
In this sense, MAC USP modernist collections offer a fertile field to
interpretation, for the very reason that they are “dated” (AMARAL, 2006, p.270).
First of all, the modernist works in our collections were gathered in the very
process of the making of a history of modern art, in which critics were formulating
the terms while these creative procedures were also in the making, and artists
and works chosen were still to be confronted with time.
MAC USP modernist collections must be reviewed in the light of São Paulo
modernism and its relation to international context. The modernist project
proposed here tried to establish a local model for the narrative of art history, as
we will see. It is by elucidating such narrative that we will be able to rethink such
collections and their role in the history of modern art in Brazil.
Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ...
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Matarazzo Collections and the Records of the Former MAM
The cession of the collections of the former MAM to the University had
been initiated by the donation of the so-called Collections Francisco Matarazzo
Sobrinho and Francisco Matarazzo Sobrinho & Yolanda Penteado.3 It is common
for experts to consider the Matarazzo collections as private ones, which had no
direct relation with the collection of the former MAM or the Brazilian artistic
milieu, the donation of which to the University of São Paulo would have served
as a pretext to force the cession of the collection of the former MAM to the
University.
However, as we started out the research on the documentation of the first
acquisitions of the Matarazzo couple, it became very clear that such works were
part of the collection of the former MAM. They had been acquired with the sole
purpose of constituting the stone mark nucleus of its collection, and during the
1950s, they were constantly exhibited as the museum primary collection,
particularly in the case of the seventy-one Italian paintings acquired between 1946
and 1947, with which we have worked so far. Moreover, they helped us to
establish the primary records of the collection of the former MAM.
In addition to the museum record charts that had been rescued by MAC USP
Registrar Section in 1985, we have found at least three other documents that
belong to the records of the works of the former MAM. The first is a fifteenpage-long typed list of the works bought between 1946 and 1947, with their basic
technical information. The others are two versions of an inventory book, the first
one being a card index, which was organized according to the following criteria:
3. Francisco Matarazzo Sobrinho or Ciccillo Matarazzo (1898-1977) grew into a
very rich family of Italian-born entrepreneurs, who had established themselves by the
end of the 19th century in Brazil. By the mid-1930s, he founded his own company, the
Metalúrgica Matarazzo, and from the 1940s, started building his identity as a great patron
of the arts, engaging in the creation of various institutions to foster modern art in the
country. In 1947, he married Yolanda de Ataliba Nogueira Penteado (1903-1983). Heir
of a rich family of São Paulo coffee producers, she was a key figure in the legitimation of
Ciccillo as a representative of Paulista elite and patron of the arts. Her relationship with
Brazilian artistic milieu came from her family bonds, especially through her aunt, Olívia
Guedes Penteado (1872-1934) – collector and promoter of modern art in São Paulo, who
had been hostess of a modernist salon that would give birth to the Sociedade Pró-Arte
Moderna (SPAM – Society Pro-Modern Art), in 1932.
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Ana Gonçalves Magalhães
a) on the first level, there was a division between foreign and Brazilian
works;
b) on the second level, they were organized by medium: painting, sculpture,
and print;
c) on the third level, they were organized in alphabetical order, according
to the artists’ last names.
The second version of this inventory book, also organized as a card index,
had two volumes, the first being for works in painting and sculpture; and the
second, for works on paper, and still maintaining an internal division between
foreign and Brazilian works.
As for the term “print” in such context, it was used for any kind of work on
paper. Such categories by medium were the same used in the sessions of the
Venice Biennale, from its origins, and thus, in those of the São Paulo Biennial,
at least in its first decade of existence. The awards granted at those exhibitions
followed those categories. It also is worth mentioning that MoMA in New York
had its curatorial, conservation, and records infrastructure organized following
those categories, with its historical departments of painting and sculpture, and
prints and drawings – still operating today as such. To a certain extent, MAC
USP preserved this same infrastructure, if we think that our conservation
laboratories and storage rooms follow those categories.
MAM inventory books and record charts respect the system of the first typed
list registering the works (even if out of alphabetical order by artist’s surname)
acquired by the Matarazzo couple between 1946 and 1947, as MAM inventory
number was created from it. A major element is describing the works based on
their medium and their nationality, i.e., the separation between the FOREIGN
collection and the BRAZILIAN collection. The inventory numbers are thus
indexed:
PE = Pintura Estrangeira [Foreign Painting]
PB = Pintura Brasileira [Brazilian Painting]
EE = Escultura Estrangeira [Foreign Sculpture]
EB = Escultura Brasileira [Brazilian Sculpture]
GE = Gravura Estrangeira (for any kind of work on paper) [Foreign Print]
GB = Gravura Brasileira (idem) [Brazilian Print]
Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ...
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The cession of these works to USP generated another inventory number for
them, which emphasized the origin of the donation of the work and the history
of its cession to MAC USP. Albeit very frequent in record proceedings, such
system underlined the division between the Matarazzo collections and the socalled MAM collection.
The set of Italian paintings acquired between 1946 and 1947 revealed a
double interpretation of these objects, the juxtaposition of their provenance, and
the survival of the separation between what Brazilian historiography had always
considered international art (or “foreign”) and what was Brazilian art. Their
inventory numbers, first at the former MAM and then at MAC USP, reflect two
layers of categories given to describe these objects: at former MAM, their
description by medium seemed key in their understanding, defining the paradigms
by which they should be considered art; at MAC USP, their belonging to a larger
set of works (the donation) imbued them with an extra element and allowed them
to be seen in relation to other works in different media and by different artists.
So, if the context for the description of our Gino Severinis, Ardengo Sofficis,
Giorgio Morandis of the Francisco Matarazzo Sobrinho Collection, at the former
MAM, was painting, at MAC USP, they were necessarily engaged in one and
the same history and took us to another moment, which was the history of their
reception and the relationship between the Italian artistic milieu and São Paulo
modernism.
It is worth going back to the separation between foreign and Brazilian works,
as it seems to have been a conceptual display through which these objects were
seen by Brazilian historiography. Its persistence is quite remarkable, and the
general catalogues of MAC USP, which tried to construe any kind of discourse
to the museum’s collection, are those that actually make use of this separation
(ZANINI, 1973, pp.293-451; AMARAL, 1988). Such an organization should be
analyzed in the light of other elements that seem relevant in the context of the
making of this collection.
First of all, the very moment of our modernist formation was in the context
of the affirmation of a national identity, in-between the two World Wars, which
characterized the so-called “Return to Order” period in Europe. This, of course,
was marked by the rejection of any kind of internationalism and transnational
artistic experiences, as it also meant the banning of the avant-garde in certain
territories. We only have to think about some examples of exhibitions and
institutions which fostered modern art in Europe, in those days, and how they
50
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Ana Gonçalves Magalhães
tackled that issue. The Venice Biennale itself, following the system of universal
exhibitions, contributed to the affirmation of national identities, since it was
organized by country pavilions. Furthermore, and especially in the case of the
Venice Biennale, the awards in the categories of painting, sculpture and print
(in Italian, bianco nero”) were also divided between national and international
awards – model to be adopted by the São Paulo Biennial in the 1950s.
Even after World War II, when there was a revival of the early 20th-century
avant-garde for the very reason of their being international, these experiences
are shown in the framework of the country pavilion, in the big international
modern art shows. In the case of the Venice Biennale, so as to redeem Italy from
the fascist years, from 1948 onwards, there was a systematic program of
exhibitions of the avant-garde movements. Such is the case of the retrospective
shows of French Pontillisme and Italian Divisionismo at the Venice Biennale of
1952. The works of each current was presented side by side, so as to allow one
to perceive the specificities of one and the other (PALLUCCHINI, 1952, pp. XVIIIXXIII; VALSECCHI, 1952, pp. 390-394). The São Paulo Biennial followed that
trend, when negotiating important shows of avant-garde groups through the
participating countries, in the 1950s.
These elements thus reveal that there was a model concerned with the
formation of modern collections that would have been more engaged with the
notions of modern art in circulation during the 1930s and ’40s, which was not so
alien to the Brazilian artistic milieu, as Brazilian historiography would claim.
Without having reached the full analysis of all Matarazzo acquisitions, we
can already revise some elements of the history of the São Paulo former MAM.
Brazilian historiography claims the model of the North-American MoMA as the
one that has served as the basis for the foundation of both modern art museums
in Brazil (in São Paulo and Rio de Janeiro). However, the set of acquisitions
already studied and the institutional culture that was to operate in the management
of the former MAM in São Paulo seem to be more connected to the European
context – more precisely, the Italian one – than the North-American context.
Italian Paintings in the Matarazzo Collections
We shall now concentrate in the first set of paintings acquired by Matarazzo
in Italy, between 1946 and 1947. From the records review of this first set, it
resulted in the acquisition of seventy-one works by Matarazzo, in Roman and
Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ...
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Milanese galleries, or directly from Italian artists or collectors. Brazilian
historiography that sought to tackle such acquisitions points Italian art critic
Margherita Sarfatti (1880-1961) as a consultant for the Matarazzo couple (FABRIS;
OSORIO, 2008).
Margherita Grassini Sarfatti was a journalist and art critic, from a prominent
Venetian Jewish family. In 1902, after marrying lawyer Cesare Sarfatti, she
moved to Milan, where she was to join a group of socialist intellectuals and artists,
and collaborate with newspaper Avanti!, in which she would be responsible for
an art critique column from 1909 on. In 1912, she met Benito Mussolini, with
whom she engaged in a love affair that would last until 1933. As an art critic, her
role in the creation of the Novecento group in 1922 is vital. In 1924, she was to
dedicate herself to write Mussolini’s biography, Dux. The following year would
mark the reformulation of the Novecento group, now designated as Novecento
Italiano, when she and other members of the group signed the Manifesto degli
Intteletuali Fascisti. With the alliance between Mussolini and Hitler, and the
publication of Racial Laws in Italy, in 1938, Sarfatti left her country. Between
1939 and 1947, she lived in exile between Argentina and Uruguay (GUTMAN,
2006). Little is known about her activities in South America, and her links with
its artistic milieu.4 In Argentina, such relations have started to be studied,
especially concerning the context of the exhibition of the Novecento Italiano
group, in Buenos Aires, in 1930.
The works bought in Italy form a panorama of Italian modern art between
1920s and ‘40s, in which the Novecento Italiano seems to dominate the scene –
if we take into consideration that such trend is defined by a figurative art for which
the notion of realism signifies the reinterpretation of certain elements of a socalled classic tradition. But if the term Novecento Italiano had been created by
Margherita Sarfatti to designate the new currents that she would call classicità
moderna, it soon took a new, more official dimension, in the context of a
systematic policy of promotion of Italian modern art, representing the fascist regime abroad. From 1927, a series of exhibitions in various European capitals –
4. For the Matarazzo acquisitions and Sarfatti’s involvement with them, see
Françoise Liffran, 2009, p. 713 and Phillip Cannistraro & Brian Sullivan, 1993, p. 531.
Even so, this episode is doomed to confusion, when the authors take the former MAM
for MASP (São Paulo Museum of Art, founded by media businessman Assis
Chateaubriand, in 1947).
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Ana Gonçalves Magalhães
beginning with Paris – engaged in the popularization of Italian art and artists of
the period, resulting in the acquisition of works for public collections in those
countries.
The period dominated by the notion of Italian modern art as Sarfatti defined
it ended precisely with the exhibition «Novecento Italiano» in Buenos Aires,
Argentina, and Montevideo, Uruguay, in 1930. Although it did not travel to
Brazil, it certainly allowed Margherita Sarfatti to visit the country for the first
time, and make the first official contacts with Brazilian intellectuals and artists.
Before arriving in Buenos Aires, she stayed in the country for about fifteen days,
when she visited Rio de Janeiro, São Paulo, and some colonial cities in the state
of Minas Gerais.5
But already in the mid-1920s, it is possible to trace the presence of some
Brazilian artists in the Milanese context and in the group around Margherita
Sarfatti. This is the case of Hugo Adami (who participated in the I Mostra del
Novecento Italiano, at Palazzo della Permanente in Milan, in 1926) and Paulo
Rossi Osir (graduated from the Accademia Brera in the 1910s, and who came
back to Milan in 1927). When returning to Brazil in the mid-1930s, Rossi Osir
identified a style of similar values with that of Sarfatti’s group, in a group of
painters that shared studios in the so-called Santa Helena Building, in the heart
of São Paulo, in 1934, and that had the participation of Italian immigrated artists
such as Fulvio Pennacchi. The exhibition of works of these artists at the so-called
Salão de Maio [May Salon] in 1937 was noticed and reviewed by critics Mário
de Andrade and Sérgio Milliet.6 Milliet used a typical terminology of Italian art
critique of the 1930s while defining Santa Helena Group (MAGALHÃES, 2010).
In the first review written by Mário de Andrade, he named them «Família Artística
Paulista», from a suggestion given by Paulo Rossi Osir, who saw them as the
5. On her visit to Brazil, see for instance Conhecida escriptora italiana chegou ao
Rio, a bordo do ‘Conte Verde’. In: Correio da Manhã, August 21, 1930 – Fond Margherita
Sarfatti, Museo di Arte Moderna e Contemporanea di Trento e Rovereto, Italy.
6. Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) is the most prominent modernist
Brazilian critic, one of the leaders of the Semana de Arte Moderna [Modern Art Week]
in 1922, in São Paulo, and whose critique has served as the foundation of the history of
modern art in Brazil. Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) was, with de Andrade,
also a prominent modernist critic, and key in the creation of the former MAM and other
initiatives to fostering modern art.
Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ...
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Brazilian version of the «Famiglia Artistica Milanesa» – expression borrowed
from the exhibitions organized by fascist trade unions in Italy.7
Thus, the set of works bought in Italy for the former MAM bears a strait
relation to São Paulo artistic milieu of the 1930s, and appears as a product of the
exchanges that had been established in between the wars among modern Brazilian
and Italian artists and critics. More precisely, it seems to have been conceived,
even in immediate post-war context, taking as a reference Italian modern art
private collections, which promotion was assured by a cultural policy undertaken
by the minister of National Education in Italy, Giuseppe Bottai, from 1939 on
(BOTTAI, 1939). This policy might be construed as a second phase of promotion
of Italian modern art by the fascist regime – the first being marked by the Italian
exhibitions abroad.
In addition to the names, the works chosen for the Matarazzo Collections
seem to reverberate this Italian modern art, for they seem to have been deliberately
bought taking as guideline works and artists shown in official and international
exhibitions organized and supported by the fascist regime. It is also noticeable
the similarities of such works and others of the same artists that one could see,
in those days, in prestigious Italian private collections, as in the case of the art
dealer Vittorio Barbaroux, from Milan, the art dealer Carlo Cardazzo, from
Venice, and men from the Italian industrial and business elite, whose activities
as patrons of the arts actually helped out public collections in their country.
At least seven paintings of the Matarazzo Collection come from the Carlo
Cardazzo Collection. Cardazzo began to buy more systematically from 1931
onwards, when he became friends with painter Giuseppe Cesetti (FANTONI, 1996;
BARBERO, 2008). He then gathered a remarkable collection with the help of
Cesetti, who frequently acted as mediator. He was later to be awarded two prizes
through the program created by Minister Giuseppe Bottai in 1941.8
Cardazzo’s collection is one of the various private collections to be shown
at the Galleria d’Arte di Roma, between 1940 and 1942, such as the collection
7. For an analysis of the relations between the Santa Helena Group and the
Novecento Italiano, see Tadeu Chiarelli,1995.
8. In the exhibition of private collections at Cortina d’Ampezzo and in the Galleria
d’Arte di Roma. See Danka Giacon, 2005. The exhibition of his collection at the Galleria
d’Arte di Roma was praised by Italian critique, and resulted in the publication of many
articles and reviews. See, for instance, Attilio Crespi, 1941.
54
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Ana Gonçalves Magalhães
of lawyer Rino Valdameri.9 The Galleria d’Arte di Roma had been created by
the Sindacato Fascista degli Artisti [the national artists’ fascist union] in 1930
and its first artistic director had been Pietro Maria Bardi.10 Its aim was to promote
Italian modern art through a program of exhibitions.
A very important element to be discussed in the Matarazzo collections, as
well as the context that they reflect, is what exactly is understood by Novecento
Italiano. If Sarfatti had conceived a project of an artistic movement that would
have characterized the New Italy and become the official art of the fascist regime,
what happened was something else. From 1930s on, with the last exhibition
organized by her in Buenos Aires, and after an intense campaign in various
European cities, her project started to be attacked by the highest fascist elite.
Sarfatti quickly lost terrain, first by being dismissed as an art critic from
Mussolini’s newspaper, and slowly her participation in exhibition organization
committees and all activities of the regime was denied. She ended up being totally
silenced in Italy, and this period culminated with her exile between Montevideo
and Buenos Aires, and her engagement in the Matarazzo acquisitions.
At the same time, and in the context of the creation of the official exhibition
of the fascist regime, the Quadriennale di Roma, as well as in the shows promoted
from 1929 on by Italy abroad, the term Novecento Italiano seems to be used to
designate the new Italian art, but in a much broader sense, which would include,
for instance, the participation of the aerofuturists (of whom Filippo Martinetti
continued to be the spokesman). In other words, what Margherita Sarfatti had
conceived as Novecento Italiano was a structured-based painting, of very
balanced composition, and that would, in any case, reflect this new painting long9. Also praised by the newspapers when opened in 1942. MAC USP “La
Maddalena” (1929) by Piero Marussig, exhibited in this context, was to be chosen to
illustrate an album of a panorama of Italian modern art, organized by the famous Galleria
Il Milione. See Vittorio Barbaroux & Giampietro Giani, 1940, ill. 86.
10. Pietro Maria Bardi (1900-1999) was a journalist, gallerist and art critic. In 1946,
he arrived in Brazil bringing two exhibitions of Italian art (Old Masters and modern art)
in what seems to have been a post-war program of cultural affairs between Italy and Brazil,
in the framework of an Italian-Latin American Committee. He was then invited to stay
and help Brazilian media businessman Assis Chateaubriand to create MASP. Bardi had
already travelled to South America in 1933, to foster the exhibition of MIAR architecture,
in Buenos Aires.
Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ...
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lasting relation with Paris as a major center of modernist ideas, even with avantgarde. For her, actually, the most important thing was the quality of the works,
which could be retraced by the very relation of these artists with artistic tradition.
The Matarazzo collections have some affinities with collections of Italian
art donated to France in the 1930s (FRAIXE, 2010). Such donations were
inaugurated by the exhibition “22 Artistes Italiens”, at the Gallery Georges
Bernheim, in the summer of 1932, which resulted in the official donation by
Milanese businessman Carlo Frua de Angeli of twelve paintings to the collections
of the Musée des Écoles Étrangères Contemporaines (Jeu de Paume), in
collaboration with gallerist and collector Vittorio Barbaroux (GEORGE, 1932).
The Italian gallery in the museum, which was to be opened by the end of the year,
had a Novecento group of works (Funi, Borra, Marussig, Sironi), and a group of
the so-called Italiani di Parigi (such as Campigli, De Chirico, De Pisis and Tozzi).
This donation seems to have opened a decade of activities of cultural
exchanges between France and Italy, which focus was the debate around a
common Latin root. Such debate was supported by the paradiplomatic organ
Comité France-Italie. Created on the eve of World War I, and put to sleep, the
Comité France-Italie reopened its activities in 1929 to favor the cultural approach
between the two countries. They allowed to measure the role of the committee
in the new cultural policy, and also to see how the notion of “latinité” was put to
a test in a larger scale in the visual arts domain (FRAIXE, 2010).
Apart from the similarities of such Italian modern art collections, a common
ground between Brazil, France and Italy seems to be built through the notion of
classic art of Latin roots, which revives the great tradition of Italian Renaissance
art in the origin of modern art. In this framework the same networks acted in the
three countries, and gave rise to fruitful artistic exchanges still to be studied.
In addition to this, the Matarazzo acquisitions seem to follow the
development of artists collected, as well as the updating of the trends in Italian
modern art. For instance, works by artists Aligi Sassu and Renato Guttuso, of
the Corrente group, were bought. The same updating is noticed when considering
the works of the same artist in the collection, such as Felice Casorati and Mario
Sironi. From Sironi, there is a Novecento painting, “I Pescatori” (1924), and his
experimentation on mural painting and an approach to a more expressionistic
language in “Invocazione” (1946). The original concept of Novecento Italiano,
for Margherita Sarfatti, is jeopardized when there is a strong presence also of
the artists of the so-called Scuola Romana, such as Mario Maffai and Scipione.
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Ana Gonçalves Magalhães
It is worth mentioning here the one painting that reflects the very core of Sarfatti’s
concept – at the same time very different of what the artist would do in the 1930s,
although very much appreciated by Milanese collectors: “L’Indovina” (1924)
by Achille Funi, which is very close to one of his paintings that belonged to the
collection of Sarfatti herlself, “Donna velata” (1922). (MAGALHÃES, 2011)
The influence of Sarfatti and her notion of Novecento italiano in the
Brazilian artistic milieu must be reconsidered in the light of such new evidence.
The making of the first nucleus of the former MAM collection seems to be more
connected to the context of private collectionism in Italy, during the 1930s and
early 1940s, and how they depicted a policy of promotion of Italian modern art.
Moreover, such collection was gathered in a context in which diplomatic and
political agendas were in action to legitimate a narrative of modern art so as to
give support to the discourse of modernization (in the case of Brazil) and liberal
democratic societies as a model for the Western World. This bears an apparent
contradiction still to be studied.
Another apparent contradiction is the fact that it was this collection of
paintings, realized in the framework of the reevaluation of Realism and some
elements of classic tradition, that established the criteria of documentation and
records of the former MAM entire collection – which still dealt with categories
created in the context of Beaux Arts, also reproduced in the major showcases of
modern art during the 1950s.
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Ana Gonçalves Magalhães
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ZANINI, Walter. Catálogo Geral das Obras do MAC. São Paulo: Universidade de
São Paulo / Museu de Arte Contemporânea, 1973.
| 59
A formação em crítica e curadoria no Brasil e o
papel formador da arte e da curadoria
CAUÊ ALVES*
Resumo: O presente artigo se propõe a contribuir para a discussão do papel
das instituições como museus, bienais e universidades na formação do profissional em crítica e curadoria, atualmente, no Brasil, bem como para o reconhecimento do aspecto pedagógico da arte. A partir do projeto curatorial da 8a
Bienal do Mercosul, Ensaios de Geopoética, e dos trabalhos de Bruno Faria e
Jorge Menna Barreto que integraram o 32o Panorama da Arte Brasileira do
MAM-SP, Itinerários Itinerâncias, trataremos da curadoria como formadora e
da formação em curadoria. Desse modo, pretendemos introduzir uma reflexão
sobre as possibilidades em aberto da formação acadêmica e não acadêmica na
área de arte, crítica e curadoria.
Palavras-chave: Curadoria. Arte Contemporânea. Formação. Projeto
Pedagógico.
Training in art criticism and curatorial design in Brazil and the
educational role of art and curatorial design
Abstract: This article aims to contribute to the discussion of the role of institutions
such as museums, biennial shows and universities in the current professional training
* Mestre e doutor em filosofia pela FFLCH-USP, é professor do Departamento de
Arte da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras, e Artes da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo; professor do bacharelado em artes visuais e do curso de pósgraduação em Museologia, Colecionismo e Curadoria do Centro Universitário Belas
Artes; e professor colaborador do curso de Pós-Graduação da Escola da Cidade,
Civilização América: Um Olhar Através da Arquitetura.
60
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Cauê Alves
of art critics and curators in Brazil, as well as to promote recognition of the
pedagogical role of art. Starting from the curatorial design of Essays on Geopoetics
for the 8th Mercosur Biennial and the work of Bruno Faria and Jorge Menna
Barreto, who showed in Itineraries, Itinerancies, the title of the 32nd Panorama
of Brazilian Art at Museu de Arte Moderna de São Paulo, we shall address both,
curatorial design as training, and training in curatorial design. Thus, we shall
present a reflection on the open possibilities of academic and non-academic training
in the fields of art, criticism and curatorial design.
Keywords: Curatorial Design. Contemporary Art. Training. Pedagogical Project.
I.
No final do século XIX e início do século XX, fora da academia, a crítica
exerceu um papel fundamental na consolidação da esfera pública da arte. Mais
do que polemizar ou emitir juízos superficiais, a crítica de arte valorizou o
confronto de ideias sem desconsiderar a pluralidade de posições. Assim, a crítica
colocou as suas dúvidas, apostas e conseguiu refletir sobre os problemas de sua
época elaborando as questões mais pertinentes para cada o momento.
A crítica de arte no Brasil, desde os modernos, foi exercida predominantemente por literatos e livres pensadores. Escritores como Gonzaga Duque (18631911), Monteiro Lobato (1882-1948), Mario de Andrade (1893-1945), Manuel
Bandeira (1886-1968) e Ferreira Gullar (1930) atuaram como críticos ao longo
do século XX ao lado, entre outros, do físico Mario Schenberg (1914-1990) e
do médico Clarival do Prado Valladares (1918-1983). O militante político Mario
Pedrosa (1900-1981) foi o primeiro grande crítico de arte a se dedicar de modo
mais sistemático à atividade. Em 1946, criou a seção de artes plásticas do jornal
Correio da Manhã e, em 1957, instituiu a coluna de artes plásticas do Jornal do
Brasil. Foi ainda diretor artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo
(MAM-SP) e organizou a 2ª e a 6ª Bienais de São Paulo.
Desde então, a atividade de crítica de arte, assim como a de curadoria, vem
sendo exercida por profissionais com uma formação diversa e híbrida. Filósofos,
jornalistas, historiadores, artistas e bacharéis de um modo geral se dedicam à
crítica e à curadoria em arte. É a variedade de pontos de partida, de formações e
interesses o que permite que o ambiente seja de entrada livre. Embora recentemente tenham sido criadas oficinas, cursos de graduação e pós-graduação em
A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte ...
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crítica e curadoria, para o seu exercício não há uma obrigatoriedade de formação
específica, ao contrário do que se passa em áreas como medicina, direito ou
engenharia. Assim como no caso do artista, qualquer um que se dedicar
seriamente ao campo pode tornar-se crítico de arte ou curador.
As instituições culturais como bienais, museus e centro culturais foram
fundamentais na formação não apenas de diversos públicos para as artes, mas
de profissionais de crítica e curadoria que apreenderam o ofício no contato direto
com exposições de arte. A maioria dos agentes que atuam nessas instituições
tiveram ao menos uma parte de seus estudos realizada de modo autodidata ou
informal. Uma profissional respeitada no meio como Aracy Amaral (1930), no
início da carreira, trabalhou como educadora nas primeiras Bienais de São Paulo.
Esse foi o caso também de muitos outros críticos e curadores das gerações
seguintes. As Bienais do Mercosul, por exemplo, foram fundamentais para a
formação de centenas de profissionais do circuito das artes em Porto Alegre.
II
O papel formador da arte e da instituição foram colocados em primeiro plano
na 8a edição da Bienal do Mercosul, em 2011. O curador geral José Roca (1962)
formou uma equipe de curadores1 e convidou o curador Pablo Helguera (1971)
como responsável pela integração entre o projeto curatorial e pedagógico. As
premissas curatoriais foram implementadas de forma prática e teórica. Como
membro da equipe de curadores, Helguera participou e colaborou ativamente
dos encontros em que a curadoria selecionou trabalhos que se relacionavam com
a discussão de Ensaios de Geopoética, que investigou as diversas formas que os
artistas propõem para definir o território, a partir das perspectivas geográfica,
política e cultural. A 8ª Bienal do Mercosul tratou das tensões entre territórios
locais e transnacionais, entre construções políticas e circunstâncias geográficas.
Segundo Helguera, nesse contexto o projeto pedagógico visa rever o campo da
pedagogia na arte:
1. Integraram a equipe os curadores adjuntos Alexia Tala, Cauê Alves e Paula
Santoscoy, a curadora a assistente Fernanda Albuquerque e a curadora convidada para a
mostra Além Fronteiras Aracy Amaral.
62
|
Cauê Alves
Reconhecemos, assim, que a pedagogia das artes visuais – e em particular da
forma como se aplica em museus e bienais – é uma ação que, tradicionalmente,
limita a sua potencialidade, tanto no conteúdo quanto na prática. Em relação
ao conteúdo, predomina ensinar arte para entender a arte e não para entender o
mundo; em relação à prática, predomina o ensino como disseminação de
informação e não como gerador de consciência crítica. Essa tendência de
aplicação tradicional da educação também se contrapõe com a prática de vários
artistas contemporâneos que, por conta própria, tem adotado elementos da
pedagogia, tais como processo, pesquisa, colaboração e interpretação. (ROCA,
2011, p: 558)
Muitos dos artistas da 8a Bienal do Mercosul produziram trabalhos processuais que exigem a participação do espectador. A obra apenas se completa com
o processo de aprendizado e esse processo é a própria proposta artística.
Ainda em 2011, o 32o Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP, Itinerários
Itinerâncias, sob curadoria de Cauê Alves (1977) e Cristiana Tejo (1977), também trouxe no interior da própria exposição trabalhos que discutiam práticas
pedagógicas. Dois artistas foram convidados para trabalharem e desenvolverem
projetos em conjunto com o setor educativo do MAM-SP. Itinerários Itinerâncias
foi uma plataforma de discussão e decantação de processos artísticos. Trata-se
de uma reflexão sobre o estado atual da arte contemporânea que pressupõe,
especialmente na última década, um tempo cada vez mais acelerado. O projeto
curatorial infiltrou-se na espacialidade do museu, propondo um breve desnudamento da estrutura institucional a partir de diálogos mais abertos com todos
os setores do MAM-SP, entre eles o educativo.
A partir das noções de itinerário como um caminho percorrido rumo a um
objetivo definido e de itinerância como desvio e trajetória em que a ênfase está
no processo e no percurso, pretendeu-se refletir sobre o crescente deslocamento
dos artistas e trabalhos de arte pelo globo e seus reflexos na arte chamada de
brasileira. As questões centrais que orientaram a pesquisa para a mostra foram:
Quando a itinerância decanta resíduos, restos, sobras e percursos? Quando a
itinerância decanta tramas, redes, circuitos e colaborações? Quando a itinerância
decanta trabalhos de arte e fatos estéticos? Em que medida a facilitação do
deslocamento indiretamente proporciona uma homogeneização da produção
contemporânea? Em que sentido o fluxo contínuo dilui algumas especificidades
e identidades locais na arte contemporânea? A especificidade das artes visuais
A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte ...
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se desfaz na medida em que o artista contemporâneo viaja constantemente,
trabalha com toda e qualquer matéria, tema ou ideia, assim como dialoga com o
cinema, o som, a literatura ou projetos educativos?
Em vista dessas questões a curadoria investigou as noções de permanência
e movimento na arte, bem como voltagens de tempo de ações artísticas e posturas
diante da urgência de se estar sempre em deslocamento. Mapear algumas noções
de circulação e deslocamento na prática artística, do corpo dos artistas e do pensamento permitiu uma visada ampla da multiplicidade da arte no Brasil.
A ideia é que os artistas colaborassem para uma reflexão sobre( o papel e a
importância do trabalho pedagógico em museus. Os educadores não foram
compreendidos apenas como mediadores das proposições curatoriais e artísticas,
prestadores de serviço e fornecedores de conteúdo para o público, mas como
agentes fundamentais na reflexão sobre o lugar do artista, do curador, da instituição e do modo pelo qual a arte, ela mesma, possui um papel formador.
O trabalho realizado por Bruno Faria (Recife, PE, 1981) se apropriou do
recurso de áudio-guias comumente encontrado em museus e desenvolveu um
novo sistema. Com a colaboração de outros artistas convidados pela curadoria
para o Panorama, a proposta problematizou a mediação tradicional realizada por
serviços pedagógicos em museus. O visitante que recorreu ao áudio-guia ouviu
como introdução a seguinte frase: “Para dar início à visita guiada dirija-se à área
externa do museu. Deixe-se ser guiado pela ordem do aparelho ou selecione cada
faixa aleatoriamente. Boa visita!” E, assim, em vez de explicações didáticas sobre
os trabalhos expostos, o público que requisitou o aparelho encontrava um
conjunto de proposições artísticas que traziam indicações das mais diversas. Entre
as 23 propostas gravadas estava a de Wagner Malta Tavares (São Paulo, SP,
1964): “Faça algo que lhe permita sentir o ar que lhe cerca: brincar em um
balanço, num gira-gira... correr um pouco, andar de patins ou skate, sente num
banco ou na grama e respire bem fundo, e se quiser ver o ar, compre um catavento.” Havia entre as proposições a indicação de Romano (Rio de Janeiro, RJ,
1969): “Caminhe pelo parque e ouça a natureza como uma orquestra. Diferencie
os sons ouvidos em camadas. Atribua cores a elas”. Já Lourival Cuquinha (Olinda,
PE, 1975) propôs: “Plante no parque a nota mais valiosa de sua carteira, reguea todo dia”.
Além do áudio-guia, foram comissionados trabalhos de Jorge Mena Barreto
(Araçatuba, SP, 1970) que também dialogassem com o educativo do museu. Um
tapete no qual estava escrito a palavra “infixidão” recebia o público do museu.
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Cauê Alves
A proposta materializa( a ideia de mediação e tradução verbal da mostra a partir
de vários tapetes usados pelos educadores em atividades pedagógicas feitos com
híbridos de palavras. Os termos fundidos criam novas possibilidades de relação
com os trabalhos exibidos. Além disso, o artista montou no espaço expositivo
um Café educativo, para o público descansar, consultar material sobre os artistas
e conversar sobre a mostra com mediadores que servem gratuitamente café. No
mesmo ano, a obra de caráter relacional foi escolhida pelo Conselho Consultivo
e adquirida pelo MAM-SP para compor o seu acervo. Um novo projeto foi
elaborado pelo artista e cada vez que o museu expõe o Café Educativo os
educadores traçam, junto com o artista, estratégias para a ativar o trabalho.
É a partir do contato com a arte e no interior dela mesma que o programa
educativo do museu pode não apenas propor exercícios que aproximem os
visitantes dos processos artísticos, mas reinventar sua prática de dentro dos
trabalhos de arte. Deixar os limites entre as propostas pedagógicas e artísticas
mais fluidos é mais do que reconhecer o caráter inventivo do educador, é também
estreitar vínculos e abrir caminhos entre as proposições artísticas e as inquietações
do público, assim como qualificar a participação nos trabalhos de arte e torná-la
mais consciente. Experiências proporcionadas pelos trabalhos de arte sem dúvida
colaboram na formação de um pensamento crítico.
III
Dos anos de 1970 para cá, apesar da evidente crise da crítica, o circuito da
arte se tornou mais profissional, com especializações mais definidas e, com isso
o campo da curadoria se consolidou. A crítica deixou de ser exercida predominantemente por literatos e livres pensadores e sobreviveu na academia, em teses,
revistas especializadas e atividades universitárias. Mas, enquanto as instituições
avançavam no amadurecimento e discussão do papel da curadoria, a universidade
demorou até dedicar um espaço específico para a formação do curador.
O MAM-SP, na gestão de Tadeu Chiarelli, criou, em 1997, um grupo de
estudos de curadoria que foi importante não apenas como um exercício de novos
modos de apresentar mostras de arte, mas também para uma reflexão interna do
museu sobre o perfil de sua coleção e sua ampliação em arte contemporânea.
É inegável que o circuito da arte cresceu exponencialmente desde os anos
de 1980 devido ao florescimento de um mercado de arte contemporânea no Brasil.
Mas, desde o início dos anos 2000, esse crescimento foi surpreendente.
A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte ...
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Intercâmbios internacionais entre instituições, assim como o crescimento das
feiras de arte pelo mundo, aceleraram um processo de trocas e de circulação da
arte brasileira. No mesmo período, a economia se expandiu, assim como a rede
de galerias comerciais e de espaços institucionais e independentes voltados para
a arte. O público interessado cresceu tanto quanto se multiplicaram as exposições,
pesquisas e mecanismos de incentivo e patrocínio em todo o Brasil. Com o
sistema da arte mais sólido a tendência foi a profissionalização das galerias, dos
espaços de exibição e das publicações sobre arte. Nesse cenário, é natural que
cresça a demanda por cursos na área. Há cada vez mais a necessidade de
profissionais especializados em todos os campos, desde os trabalhos mais
técnicos como montagem de exposição e produção, até as áreas mais teóricas,
ligadas à escrita, à teoria, à crítica e à curadoria.
Em São Paulo, por exemplo, há cursos já tradicionais de artes visuais e
humanidades, tanto em universidades privadas como em públicas (Centro
Universitário Belas Artes, Faculdade Santa Marcelina, Fundação Armando
Álvares Penteado, Universidade Estadual Paulista, Universidade de São Paulo),
que formam profissionais que irão trabalhar não somente como artistas, mas
também em áreas correlatas, como educação em museus, conservação,
restauração, produção de mostras, crítica, pesquisa e curadoria. Existe uma série
de disciplinas que propõem discussões sobre práticas curatoriais e exercícios
críticos no campo das artes visuais contemporâneas. Algumas subsidiam a
realização de projetos de curadoria em arte envolvendo pesquisa, seleção dos
artistas, redação de texto crítico e montagem. Em geral, o aluno de artes visuais
necessita de uma compreensão da complexa multiplicidade que configura o
sistema da arte contemporânea e, assim, tem a oportunidade de ampliar seus
horizontes de atuação profissional.
Entretanto, foi na primeira década do século que surgiram cursos pioneiros
de graduação voltados não somente para a história da arte, como também para
suas relações com a crítica e a curadoria, uma vez que não havia no Brasil uma
sólida formação universitária na área. O curso Arte: História, Crítica e Curadoria,
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é voltado para a
pesquisa, com grande carga humanística, que forma o profissional que irá atuar
como crítico de arte, curador de eventos culturais em galerias, museus, centros
culturais e institutos de arte; como consultor, assessor ou produtor de eventos
artísticos e culturais.
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Cauê Alves
A própria PUC-SP possui hoje um curso de pós-graduação lato sensu em
Arte: Crítica e Curadoria, assim como o Centro Universitário Belas Artes, que
possui o curso Museologia, Colecionismo e Curadoria. Também, o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), em 2013, abriu o curso: Curadoria
em Arte. Esses são cursos para quem já possui uma graduação e está com interesse
em se especializar na área, buscando uma fundamentação teórica e prática para
atuar seja como crítico, seja como gestor ou curador independente e institucional.
Há ainda uma porção de bolsas, prêmios, editais e residências voltados para
jovens curadores e críticos, bem como workshops e oficinas livres sobre curadoria. Em 2012, a produtora cultural Expomus lançou o projeto Novos Curadores,
um laboratório de criação e discussão sobre curadoria de arte contemporânea
que teve como objetivo estimular o exercício e a reflexão de uma nova geração
de curadores. Por meio de uma plataforma virtual, Novos Curadores tornou
possível que interessados de diversas partes do Brasil pudessem enviar seus préprojetos para uma equipe de orientadores que selecionou e acompanhou o desenvolvimento das pesquisas. Ao final, um dos premiados realizou a exposição no
Paço das Artes, em São Paulo, e no Santander Cultural, em Recife. A 31a Bienal
de São Paulo realizou ao longo de 2014 o Workshop: Ferramenta para
Organização Cultural, liderado pela equipe de curadores desta edição do evento.
A procura de formação nesse campo é crescente. Quinze jovens foram selecionados de um universo de 300 inscritos interessados em investigar estratégias
curatoriais com profissionais renomados internacionalmente. O MAM-SP, dando
prosseguimento a sua tradição de formação em curadoria desde os anos 90,
realizou em 2014 a mostra 140 Caracteres, fruto de um laboratório de curadoria
ministrado por Felipe Chaimovich para vinte curadores. Trata-se de uma curadoria coletiva, assinada pelos alunos, que passaram por todas as etapas do processo de realização de uma mostra de acervo, com ênfase no projeto expositivo, na
ação educativa, na captação de recursos e estratégias de marketing.
O exercício da crítica e da curadoria, como ocorre em muitas outras profissões, necessita formação e pesquisa constantes. A curadoria é um campo interdisciplinar que envolve noções conceituais, reflexão, tomada de partido, arquitetura,
produção, montagem de exposição, design de interiores e gráfico, contabilidade,
iluminação, conservação, setor educativo, editoração e publicação. Por isso, qualquer exposição, por mais que tenha um responsável à frente, o curador, é sempre
fruto de um trabalho de uma série de profissionais e reflete de certo modo o
amadurecimento do meio da arte em que ela se realiza.
A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte ...
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Assim como a crítica de arte, a curadoria integra um circuito da arte maior
e seu exercício exige constante posicionamento em relação a trabalhos de arte,
defesa de ideias e apostas que envolvem riscos quando feitas ao calor da hora.
Quanto mais maduro for o curador mais ele terá condições de resistir a interesses
vários e, ao marcar posições, evitar a máscara da neutralidade. Uma de suas
funções, mesmo que o espaço público da arte esteja cada vez mais diluído no
mercado, é rever continuamente a hierarquia forjada pelo “consenso” do circuito
e contribuir para assentamento de valores que nem sempre coincidem com os
do mercado, especialmente naquilo que ele tem de passageiro e de modismo. E
isso exige preparo.
Se a crítica de arte pressupõe uma formação sólida e um espaço público
que respeita as diferenças para o debate de ideias e posturas, ou seja, a diversidade
e o conflito, a curadoria envolve negociações com as mais diversas instâncias
institucionais (museus, galerias, centro culturais prefeituras, secretarias e ministérios da cultura), com artistas, família de artistas ou herdeiros, além de patrocinadores, produtores, colecionadores com os mais diversos interesses. Entretanto,
não basta ao crítico, tampouco ao curador, emitir uma opinião, é preciso justificála e assim esclarecer seus critérios. Para isso, é necessário mais do que saber
montar exposições, ter uma formação humanística, sensível às questões sociais,
políticas, culturais e éticas. Na verdade, há pouco ou nenhum sentido na curadoria
e na crítica que não possui embasamento histórico e teórico. Apesar disso, a
experiência direta com o trabalho de arte jamais pode ser desprezada ou eclipsada
pela teoria.
A universidade é historicamente um lugar privilegiado em relação a sua
autonomia e liberdade para desenvolver conhecimento. Por isso, o exercício
crítico e a reflexão sobre arte, história, teoria e curadoria são campos férteis para
ela. Entretanto, a academia poucas vezes possui a agilidade em acompanhar as
manifestações contemporâneas ao calor da hora. Mas ela não pode deixar de
valorizar a formação em curadoria e tampouco o aspecto formador da arte, da
atividade crítica e curatorial. O desafio da universidade é conseguir se relacionar
diretamente com o circuito da arte e realizar pesquisas rigorosas que a mantenha
atualizada, fazendo com que o que ocorre para além de seus muros seja objeto
de investigação que possa alimentar seus cursos.
68
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Cauê Alves
Referências bibliográficas
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AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos,
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FERREIRA, G. Crítica de Arte no Brasil: temáticas Contemporâneas. Rio de
Janeiro: Funarte, 2006.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários para a prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 2013.
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Catálogo. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2011.
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Arte e mercado: alguns conceitos e valores
EDSON LEITE*
Resumo: Este artigo apresenta alguns conceitos relativos à arte e aos valores de
mercado, institucional e cultural da arte; e também algumas das obras mais caras
negociadas em acordos particulares e em casas de leilões como a Christie’s e a
Sotheby’s, demonstrando que as obras transcendem sua propriedade de modo
a criarem discussão estética, simbólica e ao mesmo tempo mercadológica,
relacionando produção e consumo.
Palavras-chave: Mercado de Arte. Valor Artístico. Valor de Mercado.
Art and Marketing: some concepts and values
Abstract: This article presents some concepts related to art and to market values,
institutional and cultural art and features some of the most expensive works traded
in private agreements and auction houses such as Christie’s and Sotheby’s,
demonstrating that the works transcend their property so to create aesthetic, symbolic
and while discussing marketing, linking production and consumption.
Keywords: Art Market. Artistic Value. Market Value.
A palavra mercado tem sua origem no latim “mercatus” que deriva do verbo
“mercari”, que significa comprar. O mercado pode ser também entendido como
um local no qual os agentes econômicos efetuam a troca de bens por uma unidade
monetária ou por outros bens, a lei da oferta e da procura tende a equilibrá-lo.
* Professor Titular da Escola de Artes, Ciência e Humanidades e do Programa de
Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São
Paulo.
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Edson Leite
Os mercados agrupam os vendedores interessados e facilitam o encontro com
os potenciais compradores. Eles podem ser genéricos ou especializados, onde
apenas um tipo de mercadoria é trocado.
Segundo Norbert Elias (1995), os artistas sempre estiveram sujeitos a estruturas sociais que ele denomina configurações e que possibilitaram a realização
do trabalho artístico em determinadas condições históricas e sistemas de interações. A autonomia da arte implicou na separação gradual da aristocracia, no surgimento de uma burguesia enriquecida e no desenvolvimento do mercado. O artista burguês, na sociedade da corte, trabalhava num contexto que não reconhecia
a superioridade de seu valor artístico e a necessidade de sua independência material e estética. Desde o século XIX, o Estado assume a política que organiza e
financia a arte e o artista. A ampliação do material da arte ultrapassa os limites
do mundo das coisas e da autoexpressão do artista. Ocorre a expansão do universo
expressivo e a possibilidade de cogitar-se uma arte não representativa.
Falar em arte e mercado apresenta um antagonismo devido a valores de
natureza completamente diversa: a arte é pura significação e o mercado a
considera como simples mercadoria. Contudo,
Um problema usual ao se iniciar o exame de uma obra de arte é fazer uma
distinção entre seu valor estético e outras dimensões de valor que podem ser
associadas ao objeto. Há o valor decorrente do trabalho despendido em sua
manufatura, há o valor associado à sua utilidade, há o valor de mercado ou de
troca, que se traduz em um preço (LINS, 2012, p. 103).
Além do valor estético, portanto, há um valor de mercado para a arte. Este
mercado realiza a
[...] articulação cambiante de múltiplas e heterogêneas redes de compradores
e vendedores profissionais, que buscam objetos únicos, raros, e insubstituíveis,
um universo caracterizado pela combinação da assimetria de conhecimento
sobre objetos e interlocutores, de uma hierarquia organizando as possibilidades
de captação e de venda. [...] É um sistema de alianças, relativamente estáveis,
rivais, baseadas na confiança e no segredo, portanto personalizado ao extremo,
inclusive em relação à avaliação das peças, com cotações distintas para cada
obra do mesmo artista (VEIGA, 2002, p. 197).
Arte e mercado: alguns conceitos e valores
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A partir da sociologia da arte, não é possível falar em autonomia da arte,
que existe em si mesma, por si mesma e para si mesma. Ela influencia e é
influenciada tanto pelos artistas e especialistas quanto pelo público, pelos
mediadores e pelas instituições – afinal, pela sociedade: “no campo artístico são
operadas e revisadas as avaliações estéticas. No mercado se realizam as
transações e se elaboram os preços” (MOULIN, 2007, p. 9). O mercado de obras
de artes constitui uma esfera relativamente específica do mercado dos bens de
(alto) luxo, cuja posse e modo de consumo produzem efeitos de distinção social
(DURAND, 1989).
A arte pode ser pensada como investimento, afinal:
A obra de arte é um bem raro, durável, que oferece a seu detentor serviços
estéticos (prazer estético), sociais (distinção, prestígio) e financeiros. Ela não
fornece renda, mas, devido ao fato de ser um bem móvel, suscetível de ser
revendido com uma eventual mais-valia, constitui um objeto potencial de
investimento alternativo a outros ativos (MOULIN, 2007, p. 37).
Segundo Greffe, “como toda atividade humana, a atividade artística precisa
de recursos, e a maneira como estes são obtidos influencia tanto o modo de
expressão dos artistas quanto suas carreiras” (GREFFE, 2013, p.19). Ainda segundo
o autor:
A invenção da arte levou os artistas a procurar um meio de vida fora dos
circuitos econômicos já estabelecidos e a assumir os riscos de um mercado
fundado na incerteza. Enquanto sua competência pôde ser útil a certos circuitos
econômicos conhecidos, eles tiveram, a partir de então, de se fazer valer com
base em motivações estéticas, e convencer aqueles que poderiam sentir a
necessidade de os compensarem por isso, de maneira direta ou indireta (GREFFE,
2013, p. 337).
O mercado de arte não possui estilos prediletos, adere ao que for mais
rentável ou que garanta a distinção de classe. Esse mercado age sobre outras
instituições, como museus, universidades, e sobre a mídia, além de influenciar
cada vez mais a produção dos artistas (MOULIN, 2007).
Como já observamos em outro estudo:
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Edson Leite
Qualquer mercado vive de oscilações, mas há uma curva constante no mercado
de arte que leva à objetivação dos negócios. O mercado de arte é muitas vezes
irracional e frágil, onde o valor da informação, especialmente da informação
midiática, provoca muitas reações. Este mercado está capitalizado por grandes
galerias que estabelecem os primeiros postos nos rankings mundiais. Mas será
que somente obras catalogadas e incorporadas a este sistema das grandes
galerias têm valor? E qual é esse valor? Na prática, os museus costumam
comprar obras de um artista quando ele está em alta. Já os colecionadores
compram antes, para ganhar mais dinheiro (LEITE; CAPONERO, 2011, p. 71).
A incerteza do valor artístico das obras de arte deve ser certificado por
especialistas que participam do mercado de arte e das instituições de arte. O
paradoxo do artista é que, hoje, após ter reivindicado a autonomia de sua arte,
ele seja levado a valorizá-la junto a forças a priori anônimas, aleatórias e muitas
vezes difíceis de compreender. “O surgimento de um mercado de arte iria
consagrar definitivamente a noção de artista e separá-la da de artesão. A
consequências paradoxal disso será ‘libertar’ os artistas, ao mesmo tempo que
os ‘fragiliza’.” (GREFFE, 2013, p. 68).
O mercado de arte se vale de várias instituições. Além dos artistas, ele inclui
os galeristas, marchands, críticos, curadores, diretores de museus, colecionadores
e consultores, museus, escolas de arte, galerias, leilões, centros culturais, feiras
de arte, bienais e considera, também, os prêmios dos artistas.
A reprodução técnica também afetou a autenticidade das obras de arte,
tornando uma tarefa quase impossível a determinação da cópia e do original nas
artes reproduzíveis. As obras não mais carregam em si as marcas da história e
das mudanças ocorridas, perdendo o “aqui e agora” de sua produção e sua
autenticidade como objetos artísticos (BENJAMIN, 1980).
Na atualidade, a falta de normas precisas e de regras estéticas leva a uma
grande incerteza sobre a qualidade plástica das obras de arte. A arte é definida
como algo que um artista produziu e o artista é definido como aquele que produz
obras de arte (MOULIN, 1997 e HEINICH, 1997). Qualquer coisa pode, em princípio,
entrar na esfera da arte, embora mais do que nunca, a arte se constitua como uma
esfera à parte, com pessoas que a produzem, instituições que a fazem circular e
seus críticos (RANCIÈRE, 2008).
O processo mercantil da arte inclui o artista, mas incorpora um sistema de
corretagem formado por agentes e marchands, um sistema de sinalização e
Arte e mercado: alguns conceitos e valores
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atribuição de valor formado por críticos e curadores e um sistema de financiamento formado por proprietários, investidores e mecenas. Neste processo, a
crítica deve desenvolver uma compreensão clara do significado da arte e de sua
relevância para a vida social, utilizando abordagens e ferramentas de análise que
legitimem suas avaliações.
As fontes para o consumo da arte perpassam os leilões, galerias, mostras,
museus, colecionadores (proprietários), feiras, compras diretas com os artistas,
reproduções e cópias, livros, revistas, catálogos e a Internet.
O mercado primário de arte é constituído pelas galerias ou agentes que
representam os artistas e funciona como mecanismo de identificação de artistas
a serem “lançados”. O mercado secundário é aquele das obras recolocadas em
circulação (leilões) e funciona como sistema especulativo que objetiva aumentar
a renda de quem é dono das obras (GREFFE, 2013).
As galerias atendem, em sua maioria, à demanda de quem já acompanha o
circuito das artes. Para quem não é do meio e não sabe por onde começar existe
a ideia de que é preciso muito dinheiro. A avaliação de objetos artísticos pode
ser afetada por jogadas especulativas de marchands, mudanças de gosto do
público, crises econômicas etc. O valor artístico de uma obra de arte e o seu valor
de mercado não são, necessariamente, coincidentes. Greffe esclarece que:
Com efeito, o modo como os preços são fixados não corresponde nem um pouco
à forma como o mercado pretende fixá-los para garantir um ajuste tão racional
quanto possível da oferta e da procura. Quando os galeristas fixam o preço,
eles não evocam fatores objetivos, mas, ao contrário, ‘histórias’ específicas que
levam a justificar um preço dado por toda uma série de elementos contingentes
à obra, ao artista e mesmo ao comprador. (...) Assim, cada vez é mais difícil
explicar as diferenças de preço entre as obras, o que faz com que o mercado de
leilões empregue dados bastante obscuros. (GREFFE, 2013, p. 159-160).
Galerias virtuais ganham força nos dias atuais: é fácil comprar pela Internet.
Contudo, é bem mais difícil analisar uma obra original na tela do computador,
falta precisão. Este tipo de serviço é indicado apenas para obras mais baratas ou
múltiplas.
Uma coleção constituída em leilões costuma custar muito mais caro. Os
leilões não costumam trabalhar com artistas pouco conhecidos. Para adquirir
nomes novos, há a necessidade de frequentar mostras e galerias. O sucesso de um
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Edson Leite
leilão costuma estar vinculado à confiabilidade ou tradição da casa de leilões, à
qualidade das obras, ao patamar do preço inicial das obras e a uma boa divulgação
realizada para o público alvo. Entretanto, cumpre ressaltar que não há uma lógica
confiável nos mercados de arte: tudo se resolve dentro de uma dinâmica que
mistura desejo e oportunidade. Quando há folga financeira, as pessoas são menos
seletivas. Em épocas de recessão, a tendência é que os colecionadores fiquem mais
seletivos e prefiram comprar obras de artistas mais reconhecidos.
Aos museus, corresponde o dever de possibilitar ao público o acesso
fundamental à arte de diferentes épocas, através da preservação dos objetos,
formação de acervos de estudo, pesquisa e exposição. Devem incluir a arte de
nosso tempo, oferecendo a oportunidade do diálogo com os artistas.
Algumas obras possuem valor inestimável, como é o caso, por exemplo, da
Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Exposta como principal atração no Museu do
Louvre, em Paris, é praticamente inconcebível que ela venha a ser vendida. Mas
se o fosse, qual seria o seu preço? Seria possível dimensionar o seu valor de mercado? A história do autor, da obra e sua popularidade mundial fariam, provavelmente, que a sociedade se rebelasse contra uma negociação financeira envolvendo
a Mona Lisa. Entretanto, a maior parte das obras de arte pode fazer parte do mercado. No próximo, item destacaremos algumas das obras mais caras já negociadas.
Obras de arte que atingiram os maiores valores no mercado
Apresentamos, a seguir, algumas das obras que foram negociadas pelos
maiores preços nos últimos anos.1 Cumpre ressaltar que algumas transações são
realizadas de forma privada, sem que se tenha conhecimento dos valores atingidos. Contudo, especialmente as obras adquiridas em leilão, têm seus valores
divulgados.
Uma obra de arte, constituída de materiais muito baratos – como o tecido e a
tinta – mas utilizados com a criatividade e a técnica humana, pode chegar a
custar milhões de dólares, embora muitas vezes sem qualquer possibilidade de
retorno financeiro ao artista criador, como acontece quando se comercializa
obras de autores falecidos, geralmente os mais valorizados (LEITE; CAPONERO,
2011, p. 71).
1. Informações coletadas até 7 de setembro de 2014.
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Arte e mercado: alguns conceitos e valores
A obra de arte mais cara vendida no Brasil, até o momento, foi o painel
composto por três telas de 89 cm de largura por 130 cm de comprimento, em
óleo sobre tela, intitulada Sol sobre paisagem, de autoria de Antonio Bandeira
(* Fortaleza, 1922 + Paris, 1967). Bandeira foi pioneiro do abstracionismo
informal na pintura brasileira e, ainda jovem, fez parte do Movimento Modernista
de Fortaleza. Viveu algum tempo no Rio de Janeiro e decidiu morar em Paris,
onde sua carreira alavancou. Realizou diversas exposições na Europa e no Brasil
durante os anos 40 e 50 e também produziu aquarelas. Sol sobre paisagem foi
pintada em 1966, em Paris, um ano antes de sua morte.
Antônio Bandeira: Sol sobre paisagem
Sol sobre paisagem foi leiloada pela Bolsa de Arte de São Paulo, em
dezembro de 2010. Foi arrematada por 3,5 milhões de reais por um colecionador
que não quis se identificar. O comprador da obra ainda desembolsou 5% do valor
do lance com despesas do leiloeiro,
resultando, no total, em uma soma de
três milhões seiscentos e setenta e
cinco mil reais.
Antes da obra de Antonio Bandeira, o objeto artístico mais caro
vendido no Brasil foi um quadro de
Frans Post (1612-1680), que foi vendido por 2 milhões de reais.
Adriana Varejão: Parede com Incisões a
La Fontana II
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Entre as obras mais caras de artistas nacionais vivos, vendidas no exterior,
está a obra Parede com Incisões a La Fontana II, da artista carioca, Adriana
Varejão, arrematada em leilão da Casa Christie’s de Londres, no ano de 2011,
pelo valor de 1,1 milhão de libras.
A recordista de preços entre os artista brasileiros vivos é outra artista carioca,
Beatriz Milhazes, com três obras em destaque: O Mágico, vendida em leilão pela
Sotheby’s (New York), em 2008, por 1,05 milhão de dólares; O Elefante Azul,
vendido em leilão pela Christie’s (Londres), em 2012, por 1,46 milhões de dólares
e Meu Limão, vendido em 2012 pela Sotheby’s (New York), por 2,1 milhões de
dólares.
Beatriz Milhazes: O Mágico
Beatriz Milhazes: O Elefante Azul
Beatriz Milhazes: Meu Limão
Das negociações mundiais reveladas ao público, as duas obras mais caras
foram o N5 – 1948, de Jackson Pollock, vendida por David Geffen para David
Martinez, em uma transação particular, pelo valor de 140 milhões de dólares, e
a obra Três estudos de Lucian Freud, de Francis Bacon, que alcançou o maior
valor já registrado para uma obra de arte em um leilão. Antes mesmo do leilão
começar, o tríptico já era recordista com o lance mínimo de 85 milhões de dólares.
Esta série de pinturas a óleo, em que Bacon retratou o amigo Lucian Freud,
Arte e mercado: alguns conceitos e valores
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também artista plástico, em 1969, alcançou o valor final de 142,4 milhões de
dólares, no ano de 2013, em leilão da Christie’s (New York).
Jackson Pollock: N5 – 1948
Francis Bacon: Três estudos de Lucian Freud
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Edson Leite
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walther. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In
Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
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classe dirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo: Perspectiva, 1989.
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HEINICH, Nathalie. La sociologie de Norbert Elias. Paris: La Découverte, 1997.
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VEIGA, Roberto de Magalhães. O mercado de arte na visão de um Marchand.
ALCEU – v. 2, n. 4, p. 191-203, jan/jun, 2002.
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O museu de arte e o contexto das imagens atuais1
CARMEN S. G. ARANHA *
ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA **
Resumo: O museu de arte tem como desafio mediar os fios e as tramas que
envolvem a ordem do conhecimento e a intensa profusão de imagens –
característica do mundo contemporâneo. Como os museus de arte podem lidar
com imagens, inscritas em obras de arte, objetivando auxiliar a construção do
conhecimento artístico atual? A partir de uma reflexão que procura fundamentos
1. Artigo originalmente apresentado para o livro “Educação da Arte na
Contemporaneidade”. Universidade Federal do Espírito Santo. No prelo.
** Professora Associada do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de
São Paulo. Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade de São Paulo
e Livre Docente em Teoria e Crítica de Arte pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo. Atuou nos Ensinos Fundamental e Médio como professora
de Artes Visuais e História da Arte durante dezoito anos. Foi professora da Fundação
Armando Álvares Penteado, entre 1982 e 1993, na cadeira de Metodologia do Ensino
para Professores de Arte. Atualmente, coordena o Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. É autora do
livro: Exercícios do Olhar: Conhecimento e Visualidade (UNESP, FUNARTE, 2008).
** Graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (1995), Mestre em Ciências da Comunicação (2003) e
Doutora em Artes (2008) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo. Atualmente é Especialista em Cooperação e Extensão Universitária da
Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em História
da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: museus, arte, história da arte, arte
brasileira, história e crítica de arte. É autora do livro: Schenberg: Crítica e Criação
(EDUSP, 2011).
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Carmen S. G. Aranha e Alecsandra M. de Oliveira
teóricos, o presente artigo discute a profusão de imagens na atualidade e como
a contextualização do conhecimento pode se dar com o museu de arte, visto aqui
como ferramenta para o desenvolvimento de pensamentos e percepções. Nessa
tarefa, recorre-se aos estudos de Edgard Morin, Marilena Chauí e,
particularmente, Merleau-Ponty.
Palavras-chave: Museus. Arte. Contexto. Conhecimento.
The art museum and the contemporary images in context
Abstract: The art museum’s challenge is to mediate the wires and the plots involving
the order of knowledge and the intense profusion of images - characteristic of the
contemporary world. How art museums can handle images inscribed in works of
art, aiming to build current artistic knowledge? From a theoretical point of view,
this article discusses the profusion of nowaday images and the contextualization of
contemporary knowledge through the art museums, seen here as a tool for the
development of thoughts and perceptions. In this task, it is through the study of
Edgard Morin, Marilena Chauí and particularly Merleau-Ponty.
Key words: Museums. Art. Context. Knowledge.
Imagens, milhões de imagens, eis o que eu
devoro... Já procurou abandonar esse vício
com morfina?
William Burroughs
O museu de arte faz-nos refletir sobre os
sentidos das imagens e reconstrói os fios e as
tramas da ordem do conhecimento artístico.
Merleau-Ponty
É da natureza da arte visual desvelar o contexto no qual foi produzida. Isto
se deve ao fato de que a arte é uma linguagem, ou seja, é a construção de uma
ordem do conhecimento com a qual é possível se ter a experiência da cultura.
Talvez, essa construção seja uma movimentação do espírito humano na busca
de um “lugar visual”, no qual imagens, milhões de imagens, apreendem
articuladamente as visualidades do mundo (CARMAN, T. et al & HANSEN, M.B.N.,
2006, p. 151). Seria o consumo das imagens, o “vício da morfina” dos dias atuais?
A arte não deve entorpecer como os “vícios”, nem as imagens que a nutrem devem
O museu de arte e o contexto das imagens atuais
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se enfraquecer. Ao contrário, a arte e as imagens potencializam o conhecimento.
O contato com o objeto artístico provoca, instiga, estimula os sentidos; subverte
a ordem pré-estabelecida, sugerindo novos modos de organização da vida e do
mundo.
Estabelecer um conceito com parâmetros precisos de interpretação para a
obra de arte subverte a ideia que as imagens ali inscritas podem estabelecer o
“motivo central” de um pensamento:
[...] como numa tapeçaria, numa renda, num quadro ou numa fuga, nos quais
o motivo puxa, separa, une, enlaça e cruza os fios, traços e sons, configura um
desenho ou tema a cuja volta se distribuem os outros fios, traços ou sons, e
orienta o trabalho do artesão e do artista. (CHAUI, 2002, p. 28)
Assim, o “motivo central” de um pensamento nos permite indicar que imagens, assim configuradas, podem se transformar no ponto de mudança de forças
invisíveis para coisas visíveis (ADRIANI, p. 10-12). A obra de arte, pendente desse
processo, situa a presença genuína da linguagem artística e assim sendo nos acessa
aos sentidos da cultura, também, refletidos nos códigos artísticos inscritos nas
matérias plástica ou virtual. Isto quer dizer, então, que procuramos obras e imagens que criem contextos culturais e, sob essa perspectiva, o “contexto torna-se
o tecido de correlações”, no qual as coisas surgem à medida que nossa vivência
se apropria desses objetos estéticos para refundar nosso conhecimento do mundo.
Metaforicamente, os museus de arte estão imersos nesse tecido de correlações
e, desse modo, adquirem a função de reflexão e reexame deste panorama da
cultura atual.
*
Ao colocarmos lado a lado, por exemplo, as obras de Velásquez e Picasso,
ambas nomeadas como Las meninas, vemos que as mesmas imagens do tema
central situam contextos culturais específicos das épocas em que foram criadas.
Picasso, em 1956, ao se apropriar da obra de Velásquez, de 1656, a recria num
cubismo tardio, mas com todos os elementos formais pertencentes à arte moderna
cubista.
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Carmen S. G. Aranha e Alecsandra M. de Oliveira
Velásquez, Las Meninas, 1656-1657.
Picasso, Las Meninas, 1956.
Então, ao criar trocas “dentro de um organismo maior”, podemos dizer que
o fenômeno da criatividade artística é diagramado, de algum modo, no conhecimento e, uma vez assim compreendido, passeia com suas sínteses culturais,
materializando uma etérea linha decisiva entre fato e essência.
A contextualização do conhecimento, frente a um recorte da cultura,
apresentada por meio de obras de arte, não deveria se dirigir à explicação de
correlações, ponto por ponto, entre obras, imagens e discursos históricos,
O museu de arte e o contexto das imagens atuais
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sociológicos ou antropológicos. Ao contrário, “contextualizar” é buscar um
“campo para desenvolver todos os nossos pensamentos e nossas percepções”
(M ERLEAU-P ONTY, 1967, p. 166-9) e não um mundo de objetos, do qual
simplesmente nos apropriamos e nos servimos deles para explicações diretas que,
inclusive, não nos oferecem nenhuma interrogação mais profunda. Sob esse signo,
o museu inspira ser um lugar para questionamentos e produção crítica, passando
a ser um espaço para a experiência do fenômeno da vida.
O fenômeno da vida aparece quando a extensão de um corpo, pela disposição
de seus movimentos, e pela alusão que cada um faz a todos os outros, volta-se
sobre si mesmo e começa a expressar alguma coisa, a manifestar um interior
sendo exteriorizado. (Idem, 1967, p. 162)
Ao falarmos sobre a construção do conhecimento artístico, sabemos que
um conhecimento formal, arduamente aprendido na militância intelectual, muitas
vezes, nos aprisiona, penetra em essências e passa a comandar nossas percepções:
só se vê o que a razão permite ver. É neste instante que a arte pode começar a
interferir como um ponto de fuga na cadeia de conhecimento, não por ser uma
“desrazão”, mas pelo assombro que provoca. A função da arte na cultura sempre
foi dar vazão e voz àquele “nada” que, entretanto, é “tudo” e não encontra, por
isso, expressão na racionalidade vigente, nessa sintaxe da ordem prática que, às
vezes, inutilmente se propõe a explicá-la.
Segundo Morin (2000, p. 22), “os sistemas de ideias que embasam nosso
saber, com sua linguagem de significados lógicos, são resistências à informação”.
São proteções que nos convêm: “[...] afastamos os saberes que nos refutam com
argumentos contrários” (MORIN, 2000, p. 23). O pensador nomeia esse modo de
se aproximar do mundo como
[...] a “racionalidade” que se transforma em “racionalização”, que verifica o
caráter lógico da organização das teorias, a compatibilidade entre ideias que a
compõem, suas asserções e dados empíricos aos quais se aplica. “Como é perfeita, opera em um ir e vir entre o real e a lógica, fundamentada na dedução ou na
indução, com bases duvidosas, às vezes, com partes suprimidas”. (Idem).
O objeto artístico contemporâneo, por exemplo, foge dessa dinâmica;
questiona a organização das teorias; cria incompatibilidades indissolúveis entre
ideias; não permite a operação de ida e volta entre o real e o lógico. Destituída
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Carmen S. G. Aranha e Alecsandra M. de Oliveira
de aura da eternidade, do sentido de unicidade e durabilidade, a arte atual chama
à participação do espectador, tornando insuficiente a contemplação à distância.
Cabe ao museu, nesse contexto, estimular o conhecimento sobre a produção
artística, assumindo sua condição de lócus de criação e de reflexão sobre a arte,
discutindo suas formulações, sua manutenção e transformações (MENESES, 2006,
p. 32).
Mas como nos aproximar desses fenômenos quando falamos de cultura
artístico-visual? Como os museus de arte podem lidar com obras e imagens
objetivando auxiliar a construção do conhecimento artístico atual?
Um dos caminhos é reconhecer que a imagem, fundamento do mundo
contemporâneo, tem sido infinitamente redesenhada, das suas primeiras transformações de forças invisíveis para coisas visíveis, quer seja pela apropriação
fácil de imagens de segunda geração,2 quer seja pela sua rápida aplicação em
campos profissionalizantes ou, ainda, pelos recortes criados e recriados a partir
dos objetos considerados culturais.
Hoje, podemos apontar o enfraquecimento da percepção visual da “imagem
de primeira geração” e a assimilação de “imagens de segunda geração”. A partir
da emergência da arte moderna, as imagens se disseminam excessivamente e
necessitam de uma ordenação que, como já apontamos aqui, não é necessariamente regular ou linear. A proliferação do uso da fotografia, por exemplo,
contribui para a formação do novo sistema visual, registrando o instante. As
vanguardas históricas e, mais tarde, a arte contemporânea estão envoltas nesse
movimento acelerado de proliferação de imagens.
Outra bifurcação – nesse caminho de reconhecimento da cultura artística
contemporânea e suas imagens – está na discussão que leva em conta que, a partir
dos anos de 1980, além da suspensão de certos significados, “as forças culturais
mais coesas também se dispersaram pela importância dada às impressões
transformadas em linguagem significativa”, ou seja, a construção social tornou2. O termo “imagem de primeira geração” é usado aqui em paralelo à definição do
artista Joseph Beuys em relação à linguagem do desenho: “desenho é a primeira
visualidade do pensamento, transformado no ponto de forças invisíveis para coisas
visíveis” (Adriani. Op. Cit. p. 10-12). Há uma estrutura de pensamento para ser
reconhecida na imagem. Por outro lado, as “imagens de segunda geração” são aquelas
cuja estrutura de “primeira visualidade do pensamento” se perde por meio das inúmeras
vezes que são redesenhadas.
O museu de arte e o contexto das imagens atuais
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se um discurso de linguagens histórica, sociológica ou antropológica, muito mais
do que uma construção gerada em um mundo vivido (Idem). Nesse mesmo
momento, surge a “imagem por excelência” (MORIN, 2000, op. cit.) que, aos
poucos, visa substituir a significação linguística pela visual sem, entretanto,
decompor os mesmos vazios: jornais, televisão, a própria cidade e outros meios
de veiculação de imagens. A cultura atual se define – como num passe de mágica
– como “cultura de imagens”. Sem a temporalidade para refletir sobre essas
afirmativas, as imagens se transformam em apreensões imediatas e sem número
de relações nelas submergem. Por outro lado, ocorre uma síntese geral da cultura
de visualidade deslocada do olhar. As cifras da vida diagramadas no corpo
cultural (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 132) são, apenas, colagens de seus próprios
pedaços. Nas sucessões vertiginosas, como diz Sarlo (2004, p. 53-68), “a compreensão não está aparelhada para essa veloz e dupla decodificação simultânea
de áudio e vídeo”. Segundo a autora, a sociedade veicula imagens, mas imagens
sem intensidade, sem intenções. “A imagem não provoca espanto nem interesse,
não resulta misteriosa nem particularmente transparente” (Idem).
*
Cabem às mediações ocorridas nos espaços dos museus romperem com essa
apatia provocada pela profusão de imagens de segunda geração e não se perderem
na vontade de construção apenas do conhecimento formal (aquele resistente à
informação). Cabe a valorização da liberdade das percepções desregradas presentes no objeto artístico, cumprindo, assim, funções ligadas à valorização do
indivíduo, à abertura para o desenvolvimento de suas potencialidades e à construção de um conhecimento sensível.
O exercício do olhar criador tece o conhecimento visual e o traz à luz, no
seu sistema de correlações e nas tensões recolhidas nas imagens das obras de
arte e nas imagens veiculadas pela chamada cultura de visualidade atual. Ao
compreendermos que há uma visualidade no mundo, um lugar de passagem de
forças invisíveis para coisas visíveis como dissemos, e que as imagens atuais
significativas advém de processos criadores contextualizados culturamente e
interpretados com as materialidades das artes visuais, sabemos que um processo
de conhecimento está sendo ordenado, certamente mais orgânico que a leitura
da imagem, ou seja, à sua adequação a um texto: para além de qualquer enunciado,
há o cogito tácito (CARMAN, T. et al, 2006, op. cit.) que a arte pode, em uma espiral
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Carmen S. G. Aranha e Alecsandra M. de Oliveira
de aproximação, resgatar a ordem de visualidades apreendidas nos fenômenos
vividos no mundo.
Parte da investigação sobre o olhar criador funda-se na procura de
correlações que contribuam para a formação do conhecimento visual e possam
ser vistas nos processos do fazer artístico. O que interessa agora é o olhar que se
aproxima dos códigos da visão e, com eles, tece correlações que se aproximam
da cultura de visualidades. Esse olhar, com múltiplas dimensões, situa-se longe
dos sistemas e se aproxima de um pensar que, por sua vez, sacode as falsas
evidências abstratas de qualquer observador absoluto (CHAUI, 2002, op. cit.),
porque, se os conceitos podem facilmente virar simulacros e esconder a
motivação que desvela a dimensão da ideia, o olhar pode situar as cifras que
recortam o mundo e dão nascimento às formas criativas da cultura, na matéria
plástico-visual da obra de arte.
Portanto, nos museus de arte, sobretudo, os dedicados à arte contemporânea,
é necessário um olhar que pode tudo ver e desmanchar os pensamentos tecidos
somente com a razão (Idem). Um olhar-pensar puxando seus fios com argumentos
sobre não coincidências e “irrazões” para olhar as coisas do mundo ao invés de
lê-las. Um olhar que tece um pensamento visual – um contexto.
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O museu de arte e o contexto das imagens atuais
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SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: Intelectuais, arte e videocultura na
Argentina. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2004.
| 89
Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte
contemporânea e os contos de fadas
KATIA CANTON*
Resumo: O artigo apresenta o pensamento de Roland Barthes em relação à
invenção de conceitos capazes de “furar” a tendência fascista do texto. Esse
pensamento é transposto para a possibilidade da criação de uma leitura da
narrativa na arte contemporânea, particularmente aplicada aos contos de fadas.
Palavras-chave: Narrativa. Arte Contemporânea. Contos de Fadas.
Interdisciplinaridade. Liberdade.
Oblique Narratives: Roland Barthes, contemporary art and fairy
tales
Abstract: The text presents the ideas of Roland Barthes concerning the invention of
language and theoretical concepts that can create new meanings. I propose the
application of these ideas vis-à-vis the use of narrative in contemporary art,
particularly fairy tales.
Keywords: Narrative. Contemporary Art. Fairy Tales. Interdisciplinarity. Freedom.
* Professora Livre-docente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de
São Paulo (MAC USP). Docente credenciada no Programa de Pós-Graduação em Estética
e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA USP).
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Katia Canton
Introdução: invenção e liberdade de pensar de Roland Barthes
Por que começar com Roland Barthes? Para resumir uma longa história,
vale a pena pontuar a aula inaugural ministrada por ele, na cadeira de Semiologia
Literária, no prestigiado Collège de France, em 7 de janeiro de 1977, mais tarde
transformada em livro. Ali, o pensador francês alegava publicamente que era
preciso criar mecanismos capazes de sabotar a tendência fascista do texto. O
fascismo, no entanto, não estaria no ato de se impedir de dizer, mas, sim, em
obrigar a dizer.
Para Barthes, como contraponto, seria preciso criar uma linguagem crítica
da própria linguagem, capaz de trapacear esse fascismo: “Essa trapaça salutar,
essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no
esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo de literatura”.
(BARTHES, 1988. p.14)
Para o autor, a importância da literatura estaria no fato de ela exercer uma
“função utópica”, uma vez que consiste num discurso teoricamente vindo de fora
do poder. Para ele, “a ciência é grosseira e a vida é sutil, e é para corrigir essa
distância que a literatura nos importa” (p. 19).
A Invenção de um conceito: narrativas enviesadas
Proponho o uso do conceito de “narrativas enviesadas” para comentar uma
forma particular e contemporânea de produzir arte, contar histórias. Nesse
exercício de criação conceitual, busco o pensamento de Barthes, procurando
aproximar-me dos sentidos instáveis, dos textos não ditos (ao menos, não inteiramente), construções fluidas.
Parece-me que está justamente nas junções escorregadias e instáveis o que
chamo de narrativas enviesadas, em que os artistas escapam dessa tendência
fascista do texto e da obra. Sabotam, subvertem, quebram as possibilidades de
um sentido narrativo único. Desestabilizam nossas compreensões da vida e
injetam sutilezas, incertezas, sons que se recombinam e formam camadas, ainda
que se estranhem mutuamente.
Os sentidos, na obra dos artistas contemporâneos, não estão prontos, mas
se configuram no acontecimento, isto é, na construção das múltiplas relações que
acontecem entre a obra e o observador.
Essas construções têm como herança uma atitude singular diante da vida
Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas
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pós-muro de Berlim, somada a um outro inventariado, esse herdado das
vanguardas modernas que se configuraram a partir do final do século XIX.
A modernidade, que matura no século XX, buscava libertar a arte da
representação do real, desembocando em projetos de autonomia, que se
espelhavam e se refletiam em fenômenos estéticos como a geometrização e a
abstração formal.
De fato, essa somatória de experimentações modificou radicalmente a noção
de estrutura narrativa de que se faz uso hoje: as narrativas enviesadas contemporâneas, também narram histórias, mas de modo não linear. No lugar do começo/
meio/fim tradicionais, compõem-se a partir de tempos fragmentados, sobreposições, repetições, deslocamentos. Elas contam; porém, não necessariamente,
resolvem as próprias tramas.
Textos e obras de arte contemporâneas — incluindo aqui as artes visuais, o
teatro, a dança, o cinema, a literatura — muitas vezes dão indícios de contar
histórias, mas na verdade se recusam a criar uma narrativa cujo sentido seja
fechado em si mesmo ou que possa ter alguma linearidade, que “fecharia” seu
sentido.
Essa mudança de paradigma, em relação à narrativa, tem como ponto
estrutural a transferência das vanguardas, da Europa para os Estados Unidos,
particularmente para Nova York, onde se inaugura o expressionismo abstrato.
Trata-se de um momento de emancipação da arte norte-americana: uma arte
criada no Novo Mundo e que busca um “novo absoluto”, desancorado de
qualquer tradição ou comprometimento com a história e suas cargas de passado.
Essa postura equivale ao abandono da hegemonia europeia, com sua memória e
sua história.
As pinceladas livres de William de Kooning; as imensas telas monocromáticas de Barnett Newman, responsável pelo encontro com o sublime através
da criação de campos de cor; a valorização do tempo presente em movimentos
de pinceladas e drippings (escorridos) na action painting (pintura de ação) de
Jackson Pollock – tudo isso fazia parte de uma necessidade de autonomia e
valorização do “agora”, o que superaria as experiências das vanguardas europeias,
que dialogavam com as próprias tradições históricas.
Essa noção, legitimada por críticos norte-americanos importantes, sobretudo
Clement Greenberg, começou a ser testada e levada a outras direções pelas
próximas gerações.
No cenário norte-americano dos anos 1960-1970, o movimento do mini-
92
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Katia Canton
malismo propunha: “Menos é mais”. Isso correspondia, na dança do coreógrafo
Merce Cunningham, seguida daquela criada pelos dançarinos que compunham o
grupo Judson Memorial Church, à incorporação do acaso, à economia de gestos,
ou à possibilidade de dançar sem música. A música serial de Steve Reich e Philip
Glass sintetizam uma arte emblemática de negação – uma arte analítica, que reage
à narrativa, ao academicismo e ao drama, realçando os aspectos formais e
funcionais da arte, materializando uma preocupação com a abstração, a austeridade e a noção democratizante de que “qualquer um pode ser artista”.
Esse despojamento liga-se a uma atitude política de reação não só aos
exageros propostos pelo consumismo do “American way of life”, que ganha força
a partir do final da Segunda Guerra Mundial, mas também como reação à atuação
norte-americana na Guerra do Vietnã (1954-75), que provocou muitas mortes e
destruição.
O espírito do tempo, que marcou as décadas de 1960 e 1970, foi registrado
no livro Against interpretation [Contra a interpretação], da filósofa Susan
Sontag, para quem a arte estabelece um valor per se, suficiente em suas
características visíveis, táteis e auditivas, o que a libera de interpretações críticas,
implicações autorais e históricas (SONTAG, 1987). Essa ideia é reforçada por uma
declaração-manifesto escrita pela coreógrafa e cineasta Yvonne Rainer, em 1965,
e intitulada “manifesto de renúncia”:
Não ao espetáculo não ao virtuosismo não à transformação e magia e ao faz de
conta não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela não ao heroico
não ao anti-heroico não ao lixo metáfora não ao envolvimento do intérprete
ou do espectador não ao estilo não ao camp não à sedução do espectador pelos
artifícios do intérprete não à excentricidade não ao mover ou comover não a
ser movido ou comovido. (CANTON, 2001, p.19)
A ideia era retirar do espectador a possibilidade de se identificar com a
narrativa. Essa estratégia se liga ao uso de métodos anti-ilusionistas ou
antinarrativos. Em arte, ilusionismo é a capacidade de conectar o espectador em
um nível diegético, ou seja, de identificação e de relacionamento com a obra. O
modernismo norte-americano busca, no momento de seu auge, o desenraizamento
dos artifícios da narrativa do cotidiano para alocar o observador em um mundo
sintético, puro e transcendente: o mundo da arte abstrata.
Os artistas de vanguarda, que produziram a abstração, buscavam, por sua
Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas
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vez, o fim da arte como representação de algo fora dela mesma. Isto é, almejavam
a abstração pura, sem equivalências na realidade.
Mas seria possível para a percepção humana olhar uma superfície como essa
sem fazer nenhuma associação com as bagagens da história pessoal, da memória,
da associação que todos nós produzimos com as questões da vida?
O coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, por exemplo, artista que
trabalhou muitos anos com o músico John Cage, propôs-se a criar coreografias
completamente abstratas explorando um modo singular de operação. Por meio
de um acaso absoluto, Cunningham procurou desvencilhar-se de qualquer
intenção narrativa a priori.
Em primeiro lugar, muitas de suas coreografias eram compostas mediante
sorteios de gestos, que eram colados como num livro de consultas de I Ching.
Outro elemento importante de suas obras era a ocupação não linear do espaço
teatral do palco pelos bailarinos, que preenchem a frente, os fundos, as laterais
e as costas, desrespeitando o palco italiano, em que os bailarinos costumam se
virar para a frente.
A maneira como Cunningham propunha as colaborações também se
concretizava de forma ímpar: o coreógrafo, o músico, o artista responsável pelos
figurinos e cenários, cada um trabalhava a seu modo, no seu tempo, sem nenhum
conhecimento do trabalho do colega até o dia da apresentação inaugural. Assim,
os elementos compostos, sem a obrigatoriedade de uma hierarquia, proporcionavam liberdade, independência aos diversos elementos. Eliminava-se dessa forma
a possibilidade de criar uma narrativa como resultado de uma junção linear.
Em 2007, na Califórnia, a Merce Cunningham Dance Company realizou
um experimento explorando percepção e acaso: durante a apresentação, os
espectadores receberam um aparelho iPod. Assim, cada membro da plateia podia
escolher as músicas para a gestualidade dos bailarinos.
Em uma entrevista que realizei com Merce Cunningham, em 1989, em seu
estúdio nova-iorquino, ele explicou que, mesmo com todas as estratégias criadas
para atingir uma abstração capaz de subverter a narrativa, o público muitas vezes
tende a atribuir sentidos próprios para o modo como o som, os gestos e a luz se
combinam. Isto é, de formas singulares, os espectadores acabam retirando dos
espetáculos uma narrativa. Enquanto Cunningham e Cage desenvolviam esse
método de trabalho, nas artes visuais dos anos 1950, despontavam nomes como
Jasper Johns, que realizava experimentos paralelos a fim de testar os limites da
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Katia Canton
possibilidade de criar uma arte cujo valor é simplesmente ela mesma. Desviandose do caminho transcendente proposto pelos expressionistas abstratos, em cujos
campos de cor o espectador era convidado a mergulhar livremente, Johns, então
um jovem artista, concluiu, em 1955, uma obra que gerou polêmica. Intitulada
Flag [Bandeira], ela apresentava as listras e estrelas da bandeira norte-americana,
em grande dimensão, utilizando pintura e encáustica. A simples apresentação da
bandeira, sem nenhum comentário extra, assim como o incômodo e a atração gerados pela obra nos espectadores, deixou claro o fato de que é inevitável que uma
imagem contenha índices culturais e esteja necessariamente mergulhada em implicações sociopolíticas e ideológicas. Flag abre o caminho para a arte pop e atesta
inexoravelmente o poder das imagens midiáticas de gerar narrativas próprias.
Experimentalismo e crise da abstração
A partir desse momento, nos Estados Unidos, muitos artistas mergulham
sua produção em experimentações que buscam expandir os limites entre arte e
não arte. Tratava-se de utilizar o conceito de “arte expandida”, cunhado pela
crítica Rosalind Krauss.
Dançar nas paredes verticais de prédios, como fez a coreógrafa Trisha
Brown, parecia muito mais interessante do que se apresentar no palco de um
teatro, por exemplo. Porém, por conta de experimentalismos que buscavam um
alargamento cada vez maior de limites, instaurou-se no cenário artístico uma
sensação de hermetismo entre os artistas e o público. Este último sentia-se muitas
vezes desconfortável com a dificuldade de compreender as obras, cada vez mais
conceituais e menos retinianas. Esse cenário de estranhamento colaborou para
o afastamento gradual do público.
Como resposta, no decorrer do tempo, em especial a partir da década de
1980, muitos artistas sentem uma necessidade de se reaproximar da realidade e
do público e retomam a ideia de narrativa. Eles passam a buscar uma produção
que se relacione diretamente com os fatos e movimentos da vida, e deixam de se
colocar numa posição transcendente, na qual a arte poderia se valer por si mesma,
descolada dos limites impostos pela vida real.
Outro elemento a ser levado em consideração é o mercado. Depois de
algumas décadas experimentando dançar sem música ou realizar performances
que não podiam ser comercializadas, os artistas percebem a necessidade de poder
viver do próprio trabalho, expondo em galerias, apresentando-se em teatros e
Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas
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em casas de espetáculos.
Em oposição às experiências das vanguardas norte-americanas, o uso
consistente da narrativa tornou-se progressivamente uma âncora para a
representação contemporânea. A década de 1980 – chamada nos Estados Unidos
de era republicana de Reagan e Bush (pai), ou de era dos yuppies (jovens urbanos
que enriqueceram com o mercado financeiro) – substitui as experiências da
vanguarda e o senso de comunidade artística pelo recrudescimento do
consumismo e o fascínio pela opulência, ilustrado em seriados norte-americanos
de televisão, como Dallas (1978-91) e Dinastia (1981-89). Nesses anos, o refrão
minimalista “Menos é mais” é trocado pela máxima de que “Mais é mais”.
Um panorama breve dos anos 1990
O período de transição entre os anos de 1980 e de 1990 anuncia mudanças
no panorama internacional. Elas terão forte impacto na formação artística da nova
geração e passarão a compor as bases para um novo mundo – um mundo de
excessos, que despreza a noção de privacidade, que é substituída pela busca de
celebridade. Um mundo que estetiza a violência, anestesiando nossos sentidos,
e que transforma a informação em uma comodidade descartável, com pouco
resquícios de memória.
Nesse mundo, o sistema de corporações e o anonimato reestruturam as
relações sobre um terreno globalizado. A queda do Muro de Berlim e o final do
comunismo reajustam as estruturas políticas em favor do neoliberalismo.
Os problemas ecológicos passaram a fazer parte da rede de interesses
econômicos do Primeiro Mundo: a crise ambiental, ditada pelo crescimento de
poluentes; o aquecimento generalizado e gradual do planeta; e a iminência da
falta de água pura no médio prazo fazem da ecologia a palavra de ordem de grupos
da sociedade civil e ONGs.
A AIDS, o Ebola, as gripes aviária e suína, além de outros vírus fatais,
desafiam um mundo que parecia dominado e controlado pela ciência. A física
quântica, o Projeto Genoma e as clonagens de DNA relativizam conquistas
científicas e apresentam ao mundo uma estreita ligação entre arte, ciência e
tecnologia. A internet, com suas redes sociais e outros desdobramentos virtuais,
constrói promessas de núcleos cibernéticos de vida e reafirma o conforto
doméstico dos contatos humanos à distância.
A importância dada à moda, ao mundo das aparências e “atitudes”, em
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conjunção com uma tecnologia sofisticada de cirurgias plásticas, implantes,
aparelhos de ginástica, vitaminas e outras substâncias químicas, ao lado da
possibilidade de modificações genéticas que se abrem com os primeiros sequenciamentos cromossômicos, faz do corpo um campo de experimentações futuristas.
Culturalmente, a busca de originalidade e experimentações, que caracterizou
a vanguarda modernista do século XX, é substituída pela busca de fama e
celebridade, numa transferência do foco das preocupações e olhares – da produção para o produtor, da obra para o autor. Um exemplo desse tipo de comportamento está no sucesso da revista Caras, lançada no Brasil, em 1993, pela editora
Abril, seguida por outras publicações do gênero.
No contexto econômico, o desgaste dos mercados ditos de Primeiro Mundo
e as demandas de expansão ditadas pelo corporativismo e pela globalização
impulsionam a conquista de mercados alternativos, com o uso de discursos
“politicamente corretos” e a ativação de termos como “transculturalidade” e
“multiculturalismo”. Este último, de acordo com a antropóloga Barbara
Kirshenblatt-Gimblett, torna-se um código para a palavra “etnia” (1993), ao
mesmo tempo em que guerras étnicas explodem em meio aos limites da nova
geografia mundial.
Novas configurações geopolíticas provocam deslocamentos humanos que
instauram uma nova noção de identidade e de nacionalidade. O espaço flexível
e instável, emblemático da era global, expande-se em um tempo também marcado
por instabilidade e fragmentação de informações e por excesso de imagens e
estímulos de múltiplas naturezas. Tempo e espaço se redefinem na linguagem
dos videoclipes da MTV, na comunicação via internet, nos painéis eletrônicos
de alta definição, instalados estrategicamente nas grandes cidades, observados
pela massa de automóveis estagnados no trânsito.
A esse panorama, soma-se uma ideia fundamental para a produção artística
que se desenvolve nos anos 1990: a originalidade da criação é um mito
modernista. A afirmação, discutida pela crítica norte-americana Rosalind Krauss,
no livro The originality of the Avant-Garde art and other modernist myths,
difunde-se com as noções e práticas pós-modernas, ligadas a uma atração pelo
passado, pela memória, pelas convenções e clichês. Segundo Krauss, a busca
de originalidade e autenticidade está sendo progressivamente engolida e perde,
assim, seu lugar e sentido em um mundo gerado pela informação midiática e pela
reprodutibilidade virtual.
Nesse contexto histórico, numerosos debates sobre uma “crise da arte” se
Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas
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instauraram numa sociedade bombardeada por excessos de toda sorte. O mundo
da arte contemporânea, não isento de tais excessos, move-se no interior de uma
densa rede que envolve o mercado, o sistema de galerias e museus, as feiras nacionais e internacionais, os salões, os curadores e os críticos, as bienais, os
colecionadores.
A própria definição de arte, nesse momento, está mergulhada numa condição
de estranhamento e instabilidade, gerada durante o percurso histórico das
experimentações postas em prática por artistas do século XX.
Isso ocorre sobretudo após as pesquisas do francês Marcel Duchamp, que,
no início do século XX, incorporou ao universo artístico a noção de ready-made.
No decorrer do desenvolvimento da arte conceitual, nos anos 1960 e 1970,
Duchamp enfatiza o processo e as propostas artísticas em lugar dos “produtos”,
validando como arte objetos como uma bula, um cartão-postal, um biscoito, uma
cópia xerográfica. Nesse processo, e na incorporação de meios virtuais e
tecnológicos, a produção artística proliferou a tal ponto que se perderam de vista
os limites que delimitavam o universo artístico. A high art, as belas artes foi
separada de todo o resto da produção gerada pela sociedade pós-industrial.
Essa instabilidade na arte, ao repercutir numa sociedade marcada progressivamente pela informação virtual e pela engenharia genética, desnorteia e intriga.
Provoca. Não permite mais aos artistas adotar uma postura descolada dessas redes
que amarram a vida.
Os artistas contemporâneos não podem compartilhar uma atitude modernista, que buscava na arte uma resposta transcendente, abstrata e sintética, acima
das coisas que formam a complexa tessitura do mundo real.
A arte não redime mais. E os artistas contemporâneos incorporam e comentam a vida em suas grandezas e pequenezas, em seus potenciais de estranhamento
e em suas banalidades.
No Brasil, logo após a efervescência da pintura instituída pela Geração 80,
discutiu-se e polemizou-se a “morte teórica da pintura”. Porém, à geração seguinte, não coube mais discutir questões relativas aos suportes.
A pintura não morreu, tampouco a escultura. Juntaram-se a elas instalações,
objetos, textos, internet e outros meios. Um elenco complexo e sofisticado de
suportes e possibilidades de materiais se abre naturalmente aos artistas, que
substituem essa preocupação com o meio por outra, ligada ao sentido.
Artistas contemporâneos buscam sentido. Um sentido que pode estar
alicerçado em preocupações formais – que são intrínsecas à arte e que se sofis-
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ticaram no desenvolvimento dos projetos modernistas do século XX –, mas que
finca seus valores na compreensão (e na apreensão) da realidade, infiltrada dos
meandros da política, da economia, da ecologia, da educação, da cultura, da fantasia, da afetividade.
Em vez de uma arte per se, potente em si mesma, capaz de transcender os
limites da realidade, a arte contemporânea penetra as questões cotidianas, espelhando e refletindo exatamente aquilo que diz respeito à vida.
O tempo e a memória, o corpo, a identidade e o erotismo, o espaço e o lugar,
as micropolíticas – tudo isso é tema de inquietação para a geração atual. Esses
temas se estruturam a partir de arranjos formais e de construções conceituais que
formam narrativas não lineares, enviesadas, e que muitas vezes emprestam a sofisticação estrutural e a variedade no uso de materiais justamente dos projetos desenvolvidos pela vanguarda modernista, que marcou uma parte significativa do
século XX.
A produção contemporânea não é uma produção de negação, como foi a
produção moderna de vanguarda. As experimentações realizadas no percurso do
século XX foram apreendidas e incorporadas, injetadas, através dessa busca de
sentido, que se liga às especificidades de um novo contexto sócio-histórico.
As heranças recebidas pelo modernismo – a abstração, a valorização dos
aspectos formais da obra de arte, a não linearidade das estruturas de pensamento,
a valorização dos mecanismos que compõem os processos de concepção de uma
obra – são elementos que foram incorporados pela arte contemporânea, que, por
sua vez, a eles acrescenta uma relação de sentido, significado ou mensagem, criando, nos processos aglutinadores da obra contemporânea, uma narrativa fragmentada, indireta, que desconstrói as possibilidades de uma leitura única e linear.
Uma particularidade narrativa: os contos de fadas
As palavras e seus sentidos, a memória, a herança e a tradição são elementos
que passam a ser revalorizados num mundo inundado por imagens propagadas
incessantemente pela mídia. Eles formam uma narrativa que incorpora sobreposições, fragmentações, repetições, simultaneidade de tempo e espaço, enfim, todo
o jogo que pode fornecer elementos para a criação de uma obra de sentido aberto,
que se constrói durante a relação com o outro, com o público, com o leitor, o
observador.
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Para criar suas narrativas enviesadas, uma das estratégias dos artistas
contemporâneos é a utilização de contos de fadas. Essas histórias paradigmáticas
do mundo ocidental são conhecidas o suficiente para poderem ser fragmentadas,
repetidas, desconstruídas e viradas do avesso pelos artistas.
As origens dos contos de fadas na civilização ocidental estão nos contos
populares de magia, um tipo de conto oral em que as histórias eram simbolicamente criadas e adaptadas, conforme a interação viva entre os narradores e os
espectadores/ouvintes. Em sua forma oral, o conto popular de magia é antigo,
provavelmente coincidindo com os primeiros rituais de comunicação entre seres
humanos. A falta de documentação torna difícil localizar com precisão as origens
históricas do conto oral de magia; já a formação dos contos de fadas literários é
algo que pode ser estudado.
O conto popular de magia faz parte de uma tradição oral pré-capitalista que
expressa os desejos básicos dos seres humanos de obterem melhores condições
de vida, enquanto o termo conto de fadas indica o advento de uma forma literária
que se apropria de elementos populares para apresentar valores.
Em pesquisa de mestrado e doutorado, no departamento de Performance
Studies, Tisch School of the Arts, e no Departament of Art and Art Professions,
ambos na New York University, estudei a obra de três coreógrafas/criadoras
performáticos que se envolveram particularmente com o tema dos contos de fadas
e os reapresentaram de maneira instigante: Pina Bausch, na Alemanha, Maguy
Marin, na França, e o grupo de performance Kinematic, nos Estados Unidos.
Já no final dos anos 1970, a coreógrafa alemã Pina Bausch, introdutora do
tanztheatre ou dança-teatro, pôs em cena o espetáculo Barba-Azul. Nesse conto
de fadas escrito por Charles Perrault, no século XVIII, narra-se a história de um
homem muito rico que se casa repetidas vezes e dá uma vida luxuosa para suas
mulheres. Mas ele as proíbe de entrar em um quarto encantado. Cada uma das
esposas falha: sem conseguir conter a curiosidade, elas usam a chave mágica,
entram no quarto e são traídas por uma mancha de sangue que nunca mais sai de
sua chave.
Pina Bausch explora a trilha sonora da ópera O castelo de Barba-Azul, do
compositor húngaro Béla Bártok, que é acionada em um gravador em plena cena.
O chão do espetáculo é recoberto por folhas secas e os protagonistas, Barba-Azul
e sua esposa, são envolvidos em jogos gestuais repetitivos, exaustivos, espelhados
em outros dançarinos: assim, os papéis de vítima e algoz constantemente se
alternam e se confundem.
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Katia Canton
Na década de 1980, a francesa Maguy Marin cria, sob encomenda do Lyon
Opera Ballet, uma Cinderela esquemática, desprovida de romantismo ou pieguice.
Nessa versão, não prevalece nem a versão de Perrault, a mais conhecida, nem a
dos irmãos Grimm. Marin propõe uma versão própria, em que os personagens
são bonecos de pano. A fada-madrinha é um boneco que se transforma em robô,
e sua carruagem é um pequeno calhambeque conversível, que a própria Cinderela
é convidada a dirigir. Ela e o príncipe são duas crianças que dançam de maneira
espelhada, sem a hierarquia típica do balé clássico, nem a passividade atribuída
às mulheres nos tempos de Perrault. E tudo termina com uma bem-humorada
procissão de brinquedos.
O espetáculo A menina sem mãos, do grupo norte-americano de dança-teatro
Kinematic, é baseado na história de mesmo nome escrita pelos irmãos Grimm
no século XIX. O conto narra a trajetória de uma menina oferecida ao diabo por
seu pai, que se vê obrigado a cortar fora as mãos da filha. Depois de um longo
processo, doloroso e rico de maturação, a menina vê suas mãos crescerem novamente. As dançarinas do grupo Kinematic encenaram a história de forma austera
e enviesada. O texto da história foi cortado ao meio e depois remendado, numa
desconstrução levada à fisicalidade de uma tesoura cortando o papel. Esse texto,
recortado e recolado de modo aleatório, foi lido por um narrador em off, enquanto
as três dançarinas criavam gestos que se colavam às palavras através de sua
sonoridade. Algumas pausas foram introduzidas no espetáculo com a inserção
de músicas folclóricas e de deslocamentos no espaço por parte das bailarinas.
O estranhamento do espetáculo A menina sem mãos se completa com o fato
de que, apesar de explorar um texto todo fragmentado, é possível perceber de
algum modo o fio condutor que assinala a narrativa da história é exatamente aquela escrita pelos irmãos Grimm. Ao estudar essas obras, pensei na possibilidade
da criação de uma narrativa diferente, própria de um tempo em que queremos
histórias, mas não confiamos em seus finais felizes, ou mesmo finais fixos. Assim,
surgiu o conceito de narrativas enviesadas.
Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas
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Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988.
CANTON, Katia. Novíssima arte brasileira, um guia de tendências. São Paulo:
Iluminuras/ MAC-USP/ Fapesp, 2001.
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A construção do plano moderno: Planos em
Superfícies Moduladas nº 2 - Lygia Clark, 1956
RODRIGO QUEIROZ*
Resumo: Planos em superfícies Moduladas nº 2 revela a passagem da ação pictórica
sobre o plano para a construção do próprio plano na obra de Lygia Clark. A
confecção modular das superfícies planas e o posterior processo de associação e
montagem dos módulos a partir do encaixe, assim como sua fixação vertical
sutilmente solta do plano da parede, consiste em um processo de sinaliza para
a uma relação de unidade com o espaço arquitetônico que ultrapassa a linear
reação em cadeia crescente “arte/arquitetura/cidade” que caracteriza diferentes
manifestações da vertente construtiva da arte moderna, como a Bauhaus, o De
Stijl e o Construtivismo Russo. A autonomia das superfícies de Lygia Clark
pressupõe justamente a possibilidade do deslocamento da experiência artística
para além do espaço idealizado moderno, originalmente condicional à exposição
da obra de arte, ao constituírem módulos de uma unidade que se permite
dispersar no mundo real.
Palavras-chave: Arte Moderna. Neoconcretismo. Lygia Clark.
The construction of the modern plan: Plans in modulated
surfaces # 2 – Lygia Clark, 1956
Abstract: Plans in modulated surfaces # 2 reveals the passage of pictorial action on
the plan to build the own plan in the work of Lygia Clark. The modular
* Professor Doutor do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Docente credenciado no Programa
de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHAUSP).
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Rodrigo Queiroz
manufacture of plane surfaces the subsequent process of association and assembly of
the modules, as well as its vertical subtly loose fixing plane of the wall, is a process of
signaling for a relationship of unity with the architectural space that goes beyond
the linear reaction growing chain “art / architecture / city” featuring different
manifestations of the constructive strand of the modern art, such as the Bauhaus,
De Stijl and Russian Constructivism. The autonomy of the surfaces of Lygia Clark
rightly presupposes the possibility of displacement of the artistic experience beyond
the idealized modern space, originally conditional to the exhibition of the work of
art, to constitute a unit that allows to disperse in modules in the real world.
Keywords: Modern Art. Neo-Concretism. Lygia Clark.
Lygia Clark – Planos em Superfícies
Moduladas nº 2, 1956
Tinta industrial s/ celotex, madeira e nulac
90,1cm x 75,0 cm – Acervo MAC USP
Planos em superfícies moduladas nº
2 integra um conjunto de trabalhos de
Lygia Clark, identificados pela construção de um plano vertical resultante do
encaixe de finas placas poligonais.
A escolha precisa das palavras que
formam o título da obra informa sobre a
posição e a conduta da artista, frente à
codificação tradicional da pintura. Nesses
trabalhos de Lygia Clark, inexiste o plano como suporte que antecede o ato
pictórico, superfície que recebe o registro do gesto. Ao contrário, a obra é a
produção do próprio plano, é a imagem de sua construção.
A tentativa da construção do plano como experiência pictórica e espacial
consiste em uma das principais estratégias da vertente construtiva do projeto
moderno. A desmontagem da perspectiva linear, por parte do cubismo, e o
achatamento absoluto da profundidade, como procedimento chave de neoplasticistas e suprematistas, são dispositivos que intentaram unificar os planos da arte
e da vida, em um plano comum, o da arquitetura, ainda mero recorte doméstico
de um ambicionado “espaço total”. Entretanto, a construção do plano, para
Mondrian e Malevich, preserva um expediente pictórico tradicional: o movimento
A construção do plano moderno: Planos em Superfícies Moduladas nº 2 ...
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do pincel sobre tela. O plano, apesar de moderno, ainda decorre de um ato prémoderno.
A superfície geométrica e uniforme dos planos de Lygia Clark elimina
qualquer vestígio de manualidade. A obra resulta de uma sequência de ações,
instrumentalizadas pelo moderno universo da razão, da consciência produtiva
do sistema industrial. O chassi de madeira e a tela de tecido dão lugar às placas
de Eucatex; a tinta de bisnaga e o pincel são substituídos pela tinta industrial e a
pistola de ar comprimido. É provável que os precisos recortes dos planos tenham
sido realizados por algum tipo de serra circular de bancada.
Os instrumentos e os meios utilizados por Lygia Clark pertencem à realidade
industrial, distante da atmosfera intimista de um ateliê. A obra não é ingenuamente
“concebida”, ao contrário, convoca o funcionamento das máquinas e o ofício
racional de operá-las. Tais procedimentos evidenciam uma nítida aspiração coletiva, que aproxima a obra e sua produção a determinada prática do desenho industrial e também da arquitetura moderna: a forma é a imagem de sua própria
montagem, pois preserva intacta a legibilidade dos componentes que a integram.
Não há qualquer revestimento sobre a construção, pois a verdade produtiva deve
se revelar como a obra em si.
Os componentes do plano da arte – as tais superfícies moduladas – são produzidos por um mecanismo industrial, o que não significa que pertençam a um
sistema produtivo industrial. Apesar do uso de materiais industrializados e de precisas máquinas de pintura e corte, a escala de produção é artesanal. São protótipos
que apresentam, a partir da construção de uma única unidade, a possibilidade de
aproximação entre arte e indústria, que, exceto no caso do desenho industrial,
acabou mesmo limitando-se ao ensaio. Lembremo-nos das experiências da
arquitetura moderna, monumentos de uma modernidade reduzida à demonstração.
Ao qualificar como moduladas, as superfícies que integram os planos, Lygia
Clark reforça a perspectiva serial desse componente, que resulta de um raciocínio
normativo. O elemento individual contido no plano só assume a condição de módulo, se cumprir o papel de se multiplicar em grupos de formas padronizadas e
encaixadas entre si, a partir de um nítido senso de ordenação. São peças definidas
por um conjunto fechado de figuras geométricas que se repetem, por isso
moduladas.
Notem que o instrumental e os materiais utilizados para a confecção das
superfícies de Lygia Clark são objetos comuns às oficinais de marcenaria, local
onde justamente se produz a mobília mais aderente à superfície da arquitetura,
como armários, estantes e prateleiras.
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Rodrigo Queiroz
A linha que resulta do encontro desses módulos poligonais de madeira é,
na verdade, uma fresta. Sua constituição não resulta da grafia do movimento
sobreposto à tela, que identifica a linha na pintura, mas de uma delgada penumbra
entre as peças. A natureza espacial e não planar da fresta confere espessura vazia
e profundidade à obra, que decorre da montagem da superfície.
A fresta entre os planos é chamada pela artista de “linha orgânica”, pois
justamente não se faz sobre o plano, é um vazio, um hiato que não está ilhado no
plano, mas se prolonga de modo anguloso, até as bordas da superfície montada,
como um canal cuja extensão sangra o limite entre a obra e o espaço.
Do mesmo modo que os planos recortados são separados pela linha orgânica, a superfície da obra também se mantém em suspensão, solta como em
relação ao plano da parede. A linha orgânica contorna a espessura da obra,
transformando-se novamente em fresta, dessa vez, entre os planos da obra de
arte em si e da arquitetura.
Em Plano em Superfície Modulada nº 2, a disposição dos módulos consiste
em uma composição espelhada, cujo rebatimento obedece a um eixo de simetria
diagonal, do canto superior esquerdo ao canto inferior direito. Não se trata do
rebatimento de uma figura sobre o plano, mas do rebatimento dos próprios
módulos que compõem o plano.
Apesar da irreversível tendência da abstração geométrica, em romper com
a literalidade da profundidade linear, seja pela resistência em sucumbir a uma
quase inevitável relação figura-fundo, seja pela negativa em representar um plano
perpendicular ao plano da tela, as arestas diagonais comuns aos módulos brancos
que integram o plano construído por Lygia Clark aludem a uma tridimensionalidade percebida em perspectiva cavaleira, construção geométrica na qual a
volumetria ortogonal é constituída por um plano frontal em projeção ortogonal
(em elevação) e por planos laterais e superior, cujas arestas, perpendiculares ao
plano frontal – e, consequentemente, ao plano da tela –, são definidas por linhas
inclinadas a 45°, paralelas entre si.
A construção da profundidade no plano pelas perspectivas cavaleira ou
isométrica não desdobra a histórica tentativa de representação da profundidade,
que codifica a experiência ótica com expedientes gráficos, como linha do horizonte, pontos de fuga central e laterais e planos convergentes, mas consiste na
construção, no plano, de um espaço abstrato, mental. A tentativa de reprodução
de uma realidade visível dá lugar ao projeto de uma realidade futura.
A construção do plano moderno: Planos em Superfícies Moduladas nº 2 ...
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A flutuação da superfície demonstra a relutância em corporificar-se no plano
opaco e ainda artesanal da arquitetura, estratégia oposta ao mural cerâmico, que
consiste no próprio plano da arquitetura. No caso do painel cerâmico, de modo
inverso aos planos de Lygia, a imagem dilui a percepção da modulação das peças
esmaltadas, a partir da constituição de um campo inteiro, que preenche toda a
extensão da parede, mantendo o olho em um travelling ininterrupto, sem fixarse em pontos específicos, seja no suposto cubismo local de Portinari, seja na
geometria de extração construtiva de Athos Bulcão. Nesses casos, necessariamente, a fresta é preenchida com um rejunte, que minimiza a modulação ortogonal
dos azulejos.
Segue trecho em que Lygia Clark aborda os procedimentos que intentam a
continuidade espacial entre a obra de arte e a arquitetura:
Quando rompo a moldura, destruo esse espaço estanque, reestabelecendo a
continuidade entre o espaço geral do mundo e meu fragmento de superfície.
O espaço pictórico se evapora, a superfície do que era “quadro” cai ao nível
das coisas comuns e tanto faz agora essa superfície como a daquela porta ou
daquela parede. Na verdade, liberto o espaço preso no quadro, liberto minha
visão e, como se abrisse a garrafa que continha o Gênio da fábula, vejo-o encher
o quarto, deslizar pelas superfícies mais contraditórias, fugir pela janela para
além dos edifícios e das montanhas e ocupar o mundo. É a redescoberta do
espaço. (CLARK apud GULLAR, 1999: 272, grifo nosso.)
Apesar de herdeira de uma intenção construtiva motivada pelo desejo por
uma espacialidade unitária, que torna indistintos os limites entre a obra de arte e
a arquitetura, os planos em superfícies moduladas de Lygia Clark não contêm
em si o condicionamento à ordenação e ao controle que rege as ações suprematistas e neoplasticistas. Ao contrário, apesar de precisamente encaixados, seus
planos guardam a perspectiva de dissolvência e dispersão, que põe em xeque o
pressuposto construtivo de uma espacialidade universal. Esse talvez seja o ponto
de descolamento da arte brasileira com relação à referência das vanguardas históricas, e marque com precisão a dimensão emancipatória neoconcreta.
Ao “deslizar pelas superfícies mais contraditórias”, a superfície deixa de
ser modulada, pois dissocia-se do conjunto e transforma-se em unidade autônoma, como se a arte pudesse aderir, quase que incognitamente, à vida, sem a
pretensão moral de transformá-la.
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Rodrigo Queiroz
Referências bibliográficas
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AMARAL, Aracy (org.). Arte Construtiva no Brasil – Construtive art in Brazil
(Coleção Adolpho Leirner). São Paulo: Companhia Melhoramentos; São Paulo:
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BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo. São Paulo: Cosac Naify, 1999.
GULLAR, Ferreira. Etapas da Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Revan,
1999.
MAMMÌ, Lorenzo. O que resta. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
OVERY, Paul. De Stij. Londres: Thames and Hudson, 1997.
TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
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Mario Schenberg e a Bienal:
júri nacional de seleção
ANA PAULA CATTAI PISMEL*
Resumo: Mario Schenberg (Recife PE 1914 – São Paulo SP 1990), conhecido
internacionalmente por seu trabalho como físico teórico, foi também militante
político e crítico de arte. Nos anos de 1960, tornou-se teórico do Novo Realismo
e sua perspectiva influenciou artistas importantes nos desdobramentos das
Vanguardas Brasileiras como Lygia Clark, Maurício Nogueira Lima e Hélio
Oiticica. Este artigo visa tratar da participação do crítico no Júri Nacional de
Seleção das Bienais de São Paulo ocorridas em 1965, 1967 e 1969, tendo em
vista elementos como o contexto político do período (ditadura militar) e a
estrutura de organização do evento, que vinha sofrendo mudanças.
Palavras-chave: Mario Schenberg. Bienal de São Paulo. Crítica de arte. 1960 e
1970.
Mario Schenberg and the Biennial: the National Jury Selection
Abstract: Mario Schenberg (Recife PE 1914 - São Paulo SP 1990), known
internationally for his work as a theoretical physicist, was also a political activist
and art critic. In the 1960s, became a theorist of the New Realism and important
artists influenced your perspective of Brazilian Vanguards, such as Lygia Clark,
* Bacharel em Filosofia (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP);
mestre em Estética e História da Arte (Programa Interunidades de Pós-Graduação em
Estética e História da Arte – USP) e doutoranda pelo mesmo programa. Sua pesquisa se
intitula Mario Schenberg e as Bienais de São Paulo, está na linha de pesquisa “teoria e
crítica de arte”, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Elza Ajzenberg.
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Maurício Nogueira Lima and Hélio Oiticica. This article aims to address the critical
participation of the National Jury Selection of the São Paulo Biennials occurred in
1965, 1967 and 1969, based on the political context of the time (military
dictatorship) and the organizational structure of the event, which was undergoing
changes.
Keywords: Mario Schenberg. São Paulo Biennial; Art Criticism. 1960 and 1970.
Introdução
Para Mario Schenberg (1914-1990), cuja esfera de atuação orbitava entre
sua atividade acadêmica como docente na então FFCL (Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP), a militância política e a crítica de arte, os anos de
1960 foram intensos e repletos de acontecimentos marcantes. Comunista
assumido (KINOSHITA, s. d.), Schenberg também teve que lidar com a perseguição
política, decorrente da instauração do Regime Militar, em 1964. As complicações
advindas do momento político de então prejudicaram também o exercício de suas
atividades enquanto pesquisador e docente na Universidade de São Paulo.
Nesse momento de agitação política e cultural, Mario Schenberg voltou a
se envolver com a organização das Bienais, dessa vez como membro do Júri
Nacional de Seleção (em 1961, na VI Bienal, havia sido responsável pela
retrospectiva de Alfredo Volpi). Participou, assim, da organização da VIII, IX e
X bienais de Arte de São Paulo (em 1965, 1967 e 1969), para a qual foi eleito
pelos próprios artistas (AGUILAR, 1996).
Com o objetivo de analisar a participação de Mario Schenberg na organização das Bienais de São Paulo, este artigo mobiliza a documentação
depositada no Acervo do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa
em Arte – ECA/USP, bem como no Arquivo Histórico Wanda Svevo, sediado
na Fundação Bienal. O presente texto faz parte da dissertação de mestrado
apresentada em 2013, intitulada Schenberg: em busca de um Novo Humanismo,
que analisou a atuação do crítico nas décadas de 1960 e 1970. Figura a seguir,
especificamente, a atuação do crítico enquanto membro do Júri Nacional de
Seleção, para o qual foi eleito pelos artistas, nas edições do evento dos anos de
1965, 1967 e 1969. Nesse contexto, destaca-se a polêmica em torno da aceitação
do cientista conhecido internacionalmente enquanto crítico de arte.
Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção
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Júri de Seleção da Bienal de São Paulo
Cabe dizer que até o ano de 1969 quando, por força do Ato Institucional nº
5, foi aposentado compulsoriamente de seu cargo na Universidade de São Paulo,
Mario Schenberg conciliava a atuação como cientista, a militância política e a
crítica de arte. Somente após esse afastamento, passou a ter nessa última sua
principal atividade (OLIVEIRA, 2010).1
Ao integrar o Júri de Seleção da VIII Bienal, Mario Schenberg estava enfrentando diversos processos judiciais. Foi em meio a essa tensão que o crítico
participou, no decorrer de maio de 1965, de algumas das reuniões para selecionar
as obras que participariam da edição daquele ano.
Segundo o regulamento da VIII Bienal, o Júri de Seleção era composto por
cinco membros, todos escolhidos pelos artistas. Tinham direito a voto apenas
aqueles que já haviam participado de pelo menos uma bienal anterior. Cada um
deles indicava dois nomes no ato de sua inscrição que, depositados numa urna,
aguardavam o dia marcado para apuração (FUNDAÇÃO BIENAL, 1965).
Em 27 de abril de 1965, foram conhecidos os nomes dos representantes dos
artistas: José Geraldo Vieira (71 votos), Walter Zanini (64), Geraldo Ferraz (38),
Fernando Lemos (33) e Mário Pedrosa (31). Em seguida, Sérgio Milliet (25) e
Mario Schenberg (22) ficaram como suplentes (ZANINI, 1965). Em 30 de abril,
Walter Zanini escreve à Diná Lopes Coelho, secretária da Fundação Bienal,
informando que viajaria para o Japão, a fim de participar do Júri de Seleção da
Bienal de Tóquio, e não conseguiria retornar ao país a tempo de integrar o júri
brasileiro.2
Conforme o regulamento, o crítico Sérgio Milliet foi chamado para substituílo, mas pôde comparecer apenas à primeira reunião do Júri, no Museu de Arte
1. A VIII Bienal de Arte de São Paulo, formalmente desvinculada do Museu de
Arte Moderna, esteve aberta entre 4 de setembro e 28 de novembro de 1965. A mostra
foi organizada pelas assessorias de artes plásticas (Geraldo Ferraz, Sérgio Milliet e Walter
Zanini), teatro (Aldo Calvo e Sábato Magaldi), arquitetura (Oswaldo Corrêa Gonçalves)
e artes gráficas (Jannar Murtinho Ribeiro). Em seus quase três meses de duração, foram
apresentadas ao público 653 artistas de 54 países, totalizando 4.054 obras (FUNDAÇÃO
BIENAL, 2013).
2. Carta de Walter Zanini à Diná Coelho Lopes, de 30 de abril de 1961 (Arquivo
Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal).
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Moderna do Rio de Janeiro, em 6 de maio. Nas reuniões posteriores, Mario
Schenberg esteve presente em seu lugar.3 Tanto na ata final do Júri Nacional de
Seleção, quanto em nota divulgada à imprensa ao final dos trabalhos, é o nome
de Mario Schenberg que consta no lugar do de Walter Zanini, como membro
eleito pelos artistas.4
Uma vez integrando o Júri, Mario Schenberg não hesitou em defender os
artistas com os quais mantinha contato, notadamente aqueles que estavam
alinhados com tendências como as novas figurações, a saber, José Roberto
Aguilar, Cláudio Tozzi e Rubens Guerchmann, entre outros; e a arte primitiva,
como Waldomiro de Deus. Após a finalização dos trabalhos de seleção das obras
para a VIII Bienal, Aracy Amaral traça um perfil das interações dos membros
do Júri, na qual aponta Mário Pedrosa e Mario Schenberg como maiores definidores das escolhas feitas pelo grupo, no interior das discussões “tão comuns nesse
tipo de Seleção”.5
3. Sérgio Milliet teve de ser substituído às vésperas de viajar ao Rio de Janeiro para
o prosseguimento dos trabalhos do Júri devido a um mal estar. (Schenberg em Vez de
Milliet. Correio da Manhã – Estado da Guanabara, 07/05/1965).
4. Em 19 de Maio, Francisco Matarazzo Sobrinho envia a Vasco Mariz, chefe da
divisão de difusão cultural da Fundação Bienal, a lista de artistas que foram aceitos na
oitava edição do evento, na qual constava a composição final do Júri de Seleção (Arquivo
Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal).
5. “O trabalho do Júri, além de difícil, duro e intenso, foi marcado por discussões
tão comuns nesse tipo de seleção. Mario Pedrosa e Mario Schenberg, ao que tudo indica,
definiam as escolhas, parece ter havido pouca identidade de pontos de vista entre Geraldo
Ferraz e Fernando Lemos. José Geraldo Vieira, como sempre, atuou como poder moderador” (AMARAL, Aracy. Terminada a Seleção da Bienal. A Gazeta, São Paulo – Capital,
18/05/1965). O crítico, contudo, não pôde comparecer à inauguração da VIII Bienal de
São Paulo, em 4 de setembro, pois estava preso. Nessa ocasião, os artistas manifestaram
seu apoio: na inauguração da VIII Bienal, após a cerimônia de premiação, os artistas Maria
Bonomi e Sérgio Camargo (ambos premiados naquela edição) foram ao encontro do
presidente da república, o militar Castelo Branco, e entregaram a ele uma carta que ficou
conhecida como Manifesto dos 4. Esse documento, assinado por vários artistas, continha
o pedido para que o presidente intercedesse em favor de Mario Schenberg, Florestan
Fernandes, João Cruz Costa e Fernando Henrique Cardoso, docentes da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
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Dois anos mais tarde, o Júri de Seleção da IX Bienal de São Paulo foi
constituído por dois nomes indicados pela Diretoria Executiva da Fundação
Bienal, dois escolhidos pelos artistas por meio de votação e um quinto escolhido
por esses quatro. Novamente, o direito a voto cabia apenas aos artistas que já
tinham sido aceitos em pelo menos uma Bienal anterior. Cada um deles deveria
indicar, no ato da inscrição, dois nomes de críticos de arte, em ficha fornecida
pela Bienal (FUNDAÇÃO BIENAL, 1967). A apuração não sofreu mudanças em
relação à edição anterior. Assim, o corpo de jurados foi integrado por: José
Geraldo Vieira e Mario Schenberg (eleitos pelos artistas com 41 e 32 votos
respectivamente),6 Geraldo Ferraz e Jayme Maurício (indicados pela Fundação
bienal), Clarival Valadares (escolhido pelos quatro).7
Momento final de um período de efervescência cultural no país, 1967 foi o
ano de Terra em Transe, O Rei da vela, da exposição Nova Objetividade
Brasileira, assim como de Tropicália, o ambiente de Hélio Oiticica e da explosão
do tropicalismo na música, manifestações que marcaram os anos de 1960
(FAVARETO, 2001). Cinema, teatro, música e artes plásticas manifestavam o anseio
de dar uma contribuição original à esfera da cultura, seja em nível nacional, seja
internacional. O crescendum dessa movimentação, iniciado na década de 1950
e perturbado com o golpe de 1964, seguiria até a decretação do AI-5, quatro anos
depois.
Diferente do regulamento da edição anterior, no qual eram elegíveis não
apenas críticos de arte, mas também artistas (Regulamento da VIII Bienal, Art.
5º), na IX Bienal, apenas críticos de arte poderiam ser votados para integrar o
Júri de Seleção (Regulamento da IX Bienal, Art. 4º). Na edição seguinte, em
1969, seria ainda mais enfatizada a exigência de que todos os membros do Júri
deveriam ser críticos de arte, na medida em que essa informação foi destacada
num subitem exclusivo a esse respeito (conforme o Regulamento da X Bienal,
6. MAURÍCIO, Jayme. Bienal: eleitos dos artistas. Correio da Manhã, 06/06/67.
7. A IX Bienal teve lugar entre 22 de setembro de 1967 e adentrou em 1968, indo
até 8 de janeiro. Foi uma edição de grandes proporções, trazendo 956 artistas de 63 países,
somando 4.338 obras expostas. Tais dimensões, sobretudo relativas à representação
brasileira (366 artistas, entre os quais contavam 253 estreantes), foram um dos aspectos
criticados nessa edição. Critica essa, que já era tecida desde as primeiras bienais.
FUNDAÇÃO BIENAL, 2013).
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Capítulo II, item V, subitem a) (FUNDAÇÃO BIENAL, 1965, p. 20; FUNDAÇÃO
BIENAL, 1967, s.p.; FUNDAÇÃO BIENAL, 1969, p. 449).
Se por um lado, as mudanças na conformação do Júri de Seleção, expressas
nas sucessivas alterações dos regulamentos, enfatizam a posição de que as obras
inscritas pelos artistas seriam julgadas com mais propriedade por críticos de arte
que por outros artistas; por outro, em nenhum momento a Fundação Bienal define
o que entende por crítico de arte.
É a partir dessa indefinição que surge a polêmica em torno da aceitação de
Mario Schenberg como membro do Júri de Seleção nas edições das quais
participou, pois apesar de ser considerado como tal pelos artistas, seu nome foi
recebido com dúvidas pela Fundação Bienal. Na ocasião, Luíz Rodrigues Alves,
então diretor da Bienal, fez restrições à indicação do Professor Schenberg, devido
ao dato de ele não assinar nenhuma coluna em jornal e, também, por conta de
sua situação política, posição que desmentiu logo em seguida, tendo sido
respeitado o resultado da eleição (SCHENBERG FICA, 1997).
De fato, o incidente com relação à eleição de Mario Schenberg trouxe à tona
essa demanda que há tempos era feita por artistas e críticos. A tentativa de definir
como crítico de arte o profissional que mantinha colunas em jornais, contudo,
não pareceu ter caído muito bem nesse caso, conforme ficou evidente pelo
posicionamento dos artistas presentes na apuração dos votos, que saíram em
defesa do crítico (ARTISTAS A FAVOR DO CRÍTICO, s. d.). Sobre isso, o próprio
Schenberg (SCHENBERG, 1995, p. 142) diria anos mais tarde:
Eu, que já tinha organizado a primeira exposição de Volpi em 1944, organizei
em 61 a sua primeira retrospectiva. Depois disso, começaram a votar para que
eu fizesse parte dos júris de seleção das Bienais. O primeiro júri que integrei
foi em 1965, depois 67 e 69. E, a partir daí, a Bienal me aplica o Ato 75. Mas
antes disso, já em 67, ganhei a eleição por maioria e quiseram me impugnar,
alegando que eu não era crítico de arte, que não escrevia em jornal, coisa de
que, aliás, nunca gostei. Sempre preferi escrever esporadicamente. Mas,
finalmente, tiveram que recuar, porque fui aceito pela Associação dos Críticos
de Arte. Também a Associação de Artistas Plásticos firmou posição a meu favor.
A participação de Schenberg nas Bienais se deu por força de sua atuação
junto aos artistas, os quais confiavam em sua atuação e acreditavam que ele
poderia defender seus interesses junto ao júri do evento (OLIVEIRA, 2010). Da
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parte da maioria de outros críticos, ele se deparava com o preconceito, em parte
devido à sua formação e metodologia peculiar, em parte devido ao seu
posicionamento político.
Segundo afirma a pesquisadora Alecsandra Matias de Oliveira, em
Schenberg: Crítica e Criação, os lugares de divulgação da arte, para o crítico,
eram os meios especializados, como galerias, catálogos e álbuns de artistas, além
do ambiente universitário. Schenberg não tinha acesso a jornais e revistas: sendo
físico, era objeto de preconceito por parte dos demais críticos de arte, geralmente
literatos ou ligados às ciências humanas. Além disso, se outros críticos de arte
mantinham seu posicionamento político de modo a não prejudicar seu relacionamento com a imprensa, as ideias de Schenberg, em sua especificidade, não
eram vistas como passíveis de veiculação periódica, pois o físico era um
“incontrolável marxista, mesmo para os colegas de doutrina” (2010: p. 83-4).
Retomando: um dos motivos para a tentativa de impugnar sua participação
no Júri das bienais foi a alegação de que ele não escrevia em jornais. É possível
constatar que Mario Schenberg não concordava com esse requisito, pois não o
via como condição necessária (nem suficiente) para o exercício da crítica de arte.
Se o que conferia a alguém a competência para tal atividade era a formação teórica
adequada, então, era perfeitamente possível que houvesse críticos que não
escrevessem em jornais e, principalmente, que houvesse pessoas que escrevessem
em jornais sem ter a competência para tanto. A esse respeito, Schenberg afirmou
o seguinte:
Aqui no Brasil, as exigências em relação ao crítico de arte são muito pequenas,
de modo que qualquer pessoa que tenha algumas ideias sobre arte, algumas
experiências de arte, já é considerado um crítico. Mas acho necessário superar
esse período, eu acho necessário haver uma crítica de arte baseada em outros
critérios que não seja simplesmente o de escrever em jornais. (2011, p. 155)
Schenberg não se considerava um crítico de arte, pois não julgava ter o
embasamento necessário a tal atividade, uma vez que seus estudos sobre Filosofia
e Teoria da Arte tinham se dado esporadicamente, por meio de leituras motivadas
pela curiosidade: “Nunca me coloquei como crítico de arte, outros é que disseram
que eu era [...]” (SCHENBERG, 2011, p. 154). Enquanto acadêmico, dava muita
importância à formação teórica requerida para tanto e, como sua aproximação
com a arte foi menos disciplinada do que com a ciência, não considerava ter o
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embasamento que julgava necessário ao exercício da crítica de arte (GOLDFARB,
1994).
É claro que nem todos os críticos da época se enquadravam na objeção feita
por Schenberg à ideia pré-concebida de que manter colunas em jornais fazia de
alguém crítico de arte. Mas pode-se ver que, em seu entender, essa concepção
corrente do crítico de arte era prejudicial ao desenvolvimento da arte no país.
No fim de 1968, sobreveio o endurecimento da censura. Tendo repercutido
em diversas instituições públicas federais, estaduais e municipais, o decreto
atingiu, no início do ano seguinte, vários professores e funcionários da Universidade de São Paulo, que foram demitidos ou aposentados compulsoriamente,
em abril de 1969 (meses depois de o A I – 5 ter sido decretado, em 13 de dezembro
de 1968), restringindo atividades políticas e manifestações culturais (FOLHA DE
S. PAULO, 2011). Entre eles, estava o Professor Mario Schenberg, que, a partir
de então, passou a dedicar mais tempo à crítica de arte, uma vez que foi impedido
até mesmo de frequentar bibliotecas e ambientes universitários.
Marcada pelo boicote internacional, ao qual aderiram artistas, críticos de
arte e intelectuais, todas as fazes da realização da X Bienal enfrentaram
dificuldades que, com maior ou menor êxito, foram contornadas pela Comissão
Técnica e pelo Júri de Seleção, que organizou várias salas especiais, além da
sala geral da representação brasileira.8
Toda a segmentação cultural do país ressentia-se da censura que, não
ocorrendo apenas nas bienais, alcançava diversas outras exposições, das quais
eram retiradas quaisquer obras consideradas ofensivas ao regime militar. No
mesmo ano, ocorreu a invasão e o fechamento da exposição que apresentaria os
trabalhos dos artistas que participariam da VI Bienal dos Jovens de Paris (no
MAM do Rio de Janeiro), antes mesmo de sua inauguração (AMARANTE, 1989).
Essa foi a causa imediata do movimento de boicote à X Bienal de São Paulo,
catalisando a revolta perante a situação incômoda em que se encontrava o país
8. A mostra teve lugar entre 27 de setembro e 14 de dezembro de 1969. A comissão
de técnica de artes plásticas foi integrada por Aracy Amaral, Edyla Mangabeira Unger,
Frederico Nasser, Mário Barata, Waldemar Cordeiro e Wolfgang Pfeiffer9. Participaram
da X Bienal de São Paulo 446 artistas provenientes de 53 países, exibindo 2.572 obras.
Diante do movimento internacional de boicote à Bienal, o número de artistas participantes
caiu pela metade, se comparado à edição anterior. Esse período de baixa da bienal se
agravaria ainda mais no ano seguinte.
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por parte de artistas, críticos e intelectuais. Some-se a isso o fato de que, também
nessa mostra, a retirada de inúmeras obras pela polícia antes mesmo de sua
inauguração, não tendo despertado protestos da Fundação Bienal, pôs fim à
esperança de que ela se tornasse um polo de resistência ao autoritarismo
(AMARANTE, 1989, p. 182).
Outro aspecto dessa situação era o fato de que, sendo a Fundação Bienal
subvencionada por verbas estaduais e municipais, dependia do governo para levar
a cabo suas atividades. Francisco Alambert & Polyana Canhête (2014) observam
que isso levava a Bienal a ser vista como evento oficial e, portanto, aderida ao
status quo do regime militar. Nesse sentido, ao se recusarem a participar dela,
artistas, críticos de arte e intelectuais endereçavam ao governo instaurado no país
sua manifestação de repúdio.
Mário Pedrosa, então presidente da Associação Brasileira de Críticos de
Arte (ABCA), foi quem deu início ao movimento pelo boicote, protestando
violentamente “contra a censura do Itamaraty às obras selecionadas, em exposição
no MAM do Rio, para a VI Bienal de Paris” (PEDROSA, 1995, p. 360). No exterior,
foi o crítico Pierre Restany o propagador dessa bandeira: organizou em 16 de
junho de 1969, no Museu de Arte Moderna de Paris, uma reunião na qual artistas
e intelectuais elaboraram uma petição de boicote, com cerca de 300 assinaturas,
enviada a Ciccillo Matarazzo (ALAMBERT & CANHÊTE, 2004, p. 124-25).
Artistas e intelectuais se dividiam, basicamente, em duas posições: aderir
ou não ao boicote, com as implicações decorrentes disso, a saber: dar aval ou
protestar contra o sistema político de forças que amparava a Bienal (FUNDAÇÃO
BIENAL, 2001). Nesse contexto, apesar de assumidamente comunista, Mario
Schenberg optou por levar adiante sua função de jurado na seleção das obras
daquela edição. O crítico não apenas se posicionou contra o boicote, como organizou a sala Novos Valores, assinando o texto de apresentação no catálogo da
mostra (AMARANTE, 1989; FUNDAÇÃO BIENAL, 1969, p. 445).
Mas não se pode dizer que, ao participar da Bienal e levar adiante sua
colaboração no Júri de Seleção e organização geral, o crítico estivesse dando
seu aval ao estado de coisas. Leonor Amarante destaca que seu posicionamento
era diferente: dar continuidade a sua função no Júri de Seleção significava ocupar
um espaço que, apesar de todos os problemas e críticas com que tinha de lidar,
ainda era o foro mais privilegiado para as Artes Plásticas no país.
Boicotar a Bienal, nesse sentido, significaria deixar de defender os interesses
dos artistas, bem como seu espaço na mostra internacional. Por isso, o crítico
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não via sua participação como adesão aos desmandos do regime totalitário, mas
como uma forma de protesto, na medida em que marcava sua posição.9
Com relação à formação do Júri de Seleção da X Bienal, é preciso acrescentar que não foi isenta de polêmicas. A Associação Brasileira de Críticos de
Arte (ABCA) e a Associação Internacional de Artistas Plásticos (AIAP) reivindicavam representação nesse Júri, bem como na Assessoria Técnica e nas
comissões que realizariam a organização da mostra. Em Janeiro de 1969, as duas
associações recusam o convite da Fundação Bienal, pois entendiam que não fazia
sentido “terem representantes no certame a se realizar em setembro próximo
sujeitos a acatarem as decisões da Fundação Bienal, que terá sempre maioria de
membros e, portanto, de votos” (FOLHA DE S. PAULO, 1969).
Além disso, as decisões da Assessoria Técnica teriam de passar pela aprovação da Diretoria da Bienal, que não era formada por pessoas conhecedoras de
arte. Essa era, aliás, uma crítica à organização das bienais que vinha desde a
extinção da função de Diretor Geral, a partir da VII Bienal. Diante desses aspectos, as suas associações consideravam muito difícil o diálogo com a Bienal. Finalmente, dado o convite tardio e o fato de que todas as decisões já haviam sido
tomadas, não era possível “assumir a responsabilidade de uma programação já
estabelecida”, apoiando-a “como entidades especializadas”.10
Já no que tange ao Júri de Seleção, o convite foi aceito, mas não sem restrições. Em 2 de maio do mesmo ano, a Fundação Bienal convida a AIAP a enviar
uma lista com cinco nomes eleitos por seus quadros sociais, a fim de escolher
dentre as sugestões um representante para integrá-lo.11 A resposta, contudo, não
foi a lista solicitada, mas um único nome, conforme se lê:
9. O texto de Amarante (1989) foi a única fonte que permitiu situar a posição de
Mario Schenberg nessa ocasião. É possível que, no futuro, a continuidade das pesquisas
sobre sua atuação nas bienais traga à luz outras fontes, inclusive primárias, a esse respeito.
Agradecimentos são devidos a Alecsandra Matias de Oliveira, Palyana Canhête e
Francisco Alambert, pela contribuição em relação a esse ponto.
10. Resposta oficial enviada a Francisco Matarazzo Sobrinho por Quirino
Campofiorito (1º Vice-Presidente da AICA) e Mirian Quiaverini (Presidente da AIAP),
correspondência datada de 31 de Janeiro de 1969. Arquivo Histórico Wanda Svevo,
Fundação Bienal.
11. Carta de Francisco Matarazzo Sobrinho a Maurício Nogueira Lima (Presidente
da AIAP), datada de 2 de maio de 1969. Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação
Bienal.
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[...] nossa entidade, atendendo, solícita, ao pedido da Fundação Bienal,
promoveu eleições livres em São Paulo e no Rio par a indicação de um membro
do Júri de Seleção, convocando todos os artistas interessados, mesmo aqueles
que não pertencem aos seus quadros sociais. Infelizmente não estamos
aparelhados para promover eleições em outras cidades brasileiras. O resultado,
portanto, não tem valor nacional. [...] Da nossa consulta, resultou como o mais
votado o crítico de arte Mário Schenberg.12
Constata-se que, também na Bienal de 1969, Mario Schenberg integrou o
Júri com o apoio dos artistas, mesmo que não tenha havido uma eleição organizada pela Fundação Bienal. Maurício Nogueira Lima, então presidente da AIAP,
lembra, ainda, que a associação defendeu, quando da elaboração do regulamento
da X Bienal, a posição de que a eleição deveria ser realizada diretamente por
essa instituição. Isso foi feito, segundo o artista, por meio de um representante
na Assessoria, o que sugere que, após a recusa inicial, a AIAP aceitou a representação nessa comissão, possivelmente após negociação a respeito dos pontos
levantados.
Desse modo, integraram o Júri de Seleção os seguintes nomes: Mark
Bercowitz (indicado pela ABCA), Mario Schenberg (pela AIAP), Edyla
Mangabeira Unger, Oswaldo de Andrade Filho e Walmir Ayala (pela Fundação
Bienal). Segundo o regulamento da X Bienal, caberia ao Júri convidar 25 artistas
e escolher, entre os inscritos, outros 25. No que diz respeito às salas especiais,
os membros entendiam que os artistas não seriam escolhidos entre os convidados
regulamentares.13
A partir da análise das atas das reuniões do Júri de Seleção disponíveis no
Arquivo Histórico Wanda Svevo, é possível ver que Mario Schenberg foi muito
participativo nas discussões e manteve-se sempre a favor dos artistas, na medida
em que discordava de qualquer sugestão de diminuição do número da representação brasileira.
12. Carta de Maurício Nogueira Lima (Presidente da AIAP) a Francisco Matarazzo
Sobrinho, datada de 16 de maio de 1969, p. 1 (foi mantida a grafia original). Arquivo
Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal.
13. Nota divulgada à imprensa pela Fundação Bienal, em 28 de maio de 1969,
intitulada: “Júri da X Bienal convida vinte e cinco artistas”. Arquivo Histórico Wanda
Svevo, Fundação Bienal. Cf. também FUNDAÇÃO BIENAL, 1969, p. 449.
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Considerações finais
Nas Bienais de São Paulo, o crítico se posicionou sempre a favor dos artistas,
defendendo a abertura do certame àqueles em começo de carreira, bem como
aos que encontravam novos caminhos nas tendências nascentes. Diante das
mudanças na configuração da representação brasileira, que visavam maior
qualidade e menor número de participantes, Schenberg foi contrário a qualquer
ação que pudesse diminuir o número de artistas no certame.
O crítico defendeu, ainda, a abertura da Bienal às novas formas de arte que
surgiram no período, como a arte de participação, as proposições e os objetos.
Por sua atitude corajosa e firme em relação aos artistas, o Professor Schenberg
foi visto por eles como alguém que poderia defender seus interesses perante a
organização do evento.
Por fim, considerou-se apropriado pontuar que muitos aspectos da
participação de Mario Schenberg nas Bienais de São Paulo, não puderam ser
aprofundados neste estudo e, nesse sentido, constituem caminhos passíveis de
exploração em estudos posteriores.
Referências bibliográficas
AGUILAR, José Roberto. O mundo de Mario Schenberg. São Paulo: Casa das Rosas,
1996.
AIAP e ABCA recusam convite da Bienal. Folha de S, Paulo, 1o de fevereiro de 1969.
ALAMBERT, Francisco & Polyana CANHÊTE. Bienais de São Paulo: da era do
museu à era dos curadores. São Paulo: Boitempo, 2004.
AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo: 1951 a 1987. São Paulo: Projeto,
1989.
ARTISTAS a favor do crítico, s/p, s/d, sem identificação de jornal.
FAVARETTO, Celso. A outra América. Folha de S. Paulo, 09 de junho de 2001.
FOLHA registrou trajetória de FHC, da USP à Presidência. Jornal Folha de S, Paulo,
18 de junho de 2011.
FUNDAÇÃO BIENAL. Bienal a Bienal. Disponível em: http://www.bienal.org.br/
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Acesso em 15/01/2013.
Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção
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GOLDFARB, José Luiz. Voar também é com os Homens. São Paulo: EDUSP, 1994.
KINOSHITA, Dina. A Política para Mario Schenberg, s.p. (texto digitado – Arquivo
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OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Schenberg: crítica e criação. São Paulo: EDUSP,
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PEDROSA, Mário. Política das Artes, (org.) Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo:
EDUSP, 1995.
SCHENBERG, Mario. Entrevista com Mário Schenberg. (Publicada originalmente
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ZANINI, Ivo. Indicado o Júri da VIII Bienal. Folha de S. Paulo – Ilustrada (São Paulo
– Capital). 27/04/1965.
| 123
Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise
pictórica renascentista
GUILHERME WEFFORT RODOLFO*
“Compreender a fala é reconstruir a imagem
a partir das peças desmontadas”
Arnhein1
Resumo: Existem muitos procedimentos de análise para uma obra de arte. O
processo analítico tende a auxiliar o observador sobre os processos, as técnicas,
os temas, estilos, abordagens, enfim, auxiliam a observação estética de uma peça.
Entretanto, uma análise não depende apenas de termos complexos e métodos
profundos, mas também de intuição e percepção do observador sobre o objeto
artístico. O percurso que atende a intuição e a percepção poderá ser apresentado
pela diferenciação de conceitos entre duas áreas geradoras de análises artísticas,
a linguística e a fenomenologia, a fim de encontrar o eixo comum orientador
de análises. O objeto escolhido é a pintura do Renascimento. Embora grande e
volumosa, este trabalho não pretende planificá-la em resultados, o que seria,
além de um erro, impossível, mas de forma simples, pretende apontar estruturas
reconhecíveis que possam indicar as conjunções conceituais entre os dois campos
do conhecimento analíticos.
Palavras-chave: Linguística. Fenomenologia. Análise. Intuição. Percepção.
* Mestre em Estética e História da Arte pelo Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte – PGEHA/USP; é Doutorando do Programa
de Pós-Graduação em Linguística do Departamento de Linguística da Universidade de
São Paulo – FFLCH/DL/USP; é bolsista CAPES.
1. ARHNEIM, Rudolf. Intuição e intelecto na arte. São Paulo: Martins Fontes,
2004; p. 97.
124
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Guilherme Weffort Rodolfo
Phenomenon-linguistic analysis: elements of pictorial analysis of
Renaissance
Abstract: There are many analysis procedures for a work of art. The analytical process
tends to assist the observer about the processes, techniques, themes, styles, approaches,
in order, help the aesthetics watching for an art object. An analysis does not rely on
complex terms and profound methods, but intuition and perception of the observer
on the artistic object. The route which meets the intuition and perception may be
submitted by differentiating between two concepts generating areas of artistic
analysis, linguistics and phenomenology in order to find the common axis guiding
analysis. The object chosen is a Renaissance painting. While big and bulky, this
work does not intend to plan for results, which would be in addition to an error,
impossible, but simply form, want to point out recognizable structures that may
indicate the conceptual conjunctions between the two fields of analytical knowledge.
Keywords: Linguistics. Phenomenology. Analysis. Intuition. Perception.
Ao contrário do que se acredita, uma análise de obras artísticas não tende a
diminuição de estesias ou essências fundamentais da arte. Na verdade, esta
atividade em constante utilização passa por processos e transformações para
auxiliar observadores da arte nos seus vários níveis de conhecimento e aplicação.
As mudanças estão nas utilizações de paradigmas conceituais que circundam o
objeto arte e, invariavelmente, dependem de intuição ligada à arte e à percepção
artística. Mesmo correndo o risco de parecer simplista em indicar estas duas
esferas de pensamento, aviso que estes são dois polos de densa massa e grande
amplitude aos argumentos de uma análise. Aponto ainda que ambas buscam
elementos simbólicos estruturais formadores de leituras, em nosso caso, de figurativas planares com efeito de realidade, ou ainda, da pintura do Renascimento.
A escolha desse objeto está vinculada à facilidade em encontrar descrições desta
arte plástica por pesquisadores, além de manter um conhecimento em nível geral
a quase uma totalidade de leitores de arte. Como se sabe, em linhas amplas e
gerais, o período renascentista apresenta uma constante preocupação com a
representação do “real” em temas mítico-religiosos. As pinturas acabaram por
criar símbolos permanentes que foram reutilizados por gerações de pintores.
Manteremos nossa ótica sobre estes símbolos que, via intuição ou percepção,
comporão elementos em uma análise.
Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica renascentista
| 125
As primeiras indagações a que devemos sobrepor passam em torno dos eixos
de sentido de informação e comunicação do período. Ou seja, o porquê da
figuração de naturezas idealizadas, de passagens bíblicas, das formas de corpos,
dos elementos no campo da visão dos suportes pintados. Ou ainda, o porquê
destas representações de real serem perpetuadas e compreendidas como tal até
hoje. A primeira descrição segura para compreender a análise fenômeno-linguística para a obra de arte está no próprio contexto em que as pinturas estavam inseridas, pois dizem respeito aos seus “públicos”. Estamos na atividade da arte como
referencial religioso e de forte propagação das ideias erigidas por uma entidade
divulgadora de saberes: a Igreja. Com uma produção abundante, a necessidade
de propagação de conhecimentos sobre a religião produziu um modo de operação
da figuração pintada: uma comunicação direta entre a entidade e seu público.
Esta necessidade já é observada desde o período conhecido como gótico, portanto
anterior ao Renascimento, no qual são desenvolvidos os ornamentos ligados às
escrituras católicas – “A pintura estava, de fato, a caminho de se converter numa
forma de escrita por imagens [...]” (GOMBRICH, 1999, p. 183).2 O processo que
culminou em certa estabilização do estilo pictórico renascentista, além do claro
percurso de amadurecimentos, passou pela observação gradual do “diálogo” das
obras como os públicos. As mudanças podem ser atribuídas às tendências
culturais e, assim como se observa hoje, são meios dirigidos aos observadores
que participam, eles mesmos, do processo de modificação. Um verdadeiro
processo de ação e reação permanentes. No caso da pintura renascentista, as utilizações dos temas míticos da religião foram sendo aceitos e gradualmente
ampliados, firmando uma ideia permanente para a produção (ARNHEIM, 2004,
p. 96). Forma-se, desse modo, uma produção pelos símbolos.
Uma produção que dialoga com seus observadores de forma tão estável e
duradora é, provavelmente, a construção de constantes significações de conteúdos, estes alinhados em um sistema, já estabelecido como no caso da pintura
renascentista, com linhas de hierarquias e usos. Além disso, a produção dessas
pinturas pode ser observada como uma consequência de fenômenos de produção
e aceitação cultural, todos relacionados ao bom desenvolvimento do conteúdo
religioso do momento. Logo, trata-se de uma língua pictórica renascentista provavelmente construída por uma série de fenômenos observáveis, todos ligados
ao vetor da persuasão via elementos simbólicos.
2. Além dos capítulos 12 a 14.
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Guilherme Weffort Rodolfo
Elementos
Em vista da manutenção do diálogo durador entre produção e público,
podemos partir de dois pilares do conhecimento promotores de análise. O
primeiro é a formação de um sistema coletivo do qual todos os viventes ao seu
redor o reconhecem e trocam informações na forma de soma de sinais, em sua
maioria reconhecíveis, e, desde a organização metodológica da linguística
proposta por Saussure, chamado de “língua”.
A língua existe na coletividade sob a forma de uma soma de sinais depositados
em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos
idênticos, são repartidos entre os indivíduos. (SAUSSURE, 2012, p. 51)
Com isso, observa a fala, o mecanismo direto da língua, que contém os
elementos simbólicos do sistema e suas variações de combinações. Cada
indivíduo combina os elementos do sistema para ser compreendido pelo seu
ouvinte, que também reconhece o mesmo sistema. É uma atividade que faz parte
de uma coletividade, mas ela mesma não é coletiva. Ou seja, é de uma coletividade por pertencer ao ambiente social e, com isso, formar ou derivar da cultura
da época, dos conceitos, etc; ao mesmo tempo, cada indivíduo a executa à própria
vontade de emissão de códigos, logo, por ação da subjetividade e, assim,
individual. Certo que cada emissor está envolvido no mesmo universo de códigos,
passamos a formação de estilos próprios pela necessidade de comunicação social.
O mesmo pode ocorrer na pintura e seus pintores de uma mesma época. Dentro
de uma rede de informações e símbolos pertencentes a um sistema estabelecido,
a produção pictórica acompanha uma esfera de símbolos que substitui ou
representa o real. A representatividade na pintura renascentista, no nosso caso,
está baseada em uma formulação da realidade, simbólica, com conceitos de
imagens adotadas pela época. O artista pinta algo que signifique, ou ainda, que
possa gerar significado ao observador: símbolos reconhecíveis e reutilizáveis
formadores de ideias. Estes “significantes” não são obrigatoriamente claros, mas
persistem na esfera de conceitos culturais da época.
O segundo pilar conceitual é o que observa os símbolos em uma pintura,
do renascimento como definimos, entendidos como intencionalmente composto
para que produza efeito sobre seu observador. Sendo o símbolo ou “objeto”, no
caso da fenomenologia assim chamado, a manifestação pictórica é passível de
Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica renascentista
| 127
interpretação e recomposição pelo observador. Para isso, a decifração do objeto
depende de uma dupla ótica: uma da natureza, a qual o objeto, o mesmo proposto
na pintura, ocupa seu lugar sem que seja intencional sua aparição; ou, em uma
ótica fenomenológica, que observa o objeto intencional e como este objeto se
manifesta ligado a um ser (HUSSERL, 2006). A observação do objeto deve passar
por um modo de doação, em nosso caso, elementos dos quadros renascentistas,
e sua estabilidade diante do observador revelará uma consciência, a qual é
chamada de “noema”. Noema é o meio ideal pelo qual a manifestação fenomênica
da realidade se torna possível ao seu observador. O processo torna viável o objeto
à consciência do observador e, assim compreendido, tornando-o presente à
percepção.3 A percepção e a intuição estão presentes nos processos, aqui
apresentadas objetivando aplicá-las apenas à problemática escolhida. Percepção
e intuição são situadas como atos subjetivos, necessários aos processos
fenomenológicos e linguísticos de conhecimento de mundo.
A coletividade torna possível a estrutura, mas a atividade vem do observador. As obras e seus elementos constitutivos podem ser analisados diante do
observador esperto ao meio, ou ao meio do registro da obra, apto a reconhecer
seus traços salientes formadores de elementos analisáveis.
Efeito
A compreensão da pintura diante de seu tempo, ou seja, em uma ótica
diacrônica dos fatos, nos faz intuir os processos de observação do objeto pictórico
no Renascimento. Sabemos, através de estudos e arquivos, como eram as técnicas
e idiossincrasias da época, sem delimitar uma sequência fixa e adotando um amplo
registro. Sabemos que o período é marcado por uma renovação em todas as artes
e em toda a sociedade. A escrita religiosa passa a ser mais amplamente divulgada
e remodela sua forma passando a adotar a descrição e a simbologia como efeitos
literários. A pintura a segue, revelando as imagens contidas nos textos e gerando
imagens relacionadas aos mesmos. No Renascimento, o texto se torna um veículo
3. Em linhas gerais, a fenomenologia segue em um percurso de descobertas sobre
a apreensão dos sentidos no vivido; por questões metodológicas, aqui não darei
continuidade à discussão dessas motivações. A saber, seguem-se os conceitos sobre a
essência do ser geradora do “eidos” intuitivo, juízos, estados, etc.
128
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Guilherme Weffort Rodolfo
de expressões visuais e a pintura um veículo de expressões verbais (ARNHEIM,
2004, p. 97). O processo de observação da pintura, assim como seus elementos,
necessita dos dois métodos descritos, e podem aqui ser observados juntos: um
ideograma pintado, ou gesto reconhecível, é observado como um indicador de
um conceito e este tanto é um significante pronto dentro de um sistema “padrão”
da época, tal qual aponta a linguística; como também é um objeto intencional
manifestado, revelador de uma consciência, um noema, explicado pela fenomenologia. Essa constatação é providencial ao analista que pode intuir suas
características dentro do sistema, portanto, existentes dentro de uma “linguagem
pictórica local”, quanto perceber os símbolos dispostos na obra e relacioná-los
ao período, observado o fenômeno que o cerca. A percepção e a intuição reconhecerão os traços salientes ou distinções existentes nas linhas e formas da obra.
Cada pintor, como indivíduo dotado de expressão e escolhas, transita no mesmo
sistema já observado no período, mas com as diferenças possíveis de suas
subjetividades. Isso construirá uma gama de conteúdos simbólicos, possivelmente
reconhecíveis por suas pequenas diferenças, ou saliências.
Em análise
“Começo a compreender uma filosofia
introduzindo-me na maneira de existir desse
pensamento, reproduzindo seu tom, o
sotaque do filósofo.”
Merleau-Ponty4
A fisionomia coletiva da pintura renascentista permite observar distinções.
Como vimos, os dois métodos buscadores de significação concordam com a
questão da individualidade geradora de símbolos destinadas ao observador da
época, cada vez mais, inserido no próprio contexto. É possível distinguir traços
por suas pequenas diferenças. Os traços salientes podem ter uma imensa variação,
mas não saem do espectro do sistema. Devem conter suas características que os
4. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica renascentista
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tornem possíveis de identificá-los como “reais” e dentro do sistema ali existente.
O feixe de traços salientes poderá formar unidades comparáveis, reconhecidas
como distinções e redundâncias, elementos já mais sólidos em uma análise
(JAKOBSON, 2011, p. 74-76). O reconhecimento dos elementos de uma obra situa
a compreensão do “texto” da pintura e sua reconstrução, mesmo que imaginária,
trazendo a recomposição da obra ao observador. A intenção é analisar algo que
já é enriquecido pelo seu próprio conteúdo, ou ainda, descobrir tal forma
enriquecida, sem que a análise seja a diferenciadora, mas a promotora da observação. Ao final, outros elementos poderão compor os argumentos definidores
da obra: a distribuição, a relevância ao tema principal, em qual narrativa é situada,
os humores apresentados, todos formadores de códigos ao analista e teorizados
dentro de uma classificação possível entre: a obra, emissor de conteúdos, e seu
observador, receptor ideal. O conjunto da obra não transmite com clareza sua
essência, nossa subjetividade intuitiva e perceptiva passa a traduzir o polissêmico
em linhas puras.
Tanto naquele que fala como naquele que escuta, ela (a linguagem) é completamente diferente de uma técnica de cifração ou decifração para significações já
prontas: primeiro é necessário que ela as faça existir a título de entidades referenciáveis, instalando-as no entrecruzamento dos gestos linguísticos como aquilo
que este mostra de comum acordo. Nossas análises do pensamento fazem como
se, antes de ter encontrado as suas palavras, ele já fosse uma espécie de texto ideal
que nossas frases procurariam traduzir. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 71)
Ao que parece exclusivo da linguística, o efeito a ser traduzido pelo indivíduo é também matéria permanente da fenomenologia. Analisamos a opacidade
de sentidos. A divisão, o reconhecimento e, depois, a classificação permitirão o
entendimento de uma obra em um universo reconhecível. Partimos das coisas
que uma obra nos transfere, nos secreta e observamos nelas o que já existe em
nós (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 244). A intuição nos estabelece como observador
atemporal da obra, enquanto a percepção nos habilita como coautor da mesma.
A intuição e a percepção ampliam a capacidade de compreensão do analista,
observando o período, as ideias, as formas e os sentidos deixados por uma obra.
130
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Guilherme Weffort Rodolfo
Referências bibliográficas
ARNHEIM, Rudolf. Intuição e Intelecto na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
GOMBRICH, Ernst H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999. 16° edição.
HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica. Tradução Márcio Suzuki, Aparecida, SP: Ideias & Letras,
2006.
JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2011.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac&Naify, 2004.
. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Organizado por Charles
Bally e Albert Sechehaye. São Paulo: Cultrix, 2012.
| 131
Do ateliê à escrita na pesquisa
em arte contemporânea
JULIANA FROEHLICH*
Resumo: O método de uma pesquisa não é habitualmente objeto de um texto,
pelo contrário, ele busca evidenciar o objeto. Entretanto, este artigo pretende
relatar uma metodologia de pesquisa de mestrado que, ao longo do processo,
fez-se em função do fenômeno ao qual se debruçava, a saber, a criação da obra
de arte. O caminho da pesquisa é apresentado em dois movimentos: a descrição
da escolha de adentrar o fenômeno da criação da artista Inês Moura em seu
ateliê e, em seguida, o relato das decisões de apropriação de imagens e das
interpretações dos registros.
Palavras-chave: Arte Contemporânea. Método. Fenomenologia.
From the studio to the text in the contemporary art research.
Abstract: The method of a research is not usually an object of a text. On the contrary,
the method aims to clarify the object. Nonetheless, this paper intends to narrate a
master´s research methodology, that during the process was made according to the
studied phenomenon, which is the art work´s creation. The research path is here
presented in two movements: the description of the choice to approach the creation´s
phenomenon inside the artist´s studio and then we detail the decisions made for
the appropriation of images and the interpretations of Inês Moura creation´s
phenomenon.
Keywords: Contemporary Art. Method. Phenomenology.
* Mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA USP)
132
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Juliana Froehlich
Esse texto pretende apresentar uma discussão metodológica sobre a pesquisa
em arte contemporânea a partir da dissertação de mestrado Juventude e arte
contemporânea: indefinição e itinerância em nove obras e duas exposições de
Inês Moura,1 desenvolvida entre 2011 e 2013. Considerando que a arte “contemporânea” está ainda em processo e tem definições mutáveis, há de se considerar
que os caminhos da pesquisa em arte devem ser pensados desde a delimitação
apresentada pelo objeto até a forma textual final. Mesmo que este artigo seja
praticamente um relato, esperamos que ele possa contribuir para o pensamento
entorno de uma produção artística recente que ainda está “escrevendo” seu nome,
suas denominações.
A pesquisa de mestrado começou com a aceitação de uma premissa para
resultar na negação da mesma. Isto é, partiu de uma categoria existente no sistema
da arte contemporânea, a jovem arte contemporânea, e se propôs a acompanhar
um artista jovem com a tentativa de adentrar a criação de suas obras de arte.
Porém, essa categoria era associada a noção de “novo”, o que não se verificou
nas obras ou mesmo na relação da artista com o circuito. Desse modo, tal categoria era negada a cada capítulo da dissertação. Aqui não abordaremos essas análises, melhor descritas e desenvolvidas ao longo dos capítulos e nas considerações
finais da dissertação citada.2 Portanto, ficaremos aqui no relato do método, o
qual foi imprescindível para as nossas interpretações.
O objetivo era abordar a criação, este entre do homem e sua obra, como
um fenômeno. Pretendíamos “[...] deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se
mostra a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 2009, p. 74). Desse modo, as reflexões
que tecemos sobre o fenômeno da criação existiram a partir da criação das obras
de um artista. A reflexão se adequaria ao que se mostra: o que artista e obra
evidenciam direcionaria as interpretações e escolhas de teorias sobre a arte
contemporânea.
Destarte, dividimos o presente relato do método em dois movimentos: o
primeiro, entendimento de categorias exteriores ao processo criador, mas que,
1. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética
e História da Arte da Universidade de São Paulo. Linha de pesquisa: metodologia e
epistemologia da arte.
2. FROEHLICH, Juliana. Juventude e arte contemporânea: indefinição e
itinerância em nove obras e duas exposições de Inês Moura. Dissertação de Mestrado.
PGEHA/USP. 2013.
Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea
| 133
mesmo assim, delimitam a criação, como a categoria “jovem arte contemporânea”
e, em seguida, a aproximação do processo do artista. Este movimento seria a
entrada e o acompanhando da criação de obras de um artista que, no nosso caso,
aconteceu dentro de ateliê e exposições. Descrevemos assim o processo de estar
com o artista que se dispôs a abrir o seu ateliê.
Depois que o trabalho de “campo” havia terminado, abordamos os registros
das obras e dos processos de criação com o mesmo cuidado em que fizemos durante a estadia no ateliê. O que chamamos de segundo movimento seria a interpretação das obras com referenciais teóricos, a apropriação das fotografias da
artista e do que recolhemos durante oito meses com Inês Moura e suas obras.
Dois movimentos que unem um fenômeno, o da criação, que compreende
o artista e sua obra. Sob o mesmo ponto de vista, a obra de arte e o artista são
sempre, para nós, enigmas, logo, merecedores de reflexões extensivas, não precisamente de conclusões e afirmações que encerram suas possibilidades de ser.
Primeiro movimento: ateliê, artista e obra
O que seria jovem arte contemporânea? Esta questão movimentou a busca
de uma definição, a qual se apresentava de formas distintas pelo mercado e pelas
instituições de arte em textos de editais, exposições e catálogos. Editais brasileiros, como o Prêmio EDP (2012) e o Rumos Itaú Cultural (2011), assim como
exposições internacionais,3 colocavam a juventude dos artistas como critérios
determinantes para a curadoria. Um exemplo, foi a exposição de arte brasileira,
montada no Rio e em São Paulo, em 2009, chamada Nova Arte Nova, que explicita a escolha curatorial de artistas de menos de 30 anos. “Nova Arte Nova traz
artistas jovens, na maioria entorno dos 30 anos, que já tenham se destacado por
uma produção original e coerente” (VENANCIO FILHO, 2008, p. 4).4
A partir dessas fontes, foi possível configurar que a jovem arte é uma categoria aberta de significados, mas que se relaciona diretamente ao artista, primeiro
3. Exposição Uncertain States of America — American Art in the 3rd Millennium
em 2005 na Noruega. Há também uma galeria francesa só de jovens artistas chamada
“Galerie Jeune Artistes”.
4. Grande parte dos 57 artistas apresentados nessa exposição são atualmente representados por galerias e já fizeram suas exposições individuais pelo Brasil.
134
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Juliana Froehlich
a sua idade e depois a sua posição em relação ao circuito da arte, sendo esta
marginal.
Assim, já que o circuito apresentava a jovem arte nesses moldes, buscamos
identificar, na pesquisa, o que era correspondente ao mercado e às instituições,
depois ao artista e, por fim, à obra, ou o que estava “em obra” em uma juventude.
Portanto, primeiramente, selecionamos uma artista jovem, nos referenciais recorrentes do sistema da arte contemporânea: Inês Moura tinha menos de 30 anos,
produzia e fazia exposições como jovem artista ou margeando o circuito.
O primeiro movimento foi acompanhar a criação de obras de uma “jovem
artista”, de forma que ela e seus trabalhos fossem pensados a partir do que eles
mesmos desvelassem. “Em outras palavras, para saber o que é a subjetividade
produtora, temos que partir do caso [der Fall] e não da regra ou de regras, ainda
mais quando essas são abstratas e resultam de um entendimento limitado”
(WERLE, 2009, p. 178). Voltamos ao caso em sua profundidade numa tentativa
de escapar da superficialidade da regra.
Assim sendo, propusemo-nos a acompanhar o trabalhar em ateliê de Inês
Moura, semanalmente, durante oito meses. Contamos, para isso, com um termo
de consentimento da artista.5 Durante esse período dentro do ateliê, evitamos
qualquer interpretação, indicação ou suposições sobre o que se apresentava. O
propósito era ir ao ateliê como assistente da artista ou observadora do que fosse
que Inês Moura se propunha a fazer.
A presença de uma pesquisadora não era algo neutro, desse modo, decidimos
que as escolhas sobre o que fazer e como seria o dia de ateliê deveriam ser sempre
da artista, portanto, a pesquisadora só respondia aos movimentos de Inês Moura.
Como explica Amatuzzi: “às vezes, não há como separar pesquisa e intervenção.
A pesquisa fenomenológica se apresenta, sob essa luz, como pesquisa participante, em ação, interventiva.” (AMATUZZI, 2003, p. 24)
Para a pesquisa, queríamos algum registro do período do ateliê e, como a
pesquisadora já era algo que exercia uma mudança no trabalhar de Inês, foi
preciso escolher aparatos que interferissem menos. A câmera do celular se tornou
algo corriqueiro. Como o procedimento fotográfico era parte da linguagem da
5. O tempo de oito meses de encontro semanais estava de acordo com um
cronograma de pesquisa, ou seja, o máximo de meses possíveis dentro de período letivo
e de mestrado. Os oito meses procuravam manter uma rotina na qual a presença da
pesquisadora, se tornasse cada vez mais intrínseca, participante e contínua.
Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea
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artista, pareceu pouco intervir, assim foi possível registrar Inês Moura enquanto
trabalhava. Essas fotos foram selecionadas e organizadas como anexo ao final
da dissertação com título de Diário Fotográfico (Imagem 1).
Imagem I: Foto da página 179 da dissertação com série de imagens do
Diário fotográfico.
Após o período de ateliê, a decisão para a redação final foi partir das obras
e de sua criação para abordar suas temáticas, como se pudéssemos abrir os
bastidores do processo de ser artista atualmente por meio de alguns trabalhos.
Obra e vida dialogam no sentido amplo, ou seja, não se tratava de analisar o artista
em busca de sua obra, ou de analisar a obra em busca do eu do artista, pois “o
sentido de sua obra não pode ser determinado por sua vida” (MERLEAU-PONTY,
2004, p. 125). Quando nos referimos à vida, queremos dizer: vivência enquanto
artista e nada além do que é ser artista. Seria abordar a “vida de artista”, diferente
do que seria abordar somente sua vida psíquica.6
Segundo movimento: da imagem ao texto e vice-versa
Como o objetivo era partir das obras e nos aproximar de sua criação, era preciso selecioná-las para olhar esse processo criador. Portanto, o segundo movimento da pesquisa foi o de apropriação dos registros, isto é, a interpretação do material
recolhido a partir da convivência com a artista e do ateliê. Inicialmente, optamos
pelas obras e exposições que acompanhamos a criação. Em seguida, queríamos
garantir que o leitor da dissertação pudesse “ver” os trabalhos selecionados de Inês
6. Para auxiliar essa compreensão e interpretação, lançamos mão de aspectos da
fenomenologia de Merleau-Ponty, principalmente o que está descrito em: MERLEAUPONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac&naify, 2004.
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Juliana Froehlich
Moura. Logo, foram privilegiadas as obras e exposições das quais o acesso às
imagens era permitido, pois a artista nos ofereceu ou havia disponibilizado em
seus sites. Outra decisão foi abordar mais obras, de modo que o leitor pudesse ter
referências visuais da abrangência da pesquisa da artista. As obras foram agrupadas em três tópicos/capítulos: Flutuações, Sobrevivência e Entre artistas.
Ao longo de cada tópico, as imagens (fotografias) das obras e das exposições
foram recortadas de forma indiscriminada, porém nada aleatórias, de modo que
se estes recortes se tornassem uma possibilidade de “ver nos trabalhos de Inês
as análises, interpretação e aproximações propostas pela escrita.” (FROEHLICH,
2013, p. 31). Dessa maneira, há na dissertação um pequeno percurso visual a
cada página, que complementa, ilustra e possui a sua própria narrativa junto ao
texto. O texto se refere ao que pode ser visto, sequencialmente, pelos números
das imagens de modo que, por vezes, fica óbvia a relação mais obscura, propondo
ao leitor o desafio que é decifrar o visual em palavras (Imagem II). As obras de
Inês são as únicas que figuram no texto.
Imagem II – Foto da página 92 da dissertação. Exemplo dos recortes e da
relação do texto com as imagens através de números
Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea
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A pretensão é, fundamentalmente, “ver” o enigma da criação, sem apresentar
resoluções e novos critérios, mas discorrer sobre alguns aspectos que ambos
apresentam. De modo que, “está longe a pretensão de resolver o enigma.
Permanece a tarefa de ver o enigma.” (HEIDEGGER, 2010, p. 201). Este “ver” é
contemplar, “olhar” desinteressadamente e, assim, aproximar-se de um desvelar
da obra.
Aranha aponta: “quando o ser apreende os sentidos visuais da experiência
vivida, está originando a possibilidade de conhecer o mundo num código diferente
do código verbal.” (1997, p. 156). Ou seja, a arte é conhecimento em si, conhecimento articulado não só de forma verbal, mas visual. E ele é produzido, mantido
e circulado pelo próprio “ser-artista”. Logo, procuramos disponibilizar um
percurso visual-textual, pois poderia haver aí um conhecimento visual sobre o
mundo.
O primeiro tópico da dissertação, Flutuações, concentra obras que
tematizam o mar, a navegação e a itinerância. Temas que igualmente apontam
para a vivência de Inês e outros artistas, como “radicantes”, termo cunhado por
Nicolas Bourriaud (2010), que vem em auxílio às interpretações das obras, assim
como a delimitação do sistema da arte contemporânea compreendida como rede,
descrito por Anne Cauquelin em Arte contemporânea: uma introdução (2005).
Uma vez que “Inês Moura (assim como nós, cada um a sua maneira) flutua, não
só entre culturas, porque viaja constantemente entre Brasil e Portugal, mas também entre determinações de um sistema.” (FROEHLICH, 2013, p. 59). Neste tópico,
temos primeiro um desenho da série Navegações #1 (2012), em seguida detalhes
dos desenhos da instalação Tanto Mar módulo #1 (2011), seguidos por uma
fotografia da instalação na exposição Aduana. Essas obras são abordadas
individualmente. Em seguida, elegemos alguns desenhos das séries: Divagações
poéticas (2012), Lugares (2012) e Our relationship explained by nature #2
(2012). Estas são analisadas como um conjunto. “Como os desenhos suspensos
no espaço do papel, pretendemos flutuar entre as linhas que a artista nos oferece
como experiência de mundo vivido. Mundo seu, mundo nosso, compartilhado.”
(FROEHLICH, 2013, p. 44).
No segundo, Sobrevivência, a partir da temática da sobrevivência evidenciada no embate de vegetações sobre construções de algumas obras de Inês, procuramos por analogia a sobrevivência da artista e de seus pares, categorizados
como jovens, que buscam o seu reconhecimento no circuito da arte. A compreensão da paisagem e representação da natureza, em A invenção da paisagem
138
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Juliana Froehlich
(2007) e Hal Foster, no livro Return of the real (1996), auxiliam nessas analogias
interpretativas do sobreviver no circuito artístico. “Como uma planta que nasce
sobre o concreto, o jovem que é artista se depara com tudo que existe antes dele,
ou seja, com uma “tradição” de produção visual, de arte e de obra.” (FROEHLICH,
2013, p. 90)
As obras Paisagens (2012), Our relationship explained by nature #1 (2012)
e Herbarium in Loco (2011), que direcionaram este tópico, evidenciam visualmente e em seus títulos a temática da natureza, a paisagem, o orgânico e o estudo
da botânica. A última obra dialoga com as ciências que chamamos “duras” (empiristas), pela sua coleta, categorização e catalogação de espécimes de um sítio
específico. Como estudos de botânica e a consequente domesticação da natureza
em jardins e herbários. “A artista ‘cuida’ de seu objeto de estudo aos olhos do
espectador, porque o mundo natural, seu objeto, lhe é constituinte.” (FROEHLICH,
2013, p. 111).
Por último, o tópico Entre artistas parte da análise da montagem de duas
exposições: Aduana (2011) e Uma América7 (2011), das quais Inês Moura tomou
parte, assim como a obra coautoral Vou te contar me (2011), de Inês Moura e
Sofia Costa Pinto. A montagem desses trabalhos se apresenta como lugar do entre
e é compreendida como lugar possível de diálogo, cooperações e encontros dos
artistas com seus pares. Situação vislumbrada na “partilha do sensível” de Jacques
Rancière, a qual compreendemos ser entre artistas na montagem das exposições
e, posteriormente, com o público. “Ou seja, seria nas montagens onde tudo “toma
forma”, onde o corpo de obras da artista se ofereceria quase por completo ao
seu espectador, convidando-o a partilhar do mesmo enigma do visível.”
(FROEHLICH, 2013, p. 141).
Nos dois primeiros tópicos, propusemos reflexões com desenhos, fotografias
e instalações, trabalhos individuais da artista Inês Moura. Já no último, os
trabalhos coletivos são objeto de reflexão, pois a trajetória da artista é marcada
por consecutivos trabalhos coletivos, como obras coautorais, exposições
compartilhadas e o próprio ateliê.
7. Aduana aconteceu na Sala do Picadeiro Real no Museu de História Natural e da
Ciência de Lisboa e Uma América, na Galeria Municipal de Montemor-o-Novo, ambas
no período entre outubro e novembro 2011.
Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea
| 139
Os coletivos conectam os artistas, abrindo uma dimensão do “entre- artistas”.
Neste entre é possível acolher um lugar que seria igualmente um “não lugar”,
como do artista estrangeiro e sua itinerância. Consequentemente, os artistas,
muitos deles jovens, encontram sua resistência nessas associações […].
(FROEHLICH, 2013, p. 140 e 141)
Considerações finais
Buscamos aqui relatar uma preocupação com a metodologia de pesquisa
em arte contemporânea, que precisa, a cada passo, ser repensada em função de
seu objeto e não de alguma teoria, pois a teoria viria aqui em função de conceitos
apresentados pelo fenômeno estudado. Desse modo, lançamos mão de aspectos
da fenomenologia na compreensão de que objeto e sujeito de pesquisa são parte
do mesmo mundo.
“O termo ‘fenomenologia’ não evoca o objeto de suas pesquisas nem
caracteriza o seu conteúdo qüididativo. A palavra se refere exclusivamente ao
modo como se demonstra e se trata o que nesta ciência deve ser tratado.”
(HEIDEGGER, 2009, p. 74) Isto é, fazer uma pesquisa fenomenológica, por nós,
foi compreendido como uma metodologia na qual primeiramente não tratamos
de explicar o fenômeno, pois, ao fazê-lo, encerar-nos-íamos em algo que não o
é. A tentativa foi estabelecer uma relação entre o que se vivia no ateliê com teorias
existentes sobre uma produção visual, ao invés de sobre delimitações do que um
artista deve ser.
Como aponta Merleau-Ponty, em seu texto sobre Cézanne, quando após
descrever o artista, ele faz a seguinte observação:
As criações do artista, como aliás as decisões livres do homem, impõem a esse
dado um sentido figurado que não existia antes delas. Se nos parece que a vida
de Cézanne trazia em germe sua obra, é porque conhecemos a obra primeiro e
vemos através dela as circunstâncias da vida, carregando-as de um sentido que
tomamos emprestado à obra.[...] É certo que a vida não explica a obra, mas é
certo também que elas se comunicam. A verdade é que essa obra por fazer
exigia essa vida. (MERLEAU-PONTY , 2004, p. 136).
Ou seja, os caminhos que nos levaram durante a escrita dissertação foram
a partir da criação, da obra que se fazia em relação a uma vida de artista. E as
140
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Juliana Froehlich
leituras visuais propostas junto ao texto nasciam desta mesma relação. Como um
enigma existente além do mercado, das instituições e mesmo da academia, a arte
por vezes nos convida a voltar a olhá-la com diferentes perspectivas, como
fizemos com a fenomenológica.
Referências bibliográficas
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M.A.T. e HOLLANDA, A.F. (Orgs.) Psicologia e fenomenologia : Reflexões
e perspectivas. Campinas: Ed. Alínea, 2003.
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Joel Martins.Um seminário avançado em fenomenologia. São Paulo: EDUC,
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Universidade de São Paulo, 2013.
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Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea
| 141
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F.;WERLE, M. A. Arte e filosofia no idealismo alemão. São Paulo: Editora
Bacarolla, 2009.
| 143
Razões estético-ideológicas reveladas
na arte brasileira
SILVIA MIRANDA MEIRA*
Resumo: A cultura brasileira, diversificada e descompromissada, compartilha
múltiplas realidades com crenças e valores que se aproximam e se distanciam,
num jogo abrangente de identidades culturais. Hoje é necessário ampliarmos
o nosso olhar para essa relação de coexistência e de interação na nossa produção
artística, provocada pela convivência e pelo cruzamento de diversas filiações.
Cabe, na História da Arte feita no Brasil, um trabalho mais rigoroso de
mapeamento dos testemunhos materiais das diferentes culturas que aqui
habitam, dos estilos que se compõem enquanto expressão, no contexto como
interconexão, em símbolos e signos distintos, interconectados e heterogêneos
que aqui se desenvolvem. O lugar do discurso dessa fala de compreensão implica
os diferentes no que são, sem ambiguidades ou discrepância, e uma visão
redimensionada para o conceito de arte. Modalidades híbridas de organização
com espaço para o outro, com disposição e presença efetiva de entendimento.
O processo implica em aceitarmos que vivemos uma cultura feita de traduções,
dublagens e legendas, onde não há raízes que suportem formas e bases culturais.
O objetivo da pesquisa é propiciar um debate sobre o possível entendimento
das identidades regionais, locais e globais, que aqui existem, e se misturam, no
conceito contemporâneo de brasilidade. Pesquisar o entorno para a ampliação
da compreensão de nossa cultura e de suas interações com o intuito de promover
entendimento do que é a nossa diferença.
Palavras-chave: Diversidade. Arte. Brasil.
* Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte / Livre Docente pela ECA/
USP / Doutora em História da Arte séc. XX / Univ. Paris IV – Sorbonne / Especialista
em Pesquisa no MAC USP.
144
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Silvia Miranda Meira
Aesthetic and ideological reasons revealed in Brazilian art
Abstract: The diverse Brazilian culture shares multiple realities, beliefs and values
that approach and move away from a comprehensive set of cultural identities. Today
it is necessary to broaden our gaze to this relationship of coexistence and interaction
in our artistic production, caused by the coexistence and the intersection of various
affiliations. In Art History in Brazil a more thorough job of mapping material
evidence of the different cultures that live here is in need. A style that includes
expression of the context of the interconnection of symbols and distinct the
heterogeneous signs that are being developped . A place of discourse that speaks how
to understand the different, even in a unambiguous or discrepancy way, but give a
view of the concept of true art. Hybrid organization of arrangements with room to
the another, with effective layout and presence of mind. The process involves
accepting that we live in a culture made of translations, voiceovers and subtitles,
where there are no roots that support cultural forms and bases. The research objective
is to promote a debate on the possibility of understanding the melting pot of regional,
local and global identities that exist in the contemporary concept of Brazilianness.
The study search environments for increasing the understanding of our culture and
their interactions, in order to promote the understanding of what is our difference.
Key-words: Diversity, Art, Brazil.
Introdução
A História da Arte, como um campo do conhecimento que pensa a arte e
suas especificidades, deve ampliar suas considerações às múltiplas realidades,
diversificadas e descompromissadas, da arte brasileira. A cultura brasileira compartilha crenças e valores que se distanciam no jogo abrangente das identidades
culturais. Hoje, é necessário ampliarmos as investigações e considerar a inclusão
de estudos étnicos, de representação identitária nacional, desenvolvidos a partir
de perspectivas distintas, nas linhas de pesquisa de História da Arte no Brasil.
As discussões às quais a História da Arte no Brasil se vê atrelada, muitas
vezes, apresentam ao campo de estudo visões limitadas, pela falta de integração
de modelos diferentes de arte, que não se enquadram nos critérios da historiografia tradicional europeia, como menciona Pereira. (2012, pp. 87-106)
A atitude que procura uma mudança de enfoque, para além dos modelos
hegemônicos e critérios que foram disseminados pela Europa e transformados
Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira
| 145
em valor universal, é de reflexão face a determinados pressupostos da estética,
crítica e teoria da arte que interferiram e nortearam os modelos de estudo e de
investigação no Brasil. Valores que, aplicados ao caso brasileiro, não se
adequaram muito bem à realidade artística local, segundo Chiarelli (1999, p.12).
A arte ligada ao avanço tecnológico, como menciona Pignatari (1987, p.76),
criaria um embate ideológico violento à brasilidade, já que a expectativa era que
a América Latina revelasse o processo da nação, que vivia ligada ao mundo rural
e agrário, e aos nativos da terra. A catequese acadêmica do homem vestido,
apregoada desde a Academia Imperial, desenvolveu, segundo Schwarz (1989,
pp.37-38), “um caráter postiço, inautêntico, e imitado da vida cultural que levamos”, importadores de consciência enlatada, segundo já ironizava Oswald de
Andrade, em 1928, em seu Manifesto Antropofágico.
Nesse sentido, uma revisão sobre os princípios nos quais a História da Arte
se desenvolveu no Brasil foi um dos seguimentos desse estudo, que investigou,
de início, o processo de formação dos acervos nacionais e, atrelado a eles, as
diferentes linhas de pesquisa de História da Arte desenvolvidas no Brasil, de
maneira a desvendar o “fora do eixo”: o mundo não europeu, primitivo e exótico.
(MEIRA, 2012)
Atualmente, o campo de pesquisa em História da Arte se enquadra em
critérios adotados pela historiografia tradicional, que, segundo Maria Lucia Kern
(2004, p.3), “é resultante de seleções e exclusões adotadas por certas coleções,
e museus, que criaram um sistema de representação da arte que geraram sérias
consequências para a historiografia no Brasil, tais como as classificações, hierarquias, sacralizações de obras-primas, entre outras”, conduzindo a valorização de certas manifestações em detrimento de outras.
As diferentes maneiras como a identidade nacional e a cultura brasileira
foram consideradas na sua autenticidade, e construção simbólica, procurariam
impor como história legítima critérios correspondentes aos interesses e questões
políticas do estado e da academia: modelos de ensino artístico ligados ao compromisso com uma concepção idealista da arte; aspectos de um mundo de colonizadores; e aspectos considerados em sociedades industrializadas como forma de
consolidação do capitalismo, estratégia de posição hegemônica do mundo
ocidental.
A tradição em pesquisa de História da Arte brasileira nos contornos do
regional, a exemplo da Paraíba, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, acentua
predominantemente o debate em torno da busca de identidade cultural,
146
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Silvia Miranda Meira
focalizando o regional no universal, o rural no urbano; delimitando uma fronteira
e barreira dificilmente diluída, em detrimento a suas autenticidades, contaminada
pela terminologia da exclusão em suas considerações.
A necessidade de uma ampliação da visão e do rumo histórico da arte
brasileira, demanda crescente do circuito brasileiro contemporâneo, acabaria por
diferir a arte local daquela produzida em outros países, aceitando nela a presença
de um substrato popular e artesanal, questionando a especialização e exclusividade das técnicas do oficio do artista, a exemplo da arte da literatura de cordel,
entre outras. A ampliação do conceito de arte visual para cultura visual, ancorando
a prática artística a outros territórios, além das coleções nacionais de obras reconhecidas, criaria a possibilidade do entendimento e do olhar aproximado de arte
e cultura brasileiras.
O estudo e projeto de pesquisa em História da Arte aberto a fatos históricos
e acontecimentos culturais notáveis no país, onde a cultura local designaria o
território do circuito artístico, transgride os contornos tradicionais da História
da Arte e incorpora opções das teorias das diferenças, como menciona Canclini
(2009, p. 61), ao permitir a circulação entre matrizes culturais diversas e o entendimento dos processos de mestiçagem e hibridização da arte, não a parir da
desigualdade técnica ou simbólica, mas trazendo à historiografia brasileira o
acesso de determinadas manifestações de arte vinculadas a nossa cultura.
Reconhecer a prática artística associada às relações de significação e de sentido
para a cultura brasileira exige uma operação de reconceituação da arte. O
conceito, ainda impreciso, busca incluir narrativas reducionistas e fragmentadas
de práticas artísticas brasileiras.
A inclusão de novos parâmetros na caracterização da arte nacional, com o
reconhecimento de diferentes repertórios a ela filiados, permite mapear os distintos modelos de arte e produzir entendimento de dentro da diferença.
Investigações antropológicas em torno das funções outras da arte, com abordagens metodológicas diferenciadas, inserem as produções artísticas nativas da
terra dentro de seus próprios contextos socioculturais, possibilitando, de modo
mais amplo, descrever e revelar diferentes funções, estatuto e significação da
arte. Em contextos culturais regionais, fora do modo de vida urbano e de instituições de ensino e colecionismo, a arte brasileira se vincula a outros campos do
saber.
Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira
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A ideia de arte em culturas primitivas
A ideia de cultura e arte primitiva, que habita o vasto território brasileiro,
cujo papel está ligado a uma atividade artística dentro de um contexto cerimonial
e a conteúdos simbólicos, onde é possível observarmos também um valor estético,
foi outro segmento desse estudo. A contribuição de diversas culturas – como as
de derivação indígena, africana, caiçara, cabocla, etc., manifestações que teriam
um caráter fundamentalmente popular, proveniente de comunidades marginalizadas, não representadas em setores oficiais nem em coleções nacionais representativas, corrente principal da arte do país, não da arte europeia no Brasil –
sofre, no entanto, quase que exclusão de um modelo de historiografia.
Em terras brasileiras, vários fenômenos artísticos são continuamente produzidos em festas ou rituais regionais, por culturas indígenas, afro-brasileiras,
caboclas, caiçaras, caipiras, entre outras, pelos habitantes das matas, das praias,
margens de rio e dos sertões, que se delineiam movimentos artísticos em conexão
com processos sociais, cuja identidade cultural não se assemelha ao mundo
ocidental. A forma estética é conseguida através de um conjunto de recursos,
desde a roupa e artefatos, que servem de adorno ou como motivos decorativos,
até uma cenografia, enredo musical e coreografia. O espetáculo constitui
identidade e cultura artística própria em lugar da obra. Trata-se de pensar como
o repertório disperso da arte, daquilo que podemos identificar como distinto, mas
artístico, outrora des-significado, pode contribuir hoje como memória cultural,
superando a diferenciação das operações e traduções da historiografia clássica.
A obra de arte pertence a sua época, a seu povo, a seu ambiente e depende
de concepções e fins particulares, históricos e de outras ordens. Rever criticamente os princípios da História da Arte no Brasil e a posição crítica que ocupamos
dentro dela é fundamental. Hoje, é preciso evitar noções associadas ao fenômeno
artístico originárias de outro contexto, em que tradições diferentes e politicamente
antagônicas formularam uma tradução do que seria a arte e a cultura nacional,
segundo Ortiz. (2006, p.7)
A operação de reconceituação de nossas valorizações artísticas e culturais,
como propõe Canclini (2009, p.51), exige uma redefinição daquilo que entendemos por cultura e arte. O lugar como diferentes, desconectados e desiguais,
procedimento que pretende aceitação e inclusão daquilo que outrora fora
excluído, é uma posição de integração dos diferentes patrimônios brasileiros.
Nossa cultura, variada e dinâmica, necessita de um aprofundamento das questões
148
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Silvia Miranda Meira
a ela pertinentes, além de análises mais cuidadosas dos processos de inserção
de critérios artísticos e de exclusão no meio ambiente nacional.
A produção cultural de sociedades periféricas, como a das comunidades no
Brasil, fora durante muito tempo duramente considerada como defasada, devido
ao seu caráter fundamentalmente artesanal, distorcendo de certa maneira o
entendimento de sua especificidade, abrangência e valor que muito contribuíram
para a mestiçagem e para o sincretismo cultural de nossas verdadeiras origens.
(CANCLINI, 2009, p.15)
Uma convivência mais justa entre diferentes culturas aflora, hoje, como ideia
de uma História da Arte com respeito às diversidades culturais, estratégia de
exaltar a diferença, porém, difícil de ser instrumentalizada, menciona Barriendos
(2013, pp. 177-183). O crítico e poeta africano Olu Ogube, à conferência A Brief
Note on Internationalism in the Visual Arts, Barriendos, afirmou que “Tolerar
os outros significava aceitar a diversidade das culturas como uma forma de
correção política, como uma concessão que o Ocidente estivesse obrigado a fazer
ao Terceiro Mundo para ser congruente com o discurso da descolonização, e com
o da globalização da democracia”. (2013, p.178)
Deve-se pensar até onde a História da Arte no Brasil abrange a nossa
dimensão geográfica e cultural e não omite nossos polos culturais nem a própria
arte de nosso tempo. (MEUCCI, 2004, pp. 86-91)
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‘colonialidade’ e transculturalidade. In: Arte & ensaio. Revista do PPGAV/EBA/
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MEIRA, S. Outra forma de ver a filiação estética da arte no Brasil. XXXII Colóquio
do CBHA – Direções e Sentidos da História da Arte. Brasília: UNB, 2012.
Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira
| 149
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ORTIZ, R. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006,
p.7.
PEREIRA, S.G. Revisão historiográfica da arte brasileira do séc. XIX. Revista IEB,
n.54, 2012, set./mar., p. 87-106.
PIGNATARI, D. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos
anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, 1987, p. 76.
SCHWARZ, R. Nacional por subtração. In: Que horas são? São Paulo: Cia. das
Letras, 1989, pp.37-38.
Novos caminhos na
produção acadêmica
| 153
Narrativas plásticas de resistência em
Antonio Berni: em foco Juanito Laguna
SIMONE ROCHA DE ABREU*
DILMA DE MELO SILVA**
Resumo: Este artigo enfoca a série Juanito Laguna, de autoria de Antonio Berni
(1905-1981), destacando-a como uma narrativa plástica de resistência a uma
leitura única e predominante relacionada aos valores da sociedade de consumo.
Berni transformou em arte a sua percepção sensível frente aos problemas sociais
de sua geração, caminhou em uma poética que nos possibilita ver essas obras
como expressão de um sentimento de solidariedade.
Palavras-chave: Antonio Berni. Resistência. Solidariedade.
** Pesquisadora em arte, especialista em História da Arte e Cultura Contemporânea
pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP), é mestre e doutora em Integração da América Latina, linha de pesquisa
Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração
da América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Fórum
Permanente de Arte e Cultura da América Latina e da Sociedade Científica de Estudos
da Arte. e-mail: [email protected]
** Professora Doutora, orientadora do Programa de Pós-Graduação em Estética e
História da Arte, nas linhas de pesquisa “História e Historiografia” e “Metodologia e
Epistemologia da Arte” e do PROLAM, na linha de pesquisa “Comunicação e Cultura”.
154
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Simone R. de Abreu e Dilma de M. Silva
Visual narratives of resistance in Antonio Berni: Juanito Laguna
in focus
Abstract: This article focuses on the Juanito Laguna series authored by Antonio
Berni (1905-1981), highlighting it as a plastic narrative of resistance to a single,
predominant reading related to the values of the consumer society. Berni turned
into art his sensitive perception into art facing the social problems of his generation,
walked into a poetics that enables us to see these works as expression of a feeling of
solidarity.
Keywords: Antonio Berni. Resistance. Solidarity.
Este artigo sobre a obra de Antonio Berni1 e, em particular, sobre a sua série
Juanito Laguna tem início destacando um trecho de uma entrevista cedida pelo
artista argentino. Esta frase está repleta de significados e esses ajudam-nos a
caminhar pela sua obra: “Lo importante, por más graves que sean los problemas
de cada generación, es hacer cosas; si uno no hace cosas, no resiste”.2
Essa frase revela o comprometimento social que Berni expressou em sua
produção artística. O artista argentino defendeu que o exercício da arte deveria
ser uma maneira pela qual o artista deveria abordar os novos fenômenos da
realidade e se posicionar frente a eles, com essas premissas Berni lançou as bases
do que chamou de “Nuevo Realismo”, ideias que foram publicadas pela primeira
vez em agosto de 1936 na revista Forma, uma publicação da Sociedad Argentina
de Artistas Plásticos (SAAP).
Berni criou em sua obra plástica diversos personagens, os mais evidentes
são Juanito Laguna e Ramona Montiel, ambos excluídos da sociedade moderna
que crescia de maneira desenfreada na época da produção dessas obras, ou seja,
a partir de 1956. Berni foi um observador atento dos subúrbios de Buenos Aires
e de outras províncias argentinas, registrou em desenhos ou fotografias os
trabalhadores e seus filhos. Nesse caminhar, podemos dizer que muitos foram
os seus personagens, mas para Ramona Montiel e Juanito Laguna, o artista
1. Antonio Berni: artista argentino, nascido em Rosario, província de Santa Fé em
1905, faleceu em Buenos Aires em 1981.
2. Trecho de entrevista concedida por Antonio Berni publicada pouco antes de sua
morte. Reportaje. Revista Cultural nº2, Córdoba, set. 1981.
Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna
| 155
dedicou-se a criar grandes séries de obras que representam a sua síntese das
questões observadas durante essas incursões pelos subúrbios. Podemos seguir
as peripécias desses personagens em tempos distintos, como em um relato
narrativo pictórico.
A partir de 1956, Antonio Berni iniciou a série Juanito Laguna, uma criança
magra que aparece nas obras entre tarefas, que refletem as necessidades
cotidianas, como levar comida ao pai na fábrica (Fig. 1, 1961), e as brincadeiras
infantis como o pião ou a pipa (Fig. 4, 1973). Nas obras, quase sempre Juanito
está sozinho e alheio à sujeira do lugar, repleto das embalagens de diversos
produtos, restos descartados pela sociedade de consumo, que o exclui e o envolve.
Juanito é claramente socialmente marginalizado: ele está fora da cidade,
pertence ao lugar dos restos e das sujeiras. Mas o que isso realmente pode dizer
sobre Juanito? Também cabe o questionamento sobre os demais aspectos da
personalidade da personagem: será Juanito um menino triste? Será que os demais
componentes da obra podem acrescentar outras camadas de leitura: o que mais
existe à margem nessas obras?
A ideia de marginalização pressupõe um centro e uma periferia, uma
situação melhor e uma situação pior. De maneira pejorativa, supõe-se que a
periferia seja o lugar não oficial, o lugar onde não é seguido o conjunto de normas
oficiais da sociedade central e, portanto, onde o imprevisto ou não estipulado
pode acontecer.
Estar à margem não implica uma
completa exterioridade do centro, os
marginalizados habitam uma fronteira. É
o lugar da articulação de dois mundos,
duas posições culturalmente e socialmente diferentes, o centro estabelece modelos, mas recebe influências da periferia, mesmo que não as aceite como tal.
Fig.1 – BERNI, Juanito lleva la comida a su
padre peón metalúrgico, 1961. Óleo e
colagem de metais sobre tela, 211 X 153
cm. Colección Museo de Arte Moderno de
Buenos Aires. Envio a XXXI Bienal de
Venecia. Fonte: BERNI, Centro
Recoleta,2002, p.46.
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Simone R. de Abreu e Dilma de M. Silva
Juanito é uma criança absolutamente incluída no universo infantil quando
aparece brincando e também excluída deste universo quando deixa a brincadeira
infantil para cumprir tarefas alheias a sua idade, como ir à fábrica levar comida
para o pai e mais tarde para ir trabalhar. Juanito é, portanto, um incluído e
excluído, vive na fronteira articulando dois mundos. Ele é criança em um mundo
de fábricas e, portanto, novamente está à margem de uma idade conceituada como
a “camada produtiva da população”. Na obra Juanito Laguna lleva la comida a
su papá peón metalúrgico (Fig. 1, 1961), essa inadequação de Juanito ao
ambiente está clara na proporção entre o menino e as enormes, quase
monstruosas, fábricas.
Mas a expressão à margem também pode ter como referência a composição
plástica. Precisamos ver o que temos à margem na organização espacial da obra
de Berni. Para isso, vamos enfocar a obra Juanito em la playa (Fig. 2, 1973),
como exemplo de construção pictórica desta série. Quase exatamente no centro
do espaço figurativo está Juanito, a personagem-tipo da obra, e à margem estão
os objetos secundários, que estariam ali somente para criar o ambiente. São os
restos da sociedade de consumo – esses objetos adicionam complexidade à obra,
uma vez que os restos de embalagens industriais estão cautelosamente prensados
dispostos de uma maneira que possam ser reconhecidas em suas marcas e outros
atributos. Esses itens são tão nítidos na obra de Berni que passo a perguntar se
chamá-los de secundários é ou não apropriado? Será que esses restos da sociedade
de consumo são o centro temático da obra? Para discutir, voltemos a obra Juanito
em la playa (Fig. 2, 1973).
Nesta obra, o artista não detalha o rosto de Juanito, o menino está quieto,
posição estática que enfatiza a situação de contraste de um menino que leva a
vida e a sua infância entre restos de uma sociedade de consumo, a qual não
pertence e provavelmente não pertencerá. Ele se mantém alheio a esses objetos
descartados que não o atrapalham. O detalhamento que falta ao rosto da
personagem é farto em referência às embalagens vazias e amassadas que
aparecem nítidas. O artista, portanto, volta a turvar as fronteiras entre o que é o
centro e a margem, entre o tema-título da obra e os itens secundários, entre o
que é principal e marginalizado.
Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna
| 157
Fig. 2 – Antonio BERNI, Juanito em la playa, 1973.
Óleo, pintura acrílica, cartão, tela, chapa, latas, cola,
plástico, partes de bicicleta, peças de metal, 162 X
102 cm. Fonte: MALBA, 2005, p. 127.
Berni caminhou em sua poética borrando as
fronteiras da marginalidade, deu complexidade à
noção do que é classificado como marginal e como central, do que é pior e melhor. Com isso, o
artista transformou em arte a sua percepção sensível frente aos problemas sociais de sua geração,
tudo isso para resistir a uma leitura única e predominante dos valores da sociedade de consumo.
Berni assim definiu Juanito Laguna:
[...] Yo, a Juanito Laguna lo veo y lo siento como arquetipo que es; arquetipo
de uma realidad argentina y latinoamericana; lo siento como expresión de todos
los Juanitos Laguna que existen. Para mí no es un individuo, una persona: es
un personaje; y, [...], en él están fundidos muchos chicos y adolescentes que
yo he conocido, que han sido mis amigos, con los que he mezclado, con los
que he jugado em la calle. También es una parte de mí mismo; no me identifico
ni puedo identificarme totalmente con él, porque yo no fui um niño de las villas
miseria; aunque fuera pobre en mi persona real y concreta. Juanito es um
símbolo que yo agito para sacudir la consciencia de la gente. Porque yo puedo
salvar a una persona, puedo salvar a dos personas, puedo salvar a diez, pero no
puedo salvar a todo el resto, y a mí me interesa que todo el resto se salve.3
3. Berni em entrevista a José Viñals, editado por Imagen Galeria de Arte, Buenos
Aires, 1986. In: PACHECO, M. E. Berni escritos y papeles privados.Buenos Aires: Temas
Grupo Editorial, 1999, p. 58-61. Tradução livre da autora: [...]Eu, a Juanito Laguna o
vejo e o sinto como um arquétipo de uma realidade argentina e latino-americana, sinto
que ele é a expressão de todos os Juanitos Lagunas que existem. Para mim não é um
indivíduo, uma pessoa: é um personagem; e, [...], nele estão unidos muitas crianças e
adolescentes que eu conheci, que foram meus amigos, com os quais convivi, com os quais
brinquei na rua. Também é uma parte de mim, não me identifico nem posso me identificar
totalmente com ele, porque eu não fui uma criança de favela, embora tenha sido pobre.
Juanito é um símbolo que eu agito para sacudir a consciência das pessoas. Porque eu
posso salvar uma pessoa, posso salvar duas pessoas, posso salvar dez, mas não posso
salvar a todos, e interessa-me que todos se salvem.
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Simone R. de Abreu e Dilma de M. Silva
E Berni advertiu:
[...] Laguna no piede limosna, reclama justicia, en consecuencia pone la gente
ante esa disyuntiva, los cretinos compadecerán y harán beneficencia con los
Juanitos Laguna; los hombres e mujeres de bien, le harán justicia.4
A primeira exposição da série Juanito Laguna ocorreu na Galeria Witcomb,
em Buenos Aires, em novembro de 1961. É significativo perceber que é o próprio
personagem que faz o convite para o público: este é mais um capítulo da
construção que o artista faz da persona de Juanito.
Em parágrafos anteriores, indaguei se Juanito é uma criança triste, com o
objetivo de me aproximar de uma resposta é necessário observar mais obras da
série. Para isso, vamos enfocar a obra Juanito Laguna remontando um barrilete (Fig. 4, 1973).
Fig. 3 – Convite para a exposição “Berni em
el tema de Juanito laguna”, Galeria
Witcomb, Buenos Aires, 1961.
Fonte:Fundación Espigas, pasta Berni.
Juanito é um menino que brinca,
sonha, caminha, apesar da sujeira do
ambiente onde vive. Durante esses
momentos, Juanito fabula, cria, sonha.
Na obra Juanito Laguna remontando um
barrilete (Fig. 4, 1973), o primeiro impacto visual é dado por uma grande nuvem
que apresenta um formato revolto. Essa nuvem chama atenção pela sua
concretude e porque é a imagem especular da pipa (papagaio) e de sua rabiola
com a qual brinca o menino. A consistência da nuvem é o sonho de Juanito,
menino que não perdeu a capacidade de fabular e, assim, mantém a sua
capacidade de sonhar, mantém a sua humanidade. O sonho, a fabulação é
importante para todos e, para Juanito, seja talvez o único espaço possível para a
4. Berni em entrevista a José Viñals, op. cit., p. 59. Tradução livre da autora:
[...]Laguna não pede esmola, reclama justiça; em consequência coloca as pessoas frente
ao dilema; os cretinos se compadecerão e farão beneficências com os Juanitos Laguna,
os homens e mulheres de bem, lhes farão justiça.
Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna
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sua existência saudável. A capacidade de sonhar representa um espaço possível,
uma lagoa que cerca Juanito e o salva da crueza da realidade vivida. É a lagoa
deste Juanito que se chama Laguna.
Fig. 4 – Antonio Berni. Juanito Laguna remontando um
barrilete, 1973. Óleo, latas, telas, plástico, madeira,
corda e papel sobre madeira, 192 X 109 cm.
Fig. 5 – Berni. La família de Juanito Laguna se salva de
la inundación, 1961. Óleo, metal y cartón sobre
hardboard, 185 X 122 cm. Envio a la XXXI Bienal de
Venecia.Fonte: Recoleta, 2002, p. 42.
La família de Juanito Laguna se
salva de la inundación (Fig. 5, 1961)
evidencia uma realidade das “villas miseria”. A inundação como consequência
dos espaços ocupados sem urbanização,
que crescem ao sabor da necessidade das
famílias marginalizadas pela sociedade
dita “moderna”. A inundação é uma tragédia para a mãe que ao carregar um Juanito chora: ela está ao lado de um barco, comandado pelo pai da família, e que
leva seus dois outros filhos.
No barco, estão as crianças menores, com expressões faciais tensas, mas
salvaguardadas no interior do barco. Fora, em pé, com água até a cintura, está
uma jovem adolescente provavelmente também filha, enfrentando com mais
crueza esta dura situação. O relógio, símbolo do tempo, o bem que parece ter
sobrado das perdas da família nesta inundação, é carregado com certo esforço
para não ser estragado nas águas turvas da inundação. Será um símbolo de
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Simone R. de Abreu e Dilma de M. Silva
esperança? Símbolo de novos tempos? Ou o relógio está marcando o tempo para
que esta situação ocorra novamente.
Tudo é sujeira, desencanto e destruição na obra La família de Juanito
Laguna se salva de la inundación (Fig. 5, 1961). O único elemento preservado
desta destruição é uma placa vermelha onde se lê “se venden terrenos”, mostrando
que Berni está atento aos desmandos da ocupação imobiliária desregrada, que,
em nome do progresso, empurra a população mais pobre para os espaços com
menor infraestrutura e causa desequilíbrios ecológicos durante este processo de
ocupação determinado pela necessidade.
Plasticamente, a obra La família de Juanito Laguna se salva de la
inundación (Fig. 5, 1961) guarda relação com a construção informalista de
Kenneth Kemble (1923–1998) e com o que se convencionou chamar de Arte
Bruta, de Jean Dubufett (1901–1985), evidenciado pela colagem de vários
materiais na tela e pelas manchas de uma palheta suja. Nesta época, as cores sujas
constituíam um valor plástico que se aproximava das formas expressionistas.
Voltando a obra de Berni (Fig. 5), diversas texturas são unificadas por uma
veladura, que as integra e que tem o mesmo valor cromático das poucas figuras
que detêm a narrativa da obra segundo a indicação do título.
Com este texto de análise crítica de alguns trabalhos de Antonio Berni, foi
possível evidenciar como característica o emprego da plástica como expressão
de um sentimento de solidariedade. O artista se mostrou solidário com as situações que percebeu como aflitivas aos outros e também a ele: pois se sentiu
partícipe das questões; porque se colou no lugar do outro e, desse modo, foi solidário com os oprimidos.
Referências bibliográficas
PACHECO, M. E. Berni escritos y papeles privados.Buenos Aires: Temas Grupo
Editorial, 1999.
Catálogos de exposição:
Antonio Berni – A 40 años del Premio de la XXXI Bienal de Venecia 1962 –
2002.Buenos Aires: Asoc. Amigos del Centro Cultural Recoleta, 2002.
Antonio Berni – Obra Gráfica. Porto Alegre: Museo de Arte do Rio Grande do Sul
Ado Malagoli, 2001.
Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna
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BERNI y sus contemporâneos correlatos. Homenaje a 100 anõs de su nacimiento.
Buenos Aires: Fundación Eduardo F. Constantini MALBA, 2005.
BERNI: narrativas argentinas. Curador Roberto Amigo. Buenos Aires: Asoc.
Amigos del Museo de Bellas Artes, 2010.
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A fotografia documental registrando o espaço
ilegal, a África no Brasil: identidades quilombolas
ISA MÁRCIA BANDEIRA DE BRITO*
Resumo: Um dos primeiros projetos fotográficos na trajetória de Ricardo Teles,
“Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove comunidades
Negras Rurais do Brasil”, é o registro da vida nas comunidades quilombolas
no País. Considerar o negro brasileiro um personagem desta narrativa possibilita
mais um instrumento de capacitação para uma consciência crítica através da
fotografia documental. Neste cenário, Ricardo Teles age na construção de um
patrimônio histórico-cultural, registrando as comunidades afrodescendentes e
temas da cultura nacional. A identidade brasileira que atribui à miscigenação o
caráter nacional tem sido questionada, assim como uma dada identidade latinoamericana, ao ver a ocupação do território nacional e do continente como um
embate entre vários povos, culturas e religiões. O legado da fotografia ganha
contornos artísticos mesmo associada à expressão da realidade.
Palavras-chave: Fotografia. Arte. Política. Identidade.
La fotografía documental resgistrando el espacio ilegal, la
África en el Brasil: Identidades Quilombolas
Resumen: Uno de los primeros proyectos fotográficos de la trayectoria de Ricardo
Teles se llama “ Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove
comunidades Negras Rurais do Brasil” es el registro de la vida en las comunidades
* Mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA). Doutoranda pelo Programa de PósGraduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM).
Bolsista Capes. [email protected]
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Isa Márcia Bandeira de Brito
quilombolas en el país. Conceptuando el negro brasileño un personaje de este relato
permite aún otra herramienta de formación para una conciencia crítica a través
de la fotografía documental. En este escenario, Ricardo Teles actúa en la construcción
de un patrimonio histórico-cultural resgistrando las comunidades afro-descendientes
y los temas de la cultura nacional. La identidad brasileña que asigna al mestizaje
el carácter nacional ha sido cuestionada, así como una identidad latinoamericana
dada, teniendo en cuenta la ocupación del territorio nacional y del continente como
un choque entre los diferentes pueblos, culturas y religiones. El legado de la fotografía
gana entornos artísticos asociados a la expresión de la realidad.
Palabras clave: Fotografía. Arte. Política. Identidad.
Um dos primeiros projetos fotográficos na trajetória de Ricardo Teles,1
“Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove comunidades
Negras Rurais do Brasil”, é o registro das comunidades quilombolas: no Pará
Trombetas e Igarapé dos Pretos, no Maranhão; o Frechal e Jamary dos Pretos,
em Pernambuco, em Conceição das Crioulas; na Bahia Rio das Rãs e Mangal,
em Goiânia Kalunga; e, por fim, em São Paulo, junto ao Vale da Ribeira.
O registro mostra resquícios de um passado escravocrata e se insere na
fotografia documental. Orientando seu trabalho, Teles chama a atenção para a
realidade brasileira: “Entre o grande mosaico de formação étnica do povo
brasileiro estão as culturas vindas da África. Hoje os afrodescendentes representam 50% da nossa população, fazendo do Brasil a segunda maior nação negra
do mundo, atrás apenas da Nigéria.”2 Esse delineamento é compreensível,
considerando-se o processo de transculturação onde os ameríndios, os africanos
e os portugueses vão compartilhar o espaço político, geográfico, social e cultural
brasileiro. Vale lembrar que, anteriormente, quando o negro aparecia como figura
de destaque na literatura nacional ou nas demais expressões artísticas, carregava
em sua identidade e atitudes resquícios de uma africanidade mimetizada e louvada
pelos principais intelectuais da época, como Jorge Amado (1912), Gilberto Freyre
1. Ricardo Teles, fotógrafo brasileiro eleito “Fotógrafo do Ano” na categoria
“Viagem” do Sony World Photography Awards 2014, um dos maiores prêmios de
fotografia do mundo, organizado pela World Photography Organization, com o apoio
da Sony. Londres, 2014.
2. Ricardo Teles, in Projeto O Lado de Lá, material cedido pelo fotógrafo. s/p.
A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ...
| 165
(1933), Sérgio Buarque de Holanda (1936), entre outros, o que de certa forma
ajuda a criar uma imagem do negro no Brasil. A constatação, e o consequente
interesse pela dimensão do universo afrodescendente, já é observada também
nos cenários acadêmicos com o aumento das pesquisas sobre uma diversidade
de temas como: o levantamento do patrimônio imaterial e os aspectos socioeconômicos, em que, agora, a identidade negra reaparece sob outra dinâmica,
contestadora da imagem criada pelos autores citados.
No contexto do século XXI, a comunidade negra quantitativamente constitui
50% da população brasileira e espelha um percurso de resistência, de luta, de
um gritar e de um calar. Porém, apesar da abolição ocorrida no Brasil, que
propunha entre outras coisas a integração dos negros à sociedade, o que notamos
é que na prática a marginalização socioeconômica e cultural permanece e a
inserção no mercado de trabalho ainda é um desafio para as comunidades
afrodescendentes. Como assevera Mattos (2011, p. 186) sobre o tema, “Para a
elite brasileira, o negro, por conta do seu ‘caráter bárbaro’ e ‘estado de selvageria’,
era um empecilho à formação de uma nação, pretendida o mais próximo possível
da civilização.” E que civilização era essa aclamada pela elite? A resposta traz
um conjunto de complexidades que irão colocar todo o processo de colonização
da América Latina em xeque. Para o colonizador, bárbaros, agressivos e
selvagens são os outros, não há uma relação de alteridade.3 Simões (2012, p. 14
e p. 15) defende também a tese histórica como base para novas reflexões:
Antes de buscar compreender os rumos da América do Sul hoje, é preciso não
perder de vista alguns aspectos definidores de nossa história. O que somos hoje
é, em boa parte, produto de processos históricos, que deixaram marcas profundas e condicionaram longamente nossas potencialidades. Compreender o passado ajuda a preparar o futuro.
A primeira marca política da América do Sul foi sua divisão ao meio, antes
mesmo de nascer. A linha imaginária definida no Tratado de Tordesilhas, de
1492, definiu um espaço de separação entre os territórios submetidos a Lisboa
3. MARCUSE, Herbert, Eros e Civilização. Uma Interpretação filosófica do
Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, apud p. 41. “Freud descreve
o desenvolvimento da repressão na estrutura instintiva do individuo. A luta pelo destino
da liberdade e felicidade humanas é travada e decidida na luta dos instintos – literalmente,
uma luta de vida e morte – em que o soma e psique, a natureza e a civilização participam...”.
166
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Isa Márcia Bandeira de Brito
e aqueles submetidos a Madri. Ainda que essa linha fronteiriça tenha evoluído
ao longo dos séculos, manteve-se continuamente como linha de separação. Ao
mesmo tempo, Tordesilhas pode ser interpretado como o primeiro produto da
solução pacífica de uma controvérsia, pois evitou potencial conflito entre portugueses e espanhóis pela conquista das novas terras sul-americanas.
Mais além, de acordo com Jaguaribe (1976, p. 4): “A origem da expressão
América Latina é alheia à própria América Latina e procede do desejo étnico
dos Estados Unidos de diferenciar a sua própria América da de seus vizinhos”;
ou seja, é evidente que os conflitos entre os portugueses e espanhóis foram minimizados, segundo a teoria de Simões, através do Tratado de Tordesilhas. Porém,
ao longo do tempo, os conflitos internos entre os diferentes grupos culturais e
étnicos existiam e aumentaram, tanto no Brasil, quanto no contexto do continente
latino-americano. Resultado: as comunidades afrodescendentes sofreram consequências negativas perceptíveis hoje principalmente no tecido urbano e na
marginalização destas comunidades. A necessidade de autopreservação do grupo
se impõe cada vez mais e, apesar destes obstáculos, os negros continuam buscando sua independência e a importância do seu papel histórico na construção da
identidade nacional. Da mesma forma, sublinha-se a importância do documento
fotográfico como registro destas resistências que ainda sobrevivem na contemporaneidade, ao contrário do que gostariam determinados grupos hegemônicos
no passado e no presente. Sobre este processo de documentação e experiência,
Teles (2002, p. 2) comenta:
Ao longo dessa quase uma década de documentação fotográfica, estive em
locais distintos que variam de região, meio natural e ciclos econômicos que
lhes deram origem durante o período colonial. Em todos eles, pude perceber a
afirmação destas comunidades apesar da diversidade de suas paisagens.
O convívio entre as culturas de diversos grupos que vieram para o Brasil e
o território nacional é evidente: cidadãos em diáspora pelo mundo, pelas razões
mais diversas, deram origem aos mais distintos movimentos coletivos em áreas
rurais e urbanas; modificaram e criaram paisagens, no domínio da natureza pelo
homem, em busca da sobrevivência individual e do grupo. Teles narra essa
trajetória através da linguagem da fotografia realizando uma etnografia do real.
Laplatine (2004, p. 82) observa:
A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ...
| 167
A fotografia não é faladora, além disso, é uma superfície plana. Mas o que ela
nos mostra, sem nunca ter a pretensão de demonstrar, é um fato único. Ela
mostra-nos a natureza idiota da realidade, no sentido etimológico do termo
(idiota = particular) que também foi escolhido por Dostoïevski em seu romance
do mesmo nome.
A possibilidade que a fotografia dá à descrição e leitura da realidade é muito
próxima da relação dos primeiros viajantes na anotação dos lugares, das pessoas,
dos hábitos, enfim, na formação destas documentações etnográficas que nos
chegaram através da pintura, dos desenhos, das primeiras notações. Um pouco
deste universo africano no Brasil foi amplamente delineado nas obras dos autores
nacionais, na música e em diversas formas de expressão e no construto da própria
língua.
Simbolicamente, esse construto está inserido na cultura nacional sem ao
menos nos darmos conta de sua origem, intricado no cotidiano de cada brasileiro.
É cada vez mais improvável configurar uma identidade nacional, e mais notável
é a noção de um território de fronteiras múltiplas.
Daremos um exemplo da literatura urbanística que irá tratar da esfera
simbólica e física da cultura africana no país, especificamente na cidade do Rio
de Janeiro. Assim como os quilombos, as favelas4 surgem como espaços de
resistência, tanto sob a perspectiva da sua morfologia quanto da sua organização
política. Com o decorrer da afirmação do capitalismo, a estrutura especulativa
do espaço urbano vai alternando e criando novas relações de valores nestes
espaços socioeconômicos e culturais, consequentemente expulsando e eliminando às vezes grupos inteiros, como ocorreu com alguns quilombos. Curiosamente, estas resistências aparecem em muitas ocasiões de forma simbólica, na
adoção de uma identidade, que nos remete ao passado da qual é exemplo a Escola
Quilombo;
Trata-se de uma escola de samba peculiar no Rio de Janeiro, estando sua sede
localizada próxima às duas favelas e com grande parte dos seus integrantes residindo em uma delas.
4. Favela: termo usado na literatura técnica principalmente nas décadas de sessenta
e setenta até meados da década de oitenta passando posteriormente a ser substituído paulatinamente pelo termo Comunidade.
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Isa Márcia Bandeira de Brito
Com efeito, inicialmente, a Quilombo se fazia representar no processo pela
presença de um ou outro de seus membros nas reuniões quinzenais realizadas
na associação de moradores.5
Como notamos, a escola de samba chama-se Quilombo e está dentro de um
espaço geográfico denominado favela, ou seja, permanência e resistência em uma
história que vem se repetindo ao longo das gerações de afrodescendentes, que
continuam à mercê de uma política pública, que os considera meros empecilhos,
como comenta Mattos (2011), sobre o que a elite brasileira almejava como um
padrão nacional. Não é apenas no Brasil que as populações negras batalham para
romper esta marginalização. Por todas as partes do globo, onde os negros foram
mão de obra e considerados bens econômicos alienados de suas características
humanas, esse processo de exclusão foi registrado e as consequências são sentidas
até hoje, seja na América-Latina ou mesmo no Continente Africano, com os
processos de colonização.
Convém ressaltar que a administração das colônias foi baseada na exploração e, no primeiro momento, foram os produtos exóticos e as matérias primas
que interessaram aos mercados europeus. Uma política de dominação direta e
indireta.
Silva6 narra a trajetória da sociedade brasileira de 1500 a 1808, depois o
Império, a República, a era Vargas, a ditadura e a pós-ditadura, sublinhando como
a hegemonia, no caso a branca, de um grupo sobre o outro foi sendo afirmada
através dos sucessivos sistemas representativos desde a colônia, como já notamos.
Para nos situarmos apenas no Brasil, entre os anos de 1964 e 1968, encontramos
Guarnieri e o teatro paulistano denunciando a situação histórica dos negros
através da peça “Arena conta Zumbi”. Notem a fala de um dos personagens:
Zambi – Eu vivi nas cidades no tempo das desordem. Eu vivi no meio da minha
gente no tempo da revolta. Assim passei os tempo que me deram pra vivê. Eu
me levantei com a minha gente, comi minha comida no meio das batalha. Amei,
5. CASTRO, Pedro. Indícios na teia da mobilização popular urbana: O caso Acari,
apud BOSCHI, Renato Raul, (org.). Movimentos Coletivos no Brasil Urbano. Debates
Urbanos, vol. 5. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1982. p. 92
6. SILVA, Dilma de Melo, org. Formação Histórica da Cultura Brasileira. apud:
Brasil: Sua gente e sua cultura.São Paulo: Terceira Margem, 2007.
A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ...
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sem ter cuidado...Olhei tudo que via, sem tempo de bem ver...Assim passei os
tempo que me deram pra viver. A voz da minha gente se levantou e minha voz
junto com ela. Minha voz não pode muito mas gritá eu bem gritei. Tenho certeza
que os donos terra e Sesmaria ficaria mais contente se não ouvisse a minha voz...
Assim passei os tempo que me deram pra viver. (MARTINS, 1980, p. 84)
É sobre esta questão ideológica, do papel do negro na sociedade brasileira,
que muitos outros continuam gritando com Zambi em diversas áreas do conhecimento, como na obra fotográfica de Ricardo Teles. Novas gerações nascem
nos quilombos contemporâneos e necessitam entender seu espaço como um
arcabouço histórico dentro do País.
Estes quilombos que pouco a pouco se integram legalmente no espaço
geográfico e político brasileiro têm nos seus antepassados os fundadores de uma
comunidade de resistência, de autossustentabilidade e de laços de fraternidade
que ressoam a África no Brasil.
Antes de pensarmos o que foram e o que são hoje os quilombos, Munanga
(2008, p. 48) desenvolve reflexão ampla sobre o tema e nos instiga a repensar o
país:
A pluralidade racial nascida do processo colonial representava, na cabeça dessa
elite, uma ameaça e um grande obstáculo no caminho da construção de uma
nação que se pensava branca; daí por que a raça tornou-se o eixo do grande
debate nacional que se tratava a partir do fim do século XIX e que repercutiu
até meados do século XX. Elaborações especulativas e ideológicas vestidas de
cientificismo dos intelectuais e pensadores dessa época ajudariam hoje, se bem
reinterpretadas, a compreender as dificuldades que os negros e seus descendentes mestiços encontram para construir uma identidade coletiva, politicamente mobilizadora.7
Na esteira posta por Munanga, convidamos para o debate Mattos (2011, p.
137), que advertidamente nos auxiliará na definição dos quilombos:
Alguns escravos fugidos construíram comunidades independentes não muito
isoladas, para que pudessem interagir com a sociedade, comercializando sua
7. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade
nacional versus identidade negra, Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 48.
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Isa Márcia Bandeira de Brito
produção agrícola, mesmo que de forma clandestina, com a ajuda de pequenos
comerciantes, agricultores e até mesmo escravos... Conhecidas como quilombos
ou mocambos, essas comunidades foram aparecendo em várias localidades brasileiras próximas aos engenhos, às minas de ouro e pedras preciosas, nos sertões
e nos campos.
Além da definição conceitual para os quilombos, a cultura é outro aspecto
a ser considerado na identidade de um indivíduo ou de um grupo e a forma de
expressá-la. Em geral, é um dos primeiros pontos a serem abafados pelo dominador. Conduru (2007, p. 13) a este respeito também se pergunta;
Quais foram as contribuições africanas efetivas para a configuração da arte
portuguesa no Brasil, da dita arte luso-brasileira? Como os modelos e tipos
europeus foram revistos à luz daquilo que Emanoel Araújo chamou de “A mão
afro-brasileira”,8 pressupondo saberes e fazeres, sensibilidades africanas que
participaram da conformação da arte no Brasil?
A identidade afrodescendente abarca um amplo horizonte que não se limita
apenas à sua posição histórica ou geográfica, mas abrange todas as suas formas
de expressão. Se por um lado assumimos uma africanidade, é porque há um sentido de brasilidade implícita; e, seguindo este raciocínio, uma latinidade, um marcador que nos posiciona em um determinado espaço geográfico com detentores
de saberes específicos que integram um grupo, seja ele afrodescendente, brasileiro ou latino-americano.
Considerando a pluralidade de etnias que marcam o território nacional, Teles
nos fornece um manancial de informações sobre as comunidades quilombolas,
através da fotografia documental: os jogos e brincadeiras infantis, o trabalho na
agricultura, as festas religiosas e pagãs que podem fornecer-nos pistas de quais
seriam as outras identidades partilhadas nestes grupos. Essa investigação inserida
na fotografia documental avança para outras disciplinas como a sociologia, a
antropologia etc.
Não se trata apenas de registro de comunidades quilombolas, mas do que
seria afinal a identidade brasileira e quais os contornos dessa cidadania. Com a
8. ARAÚJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira. Significado da contribuição
artística e histórica. São Paulo: Tenege,1988.
A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ...
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instituição dos direitos e deveres reforçados pela Constituição de 1988, a
sociedade brasileira vem ampliando a sua participação como cidadã. As comunidades antes com pouco espaço para ação veem a possibilidade real de colaborar
para que suas reivindicações ganhem corpo. Os quilombolas iniciam sua luta de
reconhecimento da terra e de suas atividades socioculturais como grupos que se
organizam e se mobilizam no espaço democrático.
A organização da sociedade e o reconhecimento das mais diversas
populações que compõem o tecido social no Brasil geraram também outros
dispositivos aqui definidos pela Fundação Palmares.9
Por Ação Afirmativa entende-se o conjunto de políticas públicas adotadas com
o objetivo de promover a ascensão de grupos socialmente minoritários, sejam
eles étnico-culturais, sexuais ou portadores de necessidades especiais. Em
síntese, a ação afirmativa tem como objetivo combater as desigualdades sociais
resultantes de processos de discriminação negativa, dirigida a setores vulneráveis e desprivilegiados da sociedade.10
Esta promoção positiva da nossa “brasilidade” é mais uma motivação para
que outros trabalhos surjam e contribuam com sua documentação e registro. Nesta
perspectiva sobre a leitura que podemos fazer através de uma imagem, nota-se
que apenas poucos elementos, ou mesmo a ausência deles, como a ferramenta
de trabalho, a indumentária, poderiam identificar não somente em que nível
socioeconômico se encontrava o retratado, mas ainda o espaço físico e geográfico
em que ele habitava. Os afrodescendentes tentavam manter elos com a sua pátria,
a África. Porém, submetidos à dominação do colonizador, já se resentiam de uma
posição independente, motivados pela hierarquia e posição social que ocupavam,
então, e que os desfavoreciam, é o que ressalva Koutsoukos (2010, p. 97):
No estúdio do fotógrafo o negro livre e o forro tratavam de se fazer representar
seguindo, via de regra, os itens do padrão europeu da moda então vigente. Em
9. Definição extraída do site “A Fundação Cultural Palmares (FCP), criada pela Lei
nº 7.668, de 22 de agosto de 1988, tem por finalidade promover os valores culturais, sociais
e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira...” Fonte:
http://www.palmares.gov.br/acoes-e-programas/, último acesso, abril de 2013.
10. Ações afirmativas, Fonte: http://www.palmares.gov.br/acoes-e-programas/,
último acesso, abril de 2013.
172
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Isa Márcia Bandeira de Brito
tais fotos, raras vezes encontraremos algo que ligue as figuras representadas a
algum tipo de trabalho ou profissão (assim como nas fotos das pessoas brancas),
pois a apresentação do instrumento de trabalho ligava a pessoa aos setores livres
mais pobres, ou à classe escrava.
A importância destes elementos e o que eles representavam no cenário
nacional, e que hoje são passíveis de observação, pesquisa e análise crítica da
nossa história, já denotavam também o projeto que se urdia para o Brasil e ao
mesmo tempo o destino do processo de colonização controlado por um corpo
administrativo, testemunhando transformações que se deram no espaço e nas
relações sociais.
Como a fotografia atuou e atua sobre este universo? Para incrementar este
debate, foi necessário buscar alguns conceitos iniciais sobre o que venha a ser a
própria fotografia. Kubrusly (2006, p. 8) comenta:
Afinal, o que é fotografia? A possibilidade de parar o tempo, retendo para
sempre uma imagem que jamais se repetirá? Um processo capaz de gravar e
reproduzir com perfeição imagens de tudo que nos cerca? Um documento histórico, prova irrefutável de uma verdade qualquer? Ou a possibilidade mágica
de preservar a fisionomia, o jeito e até mesmo um pouquinho da alma de alguém
de quem gostamos? Ou apenas uma ilusão? Uma ilusão de ótica que engana
nossos olhos e nosso cérebro com uma porção de manchas sobre o papel,
deixando uma sensação tão viva de que estamos diante da própria realidade
retratada?
As questões iniciais da fotografia, na sua origem, tratam a imagem primeiramente como uma possibilidade de retratar o real da forma mais fiel e
objetiva possível, ainda que sob o encantamento da sua reprodução enquanto
técnica. A fotografia, porém, vem ao longo do tempo trazendo outras discussões,
segundo Cotton (2010, pp. 7-11). Nesta análise, o tema é subdivido em oito linhas
de pensamento sobre a estética da fotografia de arte, aqui resumidas:
1o Como os fotógrafos criam estratégias, performances e eventos
especialmente para a câmera;
2o Concentração nas narrativas de histórias dentro da fotografia de arte;
3o Exame da ideia de uma estética fotográfica;
4o Limites do que pode ser considerado um tema visual crível;
A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ...
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5o Concentração nas relações psicológicas e pessoais, como num tipo de
diário da intimidade humana;
6o Capacidade de uso documental da fotografia na arte;
7o Variedade de métodos recentes;
8o Natureza do meio como parte da narrativa da peça.
Em complementação, após uma descrição das origens da fotografia,
Kubrusly testemunha que o horizonte da fotografia está ampliado e a dúvida sobre
a sua inserção como objeto de arte já não existe. Diante dos pontos identificados
por Cotton, poderíamos deduzir em qual deles se enquadraria a obra de Ricardo
Teles.
Certamente, o sexto item na lista classificatória de Cotton poderia abarcar
o projeto “Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove comunidades Negras Rurais do Brasil”: sendo a fotografia aqui entendida como um
documento cuja importância estética a classificaria de igual forma ao status de
obra de arte, uma vez que o “olhar” do fotógrafo busca no fotografado uma aura
psicológica que transpassa o lugar do íntimo. É para o observador algo que vai
além do registro, sendo assim a poética da imagem que se revela. Tratando-se o
íntimo na perspectiva de Bachelard (1993, p. 189),
Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem
dúvida, o devaneio alimenta-se de espetáculos variados; mas por uma espécie
de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza
determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o
devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que
traz o signo do infinito.
A obra de Teles coloca seus protagonistas no centro da ação interagindo
com as paisagens locais e desta forma as imagens transbordam para além das
suas significações e das arenas do cotidiano dos quilombolas.
A fotografia de Teles é um texto histórico se contabilizado apenas como um
documento, mas é fundamentalmente um texto visual alçado à arte através da
estética que imprime o fotógrafo em cada ângulo, em cada recorte que escolhe no
momento do click. Além disso, capta o fazer-saber11 da comunidade (Fig. 1), na
11. Fazer-saber, termo utilizado por PIETROFORTE na análise de uma fotografia
do poeta Haroldo de Campos, do livro O lugar do escritor, Eder Chiodetto, 2003.
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Isa Márcia Bandeira de Brito
sobreposição das gerações de quilombolas, que podem ser lidas por inúmeros
detalhes, tais como as diferentes mãos que tocam o objeto: cabelo-menina.
Fig.1. Frechal,1996. – Foto: Ricardo Teles.
Ao tentar decifrar a obra de Teles é inevitável recordarmos das primeiras
lições da arte moderna em Klee e sua máxima sobre a filosofia da criação: “La
force créatrice échappe à toute dénomination, elle reste en dernière analyse un
mystère indicible. Mais non point un mystère inaccessible, incapable de nous
ébranler jusqu’au tréfonds”.12 Todo o esforço empregado nesta pesquisa continuará sendo pequeno em relação à grandeza da obra de arte que só se complementa a partir do outro e de sua alteridade, assim como os diferentes grupos que
convivem em nosso território geográfico e emocional.
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artística e histórica. São Paulo: Tenege,1988.
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12. KLEE, Paul. Theorie de L’art Moderne. Éditions Gonthier: Genève, p. 57.
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WMF Martins Fontes, 2010. Coleção Arte & Fotografia.
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LAPLATINE, François. A descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem,
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São Paulo: Contexto, 2008.
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Brasil: Sua gente e sua cultura. São Paulo: Terceira Margem, 2007.
SIMÕES, Antonio José Ferreira. Eu sou da América do Sul. Brasília: FUNAG, 2012.
| 177
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei1:
ações em interface2
ISABELA UMBUZEIRO VALENT*
ELIANE DIAS DE CASTRO**
Resumo: Este estudo se tece a partir de experiências acompanhadas no Ponto
de Cultura é de Lei, onde a arte contemporânea, em especial fotografia e
audiovisual, instauram-se na vizinhança de práticas de saúde ou envolvem a
presença de pessoas em situações de vulnerabilidades. Num exercício
cartográfico, mapeou-se linhas singulares nos acontecimentos vivenciados: a
presença da câmera fotográfica ou audiovisual e a circulação nos diferentes
espaços da cidade e da vida coletiva. Relatos se entrecruzam com conceitos
filosóficos, estéticos e culturais, somados às referências artísticas baseadas em
processos colaborativos, e discutem problemáticas relativas às estratégias de
1. O Centro de Convivência É de Lei é uma organização da sociedade civil que
existe desde 1998 e atua na região central da cidade de São Paulo. Desenvolve ações
interdisciplinares e intersetoriais como estratégias para a recuperação e redução de danos.
Para saber mais acesse www.edelei.org.
2. Este estudo é parte da dissertação de mestrado de Isabela Umbuzeiro Valent,
intitulada “Fazer imagens, inventar lugares: Experimentações fotográficas e audiovisuais
em práticas artísticas na interface Cultura e Saúde”, desenvolvida no PGEHA e finalizada
em agosto de 2014.
* Terapeuta ocupacional pelo Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de
Medicina da USP. Mestra em estética e história da arte (PGEHA/USP – Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo) - Agência
de fomento: CAPES
** Professora Doutora do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia
Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP. Orientadora do Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo.
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Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro
participação social e cultural. As práticas artísticas destacam-se enquanto
alternativas para instaurar experimentações que possibilitam a produção de
subjetividade a partir da heterogênese e compõem o conjunto de estudos interdisciplinares na interface das artes, da cultura e da produção de saúde.
Palavras-chave: Processos Colaborativos em Arte. Cultura. Produção de Subjetividade. Populações em Situação de Vulnerabilidade. Emancipação.
Trials in Cultural Point É de Lei: interface actions
Abstract: This study is determined by accompanied experiences at Culture Point É
de Lei, where contemporary arts, especially photography and video – are established
in the neighbordhood of health practices or involve the presence of people in
vulnerable situations. As a cartographic exercise, singular lines were mapped in the
experienced events: the presence of a camera and the circulation in different urban
and collective spaces. Reports of these experiences are mutually crossed with
philosophical, esthetical and cultural concepts, added to artistic references based on
collaborative processes in order to discuss and appoint problems related to strategies
of social and cultural participation. The artistic practices appear as alternatives to
establish experimentations that allow the subjectivity production from heterogenesis
and comprise the set of interdisciplinary studies on arts, culture and health production
interface.
Keywords: Collaborative Processes in Arts. Culture. Subjectivity Production.
Populations in Vulnerable Situations. Emancipation.
Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo,
tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O
que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento
e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que
une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de
“desindividualização”.3
MICHEL FOUCAULT
3. Trecho do prefácio escrito por Michel Foucault à edição americana do AntiÉdipo, de Gilles Deleuze e Feliz Guattari. Republicado em M. Foucault, Dits et Ecrits,
volume III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994.
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface
| 179
Um dia, depois do trabalho, eu conversava com meu colega oficineiro. Ele habitava as tardes de quarta-feira com a oficina de vídeo e eu as tardes de quintafeira com a oficina de fotografia. Ele me dizia sentir dúvida quanto ao que produzíamos, à eficácia de nossas ações diante de tamanha carência, miséria, vidas
com tantas demandas como aquelas dos participantes das oficinas. Realmente,
algo grande demais para darmos conta. Grande demais para colocarmos enquanto objeto de nossa intervenção numa oficina semanal de experimentação em
fotografia e vídeo. Enquanto ele enunciava essas questões, que ressoavam em
mim, eu lembrava das tardes de quinta-feira.
Das nossas saídas pelo centro da cidade em grupo para fotografar. Da descoberta
das luzes que passam em diferentes momentos por entre as brechas dos prédios.
Dos ambientes, pessoas, situações que cada um ia mostrando nesse caminhar.
De ficar preocupada com aquele que sempre sumia com a câmera na mão e voltava rindo, sabendo que havia nos provocado. Feliz de voltar ao grupo, feliz
de estar com a câmera na mão, feliz de voltar, de nos fazer preocupar e rir.
De contar para o grupo como funciona uma câmera fotográfica por dentro, de
redescobrir o encanto que as máquinas fotográficas sempre me proporcionaram.De ver o olho de um participante vibrar quando ele descobre a câmera
escura por um furinho na parede de um caminhão em que ele estava dentro e
por ele as imagens da rua se projetavam em sua parede interna.De alguém pegar
na câmera, explorar suas possibilidades, querer ser fotografado, ficar curioso
com o outro, pedir uma entrevista, dar uma entrevista, contar histórias.
Lembrando de tudo isso, inundava-me uma sensação de alegria. Era alegria que
eu sentia em muitas daquelas tardes. E eram elas as que mais me mobilizavam
no preparo dos encontros das oficinas e no modo de conduzi-las.
Diante de tantas questões relacionadas à falta, à precariedade, à vulnerabilidade e a violência vinculadas ao cotidiano dos conviventes do É de Lei,
muitas vezes, no lugar de propositores de experiências artísticas, deparávamonos com inúmeras inquietações éticas. Quais eram nossos objetivos ali? O que o
fazer artístico poderia proporcionar naquele contexto? Contexto povoado por
faltas: de moradia, de comida, de projetos de vida, de emprego, de segurança
etc. Diante da violência, de violações de direito, de conflitos territoriais, de opressões políticas, de situações de exclusão e tantos outros, que sentidos teriam aqueles fazeres nesse contexto?
Em Beleza Exorbitante, o filósofo e historiador da arte, Jean Galard (2012),
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Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro
trata de questões ligadas ao estatuto da imagem no contemporâneo e aponta
questões semelhantes com as quais nos deparávamos. Como as de um fotógrafo
que realiza imagens diante de situações de horror: fotografar nessas situações,
em essência, é um ato de não intervenção? “Olhar é colocar-se numa posição
indigna: a do espectador que assiste passivamente à angústia do outro. Somos
culpados – ou de voluntária ignorância, ou de voyeurismo” (ibidem, p. 11).
Um primeiro ímpeto nos toma, sobretudo quando esse fazer está ligado ao
aparato fotográfico e audiovisual. Se trata da intenção de utilizá-lo para denunciar
essas situações, para torná-las evidentes. O primeiro documentário do Ponto de
Cultura É de Lei parece caminhar nessa direção, Na Rua, Da Rua, Pra Rua
(PONTO DE CULTURA É DE LEI, 2011a): um documentário experimental que
tem como tema questões específicas ligadas à situação de rua e ao consumo de
drogas; uma espécie de ímpeto jornalístico, num esforço para enquadrar naquele
contexto imagens que representem essas faltas e excessos, mas que, talvez, nesse
movimento, poderiam acabar por reiterar a própria lógica de produção dessas
representações. Basta repararmos no excesso de imagens que povoam os programas de televisão. Qual será o papel desse intuito de denúncia? Pois parece que,
fotografar o horror só tem sentido se for para acabar com ele (...) Mas o horror
está em toda parte, o escândalo ressurge de todos os lados. O testemunho não
pesa, não tem efeito. (...) a foto de uma cena de horror pode não significar nada
mais que um horror geral à guerra, o que equivale recusar a história singular
do país onde ela ocorreu, a se desinteressar por ela, a não ver senão a guerra
genérica, o escândalo eterno, isto é, na verdade, a não ver nada. (GALARD, 2012,
p. 118-119)
Teria a arte da fotografia e do vídeo alguma responsabilidade sobre essas
questões que extrapolam a própria arte? Se sim, corremos o risco de adentrar
outros campos e utilizar a arte como ferramenta para uma certa reparação de
questões de outras ordens – culturais, socioeconômicas, políticas. Se não, como
a arte e o fazer artístico poderiam compor com aquele contexto? Preocupar-se
em criar uma bela imagem acerca dessas questões seria uma espécie de abuso?
Seria estetizar esses acontecimentos?
Tirar uma foto estética do mundo não significa exatamente “estetizá-lo”. A
estetização é uma operação que transforma objetos, seres ou situações em um
espetáculo de que se pode usufruir sem se sentir vitalmente implicado. (...) o
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface
| 181
estetismo consiste em tornar a realidade aceitável, olhável, consensual. (...) a
estetização é o desvio da atenção estética. (ibidem, p. 30-31)
Sentirmos alegria naqueles encontros da oficina seria um abuso diante
daquela realidade? Teria a poesia, a arte, a dimensão estética e a ficção alguma
relação com tudo isso? Que formas de implicação com aquelas pessoas e aquele
contexto poderiam se produzir?
Em 2011, a oficina de vídeo realizou o filme A mala de um milhão de dólares
(PONTO DE CULTURA É DE LEI, 2011b), um curta-metragem, ficção, de 3
min, onde os participantes filmam, atuam e elaboram o roteiro. Esse vídeo pareceu
mobilizar e envolver a todos. Era notável e contagiante a alegria com que se
assistia suas exibições no Centro de Convivência e a reverberação que ganhou
entre os conviventes. Começamos a nos perguntar o que será que mobilizava os
conviventes? Que coisas cada um gostava e que histórias gostariam de compartilhar? Que conversas poderiam acontecer para além da temática situação de rua
ou uso de drogas? E para isso bastava silenciar, deixar que vozes dissonantes
ocupassem o espaço: silenciar, talvez, a própria angústia, podendo reconhecer
outras coisas para além daquela falta. Ao definirmos uma pessoa como usuária
de drogas ou moradora de rua, nós a reduzimos a apenas um traço de sua história.
Olhamos aquilo que ela não é e deveria ser, numa imposição autoritária de um
modo de vida ideal ou socialmente aceito. Na melhor das intenções, naquele
momento, acabava-se por impor uma temática que reiterava aquelas pessoas
enquanto objetos de um discurso, ao invés de afirma-las suas posições como
produtoras de discursos. Nesse silenciamento, abrindo espaço a novos imaginários, passávamos talvez a habitar, coletivamente, outros lugares.
Não há real em si, mas configurações daquilo que é dado como nosso real, como
o objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções.
O real é sempre objeto e uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no
qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção
consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e
traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real o das
representações e aparências, opiniões e utopias. A ficção artística e a ação
política sulcam, fraturam e multiplicam esse real de um modo polêmico. O
trabalho da política que inventa sujeitos novos e introduz objetos novos e outra
percepção dos dados comuns é também um trabalho ficcional. Por isso, a relação
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Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro
entre arte e política não é uma passagem da ficção para a realidade, mas uma
relação entre duas maneiras de produzir ficções. As práticas da arte não são
instrumentos que forneçam formas de consciência ou energias mobilizadoras
em proveito de uma política que lhes seja exterior. Mas tampouco saem de si
mesmas para se tornarem formas de ação política coletiva. Contribuem para
desenhar uma paisagem nova do visível, do dizível e do factível. Forjam contra
o consenso outras formas de “senso comum”, formas de um senso comum
polêmico. (RANCIÈRE, 2012, p. 74-75)
É de dentro e de fora – É de Lei participa do INSIDE OUT
Em 2011, o É de Lei participou do projeto artístico internacional: INSIDE
OUT.4 A participação envolveu integrantes do Ponto de Cultura É de Lei, que
realizaram a intervenção urbana É de dentro e de fora na cidade de São Paulo,
colando 34 retratos na Câmara dos Vereadores e em uma banca de jornal sobre
o Viaduto do Chá. Essa ação, iniciada nas oficinas de fotografia, contou com
diversas etapas e envolveu pessoas que trabalhavam, frequentavam e circulavam
no Centro de Convivência É de Lei, num processo que durou um ano (2011-2012).
Tapume da Câmara dos Vereadores da Cidade de São Paulo.
4. Página da intervenção do É de Lei no site oficial do projeto: http://
www.insideoutproject.net/en/group-actions/brazil-sao-paulo-1
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface
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Para refletir sobre os efeitos dessa participação, foram destacados alguns
elementos que constituem as práticas artísticas participativas na arte contemporânea. Tomarei como ponto de partida para a reflexão o próprio Projeto
INSIDE OUT, do fotógrafo francês JR. Este trabalho é constituído por um projeto
artístico participativo internacional em andamento. Suas ações se desenvolvem
em escala global. Até hoje, contou com a participação de cerca de 200.000
pessoas, em mais de 112 países.5 O projeto é inspirado em trabalhos anteriores
do artista, em que ele realizou e colou retratos fotográficos preto e branco em
grande formato nos muros de diferentes cidades.
Com a chamada de maior projeto artístico participativo do mundo, INSIDE
OUT consiste num dispositivo no qual qualquer pessoa ou grupo realiza retratos
de si, de outros, de pessoas comuns. Após enviar os retratos em formato digital
para a equipe de produção do projeto, ela recebe impressões em tamanho grande,
que posteriormente são coladas em espaços públicos escolhidos pelos participantes. O registro fotográfico e audiovisual dessas ações é adicionado a uma
plataforma virtual, que reúne todos os participantes.
Alguns críticos6 apontam tendências na arte contemporânea a buscar espaços
fora das instituições que validam o que é e o que não é arte, buscando prescindir
das galerias e museus. O discurso de JR mostra um pouco dessa tentativa:
JR é dono da maior galeria de arte no mundo. Ele exibe livremente nas ruas da
cidade, capturando a atenção de pessoas que não são típicos frequentadores de
museus. Seu trabalho mistura Arte e Ação, fala sobre compromisso, liberdade,
identidade e limite. (JR, 2014, tradução nossa)
A trajetória do artista mostra sua intenção em realizar e exibir suas produções
de maneira independente do sistema da arte e seu mercado. JR iniciou seu
percurso realizando grafites nos muros de Paris. Começou a fotografar e colar
suas primeiras fotografias nas ruas criando o que ele denominava Expo 2 Rue.
As imagens eram impressas em papel comum e coladas pelo método lambelambe, cola produzida com farinha e água, comumente utilizada para colagem
de anúncios em postes e muros. Ao redor das imagens, JR desenhava uma moldura
5. Fonte: site oficial do projeto: http://www.insideoutproject.net/en/about Acessado
em 20/07/2014.
6. (Fabbrini, 2010), (Groys, 2008), (Bishop, 2008).
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Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro
com tinta spray e escrevia: Expo 2 Rue ou Sidewalk Gallery (2001-2004). Mesmo
depois das fotos removidas pela chuva ou arrancadas, ali ficava a imagem da
moldura criada.
Boris Groys (2008), crítico de arte e filósofo, traz questões para essa discussão. Para o autor, há uma tendência na arte contemporânea a ver o museu com
ceticismo e desconfiança, buscando-se uma arte que se realize diretamente na
vida, tendendo a abolir os museus, herança vinda das estratégias vanguardistas
do modernismo e abraçada pela arte contemporânea. Mas, naquele contexto, esse
protesto em relação ao museu era também contra as instituições que ditavam as
normas de produção artística vigentes. O autor chama a atenção para mudanças
políticas e institucionais no contexto atual. Para ele, o que mais dita e normatiza
os valores estéticos das produções é o mercado midiático global, de onde o público, em geral, desenha suas noções artísticas, com um poder aparentemente muito
mais abrangente que os museus e as instituições artísticas.
A comunicação imagética digital bombardeia o cotidiano das pessoas, com
um poder fortíssimo nos processos de subjetivação. Segundo Foucault, os mecanismos de poder passam a operar não mais numa lógica disciplinar, na qual
estariam implicados indivíduos e instituições, mas na lógica de controle. Na
sociedade de controle, o poder atua de forma capilar sobre a vida de cada sujeito,
não mais categorizando e confinando populações em determinadas instituições
(escola, hospital, fábrica) como na sociedade disciplinar, mas a partir de uma
economia do poder que gerencia os corpos por meio de um sistema de individualização que busca modelar cada indivíduo, gerindo sua existência
(FOUCAULT apud DELEUZE, 2005b)
Esses mecanismos de poder incidem sobre o campo da prática artística
contemporânea. Segundo Groys (2008, p. 55, tradução nossa):
A arte se torna uma forma de vida, e a obra de arte se torna não-arte, um simples
registro dessa forma de vida. Também é possível dizer que a arte se torna
biopolítica, na medida em que os meios artísticos começam a ser utilizados para
gerar e registrar a vida como pura atividade. Na realidade, o desenvolvimento
do registro artístico só é possível nas condições biopolíticas atuais, já que a
vida em si passou a ser objeto de intervenções técnicas e artísticas.
Esse embaralhamento arte e vida parece habitar as imagens de JR. Ao
descrever seu próprio trabalho em vídeo, o artista fala da motivação para reali-
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface
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zação de seu segundo trabalho, Portraits of a Generation (2004-2005). No
contexto das manifestações ocorridas no subúrbio de Paris em 2005, nasce o
primeiro projeto que inaugura a série 28 Millimeters, onde o fotógrafo realiza
retratos e autocaricaturas com estética próxima da que prevalece no projeto
INSIDE OUT. JR sente-se incomodado com a forma ameaçadora com que a TV
mostrava os manifestantes da periferia de Paris. Relata estranhamento ao ver
pessoas que ele já conhecia e fotografava, que “não eram anjos, mas também
não eram monstros”, como apareciam na televisão. Assim, ele voltou àquele
território e realizou retratos das pessoas, com sua confiança e consentimento, já
que, com uma lente 28mm, você tem que estar muito próximo daquele que retrata.
Depois, colou os retratos no centro de Paris.
Nesse momento, parece nascer uma forte marca do trabalho de JR, que irá
culminar em escala global no projeto INSIDE OUT. Essa aproximação, que inclui
a escolha do sujeito fotografado a expor sua face, construindo junto com o artista
a própria imagem, instaura um campo de negociação do sujeito com a própria
imagem e exposição, diferentemente da relação que a mídia parece estabelecer
com aqueles que ela pretende documentar. A exposição, circulação e exibição
desses retratos utilizam-se da mesma linguagem e recursos dos meios de comunicação de massa para veicular outras imagens, instaurando novas posições entre
retratar e ser retratado.
O trabalho de JR acontece no interstício dos dispositivos, compondo-se de
elementos heterogêneos, operando por práticas discursivas e não discursivas.
Engloba diferentes atividades e relações humanas e habita os campos da comunicação, do sistema da arte, da mídia, do mercado, da publicidade, da vida de
pessoas comuns, atuando de forma local e global. Instâncias que extrapolam a
materialidade dos elementos formais empregados: cola e papel. É na trama da
cidade e da vida que essas ações se dão. Neste, como em outros projetos, a vida
torna-se objeto e campo das intervenções artísticas, que também são terreno da
política.
Groys (2008) destaca o fato de que hoje a política mudou seus domínios de
atuação, os quais se baseiam fortemente na produção imagética veiculada pela
mídia. Os políticos parecem ser julgados cada vez mais pela estética de sua
performance. Segundo ele, essa estetização da política nos oferece a possibilidade
de analisá-la sob critérios artísticos. À primeira vista, a diversidade de imagens
produzidas e veiculadas pela mídia parece ser incomensurável, mas ela é
altamente limitada. Para serem reproduzidas, essas imagens precisam ser
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Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro
facilmente reconhecidas pela grande audiência tornando essa comunicação quase
tautológica. Assim, a diversidade de imagens em circulação no acervo de um
museu produzidas pela arte tem uma amplitude muito maior, pela sua diversidade,
do que as produzidas pela mídia de massa. Para o autor, torna-se importante
preservar os espaços instituídos da arte, na medida em que podem oferecer a
possibilidade de acesso a diferentes imagens, fornecendo referências para o
público reconhecer o novo do velho e o mesmo do diferente, garantindo o que
ele denomina direitos estéticos iguais.
Para Groys (2008), na contramão de algumas teorias artísticas recentes, que
negam a autonomia da arte, pode-se falar de um poder autônomo de resistência
da arte. Isso não significa que o sistema da arte tenha total autonomia, já que
está submetido a julgamentos de valores e regras de inclusão e exclusão que
refletem convenções sociais e estruturas de poder hegemônicas. Mas, se a autonomia da arte se der num regime de direitos estéticos iguais para todas as formas,
objetos e mídias, teríamos aí um balizador que garantiria um olhar igualitário
para as diferentes produções, podendo inclusive indicar quando há desigualdades
culturais, sociais ou políticas.
Quais as diferenças de algumas experiências produzidas e protegidas sob a
denominação de práticas artísticas daquelas, muito similares, que são produzidas
por pessoas diretamente na vida, sem a mediação dessa denominação? No
encontro com participantes do Ponto de Cultura É de Lei, podemos acompanhar
pessoas que, em seus gestos cotidianos, realizam ações estéticas na trama da
cidade similares às de alguns artistas contemporâneos em happenings ou
performances, nas quais convenções e limites são colocados em xeque. Esses
gestos, muitas vezes, acabam encerrados sob a marca da estranheza e quase sempre são reprimidos por forças policiais e mantenedoras da ordem social, algo
bastante diferentes do que ocorre com os artistas. Se a diferença entre esses gestos
não está propriamente na forma – o que se faz, aspectos relacionados a uma
dimensão estética desses gestos – onde ela estaria?
O que parece prevalecer é a posição social dessa pessoa. Ou seja, aspectos
políticos, socioeconômicos, culturais, etc. Assim, é importante atentarmos para
os contextos e condições de enunciação dessas práticas. O lugar social atribuído
ao artista, garantido por uma posição socioeconômica, sua inserção e reconhecimento nas redes de pertencimentos, além da presença de um aparato de
comunicação envolvido na legitimação de uma ação denominada enquanto
artística, são pontos cruciais para a recepção desses gestos performáticos. Poder-
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface
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se-ia dizer que se trata de uma posição privilegiada, porém aí teríamos um
paradoxo: todas essas condições podem funcionar como força para a sustentação
de conflitos e estranhamentos – ou seja, o não enquadramento imediato dessa
situação como loucura, ato infracional, etc. – como também podem funcionar
como lugares garantidos que apaziguam essa potência, justamente no instante
em que o público percebe que aquela ação se trata de performance artística. Sob
essa legenda, passamos a nos relacionar com a situação habitando esse simulacro.
O que acontece ali é e não é a vida real. Assim, efetivamente, como esses gestos
e ações podem engendrar acontecimentos na vida? E, além disso, onde estaria a
potência de ações estéticas realizadas por pessoas que não estão protegidas por
essa posição social? Como ampliar o reconhecimento dessas ações antes que
sejam totalmente reprimidos por outras forças? Como compor relações entre esses
diferentes lugares?
Voltemos a experiência concreta dos integrantes do Ponto de Cultura É de
Lei em sua participação no Projeto INSIDE OUT. Com cerca de um ano de
duração, gerou intensa mobilização entre os participantes. Fomentou discussões
importantes acerca da prática artística e cultural ali desenvolvida e do modo como
cada um e o coletivo desejavam mostrar-se nas imagens. Determinadas consignas
do projeto foram importantes para o processo: a participação poderia se dar em
duas modalidades, ações em grupo ou individuais. As ações em grupo – nosso
caso – deveriam ser lideradas por qualquer pessoa de uma comunidade, e não
por instituições ou empresas. Não se deveria usar o projeto para fins comerciais,
nem para promover um produto ou marca, nem para a publicidade de qualquer
organização. A proposição era enfática no intuito de destacar histórias pessoais
e não discursos de uma organização específica.
Essas condições propiciaram deslocamentos em tendências consensuais que
talvez enfraquecessem o processo. Ao invés disso, fomentaram dissensos,
preservando algumas distâncias e a diferença. O que nos constituía não era uma
causa ou uma instituição, apesar de estarmos ligados pelo Centro de Convivência.
Éramos ali um aglomerado de pessoas que acordavam uma ação coletiva onde
cada um estaria implicado. Não havia nada que nos denominasse ou nos agrupasse
a não ser o desejo pessoal de colocar nossa cara no muro, como dizia um dos
participantes. Assim, muitas conversas aconteceram. Alguns, desconfiados,
diziam: quem é esse francês aí, o que ele quer com a gente? Outros, ao verem
os vídeos e referências, encantavam-se com o projeto e imaginavam formas de
participação, gerando novas conexões. Pessoas vinham fotografar e ser
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Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro
fotografadas e se envolviam nas atividades do Centro de Convivência, sem
necessariamente essa aproximação estar atrelada a alguma questão relacionada
ao uso de drogas ou a demandas sociais, o que propiciava novos encontros.
Não havia necessidade de acoplar nenhuma legenda à imagem, embora
alguns desejassem. A chegada dos retratos impressos fascinou muitos, que
queriam ver sua imagem em tamanho gigante. Até hoje, quando mencionamos
alguém no Centro de Convivência, basta apenas olhar para os postais de registro
da ação e dizer esse que é o tal, esse é aquele outro, que faz tempo que não vem
aqui... Nota-se que a participação no projeto tornou possível aproximações e
distâncias entre as diferentes pessoas que ali circulavam, promovendo situações
que embaralhavam imagens de si e do outro, que, em outros momentos, eram
predeterminadas por uma identidade socialmente construída: o usuário de
drogas, o morador de rua, o redutor de danos, o psicólogo, a estagiária burguesa
etc. O retrato em preto e branco, igual para todos, instaurava um campo novo de
relações. O que nos aglutinava era cada um ter seu retrato e a ação coletiva de
colocá-los na cidade e não outras identificações grupais baseadas em certas
categorias sociais, ideológicas, psiquiátricas, políticas etc.
Os locais propostos para a colagem dos pôsteres foram muitos. Alguns
queriam colar nos estádios de futebol, como um protesto à realização da Copa,
outros desejavam colocar em baixo de viadutos, outros na denominada
Cracolândia, outros em muros de hospitais psiquiátricos. Os conflitos começaram
a aparecer. Uns queriam fazer intervenções nas imagens, outros não queriam se
meter em política. Aos poucos, fomos negociando uns com os outros as
possibilidades, processo que permitiu muitas trocas. Finalmente, escolheu-se a
Câmara dos Vereadores da cidade de São Paulo. Estávamos nos aproximando
do período de eleições municipais e a cidade enchia-se de retratos de políticos,
o que propiciava novos embaralhamentos. Partimos para a negociação de
autorização da colagem dos retratos. Essa ação permitiu que os participantes
experimentassem outras posições sociais, apresentando-se como artistas ou
participantes de um projeto artístico, enriquecendo possibilidades de se nomear,
passando a fazer parte do repertório de cada um também esse lugar social.
Muitas fantasias rolavam, eles não vão deixar a gente colar, vão nos
prender. Depois de um longo processo, nosso pedido foi parar na Câmara dos
Vereadores e, finalmente, foi aprovado. Como a Câmara dos Vereadores estava
em reforma, havia ali um grande tapume, onde os retratos foram colados.
Realizamos duas saídas, em que carregávamos os pôsteres em nossas mãos
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface
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durante um trajeto pelo centro da cidade, encontrando pessoas, conversando,
gerando curiosidades. As pessoas criavam explicações para aquelas imagens: são
políticos, estão vendendo alguma coisa, são artistas que não tem o reconhecimento devido etc.
Depois de um tempo, alguns de nós éramos reconhecidos nas ruas. Esse
efeito era bastante forte para pessoas que muitas vezes pareciam ser invisíveis
aos outros, que já não mantém projetos que os ligue ao sistema de produção e
circulação de bens, valores e imagens. Nessa experiência, criavam-se outras
possibilidades de apresentação e apropriação de si: nos reconhecíamos como
integrantes desse projeto artístico e como pessoas que produziam algo que podia
ser colocado no mundo. Durante o processo, realizamos diversos registros que
culminaram no vídeo documentário É de dentro e de fora (PONTO DE
CULTURA É DE LEI, 2012), cartões postais e um flipbook. Esses documentos
foram apropriados pelos participantes e ainda vivem desdobramentos. Diante
desse contexto, percebemos alguns efeitos. Será que, em alguma medida, eles
instauram mudanças sociais? Há efeitos políticos? Quais elementos, nesse processo, se relacionam com esses efeitos? JR aponta para uma possível perspectiva:
De certa forma, a arte pode mudar o mundo. A arte não é feita para mudar o
mundo, para mudar coisas práticas, mas para mudar percepções. A arte pode
mudar o modo como vemos o mundo. A arte pode criar uma analogia.
Atualmente o fato da arte não poder mudar as coisas a torna um lugar neutro
para trocas e discussões, e então te possibilita mudar o mundo” (JR, TED Prize,
2011, tradução nossa).
O efeito político da arte não teria exclusivamente a ver com um intuito de
promover transformações sociais ou comunicar uma mensagem ideológica. Talvez, esse efeito seja promovido pelo lugar transversal que instaura no espaço
cotidiano, atravessando e sendo atravessado pelas linhas de poder, podendo propiciar processos de emancipação. A prática e a proposição artística podem instalar-se como uma terceira coisa, como diz Rancière, entre pessoas que ocupam
posições distintas:
Dir-se-á que o artista, ao contrário, não quer instituir o espectador. Hoje ele se
defende de usar a cena para impor uma lição ou transmitir uma mensagem. Quer
apenas produzir uma forma de consciência, uma intensidade de sentimento, uma
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Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro
energia para a ação. Mas supõe sempre que o que será percebido, sentido,
compreendido é o que ele pôs em sua dramaturgia ou em sua performance.
Pressupõe sempre uma identidade entre causa e efeito. Essa igualdade suposta
entre a causa e o efeito baseia-se num princípio desigualitário: baseia-se no
privilégio que o mestre se outorga, no conhecimento da “boa” distância e do
meio para eliminá-la. Mas isso é confundir duas instâncias bem diferentes.
Existe a distância entre o artista e o espectador, mas existe também a distância
inerente à própria performance, uma vez que, como espetáculo, ela se mantém
como coisa autônoma, entre a ideia do artista e a sensação ou a compreensão
do espectador. Na lógica da emancipação há sempre entre o mestre ignorante e o aprendiz emancipado uma terceira coisa – um livro ou qualquer
outro escrito – estranha a ambos e à qual eles podem recorrer para comprovar
juntos o que o aluno viu, o que disse e o que pensa a respeito. O mesmo ocorre
com a performance. Ela não é transmissão do saber ou do sopro do artista ao
espectador. É essa terceira coisa de que nenhum deles é proprietário, cujo
sentido nenhum deles possui, que se mantém entre eles, afastando qualquer
transmissão fiel, qualquer identidade entre causa e efeito. (RANCIÈRE, 2012,
p. 19, grifo nosso)
Para o autor, emancipação não é a saída de um estado de minoridade, mas
[...] ela começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se
compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do
ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição [...] A
emancipação intelectual é a comprovação da igualdade das inteligências. Esta
não significa igual valor de todas as manifestações da inteligência, mas
igualdade em si da inteligência em todas as suas manifestações.[...] É o poder
que cada um tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de relacionar isso
com sua aventura intelectual singular que o torna semelhante a qualquer outro,
à medida que essa aventura não se assemelha a nenhuma outra. Esse poder
comum de igualdade das inteligências liga indivíduos, faz que eles intercambiem suas aventuras intelectuais, à medida que os mantém separados uns dos
outros, igualmente capazes de utilizar o poder de todos para traçar seu caminho
próprio. (ibidem, p.20-21)
Podemos traçar um paralelo entre o conceito de igualdade de inteligências
à questão dos direitos estéticos iguais proposto por Groys (2008). Em ambos os
conceitos, evidencia-se que as condições desigualitárias que se refletem na
Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface
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dimensão estética estão ligadas a outras questões, a elementos heterogêneos dos
dispositivos de poder. Assim, manter algumas distinções entre arte e vida, entre
estética e política, entre ação artística e ação social, torna-se importante para que
uma questão não seja engolida pela outra. A arte, em sua autonomia, pode criar
linhas transversais aos processos de subjetivação hegemônicos. Na experiência
É de dentro e de fora, proposta pelo artista JR, o lugar de enunciação da arte
tem um lugar importante, muitos processos nãos seriam possíveis sem esse lugar.
Mas, isso nos deixa com muitas perguntas. Afinal, é um projeto artístico? Um
projeto social? Um projeto de comunicação global? Nessa ação globalizada,
corre-se o risco de tornar essas imagens clichês? Quais as potências e seus
apaziguamentos quando o projeto ganha essa dimensão e pulverização? Quem
são os autores da obra? Quais as camadas de participação que as ações
possibilitam? Quais os espaços expositivos desse projeto? Onde afinal está a
obra? Quais são os objetos artísticos produzidos? A intervenção? Os retratos?
Os registros audiovisuais e fotográficos? A plataforma digital? A equipe de
produção? A própria rua?
Alexandre Sequeira, fotógrafo e pesquisador de projetos participativos na
arte contemporânea contribui no emaranhado desses nós:
Mesmo que eventuais pretensões de uma retomada de ideais políticos dessas
ações sejam incapazes de promover uma efetiva transformação social de forma
abrangente, não podemos deixar de admitir sua possibilidade em atuar numa
esfera mais reduzida, envolvendo pequenos grupos em torno de um objeto
comum. E, assim, na medida em que seu raio de ação se amplia, quanto mais a
experiência se torna coletiva, o que se tem é um grande impacto diante do
empenho em decifrar a lógica que a contém. (SEQUEIRA, 2010, p. 87)
A participação no Projeto INSIDE OUT promoveu fortes transformações e
apropriações do público que ali circula. Depois desse processo, foi perceptível
uma mudança de posição dos participantes em outros projetos, que trazem fortemente a sensação de terem participado de um projeto coletivo. Depois dessa experiência, alguns se engajaram cada vez mais em seus próprios projetos, validando
e investindo em suas ideias de intervenções artísticas na cidade a partir de seus
próprios argumentos. Além disso, pode-se, a partir dela, pensar que tipo de espaços um dispositivo como um ponto de cultura – um espaço nomeado cultural acessível aos conviventes do Centro de Convivência – pode promover nesse contexto.
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Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro
Referências bibliográficas
BISHOP, C. Antagonism and Relationnal Aesthetic. In October, n. 110, 2004.
DELEUZE, G. [1988]. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005b.
FABBRINI, R. N. Arte relacional e regime estético: a cultura da atividade dos anos
1990. Revista Científica/FAP (Curitiba), v. 5, p. 11–24, 2010.
FOUCAULT, M. Dits et Ecrits, volume III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994.
GALARD, J. Arte, transfiguração e encontro no mundo contemporâneo: metáforas
pétreas. Sesc Pompéia, 2005.
GALARD, J. A Beleza Exorbitante: Reflexões sobre o abuso Estético. São Paulo:
Editora Fap-Unifesp, 2012.
GROYS, B. Art Power. Cambridge: The MIT Press, 2008.
RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2012.
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Entre tautologia e política: arte conceitual
analítica e conceitualismos ideológicos
SILFARLEM JUNIOR DE OLIVEIRA*
GISELE BARBOSA RIBEIRO**
Resumo: O artigo discute as duas vertentes da produção artística conceitual, a
analítica (tautológica) e a ideológica (política), visando rever os argumentos que
defendem a divisão e oposição entre as duas, nos termos “tautológico apolítico
versus político antitautológico”. Percebendo uma possível lacuna na abordagem
dos estudos teóricos e historiográficos até então desenvolvidos, procuramos
confrontar a separação entre tautologia e política na arte conceitual anglo-saxã
e latino-americana, ressaltando as abordagens comuns e demonstrando que o
tautológico – a arte como arte – é político. Para tanto, o argumento se baseia
nas reflexões de Simón Marchán Fiz, Mari Carmen Ramírez, Jorge Glusberg,
bem como nas posições de autores mais recentemente ligados à Red
Conceptualismos del Sur, sem deixar de considerar os trabalhos dos artistas
implicados no debate.
Palavras-chave: Arte Conceitual. Conceitualismos. Tautologia. Política.
** Mestre em Artes pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade
Federal do Espírito Santo.
** Artista, pesquisadora e professora do Departamento de Artes Visuais e do
Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo.
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Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro
Entre tautología y política: arte conceptual analítica y
conceptualismos ideológicos
Resumen: El texto discute las dos vertientes de la producción artística conceptual,
la analítica (tautológica) y la ideológica (política), visando rever a los argumentos
que defienden la división y oposición entre las dos, en términos de “tautológico
apolítico versus político antitautológico. Percibiendo una posible falla en el abordaje
de los estudios teóricos y historiográficos desarrollados hasta hoy, buscamos confrontar
la separación entre tautología y política en el arte conceptual anglosajón y
latinoamericano, resaltando los puntos comunes y demostrando que lo tautológico
– el arte como arte – es político. Para eso, el argumento se basa en las reflexiones de
Simón Marchán Fiz, Mari Carmen Ramírez, Jorge Glusberg, así como en las
consideraciones de autores más recientemente ligados a la Red Conceptualismos del
Sur, sin dejan de tener en cuenta a los trabajos de los artistas.
Palabras-clave: Arte Conceptual. Conceptualismos. Tautología. Política.
Na contramão da maioria dos relatos artísticos, teóricos e historiográficos
atuais, este artigo procura realizar uma revisão da arte conceitual analítica e do
conceitualismo ideológico dos anos 1960 e 1970 provenientes do “norte” (principalmente dos Estados Unidos e Inglaterra) e do “sul” (América Latina), colocando em questão os “lugares” teóricos estabelecidos pelas categorias historicamente constituídas, como aqueles produzidos por pensadores como Simón Marchán Fiz, Mari Carmen Ramírez e, recentemente, a Red Conceptualismos del Sur.
Em seu livro Del arte objetual al arte de concepto, publicado originalmente
em 1972, o teórico espanhol Marchán Fiz classificou a produção conceitual
latino-americana de “conceitualismo ideológico” (político) em contraposição à
vertente anglo-saxã demarcada como “conceitualismo puro” ou “conceitual
linguístico e tautológico”. Sua alegação para tal categorização seria de que o
“conceitualismo analítico” isolaria o objeto artístico de qualquer referência
contextual enquanto o “conceitualismo ideológico”, ao contrário, estabeleceria
uma conexão direta e, consequentemente, ofereceria uma crítica sobre temas
diretamente ligados ao contexto social, político e cultural mais amplo.
Esta rama analítica aísla el arte de toda representación material y de toda
dependencia contextual. […] La ruptura con dependencias contextuales aboca
en última instancia a un estudio específico, inmanente y cerrado sobre sí mismo
[…].El arte “conceptual” [estricto] no posee vinculación alguna de tipo
referencial con el mundo y las cosas. El arte como tautología se presenta como
contexto autónomo […] (MARCHÁN FIZ, 1986, p. 255-256).
Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos
| 195
Segundo Marchán Fiz, a principal característica combatida pelo “conceptualismo ideológico” (em contraposição ao “conceptualismo puro”) seria o hermetismo, o isolamento da arte e a separação entre arte e vida provocados pelo enquadramento tautológico da vertente analítica anglo-saxã. Em contraposição à vertente “conceitual analítica” (autorreflexiva), o “conceitualismo ideológico” apresentaria, de maneira explícita, elementos de atitude política, o que o tornaria mais
decididamente extra-artístico e contextual. Ainda nos termos de Marchán Fiz, a
perspectiva analítica, que tem como máxima a arte como ideia como ideia, “tende
a provocar uma dicotomia entre conceito e percepção”, diferentemente de outras
propostas conceituais como o conceitualismo “empírico-medial” (fenomenológico) ou o “conceitualismo ideológico” (político), onde “não se elimina a materialização, já que o projeto tende a sua realização” (MARCHÁN FIZ, 1986, p. 251).
Poderíamos afirmar que os principais artistas da vertente tautológica da arte
conceitual, e os mais criticados por sua atitude supostamente “obscurantista”
(hermética), são o norte-americano Joseph Kosuth e o grupo inglês Art &
Language, cujos procedimentos artísticos se baseiam, entre outras possibilidades:
na “suspensão” de pressupostos estéticos (puramente visuais); na utilização da
teoria como obra; no uso da linguagem (escrita e oral); e na autorreflexão. Na
perspectiva do teórico espanhol, tais pressupostos remeteriam a uma tentativa
de racionalização meramente cientificista dos processos artísticos. A obra
“estritamente conceitual”, de modo geral, buscaria eliminar “toda ambiguidade
e metafísica” das construções artísticas (MARCHÁN FIZ, 1986, p. 261).
Nestas bases, teríamos de um lado, no contexto do “norte”, o “conceitual
analítico” (restritivo), tendo como expoentes Kosuth e o grupo Art & Language,
e do outro, no contexto do “sul”, o “conceitualismo ideológico” (aberto e abrangente), que teria como principal referência, segundo Marchán Fiz, os artistas
argentinos participantes das atividades do Grupo de los Trece,1 ligado ao Centro
de Arte y Comunicación (CAyC),2 em Buenos Aires.
1. Grupo formado pelos artistas Jorge Glusberg, Carlos Ginzburg, Víctor Grippo,
Jorge Gonzales Mir, Jacques Bedel, Luis Benedit, Gregorio Dujovny, Vicente Marotta,
Luis Pazos, Alberto Pelegrino, Alfredo Portillos, Juan Carlos Romero e Julio Teich.
2. Instituição fundada e dirigida pelo artista e teórico Jorge Glusberg. O CAyC
ocupando o espaço deixado pelo extinto “Instituto Di Tella” (em 1970) foi um importante
“centro” aglutinador e difusor de artistas experimentais e de vanguarda. Além do mais,
considerando a participação de Glusberg, serviu de ponto de encontro para as reuniões
do “Grupo de los Trece”.
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Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro
A fim de discutirmos as atividades deste grupo, utilizado como base para a
argumentação de Marchán Fiz, analisaremos brevemente o material enviado pelo
Grupo de los Trece aos Encontros de Pamplona, evento ocorrido na cidade
espanhola em 1972.3 No material gráfico enviado pelo grupo à mostra de
Pamplona, intitulado Hacia un perfil del arte latino-americano (1972), Jorge
Glusberg declara – ao escrever sobre “arte e ideologia” em uma das peças/páginas
de introdução do material – que o Grupo de los Trece, bem como os demais
artistas convidados a participar da mostra, transmitia uma atitude na qual, sendo
provenientes de países “ideologicamente submetidos pelas metrópoles e
economicamente escravizados, as manifestações artísticas não podem deixar de
significar esta realidade dependente e tributaria [...]”:
[...] lo importante es exaltar y hacer explícito y manifiesto este contenido casi
oculto en muchas de las manifestaciones artísticas latinoamericanas. Ya sea
en contra o a favor, el artista siempre revela su situación de dependencia. El
propósito conciente de que este significado esté presente y adopte formas
precisas, determina la constitución racional y sistemática de un nuevo programa
creativo (el GRUPO DE LOS TRECE) donde la sustancia de los significantes
remiten a un significado determinado y unívoco, independientemente del
contenido conceptual que podrá ser más o menos revolucionario según la actitud
de cada artista (GLUSBERG, 1972, s/p.).
Não obstante, para estes artistas, a “linha” principal não era tanto criar (ou
reafirmar), como uma espécie de produto (ou estilo), “uma arte dos países latinoamericanos, mas sim uma problemática própria, consequente com sua situação
revolucionária” (GLUSBERG, 1972). Recorrendo ao significado de ideologia do
filósofo Louis Althusser, como “um sistema de representações coletivas sobre
as condições de existência”, o grupo delimita seu posicionamento baseado na
tomada de “consciência” das “condições de existência social e material”. Neste
sentido, marcando distância das propostas de arte conceitual, afirmam que “a
arte como ideia” é uma “arte opaca, oposta ao ideológico (domínio dos signos
transparentes)” (GLUSBERG, 1972).
Consideramos, portanto, que essa posição artística (e também política)
defendida pelo Grupo de los Trece, o deslocamento da arte conceitual analítica
3. Mesmo ano em que Marchán Fiz publica Del arte objetual al arte de concepto.
Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos
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pelo conceitualismo ideológico, é o ponto inicial que proporciona sustentação à
argumentação de Marchán Fiz em sua empreitada contra as proposições artísticas
tautológicas e, consequentemente, contra as considerações da filosofia analítica
empreendidas por pensadores como Ludwig Wittgenstein.
Nesse mesmo viés, compartilhando similaridades “programáticas”,
encontramos outras propostas artísticas no contexto latino-americano, dessa
mesma época (1960/1970), ainda que não apontadas no texto de Marchán Fiz,
que se encaixam dentro do enfoque político e ideológico. Por exemplo: no Chile,
o artista Alfredo Jaar e o grupo CADA (Colectivo de Acciones de Arte); no
Uruguai, Luis Camnitzer, Clemente Padim e as ações estético-políticas dos
Tupamaros; na Argentina, o Grupo de artistas de vanguardia e o grupo Arte de
los medios de comunicación de masa; no Brasil, trabalhos de Cildo Meireles,
Anna Bella Geiger, Artur Barrio e Paulo Bruscky. No contexto espanhol, de onde
provém Marchán Fiz, encontramos também exemplos similares de conceitualismos ideológicos e políticos como é o caso do Grup de Treball.
Traçando um “desenho de pesquisa artística e historiográfica” – a partir de
Marchán Fiz até os dias de hoje –, o que observamos como “imagem metodológica” é a insistência de alguns artistas, teóricos e historiadores, como a portoriquenha Mari Carmen Ramírez (1993) e a Red Conceptualismos del Sur (2007),
em reafirmar a disposição “tautológico versus ideológico” como parâmetro para
estabelecer suas críticas, principalmente com relação ao “conceitualismo analítico” (anglo-saxão), colocando o “conceitualismo ideológico” (latino-americano)
em uma posição contemporaneamente “privilegiada” frente às demais vertentes
conceituais, por, supostamente, ser mais aberto e abrangente tanto em termos
artísticos quanto políticos.4
Concretamente, em “Blueprint Circuits: Conceptual Art and Politics in Latin
America” (2001), a historiadora Mari Carmen Ramírez se refere à arte conceitual
norte-americana (principalmente às proposições artísticas de Kosuth, mas
também às propostas mais diretamente políticas como aquelas ligadas à crítica
4. Jaime Vindel, no texto “Los 60 desde los 90: notas acerca de la reconstrucción
historiográfica argentina de la vanguardia sesentista” (2008), afirma que o empenho dos
historiadores latino-americanos em equiparar as práticas conceituais linguísticas e
analíticas (assim como toda filosofia da linguagem) ao Tractactus logico-philosophicus
não deixa de constituir uma manobra teórica orientada à valorização positiva das práticas
hispano-americanas em oposição as anglo-saxãs.
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Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro
institucional), como práticas que operariam um reducionismo apolítico (RAMÍREZ,
2001, p. 162, grifo nosso). A partir dessa constatação, Ramírez chega ao seguinte
esquema de oposições:
latino-americano
contextualização
relatividade
ativismo
mediação
x
x
x
x
x
norte-americano
autorreflexividade
tautologia
passividade
imediação
Ao enfrentarmos esse esquema, um primeiro ponto que devemos ressaltar
é que as práticas conceituais de cunho político e ideológico – ainda que sejam
mais evidentes no contexto do “sul” devido, entre outros elementos, às “tensões
provocadas pelas contradições sociais peculiares” (MARCHÁN FIZ, 1986), como
foi o caso da América Latina – estão presentes também em práticas conceitualistas
produzidas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Nesses contextos,
encontramos propostas conceituais próximas às práticas que se convencionou
chamar de primeira geração de “crítica institucional”, como seria o caso da
produção dos artistas Hans Haacke, Daniel Buren, Marcel Broodthaers, Michael
Asher, Martha Hosler, entre outros, que irão pensar a relação da arte com as
diversas estruturas de poder.
Além disso, a presença de artistas mulheres na arte conceitual nova-iorquina,
engajadas nas demandas feministas, sinalizava a abertura do conceitual a
abordagens explicitamente sociais e políticas. Nesse período, destacam-se as
práticas de artistas como Christine Koslov, Yoko Ono, Yvone Rainer, Martha
Rosler, Suzanne Lacy, Susan Hiller e Mary Kelly, citando apenas algumas, que
trabalhavam com questões que atravessavam desde a luta pela emancipação
feminina até os diversos modos de ativismo político. Para a artista e teórica Lucy
Lippard, a inclusão de tais demandas políticas na pauta dessas artistas (e dos
artistas anteriormente citados) teria proporcionado uma abertura do campo
artístico, já que essas questões políticas “afetaram em sua totalidade a concepção
do que a arte era e o que ela podia fazer” (LIPPARD, 2004, p.19).
Ainda assim, Lippard reconhece que a arte produzida no hemisfério sul
(referindo-se à América do Sul) seria socialmente mais revolucionária do que a
arte produzida por seus companheiros em Nova York. Após uma visita à
Argentina em 1968, teria dito: “Volví radicalizada con retraso por el contacto
Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos
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con los artistas de allí, especialmente con el grupo Rosario, cuya mezcla de ideas
políticas y conceptuales fue una revelación” (LIPPARD, 2004, p.10). Um dado
interessante de se extrair desta declaração de Lippard é que sua “descoberta”
sinaliza que este contato entre América do Norte e América do Sul, ou ainda entre
arte conceitual e conceitualismos, possivelmente gerou, para além das diferenças
programáticas e contextuais constadas, aproximações e interesses comuns entre
propostas artísticas que, de um modo ou de outro, seriam notadamente
revolucionárias, seja em termos artísticos ou extra-artísticos. E, o mais importante,
que as influências e os desdobramentos não se dão em um sentido único, neste
caso do norte em direção ao sul, mas em vias de mão dupla (do sul ao norte e
vice e versa).
Quanto ao processo de autorreflexão, questão chave no debate entre o
tautológico e o ideológico, Marchán Fiz – ciente de que desde que a arte
“abandonou o princípio mimético de construção a favor do sintático formal”,
“se interessa pela reflexão sobre sua própria natureza” (1986, p. 268) –, considera
que, “após uma primeira apropriação mimética das tautologias e do colonialismo
cultural”, uma vez superadas as “restrições” das práticas analíticas, as práticas
conceituais (em seus aspectos políticos, perceptivo-cognoscitivos e criativos)
podem fomentar uma autorreflexão crítica e expansiva, “aperfeiçoando o próprio
processo de autorreflexão” (MARCHÁN FIZ, 1986, p. 268-269), tornando-o mais
aberto e abrangente do ponto de vista do desvelamento das ideologias implícitas
e explícitas contidas nas manifestações artísticas e extra-artísticas. Temos que
dizer que, a nosso ver, esta é a parte mais produtiva das colocações de Marchán
Fiz, por reconhecer a importância de se “aperfeiçoar” os processos de autorreflexão ao invés de rejeitá-los.
Podemos dizer que o conceitualismo ideológico poderia ser visto, portanto,
como uma espécie de amadurecimento da proposta conceitual analítica, o que
permite, nesta perspectiva, desenharmos outros caminhos de pesquisa pautados
na conjunção entre o contextual e o tautológico. Pesquisadores como o espanhol
Jaime Vindel, diferentemente da maioria dos seus colegas integrantes da Red
Conceptualismos del Sur, vê as estratégias conceitualistas analíticas como
estratégias de contextualização:
La extrema autorreferencialidad de las tautologías kosuthianas podría ser
interpretada, por otra parte, como la clausura o cancelación de la autonomía
de la obra de arte. Constatando la imposibilidad de construir significados ajenos
200
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Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro
al entorno en que se exhibe, la obra pasaba a presentarse a modo de señuelo o
índice negativo destinado a disparar la reflexión acerca de cómo se originan
aquellos en su contexto específico (VINDEL, 2008, p. 220).
Seja como for, de um modo e de outro, as práticas conceitualistas (analíticas
e ideológicas) do período entre 1960 e 1970 representaram uma substancial ênfase
sobre os aspectos políticos da arte e da cultura em geral, uma “politização” da
atitude do artista e de sua produção. Consequentemente, uma revisão das práticas
conceituais envolve a observação destas estratégias em seu sentindo mais amplo,
como atividades que ao mesmo tempo em que buscaram alargar o entendimento
sobre o campo da arte desenvolveram também, em muitos casos, paralelamente,
uma crítica aos valores hegemônicos decorrentes dos diversos modernismos.
Nesse sentido, conseguimos entender porque a arte conceitual proveniente de
países economicamente desenvolvidos e associados com o imperialismo global
(América do Norte e Europa Ocidental) é vista com suspeita pelos artistas e
teóricos atuantes em regiões que historicamente foram (e, de certo modo, ainda
são) oprimidas (economicamente e culturalmente) por estes grandes centros
hegemônicos. No entanto, acreditamos que tal perspectiva não inviabiliza o
projeto de muitos artistas conceituais interessados numa renovação dos limites
conceituais da arte.
A tentativa de constituir uma revisão das teorias sobre as diversas vertentes
conceituais nos diversos cantos do mundo (no nosso casso específico, sobre o
conceitualismo ideológico e político na América Latina) deve ter o cuidado de
não reduzir os diversos conceitualismos “a um ‘cânone’ anglo-americano (e agora
histórico) do que se entende como conceitual [...]” (WOOD, 2002, p. 9). Por outro
lado, do mesmo modo, a tentativa de rastrear e de alargar os relatos sobre outras
estratégias conceituais não tem porque necessariamente estar pautada sobre uma
negação das virtudes e conquistas exercidas pela arte conceitual anglo-americana.
Deveríamos evitar simplificações, por exemplo, contidas nos pressupostos de
que as práticas conceituais analíticas (cânone hegemônico) seriam práticas que
não dariam qualquer atenção a aspectos políticos, ou que seriam apolíticas, por
outro lado, deveríamos também evitar acreditar que os conceitualismos
ideológicos (cânone “periférico”) manifestam enquadramentos estritamente
sociopolíticos, sem qualquer preocupação com o campo da arte.
Ciente dos perigos de que essa afirmação seja usada no sentido de esvaziar
(ou neutralizar) o termo político, alegando indiscriminadamente que tudo é polí-
Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos
| 201
tico, o que percebemos na disposição “tautológico versus ideológico” é uma
diferença de enfoque sobre o político – no sentido dado por Chantal Mouffe
(2007) a partir de Carl Schmitt – ou sobre o uso e definição do que seria o político,
mais que sua rejeição por um lado ou sua completa adesão por outro. Nesse sentido, é pertinente dizer que acreditamos que o que ocorre nesse antagonismo entre
“conceitualismos” é a materialização daquilo que podemos nomear de estratégias
que elaboram em certos casos uma política implícita e, em outros casos, uma
política explícita. Algo entre uma espécie de “política centrípeta” e uma “política
centrífuga”. Umas realizam um debate mais “particular”, não menos importante,
sobre as “políticas da arte” – ou, como diria Jacques Rancière (2005), sobre as
políticas estéticas – e outras sobre o mundo em geral. No caso do enquadramento
“tautológico” anglo-saxão versus “ideológico” latino-americano, o que temos,
então, contidos nestes termos, são “posicionamentos” sobre o que é (e como se
mostra) o “ser político” da arte.
Diferentemente do que propõe Ramírez – ou mesmo Marchán Fiz –, acreditamos que nenhuma das duas vertentes conceituais seria totalmente apolítica ou
estritamente antitautológica. Acreditamos que, até mesmo, do ponto de vista das
territorialidades (Norte/Sul), o que temos são pontos de contaminação recíprocos
– “inversões”, apropriações, resignificações, do que negações. Portanto, discordamos de Marchán Fiz quanto a ideia de que a arte “conceitual estrita” (como
ele costuma chamar o conceitual anglo-saxão) seja acrítica, tampouco estamos
de acordo com as separações assépticas expostas no esquema de posições de
Ramírez. Entendemos as duas vertentes conceituais como radicalmente engajadas
e altamente críticas, ainda que existam diferenças de enfoque quanto à postura
que cada uma adquire.
Nosso “desenho de pesquisa invertido” apresenta uma arte com aspectos
tautológicos (analítica) como uma arte política, já que acreditamos que a autorreflexão gera, por meio da sinalização dos processos artísticos, uma análise mais
ampla sobre processos culturais e até mesmo sociopolíticos. Embora não caiba
neste texto todo quadro elaborado, deixando de fora, por exemplo, uma reflexão
mais aprofundada sobre a ideia de tautologia, acreditamos ter traçado os primeiros
riscos em direção ao embate contra a percepção de que as proposições conceituais
tautológicas seriam necessariamente apolíticas (ou acríticas). Se muitas delas
estão discutindo problemas políticos internos ao campo (participação, autoria e
função da arte, crítica institucional), também colocam, simultaneamente, em
evidência os desacordos simbólicos e discursivos do “espaço público”. Do mes-
202
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Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro
mo modo, consideramos que os trabalhos que priorizam processos contextuais
de caráter político e social, como o conceitualismo latino-americano, não são
imunes aos efeitos da tautologia mesmo quando realizados fora do campo
tradicional da arte.
Para indicar alguns trabalhos contextuais/políticos latino-americanos que
utilizam estratégias tautológicas citamos, por exemplo, a obra Botella de CocaCola embotellada en botella de Coca-Cola (1973) do artista uruguaio Luis
Camnitzer, a instalação Oficina de información sobre la guerra de Vietnam a
tres niveles: la imagen visual, el texto y el áudio (1968) do artista argentino David
Lamelas, as “páginas em branco”, parte da ação Para no morir de hambre en el
arte, realizada no Chile pelos artistas do grupo CADA, a proposta de Telexarte
dos artistas brasileiros Paulo Brusky e Daniel Santiago. Com isso, podemos dizer
que a relação entre tautologia e política na arte conceitual é mais complexa do
que sugere a dupla negação e assepsia das oposições. Ao contrário do que indica
o esquema de contrários de Ramírez, portanto, não temos que escolher entre
autorreflexão e contextualização. Em ambos os casos, tanto no conceitualismo
latino-americano quanto na arte conceitual anglo-saxã, não se trata de se afirmar
uma dicotomia entre práticas políticas e não políticas, contextualistas e não
contextualistas, tautológicas e não tautológicas. Trata-se, antes de tudo, de
procurar entender como cada um destes elementos é trabalhado em cada uma
destas vertentes.
Referências bibliográficas
FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana (orgs.). Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo:
Annablume, 2009.
GLUSBERG, Jorge (org.). Hacia un perfil del Arte Latinoamericano. Muestra del
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MARCHAN FIZ, Simón. Del arte objetual al arte de concepto (1960-1974). Madrid:
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MOUFFE, Chantal. Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística.
Barcelona: MACBA/UAB, 2007.
Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos
| 203
RAMÍREZ, Mari Carmen. “Circuitos das heliografias: arte conceitual e política na
América Latina”. In: FERREIRA, G.; VENÂNCIO, P. Filho (eds.), Arte &
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RANCIÈRE, Jacques. Sobre políticas estéticas. Barcelona: Universidad Autónoma
de Barcelona, 2005.
VINDEL, Jaime. “Arte y publicidad del arte pop a la crítica institucional”. In: De
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. “Los 60 desde los 90: notas acerca de la reconstrucción historiográfica
argentina de la vanguardia sesentista”. In: LONGONI, Ana (Ed.). Ramona n.
82. Buenos Aires: julho de 2008.
WOOD, Paul. Arte conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
| 205
Os ministros de Xangô: uma análise sobre a
formação do corpo de Obás de Xangô
do Ilê Axé Opô Afonjá
MARCELO MENDES CHAVES*
Resumo: O presente artigo dedica-se à análise da formação do corpo de Obás
de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá, uma casa de candomblé Queto situada na
cidade de Salvador (Bahia). Fundamenta-se em cinco autores – Capone, Dantas,
Lima, Verger e Silva – e procura uma interlocução entre alguns artistas,
sacerdotes pertencentes à casa, como Carybé, Pierre Fatumbi Verger, Jorge
Amado e Dorival Caymmi. Desse modo, o debate amplia-se e possibilita um
diálogo com as artes plásticas, fotografia, literatura e música por meio da religião
de matriz iorubá no Brasil.
Palavras-chave: Arte Afro-Brasileira. Sincretismo. Candomblé. Diáspora
Iorubá.
Los ministros de Shango: un análisis de la formación del cuerpo
de Obás de Shango del Ilê Axé Opô Afonjá
Resumen: Este artículo está dedicado al análisis de la formación del cuerpo de Obás
de Shango del Ilê Axé Opô Afonjá. Una casa de Candomblé Ketu ubicado en
Salvador (Bahia). Se basa principalmente en cuatro autores – Capone, Dantas,
Lima e Verger – y busca un diálogo entre algunos sacerdotes artistas que pertenecen
a la casa, como Carybé, Pierre Fatumbi Verger, Jorge Amado y Dorival Caymmi.
* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina
da Universidade de São Paulo (PROLAM USP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA USP)
– Linha de Pesquisa: História e historiografia da arte. CAPES
206
|
Marcelo Mendes Chaves
Por lo tanto, el debate se amplía y permite un diálogo con las artes visuales, la
fotografía, la literatura y la música, través de la religión yoruba en Brasil.
Palabras clave: Arte Africano-Brasileño. Sincretismo. Candomblé. Yoruba
Diáspora.
Em meados de 1868, alguns escravizados libertos formavam um importante
grupo denominado brasileiros na África, em Lagos, Nigéria. Essa comunidade
cumpriu o papel de símbolo de identidade na volta às raízes da cultura iorubá.
No Brasil, essas viagens assinalavam, de certa forma, um esquecimento das marcas deixadas pela escravidão. Assim, para os brasileiros, ex-escravizados, residentes em Lagos, a escravidão tornava-se um mito civilizador e a viagem à terra
de origem possuía um caráter de prestígio.
Segundo Dantas (1998), a significação da “volta à África” e a exaltação do
“nagô puro”, ou seja, a busca de legitimação, marca a construção da identidade
ligada ao candomblé Queto em uma dicotomia: tradição e pureza, como apontam
Ranger e Hobsbawm (1984 apud CAPONE, 2009, p.255): “Não é necessário
recuperar nem inventar uma tradição quando os velhos usos ainda se conservam”
versus o distanciamento da matriz negro-africana, observada nas demais modalidades do culto.
Neste contexto, o movimento de volta à África, liderado por Mãe Aninha,
primeira Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, acaba por influenciar uma parcela da
população negra. Com o crescente prestígio da terra-mãe, os negros passam a
mandar seus filhos para a África com o propósito de aprender a tradição dos cultos
religiosos e introduzi-la no Brasil.
A primeira dessas viagens míticas teria sido realizada pela fundadora do
terreiro do Engenho Velho, Iyá Nassô, casa que deu origem a outras duas,
consideradas berços da tradição iorubá: o Gantois e o Ilê Axé Opô Afonjá.
Segundo o mito, Iyá Nassô viajou com Obá Tossi. Iyá Nassô, Obá Tossi e sua
filha, Magdalena, passaram sete anos em Queto, onde a filha de Obá Tossi gerou
três filhos. A caçula, Claudiana, é a mãe biológica de Mãe Senhora, Iyalorixá
dos quatro artistas citados. Elas acabaram por retornar a Salvador, acompanhadas
do africano Rodolfo Martins de Andrade. Após a morte de Iyá Nassô, Obá Tossi
tornou-se a Iyalorixá do Engenho Velho, onde iniciou Mãe Aninha, fundadora
do Ilê Axé Opô Afonjá.
Outra viagem importante à África, nessa mesma época, que também possui
um caráter de mito fundador, é a de Marcos Teodoro Pimentel, fundador do
Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ...
| 207
primeiro Terreiro de Egungun na ilha de Itaparica (Bahia). A terceira viagem
que se forma em torno do mito fundador é a de Martiniano Eliseu do Bonfim,
informante e colaborador de Nina Rodrigues.1 Martiniano do Bonfim nasceu por
volta de 1859 e foi pela primeira vez à Nigéria com seu pai, em 1875, permanecendo em Lagos até 1886. Usava o título honorífico de babalaô Ojelade e era
muito procurado pelos adeptos do candomblé. Segundo a tradição oral, aprendeu
os fundamentos do culto aos ancestrais com seu pai e, durante seu período na
África, foi considerado um mestre por Marcos Teodoro Pimentel.
Mãe Aninha fundou juntamente com Martiniano do Bonfim, em 1910, o
Ilê Axé Opô Afonjá e consagrou à Mãe Senhora o cargo de Iyamorô e Ossi Dagan,
que viria ser a segunda Iyalorixá da casa. Nesse período, Mãe Aninha passava
longas temporadas no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Ao retornar definitivamente para Salvador e com a colaboração de Martiniano do Bonfim, criou
a instituição dos Obás de Xangô:
No Centro Cruz Santa do Axé do Opô Afonjá, terreiro de candomblé situado
no Alto de São Gonçalo, no bairro do Retiro, em Salvador da Bahia, existe um
grupo de oloiês2 conhecido como Obás de Xangô ou Ministros de Xangô.
(LIMA, 1966, p. 5-6).
O Ilê Axé Opô Afonjá foi o primeiro a modificar seu ritual ao introduzir a
instituição dos Obás de Xangô. Trata-se de um grupo de dignitários do culto,
com títulos honoríficos, ligados ao culto do orixá Xangô.
Dantas (1998) considera de suma importância para a popularização da
herança africana no Brasil dois congressos Afro-brasileiros, ambos realizados
1. Nina Rodrigues: “O médico Raimundo Nina Rodrigues foi o primeiro a se
interessar pelo estudo das religiões afro-brasileiras. Para escrever seu trabalho pioneiro
nesse campo – O animismo fetichista dos negros bahianos (publicado no Brasil em forma
de artigos em 1896, e na França em forma de livro em 1900), visitou inúmeros terreiros
de candomblé situados em Salvador, uma das principais cidades brasileiras na difusão
do candomblé.” Em: SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: caminhos
da devoção brasileira. 2ª ed – São Paulo: Selo Negro, 2005. p. 55.
2. Oloiê: Oloiê, também oiê, ojoiê e ijoij. As formas adotadas nos candomblés da
Bahia, com a mesma significação: o portador de um título honorífico, um “cargo”, um
“posto” num terreiro.
208
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Marcelo Mendes Chaves
na década de 1930. O primeiro ocorreu em 1934, foi sediado no Recife e teve
como idealizador Gilberto Freyre. O segundo ocorreu em Salvador, no ano de
1937, e contou com a organização de Édson Carneiro, Aydano do Couto Ferraz
e Reginaldo Guimarães, que procuraram enfatizar a teoria de Nina Rodrigues.
Silva comenta sobre a referida teoria:
Para ele, o fato de a religião do africano e a de seus descendentes ser politeísta
(que acredita em vários deuses) e animista (atribuir alma, vida, a objetos inanimados) demonstrava a inferioridade do negro em relação ao branco cuja religião, monoteísta (que acredita num único Deus), exigia abstrações mais
sofisticadas de pensamento.
Nina Rodrigues concluiu, então, que o Brasil jamais chegaria a ser um país como
os da Europa, onde a raça negra não exerceu influência. (SILVA, 2005, p.55-56)
Durante o segundo Congresso Afro-brasileiro, antes mesmo de ser colocado
em prática, Martiniano do Bonfim tornou pública a existência do corpo de Obás
de Xangô. Segundo Bonfim3 (1950, p. 374-379) e Verger4 (1999, p. 326 apud
CAPONE, 2009, p. 282), que retoma sua teoria, os Obás de Xangô formam um
conselho encarregado de manter o seu culto. O conselho seria composto, a princípio, por doze ministros que o acompanharam, a exemplo do que ocorria quando
estava na vida terrena, sendo seis do lado direito e seis do lado esquerdo. Desse
modo, estaríamos, diante de uma instituição africana reproduzida fielmente na
Bahia: “Essa polarização entre direita (Otún) e esquerda (Osì) é encontrada na
organização religiosa e política entre os iorubás”. (CAPONE, 2009, p. 283).
Lima (1966) discorre sobre o corpo de Obás de Xangô do Ilê Axé Opô
Afonjá. Além da introdução explicativa sobre os principais fundamentos religiosos, divide a análise nos seguintes tópicos: Quadro atual dos Obás; Os Otuns
e os Ossis: a polaridade; A função dos Obás no terreiro; Admissão no grupo;
Substituição e Renovação do quadro; Os nomes títulos dos Obás.
3. BONFIM, Martiniano Eliseu do. “Os ministros de Xangô”. Em: CARNEIRO,
Édson (org.). Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1950.
p. 374-9.
4. VERGER, Pierre. Notas sobre o cultor aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos
os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Edusp. 1999.
Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ...
| 209
Segundo o autor, os Obás recebem na cerimônia de sua confirmação nomes
ou oiês alusivos a personalidades ligadas à história da cultura iorubá. Dessa maneira, os Obás são divididos em direita e esquerda. Os Obás da direita são classificados em: Obá Abiodum; Obá Aré; Obá Arolu; Obá Telá; Obá Odofim; Obá
Cancanfô. Os Obás da esquerda, por sua vez, dividem-se: Obá Onanxocum; Obá
Arecá; Obá Elerim; Obá Onicoí; Obá Olugbom; Obá Xorum.
Com a morte de Mãe Aninha, sua sucessora, Mãe Senhora, diante de um
período de tensões, decidiu substituir alguns Obás e também modificar a estrutura
do grupo. O número de Obás, que somavam doze e estava dividido entre os da
direita e os da esquerda, ganhou mais uma subdivisão, cada posto ganhou Otun
Obá e Osì Obá, isto é, um substituto da direita e outro da esquerda, passando,
dessa maneira, para trinta e seis membros. Como por exemplo: Obá Onaxocum,
Obá Onaxocum Otun; Obá Onaxocum Osi.
Ainda segundo Lima (1966), no Opô Afonjá, hierarquicamente, os Obás
estão em uma categoria superior à dos ogãs,5 sendo considerados mais graduados
por serem consagrados ao próprio patrono do axé da casa, Xangô Afonjá. Cabe
aos Obás a responsabilidade de ajuda financeira à Iyalorixá nas obrigações religiosas da casa dedicadas ao Orixá Xangô, como também em quaisquer outras
festas do Axé a que cada Obá esteja associado por suas ligações rituais secundárias. Desse modo, o Obá deve contribuir financeiramente com uma cota, muitas
vezes estipulada pela Iyalorixá.
O caráter político dos Obás de Xangô fica evidente na escolha das pessoas
que ocupam esses cargos, podendo defini-los como a elite dos ogãs e pessoas
influentes na sociedade. Mãe Senhora, preocupada com sua posição e poder,
recrutou para compor o corpo de Obás os intelectuais mais importantes da Bahia,
entre eles Carybé, Verger, Dorival Caymmi e Jorge Amado; buscava, nesse
movimento, a legitimação de sua tradição.
Capone (2009) comenta que os títulos apresentados por Bonfim resultam
de uma bricolagem da história iorubá, presentes na obra de Johnson (1957),
escrita antes de 1887 e reeditada em 1921, que compreendia o texto de referência
sobre a história iorubá, estudado nas escolas da Nigéria. Tais influências são
notórias em Bonfim, devido ao longo período em que viveu em Lagos. Assim,
5. Ogã: Cargo reservado aos homens “não rodantes” (que não entram em transe) e
cuja função é auxiliar o pai ou a mãe de santo. Em: SILVA, 2005. p. 139.
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Marcelo Mendes Chaves
no caso dos Obás de Xangô, houve uma recriação da tradição baseada em dados
históricos, procurando reatualizar um passado remoto. Essa reconstrução do
corpo de Obás, realizada por Mãe Aninha, reforçou a sua origem iorubá, fazendo
com que sua casa se reaproximasse da África, tornando-se mais “tradicional”.
Como Mãe Aninha fundou sua casa em decorrência da cisão da Casa Branca do
Engenho Velho, ela sentia a necessidade de se diferenciar em relação à casa mãe.
Ojú Obá, Essá Elemexó: Pierre Fatumbi Verger
O espetáculo da Bahia está nas ruas. Nos anos 40 eram calmas e agradáveis.
Nestas ruas era constante o desfile de pessoas que levavam toda sorte de coisas
sobre a cabeça... Mas o que era mais remarcável e continua sendo, nas ruas da
Bahia, a Boa Terra, é a extraordinária e alegre mistura, o convívio amigável de
pessoas brancas e morenas, amarelas e negras que fazem a Bahia de todas as
cores. (VERGER; BARRETO, 2008, p. 78).
Pierre Fatumbi Verger chega ao Brasil em 1946, encantando-se com os
afrodescendentes e seus cultos religiosos e cumprindo importante papel na
comparação entre África e Brasil. Também iniciado por Mãe Senhora, reconta
a tradição iorubá por meio das inúmeras notas de suas viagens. Em 1952, chegou
a Porto Novo (Benin), de onde partiu para incursões na Nigéria. Em 1953, obteve,
pelas mãos do rei de Oshobó, uma carta para Mãe Senhora, consagrando-a com
o título de Iyá Nassô, dignatária do culto de Xangô. Tal valor simbólico foi fundamental para que Senhora aumentasse seu poder diante da tradição iorubá em
Salvador. Durante a comemoração dos cinquenta anos de seu sacerdócio, em
1958, grande número de personalidades compareceu ao evento, entre eles o presidente da República, Juscelino Kubitschek. Em 1965, Mãe Senhora foi eleita “Mãe
preta do ano” e, em 1966, recebeu do governo do Senegal a “ordem dos cavaleiros
do mérito” pela sua atividade de preservação da cultura negro-africana. Em seu
enterro, no ano de 1967, uma verdadeira multidão esteve presente.
Verger passou perto de 17 anos entre Brasil e África. Foi iniciado em 1953
no culto a Ifá, tornando-se babalaô, ajudando de forma significativa no vínculo
simbólico entre África e Brasil. Em decorrência de suas pesquisas, foi fundado
em 1959 o CEAO – Centro de Estudos Afro-orientais de Salvador. Durante os
anos 1960, os pesquisadores viajaram, em sua grande maioria, para a África
ocidental. Em 1967, Mestre Didi – filho biológico de Mãe Senhora – e sua esposa,
Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ...
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a pesquisadora Juana Elbein dos Santos, partiram para o Benin, com o objetivo
de visitar o rei de Queto, em companhia de Verger, contando com uma bolsa da
UNESCO. A atual Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Stella de Oxossi,
Odekayodè, quarta Iyalorixá na sucessão do terreiro, também esteve na África.
Tais viagens representam um prestígio no meio dos cultos e uma forma de adquirir
conhecimentos perdidos ou diluídos na diáspora.
Otum Arolu – Jorge Amado
Jorge Amado é um dos escritores brasileiros mais lidos e traduzidos. Seu
percurso procura narrar o processo histórico e dar lugar a inclusão social, seja
de gênero, etnia ou classe, como afirma Duarte (1997, p. 89): “Jorge Amado colocaria o povo como personagem para ganhá-lo como leitor”. Encontramos,
portanto, uma fórmula comum dentro de sua obra: explorados, marginais, mulheres, negros, mestiços, trabalhadores, etc.
Tomaremos como exemplo o romance Jubiabá (1935) que, além de ser
considerado um marco na obra de Jorge Amado, possui um apelo popular capaz
de incorporar uma estratégia narrativa inovadora, inspirado na linguagem
cinematográfica. Duarte (1997) classifica o romance como um modelo popular/
popularizado que preside a ascensão na cena narrativa das vozes vindas “de baixo”. Ao mesmo tempo, seu discurso ganha um caráter de utopia socialista, o texto
passa a revelar o político no escritor. Jubiabá traz na figura de Balduíno, o protagonista, o primeiro herói negro do romance brasileiro. “Balduíno opõe o instrumento da greve às rezas do pai-de-santo, tentando desqualificá-las no momento
em que invade a sessão de umbanda.” (AMADO, 1935, p.93)
O personagem procura num primeiro momento, com essa atitude, esvaziar
o ritual e angariar pessoas para o movimento político, lamentando que o líder
espiritual, Jubiabá, tenha falhado em não orientar politicamente seus filhos,
partindo do princípio de que ele deveria saber de tudo o que viria a acontecer.
Por outro lado, com o sucesso da paralisação narrada no livro, Pai Jubiabá o reconhece e o destaca como líder e exemplo para os homens do morro do Capa Gato,
demonstrando a coesão que deve existir nas diversas lutas, a exemplo das políticas
afirmativas nos dias de hoje.
Jorge Amado foi deputado-constituinte em 1946, responsável pelo projeto
de lei que estabeleceu a liberdade de culto no País e descriminalizou os rituais
afro-brasileiros. É a partir da década de 1960, entretanto, que a temática afro-
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Marcelo Mendes Chaves
brasileira ganha corpo na obra do escritor. O discurso passa a tratar de questões
étnicas e raciais, práticas ainda estranhas à cultura etnocêntrica branca, ocidental
e judaico-cristã; a exemplo de Tenda dos Milagres (1969). A obra em questão
busca o discurso paralelo de elevação da cultura afro-brasileira por meio da
miscigenação, provavelmente influenciada pela tese de Freyre.6
Obá Ónikôyi – Dorival Caymmi
Silva e Amaral (2006) analisam as múltiplas relações entre os valores e
símbolos religiosos afro-brasileiros e a música popular brasileira. Buscam a
estreita relação da música com as religiões de matriz negro-africana e a construção
da identidade nacional, aprofundando o diálogo entre os fundamentos religiosos
e a cultura. A partir da década de 1920, o rádio ganha popularidade e torna-se o
maior veículo de comunicação do país; momento em que o samba e os outros
gêneros populares, até então ritmos considerados regionais, ganham expressão
nacional.
O Estado Novo (1937 – 1945), na gestão de Getúlio Vargas, “incluía a
valorização e promoção das práticas culturais ‘brasileiras’ capazes de congregar
o sentimento de unidade nacional” (SILVA; AMARAL, 2006, p. 168), complementando, nesse período, a cultura popular. Segundo os autores, o candomblé, por
ter em sua base os elementos afro-brasileiros, além da projeção, recebe oficialmente o apoio do governo, a exemplo da capoeira, que passa a ser considerada
“esporte nacional”.
As classes populares encontram na música um campo semântico que suporta
diversas experiências e valores. Outros tipos simbolizam o Brasil em âmbito
nacional e internacional na figura de Carmem Miranda e do Bando da Lua:
O que é que a baiana tem? [...]
Tem torso de seda, tem!
Tem brincos de ouro, tem!
Corrente de ouro, tem!
6. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala (1933).
Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ...
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Tem pano da costa, tem!
Sandália enfeitada, tem! [...]7
Para Silva e Amaral (2006), devido a grande presença de baianos no Rio
de Janeiro nesse período, capital federal, a projeção nacional da Bahia aconteceria. As “tias” baianas,8 a exemplo de Tia Ciata, com sua cultura, seus trajes
típicos presentes nos terreiros e no carnaval, são sintetizadas na figura de Carmem
7. CAYMMI, Dorival. Letra de música: O que que a baiana tem? 1939.
8. A musicalidade dos terreiros, marcada pela herança africana, foi um dos pontos
que mais atraíram a atenção para a diferenciação dessas crenças, servindo como elemento
aglutinador e difusor de estilos musicais “profanos” que participaram da formação da
cultura musical brasileira sob diferentes formas ao longo dos vários contextos históricos.
Exemplos bem conhecidos destes processos são os ritmos maxixe e lundu. Em fins do
século XIX, como atestam os jornais e outros documentos da época, havia uma grande
restrição, por parte de segmentos dominantes da sociedade, às práticas religiosas afrobrasileiras. Atribuía-se a eles o caráter de “selvageria”, cujos exemplos, constantemente
citados, eram a “lasciva das suas danças” e o “estrondoso barulho” de suas batucadas.
Esta situação de rejeição – e consequentemente repressão – aos cultos afro-brasileiros
colocou-os, do mesmo modo que à sua música, na situação de clandestinidade até meados
do século XX. Entretanto, esta situação não impediu a incorporação dos ritmos africanos
ao repertório musical brasileiro em vários pontos do Brasil, influenciando a criação de
estilos musicais populares como o lundu, maxixe, coco, lelê, tambor-de-crioula,
“sotaques” de bumba meu boi, jongo, maculelê, maracatu, afoxé e o samba, entre muitos
outros. No caso do samba – bom exemplo por sua relevância presença como um dos
elementos constitutivos do gosto nacional e da identidade brasileira -, sabe-se que sua
origem está ligada à religiosidade dos grupos banto trazidos para o Brasil. Este ritmo,
tocado sobretudo em terreiros de candomblé de angola (que enfatizam uma identidade
de origem banto) e, posteriormente, na umbanda, constitui um dos principais elementos
de identidade de ambas as religiões. Sendo a música religiosa, o samba enredou-se,
contudo, nos espaços profanos, num intenso fluxo de trocas simbólicas entre as religiões
afro-brasileiras e a sociedade. No Rio de Janeiro este entrelaçamento é perceptível pelo
menos desde as primeiras décadas do século XX, quando dos núcleos religiosos surgiram
compositores que consolidaram esse estilo musical e o disseminaram entre o grande
público. Alguns destes compositores eram filhos das famosas “tias” em torno das quais
as colônias de migrantes baianos no Rio de Janeiro se reunia para dançar, cantar, comer
comidas baianas e cumprir as obrigações rituais para com seus orixás. Assim, nesses
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Marcelo Mendes Chaves
Miranda. Em 1939, no filme Banana da Terra, Carmem Miranda interpretaria
“O que é que a baiana tem?”, portando um figurino customizado, com base na
indumentária das filhas de santo do candomblé, contando ainda com as contas
em colares, pulseiras e torso. É como se ela própria representasse o Brasil e estes
símbolos representassem a força da religiosidade de origem africana na constituição de nossa identidade. Carmem Miranda interpretou várias composições de
Caymmi, com temas ligados à cultura afro-baiana: A Bahia, a vida litorânea, o
cotidiano dos pescadores, o mar, a religiosidade de matriz negro-africana.
O meio musical absorveu a religiosidade de matriz negro-africana nesse
período. Outro exemplo de composição de Caymmi seria Oração a Mãe Menina;
criada em homenagem a Iyalorixá do terreiro do Gantois:
[...] O consolo da gente, hein?
Tá no Gantois
E a Oxum mais bonita, hein?
Tá no Gantois
Olorum quem mandou
Essa filha de Oxum
Tomar conta da gente
E de tudo cuidar [...] 9
Como citam Silva e Amaral (2006, p. 162), “nas religiões afro-brasileiras,
a música desempenha um papel fundamental”, os autores consideram a música
um dos principais veículos pelo qual os adeptos invocam os orixás, seja na
umbanda ou no candomblé, fazendo uso de diversos instrumentos: atabaques;
cabaças; chocalhos; agogôs; ganzás. A musicalidade se faz presente tanto em
cerimônias abertas como fechadas. Essa é uma das características da herança da
matriz negro-africana.
espaços reuniam-se, entre outros, compositores que se tornariam famosos na história da
música popular brasileira como Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos), João da
Baiana (João Machado Gomes), Sinhô (José Barbosa da Silva, o Rei do Samba) e
Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Jr.). SILVA e AMARAL (2006, p. 162).
9. CAYMMI, Dorival. Letra de música: Oração a Mãe Menininha, 1972.
Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ...
| 215
Otum Onaxocum: Carybé
Segundo Carybé (1962, p. 37), o candomblé: “[...] estará presente na mesa
rica e na pobre, nos arvoredos sagrados, nos pés de Loko, nas encruzilhadas onde
moureja Exu, nos quindins das baianas, nas igrejas, nos mercados, nas folhas da
mata.”
Carybé chega à Bahia em 1938, seduzido pelo romance Jubiabá de Jorge
Amado, ocasião em que representava o jornal argentino El Pregon. Desse primeiro contato até o convite de Anysio Teixeira, secretário de Educação da Bahia,
para desenhar os costumes afro-baianos, passaram-se 12 anos de longa espera.
No início dos anos 1950, Carybé decidiu fixar-se na cidade de Salvador, integrando, a partir de então, o movimento de renovação das artes plásticas baianas
e tornando-se mais do que um brasileiro – um baiano por excelência. Sua plástica
sofreu uma profunda transformação, sobretudo pelos valores da arte e cultura
africana e sua miscigenação na Bahia, passando a reestruturar sua estética.
Em torno da plástica de Carybé, revelam-se ensinamentos tradicionais,
valores ancestrais africanos, mitos e ritos, compondo uma extensa produção com
mais de cinco mil trabalhos, dentre pintura, escultura, gravura, murais, cerâmica,
ilustrações, figurinos e cenários, além da importante pesquisa etnológica realizada
por ele.
A cosmogonia dos iorubás engloba a visão de mundo dos povos originários,
principalmente do que hoje chamamos de Nigéria e Benin, fazendo surgir nas
Américas um tronco de religiões de mesma matriz, como a santeria em Cuba e o
candomblé no Brasil. A mitologia desses povos é transmitida por Itans (histórias
míticas), que Carybé transcreve em Os Deuses Africanos no Candomblé da Bahia
(1993), sendo os ancestrais os guardiões supranaturais desse legado.
Nesse sentido, o crescer da temática afro-brasileira torna-se um emblema na
perspectiva do artista. Sua plástica busca um retorno à “África Mítica” dos ancestrais escravizados e sua cosmologia. Com a colaboração de outros Obás de Xangô,
em diferentes campos do saber, é inevitável não fazermos um estudo comparado,
indicando que Fatumbi, Jorge Amado e Caymmi seguem na mesma direção.
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Marcelo Mendes Chaves
O Diálogo entre os Obás
Um babalaô me contou:
Antigamente, os orixás eram homens.
Homens que se tornaram orixás por causa de seus poderes.
Homens que se tornaram orixás por causa de sua sabedoria.
Eles eram respeitados por causa de sua força
Eles eram venerados por causa de suas virtudes.
Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram.
Foi assim que estes homens se tornaram orixás.
Os homens eram numerosos sobre a terra.
Antigamente, como hoje,
Muitos deles não eram valentes nem sábios.
A memória destes não se perpetuou.
Eles foram completamente esquecidos.
Não se tornaram orixás.
Em cada vila um culto se estabeleceu
Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio
E lendas foram transmitidas de geração em geração
Para render-lhes homenagem 10
Oju Obá (Pierre Fatumbi Verger), Otum Arolu (Jorge Amado), Obá Ónikôyi
(Dorival Caymmi) e Obá Onaxocun Otun (Carybé), apesar da origem e formação
distintas, comungam do mesmo olhar sobre a Bahia, sua cultura e sua gente.
Trouxeram importantes contribuições por meio de suas criações artísticas, seja
qual for o veículo de expressão, contribuindo acima de tudo para a aceitação e a
afirmação da diversidade cultural.
Sob diferentes expressões artísticas como fotografia, literatura, música e
artes plásticas, os quatro Obás parecem cumprir a função de agentes da
disseminação de uma linhagem religiosa de matriz negro-africana iorubá, o tronco
jeje-nagô. Fizeram parte, não somente do corpo de Obás, mas da mesma casa
de candomblé e foram iniciados pelas mãos de Mãe Senhora, além de terem como
ofício o amplo campo da arte afro-brasileira.
Fica evidente, portanto, a malha construída na estruturação do candomblé
Queto na Bahia, iniciado na Casa Branca do Engenho Velho por Iyá Nassô, seu
10. Verger e Carybé (2009, p. 188).
Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ...
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contínuo com Mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá e na figura de Martiniano do
Bonfim, fundamental interlocutor na criação do corpo de Obás de Xangô. É
importante frisar o papel de Mãe Senhora, segunda Iyalorixá do Ilê Axé Opô
Afonjá, na reestruturação do corpo de Obás, aumentado seu número de 12 para
36, bem como a substituição de alguns nomes; pois nesse período a trama de
caráter político foi imprescindível para a descriminalização e liberdade do culto.
Podemos observar a estreita relação entre a arte e a religião de matriz negroafricana jeje-nagô (Queto) na produção artística dos quatro Obás, travando um
constante diálogo com questões do sistema religioso referido, contribuindo de
maneira global no debate sobre a diáspora iorubá.
Referências bibliográficas
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. Tenda dos Milagres. São Paulo: Martins, 1969.
AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e de viver no candomblé. Rio de Janeiro:
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Moreira Salles, 1997.
CAPONE, Stefania. A busca da África no Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
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2008.
CARYBÉ, Hector Júlio Paride Bernabó. As sete portas da Bahia. São Paulo, Martins.
1962.
. As Sete Portas da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1976.
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Solisluna Design Editora, 2008.
; CAYMMI, Dorival; VERGER, Pierre Fatumbi; BARRETO, José de
Jesus. Entre Amigos, Carybé & Verger, Caymmi: Mar da Bahia. Salvador:
Fundação Pierre Verger, Solisluna Design Editora, 2009.
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218
|
Marcelo Mendes Chaves
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Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
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1957.
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; AMARAL, Rita. Foi conta pra todo canto: Música popular e Cultura
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Paulo: Edusp. 1999.
; CARYBÉ, Héctor Júlio Paride Bernabó. Lendas Africanas dos Orixás.
4ª. Ed. Salvador: Corrupio, 2009.
| 219
A influência de Paul Cézanne na pintura de Arturo
Tosi: o caso Ponte di Zoagli na Coleção MAC USP
DÚNIA ROQUETTI SAROUTE*
Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir a influência de Paul Cézanne
na pintura de Arturo Tosi, baseado na análise da obra Ponte di Zoagli, do MAC
USP. As ideias apresentadas neste trabalho fazem parte da pesquisa de mestrado
em andamento, com orientação da Profª. Drª. Ana Gonçalves Magalhães, a
respeito das cinco obras de Arturo Tosi na coleção do MAC USP.
Palavras-chave: Arturo Tosi. Paul Cézanne. Arte Moderna Italiana. Museu de
Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
The influence of Paul Cézanne on Arturo Tosi’s painting: the
case of Ponte di Zoagli in the MAC USP Collection
Abstract: This article aims to discuss about the influence of Paul Cézanne on Arturo
Tosi’s painting, based on the detailed analysis of the work Ponte di Zoagli, of MAC
USP. The ideas presented in the current article are part of the ongoing master’s
degree program research, under orientation of Profª. Drª. Ana Gonçalves Magalhães,
about Tosi’s five works of MAC’s collection.
Keywords: Arturo Tosi. Paul Cézanne. Italian Modern Art. Museum of
Contemporary Art of University of São Paulo.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo.
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Dúnia Roquetti Saroute
Introdução
As ideias apresentadas neste artigo são frutos dos primeiros resultados e
reflexões da pesquisa de mestrado “Arturo Tosi na Coleção do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo”. Esta pesquisa, por sua vez, se
propõe a realizar o inédito estudo crítico-reflexivo baseado nas cinco obras do
pintor italiano Arturo Tosi (Busto Arsizio, 1871 – Milão, 1956), pertencentes à
coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC
USP). São elas: Paesaggio della Val Seriana [Paisagem de Val Seriana], sem
data; Natura Morta Pane e Uva [Natureza-morta com pão e uva], 1930; Ponte
di Zoagli [Ponte de Zoagli], 1937 (fig. 4); Paesaggio – Ulivi su Lago d’Iseo
[Paisagem – Oliveiras no Lago d’Iseo], 1946; e Paesaggio [Paisagem], 1947.
O objetivo é considerá-las historicamente, contemplando as manifestações
artísticas e culturais italianas da segunda metade do século XIX à segunda metade
do século XX, para então examiná-las no percurso que se pontua desde o processo
de suas aquisições – ocorrido entre 1946-1947, com orientação da jornalista e
crítica de arte italiana Margherita Sarfatti (1880-1961), em nome de Francisco
Matarazzo Sobrinho (1898-1977), para integrar a primeira coleção italiana do
antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) – até, atualmente, no
desenlace do amplo projeto de reavaliação crítica do acervo MAC USP, empreendido pela historiadora da arte Ana Gonçalves Magalhães, no MAC USP.
Como se reconhece até o presente momento, parece coerente sinalizar os
caminhos artísticos de Arturo Tosi em três vias essenciais: a primeira, recortada
entre os anos de 1885 e 1900, demanda suas significações às fontes do
romantismo lombardo (Scapigliatura) e, ainda, às reproposições tocantemente
abstratas de obras consagradas na tradição clássica italiana; a segunda, entre os
anos de 1900 e 1920, sinalizada historicamente no seio de formação das
vanguardas artísticas europeias, corresponde ao momento em que Tosi, imerso
às lições da pesquisa visual científica do pintor divisionista Vittore Grubicy
(1851-1920), começa a sentir a necessidade de desenvolver a sua consciência
pictórica em termos mais límpidos; e, por fim, a terceira via que, fundamentada
no estímulo do modelo cromático e estrutural da natureza em Paul Cézanne,
entrecruza-se por um lado ao contexto político-cultural da Itália fascista e, por
outro, ao cenário artístico propagandista do grupo milanês de Margherita Sarfatti,
no qual Tosi se associa em 1925, o Novecento Italiano.
Como se sabe, o cenário artístico italiano nos anos 1920 e 1930, da era
A influência de Paul Cézanne na pintura Arturo Tosi ...
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fascista, desenhado pelo emaranhado espaço de antíteses, reticências e
contradições, é campo vasto para polêmicas. Disso, Fagone (2001), prõpoe uma
leitura interessante:
As maiores dificuldades para a avaliação das manifestações artísticas da época
[...] derivavam de dois elementos: o complexo enredo entre arte e política que
se realiza na década [...] e o singular equilíbrio reflexivo que atravessa a Europa
artística, pelo qual alguns dos grandes modernistas conseguiram separar-se da
estrutura dos movimentos e dos ‘ismos’. (FAGONE, 2001, p. 9, tradução nossa)
Com efeito, conforme salienta Magalhães (2013, p. 21), a tradicional
historiografia da arte moderna, afirmada e firmada no discurso das práticas
vanguardistas, até meados dos anos 1970, interpretava este período do entreguerras europeu – no caso italiano apresentando pelo carro chefe do Novecento
Italiano a endossar o fenômeno do “retorno à ordem” – como um momento de
retrocesso artístico na representação da forma. Sendo assim, este artigo propõe
justamente levantar a complexidade dessa questão tendo como base a composição
da obra Ponte di Zoagli, que, segundo afirma Magalhães (2013, p. 18), era tomada, naquele contexto, como “uma composição sólida, construída, equilibrada,
herdeira da grande tradição mediterrânea”.
Em linhas gerais, certamente pode-se afirmar que as cinco obras de Arturo
Tosi, hoje na coleção MAC USP, em termos plásticos, primam pelo nivelamento
da composição em planos, conservando a tradicional ideia de perspectiva ao
manter linha e desenho como determinantes fundamentais a se entrelaçarem aos
contrastes de cor. Disto, correspondendo todas elas aos ensinamentos filtrados de
Cézanne, foram legitimadas, ao contexto político-cultural da Itália do entreguerras, em consoância à exigência novecentista de valorização do solo italiano no
retorno à prestigiosa e sólida tradição clássica. De fato, a pintura de Tosi nas
instâncias do grupo Novecento Italiano, embora nunca tenha deixado de observar,
jamais buscou fontes na ânsia pela novidade. Atinha-se na observação das coisas
do mundo elaboradas no eixo da sensibilidade, pintando como um poeta que,
demasiadamente humano, reconhece-se parte da natureza, observando nela, como
em si próprio, uma vital e constante renovação. Em tempo, o pintor não procura
uma significação para a natureza, testemunha, antes de tudo, a sua existência.
Sem valorizar, no entanto, uma possível superioridade da natureza com
sensismos naturalistas fáceis, Tosi, conforme reconhecia Giulio Carlo Argan
(1942, p. 13), salvando ao termo naturalismo o que tem nele de histórico, se
222
|
Dúnia Roquetti Saroute
distancia da arte enquanto imitação aristotélica da natureza, se distancia da arte
como impossibilidade platônica de uma realidade, se distancia da arte enquanto
conflito aflitivo entre homem e natureza romântica. Rumando antes ao fenômeno
da estruturação matemática e maiêutica cezánniana, Arturo Tosi emparelha
novamente o homem, enquanto consciência humana que observa, produz e sente,
e a natureza, enquanto própria realidade de cognição, à sua justa harmonia.
A influência de Paul Cézanne
De acordo com estudos recentes, presume-se que Arturo Tosi (2006, p. 142)
tenha tomado conhecimento da pintura de Paul Cézanne (1839-1906), além das
de Édouard Manet (1832-1883) e Pierre-August Renoir (1841-1919), durante
uma viagem a Paris, em 1900, no contexto da Exposição Universal, que acontecia
na cidade no mesmo ano. A influência efetiva da linguagem plástica do francês
na obra de Tosi, no entanto, só se faz sentir substancialmente a partir dos anos
de 1920, após o artista presenciar vinte e oito obras do pintor francês na 12ª
Bienal de Veneza.
Não cabe, nos limites deste artigo, explorar a fundo a complexa obra de
Cézanne. Porém, para este momento é imprescindível pontuar a essência do novo
princípio introduzido pelo artista no campo das artes plásticas, buscando dar conta
de parte desse processo no que tange à apreensão de Arturo Tosi.
A criação artística de Cézanne, tendo como ponto de partida o romantismo,
tal como se compõe a partir da década de 1870, torna-se o paradigma crucial
das mais variadas vanguardas artísticas da primeira metade do século XX, em
comum diálogo ao conceito primordial da poética impressionista, segundo Argan
(1995, p. 109-116): a captura da impressão instantânea e fulgaz da visão na pintura ao ar livre ou, como sintetiza Merleau-Ponty (1975, p. 305), a captura da
verdade geral da impressão. Cézanne, no entanto, situado historicamente ao final
do impressionismo, aplica o que este tem de original, ou seja, a impressão direta
do objeto a ser pintado, englobando elementos e procedimentos que, de modo
empírico, se desdobram em uma espécie de impressão da sensação solidamente
e tecnicamente montada.
O ato de se decodificar uma sensação em termos pictóricos, anseado por
toda a vida de Cézanne, vale dizer, na leitura de Roger Fry (2002, p. 279), é
colocado simplesmente como a peça chave de sua pesquisa artística. Ainda nesse
rumo, Carmen Aranha, dando continuidade à linha fenomenológica de análise
A influência de Paul Cézanne na pintura Arturo Tosi ...
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de Merleau-Ponty, abre as significações do resultado da pesquisa cézanniana ao
contejá-lo diante à plástica impressionista:
Em Cézanne, o que vemos é o desenho da vibração presente, entrelaçando
volumes de cores sem perder nenhuma densidade do objeto que está sendo
pintado; seria como dizer que a materialidade do material também pertence à
“ordem nascente”. A busca de uma estrutura lógica para situar esse novo
impressionismo é seu projeto: é como se Cézanne “desfragmentasse” o impressionismo numa volumetria de formas e cores, sem perder a abstração, já então
imanente à própria “visualidade”. (ARANHA, 2012, p. 185)
Nesse sentido, é justamente a superação dos moldes impressionistas nos
contornos sólidos das formas da natureza de Cézanne, que tocam Tosi de modo
profundo. Sua fascinação, vale dizer, era tamanha que durante anos ele recorta
fragmentos de revistas cujas análises recaem sobre o pintor francês e seleciona
imagens de quadros de Cézanne para utilizar ao lado do seu cavalete, cotejando
constantemente sua produção à do francês.1
Em consequência direta, o que se vê a partir de 1920 em suas obras é o
abandono quase completo do rugoso cromatismo Alcoólico (fig. 01) em direção
a um equilíbrio das formas, que usam a cor para sustentar um novo meio de
construção espacial. Quanto a isso, a questão da cor na pintura, tão reconhecida
quando se trata da produção de Cézanne, é também fator crucial no processo
criativo de Tosi.
Figura 01 – TOSI, Arturo. Venezia. 1910.
Óleo sobre tela, 20,5 x 29 cm.
Coleção particular.
Em suas primeiras telas, Tosi
trabalhava a coloração com uma espécie de unidade tonal carregada de
emergência dramática. Com a apreensão de Cézanne, que assim como o expressionismo de Vincent Van Gogh (18531890), reestrutura o espaço da tela em profunda simbiose com sua coloração,
1. Informação extraída de uma das comunicações da autora deste trabalho com o
neto do pintor que leva o mesmo nome do avô, Arturo Tosi.
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Dúnia Roquetti Saroute
Tosi trabalha novas e espontâneas relações cromáticas que primam, antes de tudo,
pela luminosidade e limpidez da tela. Assim: o céu azul, por vezes, será
entrecortado por sutis verdes; o vermelho da terra, gozando de efêmeros tons
escarlates, se estenderá às breves edificações e, ainda, o marrom das montanhas
será surpreendido por fragmentos ora azuis, ora amarelos. Deste ângulo, a pintura
Elegia Campestre, 1922 (fig. 02), comporta bem a ideia apresentada.
Figura 02 – TOSI, Arturo. Elegia
Campestre. 1922. Óleo sobre madeira,
73 x 92 cm.
Archivio Storico Cariplo, Itália.
A solução que Tosi emprega para compor o espaço da tela se encaminha visivelmente para a volumetria de
Cézanne nas apreensões da matéria
(fig. 03). O espaço, antes indefinido
em seus contornos, é destacado e moldado por quadrados e retângulos de formas claras. Nota-se, assim, visivelmente,
uma redefinição da consciência plástica do pintor diante do seu objeto.
Afastando-se da pesquisa individual e subjetiva dos primeiros anos românticos, Tosi dá lugar ao método das formas, espaços, volumes e cromatismos.
Porém, se a obra de Cézanne assinala a distância aos princípios românticos da
Scapigliatura, Tosi, por outro lado, nunca se afasta das raízes lombardas,
esboçando, ao contrário, uma singular
matriz pictórica na junção das formas
geométricas das “leis da natureza” do
francês à emoção cognitiva do movimento romântico lombardo.
Figura 03 – CÉZANNE, Paul. Strada a
Montgeroult. [S.d.]. Óleo sobre tela, 25,5
x 20,5 cm.
Museu de Arte Moderna de Nova Iorque,
Estados Unidos.
A influência de Paul Cézanne na pintura Arturo Tosi ...
| 225
Quanto a isso, o pintor não abandona a premissa romântica da conservação
emocional do sujeito na apreensão plástica da natureza. Tosi resgata no cerne
da natureza a ambição estruturalista, própria do classicismo metodológico de
Cézanne, equilibrando a emoção do rapporto intrínseco entre o homem e a
natureza. O resultado, conforme se vê em obras como Paese, 1926 e Scilpario,
1932, e também em obras da coleção MAC USP, como por exemplo, Ponte di
Zoagli, 1937 (fig.04), é a combinação equilibrada entre a consciência da pesquisa
do mundo vísivel e a consciência emocional própria do sujeito.
Il ponte Zoagli
Ao primeiro plano da pintura Il ponte Zoagli, sobressai-se a apreensão
geométrica em uma linguagem quase dissolvida das casas, representadas à direita
da tela em linhas desconfiguradas estão tingidas de um marrom opaco e sujas
pelas secas pinceladas em tons verdes e azuis. Dissolvendo-se em direção a
representação figurativa à esquerda da pintura, as pinceladas organizadas no
primeiro plano marcam também a sólida e cromaticamente harmônica construção
do vermelho edifício de janelas verdes.
Figura 04 – TOSI, Arturo. Ponte de
Zoagli. 1937. Óleo sobre tela, 70 x 90
cm.
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo, Brasil.
Logo ao segundo plano, evidenciam-se as dimensões circulares da
ponte que ajudam a sustentar o comprimido e aplanado mar, tomado em
forma entre ela e o céu. O mar, de um azul transparente, inicia seu molde já na
desconstrução das casas do primeiro plano e se estende até fundir-se às montanhas
potencialmente azuis, que, marcadamente contornadas em tom marrom claro,
cedem apenas um breve espaço para o impermeável verde espesso do pinheiro.
A extensa e luminosa contraposição atmosférica, dialogando harmonicamente
com as tonalidades da pintura, só é recortada por um fluxo de pinceladas, que
alternam entre a continuidade e descontinuidade de um excerto de árvore,
apreendido no canto esquerdo do alto da tela.
226
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Dúnia Roquetti Saroute
A pintura tem como motivo um recorte específico da paisagem lígure,
reproduzindo em efeito de proximidade a envolvente natureza mediterrânea. As
cores são aplicadas como se constituíssem elementos sólidos que necessitassem
um do outro; há, assim, passagens tonais entre cores diversas que, conduzidas
por pinceladas ora curtas, ora longas, ora contínuas, ora descontínuas, produzem
uma harmônica junção entre elementos naturais e estruturais. Trazendo a
reminiscência do princípio racional e verossímil da pintura, corrobora à premissa
de retornar-se ao clássico, ao alcançar a essência do motivo pelo tradicional
caminho do desenho e da linha.
É sabido que Tosi, em processos equivalentes, desenvolveu inúmeras
releituras para temas muito próximos à Zoagli, da coleção MAC USP. As
homônimas Zoagli, 1932 e 1935, são algumas delas, mas nenhum caso, de fato,
é tão notável quanto Il Ponte a Zoagli, 1930, (fig.5). Frutos de esquemas
idênticos, Tosi parece ter desejado reviver fundamentalmente o mesmo ângulo
de Il Ponte a Zoagli, na obra da coleção de Matarazzo. Por certo, a pintura do
acervo MAC USP, apresenta apenas uma delicada diferença de enquadramento
do lado direito da composição e uma geometrização menos sólida ao canto
esquerdo, quando comparada à obra destruída.
Figura 05 – TOSI, Arturo. Il Ponte a
Zoagli. 1930.
Obra destruída.
As razões de Tosi ter desejado
reviver exatamente o mesmo ângulo
e a mesma composição, ainda não se
pode afirmar. Uma coisa, no entanto,
é certa, tal é a notoridade da obra na
produção do pintor que a sua “irmã gêmea” está reproduzida na monografia que
Giulio Carlo Argan (1942, fig. 21, p. 23) dedicou a Tosi, como a emblemática
pintura a dar conta da estrutura espacial de Cézanne em paralelo à experiência
subjetiva do indíviduo.
Deste modo, parece haver na composição de Ponte di Zoagli, após a assimilação da poética de Cézanne, um harmônico reencontro entre duas polarizações
da criação artística: a experiência objetiva e a experiência subjetiva, o espontâneo
e o clássico. O pintor que antes impulsionava suas pinceladas pela mão única da
A influência de Paul Cézanne na pintura Arturo Tosi ...
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sensação agora usa de um procedimento próprio da tradição clássica, ou seja,
da racionalização do ver para transmitir por meio de um procedimento racional,
o conhecimento objetivo de seu sentimento.
Referências bibliográficas
ARANHA, Carmen S. G. ReVer Paul Cézanne. Revista USP, São Paulo, n. 93,
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Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Litostampa, 2006. p.140. (Catálogo da exposição, ocorrida no Centro Museale
di Rovetta, de 15 de julho a 3 de setembro de 2006).
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Para jogar com a instituição: a noção de jogo no
trabalho in situ de Daniel Buren1
TIAGO MACHADO DE JESUS*
Resumo: Este artigo analisa um dos aspectos centrais no trabalho do artista
plástico francês Daniel Buren: o papel da noção de jogo na elaboração de seus
trabalhos in situ. Procura mostrar o funcionamento geral das propostas de
intervenção do artista no interior do espaço institucional fornecido previamente
pelos museus e galerias, selecionando algumas intervenções realizadas nas
décadas 1970 e 1980 que fazem uso da noção de jogo, tal como o artista a elabora
em suas intervenções escritas. Consideramos que a elaboração da noção de jogo
e sua aplicação prática permitem ao trabalho se situar criticamente no contexto
de exposição controlado previamente pela instituição do museu, e em lugares
similares, abrindo espaço para a problematização das regras implícitas na
exposição das produções culturais contemporâneas.
Palavras-chave: Daniel Buren. Trabalho in Situ. Jogo. Crítica Institucional.
To play with the institution: the notion of play within the work in
situ of Daniel Buren
Abstract: This paper analyzes one of the central aspects of the work of the French
artist Daniel Buren, namely the role of the notion of play in the development of his
work in situ. Selecting some proposals made in the 1970’s and 1980’s that mobilize
the notion of play, as the artist draws on his written interventions, it aims to show
the general functioning of the work within the institutional spaces. We argue that
1. A pesquisa que deu origem a este artigo contou com o auxílio da FAPESP na
modalidade Bolsa de Doutorado.
* Doutor em História Social (FFLCH-USP), Professor PUC-Campinas.
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Tiago Machado de Jesus
the elaboration of the concept of play and its practical application enables the work
to be critically situated in the exhibition spaces controlled by the institution of the
museum and similar cultural institutions, making room for questioning of implicit
rules ever present in the exhibition of contemporary cultural productions.
Keywords: Daniel Buren. Work in Situ. Play. Institutional Critique.
Para ver este trabalho devemos virar as costas para o
museu. É jogar com o museu como uma dobradiça e
capturá-lo em seu próprio jogo. Se o museu decidiu
utilizar o exterior, utilizemos o exterior, mas o que será
o interior?
Daniel Buren, Drapeaux de Buren sur
les toits de Paris, 1977.
Um dos pontos fundamentais do trabalho do artista plástico francês Daniel
Buren é a crítica aos mecanismos de exposição e conservação no interior dos
museus de arte e nas propostas curatoriais, que envolvem tanto os museus quanto
as exposições periódicas (exposições do tipo Bienais e Documentas). Contudo,
seguindo o processo de crítica interna às instituições artísticas, pode-se verificar
no desenvolvimento de seu trabalho a tentativa consciente de buscar novas
articulações entre o espaço expositivo e a experiência visual, conforme o autor
indica em uma entrevista concedida em 1979:
Desde Pollock pelo menos, nós vemos as pinturas cercadas de pequenas molduras, talvez para vigiar as bordas da pintura retilínea, mas não vemos mais as
molduras enormes, imponentes, como era o hábito antigamente, molduras formando arabescos em torno da pintura e voltadas para a luz. Passar da grande
moldura dourada para a fina borda de madeira natural, não nos distancia do
problema, e mesmo quando a moldura já magra desaparecer completamente,
o problema fica, pois é a própria parede, suporte da obra, que se torna ela própria, a moldura. Trata-se então de algo com o qual se deve trabalhar e não ignorar
como se isso não existisse ou não tivesse qualquer importância. (BUREN, 2012,
p. 669)
Este artigo procura explorar a maneira pela qual Buren operou, em alguns
de seus trabalhos, no ponto limite entre o espaço do museu/galeria enquanto
quadro fixo para a apresentação da proposta e a relação que o trabalho mantém
Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho ...
| 231
com elementos exteriores ou não considerados pela exposição de arte. De maneira
geral, as propostas de trabalho realizadas com mais frequência por Buren, a partir
de meados dos anos 1970, procuram endereçar o olhar para outros elementos
até então invisíveis, mas presentes nos sistemas sociais, no espaço urbano e até
mesmo no mundo natural (como a luz zenital, o vento, a chuva, etc.), articulando
leituras possíveis a partir do lugar investido.2
Na trajetória de Daniel Buren, a diferença entre a “ferramenta visual”, que
não é senão a materialização da relação de linhas verticais que distam 8,7cm entre
si alternando uma faixa branca e outra colorida, e o trabalho realizado vai ficando
mais clara a partir dos trabalhos efetivos realizados ao longo da década de 1970.3
O trabalho realizado depende fundamentalmente da negação dos princípios de
autoridade e autonomia, bem como da afirmação de seu aspecto transitório,
efêmero e contextual, refutando as expectativas de produção de um objeto de
arte. Contudo, a instalação cria laços fortes com contexto de exposição e do jogo
possível no interior do espaço a ser investido. Instalações como “Toile/Voile”
(1975), “Oh Hisse” (1980) e “Plan contre plan” (1984) são exemplos de um
trabalho que passa cada vez mais a colocar em questão os compromissos assumidos no interior dos espaços expositivos e sua relação com aquilo que se encontra fora de seu sistema de representação. A agressividade inicial de seus textos
contra o sistema da arte é nuançada por uma perspectiva que busca levar em conta
as possibilidades de jogo no interior deste sistema. Perspectiva que busca, através
da realização do trabalho prático, construir uma proposição que problematize
as regras implícitas que regulam o espaço expositivo para melhor sublinhar seus
limites e possibilidades. A ferramenta visual é entendida, enfim, como “... uma
ferramenta que se trata de utilizar. Nunca o material foi nem é um fim em si
mesmo. Ele não significa senão quando aplicado, colado, grampeado, recortado,
2. No que segue retomo algumas questões presentes na minha tese de doutorado:
JESUS, Tiago Machado de. Revelar o cenário, emprestar a paisagem: o trabalho in situ
de Daniel Buren e o sistema da arte (1967-1987). 2013. Tese (Doutorado em História
Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
2013. A pesquisa contou com o apoio da FAPESP.
3. Para uma visão mais detalhada sobre a formulação da “ferramenta visual” como
desdobramento da redução da pintura aos seus elementos mínimos, no trabalho de Buren,
Cf. JESUS, op.cit., pp.43-70. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/
8/8138/tde-12022014-110035/>. Acesso em: 2014-07-02.
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Tiago Machado de Jesus
dobrado, rasgado, estendido, fluído, transparente, opaco... in situ.” (BUREN, 2012,
p. 727). Em um texto de 1978, motivado pelos trabalhos realizados no, então,
recém-inaugurado Centro George Pompidou, Buren afirma: “O que mais me
apaixona e que mais me interessa é como essa ferramenta se infiltra através dos
lugares, através dos tempos e o que isto quer dizer e o que é que eu consigo
revelar.” (BUREN, 2012, p.643).
Figura 1 – Photo-souvenir: Manifestation 1 – Pintura
acrílica sobre tecido listrado Branco e cinza.
(Fonte: BUREN, 1988).
Um de seus primeiros trabalhos que elabora
com clareza a questão dos hábitos esclerosados,
que condicionam o espectador a ver algo pendurado na parede ou disposto no chão, dentro de
um espaço determinado, foi sua instalação na
Bienal de Veneza de 1976, organizada por Germano Celant, cujo tema era “Arte Ambiente”. O
trabalho chamava-se “Quatorze verrière moins Une”, trabalho in situ (Figs. 2 e
3). Tratou-se de uma de suas primeiras instalações que trabalharam diretamente
as implicações das janelas para a composição do espaço expositivo. Normalmente, a janela, quando não está simplesmente fechada, limita-se a fornecer luz
solar para a galeria. Nesta instalação, contudo, elas são tratadas como aberturas
possíveis no interior da arquitetura que delimita o espaço expositivo. Nela, Buren
cobriu com papéis colados brancos todas as estruturas de vidro sobre as salas
do pavilhão internacional, à exceção da sala reservada para sua exposição. Os
vidros do teto desta sala permaneceram abertos dia e noite, sujeita às intempéries
do clima (chuva, vento, sol). Foi instalado ali, inclusive, um sistema de drenagem
para o caso de chuva. O resultado da instalação foi a modificação de toda a iluminação zenital durante os horários de funcionamento da galeria, alterando
também a temperatura interna do espaço, uma vez que a luz solar encontrava a
resistência dos papéis colados no teto. Esta alteração era mais perceptível quando
o eventual espectador, após percorrer as galerias com as vidraças fechadas, encontrasse à sala com a vidraça aberta, totalmente exposta às intempéries do clima.
Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho ...
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Figuras 2 e 3 – Photo-Souvenir: “Quatorze verrière moins
Une”. Trabalho in situ, Veneza, 1976. Sala reservada a Buren
na Bienal de Veneza. (Fonte: BUREN, 1988)
Nestas efetuações do trabalho in situ, há uma relação a ser explorada entre
o museu/galeria e o seu exterior. A principal preocupação é a de coordenar os
discursos contingentes (fruto da proposta curatorial) e o ponto de vista produzido
pelo Museu/Galeria. A expansão do trabalho se faz em direção aos mais variados
elementos que se encontram além de seus muros, janelas e portas. O Museu/
Galeria é o lugar onde se vê (sente) o trabalho, mas também é entendido como
ponto fixo sobre o qual um discurso sobre a visualidade é produzido e controlado.
Por outro lado, a experiência de seguir a ferramenta visual, a partir do museu,
pode se constituir no abandono temporário das restrições do quadro diretamente
sugerido pela instituição, em prol de outros itinerários possíveis. Este efeito pode
ser visto na instalação “Watch the doors please!” (trabalho in situ), realizado no
Art Institute de Chigago, em 1980. Nesta ocasião, Buren investiu as paredes da
galeria com uma lista dos horários das partidas e chegadas dos trens metropolitanos, fornecida pela companhia responsável pelo transporte ferroviário de
Chicago. Simultaneamente, foi realizada a instalação da ferramenta visual sobre
a parte exterior das portas dos trens da cidade. Considerando que o prédio que
abriga o museu foi construído sobre uma estação de trem, o trabalho convidava
os espectadores a acompanhar a passagem da ferramenta visual, ou seja, a passagem dos próprios trens, a partir da janela de uma das galerias do museu. Suspendendo os efeitos das sanções presentes na arquitetura do Museu (separação
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Tiago Machado de Jesus
e conservação), mas sem abolir completamente sua materialidade (fazendo uso
contextual da janela, por exemplo), o trabalho antes procurou jogar com elas:
Poderíamos considerar que uma galeria de arte (ou um museu) que se constitui
como um abrigo onde podemos ver as obras de arte pode também se constituir
paradoxalmente como o maior obstáculo que nos impede de vê-las. (...) A galeria, ao invés de ser um obstáculo visual que reduz a obra exposta, é usada como
uma ferramenta que permite vê-la e pode consequentemente ser considerada
como um periscópio. (BUREN, 2012, p.901).
Figura 4 e 5 – Photo-Souvenir: “Watch the doors please!”.
Trabalho in situ, Chicago, 1980-1982. Art Institute de Chicago em
colaboração com a Railway Company de Illinois. (Fonte: BUREN,
1988)
Jogar com o sistema, ignorá-lo às vezes, criar novas regras ao invés de
contestá-lo diretamente. Pois, segundo Buren, o sistema artístico é diferente dos
outros sistemas de reprodução ideológica. Influenciado inicialmente pelo trabalho
do filósofo francês Louis Althusser, os fundamentos para a elaboração do trabalho
in situ estão condicionados a uma crítica ao caráter ideológico do sistema artístico
dominante, incluindo os modos de produção e circulação de seus produtos.4 No
4. Em um texto de 1977 Buren comenta: “É conveniente indicar antes de qualquer
coisa que este termo [sistema] recobre evidentemente o microssistema do mundo da arte,
ou seja, os museus, as galerias, os críticos, os colecionadores e igualmente todo o aparato
econômico, político e cultural no qual este microssistema se insere e faz funcionar, ou
seja, o sistema ideológico dominante que o rege, que é como sabemos, em nossas latitudes,
a ideologia burguesa” (BUREN, 2012, p. 551).
Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho ...
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caso das obras de arte, até mesmo a sua forma de materialização e circulação
respondem à ideologia dominante, contestá-la é contestar também o modo de
produção, circulação e exposição das obras. Buren elabora seus jogos a partir
de um diagnóstico que mostra com clareza o caráter recuperador do sistema
artístico, que é capaz de transformar a contestação mais ácida em mais um produto
a ser enquadrado. Objetos que, por mais surpreendentes que possam parecer,
circulam, contudo, em meio ao sistema artístico dominante, que reforça e sanciona
a concepção do trabalho do artista enquanto produto já acabado e manipulável.
A base para a crítica dessa posição, sem se considerar o rompimento com o
sistema artístico – pois romper seria já não jogar5 –, é montada sobre dois pilares:
o primeiro, a recusa em fornecer um objeto de arte a ser manipulado pela exposição, afinal a ferramenta visual não é nada ou é quase nada em si mesma; o segundo, desobrigar-se de entender o Museu como lugar único para o trabalho, e,
simultaneamente, procurar problematizá-lo como mais um componente para a
realização das propostas. Isto é, trabalhar ativamente com aquilo que o sistema
da arte pode mostrar/esconder ou tentar impor:
Contestar o sistema é jogar com ele. Ignorá-lo é já jogar outra coisa. Recusar a
relação artista/sistema – isto é aceitar o sistema para eventualmente dele se
servir, mas de fato ignorá-lo – é recusar uma relação dialética na qual o artista
sempre perdeu e sempre será o perdedor. O sistema artístico não é hoje (ainda
menos do que há dez anos) mais contestável e ainda menos aceitável. Contestálo é aceitar o seu jogo e perder. Ignorá-lo é jogar outra coisa e ter eventualmente
o prazer de ganhar. Ignorar o sistema é também inventar constantemente novas
regras de jogo. Aceitá-lo tal como é e sem questionamento é ser frequentemente
um artista de hoje, ou seja, um imbecil (BUREN, 2012 p.738).
O trabalho de Buren, como o de muitos artistas de sua geração, não produz
um objeto facilmente manipulável pelo corpus expositivo, mas, através do uso
5. “O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um “desmancha-prazeres”. Este,
porém, difere do jogador desonesto, do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente
o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. É curioso notar como os jogadores são
muito mais indulgentes para com o batoteiro do que com o desmancha prazeres; o que se
deve ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo. Retirando-se do jogo,
denuncia o caráter relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia
encerrado com os outros.” (HUIZINGA, 2000, p.12)
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Tiago Machado de Jesus
coordenado de diversos tipos de materiais semióticos, age ativamente no espaço
de sua exposição. O trabalho in situ, marcado pelos eventos políticos e artísticos
que permearam as ocupações, greves e revoltas observáveis em várias partes do
globo ao final de década de 1960, deve ser compreendido como uma tentativa
de conceber o espaço expositivo como um terreno de enfrentamento a partir de
seus pressupostos a serem desconstruídos e, simultaneamente, como terreno de
diálogo franco e de experimentações levando em conta as características físicas,
culturais, históricas e simbólicas do lugar investido. Transformar essa organização em parte de uma proposta formulada pela prática artística demanda uma
intervenção, uma postura de negociação do artista propositor do trabalho com
as instituições museais e galerias, com seus curadores e, eventualmente, com o
público. Neste contexto, a resposta à pergunta que consta na epígrafe deste artigo
se torna central: o que será o interior do espaço de exposição em suas configurações atuais? O interior do espaço expositivo fornecido pela instituição constitui
as linhas de demarcação através do qual um discurso, um ponto de vista, um
itinerário pode ser construído, organizado e ganhar sentido. Tratar-se-ia de uma
dobradiça que liga dois pontos: o trabalho proposto e o mundo da vida. Contudo,
as “regras do jogo” podem ser casuísticas, ad hoc, fruto do resultado do trabalho
criativo em face das sanções institucionais. Neste cenário, as regras podem ser
parcialmente modificadas, reinventadas, sem que isso signifique necessariamente
o fim do jogo. Nesta perspectiva, a recusa do fim de jogo consiste em operar um
distanciamento da situação contemporânea da generalização do signo estético
no campo cultural e, ao mesmo tempo, refutar a ideologia modernista da
autonomia da obra de arte cujo primeiro passo, como se sabe, é ignorar o efeito
ideológico do espaço de exposição criado pelos museus de arte.6
Importante notar que essa proposta de trabalho se desenvolveu após o
esgotamento dos últimos impulsos vanguardistas, ao longo de um período
considerado, pelo próprio Buren, como culturalmente reacionário, com intensificação da função conservadora da arte e o retorno de trabalhos não problemáticos para o museu, assinalados, inclusive, no retorno da pintura e da escultura
como meios expressivos e a absorção não problemática da fotografia no interior
6. Sobre a generalização do signo estético no domínio ampliado da cultura: V.
(ARANTES, 2005) e (JAMESON, 1998). Sobre os efeitos ideológicos do espaço expositivo voltado para a exposição da arte moderna: V. (O’DOHERTY, 2002).
Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho ...
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do sistema artístico. No campo político, o autor nota o progressivo esfacelamento
das posições ideológicas tanto de esquerda quanto de direita e, finalmente, o
triunfo da sociedade mercantil e do espetáculo, com o decréscimo dos valores
revolucionários ou da expectativa de modificação do status quo:
Se eu tinha a impressão em 1969 de que a arte era reacionária em seu conjunto,
eu devo dizer que esta tendência, em lugar de se enfraquecer, me parece ter
sido confirmada pelo conjunto da produção verdadeiramente medíocre, pra não
dizer débil destes últimos dez anos. Retorno sobre si, retorno à pintura
acadêmica, aparição de uma nova arte pompier através dos abusos da fotografia,
sentimentalismo ultrapassado, expressionismo desenfreado, a arte é hoje mais
reacionária do que nunca e isto numa escala mundial. (...) Os governos se
endurecem em todo o mundo, ao mesmo tempo em que as ideologias que
defendem, seja à direita ou à esquerda colapsam. A sociedade mercantil e do
espetáculo invadiu tudo (BUREN, 2012, p.728).
Em suma, do ponto de vista da crítica e da história da arte contemporânea,
se não quisermos entender o trabalho como uma proposição meramente adaptativa, como mais um toque de cor em um evento espetacular, ou ainda como obra
institucionalizada pela força do sistema da arte, a resposta para a pergunta sobre
a definição do espaço da arte contemporânea, ao menos para a lógica do trabalho
in situ, deve ser uma tentativa de mapeamento que contemple no mínimo dois
aspectos. Por um lado, um esforço de reconstituição da relação de pertinência
do trabalho no interior das instituições artísticas, pressionadas por um sistema
cada vez mais integrado ao processo de circulação mercantil ampliado para a
esfera cultural. Por outro, não se deve desconsiderar a possibilidade de incorporação da dimensão política na produção artística contemporânea, através da
tentativa de invenção de novas regras para o jogo, que pondere a relação artista/
sistema como uma questão aberta.
Referências bibliográficas
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ensaios marxistas (nº6, 2005).
BUREN, Daniel. Photo-Souvenir 1965-1988. Villeurbane: Art édition, 1988.
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Tiago Machado de Jesus
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HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000.
JAMESON, Fredric. The cultural turn: Selected writings on postmodern. London:
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O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
| 239
Projeto BarcoR – estética tocantina:
intervenção urbana
MAURÍCIO PINTO ADINOLFI*
JOSÉ PAIANI SPANIOL**
Resumo: Este artigo visa apresentar o processo de trabalho desenvolvido no
Projeto BarcoR - estética tocantina, que foi uma residência artística realizada pelo
artista plástico Mauricio Adinolfi, em conjunto com a Associação de Barqueiros
e parceria com artistas da cidade de Marabá/PA, resultando na pintura de 30
barcos. É proposta uma investigação dos procedimentos adotados no decorrer
do projeto, desde o primeiro contato com as lideranças locais até a prática de
criação conjunta. Serão abordadas as conexões desenvolvidas, as trocas de
conhecimentos e as negociações sociais/estéticas que permearam todo o processo
de trabalho, analisando as influências e desdobramentos a partir de uma relação
dialética entre construção e pulsão criativa.
Palavras-chave: Intervenção Urbana. Processo Criativos Coletivo. Residência
Artística. Estética Relacional. Arte e Sociedade.
Barcoß Project - estética tocantina: urban intervention
Abstract: This article presents the work in process of Projeto BarcoR - aesthetic
Tocantina, produced by artist in residence, Mauricio Adinolfi in conjunction with
the Association of Boatmen partnering with artists of Maraba City, Para. This
** Mestrando no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (IA Unesp). Bolsista CAPES.
** Artista Plástico e Professor Doutor do Instituto de Artes da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA Unesp).
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Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol
collaboration resulted in the painting of 30 boats. Procedures used throughtout the
project, from the first contact of with local leaders and to the methods and practices
of joint creation, are examined. Also discussed are the connections made and exchange
of ideas along with the social and aesthetic negotiations permeating the entire creative
process in an attempt to analyze the dialectical relationship between construction
and creative drive.
Keywords: Urban Intervention. Collective Creative Process. Artistic Residence.
Relational Aesthetic. Art and Society.
A arte e as relações em que se constroem: o ser humano e suas transformações; a sociedade em que se vive. Lugares e espaços que o trabalho conjunto
e a arte de estruturar ações formam através de sua prática. Nesse artigo, que trata
de uma intervenção compartilhada, temos como ponto de partida, os primeiros
contatos do artista com representantes da cidade e como se deu esse encontro.
A relação do artista com a região Norte do país já se desenvolvia desde 2010,
época em que Maurício Adinolfi realizou uma exposição na cidade de Belém,
apresentando o trabalho Cores no Dique,1 projeto de intervenção urbana e pintura
em casas de palafitas (foto 1). Tal projeto dialogava com a realidade cultural de
algumas construções de moradia nesta região e foi convidado, então, a expor tais
trabalhos na cidade de Marabá.
Foto 1 - Cores no Dique
Durante sua estadia na cidade,
o artista propôs uma oficina de criação que resultou na pintura da canoa de um pescador local. Esta
ação criou uma perspectiva e a
expectativa em ampliar tal proposta, a mesma foi acalentada em escritas de projetos até sua realização atual, sendo agora objeto deste artigo.
1. Projeto Cores no Dique. Prêmio Interações Estéticas 2008, 2009 e 2012 – residências artísticas em Pontos de Cultura, Cultura Viva, Funarte.
Projeto BarcoR – estética tocantina: intevenção urbana
| 241
O projeto de intervenção BarcoR – estética tocantina, foi incluído na programação de um Encontro de artes visuais,2 que propunha intercâmbio entre as
regiões sudeste e norte do país. Deize Botelho, produtora deste evento, iniciou
os contatos com a Associação de Barqueiros de Marabá a pedido do artista que
já programava sua intervenção.
O primeiro encontro foi realizado com o presidente e um representante da
associação junto com o artista e os produtores do evento. Nesta conversa, Maurício Adinolfi apresentou as ideias e propostas iniciais do projeto, ouvindo de
Antonio Sérgio (presidente da associação), as intenções dos associados, as reais
condições de trabalho e possibilidades de alcance da ação. A empatia foi imediata
e, nesta reunião, ficou claro um comprometimento e a vontade de realização do
projeto.
A ideia de criação compartilhada começa a se esboçar neste momento, pois
a partir de agora tudo depende de esforços coletivos e responsabilidades dependentes. A ideia de “espectador” de uma obra aqui já não existe, os envolvidos
são construtores e ordenadores da criação. Reflete-se aqui pressupostos da
filosofia Existencialista3 (SARTRE, 1978), que altera o ponto de vista do homem,
dialogando com essa nova proposta artística, de imersão do ser nas obras,
possibilitando uma reflexão sensorial e problematizando seu estar no mundo com
o embate material, social e político, partes intrínsecas de sua existência e de uma
visão fenomenológica4 das coisas. Nas palavras de um teórico atual, Nicolas
Bourriaud (2009, p. 13) “[...] hoje, a prática artística aparece como um campo
fértil de experimentações sociais, como um espaço parcialmente poupado à
uniformização dos comportamentos”.
Desta questão de formação a partir da troca de experiências, analisamos o
segundo passo do projeto, que foi a realização de reunião com todos os barqueiros, artista e equipe de produção na sede da associação (foto 2), sendo
2. Encontro Carajás Visuais – entre rios e redes. Tallentus Amazônia. Selecionado
na 9ª Edição do Edital Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais, Minc.
3. O Existencialismo admite o fato de que a existência precede a essência, ou seja,
o que o ser se constrói a partir de suas experiências na vida, de sua subjetividade. In: “O
existencialismo é um humanismo”, Sartre, 1978.
4. Fenomenologia: Propõe a extinção da separação entre “sujeito” e “objeto”. In:
“O olho e o espírito”, Merleau-Ponty, 1980, p. 85.
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Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol
apresentada a proposta de trabalho, ouvindo e entendendo particularidades,
características de cada barco e adaptando cronograma de ação.
Foto 2. Reunião na Associação dos
Barqueiros de Marabá
Foi determinado, nessa reunião,
o lugar onde se desenvolveriam as
oficinas de criação e pintura dos barcos: a escadaria próxima a cooperativa, na orla do rio Tocantins (espaço de trabalho, reforma e construção dos barcos), onde ficaria mais fácil para atracar e pintar (foto 3). Também foram reunidos
alguns pintores, que se tornaram a equipe oficial responsável pela pintura. Estes
trabalhavam junto aos barqueiros donos de cada embarcação. Como dito por um
dos artistas participante das oficinas, criou-se um espaço alternativo de arte: pois
a utilização constante da escadaria, fez com que, diariamente, ocorressem visitas
de curiosos, da imprensa e de outros agentes que se juntavam ao trabalho.
Foto 3. Escadaria no rio Tocantins
(espaço independente de criação).
Equipe de pintura.
Estética Tocantina
As formas e desenhos que constituíram as pinturas, além de dialogarem com a estrutura construtiva de
cada embarcação, vieram de estudos
e encontros com pesquisadores locais de iconografia da região dos Carajás,
adaptações de traços Marajoaras e experiências diretas com a tribo dos índios
Gaviões, reconhecidos pela rica pintura corporal. Dessas pesquisas, surgiu o
nome estética tocantina, que reunia essas intenções referindo-se geograficamente
ao principal rio que margeia a cidade. Foi realizado um estudo dos componentes
físicos do barco, pois há algumas regras marítimas: como a pintura da linha d’água
(obrigatória por marcar o peso do transporte), identificação dos barcos e
numeração.
Projeto BarcoR – estética tocantina: intevenção urbana
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A equipe de pintura trabalhava com certa liberdade de criação: havia um
pintor responsável, o Cabeça, que organizava a pintura pós desenho inicial e
esboços que partiam da pesquisa da estética tocantina, de acordo com as
características do barco e de prioridades de cor escolhidas por seu dono, assim
era definida a pintura geral. Todos os dias o grupo se reunia determinando as
cores e composições, uma paleta cromática era debatida com o barqueiro e montada uma relação de escalas a partir dessa escolha tonal, dessa forma eram agregadas novas ideias, adaptadas às medidas da caixa (parte de resguardo lateral) e
do teto de cada barco. Neste ponto, a ação compartilhada se torna mais concreta,
pois uma intervenção coletiva só acontece plenamente quando todos os envolvidos manifestam suas vontades.
Afirmamos aqui uma visão do fenômeno da criação, indissociando-a do
mundo, do homem e do pensamento construído para abarcá-la. Pensando a
atividade plástica como uma ação envolta na subjetividade do ser criador,
Heidegger (1991) nos coloca a relação incessante e recíproca de formação entre
criador e criação, artista e arte. Tal mudança na postura do artista do séc. XX e
agora XXI pode ser verificada nas palavras de Harold Rosemberg:
O desejo do artista de mudar o mundo foi substituído pelo desejo de transformar
a si mesmo através do exercício da arte e isso significou também mudar a arte.
[ ] A obra passou a ser vista não mais como um fim em si mesmo, mas como
um acontecimento acidental na contínua atividade de criação do artista.
(ROSEMBERG, 2004, p. 267, 268).
Voltando na história da arte, em 1920, Malevitch e parte da vanguarda russa
já agia com interesses sociais próprios da pintura, projetando ações pictóricas
em carros de transporte público, fachadas de edifícios e vestuários. Era a ideia
do suprematismo espacial, pensando na remodelação da realidade cotidiana. No
manifesto do UNOVIS, Malevitch afirma: “a consciência venceu a superfície e
avançou para a arte de configuração espacial” (SIMMEN, 2001, p. 68). Tais ações
não foram levadas integralmente a cabo devido a situação política da época, mas
tais artistas já demonstravam interesse profundo na penetração da arte na
sociedade.
Ampliando essa ideia para a intervenção urbana compartilhada, temos a
postura revolucionária de Joseph Beuys (2001) e sua ideia de escultura social,
projetando nas relações sociais em conjunto, um ser humano com potencial
criativo.
244
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Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol
Desta ideia de responsabilidade compartilhada, podemos analisar a forma
de desenvolvimento do projeto. A intervenção BarcoR foi realizada junto de
artistas locais, e recebia visitas constantes, principalmente por ter sido realizado
em espaço aberto, num local de encontro da comunidade e o rio. Desses
encontros, surgiu uma parceria com a Secretaria de Cultura de Marabá, que
possibilitou a continuidade e expansão das pinturas e do número de barcos.
Os momentos de reunião de trabalho, as oficinas de pintura (foto 4), os
debates para definir cada desenho serviam também para o conhecimento de cada
participante, num jogo de relações que se construíam por meio de brincadeiras
e trabalho prático. Questões referentes à cultura, à representatividade e à organização social, eram amplamente discutidas nesses momentos, de forma livre a
casual. A posição da Associação dos Barqueiros frente aos órgãos municipais,
sua integração na comunidade eram questões correntes que dinamizavam outros
problemas além da pintura.
Foto 4. Ação de pintura
O projeto teve a participação do
artista Marcone Moreira, que durante
três semanas deu continuidade na
pintura de outros barcos, enquanto o
artista Maurício Adinolfi realizava
novos contatos com outros parceiros.
A ação conjunta com a comunidade,
a intervenção nos barcos (instrumento de trabalho dessas pessoas) e o desenvolvimento de uma pesquisa plástica caminharam para uma transformação social,
pois a partir dessa relação social-estética, construtiva e prática, pensando a arte
naÞo apenas como objeto, mas como um poder de formação do ser, desenvolveuse um pensamento estético sobre a vida (NIETZSCHE, 1998).
A sede da Associação dos Barqueiros começou a ser mais frequentada e
questões referentes à cultura, representatividade e organização social foram
amplamente discutidas, criando uma interação entre os barqueiros, órgãos municipais e artistas locais. Levantou-se a possibilidade de integrar as atividades
culturais da cidade e seus participantes/moradores no planejamento e execução
das pinturas.
Projeto BarcoR – estética tocantina: intevenção urbana
| 245
Também foi reforçada a reflexaÞo sobre a necessidade de manutenção dos
barcos, valorizando um olhar sobre a história dessas construções e de seus
trabalhadores, refletido sobre a importância do fortalecimento da entidade/
associação.
Antônio Sergio, construtor naval, fundador e atual presidente da Associação
dos Barqueiros, comentou a importância do projeto para o despertar da
comunidade sobre a necessidade de preservação da historia do trabalhador
ribeirinho e do seu maior patrimônio: o rio.
A política
Uma nova questão se instaurou nesses debates – e que torna-se um problema
recorrente em ações públicas de comunidades ou associações: o embate com
grandes empresas. O problema está entre a propaganda que uma empresa colocava nos barcos, por um valor irrisório, e que agora encontra a força da pintura
de cada barco, com uma identidade visual cultural de seu dono e da coletividade
e a recusa desses (a Associação) em aceitar as propostas da empresa.
Na explicação de sua estética relacional, Bourriaud afirma que “A arte
contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha
em investir e problematizar a esfera das relações”. (2009, p. 23).
O projeto, desde seu início, trabalhou para a criação de parcerias com todas
as frentes da sociedade; órgãos públicos e privados. Porém, genericamente, a
forma de diálogo das grandes empresas difere de qualquer proposta de interelação
ou construção conjunta. Suas intenções são primordialmente mercadológicas e
de marketing, ignorando qualquer envolvimento social ou pensamento estrutural
de construção cultural. Nesse ponto, o projeto envereda por um caminho político,
que é a fortificação da entidade dos barqueiros, a construção da coletividade a
partir da exposição desse grupo na mídia e de uma tomada de posição. Com a
repercussão do projeto, a associação é agora mais reconhecida pela comunidade,
tem uma voz ativa e começa a incomodar relações de poder e submissão antes
incorporadas. Porém, demonstrando novamente suas intenções de desestruturação social, a empresa tenta desarticular a coletividade, propondo, individualmente e às escuras, valores para cada barqueiro mudar a pintura e expor sua
publicidade.
Dessa forma, os diálogos e embates são constantes, pois antes de negar ou
compartimentar as relações de poder, tentamos trabalhar identificando-as e
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Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol
invertendo valores, já que a presença dessas forças econômicas em qualquer
cidade é intrínseca à sua conformação e história.
Temos instaurado um problema que parte de uma ordem estética para um
contexto político e ético. Com a visualidade dos barcos tomando conta dos rios
Tocantins e Itacaiúnas (rios que margeiam toda a cidade de Marabá), uma
identidade visual se apresenta à sociedade e é incorporada culturalmente por ela,
ativando um outro senso de pertencimento e valorização regional (foto 5). Um
questionamento é levantado quanto ao valor de uma publicidade privada que se
constituía sem significados identitários e uma reorganizando de postura política
coletiva erigida pela associação doa barqueiros, artistas e seus parceiros.
Foto 5 – Barqueata no rio Tocantins
(Cortejo Fluvial).
Desenvolveu-se dessas discussões, a participação dos barqueiros na
vida da cidade e na constituição de
sua história, as condições de trabalho
e as possibilidades futuras, levantaram ideias como a criação de uma
escola de construção naval, um museu
do rio (que contemple a genealogia
dos pescadores e barqueiros do rio Tocantins), a organização da associação e
sua ação política. Percebemos a fortificação de relações entre os barqueiros e
uma tentativa de dinamizar os problemas levantados. Essas reuniões e atividades
tiveram a participação de representantes políticos, como prefeito, secretário da
cultura, do turismo, de serviços públicos, empresários, acadêmicos, estudantes
e outros colaboradores.
Uma ação colaborativa de intervenção distingui-se por essas características
plurais é um procedimento político na prática, pois nos vemos envolvidos pelas
relações sociais que definem esse lugar. O Projeto reafirma uma dialética, que é
a relação entre o fazer e o pensar no momento criativo, ou seja, como a matéria
influencia e determina o raciocínio e como este raciocínio estabelece esta matéria,
delineando um método, pois o ambiente plástico erigido possui força e originalidade conforme a habilidade intelectual, e este campo poético reflete direta-
Projeto BarcoR – estética tocantina: intevenção urbana
| 247
mente o pensamento; é o pensamento organizado plasticamente, que se afirma
através da materialidade da obra e da ativação do espaço que esta potencializa.
Neste ponto se instaura o problema estético, sempre um jogo entre ação, espaço
e pensamento.
Performance Fluvial
Confirmando a união que se formou entre todas as frentes envolvidas no
projeto, um grande evento delimitou a conclusão do trabalho: a criação de um
site-especific: A Buiúna Spiral Jetty, uma performance fluvial com os barqueiros
realizando um grande desenho no rio, criando uma pintura espacial com os 30
barcos pintados e comemorando no dia 1º de maio o trabalhador ribeirinho.
O desenho espacial projetado para esta performance possui duas referências:
a Lenda da Buiuna, que é uma história sobre a presença de uma enorme cobra
que habita os rios da amazônia; e a obra Spiral Jetty, trabalho central do artista
norte-americano Robert Smithson, uma escultura em espiral feito de pedras
basálticas e terra que adentra o mar com um comprimento de 457,2 metros.
O evento acionou diversos agentes, articulando poderes e responsabilidades
entre todos os participantes, seja para registro, estruturação da performance,
organização entre os barcos, acompanhamento da correnteza, iluminação e etc.
A intervenção discute vários limites e classificações presentes na história
da arte, pois conjuga em sua realização o meio natural onde é realizada, o ser
humano como parte da obra, a paisagem e as ferramentas utilizadas. (Foto 6)
Foto 6. Performance Fluvial – Buiúna
Spiral Jetty. (imag. Regina Suriane)
248
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Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol
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KRAUSS, Rosalin. Caminhos da escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes,
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Abril Cultural, 1978.
SIMMEN, Jeannot e KOHLHOFF, Kolja. Malevitch.Portugal: Konemann, 2001.
| 249
Este outro também sou eu: a crítica cultural
em Barbara Kruger e Cindy Sherman
ANDRÉIA PAULINA COSTA*
RUY SARDINHA LOPES**
Resumo: Esse presente artigo visa analisar as formas de crítica cultural inseridas
nos trabalhos de Barbara Kruger e Cindy Sherman, como componente de uma
produção cultural, cuja postura ativa propôs novas formas de relação entre arte
e política. Através de uma linguagem acessível: a fotografia, as artistas percorrem
de aspectos hollywoodianos, disformias corporais de revistas, dos anos 1950, à
violência simbólica. Através do ato de personificação, e de técnicas de
publicidade, Kruger e Sherman contextualizam uma sociedade de consumo
irrefreado, cuja necessidade de se adequar, remodelar e pertencer se entremeia
entre o físico e o simbólico.
Palavras-Chave: Arte Contemporânea. Cultura Política. Desconstrução.
Feminino.
Abstract: This article intends to analyze the forms of cultural critique embedded
in the work of Barbara Kruger and Cindy Sherman, like a component of a
cultural production where the engaged attitude proposed new forms of
relationship between art and politics. Through an accessible language:
photography, artists sweep from Hollywood aspects to the body disformias,
magazines 1950s and symbolic violence issues. Through the act of
personification, and advertising techniques, Kruger and Sherman contextualize
** Mestranda em Arquitetura e Urbanismo, na linha de Artes, Estética e Arquitetura,
Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP), bolsista FAPESP.
** Professor e pesquisador no Departamento de Arquitetura do Instituto de
Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP), na área de Estética, Teoria e História da Arte.
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Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes
a society of unbridled consumption, where the necessity to adapt, remodel and
belonging are interspersed between the physical and the symbolic.
Keywords: Contemporary Art. Culture Politics. Desconstruction. Feminine.
As táticas de contra-apropriação em Barbara Kruger se pautam no cotidiano.
As imagens, que emprestam temas as obras, são sempre feitas em esquemas
simples: preto, branco e vermelho, uma imagem de fundo preta e branca e
colagens de frases em fundo vermelho ou branco. A utilização de técnicas de
superexposição e negativo empresta às linguagens da colagem e da litogravura
aspectos dramáticos da realidade. O choque de suas frases impactantes é acompanhado pela ausência das bordas, trabalhando a ideia de campo expandido, em
a infinidade de suportes possíveis possibilita que o distanciamento entre a obra
e o espectador seja anulado. Kruger também dialoga com a ideia de xerox arte,
em que o contraste entre o preto e o branco muito chapados cria uma linguagem
própria, de incorporação do ruído. Aqui o ruído pode ser visto como analogia
da tensão criada pela cultura de massas, suas dinâmicas de agregação e exclusão
cultural.
A linguagem, que busca colocar a chão a questão da autoria e da reprodução
em seu trabalho, dialoga com o universo das mercadorias e dos fetiches
produzidos pela cultura de massas. Em frases como “Your confort is my silence,
Love for sale, If you don’t control your mind, someone else will, Money can buy
you love, Your body is a batleground, You are not yourself…”, Kruger expressa
as formas de dominação exercidas pelo capital. A transformação de todas as
coisas, objetos e sentimentos, em mercadoria e a consequente satisfação encontrada no ato de consumo, de bens de capital e de bens simbólicos, são problematizadas na obra de Kruger pela escolha de fotografias do cotidiano, com ícones
e símbolos, cujo contato direto é inevitável: a artista parte de partes do corpo
feminino a cenas de rituais socialmente legitimados, de objetos de consumo e
de perspectivas ácidas. “‘The construction the female subject’ as the main theme
of her image-text montages and she acknowledges an interest in the journal
Screen.” (EVANS, 2009, p. 19)
As produções de Kruger de 1980 têm, em sua essência, uma movimentação
política e de gênero. Fazem críticas às instituições e às formas de relação estabelecidas; críticas acerca da existência humana pautada em um consumo eminente
de mercadorias das quais só precisamos através do fetiche, incutido socialmente
através da publicidade. É com essa linguagem que Kruger procura combater os
Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman
| 251
vícios produzidos pela forma de produção do capitalismo. Como artista, revela
os processos de produção cultural mistificada, a qual propõe mascarar a
sexualidade do outro. A artista nota que, na sociedade de sua época, há uma
discriminação disfarçada em códigos sociais, onde é necessário a aceitação social
de um código normativo que ocorre por meio dos ritos culturais para que se
legitime o contato com o outro do mesmo sexo. A aceitação só ocorre enquanto
rito, só sendo legitimada nessa efemeridade. Há a aceitação social do rito, mas
não da escolha sexual e de sua desmistificação: “I consider gender to biological
defined while sexuality is socially constructed. Because of this, I am prone to a
kind of a lascivious optimism. I want to questions the notions of heroism and
skew the conventions which loiter around depiction.” (KRUGER, 2009, p. 112).
Kruger trabalha no sentido de denunciar as falhas e as contradições inerentes
à sociedade de consumo. Trabalha a perda da identidade pessoal e sua nova
configuração com os modelos pré-estabelecidos por um regime cultural, cuja
determinação se pauta no poder e no controle. O poder da mercadoria sobre o
individuo, a transformação de indivíduo em consumidor, mas também a
necessidade de emancipação sexual e de gênero. Emancipação das escolhas de
cada um.
Por outro lado, a fábrica de mulheres de Sherman trabalha com a questão
da reprodução da indústria cinematográfica. Ao reproduzir cenas famosas de
filmes noir, Sherman problematiza o papel da mulher na indústria do cinema.
Mulher como papel de objeto, de desejo e de mercadoria. A artista propõe uma
leitura que dialoga com o outro e procura nesse mesmo outro um reflexo do mundo. Seus cutting paper e dress up retratam a pluralidade sexual de nosso tempo.
Ao passar por inúmeras formas de representação do feminino, Sherman retrata
o impacto da cultura na subjetividade de cada um: como nos moldamos em torno
das configurações sociais e nos produzimos de acordo com ela. Sherman nos fala
da solidão da contemporaneidade e da busca por algo que supra as necessidades
imediatas de carência: ao nos tornarmos objetos da cultura da qual produzimos
e reproduzimos, o fetiche abarca o espaço do vazio da modernidade.
Sherman brilliance is her ability, not to use a mirror, but to come one: to allow
her body to reflect, in a detached and often humorous manner, the smorgasbord
of images that constitute our vision of the world. Moving with equal ease
through history and a fashion magazine, she transforms herself into a movie
star, a witch, an Italian gentleman, or as aristocratic matron from art history.
252
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Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes
Carefully manipulating lights, costumes, and props, she creates mise-en-scènes
(with more than a hint of artifice) that place her within the lifestyles and
environments of both her ancestors and her contemporaries […] Sherman’s,
however, is an inverted odyssey; becoming a TV set, she allows the world’s
images to flow through her. She identifies not with any one specific image but
with the personal vortex that is her experience of contemporary life. Like Deren,
she is embodying within himself the volatile character of a relativistic universe
(RICE, 1999, p. 25)
Cindy Sherman expõe os estereótipos com os quais ainda nos confrontamos
na contemporaneidade. A prática da construção das identidades pessoais e a separação entre uma identidade social e cultural, a relação entre o que acontece na
esfera do visível e ao cair da noite, é a necessidade de adequação ou de libertação, uma identidade que se torna múltipla, facetada. Põe em foco a questão da
beleza, do natural e das disformidades causadas pela sociedade de consumo
irrefreado: a imagem de uma mulher, em sua simplicidade cotidiana, e a transformação, por etapas, de sua identidade diária, coordenada pelas obrigações sociais
e sua identidade pessoal, de características noturnas, performáticas; a própria
relação performática da identidade e da sexualidade.
Sherman evoca o sujeito observado, o sujeito-como-quadro, que também é o
local principal de outras obras feministas do início da arte da apropriação. Seus
sujeitos veem, é e outro claro, mas são muito mais vistos, capturados pelo olhar
[do outro sujeito, do espetáculo do mundo, do vir de dentro]. Aqui Sherman
mostra seus sujeitos femininos como auto-observados, não na imanência fenomenológica (vejo-me vendo-me), mas no estranhamento psicológico (não sou
o que imaginava ser) […] Sherman captura a lacuna entre as imagens do corpo,
imaginado e real, que se abre em cada um de nós, a lacuna do (ir)reconhecimento
em que as indústrias da moda e do espetáculo operam dia e noite. (FOSTER, 1994
p. 142-3)
Ao capturar as lacunas entre imagem e corpo, Sherman vagueia pelas
fantasmagorias de Benjamin, produzindo uma reflexão entre o espaço vazio que
flutua entre o imaginário e o real; um fantasma que mantém sua essência sem
estar visível. A questão colocada é de percepção daquilo que se encontra entre a
esfera do visível e do invisível, do real e do imaginário, e que nos mantém em
suspensão, que nos faz acreditar em uma imagem produzida através da distorção
Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman
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dos conceitos de cultura, de belo, promovendo como legítimo as formas que
sustentam o sistema social vigente, sem necessariamente abranger a multiplicidade de formas de vivido contemporâneo.
Temos uma flutuação entre os significados concretos e aqueles produzidos
pelas ressignificações da indústria cultural. A fantasmagoria é tomada por
elementos do fetiche marxiano e, sendo elemento constitutivo do fetiche, permeia
pelas tramas simbólicas, produzindo uma percepção de mundo difusa e que
culmina em formas alienantes de compreensão do real. A realidade é produzida
através de um afastamento entre o significado real, concreto e a instauração de
formas reificantes.
For Benjamin, the phantasmagoria that results from such fetishism constitutes
what passes for reality in every possible dimension. We project our fetishism
onto the objects of the world, in effect enslaving ourselves via our treatment
of them. From this fetishism, an entire political order is created.1 (MARTEL,
2013)
A política de representação usada por essas artistas se relaciona com a arte
de apropriação e a da desconstrução, que tem como referência a estética noir do
new wave e a postura desconstrutiva do punk I shop, therefore I am. Esse impulso
alegórico, (OWENS, 2001, p. 209) que transforma artistas em soldados, apesar
de ser fundamental como contraponto a cultura dominante, tendo como papel a
crítica e a produção de inquietações aos padrões de consumo, gênero, sexualidade
e formas de ação política, tem como recorrência, e talvez por dialogar com uma
estética produzida nas tramas da cidade, uma dualidade. A crítica pode vir a ser
subsumida, tornando-se, ao olhar do outro, aliado daquilo a que tenta negar,
justificando ações das quais é contrária. Pode perder-se no redemoinho da reprodução constante dos códigos culturais e tornar-se ideologia.
A arte dos anos 1970 tem, em seu conteúdo, temas do cotidiano cultural de
sua época e muitos foram os artistas que se debruçaram sobre temas polêmicos.
Se no primeiro momento causaram estranhamento devido ao impacto de suas
obras, em um segundo, conseguiram dialogar com o espectador e com o espaço
1. Anti-fetishism: Notes on the Thought of Walter Benjamin. Disponivel em: http:/
/criticallegalthinking.com/2013/04/22/anti-fetishism-notes-on-the-thought-of-walterbenjamin/#fn-14108-3
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Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes
da cidade, físico e simbólico, através de uma linguagem contemporânea e acessível que fazia da tessitura urbana suporte. Os anos 1970 vêm como refugo das propostas colocadas pelos grandes nomes da década de 1960, Cage, Rauschenberg
e Duchamp, em um processo não de superação, mas de compreensão crítica, teórica e prática: o que fazer com o que foi problematizado antes, como produzir arte
em cima das questões do ready-made, dos happenings e do experimentalismo.
À procura de novas linguagens artísticas, a década de 1980 abre diálogo
para as questões da alteridade e vê no outro a oportunidade de expandir a crítica
ao sistema capitalista e à cultura dominante. As novas formas de subjetividades,
que eclodem das cenas juvenis e do circuito das artes alternativas, abrem espaço
para as discussões acerca do gênero, de sexualidade, de etnicidades e formas
díspares de viver o cotidiano. A crítica ao consumo e ao apoderamento cultural
torna as artes da década de 1980 em narrativas culturais.
Nas tramas da cidade, as produções de grande parte desses artistas se
encontram na temática da sexualidade, da violência e das estruturas sociais. A
imobilidade da cultura dominante em aceitar os novos paradigmas colocados pela
juventude e a postura cada vez mais ofensiva das políticas públicas, possibilitou
o surgimento de obras cujo teor político retomava a ideia de diálogo.
O conceito de política extrapola a ideia de poder e permeia cada momento de
nossa vida. Acho que a política está presente em cada momento que a gente
tem, em cada negócio que a gente faz, em cada rosto que a gente beija. Um dia
na ONU não é mais politico do que um jantar em família, e o poder e seus abusos
estão por toda parte. Não me considero uma artista política nem feminista.
Artistas têm habilidade de visualizar ou tornar texto suas experiências de
mundo. Os artistas de minha geração, muitos deles vêem bastante tevê, lêem
muitos jornais e vão muito ao cinema. Assim, nossas experiências acabam sendo
construídas a partir dessas representações. (KRUGER, 1993, p. 26)2
Foi partindo dessa visão, em os pequenos atos da vida cotidiana se expandem
como forma de política, que a linguagem da apropriação, do pastiche e da
simulação, já usadas pela mídia, tornam-se elementos importantes para uma
produção, que tem como objetivo questionar estereótipos, a autoria, a propriedade
e em expor a realidade como uma representação (FOSTER, 2014, p. 115).
2. Encontro com Barbara Kruger. Revista MAC, nº 2, dezembro de 1993.
Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman
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Nas obras dessas artistas, a crítica cultural se encontra nas formas de paródia
e alegoria. Tanto Barbara Kruger quanto Cindy Sherman se preocupam em
expandir o campo da percepção, com apropriações de elementos simbólicos de
épocas passadas, ressignificações de fotografias de trabalhos famosos, uso da
linguagem publicitária, focando na facilidade de reprodução e contestando a
relação autor-produtor. Essa crítica parte da observação da dinâmica social
(FOSTER, 2014, p. 116), produzindo, assim, uma reflexão sobre o estabelecimento
das condutas e normas que modelam as relações sociais. Nesse sentido, as formas
de alegoria e paródia trabalham no rumo das desconstruções: desconstrução de
identidades sociais, sexuais, de estereótipos; e propõem um novo olhar sobre o
outro. Trabalham com a ideia de transformação e de mutabilidade. São categorias
que propõem formas de pensamento processuais, desvelando e recuperando o
estado original, natural ou esquizofrênico do outro; revelando a personalidade e
o distanciamento entre a imagem produzida e a real, as diversas possibilidades
de autoconstrução do sujeito e de sua identidade social e pessoal.
The Feminist Critique section focuses on two ideas that first emerged during
the 1970s: that visual culture is one of the primordial sites where gender
relations are produced; and that mainstream accounts of the modern author or
artist inevitably foreground men of genius. Both ideas have informed range of
appropriationist strategies to unfix the fixed. (EVANS, 2009, p. 18)
A questão da cultura visual e das relações de gênero passa pela ideia do
natural e do esquizofrênico na sociedade capitalista, onde o natural seria aquilo
que é pautado pela normatividade social e o esquizofrênico pelas reverberações
das minorias. Desse modo, a questão do natural e do diferente, e logo, a questão
da alteridade, aparece na obra dessas artistas como componente etnográfico
(FOSTER, 2014, p. 160-1), onde a questão do território é determinante. As obras
de Kruger e Sherman vão de encontro às perspectivas de colocar em pauta as
necessidades de reflexão sobre a sexualidade, masculina e feminina, sobre as
formas de consumo e de pulsão das massas. Qual seria o papel de cada um na
estrutura social, não um papel moldado pelas formas de legitimação da cultura
dominante, mas como forma de inserção e captação de novas produções sociais,
onde o outro também sou eu? Para Deleuze, a questão do natural e do esquizofrênico permeia toda a construção cultural de nossa época, sendo o mecanismo
que engendra os posicionamentos políticos de cada um: paranoico ou esquizo-
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Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes
frênico, o campo social é permeado por atitudes reacionárias ou revolucionárias,
cabe então ao artista, produzir uma reflexão de mundo que problematize as esferas
sociais, suas apatias e anomias.
Neste sentido, já vimos que há dois grandes tipos de investimento social, um
segregativo e outro nomádico, que são como dois polos do delírio:um tipo ou
polo paranoico fascistizante, que investe a formação de soberania central e a
sobre- investe, fazendo dela a causa final eterna de todas as outras formas sociais
da história, que contra-investe os enclaves ou a periferia e desinveste toda livre
figura do desejo […] E um tipo ou polo esquizo-revolucionário, que segue as
linhas de fuga do desejo, que passa o muro e faz com que passem os fluxos,
que monta suas máquinas e seus grupos em fusão nos enclaves ou na periferia,
precedendo ao inverso do precedente […] Um é investimento de grupo sujeitado, tanto na forma de soberania quanto nas formações coloniais do conjunto
gregário, que reprime e recalca o desejo das pessoas; o outro é investimento
de grupo sujeito nas multiplicidades transversais portadoras do desejo como
fenômeno molecular, isto é, objetos parciais e fluxos, por oposição aos conjuntos e às pessoas. (DELEUZE, 2010, p. 367-70)
A questão da alteridade muda o foco do sujeito na arte, continua ainda a
dialogar com a crítica as instituições, as quais a arte está vinculada: museus,
academia, mercado e circuito, e passa a focar na identidade cultural. Retomando
as questões de O autor como produtor de Benjamin, novas leituras acerca do real
surgem em 1980: “[...] tal como Benjamin reagira à estetização da política sob o
fascismo, esses artistas e críticos reagiram à capitalização da sociedade sob
Reagan […] na arte de ponta da esquerda surgiu um novo paradigma: o artista
como etnógrafo.” (FOSTER, 1994, p. 161).
A criação de uma nova ordem política, que advém das formas fetichizadas
e reificadas de mundo, produz, em seu polo oposto, uma necessidade de desfetichização do real. É nesse sentido que as obras de Kruger e Sherman procuram
trabalhar, produzir formas de percepção que problematizem o domínio da cultura
de massa. É na aproximação do artista com a comunidade, com o espaço limítrofe
entre a arte institucionalizada e a que está à margem, que a produção da arte de
apropriação procura intervir tendo a antropologia como substrato.
A proximidade dos artistas com as questões antropológicas fez com que a
comunidade e a identidade cultural se tornassem objeto de reflexão. Temos a
Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman
| 257
incorporação de temas pós-colonialistas, que tratam da subalternidade e das
formas de subcultura, nesse sentido a temática da AIDS, da posição social da
mulher, do homossexual, do negro e dos imigrantes se tornam emblemáticas.
Autores como Barthes, Benjamim, Gramsci, Althusser e Freud se tornam referencial teórico para a produção da appropriation art: textos como Totem e Tabu,
Cadernos do Cárcere, Aparelhos Ideológicos do Estado, Mitologias e O Autor
como Produtor marcam a influência do pensamento estruturalista como base para
a reflexão da esquerda artística em 1980. A proximidade com as teorias estruturalistas produziu uma linguagem artística mais crítica, mais consciente da
dinâmica cultural e, logo, mais ativa.
Nesse sentido, na tentativa de criar algo novo, Kruger produz cartazes que
pretendem corromper com os códigos sociais estabelecidos. Ao questionar as
questões de autoria e de originalidade e de utilizar suas produções como veículos
de comunicabilidade em suportes publicitários (posters, camisetas, objetos acessíveis), a artista retoma a problemática acerca das construções sociais e de como
elas remodelam nossos conceitos de fetiche, mito, texto e produzem uma imagem
alienante de nós mesmos e do outro. Uma permissividade que adentra os códigos
sociais e que engendra atitudes e posturas culturais que culminam ora em tabu,
ora em legitimação.
You mean that even though my work continues to foreground issues of power,
gender and reception, when I include the positioning of the market, it removes
my practice from the concerns of a feminist discourse? Is your question another
assertion of the need to categorize or does it also suggest that you think that
feminist exists outside the discourses of capital, as a kind of primordial
meandering which escapes all economies except those of birth and rhythm? I
consider sexuality an capital to be inextricably wedded and this coupling has
the power to dictate the feel of the moments of our lives. As my position within
the market structure became more palpable, I thought it increasingly important
to comment on the financial proclivities which enveloped me: to be in and about
consumption at the same time. (KRUGER, 2009, p. 115)
Essa relação entre poder, gênero e recepção se encontra nas obras de Kruger
e Sherman, assim como a desconstrução de tabus; o mito é outro elemento
importante para a compreensão das apropriações feitas pelas artistas. A compreensão do conceito de mito em Barthes é usada como ponto de ruptura. Essas
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Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes
produções buscam através do estético transcender o mito, tido como verdade;
buscam retomar o sujeito como tema, em todos seus aspectos. A arte da apropriação trabalha com a desconstrução, de dogmas, de métodos e de legitimações
impostas.
Existe uma linguagem que não é mítica, é a linguagem do homem produtor:
sempre que o homem fala para transformar o real, e não mais para conservá-lo
em imagem, sempre que ele associa a sua linguagem à produção das coisas, a
metalinguagem é reenviada a uma linguagem-objeto e o mito torna-se impossível. Eis a razão por que a linguagem revolucionária não pode ser uma linguagem mítica. (BARTHES, 2009, p. 238)
Essa construção ideológica que ocorre no mito tende a ser desconstruída
nas obras femininas do período de 1970. Abre-se espaço para uma linguagem
que tende a dialogar com o Outro, “[...] for em Sherman images, disguise
functions as a parody, its works to expose the identification of the self with an
image as its dispossession. […] By implicating the mass midia as the false mirror
which promotes such alienating identifications, Sherman registers this truth as
both ethical and political.” (OWENS, 1994, p. 85) Esse diálogo com o outro pode
ser visto nas obras Untitled Film Series, de Sherman, e nas produções na década
de 1980 de Kruger. A questão da representação é latente, passa da questão do
ético e político para o jogo do pessoal e impessoal, proximidade e distanciamento.
É na representação e na política da representação que o mito se torna elemento
fundamental:
Myth is depoliticized speech. Myth is ideology. Myth is the act of draining
history out of signs and reconstructing these signs instead as instances, in
particular, instances of universal truths or of natural law, of things that have
no history, no specific embeddedness, no territory of contestation. Myth steals
into the heart of the sign to convert the historical into the natural—something
that is uncontested, that is simply the way things are. (KRAUSS, 1999, p. 105)
Na obra dessas artistas, as questões colocadas por Barthes ganham centralidade, no que dizem respeito a questão do texto e da autoria, como a arte pode
ser produzida ser sem vinculada às questões modernistas, de sublime, de
contemplação, e passa a ter um significado ativo na sociedade, seja como recurso
Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman
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imanente, como força produtora de mudança, mas sobretudo como formas
alternativas de leitura de mundo. As problemáticas inseridas na arte de apropriação se conectam ao cotidiano, pensando todas as formas de exclusão, procurando uma latência no intricamento social, que possa produzir um olhar novo,
de aceitação do diferente.
Bathes afirma que a cultura dominante opera por meio da apropriação: ela
abstrai os significados especificos de grupos sociais em significantes gerais,
que são então vendidos e consumidos como mitos culturais. Contra essa
apropriação, Barthes propôs uma contra-apropriação: desmantelar o signo
mitico, reinscrevê-lo numa montagem critica e então fazer circular ess mito
artificial; (FOSTER, 1994, p. 96-97)
Ao propor novas trajetórias, essas artistas conceituais encontram, na
apropriação, uma válvula de escape aos dogmas da arte (a questão da autoria e
da reprodução) e da cultura dominante. Propõem olharmos o real, através de uma
mediação sensível, ver no outro aquilo que também poderíamos ser. Mostram
proximidade e interesse sobre o real, procuram formas de reexistência em um
sistema cujo foco se dá nas formas de apoderamento e de controle. Dialogam
questões que ainda se encontram em pauta no tempo presente e buscam formas
de alteridade em um espaço social, que transforma a diferença em mercadoria.
Uma arte contemporânea de seu tempo e contemporânea do nosso.
Referências bibliográficas
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2000.
WALLIS, B. Arte después de la modernidad. Akal: Madrid, 2001
| 261
Ofício e gênero nas obras de
Rosana Paulino e Sonia Gomes
JANAINA BARROS SILVA VIANA*
Resumo: O presente artigo possui como interesse a articulação entre ato
experimental e o gênero nos modos de construção de um discurso poético, numa
autoria feminina e negra dentro da história da visualidade contemporânea, além
de suas possíveis referências com a manualidade, presentes nas obras das artistas
Rosana Paulino (1967) e Sonia Gomes (1948).
Palavras-chave: Ato Experimental. Trabalho Feito à Mão. Gênero e Arte
Contemporânea. Autoria Feminina e Negra.
Craft and gender in the works of Rosana Paulino and Sonia
Gomes
Abstract: This article deal with issues from artist black women within the history
of contemporary visuality, so developing the relationship between gender and
experimental act in the ways of constructing a poetic discourse about craft and
femininity, beyond its possible references about “the hand made”, in the works of
Rosana paulino (1967) and Sonia gomes (1948).
Keywords: Experimental Act. Hand Made Work. Gender and Contemporary Art.
Black Woman Authorship.
* Doutoranda em Estética e História da Arte (PGEHA/USP) na linha de pesquisa
Metodologia e epistemologia da Arte.
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Janaina Barros Silva Viana
Algumas digressões sobre autoria negra e o contemporâneo
O presente artigo possui como interesse a articulação entre ato experimental
e o gênero nos modos de construção de um discurso poético. O discurso pode
ser entendido, nesta reflexão artística, como uma síntese significativa de uma
visualidade, em atuam uma série de operações específicas e complexas que compreendem a existência de uma obra. O recorte dá-se a partir da localização de
uma autoria feminina e negra, dentro da história da visualidade contemporânea,
e suas possíveis referências com a manualidade. Desse modo, tem-se a produção
de narrativas estéticas e políticas sinalizadas por meio do bordado e da costura,
nas obras de duas artistas negras, Rosana Paulino (1967) e Sonia Gomes (1948).
A leitura destas produções pode ser analisada pelas técnicas que as constitui e
também como revisão de denominações em determinados discursos poéticos
femininos numa história da arte contemporânea; socialmente pelo seu caráter
ambíguo, principalmente em razão das possíveis noções sobre o objeto artístico
quando se refere a procedimentos técnicos tangenciados pela costura e pelo
bordado dentro de uma história da visualidade.
O conceito de contemporâneo implica em rever a noção de modernidade,1
pois se torna possível entender a arte contemporânea como continuidade ou
ruptura da arte moderna, no que tange historicamente a uma era industrial quando
se refere a seu desenvolvimento e reflexo numa sociedade de consumo.2 O
desenvolvimento na sociedade moderna pode ser definido de acordo com o nível
1. Giulio C. Argan na obra Arte moderna. Do iluminismo aos movimentos
contemporâneos (1992) propõe a arqueologia do moderno e o seu projeto artístico a partir
da aproximação com o Romantismo e os ideais iluministas. Estas aproximações
encontram-se nas relações existentes entre o processo de tornar estético o real e a
impossibilidade de se separar arte e vida na constituição de um objeto artístico. O
indivíduo iluminista intentava sua emancipação total no ato de desvendar os mistérios
da alma humana e da natureza, e na crença projetada nos poderes cognitivos e da razão.
Consequentemente, isto permitiria provocar mudanças positivas na sociedade.
2. De acordo com Fredric Jameson com o esgotamento do projeto moderno há
consequentemente, a retomada dos signos resgatados do passado na forma de clichê, onde
a produção visual pós-moderna não renega o passado, pelo contrário, aparece de maneira
fragmentada. O passado aparece descontextualizado historicamente, esvaziado de seu
contexto, podendo ser encarado como uma espécie de amnésia histórica, ou ainda, uma
Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes
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tecnológico alcançado por ela e balizado pela concepção ideal de progresso e
as possíveis formas de identidades.3 O indivíduo ver-se como contemporâneo
indicaria um lugar onde:
[...] percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também
aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e
de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a
história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira
nenhuma de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder.
É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse à sua
sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora. (AGAMBEN,
2009, p.72)
Para Anne Cauquelin, as formas contemporâneas de produção e sua relação
de proximidade com a tradição, vista, também, como processo de renovação de
construção poética, sinalizam os diferentes estados da arte, localizada no retorno
a ideia do artista como autor e a individualização dos critérios artísticos ao longo
do século XX e XXI, como uma produção “em busca de uma nova definição,
em busca também de uma posição reconhecida pelo conjunto dos atores de cena
artística”. (CAUQUELIN, 2005, p.151)
A produção visual atual solicita a participação de diferentes atores e suas
proposições em arte contemporânea enquanto formas de identidade cultural, de
gênero e étnica nas construções de discursos que sistematizam e corporificam
uma dada poética. De modo que o termo mais adequado para a inserção e a
circulação de artistas negros, nos espaços culturais e artísticos, seria autoria negra,
fragmentação da contemporaneidade localizadas na chave do ‘pastiche’ e da
‘esquizofrenia’(presente perpétuo). Em termos econômicos, a visualidade pós-moderna
insere-se numa lógica da história e cultura no estágio contemporâneo do capitalismo
tardio, em que se caracteriza pela expansão da intervenção do Estado, pelo
desenvolvimento tecnológico gerando concomitantemente superprodução e arrefecimento
da força de produção na indústria e seu redirecionamento na forma de serviços
(terceirização) encarado também como mercadoria.
3. A identidade pode ser traduzida pelas condições sociais e materiais como
distinção de um grupo de indivíduos em relação a outros, busca-se uma história e/ou
cultura comum como modo de inserção numa coletividade, compreendida na chave de
marcadores de diferença relativizada às questões de sexualidade, étnicas e/ou religiosas.
264
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Janaina Barros Silva Viana
que amplia e abarca diferentes percursos poéticos e operativos.
A revisão de uma arte afro-brasileira,4 distante de rótulos limitadores, para
a compreensão de uma poética autoral negra contemporânea, com discursos e
visualidades distintas, justifica-se, historicamente, pela mudança do cenário
artístico no pós-guerra da Europa para os Estados Unidos e as discussões sobre
multiculturalismo numa arte pós-colonial.5 Acresce-se, também, as formas
definidoras de um paradigma pautado no conceito de universalismo artístico,
como modo de delinear a existência de uma produção de artistas negros numa
contemporaneidade pós-colonial, além do debate sobre gênero no campo político
das artes visuais a partir da década de 70.
O Museu Afro Brasil é um lugar que se insere num campo de discussão
estética e política por aspectos não somente referentes à produção artística, mas
também à circulação nas instituições culturais e à reflexão curatorial de diferentes
vias poéticas articuladas com a história, a antropologia e a estética numa arte
brasileira. Destaca-se entre várias publicações nacionais sobre o negro como
produtor artístico e cultural, organizadas por Emanoel Araújo, a publicação do
catálogo A mão afro-brasileira, lançado em 1988, em comemoração ao
centenário da abolição, e reeditado em 2010, no qual havia, como uma das
4. Na leitura inicial sobre o conceito de arte afro-brasileira tem-se associada em sua
visualidade a uma produção religiosa, étnica e/ou aproximadas a valores estéticos de uma
arte tradicional africana no olhar de teóricos como Manuel Carneiro da Cunha, como uma
arte de caráter local. Podem-se indicar os seguintes destacamentos históricos no campo
artístico para o delineamento deste conceito: o Festival de Artes Negras de Dakar (Senegal)
em 1966 representando o Brasil artistas como Agnaldo Manoel dos Santos, Mestre Didi e
Rubem Valentim; A criação do Museu de Arte Negra por Abdias do Nascimento em 1968,
sem sede própria e, apenas única exposição, no Museu de Imagem e do Som (MIS), no Rio
de Janeiro; Ou ainda, posteriormente, a ampliação deste conceito para a sua ‘inserção’ numa
arte brasileira, nos estudos de Kabengele Munanga, Roberto Conduru, etc; E a criação do
Museu Afro Brasil pelo artista e curador Emanoel Araújo, em 2004.
5. Três exposições tornam-se interessantes para esse debate a respeito de narrativas
hegemônicas e multiculturais nas construções de marcadores de identidades na redefinição
do papel da arte na tradição ocidental: Primitivismo na arte do século XX, no Museum of
Modern Art (MOMA), em 1984. E, ocorre, posteriormente como questionamento a essa
exposição, Magiciens de la terre, no Centro Georges Pompidou de Paris, em 1989. E,
mais recentemente, a exposição Afro Modern: Journeys through the Black Atlantic, no
Tate Liverpool, em 2010.
Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes
| 265
proposições, o mapeamento de artistas negros contemporâneos. Incluía-se nesta
edição a artista paulistana Rosana Paulino (1967). Numa exposição comemorativa, renomeada como A nova mão afro-brasileira, realizada a partir de 20 de
novembro de 2013, houve o acréscimo de novos 15 autores negros de diferentes
regiões do país. E, traz somente um nome para o debate sobre gênero numa
produção autoral negra feminina, a artista mineira Sonia Gomes (1948).
Um breviário sobre gênero para constituição de uma história
visual contemporânea
Linda Nochlin escreveu um ensaio referencial para o debate contemporâneo
sobre arte e gênero no cenário das instituições artísticas no século XXI, intitulado
Por que não existem grandes mulheres artistas? Neste artigo, Nochlin questiona
como se dá a presença feminina na história da arte e qual o lugar da mulher nessa
construção do conceito de gênio e a dificuldade de haver um paralelo feminino
para o que seria um grande artista. Torna-se pertinente para a reflexão sobre
gênero as seguintes questões: como fazer uma revisão de outras autorias femininas
não concernentes apenas aos cânones europeus e norte-americanos? Como incluir
numa abordagem crítica, por exemplo, as produções de artistas latino-americanas
e africanas num cenário de arte internacional contemporânea?
A pesquisadora Vânia Carneiro de Carvalho (2008), na obra Gênero e
Artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo,
1870-1920, discute a desnaturalização e historicização dos papéis sexuais no
processo dicotômico presentes nas relações entre natureza versus cultura, trabalho
versus família, público versus privado, a partir dos padrões de organização do
mobiliário, a ornamentação dos objetos pessoais e domésticos, como também,
as formas de trabalho como invenção e reprodução de distintas naturezas sexuadas, introjetadas de maneira inconsciente dos comportamentos cotidianos.
Transposto este olhar sexuado para a produção artística após os 70, com o advento
do feminismo, tem-se a transgressão dos sentidos daquilo que é considerado feminino, tendo como referência visual o debate proposto pela artista Mirian Schapiro.
Posteriormente, após os anos 80, verifica-se a proposição de estratégias ou manobras conceituais como crítica as noções tradicionais de feminilidade e representação das representações da linguagem que sustenta e fomenta este tipo de
discurso na contemporaneidade. Faz-se uma apropriação crítica atualmente sobre
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Janaina Barros Silva Viana
os chamados ícones de feminilidade, presentes nos seguintes temas: sensualidade,
corpo, maternidade, etc.
A pertinência deste debate encontra-se na inserção de mulheres artistas no
cenário artístico pós anos 90 e nos modos como manipulam determinadas materialidades, procedimentos técnicos e faturas para uma dada formalização poética numa história da arte contemporânea. Destaca-se, no cenário nacional, a
exposição Manobras Radicais: artistas brasileiras (1886-2005), ocorrida no
Centro Cultural Banco do Brasil (SP), em 2006. Os curadores Paulo Herkenhoff,
crítico de arte, e Heloisa Buarque de Hollanda, crítica literária, propunham a análise multifacetada dos discursos de mulheres artistas e seus saberes estratégicos
de inserção e circulação no sistema institucional artístico dentro de uma série de
“lógicas sutis de uma microfísica do poder, em busca da presença e da radicalidade com que as mulheres enfrentaram situações de silêncio forçado, opressão
e exclusão.” (HOLLANDA, 2006, p. 2006)
As formas de apropriação nas narrativas visuais
contemporâneas: as poéticas de Rosana Paulino e Sonia Gomes
O papel político do artista em determinar o contexto de sua obra, sistematizála e formalizá-la reflete o pensamento poético proveniente do conceitualismo e
da teoria neomarxista, que solicitava tanto do artista quanto do fruidor a
responsabilidade a respeito do significado político de um objeto artístico. A
relação existente entre arte e política retoma o debate feminista nos anos 70 sobre
os diferentes meios de acessos nos espaços institucionais artísticos entre homens
e mulheres. Busca-se o reconhecimento da autoria feminina nestes circuitos,
traduzindo-se em identidade de gênero, como também, possíveis considerações
sobre sexualidade, classe social, origem racial e cultural.
A relação tensa entre arte, gênero e identidade numa territorialidade visual
no campo da política aparece após os anos 70 do século XX nas narrativas
políticas e estéticas de artistas negras, como a norte-americana Adrian Piper
(1948), a cubano-americana Coco Fusco (1960), a queniana Ingrid Mwangi
(1975) e as brasileiras Michelle Matiuzzi (1983), Renata Felinto (1978), Rosana
Paulino (1967), Sonia Gomes (1948).
O debate sobre raça na produção artística contemporânea aparece em dois
debates no primeiro semestre de 2014: Arquivos sobre o Não-Racialismo
promovido pela Associação Cultural Videobrasil em parceria com o Sesc São
Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes
| 267
Paulo e o Goethe Institut, a Universidade de Witwatersrand (África do Sul),
Universidade Johns Hopkins (EUA) e o Instituto de Pesquisa em Humanidades
da Universidade da Califórnia. Cita-se, ainda, a realização pela Galeria Mendes
Wood do debate sobre os desafios contemporâneos de um sistema cultural e
artístico heterogêneo intitulado Ajuste de cor: Conflito Social, a Política racial
e as Artes Visuais no Brasil de Hoje, com os artistas Coco Fusco, Sonia Gomes,
Paulo Nazareth, Daniel Lima e o pesquisador e crítico literário Jaime Ginzburg.
Neste cenário, localiza-se a produção visual da artista Rosana Paulino6 (São
Paulo, 1967), que discute em sua poética a desconstrução dos modelos instituídos,
como forma de articulação das noções de herança e referência, memória física e
psíquica, com os modos de individualização, e a manifestação de sua sexualidade
tendo como recorte a compreensão do feminino negro. Ampliando questões de
um universo particular para o global, o entendimento do corpo pela existência
do feminino na elaboração de um discurso autoral.
A instalação Assentamento (2013) é composta por dois fardos de mãos
feitas de cerâmica sobre uma estrutura de pallets de madeira cada um deles, em
posição oposta, acompanhados contiguamente por dois tablets de cada lado. Os
fardos fazem analogia ao conceito de trabalho durante o período de escravidão,
funcionando como mercadoria no qual todo o esforço humano negro era absorvido como lenha ardente. No centro fixada a parede, entre os fardos, tem-se a
imagem digital impressa de uma mulher,7 em dimensão real (1,80 cm). A artista
divide este corpo feminino em cinco partes e recompõe os pedaços de modo
desencontrado, unidos por uma costura marcada em linha preta. A mulher
encontra-se em três posições distintas: frontal, lateral e costas. O bordado incorpora os sentidos de ‘dar vida’ e de continuidade pela inserção de um coração
impresso pelo procedimento técnico da gravura (imagem frontal), um feto
realizado pela mesma técnica (imagem lateral) e desenhos de raízes bordadas
diretamente no tecido em negro e vermelho ocupando a base (imagem costas).
6. Rosana Paulino é bacharel em gravura (1995) pela Escola de Comunicações e
Artes (ECA/USP), especialista em gravura pelo London Print Studio (1998), e Doutora
em Poéticas Visuais pela ECA/USP.
7. Mulher negra fotografada durante a expedição Thayer dirigida pelo cientista suíço
Louis Agassiz, pautado nos seus registros pelas teorias raciais vigentes, durante o período
de 1865 e 1866.
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Janaina Barros Silva Viana
Vê-se um corpo que busca refazer-se após a violência e destituição de direitos
pela escravidão a religar-se com a sua origem cultural, religiosa e familiar.
O termo assentamento refere-se à ideia de lugar e de ritual compreendida
no sentido do duplo sobrenatural do orixá fixado na cabeça de um filho (a).
Desvela-se ainda a presença de dois tablets na extrema direita e esquerda, ao lado
externo dos fardos, em “looping”, apresentando o mar como travessia e traduzindo o conceito de assentamento, também, como a ação de um indivíduo instalarse num lugar, ao (re)construir uma história. Um protagonismo diante dos embates
entre a cultura hegemônica sobre a hegemonizada na reedificação de uma corporeidade ancestral, cultural e social.
Assentamento (2013). Museu de Arte
Detalhe
Contemporânea de Americana
Instalação em técnica mista. Impressão digital, desenho, linóleo, costura, bordado,
madeira, paper clay e vidro. Dimensão variável.
De Sonia Gomes8 (Caetanópolis/MG, 1948), a obra Mãos de Ouro (2008)
é um livro visual e tátil, feito de tecidos, linhas, etc. O título remete às publicações
de manuais de atividades de costura, bordado, tricô, crochê, etc., comuns nos
anos 70 do século passado, que cumpriam a função de ocupar o tempo ocioso
feminino, como também, de acordo com suas habilidades manuais, de organizar
a vida e dar sentido estético aos objetos domésticos. Figura-se a ideia da mulher
‘prendada’ e ótima dona de casa cuidando do marido, das tarefas da casa e da
educação dos filhos. As páginas do trabalho sugerem aqueles livros de amostras
8. Sonia Gomes reside e trabalha em Belo Horizonte, fez cursos livres em artes
visuais na Escola Guignard e na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) durante
o período de 1995-1997.
Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes
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de pontos que conservam os modos de fazer e demonstram certa habilidade
manual. Há a sobreposição de cores, níveis de transparência, texturas visuais nas
formas estampadas de caráter gráfico e pictórico. O ato de coleta de tecidos
distintos e transformados pela urdidura de fios em páginas que compõem o livro.
O discurso visual implica de modo sutilmente irônico na maneira em que
se dá a construção de gênero e nos modos operativos sinalizadores dessa condição. Têm-se os tensionamentos existentes no embaralhamento entre arte e vida
quando se perpassa pelas formas de culturalidades na arte contemporânea a partir
do olhar da artista para a tradição popular.
Mãos de Ouro (2008) – grafite, caneta, costura,
amarrações, tecidos e rendas variadas sobre papel.
48 x 37 cm
Os modos de operar a instrumentalidade técnica no jogo entre os atributos
materiais dos objetos artísticos, num universo proveniente das artes têxteis
(bordado/costura), aparecem num percurso investigativo e poético onde se insere
a manualidade na arte contemporânea. Define-se como uma estratégia de ação
estética para demarcar uma espacialidade numa arte internacional: “costurando,
bordando, ligando, colocando dobradiças entre a visualidade não erudita
brasileira e algumas das grandes questões da arte internacional das últimas
décadas.” (CHIARELLI, 2002, p.127)
270
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Janaina Barros Silva Viana
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www.ifch.unicamp.br/proa/ArtigosII/anasimioni.html, acesso em:11/07/2014.
http://www.rosanapaulino.com.br/wp-content/uploads/2013/11/PDFEducativo.pdf
http://www.mendeswooddm.com/artists/19
| 271
Dança contemporânea e o ciclo da arte
AILA REGINA DA SILVA*
ARTHUR HUNOLD LARA**
Resumo: A partir da obra coreográfica realizada em 2013, Corpo sobre tela, de
Marcos Abranches, este artigo analisa a relação entre a dança contemporânea e
a arte visual modernista de Francis Bacon, cuja vida e obra são bases para a
realização do espetáculo de dança. Com o objetivo de aprofundar a investigação
do artista plástico começada pelo coreógrafo-bailarino, o artigo apoia-se na arte
performática e nas questões da dança contemporânea para mostrar um ciclo
de criação artística, onde o dançarino representa a obra de Bacon
(re)significando-a pela dança, transpondo as imagens da tela na coreografia e,
pela dança, cria uma outra tela original.
Palavras-chave: Dança Contemporânea. Performance. Criação Artística. Corpo.
Contemporary dance and the cycle of art
Abstract: Starting from the choreographic work made in 2013, Corpo Sobre
Tela, by Marcos Abranches, this article analyses the relationship between
contemporary dance and the modern figurative painter Francis Bacon, whose
life and work are the basis for the dance show. Aiming to deepen the
investigation of the artist initiated by the dancer-choreographer, this article
presents a cycle of artistic creation based on performing art and on contemporary
dance issues, whereas the dancer represents Bacon’s work (re)framing by dance,
transposing the canvas to choreography and, through the dance, creating a new
painting.
Keywords: Contemporary Dance. Performance. Artistic Creation. Body.
** Bailarina e mestranda da Pós-Graduação em História e Estética da Arte, linha
de pesquisa em Produção e Circulação de Arte da Universidade de São Paulo.
** Professor da FAU-USP e do MAC-USP e orientador responsável da autora.
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Aila R. da Silva e Arthur H. Lara
Introdução
O filósofo Friedrich Nietzsche (ROCKEN, 1844; WEIMAR, 1900) e o compositor Richard Wagner (LEIPZIG, 1813; VENEZA, 1883) já rascunhavam ideias
de uma dança comprometida com o corpo e o movimento, algo que libertasse o
ser humano das amarras da técnica ocidental civilizada que eram esteticamente
rígidas. No século XX, na Europa, alguns grupos seguiram esse raciocínio, como
o de Sergei Diaghilev e o de Jean Börlin. O primeiro reuniu os principais nomes
do balé do século XX, Anna Pavlova, Vaslav Nijinsky, Michel Fokine e George
Balanchine, inovando na linguagem do balé clássico. Diaghilev acreditava que
a dança deveria ser o encontro de todas as artes e, além da coreografia, o cenário
e a música vinham de encontro ao seu pensamento de vanguarda, para tanto usou
Picasso nos figurinos e o jovem Stravinsky nas composições.1 O grupo de Bördan,
provindo da Ópera Real de Estocolmo, usufruía de extravagante criatividade,
pensamentos e mensagens condizentes com a sua época, entretanto, também como
Diaghilev, mantinha a técnica clássica como base principal para o bailado.
Ambas companhias tiveram resultados negativos da sociedade, onde o
público dos espetáculos vaiava e a crítica era desfavorável.
Quando o teórico de dança Rudolf Laban2 (BRATISLAVA, 1879; WEYBRIDGE,
1957) propõe seus novos meios e estudos, que integram artes visuais, música,
escrita, espaço cênico e corpo, a ruptura com a técnica clássica dá lugar a um
novo modo de enxergar o movimento e, portanto, um novo caminho se abre, livre
do antigo sistema técnico e comprometido em totalidade com a busca pela
consciência corporal conectada com o sentimento.
1. Referências aos balés Parade, em 1917 com design de Pablo Picasso e música
de Erik Satie; e Pulcinella, em 1920, com design de Pablo Picasso e música de Igor
Stravinsky.
2. Rudolf Von Laban criou vários centros de pesquisa buscando o retorno aos
movimentos naturais na sua espontaneidade e riqueza, e na plena vivência consciente de
cada um deles, a acarretar um desenvolvimento amplo e profundo em quem o pratica.
Bailarino, renovador da dança e de seu enfoque teatral. Sua pesquisa e metodologia sobre
o uso do movimento humano, pela profundidade e extensão, são hoje base para uma
melhor compreensão do homem por meio do movimento, modernamente utilizada nos
mais diversos ramos da arte e da ciência; dança, teatro, educação, trabalho, psicologia,
antropologia, etc.
Dança contemporânea e o ciclo da arte
| 273
É nesse contexto histórico que o cenário da dança contemporânea começa
a se formar. Durante muitos séculos, a dança manteve-se como entretenimento
e estava subordinada à música (SOARES, 2002, p.10), hoje a dança contemporânea
pode construir-se sobre a mensagem antes da escolha da técnica ou estética final,
como afirma a bailarina americana Isadora Duncan:
Para mim, a dança não é só a arte que exprime a alma humana através do
movimento, mas o fundamento de uma concepção completa de vida, mais livre,
harmoniosa, mais natural. Resumirei isso num aforismo: Dançar é viver.
(DUNCAN, 1927, p.33)
Essa tendência na dança é vista no oriente com o surgimento do Butoh; na
América do Norte com a dança moderna; com a visitação da dança contemporânea sobre as danças étnicas asiáticas e africanas e com a valorização das danças
regionais no Brasil.
A realidade da dança contemporânea caminha junto da arte performática e
do teatro, no momento em que todos usam o corpo como base para expressar
sua ideia maior. Renato Cohen define o processo performático:
À medida que o ator entra no ‘espaço-tempo-cênico’ ele passa a ‘significar’ (virar
um signo) e com isso ‘representar’ (é o próprio conceito de signo, algo que
represente outra coisa) alguma coisa, podendo ser isto algo concreto – o qual temse nomeado ‘personagem’ – ou mesmo abstrato. (COHEN, 2002, p. 95)
É nessa reinvenção que a essência da relação arte-corpo flutua, na
resignificação da transmutação de dança em teatro (a exemplo de Pina Baush),
do teatro em happening (experiências do Teatro Oficina) e do produto da dança
em arte plástica (performances de Trisha Brown fazendo desenhos através da
dança).
Este artigo propõe-se a analisar, com base na obra de dança contemporânea,
a aproximação da dança com a arte plástica. Visa mostrar um ciclo criativo, onde
a dança torna-se espelho do trabalho de um artista plástico, representada pelo
processo criativo de Marcos Abranches na vida e obra de Francis Bacon e, depois,
onde o mesmo bailarino produz uma outra obra plástica, a partir da célula
coreográfica.
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Aila R. da Silva e Arthur H. Lara
Marcos Abranches
Marcos Abranches é bailarino e coreógrafo nascido em São Paulo. Fundador
da Cia Vidança, passou pela tradicional Companhia de Dança FAR-15 e percorre
festivais nacionais e internacionais com experiências na dança que buscam o
equilíbrio do ser humano, há 10 anos.
Participou de algumas montagens com a FAR-15 e seu primeiro trabalho,
enquanto coreógrafo, foi D...equilibrium: solo apresentado em diversos festivais
que tem por livre inspiração o livro Cantos Malditos, de Austregésilo Carrano
Bueno, que deu origem ao premiado filme Bicho de Sete Cabeças, dirigido por
Laíz Bodansky. A história trata de uma personagem que, em dado momento da
sua vida, se descontrola e comete diversas ações desarmoniosas, fugindo do
padrão social imposto e sofrendo suas consequências.
Marcos Abranches tem paralisia cerebral, deficiência física que não afeta
seu raciocínio lógico em âmbito algum, embora tenha efeitos sobre sua fala e
movimentos.
Marcos Abranches, cena de Corpo
sobre Tela, 2013. Divulgação
Francis Bacon
Francis Bacon (DUBLIN, 1909;
MADRI, 1992) foi um pintor moderno
e marginal. Bacon, desde a infância,
sofreu com um pai autoritário e as
mudanças de cidades. Embora seja um dos últimos pintores figurativos do seu
tempo, ele sempre andou na contramão: foi alcoólatra, homossexual, viciado em
jogos e nunca frequentou à academia ou bajulou críticos de arte. Dono de um
traço intuitivo e feroz, olhar para uma obra sua é uma experiência que perambula
entre o horror da sua realidade e a beleza plástica do momento.
Aos 16 anos, foi exilado de casa e passou a viver por diversas cidades da
Europa, sobrevivendo de trabalhos domésticos e algum dinheiro que sua mãe
conseguia enviar. Em 1926, chega a Berlin onde descobre que pode viver de
favores a senhores da sociedade. Um ano depois, chega a Paris, onde entra em
Dança contemporânea e o ciclo da arte
| 275
contato com Picasso, Braque e os modernistas. Já em Londres, cidade de seus
pais, aprofunda suas próprias técnicas (pois é autodidata) e, finalmente, em 1954,
é convidado a representar a Grã-Bretanha na Bienal de Veneza e, a partir de então,
sua carreira engrena.
Bacon, Figure with Meat, 1954
Bacon, (duas partes de) Three Studies for a
Crucifixion, 1962
Corpo sobre tela
Espetáculo de Marcos Abranches, realizado pela primeira vez em 2013, com
base na vida e obra de Francis Bacon, sai da pesquisa corporal do bailarino e
materializa-se sob a forma plástica de telas viscerais e únicas.
Embora ambos artistas tenham contexto social diferentes, eles partilham a
mesma margem da sociedade, a ala destinada aos que não se encaixam nos
espaços projetados à massa. Em entrevista sobre sua peça, Abranches diz:
Sou livre para o silêncio das formas, das cores na riqueza de pintar uma obra.
As cores são vida. Podemos ser mais coloridos na forma de pensar. O mundo
ainda está muito escuro pelo lado negativo do pensamento de cada um, todos
nós podemos colorir a maneira de pensar e ser mais felizes, pois somos a própria
arte. Nossa sociedade, por falta de conhecimento, trata o deficiente como um
coitado. Se eu fosse me basear nesse tipo de pensamento, não colocaria meus
pés para fora de casa. No meu espaço, não há sofrimento. (ABRANCHES, 2010)3
3. Jornal Folha de S. Paulo, caderno ‘Ilustrada’ em 17 de outubro de 2010. http://
www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1357480-coreografo-com-paralisia-cerebrale-destaque-em-mostra.shtml
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Aila R. da Silva e Arthur H. Lara
Abranches parte da zona improdutiva imposta aos deficientes físicos, numa
explosão criativa que, pela intensidade, busca o equilíbrio e acha sua própria
estética. Já Bacon catalisa a violência imposta pela família e pela sociedade por
sua opção sexual e comportamento fora de padrão e pinta a tortura de sua alma
encontrando uma estética única e inextinguível no percurso.
Individualidade
Francis Bacon sempre foi tímido e discreto, desde criança muito afeiçoado
as roupas da moda, gostava de estar sempre bem vestido. Na adolescência,
demonstrava traços mais femininos que os rapazes da época, o que deixava seu
pai constrangido e, portanto, usava da violência física contra o filho para corrigir
os modos que considerava inadequados. O artista, desde seus primeiros contatos
com a pintura, usa suas referências mais oprimidas para trazer em suas telas o
filtro violento com o qual ele está habituado, suas pinceladas são veementes, suas
cores são vibrantes, como se a cada naco de tinta houvesse uma entranha do artista
exposta.
Os temas escassos de Bacon não exprimem pouco repertório. Ao contrário,
as telas são consistentes e vão cada vez mais a fundo na intempérie humana
mostrando, figurativamente, sob qual prisma Bacon lê a sociedade.
Marcos Abranches trilhou um caminho incomum se comparado a outros
coreógrafos de seu tempo. De oficinas de Contato e Improvisação a bailarino
convidado da FAR-15, em pouco tempo, o trabalho de Marcos Abranches foi
reconhecido no meio artístico pela intensidade e originalidade apresentadas.
De sensibilidade marcante, o corpo de Marcos move-se como se os membros
fossem pincéis e seu corpo inteiro uma tela em transformação constante. Sob
outro aspecto, o bailarino catalisa o íntimo do homem, a corda bamba entre equilíbrio e desequilíbrio, graça e brutalidade numa coreografia-tela-performance que
flutua sobre o óbvio acadêmico.
Ambos artistas têm seus peculiares históricos de vida como marca onipresente, resultando na originalidade das obras. Abranches, ao colocar em seu cenário as telas produzidas pela dança, literalmente mostra que cada obra é única e,
se observarmos os dois, lado a lado, enxergamos a unidade e semelhança entre
eles.
Dança contemporânea e o ciclo da arte
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Abranches, ensaio de Corpo sobre tela , 2013. Fotografia Eduardo Knapp/
Folhapress
Bacon, Study after Velazquez’s Portrait of Pope Innocent X, 1953
Música, voz e LIBRAS
No espetáculo há ambiência sonora, vozes e sons que fazem o espectador
imergir na peça e sugerem sentimentos e imagens.
Tais sons são interpretados em LIBRAS,4 por Amanda Oliveira, como forma
de inclusão social. A participação da intérprete é analisada aqui em dois momentos. O primeiro quando a força da gestualidade não apenas é usada como forma
de expressão linguística, mas tem representatividade em cena pelo próprio
movimento executado. Além do papel inclusivo que a intérprete executa, a
intensidade da gestualidade apresentada na peça coloca Oliveira como parte
integrante da cena, vivendo os momentos junto ao bailarino e transmitindo ao
público com expressividade teatral.
Em segundo momento, o bailarino e a intérprete interagem em cena, extrapolando as barreiras pré-estabelecidas. O bailarino pinta a moça com tinta, trazendo-a definitivamente para o palco e coloca-a em posição de agente performática.
O som – ou sua falta – tem papel fundamental no espetáculo, reinterpretálo através das LIBRAS não só torna o ambiente da peça mais acessível a todos,
4. A Linguagem Brasileiras de Sinais (LIBRAS) é reconhecida e aceita como
segunda língua oficial brasileira. A língua de sinais se difere das línguas orais-auditivas,
uma vez que elas se realizam pelo canal visual e da utilização do espaço, por expressões
faciais e até movimentos gestuais perceptíveis pela visão. Note-se aqui que a língua de
sinais não faz apenas uso de gestos.
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Aila R. da Silva e Arthur H. Lara
como permite uma interpretação pessoal para quem não lê LIBRAS. Paul
Zumthor ao discorrer sobre a compreensão da voz e da leitura performática diz:
Compreender-se, não será surpreender-se, na ação das próprias vísceras, dos
ritmos sanguíneos, com o que em nós o contato poético coloca em balanço?
Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. (ZUMTHOR, 2007, p.
54. Grifo do autor)
Portanto os caminhos de linguagem utilizados para transmitir a mensagem
final, não são somente variados, mas permitem cruzar-se para formar um novo
signo, para remeter o olhar a um novo prisma e permitir que os diferentes
receptores possam ter acesso à compreensão.
Conclusão
As técnicas de arte vêm fundindo-se e as conexões dos movimentos artísticos
aumentam e aliam-se cada vez mais. Essa mistura irrefreável entre objeto e signo,
cinestesia e sinestesia,5 (re)construir-se, a constante troca de movimentos e evolução dos mesmos, são reflexões a serem pensadas a cada obra nova. Nesse artigo
especificamente, à dança hoje e, por meio da experiência e interação entre coreógrafo, bailarino e envolvidos, a forma está em constante mutação.
Merleau-Ponty em seu livro O visível e o invisível traz-nos a concepção de
percepção compreendida como ação do corpo:
Antes da ciência do corpo – que implica a relação com outrem – a experiência
de minha carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a percepção
não nasce em qualquer outro lugar, mas emerge no recesso de um corpo.
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 21)
5. Em fisiologia, cinestesia é a consciência através da qual percebemos a
movimentação especial de nosso corpo, nossos movimentos musculares. Em psicologia,
cinestesia é quando um perfume nos lembra determinada cor ou um som nos traz uma
imagem qualquer, ou seja, quando um determinado estímulo nos remete à uma
determinada memória ou sentimento.
Dança contemporânea e o ciclo da arte
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Então, tal qual o corpo está em constante transformação, nossa percepção
de nós mesmos e do que é externo também está. Se voltarmos a essas mesmas
obras daqui algum tempo, as diferenças poderão ser aprofundadas, distinguidas
e percebidas. Poderíamos seguir adiante, dentro da obra de cada um e certamente
haveria mais a acrescentar.
Ver ambos os artistas analisados aqui é como assistir a uma cena de tiro à
queima roupa: indelével da memória. Entretanto, nesta mesma cena, Francis
Bacon trata da dor, sangue e o desespero da morte; já Marcos Abranches prendese no momento sublime do último suspiro, do marejar de lágrimas, da leveza de
perder o peso e entregar-se à própria natureza.
A manipulação de técnicas utilizadas por Abranches não só abre espaço às
diferentes leituras pela (re)criação de janelas dentro da obra coreográfica, mas,
além de tratar da inclusão social, leva os receptores a novos estados da
consciência.
Referências bibliográficas
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. Ed. Perspectiva, 2002.
DUNCAN, Isadora. Isadora – fragmentos autobiográficos. Porto Alegre: L&PM,
2001.
FICACCI, Luigi Bacon. Taschen, 2004.
GATTINONI, Rosita. Danse et art contemporain. Paris: Scala, 2011.
HUYGHË, René (editor geral). Larousse Encyclopedia of Modern Art, Reedição,
Paris: Librairie Larousse, 1967.
LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. Ed. Summus, 1978.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
NOBREGA, Terezinha P., Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty.
Revista de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008.
PINHEIRO, Catarina e ROSA, Alda. Estética da subversão e violência nas obras
de Francis Bacon e Frida Khalo. Revista de Psiquiatria do Hospital Dr.
Fernando Fonseca, 2009.
SOARES, Marília. Ballet ou dança moderna? Juiz de Fora: Clio Edições Eletrônicas,
2002.
280
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Aila R. da Silva e Arthur H. Lara
VALERY, Paul. Degas, dança, desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Sites
http://marcosabranches-vidanca.blogspot.com.br/ – Acessado durante o mês de maio
de 2013;
http://www.francis-bacon.com/ – Acessado durante o mês de maio de 2013.
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Moda, autoria, esteticidade e consumo:
breves considerações
HELOISA DE SÁ NOBRIGA*
Resumo: A relação de autoria é hoje repensada tanto na moda quanto na arte,
visto que em ambas o olhar do observador/usuário é capaz de atuar como
cocriador, modificando a percepção estética proposta pelo criador. Neste artigo
que faz parte da dissertação de mestrado defendida em agosto de 2011,
denominada “Moda vestida de Arte: Um pouco além do efêmero”, abordaremos
algumas questões iniciais da autoria em moda com foco nas motivações
relacionadas à temporalidade histórica e hierárquicas entre criador, usuário e
formador de opinião.
Palavras chave: Moda. Autoria. Consumo-Autoral.
Fashion, authorship, aesthetics and consumption: some brief
remarks
Abstract: The relationship of authorship is rethought both fashionable as in art,
seen that in both the look of the observer or user is able to act as co-creator, changing
the aesthetic perception proposed by the creator. This paper is part of the master
dissertation that was defended in August 2011, called “Art Dressed of Fashion: Just
beyond the ephemeral”, and intent discuss some initial issues of authorship in fashion
and their historical´s temporality motivations addressing hierarchical between
creator, user and opinion leader.
Keywords: Fashion. Authorship. Authorial Consumption.
* Doutoranda em Estética e História da Arte (PGEHA-USP). Mestre em Estética
e História da Arte (PGEHA-USP). Docente na pós-graduação Estética e Gestão da ModaECA-USP e nos cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo e Tecnologia em Design
de Moda da UNIAN de São Paulo
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Heloisa de Sá Nobriga
Introdução
A Moda e seu sistema podem ser considerados como um conjunto de
elementos capazes de refletir esteticamente um determinado tempo num
determinado espaço. O vestuário encaixa-se nesta definição, assim como a
música, o comportamento gestual, a linguagem (verbal ou não), a decoração de
interiores, sendo estes objetos pertinentes, ou não, à esfera mais ampla da Moda.
Hoje a moda é um complexo reconhecido por seu braço de capitalismo e
consumo. Entretanto, os aspectos da criação englobam fatores que vão além de
seu ciclo de consumo e desgaste.
Historicamente, a roupa surge da necessidade, acrescida ao misticismo e à
significação simbólica, e a Moda da alternância entre o pertencimento e a
distinção. Para conseguir entender os conceitos criativos que atuam nessa
diferenciação entre o objeto e seu consumo (a roupa e a Moda), pensemos quais
são os aspectos utilitários que na atualidade podem ser considerados como
necessidades básicas ou naturais de uma roupa (incluindo seus acessórios e
adornos, tais como calçados, chapéus, luvas, etc.): proteger contra o frio, ou
outros obstáculos naturais, e nos prestar resguardo moral através da sua relação
social com o pudor. Por conseguinte, os demais aspectos e objetivos de uso das
vestes estariam localizados em instâncias culturais e/ou psicológicas mais
complexas (FLÜGEL, 1966).
Entretanto, hoje, quem pode afirmar que elege suas vestes buscando apenas
os aspectos mais primordiais da roupa? Se assim fosse, para proteção contra o
frio bastaria qualquer casaco. Não importaria cor, nem comprimento, muito
menos a forma, o modelo ou a modelagem deste. Seria suficiente que tivesse
proporção maior do que o corpo que se deseja cobrir e que fosse confeccionado
em matéria-prima que proporcionasse boa adequação térmica. Pronto, o problema
estaria solucionado.
Mas denota-se que vestir-se não é apenas buscar proteção contra o frio e/
ou proporcionar resguardo ao corpo pudico. Vestir-se é buscar individualidade
e pertencimento, é cobrir a vaidade, adequando a mensagem de um ou mais
corpos com elementos do prazer estético visual que pouco diferem das necessidades estéticas do adorno no homem primitivo.
Dessa forma também esclarecemos o quanto é difícil separar a moda de sua
estratificação social, por mais que hoje tal critério perceba-se gradativamente
Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações
| 283
menos relevante do que num passado próximo, e que este não seja o único fator
que estimula o seu ciclo na atualidade (BOURDIEU, 2008).1
Neste caminhar, vamos tentar estabelecer algumas considerações acerca das
relações entre a criação, o consumo e a formação de opinião na difusão de aparências, nos balizando pela funcionalidade e/ou esteticidade envolvidas no processo de individuação e pertencimento, assim como na autoria do produto de
moda.
Desenvolvimento
Desde que o homem primitivo passa a estabelecer códigos de diferenciação
e individualização nas suas vestes, é possível deduzir um distanciamento objetivo
à mera funcionalidade; com um osso-troféu, status e poder, por exemplo, podem
ser simbolicamente acrescidos ao seu vestir e, de acordo com as colocações de
Osborne (1970), Wilson (1985), McCloud (2004) e Gombrich (2008), levam ao
estreitamento com questões pertinentes à esfera da Arte, já que possuem um
enlevo de transcendência. Se voltarmos às ideias desses autores, a partir do momento em que o vestir deixa de ser compreendido como objeto unicamente
utilitário, ele passa a pertencer a uma esfera relativa ao universo estético, que
poderia ser relacionado à sua artisticidade. A moda pode, neste sentido, ser considerada uma expressão artística dentro de uma linguagem, sendo indissociável
de seu tempo tal qual a Arte.
Corroborando, Gombrich (2008, p. 15) diz que “Nada existe realmente a
que se possa dar o nome Arte. Existem apenas artistas”, e Poiret2 declara não
ser meramente um costureiro, mas sim um artista (SEELING, 1999, p. 24). Quais
as relações que podemos estabelecer entre as duas afirmações?
A princípio, e a partir dos conceitos de Duchamp, existe a necessidade de
um julgamento interior daquele que faz (agente-criador) estabelecendo se essa
1. Para Lipovetsky (1998), a ascensão social não é importante na Moda Consumada
(contemporaneidade), entretanto, Baudrillard (2005), Simmel (2008) e Bourdieu (2008)
discordam deste argumento, confirmando, que a classificação social (pertencimento)
mescla-se com o desejo de individuação na configuração da Moda.
2. Paul Poiret: estilista francês conhecido como o “Imperador da Moda”, a quem é
atribuída a retirada do espartilho, evento importantíssimo para a reviravolta da Moda que
culminará na evolução da “Moda de Cem Anos” para a “Moda Aberta”.
284
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Heloisa de Sá Nobriga
obra individual deve, ou não, receber classificação como Arte. A segunda é que,
se um artesão3 exerce sua função com técnica e habilidade, embora desconheça
os mecanismos diferenciais institucionalizados de consagração, ele não conseguirá posicionar seu trabalho na classificação de Arte (com inicial maiúscula), a
menos que haja intervenção de terceiros (crítica e público).
Tal mecanismo poderia incorrer nos “equívocos do elitismo” (SANTAELLA,
1990), já que o “fazedor” (agente-criador) depende unicamente, neste caso, do
julgo externo do sistema constituído para que haja o transpasse hierárquico
(BORRIAUD, 2009). O que culmina na separação dos agentes da moda, proposta
por Bergamo (1998), em consumidores, criadores e formadores de opinião, que,
[...] ao mesmo tempo em que dá forma ao campo da moda, instaura uma
dinâmica própria ao mercado: a segurança de seu funcionamento e a crescente
de cada segmento - criador ou formador de opinião - residem na impossibilidade
de resolução desse conflito (BERGAMO, 1998).
Entretanto, se pensarmos no período anterior ao início da alta-costura (A
Moda de Cem Anos4), a relação é justamente inversa, pois até o seu surgimento
e de seus criadores, cada pessoa era agente direto nas escolhas de seus trajes e
planejava individualmente a estética de seu vestir, não recorrendo às ideias
déspotas de renovações impostas por outrem – o vestir respondia individualmente
a um conjunto de aculturações e influências externas, sendo um composto de
desejos individuais autorais e representações coletivas de pertencimento (Moda
Aristocrática5).
Lembremos também que a vestimenta era, antes do processo industrial,
produto de fabrico bastante oneroso. Adquirir um casaco ou um vestido de um
bom alfaiate/artesão era adquirir um bem duradouro, às vezes, passado de uma
geração a outra, podendo ser utilizado como moeda de troca financeira em penhores, ou como item testamental (STALYBRASS, 2004). Até a Revolução Industrial,
3. Entendendo o artesão como um manipulador de elementos da artisticidade.
4. Termo cunhado por Lipovetsky em “O Império do Efêmero” (1989) para a moda
surgida com os primeiros estilistas que passam a ditar formas e tendências para a Moda.
5. Denominação cunhada por Lipovetsky para o período anterior ao domínio das
escolhas estéticas da Moda pelos estilistas e criadores.
Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações
| 285
não havia maquinário que permitisse a produção seriada desse tipo de objeto e,
assim sendo, sua produção artesanal dificultava tanto a evolução de modismos
quanto a aquisição de peças diferenciadas pela maior parcela da população.
Observar a moda do passado – não só do séc. XVI, mas também a dos períodos
precedentes – numa perspectiva atual não pode deixar de desconcertar e, de
certa maneira, abalar muitas das convicções que ingenuamente alimentamos
acerca da indumentária daqueles tempos. Mas é precisamente esta «perturbação» que é frutífera, pois ensina-nos, melhor do que qualquer tratado histórico
ou qualquer pesquisa antropológica, até que ponto foram alteradas as relações
entre moda e sociedade, entre moda e ritmos temporais ao longo dos séculos.
A relação que nos parece ter sido mais alterada é, precisamente, a temporal –
habituados como estamos a ver mudar de ano para ano, para não dizer todos
os meses, as nossas modas, ficamos fascinados perante as imagens que nos mostram a persistência no tempo do vestuário de então (DORFLES, 1988, p. 112).
Assim, as vestes podem ser consideradas como testemunhos da forma de
pensar de uma época, e a classificação social será fortemente marcada tanto pela
mimese quanto pela periodicidade com que a substituição por novos itens é
determinada pela elite. Na “Moda Aristocrática”, atestando pessoalidade e
identidade ao novo bem, a pretendente ao vestido transmitia a ideia geral ao
profissional encarregado da confecção, que por sua vez o executaria sob as
medidas da cliente, tendo como resultante um produto único e exclusivo,
idealizado por seu usuário e produzido por um artesão. Essa mesma peça depois
de pronta teria divulgação, exibição e apreciação restritas ao círculo social de
pertencimento de nossa protagonista e, de acordo com o seu nível de influência
(status e poder), os atributos do novo vestido poderiam, ou não, ser copiados,
ou adaptados, o que alimentaria o ciclo de mimese da moda numa velocidade
muito mais controlada daquela que hoje conhecemos. Tal realidade permanece
até o final do século XIX com a chegada da “Moda de Cem Anos”.
Worth,6 estilista anterior a Poiret, é considerado o primeiro a criar e propor
novos modelos, colocando-o na posição elitizada de um formador de opinião.
6. Frederick Charles Worth, estilista inglês considerado o primeiro criador de moda.
Responsável pela caracterização da alta-costura tal como a conhecemos hoje e pelo início
da “Moda de Cem Anos”.
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Heloisa de Sá Nobriga
Ele adquire semelhança a um pintor que, ao elaborar um quadro sem ter tido
qualquer encomenda prévia ou saber se seu trabalho será aceito, antecipa-se,
mostrando-se como um propositor de ideias. Agindo assim está, de certa forma,
desvinculado do circuito mercadológico dos objetos de consumo comuns ou
funcionais do qual o vestuário cotidiano massificado é indissociável. Assim se
paraleliza aos objetos de Arte onde o valor simbólico não se condiciona ao seu
valor de produção e toda sua magia se debruça no fato de não ter outra função
que a fruição singular.
Se analisarmos os vestidos dos primórdios da alta-costura, levando-se em
conta apenas os quesitos criatividade e requinte formal talvez pudéssemos considerá-los “obras de arte”, entretanto, é curioso refletir sobre essas peças, já que,
além de admitirem considerações referentes ao “belo”, concomitantemente asseguravam status a quem pudesse adquirir um vestido de noite “assinado”, assegurando pela individualidade e exclusividade do produto a distinção advinda de
seu posicionamento social. Lembremos que dentro da Arte institucionalizada a
assinatura do artista tem o poder de autenticar o objeto, garantindo-lhe posicionamento hierárquico. O esmero estético, aliado à postura crítica de seu próprio
tempo, afasta-os da moda vigente e os aproxima da artisticidade, porém, o fato
de esses criadores serem também empresários contribui para transformar significativamente o modo de veiculação e circulação de sua categoria de produtos,
o que dificulta sua consolidação como objeto artístico.
Independentemente dos vestidos de alta-costura serem considerados belos
ou não, a transferência de um fazer artesanal anônimo para a batuta de um
pensador/ditador de formas (a partir de Worth) deu ao vestir uma concepção
elitista apoiada em inovações estéticas e, desse modo, mais tangente à Arte. Mas,
justamente por não se tratar de uma pesquisa estética autônoma, independente
de um mercado de consumo, pode-se entender que este equívoco – de denominar
automaticamente o fazer da alta-costura como Arte – traduz-se pelas dinâmicas
de poder e classificação social como o ponto crucial da moda contestado por
Lipovetsky (1989) e descortinado por Bourdieu (2007), Baudrillard (2008) e
Simmel (2008), posto que, se não primordial, ao menos inseparável dos mecanismos da moda.
A Arte é até meados do século XVIII algo feito pela elite e para a elite e,
neste contexto, a proposta dos novos estilistas – mesmo se tratando de vestuário
– enquadra-se perfeitamente. A inovação das maisons consiste principalmente
em transferir a arte do fazer (roupa) para a arte daquele que faz (moda), de modo
Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações
| 287
que não é a raridade do produto, mas a do produtor que trará a aura de consagração ao produto (BOURDIEU, 2007, p. 146 a 152).
Não por acaso, Poiret surge em um momento no qual o prêt-à-porter começa
a tomar vulto graças à popularização do maquinário e do sistema industrial. O
que o diferirá na emergente industrialização será o foco em um público seleto –
a elite econômica e cultural – e uma prática condizente com os desejos destes
com a feitura oportuna de obras únicas, sem recorrer a cópias ou réplicas, garantindo-lhes posição social pela exclusividade.
Devemos ressaltar o quanto a Moda e seu sistema se encaixam no formato
de produção capitalista, alicerçada pela larga escala produtiva, na padronização
e na constituição cíclica, que impulsiona e é impulsionada pela máquina do consumo. Essa proximidade cotidiana advinda de seu apelo pessoal dá ao vestir uma
familiaridade estética tangível ao homem médio e seu vínculo com o design só
faz estreitar essa condição. O desejo do novo, a vontade de individualização e
de, ao mesmo tempo, fazer parte de determinado grupo fazem a sociedade de
consumo implicar a renovação constante de seus produtos e, consequentemente,
também dos impulsos produtivos. Os designers fazem o intermédio para que isso
aconteça, já que a criatividade e a estética aparecem como pontos centrais na
inserção das novidades constantes que propulsionam a ação da compra,
transformando o que era necessidade em desejo, amparado por iscas de superfície.
Este processo faz com que o sujeito mecanizado pela Revolução Industrial
acredite que ser criativo é cada vez mais difícil, principalmente em razão da
velocidade com a qual a inovação é desejada e imposta e, diante desse cenário,
pessoas dotadas de tal potencial são transformadas em verdadeiras divindades
(MASI, 2000).
O estratagema ditatorial proposto por Worth não foge a esta lógica, que se
baseia na apropriação de elementos já efetivos no sistema da moda (individualização e pertencimento), em busca de reconhecimento e valorização social,
com o auxílio da utilização de elementos de artisticidade e esteticidade.
Mesmo com a estetização da vida cotidiana e com a apreensão do design
pelo campo das artes, o fechado circuito de críticos e iniciados acadêmicos nas
artes visuais faz com que, em muitos casos, seus princípios estéticos sejam
absorvidos apenas por conhecedores, distanciando leigos e admiradores
ocasionais de sua livre apreciação, garantindo, porém, que as estratificações
sociais e culturais permaneçam inalteradas.
288
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Heloisa de Sá Nobriga
Na verdade, se alguns gêneros são considerados “puros”, é porque foram objeto
de demoradas e duradouras práticas de “purificação”. Ou seja, de rupturas entre,
de um lado, a prática e a contemplação estética e, de outro lado, a fabricação e
o consumo de utilidades. Ora, essas rupturas são eminentemente sociais, pois
resultaram de incessantes lutas que geraram aproximações e distanciamentos,
e cujo efeito final veio a ser a formação de “circuitos artísticos” sob a forma
de pequenas igrejas relativamente isoladas do conjunto da sociedade e mesmo
do conjunto das classes abastadas e cultivadas.
É o mesmo que dizer que tais rupturas ou partições produziram a arte pura, produzindo-a como arte “exclusiva”, ou seja, como arte que “exclui” socialmente
os não iniciados, da mesma forma como em religião se distinguem o sagrado e
o profano. (DURAND, 1988, p. 124, grifo nosso)
Com o surgimento do conceito de apropriação da vida pela arte, há um
discurso e um movimento a favor de sua democratização, concomitante à
estetização da vida cotidiana. Porém, o que observamos é que o público leigo
não se aproxima de imediato a propostas vanguardistas, conceituais ou
experimentais, justamente por não compreender as motivações, os mecanismos,
os objetivos e as correlações de espaço-tempo que se vinculam à experiência
cotidiana na obra de arte contemporânea.
Considerações finais
Aceitar certas categorias de produtos de moda como objeto de arte pode
ser vista como a autenticação da obra de arte acessível a qualquer pessoa,
autorizados pela estetização da vida cotidiana, que tende a pasteurizar os
conteúdos em favor das formas.
Contraditoriamente, sobretudo a partir da consolidação da “Moda Aberta”,7
a junção da Moda com a Arte corre no revés da democratização do sistema da
7. Termo cunhado por Lipovetsky em “O Império do Efêmero” (1989) para a moda
surgida após os anos 1960, em que todo o esquema de influências e tendências da moda
se modifica, induzido por uma série de novas características sociais, onde se quebra a
ditadura dos estilistas e surge uma moda mais livre, em que o círculo de referências e
influências se multiplica e torna-se mais democrático. Ver Capítulo II.
Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações
| 289
Moda, pois com este artifício os conteúdos tornam-se novamente inacessíveis,
mantendo a elite como detentora das escolhas, percepções e entendimentos dos
elementos formais que são garantias de distinção, com a única diferença de que
não mais pelo capital econômico, mas pelo capital cultural (BOURDIEU, 2008).
Fatos estes podem ser considerados justificativos da aparição do consumidor
autor (MORACE, 2009) e sua importância contemporânea, apontando novos
caminhos para o estudo da autoria, circulação e veiculação do produto de moda.
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Reflexões sobre a crítica de arte:
as experiências de Romero Brest e Antonio Bento
ARACELI BARROS DA SILVA JELLMAYER BEDTCHE*
LISBETH REBOLLO GONÇALVES**
Resumo: Este artigo apresenta análise das contribuições do crítico de arte
argentino, Jorge Romero Brest, para o panorama artístico brasileiro,
estabelecendo aproximações políticas e culturais entre Brasil e Argentina.
Enfatiza-se também a importância da Revista argentina Ver y Estimar como
veículo de difusão das ideias vanguardistas. Abordam-se, ainda, a atuação de
uma crítica de arte especializada no Brasil, como a de Antonio Bento de Araújo
Lima, além de uma iniciativa cultural privada atuante no processo de divulgação
da arte abstrata como linguagem universal. Constituem as principais fontes
utilizadas: a Revista Ver y Estimar e artigos de autoria de Antonio Bento
publicados em 1950 no Jornal O Diário Carioca.
Palavras-chave: Revista Ver y Estimar. Abstracionismo. Romero Brest. Antonio
Bento.
** Mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA). Doutoranda pelo Programa de PósGraduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM
USP).
** Professora titular da Universidade de São Paulo. Foi Diretora do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo de 1994 a 1998 e de 2006 a 2010.
Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA; Vice
Presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte – AICA e Coordenadora do
Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM USP).
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Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves
Reflexiones sobre la crítica de arte: las experiencias de Romero
Brest y Antonio Bento
Resumen: En este artículo se presenta un análisis de las contribuciones del crítico
de arte argentino Jorge Romero Brest para la escena artística brasileña, proponiéndose
aproximaciones políticas y culturales entre Brasil y Argentina. También acentuamos
la importancia de la revista argentina Ver y Estimar como un vehículo para la
difusión de ideas vanguardistas. Este artículo se ocupa también de las producciones
de una crítica de arte especializada en Brasil, como la propuesta por Antonio Bento
de Araújo Lima, además señalamos la presencia de una iniciativa cultural privada
activa en el proceso de difusión del arte abstracto como un lenguaje universal. Son
las principales fuentes utilizadas: la Revista Ver y Estimar, artículos escritos por
Antonio Bento publicados en 1950 en el Diario Carioca.
Palabras-clave: Revista Ver y Estimar. Abstraccionismo. Romero Brest. Antonio
Bento.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo identificar a produção teórica, tanto no
Brasil quanto na Argentina, para a tentativa de construção e entendimento de
uma arte abstrata como linguagem universal, após a Segunda Guerra Mundial.
Estabelece-se também uma aproximação política entre ambos os países, Brasil
e Argentina, considerando-se uma atuação diferenciada da iniciativa privada
brasileira na criação de órgãos culturais. À medida que avançamos no estudo da
arte abstrata no Brasil, torna-se importante correlacionar a atividade crítica de
Brest com a produção local, na tentativa de evidenciar as trocas culturais entre
ambos os países no contexto da divulgação e promoção do abstracionismo.
Junto com a fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em julho
1948, instituía-se o debate figuração x abstração, campo em que se deu a crítica
elaborada por parte do crítico Antonio Bento, detentor de coluna regular no jornal
O Diário Carioca. A Bienal, por sua vez, foi a via pela qual se deu o contato e,
por conseguinte, um embate com a arte estrangeira. A abstração foi inserida e
acabou por se afirmar por meio da intensa polêmica com a arte figurativa de
pintores modernos brasileiros. Com a Bienal, predominou o espírito de liberdade,
e a ideia que prevaleceu foi a de ser a Bienal um acontecimento de atualização
para a arte brasileira.
Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento
| 293
Embora existam alguns estudos sobre abstração no Brasil, como o de Leonor
Amarante, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale, não há até o momento
uma produção que correlacione os apontamentos críticos de Brest com as produções locais, como as de Antonio Bento, por exemplo.
O contexto histórico
A partir da Segunda Guerra Mundial, mudanças significativas nas esferas
política, econômica e social modificaram as relações internacionais mundiais,
assim como demudaram o campo artístico. Ao final da Guerra, países como Brasil
e Argentina apresentavam, em alguns aspectos, importantes semelhanças. Houve
um retorno à democracia, com os presidentes de ambos os países, coincidentemente militares eleitos pelo voto direto.1 Soma-se a isso, o fato de que desde
a década anterior, ambas as nações experienciavam o crescimento da atividade
industrial e uma atmosfera favorável ao seu beneficiamento e desenvolvimento.
O centro da cultura artística mundial, e, por conseguinte do mercado de arte,
deslocou-se de Paris para Nova Iorque. Como mostra Giulio Carlo Argan, as tendências não figurativas (mais imunes aos conteúdos e características nacionais)
passaram a angariar um número cada vez maior de adeptos. A arte se configurara
como ambiente profícuo à regeneração do pragmatismo alienante da vida cotidiana: se por um lado a arte assumia dimensões ativistas e objetivas, por outro
ela propunha o domínio do espiritual, do criativo.
Como fonte teórica, explicitasse a importância da Revista Ver y Estimar,
dirigida por Jorge Romero Brest,2 contribuindo para a construção de um
1. Com o fim do Estado Novo (1937-1945) chefiado por Getúlio Vargas, os
brasileiros reencontravam-se com a democracia, elegendo para a presidência do país o
general Eurico Gaspar Dutra, candidato do Partido Social Democrático. Em 1951, Getúlio
Vargas retorna ao poder, com mandato até 24 de agosto de 1954. No mesmo período, na
Argentina, 1946, Juan Domingo Perón, assumia o governo. Geralmente se divide a gestão
econômica do governo de Perón em duas fases. A primeira cobre o período 1946-1949 e
a segunda o período 1950-1955.
2. Jorge Aníbal Romero Brest nasceu em 02 de outubro de 1905 em Buenos Aires,
tendo contribuído para a divulgação da arte abstrata na Argentina até seu falecimento
em 12 de fevereiro de 1989, em sua cidade natal. Brest foi fundador e diretor da Revista
Ver y Estimar, que teve quarenta e quatro números publicados ao longo de sua existência
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Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves
pensamento de vanguarda na Argentina, assim como a atuação de uma crítica
especializada brasileira, com importantes publicações e periódicos acerca dos
rumos e desenvolvimento de uma arte abstrata no país, como a realizada por
Antonio Bento de Araújo Lima,3 Sérgio Milliet e Mário Pedrosa, entre outros
críticos de renome, por exemplo.
Um encontro cultural: do regional ao universal
Para a uma breve análise do processo de estreitamento das relações entre
Brasil e Argentina, aponta-se primeiramente como um importante marco a ser
considerado: a presença do crítico Jorge Romero Brest em solo brasileiro, em
fins de 1940. Tal presença teria corroborado para a legitimação das correntes
modernistas, com abertura para o abstracionismo como ápice de uma arte que
se apresenta essencialmente por formas, através de um discurso progressista de
âmbito internacional. A partir de uma trama regional, deu-se a interação entre
artistas, críticos e instituições na criação e divulgação da arte abstrata como
linguagem universal. Para Aracy do Amaral,4 a efervescência cultural paulista
de fins dos anos de 1940 e as palestras proferidas pelo crítico no MASP foram
de salutar importância para o surgimento da arte concreta brasileira.
Quanto aos programas das conferências proferidas no MASP, consistiam
em um balanço de meio século de pintura, em que a partir dos ensinamentos de
Picasso e Matisse, perpetuaram-se quatro falsos ideais na história da representação: o neo-humanismo, o neorromantismo, o neonaturalismo e o neorrea(1948-1953 e 1954-1955). Brest pretendeu conceder à sua publicação um caráter crítico
e investigativo capaz de impulsionar o desenvolvimento da arte abstrata, que naquele
momento encontrava resistências e questionamentos dentro do sistema oficial da arte.
Deste modo, Ver y Estimar, constituiu um marco importante para a propagação e
desenvolvimento do discurso crítico, personificando as elucubrações e anseios em torno
do abstracionismo.
3. Antonio Bento de Araújo Lima, jornalista, escritor e crítico de arte, nasceu em
Araruna na Paraíba em 5 de outubro em 1902 e residiu, a partir da década de 1920, na
cidade do Rio de Janeiro, até seu falecimento em 1988.
4. AMARAL, Aracy. (org.). Projeto Construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio
de Janeiro/São Paulo: Museu de Arte Moderna/Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1977.
Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento
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lismo. A arte baseada nestes ideais era para o crítico, uma arte sem autenticidade.
Consequentemente, o balanço da história da arte argentina era negativo, por ser
uma arte proveniente de um passado pré-hispânico pobre. Para Brest, entre o
velho e o novo em artes plásticas figurava a ideia da abstração, entendida como
a autonomia da linguagem. Neste ponto, surgem as distinções entre o abstrato e
o concreto, o orgânico e o inorgânico, o funcional e o expressivo. Todas essas
abordagens permitiam a Brest marcar a dicotomia entre esse novo momento
histórico e o rumo das artes plásticas na América Latina.
A formação de um legado cultural autônomo
A percepção de Brest sobre a realidade brasileira em contraposição ao cotidiano cultural argentino possibilita-nos realizar algumas aproximações e distanciamentos quanto à iniciativa privada e estatal de ambos os países no campo das
artes.
Brest divulgava através das páginas da revista Ver y Estimar a vontade dos
brasileiros em consolidar um projeto de caráter modernista. Na publicação do
número 26, de 1951, o crítico mostrava-se intrigado com o processo singular e
expressivo de implementação de novos museus no Brasil, ou seja, empreendimentos financiados por capitais privados e subsídios públicos.
A criação, em 1947, sob o patrocínio do empresário de comunicações Assis
Chateaubriand (1892-1968), do Museu de Arte de São Paulo desempenhou
importante papel, ao abrigar a mais valiosa pinacoteca reunida no cenário mundial
da época. A iniciativa do empresário financiou a vinda do casal Lina Bo e Pietro
Maria Bardi para a organização de um novo espaço cultural, assim como a
aquisição de importantes obras de significativos pintores europeus de várias épocas, constituindo o mais importante acervo do gênero na América do Sul. Para a
formação dessa cultura cosmopolita, contribuíram também a criação do Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu de Arte Moderna de São Paulo
(Núcleo gerador das bienais de artes plásticas), ambos em 1948. Brest acompanhou rigidamente todos estes projetos: as conferências, os cursos, as compras
de obras e publicações realizadas pelo MASP, além da criação do MAM-SP,
sobretudo a sua exposição inaugural, “Do Figurativismo ao Abstracionismo”,
realizada em 1949.
Léon Degand, primeiro diretor do MAM de São Paulo, era filiado às correntes francesas da abstração e ao convidar para a exposição em sua maioria artis-
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Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves
tas franceses, contribuía decisivamente para o conhecimento desta corrente no
Brasil, fortalecendo o caráter didático-informativo das primeiras bienais.
A exposição organizada por Léon Degand também foi apresentada em
Buenos Aires no Instituto de Arte Moderno (IAM), instituição fundada em 1949
e financiada exclusivamente por Marcelo De Ridder. O Instituto mantinha um
projeto diferenciado com a presença de artistas nacionais e estrangeiros, alguns
nem sempre consagrados.
Romero Brest acompanhou também de forma bastante próxima o
nascedouro e desenvolvimento do IAM, através de Ver y Estimar. Porém, para
Brest o IAM não foi capaz de representar um projeto realmente moderno, pois o
critério para a eleição de exposições, assim como os textos dos catálogos e os
conjuntos selecionados para os salões “A Jovem Pintura Argentina” (prêmio que
Ridder sustentou de 1949 a 1959) não estimulavam a projeção de uma arte
vanguardista. Ao contrário da dinâmica paulista, Ridder, na opinião de Brest,
executava apenas um projeto de cunho romântico, individualista. Em São Paulo,
instituía-se uma nova modalidade de mecenato, vinculado à indústria e aos setores
emergentes da sociedade paulista, que buscavam projetar-se em um mundo
econômico através de dispositivos culturais.
Romero Brest e a consolidação de um projeto vanguardista
brasileiro
A Revista Ver y Estimar ficou conhecida por constituir um novo canal de
difusão da arte contemporânea do período, auxiliando os leitores na apreciação
estética e na elaboração de um pensamento crítico sobre o panorama estético local
e mundial.
Romero Brest, através de sua revista, revelava-se extremamente contrário
aos partidarismos, determinismos e tradicionalismos impostos à arte argentina.
O fato era que, no que tange às artes, a Argentina assumira uma posição introvertida, posicionando-se às margens dos eventos internacionais. Coube à heterogeneidade temática de sua revista romper as barreiras históricas e geográficas
impostas pelo regime peronista, ao analisar indiscriminadamente os expoentes
de uma arte latino-americana, europeia ou norte-americana.
Foi somente em 1952 que se promoveu um significativo envio de obras para
a participação da XXVI Bienal de Veneza. Tal realidade, em termos compa-
Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento
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rativos, demonstrava que nem a gestão privada, nem o deficitário projeto cultural
peronista eram capazes de sustentar um projeto tão atrativo e aglutinante quanto
o brasileiro:
El proyecto paulista no sólo era avasallador como emprendimiento sino que
también asombraba a Jorge Romero Brest la voluntad institucional de confrontar
las numerosas líneas vinculadas a la definición de lo moderno. Recuérdense
las exposiciones de Alexander Calder en Río y la de Max Bill en San Pablo a
fines de los 40 y principios de los 50. Para JRB éste era un espacio de acción
claro y específico que se articulaba con su propio programa moderno e internacional de cultura y lo legitimaba. Espacio que le era negado, al igual que a otras
tendencias progresistas del ámbito de la cultura argentina, en el medio local.
(GIUNTA, 2005, p. 39)
Pode-se afirmar, portanto, que o desenvolvimento da arte abstrata no Brasil,
seguiu caminhos diversos daqueles percorridos pelos argentinos. Ainda que o
governo brasileiro não fosse adepto do movimento, valorizando uma arte nacionalista, como também o fez o governo Perón, o diferencial era a porcentagem
de envolvimento do setor privado em consonância com subsídios públicos,
notadamente na gestão de Eurico Gaspar Dutra.5 Além disso, a criação do movimento de Arte Concreta, com Waldemar Cordeiro, Luís Sacilotto, Geraldo de
Barros e outros importantes nomes, em fins de 1949, também contribuiu para o
fortalecimento e afirmação do modernismo brasileiro. Suas influências
transcenderam a década de 1950, sendo visível a opinião do grupo em 1961,
através da fala de Cordeiro no II Congresso de Críticos de Arte.6 O Manifesto
5. As ideias gestadas em 1945 tiveram a sua consolidação efetiva no Governo Dutra
(31/01/ 1946-31/01/1951), prolongando-se para além do retorno de Vargas em 1951.
6. De 12 a 15 de dezembro de 1961 realizou-se, por ocasião da 6ª. Bienal de São
Paulo, o II Congresso de Críticos de Arte, realizado pela Associação Brasileira de Críticos
de Arte, com patrocínio do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Tal evento dispôs da
presidência geral de Antonio Bento de Araújo Lima, e teve por tema comum: A
problemática da Arte Contemporânea. Integraram a lista de convidados: Francisco
Matarazzo Sobrinho (Presidente da Bienal), Mário Pedrosa (Diretor do Museu de Arte
Moderna de São Paulo), Aloísio de Paula (Diretor do Museu de Arte Moderna do Rio),
José Roberto Teixeira Leite (Diretor do Museu Nacional de Belas Artes), Ícaro de Castro
Melo (Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil), dentre outros.
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Ruptura seria assinado pelos artistas concretos em 1952. Porém, desde 1948,
Samsor Flexor já se dedicava à pintura abstrata, fundando na sequência o ateliê
Abstração. O Rio de Janeiro, entre 1947 e 1948, contava com a presença de
artistas concretos (Abraham Palatnik, Ivan Serpa etc) ligados ao crítico de arte
Mário Pedrosa profundo defensor e divulgador da arte concreta no país.
O panorama artístico brasileiro através das páginas do Diário
Carioca e a importância das Bienais
Em fevereiro de 1950, Antonio Bento afirmara em sua coluna no Diário
Carioca, que o movimento artístico em São Paulo, notadamente em questão de
exposições, permanecia melhor que no Rio de Janeiro. O Museu de Arte Moderna
e o Museu de Arte de São Paulo recebiam um fluxo intenso de visitantes, ao
contrário da capital carioca.
O evento considerado ápice desta rápida fermentação foi a Bienal
Internacional de Artes Plásticas de São Paulo, ligada ao MAM-SP e realizada
pela primeira vez em 1951, como gesto do industrial Francisco Matarazzo
Sobrinho. Lourival Gomes Machado, diretor artístico da 1ª mostra e encarregado
de organizar o texto do catálogo da primeira versão, afirmava que o propósito
da Bienal era colocar a arte moderna do Brasil em contato com o circuito
internacional e, ao mesmo tempo, situar São Paulo como centro artístico
internacional. Assim, os artistas ficariam informados sobre o que ocorria em Paris
e Nova Iorque e também sobre o que se passava na América Latina.
Por ocasião da I Bienal, Brest foi convidado por Ciccillo Matarazzo a
participar como membro do Júri. Nesta primeira edição, a Argentina, por conta
do marasmo cultural imposto pelo peronismo, não participou com o envio de
obras. Brest teve a oportunidade de utilizar a legitimidade adquirida no ambiente
paulista para marcar uma adesão total à causa abstrata, argumentando e
defendendo a outorga do primeiro prêmio em escultura à obra Unidade tripartida
de Max Bill.
Deste modo, o posicionamento de Brest frente à I Bienal paulista foi de vital
importância para a evolução da arte abstrata brasileira. A sua figura de estudioso
sério e reconhecido, juntamente com uma atuação marcante em Ver y Estimar,
constituiu meio relevante de inserção no cenário internacional, estabelecendo
contatos com distintas personalidades no âmbito da cultura. O número 26 da
revista trazia uma crítica elogiosa aos esforços empreendidos por Francisco
Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento
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Matarazzo e sua esposa Yolanda Penteado em desviar a geografia das artes para
São Paulo. Tratava-se de um grande esforço para promover a participação de
artistas e obras europeias e americanas em edições futuras da Bienal paulista.
Consoante Kátia Canton,7 a Bienal paulistana exerceu um papel de referência
ao divulgar e expor aos brasileiros ao que havia de mais novo e significativo na
arte internacional. O prêmio em sua edição inaugural à escultura Unidade
Tripartida foi um reflexo do impacto causado por Max Bill com suas formas
geométricas e matemáticas. Esse abstracionismo rigoroso influenciara definitivamente as artes brasileiras. A sua obra tornou-se um símbolo que corroborou
para o desenvolvimento da arte construtiva brasileira a qual já passava por um
processo de expansão desde o desenvolvimento da arquitetura moderna brasileira
dos anos de 1930 e 1940.
Considerações Finais
De fato, as influências da arte abstrata transcenderam o circuito europeu e,
no Brasil, assumiram características e dimensões bastante peculiares. Se em Nova
Iorque a grande questão era por qual motivo a arte abstrata consolidara-se de
forma tão unânime, se por convicção ou gosto, no caso do Brasil, o problema
era de outra ordem. Aqui o que permanecera era a dúvida sobre a capacidade da
arte abstrata em expressar a preocupação com o homem e os problemas sociais,
principal inquietação dos figurativos. A conotação alienada, individualista
impingida aos abstratos, desde fins do Estado Novo, fortalecia a ideia de uma
arte frágil e pouco útil à sociedade como instrumento de mudanças e crítica social.
Tal imagem fortalece-se no final da década de 1950, quando o Brasil, sob a presidência de Kubistchek, busca um novo padrão de desenvolvimento e industrialização proposto pelo plano de Metas.
É fato que, ao tornar-se centro de atração para todos os artistas do Brasil e
do mundo, a Bienal pôde, por sua vez, despertar também um movimento interno
de aproximação artística entre as diversas províncias culturais do país.
Deste modo, para além das fronteiras nacionais, foram de grande importância as intervenções culturais e análises realizadas por Jorge Romero Brest,
7. CANTON, Kátia. Tendências Contemporâneas: Questões sobre a Arte no Brasil
e no Mundo Ocidental. In: AQUINO, Victor. (org.) Metáforas da Arte. São Paulo:
Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte/MAC USP. 2008.
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Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves
através das páginas da revista Ver y Estimar. O intenso diálogo praticado entre
os dois países, Brasil e Argentina, permitiu vislumbrar duas nações com projetos
vanguardistas em níveis diferenciados, mas que passaram por momentos políticos
bastante próximos. Assim, salienta-se a posição de Romero Brest como divulgador e propulsor da arte de vanguarda na Argentina. Ver y Estimar assumiu papel
ímpar no cenário artístico argentino, uma vez que os canais difusores para a nova
vertente artística eram escassos. Brest confirmava, assim, a postura de que a
crítica deve enriquecer-se por seus fundamentos teóricos e por seu modo inteligente de explorar, conhecer e conceber a realidade.
A década situada entre a criação da Bienal, em 1951, e a inauguração de
Brasília, em abril de 1960, foi um dos períodos mais férteis da história da arte
brasileira no século passado. Foi também o período áureo da crítica de arte no
país. As críticas difundidas em periódicos, como o Diário Carioca, por exemplo,
buscavam uma aproximação do público e dos intelectuais da época com os
principais debates e mudanças artísticas vivenciadas pelo país. A presença de
uma crítica especializada como a de Antonio Bento de Araújo Lima fomentou
os debates em torno da abstração versus figuração rumo à consolidação da arte
abstrata como linguagem artística válida também para a realidade brasileira. Isso
porque, simultaneamente à busca de uma linguagem universal, fez-se um esforço
extraordinário no sentido de definir uma linguagem própria para as artes visuais,
promovendo a autonomia dos meios plásticos e, ao mesmo tempo, a criação de
um vocabulário específico para a crítica de arte.
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. La Pintura Europea – 1900-1950. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 1952.
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Tatuagem: ritual, arte e moda
RICHARD DE OLIVEIRA*
JOÃO AUGUSTO FRAYZE-PEREIRA**
Resumo: Na atualidade, a prática da tatuagem disseminou-se. Muitas pesquisas
têm sido feitas, visando compreender esse espraiamento, a partir das mais
diversas teorias e métodos. E os resultados têm sido variados e discordantes, o
que demonstra a riqueza e complexidade desse campo temático. Este artigo
apresenta uma reflexão com base na pesquisa que realizamos sobre a prática da
tatuagem. Entrevistando tatuadores urbanos, com a técnica de “história de vida”,
constatamos que a percepção da tatuagem como “arte” relaciona-se à
romantização da prática, assim como à oposição entre as ideias de “ritual” e
“moda”. Também indicamos as noções de “pele” e “desenho” como os principais
organizadores dos sentidos psicossociais e estéticos dessa prática.
Palavras-Chave: Tatuagem. Pele. Desenho. Arte. Psicologia Social.
Tattoo: ritual, art and fashion
Abstract. Nowadays, the practice of tattooing has become popular. Several researches
have been realized to understand this spreading, from the most diverse theories and
** Mestrando do programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (Fapesp). Linha de Pesquisa: Psicologia Social de Fenômenos
Histórico-Culturais Específicos – Arte. Pesquisador do Laboratório de Estudos em
Psicologia da Arte do IPUSP.
** Professor Livre Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho
do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da USP. Pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicologia
da Arte do IPUSP.
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Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira
methods, and the results have been the most varied and discordant, demonstrating
the richness and complexity of this research field. This article presents a reflection
based on a survey that we have conducted on the practice of tattooing. Interviewing
urban tattooers, using the technique of life stories, we found as a result that the
perception of tattoo as art is related to the romanticizing the practice, as well as
with the oposition between the terms “ritual” and “fashion”. We also indicate the
notions of “skin” and “design” as the major organizers of the psychosocial and
aesthetic meanings of that practice.
Keywords: Tatoo. Art. Ritual. Aesthetics. Social Psychology.
Na sociedade atual – definida a partir de conceitos como “sociedade do
vazio” (LIPOVESTSKI, 2005), “modernidade líquida” (BAUMAN, 2003) e, ainda,
“sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997) –, a prática da tatuagem tem cada
vez mais se disseminado e popularizado. Essa prática deixou de pertencer
exclusivamente às organizações tribais ou a grupos marginalizados, subversivos
e de contracultura, para passar também a adornar corpos de indivíduos de
diferentes idades, classes, status sociais e gêneros (PÉREZ, 2006; FERREIRA, 2006;
L EITÃO, 2004; ARAÚJO , 2003). Tal fenômeno tem chamado a atenção de
pesquisadores nas diversas áreas das Ciências Humanas. Encontramos trabalhos
recentes nos seguintes campos: Sociologia (FERREIRA, 2006), Antropologia
(PÉREZ, 2006; L E BRETON, 2002, OSÓRIO, 2006), Semiótica e Linguística
(BRAGA, 2009), Psicanálise (ALMEIDA, 2011; COSTA, 2003, MOREIRA et al. 2010;
SILVA JÚNIOR et al., 2009), Artes Visuais (SILVA, 2010), Criminologia (CHAVES
& SILVA, 2012) e Saúde (CARONI & GROSMANN, 2012; TOSTES, 2005). E, ao ler
esses trabalhos, constatamos a complexidade do tema como campo de pesquisa.
Em primeiro lugar, cabe notar a diversidade de eixos temáticos: preconceito
e estigma social; relações de gênero; grupos marginalizados e/ou em situação
de vulnerabilidade social; ideário político e formas de vida; conteúdos inconscientes dos tatuados; tatuagem como atividade profissional; metamorfose do
sentido da prática de tatuar; laço social; tatuagem como experiência, linguagem,
discurso e comunicação; tatuagem como recurso para reparação estética. Em
segundo lugar, também é notável o uso de diferentes métodos de pesquisa: ensaios
teóricos; análise de imagens; entrevistas semiestruturadas; pesquisas quantitativas; pesquisa etnográfica; coleta de depoimentos pessoais; estudos clínicos
de reconstituição estética. Em terceiro lugar, quanto ao objeto de pesquisa
específico, a variação também é grande: pessoas tatuadas em geral; pessoas que
passam por um processo de tatuar grande parte do corpo; a imagem propriamente
Tatuagem: ritual, arte e moda
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dita de tatuagens; percepção das pessoas (tatuadas ou não) acerca da prática da
tatuagem; trabalho dos tatuadores, etc. Além disso, ora a tatuagem é estudada
de forma isolada, ora colocada junto a outras modificações corporais, como a
escarificação, o branding e o body-piercing. Finalmente, em quarto lugar, é
importante apontar que as conclusões das pesquisas citadas são não apenas
variadas, como discordantes entre si: o fenômeno da tatuagem é tratado como
uma versão contemporânea do ritual frente ao sagrado ou como um fenômeno
marcado pela categoria do “impuro”; como marca de identidade e demanda de
reconhecimento ou como um novo tipo de adereço estético e dispositivo de
sedução; como expressão de singularidade e de não conformismo no plano sóciopolítico ou como um projeto de adaptação a projetos estéticos hegemônicos e
normativos; como resultado da incapacidade simbólica do individuo que se tatua
ou como projeto de construção da imagem do corpo que funciona como signo
de liberdade – só para citar algumas antinomias. Em suma, essa diversidade de
disciplinas, eixos temáticos, métodos de pesquisa, objetos e resultados
específicos, expressa a complexa pluralidade de significados presentes no
universo da tatuagem urbana.
Assim, considerando esse prolífico campo de estudos, desenvolvemos um
projeto de pesquisa, com o apoio da FAPESP (OLIVEIRA e FRAYZE-PEREIRA,
2013), voltado para a tatuagem como uma produção estética-visual-plástica, cujos
estilos mais tradicionais possuem vínculos históricos com outras artes visuais.
Mesmo nos contextos em que não é considerada arte, a tatuagem segue certas
regras de composição visual e estilo que são parte de sua essência, aspecto cujo
conhecimento é importante para acessarmos os sentidos dessa prática. Além
disso, como encontramos na literatura e em nossa própria experiência de campo,
é a partir principalmente de seu valor estético que a tatuagem é atualmente valorizada e vinculada ao campo artístico. Nessa medida, quem poderia ser o sujeito
mais habilitado a nos ajudar a compreender esses aspectos, senão o tatuador?
Partindo da hipótese que existe uma poética da tatuagem – poética entendida no
sentido de Pareyson (2000), isto é, uma maneira programada ou regrada de formar
que seria própria à prática da tatuagem – os tatuadores seriam aqueles que
poderiam nos revelar essa maneira. Afinal, são eles os peritos nesse fazer, os que
tornam possíveis esses projetos estéticos e os desenvolvem no sentido de um
trabalho. Além disso, os tatuadores, justamente por serem trabalhadores, são
personagens que formam o epicentro do universo da tatuagem urbana, pois em
sua atividade há um horizonte cotidiano privilegiado para conhecer tanto as
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Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira
características particulares da atividade de tatuar, quanto os sentidos presentes
no universo mais geral da tatuagem, inclusive o ponto de vista e as motivações
que caracterizam os seus clientes. Nessa medida, seria interessante conhecer esse
aspecto do cotidiano do trabalho no próprio espaço de trocas psicossociais em
que se situam esses atores. Por isso, a pesquisa não se alojou apenas no campo
da estética, mas também no da psicologia social, ou melhor, na interface entre
as duas disciplinas, interface que, associada à história da arte, define o campo
da Psicologia Social da Arte (FRAYZE-PEREIRA, 2010). Nesse sentido, o procedimento escolhido para explorar o mundo do tatuador foi o da história de vida
artística, uma variação da técnica dos registros orais, técnica consagrada nas
ciências sociais (PEREIRA DE QUEIROZ, 1988). Assim, nosso procedimento consistiu em pedir ao entrevistado que contasse a sua vida, com a atenção do entrevistador focada no tornar-se ou no vir a ser tatuador, deixando o entrevistado
livre o bastante para compor a sua narrativa. Várias entrevistas foram realizadas
com cada tatuador para explorar mais a fundo a sua vida atual, seu espaço de
trabalho, sua concepção da prática de tatuar, suas preferências estéticas, desafios
técnicos, parentesco possível da tatuagem com outras artes, relação com os
clientes, o processo de feitura da tatuagem, desde a demanda do cliente até a
última agulhada. Todo o material obtido no contato com dez entrevistados, foi
registrado em seus respectivos ambientes de trabalho, na cidade de São Paulo,
para termos uma visão dos aspectos estéticos encarnados na existência cotidiana
do tatuador. A partir daí, formulamos algumas perguntas: 1) no âmbito da
experiência dos tatuadores, como esse trabalho é percebido? 2) será ele um fazer
poético, isto é, um fazer formativo-expressivo-cognitivo, tal como acontece no
campo das artes? 3) se ele for situado pelos tatuadores no campo das artes, com
qual das linguagens a tatuagem teria mais afinidade? A seguir, apresentamos
resumidamente os caminhos da pesquisa e a reflexão por eles engendrada.
Durante o trabalho de campo, observamos que se os tatuadores reconhecem
seu fazer como arte, existe variação na forma pela qual esse reconhecimento
acontece. E, como há coerência dos valores estéticos entre tatuadores que se
inserem no mesmo contexto social, classificamos os entrevistados em dois grupos:
“tatuadores populares” – aqueles que exercem seu trabalho em bairros de classe
média de São Paulo, cujo público situa-se nessa classe e cujos trabalhos possuem
preço coerente com essa situação; “tatuadores prestigiados” – aqueles que atuam
em bairros de classe alta, cujos clientes pertencem a essa classe e cujos preços
são compatíveis.
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Segundo os “tatuadores populares”, em primeiro lugar, é o fazer propriamente técnico do tatuar que permite perceber a tatuagem como arte. É o fazer que a
vincula às artes plásticas, principalmente ao desenho, pois é este que distingue a
habilidade do tatuador. Em outras palavras, sendo uma produção plástica, a tatuagem tem maior valor artístico na medida em que sua forma é uma perfeita realização, que envolve pesquisa dos instrumentos e técnicas (agulhas, tintas, posição
da mão, etc.) e da pele como suporte (local, densidade, textura, absorção da tinta).
A pele é uma característica fundamental da tatuagem: é o lugar onde ela acontece,
a condição da tatuagem e o campo visual da sua exposição pública. Paralelamente,
a realização de uma imagem original também aparece como um valor artístico,
estético e psicossocial para o tatuador, ligado às aspirações dos clientes desejosos
de possuir uma imagem única em seu corpo. Mas, além da questão da originalidade da imagem, não constatamos qualquer ênfase nos símbolos particulares
que as imagens tatuadas carregam, nem nos grupos e estilos de vida que supostamente elas representariam. Entre os motivos para as pessoas se tatuarem, o mais
citado é o ditado pela moda – questão que, em geral, ao ser formulada ao “tatuador
popular”, causa perplexidade, pois os motivos podem ser muitos e nada interfere
na “forma de seu fazer”: a “perfeição da forma” é o valor mais importante. Se
levarmos em conta que a tatuagem urbana se ligava às representações de grupos
marginalizados e, posteriormente, aos grupos autodeclarados subversivos e aos
valores de individualidade (PÉREZ, 2006; FERREIRA, 2007), a ausência, nas falas
dos tatuadores, de qualquer referência a esses temas é um aspecto a notar. Somase a isso o fato de que, nas entrevistas, as referências a outras práticas corporais
consideradas mais radicais e menos popularizadas – como o branding, a suspensão corporal, os implantes dérmicos, as performances artísticas na linha da body
art – foram avaliadas negativamente como projetos bizarros, cujo sentido está
voltado apenas para “chamar a atenção”. Vale lembrar que, comparadas às formas
antigas da prática da tatuagem, tais projetos corporais também são percebidos
como desviantes, sendo muitos deles realizados no contexto de rituais coletivos
nos quais a afirmação individual se articula com a afirmação de sentidos grupais,
que contestam incisivamente – de forma mais ou menos consciente – os modelos
estéticos tidos como desejáveis e normais (PIRES, 2008). Também, deve ser notado
que não existe qualquer conflito entre os aspectos artístico e mercadológico do seu
trabalho. E tampouco qualquer diferenciação entre arte e trabalho. A arte de tatuar,
segundo os tatuadores, é resultado de treinamento e pesquisa, pois a afinidade
inicial (“talento”) é atrelada à habilidade de desenhar.
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Assim, para os “tatuadores populares”, se a tatuagem é um trabalho cuja
demanda é ditada pela pluralidade de desejos do público e seu processo de
perfeição não é diferente do processo idealizado para qualquer trabalho, é o
vinculo com as artes plásticas que garante seu estatuto de arte. Ou seja, é sempre
através da comparação com o desenho e a pintura que a tatuagem é explicitamente
denominada “arte”.
A concepção dos “tatuadores prestigiados” sobre a tatuagem não é
exatamente distinta da formulada pelos “tatuadores populares”: além de
retificarem os valores de perfectibilidade estética e a importância do desenho e
da pele em seu trabalho, amplificam a vinculação com a arte, dando a essa
vinculação contornos mais bem acabados e específicos.
Os “tatuadores prestigiados” que entrevistamos são profissionais que lançam
moda, pesquisam meios técnicos e apresentam para a grande mídia o trabalho;
são reconhecidos como artistas de excelência em seu meio. As entrevistas
realizadas pessoalmente com tais tatuadores possuem grande afinidade temática
com as entrevistas dos tatuadores famosos encontradas em sites e revistas
especializadas. Além disso, as concepções encontradas em ambos os materiais
acerca do universo da tatuagem são corroboradas pela linha editorial de revistas
de prestígio, como Inked (Estados Unidos e Brasil), Total Tattoo Magazine e
SkinDeep (Reino Unido). Dado que são materiais que discursivamente se
harmonizam com as falas dos “tatuadores prestigiados”, incluímos as entrevistas
publicadas e as reportagens das revistas no material que analisamos.
Nessa medida, podemos afirmar que os “tatuadores prestigiados”, assim
como os “populares”, percebem a tatuagem como fazer artístico, no sentido
convencional, e se reconhecem artistas. Além disso, conferem ao processo técnico-artístico a essência da tatuagem. É na busca pela aplicação perfeita da imagem
à pele que se desenrola a jornada artística do tatuador. No entanto, em contraste
com a perspectiva dos “populares”, para os “prestigiados” esse processo técnico
possui relações íntimas com a história de vida do tatuador – formação cultural,
gostos particulares, afinidades artísticas e objetivos pessoais. Para esses
tatuadores, a técnica de tatuar é inseparável da existência particular e, portanto,
da subjetividade do tatuador, em sua forma mesmo, na sua maneira singular de
compor. Assim, cada um desses “tatuadores prestigiados” se especializa em um
estilo de tatuagem específico que mantem relações expressivas com a história
de vida de cada um. Os estilos (old school, oriental, new school, maori) diferem
entre si em vários aspectos: imagens, tintas, objeto perfurante que entinta a pele,
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formas de aplicação, etc. E tal diversidade promove uma divergência de caminhos
da formação artística. Além disso, se os estilos assumidos por esses artistas têm
origem em formas tradicionais de tatuagem, através da prática e da pesquisa, tais
tatuadores acabam por desenvolver um estilo próprio, plenamente reconhecível
pelo público iniciado.
Em suma, a tatuagem é uma arte milenar, baseada em tradições díspares,
mas cada “tatuador prestigiado” desenvolve um trabalho de busca da perfeição
de seu estilo pessoal, isto é, a questão da individualidade do artista guia o fazer.
Esse modo de concepção da tatuagem se alinha com concepções românticas do
fazer artístico que concebem a arte como processo a dar existência sensível,
portanto, expressão, aos aspectos pessoais e subjetivos. E, por isso, descompromissada com a sua origem “underground”, origem vinculada a grupos marginalizados ou tidos como “subversivos” na nossa sociedade, essa “libertação”
da tatuagem é considerada um dos motivos da intensificação do diálogo dessa
arte com outras artes plásticas e com o universo imaginário de outros nichos
culturais, para além dos tradicionais (como o “punk” e o “heavy metal”), diálogo
que estaria enriquecendo o mundo da tatuagem. Muitos tatuadores famosos, como
Jun Matsui e Akemi Higashi, têm se engajado em outras artes além da tatuagem,
como a confecção de joias e a pintura. Outros tatuadores têm feito pesquisas
específicas sobre a emulação no tatuar de outras artes plásticas, como o grafite e
a fotografia. Ou seja, existe na camada mais prestigiada dos tatuadores a tendência
a buscar modos cada vez mais singulares de realizar a tatuagem.
Essa individualização da prática do tatuador associa-se ao perfil do tatuado
tal como desenhado pelas revistas de prestígio. Nesse ponto, é importante
ressaltar as diversas publicações sobre tatuagem cujo eixo discursivo central é
apontar que nem todas as pessoas tatuadas fazem parte de grupos subversivos e,
principalmente, que muitas delas representam o modelo de sucesso da sociedade
atual (empresários, modelos, gourmets etc.), pessoas cujo estilo pessoal a
tatuagem deve expressar; indivíduos cujos modos de vida não contrariam
necessariamente ideais hegemonicamente valorizados em nossa sociedade, tidos
como ideais de sucesso (GUIMARÃES, 2003). Ao contrário, ainda segundo essas
publicações, os indivíduos tatuados atingem com êxito os ideais socialmente
valorizados. Tal êxito é, em geral, atribuído à individualidade, à aposta feita na
própria singularidade, cujo aspecto subjetivo é expresso pelas tatuagens.
O que é curioso, a partir desse campo prestigiado da tatuagem, é que os
sentidos coletivos apontados anteriormente na história da tatuagem são ressigni-
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ficados, seja em relação ao tatuador, seja em relação ao tatuado. O valor de transgressão abandona o vínculo com a marginalidade e a coletividade e passa a
pertencer à história individual do tatuador, na sua luta pessoal para realizar suas
aspirações com o seu estilo de tatuar. E a mesma questão do estilo é colocada
para quem se tatua e afirma a sua individualidade com essa prática, sem que esse
estilo singular e sua afirmação na pele tenham qualquer conotação subversiva
em relação aos valores socialmente estabelecidos, valores tais como como: sucesso profissional e financeiro, individualismo, valores familiares tradicionais, etc.
O valor de ritual também perde suas significações coletivas para passar a
significar a realização profundamente pessoal de ambos os atores. Aqui, reaparece
a questão do tatuar por moda, criticado como um tatuar inautêntico, pois feito
por motivos superficiais, dado que o ato de tatuar autêntico, segundo os tatuadores, teria motivos mais profundos, ligados a uma noção de ritual, interior e
subjetivo. Em suma, segundo as concepções dos tatuadores e as revistas prestigiadas, tanto o estilo do tatuador, quanto a imagem que o tatuado carrega devem
falar da sua maneira de ser. Devem expressar um estilo autêntico, pessoal e
intransferível. Mas, note-se que a elaboração da tatuagem exige uma relação
íntima entre a imagem a ser tatuada e a singularidade do tatuado. Para tanto, o
tatuado é convocado a participar ativamente do processo, ao mesmo tempo em
que deve ter uma relação simbólica e afetiva com o tema, com a imagem a ser
tatuada, uma relação que não seja apenas estética. Mais ainda, a tatuagem como
arte é um processo que exige um trabalho a dois, o tatuador e o tatuado, e,
portanto, não depende apenas do artista. O trabalho do tatuador seria dar forma
e expressão sensível a algo que se encontra em estado latente na subjetividade
do tatuado. Nessa perspectiva, tatuagens feitas por modismo não seriam
propriamente artísticas, independente do talento, das disposições e valores do
tatuador. Tais tatuagens produzem uma “falsa diferenciação”, uma perversão da
função legítima da tatuagem, que é a de singularizar o corpo da pessoa ao dar
forma plástica a algo que jaz em sua interioridade.
Assim, apoiados no campo das artes plásticas, tendo como suporte o corpo,
mais especificamente a pele, os tatuadores entrevistados assimilam a tatuagem ao
campo do fazer artístico no seu sentido mais ortodoxo. A partir da concepção
essencialmente técnica da tatuagem, presente nas histórias de vida registradas,
percebemos uma progressiva injeção, na concepção da tatuagem como arte, de
valores ligados à subjetividade, à expressão do singular e de sentidos profundos
Tatuagem: ritual, arte e moda
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do espírito humano que os meios técnico-artísticos devem dar forma. Na fala dos
“tatuadores prestigiados”, seria essa expressividade que tornaria a tatuagem arte.
Mas, é a dupla tatuador-tatuado que confere à tatuagem o caráter de um processo
ritual. Assim, explicita-se com mais clareza a oposição entre dois valores importantes que caracterizam a tatuagem, segundo os “tatuadores prestigiados”: a autenticidade e a falsidade. A primeira vincula-se à realização artística a partir de
aspectos íntimos e subjetivos e a segunda, ao mercado e aos fins estéticos ditos
superficiais; a primeira estaria associada à estabilidade de certos valores e a segunda, a certa instabilidade própria do mercado. Ou seja, marca-se a diferença entre
o mundo da tatuagem como “arte” e o mundo da tatuagem como “qualquer coisa
comercial”. Essa visão dos tatuadores famosos encontra correspondência em certas análises de cunho sociológico e psicanalítico focadas na sociedade atual. Por
exemplo, a psicanalista Silvia Ons (2012) afirma sobre a “cultura das tatuagens”:
[...] nada parece perdurar e há a demanda de reinventar-se a cada dia, deixando
para trás antigas marcas; em tempos caracterizados como ávidos de novidades,
a tatuagem aponta para algo não perecível. Tanto aqueles indivíduos flutuantes
em sua vida amorosa [...], quanto aqueles que padecem no mundo atual as
consequências de um andar sem bússola, são os que apelam à tatuagem para
que algo se fixe e não se apague.
Considerando a extrema fragilidade dos vínculos humanos na sociedade
contemporânea, Ons (2012) ainda observa que
[...] a cultura da tatuagem mostra a necessidade de ancoragem dos sujeitos que
estão mais adaptados ao mundo líquido. Além disso, se tanto a dessacralização
da existência quanto a crença no progresso pareciam dominar o século anterior,
assim como estão presentes no atual, também cabe reconhecer a convivência
de um retorno ao paganismo e as crenças nos símbolos de outrora.
Assim, em uma época líquida de relações instáveis (BAUMAN, 2003), o valor
da prática de tatuar estaria em oferecer um ancoradouro subjetivo profundo,
paradoxalmente, na superfície da pele.
Ora, não custa enfatizar que, essencial e progressivamente, os valores que
se incorporam na concepção da tatuagem como arte são valores de inspiração
romântica (ROSENFELD & GUINSBURG, 1978; PAREYSON, 2000). Sem querer aqui
entrar em detalhes sobre o romantismo, cabe lembrar que esse foi um movimento
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Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira
artístico que tem início na segunda metade do século XVIII, momento em que
coincidentemente a tatuagem é introduzida no ocidente. Tal movimento constróise principalmente em torno da contestação dos valores clássicos, marcando de
forma profunda toda a arte que veio depois dele. Neste momento, os valores
românticos importantes a salientar são: a arte como expressão da interioridade
da alma, a valorização do sentimento, o valor da autenticidade do estilo do artista,
da sua individualidade, singularidade e originalidade, sendo esses mesmos valores
transmitidos à obra; e a arte, como um fazer “puro”, tem o seu campo de valores
estéticos e morais próprios e permanentes. Se esses valores subsidiaram um
movimento artístico particular, é inegável o seu impacto em todo o imaginário
sobre a arte e os artistas, produzindo uma imagem do artista e da obra que se
torna prerrogativa essencial para a legitimação dos mesmos no campo social.
Inclusive, como aponta Cauquelin (2005), a presença desse imaginário pode
impedir o público de compreender as regras e valores de novas formas de arte,
como a arte contemporânea. Segundo a autora, é esclarecedor atentar para o uso
da imagem do artista que foi vinculada pelos organizadores do mercado de arte
à era das vanguardas históricas, como Van Gogh, à imagem do artista romântico,
operação que visava:
[...] manter intacta a fonte de produção, o criador, independente do mercado e,
portanto, livre de qualquer suspeita de comercialização, para que sua credibilidade junto ao público permanecesse inabalável. Voluntária ou não, a exibição do artista como contrário, fora ou além das regras do mercado de consumo
é tida como certa. Tática vitoriosa uma vez que, se já não se tratava mais do
estudante pobre em seu casebre, que frequenta tavernas com amigos e arruína
sua saúde e família- imagem herdada do século XIX romântico- nem por isso
a imagem que o público faz do artista é muito diferente dessa historieta
(CAUQUELIN, 2005, p. 13).
Ou seja, dotada da marca da singularidade, da pureza e da autenticidade, a
imagem do artista e da arte romântica pode ser um operador importante no que
concerne a legitimação de uma atividade como artística e uma pessoa como
artista. E se no campo mais prestigiado da arte, o da arte contemporânea, os
valores se transfiguraram, podemos dizer que para o grande público tais valores
românticos ainda são essenciais para que um fazer seja reconhecido como
artístico (FRAYZE-PEREIRA,1995).
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Com efeito, se na fala dos tatuadores “populares”, constatamos a ausência
de referências culturais coletivas no seu fazer, nas falas dos tatuadores
“prestigiados”, o próprio trabalho de tatuar é visto como uma atividade artística
propriamente romântica. E, cabe lembrar, diferente dos primeiros, esses
tatuadores são os que atendem às classes mais altas e tem participação nos
circuitos da arte e da moda nos quais eles se expõem e são expostos. Podemos
aqui indagar sobre uma “romantização” do trabalho do tatuador, conforme seu
fazer é assimilado pelo campo discursivo da arte. Esse fenômeno afetaria a forma
como os tatuadores concebem a sua arte, o modo como a apresentam ao campo
social e oferecem seus serviços ao mercado. Para tal fenômeno de “romantização”, podemos supor que tenha contribuído o próprio imaginário da tatuagem,
percebida socialmente como uma prática “exótica” e “estrangeira”, e ao mesmo
tempo “desviante” e “marginal”, pois tanto o interesse pelo exótico – pelas
imagens, objetos e práticas das culturas distantes, no tempo ou no espaço, da
cultura europeia – quanto a marca do “fora da sociedade” são aspectos essenciais
da poética romântica (CAUQUELIN, 2005; ROSENFELD & GUISNBURG, 1978). Talvez
essa questão do exótico, do tribal e do ritual esteja no coração de todo esse sucesso
da tatuagem, mas não como reedição desses gestos coletivos, dessas marcações
simbólicas como são apontadas por alguns estudos (COSTA, 2003), mas, ao
contrário, na versão romântica, como prática subjetivada, psíquica e esteticamente
elaborada.
Finalmente, apresentado o complexo campo da tatuagem a partir da sua
vinculação com o campo artístico, podemos discutir, ainda que de forma sucinta
e especulativa, as noções de “pele” e “desenho”, noções que são apresentadas
como centrais para a prática dos entrevistados. São indicativas de aspectos mais
específicos dessa atividade formativa, assim como podem esclarecer o seu papel
na sociedade contemporânea. Nesse sentido, antes de encerrarmos, seguem
algumas breves considerações sobre essas questões: a “pele” e o “desenho”.
Então, com base em ideias de Merleau-Ponty (1964) e Thévoz (1984), cabe
lembrar que é a partir de seu corpo que o homem se diferencia dos outros seres.
É a partir de seu corpo, um ser que é ao mesmo tempo sensível e sentiente, isto
é, uma unidade ambígua que de modo reflexionante articula sujeito e objeto, que
o homem pode desvelar a interioridade inesgotável das coisas e de si mesmo,
dotando-os de sentido e expressividade. E também se pode dizer que é a partir
desse exercício corporal reflexionante que o homem funda um mundo existencial
próprio – mundo da linguagem, do trabalho e da arte, ou seja: o mundo da cultura.
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Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira
Nesse campo, a pele tem um papel fundamental. Se em todos os seus atos
expressivos, como a arte, o homem empresta seu corpo, é propriamente em sua
pele, e na possibilidade de nela imprimir sentidos, que ele inicialmente expressa
e propaga a inesgotável relação ambígua com sua imagem, isto é, com a sua
identidade:
[...] se o homem nasce prematuramente, com uma pele muito fina, muito frágil,
muito pura e que, por isso pede uma proteção artificial, está não é apenas física,
mas, sobretudo, simbólica. Quer dizer, ao nascer, o homem fica exposto num
duplo sentido: aos perigos, mas também aos olhares. Ele é com toda certeza o
único animal que nasce nu e que faz de sua pele uma superfície a pintar superfície na qual gradualmente se inscreve uma identidade que a tela, epiderme
ultra-sensível, através da pintura e de toda arte, vai ampliar (FRAYZE-PEREIRA,
2010, p.48).
A tatuagem, nesse sentido, pode ser considerada uma das formas mais
arcaicas de arte, em uma situação cultural na qual o fazer artístico é inseparável
de outras organizações simbólicas e expressivas, como a política e a religião.
Pois, se a caverna ofereceu um dos primeiros suportes para a arte, outra tela
primordial oferecida ao homem foi sua própria pele que, talvez, tenha instigado
a possibilidade de realizar formas expressivas, por um lado, para conferir
eternidade simbólica à sua existência mortal e, por outro, para estabelecer certo
contato com o outro (THÉVOZ, 1984). Ora, se passarmos dessa visão inspirada
na antropologia para o pensamento freudiano, encontraremos que a pele é ao
mesmo tempo sede do movimento pulsional e objeto da pulsão, em especial a
pulsão escópica. E de posse de uma dupla vinculação com o desejo próprio e
com o desejo do outro, a pele pode ser considerada um órgão básico para tecer
uma relação primordial, pois de todos os sentidos é o que mais primitivamente
vincula o eu e outro (ULNIK, 2011).
Assim, pode-se reforçar a complexidade de uma prática como a tatuagem,
pois ela apresentaria articulações imbricadas ontologicamente (corpo-estrutura
simbólica), psicologicamente (pele-imagem- identidade) e socialmente (eu-outro,
história coletiva-história individual) entre o homem e a cultura. Não é por acaso
que, em situações adversas e opressivas, as pessoas vejam na tatuagem uma
maneira de resistir ao apagamento de sua identidade, ao mesmo tempo em que
veem nela uma maneira de produzir uma relação expressiva, formativa, e, num
Tatuagem: ritual, arte e moda
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sentido bastante profundo, uma relação estético-artística consigo mesmas, com
seus pares e seus antagonistas (PIRES, 2008). Nesse sentido, cabe lembrar o
trabalho de Rosangela Rennó, Cicatriz (1996-1997), em que a artista se apropria
de fotos de identificação dos detentos, conservadas no Museu Penitenciário
Paulista, no complexo do Carandiru, entre 1922 e 1940, dando visibilidade à
tentativa de tornar-se distinguível, de subverter o mero enquadramento de uma
imagem que, como muitas outras, será entregue ao esquecimento e à deterioração.
As imagens são de cicatrizes, tatuagens e coroas de cabelo – formas de resistir
ao anonimato, expressão de um movimento de resistência ao ato arbitrário de
ser abandonado no meio de uma multidão, tendo mutiladas a memória e a
identidade (RENNÓ, 2003).
Mas, se com a noção de “pele”, fomos remetidos às práticas ancestrais que
organizam a experiência expressiva e ao mesmo tempo coletiva dos homens, a
noção de “desenho” nos remete à Renascença. Como se sabe, o desenho, tal como
é concebido na prática artística, surge na Renascença como teoria das artes
plásticas (HAUSER, 1998), como um conceito que se refere ao resultado do contato
de uma ferramenta com um material, mas, sobretudo, se refere a uma maneira
de pensar. O desenho, tal como surge na Renascença, é propriamente projeto,
isto é, um esboço material da obra artística a se realizar; e, ao mesmo tempo, é
um trabalho ideativo que visa organizar racionalmente, no sentido clássico, a
intervenção sobre a matéria (GODOY, 2013). No interior do universo cultural
renascentista, o desenho representa a projeção da mentalidade renascentista sobre
a matéria (PANOFSKY, 1975). Através da busca pelas relações matemáticas que
organizam as formas, as medidas perfeitas, a harmonia das partes que compõem
a figura plástica, o desenho é arte no sentido do “conhecer”, isto é, uma
investigação incessante de como representar a “realidade sensível em sua plena
evidencia” (PAREYSON, 2000, p.22). Mas essa perfectibilidade não é buscada
apenas na investigação das formas sensíveis do mundo, mas também do seu
fundamento metafísico (divino), a inteligência imaterial que organiza o próprio
sensível. Aqui, ao invés da totalidade expressiva que fundamentava a arte medieval, é a perfeita organização de cada detalhe da imagem que garante a perfeição
da obra. E essa relação perfeita é organizada em torno do uso da perspectiva.
Em suma, o desenho, em especial a técnica da perspectiva, muito além de uma
técnica artística, é a expressão sensível do universo de valores renascentistas.
Como sabemos, tais valores são pressupostos pelo mundo moderno, desde a
filosofia clássica à ciência, da política à economia e à jurídica modernas. E, em
316
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Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira
relação ao corpo, é Foucault (1997) o pensador que o articula à produção do indivíduo disciplinado, como contrapartida à concepção ideal de individuo racional
moderno: ao interpretar como se produziu a “alma moderna” (prisão do corpo),
mostra o aprisionamento da multiplicidade em potência que habita os corpos
humanos em uma rede de adestramento cujo propósito é separar o poder do corpo,
identificar o indivíduo com certa norma de conduta, produzir habilidades e inclinações, ou seja, modos de ligar esses indivíduos a outros planos estratégicos do
poder (governo). Fundamentalmente, as estratégias disciplinares são uma série
de ações organizadas sobre os corpos que visam domesticá-los, modulá-los em
relação a certa norma, tornando-os previsíveis e operacionais em relação a um
outro que os controla, ou melhor, a um poder que organiza a conduta dos corpos
na modernidade. Ou seja, as estratégias disciplinares tornam os corpos individuais
dos governados politicamente dóceis e economicamente produtivos. É na imagem
produzida pela antecipação dos atos, sentimentos e pensamentos desses corpos
disciplinados que se encontra a noção de “psicológico”, a “alma” moderna que
se formou no século XIX e impera ainda nos dias de hoje: alma como prisão da
experiência e da liberdade.
Ora, se considerarmos que o “desenho” renascentista é o operador estético
que permeia a montagem do processo disciplinar – sendo que o próprio panóptico,
olho do poder invisível, é o desenho em perspectiva encarnado como sonho
político –, em que medida não poderíamos entender o desenho, mais amplamente,
como o operador estético que produz a “romantização” da atividade de tatuar,
assim como assimila a tatuagem aos modelos normativos da sociedade
contemporânea? Assim é que a tatuagem urbana, hibridização de formas
ancestrais de expressão coletiva e de demandas de individualização tipicamente
modernas, concentra em seu âmago uma contradição entre processos de
singularizarão e coletivização demandadas pela pele e de individualização e
normatização social proposta pelo sonho político expresso pelo desenho. Nesse
sentido, percebendo que a popularização da tatuagem se compõe com uma
individualização do ritual e do gesto transgressivo, não caberia pensar que essa
individualização de um gesto coletivo exige certa matematização do gesto que,
precisamente, a ideia de desenho contém?
Tatuagem: ritual, arte e moda
| 317
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| 319
Considerações sobre Carlos Prado e a arte
figurativa nos anos 1960
GRAZIELA NACLÉRIO FORTE*
Resumo: Este artigo analisa as razões do artista plástico Carlos da Silva Prado
(1908-1992), irmão mais novo do intelectual Caio Prado Júnior (1907-1990),
ter se afastado do sistema das artes durante a década de 1960, quando passou a
escrever e tecer considerações sobre o que era a crítica de arte. Atuante desde o
início da carreira em 1932, quando ficou conhecido graças às obras sociais que
produziu e pela breve atuação na Sociedade de Socorros Mútuos Internacionais
(SSMI), no Partido Comunista (PCB) e no Clube de Artistas Modernos
(CAM), agremiação fundada por ele juntamente com os também pintores Flávio
de Carvalho, Di Cavalcanti e Antônio Gomide. Ao longo das décadas de 1930,
1940 e 1950, o artista havia criado uma obra diversificada em termos de técnica,
linguagem e tema. Após dez anos sem produzir, voltou a pintar no início dos
anos 1970, quando continuou utilizando a técnica da sobreposição de imagens.
Palavras-chave: Modernismo. Arte nos anos 1960. Carlos Prado. Arte Brasileira.
Vanguarda Brasileira.
* Doutora pela Universidade de Campinas (2014) e Mestre pela USP (2008).
Professora-pesquisadora da arte brasileira do século XX, tendo adotado como linha de
pesquisa os artistas e a esquerda no Brasil e política nas artes. Participa do Núcleo de
Estudos de Arte e Poder no Brasil, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), e dos
Grupos de Pesquisas intitulados Pensamento Político Brasileiro e Latino Americano, do
Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da UNESP de Marília e Pensamento
Social do Brasil, do Departamento de Sociologia da Unicamp. Fomento: Capes (1 ano)
e CNPQ (3 anos). Contato: [email protected].
320
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Graziela Naclério Forte
Considerations of Carlos Prado and the Figurative Art in the
1960´s
Abstract: This article analyzes the reasons for the Brazilian artist Carlos da Silva
Prado (1908-1992), the youngest brother of the intellectual Caio Prado Júnior
(1907-1990), stopped painting and remained out of the “arts system” in the 1960s,
when he started to write about the importance of the critic of arts. He produced a
lot since the beginning of his career in 1932, when he started to produce a social
art and brief actuation in the International Society of Mutual Aid, the Communist
Party and Modern Artists Club, that was founded with Flávio de Carvalho, Di
Cavalcanti and Antônio Gomide. After ten years without producing, he stood back
in the early 1970s, when he continued using an overlap technique.
Key-words: Modernism. Art in the 1960s. Carlos Prado. Brazilian Art. Brazil
Avant-garde.
Carlos da Silva Prado teve parte atuante no modernismo como artista
plástico, arquiteto e teórico da arquitetura funcional. É possível encontrar obras
de sua autoria nos acervos da Pinacoteca Municipal e do Estado, do Museu de
Arte de São Paulo, da Coleção Mário de Andrade pertencente ao Instituto de
Estudos Brasileiros da USP, no Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão e em
coleções particulares.
O artista teve maior relevância nos meios oficiais do Estado de São Paulo,
tendo sido consagrado pela crítica especializada antes do que pelo público.
Conquistou em vida o respeito de figuras emblemáticas das artes modernas de
nosso país, como Pietro Maria Bardi, Geraldo Ferraz, Quirino da Silva, Sérgio
Milliet e Paulo Mendes de Almeida.
Com todas as mudanças ocorridas nas décadas de 1950 e, principalmente
de 1960, Carlos Prado passou a se sentir à margem e, assim se colocou, quase
sem coragem de lutar por um espaço, mesmo tendo sido detentor de variados
trunfos: a origem familiar, a formação e o treinamento teórico; as vivências no
exterior, a breve militância política no Partido Comunista junto com o irmão Caio
Prado Júnior, o bom trânsito em esferas sociais distintas e o acesso aos dirigentes
culturais. Estava ligado pelo parentesco, mesmo que distante, a três grandes
incentivadores das artes do século XX: Paulo Prado, Olívia Guedes Penteado e
Yolanda Penteado.
Além disso, quando jovem, Carlos Prado frequentou as reuniões promovidas
por Carlos Pinto Alves em sua biblioteca particular, juntamente com Mário de
Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960
| 321
Andrade, Murilo Mendes, Gilberto de Andrade e Silva, os irmãos Tácito e
Guilherme de Almeida, os pintores Quirino da Silva, Antônio e Regina Gomide,
o arquiteto Gregori Warchavchik e os irmãos Alves de Lima.
Diversos nomes do primeiro modernismo tinham passado pelo Clube de
Artistas Modernos, agremiação cultural que Prado junto aos amigos Flávio de
Carvalho, Antônio Gomide e Di Cavalcanti fundou em 1932.
Tais amizades e a proximidade familiar não foram suficientes para constituir
uma sociabilidade expressiva. Mais que isso: como portador de capital de diversas
naturezas (seja cultural, social, político, artístico e econômico), contestou, até o
início da década de 1960, as diretrizes que definiam as bases da sociedade,
optando pelo isolamento: como não conseguia mudar o sistema, não se rebelou
e nem adotou uma postura marginal, preferindo apenas não fazer mais parte.
Crítica aos críticos
Os críticos de arte continuavam sendo os legitimadores das obras e dos
artistas. Nessa época, mantinham colunas nos jornais, ocupavam posições de
destaque em instituições como museus ou salões e, com o advento da Bienal
Internacional de São Paulo, passaram a compor o rol de diretores, organizadores
ou jurados do evento.
Até a década de 1940, Mário de Andrade e Sérgio Milliet eram os grandes
incentivadores tanto da arte popular quanto da social; e Carlos Prado esteve
alinhado aos dois desde o início da carreira em 1932, quando os três frequentaram
o CAM. Foi nesse período que obras assinadas por Prado foram incorporadas
nas respectivas coleções. Além do retrato do próprio Mário, fazem parte o guache
Varredores, de temática social e datado de 1935, e quatro desenhos: uma
paisagem com casarios na colina, um nu de costas, um nu feminino e a cabeça
de homem. Já Sérgio Milliet e sua colaboradora Maria Eugênia Franco incluíram
o óleo Paisagem (1944), também de autoria de Carlos Prado, na coleção da
Biblioteca Municipal Mário de Andrade, dada a importância do artista como
representante das linguagens do seu próprio momento histórico.
No entanto, na década seguinte, a arte abstrata passou a dominar a
preferência de alguns críticos e eram eles que assinavam os artigos nos jornais,
compunham a organização e o júri de exposições e da recém-criada Bienal,
principalmente. Diante das novidades que vinham surgindo no sistema das artes,
Prado possivelmente deveria ter se associado a um marchand, que negociaria
322
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Graziela Naclério Forte
seus trabalhos, orientando-o e, principalmente, colocando-o em evidência. Mas
ele nunca aceitou a ideia. Por outro lado, não conseguia se conectar à indústria
de massa, que se impunha.
Desta forma, Carlos Prado optou por retirar-se da vida de artista, deixando
de produzir nos anos 1960, quando os meios de comunicação tornavam-se
fundamentais na difusão das práticas artísticas e a programação dos espaços
tradicionais (galerias, teatro, cinema) passava a ser divulgada pelos jornais,
rádios, revistas e redes de televisão, estabelecendo uma série de dependências
(GARCIA, 1990: 89-90).
Desde então, Carlos passava boa parte do tempo escrevendo. De acordo
com Edgar Pacheco de Albuquerque,1 o padrasto preparava um livro, onde
“escrevia e reescrevia, escrevia e reescrevia, era uma coisa obsessiva mesmo,
escrevia e depois rasgava”, cujo título seria Os Cachimbólogos (ou seja, sobre
os entendidos em cachimbos). Na realidade, pretendia fazer uma metáfora com
os críticos de arte que estavam em evidência no período, de quem tinha horror.2
Nesses manuscritos eram tecidas considerações sobre o que era a crítica.3
Mas, se por um lado, a crítica auxiliava a “por um pouco de ordem no jogo”,
por outro controlava tudo. Na opinião de Carlos Prado, um pequeno grupo de
pessoas era quem tinha o domínio total e isso o irritava, pois não concordava
com os conceitos desenvolvidos pela crítica da época e a quem se referia como
sendo os “entendidos em arte”, sem nunca citar nomes.
Em 1966, Carlos Prado redigiu um pequeno ensaio, onde procurava destrinchar textos críticos extraídos ao acaso de periódicos brasileiros e estrangeiros,
providencialmente, eliminando dos comentários as indicações de fontes, a
identidade dos críticos e dos artistas que tiveram suas produções analisadas, na
tentativa de não dar um cunho pessoal. Assim, destacou:
1. Enteado de Carlos entre 1958 e 1963, período em que o artista foi casado com
Esther Galvão de França Pacheco e, portanto, quando eles tiveram um maior convívio.
2. Os críticos do modernismo, tais como Geraldo Ferraz, Paulo Mendes de Almeida,
Pietro Maria Bardi, Quirino da Silva e Sérgio Milliet consideravam Carlos Prado e seu
trabalho artístico. Portanto, o ódio que Prado sentia dos críticos não tinha nada que ver
com eles. Ele alimentava tal sentimento por aqueles que defendiam a arte abstrata.
3. Edgar Pacheco de Albuquerque em entrevista concedida à autora, em 28 out.
2009.
Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960
| 323
[...] O espaço, na pintura de X, não é a representação convencional do espaço
tri-dimensional da pintura renascentista, mas é um espaço puramente pictórico,
válido por si mesmo, cujas múltiplas dimensões são criadas por um jogo perfeitamente equilibrado de valores plásticos [...].
[...] X, na sua última fase, vem pesquisando com tenacidade o problema das
relações bi-valentes [sic.] entre massas e volumes múltiplos [...].
[...] Embora o tema de que se serve X (trata-se de um escultor, cujas esculturas
representam nus femininos) seja convencional, embora às vezes suas obras
beirem o anedótico, pela sua evidente preocupação de representar a anatomia
das figuras, elas atingem frequentemente um alto nível escultórico, pois graças
ao instinto seguro do artista, apoiam-se sempre em formas básicas, que servem
como ponto de partida para o estudo e aprofundamento dos problemas plásticos
que ele pesquisa [...]. (PRADO, 1966-1980)
A partir dos três trechos, ele mesmo acabou concluindo não ser capaz de
compreender os críticos, chegando a se autodeclarar, ironicamente, um “não
entendido em arte”, porque o modo que os “entendidos em arte” interpretavam
as obras não tinha relação alguma com o que os artistas procuravam exprimir.
O que fica evidente, entretanto, é que o discurso de Carlos Prado atacando
os críticos tinha como alvo Mário Pedrosa e os que se relacionavam com a Associação Internacional dos Críticos de Arte (Aica), cuja atuação se pautava, em certa
medida, pela Unesco, instituição que pretendia fazer uma política de diplomacia
entre Estados nacionais no âmbito da cultura, além de estimular a circulação de
pessoas e bens no plano internacional. Eles haviam assumido o discurso de
internacionalização da arte, visando trocas culturais, combatiam o nacionalismo
somado à relação da URSS com o nazismo, estimulando o abandono da linguagem
figurativa em detrimento da abstração como um gênero independente. Ou seja,
promoviam a abstração, deixando a arte figurativa para o passado.
Pedrosa foi uma figura fundamental para o surgimento e consolidação do
movimento de abstração geométrica, contribuindo sobremaneira para a
transformação dos cânones estabelecidos na arte brasileira que até aquele
momento era dominada pelos artistas representantes do realismo pictórico, assim
como Carlos Prado.
324
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Graziela Naclério Forte
Dificuldades para se reintegrar
Além da nítida retração da produção e recepção da arte figurativa pela crítica
de arte, a lógica do mercado se impunha às artes desse período, atingindo todos
os setores e instâncias, desde a produção até a circulação.
Dentro da sociedade de consumo, as artes plásticas também ficaram sujeitas
às leis da oferta e demanda, as quais passaram a apresentar uma complexidade
crescente dos mecanismos de legitimação. As qualidades e o valor das obras eram
definidos através das estruturas institucionais, dentro das quais se inseriam a
produção, distribuição e o seu consumo. O papel do crítico era determinante na
adoção dos critérios para a definição do valor artístico. Absorvidas pelas relações
capitalistas, as artes plásticas tornaram-se mercadorias de luxo em um circuito
muito particular.
Na opinião de Carlos Prado, a cultura de massa havia feito com que a arte
se tornasse banal como qualquer outro produto disponível para consumo. Em
entrevista ao arquiteto Hugo Segawa, afirmou que:
[...] a verdade, portanto, a avaliação do ‘valor’ das obras de arte (e do trabalho
dos artistas) depende, em última instância, do julgamento dos ‘entendidos em
arte’. Os ‘entendidos em arte’ estão porém raramente de acordo. Na realidade,
portanto, o valor ‘artístico’ das obras de arte depende, tal como seu valor mercantil, da maior ou menor publicidade que delas é feita. Em suma, tal como
sucede no caso de refrigerantes, sorvetes, cuecas, etc. (SEGAWA, 2008).
Descontente com os rumos que a arte havia tomado, Carlos Prado também
passou a questionar, nos anos 1960, o que ela era e para quem se destinava. Contrário à ideia de que arte é sinônimo de elitismo, conhecimento para poucos,
passou a entrevistar pessoas dos mais variados níveis sociais. Notou que a maioria
desculpava-se, quase de imediato, quando solicitada a opinar sobre determinada
obra, evocando o bordão “eu não entendo de artes plásticas”. Na opinião do
artista, isso era quase como um pedido de perdão por estar se metendo em uma
seara que acreditavam ser propriedade exclusiva dos “entendidos em arte”, ou
seja, pessoas com cursos universitários, que produziam os tratados, ensaios,
monografias, artigos ou proferiam cursos e conferências sobre o assunto, passando a explicar sua significação e razão de ser.
Prado ainda fez questão de ressaltar que as pessoas, de modo geral,
demonstravam pouco interesse por mostras de arte, museus, galerias ou salões.
Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960
| 325
Muitas vezes, o acesso a esses eventos era gratuito ou a um baixo custo e mesmo
assim, não apresentavam grande público em seus corredores, chegando a ser
ínfimo quando comparado aos frequentadores de cinemas, que têm preços mais
elevados. Finalmente, concluiu que se o interesse pelas artes plásticas tivesse
sido grande, constantemente estes locais estariam repletos de visitantes. Apenas
uma minoria, denominada elite, por elas se interessavam. Assim, uma nova
questão surgia: tentava-se sempre relacionar o público interessado pelas artes
plásticas com pessoas provenientes de uma classe social economicamente
privilegiada. De acordo com ele:
Há quem considere essa minoria como sendo uma elite. É preciso porém que
nos entendamos sobre o que vem a ser uma elite. O que normalmente se entende
por essa palavra, é a nata de uma sociedade, isto é, os expoentes máximos de
uma certa cultura, a cúpula de uma estrutura cultural. Para que possa haver uma
cúpula, porém, é preciso que exista uma estrutura que a sustente. Para que a
minoria interessada nas artes plásticas pudesse merecer o título de elite, seria
portanto preciso que ela fosse a nata de um público interessado em artes
plásticas. Uma minoria não tem o direito de se considerar uma elite, porque se
interessa por uma certa atividade humana (SEGAWA, 2008).
E assim, após dez anos sem produzir (1960), Prado retomou as atividades
artísticas, possivelmente, porque, na década de 1970, ocorreu “uma nítida
retração da produção e recepção da crítica de arte” (BARROS, 2008:2). Logo no
início da década, Mário Pedrosa havia deixado o Brasil, passando a viver exilado
no Chile, durante o governo de Salvador Allende. Além disso, houve a consagração máxima da Semana de Arte Moderna por ocasião das comemorações de
seu cinquentenário, em pleno período da ditadura militar, tornando-se um
fenômeno de interesse oficial e popular. O Modernismo, por sua vez, virou tema
de documentários, filmes de ficção, peças de teatro, etc. O Instituto Nacional do
Livro publicou a obra completa de Mário de Andrade. A Revista Cultura dedicou
um número inteiro ao Modernismo, com ensaios de renomados pesquisadores.
O Museu de Arte de São Paulo, contando com o apoio de Pietro Maria Bardi,
montou uma grande exposição, retomando as obras de artistas ligados à Semana
de Arte de 1922 (COELHO, 2012:20). Ou seja, a valorização dos modernistas só
se consolidou no início dos anos 1970, quando passou a fazer parte do calendário
oficial da cultura brasileira e foi visto como uma das mais valiosas tradições.
326
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Graziela Naclério Forte
Em fins da década de 1960, Carlos Prado retomou a técnica da sobreposição
de imagens em seus trabalhos, a qual havia adotado ainda nos anos 1950, onde
os elementos se organizam uns por cima de outros para expressar uma interação.
Nessa época, a Secretaria da Fazenda do Governo do Estado de São Paulo adquiriu a tela Peixe (1946), que foi transferida em 1971 para o acervo do Palácio
Boa Vista, localizado na cidade serrana de Campos do Jordão. A justificativa
para a compra é o espírito nacionalista da obra que identifica o momento cultural
do Modernismo, ao lado de peças de mobiliário artístico colonial brasileiro e
imagens sacras do século XVIII.4
Em 1976, a antiga Pinacoteca Municipal de São Paulo, hoje transferida para
o Centro Cultural São Paulo, adquiriu do Museu de Arte Moderna de São Paulo,
através da Secretaria de Cultura, a obra Zeolandro (1940). Já Varredores (1935)
pertencia ao colecionador, ex-presidente do Museu de Arte Moderna de São
Paulo e empresário Aparício Basílio da Silva, quando foi exposta na Bienal de
1985. Depois ela foi negociada e passou a fazer parte do acervo de MASP, onde
se encontra até agora. Assim, as aquisições do Palácio Boa Vista, do MAM e da
Pinacoteca Municipal deram-se também na década de 1970. Em comum, esses
trabalhos assinados por Carlos Prado e que se encontram nos acervos de museus
e instituições paulistas são datados das décadas de 1930 e 1940.
Obras de Prado voltaram a figurar ainda em mostras coletivas. Em maio de
1976, o Museu de Arte Moderna de São Paulo realizou uma retrospectiva.
Portanto, o afastamento dele do sistema das artes plásticas, no nosso entender,
deu-se em uma época de transformações significativas. A mudança nas relações
entre os artistas e o público, a expansão da cultura de massa e a implantação da
sociedade de consumo, o aumento no número de instituições (museus, mostras
coletivas), a atuação cada vez maior dos críticos de arte e a diversificação das
linguagens, além da reconfiguração dos discursos artísticos em defesa da Arte
Abstrata e, paulatinamente, da Arte Contemporânea foram se estabelecendo como
uma nova classificação artística. Todos estes aspectos podem explicar em parte
a decadência de Carlos Prado e a opção pelo afastamento do sistema das artes
plásticas e, principalmente, as dificuldades que teve no sentido de retomar a
carreira dentro de um novo contexto.
4. Juliana Rodrigues Alves, responsável pela documentação e informação do acervo
artístico-cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo, em depoimento à
autora, em 27 maio 2011.
Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960
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Arquivo Carlos Prado, São Paulo, Pasta II, Capítulo I – “Eu não Entendo de Arte”,
de 1966 até fins da década de 1980.
SEGAWA, Hugo. “A Entrevista”. In: Carlos Prado. Memórias sem Palavras. 2ª. ed.
São Paulo, FAU-USP, 2008.
BARROS, José D´Assunção. “Mário Pedrosa e a Crítica de Arte no Brasil”. ARS,
São Paulo, vol. 6, no. 11, 2008, p. 2.
COELHO, Frederico. A Semana sem Fim. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2012, p.
20.
| 329
A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em
igrejas da Cidade de São Paulo: restaurações
MARIA LUCIA BIGHETTI FIORAVANTI*
PERCIVAL TIRAPELI**
Resumo: O estudo das pinturas franciscanas da cidade de São Paulo, dos séculos
XVIII e XIX, foi o foco de minha pesquisa de mestrado. Proponho apresentar
uma reflexão sobre a questão dos restauros em produções pictóricas coloniais,
especialmente as de 2007 na igreja Conventual de São Francisco e a que teve
início em 2010 na Capela da Venerável Ordem Terceira do Seráphico Pai São
Francisco.
Palavras-chave: Arte Sacra. Patrimônio. Pintura. Franciscanos.
Franciscan Painting from XVIII and XIX Centuries in Churches of
Sao Paulo City: Restorations.
Abstract: The study on paintings in Franciscan churches in the City of Sao Paulo
during the period from the last decades of 18th century and mid-19th century,
which was developed as my master research. I propose to present a reflection
about the painted ceilings and paintings of Conventual Church of Saint Francis
during its restoration (2007) and the restoration at the Venerable Third Order
of Saint Francis, that begans at 2010.
Keywords: Art. Heritage. Sacrum. Painting. Franciscans.
** Mestre em Estética e História da Arte pelo Curso de Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte MAC/USP, 2007; Curso de Pós Graduação
em História da Arte, da Fundação Armando Alvarez Penteado, FAAP, 2002; Educação
Artística pela Faculdade Santa Marcelina 1977; Participa do Grupo de Pesquisa Barroco
Memória Viva, coordenado pelo Prof.Dr. Percival Tirapeli.
** Professor titular de História da Arte Brasileira, UNESP. Doutor e Mestre em
Artes Visuais pela ECA/USP em 1984 e 1988 respectivamente.
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Maria Lucia Bighetti Fioravanti
O assunto de minha pesquisa de mestrado engloba os forros pintados e os
quadros de três edificações paulistanas: a igreja Conventual de São Francisco, a
Capela da Venerável Ordem Terceira do Seráphico Pai São Francisco e a igreja
do Mosteiro da Luz. Nesta última, realizei um estudo inédito da pintura do teto
do coro, dada a sua inacessibilidade, por estar localizado dentro da clausura das
irmãs Concepcionistas, que habitam o convento.
A análise das pinturas e dos documentos existentes nos arquivos dessas
instituições permitiu estabelecer os motivos que levaram os religiosos da Ordem
Franciscana a se tornarem seus comitentes e muitas vezes seus próprios autores.
Investiguei as fontes destas pinturas, bem como a mentalidade que transitava no
universo em que essas obras extremamente simbólicas foram produzidas. Pude
também situar dentro de um período de tempo a datação da pintura do teto do
coro da igreja da Luz.
Por uma feliz circunstância, naquela ocasião, quase no final de meu trabalho,
quando todas as pinturas já estavam fotografadas, foi iniciada uma reforma com
restauração na igreja conventual de São Francisco, o que veio revelar partes pintadas do teto da capela-mor que estavam encobertas de tinta branca e resgatar
uma pintura anterior no teto da nave.
Comparando as fotos que eu já havia feito com as imagens que estavam surgindo à medida que os trabalhos dos restauradores avançavam, pude avaliar que
o que estava apresentado anteriormente era resultante de uma intervenção mais
recente; na verdade, uma perversão da verdadeira obra artística executada após
o incêndio ocorrido em 1880.
Nota-se essa questão na mesma cena pintada no teto da nave, localizada
junto ao arco-cruzeiro, antes e após do restauro de 2007.
Fig. 1
Aqui a foto mostra a pintura como estava antes
da restauração de 2007 (fig. 1), perto do arcocruzeiro. Porém, após a restauração foram revelados
elementos dessa composição que estavam escondidos
pelas camadas de tinta (fig. 2).
Assim, também se revelaram os raios na cor
vermelha que emanam do menino Jesus, que incidem
diretamente na parede lateral da igreja, onde hoje
A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da Cidade ...
| 331
aparecem pintados dois frades (fig.3) prostrados por
terra e que anteriormente haviam sido encobertos por
tinta azul.
Fig.2
Esses dados podem nos trazer nova luz sobre o
significado da iconografia. Quanto ao estilo e composição, pode-se dizer que além da revelação
iconográfica, que antes se achava oculta, evidenciouse toda a expressão e leveza da pintura, que havia
perdido a suavidade dos traços e das cores originais.
Referente à autoria, os relatórios da equipe de
restauradores, baseados em fontes de pesquisa como documentos e atas da
Arquidiocese de São Paulo, afirmam que os retábulos da igreja foram montados
nas dependências da Faculdade de Direito de São Paulo, pelo artista Franz Xavier
Rietzler, responsável também pela pintura a óleo do teto.
Fig.3
[...] Francisco Xavier Rietzler,
escultor premiado do Instituto
Artístico de Munique, foi contratado
para executar um altar em carvalho
policromado e dourado; três grandes
imagens (São Pedro de Alcântara
São Domingos e a Santíssima Trindade); pintura a óleo do teto segundo esboço
apresentado pela Ordem, entre outras artes.
Quanto à pintura anterior, de 1951, estava assinada por Franz Bäthe.
Aconteceram obras na igreja como registra o texto abaixo que se encontra a
página 145, ano de 1951, do Livro de Crônicas de 1908, sobre a reforma efetuada
na igreja conventual de São Francisco, no ano de 1951.
[...] No decorrer deste ano de 1951, passou o interior da nossa Igreja de São
Francisco por uma ótima reforma. O pintor Francisco Bäthe pintou o fôrro,
as paredes e o púlpito e os doirou, lavou e pintou o altar-mor doirando-o em
parte tendo deixado sem alteração o ouro velho que é mais precioso.
332
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Maria Lucia Bighetti Fioravanti
Este fato gerou o seguinte questionamento: poderia esta assinatura referirse ao autor de uma pintura ou teria havido apenas uma restauração ou mesmo
simples retoques, como nos sugere Hanna Levy: “Nos tempos modernos, uma
inscrição, gravada na própria obra, indica às vezes a última restauração feita”.
(LEVY, 1942, p. 22)
Nesse caso fica a questão para nossa reflexão: Será que Franz Bathe pintou
por cima das pinturas, existentes desde a reforma que se seguiu ao incêndio de
1880, tendo feito um trabalho de restauração?
São episódios que causam surpresa ao pesquisador e que se constituem em
pontos importantes para que outros pesquisadores deem prosseguimento ao
trabalho com a finalidade de conseguir mais esclarecimentos.
Dando continuidade à pesquisa, a partir de 2010, junto ao acervo da
Venerável Ordem Terceira de São Francisco sob a coordenação do Professor
Percival Tirapeli, por ocasião do restauro que permitiu a reabertura da igreja para
o público em 2014, pude ter acesso a vários documentos. Esta análise da
documentação e das pinturas que foram restauradas ocasionou uma série de
questões.
A primeira delas envolve a autoria da pintura dos sete painéis que compõem
o zimbório (fig. 4) da capela dos terceiros e se baseia em pagamentos que constam
do Livro de Recepção e Despesas (1798/99), fotos feitas em 2006 e do Relatório
de 1949-1952, fotografado em 2013.
Fig.4
Durante os trabalhos no acervo em 2013, surge a notícia de que,
em decorrência do grande restauro
que estava ocorrendo na igreja, o
professor Percival Tirapeli constatou, no zimbório (Fig. 4), a existência de um tipo de madeiramento
não compatível com a época em que pintura foi datada, século XVIII, o que
colocou em dúvida tanto a autoria atribuída, por Frei Ortman (1951, pp.334-335)
primeiramente, a José Patrício da Silva Manso e depois a Manuel da Costa Vale
ou Manoel Costa (FIORAVANTI, 2007, p.311), conforme apresentei na pesquisa
em 2007.
A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da Cidade ...
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Porém, ao prosseguir com o trabalho junto
aos arquivos, justamente foi encontrado um
relato,1 que foi fotografado em 2013, sobre reformas feitas no telhado da instituição no ano de 1950
(fig. 5). O documento descreve o péssimo estado
da cúpula e afirma que as pinturas não puderam ser
salvas. No ano de 2014, pude fotografar novos
registros que se referem à reforma da cúpula em
1970, 1971 e 1973.
Fig. 5
Outra dúvida aparece quando o relatório de 1970 se refere a 12 painéis da
cúpula. Quais seriam? O zimbório é octogonal e construído sobre uma base de
pilão quadrada e possuía, até 1799, dois painéis a mais, que, naquela ocasião,
foram substituídos por vidraças (ORTMANN, 1951, pp.334-335). Hoje se veem
apenas seis painéis em forma de trapézio e um circular central!
Outro ponto importantíssimo para esclarecer.
Nova descoberta abriu caminho para mais uma série de problematizações.
Foi possível ter acesso e fotografar, em 2010, uma matriz litográfica (Fig. 6).
Trata-se de uma peça de pedra gravada representando São Francisco entregando
as regras da ordem a dois santos terciários, Lucio e Bona, rodeados de várias
figuras, tendo no verso diversos modelos de emolduramento além da palavra
“Porto” (Fig. 7).
Fig. 6
Fig. 7
1. Arquivo V. O. T. S. F. Relatório Geral da Fraternidade 1949-1952. Caixa de
Documentos. Livro nº 227. P.26
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Maria Lucia Bighetti Fioravanti
A análise desse objeto remeteu à pintura do teto da nave da igreja dos
terceiros.2 que apresenta a mesma cena, embora contendo apenas as três figuras
centrais e de forma espelhada, surgiram então vários questionamentos:
• A encomenda da pintura poderia ter sido baseada numa gravura gerada por
essa matriz?
• A palavra PORTO gravada no verso seria uma referência à cidade portuguesa?
• Foi possível observar também que a pintura da igreja está contida dentro de
uma moldura de formato oval. Estaria obedecendo a um dos modelos de
contornos desenhados no verso da pedra?
Esse episódio, de acordo com Hanna Levy (1942, p. 7), pode ser considerado como uma fonte, que indicaria o modelo apresentado pelo comitente ao
pintor o que levanta a questão: Poderia essa matriz ter sido trazida de Portugal
como era costume? Da cidade do Porto?
Em 2014, com o avanço dos trabalhos de restauração tanto do edifício, seus
retábulos, imagens e quadros, oito pinturas foram encaminhadas para o atelier
de Julio Moraes e retornaram totalmente diferentes. São elas: Morte de São
Francisco (lado do Evangelho), Renúncia de São Francisco aos seus direitos
de Herdeiro (lado da Epístola), Divina Justiça (lado do Evangelho), Indulgência
da Porciúncula (lado da Epístola) (fig. 8 e 9), Anunciação, Nascimento,
Apresentação e Adoração dos Magos (quadros da capela da Conceição).
Em meu trabalho de mestrado, fotografei todas as pinturas e tomei por base
as descrições e atribuições registradas por Frei Ortman em seu livro: A historia
da Antiga Capela da ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São
Paulo. Porém, diante dos avanços atuais, do surgimento de traços, cores e até
personagens que estavam encobertos por camadas de tinta que o restauro retirou,
a pesquisa se vê diante de novas possibilidades e da necessidade de se refazer
essas leituras, com novas reflexões sobre autoria e datação.
2. Atribuida, por alguns autores, a José Patrício da Silva Manso, entre os anos de
1790-1793. (ORTMANN, 1951, p.93 e ARAÚJO p.122)
A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da Cidade ...
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Fig.8. Anterior ao restauro
Fig.9 Após o restauro
Indulgência da Porciúncula
Na continuidade da pesquisa acompanhando os restauros e trabalhando em
arquivos, percebe-se que podem surgir praticamente outras pinturas, embaixo
das camadas retiradas, sejam elas de verniz e veladuras do tempo, sejam elas
retoques feitos por mãos inábeis.
Também convém salientar a importância do conteúdo de documentos,
porque muitas vezes surgem registros inesperados que subvertem aquilo que já
era dado como certo. Nas duas ocasiões citadas, surgiram traços, cores, suportes
que trouxeram uma série de indagações e problematizações envolvendo autoria
e datação, que muitas vezes já tinham sido confirmadas até por registros existentes
em Livros dos Arquivos.
Uma pesquisa nunca está definitivamente terminada, pois, embora após um
percurso de averiguação e reflexão possam ser colocadas algumas considerações,
outras questões permanecem em aberto para serem investigadas especialmente
as que derivam das descobertas pós-restauros. Porém, em decorrência do trabalho
foi possível considerar a singularidade da arte franciscana em São Paulo, delineada por características próprias como a questão ascética que se reflete na forma,
pelo despojamento que faz parte do pensamento franciscano, aliado às dificuldades técnicas de produção artística que resultaram em composições bem diferenciadas das apresentadas pelos locais mais desenvolvidos da Colônia.
É uma arte que possui a emoção contemplativa da mentalidade franciscana,
ou seja, uma expressão de êxtase místico, porém, mais contida e apresentada de
forma despojada.
336
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Maria Lucia Bighetti Fioravanti
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno de Monte Carmelo. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1944.
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Franciscana dos séculos XVIII e XIX na cidade de São Paulo: Fontes e
Mentalidade. MAC/USP, 2007.
LEVY, Hanna. A pintura colonial no Rio de Janeiro: notas sobre suas fontes e alguns
aspectos. Revista do SPHAN. Rio de Janeiro, n. 6,1942.
LEVY, Hanna. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do SPHAN. Rio de
Janeiro, n. 8, 1944.
ORTMANN, Frei Adalberto O. F. M. História da antiga capela da Ordem Terceira
da Penitência de São Francisco em São Paulo. São Paulo: DPHAN, 16,1951.
RÖWER, Pe. Dr. h. c.Frei Basílio O.F.M. Páginas da história Franciscana no Brasil.
São Paulo: Vozes, 1957.
TIRAPELLI, Percival; PFEIFFER, Wolfgang. As mais belas igrejas do Brasil. São
Paulo: Metalivros, 2000.
TIRAPELLI, Percival; SALOMÃO, Myriam. Pintura colonial paulista. In:
TIRAPELLI, Percival (Org.). Arte sacra colonial. São Paulo: EDUNESP, 2001.
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Coleção especial de livros de artista da biblioteca
do Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
LAUCI BORTOLUCI QUINTANA*
Resumo: Trata sobre a coleção de livros de artista da Biblioteca do MAC USP.
Aborda os principais pontos da inserção de uma nova coleção em uma biblioteca
de museu, principalmente enfocando sua publicidade em banco de dados, para
que a coleção possa ser descoberta e utilizada pelos usuários. Este texto traz a
memória do processo de incorporação desta nova coleção ao trabalho da
Biblioteca e sua inserção no sistema de catalogação automatizada, fazendo com
que a tecnologia seja a via de disseminação de coleção. Serão abordados os tipos
de material, seu tratamento e a metodologia aplicada. Será dada ênfase ao fato
de que a nova coleção está situada em uma biblioteca com o caráter de pertencer
a uma universidade pública, além também de ser uma biblioteca de museu,
tendo que responder aos anseios museológicos e universitários.
Palavras-chave: Livro de artista. Bibliotecas de arte. MAC USP.
Special Collection of Artist’s books of the Museum of
Contemporary Art, University of São Paulo
Abstract: The text deals with the collection of artist’s books from the Library of MAC
USP. It brings the main points of insertion of a new collection in a museum library,
mainly focusing their advertising on database so that the collection can be discovered
and used by the society. This text also brings the memory of the process of
incorporation of this new collection to the activities of the Library, and their inclusion
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e Historia
da Arte da Universidade de São Paulo.
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Lauci Bortoluci Quintana
in automated cataloging system, making the technology the aim of spread of an
unknown collection. We will discuss the types of material, its treatment and the
methodology applied. Emphasis will be given to the fact of the new collection is
located in a public university library, and also a museum library, having to respond
to the museums needs.
Keywords: Artist’s books. Art Library. MAC USP.
Introdução
A coleção especial de livros de artistas foi iniciada na Biblioteca MAC USP
no ano de 2011, com o início dos trabalhos relacionados ao recebimento, ao
tratamento técnico descritivo e à disponibilização do material ao usuário.
Este texto traz a memória do processo de incorporação desta nova coleção
ao trabalho da Biblioteca e sua inserção no sistema de catalogação utilizado para
os documentos já existentes. Serão abordados os tipos de material, seu tratamento
e a metodologia aplicada.
Livros de artista no Museu de Arte Contemporânea
O MAC USP é considerado um espaço de experimentação nas artes plásticas
e visuais brasileira e internacional. É notória sua capacidade de assimilar,
aglutinar e proliferar as novas tendências e ser receptáculo de novas ideias, artistas
e fenômenos culturais. Nesse sentido, sua Biblioteca também, como um
organismo vital, acompanha os passos de seu caminhar, colaborando na
disseminação dessas novas ideias, com a adição de ser sua tarefa fazer com que
esse conceito de experimentação tome forma documental.
Iniciar novas coleções que surgem no cenário artístico, faz-se como nova
empreitada de trabalho, desafiando os conceitos tradicionais da Biblioteconomia
e da Documentação. Reportemo-nos a Douglas Crimp, que ao realizar pesquisa
sobre meios de transporte, encontrou o livro de fotografias do artista Ed Ruscha,
intitulado “Vinte e seis postos de gasolina” (fig. 1), classificado na rubrica “meios
de transporte”. Nessa ocasião, ele comentou que achava engraçado que o livro
fora mal catalogado e agrupado junto a livros sobre automóveis, estradas, etc.
Imaginou que a bibliotecária desconhecia o fato do livro ser sobre arte, uma vez
que não fazia nenhum sentido o livro de Ruscha estar dentro das categorias,
Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte ...
| 339
segundo as quais os livros de arte são catalogados. Nisso verificamos, justamente,
o mérito desse artista O fato de não haver nenhum lugar para “Vinte e seis postos
de gasolina” no sistema de classificação já era indício de seu radicalismo em
relação às formas instituídas de pensamento.
A arte conceitual quebra expectativas arraigadas e até mesmo rompe com
paradigmas estabelecidos de pensamento, criando um desconforto intelectual ao
espectador. Seja em intervenções no ambiente ou via projetos que envolvem o
telespectador, o que importa ressaltar é o predomínio da arte e do pensamento
sobre o objeto. Nesse sentido, o livro de artista, como uma dimensão da
publicação de artista, traz intrínseca a teoria da arte que o abriga, qual seja a arte
conceitual.
Os livros de artista do MAC USP, quando do início das atividades do Museu,
em 1963, foram catalogados como obras de arte caso tivessem sido originados
de exposições, corroborando o “valor de exibição” como fato norteador de sua
inserção no acervo. Já outros trabalhos semelhantes, uma vez que não tivessem
esse mesmo princípio de origem, ou seja, não tivessem sido participantes de
exposições, não seriam então catalogados como obras, permanecendo num limbo
de “não lugar”, conceito definido por Marc Augé, utilizado aqui exatamente pela
falta desse lugar filosófico e conceitual. Assim, o que se assistiu foi o
encaminhamento dos materiais à biblioteca, sem qualquer princípio de formação
de coleção. Isso não foi prerrogativa do MAC USP, mas da situação da própria
arte conceitual nos museus e do desconhecimento do tratamento desses materiais
tão estranhos ao mundo bibliotecário.
A busca de um “lugar” para a coleção de publicação de artista, retirando-a
desse limbo conceitual, nos coloca na posição de fomentar a práxis que corrobore
com a teoria até então esquematizada. A coleção, enquanto item documentário,
passa então a ter seu lugar estabelecido no esquema de trabalho bibliotecário.
Mas hoje, com um novo entendimento para os materiais artísticos, o item
então classificado como obra de arte no formato livro deixa de fazer parte das
obras de arte deste Museu e retorna à Biblioteca que primeiramente o tinha recebido, há quarenta anos atrás, agora fazendo parte de um novo olhar, de um novo
entendimento desse suporte, enquanto novo recurso documentário e artístico.
A conceituação e titulação dos livros de artista é parte de um todo maior,
no qual estão inclusas todas as publicações de artista. Esse termo, por sua vez,
não faz referência somente ao suporte livro, mas sim ao suporte impresso e seu
caráter múltiplo e distributivo, pressupondo uma edição, tiragem e circulação.
340
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Lauci Bortoluci Quintana
Essas publicações são as circuladoras das novas poéticas dos novos artistas.
Quebramos aqui paradigmas artísticos e filosóficos até então vigentes, como a
questão da unicidade, valoração e maleabilidade da obra. Essas novas noções,
ou estruturas de pensamento, são atualizadas por produções de tiragens múltiplas,
possibilitando ao trabalho artístico uma porosidade em relação ao seu caráter
institucional e geográfico.
Receber esses novos formatos se constitui no ponto crucial para o sucesso
da disseminação desta informação. Geralmente, essas produções se configuram
em meio impresso, com tiragens limitadas, por meio das artes gráficas, imagens
ou textos. Projetos artísticos se utilizam desses novos formatos, configurandoos em novos trâmites de edição, publicação, distribuição e circulação. Interessante
observar que nem todas as publicações de artistas possuem o formato tradicional
de livro. O meio impresso (xerox, laser, serigrafia, selos, cartões postais, gravuras,
folhetos, adesivos, cartas, cédulas, cartazes, jogos, mapas) também se presta às
dimensões interdisciplinares da publicação, ou seja, meios em geral, sonoros e
midiáticos, inclusive, colocam-se como veículo das poéticas dos artistas na
disseminação de sua obra, seu projeto artístico. O conceito de raridade do trabalho
vem também para questionar o caráter da obra e sua circulação, quebrando
paradigmas até então estáticos da obra de arte.
Importante notar que o início de uma coleção, e seu tratamento, em especial
uma coleção com esse caráter conceitual, vem atrelado ao trabalho de um curador
que avalize sua pertinência na coleção. Neste trabalho, além de demonstrar o
esquema de inserção e início de uma nova coleção, é importante ressaltar que o
trabalho do curador da coleção traz à tona a práxis pensada e teorizada sobre a
questão do lugar da arte conceitual, tanto nos museus quanto nas bibliotecas.
A questão levantada pelas pesquisas sobre o assunto abrange três momentos
distintos: a obra de arte e a distinção entre ela e sua própria documentação; como
dar inteligibilidade à obra de arte; e por fim, como encontrar o locus da coleção
e fazer com que as obras sejam opções de acolhimento do publico no museu.
Essas três questões permeiam a própria arte contemporânea e se colocam como
temas importantes no processo de identidade dos trabalhos documentários.
Para esta Biblioteca e este Museu, as questões nos levam a três respostas
que se completam: a obra de arte e sua distinção entre ela mesma e sua documentação, ou seu registro, é demonstrada pela capacidade de transformação dessa
obra em registro catalográfico por meio de base de dados desenvolvidas para tal
(ver anexo). A inserção de catálogos na internet é o meio utilizado para que essa
Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte ...
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obra seja imbuída de inteligibilidade, fazendo com que os meios tecnológicos
sejam a ferramenta, com a qual se derrubem as fronteiras entre o material desconhecido e o público. A presença desses materiais na internet, melhor dizendo,
de seus registros inteligíveis, é a única maneira que possuímos de trazer à sociedade a própria existência deles e de suas novas relações artísticas e sociais que
podem ser o instrumento de mudança de paradigmas na própria história da arte
contemporânea. A missão desta Biblioteca é a de lançar luz a uma coleção até
então desconhecida aos pesquisadores, iniciando um movimento que vise à
importância dessa documentação enquanto ferramenta que busque a mudança
na mentalidade instituída em relação à arte e ao lugar do artista enquanto produtor
de arte.
Tipos de aquisição
Detectar publicações de artista no próprio acervo da Biblioteca
Após detectar publicações de artista no próprio acervo da Biblioteca,
iniciamos o tratamento deste material, como, por exemplo, o catálogo de Marcel
Duchamp “The bride stripped bare by her bachelors even: a typographic
version”. Essa nova perspectiva fez com que o material fosse retirado da coleção
de livros circulantes e agrupado à nova coleção, a saber, a de livros de artista.
Material recebido da Divisão de Acervo do MAC USP
Iniciamos o tratamento de catalogação com o registro do material recebido
da coleção de livros de artista da Divisão de Acervo, o local por excelência das
obras de arte do Museu. Esse material foi então o primeiro a ser trabalhado, com
a elaboração da ficha matriz nos novos moldes, colocando-se a rubrica Livro de
Artista.
Material recebido em doação externa
Passamos, por fim, a receber material externo que inicialmente é avalizado
pela curadoria da coleção, a cargo da idealizadora da incorporação e tratamento
deste novo material, Profa. Dra. Cristina Freire. A proposta da curadoria da
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Lauci Bortoluci Quintana
coleção se dará não somente para avaliar o material externo que se apresenta
para tal, como também pelo próprio início da coleção com o já mencionado
catálogo de Duchamp.
Tratamento técnico
O início do tratamento técnico de qualquer material desta Biblioteca
acontece pela feitura da ficha topográfica – ou matriz – que é utilizada para, além
da descrição física do volume, receber o número de tombo de cada volume em
particular. Sendo o tombo chave única para cada volume físico, uma ficha pode
conter vários tombos e volumes, se o que ela contiver for o mesmo material.
Iniciou-se aqui o pedido formal ao Sistema Integrado de Bibliotecas da USP
(SIBi-USP) para a criação de uma sigla que unisse o material pertinente a esta
nova coleção. Uma das razões era que a rubrica permitiria que toda a coleção
fosse recuperada por um único cabeçalho.
Inclusão do titulo “Publicação de Artista”
A pedido da curadora da coleção, buscamos nos trâmites a possibilidade
da abertura de uma chave maior que abrigasse outros tipos de documentos, que
não somente os livros de artistas. As reuniões de curadoria nos levaram a solicitar,
então, a abertura da rubrica mencionada, Publicação de Artista, como coleção
especial. Isso significa que a coleção recebeu uma sigla em Sistema, intitulada
PAR, que agrupasse os livros como também outros materiais que pudessem, no
futuro, servir-se deste mesmo parâmetro de pensamento e contivessem outros
tipos de materiais como discos de vinil, CDs, DVDs, etc.
Nosso pedido passou, então, a explicitar a necessidade da existência desta
sigla PAR e que ela fosse a agrupadora de outras rubricas que porventura
viéssemos a necessitar.
Abertura da rubrica Livro de Artista
Após a abertura da coleção em sistema com a sigla mencionada, pedimos a
abertura do novo cabeçalho Livro de Artista dentro desta nova coleção siglada.
A abreviatura ficou estabelecida como “Liv. Art.”, tanto na etiqueta de chamada
e na ficha matriz, como no registro em sistema.
Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte ...
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Após esse procedimento, foi possível catalogar os novos materiais
colocando-os na coleção especial PAR, e dentro dessa, com a rubrica “Liv. Art.”.
Isso fez com que esse material ficasse logicamente separado da coleção circulante
de livros em geral. Nota-se que os livros da coleção circulante, que tratam do
assunto Livro de Artista, em seu contexto, não podem ser erroneamente
catalogados como livros de artista, visto esse ser seu assunto de interesse, mas
não se trata de um livro de artista, propriamente dito.
Conclusão
Esta comunicação não tem a pretensão de ser exaustiva sobre a descrição
dos trabalhos desenvolvidos pela Biblioteca para o acolhimento da nova coleção
de livros de artista. Esperamos que tenhamos conseguido descrever que o trabalho
não se encerra nos trâmites técnicos, mas, como o próprio material que trata, deve
estar sempre pronto a se descobrir, se modificar para a busca da sedimentação
de sua identidade documentária. O trabalho técnico não se finda nos esquemas
aqui encontrados para resolução do tratamento da coleção, mas, como a própria
coleção, tem que ser dinâmico e flexível, e ser capaz de mostrar que é possível
mudarmos as estruturas que estão dispostas, para que todos possam ter acesso a
esse desafio que estamos vivendo.
Referências bibliográficas
FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo. São Paulo: Iluminuras, 1999.
ROCHA, Michel Zózimo da Silva. Estratégias expansivas: publicações de artistas
e seus espaços moventes. Porto Alegre: Edição do Autor, 2011.
SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura á injuria na construção do livro de
artista. Porto Alegre: UFRGS, 1999. (Dissertação de Mestrado).
THURMANN-JAJES, Anne (Ed.). Manual for Artists’ publication (MAP):
cataloguing rules, definitons and descriptions. Bremen: Research Centre for
Artists’ Publication, 2010.
344
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Lauci Bortoluci Quintana
ANEXO A
LIVRO DE ARTISTA: EXEMPLOS DE MATERIAIS E REGISTRO
Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte ...
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Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja
Nossa Senhora da Paz com técnicas multiespectrais
para caracterização executiva
ELIZABETH A. M. KAJIYA*
REGINA A. TIRELLO**
Resumo: Este trabalho apresenta parte de pesquisa realizada no âmbito de curso
de mestrado em desenvolvimento, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura,
Tecnologia e Cidade da FEC-UNICAMP,1 voltado ao estudo de técnicas
artísticas de pinturas murais brasileiras; tomando-se como caso analítico os
afrescos realizados por Fúlvio Pennacchi (1905-1992) na Igreja N. S. da Paz,
em São Paulo – templo que o artista projetou e decorou entre os anos de 1940
a 1947. Pennacchi retoma a antiga arte do buon fresco, mas a reinterpreta criativamente, tanto no aspecto técnico como no estético, conforme demonstraram
resultados de estudos científicos de caracterização material realizados nos afrescos
da Capela do Hospital das Clínicas-SP.2 Dentro dessa perspectiva, o estudo da
** Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade da FECUNICAMP – [email protected].
** Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP –
[email protected].
1. Pesquisa de mestrado de Elizabeth Kajiya intitulada “Afrescos de Fulvio
Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz, SP: estudos diagnósticos para caracterização
executiva com técnicas multiespectrais, em desenvolvimento no Programa de Pós
Graduação “Arquitetura, Tecnologia e Cidade” da Faculdade de Engenharia Civil,
Arquitetura e Urbanismo da Unicamp.
2. TIRELLO, R. A. “Afresco de Fulvio Pennacchi na capela do Hospital das
Clínicas da FM-USP: estudos científicos de caracterização material e executiva”. In:
Revista CPC-USP, v.1, n.1, p. 103-120, nov. 2005/ abr. 2006.
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Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello
história da arte técnica, vida e obra do artista e as análises multiespectrais são
temáticas balizadoras para esta pesquisa.
Palavra-chave: Fulvio Pennacchi. Afrescos. Pintura Mural. Análises
Multiespectrais. Técnicas Artísticas.
Studies of frescos Fulvio Pennacchi in church Nossa Senhora da
Paz: diagnostic for the executive characterization using
multispectral techniques
Abstract: This work presents one part of the research developed under the Masters
course of the graduate program in Architecture, Tecnology and City of the FECUNICAMP¹, focused in the study of artistic techniques of Brazilian wall paintings.
Taking as analytical cases the Fresco paintings made by Fúlvio Pennacchi (19051992) in the Igreja N. S. da Paz church, in Sao Paulo; temple which the artist
projected and decorated over the years 1940 to 1947. Pennacchi reincorporates the
ancient art buon fresco, but creatively reinterprets its both technical and aesthetics
aspects, as it has been shown by cientific studies on the characterization of Fresco
walls in the chapel of the Hospital das Clínicas in Sao Paulo². Within this
perspective, study of the history of the artist’s technical art, life and work together
with multispectral analyses are the defining themes of this research.
Keywords: Fulvio Penacchi. Fresco Art. Wall Painting. Multispectral Analysis. Arts
Techniques.
Introdução
Esta comunicação apresenta alguns resultados de trabalho de mestrado,3 em
desenvolvimento Programa de Pós-Graduação Arquitetura, Tecnologia e Cidade
da FEC/Unicamp, voltado aos estudos de técnicas artísticas tradicionais de
pinturas murais brasileiras. Refletem temas pertinentes à linha de pesquisa
“Arqueologia da Arquitetura (AA) e Arqueometria: metodologias científicas
3. Pesquisa de mestrado de Elizabeth Kajiya intitulada “Os afrescos de Fulvio
Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz: análises multiespectrais e cientificas para
caracterização executiva de obras de arte”, em desenvolvimento no Programa de PósGraduação “Arquitetura, Tecnologia e Cidade” da Faculdade de Engenharia Civil,
Arquitetura e Urbanismo da Unicamp.
Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ...
| 349
aplicadas ao estudo histórico material da arquitetura e de obras de arte” do
GCOR – Arquitetura (Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura e Sítios
Históricos) da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da
UNICAMP,4 grupo que tem como objetivo realizar estudos analíticos de técnicas
artísticas e arquitetônicas tradicionais visando datação, caracterização e diagnósticos de estado conservação de materiais artísticos e construtivos.
O trabalho proposto para este evento trata de estudo de técnicas tradicionais
de pinturas murais adotadas no Brasil, especificamente das variantes da
tradicional pintura à fresco, tomando-se como caso analítico principal os murais
feitos na década de 1940 pelo pintor toscano Fúlvio Pennacchi (1905-1992),
radicado em São Paulo e ligado ao grupo Santa Helena.5 Consideramos que a
produção artística de Pennacchi, apesar de muito profusa e variada, ainda é muito
pouco estudada sob o ponto de vista técnico executivo, um aspecto que interessa
diretamente à conservação e ao restauro de obras de arte. No caso específico de
sua produção muralística, tal desconhecimento tem significado alterações grosseiras de textura, refletância e até de desenho de seus afrescos, conforme vimos
observando em obras de restauração empreendidas nos últimos tempos em São
Paulo, as quais priorizam a resultante estética em detrimento da manutenção da
autenticidade material.
Pennacchi é um artista singular no quadro da produção muralística paulista.
Retoma a antiga arte do “buon fresco”, mas a reinterpreta criativamente, tanto
no aspecto técnico como no estético, conforme demonstraram resultados de
estudos científicos de caracterização material já realizados por uma das autoras
sobre afrescos da Capela do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
USP (TIRELLO, 2006).6 As balizas metodológicas desse estudo se constituem em
referência processual para o desenvolvimento de análises multiespectrais e labo4. Site do GCOR-Arquitetura /Unicamp. Disponível em: http://www.fec.unicamp.
br/~gcor_arquitetura/. Acesso em: 15 fev. 2013
5. O Grupo Santa Helena, constituído na década 1930, por pintores paulistas e
estrangeiros, se reunia com o intuito de aprimoramento artístico, técnico e prático, teve
em sua formação os artistas: Rebolo Gonsales, Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Aldo
Bonadei, Alfredo Volpi, dentre outros.
6. TIRELLO, R..A: “Afresco de Fulvio Pennacchi na capela do Hospital das
Clínicas da FM-USP: estudos científicos de caracterização material e executiva”. In:
Revista CPC-USP v.1, n.1, p. 103-120, nov. 2005/ abr. 2006.
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Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello
ratoriais de nosso trabalho que visa à identificação das variáveis técnicas
executivas do conjunto de afrescos realizados por esse artista na Igreja Nossa
Senhora da Paz, no bairro do Glicério, em São Paulo, templo que Pennacchi projetou e decorou entre os anos de 1940 a 1946.
A idealização, o projeto e a construção da Igreja Nossa Senhora da Paz se
inserem no contexto da imigração italiana no Brasil e se integram aos objetivos
das ações da Congregação Carlistas para assistência social e espiritual de imigrantes. Os padres Carlistas iniciaram, em 1940, a construção da igreja no bairro
do Glicério com o apoio da elite paulistana (Figura 1).
Figura 1: Ao fundo terreno em 1938, doado pela família dos Condes Penteado para a
Congregação Carlista em prol da construção da Igreja de N. S. da Paz. Fonte: Acervo
da Igreja N. S. da Paz, 2013.
Tratam-se de vinte painéis murais de diferentes dimensões, com trinta e uma
cenas representando temas religiosos que se distribuem nos espaços da igreja e
convento (Figura 2). O fato dessas obras terem sido pouco alteradas ao longo
do tempo possibilita a realização de múltiplos estudos sobre seus materiais artísticos constitutivos e reconhecimentos importantes dos processos executivos deste
pintor, além do aprofundamento de pesquisas anteriores, contribuindo assim na
constituição de uma base de referências para melhor entendimento histórico,
técnico e artístico da obra de Pennacchi e também de outros artistas que produziram afrescos no Brasil na primeira
metade do século XX.
Figura 2: À esquerda, Vista geral das
Capelas laterais da Igreja Nossa Senhora
da Paz. Acervo: Elizabeth Kajiya, 2012. À
direita, um dos vários croquis de estudos
da decoração das capelas, realizado pelo
artista. Acervo: Igreja Nossa Senhora da
Paz, s/d.
Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ...
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Para observação da morfologia superficial das pinturas da Igreja Nossa
Senhora da Paz, entendida como texturização da argamassa, marcas de jornadas
e incisões características do artista, vem sendo adotada a seguinte instrumentação:
documentação fotográfica com luz visível (detalhamento técnico), luz rasante
(morfologia/texturização) e radiação ultravioleta (identificação de alterações ou
emprego de materiais estranhos à técnica original e imperceptíveis a olho nu)
(TIRELLO , 2006), que gerarão mapas sínteses das características picturais
distintivas dos afrescos estudados.
Pretende-se que o resultado final desta pesquisa possa ir além da mera
aplicação de técnicas analíticas, hoje, colocadas a serviço da conservação de bens
culturais. Em perspectiva multidisciplinar, tenciona-se aprimorar procedimentos
metodológicos de avaliação dos objetos artísticos que possam efetivamente subsidiar o trabalho de pesquisadores, historiadores, curadores e conservadores/restauradores que se dedicam ao estudo da muralística brasileira.
O artista Fulvio Pennacchi
Fulvio Pennacchi foi um artista plural. Pintor, desenhista, muralista e ceramista, Pennacchi imigrou para a cidade de São Paulo, em fins de 1929, onde viveu
até sua morte em 1992. Nascido em 1905 na Itália, Villa Collemandina, na
província de Lucca, região da Toscana, inicia seus estudos superiores na “Real
Academia de Arte Augusto Passaglia” (PENNACCHI, 2009). Documentos encontrados no decurso dessa pesquisa contradizem os defensores da tese de ser o artista
um autodidata, pois demonstram que sua formação é erudita, sendo graduado
em Licenciatura – Decoração Mural.
Inicia suas atividades acadêmicas ainda no ano de sua formação, em 1928,
quando substitui como professor na Academia seu mestre e orientador o pintor
Pio Semeghini (1878-1964).7 A teoria aplicada deste mestre torna-se influência
para o artista Fulvio Pennacchi e sua obra, como também o movimento do “Retorno à Ordem”8 que surge entre as renovações que arte italiana experimenta nos
7. Pio Semeghini (1878- 1964),pintor desenhista, mestre e orientador de Pennacchi.
Disponível em http://www.fulviopennacchi.com/d20_antonio.html. Acesso: 21/03/2012.
8. O “Retorno a Ordem” “corresponde” é expressão usada amplamente em toda
Europa para expressar uma reação às experimentações das vanguardas artísticas (pinturas
cubistas, futuristas e metafísicas)com reabilitação da dicção realista, da tradição e da
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Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello
primeiros decênios de 1900 (PENNACCHI, 2002). O artista ainda estudante da
academia executa em caráter experimental, os primeiros murais com técnica a
tempera,9 em algumas casas na região de Gargagnana – Lucca. Entre essas
pinturas murais, a têmpera e afresco, o artista tem uma fase intermediária com
as pinturas murais a óleo, uma técnica bastante adotada no Brasil de então.
(PENNACCHI, 2002).
Segundo Zannini (1991), em São Paulo, Pennacchi integra o “Grupo Santa
Helena”10 e, nos dez anos seguintes, suas pinturas murais tornam-se bem aceitas,
principalmente entre representantes da alta sociedade ítalo paulistana.11
No ano de 1947, realiza dois afrescos “A ceia de Emaús” e a “Anunciação”
(Figura 3), na Capela do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
(TIRELLO, 2005/2006), mesma época em que o artista esteve envolvido com
projeto e execução do majestoso ciclo de
afrescos que escolhemos como objeto de
estudo de mestrado.
Figura 3: “Anunciação” à direita, “A ceia em
Emaús”. Cópia fotográfica do estudo em aquarela
sobre papel, 1946, de Fulvio Pennacchi, para o
afresco da Capela do Hospital das Clinicas da
FMUSP. Fonte: Regina Tirello.
história, e da fidelidade figurativa, da celebração áulica e dos valores culturais nacionais
de cada país.
9. Na técnica à têmpera podem ser utilizados diversas emulsões aglutinantes, as
quais determinam o tipo de têmpera. Nessas emulsões são misturados líquidos aquosos
com substâncias oleosas, gordurosas, cerosas ou resinosas. (MAYER, 1996, p. 289).
10. Sem programas preestabelecidos, o grupo Santa Helena surge na década 1930,
por pintores paulistas e estrangeiros que se reúnem com o intuito de aprimoramento
artístico, técnico e prático. Participaram deste grupo: Rebolo Gonsales, Mário Zanini,
Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, dentre outros. Alguns artistas usam salas
como ateliê no Palacete Santa Helena, antigo edifício na Praça da Sé, em São Paulo, a
partir de meados de 1934. Em 1971, o prédio já em decadência foi demolido para dar
lugar à nova estação Sé do metrô.
11. São realizadas as seguintes pinturas nas residências de: Rubens Filizola,
“Colheita de Uva”; na de Carlos Botti, “A Última Ceia”; na do Engenheiro Carlos Botti,
“A Visita”; na de Galileo e Plínio Emendabili, “Fazendo o Pão”, “Colheita de Uva”,
“Sagrada Família”, “Madona com menino”, “Madona”; na do Comendador Alberto
Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ...
Figura 4: à esquerda. Esboço do Projeto
Pennacchi e Petitni, 1939. Fonte: Acervo
da Igreja N. S. Paz.
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Figura 5: à direita. Fachada interna
Lateral – Estudo da decoração, 1939.
Fonte: Acervo da Igr. N. S. Paz.
Os anos dedicados à “Igreja de Nossa Senhora da Paz” vão de 1940 a 1947,
quando projeta a arquitetura e as pinturas artísticas (Figuras 4, 5), executando
os 20 (vinte) afrescos que se constituem no maior conjunto e pinturas brasileiras
realizadas com esta técnica difícil e tradicional.
Figura 6: Pintura afresco do Altar-Mor,
1942. Ao centro Cristo Crucificado,
abaixo nas laterais as cenas da
“Natividade”. Foto: Elizabeth Kajiya,
2013.
Figura 7: Pintura afresco à cima
Nascimento de N. Senhora, e abaixo o
Nascimento do Menino Jesus, 1942.
Foto: Elizabeth kajiya, 2013.
Bonfiglioli, “Colheita da Uva Numa Macieira”; e na de Dimas Moraes Correa, “Santa
Ceia”. Nos anos seguintes, sua produção estará focada nos trinta e um afrescos da “Igreja
Nossa Senhora da Paz” (PENNACCHI, 2002).
354
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Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello
Esses afrescos são realizados em conformidade com o programa préestabelecido por Fulvio Pennacchi. Os espaços arquitetônicos, a pintura mural
e os móveis são projetados como um todo. Fulvio Pennacchi é reconhecido como
um pintor muralista especialista em afresco, e sua obra muraria na Igreja Nossa
da Paz é considerada por muitos especialistas como a sua maior realização. As
figuras 6 e 7 são exemplos de pinturas realizadas pelo artista na igreja. Tratamse dos afrescos sobre a “Cristo Crucificado”, a “Natividade” de Nossa Senhora
e do Menino Jesus, pintados em 1942, que localiza,-se na abside do Altar-Mor.
Notas sobre a secular técnica do afresco
O termo “afresco”, definido por Ralf Mayer (1996), é utilizado para referir
o processo tradicional do “buon fresco”, técnica que consiste em pintar sobre
uma argamassa de cal de preparo recente, ainda úmida, com pigmentos moídos
diluído em água. Quando a argamassa e os pigmentos secam, ocorre a carbonatação: as partículas de pigmentos fixam à cal da superfície do mesmo modo
que as partículas de cal se ligam entre si, e com a areia formam a parte integral
da superfície dando adesão ao suporte.
Tirello (2001), em seus estudos sobre pintura murais, define dois sistemas
principais adotados ao longo dos tempos para se realizar murais: “a pintura à
seco” e “a pintura a fresco”. “No primeiro caso [a pintura], fixa-se ao suporte
por adesão; no segundo por coesão, integrando-se ao reboco depois de secar,
sem formar película”. A autora comenta que: “o substrato das pinturas a seco é
constituído de apenas dois estratos de argamassa, o emboço e o reboco
respectivamente”.
Já o afresco exige um maior número de estrato: emboço, reboco e camada
de massa fresca sobre a qual são aplicados os pigmentos na superfície ainda
úmida. Seus procedimentos executivos são mais complexos. Caso o artista
trabalhe numa área muito grande e tenha a necessidade de interromper o processo,
deve cortar a argamassa no sentido oblíquo. Ao reiniciar a jornada12 no dia
12. Segundo Tirello (2001), as “jornadas” eram realizadas a partir do alto e da
esquerda para direita, ao longo da linha horizontal. A junção entre elas se fazia com um
corte diagonal nas bordas da massa, pintada e ainda molhada, com o auxilio de uma plaina,
sobrepondo-se a esse pequeno plano inclinado a borda reta da jornada confiante.
Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ...
| 355
seguinte, deve-se primeiro molhar e raspar a área do corte para que a massa fresca
pigmentada adira à parte já seca. Esses estratos estão representados no desenho
esquemático da Figura 8, como um exemplo de um estudo de afresco brasileiro
moderno.13
Figura 8: Esquema estratigráfico das
camadas preparatória de uma pintura
mural afresco moderno. A 1ª camada é o
suporte; a 2ª e 3ª são os sistemas de
massas que geralmente se aplica com
grãos diferenciados e dias alternados; a 4ª
camada é o estrato de cor que tem sua
granulometria mais fina.. Acervo: CPCUSP, 2001.
Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja N. S. da Paz:
Identificando os padrões de textura
Para identificar a morfologia superficial dos murais da igreja entendida aqui,
como texturização da argamassa, marcas de jornadas e incisões, características
da técnica de Pennacchi, e futuramente compará-las com os resultados obtidos
nas já mencionadas análises da obra do pintor nos murais de Hospital das Clínicas,
estão sendo adotados os mesmos parâmetros de observação e estudo da
morfologia pictural de Tirello (2006), que se relacionam à identificação das
diferentes texturas presentes nas superfícies pintadas. A saber:
Textura tipo 1: Corresponde a trechos de massa pigmentada, de aspecto bastante granuloso, com agregados visíveis. A cor espalha-se nos interstícios dos
grãos, sem formar camada aparente, como se aplicada quando a massa estivesse
úmida. Sugere processo completo de carbonatação.
Textura tipo 2: Material colorido espesso que distribui-se nos trechos grandes
e mais abstratos da composição, encobrindo completamente a texturização da
argamassa de reboco subjacente.
13. Desenho esquemático da pintura mural do artista Carlos Magano. In: Tirello
2001.
356
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Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello
Textura tipo 3: Superfícies lisas, com aplicação de “massa e/ou tinta” homogênea formando camadas de textura fina, levigadas. Sobre superfícies com essas
características pode ter ou não riscos feitos a pincel, em tons terra, definidores
das formas representadas.
Experimentos em curso.
Selecionamos inicialmente duas obras em diferentes estados de conservação
para delinear um “estado de autenticidade” referencial: o painel da “Santa Ceia”
(figura 9), 1947, do refeitório do convento (com evidentes repinturas) e “Os Bem
Aventurados”, 1947, do Juízo Final, localizado no espaço da igreja.
Figura 9: Painel da “Santa Ceia”, 1947, Fulvio Pennacchi, 1947, 2,40 x 6,00 m,
localizado no refeitório do Convento. A área demarcada na foto correspondente
ao detalhamento da figuras subsequentes. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013.
“Santa Ceia” apresenta intervenções de restauro que descaracterizaram
sobremaneira as superfícies aos padrões de Textura Tipo 1, ou seja, de áspera e
nuançada, áreas inteiras foram encobertas com grossas camadas de repintura feita
“a seco”, que as fazem assemelhar-se a uma pintura a óleo.Ver detalhe do fenômeno nas Figuras 10 e 11, nas imagens obtidas com radiação de luz ultravioleta,
nas quais nota-se trecho de pintura empastada, sem nuanças claro/escuro, com
ausência de texturização e incisões típicas da linguagem plástica deste artista nos
afrescos.
O painel “Os Bem Aventurados” do Juízo Final, localizado no espaço da
igreja, sem restauros anteriores, permitiu a observação dos modos peculiares do
Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ...
| 357
fazer artístico de Fulvio Pennacchi, com suas incisões e granulometria
características. Nas Figura 12, 13 e 14, nota-se a ocorrência de Texturas Tipo
1, feita com argamassa pigmentada, granulosa.
Figuras 10, 11: à esquerda, detalhe da fotografia com luz
ultravioleta. Observa-se o empastamento da massa
pigmentada na “Última Ceia”. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013.
Figura 12: Pintura “Os Bem
Aventurados” Fulvio
Pennacchi, 1947. Foto:
Elizabeth Kajiya, 2013.
Figura 13: Neste
personagem, como em todas
as aureolas das figuras do painel comprova-se a adoção de textura do tipo 1. Foto:
Elizabeth Kajiya, 2013.
Nas figuras 15, 16, 17, observa-se com fotografia feitas com “luz visível”
exemplo Textura Tipo 2, com material mais espesso, encobrindo completamente
a texturização da argamassa de reboco subjacente. Na Figura 18, tem-se exemplo
de Textura Tipo 3, que corresponde às superfícies lisas, obtidas com aplicação
de “massa e/ou tinta” homogênea, formando camadas de textura fina. Essa
texturização Pennacchi usou em alguns detalhes dos personagens (Figuras 19, 20).
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Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello
Figura 15: Pintura “Os Bem Aventurados” Fulvio Pennacchi, 1947. Foto: Elizabeth
Kajiya, 2013.
Figuras 16 e 17: Recorte ( mãos) para avaliação de texturização característica. Foto:
Elizabeth Kajiya, 2013.
Figura 18: Pintura “Os Bem Aventurados” Fulvio Pennacchi, 1947. Foto: Elizabeth
Kajiya, 2013.
Figura 19: Detalhe da textura tipo 3. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013.
Figura 20: Macrofotografia. Observa-se superfície lisa e homogênea formando textura
fina. Textura Tipo 3. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013.
Conclusão:
Os registros fotográficos com técnicas multiespectrais processados, até o
momento, demonstram a similaridade entre os modos de trabalhar as argamassas
e das opções colorísticas que Pennacchi adotou para ressaltar detalhes da
Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ...
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composição dos afrescos realizados na Igreja N. S. da Paz e na Igreja e na Capela
do Hospital das Clínicas-SP, mostrando a assertiva da hipótese inicial de nossa
pesquisa. Além de constituir um banco de dados documentais sobre as pinturas
artísticas da igreja em estudo, dar-se-á prosseguimento ao trabalho realizando
mapas de distribuição de cores para estudo da paleta cromática e demarcação
dos pontos a recolher amostras para processar exames de caracterização dos
pigmentos.
Pennacchi incorpora a técnica do buon fresco italiano e a interpreta
criativamente, nos seus aspectos técnicos e formal. Constata-se que usa a
sobreposição de camadas de tinta aplicadas “a seco” sobre a argamassa
pigmentada já enxuta (o afresco) como um recurso expressivo. Esse é um
reconhecimento fundamental tanto para a história da teoria da técnica artística
brasileira como para balizar diagnósticos de conservação futuro, contribuindo
assim com planejamento de intervenções de restauro que preservem a
autenticidade material da obra muralística de Fulvio Pennacchi.
Referências bibliográficas
MAYER, R. Manual do Artista de técnicas e materiais. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
PENNACCHI, V. A. Fulvio Pennacchi: seu tempo, seu percurso. São Paulo: Lazuli
Editora, 2009.
. Pennacchi: Pintura Mural. São Paulo: Metalivros, 2002.
Pio Semeghini (1878-1964), pintor desenhista, mestre e orientador de Pennacchi.
Disponível em http://www.fulviopennacchi.com/d20_antonio.html.
Revista Mensageiro da Paz, v.1, nº 8, maio 1940. Arquivo da Igreja Nossa Senhora
da Paz.
TIRELLO, R. A. O restauro de um Mural Moderno, na USP: O Afresco de Carlos
Magano, São Paulo: CPC-USP, 2001.
______. “Afresco de Fulvio Pennacchi na capela do Hospital das Clínicas da FMUSP: estudos científicos de caracterização material e executiva”. In: Revista
CPC-USP, v.1, n. 1, p. 103-120, nov. 2005/ abr. 2006.
ZANNINI, M. A arte no Brasil na deìcada de 1930-40, O Grupo Santa Helena. São
Paulo: Nobel-Edusp, 1991.
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A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa
Impassível
ROSANA GARCETE MIRANDA FERNANDES DE ALMEIDA*
EDSON LEITE**
Resumo: Este artigo trata da transferência da obra tumular de Victor Brecheret
intitulada Musa Impassível, que foi criada por inspiração do soneto da poetisa
Francisca Julia, e feita para ter morada sobre o túmulo da poetisa no cemitério
do Araçá, em São Paulo. Ocorre que, no ano de 2006, a obra foi transferida
para a Pinacoteca do Estado e, a partir de então, deslocada de sua função inicial,
ela pode ser visitada como parte do acervo artístico.
Palavras-Chave: Arte tumular. Victor Brecheret. Musa Impassível.
Death on Chisel Victor Brecheret: Unmoved Muse
Abstract: This Article attends on the transference of Victor Brecheret’s funerary art
entitled Unmoved Muse witch was created by inspiration of poet Francisca Julia’s
sonnet and done to be placed above hers tomb at Araçá’s cemetery in São Paulo. In
the year of 2006 the piece was transferred to “Pinacoteca do Estado” and since then,
removed from its initial position, it can be visited as of the artistic collection.
Keywords: Funerary art. Victor Brecheret. Unmoved Muse.
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da
Universidade de São Paulo na linha de pesquisa Produção e Circulação da Arte
** Professor Titular da Escola de Artes, Ciência e Humanidades e do Programa de
Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São
Paulo.
362
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Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite
Introdução
Dentro do contexto da arquitetura tumular, de obras tumulares, da memória
familiar e de registros em cemitérios, Borges (2002) faz uma abordagem relevante
e pertinente à construção de monumentos funerários em cemitérios secularizados.
A autora relaciona tais obras com o comportamento da burguesia no início do
século XX diante da morte. Segundo Borges, a história da arte contemporânea
esteve mais absorvida com a cidade dos vivos do que com a produção de arte
funerária. Ela ressalta a dificuldade dos historiadores quanto ao procedimento
metodológico utilizado para estudar o cemitério e seus túmulos e relacionar os
estilos com os temas, pois nem sempre eles caminham juntos; e conclui que falta
perceber o poder da história da arte em se tornar uma força gerativa nas
interpretações do que vemos nos cemitérios dos séculos XIX e XX agregada ao
conhecimento da história da imagem e da cultura visual. Afinal, “o cemitério é
um local que provoca efeitos, produz formas de sociabilidade e de poder e agrupa
códigos simbólicos baseados no nosso modo de ver e sentir a morte” (BORGES,
2010, p. 638).
A obra de Victor Brecheret intitulada Musa Impassível, instalada no ano
de 1923 no cemitério do Araçá, na Capital de São Paulo, foi transferida para a
Pinacoteca do Estado no ano de 2006, permitindo o ingresso de uma obra tumular
num museu, caracterizando uma ação que ativa o imaginário dos visitantes, frente
à fala instituída pela cultura contemporânea.
É comum nos dirigirmos até um museu, uma pinacoteca, uma galeria, uma
igreja, ou aos espaços culturais destinados à apresentação ou exposição de obras
de artes e esculturas. Entretanto, não é somente nesses lugares que podemos
visitar e ter acesso a um acervo artístico. Menos conhecidos e também menos
visitados, podemos destacar como expositores a céu aberto de grandiosas obras
de arte e belíssimas esculturas os cemitérios. Como relata Martini:
Os cemitérios, apesar da aparência triste, podem guardar ricas surpresas para
quem se dispõe a procurar. Principalmente nos mais antigos. Alguns podem
ser considerados verdadeiras galerias de arte a céu aberto sendo possível
encontrarmos peças e esculturas de artistas famosos (MARTINI, 2006).
Analisar, estudar e abordar temas que se entrelaçam com a morte ou assuntos
relacionados com cemitérios pode parecer uma excentricidade ou morbidez.
A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível
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Dentro dessa ótica, é compreensível perceber que, desde sua criação até os dias
atuais, o sagrado lugar de repouso eterno e absoluto dos mortos passou por
diversas transformações ao longo dos séculos, encontrando nos dias atuais espaço
para obras de arte e esculturas.
O sepultamento surgiu por intermédio de uma crença:
Um verso de Píndaro guardou-nos curioso vestígio desse pensamento das
gerações antigas. Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia, fugindo até
a Cólquida, onde morreu. Mas, embora morto, desejava retornar à Grécia.
Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que fosse à Cólquida para de lá trazer
sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio, do túmulo
da família; mas, unida aos restos corporais, não podia deixar sozinha a Cólquida.
(COULANGES, 2008, p. 13-14)
Com o passar do tempo, os sepultamentos que eram realizados dentro de
suas casas, onde a família mantinha um culto fúnebre doméstico, ganharam novos
espaços; um deles foi o solo sagrado da igreja e, por fim, os cemitérios. Como
relata Dias (2011), “na Europa, os sepultamentos dentro das igrejas eram comuns
até o momento da peste negra (peste bubônica) quando as igrejas não comportaram mais tantos corpos, além do risco de contaminação, quando os enterros
foram instituídos”.
A autora complementa:
No Brasil colonial e imperial os sepultamentos dentro de igreja também
existiram até o ano 1820, quando foram proibidos, momento que construíram
os primeiros cemitérios. Até então somente negros (escravos) e os indigentes
eram enterrados. Os homens livres eram sepultados nas igrejas, por isso o
tamanho de uma cidade era medido pela quantidade de igrejas que possuía, pois
as igrejas faziam o papel dos cemitérios e algumas cidades coloniais, no Brasil,
por exemplo, possuíam mais de 360 igrejas. (DIAS, 2011)
Com a necessidade de enterrar seus mortos em locais apropriados, pois a
igreja não comportava mais o contingente, e também por causa das doenças e
epidemias, surgem os cemitérios. Segundo Reis:
Quando a preocupação com a higiene passou a ser tema central no império
brasileiro, a partir da segunda metade do século XIX, visto que já era uma
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Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite
realidade na Europa, os governos passaram a aderir a esse novo padrão,
reorganizando o espaço e a relação dos mortos com os vivos. Uma organização
civilizada do espaço urbano requeria que a morte fosse higienizada, sobretudo,
que os mortos fossem expulsos de entre os vivos e segregados em cemitérios
extramuros. (REIS, 1991, p. 247)
Nessa linha evolutiva, podemos destacar que os cemitérios tiveram que se
afastar das cidades, iniciando assim a divisão das cidades entre os vivos e os
mortos. De acordo com Faria (1999, p. 57), “hoje, em algumas cidades, a zona
urbana cresceu tanto que de novo aproximou os mortos dos vivos”. Além desse
crescimento, eles evoluíram também por dentro, tornando-se verdadeiros museus
a céu aberto. Assim, os cemitérios passaram a ser vistos, pelos artistas e escultores
como uma nova oportunidade de expor suas obras e demonstrarem seus talentos,
o que lhes garantiu renda e de certa forma reconhecimento.
Entretanto, no Brasil, segundo Algrave (2004), a visita aos cemitérios e a
apreciação desse costume não foi incorporado na vida dos brasileiros, pelo
contrário, o cemitério trouxe um aspecto negativo, ruim, triste, dramático e a visita
era feita apenas no dia de finados ou por alguma outra ocasião esporádica. Nesse
sentido,
[...] a beleza das imagens e formas que adornam os jazigos são ignoradas, e os
cemitérios tornam-se apenas um depósito de cadáveres. Na segunda metade do
século XIX, o imigrante europeu no Brasil possuía a necessidade de eternizarse perante a sociedade e fazer do seu túmulo um símbolo de prosperidade junto
aos seus compatriotas. Assim, os jazigos eram confeccionados por artistas
trazidos da Europa especialmente para adornar a morada definitiva do colono.
[...] Na verdade, a intenção das famílias imigrantes era fazer dos túmulos
extensões do próprio lar. Os aspectos monumentais, ou humildes dos mausoléus
representavam indiretamente a importância de determinadas famílias perante
à sociedade da época.(ALGRAVE, 2004)
Obras de Brecheret em Cemitérios
O artista Victor Brecheret, ao longo de sua vida como escultor, desenvolveu
diversas obras grandiosas, magníficas e majestosas, sendo que muitas delas fazem
parte do dia a dia do povo brasileiro, que pode apreciá-las no vai e vem de suas
vidas. Entretanto, o artista também abriu espaço e precedentes em sua carreira e
A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível
| 365
nos enriqueceu com algumas obras denominadas tumulares. A seguir nos
deteremos sobre algumas delas:
O Sepultamento
Fonte: Pellegrini (s.d.)
A obra O Sepultamento, de
1923, está localizada no Cemitério da
Consolação, em São Paulo, no túmulo
da paulista Olivia Guedes Penteado.
Segundo Queiroz:
Cabe lembrar que este conjunto representa o lamento e a despedida das 3
Marias, que ao pé do túmulo choram a morte de Jesus. Por esta belíssima
escultura, toda em granito, com traços retos e relevo pouco acentuado o escultor
foi premiado no Salão de Outono, também no ano de 1923.
Anjo
Fonte: Pellegrini (s.d.)
A obra Anjo está localizada no Cemitério da
Consolação, no túmulo da família Botti. Segundo
Comunale, a obra foi “[...] produzida na década de 1940.
A escultura apresenta um anjo com características
brasileiras é uma clara referência aos ideais modernistas.
A escultura apresenta as mesmas características de outra
obra, A Deusa da Primavera, produzida na década de
1930”.
Anjos
Fonte: Baruch
(2013)
A obra Anjos está localizada no
Cemitério São Paulo, na Capital paulista, no túmulo da família Schuracchio.
Segundo Comunale (2011), construída
na década de 1950, a obra apresenta um
fundo em granito rústico e dois anjos em
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Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite
bronze em oração. Novamente, os anjos apresentados aparentam representar a
miscigenação brasileira.
Cruz
Fonte: Pellegrini (s.d.)
A obra Cruz está localizada no
Cemitério da Consolação, em São Paulo,
no túmulo da família Julio Mesquita.
Segundo Comunale (2011), não se tem
informação da data de produção dessa
obra. Ao contrário das outras representações aqui, a cruz aparece deitada sobre o túmulo, com um desenho e volume
diferente dos apresentados nos cemitérios.
A Musa Impassível
A Musa Impassível foi esculpida pelo artista Victor Brecheret em 1923, na
França, e foi encomendada pelo Estado de São Paulo para homenagear a poetisa
Francisca Julia, que nasceu no ano de 1871, na antiga Vila de Xiririca (hoje
município de Eldorado), interior do estado. Ela se mudou para Capital aos 8 anos
de idade e, aos 14 anos, começou a desenvolver pequenos versos que eram
publicados no jornal O Estado de São Paulo, em seguida, passou a escrever para
o Correio Paulistano e para O Diário Popular.
Poetisa Francisca Julia
Fonte: Garcia (2012)
Vocação literária, dedicação e facilidade
para a escrita levaram a que, no ano de 1895,
Francisca publicasse o livro intitulado
“Mármores”, obra bastante elogiada pela crítica,
pela qual “Francisca Julia quebrou barreiras em
uma época onde quem ditava as regras era o
universo masculino”. A poetisa recebeu o título
de “A Musa Impassível” por intermédio da criação de sonetos intitulados “Musa
Impassível I” e “Musa Impassível II”. (MIRANDA, 2008)
A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível
| 367
Francisca Julia viveu uma vida relativamente simples para os padrões da
época; não participava das festas que aconteciam em torno dos grandes escritores.
Mesmo assim, ela era aclamada por diversos poetas, tais como Olavo Bilac e
Vicente de Carvalho, além de ter uma forte e enorme atuação nos circuitos
literários. Segundo Garcia:
Casou-se em 1909 com o telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil,
Philadelpho Edmundo Munster. Em 1916, seu marido é diagnosticado com
tuberculose. Neste momento, Francisca Júlia isola-se e seu lado espiritual
começa a florescer. Continua a publicar seus poemas, mas agora são poucos e
voltados para o lado da religiosidade. Alguns anos depois, em 31 de outubro
de 1920, Philadelpho veio a falecer. (GARCIA, 2012)
Fato bastante interessante, um tanto quanto inusitado e com traços de puro
romantismo, gira em torno de sua morte, pois, horas após o falecimento do marido
Philadelpho Edmundo Munster, a poetisa é encontrada morta no seu próprio
quarto. À época, ninguém declarou que Francisca Julia havia cometido suicídio,
“mas dizem que a poetisa morreu por amor, pois não iria aguentar a ausência de
seu marido”. (GARCIA, 2012)
Processo de Desenvolvimento da Obra
A Musa Impassível de Victor Brecheret foi esculpida em mármore de
Carrara. É uma obra de três toneladas e quase três metros de altura feita na imagem
de uma figura feminina. A obra foi esculpida na França e ornamentava o túmulo
nº9, quadra 6-A da poetisa Francisca Julia, até o ano de 2006.
Com a morte da poetisa Francisca Julia, em 1920, foi despertada em alguns
intelectuais liderados pelo senador e mecenas José Freitas Valle a vontade de
homenageá-la. Assim, eles entraram em contato com o Presidente do Estado de
São Paulo, Washington Luís, para fazer a encomenda de uma escultura e colocála no túmulo da poetisa. Nessa época, Victor Brecheret encontrava-se em Paris,
estudando como bolsista, quando Freitas Valle entrou em contanto com ele e lhe
propôs a criação de uma escultura póstuma para homenagear a poetisa. Segundo
Garcia:
Tendo em mãos alguns poemas de Francisca Júlia, Brecheret realizou o trabalho
de 1921 a 1923 em Paris. Feita em mármore, o resultado não poderia ser melhor.
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Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite
Uma linda escultura envolvida por sensualidade. Olhos fechados que nos remete
a querer esquecer a dor da morte. Seios grandes e fartos para afirmar a
importância da mulher na sociedade. Dedos e braços longos e delicados
simbolizando a força e a superioridade de uma mulher que abriu segmento na
literatura feminina. Nascia a Musa Impassível. (GARCIA, 2012)
Musa Impassível no Túmulo de Francisca Julia.
Fonte: Garcia (2012)
A Transferência para a Pinacoteca do
Estado
A Musa Impassível saiu do seu local de origem,
o cemitério do Araçá, e foi transferida para a Pinacoteca de São Paulo. A escultura sofreu as consequências do crescimento e da urbanização
desenfreados da cidade de São Paulo, gerando problemas como relata Garcia:
“A escultura estava se desgastando com a ação do tempo, principalmente com a
chuva ácida. Sendo assim, foi necessária a sua remoção para desacelerar este
processo de desgaste”. (GARCIA, 2012). Segundo Camargos:
Na manhã de 13 de dezembro de 2006, teve início a delicada operação de retirar
do Cemitério do Araçá, em São Paulo, uma obra de arte de quase três toneladas.
Primeiro, a escultura recebeu um manto protetor e cordas atadas em volta do
torso. Depois, com cuidado, foi suavemente empurrada. Devagar, como se não
tivesse pressa em deixar o local que ocupava desde 1923, o colosso de mármore
começou a se mover. Após horas de trabalho árduo, a equipe especializada
conseguiu içá-la com um guindaste. Por minutos, a Musa Impassível alçou voo.
Em seguida, pousou no caminho que a conduziu até a Pinacoteca do Estado,
Ali, ergueu-se em um dos pátios internos para, finalmente, ser apreciada pelo
grande público. (CAMARGOS, 2007, p. 117)
Vale ressaltar que, na história da arte e da cidade de São Paulo, foi a primeira
vez que uma obra tumular saiu de seu espaço cemiterial e foi transferida para
outro lugar que não faz parte nem de sua essência e natureza nem do seu objetivo
inicial e principal, o túmulo. No espaço ocupado pela Musa Impassível, foi
colocada uma réplica em bronze, na tentativa de diminuir a eloquência da
transferência da obra original. De acordo com Garcia:
A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível
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[...] a Musa Impassível continua a deslumbrar os olhares, seja na Pinacoteca,
ou em sua antiga morada. Não há como desvincular a Musa Impassível do
túmulo de Francisca Júlia, as duas estão ligadas intimamente desde o instante
em que o poema foi escrito. As palavras da poetisa foram transformadas no
mármore, por Victor Brecheret, em traços delicados. Ele conseguiu perpetuar
a história dessas duas mulheres magníficas, Francisca Júlia e sua Musa
Impassível. [...] A data de 13 de dezembro de 2006, 83 anos depois de sua
instalação, foi o último dia da Musa Impassível no Cemitério do Araçá. A
retirada da escultura envolveu mais de 15 pessoas, um guindaste e muitos
curiosos. Após mais de seis horas de trabalho, com muito esforço dos
envolvidos, a escultura despediu-se do mundo dos mortos para entrar no mundo
dos vivos. (GARCIA, 2012)
Segundo Camargos (2007), a transferência da Musa Impassível para a
Pinacoteca do Estado foi possível e realizada com a anuência de ambas as
famílias, a do artista Victor Brecheret e a da poetisa Francisca Julia. O que
acontece é que foi possível “resgatá-la e dar-lhe o espaço nobre que ela merece,
na Pinacoteca do Estado, para ser finalmente apreciada pelo público”
(CAMARGOS, 2007, p. 11). Parece, afinal, que espaços antes importantes para
a exposição e permanência de obras de grande valor estético, como os cemitérios,
tornaram-se espaços não nobres e distanciados das possibilidades de apreciação
pública, que definitivamente se deslocou para os museus.
Figura 53: Musa Impassível Instalada na Pinacoteca
Fonte: Garcia (2012)
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Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite
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REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
| 371
A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase
ADRIANA BOMENY FREIRE*
EDSON LEITE**
Resumo: O presente artigo visa demonstrar que a arte floral da Ikebana é uma
manifestação estética significativa, integrante da história da arte japonesa e que
vem se disseminando pelo mundo. A arte japonesa é baseada nos sentimentos
e na simplicidade de expressão, que motivaram este povo a utilizar a natureza
como suporte para executar memoráveis obras de arte. Para compreensão de
sua estética, e das características do “Zen”, este artigo terá como foco o trabalho
do artista contemporâneo Toshiro Kawase, especialista em arte da Ikebana e que
possui dois livros de âmbito internacional: Inspired Flower Arrangements (1990)
e The Book of Ikebana (2000).
Palavras chaves: Ikebana. Arte Japonesa. Arranjo Floral. Toshiro Kawase.
The Ikebana and Toshiro Kawase Production
Abstract: This article aims to demonstrate that the floral art of Ikebana is a
significant aesthetic manifestation, part of the history of Japanese art and has spread
throughout the world. Japanese art is based on feelings and simplicity of expression
that motivated these people to use nature as a support to execute memorable works
of art. To understand its aesthetics and characteristics of “Zen”, this article will
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo na linha de pesquisa Produção e Circulação da
Arte.
** Professor Titular da Escola de Artes, Ciência e Humanidades e do Programa
de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São
Paulo.
372
|
Adriana B. Freire e Edson Leite
focus on the work of contemporary artist Toshiro Kawase, specialist in art of Ikebana
and has two books of international scope: Inspired Flower Arrangements (1990)
and The book of Ikebana (2000).
Key Words: Ikebana. Japanese Art. Flower Arrangement. Toshiro Kawase.
Introdução
A ligação da arte com a religião sempre esteve presente nas diversas etapas
da História da Arte. Além da pintura, da música, das artes cênicas e da escultura,
os japoneses consideram a arte nas mais diversas formas. A finalidade deste
trabalho de pesquisa é possibilitar o conhecimento da Arte Oriental, sua estética
e utilização, através das Ikebanas, arranjos florais ligados a fundamentos
religiosos da tradição japonesa, feitas pelo artista Toshiro Kawase.
As diversas manifestações de arte foram as primeiras formas de comunicação entre os povos. Elas sempre estiveram ligadas à formação ética e cultural
do indivíduo. Para ser um cidadão de respeito, era necessário saber tocar algum
instrumento, ter conhecimento de poesia e até mesmo confeccionar trabalhos
manuais. Desta forma, os seres humanos, além de preparados profissionalmente,
estavam sempre ligados às áreas sensíveis das artes.
A arte no Japão e o zen
Para entender a arte japonesa, é preciso compreender a história deste país
tão cheio de contradições. Segundo Baragwanath (1968), o Japão, num primeiro
contato, pareceu aos europeus um país remoto, habitado por um povo estranho,
possuidor de vigorosas tradições militares, misturado com uma grande habilidade
nas artes da paz. Atualmente, o país é visto como um Estado oriental, onde as
indústrias se baseiam numa avançada tecnologia ocidental, um povo ao mesmo
tempo imitador e imaginativo em elevado grau; um país marítimo onde os habitantes se identificam de um modo quase religioso com a própria terra.
A arte japonesa teve como base a arte chinesa. O Budismo entrou no Japão
através de uma estátua de Buda acompanhada de textos, oferecidos pelo reino
coreano de Paekche à corte imperial japonesa, em 552 d.C. Um debate acalorado
foi levantado entre a nobreza a respeito dos méritos da nova religião que acabou
por triunfar, estabelecendo-se firmemente sob a proteção especial da casa regente.
O príncipe Shotoku Taishi (574-622 d.C.) foi um defensor caloroso do budismo
A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase
| 373
e o responsável pelo alto nível artístico do país. Ele incentivou a arte, convocando
artistas chineses para a sua corte (AUBOYER, 1966).
A religião Budista venera o espírito das divindades existentes nas montanhas, nos rios, nas árvores e em outras entidades naturais. Nos ensinamentos
budistas, há um pacto de respeito à natureza por toda a vida. No pensamento ocidental, em oposição ao pensamento oriental, a imagem do homem está situada
em primeiro plano, subordinando assim, todos os outros seres vivos. Para os
orientais, o homem não está na posição central: ele está ligado harmoniosamente
com a natureza, sem com isso ter o direito de dominá-la, nem controlá-la. “Na
natureza, não se pode ser independente a não ser dependendo do próprio ambiente. O que vale para o ambiente biológico, vale também para o ambiente social,
urbano, cultural e religioso” (MORIN, 2008, p. 2).
Na cultura oriental japonesa, a arte representa a vivência do artista com o
mundo. Os elementos da natureza são valorizados e utilizados como fonte de inspiração. Esta arte é baseada na simplicidade de expressão. A complexidade é significado de imaturidade, de decadência. Acredita-se no princípio de que a simplicidade não é jamais simples. Na concepção oriental, a arte precisa necessariamente estar ligada ao belo. Para os japoneses, a beleza eleva o espírito. Se o artista não
enobrecer seu espírito, suas reproduções serão apenas cópias do seu cotidiano e
de nada servirão aos outros como ferramentas para o autoconhecimento.
O Zen consiste na procura da luz interior através da meditação. A prática
da meditação considerada suprema surgiu no Japão acompanhado da religião
Budista e começou a criar raízes, como escola independente, a partir dos séculos
XII e XIII. Depois de Dogen, os primeiros defensores do Zen foram monges
treinados no budismo Tendai, que procuravam no Zen chinês uma forma de
reviver o budismo tradicional japonês. Mesmo sendo uma tradição chinesa, o
Zen japonês acabou ganhando autonomia para se encaixar da melhor forma aos
hábitos japoneses. Esta prática ganhou forte influência junto aos governantes e
militares no período Kamakura (1185-1333), em virtude da importância dada à
disciplina e à austeridade. “A ideia central do Zen é a súbita iluminação, o
reconhecimento da natureza ilusória de toda existência” (LEONARD, 1992, p. 83).
O Zen ensinou que esta iluminação poderia ser conquistada através de uma
disciplina mental e física.
Uma das características do pensamento Zen é começar com algo pequeno
e modesto, que deve ser praticado, tantas e tantas vezes, até que não haja mais
nenhuma imperfeição, até que seja assimilado pelo praticante, passando a fazer
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Adriana B. Freire e Edson Leite
parte da sua própria individualidade. Desta forma, ele pode encaixar-se nas
atividades do dia a dia, produzindo manifestações diferentes de arte. Para
entender a cultura do Zen, a lógica do pensamento ocidental deve ser posta de
lado. Segundo Gombrich (1972), pode-se afirmar que o fator estético não é o
objetivo de importância da arte japonesa, ele acaba sendo uma consequência.
A ikebana
Durante muitos séculos, o Japão foi governado por mulheres. Segundo
relatos de desdenhosos viajantes chineses, um dos quais informou que no ano
de 238 d.C., a sudoeste, por ele denominado Wa, o Japão dividia-se em pequenos
estados, governados por feiticeiras. Entre as rainhas que praticavam a magia, a
que mais se destacou foi Pimico, que viveu enclausurada, num palácio fortificado,
na companhia de mil servidoras e de um homem, que a ajudava a se comunicar
com os súditos. Este velho costume japonês de governos exercidos por mulheres
permaneceu de modo intermitente até a segunda metade do século VIII. “As
mulheres gozavam de considerável influência política e social, tornando-se
completamente submetidas aos homens somente a partir do século XV”
(LEONARD, 1973, p.13).
O gosto feminino pela delicadeza e sutileza, aliado à mitologia japonesa,
ligada à natureza e seus fenômenos, fizeram com que este País de agricultores
tivesse um nível bastante refinado para a arte, colocando-a como necessidade
vital desde o início de sua civilização. Segundo Huyghe (1986), a arte no Extremo-Oriente nunca se deixou encerrar e imobilizar nas estruturas da razão, sempre
procurou um contato íntimo com a natureza na sua essência secreta.
Segundo reza a tradição histórica do oriente, a Ikebana teve sua origem na
Índia. Conta-se que, certa vez, Buda viu no chão um galho com flor em botão
quebrado pelo vento e pediu para um de seus discípulos que colocasse o galho
na água, para que tivesse mais tempo de vida. Porém, foi no Japão que esta arte
se difundiu e permaneceu viva até os dias atuais. A origem da palavra Ikebana
vem dos verbos em japonês “Ikeru” (colocar, dispor), “Ikeri” (viver, tornar vivo)
e da palavra “Hana” (flores) ou, traduzindo para o português, flores vivas.
O ato de arranjar flores, para os japoneses, não é apenas colocar as flores
no vaso; consiste numa atitude espiritual, considerada para eles algo mais
profundo e elevado. Este povo acredita que todos os seres vivos compartilham a
capacidade de sentir e que, como seres humanos, eles são apenas manifestações
A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase
| 375
temporárias de vida, sujeitos à transmigração, partilhando em última instância
no destino comum de todos. O principal objetivo do artista japonês é captar o
coração interior dos seres da natureza e utilizar de técnicas para prolongar suas
vidas.
Dizem os escritos antigos que o primeiro arranjo de Ikebana foi feito de flor
de lótus e oferecido a Kannon,1 logo após a oficialização do budismo no País.
Mesmo assim, somente no século XVII, é que esta prática começou a ser chamada
por este nome e aparecer nos principais pontos frequentados pela elite japonesa.
No arranjo de Ikebana, o vaso representa o palco da vida do artista que está
trabalhando neste arranjo; o fixador de flor, o apoio ou caminho escolhido por
ele; e as flores, os relacionamentos passados, presentes e futuros. Acredita-se
que a relação com a flor possa refletir o estado de espírito do artista no momento
da execução do arranjo, permitindo com que se perceba e se transforme, passando
seus conhecimentos para outras pessoas, que passarão para outras pessoas e assim
sucessivamente. O plano espiritual atua criando uma espécie de harmonização,
permitindo com que a energia do ambiente, onde o arranjo é colocado, se transforme em um local agradável e feliz.
Toshiro Kawase
Toshiro Kawase nasceu em 1948, na cidade de Kyoto. Filho de uma família
de importantes floristas, ele demonstrou desde cedo um grande interesse pelas
flores. Sua família foi responsável, durante gerações, pela entrega de flores para
a famosa escola Ikenobo, de Kyoto. Antes de iniciar a escola formal de Ikebana,
já produzia arranjos instintivamente de maneira livre. Com apenas dez anos de
idade, ele já executava arranjos em casas particulares. Um dia após entregar flores
frescas da loja de sua família no Templo Budista onde a escola Ikenobo tinha
1. Segundo a mitologia chinesa e japonesa, Kuan Yin (Kannon) nasceu neste mundo
como filha do Rei da dinastia Chow (1122 a. C. a 255 a.C.). Sentenciada de morte por
seu pai por se recusar a se casar, ela foi enviada por seus executores, mas a espada se
quebrou sem feri-la. Indo para o inferno, o rei de lá a enviou novamente para a terra,
transportando-a sobre uma flor de lótus. Esta flor, a partir de então, tornou-se símbolo
desta entidade. No Japão a adoração a Kannon começou na introdução do budismo, sendo
considerada a Deusa da Compaixão de acordo com os ensinamentos búdicos (CHAMAS,
2006, p. 72).
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Adriana B. Freire e Edson Leite
sua sede, Kawase viu o professor da escola curvado em oração e a partir deste
momento ele se convenceu de que o espírito de um arranjo de flor deveria ser
igual ao espírito de uma oração “Inori”. Em 1970, ele estudou produção teatral
na Universidade Sorbonne, em Paris, mas depois de dois anos e meio na Europa,
sentindo-se atraído pelo mundo das flores, retornou ao Japão. Novamente em
Kyoto, Kawase ingressou na escola Ikenobo Cultural Academy e tomou como
seu mestre para a vida o artista floral Kozo Okada.
Normalmente, os artistas de ikebana realizam uma montagem para ser
fotografada e colocada em livros. Toshiro Kawase realizou Ikebanas para muitas
publicações ao longo de sua carreira artística. As principais são com obras apenas
de sua autoria foram: Inspired Flower Arrangements (1990); The Book of
Ikebana (2000) e Imasama Kodensho (2002).
Utilizando elementos da Natureza, Kawase vai dando forma aos elementos,
recriando seu lugar no espaço, juntando formas e elementos diferentes, a fim de
modificar sua estética natural. “O artista tem não só o direito, mas o dever de
manipular as formas da maneira que julgar NECESSÁRIA para alcançar SEUS
fins” (KANDINSKY, 2000, p. 126).
Por ser uma arte que utiliza de elementos vivos, torna-se possível imaginar
a sequência de transformações dos galhos e das flores. Quando o artista faz o
trabalho, ele posiciona os elementos de acordo com sua vontade estética. Após
o trabalho concluído, a massa viva vai se moldando conforme seu desejo, por
vezes mudando completamente a posição inicial do trabalho. Da mesma forma
em que o artista observa os galhos e as flores, ele também é observado por eles.
Toshiro Kawase utiliza dos galhos e flores como objetos para discernir sua
vida, permitindo com que surjam novas experiências, através de sua criatividade,
facilitando o caminho solitário do autoconhecimento através da Natureza. Por
esta razão, a Ikebana surgiu a partir da tradição de venerar flores como algo
divino, capaz de revelar os enigmas de cada artista floral.
Kawase deixa transparecer sua formação acadêmica, quando tudo parece
estar colocado, para alguma cena ser filmada ou fotografada. É possível perceber
o frescor das flores e até mesmo o cheiro se nelas houvesse. O arranjo da figura
a seguir mostra uma composição com flores de Iris, colocadas dentro de um vaso,
como se estivessem plantadas. Elas foram trabalhadas de forma a mostrar um
ritmo de crescimento, respeitando, no posicionamento, a beleza de todas as flores
que fazem parte deste cenário.
A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase
| 377
Iris Japonesa.
Vaso de bronze, Período Momoyama (1573-1615 d.
C.). Templo Daichuji, Shizuoka.
Fonte: Inspired Flower Arrangements, 1990, p. 24.
Kawase é um artista bastante versátil em
seu trabalho. Da mesma maneira que expõe
obras de que representam verdadeiras
instalações, é capaz de trabalhar com pequenos
detalhes. A próxima figura possui uma peça de
cerâmica, rachada ao meio, dando uma
conotação de contemporaneidade a uma peça
tradicional na história da arte japonesa. Neste
caso, ela está funcionando como um suporte para
abraçar delicadamente o galho de pêssego e a
flor de margarida. Para os leigos, esta flor poderia, até mesmo, fazer parte deste
galho. Incrível o encaixe perfeito dessas formas tão diferentes e, apesar da
cerâmica estar partida ao meio, quase como se tivesse sido quebrada, ela não
parece estar maltratando o galho, ao contrário, parece que o está acolhendo.
Galho de pêssego e Margarida.
Fonte: Imasama Kodensho, 2002 p. 117.
Kawase é um dos artistas que traz para a
contemporaneidade a importância de valores
perdidos no fazer de cada artista e utilizando a
beleza esquecida nos dias atuais. Sua obra
possui um conceito minimalista, próprio da
cultura japonesa.
A Ikebana se diferencia dos arranjos
florais não só pela sua estética, centrada na
simplicidade de expressão e nas medidas préestabelecidas,
como
também
no
posicionamento dos galhos e das flores. O
material é colocado no arranjo de forma livre, sem esponjas florais ou qualquer
tipo de fixação. As flores são apoiadas umas nas outras, proporcionando um
encaixe perfeito entre elas. Depois de pronta, é possível notar este encaixe dos
elementos, que muitas vezes, parecem uma verdadeira trama, onde os galhos e
378
|
Adriana B. Freire e Edson Leite
as flores convergem para o mesmo ponto. Para fazer tal amarração, o artista deve
conhecer profundamente os elementos a fim de utilizá-los de acordo com seu
peso e seu tamanho, permitindo com que os menores se encaixem nos espaços
vazios, apoiando na estrutura formada pelos galhos maiores.
Considerações finais
A Ikebana é um simples ato de tentar olhar além das flores, fixar os olhos
no que está oculto, no íntimo de cada coração e procurar a verdade contida neste
ser, tentando uma troca de energia movida pela beleza. A meta de um arranjo de
Ikebana não é utilizar flores aleatoriamente, mas captar a vibração do espaço
no qual elas vivem, carregadas de sua vida selvagem. Utilizar o fenômeno material
para expressar e incluir o espírito que existe em cada ser da Natureza é a principal
meta da arte japonesa. Por esta razão, os artistas de Ikebana, costumam utilizar
flores da época em suas composições, no intuito de aproveitar a beleza de cada
estação do ano.
A obra de Toshiro Kawase encontra os elementos da cultura tradicional e,
ao mesmo tempo, os arrojos da contemporaneidade. Ele procura enfatizar a arte
japonesa, centrada nos detalhes e na espiritualidade, permitindo com que o
observador possa alterar sua visão estética e entrar no mundo oriental centrado
na beleza, quase como numa cerimônia religiosa.
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| 381
A intervenção no machinima1
FERNANDA ALBUQUERQUE DE ALMEIDA*
Resumo: A noção de machinima vem sendo associada às normas e às convenções
do cinema clássico desde que os seus primeiros filmes foram realizados. Contudo,
essa é apenas uma das possibilidades de criação fílmica nos ambientes virtuais
interativos. Tendo isso em vista, o objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão
sobre essa noção, que não esteja diretamente vinculada à narrativa desse cinema.
Busca-se fazer uma relação entre o conceito de intervenção e o machinima, de
modo que uma ampliação e um aprofundamento dessa noção inicial possam
ser estimulados. Essa reflexão baseia-se em uma análise interpretativa do texto
Arte e Mídia: Aproximações e Distinções (2002), de Arlindo Machado, o qual
será comentado em analogia com aspectos da produção dos filmes em
machinima.
Palavras-chave: Machinima. Intervenção. Artemídia. Arte Contemporânea.
The intervention in machinima
Abstract: The notion of machinima has been associated to the norms and
conventions of classical cinema since its first films were accomplished. However, this
is just one of the possibilities of filmic creation in interactive virtual environments.
Therefore, the main goal of this article is to present a reflection about this notion,
which is not directly linked to the narrative of this cinema. It is aimed to establish
a relation between the concept of intervention and the machinima, so an
1. Este artigo faz parte da pesquisa de mestrado intitulada Machinima: entre a
narrativa e a experimentação, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo.
* Mestra pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da
Arte da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].
382
|
Fernanda Albuquerque de Almeida
amplification of this initial notion can be stimulated. This reflection is based in
an interpretative analysis of the text Arte e Mídia: Aproximações e Distinções (2002),
by Arlindo Machado, which will be commented in an analogy with some aspects of
the production of machinima films.
Keywords: Machinima. Intervention. Media Art. Contemporary Art.
Desde meados dos anos 2000, machinima é o termo que representa a
apropriação de ambientes virtuais interativos, como os de jogos digitais, para a
produção fílmica. A partir do seu primeiro filme, chamado Diary of a Camper2
(United Rangers Films, 1996, Estados Unidos), essa noção vem sendo associada
às convenções do cinema clássico, as quais reverberaram na sua compreensão
como meio de produção audiovisual. Esse filme conta a breve história de um
grupo de jogadores que entra em conflito com um camper.3 Embora simples, a
sua narrativa é composta por um evento com início, meio e fim, permeado pelo
diálogo dos personagens, o qual aparece por escrito na parte de cima da tela.
Devido a essa constituição, Diary of a Camper estabeleceu a prática de contar histórias (storytelling) como uma característica fundamental do machinima.
Contudo, como será visto, essa noção não abrange a diversidade dos seus filmes.
Há, por exemplo, machinimas que correspondem à documentação de performances e intervenções, além de filmes abstratos. Por isso, é necessário buscar
outros elementos que possam auxiliar em uma melhor compreensão dessa ideia.
Nessa busca por características que permeiam todos machinimas, independentemente da sua proposta ser contar uma história ou documentar uma performance artística, pode-se constatar que todos eles são criados em ambientes
virtuais. Esses possuem uma realidade pré-existente, na qual o criador intervém
para realizar os filmes. Assim, pode-se inferir que um elemento em comum seja
a intervenção.
A intervenção ocorre fundamentalmente sobre uma realidade com existência
prévia, dotada de estrutura, dinâmica e características específicas. Através da
ação sobre essa realidade, alteram-se ou acrescentam-se novos usos, atributos e
funcionalidades. Em termos práticos, intervenções podem ser realizadas em
quaisquer espaços que reúnam esses requisitos. Como exemplos, podem ser men2. Disponível em: <http://youtu.be/mq4Ks4Z_NGY>.
3. O jogador que permanece em um local estratégico de um jogo para múltiplos
jogadores onde armas e munições são reabastecidas, concedendo suprimentos infinitos.
A intervenção no machinima
| 383
cionados a paisagem natural e os ambientes urbanos e arquitetônicos (internos e
externos). Quando ocorrem nesses contextos, elas resultam em diversas formas,
como performance art, pôsteres e grafite. Na maioria das vezes, elas têm caráter
social, de modo a disseminar os ideais de seus realizadores. Além desses espaços,
intervenções também podem ocorrer nos domínios da imagem, através de
procedimentos como colagem, montagem e assemblage. Com isso, pode-se
modificar ou combinar uma ou mais realidades, de modo que se alteram
totalmente os ambientes originais (suas características, usos e até mesmo
funcionalidade).
Tanto a intervenção nos ambientes quanto a que ocorre nas imagens são
abrangidas pelos filmes em machinima. Como foi mencionado, esses filmes se
baseiam em realidades pré-existentes, portanto o seu processo de realização tende
a modificar a dinâmica e até mesmo os elementos dessas realidades. Por sua vez,
as imagens captadas podem ser geradas ou manipuladas por processos diversos,
como a colagem e a montagem, de modo a alterar desconstruir e sintetizar diferentes ambientes virtuais.
Apesar dessas características, a relação entre machinima e intervenção não
é abordada claramente nos estudos sobre machinima. Contudo, ela encontra-se
paralela às investigações conduzidas por Katie Salen (2002) e Henry Lowood
(2007 e 2008), sobre a constituição dos filmes, e até mesmo nas considerações
de Rebecca Cannon (2007), em relação às modificações artísticas. Essas pesquisas são fortemente embasadas na performance intervencionista dos usuários sobre
os jogos digitais. Isso porque essas modificações e as noções de transformative
play (SALEN, 2002), de alto desempenho (LOWOOD, 2007) e de tecnologia
encontrada (LOWOOD, 2008), partem do pressuposto de que existe uma realidade
prévia que é expandida ou alterada na apropriação dos seus usuários.4 Assim, é
através desse tipo de ação que novas obras são constituídas, entre as quais estão
os filmes de machinima.
Além desses estudos, a reflexão acerca da relação entre intervenção e
machinima também pode ser encontrada no artigo Arte e Mídia: aproximações
e distinções (2002), de Arlindo Machado. Nele há três blocos temáticos que
4. Para uma explicação mais detalhada das ideias desses autores, Cf.: ALMEIDA,
F. A. de. Machinima: entre a narrativa e a experimentação. 2014. 119 f. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 50-57.
384
|
Fernanda Albuquerque de Almeida
incluem o desvio do projeto industrial midiático em obras artísticas, a arte como
metalinguagem da mídia e a mídia como agente colaborador de um reordenamento do estado atual da arte, os quais podem ser compreendidos em uma
analogia entre o machinima e os ambientes virtuais interativos. Devido a essa
possibilidade de diálogo, esse artigo de Machado será analisado em uma analogia
com o machinima, para que se possa buscar uma ampliação e um aprofundamento
da sua noção.
* * *
Machado (2002, p. 20) inicia sua reflexão com o esclarecimento do termo
artemídia, tradução da expressão inglesa media art, que designa “formas de
expressão artística que se apropriam de recursos tecnológicos das mídias e da
indústria do entretenimento em geral, ou intervêm em seus canais de difusão,
para propor alternativas qualitativas”. Uma vez que a arte sempre foi produzida
com os meios de seu tempo, é previsível que a televisão, o computador e os games
sejam apropriados para esse fim. Nesses contextos, é mantido o desafio de extrair
o máximo das possibilidades dos novos instrumentos que dão forma à
sensibilidade da época respectiva.
Essa apropriação artística da tecnologia pode ser realizada de diversas
maneiras. Uma delas é a subversão da funcionalidade originária. Isso ocorre, por
exemplo, quando Nam June Paik utiliza ímãs para desconstruir as imagens da
televisão em TV Magnet (1965), quando Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz
propõem a interação em vídeo entre pessoas geograficamente distantes em Hole
in Space (1980), ou ainda quando Frederic Fontenoy capta múltiplas imagens,
em uma única película, obtidas pela modificação do obturador da câmera
fotográfica em Métamorphose (1988–1990).
Analogamente, o machinima pode ser compreendido como resultado desse
tipo de apropriação criativa, quando, de forma similar a Paik, Galloway,
Rabinowitz e Fontenoy, os Rangers utilizaram as engines5 de jogos para produção
fílmica. Com isso, eles subverteram a funcionalidade de Quake e operaram fora
5. A engine corresponde à estrutura do jogo. Diferentes engines são responsáveis
por diferentes aspectos do jogo, a exemplo da engine física, a qual controla a gravidade
interna do ambiente. É ela que define, por exemplo, o que acontecerá caso um carro colida
com uma parede.
A intervenção no machinima
| 385
do campo de ação previsto inicialmente pelos desenvolvedores. Afinal, como
afirma Machado (2002, p. 23):
O que faz [...] um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às
determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da
máquina ou do programa de que ele se utiliza, é manejá-los no sentido contrário
de sua produtividade programada. Talvez até se possa dizer que um dos papeis
mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justamente a recusa
sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir
o projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida,
as suas funções e finalidades.
Esse autor ressalta a subversão da funcionalidade técnica como uma das
ações artísticas mais importantes em uma sociedade tecnocrática. Tal consideração é particularmente aplicável aos criadores de machinima, uma vez que
eles geralmente utilizam plataformas que possuem um objetivo predeterminado,
o qual não é cumprido na realização audiovisual.6 Assim, eles subvertem a função
dos jogos e os reinventam como meios de realização fílmica.
Não obstante, apesar dessa origem transgressora, a forma encontrada pelos
primeiros criadores de machinimas para o seu estabelecimento foi a sua associação com cinema clássico. Dessa forma, eles se voltaram à narrativa clássica e
à mimetização do mundo, ao invés de investigarem a diversidade de possibilidades compreendidas pela apropriação dos ambientes virtuais.
Por outro lado, as obras experimentais que se distanciam dessa narrativa
retomam esse ímpeto transgressor dos artistas, o qual permeia a subversão que
Machado destaca. Com isso, elas também auxiliam no entendimento da própria
noção de machinima, pois, através delas, é possível aos artistas pesquisar formas
de composição audiovisual, a partir dos recursos e das características dos ambientes virtuais. Esses filmes podem expandir o formato consolidado com o cinema
clássico e também questionar as próprias ideologias propagadas pelos jogos.
Quando esse questionamento é realizado, configura-se o que esse autor entende
por metalinguagem da mídia.
6. Um exemplo de machinima que ressalta a subversão do jogo em sua proposta é
Another Day of Depression in Kowloon (Ip Yuk-Yiu, 2012, Hong Kong). Feito no jogo
de tiro em primeira pessoa Call of Duty: Black Ops (2010), esse filme é uma viagem pelas
paisagens despovoadas da cidade de Hong Kong conforme simulada no jogo.
386
|
Fernanda Albuquerque de Almeida
Para Machado (2002, p. 26, grifo do autor), a metalinguagem da mídia ocorre quando há “um ataque por dentro” ou “uma contaminação interna, que faz com
que essas estruturas deixem momentaneamente de funcionar como habitualmente
se espera, para que as possamos enxergar por um outro viés, preferencialmente
crítico”. O autor desenvolve essa linha de pensamento em relação à videoarte, a
qual considera um dos primeiros lugares em que essa consciência se constituiu
desde o início, dado que boa parte das pesquisas plásticas em vídeo ocorreu através da perturbação dos signos audiovisuais da televisão e da desmontagem de
seus programas. Além de Paik, outro exemplo é Antoni Mundanas, cuja obra
evidencia a dominação cultural imperialista através de compilações de imagens
similares captadas em televisões do mundo inteiro.
Outros autores, entre os quais estão Cannon (2007) e Alessandro Ludovico
(2004), acreditam que essa autorreflexão marca também e especialmente as modificações artísticas realizadas em jogos digitais. Cannon, por exemplo, compreende o machinima como uma modalidade de modificação artística, o que significa
que ele envolve a reutilização criativa de softwares ou hardwares de jogo para
um resultado especificamente artístico. Assim também pensa Ludovico (2004,
tradução nossa), que declara:
Mais e mais artistas estão hackeando os códigos dos jogos de modo a desconstruir o paradigma de entretenimento adicionando valores sociais, descontextualizando os personagens principais e as suas ações, e subvertendo as regras
comuns de contraposição. Dessa forma, os significados são definitivamente
alterados e a paisagem digital é claramente manipulada.7
Esse autor constata uma tendência dos artistas que trabalham com os jogos
digitais e que envolve a modificação desses jogos através de diversos processos.
Esses abrangem desde o deslocamento dos personagens e suas ações até a
interferência no seu código de programação. Assim, a partir do momento em que
altera esses ambientes de modo a questionar seus paradigmas, a figura do artista
7. More and more artists are hacking into games’ codes in order to deconstruct
the entertainment paradigm by adding social values, decontextualizing lead characters
and their actions, and subverting the usual rules of contraposition. In this way, the
meanings are definitively changed and the digital landscape is clearly manipulated.
(original)
A intervenção no machinima
| 387
como modificador de jogos coincide com a do hacker. Para Juan Martín Prada
(2012, p. 241-242, tradução nossa), é como se o artista se tornasse uma modalidade de hacker cultural ao manipular “as estruturas tecnoseminóticas imanentes
aos produtos de entretenimento, distorcendo-as, subvertendo-as, fazendo-as derivar a outras esferas de sentido”.8 Dessa forma, os artistas modificam o que é
produzido com os jogos e outros produtos de entretenimento quando eles intervêm nas suas formas de representação.
Contudo, não são apenas as mídias ou os produtos (e as produtoras) de
entretenimento que são influenciados pelas atividades artísticas. O movimento
inverso também ocorre e eles exercem influência sobre a arte. Machado (2002,
p. 29) se apoia no que Walter Benjamin (1969, p. 72) pensa sobre a fotografia e
o cinema para explicar que a questão principal não está em considerar ou não os
novos meios de expressão, como o vídeo e as histórias em quadrinhos, obras de
arte, mas “perceber que a existência mesma desses produtos, a sua proliferação
e a sua implantação na vida social colocam em crise os conceitos tradicionais e
anteriores sobre o fenômeno artístico, exigindo reformulações mais adequadas
à nova sensibilidade que agora emerge”. Dessa forma, os limites entre a arte e
os produtos industriais (de entretenimento) se tornam menos rígidos, estabelecendo a necessidade de um novo pensamento crítico sobre as questões que
perpassam as recentes produções expressivas.
De forma similar, tanto a noção de machinima quanto as obras experimentais
desempenham um papel subversivo e muitas vezes crítico em relação às plataformas apropriadas. Elas influenciam as ferramentas que os desenvolvedores
disponibilizam aos usuários, como, por exemplo, as funcionalidades para criação
de filmes incluídas em The Sims 2 ou até mesmo as engines voltadas especificamente à realização de machinimas.9 Não obstante, o movimento contrário
também ocorre. Isso porque a criação de filmes em ambientes virtuais só foi
possível com a adição da ferramenta demo recording em Quake, a qual
possibilitava ao jogador registrar as suas ações no ambiente virtual desse jogo.
8. la figura del artista como una modalidad de hacker cultural que manipula las
estructuras tecnosemióticas inmanentes a los productos del entrenimiento
distorsionándolas, subvirtiéndolas, haciéndolas derivar hacia otras esferas de sentido.
(original)
9. Há engines desenvolvidas com o único objetivo de produzir filmes. Alguns
exemplos são iClone e Moviestorm.
388
|
Fernanda Albuquerque de Almeida
* * *
Tendo em vista o que foi abordado até este momento, pode-se inferir que a
intervenção ocorre nos filmes e na noção de machinima em vários aspectos da
sua criação. Quando a função do jogo é subvertida e ele é transformado em um
meio de produção audiovisual, caracteriza-se a intervenção funcional. Por sua
vez, quando esse ambiente é modificado para a realização dos filmes qualificase a intervenção do ambiente virtual (ambiental). Essas modificações podem
ocorrer como a adição de elementos discretos, como texturas e animações, ou a
desconstrução das imagens fornecidas com o ambiente original.
Essas mesmas intervenções ambientais podem representar atos de
resistência. Resistir significa aqui opor-se a algum aspecto desse ambiente. Desse
modo, a resistência pode ocorrer em relação ao discurso ou a narrativa do jogo,
ou ainda às suas imagens. Na primeira situação, questionam-se os signos e os
significados que estão sendo passados com as representações do jogo. Na
segunda, as imagens são geralmente submetidas a processos de desconstrução,
de modo a romper com seus elementos figurativos. Nesses contextos, resistir se
aproxima da noção de metalinguagem da mídia apresentada por Machado, em
que a obra se constitui como um ataque “por dentro”, ou seja, uma forma de
criticar as mídias através da modificação dos seus elementos ou até mesmo da
sua estrutura.
Seguindo essa linha de pensamento, o termo “resistência de mídia” foi
associado ao machinima e à crescente produção de conteúdo amador na internet
por Elijah Horwatt (2008). Para o autor, essas produções são realizadas muitas
vezes por indivíduos que desejam se engajar com os veículos e as formas
predominantes de comunicação visual, o que é possibilitado pela crescente
acessibilidade aos jogos e às câmeras digitais. Segundo Horwatt (2008, tradução
nossa), apesar de parecerem exemplos de fan fiction, muitas obras de machinima
constituem críticas radicais, “tentando redefinir as políticas e a ideologia da
cultura dos jogos digitais ao invés de louvá-la”.10 O que significa que há obras
de machinima que compõem críticas aos jogos.
10. attempting to redefine the politics and ideology of video game culture rather
than praise it. (original)
| 389
A intervenção no machinima
Um exemplo que atua nesse sentido, resistindo ao discurso que permeia o
jogo Tomb Raider, é She Puppet11 (PEGGY AHWESH, 2001, Estados Unidos).
Nesse filme, as expectativas de desempenho da protagonista Lara Croft são
desestabilizadas pela sua morte recorrente. Outro exemplo é a série Ready for
Action12 (KENT SHEELY, 2013, Estados Unidos) (Figura 16), na qual avatares
armados de diversos jogos de tiro em primeira pessoa são registrados à mercê
do transporte público. Como em She Puppet, os avatares, que supostamente
desempenhariam ações como correr, pular e atirar, são deslocados para situações
incomuns no jogo. Por sua vez, um exemplo de resistência às imagens originais
é a série Adaptation13 (KENT SHEELY, 2010, Estados Unidos) (Figura 17). Ela é
constituída por três filmes, cada um representando uma fase do processo de
adaptação do artista após a sua mudança para Nova York. Com ritmos diversos
por representarem períodos distintos, eles abarcam imagens abstratas captadas
em engines de jogos modificados.
Figura 16 – Ready for Action
Figura 17 – Adaptation
Assim, considerando os exemplos mencionados e a analogia com o texto
de Machado, constata-se que há uma relação entre o machinima e a ideia de
intervenção, que se revela tanto na constituição da sua noção quanto na composição de muitos filmes experimentais, cuja crítica aos ambientes virtuais é parte
da sua proposta. Dessa forma, as ações do criador no ambiente virtual, em suas
diversas funções, têm caráter intervencionista, uma vez que tomam parte em
espaços previamente existentes e, muitas vezes, alteram as suas características e
a sua estrutura, além de influir em seu desenvolvimento.
11. Disponível em: <http://vimeo.com/9197535>.
12. Disponível em: <http://vimeo.com/user5165543/videos/search:ready%20for%
20action/sort:date>.
13. Disponível em: <http://www.kentsheely.com/adaptation>.
390
|
Fernanda Albuquerque de Almeida
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| 391
Natureza e ciberpercepção:
explorações artísticas e ambientais
EUNICE MARIA DA SILVA*
ARTUR MATUCK**
Resumo: Este artigo explora as possibilidades da ciberpercepção para a apreensão
da natureza estabelecento conexões entre os modos de circulação de arte na
contemporaneidade e as possibilidades de novas formas de percepção que estão
se configurando com os recursos virtuais e reticulares. Uma pergunta guiou o
percurso da investigação: qual o conhecimento que se pode obter através da
internet sobre a Floresta de Fontainebleu, retratada pelos pintores da Escola
de Barbizon no passado? Neste sentido, dois recortes foram selecionados para
explorar o ciberespaço: o artístico e o ambiental buscando evidenciar um
conhecimento emergente da complexa visualidade contemporânea e diverso
daquele estabelecido pela ciência tradicional.
Palavras-chave: Ciberpercepção. Ambiente Múltiplo. Renatureza.
Intervisualidade. Arte Ambiental.
Nature and cyberpercetion: artistic and environmental
explorations
Abstract: This article explores the possibilities of cyberperception in grasping nature
and establishing connections between modes of movement in contemporary art and
the possibilities for new forms of perception that are reformating reticular and virtual
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo – PGEHA USP.
** Professor Doutor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo – ECA USP.
392
|
Eunice M. da Silva e Artur Matuck
resources. One question guided the course of the research: what knowledge can you
get, through the internet, of Forest of Fontainebleau, as depicted by Barbizon School
the painters of the in the past? In this sense, two approaches were selected to explore
cyberspace: the artistic and the environmental. The aim is to provide an emerging
understanding of the complex and diverse contemporary visuality contrating with
that established by traditional science.
Keywords: Cyberperception. Multiple Environment. Renature. Intervisuality.
Environmental Art.
Ciberespaço e ambiente
O ciberespaço é a nova fronteira de interações culturais, simbólicas e sociais
da atualidade. O termo, criado em 1984 por William Gibson, em seu livro de
ficção científica, Neuromancer, tem sido empregado para designar o espaço
virtual onde acontecem as interações e comunicações propiciadas por dispositivos
computacionais. O filósofo francês da cultura virtual contemporânea, Pierre Levy,
define o ciberespaço como:
[...] o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores[...] Insisto na codificação digital,
pois ela condiciona o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e tratável
em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informação que
é, me parece, a marca distintiva do ciberespaço. (LÉVY, 1997, p. 92).
Lucia Leão, artísta plástica e professora do programa de pós-graduação em
Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, aponta outros aspectos do ciberespaço:
Como pensar o ciberespaço, esse gigantesco e quase-infinito labirinto de
interações da era contemporânea? [...] um território em constante ebulição.
Camaleônico, elástico, ubíquo e irreversível, o ciberespaço não se reduz a
definições rápidas. (LEÃO, 2004, p. 9).
O que nos interessa aqui é o aspecto plástico e fluido que surge nas duas
definições, pois situam o caráter caótico, diante da multiplicidade de opções, que
o ciberespaço pode apresentar aos pesquisadores e internautas. No entanto,
justamente essa multiplicidade de opções, ou essa plasticidade alimentada por
todos os interessados em um determinado assunto, pode contribuir para um
conhecimento diferenciado do ambiente e da arte.
Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais
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Roy Ascott, artista e teórico britânico, já antevia, em 1990, o impacto que
o desenvolvimento tecnológico teria sobre o indivíduo, a arte, a sociedade, e até
o planeta, em seu ensaio Is There Love in the Telematic Embrace?
A última década viu as duas poderosas tecnologias da computação e das telecomunicações convergirem em um campo de funções, o que tem atraído em seu
abraço outros meios eletrônicos, incluindo vídeo, síntese de som, sensoriamento
remoto, e uma variedade de sistemas cibernéticos. [...] A “cultura telemática”,
que acompanha os novos desenvolvimentos consiste em um conjunto de comportamentos, ideias, meios de comunicação, valores e objetivos que são significativamente diferentes daqueles que moldaram a sociedade desde o Iluminismo. Novas metáforas culturais e científicas e paradigmas estão sendo gerados,
novos modelos e representações da realidade estão sendo inventados, novos
meios expressivos estão sendo fabricados. (ASCOTT, 2007, p. 233)1
O avanço das tecnologias computacionais e digitais produziu mídias que
provocam novas visões e perspectivas da natureza, do ambiente e da própria arte,
possibilitando uma visualidade expandida que se configura no ambiente virtual
do ciberespaço. Possibilita também uma visualidade em camadas de informação,
gerando imagens e significados em dispositivos diferentes que podem se
sobrepor. O conhecimento advindo dessa forma de olhar/visualizar é radicalmente diverso do proporcionado anteriormente pela era da imagem impressa ou
da televisão. Uma das principais diferenças é a multiplicidade de escolhas possíveis e a liberdade de definir a rota nessas escolhas.
A Floresta de Fontainebleau e a Escola de Barbizon: uma
exploração no ciberespaço
A sobreposição de olhares e informações pode ser demonstrado com a Floresta de Fontaineblau, que abriga em suas proximidades o povoado de Barbizon.
O lugar se tornou famoso por ser escolhido pelos pintores do realismo para retratar
a realidade da paisagens. Nosso conhecimento sobre ele foi configurado por textos
e pelas próprias pinturas produzidas pelos artistas do que se convencionou chamar
de Escola de Barbizon. O conhecimento sobre a vegetação e a aparência da flo1. Tradução livre da autora.
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Eunice M. da Silva e Artur Matuck
resta era acessível, para a grande maioria dos interessados, apenas pelas pinturas,
ou melhor, pela reprodução de pinturas em livros de história da arte.
As questões estéticas ligadas à Escola de Barbizon, proveniente da análise
de historiadores e críticos, faziam parte do conhecimento de um público restrito,
normalmente estudantes ou pesquisadores. Ocasionalmente, era possível ter
acesso a uma foto da floresta em algum livro especializado, mas as imagens que
formaram um referencial comum da floresta eram provenientes das pinturas feitas
por pintores do “realismo”. A arte tornou esse local conhecido e divulgou suas
características para o mundo todo. A perspectiva da arte é com certeza uma das
mais importantes em relação à Floresta de Fontainebleau. Mas no “espaço digital”
é possível explorar outros aspectos e ampliar o conhecimento sobre o lugar, a
floresta, sua aparência e também sobre a arte. Basta digitar Floresta Fontainebleau
para se ter acesso a 29.300 possiblidades ligadas à essas palavras. Imagens, artigos
acadêmicos, blogs, mapas interativos e comunidades em redes sociais descortinam várias abordagens ou “trilhas” a seguir. Os primeiros níveis já disponibilizarão informações básicas como endereço e telefone para atendimento aos
turistas. Também é possível ver comentários coletados de sites de viagens.
Figuras 1 e 2 – Destaque de página da web com informações sobre
Fontaineblau e sobre Barbizon
É possível saber que “A Floresta de Fontainebleau é hoje uma das principais
fornecedoras de madeira (figura 1) para a produção de tonéis de carvalho, onde
os vinhos franceses envelhecem.” Essa informação, coletada automáticamente
da Wikipedia, acrescenta uma nova camada de conhecimento ao históricoartístico, uma vez que o carvalho está ligado à própria identidade das regiões
temperadas.
Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais
| 395
Figuras 3 e 4 – Pesquisa Floresta de Fontainebleau na internet resultando em grupo de
imagens que misturam pinturas e fotos atuais do lugar.
No entanto, o link para a Vila de Barbizon sugere outro percurso: o destaque
da página chama a atenção para o aspecto pitoresco da “Vila” com galerias de
arte e construções antigas. Um grupo de imagens mistura fotos da floresta com
pinturas de autores variados, de Corot a pintores desconhecidos que divulgam
seus trabalhos na internet. Rapidamente é possível conhecer dezenas de obras
de Corot e outras imagens da floresta, camada sobre camada: a floresta, a pintura,
a localização, as pessoas, as histórias.
O conhecimento do local soma-se à ótica dos que frequentam os bosques
de Fontainebleau hoje, com fotos de picnics em lugares que já foram pintados
pela Escola de Babizon. Outra camada leva à história da Floresta de
Fontainebleau, em que se acrescentam informações sobre a arqueologia do local,
inclusive com inscrições do neolítico em cavernas e rochas.
Apenas a colaboração de centenas de pessoas colocaria “na ponta dos dedos”
imagens de um bosque da floresta lado a lado com a reprodução da pintura de
Corot. Parecem ser do mesmo lugar e vemos que há mais árvores na foto recente
do que na pintura. Serão os mesmos carvalhos da pintura de Corot que cresceram?
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Eunice M. da Silva e Artur Matuck
Figura 5 – Mapa da França com “pin” sobre a Floresta de Fontainebleau.
No livro A Pintura Impressionista, há uma referência a esses carvalhos quando
o autor se refere a Barbizon:
[...] Nestes anos 30, um número crescente de jovens pintores, deslocar-se-ia à
zona florestal de Fontainebleau, a cerca de sessenta quilometros a sudeste de
Paris, para estudar a natureza. Era aí que se situava a aldeia de Barbizon.
Com seus carvalhos nodosos, os seus terrenos pantanosos e a forma insólita
de seus rochedos, esta zona disposta em vales apresentava uma paisagem austera
e variada. (FEIST; MILHEIRO; WALTHER, 1995, p. 24)
A referência aos carvalhos surge novamente e agora a sua aparência
“nodosa” acrescenta mais uma informação visual ao repertório sobre a floresta.
Essa referência do livro demosntra que, em nenhum momento, diminui-se a
importância dos meios convencionais de pesquisa, mesmo para os fins aqui
propostos. Os meios digitais e a rede, no entanto, trazem possibilidades novas
que se acrescentam às já existentes. Sob a pesquisa “árvores de carvalhos”, por
exemplo, podemos obter 3.010.000 links e outros milhares de fotos.
Figura 6 – Vista da Floresta de Fontainebleau com indicador da localização da foto. Google Maps.
Figura 7 – Localização da Vila de Barbizon na extremidade da Floresta.
Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais
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Figuras 8 e 9 – “Ponto de interesse” e Rua do Atelier de Theodore Russeau.
Em um dos comentários dos internautas, é possível ler: “Fontainebleau, o
pulmão da França!” O texto está em francês, mas dois “clicks” em um pequeno
aplicativo traduz instantanemente o texto. É fascinate a possiblidade de entrar
em contato direto com essa pessoa e se aprofundar em sua observação. Perguntar
se ela já esteve na floresta, sobre os carvalhos e se conhece as pinturas que foram
feitas no local e acrescentar outras camadas provenientes de todo esse material
disponibilizado por internautas que trazem, além das fotos, suas histórias e
conhecimentos.
Um dos melhores recursos do ciberespaço são as explorações da superfície
terrestres captadas pelos de satélites que mesclam mapas e imagens:
Com um click, podemos visualizar o verde da floresta no mapa de ruas ou
por satélite. Ao posicionar o mouse sobre qualquer foto abaixo do mapa, um
indicador mostra a localização exata de onde foi feita a foto e é possível solicitar
a inclusão no “círculo” de conhecidos do autor da foto, para “seguir suas
postagens” ou para se comunicar com ele.
É possível seguir a indicação de “ponto de interesse”: o atelier do pintor
Theodore Rousseau, que morou em Barbizon até morrer.
Um pequeno link nos remete a uma página de atrativos turísticos de
Barbizon, com muita informação sobre os pintores, inclusive em áudio, endereços
e compartilhamentos em redes sociais.
Figure 10 – Página da internet com vários
roteiros turísticos da região. Acima o
roteiro para Barbizon com informações
sobre os artistas que moraram ou
pintaram na vila, muitos deles da Escola
de Barbizon.
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Eunice M. da Silva e Artur Matuck
Figure 11 - Página de site que contem link
para informações detalhadas da floresta de
Fontainebleau
No mesmo site, outro link nos leva
de volta à página da Floresta onde é
possível escolher entre vários roteiros
para viajar – ou para seguir virtualmente.
O site contém muitas informações sobre
as árvores e animais. Aqui descobrimos
uma importante informação ambiental: a
Floresta faz parte da Reserva da Biosfera2
de Fountainebleau e Gâtinais. As informações estão disponíveis através da página que é mantida pelos “L´amateur de
la Fôret de Fontainebleau”.
Todo esse percurso no ciberespaço começou com algumas perguntas: como
é o local onde pintaram os artistas da Escola de Barbizon e que características
tem esse lugar onde Corot, Milet, Rousseau e outros escolheram para buscar a
“pintura ao ar livre”?
As respostas acrescentaram camadas de conhecimento sobre a arte, o
ambiente e a história da Floresta de Fontainebleau, situando-se entre várias
disciplinas, como a geografia, a biologia, a história da arte e a ecologia. Podem
ser aprofundadas em qualquer direção. Mas esse “entre”, que caracteriza a
interdisciplinaridade, já configurou outra relação com a Floresta de Fontainebleau
e a pintura da Escola de Barbizon, uma outra visualidade diferente de quem visita
fisicamente o local, pois foi montada com múltiplos pontos de vista e perspectivas,
inclusive com escalas diferentes, propiciadas pela visão do satélite.
Estamos imersos em recursos visuais e instrumentos que permitem uma
apreensão diferenciada da Terra, mais rica em dados, interações e visualidades,
possibilitando um conhecimento inacessível para a maioria das pessoas em outras
épocas. As novas tecnologias, e seus formatos reticulares de distribuição, alteram
2. Reservas da Biosfera são áreas de ecossistemas terrestres e/ou marinhos
reconhecidas pelo programa MAB/UNESCO como importantes em nível mundial para
a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável e que devem servir como
áreas prioritárias para experimentação e demonstração dessas práticas. (“MaB – O
Programa Homem e Biosfera”, [14/08/2014]).
Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais
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Figuras 12 e 13 – Múltiplas visões da Floresta seguindo a localização
da foto destacada até 60m do solo.
o alcance, a escala e a profundidade do nosso conhecimento, da nossa percepção
e também de nossas ações sobre o ambiente.
Neste caso, as referências e imagens propiciadas pelos diferentes contextos
durante a “navegação” no ciberespaço formaram um novo panorama, que
complementou o conhecimento sobre o lugar onde os pintores de Barbizon
fizeram muitas de suas pinturas realistas, mas também transformou a percepção
sobre a Floresta de Fontainebleau, possibilitando a emergência da
ciberpercepção. Ao olhar para as dezenas de fotos de vários ângulos, de autores
diferentes, em todas as estações do ano e de épocas diferentes, surge algo como
uma cultura em comum com essas pessoas desconhecidas, ao mesmo tempo em
que emerge uma visualidade própria do lugar, que perpassa o tempo e que
interessou aos pintores do realismo com sua luminosidade, folhas outonais e
carvalhos nodosos, em uma natureza, que permanece, mas que, ao mesmo tempo,
é diferente, porque revelada em seus múltiplos ambientes, uma renatureza.
400
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Eunice M. da Silva e Artur Matuck
Referências bibliográficas
ASCOTT, Roy. Is There Love in the Telematic Embrace? In: Telematic embrace
visionary theories of art, technology, and consciousness. Berkeley, Calififornia,
London: University of California Press London, 2007.
FEIST, P.H.; MILHEIRO, A.; WALTHER, I.F. A pintura impressionista: 1860 1920. O impressionismo em França - Parte 1. Koln, London, Madrid New York,
Paris, Tokyo: Taschen, 1995.
LEÃO, L. Derivas: cartografias do ciberespaço. São Paulo: Annablume; Senac, 2004.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: São Paulo Editora 34, 1997.
Digitais:
FONTAINEBLEAU, Floresta. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Floresta_de_Fontainebleau acessado em 02/08/
2014
FONTAINEBLEAU, Floresta. In: Google Maps. Dísponível em www.google.com
acessado em 25/07/2014
Reserva da Biosfera, disponível em http://www.rbma.org.br/mab/
unesco_01_oprograma.asp acessado em 14/08/2014
UNESCO. Encyclopédie L´amateur de la Fôret de Fontainebleau. Disponível em
http://www.fontainebleau-foret.fr/ acessado em 27/07/2014.
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Problemas estéticos do cinema experimental
DONNY CORREIA*
EDSON LEITE**
Resumo: O presente artigo propõe a observação de alguns problemas existentes
no estudo do cinema experimental sob a ótica da estética clássica, mais especificamente na visão de Hegel. Propõe expor alguns pontos de vista de autores
como Sigfried Kracauer e Walter Benjamin, que procuraram estabelecer bases
para um estudo estético próprio do cinema entendendo que, por se tratar de
uma arte nova, baseada na percepção por meio do choque de imagens, o cinema
exigiria um modelo forjado a partir da modernidade, com influências das rupturas propostas por movimentos de vanguarda, em particular, o dadaísmo.
Palavras-chave: Cinema Experimental. Estética. Vanguarda. Dadaísmo.
Aesthetic problems of the experimental cinema
Abstract: This article intends to observe some of the problems concerning the study
of the experimental cinema from the perspective of classical aesthetics, specifically
in Hegel’s studies. It proposes to expose some points of view of authors such as Siegfried
** Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da
Universidade de São Paulo na linha de pesquisa Produção e Circulação da Arte
** Docente da ECA USP, Artur Matuck tem atuado no Brasil, Estados Unidos,
Canadá e Europa como professor, pesquisador, escritor, artista plástico, diretor de vídeo,
performer, produtor de eventos de telearte e mais recentemente como filósofo da
comunicação contemporânea e organizador de simpósios internacionais. Desde 1977, tem
apresentado conferências, oficinas, e projetos, nacional e internacionalmente, em tópicos
diversos tais como Artes Mediáticas, Arte e Tecnologia, Telecomunicações e Artes,
Televisão Interativa, Arte Performance, História da Arte, Arte Combinatória, Direitos
Autorais, e Criação Textual Computacional.
402
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Donny Correia e Edson Leite
Kracauer and Walter Benjamin, who sought to establish a proper foundation for
the aesthetic study of film, understanding that, because it is a new art, based on the
perception achieved by the clash of images, film would require a model forged from
modernity, with influences of ruptures proposed by avant-garde movements, in
particular, Dadaism.
Keywords: Experimental Cinema. Aesthetics. Avant-Garde. Dadaism.
Este artigo pretende estabelecer um percurso de discussões sobre a estética
do filme, esclarecendo um pouco a discussão no que diz respeito à produção e à
recepção de obras experimentais. Henri Angel inicia seus estudos sobre a estética
do filme com algumas questões elementares:
Três questões se colocam simultaneamente a quem se interroga sobre a estética
do cinema: estamos diante de uma arte legítima ou de um modo de expressão
que desborda das perspectivas artísticas? O cinema é uma arte autônoma [...]?
É ele, ao contrário, o produto das seis demais artes? (ANGEL, 1982, p.5)
Uma vez tornado pelos artistas de vanguarda ferramenta de criação, o
cinema passa a gerar efeitos de sentido. A arte cinematográfica passa a ser uma
realidade e há uma clara cisão entre o cinema comercial e o cinema criativo, experimental. Isto gera a necessidade de se pensar o cinema esteticamente, conferindolhe valores e medindo sua real função artística. Este é o debate há muito travado
entre várias correntes dos estudos de estética e causa divergências quando
estudado segundo as leis da estética clássica.
Em seu tratado sobre a estética, Hegel (2009) procura definir como obra
de arte algo que existe realmente e é passível de reconhecimento. Para ele, a obra
de arte verdadeira é fruto do espírito.
Temos na arte um particular modo de manifestação do espírito; dizemos que a
arte é uma das formas de manifestação porque o espírito, para se realizar, pode
servir-se de múltiplas formas. O modo particular da manifestação do espírito
constitui, essencialmente, um resultado. (HEGEL, 2009, p. 9)
Segundo Hegel, é graças à arte que nos libertamos do mundo obscuro e perturbado e ascendemos ao reino tranquilo das aparências amigáveis. No entanto,
ele mesmo reconhece quão vaga pode ser esta afirmação:
Problemas estéticos do cinema experimental
| 403
A determinação geral que permanece após todas as eliminações é a de que a
arte destinar-se-ia a despertar em nós sensações agradáveis mediante a criação
de formas com a aparência da vida. Além de nada poder ser mais vago do que
esta definição, a expressão “sensações agradáveis” é de uma trivialidade
impressionante. (HEGEL, 2009, p. 12)
Ao falarmos do cinema experimental, que se consolida a partir da experiência dadaísta, mesmo nas artes visuais, tais manifestações do espírito artístico de
fato partem do caos, e não parece correto dizer que a partir da contemplação de
tais obras recuperemos a tranquilidade ou a liberdade. Longe disso, tais filmes e
obras dadaístas parecem nos colocar numa posição desconfortável, dado o confronto com a realidade do mundo moderno. Sobre essa realidade irreconciliável,
Hegel esclarece que:
Ao contrário do que acontece na natureza, a arbitrariedade e a anarquia reinam,
absolutas, no espírito em geral e, sobretudo, na imaginação, pelo que os seus
produtos, isto é, a arte, se tornam completamente impróprios para o estudo
científico. (HEGEL, 2009, p. 15)
A compreensão estética do cinema requer que se assuma que não há
precedentes de estudos estéticos possíveis de serem aplicados à cinematografia,
como foram à literatura e ao teatro. No entanto, afirma Hebert Read que “toda
obra de arte é produto da imaginação criadora e, para merecer o nome de arte, o
cinema deve ser também produto da mesma fonte” (READ, 1969, p. 41).
Benjamin, discorrendo sobre a estética aplicada ao cinema, indica que:
Gastaram-se vãs sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era ou não arte,
porém não se indagou, antes, se essa própria invenção não transformaria o
caráter geral da arte; os teóricos do cinema sucumbiram no mesmo erro.
Contudo, os problemas que a fotografia colocara para a estética tradicional não
eram mais que brincadeiras infantis em comparação com aqueles que o filme
iria erguer. Daí essa violência cega que caracteriza os primeiros teóricos do
cinema. (BENJAMIN, 1969, p. 72)
Benjamin condena as tentativas que julga frustradas, por parte de alguns
autores reacionários, de interpretar o cinema dentro de uma perspectiva de gênero
idêntico, atribuindo a esta arte um valor sagrado, no sentido sobrenatural (1969,
p. 73).
404
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Donny Correia e Edson Leite
Em 1928, ao assistir a uma adaptação cinematográfica de seu livro, Die
Buddenbroken, o escritor Thomas Mann concluiu que não haveria sentido em
aplicar ao cinema os mesmos critérios formulados pela estética clássica (KUENZLI,
1996, p. 21). E Georg Lukacs completa que:
[...] something new and beautiful has developed in recent times, but instead of
taking it as it is, people are attempting to classify it [...]. The cinema is regarded
either as an instrument of education or as a cheap substitute for the theater; either
didactic or economic. Few people if any remember that something beautiful
belongs first and formost to the realm of beauty definition and evaluation is
properly a task for aesthetics.1 (apud ELSAESSER, 1996, p. 21)
Em outras palavras, Lukacs sugere que o cinema propõe um desafio à
estética clássica, o qual precisa de uma resposta, e não pode ser meramente
relegado à esfera da “vida” simplesmente, em oposição à esfera da “arte”.
The images of the cinema [...] possesses a life of a completely different kind
(from those on stage); in one word, the become – fantastic. But the fantastic is
not opposite to living, it is another aspect of life: life without presence, without
fate, without causality, without motivation; a life with which the core of our
being will never be identical, nor can it be; and even if it – often – yearns for
this kind of life, this yearning is merely after a strange precipice, something a
long way off, inwardly distanced. The world of cinema is a life without
background or perspective, without difference or properties or qualities. (The
cinema) is a life without measures or order, without being or value, a life without
soul, mere surface [...] the individual moments, whose temporal sequence brings
about the filmed scenes, are only joined with each other insofar as they follow
each other without transition and mediation. This is no causality which could
joint hem, or more precisely, its causality is free from and unimpeded but any
notion of content. “Everything is possible”: this is the credo of cinema, and
1. [...] algo novo e belo desenvolveu-se recentemente, mas ao invés de ser
considerado como é, as pessoas tentam classificá-lo [...]. O cinema é considerado ou como
instrumento educativo, ou como um substituto barato para o teatro; ou didático, ou
econômico. Poucas pessoas, se tanto, lembram que algo belo pertence primeiro, e acima
de tudo, ao domínio do belo e sua definição e avaliação são tarefas próprias da estética.
(Tradução nossa)
Problemas estéticos do cinema experimental
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because its technique expresses at every moment the absolute (even if only
empirical) reality of this moment, “virtuality” no longer functions as a category
opposed to “reality”: both categories become equivalent, identical. Everything
is true and real, everything is equally true and real; this is what a sequence of
images in the cinema teaches us.2 (apud ELSAESSER, 1996, p. 21)
Esta noção de que tudo é real e possível era também o mote de dadaístas
como Raoul Hausmann. Talvez, por isso, a apropriação do novo meio de
reprodução da realidade tenha gerado a necessidade de se discutir onde residem
suas propriedades estéticas. Elsaesser (1996, p. 23) lembra que, no começo de
sua história, o cinema era apenas uma diversão de feiras e espetáculos de
voudeville, em que a percepção da massa era erotizada, estimulada pela ilusão
criada a partir da intermitência de imagens que criava a sensação de movimento.
Mais adiante, no curso da história desse aparato,
If the Dadaists took an interest in the phenomenon of the masses eroticized by
cinematic spectacle, they were equally alert to the fact that here was a machine
organized in a peculiarly contradictory way: the cinematic apparatus is devised
to function so to disguise the actual movement of the image (passing through
2. As imagens do cinema [...] possuem uma vida de forma completamente distinta
(daquela dos palcos); em outras palavras, elas se tornam – fantásticas. Mas o fantástico
não é oposto ao viver, é um outro aspecto da vida: vida sem presença, sem destino, sem
causalidade, sem motivação; uma vida na qual o cerne de nosso ser nunca será idêntico,
nem pode, e mesmo que ele – por vezes – aspirar a este tipo de vida, esta aspiração busca
algo no vazio, algo que está longe, completamente distante. O mundo do cinema é a vida
sem antecedentes ou perspectiva, sem diferença de propriedade ou qualidade. (O cinema)
é a vida sem medidas ou ordem, sem existência ou valor, uma vida sem alma, meramente
superficial [...] os momentos individuais, cuja sequência temporal da forma às cenas
filmadas, são apenas unidos uns aos outros enquanto seguem uns aos outros sem transição
ou mediação. Não há causalidade que os pudesse juntar, ou mais precisamente, sua
causalidade é livre e desimpedida pela noção de conteúdo. “Tudo é possível”: este é o
credo do cinema, e porque sua técnica expressa a todo momento (mesmo que
empiricamente) a realidade desse momento, “virtualidade” não mais serve como categoria
oposta a “realidade”: ambas as categorias tornam-se equivalentes, idênticas. Tudo é
verdadeiro e real, tudo é igualmente verdadeiro e real; isto é o que nos ensina uma
sequência de imagens no cinema. (Tradução nossa)
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Donny Correia e Edson Leite
the projector gate) in order to create a non existent movement in the image.
Energy in the cinema appears not as in productive machines, to transmit,
transfer, or transform movement, but in order to nullify, disguise, and revalue
movement: mechanics has become the metamechanics of imaginary motion.
This gives the cinema, in terms of its apparatus, the status not of an optical toy
[...], but a philosophical toy, a machine transforming the useful energy of cogs
and transmission belts into a useless energy of illusionist simulation.3
(ELSAESSER, 1996, p. 23)
Pensamos que seja esta relação da máquina com a criação da ilusão a
principal característica estética do cinema, uma vez que se trata de uma arte surgida em tempos de capitalismo e de avanço tecnológico. Portanto, seria um tanto
arriscado tentar enquadrar as funções do cinema dentro de uma estética clássica.
Finalmente, Elsaesser observa que
The insertion of art into the sphere of technological, capitalist modes of
production becomes, according to Benjamin, the only position from which a
critique of that mode of production is possible. In this respect, the idea of
cinema, viewed from the perspective of its particular apparatus, could serve as
a sort of model for the representation of the relation between body and matter.4
(ELSAESSER, 1996, p. 24)
3. Se os dadaístas se interessaram pelo fenômeno da massa erotizada pelos
espetáculos cinematográficos, estavam igualmente cientes do fato de que ali estava uma
máquina organizada de maneira peculiarmente contraditória: o aparato cinematográfico
é concebido de maneira que disfarce o real movimento da imagem (que passa pela janela
do projetor), de maneira a criar um movimento não existente na imagem. A energia no
cinema aparece não como em máquinas de produção, para transmitir, transferir, ou
transformar movimento, mas para anular, disfarçar e revalorizar o movimento: a mecânica
se tornou metamecânica do movimento imaginário. Isso confere ao cinema, no que tange
ao seu aparato, não o status de um brinquedo ótico, [...] mas de um brinquedo filosófico,
uma máquina transformando a energia útil, de rodas dentadas e correias, em vã energia
de simulação ilusionista. (Tradução nossa)
4. A inserção da arte numa esfera dos modos de produção tecnológicos capitalistas
se torna, segundo Benjamin, no único meio pelo qual se pode criticar o meio de produção.
A esse respeito, a ideia do cinema, visto da perspectiva de seu aparato em particular,
poderia servir como um modelo de representação da relação entre corpo e matéria.
Problemas estéticos do cinema experimental
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A esse respeito, Benjamin nos diz, comparando a materialidade do cinema
com o teatro, arte do qual muito emprestou a linguagem cinematográfica:
Em vez de invocar quaisquer exemplos de grande massa daqueles que se apresentam, fixemo-nos em um especialmente ilustrativo. A presença, no palco, de
um relógio em funcionamento seria sempre inútil. Inexiste lugar, no teatro, para
sua função que é a de marcar o tempo. Mesmo numa peça realista, o tempo
astronômico estaria em discordância com o tempo cênico. Nessas condições,
é a da maior importância para o cinema poder dispor de um relógio a fim de
assinalar o tempo real. Esse é um dos dados que melhor indicam que, numa
circunstância determinada, cada acessório pode desempenhar um papel
decisivo. Estamos aqui bem próximos da afirmação de Pudóviquim, segundo
a qual “o desempenho de um ator, vinculado a um objeto e dependendo deste...
sempre constitui um dos mais poderosos recursos de que dispõe o cinema”. O
filme, então, é o primeiro meio artístico capaz de mostrar a reciprocidade de
ação entre a matéria e o homem. Nesse sentido, ele pode servir com muita
eficácia a um pensamento materialista. (BENJAMIN, 1969, p. 77)
Essa relação entre atores e objetos pode ser observada no filme de Hans
Richter, Ghosts before breakfest (1928), em que utensílios domésticos do dia a
dia, peças do vestuário e ferramentas diversas se revoltam contra os humanos e
ganham vida e vontade próprias. O que Benjamin nos diz é que o processo pelo
qual o filme é feito, ou seja, pela montagem, cria efeitos, elipses e trucagens
visuais que reconfiguram a relação material entre as partes. Segundo Benjamin
(1969, p. 84), “o que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o
homem se apresenta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse
aparelho, ele representa para si o mundo que o rodeia”, ou seja, podemos dizer
que o cinema permite uma melhor observação crítica e analítica de uma realidade.
E Sigfreid Kracauer pergunta retoricamente:
Was the camera not an ideal means of reproducing and penetrating nature
without any distortions? Leading scientists, artists and critics were predisposed
to grasp and acknowledge the peculiar virtues of the emergent medium.5
(KRACAUER, 1997, p. 5)
5. Não seria a câmera o meio ideal de reproduzir e penetrar a natureza sem nenhuma
distorção? Os principais cientistas, artistas e críticos estão predispostos a tomar posso e
reconhecer as virtudes peculiares desse novo meio.
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Donny Correia e Edson Leite
Implicitamente, Kracauer critica a forma tradicional da estética, que vê a
pintura como reprodução da natureza, e questiona se não é o cinema a maneira
mais adequada de se reproduzir aquilo que se vê. Sobre a suposta superioridade
do cinema em relação à pintura, e como esse abre portas a uma percepção muito
superior graças às suas vantagens, Benjamin comenta:
Com relação à pintura, a superioridade do cinema se justifica naquilo que lhe
permite melhor analisar o conteúdo dos filmes e pelo fato de ele fornecer, assim,
um levantamento da realidade incomparavelmente mais preciso. [...] Graças
ao cinema – e aí está uma das suas funções revolucionárias – pode-se reconhecer, doravante a identidade entre o aspecto artístico da fotografia e o seu uso
científico, até então amiúde divergentes. [...] Os bares e as ruas de nossas grandes cidades, nossos gabinetes e aposentos mobiliados, as estações e usinas,
pareciam aprisionar-nos sem esperança de libertação. Então veio o cinema e,
graças à dinâmica de seus décimos de segundo, destruiu esse universo concentracionário [...]. Graças ao primeiro plano, é o espaço que se alarga; graças ao
ralenti, é o movimento que assume novas dimensões. [...] o ralenti não confere
simplesmente relevo às formas do movimento, já conhecidas por nós, mas, sim,
descobre, nelas, outras formas, totalmente desconhecidas, que não representam
de modo algum o retardamento de movimentos rápidos e geram, mais do que
isso, o efeito de movimentos escorregadios, aéreos e supraterrestres. [...] Fica
bem claro, em consequência, que a natureza que fala à câmera é completamente
diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o
homem age conscientemente por um outro onde a ação é inconsciente.
(BENJAMIN, 1969, p. 85-87)
Benjamin reconhece a superioridade da cinematografia no que diz respeito
à apreensão da realidade pela arte pictórica e com entusiasmo ressalta os recursos
técnicos de manipulação da imagem, neste caso, a câmera lenta (ralenti), que é
capaz de criar novas camadas de realidade, buscando no inconsciente uma materialidade verdadeira, que ressalta formas e expressões até então somente possível
pela representação da pintura, mas aí sujeito à subjetividade do artista. Ele compara o efeito alcançado pela pintura e pelo cinema com uma analogia curiosa.
Cabe, aqui, indagar qual é a relação entre o operador e o pintor. A fim de responder, permita-se nos recorrer a uma comparação esclarecedora, extraída da
própria ideia de operação, tal como é empregada na cirurgia. No mundo opera-
Problemas estéticos do cinema experimental
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tório, o cirurgião e o mágico ocupam dois polos opostos. O modo de agir do
mágico, que cura um doente mediante a atuação das mãos, difere daquela do
cirurgião que pratica uma intervenção. O mágico conserva a distância natural
existente entre ele e o paciente [...]. O cirurgião, pelo contrário, a diminui consideravelmente, porque intervém no interior do doente [...]. Em suma: ao
contrário do mágico [...], o cirurgião, no momento decisivo, renuncia a se
comportar, face ao doente, de acordo com uma relação de homem a homem; é
sobretudo através de modo operatório que ele penetra no doente. Entre o pintor
e o filmador encontramos a mesma relação [...]. O primeiro, pintando, observa
uma distância natural entre a realidade dada a ele próprio; o filmador penetra
em profundidade na própria estrutura do dado. As imagens que cada um obtém
diferem extraordinariamente. A do pintor é global, a do filmador divide-se num
grande número de partes, onde cada qual obedece as suas leis próprias.
(BENJAMIN, 1969, p. 82-83)
Com isso, concluiu o autor que o homem moderno está em vantagem quanto
à apreensão da realidade tal e qual, já que
[...] a imagem do real fornecida pelo cinema é infinitamente mais significativa,
pois ela atinge a esse aspecto das coisas que escapa a qualquer instrumento – o
que se trata de exigência legítima de toda obra de arte – ela só consegue
exatamente porque utiliza instrumentos destinados a penetrar, do modo mais
intensivo – no coração da realidade. (BENJAMIN, 1969, p. 83)
Benjamin estabelece uma curiosa relação entre “realidade” e “doente”, no
que diz respeito ao cirurgião e ao filmador. Aqui, o autor parece relacionar a
modernidade da era da máquina, da impessoalidade capitalista e do crescimento
urbano, social e tecnológico a uma doença, em cuja intervenção caracterizaria
uma operação quase no sentido de curar os males dessa modernidade.
Relacionando a questão da recepção da arte enquanto pintura em
comparação com o cinema experimental, que traz para o filme toda sorte de
transgressões já praticadas nas artes plásticas, subvertendo o papel da arte
mediante a sociedade, Benjamin observa que
Para uma burguesia degenerada, o reencontrar em si mesmo tornou-se uma
escola de comportamento associal; com o dadaísmo, a diversão tornou-se um
exercício de comportamento divergente muito violenta, fazendo-se da obra de
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Donny Correia e Edson Leite
arte um objeto de escândalo. O intento era, antes de tudo, de chocar a opinião
pública. De espetáculo atraente para o olho e de sonoridade sedutora para o
ouvido, a obra de arte, mediante o dadaísmo, transformou-se em choque [...];
adquiriu um poder traumatizante. E, dentro disso, favoreceu o gosto pelo
cinema, que possui um caráter de diversionamento pelos choques provocados
no espectador, devido às mudanças de lugares e de ambientes. [...] A pintura
convida à contemplação, em sua presença, as pessoas se entregam à associação
de ideias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já
cede lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar. [...] De fato, a sucessão
de imagens impede qualquer associação no espírito do espectador. Daí vem sua
influência traumatizante[...]. (BENJAMIN, 1969, p. 89)
Benjamin capta bem a natureza estética do novo meio e remete suas
considerações às teorias do choque da montagem desenvolvidas por Sergei
Eisenstein. Em sua reflexão sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica, parece ser o cinema uma forma mais do que adequada à representação
da realidade do homem moderno, visto que tal modernidade age como uma
realidade de choque em cada indivíduo, dada a velocidade que a vida adquire e
as novas configurações sociais vigentes. Para Benjamin:
O cinema é a forma de arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa,
destinada ao homem de hoje. A necessidade de se submeter a efeitos de choque
constitui uma adaptação do homem aos perigos que o ameaçam. O cinema
equivale a modificações profundas no aparelho perceptivo, aquelas mesmas
que vivem atualmente, no curso da existência, o primeiro transeunte surgido
numa rua de grande cidade e, no curso da história, qualquer cidadão de um
Estado contemporâneo. (BENJAMIN, 1969, p 89-90)
A esta observação de Benjamin, a respeito da dureza do filme, como forma
moderna de representação da realidade, Hebert Read complementa afirmando
que:
[...] deve-se reconhecer que o filme não traduz transposição livre e direta do
pensamento, através de um recurso dócil, como o de pintar, mas deve ser
duramente extraído do material desordenado que propicia o mundo visível da
atualidade. [...] A pintura é uma síntese [...] o cinema é essencialmente análise.
(READ, 1969, p. 36)
Problemas estéticos do cinema experimental
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A síntese, neste caso, parece ser um ato de violência cinematográfica,
quando as camadas de imagens e ideias se interpõem ao espectador, que é
obrigado a se relacionar com uma série de ideias simultâneas e assimilá-las num
curto espaço de tempo – este regido pela montagem. Existe uma falta de lógica
no cinema experimental, que, talvez, nos pareça a prerrogativa essencial à fruição
intelectual do espectador, sem a qual não há ato participativo por parte de quem
assiste a uma produção experimental. Esta falta de lógica, para Read, é exatamente
o que confere valor estético ao filme.
Talvez a única unidade possível seja a ausência de qualquer unidade – o filme
é fundamentalmente alógico. Nele os acontecimentos podem advir
simultaneamente; podem ser representados através de mais de uma unidade de
dimensão; o próprio tempo, em si, pode ser controlado. Sua única unidade é a
continuidade. (READ, 1969, p. 38)
O cinema constitui um sistema de produção estética com autonomia e
propriedade, conferindo ao realizador uma independência de suporte e uma
legitimidade artística. O choque parece ser o princípio primordial na construção
cinematográfica, que a diferencia da pintura ou da escultura, e mesmo do teatro.
Este choque está em consonância com a realidade do homem moderno, posto
numa sociedade que não mais dispõe do privilégio do tempo ao seu favor para
exercer a fruição de um mundo que a cerca. Este mundo, agora, é o mundo hostil
da modernidade, da máquina e do relógio. E são as chamadas “sinfonias das
metrópoles”6 as obras filmográficas que melhor retrataram esta mudança no curso
da história humana, ao aplicarem a estética experimental do cinema valendo-se
das técnicas de montagem e construção, que oscilam entre a abstração e o retrato
verídico da sociedade.
6. Estilo de filme experimental realizado ao longo da década de 1920 que pretendia
retratar as grande metrópoles por meio de montagem inventiva e radical, buscando lançar
um olhar crítico sobre a relação do indivíduo com sua cidade moderna, veloz e vertiginosa.
Este embate entre o progresso desmesurado e o homem comum, sempre perdido na
multidão e destituído de identidade própria, era o elemento principal da crítica implícita
nessas produções. Algumas das mais representativas sinfonias das metrópoles são Berlim,
a sinfonia da grande cidade (1928), de Walter Ruttmann, Rien que les heures (1926),
de Alberto Cavalcanti, Regen (1929), de Joris Ivens e São Paulo, sinfonia da metrópole
(1929), de Adalberto Kemeny e Rudolf Lustig.
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Donny Correia e Edson Leite
Referências bibliográficas
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BENJAMIN, Walter. Magia, Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e
história da cultura. Obras escolhidas Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.
. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In:
GRÜNEWALD, José Lino. A ideia do cinema. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1969, pp. 55-95
ELSAESSER, Thomas. Dada cinema? In: KUENZLI, Rudolph E. (org.) Dada and
surrealist film. Massachusetts: The MIT Press, 1996, pp. 15-21.
GRÜNEWALD, José Lino. A ideia do cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1969.
HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. São Paulo: Martins Fontes,
2009.
KUENZLI, Rudolph E. (org.) Dada and surrealist film. Massachusetts: The MIT
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KRACAUER, Siegfried. Theory of film, the redemption of physical reality. New
Jersey: Princiton University Press, 1997.
READ, Herbert. A estética do filme. In: GRÜNEWALD, José Lino. A ideia do
cinema. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1969, pp. 35-40.
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História da videoarte no Brasil:
Anos 80, subverter e hibridizar
REGILENE SARZI RIBEIRO*
Resumo: Os anos 80 marcam a presença irreverente e experimental do vídeo
independente na recente história da arte do vídeo no Brasil. Expressões singulares
que transformam o meio televisivo em matéria prima para criação, os vídeos
independentes estão entre as principais inserções da arte do vídeo. Visando
avançar nos estudos sobre o vídeo e sua complexidade poética no campo da
historiografia e história da arte, apresentamos este trabalho sobre um dos marcos
da arte do vídeo no país: a sua inserção no circuito televisivo. A abordagem
histórico-crítica revela como a videoarte arquiteta, somada às intercessões
estéticas e formais na linguagem comunicacional, as ações poéticas de apropriar,
subverter e hibridizar processos e procedimentos audiovisuais.
Palavras-chave: História da Arte. Videoarte Brasileira. Televisão. Processos
Criativos Audiovisuais.
History of video art in Brazil: 80’s subvert and hybridize
Abstract: The 80’s mark the irreverent and experimental presence of independent
video at the recent history of video art in Brazil. Natural expressions that transform
the television medium in raw material for creation, independent videos are among
the main inserts of video art. Aiming to advance in studies on the video and its
poetic complexity in the field of historiography and history of art, we present this
work on one of the landmarks of video art in the country: its insertion on the
television circuit. The historical-critical approach architect reveals how video art,
* Pós-doutora em Artes (IA/UNESP/SP). Doutora em Comunicação e Semiótica
(PUC/SP). Professora Titular, Coordenadora de Design Gráfico UNIP/Bauru/SP.
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Regilene Sarzi Ribeiro
plus the aesthetic and formal intercessions in communicative language, poetic actions
of appropriating, subverting and hybridize audiovisual processes and procedures.
Keywords: Art History. Brazilian Video Art. Television. Audiovisual Creative
Processes.
Se entre os anos 1960 e 1970 o registro videográfico, que resulta da arte
conceitual e do hibridismo entre a body art e a performance, pode ser considerado
uma das chaves para compreensão da primeira produção artística em vídeo dos
artistas brasileiros, nas décadas seguintes (a partir de 1980), a interação com a
televisão, o surgimento dos videomakers e dos vídeos independentes são a base
para compreensão de dois traços que representam a expressão singular da ação
artística em vídeo: subverter e hibridizar os procedimentos audiovisuais. Os
artistas se apropriam de recursos e materiais não artísticos que são criados para
a comunicação e subvertem seus processos e procedimentos tanto técnicos quanto
temáticos ou conceituais, gerando diferentes resultados estéticos e críticos.
Entendermos que estas chaves de compreensão da arte contemporânea
mantêm relações com o contexto, sobretudo na era do capitalismo global em que
os processos de hibridização nas artes visuais se acentuam frente à comunicação
de massa e à Indústria Cultural. Por isso, defendemos a realização de estudos
que promovam a discussão do vídeo no campo da história e historiografia da arte
visando contribuir para a compreensão do sistema videográfico e sua complexidade como linguagem poética.
Com este propósito, apresentamos um breve estudo a década de 1980, um
dos marcos da arte do vídeo no país, e a produção do “vídeo independente”
(MACHADO, 2007) que subverteu o meio televisivo, hibridizou-se com o campo
da comunicação e promoveu inserções político-culturais no circuito comercial
da televisão.
Cabe ressaltar que este ensaio apresenta parte dos resultados obtidos pela
pesquisa de Pós-doutorado realizada pela autora em 2013, no Instituto de Artes
da UNESP de São Paulo. Naquela foi produzida uma Historiografia da Arte do
Vídeo no Brasil, que buscou somado ao panorama histórico que caracteriza uma
historiografia, uma aproximação de diferentes períodos da arte do vídeo, de 1950
a 2013, aplicando o método diacrônico, sincrônico e crítico para contribuir com
o campo da História da Arte Contemporânea.
Da referida historiografia, optamos pelo recorte que comporta os anos de
1980, quando se desenvolve no Brasil um grupo de artistas, entre eles Tadeu
História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar
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Jungle, Walter Silveira, Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Marcelo Tas,
Renato Barbieri e Paulo Morelli. Estes exploram exaustivamente os pressupostos
poéticos do vídeo e se posicionam criticamente diante do veículo televisual.
A produção em vídeo da comumente denominada “segunda geração” da arte
do vídeo brasileiro foi marcada pela crítica ao meio de comunicação de massa
televisão e por inserções das experimentações artísticas neste meio. Conhecida
como a “geração dos independentes”, tem como destaque dois grupos: o TVDO
e a Olhar Eletrônico. Segundo o grande incentivador da videoarte no Brasil, o
pesquisador Walter Zanini, que durante sua gestão do MAC/USP defendeu e
promoveu o vídeo, o chamado vídeo independente:
[...] que se reconheceu desde logo nos grupos “TVDO”, com os videomakers
Tadeu Jungle, Walter Silveira, recém-egressos da ECA-USP, e Pedro Vieira,
e “Olhar Eletrônico”, com Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Marcelo Tas,
Renato Barbieri e Paulo Morelli, configuravam uma alteridade de princípios
em relação aos seus antecessores, alguns dos quais prosseguiam ativos e ortodoxos, enquanto surgiam Otávio Donasci e Rafael França, valores novamente
procedentes das escolas de arte. Foi o momento do aparecimento das produtoras
de TV (ZANINI, 1997, p. 241).
Neste contexto, é imperioso destacar um dos marcos da história da arte do
vídeo no Brasil: a criação dos Festivais Videobrasil, em 1983, que se tornou
depois a Associação Cultural Videobrasil, garantindo a organização coletiva e
a institucionalização até se tornar hoje um dos polos culturais responsáveis pela
memória e renovação na produção artística no país. A Associação Cultural
Videobrasil, fundada e dirigida por Solange Farkas, visa fomentar, difundir e
mapear a arte contemporânea. Outro interesse central é a formação de público e
o intercâmbio entre artistas, curadores e pesquisadores. O festival é reconhecido
por seu pioneirismo no incentivo a videoarte quando esta surgia na cena brasileira
promovendo a consolidação do meio no país. Num segundo momento, desde
2011, o festival se soma a outras linguagens artísticas contemporâneas e amplia
os horizontes de uma “ativa rede de cooperação internacional” (VIDEOBRASIL
ONLINE). Em depoimento, Tadeu Jungle reitera a importância do Festival
Videobrasil para os artistas nos anos de 1980:
Em 1983 o vídeo brasileiro recebeu um norte. Era o I Festival Videobrasil. Um
festival que existia com a bitola Super-8, e que agora ficava eletrônico. Era
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Regilene Sarzi Ribeiro
dividido em categorias. Ficção, documentário, experimental... VHS ou UMatic... Surgia como uma necessidade de exibir e organizar o material já em
produção. [...] o clima novo e a competição em si fizeram desse festival um
foco constante de atenção entre todos que produziam ou se interessavam por
novas linguagens (JUNGLE, 2007, p. 205-206).
Entre os estudos sobre a televisão e vídeo de arte no Brasil, encontram-se
as contribuições expressivas do pesquisador Arlindo Machado (2007), que
caracteriza os artistas da geração dos anos de 1980 como artistas do audiovisual
e do vídeo “independente”. Cristine Mello (2008) também relata o uso do vídeo
como parte das ações que favoreceram a introdução de olhares críticos na
televisão comercial por meio dos trabalhos dos comunicadores e artistas do grupo
TVDO e Olhar Eletrônico, nos anos de 1980. Mello descreve a estética do grupo:
Em 1983, a TVDO realiza Frau, como uma forma dessacralizadora de linguagem para o vídeo. Escapando a qualquer tipo de gênero, esse trabalho não
pode ser considerado documentário, nem vídeo, nem programa de televisão,
nem ficção, mas uma leitura muito singular, fragmentada, múltipla e visceral
realizada por Tadeu Jungle, Walter Silveira e Isa Castro a partir do espirito
antropofágico de José Celso Martinez, Neville D’Almeida e Julio Brassane. O
vídeo Frau tornou-se o primeiro de uma trilogia da TVDO composta por Non
plus ultra (1985) e Heróis da decadência (sic) (1987) (MELLO, 2008, p. 98-99).
Estas experiências ampliaram as discussões sobre a linguagem audiovisual
e a ligação entre os primórdios da televisão alternativa e a televisão convencional
e os processos poéticos na arte do vídeo. Já nos anos de 1970, a TV teria
percebido o valor das produções satíricas, irônicas e esteticamente inovadoras,
introduzindo-as no cotidiano televisivo por meio da apropriação do modo como
usavam a câmera e faziam, por exemplo, suas entrevistas para entretenimento
do público.
A partir de 1983, a Olhar Eletrônico também passa a se inserir na televisão
comercial, em programas inovadores e inventivos gerados para as TVs Gazeta,
Abril Vídeo, Manchete, Cultura e Globo. É nesse contexto que surgem as mais
variadas e inéditas experiências na mídia televisiva. Uma delas, inesquecível,
é o impagável personagem-repórter Ernesto Varela, criado por Marcelo Tas,
que junto com seu câmera Valdeci, criado por Fernando Meirelles, abordava
História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar
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situações sérias com uma mistura de acidez crítica e bom humor (MELLO, 2008,
p. 102.).
Para além desta forma irreverente de fazer televisão, as videoartes são uma
expressão conceitual e autêntica de experimentação do meio por meio de
propósitos legítimos no campo artístico, que surge em Nova York, por volta dos
anos de 1965, como resultado de um movimento artístico com o objetivo de
questionar o cinema.
O vídeo tornou-se uma linguagem hegemônica mais evidente a partir da década
de 1980. Foi nesta época que emergiu uma geração de videomakers propondo
a utilização do meio como instrumento de invenção, transformando o aparato
e o suporte televisivo em elemento de expressão. Muitas destas obras passam
a utilizar em sua composição cenográfica o aparelho de TV (monitores tradicionais de tubo de raios catódicos), os equipamentos de captação e reprodução
da imagem (câmeras de vídeo e players VHS, U-matic e posteriormente
Betacam) e os projetores de vídeo (o modelo mais utilizado era o de três tubos
da Sony CRT VPH 1000) (AMARAL e CRUZ, 2013, p. 40).
Nos anos de 1960, a comercialização da televisão levou um grande número
de pessoas ao contato com imagens antes vistas somente nas telas do cinema em
noticiários ou pequenas peças comerciais. O fenômeno visual, composto de
imagens, movimento, sons e uma avalanche de novidades apresentadas pela
publicidade que agora adentrava a casa das pessoas, fez mudar os comportamentos culturais, diminuiu o público do cinema e do teatro e levou os pesquisadores
a encararem a televisão como algo negativo e inimigo da arte.
Estes e outros fatores, como as revoltas políticas e estudantis em Paris e
Nova York, a revolução sexual em muitas partes do mundo, além de aspectos
econômicos e sociais causados pela indústria cultural e pela industrialização de
produtos em geral, contribuíram para o cenário cultural tumultuado no qual surge
a videoarte. O movimento, para tornar as câmeras de vídeo Portapak (primeira
câmera de vídeo portátil produzida pela Sony) uma forma de acesso à mídia,
rapidamente se tornou moda e a indústria do vídeo tratou de vender esta ideia
como palavra de ordem na década de 1960, como afirma Armes:
O novo sistema de vídeo era perfeitamente adequado para certas aplicações
sociais, tais como vigilância em ambientes de trabalho, ferramenta para ação
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Regilene Sarzi Ribeiro
comunitária e alguns recursos pata técnicas de ensino. Ao mesmo tempo, alguns
artistas fizeram uso do portapak, especialmente em situações interativas ou de
performances, e instalações em galerias de arte (ARMES, 1999, p. 140).
Unidos pelo pensamento do canadense Marshall McLuhan (1911-1980)
sobre os efeitos da eclosão dos meios de comunicação na sociedade e nas artes,
os artistas buscaram contato cada vez maior com estes meios para dar vazão aos
seus modos de ver e sentir a nova configuração social, para criticar e refletir estas
mídias. McLuhan (1979) afirma que todos estes novos meios de comunicação
são formas de expressão que geram novas linguagens e novas codificações de
experiências humanas produzidas coletivamente por novos hábitos de vida e de
trabalho, resultantes de uma conscientização coletiva cada vez mais acentuada
da necessidade de inclusão do indivíduo no cotidiano social.
No início da sua recente história, a videoarte era reconhecida por dois tipos
de práticas de vídeo: por documentários dirigidos por ativistas ligados a noticiários alternativos do meio televisivo e por vídeos artísticos elaborados como
continuidade e extensão da produção plástica de artistas plásticos. Do primeiro
grupo, há de se destacar os vídeos do americano, pintor e cineasta, Frank Gillette
e do canadense Les Levine, recheados de conteúdo político que lhes rendeu o
apelido de “videográficos guerrilheiros” (RUSH, 2006, p. 75).
A irreverência e a audácia com as quais os vídeos destes comunicadores
eram produzidos os levaram à fama e a se tornarem conhecidos por um estilo de
imagem muito atraente e bem diferente do que produziam os canais convencionais
de televisão. A cobertura política, evasiva, crítica e bastante criativa, produzida
em cima da hora, lhes rendeu um espaço significativo na televisão comercial.
Arlindo Machado (2007) relata a presença do uso do vídeo para introdução
de olhares críticos na televisão comercial no Brasil, a partir dos comunicadores
e artistas do grupo TVDO e Olhar Eletrônico, nos anos de 1980. Produções como
“VT Preparado AC/JC” do Grupo TVDO e “[Rythm(o)z” dirigido por Tadeu
Jungle, ambos de 1986, são exemplos das experiências limítrofes realizadas por
artistas com linguagem da mídia eletrônica. Sobre o vídeo “VT Preparado AC/
JC” (1986), afirma Machado:
Esse trabalho dá início então a uma série de outros em que a textura mosaicada
da imagem de vídeo, bem como as suas propriedades lábeis e anamórficas, são
diretamente invocadas pelos realizadores, para produzir uma outra espécie de
História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar
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‘estranhamento’ (no sentido que o termo foi empregado no formalismo russo)
ou de ‘distanciamento’ crítico (no sentido brechtiano do termo) e assim investigar o modo como a televisão funciona em termos de máquina semiótica
(MACHADO, 2007, p. 25).
O vídeo “[Rythm(o)z” (1986) é descrito como um filme nunca antes pensado
para ser exibido em televisão, pois sua composição: seis peças de curta duração,
organizado por um rigoroso jogo de imagens e ritmos metronômicos, sem a
presença do verbal, é marcada por cenas de emoção extrema que levam o público
à sensação de nojo, perturbação e espanto. Machado (2007) comenta os aspectos
estéticos e criativos do vídeo “[Rythm(o)z”:
[Rythm(o)z é algo assim como uma reinvenção da produtividade de certos
procedimentos expressivos do vídeo (e do cinema) tais como o corte, a zoom,
os planos-sequência e a (des)sincronização entre som e imagem. Em cada segmento, apenas um recurso é utilizado, mas de forma concentrada e fulminantemente adequada ao tema focalizado (MACHADO, 2007, p. 27).
Três décadas depois, em 2003, a Rede SESC SENAC de Televisão produziu
o programa Oficina de Vídeo, que mostrou a breve trajetória do vídeo no Brasil
e sua influência na televisão. O programa foi composto por depoimentos de
artistas e pesquisadores como Tadeu Jungle e Arlindo Machado. Em seu depoimento, Machado (2003) afirma que a televisão aproveitou, mas não tudo o que
poderia ter aproveitado no contato e nas trocas criativas que manteve com os
artistas da geração do vídeo independente.
A geração que fez vídeo nos anos 80 experimentou as possibilidades da
linguagem eletrônica, procurou desenvolver uma linguagem própria para o
meio, para a tela, para o ritmo da televisão, quer dizer, todas aquelas
experiências num certo sentido se perderam, a televisão aproveitou pouco (30
ANOS..., 2003).
Contudo, destaca Machado (2003) que o vídeo permanece vivo e continua
mais presente do que nunca entre nós, pois se generalizou e como híbrido hoje está
no computador, na televisão, distribuído por entre as mais variadas formas nas
ruas e nos painéis eletrônicos. O pesquisador do audiovisual brasileiro esclarece:
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Regilene Sarzi Ribeiro
[...] no começo dos anos 80, o vídeo era uma atividade quase marginal, o forte
era o cinema, a fotografia, a televisão. Quer dizer, o vídeo era um meio que
estava surgindo, pessoas começavam experimentar, pouca gente entendia qual
era a novidade do vídeo, [...] eu diria até que quase tudo hoje é vídeo (30
ANOS..., 2003).
Ainda segundo Machado (2003), a produção audiovisual independente deu
certo no Brasil, já que os trabalhos da geração de 1980 influenciou muita gente,
muitos artistas que vieram depois incorporaram os trabalhos pioneiros, e defende:
[...] a gente poderia dizer que também Cézanne não deu certo no seu tempo,
nem Van Gogh, foram pessoas que quando fizeram seus quadros ninguém viu
e que durante muito tempo foram ignorados, mas estas obras influenciaram
outros pintores que por sua vez acabaram assimilando as novas possibilidades
e incorporando em seus próprios trabalhos (30 ANOS..., 2003).
Uma década depois do programa realizado pelo SESC SENAC TV, em
2013, o Videobrasil On-line comemora trinta anos de atividade com uma mostra
especial: o 18º Festival de Arte Contemporânea SESC Videobrasil. A edição
comemorativa foi composta de exposições comemorativas, documentários e
entrevistas com videoartistas, pesquisadores e curadores referências para as
diferentes gerações do audiovisual brasileiro.
Tadeu Jungle, uma das figuras centrais do vídeo independente no Brasil,
em depoimento ao Canal Videobrasil, comenta a importância do início do Festival
nos anos 1980 para os artistas da sua geração e sua participação com Heróis da
Decadên(s)ia, premiado na quinta edição do Festival, em 1987. O trecho aqui
transcrito faz parte da série “Videobrasil na TV”, temporada 2013, dedicada às
comemorações dos trinta anos do Videobrasil. O videoartista comenta:
[...] o Videobrasil começa pequeno e depois ele cresce e tá neste tamanho que
ele tá hoje. Mas ali muita gente já falou, video, opa, dá pra fazer, opa. E começou
a fazer video a partir deste pequeno movimento que era o Videobrasil no
começo da década de 80. Quando em 87, o video “Heróis da decadência” foi
eleito o melhor video do festival eu fui pra Cuba com esse video, ali eu achei
que tinha dado a minha carta, o meu ás (30 ANOS..., 2013).
História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar
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A videoarte nascida das intervenções artísticas no campo da comunicação
de massa e da ligação entre os primórdios da televisão alternativa e da televisão
convencional somada ao anseio dos jovens criadores leva tanto os artistas quando
os meios de comunicação a perceberem a versatilidade da linguagem do vídeo.
Ironia, crítica e intervenção política marcam o engajamento e a ação dos
videoartistas da geração de 1980, que teriam percebido o valor destas produções
satíricas introduzindo-as no cotidiano televisivo por meio da apropriação do
modo, como usavam a câmera e faziam, por exemplo, suas entrevistas para
entretenimento do público.
No entanto, para além desta forma irreverente de fazer televisão ou das
interferências estéticas e formais, a videoarte se identifica com procedimentos
complexos no campo artístico: apropriar-se e subverter a linguagem
comunicacional para se tornar um híbrido muito mais do que inserir-se no mercado da comunicação televisiva. Com isso, reafirma uma das posições críticas e
irônicas de obras e artistas frente ao sistema das artes: a função da arte não estaria
ligada à sua venda como um produto para ser consumido por uma massa, mas
ao resultado de uma ideia autentica e livre do sistema de consumo. O que está
em jogo é a intervenção no espaço comunicacional e o vídeo como linguagem
poética, híbrida e subvertida dentro do seu próprio sistema.
Desde a sua origem, o vídeo experimental produzido por artistas resulta da
exploração do audiovisual para além dos usos comuns do vídeo para
documentários, notícias e outros campos da comunicação de massa. Isso confirma
a potência transformadora dos processos criativos e poéticos capazes de gerar
inovações artísticas e interações sociais.
Trazer à tona a memória da arte do vídeo, e promover sua história, é reconhecer que a videoarte é produto da cultura visual complexa e transnacional que
a cada nova intervenção no meio social, onde se constitui ela também se edifica
a partir do espaço urbano e da confluência das mídias.
Referências bibliográficas
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UNESP, 1997, p. 233-242.
| 423
A preservação de equipamentos de fotografia e
cinema: uma investigação do papel das
tecnologias de produção de imagens
no âmbito dos museus
PAULA DAVIES REZENDE*
Resumo: Este trabalho tem como objetivo contribuir para compreensão dos
equipamentos técnicos de fotografia e cinema (equipamentos que têm como
função primária registrar, manipular, editar ou projetar imagens estáticas ou
em movimento) como documentos, artefatos portadores de significados
culturais, sujeitos ativos na produção de fotografias e filmes e atores fundamentais dentro da História da Fotografia e do Cinema. A partir dessa compreensão,
refletir sobre a importância da pesquisa, documentação e preservação desse tipo
de acervo.
Palavras-chave: Musealização. Equipamentos Técnicos. Cinema. Fotografia.
História da Tecnologia da Imagem.
The preservation of photography and cinematography
equipment: an investigation of the role of the imaging
technologies in the museums
Abstract: This work aims to contribute with the understanding of the technical
equipment of photography and cinema (equipment whose primary function is to
record, manipulate, edit or project still or moving images) as documents, artifacts
bearers of cultural meanings, active subjects in the production of photographs and
films and key actors in the History of Photography and Cinema. From this
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo.
424
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Paula Davies Rezende
understanding, reflect on the importance of research, documentation and
preservation of this type of collection.
Keywords: Musealization. Technical Equipment. Cinema. Photography. History
of Imaging Technology.
Introdução
É comum vermos museus e instituições que possuem acervos de fotografias,
filmes e vídeos, sejam coleções de arte, documentos históricos, arquivos pessoais,
entre outros. Mas é menos frequente ver instituições que possuam coleções
constituídas pelos equipamentos técnicos que produziram essas imagens, tanto
estáticas como em movimento. Mais esforços são colocados para preservar
coleções fotográficas e cinematográficas do que para preservar as ferramentas
que as tornaram possíveis.
Este trabalho pretende abordar o equipamento técnico fotográfico e
cinematográfico como artefato portador de significado e como sujeito ativo na
produção de fotografias e filmes, defendendo assim sua importância e a consequente necessidade de preservar esse tipo de acervo através de sua musealização.
Essa tipologia de objetos compreende a gama de equipamentos que tem como
função primária registrar, manipular, editar ou projetar imagens (estáticas ou em
movimento) com finalidade de servir ao cinema ou à fotografia.
O cinema e a fotografia são frutos de tecnologias que vêm enfrentando uma
rápida obsolescência. Viram equipamentos ultrapassados e sem utilidade, que
não são tão antigos para despertar interesse histórico, e acabam sendo relegados
a uma espécie de “limbo”, ou seja, armazenados de forma inadequada, esquecidos
nas instituições e se deteriorando a olhos vistos, arriscando desaparecem sem
terem a chance de contar sua história.
É pertinente trazer para discussão a definição de Krzysztof Pomian (1984,
p. 72) que divide os artefatos em coisa (objeto portador de utilidade), semióforo
(objeto portador de significado) ou desperdício (objetos que não apresentam
nenhuma das características anteriores). Os objetos fotográficos e cinematográficos que se propõe estudar aqui transitam entre os dois primeiros conceitos,
pois podem ser despidos de seu uso primário, como ferramenta, para se tornar
um portador de significados, um testemunho retirado de sua realidade original
para poder representá-la. Nessa dupla função, reside um dos intuitos deste
A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ...
| 425
trabalho: demonstrar que esses equipamentos não são apenas instrumentos
esvaziados de sentido e importância.
O objeto técnico como documento
A capacidade de fabricar ferramentas é uma das características que distingue
o ser humano de outras espécies. As ferramentas por ele fabricadas são uma
manifestação de suas fantasias, desejos e vontades. De acordo com Melville
Herskovits (apud SCHLERETH, 1999, p. 2), a cultura material compreende o “vasto
universo de objetos usados pela humanidade para lidar com o mundo físico, para
facilitar as relações sociais, para deleitar a nossa imaginação, e para criar símbolos
e significados”. George Basalla afirma que
A história da tecnologia não é um registro dos artefatos construídos para garantir
a nossa sobrevivência. Em vez disso, é um testemunho da mentalidade fértil e
das diversas maneiras que as pessoas escolheram para viver. Visto por esta
perspectiva, a diversidade de artefatos é uma das mais importantes expressões
da existência humana. (BASALLA, 1989, p. 208, tradução própria)
Para os estudiosos da cultura material, a análise desses artefatos contribui
para a compreensão da sociedade na qual foram criados, e que deles fez uso,
pois são fruto e testemunho dos valores, convicções e especificidade das práticas
sociais. Os objetos são um importante veículo de informações, revelando aspectos
importantes das esferas culturais, econômicas ou sociais. Essas informações
podem ser extraídas não pelo estudo do objeto em si, e sim pela análise das
[...] diferentes técnicas e tecnologias contidas naquele objeto, por quem e para
quem este objeto foi construído, com que finalidade e se seu uso correspondeu
ao objetivo para que foi originalmente construído. E ainda, a interação destes
objetos com a ciência que o originou e os lugares e épocas onde esta foi
produzida. (GRANATO et al, 2007, p. 3)
Segundo McClung Fleming (1999, p. 153), os registros mais antigos do ser
humano incluem objetos. A sobrevivência e autorrealização de uma cultura é
absolutamente dependente dos artefatos pertencentes a ela. O estudo dos artefatos
seria então um estudo sobre as sociedades humanas. Para conhecer o homem,
426
|
Paula Davies Rezende
devemos estudar as coisas que ele fez – o Parthenon, o Canal do Panamá,
Stonehenge, o computador, o Taj Mahal, a cápsula espacial, a Pietà de
Michelangelo, os cruzamentos das autoestradas, a Grande Pirâmide, os
autorretratos de Rembrandt. Os artefatos feitos e usados por um povo não são
apenas uma expressão básica dessa sociedade; eles são a própria cultura, um meio
necessário para a autorrealização do ser humano. (FLEMING, 1999, p. 153,
tradução própria)
Apesar dessa clara vocação do objeto técnico como testemunho histórico,
Viviane Couzinet (2004, p. 21) afirma que no âmbito da História, até o século
XIX, o documento escrito tinha sido privilegiado pela corrente Positivista, sendo
legitimado nesta posição por servir como instrumento de prova e testemunho de
direitos e privilégios da classe social ligada ao poder. Nos anos de 1930, é com
os historiadores da Escola de Annales, como Marc Bloch, Lucien Febvre e
Fernand Braudel, que os outros tipos de objetos, além do texto, passam a ser
considerados como fonte documental histórica.
A história se faz com documentos escritos, sem dúvida. Quando os há. Mas
ela pode se fazer, ela deve se fazer, sem documentos escritos, se eles não
existem. Com tudo o que a engenhosidade do historiador possa lhe permitir
utilizar para fabricar seu mel, na falta das flores usuais. Então, com palavras.
Com signos. Com paisagens e telhas. Com as formas do campo e com as ervas
daninhas. Com eclipses de lua e coleiras de atrelar cavalos. Com pareceres de
peritos geólogos sobre pedras e analises de espadas de metal feita pelos químicos. Em uma palavra, com tudo o que, sendo do homem, depende do homem,
serve ao homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos
e as formas de ser do homem. (FEBVRE apud LE GOFF, 1984, p. 4-5)
É possível fazer um paralelo com a importância que os instrumentos
científicos históricos começaram a ganhar dentro da História da Ciência nos anos
70. Durante o início do século XX, tais instrumentos eram tidos como
“curiosidade”, ou como objetos de arte decorativa, em uma abordagem próxima
a dos antiquários, ou eram estudados de forma extremamente técnica, isolandoos do contexto que foram produzidos e utilizados. A maioria dos estudos não
buscava analisar seu papel na História da Ciência, e pouca importância era dada
aos instrumentos utilizados em laboratório ou no ensino de ciências, acabava se
tornando um acervo abandonado nos porões das instituições. Os estudiosos da
A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ...
| 427
História das Ciências se concentravam nas ideias e teorias científicas, que tinham
uma posição predominante com relação à bancada do laboratório, considerada
secundária. Uma mudança de perspectiva foi possível graças a uma nova visão
dentro da História da Ciência, originada nas décadas de 70 e 80, identificada
como Estudos Sociais da Ciência, de cunho mais sociológico, que voltou atenção
para temáticas até então negligenciadas, como o papel das práticas de laboratório
e dos instrumentos na produção do conhecimento e das teorias científicas.
(BRENNI, 2007, p. 162-164)
Inspirado pelo questionamento da importância do objeto material dentro
da História de modo geral, nos anos 30 e da História da Ciência nos anos 70, é
pertinente questionar a falta de reconhecimento dos equipamentos técnicos de
produção de imagem, que também são relegados para segundo plano com relação
às fotografias e filmes, e demonstrar sua e importância para a cultura material e
seu papel ativo na História da Fotografia e do Cinema.
A agência das coisas: o equipamento técnico como sujeito ativo
A Teoria Ator-Rede é uma corrente de estudos que surgiu entre os anos 70
e 80, dentro dos Estudos Sociais da Ciência. Essa Teoria confronta a sociologia
tradicional, defendendo o papel ativo de elementos não humanos nas interações
sociais.
O autor John Law (2007, p. 2-4) afirma que o que consideramos como
“social”, por exemplo, a sociedade, as organizações, as instituições, não é
formado apenas por pessoas, e sim por componentes heterogêneos, humanos e
não humanos, que justapostos formariam uma rede, em que esses elementos se
relacionariam e se influenciariam. Ou seja, objetos, máquinas, dinheiro, energia,
animais, coisas, ferramentas não são apenas portadores de significado e projeções
simbólicas, mas também atores dentro da rede de conexões sociais.
Bruno Latour afirma que
[…] qualquer coisa que modifique uma situação fazendo diferença é um ator ou, caso ainda não tenha figuração, um actante. Portanto, nossas perguntas em
relação a um agente são simplesmente estas: ele faz diferença no curso da ação
de outro agente ou não? Haverá alguma prova mediante a qual possamos
detectar essa diferença? (LATOUR, 2012, p. 108)
428
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Paula Davies Rezende
Dificilmente, as interações entre seres humanos não envolvem objetos e,
dificilmente, acontecem apenas entre humanos ou apenas entre objetos, sendo
muito mais provável que essas interações “ziguezagueiem” entre ambas. (LATOUR,
2012, p. 113)
Dentro dessa perspectiva, pode-se encaixar os equipamentos produtores de
imagens técnicas. Entre o olhar do operador da câmera, por exemplo, e a materialização da imagem fotográfica, a câmera ocupa papel fundamental. Não seria
absurdo afirmar que, por exemplo, a câmera fotográfica media a relação do
fotógrafo com o mundo abstrato das ideias. Além dessa, temos projetores,
moviolas, lentes, monitores, entre outros, que, se não criam as imagens, as manipulam, as projetam, interferem diretamente na sua criação e posterior existência.
Seria mais fácil tomar alguns desses aparelhos como simples intermediários,
meros transportadores de significados, incapazes de transformação (LATOUR,
2012, p. 65). Mas não é tão simples assim. Uma lente acoplada numa câmera
modifica a visão que o operador tem. Ela pode, por exemplo, aproximar ou afastar
o sujeito operador da câmera ao objeto a ser enquadrado, distorcer o campo de
visão, influenciar no tipo e qualidade de imagem que será registrada. Softwares
de manipulação de imagens podem literalmente criar novos contextos e novas
situações que não existiam na imagem capturada originalmente. Se for
considerada a interação entres os equipamentos: o tipo de lente, de iluminação
(inúmeras variedades de lâmpadas ou luz natural), de superfície sensível (tipos
de negativos, sensores digitais), são inúmeras combinações e diferentes resultados
que não necessariamente estão dentro do controle do elemento humano da
equação.
Desta forma, esses equipamentos técnicos não são apenas simbólicos. Eles
são sujeitos ativos na produção dessas imagens técnicas.
Os mediadores, por seu turno, não podem ser contados como apenas um, eles
podem valer por um, por nenhuma, por várias ou uma infinidade. O que entra
neles nunca define exatamente o que sai; sua especificidade precisa ser levada
em conta todas as vezes. Os mediadores transformam, traduzem, distorcem e
modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam. […] Um
mediador, apesar de sua aparência simples, pode se revelar complexo e arrastarnos em muitas direções que modificarão os relatos contraditórios atribuídos a
seu papel. (LATOUR, 2012, p. 65)
A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ...
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É uma troca constante entre o operador e o equipamento, que resulta na
imagem propriamente dita. Não existe submissão. É uma relação horizontal,
permeada por mais ou menos teimosia e personalidade, dependendo dos atores
envolvidos.
O filósofo Vilém Flusser, em seu livro “Filosofia da Caixa Preta” (1985),
descreve a câmera fotográfica praticamente como uma persona com vontade
própria, abordando de forma incisiva a complexidade da relação entre o fotógrafo
e o aparelho fotográfico.
No caso das imagens tradicionais, é fácil verificar que se trata de símbolos: há
um agente humano (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu
significado. Este agente humano elabora símbolos “em sua cabeça”, transfereos para a mão munida de pincel, e de lá, para a superfície da imagem. A
codificação se processa “na cabeça” do agente humano, e quem se propõe a
decifrar a imagem deve saber o que se passou em tal “cabeça”. No caso das
imagens técnicas, a situação é menos evidente. Por certo, há também um fator
que se interpõe (entre elas e seu significado): um aparelho e um agente humano
que o manipula (fotógrafo, cinegrafista). Mas tal complexo “aparelho-operador”
parece não interromper o elo entre a imagem e seu significado. Pelo contrário,
parece ser canal que liga imagem e significado. (FLUSSER, 1985, p. 10-11)
Flusser trata ambos, humano e não humano, como atores que executam ações
intimamente conectadas e interdependentes, e que juntos constroem o que será
traduzido e significado na produção da imagem, seja ela estática (fotografia) ou
em movimento (cinema).
As possibilidades fotográficas são praticamente inesgotáveis. Tudo o que é
fotografável pode ser fotografado. A imaginação do aparelho é praticamente
infinita. A imaginação do fotógrafo, por maior que seja, está inscrita nessa
enorme imaginação do aparelho. Aqui está, precisamente, o desafio. Há regiões
na imaginação do aparelho que são relativamente bem exploradas. Em tais
regiões, é sempre possível fazer novas fotografias: porém, embora novas, são
redundantes. Outras regiões são quase inexploradas. O fotógrafo nelas navega,
regiões nunca dantes navegadas, para produzir imagens jamais vistas. Imagens
“informativas”. O fotógrafo caça, a fim de descobrir visões até então jamais
percebidas. E quer descobri-las no interior do aparelho. (FLUSSER, 1985, p. 19)
430
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Paula Davies Rezende
O processo versus o produto final
É sabido que, sem máquinas fotográficas, câmeras cinematográficas e outros
equipamentos produtores e viabilizadores, não existiriam nem fotografias e nem
filmes. E mesmo assim muito mais esforços são direcionados ao estudo e
salvaguarda do produto final do que desses equipamentos técnicos imprescindíveis para existência das imagens em questão. Aparentemente, esses equipamentos são esquecidos, assim como resto do processo e dos elementos
heterogêneos que, juntos, criaram o resultado final.
Bruno Latour trabalha essa questão do “apagamento do processo” nas
práticas do laboratório, com relação à construção do conhecimento científico.
Ele afirma que “uma vez que se dispõe do produto final – a inscrição –,
rapidamente é esquecido o conjunto das etapas intermediárias que tornaram
possível sua produção” (LATOUR, 1997, p. 60). O que o autor considera como
produto final seria o artigo publicado em revista, o paper. Neste trabalho, o que
está se considerando como produto final é a fotografia, o filme, mas a lógica é a
mesma. Remanescem o artigo, a foto, o filme e seus autores/criadores, mas o
processo e os outros atores envolvidos nele desaparecem.
Uma vez que os artigos estão escritos e que o resultado essencial deu origem a
um novo inscritor, nada melhor do que esquecer que a produção do artigo
depende de fatores materiais. A bancada é relegada a segundo plano, chega-se
a negligenciar a existência dos laboratórios. Esta é a hora das “ideias”, das
“teorias” e das “razões”. Parece que os inscritores são mais valorizados quanto
mais suave tornam a transição do trabalho manual às ideias. O ambiente material
tem, portanto, uma dupla característica: ele é o que torna possível o fenômeno
e é dele que se deve facilmente esquecer. Sem ele, não se poderia dizer que um
objeto do laboratório existe. E, no entanto, ele só é mencionado muito
raramente. (LATOUR, 1997, p. 67)
O autor John Law defende que “Sempre que uma rede age como um único
bloco, então ela desaparece, sendo substituída pela própria ação e pelo autor,
aparentemente único desta ação” (LAW, 1989, p. 5). Ou seja, a complexidade do
processo acaba ficando oculta e é substituída por uma pontualização: uma foto
foi tirada. Um filme foi feito.
O processo não engloba apenas as câmeras, lentes e negativos, mas também
coisas mais simples, insumos ordinários do dia a dia, que se não faltam ou deixam
A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ...
| 431
de funcionar, sequer são lembradas que em algum momento foram extremamente
necessárias: água, energia elétrica, produtos químicos, computadores. Atrás da
simplificação do processo, encontra-se uma complexidade frequentemente ignorada (LAW, 1989, p. 10). É essa justaposição, essa combinação e complexidade
de atores que permitem a criação e a existência do produto final.
Não que este produto final não seja importante, ou representativo. Mas eles
são parte do trabalho, não mais que uma fração das atividades ocorridas nestas
redes (LAW, 1989, p. 26). Apesar do produto final ser o que é lembrado, valorizado e preservado, ele não existiria sem o processo, e não deveria ser tratado
como único merecedor de estudos e reconhecimento.
Considerações finais
Apesar do grande potencial de estudos, o objeto técnico ainda é subvalorizado, se comparado com obras de arte, objetos de culto e relíquias. Isso implica
numa relativa escassez de estudos para compreender o papel dos artefatos técnicos na nossa cultura, assim como de esforços para preservá-los. Gilbert Simondon
(1980, p. 1) afirma que a falta de reconhecimento da importância dos objetos
técnicos seria um problema cultural. O conceito de Cultura, segundo o autor, seria
uma faca de dois gumes. Por um lado, ela reconhece certos objetos, garantindo
a eles um lugar cativo no mundo dos significados (como, por exemplo, objetos
de cunho estético). Por outro, a Cultura bane outros objetos, especificamente os
de cunho técnico, apesar de sua capacidade de materializar de forma única
informações, e os deixando no mundo não estruturado das coisas que não
acumulam significados, e valem apenas por seu caráter utilitário.
É preciso compreender que o objeto técnico também faz parte da cultura.
A relação entre o ser humano e a máquina, no caso do cinema e da fotografia,
pode resultar em arte. Este tipo de equipamento se aprimorou tecnicamente e
participou ativamente da História da Fotografia e do Cinema brasileiro, sendo
rica fonte de informações sobre o assunto. Nestes casos o desenvolvimento da
técnica é indissociável das transformações da linguagem. As diferentes abordagens dos objetos técnicos fotográficos e cinematográficos apresentadas aqui
sugerem tirar o foco da fotografia e do cinema como arte e entretenimento para
pensá-lo como técnica, criando um outro tipo de relação com o pesquisador.
É importante lembrar que o sentido não é uma característica intrínseca dos
objetos, ele é atribuído pela sociedade, daí a importância do estudo em contexto
432
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Paula Davies Rezende
desse acervo. Analisá-los fora da realidade que os criou limitaria o entendimento
de seus verdadeiros significados e incorreria facilmente em anacronismo. É
preciso estudá-los, compreendê-los, contextualizá-los em relação à época que
foram produzidos, ao seu uso, aos seus utilizadores, pois são testemunhos
materiais e atores em um processo de criação. Os filmes e fotografias não surgiram
de geração espontânea, nem apenas da criatividade de seus autores. Para criálos, os equipamentos em questão foram imprescindíveis.
O reconhecimento do equipamento técnico de fotografia e cinema como
sujeito ativo na produção de fotografias e filmes, além de artefato portador de
significado na nossa sociedade, legitima a necessidade de preservação e os
esforços em avaliar a adequação dos instrumentos existentes que permitam atingir
esse propósito, e, sendo necessário, a reflexão e criação de metodologias específicas para garantir a preservação desse tipo de acervo.
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A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ...
| 433
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SIMONDON, Gilbert. On the mode of existence of technical objects. Ontario:
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| 435
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do
pensamento moderno na arquitetura e no design e
sua relação com as filosofias da existência
LEONARDO GOMES SETTE GONÇALVES*
RODRIGO CRISTIANO QUEIROZ**
Resumo: A pesquisa exposta neste artigo busca identificar alguns aspectos e
conceitos fundamentais que contribuíram para estruturar a formação das
filosofias da existência (desde Kierkgaard até Sartre) e relacioná-los com a
construção do pensamento moderno na Arquitetura e no Design (desde Ruskin
até Le Corbusier) com o objetivo de ampliar o entendimento deste período
histórico bem como dos seus reflexos na produção e no ensino da Arquitetura
Moderna no Brasil, a partir da segunda metade do século XX.
Palavras-chave: Modernismo. Existencialismo. Arquitetura. Design. Filosofia.
** Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo
atualmente está inscrito no Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte
da Universidade de São Paulo PGEHA-USP, onde desenvolve uma dissertação homônima
a este artigo para obtenção do Título de Mestre sob orientação do Prof. Dr. Rodrigo
Cristiano Queiroz.
** Professor do Departamento de Projeto da FAUUSP, orientador credenciado no
Programa de Pós-Graduação da FAUUSP e no Programa de Pós-Graduação Interunidades
em Estética e História da Arte (PGEHAUSP). Arquiteto e Urbanista (Mackenzie, 1998),
Mestre História da Arte (ECAUUSP, 2003) e Doutor em Projeto de Arquitetura
(FAUUSP, 2007). Curador de exposições de arquitetura, sendo as principais “Coleção
Niemeyer” (MACUSP, 2007), “Brasília: un utopia come true” (Trienal de Milão, 2010)
e “Le Corbusier América do Sul, 1929” (Centro Universitário Maria Antônia, 2012).
Suas pesquisas abordam as relações entre artes visuais e arquitetura moderna.
436
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Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz
The Death of God in Architecture: The principles of modern
thought in architecture and design and its relation to the
philosophies of existence.
Abstract: The research proposed in this article seeks to identify some aspects and
fundamental concepts that helped to structure the growing philosophies of existence
(from Kierkegaard to Sartre) and relate them to the construction of modern thought
in Architecture and Design (from Ruskin to Le Corbusier) with the aim of expanding
the understanding of this historical period as well as their reflections in the production
and teaching of Modern Architecture in Brazil for the second half of the twentieth
century.
Key words: Modernism. Existentialism. Architecture. Design. Philosophy.
Apresentação
O artigo que aqui se apresenta é parte integrante de uma pesquisa/dissertação
atualmente em desenvolvimento e que pretende expor os conceitos presentes nas
filosofias da existência que podem ser relacionados com as transformações
sofridas nas estruturas do pensamento arquitetônico no período de formação do
movimento moderno na Arquitetura e no Design. Este pensamento, que se
evidencia através dos manifestos e dos inúmeros escritos da época, será
identificado com o objetivo de apontar os componentes ideológicos e filosóficos
que os aproximam. Ao final do processo, espera-se, contudo, que as análises
produzidas possam contribuir para ampliar o entendimento do movimento
moderno da arquitetura, bem como o desdobramento destes conceitos na
produção e no ensino da Arquitetura Moderna no Brasil. Como estrutura de
desenvolvimento deste artigo, optou-se por submeter a análise do movimento
moderno na arquitetura à estrutura e à formação do pensamento existencial, ou
seja, através da construção desta filosofia se buscará tecer o paralelo com o
pensamento arquitetônico do mesmo período. A análise das filosofias da
existência começa com o teólogo e filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard e
se estende neste estudo através de algumas obras de Fiodor Dostoiévski,
Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre. O conteúdo a ser analisado no âmbito
da arquitetura está dividido em três partes: o início com John Ruskin (e a inclusão
de Henry David Thoreau); o desenvolvimento com as vanguardas – Arts & Crafts,
Art Nouveau e o Deutscher Werkbund; e a terceira parte com a síntese formal
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ...
| 437
da arquitetura moderna através de Mies Van Der Rohe e Le Corbusier. Esta
pesquisa pretende, no âmbito do presente artigo, produzir análises pontuais
referentes aos dois primeiros períodos (formação e desenvolvimento)
especificados acima, tentando expor através deles alguns resultados preliminares
do método que se pretende utilizar para a subsequente dissertação.
O Existencialismo, o Socialismo e a Função Social do Homem e
das Artes.
As ideias socialistas não começam com Marx; muitas décadas antes deste
pensamento se formalizar a insatisfação do homem com o agravamento das
injustiças sociais, com a redução da qualidade de vida nas cidades e com a piora
das condições de trabalho irão conduzir ao que Hobsbawm1 nomeou de dupla
revolução. Entre 1789 e 1848, os problemas sociais na Europa criaram uma
espécie de paradoxo dentro do indivíduo: a ideia de progresso e de evolução da
sociedade em contraposição ao esvaziamento do sentido da vida e do trabalho
em face aos abusos cometidos em detrimento deste mesmo progresso – uma crise
moral2 se apodera deste homem. Robert Owen (1771-1858) é um exemplo neste
contexto; filho de artesãos, ele chegou a se tornar diretor de importantes indústrias
na Escócia e também coproprietário de uma outra. Ao longo de sua carreira,
implantou uma série de melhorias nas condições de trabalho e se tornou famoso
ao fundar uma colônia socialista/anarquista em 1825, nos EUA, chamada New
Harmony. Owen é um exemplo de indivíduo do começo do século que, incapaz
de conviver e colaborar com as injustiças, muda sua concepção de progresso a
partir de uma moralidade que se impõe aos seus atos. Muitos outros, porém, não
conseguiram, a exemplo de Owen, mudar seu destino dentro da sociedade; a estes
homens aprisionados em um sistema que não viam sentido e que – alheio a sua
vontade – se impõe a sua moral e os obrigam a viver em contradição – restava
conviver com o sentimento que o filósofo e teólogo dinamarquês Kierkegaard
1. Eric J. Hobsbawm, Da revolução industrial inglesa ao imperialismo.
(Hobsbawm & Garschagen, 2003)
2. É esta crise moral que, segundo o que se pretende demonstrar neste artigo, está
na origem da formação do pensamento arquitetônico moderno e também na origem das
filosofias da existência.
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Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz
(1813-1855) chamaria, em 1844, de angústia.3 Kierkegaard condenava a crença
excessiva na ciência; para ele a evolução da humanidade segundo um sistema
dialético (Hegel) obscurecia o significado da existência. Ambas, ciência (filosofia) e religião, não forneciam respostas ou direcionamentos para uma conduta
ética e para um modo de agir livre de contradições. O problema fundamental e
insolúvel para ele – e para os existencialistas – é o da moralidade. Por ser cristão
Kierkegaard, não abandona Cristo como modelo e medida para as ações
humanas, porém ele acreditava que as contradições e os paradoxos da igreja e
da religião, bem como a necessidade da igreja em aliar fé e razão, produziam
um abismo entre o humano e o divino:
Se a fé não pressupõe senão acreditar em alguma coisa sem prova, então isto é
muito necessário para o pensamento existencial, para o qual não existem fatos
externos ou valores que ditem nossa ação, embora sejamos confrontados,
porém, com a necessidade de agir e escolher.4
Kierkgaard condenava a submissão do homem ao sistema ortodoxo e
doutrinário da igreja, cuja atuação para ele consistia em impor uma verdade
através de uma lógica subjetiva: “A crença na tradição cristã requer que a
sociedade dance na ponta do paradoxo de que Deus, através de Cristo, caminhou
entre os homens”.5 Para Kierkgaard, o homem estava moralmente isolado e o
produto deste isolamento era o temor, o desespero e a angústia. Este isolamento
moral é equivalente ao isolamento social vivido pelo escritor americano e
contemporâneo de Kierkgaard, Henry David Thoreau (1817-1862).6 Thoreau
era amigo de Ralph Waldo Emerson (1803-1882); ambos estudaram em Harvard
e fundaram em 1835 o Clube Transcendentalista de Concord (Massachusetts,
EUA). Emerson acreditava na purificação do homem através da busca
introspectiva do seu eu espiritual. Esta busca transcendental conduziria o homem
a uma consciência sabia e intuitiva do mundo.
3. O Conceito de Angústia – 1844 juntamente com outros escritos do mesmo autor
é constantemente atribuído como conceito inaugural para as filosofias da existência.
4. Ibid. p.17
5. Kierkegaard e a Religião, pp.15-19. Em: (REYNOLDS, 2013)
6. Poeta e filósofo americano – escreveu O Tratado da Desobediência Civil em
1848
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ...
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Então, vamos todos olhar para o mundo com nossos próprios olhos. Será a
resposta para a infinita pergunta de nosso intelecto – O que é a verdade? O que é
bom? –. Construí vosso próprio mundo. Vossa mente adotará enormes proporções
quando se desabrochar. Uma revolução nas coisas irá determinar o fluxo dos
espíritos […] Nós andaremos com nossas próprias pernas; trabalharemos com
nossas próprias mãos; falaremos com nossas próprias mentes... Uma nação de
homens finalmente existirá, porque cada um de nós inspira a Alma Divina.
(EMERSON, 1849)
Emerson desejava, assim como Kant, libertar o homem do dogmatismo da
igreja e das incoerências da sociedade. Thoreau decide empreender o projeto
transcendental de Emerson, e para isto decide viver sozinho entre 1845 e 1847
em um terreno pertencente a Emerson situado às margens do lago Walden em
Concord. Esta experiência ficou registrada em seu livro Walden e foi publicada
em 1854. Thoreau talvez tenha sido – sem saber – um pioneiro ao antever alguns
princípios fundamentais da arquitetura moderna e do design do século seguinte.
Thoreau, em seu projeto de construção do mundo com as próprias mãos, é levado
a construir sua casa e irá fazer dela a materialização de suas críticas ao modo de
vida e aos valores da sociedade da época. A casa consistia em um único cômodo
de 3,0 por 4,5 metros com uma porta de entrada, duas janelas, uma lareira e um
porão para armazenamento de comida. Do lado de fora, havia um pequeno depósito para lenha localizado próximo ao corpo da lareira. Cada item da construção
foi criteriosamente escolhido por Thoreau segundo sua utilidade, bem como a
quantidade e os custos dos materiais; em seu livro ele chegou a registrar a quantidade de pregos que foram utilizados na construção. Ele constantemente recusava
presentes daqueles que o visitavam afirmando já possuir tudo que precisava.
Todos os atrativos de uma casa se concentravam num só aposento; era ao
mesmo tempo cozinha, quarto, sala e despensa; e seja qual for a satisfação proporcionada por uma casa ao adulto ou à criança, ao patrão ou ao criado, eu sentiaas todas.[…] Às vezes sonho com uma casa maior, mais habitada, erguida numa
idade de ouro com materiais resistentes, sem ornamentos do gênero bolo de noiva
e que também consistira de uma peça única, um imenso, rústico, substancial e
primitivo salão, sem forro nem reboco, de vigas e caibros aparentes sustentando
uma espécie de céu inferior sobre a cabeça da pessoa – útil para impedir a entrada
da chuva e da neve; em que as estacas e travessas mestras fiquem de fora para
receber vossas homenagens quando, ao transpordes a soleira, haveis reverenciado
o Saturno derrotado de uma dinastia mais antiga; […] uma casa na qual penetrareis
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Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz
ao abrir a porta que dá para fora, acabando-se aí a cerimônia; onde o viajante
cansado possa tomar banho, comer, conversar e dormir sem mais andanças; um
abrigo como o que gostaríeis de achar numa noite de tempestade, contendo tudo
o que é essencial numa casa, e nada que demande trabalho; onde possais ver todos
os seus tesouros de um só relance, e onde cada coisa penda do gancho ao alcance
da mão de qualquer um; a um só tempo cozinha, despensa, sala de visitas, quarto,
depósito e sótão; onde possais ver coisas tão necessárias como um barril ou uma
escada de mão, coisa tão útil como um armário e possas ouvir a panela a ferver,
e apresentar cumprimentos ao fogo que cozinha o vosso jantar e ao forno que assa
o vosso pão e onde a mobília e os utensílios indispensáveis constituem os
principais ornamentos, […] Uma casa cujo interior é tão aberto e manifesto como
um ninho de pássaro e na qual não podeis entrar pela porta da frente nem sair pelos
fundos sem ver algum de seus moradores; em que ser hóspede é ser presenteado
com a liberdade da casa, e não cuidadosamente excluído de sete oitavos dela,
segregado numa cela particular, dizendo-vos o anfitrião que fiqueis à vontade –
em absoluta reclusão. […] Sinto que tenho estado entre quatro paredes de muita
gente, que por direito poderia ter-me posto na rua, mas não sinto que tenha estado
em muitas casas de pessoas. (Thoreau, Cabral, & Henriques, 1999) pp.268-269.
Figura 1 – Fotografia da casa construída
por Thoreau em 1845.
Figura 2 – Vista do lago
Walden a partir da casa.
Thoreau foi obrigado a interromper seu isolamento em 1846, quando foi
preso por deixar de pagar impostos. No dia seguinte foi solto por um amigo que
pagou-os por ele7. Ele então decide escrever o Tradado da Desobediência Civil,
7. Thoreau não concordou com o pagamento e preferia permanecer preso a ter que
pagá-los; o princípio desta negação está na oposição de Thoreau à guerra dos EUA contra
o México. Thoreau suspendeu o pagamento dos seus impostos por acreditar não ser
obrigado a financiar uma guerra que acreditava ser cruel e desnecessária.
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ...
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onde tenta engajar a população a suspender o pagamento de impostos como forma
de oposição ao governo; este projeto de resistência pacífica influenciou Tolstói,
Gandhi e Martin Luther King. Embora este texto somente tenha sido publicado
em 1854, Thoreau escreve-o em 1848, mesmo ano em que ocorreram profundas
transformações sociais em toda Europa. A partir deste ano os movimentos de
reivindicação popular que eram heterogêneos e desarticulados ganham corpo –
se organizam. O Manifesto do Partido Comunista, redigido por Marx (18181883) e Engels (1820-1895), foi publicado neste mesmo ano justamente com o
propósito de organizar e unir os povos oprimidos contra os opressores. Marx
acreditava que a ciência estava confinada em um campo teórico e reflexivo que,
segundo o autor, não contribuía para uma evolução da sociedade na mesma
medida em que o pensamento evoluiu. Para ele, “os filósofos não romperam com
a noção hegeliana de que é o espírito humano, e não a atividade humana, o
sujeito da história” (CHATELET, 1992). Marx defendia que a filosofia deveria
ter um papel objetivo, verdadeiro e transformador, e convoca a participação ativa
do homem em seu ambicioso projeto de reforma da sociedade, da economia e
dos meios de produção. Este movimento político encontra os primeiros reflexos
no pensamento arquitetônico através do escritor e desenhista inglês John Ruskin
(1819-1900). Ruskin também era poeta, crítico social, crítico de arte e arquitetura;
gozava de fama e respeito e exercia enorme influência na sociedade inglesa da
época, principalmente na alta burguesia, devido à grande eloquência com que
falava e escrevia sobre diversos assuntos; sua genialidade porém residia em aliar,
no arcabouço de suas críticas, os problemas das artes e os problemas sociais.
Para ele, a evolução cultural da sociedade inglesa (a qual ele considerava
materialista e ignorante) dependia de um enobrecimento dos meios de produção.
Toda economia, seja ela a de um estado, de um lar ou de um indivíduo, pode
ser definida como a arte de gerenciar o trabalho. (…) O trabalho do ser humano,
bem empregado, é sempre amplamente suficiente para supri-lo durante toda sua
vida, com todas as coisas de que tem necessidade, e não somente com estas, mas
também com outros objetos agradáveis de luxo e, mais ainda, para dar-lhe grandes
períodos de descanso saudável e lazer aproveitável. Do mesmo modo o trabalho
de uma nação, bem empregado, é amplamente suficiente para suprir uma boa
alimentação e uma habitação confortável para toda sua população, e não somente
estas, mas também uma boa educação e objetos de luxo, tesouros artísticos,…
se a nação ou o indivíduo forem indolentes, os resultados são sofrimento e
escassez, na proporção exata da indolência ou da improvidência, da recusa ao
trabalho ou a seu mau emprego. (RUSKIN, 2004, p.26)
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Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz
Ruskin estava tão convencido da necessidade de valorizar o “trabalho do
ser humano” que, em 1854, idealizou e fundou o Working Men’s College de
Londres; uma faculdade popular criada com movimento Socialista Cristão para
fornecer ensino superior aos trabalhadores da indústria; Ruskin foi professor do
curso de ensino artístico de 1854 a 1862. Acreditava que para produzir arte era
necessário produzir artistas.8 Por isto, ao longo de sua vida, ele ensinou, criticou,
pesquisou e escreveu inúmeros livros sobre arte, arquitetura e conservação e deu
apoio a artistas que considerava importantes e os quais chamou de “modernos”.
Em 1848, será fundada a Irmandade Pré-Rafaelita por alguns pintores desta
geração. William Morris (1834-1896) será, dentre os discípulos de Ruskin, um
modelo de artista da segunda metade do século XIX que, sob a égide das ideias
reformistas, irá conduzir as questões das artes e do design ao encontro dos ideais
políticos e sociais de uma maneira até então sem precedentes. Morris foi membro
da Irmandade Pré-Rafaelita e levara adiante o projeto de Ruskin de unir arte e
trabalho; no entanto Morris não pretende transformar o artesão em artista; ele
deseja transformar o artista em artesão, ou melhor, em um artista-artesão. É
com este objetivo que ele irá fundar, em 1861, a empresa Morris, Marshall,
Faulkner & Co. (1861–1875), posteriormente sucedida pela Morris & Co (1875–
1940). Morris será um socialista atuante politicamente; ele receberá
posteriormente o rótulo de medievalista, por defender e acreditar na natureza
do trabalho das antigas corporações de ofício:
Por uma estranha cegueira ou por um erro da atual civilização, o trabalho
de todos os homens – que deveria ser prazeroso e útil – tornou-se um fardo que,
se pudessem, iriam sacudir (…) Na minha opinião isto significa o seguinte: a
civilização moderna em sua pressa pelo acúmulo de bens – muito desigualmente
divididos – suprimiu inteiramente o acesso a arte. Esta por sua vez é mantida
nas mãos de uns poucos que, podemos dizer com justiça, precisam dela menos e
não mais que os trabalhadores. (…) Nada deverá ser produzido pelo homem,
8. Charles Baudelaire irá desempenhar um papel equivalente ao de Ruskin na
França. Seu apoio aos artistas romantiscos foi fundamental para a difusão do estilo nos
salões de Paris. Baudelaire também é poeta, escritor e crítico de arte, sendo um dos
responsáveis pelo movimento simbolista. Este movimento irá se unir ao movimento Arts
& Crafts inglês dando origem, segundo alguns historiadores, ao Art Nouveau.
(BAUDELAIRE, 2006)
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ...
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através do seu esforço, que seja produto de um trabalho degradante, ou que se
destine ao proveito dos usurpadores. (MORRIS, 1884)
O discurso acima pertence a um conjunto de textos – alguns extraídos de
conferências proferidas por Morris – e mostram claramente o caráter social e
político do seu pensamento. Este é o pensamento fundante da arquitetura moderna
– a busca da afirmação de um novo modelo produtivo que altere profundamente
os rumos do desenvolvimento econômico e social na Europa, e que no entanto,
afirme através de um novo estilo, de uma nova linguagem, a gênese do ideal
revolucionário do homem na construção de um novo mundo. A transformação
da linguagem arquitetônica portanto se dá em função desta nova moralidade que
se impõe aos atos dos homens em busca de um ideal de progresso verdadeiro e
revolucionário.
A Morte de Deus na Filosofia
Uma síntese da linguagem surge a partir da segunda metade do século XIX
como afirmação deste novo sistema de valores; este novo homem, ao combater
os valores da sociedade burguesa tentará imprimir sua concepção moral de mundo
no seu trabalho através da abolição dos antigos modelos. Este homem deve se
expressar com uma linguagem própria, nova – tão nova e revolucionária como
seus pensamentos e seu ideal de mundo. Fundar uma nova linguagem se tornou
o objetivo e o cárcere destes homens; eles estarão confinados neste espaço vazio
onde um conteúdo gigantesco de novas ideais e novos valores pairam sobre suas
cabeças, porém não existem meios para expressá-los. Era preciso inventá-los para
completar seu projeto de mundo. Baudelaire (1821-1867) e Dostoiévski (18211881) serão alguns dos primeiros a fazê-lo na literatura e na poesia. As Flores
do Mal, de Baudelaire (1857) foi censurada e banida do mercado sob acusação
de insulto aos bons costumes. Já Dostoiévski em Memórias do Subsolo escrito
em 1864, irá exercer forte influência em outro importante filósofo do fim do
século, Nietzsche (1844-1900).
As nossas vontades são, na maior parte, equívocos devidos a uma concepção
errada sobre nossas vantagens. Se queremos às vezes um absurdo completo, é
porque vemos nesse absurdo, devido à nossa estupidez, o caminho mais fácil para
atingir alguma vantagem previamente suposta. Bem, mas quando tudo isto estiver
explicado, calculado sobre uma folha de papel (o que é muito possível, porquanto
é de fato ignóbil, e não tem sentido admitir de antemão, que o homem não
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Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz
descubra jamais outras leis da natureza), então naturalmente não existirão mais
os chamados desejos. De fato, se a vontade se combinar um dia com a razão,
passaremos a raciocinar em vez de desejar, justamente porque não podemos, por
exemplo, conservando o uso da razão, querer algo desprovido de sentido e, deste
modo, ir conscientemente contra a razão e desejar aquilo que é nocivo a nós
próprios... Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida,
mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto
o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida
humana, com a razão e com todo o coçar-se. […] Que sabe a razão? Somente
aquilo que teve tempo de conhecer, ...enquanto a natureza humana age em sua
totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora
minta, continua vivendo. (DOSTOIÉVSKI, 2001)
Nietzsche refere-se constantemente a Dostoiévski em suas notas. Em 1887,
afirmou que o autor é o “único psicólogo com quem tenho algo a aprender”.9 O
filósofo alemão produz uma importante contribuição para o existencialismo. Para
ele a moral religiosa10 é uma forma de dominação e foi imposta pelo uso da força
sobre os povos, culturas e religiões – a moralidade é um problema porque “serve
para fins imorais” (Nietzsche, 1999) e por isso deve ser combatida. Para
Nietzsche, era necessário forjar uma maneira de encorajar o indivíduo a exercer
sua plena liberdade e criatividade mesmo que para que isto fosse necessário
sofrer com as incertezas. Em A gaia ciência (1887), o autor repete a declaração
de Feuberbach que Deus está morto,11 porém com a finalidade de reafirmar que
a moralidade é um problema a ser enfrentado pelo homem, e não algo pré-definido
por Deus. Estas definições levam Nietzsche a se opor a qualquer padrão moral
absoluto, o que exerceu forte influência em Jean Paul Sartre (1905-1980). No
9. F. Nietzsche em 1887. Fonte da web: http://www.fyodordostoevsky.com/
quotes.php em 16.01.2014 às 10h15.
10. Para o filósofo a moralidade no homem se manifesta como uma forma de
ressentimento (ressentiment) que gera rancor e desgosto pela vida. Em Sobre a genealogia
da moral (1887) o autor defende que o combate à moral dos opressores é uma forma de
resistência à dominação religiosa e cultural. Em O nascimento da Tragédia (1872) constrói
a figura o Übermensh (super-homem) como um modelo que não sucumbiria à moralidade
dominadora.
11. Ludwig Feuerbach, Das Wesen des Christenthum (1841). A Essência do
Cristianismo. Vozes, Petrópolis, RJ, 2009.
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ...
| 445
presente artigo a aproximação da filosofia existencialista com o pensamento
arquitetônico, dar-se-á através dos conceitos formulados por Nietzsche e Sartre.
Estes dois filósofos, a pesar das semelhanças entre os seus pensamentos, chegarão
a conclusões opostas sobre os reflexos destes conceitos na vida dos homens.
Nietzsche acaba por isolar o indivíduo; ele irá defender de forma enfática sua
liberdade e sua supremacia sobre os valores da sociedade; o homem em Nietzsche
torna-se seu Deus, e é através deste exercício de liberdade e individualidade que
o filósofo pretende libertar o espírito humano de qualquer forma de dominação
elevando sua existência gloriosa à celebração produtiva de sua genialidade e
superioridade – ao Dandi de Baudelaire. Já o existencialismo humanista em
Sartre reinsere este homem – pleno de si – na sociedade e reformula sua filosofia
ao encontro das ideias marxistas aproximando – como bem quis Marx – sua
filosofia de um papel objetivo, verdadeiro e transformador. Para Sartre este
homem que surge pleno no mundo – este Übermensh – deve ser responsável e
atuante no sentido de elevar a sociedade – a humanidade – ao status que ele
conquistou para si. Sartre atribui ao indivíduo a responsabilidade e o dever de
transformar o mundo a partir do exercício pleno desta liberdade que conquistou
para si; Portanto ao analisar a formação do pensamento arquitetônico a partir
do existencialismo, esta divisão da filosofia será observada da seguinte forma:
Nietzsche e a influência do seu pensamento em Henry van de Velde (1863-1957)
e posteriormente em Mies van der Rohe (1886-1969); e o existencialismo humanista de Sartre e suas semelhanças12 com o pensamento de Herman Muthesius
(1861-1927) e posteriormente Le Corbusier (1887-1965). Ao final desta pesquisa
pretende-se aproximar os desdobramentos deste pensamento na produção e no
ensino da arquitetura no Brasil a partir de Artigas (1915-1985) e a sua “função
social do arquiteto”.
A Morte de Deus na Arquitetura
A aproximação entre a filosofia de Nietzsche e o pensamento arquitetônico
talvez tenha se dado de forma mais direta através de do arquiteto, designer e pintor
12. Não será utilizado o termo influência, pois Sartre irá formular sua filosofia
somente três décadas depois. O existencialismo humanista de Sartre é tratado aqui como
um possível diagnóstico para os eventos que se sucederam nas primeiras décadas do século
XX e transformaram tanto a linguagem quanto o pensamento arquitetônico.
446
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Figura 3 - Ecce Homo – primeira edição,
1908.
Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz
Figura 4 – Caricatura de Karl Arnold,
1914.
belga Henry van de Velde. Velde irá em 1903 projetar o interior de algumas salas
da Nietzsche Arquiv em Weimar, local concebido e administrado pela irmã do
filósofo para abrigar e divulgar sua obra. É também de Velde o design da primeira
edição de Ecce Homo, publicado em 1908 (fig.3). Velde é considerado um dos
fundadores do Art Nouveau na Bélgica e faz parte da primeira geração das
vanguardas arquitetônicas sob forte influência de Ruskin e Morris – de quem
herdará a crença no papel do Design como introdutor de uma transformação nos
meios de produção. Velde irá buscar uma forma de aproximar a criação artística
da produção industrial e irá fazer parte do grupo Deutscher Werkbund – uma
associação entre designers e indústrias que teria como objetivo promover a
produção de objetos industrializados de alta qualidade e fabricados de maneira
adequada, isto é, elevando a qualidade de vida dos trabalhadores e fundando um
novo modelo de sociedade/comunidade industrial. Em 1914, um famoso debate
entre Velde e Muthesius no sétimo congresso do Werkbund em Colônia explicita
o status do pensamento arquitetônico e do design no ano que culminará na
Primeira Guerra Mundial. Karl Arnold ilustrou este debate para um jornal alemão
(fig.4): No primeiro campo de sua charge, aparece representada a figura de Velde
e a sua cadeira individual; no segundo campo, Muthesius aparece ao lado de
sua cadeira tipo; e, no terceiro campo, Arnold ilustra um artesão anônimo com
a sua cadeira para sentar. Sob este olhar carregado de ironia, surge a constatação
de que os designers – com o intuito de erguer o design à esfera política como
elemento introdutor de uma ampla transformação cultural e de uma ordenação
dos modelos de produção – poderiam estar se distanciando do seu objetivo
primordial que é simplesmente produzir objetos para a apropriação humana. O
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ...
| 447
artesão anônimo representa este status apolítico e de certa forma objetivo do
design. Nos dois primeiros campos, Arnold representa o designer em roupas
pretas – eles prevalecem no campo visual por sobre sua criação; já no terceiro
campo, o artesão é representado em branco, sem contraste com o fundo – quase
pertencente a ele – e, no entanto, a cadeira recebe o preenchimento preto e chama
para si o domínio do quadro. Arnold simboliza, através disso, esta característica
dos atuais designers em unir a sua imagem/identidade à sua criação, enquanto o
artesão tradicional encontra-se oculto – anônimo – atrás de sua cadeira para
sentar. Este último não é um homem por trás da cadeira, e sim uma técnica; um
método, um ofício herdado por gerações de artesãos anônimos que – assim como
ele – simplesmente aprenderam a escolher e a moldar a matéria prima, transformála em algo; um conhecimento adquirido através de centenas, ou talvez milhares
de tentativas e erros até que algumas certezas foram conquistadas e transmitidas
como um segredo valioso, de geração para geração, que iria garantir trabalho e
sustento para seus herdeiros. Outro detalhe importante foi como Arnold dispõe
os três campos em sua charge. O desenhista coloca Muthesius entre Velde e o
velho artesão – talvez esta disposição sirva para exemplificar a proximidade e o
caráter das proposições de cada um – Muthesius ao centro. Portanto, é
representado como uma transição entre a oposição criada entre Velde e o artesão.
É possível observar que o primeiro se agiganta em relação aos demais, seguido
por Muthesius um pouco menor e o artesão mais baixo – o mesmo acontece com
as cadeiras; a cadeira de Velde é mais alta e a do artesão a mais baixa. Seria Velde
e sua cadeira efetivamente mais altos que os demais ou Arnold queria transmitir
algo com isto? A leitura que se extrai aqui é a da individualidade. O pensamento
de Velde se aproxima ao de Nietzsche – ele acredita na individualidade e na
grandiosidade do homem. Para Velde, tanto o homem como a sua criação – seus
atos – devem carregar este brilhantismo e esta genialidade. A cadeira de Velde é
única, concebida pela genialidade humana e produzida pelas máquinas que este
homem criou. Esta cadeira deverá ser um ícone da perfeição e da supremacia do
homem e da sua cultura; será valiosa – servirá a um único homem para o qual
foi concebida como uma peça de vestuário, ou melhor, como uma obra de arte.
Esta é máxima contraposição ao antigo modelo industrial que produzia grandes
quantidades com péssima qualidade e baixo valor comercial. Já Muthesius, dentro
da aproximação que se pretende aqui realizar, está ideologicamente próximo de
Sartre. Muthesius sustenta que sua cadeira deve ser igualmente excepcional
enquanto criação artística – enquanto obra de arte e produto da genialidade
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Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz
humana. Porém, a cadeira de Muthesius não é única nem será produzida por um
único homem. O projeto por trás de sua cadeira é o projeto humanístico de Sartre;
ele pretende não elevar somente o indivíduo à existência plena e autêntica –
Muthesius assim como Sartre pretende erguer toda a sociedade – ou a humanidade – a este patamar. Este é um projeto de sociedade, um projeto de coletividade;
da busca e do engajamento do homem em transmitir sua genialidade para a
concepção de uma nova sociedade, igualmente rica erguida sobre o triunfo e o
domínio do homem sobre a natureza e aos meios de produção. A cadeira de
Muthesius não deverá ser produzida por um único homem – ela é o símbolo da
genialidade e da criatividade humana e deverá ser produzida por vários homens;
ou seja, ela é a síntese de um progresso coletivo e carrega com ela a genialidade
da humanidade e seu domínio sobre os meios de produção. Ela será uma cadeira
tipo, produzida em série, para que todos os homens sejam igualmente contemplados com o esplendor da atividade humana. Serão baratas, porém o valor pago
por elas garantirá uma vida digna e plena a quem as produziu – é por isto que
Muthesius também projetará a cidade industrial – para garantir a elevação do
status deste novo operário, que ao contrário do antigo sistema industrial, terá
acesso às riquezas que produz, como Morris um dia sonhou. Portanto, Muthesius
está mais próximo do antigo artesão, porque ambos – operários e artesãos – estão
ocultos sobre sua criação. Porém, esta será motivo de orgulho para estes novos
operários bem como o eram para os antigos artesãos. Em ambos se encontram
algo perdido com a revolução industrial – a dignidade do trabalho e a possibilidade de viver de forma igualmente digna através dele.
A Função Social do Design e da Arquitetura
Esta aproximação que este artigo pretende revelar entre a formação do
pensamento moderno na arquitetura e no design com o surgimento das filosofias
da existência busca evidenciar o surgimento de algo que se tornou, na atualidade,
parte integrante da condução destas disciplinas. A função social da arquitetura
e do design aproxima estas disciplinas da filosofia existencialista à medida em
que transformou o ato de projetar em ato político e humanista. Será a partir da
primeira guerra mundial que esta ideia irá se desenvolver e atingir sua plenitude
nos discursos dos homens irão que reconstruir a Europa devastada pela guerra.
Será esta próxima geração que irá levar a arquitetura para a maior síntese de sua
história; a arquitetura moderna irá se formar juntamente com as vanguardas
A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ...
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artísticas – cubismo, purismo, neoplasticismo. Porém, as ideias e os conceitos
que levaram a consolidação do projeto moderno já estavam sendo forjadas pelos
homens do século XIX. Este artigo pretende evidenciar parte deste caminho. No
âmbito da dissertação de mestrado, que se encontra em desenvolvimento, pretende-se abranger e aprofundar estes conceitos como forma de atribuir a cada etapa
da construção do pensamento moderno sua devida importância.
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O aplat como figural: uma indiscernibilidade de
fundo, entre Deleuze e Lyotard
CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA*
OSVALDO FONTES FILHO**
Resumo: O aplat é “profundidade magra”, paradoxal espacialidade que evita o
narrativo na pintura de Francis Bacon, segundo a leitura de Deleuze, em Logique
de la sensation (1981). Contudo, uma leitura do conceito de figural mostra ainda
que, em sua indiscernibilidade, o aplat possui características próprias da figura
pré-linguística, como a entende Lyotard em Discours, figure (1971): destituição
do figurado e do figurativo, planaridade não abstrata, fundo nada profundo de
uma fulgurância caosmica na imagem. Este artigo objetiva fornecer alguns subsídios para uma análise figural do aplat. Ao assim fazê-lo, por um lado aponta para
a fecundidade crítica de uma Teoria da Arte afeita a uma psicanálise das formas;
por outro lado, alerta para um revisionismo teórico-metodológico capaz de resgatar o sensível artístico da contabilização dos sentidos do tipo estruturalista.
Palavras-chave: Deleuze. Lyotard. Figural. Aplat. Indiscernibilidade.
The aplat as a figural: a background indiscernibility between
Deleuze and Lyotard
Abstract: The aplat is a “slim deepness”, paradoxical spatiality that avoids the
narrative in Francis Bacon’s painting, according to the Deleuze reading in
Logique de la sensation. However, read the concept of figural shows us yet the
** Graduado em Letras, mestrando em História da Arte no Departamento de
História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
** Mestre e Doutor pelo Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, com pósdoutorado pelo Ibilce-Unesp. Professor de Filosofia da Arte e Estética no Departamento
de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
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Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho
aplat in your indiscernibility have own characteristics of pre-linguistic figure,
as Lyotard understands in Discours, figure: destitution of figured and figurative,
non-abstract plainness, not profound background of a caosmic fulgurance in
the image. This paper objectifies to furnish some subsidies to a figural analysis
of aplat. To do so, on the one hand, points to the critical fecundity of an Art
Theory accustomed to a psychoanalysis of forms; on the other hand, it warns
to an theorical-methodological revisionism able to rescue the artistic sensible
from the contabilization of senses in a structuralistic way.
Keywords: Deleuze. Lyotard. Figural. Aplat. Indiscernibility.
Sabe-se como o gesto lyotardiano em Discours, figure, ao resgatar o sensível
dos “agenciamentos ‘linguagéticos’ dos sistemas de representação clássicos”
(HUCHET, 1998, p.19), configura verdadeira virada epistemológica em Teoria da
Arte na direção do corpus freudiano. Ele aponta, de fato, para um sensível artístico
atravessado de “potencialidades expressivas e patológicas”, eventos de
figurabilidade (acidentes, latências, dilaceramentos) infensos a qualquer
contabilização de sentidos. O figural ali surge como a contrapartida precisa da
linguagem enquanto significação convencional, declarativa, textual. Sendo
trabalho do desejo, o figural indicia o movimento mesmo de todo sistema
linguístico ou iconográfico, seu inevitável elã de alteridade ao integrar elementos
externos, inassimiláveis (cf. LYOTARD, 1971, p.12). Lyotard mostra como o figural
vem habitar o discurso como um modo de desfigurá-lo a partir de seu próprio
interior. Ao assim fazê-lo, ele aponta para uma crítica filosófica dos pré-conceitos
gnosiológicos da filosofia da arte e do sensível.
O que abaixo se segue constitui um esboço de estimativa da eficácia crítica
de uma análise figural, desenvolvida em chave filosófica, em torno do motivo
do aplat, superfície de indiscernibilidade cromática em um pensamento plástico
sobejamente refratário ao narrativo.
*
Para Deleuze, o aplat é efeito daqueles atos físicos da pintura de Francis
Bacon – marcas aleatórias, varredura da massa pictural, escansão das superfícies
– que introduzem no mundo visual da figuração a variedade caótica dos fatos e
sentidos. Faz parte, pois, do esforço em reintroduzir o inexprimível no interior
mesmo do fato bruto e da sensação que este destila: o figural. O termo é de
O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard
| 453
Lyotard. Ele nada conta; apresenta-se, antes, como acontecimento da linguagem,
seu devir.
Para Lyotard, o aplat é uma das figuras de deslegitimação do monopólio
narrativo. Nesse sentido, é textura deslocada do saber contemporâneo e representa
sua paranoia ou seu estado esquizo, inconcebível pelo e para os idiomas descritivos e prescritivos próprios às figuralidades correntes da arte e da linguagem.
Em ambos, pergunte-se: o aplat estaria próximo do nível de generalização
filosófica do conceito de figural no que este tem de indiscernibilidade? Onde
começa e onde termina, afinal, um aplat? Como se constrói? Quais os limites de
sua apreensão fenomenológica?
Deleuze refere-se ao aplat como última instância do “universo-cosmos” que
se abre da “casa” – esta armadura ou carapaça (contorno?) que guarda a Figura
enquanto “carne”. O aplat não é carne porque não é armadura, jogo de planos
ou “porções de planos”. É, antes, universo-cosmos, “o único grande plano, o vazio
colorido, o infinito monocromo” que possibilita as passagens e os devires
(DELEUZE, 1992, p. 159).
Sabe-se como a geofilosofia deleuziana atravessa termos próprios de um
estudo dos territórios (universo, cosmo, casa). Mas quando se trata da cor, é sua
modulação que é dita transformar o Fundo (universo-cosmos) em aplat, ou seja,
em “achatado”, naquela ausência de relevo que Deleuze qualifica como
“profundidade magra” (DELEUZE, 1991, p. 135) – atenção háptica à presença mais
que à representação. Na pintura de Bacon, a diferença entre Fundo e Figura não
seria de profundidade, mas de nível, de intensidade cromática. Entre eles, o
contorno fulgura, concede a permuta dos tons e matizes.
Seja como for, a metáfora geográfica fornece relevo linguagético ao que
Eric Alliez (1995, p. 59-63) chama a “ontologia vitalista do sensível”: o aplat
como “vida não orgânica” é natureza bruta (pedra, água, deserto), enquanto a
casa abriga a vida animal, a carne do corpo sem órgãos. Ambas atestam a
indivisão fundamental entre arte e vida, entre arte e devir animal. Atestam, ainda,
que a arte não é lugar das reterritorializações, mas dimensão dos assignificantes.
É nesse particular ambientalismo pictórico que a conceituação desterritorializante de aplat pode ocupar sistematicamente o resto do quadro (cf. DELEUZE,
2007, p. 15). A Figura e o Contorno tomam parte no que Deleuze define como
“sistema território-casa” (1992, p. 162), que isola e reúne, mas também permite
aberturas para forças oriundas do fora. Um dos efeitos disso é o que passa por
ser intenção maior de Bacon: fazer surgir “zonas de indiscernibilidade, de
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Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho
indecidibilidade” entre o homem e o animal. O aplat, parte da composição com
“função espacializante”, é terra selvagem a ser explorada, é lugar de eleição e
de perdição da Figura. Como zona de indeterminabilidade, o aplat não é área
indiferenciada que se presta apenas a evidenciar por contraste a Figura. É
extensão cromática, não por detrás, mas ao lado, em uma proximidade plana,
planaridade sem relevo, paisagem de superfície cujos elementos são contrastados,
nunca dualidade simples do tipo fundo-forma. (cf. LENAIN, 2002, p.197).
O aplat não é, pois, mero suporte, mas uma estruturação de espaço para a
Figura; dir-se-ia mesmo, em termos deleuzianos, tratar-se de um plano de
hecceidades ao qual a Figura (essa contrafação do figurativo) se conecta para
poder se exprimir como fato. Entende-se: o que assim se conecta não conta uma
história de ligação. O fato permanece em sua movimentação, fundamentalmente
um devir, entre o aprisionamento pelo aplat e os espasmos de sua liberação,
jamais uma aventura com narrativa linear. O aplat é armadilha para a Figura,
assim como seu termo de liberação – pela boca (no Estudo do Retrato do Papa
Inocêncio X de Velasquez), no lavabo ou na privada (no Tríptico de 1973, nos
Três personagens num quarto), etc.
Não por acaso, Lyotard refere o figural como um “para além” do discurso,
fora de suas repetições do mesmo. Razão porque a arte supõe “uma manifestação
espacial que o espaço linguístico não pode incorporar sem ser agitado, uma
exterioridade que não pode interiorizar como significação” (LYOTARD, 2011, p.
7). Haveria um vínculo entre a deformação na Figura, proporcionada pela ação
das forças cósmicas, que adentram o território através das aberturas deixadas para
o aplat, e a “agitação” que Lyotard denuncia no espaço linguístico quando tenta
incorporar a manifestação espacial da arte. Mas, pergunte-se, poderia a Filosofia
falar à Pintura a partir de uma zona de indiscernibilidade comum a ambas?
A indagação impõe-se. Para Deleuze, Bacon é, em pintura, a evidência de
uma “livre figura da diferença” (FONTES FILHO, 2007, p.10). O aplat seria uma
variação deleuziana para o que Bacon nos apresenta na forma de variedade
pictórica. Quando o discurso filosófico faz referência ao discurso pictórico, ele
corre então o risco de o “fora da linguagem” destruir sua reflexão ou fazê-la vagar
a esmo num espaço diferencial.
Pergunte-se, pois: até que ponto é possível textualmente referir-se a este
aplat cuja relação com o figural torna-o inapreensível pela textualidade?
Sabe-se que Bacon presta-se a explicitar para Deleuze como a arte trabalha
a fim de desfazer o mundo da figuração ou da doxa, de abrir o espaço e ali
O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard
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descortinar um vazio. Uma vez instalado, este deserto (o “Saara” figural de que
fala o pintor) mostra-se veraz enquanto acesso ao sensível incondicionado, ao
sensível puro (cf. RANCIÈRE, 2000, p. 505-516). Na obra do artista, a verdade está
do lado de um vazio – “o acontecimento aqui: o de abrir buracos para deixar escoar
o abismo através das figuras, até uma capacidade de captar forças mudas como a
Duração, a Intensidade” (FONTES FILHO, 2007, p.14). O discurso plástico é uma
histeria, um fazer-se enquanto se destrói ou enquanto destrói a figuração – o figural
situa-se do lado do desvio, da falha, da lacuna, da rasgadura, para reter o termo
proposto por Didi-Huberman (2013). A pintura de Bacon seria da ordem de um
processo de varredura/rasgadura do espaço das significâncias. Os elementos
pictóricos que Deleuze ali denota teatralizam o trabalho de forças de desfiguração
(pressão, dilatação, contração, achatamento, estiramento): o aplat configura o
caos em potência; como toda figura da potência, ela atrai para si toda figura.
O figural é, pois, uma potência tropológica que se exerce, em operações de
varredura ótica, na suspensão de sentidos ali onde o olho tropeça, se detém em
sua organização soberana – sobre um plano de histeria das figuras somente
frequentável por uma mão independente. São seus recursos marcas “irracionais,
involuntárias, acidentais, livres, ao acaso [...], traços assignificantes, [...] de
sensações confusas” (DELEUZE, 2007, p.103).
Como processo de desfiguração do plano dos sentidos, a pintura de Bacon
presta-se em Deleuze quase como confirmação plástica do figural lyotardiano
no que este tem de radical inflexão crítica. O aplat funcionaria ali, não como
“forma de fundo”, mas como o discurso de desintegração de toda figura, seu
aformal congênito. Ora, Lyotard retira de Frege a distinção entre o sentido (Sinn)
e a referência (Bedeutung) e, posteriormente, aciona a Bedeutung freudiana a
fim de tratar do modo como a linguagem perturba toda cisão original (cf.
LYOTARD, 2011, p. 103 e 128). É por essa perturbação que se instala o desejo na
linguagem, como aceitação da “angústia de deixar aberto o vazio onde [o desejo]
poderá repercutir suas figuras” (LYOTARD, 1971, p.383). O figural não é senão a
matriz trans-formadora das formas e imagens na linguagem, o modo mais vistoso
de suas de-formações. E o aplat seria como que a confirmação pictural de que a
figura não é tanto um visível quanto um desejo figural – desejo de errância nos
diferentes objetos (LYOTARD, 1973, p.235), demonstração que “o sensível está
num intervalo insuprimível para com o sentido” (LYOTARD, 1971, 41).
Percebe-se então que, ao romper com a discursividade, o aplat é ato de
estiramento, espaço desconstruído (de desnaturação das leis da linguagem e da
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Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho
percepção; das “boas formas” da ideologia, diria Lyotard), “extensão aberta pela
retração do sentido” (LYOTARD, 1973, 65). Expansão, pois, do elemento sensível
para seu exercício caótico. Se as sensações são seres que excedem o vivido e
existem na ausência do homem (cf. DELEUZE, 1992, p. 144-145), a abertura para
o caos que se configura no aplat é como uma passagem de acesso direto à
sensação: potência maior do efêmero. O imediato é sensação, sentido outro que
atinge diretamente o sistema nervoso; o mediato é efeito do símbólico, do
figurativo. Eis, segundo Deleuze, a clara distinção do discurso de Bacon em seu
espaço pictórico: “figural, a pintura de Bacon é da sensação, não dos efeitos da
sensação” (KOSSOVITCH, 2003, p.166).
A sensação navega entre espaços, no interstício entre o território e o
universo. Ao resistir à territorialização, o aplat trava uma guerra de forças a favor
do isolamento da Figura e contra seu retorno ao sentido comum. A proximidade
absoluta entre “a grande superfície plana”, que é fundo, e a Figura, que é frente,
intensifica a guerra de forças, dado que o aplat reivindica não estar atrás, mas
ao lado. Estes estão em contato (no sentido háptico), mas na independência dos
termos. Cada um requer o seu espaço e seu modo de suscitar sensações.
Nota-se como a distinção deleuziana aplat/Figura é tributária do modo como
Lyotard preconiza os termos “espaço textual” e “espaço figural”. Entre texto e
figura viceja uma “fenda ontológica”, que os separa na mutualidade, duas
organizações específicas do espaço.(cf. LYOTARD, 2011, p. 205).
Em Bacon, seria no ato de isolar que a Figura romperia com o figurativo, o
ilustrativo e o narrativo. Porém, como afirma Lyotard (2011, p. 205), “o figurativo
é meramente uma instância do figural”, implicando apenas em derivar o objeto
pictórico do seu modelo “real” por um processo ininterrupto de interpretação,
de tradução. A Figura baconiana seria, verdadeiramente, esta instância do figural
que busca fugir de seu polo figurativo evitando “contatos” que a reproduzam em
narrativa. Razão porque o aplat é convocado para ocupar o “resto” do quadro.
Ele afasta qualquer outra figura da Figura, afasta principalmente os clichês que
porventura insistiriam em ocupar lugar, abrindo o vazio necessário à “construção
da casa”. Ele é também e principalmente, a dimensão ampla e caótica, espaço
específico ontologicamente diverso do gráfico e do textual.
Lyotard trata o figural como um impossível de ser significado; ele é, de fato,
o que permanece inapreensível ao longo de Discours, figure. Tal é o intento, aliás,
do livro: numa crítica fenomenológica do discurso e da teoria, proceder a uma
inicial “defesa do olho” (LYOTARD, 1971, p.11) e, em seguida, conceber a figura
O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard
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em termos de libido. Intento, pois, de trazer ao discurso o que lhe resiste, e superar
a profundidade ainda insuficiente do estruturalismo e da fenomenologia em face
do potencial crítico da figura. Lyotard deseja escavar mais fundo, até um ponto
em que se desfaça a distinção entre imagem e texto, ponto em que a vontade de
saber e o desejo de verdade ainda não se desligaram. Deseja aceder, portanto, a
um nível pré-linguístico, onde passar do discurso à figura sem deixar o foro da
linguagem, mesmo porque “a figura está dentro e fora” (LYOTARD, 1971, p.13).
Um dos recursos, para trazer ao discurso o que se subtrai à representação,
“o que se deixa adivinhar em sua própria esquiva” (LYOTARD, 1973, p.58), é
remediar o estruturalismo e sua “linguagem por toda parte” (LYOTARD, 1971,
p.14). A psicanálise a isso se presta como modo de se transferir da linguagem
enquanto mediação para as forças que a deformam. Ali, Lyotard recupera o evento
de cisão da unidade matricial, a fim de dar conta do momento em que a linguagem
implode como discurso da alteridade. O ponto crítico é o desejo: ao separar-se
da mãe-objeto, o Eu-sujeito depara-se com a dependência material e afetiva desse
Outro, que nasce ao mesmo tempo como objeto de desejo e objeto sobre o qual
se fala. O dizer a respeito desse objeto esconde o não dizer da ligação com a
mãe mantida pelo desejo, origem de todo processo de significação. A figura seria
produzida no momento em que o não dito eleva-se ao discursivo, como fratura
imposta por uma “espessura”, ou melhor, como uma “diferença constitutiva”,
uma “mobilidade imóvel”, não a ser lida, mas a ser vista (LYOTARD, 1971, p. 9).
A figura acontece no discurso com a força de um acontecimento de
visualidade que o transgride, que o fratura. Seu espaço é, paradoxalmente,
determinado pelo vazio, pelo nada que separa duas frases, condição de sua
apresentação e evanescência (cf. LYOTARD, 2000, p.56). Razão porque o figural
é força de cisão. Como tal, opera no apagamento da distinção clássica entre texto
e imagem, letra e linha. “A letra é uma linha fechada, invariante; a linha é a
abertura da letra que se encontra fechada, alhures ou do outro lado. Abra a letra,
e você terá imagem, cena, magia. Feche a imagem, e você terá emblema, símbolo,
e letra” (LYOTARD, 1971, p.268). Assim, o figural não é mero chiasmo entre texto
e figura: “é uma força que transgride os intervalos constitutivos do discurso assim
como as perspectivas que compõem a imagem” (RODOWICK, 2001, p.2).
Se o figural define um regime semiótico onde se deslegitima a distinção
ontológica entre o linguístico e o visível (as representações plásticas e seus
referentes), ele se presta a uma “crítica genealógica da estética” (RODOWICK,
2001, p. 2), rumo a uma “propriedade quase visual do falar” (LYOTARD, 1971,
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Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho
p.32), com a consequente abertura de novas vias epistemológicas para além das
totalizações dialético-metafísicas.
É, pois, como “espaço intensivo do desejo” que o aplat se amolda à
“negatividade intencional” (LYOTARD, 1971, p.121) da língua aventada pelo
discurso lyotardiano. Ao isolar a Figura, Bacon estaria retornando à mãe-objeto
primordial, unindo-se uma vez mais com ela, tornando-se um só com o desejo.
Abertura de um vazio pleno do Outro ou preenchimento total do Eu. O que passa
em tal sensação, e seu correlato na forma pictórica, é o colorido sólido, invariável.
Se a Figura não tem nada a narrar, é porque a zona de indiscernibilidade, o aplat,
é universo-cosmos exterior à mãe, caos da Natureza ou plenitude do deserto.
Espaço latente do desejo, desejo em potência, que aguarda a cisão da Figura com
a mãe para se instalar como veículo de propagação da linguagem e do desejo.
Assim, quando na linguagem emerge o não dito, por via de uma fratura ou fenda,
é o aplat que se levanta, comparecendo como “caos livre e intempestuoso”,
fissura na linha de firmamento das convenções e opiniões de modo a “restituir
[...] a incomunicável novidade que se tinha deixado de saber ver”. (DELEUZE,
1992, p. 178).
Deleuze entende propor uma pragmática filosófica que enderece a seus
objetos perguntas do tipo: que modo de existência isso implica? Que possibilidades de vida aí se abrem ou se fecham? Sabe-se como na filosofia deleuziana
nada suscita um problema de significação e de interpretação, nem mesmo os
conceitos como signos filosóficos. Nada há a interpretar, mas tudo a experimentar; tudo deverá fazer sentido (ou não) unicamente por sua fecundidade do
ponto de vista das nossas experimentações. Reiteradas vezes Deleuze exorta a
que se experimente, que se estimem os efeitos. “Os conceitos são exatamente
como sons, cores ou imagens, são intensidades que nos convêm ou não, que
passam ou não passam.” (DELEUZE, 1998, p. 10). Para que passem, cumpre
“apagar, limpar, laminar, ou até mesmo rasgar para fazer passar uma corrente
de ar vinda do caos que nos traz a visão” (DELEUZE, 1992, p.178). Singular
protocolo, que se cumpre exemplarmente nos aplats de Bacon – lugar de todas
as variações rítmico-cromáticas – tanto quanto nos conceitos capazes de fissurar
as “belas interioridades orgânicas”, de abrir buracos “no muro das significações
dominantes” (DELEUZE, 1998, p. 58). Em ambos, no conceito e na forma, haveria
a mesma intenção de compor por “catástrofe”, por “conflagração” (DELEUZE,
1992, p.177), por variações alotrópicas. Razão porque nos retratos baconianos
o filete de tinta – policromia sobre grande superfície plana – “perde o aspecto
O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard
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figurativo, de um trágico demasiadamente fácil [...], para adquirir uma série de
valores dinâmicos figurais” (DELEUZE, 2007, p. 150). O rosto se desorganiza em
cabeça, plano maior de matização.
Em análise recente, Philippe Dubois fala do figural como uma exclusão, o
que resta da imagem quando subtraídos o figurado e o figurativo. Seria intenção
de Bacon com suas Figuras produzir um ato de imagem e deixá-la agir por si
mesma. O aplat seria, pois, um figural por abrir o espaço dos desejos na fase
pré-linguística do discurso: se não há separação da unidade Eu-mãe, o espaço é
meramente complementar, é o que resta, um vazio sem clichês. Lugar de potência
da Figura, sem deixar de ser um detalhe de fulgurância. Como potência, o figural
é incontrolável – “a potência é propriamente incomensurável” –, opondo uma
“terrível dimensão nietzschiana” à concepção hegeliana do poder (DUBOIS, 2012,
p.105). Razão porque o aplat, aqui, foi tomado como o lugar de evenemencialização por excelência nas filosofias de Deleuze e Lyotard. Nele, a diferença
apresenta-se como a essência do visível, um evento de visão que entra em tensão
com a uniformidade da cor chapada, em contiguidade sem encaixe combinatório,
portanto sem representatividade e sem narratividade, de figura a figura, de texto
a texto. Evento, pois, que alegoriza (ou seja, transforma em alteridade) o momento
anterior à deflagração da linguagem ordenada, a indiferença recíproca de suas
partes, como exemplarmente exposto pelos polípticos baconianos (cf.
KOSSOVITCH, 2003, 161). Retorno, quiçá, à alvorada da arte, quando o elemento
háptico do espaço egípcio era dominante? Ou mergulho no fundo de
indiscernibilidade, fantasmagoria do desejo figural, tarefa que Lyotard reserva
ao que ele qualifica como uma “anti-arte” (LYOTARD, 1973, p.235)?
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O desenho e o nascimento da ideia para a
arquitetura1
MARIA FERNANDA ANDRADE SAIANI VEGRO*
Resumo: A proposta de uma pesquisa fenomenológica desenvolvida no
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da
Universidade de São Paulo com abordagem qualitativa para a compreensão do
desenho arquitetônico se fundamentou ancorada na fenomenologia da
linguagem de Merleau-Ponty que se caracteriza fundamentalmente em
estabelecer relações constantes entre sujeito, objeto e mundo anulando
individualidades fechadas em si mesmas. A questão da alteridade para o arquiteto
e sua identidade imprime seu estilo, ou seja, sua forma de habitar e tratar o
mundo. Torna-se necessário a construção de um desenho arquitetônico que
estabeleça um acordo entre o sensível e o inteligível, pois o ato de desenhar para
o arquiteto deve presumir a técnica, a história, a construção, o trabalho, levar
em conta a cultura, economia, política, as questões sociais; e não abrir mão da
partilha do sensível, ou seja, a construção de relações intersubjetivas entre os
sujeitos implicados na materialização da arquitetura e assim favorecer um
desenho aberto, democrático que subverta a ordem da realidade dada.
Palavras chave: Fenomenologia. Arquitetura. Desenho. Sensível. Inteligível.
1. O presente artigo constitui-se um pequeno fragmento da dissertação de mestrado
apresentada ao Programa Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade
de São Paulo no ano de 2014, denominada “O Desenho Arquitetônico: fenomenologia e
linguagem em Joan Villà”, sob a orientação da profa. Dra. Carmen Sylvia Guimarães
Aranha.
* Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte. Linha
de Pesquisa: Metodologia e Epistemologia da Arte. Universidade de São Paulo.
462
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Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro
ABSTRACT: The proposal of a phenomenological research program developed
at Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte
da Universidade de São Paulo with a qualitative approach to understanding
the architectural design was based anchored in the phenomenology of MerleauPonty language which is characterized primarily in establishing constant
relations between subject, object and world abolishing closed individualities.
The question of otherness for the architect regarding his/her identity enhances
the way of dwelling and embracing the world. It is necessary to build an
architectural design that establishes an agreement between the sensible and the
intelligible, therefore the act of drawing for the architect must presume
technique, history, construction, work, consideration towards culture ,
economy, politics as well as social issues; and mainly not giving up the sharing
of sensibility, the construction of interpersonal relations between the subjects
involved in the materialization of architecture and thus promoting an open,
democratic design which subverts the order of the given reality
Keywords: Phenomenology. Architecture. Design. Sensible. Intelligible.
Na arquitetura, a percepção tridimensional do espaço é o meio de condução
através do qual o sujeito criador representa sua intenção graficamente no projeto.
O projeto de arquitetura utiliza-se da linguagem do desenho de forma prospectiva
e propositiva. Para o arquiteto, a questão do desenho, seja em escala micro do
edifício, seja em escala macro para a cidade e paisagem, cumpre papel preponderante como ferramenta de comunicação, presente na relação educador/
educando, arquiteto/cliente, arquiteto/comunidade, arquiteto/canteiro. O ato de
desenhar estabelece uma ponte entre a imaginação e o real, procura-se através
dos traços, um conhecimento do lugar de intervenção da arquitetura, uma exploração da geografia, topografia, história e ao mesmo tempo uma transformação
da realidade hipotética. Inicia-se de maneira subjetiva, estreitamente ligada à
percepção do arquiteto e, gradativamente, atinge a objetividade que não exclui
os aspectos sensíveis do projeto caracterizados pelo seu potencial comunicativo
e força expressiva.
De acordo com Perrone, os desenhos arquitetônicos2 podem ser classificados como representativos ou sugestivos e descritivos ou operativos (PERRONE,
2. Para Perrone, “os [desenhos] de representação[...] implicam exatamente nos
momentos em que o desenho deve atuar como signo, tornando patente a arquitetura a
O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura
| 463
1993, pp. 25-26). Como meio transmissor de mensagem, o desenho comporta
dois níveis interpretativos: o primeiro, o sugestivo, representa a arquitetura (croquis, desenhos de apresentação, para vendas, tratados, desenhos fantásticos, etc.)
e se apresenta de modo mais flexível, pois parte do ideário do emissor para um
meio cultural comum dos receptores; o segundo, o operacional, descreve e
permite a execução da arquitetura no canteiro, são desenhos normatizados e
codificados apresentados de forma clara e objetiva. Como instrumento da gênese
de sentido para a arquitetura o desenho, segundo o autor, atua segundo dois
objetivos específicos:
1. [...] na representação da arquitetura, indicando uma visão, uma interpretação
e sugerindo a leitura do significado das obras ou das proposições arquitetônicas
nela contidas;
2. [...] na descrição da arquitetura operacionalizando a sua constituição material,
indicando as tarefas executivas, codificando os procedimentos que permitam
o perfeito entendimento da obra arquitetônica em relação à sua exequibilidade
(PERRONE, 1993, p. 58).
Nos desenhos de representação, a escolha do modo de representação é mais
livre, a expressão evidencia-se no traço do autor, imprime certo estilo, influência
de dada cultura visual, da postura, da intenção e do modo como o arquiteto habita
o mundo. Desenhar imagens mentais do espaço compreende um acordo entre o
sensível e o inteligível, exercício constante de adaptação de uma ideia às
necessidades humanas, ação contínua de produção de linguagem que confere ao
arquiteto uma postura investigativa no terreno da criação. Tal experiência fecunda
representa a eleição de um ponto de vista inserido numa totalidade de possibilidades inesgotáveis que comporta o mundo. Todavia, em arquitetura, o meio
de representação que é o desenho, segundo Gregotti, é “a única relação corpórea
remanescente que o arquiteto efetua com a fisicidade da matéria que deve formar:
é a sua última ‘manualidade’ e ele deve defendê-la obstinadamente (GREGOTTI,
2010, p. 25). Para Gregotti, constitui-se o primeiro operar da arquitetura, o modo
que se refere [...] Os desenhos de descrição/operação envolvem os momentos em que a
representação[...] objetiva signar os elementos de sua materialização [...] desenhos que
envolvem operações construtivas” PERRONE, Rafael A. C. O desenho como signo da
arquitetura. Tese (doutorado). São Paulo: FAU USP,1993, p. 43.
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Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro
como o arquiteto acessa o mundo da vida, que pressupõe o encontro de uma
necessidade, configura sua ação de modificação da tradição arquitetônica e
sobretudo cria uma nova hipótese3 para a arquitetura. Porém, para o autor, a
história representa um ponto central na questão da criação do “novo”, pois, é
necessário tocá-la para fundar nova linguagem e compreender o momento atual
através da imersão nos seus processos de transformação.
Merleau-ponty chama a atenção para o emprego dos meios instituídos pela
cultura e do exercício da invenção como “deformação coerente”, ou seja, destituir
o instituído de seu equilíbrio fundamental através de uma “nova expressão que
os recolhe como falta ou excesso do que deseja exprimir” (CHAUI, 2002, p. 190).
O filósofo estabelece uma distinção importante da história: a história dos
acontecimentos, sucessão empírica do tempo, esquecimento da memória e a
história do advento, “promessa dos acontecimentos”, forma “nobre” de memória,
pois, o que foi feito, dito ou pensado dá a fazer, dá a dizer e dá pensar” (ibidem,
p. 192) e encontra o artista ou pensador em seu “trabalho, quando num só gesto,
agarram tradição e instituem uma outra que será agarrada pelos pósteros” (ibidem,
p. 192). De acordo com Chaui, a “única regra de ação para o artista, o escritor, o
filósofo, e o político não é que sua ação seja eficaz, mas que seja fecunda, matriz
e matricial” (ibidem, p. 194). Aqui, também incluímos a figura do arquiteto na
sua práxis diária, sua aptidão natural de transferir para a linguagem do desenho
um conjunto de valores que estabelecem uma relação direta com a história e sua
postura de interrogar e interpretar o mundo. Torna-se importante menos afirmar
uma raiz romântica para este cenário, mas incluir a construção de uma visão
crítica, a abertura do “novo” para sujeito mesmo, uma investigação afirma
Gregotti, que “propõe-se como confronto possível entre a história do ambiente
físico e a própria história do homem” (GREGOTTI, 2010, p.146). A visibilidade
do desenho arquitetônico, constitui-se no modo de ordenar a complexidade de
um determinado problema e agrega a escolha do arquiteto na seleção dos aspectos
múltiplos que envolvem esse problema, expressos de forma gráfica.
3. A criação de uma “nova” hipótese, para Gregotti, implica num “conjunto de novas
possibilidades de uso da arquitetura. [...] hipótese de uma nova fruição da essência da
arquitetura [...] um modo de comunicar aos outros (e também a nós mesmos) uma certa
condição geral do homem sobre a terra, de seu pensar e querer certas coisas, negar e refutar
outras e daquele modo especial de fazer circular as ideias, utilizando-as” (GREGOTTI,
2010, p.177).
O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura
| 465
Existe no desenho do arquiteto diferentemente do desenho artístico, uma
ordem exterior de imposições, seja pelo programa, pelo terreno ou de diversas
esferas como econômica, política, social, portanto, essa atividade também se
aproxima da arte4 quando revela um potencial expressivo. A priori, desenhar não
se constitui a representação de um sentimento imediato, muito menos evoca um
“milagre da expressão”, mas aponta para um recolhimento no mundo de sentidos
por parte do arquiteto confrontados com o arcabouço de suas experiências a nível
individual e coletivo, que possibilitam o florescimento de sua imaginação. Nessas
amplas capacidades, o desenho arquitetônico colabora decisivamente para a
gênese do sentido na arquitetura, pois, “como signo que é, torna-se um duplo
que habita a obra realizada e realiza a obra a habitar, mesmo quando se trata de
um habitar apenas imaginável” (ibidem, p. 64).
Joaquim Guedes, no prefácio do livro Eupalinos ou o arquiteto de Paul
Valéry, elabora uma crítica ao ensino de arquitetura. As instituições acadêmicas,
segundo o autor, estimulam exercícios imaginativos sem nenhum comprometimento com a realidade,
Exercícios que excluem o aprendizado da paisagem e dos fatores econômicos
e sociais, e maltratam as técnicas, em sua natureza e em seu papel enquanto
cultura, tais aspectos ameaçariam a liberdade criadora. [...] – sem conhecimentos (os alunos) suficientes da arte de construir, perdem-se em desenhos
exploratórios do nada, erráticos e supersticiosos: dará certo? Terei sucesso? Há
que aprender a imaginar o objeto ao mesmo tempo inventar sua construção
(GUEDES, 1996, p. 12).
O autor alude para uma forma de exercício de criatividade vazio, sem
qualquer vínculo com a especificidade do material e alheado de método; volta-
4. Distinta da técnica do raciocínio científico e do discurso lógico a criação artística
para o arquiteto Vittorio Gregotti não deve ser considerada irracional “Se por
racionalidade entendemos o que tem um significado e um objetivo” o problema consiste
em compreender essa racionalidade alargada, pois, “o exercício da invenção é central
porque parte da percepção e da memória em direção ao que ainda não é, mas este exercício
não é casual ou gratuita violação do já constituído, mas sim busca contínua de uma ordem
nova e diversa, instituição de uma nova possibilidade, de uma nova experiência do mundo
acionada materialmente” (GREGOTTI, 2010, p.29).
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Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro
se, então, para as perguntas essenciais da arquitetura: Onde? Por quê? Para quem?
Para quê? Quais as dimensões? O quê? Como? Perguntas vagamente insinuadas
nas escolas de arquitetura, mas que “não são determinantes da cultura da forma”
(ibidem, p. 12).
Concluímos que para o exercício da criatividade, deflagrada através do
desenho arquitetônico, impõe-se a abertura preliminar de uma trilha, movimento
duplo que recolhe dados sedimentados do passado e os lança no porvir,
movimento que desvela o arquiteto no seu trabalho como uma resposta ao que o
passado reclama.
O exercício do desenho não “é milagre, magia, criação absoluta em uma solidão agressiva” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 95), mas pertence a ordem do advento, ou seja, não dos desenhos já concluídos dispostos na forma de acervo, fechados em si mesmos, mas dos desenhos que inauguram um sentido. Porém, a ordem
do advento é derivada da ordem dos eventos, revela esse duplo movimento “esforços que se soldam um no outro porque são esforços de expressão” (ibidem, p.115).
Assim, Merleau-Ponty procura esclarecer a importância do passado, pois os primeiros desenhos da caverna evocavam um porvir: “eles nos falam e nós respondemos a eles por metamorfoses em que eles colaboram conosco” (ibidem, p.101).
Devido à complexidade do desenho arquitetônico, torna-se importante
escapar da concepção da forma “em si” que enfraquece sua potência expressiva.
O desenho reflete os múltiplos aspectos da sociedade, coloca em evidência a
função social do arquiteto e é no modo de sua produção que pode ser observado
historicamente.
O desenho moderno introduz uma nova relação de produção da arquitetura,
a criação passa a ser centralizada nas mãos de um único artista ou de um pequeno
grupo restrito de decisão e os desenhos de uso operacional no canteiro, apontam
para um trabalho cada vez mais fragmentado nos escritórios de arquitetura, muitas
vezes perdendo-se a noção da obra como um todo e estabelecendo um diálogo
truncado entre as diferentes partes do processo construtivo da obra arquitetônica.
O desenho arquitetônico no decorrer da história, constitui-se um indicador da
forma como a sociedade se organiza e dos valores culturais nela contidos.
Segundo Perrone, os elementos de expressão gráfica alteram-se “em função
das relações sociais contidas no processo de produção da arquitetura: o papel do
arquiteto, a situação das artes, a destinação da obra, as técnicas de desenho e de
sua reprodução, relações entre canteiro e projeto, etc.” (PERRONE, 1993, p.68 -69).
Tais questões, apontam para a reflexão entre autonomia e heteronomia da arqui-
O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura
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tetura. Há relações determinantes do desenho que sujeitam sua forma a um horizonte exterior à disciplina de arquitetura, como por exemplo, economia, política,
aspectos sociais, portanto, há concomitantemente, um horizonte interno que revela
seu caráter específico, onde a expressão, criação, relações intersubjetivas
adquirem relevo. Portanto, verifica-se muitas vezes um desequilíbrio entre esses
dois aspectos ou mesmo a completa anulação ou subsunção de um único horizonte
a uma lógica totalmente alheada da questão do sentido para a arquitetura.
A tarefa que se impõe ao arquiteto é recolher sentidos esparsos no mundo,
pois não há criação ex nihilo. Essa abertura inicial, da ideia para o arquiteto,
constitui-se em seus primeiros traços, expressão, configurada por meio da
linguagem do desenho na forma de croquis “um apelo a um devir de conhecimento
individual e interindividual” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 98). A história do
advento não é uma interpretação da história como partes extra partes, mas campo,
onde as partes unem-se espontaneamente numa constelação e costuradas no tecido
do mundo, transformam-se em sistema significante.
Jameson chama a atenção para o desaparecimento do sentido da história,
pois a sociedade gradativamente perdeu a capacidade de conservar o passado e
vive na atualidade imersa num presente perpétuo responsável por um ofuscamento
das tradições que formações sociais anteriores preservaram. Atribui o autor a
causa do esquecimento do passado, mesmo recente, aos meios de comunicação,
à “função informativa dos meios seria, desse modo, a de ajudar a esquecer, a de
servir de verdadeiro instrumento e agente de nossa amnésia histórica” (JAMESON,
1985, p.26).
Um desenho arquitetônico que reproduz sempre o “mesmo”, independente
do lugar, do terreno, da tradição de uma cultura, das agruras do canteiro, dos
sujeitos implicados, das necessidades emergentes, comandado pela lógica do
capital global não corresponde à inexorável história da “morte” para a arquitetura?
A completa perda da sua memória “nobre”, a conquista de um “modelo” acabado?
No contexto da ditadura militar brasileira, ocorreram os principais debates
sobre o desenho arquitetônico. Por um lado, Artigas defende a autonomia da
disciplina, na sua palestra inaugural na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo, em 1967; resgata a ideia do desenho como
desígnio, desejo humano que confere ao arquiteto o estatuto de artista, porém,
sua preocupação enfatiza o âmbito da estética, desenho como ato poético.
Imbuído do espírito moderno na sua prática, Artigas propõe uma reconciliação
entre arte e técnica, portanto, não abre mão de sua postura política ao defender
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Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro
o uso dos materiais locais como tijolo, madeira, telha de cerâmica.5 Por outro
lado, as discussões sobre o desenho arquitetônico, iniciadas na década de 60 pelo
arquiteto Sérgio Ferro, determinam sua função na realização da forma/mercadoria
de caráter autoritário, impositivo, que oculta o processo de trabalho alienante,
fragmentado, dessa forma, evidenciando hierarquias e se constituindo como ferramenta para reprodução do capital. Segundo Sérgio Ferro:
As condições de incompreensão e alheamento, provocadas no interior do campo
de trabalho, e que implicam consequentemente o desenho exaustivo que o
comanda, são as condições necessárias para a produção de mais-valia. O
desenho é assim nuclear para a produção do produto que é imediatamente
mercadoria. O desenho do produto acabado, enquanto tal, só afeta – e
relativamente – as etapas de circulação e consumo [...] no nível do canteiro, o
desenho é o molde onde o trabalho idiotizado (na expressão de A. Gorz) é
cristalizado (FERRO, 1979, p. 14).
Tal quadro configura a separação entre o saber intelectual do arquiteto e o
fazer do trabalhador da construção, marca a transição das corporações da Idade
Média para a entrada na modernidade, nesse momento, “é rompida a unidade
entre desenho e canteiro, na passagem da cooperação simples das corporações
de ofício para a manufatura comandada por uma força heterônoma” (ARANTES,
2002, p. 101). O desenho arquitetônico é direcionado na produção capitalista
para a extração da mais-valia, configura-se heterônomo.
Segundo Otávio Zarvos, “o incorporador em 90% dos casos, está olhando
para tendências de mercado e não para a arquitetura” (ZARVOS, 2011, p.67).
Diana Tatiana Borgonovi desenvolveu uma pesquisa de campo que contou
com uma série de entrevistas em escritórios de arquitetura com produção significativa no mercado imobiliário para a compreensão do processo de produção
do desenho na contemporaneidade. A autora verificou a condição da lógica
comercial como pré-condição à elaboração dos projetos arquitetônicos. O agente
externo ao processo de produção do desenho com maior poder de decisão são
as incorporadoras e construtoras que realizam pesquisas de mercado responsáveis
5. Com a Segunda Guerra Mundial, como retrata Pedro Arantes, “a carestia do
cimento e do aço importados, as promessas da arquitetura moderna serviram novamente
a propósitos contrários: produtos de luxo consumido por poucos milionários com fim de
ostentação” (ARANTES, 2002, p.15).
O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura
| 469
pela imposição de premissas ao projeto. Diana constatou que “muitas vezes os
aspectos comerciais se sobrepõem à qualidade arquitetônica, de modo que a
participação do projeto de arquitetura no contexto do empreendimento fica
relativamente esvaziada” (DIANA, 2002, p.137).
Agambem cita Guy Debord e sua obra A sociedade do espetáculo para
afirmar o triunfo, na contemporaneidade, do espetáculo. Na sua obra de 1967,
Guy Debord realiza uma crítica ao fetiche da mercadoria, a saber, esta afasta tudo
o que era diretamente vivido e o substitui por imagens. Segundo Agambem, o
espetáculo não representa somente as imagens ou sua veiculação nos meios de
comunicação de massa, mas “ele é ‘uma relação social entre pessoas, mediada
através das imagens’, a expropriação e a alienação da própria sociabilidade
humana” (AGAMBEM, 2013, p.71).
Diante deste quadro, o autor pergunta de que modo o pensamento atual pode
se apropriar dos pressupostos da obra de Debord? Sua resposta conclusiva define
a linguagem como o espetáculo na contemporaneidade, desse modo, no âmbito
do capitalismo global, essa análise de cunho marxista aponta para:
a expropriação da atividade produtiva, mas também e sobretudo para a alienação
da própria linguagem, da própria natureza linguística e comunicativa do homem,
daquele Logus no qual um fragmento de Heráclito identifica o Comum. A forma
extrema dessa expropriação do Comum é o espetáculo, isto é, a política em que
vivemos (ibidem, p.72).
Vimos, diante desta exposição de Agamben, a presença de um quadro que
determina uma linguagem totalmente distanciada da identidade do sujeito e da
possibilidade fértil da sociabilidade humana.
A perspectiva que o sujeito escolhe do mundo, sua posicionalidade, integra
o indivíduo com suas habilidades específicas à dinâmica do modo de produção,
configura-se como uma construção social. Essa visão recortada do mundo
proporciona o material que se articula no imaginário e na consciência dos seres
humanos, desse modo, a estreiteza ou amplitude dessa visão variam “de acordo
com as construções espaço-temporais e as nossas opções no mundo que habitamos” (HARVEY, 2009, p.310). Porém, há a necessidade de se ir além da visão
prosaica do mundo, postular alternativas que apontem para uma experiência do
pensamento. De acordo com Harvey, o arquiteto rebelde mergulhado no mundo
heterogêneo precisa ser capaz de enfrentar as condições dos desenvolvimentos
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Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro
geográficos desiguais, articular um pensamento complexo e avançar rumo a
compreensões mais compartilhadas, segundo o autor:
[...] sabemos muito sobre o que separa as pessoas, mas nosso saber sobre o que
temos em comum nem de longe se aproxima daquele. O arquiteto rebelde tem um
papel a desempenhar tanto na definição dos pontos em comum como nos registro
das diferenças. [...] sem tradução tornam-se impossíveis formas coletivas de
ação. Desaparece todo o potencial para uma política alternativa (ibidem, p.321).
O papel social recomendado ao arquiteto rebelde por Harvey diz respeito
ao indivíduo que escapa da visão estreita de mundo e procura integrar diferentes
construções e representações discursivas do mundo, ação que requer sua habilidade na tradução. Aqui, a ação do arquiteto demiurgo, totalmente refratária, é
negada a favor de maior permeabilidade do profissional para a construção de
relações intersubjetivas, que apontem para um desenho arquitetônico
democrático, fruto de sua práxis e experiência no mundo da vida. O arquiteto
inicia seus pensamentos nas relações que estabelece com o mundo, percepção e
linguagem constituem um movimento duplo, pois os dados sensíveis dependem
da linguagem para se fixarem e a linguagem para tornar-se falante, criadora exige
a camada originária da experiência.
O desenho democrático estabelece uma partilha do sensível, a saber, nossa
“relação fundamental com o mundo é a da intercorporeidade, fundadora da
intersubjetividade e fundada por ela numa troca e num cruzamento intermináveis:
os outros não são coisas nem partes da paisagem, são nossos semelhantes”
(CHAUI, 2002, p.274). Assim, compreende-se que a liberdade, na filosofia
merleau-pontiana seja “o poder para transcender a situação de fato, que não
escolhemos, dando-lhe um sentido novo” (ibidem, p.274). O arquiteto situado
no mundo escolhe sua perspectiva, porém, sua liberdade nunca é absoluta, pois
essa fatia do mundo para a qual se volta possui ambiguidades, complexidade,
contradições, tensões, assim como, seu ser e é nessa via de mão dupla que se
transcende a situação dada, a passagem da gênese fática para a gênese do sentido.6
6. Assim “como El Greco, que transforma seu astigmatismo em pintura, Válery e
Cézanne, sua melancolia em obra poética e pictórica, Proust, sua neurastenia em literatura,
Marx, sua contradição de advogado pequeno-burguês em traidor de sua classe e
revolucionário. Em lugar de uma explicação mecanicista que explica a obra pela vida e
O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura
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De acordo com Merleau-Ponty, a criação do “novo” ultrapassa a relação
significante/significado literal, ou melhor, não esgota essa relação, comporta um
rearranjo dos signos, numa ordem completamente nova, entretanto, a
inventividade não inclui o sujeito como ponto de partida, mas uma “fala” cuja
experiência sensível depende de outrem e do mundo e traz à tona, estruturas
invisíveis, presentes já no mundo, sentidos latentes, tornando-os acessíveis para
a comunidade de sujeitos.
Habitar esse mundo é possibilitarmos uma conjunção com a vida, mas resta
saber com que postura o arquiteto deve propor maneiras de habitá-lo, qual
linguagem deve o arquiteto utilizar nos seu desenho? O nascimento da ideia para
a arquitetura.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica editora,
2013.
ARANTES, Pedro, F. Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo
Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002.
CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de MerleauPonty. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DIANA, Tatiana B. O desenho do projeto de arquitetura e sua produção atual. São
Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo,2012, (dissertação).
FERRO, Sérgio. O Canteiro e o Desenho. São Paulo: Projeto, 1979
GREGOTTI, Vittório. O Território da Arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 2010.
GUEDES, Joaquim in VALÉRY, Paul. Eupalinos ou o arquiteto. São Paulo: Editora
34, 1996.
de uma explicação intelectualista que explica a vida pela obra, Merleau-Ponty fala de
uma obra ‘que exige esta vida’”, ou seja, uma experiência de promiscuidade com o mundo
que ao mesmo tempo exige uma distância para seu engajamento e pode configurar-se
transformadora da ordem da realidade dada. Chauí, Marilena.Experiência do pensamento:
ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.274.
472
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Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro
HARVEY, David. Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
JAMENSON, Frederic. Pós-modernidade e sociedade de consumo. in Novos Estudos
CEBRAP nº 12, São Paulo: Junho 1985.
MERLEAU-PONTY, Maurice. La prose du monde. Paris: Tel Gallimard,1995.
. L’institution. La passivité. Notes de cours au Collège de France (1954 1955), Paris: Belin, 2003.
PERRONE, Rafael A. C. O desenho como signo da arquitetura, V.2. São Paulo:
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1993,
(Tese).
| 473
O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração1
GABRIELA BORGES ABRAÇOS*
LISBETH REBOLLO GONÇALVES**
Resumo: Este artigo lança uma reflexão sobre o engajamento de Mário Pedrosa
com o movimento abstrato e busca verificar sua aproximação às teses da gestalt.
Situa o envolvimento de Pedrosa em relação à arte Moderna e sua atuação em
prol da divulgação do abstracionismo no cenário artístico brasileiro. Objetiva,
também, compreender a razão da aproximação do crítico à psicologia da forma
e verifica o seu interesse por esta formulação teórica.
Palavras-chave: Crítica de Arte. Gestalt. Percepção. Abstração.
El ojo y la forma: Pedrosa, gestalt y la Abstracción
Resumen En este artículo se expone una reflexión con respecto al compromiso de
Mário Pedrosa con la abstracción y su enfoque de la teoría de la Gestalt. Se sitúa la
participación de Pedrosa en relación con arte moderno y su acción en favor de la
1. Este artigo tem sua origem na discussão levantada por minha dissertação de
mestrado, “Aproximações entre Mário Pedrosa e Gestalt: Crítica e Estética da Forma”
orientada pela Profa. Dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves, no Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. A dissertação
Investiga e relaciona o interesse de Mário Pedrosa pelos pressupostos da estética abstrata
e pela Psicologia da Forma.
** Mestre em Estética e História da Arte pelo Programa de Pós-graduação
Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo.
** Professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo.
474
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Gabriela B. Abraços e Lisbeth R. Gonçalves
divulgación de la abstracción en el panorama artístico brasileño. También tiene
como objetivo entender el enfoque crítico de la psicología de la forma, y propone la
compreensión del interés del crítico por esta formulación teórica.
Palabras-clave: Crítica de Arte. Gestalt. Percepción. Abstracción.
Apresentação
O crítico de arte Mário Pedrosa foi um importante teórico da arte brasileira
que abraçou a causa da arte enquanto trajetória de vida, estimulando artistas a
novas pesquisas e experimentações estéticas. Situa-se como um crítico de
destaque na constituição da História da arte brasileira, que até a atualidade figura
nas bibliografias de referência. Destacou-se como um intelectual engajado que
encontrou na arte, um campo para a reeducação das sensibilidades estéticas e
para o exercício da criatividade. Nesta trajetória, localizamos a atuação do crítico
em um momento importante da arte moderna ocidental: a emergência e
divulgação de novas premissas estéticas que revolucionaram as maneiras de ver
a obra e de interpretá-la. Neste sentido, tanto o seu interesse pela gestalt, quanto
o empenho no contato com artistas, serão elementos relevantes para a divulgação
do abstracionismo no cenário brasileiro, como também para a constituição de
uma teoria crítica madura para as diversas vertentes da arte moderna.
Mário Pedrosa e a abstração
As transformações estéticas do século XX abriram caminho para o
alargamento de compreensão de estilo e dos modos da composição artística. As
distintas linguagens desenvolvidas como investigações estéticas formaram o
arcabouço da arte moderna e abarcaram diferentes expressões e formas de
conhecer e interpretar o real. No campo de uma constituição teórica da História
da arte, situamos um aspecto da reflexão crítica de Mário Pedrosa em relação à
Arte Moderna e, sobretudo, pela estética abstrata, da qual Pedrosa fora importante
teórico e incentivador.
Mário Pedrosa foi um grande patrocinador da arte moderna no Brasil, tanto
em discursos críticos como com ações diretas de valoração dos artistas e estímulos
à atualização das linguagens estéticas. Pedrosa apoiou a arte social dos anos 1930
de Portinari e de Segall e a causa da Arte Moderna promovida pelos agentes do
O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração
| 475
círculo paulista da semana de 1922. No entanto, não se manteve preso a esta
estética que formava parte do gosto do público brasileiro e se envolveu com a
divulgação do abstracionismo, como uma atualização necessária às realizações
e discussões estéticas no país.
Este panorama - arte figurativa, abstração – no entanto, verteu-se numa
celeuma, entre os que defendiam uma estética social e os simpatizantes da
chamada Nova Arte. Lidar com outras linguagens ou experimentações era
envolver-se em uma grande ousadia, e dividia as opiniões dos intelectuais que
constituíam o substrato crítico da Arte brasileira. Sobre esta discussão, Otília
Arantes esclarece-nos:
Mário Pedrosa pôs em pé de guerra a plateia (do auditório do Ministério da
Educação num debate sobre “arte abstrata ou arte com temática social”) ao
defender [...] a causa da abstração. [...] Inutilmente procurou mostrar aos
presentes que a nova arte estava elaborando símbolos de uma linguagem plástica
inédita, destinada a nos arrancar da atonia perceptiva quotidiana, na esperança
de encurtar a distância que nos separa dos horizontes longínquos da utopia.
(ARANTES, 1991,p. XIV)2
Com estas convicções, Mário Pedrosa assumiu a causa da arte abstrata e
advogava em seu favor como crítico e como espectador. Tal postura valeu-lhe a
alcunha de “novidadeiro”, por alguns de seus pares da crítica de arte, por
considerarem tal estética como uma nova moda.
A trajetória crítica de Pedrosa, no entanto, evidencia-nos que sua preocupação e interesse pela abstração, não se pronunciava como mera simpatia por
novas tendências, mas atendia a uma dinâmica teórica mais profunda. O crítico
imergiu em pesquisas sobre teóricos da arte abstrata, a fim de compreender-lhe
os pressupostos norteadores e percorreu um denso caminho de investigações
científicas a fim de compreender os mecanismos perceptivos da linguagem
sígnica da arte não figurativa, que sublimavam a compreensão de cores e formas
sem a interferência da significação narrativa.
2. ARANTES, Otília. Mário Pedrosa: Itinerário Crítico. Scritta Editorial. São
Paulo, 1991.
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Gabriela B. Abraços e Lisbeth R. Gonçalves
Figura 1 - Wassily Kandinsky,
Composição IV, 1911.
Fonte: DÜCHTING, Hajo. Kandinsky
1866-1944- A Revolução da Pintura.
Cingapura: Taschen/ Paisagem, 2007.
Mário Pedrosa e a psicologia da forma
Pedrosa foi um crítico que buscava uma contínua atualização de seus
estudos. Suas preocupações, no entanto, se estendiam a diversas áreas do
conhecimento como história, psicologia, física, matemática, sociologia, política,
economia, filosofia e artes. Tais estudos lhe permitiram a aquisição de uma
bagagem interdisciplinar e a perspectiva de um humanista, que tinha a capacidade
de averiguar uma questão por diferentes vértices. Tal gama de conhecimentos
agregavam ao discurso crítico de Pedrosa, seriedade, erudição e densa formulação
teórica, que nunca eram arrolados com superficialidade.
O contato de Pedrosa com os estudos gestálticos iniciou-se ainda na
juventude, quando esteve na Alemanha, em 1929, a serviço do Partido Comunista.
Cursou Estética, Sociologia e Psicologia da forma na Universidade de Berlim, e
pode conhecer de perto o teor dos estudos que se colocavam na comunidade
acadêmica. Ao retornar ao Brasil, o interesse de Pedrosa parece ter sido orientado
pela causa política3 e pela divulgação da arte moderna dos primeiros momentos.
Já na década seguinte, podemos notar um retorno de Pedrosa ao tema da
psicologia da forma, já com um interesse mais intenso e profundo. Percebemos
estas preocupações condensadas na tese que preparou para o concurso à cátedra
de História da Arte na Faculdade Nacional de Arquitetura, onde Pedrosa
concorreu com o trabalho, “Da Natureza afetiva da Forma na Obra de Arte”,
estabelecendo uma análise gestáltica aplicada à arte. Sua tese trazia uma
3. Década de 1930 no Brasil fora marcada por intensa atividade e repressão política.
Assinalamos a Revolução de 1930 e os subsequentes anos de ditadura Varguista. Neste
contexto, como membro do partido comunista e logo depois articulador do partido
trotskista, Mário Pedrosa foi preso, fichado pelo DEOPS e exila-se nos EUA.
O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração
| 477
proposição tão pioneira e inovadora que não alcançou diálogo na academia e o
crítico não fora aprovado para a cátedra.
Ao lado desta circunstância, no entanto, apresenta-se um trabalho de
rebuscada constituição teórica que se vale de pressupostos da psicologia da forma
para compreender o fenômeno artístico. Nota-se um profundo interesse do crítico
pela compreensão dos mecanismos da percepção, pois somente poderia
compreender a arte produzida, após compreender o homem que a produziu.
O objetivo deste estudo era, de fato, compreender como se constitui a
percepção humana, para então entender como este processo se aplica à percepção
e significação do objeto de arte. Ao analisar o funcionamento das leis da teoria
da percepção visual, pode-se compreender melhor como o olho humano percebe
e estabelece sentido à forma.
No entanto, constata-se que este tema não figurou no vocabulário de
Pedrosa, somente como um interesse gratuito ou curiosidade individual. Havia
nesta empreitada um interesse estético que fornecesse instrumental teórico para
as análises e elucubrações críticas a respeito da obra de arte a fim de atribuir à
ciência estética um caráter objetivo com instrumentais da ciência experimental.
Gestalt e Crítica de Arte
Ao acompanharmos os textos críticos de Mário Pedrosa de fins de anos 1940
e anos 50, notam-se expressões e ideias caras à psicologia da forma, empregadas
pelo crítico para a descrição e compreensão do fenômeno artístico. Tal teoria
constituirá um suporte metodológico para a construção consistente das análises
críticas. Seu objetivo é escapar de uma crítica subjetiva e impressionista e analisar
e valorizar a obra de arte por suas qualidades formais constituintes, a fim de
dialogar com a forma e daí estabelecer suas significações.
A Gestalt agrega conhecimentos da psicologia, ao investigar como o aparato
mental registra e absorve as informações que capta. Neste sentido, a obra de arte
não é compreendida como um objeto único no espaço, mas em relação ao seu
entorno e situação de apreensão. A psicologia da forma revela-nos ainda o quadro
de arte, como um espaço de tensões, com forças dinâmicas que se sobrepõem
até o momento onde o olho encontra o equilíbrio da constituição de sentido. Estas
tensões podem estar manifestas na disposição das formas, das cores, ou da relação
entre elas e no modo como o conjunto chega aos olhos do espectador.
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Gabriela B. Abraços e Lisbeth R. Gonçalves
Neste sentido, a Psicologia da forma evidencia-nos que cada elemento do
quadro colabora para sua constituição e, por conseguinte, influencia na relação
de sentido que o espectador criará no instante da observação. A mínima
modificação na composição altera todo o equilíbrio dinâmico da obra, que se
transforma em outra composição diferente, uma vez que por suas relações
internas, será compreendida de modo distinta.
Figura 2 - Alexander Calder, Mobile on
two planes, 1962, Aluminum sheet and
son painted steel, National Museum of
Modern Art – Georges Pompidou Center,
Paris.
Fonte: http://theredlist.com/wiki-2-351861-1411-1428-1430-1437-view-abstract1-profile-calder-alexander-2.html
As próprias leis de organização visual criam condições de ordenação dos
elementos visualizados a fim de equilibrar a estrutura perceptiva. Uma vez que
o caos nos é impossível, a visão vai pouco a pouco sendo guiada pelos elementos
que constituem o objeto, e assim o aparato cognitivo atribui uma relação de sentido e de significação.
A Abstração e a Gestalt
Ao acompanhar a trajetória crítica de Mário Pedrosa pela abstração, compreendemos em que medida a psicologia da forma, foi-lhe um substrato teórico
importante. Ao lançar a análise sobre a obra de arte, as teses da psicologia da
forma eram-lhe um subsídio eficiente para a constituição de um discurso coerente
e lógico, que ao mesmo tempo desenvolvesse uma descrição objetiva, mas que
se colocasse em diálogo com a sensibilidade.
Por se tratar de uma linguagem não figurativa, de uma apreensão enredada
por signos e cores, seja em uma vertente lírica ou geométrica, a abstração estabelecia uma difícil relação com seu espectador que se sentia esvaziado de sentido,
tendo em vista a busca da narrativa mimética ao que sempre estivera acostumado
pela tradição clássica ocidental. No entanto, ao aproximar-se das verificações
das leis da teoria da forma, nota-se uma instrumentalização de recursos para
O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração
| 479
observar e analisar uma obra abstrata, agora não mais avaliada por sua alusão
figurativa, mas pelas relações dinâmicas e afetivas entre cores e formas.
Neste sentido, a gestalt é uma teoria, que esteve em voga nos anos de 1930
e que ofereceu aportes teóricos às primeiras experimentações abstratas dos grupos
de Kandinsky e Paul Klee. Por esta influência, seria a mesma teoria que nos
possibilitaria uma conexão visual com as experiências estéticas dos abstratos de
orientação construtiva dos anos seguintes. Sem a compreensão dos pressupostos
gestálticos, pouco se pode compreender da estética abstrata, que figura como
uma arte vazia ou puramente expressionista como impulso emocional, sem
diálogo com a compreensão racional.
Considerações Finais
Mário Pedrosa foi um importante crítico que se empenhou pela divulgação
do abstracionismo entre os intelectuais do campo artístico brasileiro. Nesta empreitada, preparou-se teoricamente para constituir suas análises críticas com
sólidas conceituações e recursos científicos e assim, atribuir à estética abstrata
uma densidade teórica consistente, racional e ao mesmo tempo aberta à criação
sensível.
O envolvimento do crítico com abstração correspondia a uma expectativa
de alargamento da sensibilidade estética que desse vazão à criatividade e à
reflexão. A teoria da forma, neste contexto, seria ao espectador um instrumento
para entrar em contato com as outras possibilidades de apreciação estética, não
mais organizada pela representação mimética, mas pelas relações perceptivas
estruturais entre cores e formas.
Referências bibliográficas
ARANTES, Otília. Mário Pedrosa: Itinerário Crítico. Scritta Editorial. São Paulo,
1991.
DÜCHTING, Hajo. Kandinsky 1866-1944- A Revolução da Pintura. Cingapura:
Taschen/ Paisagem, 2007.
FRACCAROLI, Caetano. A percepção da forma e sua relação com o fenômeno
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Gabriela B. Abraços e Lisbeth R. Gonçalves
artístico: O problema visto através da Gestalt. Aula nº 30-Plástica III, Setor
de publicações, FAU-USP, 1952.
GOMES FILHO, João. Gestalt do Objeto: sistema de leitura visual da forma. 9. Ed.
SP: Escrituras Editora, 2009.
LOPES, Almerinda da Silva. Arte Abstrata no Brasil. Belo Horizonte: C/Arte, 2010.
PALLAMIN, Vera. Princípios da Gestalt na organização da forma: abordagem
bidimensional. São Paulo, 1985. 166f. Dissertação (mestrado) – Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
PEDROSA, Mário. Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte. In: Forma e
Percepção Estética: Textos escolhidos II- Otília Arantes (org.)- São Paulo:
EDUSP, 1996.
PEDROSA, Mário. Fundamentos da Arte Abstrata. In: Forma e Percepção Estética:
Textos escolhidos II (org. Otília Arantes). São Paulo, EDUSP, 1996.
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Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma
e a I Bienal de São Paulo1
RENATA DIAS FERRARETTO MOURA ROCCO*
Resumo: O presente artigo é fruto da pesquisa de doutorado apenas iniciada
pela autora sob orientação da Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães (MAC
USP). Seu objetivo é discutir o impacto da IV Quadrienal de Roma na produção
de Danilo di Prete por meio de sua participação na mostra. No Brasil, o artista
é geralmente conhecido por sua produção e participação em exposições em
território nacional, no entanto, a ressonância de sua vivência no ambiente
cultural italiano, onde morou até 1946, quando veio ao Brasil, deve ser ainda
mais bem estudada. Sendo assim, este artigo se propõe a refletir sobre o contexto
italiano e qual bagagem carregou e apresentou no Brasil nos anos conseguintes
à sua chegada.
Palavras-chave: Danilo di Prete, Quadrienal de Roma, I Bienal de São Paulo,
arte moderna italiana.
1. Agradeço a ajuda de Giuliana Di Prete Campari, filha do artista, com as
informações cedidas que contribuíram com a elaboração deste artigo.
* Mestre em História da Arte pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. Doutoranda pelo mesmo
programa, orientação Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães (MAC USP). Linha de
pesquisa: Teoria e Crítica de Arte
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Renata Dias Ferraretto Moura Rocco
Danilo di Prete: between IV Rome Quadrennial and São Paulo
Biennial
Abstract: This artwork is the result of the PhD research recently began under the
orientation of Dr. Ana Gonçalves Magalhães (MAC USP). Its main goal is to discuss
the IV Rome Quadrennial impact on Danilo di Prete’s production through his
participation in the exhibition. In Brazil, the artist is generally known by his
production and exhibitions in Brazilian territory, however, the impact of his
experiences in the Italian cultural environment, where he lived until 1946, when
moved to Brazil, must be better studied. Thus, the objective of this article is to reflect
about the Italian context and which of its cultural traces Danilo has carried to Brazil
and depicted on his artworks on the following years.
Keywords: Danilo di Prete, Rome Quadrennial, 1st São Paulo Biennial, Italian
modern art.
Em 30 de janeiro de 1972, o artista italiano radicado no Brasil Danilo Di
Prete (PISA, 1911 – São Paulo, 1985) comenta retrospectivamente sua carreira
em entrevista a Luis Ernesto Machado, declarando (KAWALL, 1972, p. 28):
Não quero ficar famoso nem me tornar milionário. Quero, apenas, pesquisar
muito e pintar sempre. Morar na minha casinha, com a mulher e a filha, guiar
meu fusca... Perdi 10 anos na vida como soldado do exército italiano. Cheguei
ao Brasil em setembro de 1946, e já dei duro aqui. Pintei prédios, expus 30
telas mas ninguém comprou, passei fome, fui cartazista em agências de propaganda. Aí vieram muitos prêmios, ganhei o prêmio de melhor pintor na I Bienal,
outros prêmios importantes ainda em outras três Bienais... Mas, nada disso
importa. O que me interessa é fazer uma obra pesquisada, adulta, independente,
de ressonância nos grandes centros de arte, deixar um nome limpo na arte.
Dinheiro, vendas, prêmios, “fofocas”, rodinhas, nada disso me interessa.
Este breve trecho nos permite desenvolver diversas reflexões acerca da
produção deste artista e de sua relação com o ambiente artístico italiano e o
brasileiro. Primeiramente, é fundamental reconstituir o cenário artístico vivido
por Di Prete na Itália, o qual trouxe consigo ao Brasil quando aqui chega no
imediato pós-Segunda Guerra Mundial, em 1946. Como se sabe, Mussolini havia
caído em 1943 e, com ele, o fascismo italiano que havia perdurado por mais de
Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo
| 483
vinte anos, sob o qual, pelo menos até 1938, os artistas tiveram uma significativa
liberdade de criação (diferentemente do que ocorreu sob o stalinismo e o
nazismo). As duas primeiras edições da Quadrienal de Roma (1931 e 1935) são
testemunhos bem vivos dessa abertura artística, quando foi possível assistir às
mais diversificadas manifestações num ambiente altamente frutífero e animado
por alguns dirigentes do regime.2 Danilo, que vinha expondo desde o início dos
anos 1930, certamente teve contato com essas vertentes artísticas pulsantes, dentre as quais destacam-se: o programa do Novecento Italiano promovido pela crítica de arte Margherita Sarfatti (iniciado em 1925 e terminado no início dos anos
1930), a pintura aerofuturista alavancada pelos esforços de Filippo Tommaso
Marinetti (anos 1920-1930), o realismo mágico (anos 1920-1930) e as primeiras
experiências abstratas em torno da Galleria Il Milione, nos anos 1930, além do
conhecido espírito do “Retorno à Ordem” promovido por escritores, poetas,
filósofos e diversos artistas como Gino Severini, Carlo Carrà e Giorgio de Chirico
por meio de suas obras e escritos, nos quais pregavam um resgate a uma arte de
caráter figurativo e nacionalista cujos alicerces seriam os ensinamentos dos primitivos italianos e dos grandes mestres do Renascimento.3 Em 1938, no entanto,
com a promulgação das leis raciais na Itália, essa abertura artística encolhe
significativamente e a terceira edição da Quadrienal de Roma, em 1939, tornase um dos palcos deste debate. Nesse cenário, vale lembrar a acirrada disputa
entre os prêmios Bérgamo e Cremona,4 que defendiam extremos artísticos: o pri-
2. Sobre as edições da Quadrienal de Roma veja-se: SALARIS, Claudia. La
Quadriennale: Storia della rassegna d’arte italiana dagli anni Trenta a oggi. Itália: Marsilio
Editori, 2008.
3. É fundamental dizer que esse contexto do “Retorno à Ordem” não ocorre somente
na Itália, mas também na França – como atestam os escritos e pinturas de Charles-Édouard
Jeanneret, Amédée Ozenfant – e que não é o único a ser sentido. Pelo contrário, na própria
França no entreguerras, ocorre também o surgimento do Surrealismo, entre outras manifestações. A historiografia da arte tem se ocupado significativamente deste contexto artístico
recentemente como comprovam algumas mostras e seus respectivos catálogos de exibição.
A título de exemplo, cita-se: CAT. EXP. Chaos & Classicism: Art in France, Italy, and
Germany, 1918-1936. Estados Unidos: Guggenheim Museum Publications, 2010.
4. Informações extraídas da conferência proferida pelo Prof. Dr. Paolo Rusconi,
da Università degli Studi di Milano, no MAC USP entre 16 e 19 de abril de 2013, no
Curso Internacional “Anos 1930 na Itália: as artes figurativas, as revistas e as exposições
durante o Fascismo”.
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Renata Dias Ferraretto Moura Rocco
meiro, uma liberdade maior de criação; enquanto o segundo, uma arte que fosse
o próprio espelho dos ideais do regime e da exaltação da figura do Duce. No
prêmio Bérgamo, desvela-se uma espécie de recuperação das vanguardas artísticas do início do século XX, sobretudo, do impressionismo, algo que ganharia
mais corpo com o final da Segunda Guerra efetivamente. A IV Quadrienal de
Roma, em 1943, foi emblemática neste sentido, pois lá se evidencia a mudança
radical de percurso de alguns artistas que haviam trabalhado de acordo com o
mencionado ambiente do “Retorno à Ordem” e que, no início dos anos 1940,
fazem um resgate das poéticas vanguardistas. Nesta edição da quadrienal, a última
que ocorre sob os auspícios do fascismo e com direção de Cipriano Effisio Oppo,
nota-se uma preparação e execução diferentemente das três anteriores, já que
parte do aporte desta mostra foi destinada às despesas com a guerra, além do
Duce não ter participado de sua abertura, diferentemente das edições anteriores.
Vale ressaltar que para Mussolini, a Quadrienal de Roma tinha tido, até então,
um valor estritamente político (MORELLI, 2000, p. 02), ou seja, devia servir para
aumentar o prestígio do fascismo na Itália e no exterior, e Oppo, nesse sentido,
tinha grande liberdade de ação, incentivando as mais diversas produções. Ele,
que também era pintor, tinha como premissa que a arte fascista seria aquela feita
ao longo de toda a era fascista (OPPO, 1927, p. 44).
Na quarta edição da quadrienal, embora não houvesse salas individuais,
havia a Sala dos Futuristas Italianos organizada por Marinetti, com os
aeropintores de guerra, aeropintores cósmicos e abstratos e os futuristas, e a
mostra individual de Enrico Prampolini (CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte
nazionale, 1943, p.72). O vencedor o prêmio de 1º de pintura, Gianni Vagnetti,
apresenta obras que demonstram essa recuperação das vanguardas e, na
linguagem plástica empregada em sua pintura La Pellegrina, nota-se claramente
um acento mais francês (CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte nazionale, 1943,
figura II), assim como em outras apresentadas por artistas como Rolando Monti,
Ennio Pozzio e Guido Casciaro. A exposição é bastante antecipadora dos
percursos artísticos que se configurariam no ambiente italiano do pós-guerra, o
que significa renunciar e, até mesmo, desclassificar os movimentos mais
característicos do entreguerras, reposicionando como superiores aqueles
movimentos vanguardistas dos primeiros anos do século XX. Ora, ao vivenciar
este ambiente ativamente, seja por meio da exposição no prêmio Cremona –
quando, inclusive, uma obra sua foi prêmio aquisição – quanto na IV Quadrienal
Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo
| 485
de Roma,5 na qual expôs La barca – Viareggio – a única obra aceita pela
Quadrienal dentre as três que submeteu6 –, Di Prete estava totalmente a par do
que acontecia no ambiente italiano e em vivo diálogo com ele. Na sala em que
expôs, a de número 39, estavam presentes mais outros 18 artistas de tendências
diversas entre si, tais como Arturo Checchi, Rolando Monti7 e Cesare Breveglieri8
(CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte nazionale, 1943, pp. 109-111). No que
tange os anos posteriores à mostra, seria possível ainda supor que Di Prete tivesse
tido algum contato com as ideias do grupo do Fronte Nuovo delle Arti fundado,
em 1946, e encabeçado por Birolli, Gutuso, Morlotti, entre outros, os quais
haviam assinado o “Manifesto del Neo Cubismo”.
Tendo discutido as últimas manifestações artísticas vistas pelo jovem Danilo
antes de vir ao Brasil, torna-se absolutamente compreensível o porquê do uso
de um tipo de linguagem herdeira do cubismo francês em suas telas, tal como a
premiada Limões (1951, MAC USP). Danilo havia começado sua carreira
artística como autodidata e os temas que trabalhava eram aqueles das naturezasmortas, marinhas e retratos. Evidentemente, suas obras não poderiam deixar de
ser figurativas quando o artista chegara ao país, afinal ele ainda estava em linha
com o ambiente italiano, que estava fazendo o resgate das vanguardas e o cubismo
ocupava um papel de destaque nesse sentido. Um exemplo claro disso é a
declaração de Severini, em 1942, quando afirma que o cubismo é uma nova situação da arte e que na história das artes ele havia sido tão importante como foi a
invenção da perspectiva, mas com objetivos absolutamente diversos (ROCCO,
2013, pp. 133-134). Essa associação de um cubismo revisitado, reinterpretado
à luz de um estilo tipicamente italiano empregado por Danilo na tela Limões,
causa celeuma na I Bienal de São Paulo, quando o artista conquista o prêmio de
primeiro lugar de pintura nacional. As controvérsias desta premiação são grandes
5. Agradeço a Assunta Porciani, responsável pelo Arquivo da Biblioteca da Quadriennale di Roma, por ter gentilmente cedido informações e colaborado com este artigo.
6. As outras duas foram Paese (Croazia) e Darsena (Viareggio).
7. Cf. CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte nazionale, vê-se que Monti expôs uma
obra – A Cartomante – que apresentava justamente uma linguagem artística que remontava
às vanguardas do início do século XX, conforme comentado anteriormente.
8. Este artista, inclusive, havia tido uma boa recepção na II Quadrienal de Roma
junto aos demais artistas “primitivos”.
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Renata Dias Ferraretto Moura Rocco
e resistem até hoje. Há críticos que não entendem simplesmente a premiação de
um estrangeiro em tal categoria. Há outros que não aceitam o critério de escolha
do processo tendo em vista os artistas brasileiros já consagrados, e mais merecedores do prêmio, em suas opiniões. Há ainda outros que questionam o nome
de Danilo em sentido maior, que põem em xeque a premiação, sugerindo que
ela tivesse ocorrido apenas como uma forma de compensação dada ao artista por
Ciccillo, que quis lhe agradecer pela ideia de trazer a bienal para o Brasil, algo
até então, existente somente em Veneza. É Pedrosa quem deixaria isso nas
entrelinhas em um artigo publicado no Jornal do Brasil em 1960 (PEDROSA,
1960):
... e lhe grangeou (sic) [o esquema de cores trazido por Danilo da Itália], com
o seu limão verde transparente, o primeiro prêmio, por descuido, da primeira
Bienal paulista. Como nenhum membro entendido da Comissão escolhedora
quis aceitar a responsabilidade por sua inclusão, diz-se a bôca pequena, que a
principal razão da escolha foi a merecida amizade que lhe vota o nosso caro
Cicillo.
José Geraldo Vieira viria a resumir, de forma contundente, o cenário, ao
falar sobre o artista em 1967, em decorrência de sua sala especial na Bienal de
São Paulo (VIEIRA, 1967):
Mas lhe sucedeu aqui em São Paulo, em 1951, uma surpresa ao mesmo tempo
benéfica e nefasta; pois tendo sido uma glória lhe criou complexos: na I Bienal,
aceito no nosso continente como estrangeiro já residindo no Brasil desde mais
de dois anos, o júri internacional lhe conferiu o Grande Prêmio de Pintura
Brasileira. O jubilo atônito se transformou em mal estar.
A intimista tela Limões causa, portanto, essa convulsão no cenário artístico
brasileiro e torna-se nossa conhecida de sua produção. Entretanto, vale lembrar
que o artista, mais maduro, viria a desenvolver obras abstratas no decênio
seguinte, mais em linha com o que o cenário brasileiro adotara como uma expressão mais moderna, seguindo, posteriormente com criações cinéticas.
Além de Limões, o MAC USP possui outras três suas: Marinha (Via
Reggio), 1946, Natureza-Morta, 1949, e Formas no Espaço, 1953. Com exceção
à última, as outras duas são também figurativas e remontam claramente à sua
Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo
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experiência no circuito artístico italiano, onde se percebe o ressurgimento do
cubismo, sobretudo, aquele sintético, bem como a adoção de um vocabulário
valorizador de suas paisagens, como a marinha. Alguns artistas italianos vinham
trabalhando com a ideia da paisagem como algo sublime, e a marinha fazendo
parte disso, ao longo dos anos do entreguerras. O grupo Strapaese é um exemplo
disso, a paisagem rural é idealizada e mesmo ideologizada por seu grupo de
artistas, dos quais faziam parte Ardengo Soffici e Ottone Rosai. A produção de
Carrà a partir dos anos 1920, que depois do futurismo, da pintura metafísica,
retoma os ensinamentos de Giotto e Paolo Ucello, certamente deve ter impactado
em alguma medida Di Prete. Basta pensarmos em obras de Carrà como Campanni
sul Mare (Galleria Civica d´Arte Moderna e Contemporanea de Turim) em
comparação com a marinha do MAC USP para termos a justa medida desta
relação.
Ainda sobre a estreia artística de Danilo no Brasil, muito imbuída dos
preceitos italianos, é válido recuperarmos os dizeres em retrospectiva de Pedrosa
por ocasião de sua mostra em 1985, no Espaço Cultural Chap Chap (PEDROSA,
1985):
Quando Di Prete, há mais de dez anos, conquistou [...] o prêmio da 1ª Bienal
de melhor pintor brasileiro, [...] era, com efeito, ainda ´estrangeiro´, não de
nacionalidade [...], mas de pintura [...]. Seu ´passaporte´ para a pintura brasileira,
ou a pintura feita, nascida no Brasil, foi um neocubismo de nítida inspiração
italiana, isto é, mais próximo dos esquemas colorísticos vibrantes do futurismo
que das severidades térreas do cubismo francês. [...] A luz clara que trouxe da
Itália pode se ter adensado, aqui, como nuvens baixas roçando os rochedos;
sua matéria, a espátula, e não mais o pincel, pode ter perdido, no suceder da
experiência pictórica, o direto contato perceptivo com as coisas ao alcance da
mão ou da visão focal; suas cores, seus verdes, azuis podem ter perdido a transparência luminosa; a imaginação se deslocalizada para universalizar-se. Como
resultante de tudo isso, sua matéria deixou de ser matéria, à maneira renascentista, para ser textura, que se ergue em fermento, em relevos orográficos,
em energia – sinal dos tempos.
Voltando ainda a esse tipo de produção à italiana de Danilo que temos em
nossos museus, é possível mencionar duas, das três obras, presentes no MAM
SP: Cogumelos, 1945, e Cabinas na praia de Viareggio, 1946. Ambas ainda
carregam fortemente a sobriedade dos castanhos e ocres, não há luminosidade
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Renata Dias Ferraretto Moura Rocco
ou leveza. Os temas, como já dito, são aqueles trabalhados longa data no ambiente
italiano com considerável sucesso.
Não é demais lembrar que apenas um ano após a premiação de Danilo na I
Bienal de São Paulo, a delegação brasileira procura enviar para XXVI Bienal
de Veneza, em 1952, obras de artistas que espelhassem “as diversas tendências
da atual pintura brasileira”, numa seleção em que havia sido reservado um espaço
àqueles pintores ingênuos, apesar de muitos artistas estarem se voltando ao
abstracionismo, como declara Sérgio Milliet no catálogo (MILLIET, 1952, pp. 190193). Entre os artistas estão Alfredo Volpi (com o maior número de telas),
Antonio Bandeira, Heitor dos Prazeres, Maria Leontina e Di Prete, o qual está
representado com quatro naturezas-mortas, uma de 1951 e as demais de 1952.
Ou seja, temos novamente uma escolha de suas criações verdadeiramente em
linha com esse tema tradicional da pintura, o qual tinha estado muito em voga
no ambiente italiano anteriormente, e que independentemente das controvérsias
que gerou por ocasião da premiação, é reforçado neste segundo momento.9
Resta dizer que Danilo apresenta na I Bienal São Paulo certa produção
artística que encontrou alguma aprovação, tenha ela tido ou não a influência de
alguma rede de relacionamentos. Esta lacuna está sendo mais bem investigada.
De todo modo, este tipo de ocorrência no cenário brasileiro não é inédito, basta
que nos lembremos da vinda de modernos artistas italianos ou de descendentes
para cá, onde apresentaram criações em consonância com o ambiente italiano
tais como Hugo Adami, Paulo Rossi Osir, Vittorio Gobbis, Fulvio Pennacchi,
Ernesto de Fiori, e o enorme suporte dado a alguns deles por críticos da
envergadura de Mário de Andrade e Sérgio Milliet.10 Danilo fez parte deste
complexo de relações ativamente, tanto no âmbito dos debates que sua produção
artística gerou, quanto das controvérsias que circundam sua real participação na
criação da I Bienal de São Paulo.
9. Ainda no texto para o catálogo, Milliet explica que os artistas premiados na Bienal
de São Paulo tinham de ser apresentados na Bienal de Veneza.
10. Ao falarmos da criação da Bienal de São Paulo, é necessário termos em mente
o contexto da criação do antigo MAM SP e da relação Brasil-Itália na constituição do
primeiro acervo italiano para o museu. Sobre esse assunto recomenda-se a leitura de:
MAGALHÃES, Ana Gonçalves. “Realismo, classicismo e vanguarda: Pintura italiana
do entreguerras”. In: CAT. EXP. Realismo, Classicismo e Vanguarda: Pintura Italiana
do Entreguerras. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo, 2013, pp. 7-23.
Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo
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Referências bibliográficas
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KAWALL, Luiz Ernesto Machado. “Entrevista com Danilo Di Prete”, Artes
Reportagem, São Paulo, v. 1, 1972.
MAGALHÃES, Ana Gonçalves. “Realismo, classicismo e vanguarda: Pintura
italiana do entreguerras”. In: CAT. EXP. Realismo, Classicismo e Vanguarda:
Pintura Italiana do Entreguerras. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo, 2013, pp. 7-23.
MILLIET, Sérgio. “Brasile”. In: CAT. EXP. XXVI Biennale di Venezia. Veneza:
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MORELLI, Francesa Romana. Cipriano Efisio Oppo. Un Legislatore per l´arte:
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Índice de Autores
Adriana Bomeny Freire
Alecsandra Matias de Oliveira
Aila Regina da Silva
Ana Gonçalves Magalhães
Ana Paula Cattai Pismel
Andréia Paulina Costa
Araceli Barros da Silva Jellmayer Bedtche
Arthur Hunold Lara
Artur Matuck
Carmen S. G. Aranha
Cauê Alves
Cristiano Alexandria de Oliveira
Dilma de Melo Silva
Donny Correia
Dúnia Roquetti Saroute
Edson Leite
Eliane Dias de Castro
Elizabeth A. M. Kajiya
Eunice Maria da Silva
Fernanda Albuquerque de Almeida
Gabriela Borges Abraços
Gisele Barbosa Ribeiro
Graziela Naclério Forte
Guilherme Weffort Rodolfo
Heloisa de Sá Nobriga
Hugo Segawa
Isa Márcia Bandeira de Brito
Isabela Umbuzeiro Valent
Janaina Barros Silva Viana
João Augusto Frayze-Pereira
367
77
267
41
107
245
287
267
387
11, 77
57
447
149
397
215
67, 357, 367, 397
173
343
387
377
469
189
315
121
277
15
159
173
257
299
492
|
José Paiani Spaniol
Juliana Froehlich
Katia Canton
Leonardo Gomes Sette Gonçalves
Lisbeth Rebollo Gonçalves
Marcelo Mendes Chaves
Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro
Maria Lucia Bighetti Fioravanti
Massimo Canevacci
Maurício Pinto Adinolfi
Osvaldo Fontes Filho
Paula Davies Rezende
Percival Tirapeli
Regilene Sarzi Ribeiro
Regina A. Tirello
Renata Dias Ferraretto Moura Rocco
Richard de Oliveira
Rodrigo Cristiano Queiroz
Rodrigo Queiroz
Rosana Garcete Miranda Fernandes de Almeida
Ruy Sardinha Lopes
Silfarlem Junior de Oliveira
Silvia Miranda Meira
Simone Rocha de Abreu
Tiago Machado de Jesus
235
129
87
431
287, 469
201
457
325
23
235
447
419
325
409
343
477
299
431
101
357
245
189
141
149
225
| 493
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP – Créditos
Reitor: Marco Antonio Zago
Vice-Reitor: Vahan Agopyan
Pró-Reitor de Graduação: Antonio Carlos Hernandes
Pró-Reitora de Pós-Graduação: Bernadette Dora Gombossy de Melo
Franco
Pró-Reitor de Pesquisa: José Eduardo Krieger
Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária: Maria Arminda do
Nascimento Arruda
Secretário Geral: Ignacio Maria Poveda Velasco
MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA – MAC USP
CONSELHO DELIBERATIVO
Ana Magalhães; Carmen S. G. Aranha; Cristina Freire; Eduardo Morettin;
Eugênia Vilhena; Georgia Kyriakakis; Hugo Segawa; Helouise Costa;
Katia Canton; Vera Filinto
DIRETORIA
Diretor: Hugo Segawa
Vice-diretora: Katia Canton
Secretárias: Ana Lucia Siqueira; Mônica Nave
DIVISÃO DE PESQUISA EM ARTE - TEORIA E CRÍTICA
Chefia: Helouise Costa
Suplente de Chefia: Ana Magalhães
Secretárias: Andréa Pacheco; Sara Vieira Valbon
Docentes e Pesquisa: Cristina Freire; Helouise Costa; Ana Magalhães
DIVISÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA DE ACERVO
Chefia: Paulo Roberto A. Barbosa
Suplente de Chefia: Rejane Elias
Secretária: Maria Aparecida Bernardo
Documentação: Cristina Cabral; Fernando Piola; Marília Bovo Lopes;
Michelle Alencar
494
|
Arquivo: Silvana Karpinscki
Conservação e Restauro - Papel: Rejane Elias; Renata Casatti
Especialista em Pesquisa de Apoio em Museu: Silvia M. Meira
Apoio: Aparecida Lima Caetano
Conservação e Restauro - Pintura e Escultura: Ariane Lavezzo; Márcia
Barbosa
Apoio: Rozinete Silva
Técnicos de Museu: Fábio Ramos; Mauro Silveira
DIVISÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA DE EDUCAÇÃO E ARTE
Chefia: Evandro C. Nicolau
Suplente de Chefia: Andrea A. Amaral Silva e Biella
Secretárias: Carla Augusto; Miriã Martins
Educadores: Andrea A. Amaral Silva e Biella; Evandro C. Nicolau;
Maria Angela S. Francoio; Renata Sant’Anna; Sylvio Coutinho
Docentes e Pesquisa: Carmen S. G. Aranha; Katia Canton
SERV. DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO LOURIVAL GOMES
MACHADO
Chefia: Lauci B.Quintana
Documentação Bibliográfica: Anderson Tobita; Josenalda Teles; Vera
Filinto
ASSISTÊNCIA TÉCNICA ADMINISTRATIVA
Chefia: Nilta Miglioli
Secretária: Regina Pavão; Sueli Dias
Apoio: Júlio J. Agostinho
Contabilidade: Francisco I. Ribeiro Filho; Silvio Corado; Eugênia
Vilhena
Almoxarifado e Patrimônio: Lucio Benedito da Silva; Marcos Gomes
Compras: Nair Araújo; Waldireny F. Medeiros
Pessoal: Marcelo Ludovici; Nilza Araújo
Protocolo, Expediente e Arquivo: Cira Pedra; Maria dos Remédios do
Nascimento; Maria Sales; Simone Gomes
Tesouraria: Rosineide de Assis
Copa: Regina de Lima Frosino
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Loja: Liduína do Carmo
Apoio: Luciana de Deus
Manutenção: André Tomaz; Luiz Antonio Ayres; Ricardo Caetano
Transportes: José Eduardo da Silva; Anderson Stevanin
Vigilância Chefia: Marcos de Oliveira
Vigias: Acácio da Cruz; Affonso Pinheiro; Alcides da Silva; Antoniel da
Silva; Antonio C. de Almeida; Antonio Dias; Antonio Marques; Carlos da
Silva; Clóvis Bomfim; Custódia Teixeira; Edson Martins; Elza Alves;
Emílio Menezes; Geraldo Ferreira; José de Campos; Laércio Barbosa;
Luis C. de Oliveira; Luiz A. Macedo; Marcos Prado; Marcos Aurélio de
Montagner; Raimundo de Souza; Renato Ferreira; Renato Firmino;
Vicente Pereira; Vitor Paulino
IMPRENSA E DIVULGAÇÃO
Jornalista: Sergio Miranda
Equipe: Beatriz Berto; Carla Carmo
SEÇÃO TÉCNICA DE INFORMÁTICA
Chefia: Teodoro Mendes Neto
Equipe: Roseli Guimarães; Marilda Giafarov
Audiovisual: Maurício da Silva
SERVIÇO ACADÊMICO
Analista Acadêmico: Águida F. V. Mantegna
Técnico Acadêmico: Paulo C. L. Marquezini
Técnico Acadêmico (PGEHA): Joana D´Arc Ramos S. Figueiredo
PROJETOS ESPECIAIS E PRODUÇÃO DE EXPOSIÇÕES
Chefia: Ana Maria Farinha
Produtoras Executivas: Alecsandra M. Oliveira; Beatriz Cavalcanti;
Claudia Assir
Editora de Arte, Projeto Gráfico e Expográfico: Elaine Maziero
Editoria Eletrônica: Roseli Guimarães
496
|
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERUNIDADES EM
ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE – PGEHA USP
ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES – EACH USP
Diretora: Maria Cristina Motta de Toledo
Vice-Diretora: Neli Aparecida de Mello Théry
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES – ECA USP
Diretora: Margarida Maria Krohling Kunsch
Vice-Diretor: Eduardo Henrique Soares Monteiro
FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO – FAU USP
Diretor: Marcelo de Andrade Romero
Vice-Diretora: Maria Cristina da Silva Leme
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS –
FFLCH USP
Diretor: Sérgio França Adorno de Abreu
Vice-Diretor: João Roberto Gomes de Faria
MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA – MAC USP
Diretor: Hugo Segawa
Vice-Diretora: Katia Canton
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO – PGEHA USP
Membros Docentes: Carmen S. G. Aranha, Denise Dias de Barros,
Helouise Lima Costa, Lisbeth Rebollo Gonçalves, Artur Matuck
Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte
Rua da Praça do Relógio, 160 – Anexo – Sala 01
CEP 05508-050 – Cidade Universitária – São Paulo / SP
Tel.: (11) 3091.3327
[email protected] – www.usp.br/pgeha

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