Faça do arquivo
Transcrição
Faça do arquivo
Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção Universidade de São Paulo Museu de Arte Contemporânea Programa de Pós Graduação Interunidades em Estética e História da Arte Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção Organização Carmen S. G. Aranha São Paulo – 2014 – São Paulo 2014 © – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História de Arte / Universidade de São Paulo Rua da Praça do Relógio, 160 – Anexo – sala 01 05508-050 – Cidade Universitária – São Paulo/SP – Brasil Tel.: (11) 3091.3327 Agência Brasileira do ISBN e-mail: [email protected] ISBN 978-85-7229-066-1 www.usp.br/pgeha Depósito Legal – Biblioteca Nacional Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Lourival Gomes Machado do Museu de Arte Contemporânea da USP Congresso Internacional de Estética e História da Arte (9, 2014, São Paulo.) Desenhos da pesquisa : conhecimento / produção / organização Carmen Aranha. São Paulo : Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2014. Xxx p. ; il. ISBN 978-85-7229-066-1 1. Desenho. 2. Estética (Arte). 3. Metodologia da Pesquisa. 4. História da Arte. I. Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Estética e História de Arte. II. Aranha, Carmen. CDD – 741 Capa: Ismael Nery, Três mulheres com auscultador, sd Nanquim s/ papel. Acervo MAC USP A presente documentação é um desdobramento do IX Congresso Internacional de Estética e História da Arte “Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção”, realizado nos dias 3, 4, 5 e 6 de novembro de 2014 no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, organizado pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História de Arte / Universidade de São Paulo. IX Congresso Internacional de Estética e História da Arte “Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção” Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História de Arte – PGEHA Comitê Científico Carmen S. G. Aranha Jacques Lenhaardt Katia Canton Lisbeth Rebollo Gonçalves Sylvia Valdés Comissão Geral do Simpósio Águida Furtado Vieira Mantegna Ana Paula Cattai Pismel Andrea de Lima Lopes Pacheco Carmen S. G. Aranha Eunice Silva Evandro Carlos Nicolau Guilherme Weffort Rodolfo Joana D’Arc Figueiredo Juliana Froehlich Paulo Cesar Lisbôa Marquezini Sara Vieira Valbon 6 | Jack Becker Assistência Editorial Produção Editorial: Revisão: Projeto Gráfico: Diagramação da Capa: Diagramação: Divulgação: Organização: Ana Paula Cattai Pismel Evandro Carlos Nicolau Guilherme Weffort Rodolfo Juliana Froehlich Águida Furtado Vieira Mantegna e Paulo Cesar Lisbôa Marquezini André Henriques Fernandes Oliveira e Paulo Cesar Lisbôa Marquezini Elaine Maziero Roseli Guimarães Tarlei E. de Oliveira e Paulo Cesar Lisbôa Marquezini Sérgio Miranda e Guilherme Weffort Rodolfo (PGEHA) Carmen S. G. Aranha Apoio Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Ensino Superior – CAPES Museu de Arte Contemporânea – MAC USP | 7 Sumário Apresentação ................................................................................................. 11 Ensaios Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State Penitentiary como lugares de cultura ....................................................... 17 HUGO SEGAWA Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação nas artes digitais/contemporâneas .................................................................. 25 MASSIMO CANEVACCI Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum of Modern Art (MAM), and its primary collection .................................................... 43 ANA GONÇALVES MAGALHÃES A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte e da curadoria ........................................................................................... 59 CAUÊ ALVES Arte e mercado: alguns conceitos e valores ................................................... 69 EDSON LEITE O museu de arte e o contexto das imagens atuais .......................................... 79 CARMEN S. G. ARANHA e ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas ......................................................................................... 89 KATIA CANTON A construção do plano moderno: Planos em Superfícies Moduladas nº 2 – Lygia Clark, 1956 ........................................................................ 103 RODRIGO QUEIROZ 8 | Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção ................................. 109 ANA PAULA CATTAI PISMEL Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica renascentista ........................................................................................... 123 GUILHERME WEFFORT RODOLFO Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea ............................... 131 JULIANA FROEHLICH Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira ............................. 143 SILVIA MIRANDA MEIRA Novos caminhos na produção acadêmica Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna ...................................................................................... 153 SIMONE ROCHA DE ABREU e DILMA DE MELO SILVA A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil: identidades quilombolas ............................................................. 163 ISA MÁRCIA BANDEIRA DE BRITO Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface .......... 177 ISABELA UMBUZEIRO VALENT e ELIANE DIAS DE CASTRO Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos .................................................................. 193 SILFARLEM JUNIOR DE OLIVEIRA e GISELE BARBOSA RIBEIRO Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo de Obás de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá ............................................. 205 MARCELO MENDES CHAVES A influência de Paul Cézanne na pintura de Arturo Tosi: o caso Ponte di Zoagli na Coleção MAC USP ................................................................ 219 DÚNIA ROQUETTI SAROUTE Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho in situ de Daniel Buren .......................................................................................... 229 TIAGO MACHADO DE JESUS | 9 Projeto BarcoR – estética tocantina: intervenção urbana ........................... 239 MAURÍCIO PINTO ADINOLFI e JOSÉ PAIANI SPANIOL Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman ....................................................................................... 249 ANDRÉIA PAULINA COSTA e RUY SARDINHA LOPES Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes..................... 261 JANAINA BARROS SILVA VIANA Dança contemporânea e o ciclo da arte ....................................................... 271 AILA REGINA DA SILVA e ARTHUR HUNOLD LARA Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações .................... 281 HELOISA DE SÁ NOBRIGA Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento ..................................................................................... 291 ARACELI B. DA S. JELLMAYER BEDTCHE e LISBETH R. GONÇALVES Tatuagem: ritual, arte e moda ...................................................................... 303 RICHARD DE OLIVEIRA e JOÃO AUGUSTO FRAYZE-PEREIRA Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960 ......... 319 GRAZIELA NACLÉRIO FORTE A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da Cidade de São Paulo: restaurações ........................................................ 329 MARIA LUCIA BIGHETTI FIORAVANTI e PERCIVAL TIRAPELI Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo ..................................... 337 LAUCI BORTOLUCI QUINTANA Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz com técnicas multiespectrais para caracterização executiva ...... 347 ELIZABETH A. M. KAJIYA e REGINA A. TIRELLO A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível ........................... 361 ROSANA GARCETE M. FERNANDES DE ALMEIDA e EDSON LEITE A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase ................................................ 371 ADRIANA BOMENY FREIRE e EDSON LEITE 10 | A intervenção no machinima ....................................................................... 381 FERNANDA ALBUQUERQUE DE ALMEIDA Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais ................. 391 EUNICE MARIA DA SILVA e ARTUR MATUCK Problemas estéticos do cinema experimental .............................................. 401 DONNY CORREIA e EDSON LEITE História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar ................. 413 REGILENE SARZI RIBEIRO A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: uma investigação do papel das tecnologias de produção de imagens no âmbito dos museus ............................................................................ 423 PAULA DAVIES REZENDE A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno na arquitetura e no design e sua relação com as filosofias da existência ........................................................................... 435 LEONARDO G. SETTE GONÇALVES e RODRIGO CRISTIANO QUEIROZ O aplat como figura: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard .................................................................................. 451 CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA e OSVALDO FONTES FILHO O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura ................................. 461 MARIA FERNANDA ANDRADE SAIANI VEGRO O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração ......................................... 473 GABRIELA BORGES ABRAÇOS e LISBETH REBOLLO GONÇALVES Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo 481 RENATA DIAS FERRARETTO MOURA ROCCO Índice de Autores ......................................................................................... 491 | 11 Apresentação Buscando atender a necessidade de demanda profissional e de pesquisa daqueles que atuam na área da Estética e História da Arte, o Programa de PósGraduação Interunidades Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo – PGEHA USP – procura estabelecer referências teóricas e práticas que possibilitem situar e aprofundar a compreensão do objeto artístico. Assim, a complexidade do conhecimento da área abarca a discussão sobre as condições que envolvem o entendimento da obra de arte como patrimônio histórico, expressão cultural/estética e circulação na sociedade, sempre repensando, reavaliando e redefinindo concepções sobre a arte atual, o papel do pesquisador da área e, principalmente, os possíveis campos interdisciplinares correlacionados. O Programa busca oferecer aos pesquisadores a oportunidade de sistematizar e organizar seus estudos, objetivando definir um perfil que motive a discussão de novos parâmetros para a área. Esses esforços surgem nos conteúdos programáticos das disciplinas oferecidas, projetos de pesquisa e, particularmente, nas atividades de extensão e divulgação da pesquisa em arte. As atividades interdisciplinares e a boa recepção dos mestres em Estética e História da Arte frente ao mercado de trabalho motivaram a continuidade desses estudos no nível do doutorado – reconhecido como porta de entrada da estrutura acadêmica e fator indicativo de aperfeiçoamento profissional. Assim, com suas atividades de mestrado iniciadas em 2003, o presente ano de 2014 marca o instante de mudança em seus rumos, uma vez que o PGEHA está implantando seu doutorado e recebendo dezenove novos estudantes, bem como outros vinte para o mestrado, nas suas quatro linhas de pesquisa (Teoria e Crítica de Arte, Metodologia e Epistemologia da Arte, História e Historiografia e Produção e Circulação da Arte). Nesse momento que o Programa abre novas perspectivas para a pesquisa na área, cabe-nos agora lançar um olhar sobre o percurso da produção conceitual e prática dos seus pesquisadores em diálogo com pesquisadores de outros programas de Pós-Graduação em áreas afins. Pensando nessas questões, organizamos o IX Congresso Internacional de Estética e História da 12 | Carmen S. G. Aranha e Guilherme W. Rodolfo Arte – Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção. Em sua nona edição e segunda relativa à temática da pesquisa em arte, procuramos congregar estudantes de pós-graduação, professores, artistas e pesquisadores, bem como palestrantes, nacionais e internacionais, para situar o debate sobre as mais recentes pesquisas em arte tanto do ponto de vista estético e historiográfico, de suas construções curatoriais, como da construção do objeto artístico atual. Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção é o resultado das reflexões originadas nessas proposições e dá continuidade à publicação do congresso anterior, Desenhos da pesquisa: novas metodologias em arte, que procurou situar o debate referente à compreensão dos propósitos, disposições e eventuais dificuldades que envolvem tanto a esfera metodológica quanto o significado da pesquisa em arte. A presente publicação agrega áreas aparentemente distintas. É uma tentativa de situar a interdisciplinaridade entre os tantos campos de conhecimento. São pesquisadores de mais de dez instituições versando sobre a arte barroca, ou seus fundamentos ontológicos, até os pensamentos mais atuais sobre arte, o “contemporâneo”. São pesquisas sobre a obra em si, o acervo, dança, teatro, arquitetura, cinema, escultura, moda, crítica e mais, um horizonte de significados alinhavados e depositados em um canal conceitual apoiado na oposição conhecimento/ produção. Por acreditar na produção acadêmica de forma progressiva, deu-se a preferência a artigos escritos em parceria de pesquisadores e seus professores/ orientadores. Esta prática propõe a troca tanto direta como indireta entre todos os participantes. Quem passar pelo conteúdo do livro passará por períodos políticos, concepções epistemológicas, suportes artísticos, locais e datas que juntos comporão o diálogo da cultura artística do Programa com outros Programas de Pós-Graduação brasileiros. Melhor ainda, comporão a Estética e a História da Arte sob a ótica destes que aqui colaboraram. Em sua primeira parte, a publicação apresenta Ensaios dos palestrantes convidados e de outros pesquisadores que assinalam aspectos de relevância para a compreensão da pesquisa contemporânea em arte. A seguir, Novos caminhos na produção acadêmica são traçados a partir de reflexões de pesquisadores dos vários programas de pós-graduação das universidades brasileiras. Em cada artigo temos a oportunidade de presenciar faces diversas da produção de conhecimento que envolve a pesquisa em estética, história da arte, na compreensão da obra de arte como patrimônio e como construção de linguagem curatorial, questões essas cercadas por suas possibilidades atuais. Apresentação | 13 Hugo Segawa faz uma análise comparativa entre duas transformações de espaços arquitetônicos do século XIX, originalmente destinados ao cárcere, em espaços culturais e artísticos no início do século XXI. Esse percurso revela o aspecto da construção reflexionada ao conteúdo cultural dos novos projetos. O método etnográfico apresentado por Massimo Canevacci argumenta sobre o desejo de auto-representar do corpo do artista e como suas relações com o externo o expandem até o meta-fetichismo visual. Ao final, analisa através do mesmo método a obra de Nele Azevedo. Ana Magalhães apresenta a pesquisa sobre a formação do Museu de Arte Contemporânea – MAC USP – iniciada pela doação da família Matarazzo nos anos de 1946 e 1947. Ao avaliar as obras e suas origens, assim como seus percursos até a formação da coleção inicial, reavalia a relação entre Margherita Sarfatti e o Novecento Italiano com o modernismo brasileiro. Cauê Alves discute e amplia os horizontes sobre a formação em crítica de arte e curadoria. Através da observação dos trabalhos de Bruno Faria e Jorge Menna Barreto, trata a curadoria como capaz de formar o crítico e o curador além de assinar sobre a arte, seus processos e suas reinvenções. Edson Leite traz conceitos sobre arte e o mercado das artes demonstrando que o valor adquirido por algumas obras em leilão transcendem suas propriedades, processos e métodos suscitando assim uma nova discussão estética sobre as mesmas obras. Esta primeira parte completa-se com a apresentação de pesquisas que versam sobre temáticas como: – a profusão de imagens na sociedade e a discussão do significado que isso possa ter na construção do conhecimento artístico atual; o sentido de conceitos de Roland Barthes que subsidiam a criação de leituras de narrativas na arte contemporânea; a análise da passagem do plano pictórico para o próprio plano da obra de Lygia Clark, em Planos em Superfícies Moduladas no. 2; a presença do físico Mario Schenberg como crítico de arte nas Bienais de 1965, 1967 e 1969; os elementos de análise fenômeno-linguística que possam iluminar a compreensão pictórica renascentista; a metodologia que norteou a construção da pesquisa sobre a criação artística de Inês Moura, enquanto fenômeno estético, e o entendimento de identidades regionais, locais e globais que existem no conceito atual de brasilidade. A segunda parte de Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção referese à produção acadêmica dos pesquisadores e docentes do Programa de PósGraduação Interunidades Estética e História da Arte, bem como de pesquisadores 14 | Carmen S. G. Aranha e Guilherme W. Rodolfo e docentes de outros programas de Pós-Graduação da USP e de diversas universidades brasileiras. Nessa edição, temos o privilégio de contar com artigos provenientes de pesquisas realizadas em várias unidades da USP, na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Universidade Estadual de São Paulo – UNESP, Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP e Instituto de Arquitetura e Urbanismo de São Carlos – IAU USP. Agradecemos à diretoria do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo pelo apoio ao evento. Agradecemos ainda à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – pelo apoio à presente edição. Nossos agradecimentos ainda aos funcionários do MAC USP que colaboraram para a realização do IX Congresso Internacional de Estética e História da Arte Desenhos da pesquisa: conhecimento / produção. Desejamos que a publicação possa contribuir na discussão das pesquisas em arte na atualidade. CARMEN S. G. ARANHA GUILHERME WEFFORT RODOLFO Ensaios | 17 Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State Penitentiary como lugares de cultura HUGO SEGAWA* Resumo: A diferença de atitudes na transformação de duas penitenciárias do século XIX (reconhecidas como patrimônios culturais) em espaços culturais, na virada do século XX para o XXI, revela antinomias na forma de realizar tais intervenções, quando a tipologia arquitetônica envolve temas complexos e polêmicos como a questão do sistema penitenciário e suas denotações e conotações. Palavras-chave: Arquitetura – Preservação. Arquitetura – edifícios culturais. Penitenciárias. Arquitetura – Reabilitação. Memoirs of Prison: San Luis Potosí Penitentiary and Eastern State Penitentiary as places of culture Abstract: Different approaches in the transformation of two penitentiaries from 19th century (appointed as cultural heritages) in cultural spaces at the turn of the 20th to the 21st century, reveals paradoxes in how to deal with such interventions as the architectural typology involves complex and controversial issues as the prison system and its denotations and connotations. Keywords: Architecture – Preservation. Architecture – cultural buildings. Penitentiaries. Architecture – Rehabilitation. * Diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Professor Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 18 | Hugo Segawa O título evoca um escrito incompleto e póstumo de Graciliano Ramos. São as recordações de seus momentos na prisão nos anos 30, durante a ditadura de Getúlio Vargas. Este ensaio poderia tomar a narrativa do escritor e suas angústias como referências por uma aproximação à vida dentro de um espaço de opressão: os cárceres. Mas a questão a se apresentar aqui também é uma reflexão cruzada de fenômenos bem contemporâneos: a obsolescência de edifícios; o reconhecimento da importância história arquitetônica e patrimonial de alguns desses edifícios; a sua conversão para usos distintos daqueles originais; e a tendência de convertê-los em edifícios com destinação cultural. É quase um lugar-comum na arquitetura de reciclagem de edifícios antigos atribuir usos culturais dentro de uma perspectiva de preservação ou conservação. Intervenções que deveriam cuidar das referências anteriores, no âmbito da memória e da história. Todavia, vamos tratar de uma tipologia arquitetônica com alta carga simbólica e controvérsias: a penitenciária. Em especial, a antiga Penitenciária de San Luis Potosi, no México, e a de Eastern State Penitentiary, nos Estados Unidos. Dois complexos do século XIX, reconhecidos como patrimônio arquitetônico pelos organismos de preservação em seus respectivos países e que, no século XXI, transformaram-se em ativos edifícios culturais. A prisão é uma forma que preexistiu à constituição do cativeiro como punição nos moldes preconizados pelo pensamento do século XVIII. Com as mudanças filosóficas nesse período, observou-se um esforço em se instituir um programa arquitetônico de prisões com a construção de estabelecimentos orientados por regimes penitenciários. Esse desenvolvimento da arquitetura penitenciária decorreu do reconhecimento da concepção que a prisão tem um “papel suposto ou exigido, de aparelho para transformar os indivíduos”, segundo Foucault (1983, p. 208). Não é gratuita a proclamação de teóricos da arquitetura como Julien Guadet ou Louis Cloquet, no final do século XIX, ao afirmarem que esse programa arquitetônico é “criação moderna”. Guadet foi positivo: Saberei eu fazê-los interessarem-se por esse objeto [penitenciárias] cujo estudo é melancólico e bastante frequentemente desencorajador de melhores intenções? Eu o ignoro: tentarei ao menos fazê-los ver que ainda aqui a ação do arquiteto pode ser humana e útil: o arquiteto de um edifício penitenciário deve ser um filósofo e um moralista. Ele deve lembrar que concorre ao tratamento de uma grande miséria social, e que se todos os progressos sonhados nem Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State ... | 19 sempre se realizam, se muitas das generosas ilusões malogram, é preciso jamais perder a esperança de realizá-las nem renunciar à esperança do progresso (GUADET, 1910, p. 495). A reclusão como martírio é uma manifestação antiga de fundo religioso, intimamente relacionada com o recolhimento, o mosteiro, o convento. Todavia, a dimensão social da custódia como punição não era uma prática reconhecida: a retaliação física, mais que a supressão da liberdade, denotava o castigo pelo delito, pelo pecado. A prisão era um componente de manutenção do equilíbrio vigente, configurando uma solução para afastar do ambiente elementos perturbadores da “ordem” e da “moral”: bêbados, mendigos, desocupados, desvalidos, menores abandonados, prostitutas. A sistematização das leis no espírito da reformulação penal setecentista transformou o cárcere na instituição símbolo por excelência do “poder de punir como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros” (FOUCAULT, 1983, p. 207). “Humanizava-se” a punição: não mais um ato de humilhação moral e física, mas uma técnica de coerção sistemática e onipresente, transformadora dos hábitos e comportamentos dos indivíduos retirados do corpo social para uma reciclagem. No século XIX, materializava-se a visão segundo a qual se atribuía à prisão a tarefa de “curar doenças sociais”. O arquiteto Julien Gaudet, ao teorizar sobre a essência do programa arquitetônico prisional, escreveu: “O aprisionamento é uma expropriação pelo bem público, a prisão uma casa de saúde, o regime penitenciário um tratamento patológico.” (1910, p. 496) Assim se expressando no final do século XIX, ele vaticinava a eficácia da regeneração dos condenados submetidos aos regimes penitenciários. Com as reformas penais, desenvolveu-se uma nova disciplina: a Penologia. Foi com a sistematização processada no âmbito de uma “ciência penitenciária” que se desenvolveram e se aprimoraram doutrinas que orientaram o tratamento de condenados nas casas de correção: eram os regimes penitenciários. Não vamos entrar nos pormenores dos vários regimes penitenciários debatidos até o início do século XX; nem como as várias tentativas de aproximação a uma estrutura arquitetônica “ideal” contemplando este ou aquele regime. Não interessa aqui retomar essa crônica, como revisitar a influente concepção de arquitetura de prisões elaborada em 1791 pelo jurista e filósofo Jeremy Bentham (1748-1832): o panopticon (“visão total”, literalmente), que tinha como 20 | Hugo Segawa princípio a organização do espaço arquitetônico visando a maior racionalidade no controle e na vigilância dos presos. Basta recordar que o sistema de celas teve como ascendente os primitivos cárceres de isolamento, infligindo o condenado a um afastamento completo do ambiente, impedido de qualquer comunicação. Silêncio e solidão formavam a base do sistema, também chamado de pensilvânico ou filadélfico, por ter a tradição consagrado o pioneirismo de sua adoção com a construção da Eastern State Penitenciary, na cidade norte-americana de Pensilvânia, a partir de 1821. O isolamento era recurso individualizador para abafar revoltas e conluios, instrumento para fazer refletir e suscitar automartírio: “na prisão pensilvânica, as únicas operações de correção são a consciência e a arquitetura muda contra a qual ela esbarra” (FOUCAULT, 1983, p. 213). Penitenciária de San Luis Potosí (esquerda) e Eastern State Penitentiary em imagens do Google Earth. San Luis Potosí, capital do estado mexicano de mesmo nome, fundada no final do século XVI, é uma cidade de cerca de 770 mil habitantes (2010), situada numa próspera região econômica e de atração turística daquele país. O seu atual Centro de las Artes Centenario é resultado da transformação do antigo edifício da Penitenciária de San Luis Potosí, que funcionou como cárcere de 1904 a 1999. Sua arquitetura da reclusão, com módulos lineares dispostos radialmente, está perfeitamente enquadrada na tipologia arquitetônica do século XIX. Com a desativação da penitenciária, os esforços se concentraram na transformação do edifício num centro cultural com patrocínio estatal, no contexto de uma política cultural de descentralização das iniciativas de arte e educação artística no México. O Centro de las Artes foi inaugurado em 2008, com o projeto arquitetônico resultante de um concurso público nacional, cuja convocatória estabelecia a seguinte concepção cultural, criada pelo Centro Nacional de las Artes (CENART) e pela equipe da Secretaria de Cultura do município: Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State ... | 21 Centro de las Artes Centenario. Projeto de transformação de Alejandro Sánchez García/MAS Arquitectos. Entrada e ateliê de pintura, em 2009. Fotos Hugo Segawa. É um espaço dedicado à profissionalização do setor artístico e cultural, a criação de novas habilitações, o fomento de novos processos de formação-criaçãoprodução-fruição. É um lugar onde se constroem públicos para as artes, onde se formam os produtores culturais do estado, das casas de cultura e dos centros que atendem às comunidades, o lugar que articula a formação em gestão cultural, tanto para os artistas, como para o setor cultural da entidade e mesmo da região.” (Centro de las Artes Centenario, 2009, p. 46) Em um texto da mexicana Lucina Jiménez, especialista em políticas culturais, temos uma noção da narrativa justificadora da transformação: Ainda recordo do calafrio que senti quando pisei nesse edifício [Penitenciária de San Luis Potosí]. Senti que meus pés afundavam em algo úmido, frio. O cinza das paredes contrastava com as portas com cores das celas. Muitas delas pareciam, todavia, mover-se em seguida à saída dos presos. “Podemos romper as paredes que criam as celas?”, perguntei ao representante do Instituto Nacional de Antropologia e História. Se não podemos desfazer das celas é melhor nos retirarmos. Não há possibilidade de aproveitar este espaço para a criação artística, a menos que queiramos propor puras salas de ensaio de música individuais. E ainda assim, disse: “o fechamento mata o talento.” (Centro de las Artes Centenario, 2009, p. 45) Em outro trecho, Lucina Jiménez ponderou: Neste caso a recuperação do que foi um cárcere construído no final do século XIX constitui uma grande obra pública. Recuperar um imóvel do castigo, 22 | Hugo Segawa reclusão e proibição e convertê-lo em um espaço público para a criação, a investigação e o desfrute das artes significava, em San Luis Potosí, a devolução da liberdade antes negada. (Centro de las Artes Centenario, 2009, p. 46) A Eastern State Penitenciary, na Filadélfia (a quinta mais populosa cidade dos Estados Unidos, cem cerca de 1,5 milhões de habitantes em 2010), é um marco fundamental na história da Penologia e dos sistemas penitenciários, como mencionado anteriormente. Produto de uma iniciativa da Philadelphia Society for Alleviating the Miseries of Public Prisons, criada em 1787, sua arquitetura resultou de um concurso público, em 1821, do qual saiu vencedor o arquiteto John Haviland. O complexo foi parcialmente inaugurado em 1829. Ao longo das décadas subsequentes, ele foi ampliado com muitas modificações em relação ao plano original. Funcionou como cárcere até 1970, tendo sido reconhecido como patrimônio histórico nacional em 1965. Apesar dessa condição, ao longo dos anos seguintes, seu estado degradação física (que permanece, mas hoje mais na aparência) importunou a cidade e propostas de demolição ou de sua transformação para uso comercial rondaram o complexo. Em 1988, um grupo de ativistas, reagindo a esse último propósito, iniciou uma campanha que resultou em criação e manutenção de um museu (talvez o termo não seja preciso, neste caso) da penitenciária. Ele foi gradativamente implantado a partir de 1998 pela Eastern State Penitentiary Historic Site, organização privada sem fins lucrativos, que promove visitas guiadas, exposições, curadoria de instalações de artistas plásticos, eventos teatrais (como Terror Behind the Walls: a Massive Haunted House in a Real Prison), e outras iniciativas, sempre em torno da memória do espaço prisional. Os objetivos do grupo que dirige o museu são: Preservar e restaurar a arquitetura da Eastern State Penitentiary; tornar a penitenciária acessível ao público; explicar e interpretar sua complexa histórica; colocar questões correcionais e de justiça no contexto histórico; e proporcionar um fórum público no qual essas questões são debatidas. Ao passo que o programa de intepretação não defende posições específicas sobre a condição do sistema norte-americano de justiça, o programa é construído na crença que os problemas enfrentados pelos arquitetos da Eastern State Penitentiary ainda não foram solucionados, e as questões levantadas pelos pioneiros reformadores permanecem como de importância central para nossa nação. (Eastern State Penitentiary. Mission Statement). Memórias do Cárcere: Penitenciária de San Luis Potosí e Eastern State ... | 23 Eastern State Penitentiary: entrada e uma das naves de celas, em imagens de 2013. Fotos Hugo Segawa. Já a transformação da penitenciária mexicana em Centro de las Artes San Luis Potosí foi um desafio de adaptar uma estrutura rígida – uma típica estrutura de inspiração panóptica preservada por seu valor histórico-arquitetônico –, para um complexo dedicado à formação de artistas, investigadores, promotores e artesãos no campo da música, dança, teatro, escultura, artes plásticas, fotografia e artes gráficas, com ateliês, auditórios, salas e residência artística. A proposta é bem-sucedida em seu intento de oferecer à cidade um equipamento de alta qualidade arquitetônica-cultural e enorme potencial de apropriação pública. Todavia, observa-se um paradoxo: um espaço cujo novo conteúdo cultural, questionador e libertador em sua essência, encerra-se em uma estrutura arquitetonicamente repressiva. A construção se mantém fisicamente isolada nos limites dos altos e soturnos muros, preservando a aparência de cidadela da opressão na paisagem urbana. A intervenção respeitou a integridade imagética do isolamento, sem que a reciclagem apontasse uma tentativa de superação dessa contradição entre sua imagem física lúgubre e seu interior alegórico libertário. Ou talvez, o isolamento por trás dos muros configure uma metáfora incompleta de liberdade. Nesse interior, reciclado, bem cuidado, há menos restauro e mais ação de adaptação aos novos usos com intervenções arquitetônicas e paisagísticas com inserções evidenciadas e contemporâneas de cuidadosa feitura. A memória do cárcere é apagada. Os espaços interiores são eficientes e assépticos, fazendo desaparecer a consciência da barbárie perpetrada por quase um século em seus recintos. No outro extremo, no museu do pioneiro panóptico prisional na Filadélfia, o sentimento da desumanidade e sufocamento é incessante. Exteriormente, os altos muros, como em San Luis Potosí, enfatizam o sinistro objeto numa área hoje com características residenciais e comerciais. A “não-intervenção” com o 24 | Hugo Segawa aspecto degradado, ruinoso dos interiores mantendo a aparência da antiga penitenciária, poder-se-ia suspeitar, é uma deliberada cenografia para incutir o incômodo, a repulsa. Evoca a má-consciência e questiona os escrúpulos de uma sociedade que erigiu monumentos à repressão, e para a qual ainda não vislumbra saídas. É um permanente chamamento a uma ordem de morbidez que paradoxalmente monumentaliza e torna turística a barbárie. Entre esses extremos, muitos monumentos evocam as desumanidades dos humanos: o campo de concentração de Auchwitz, os memoriais do Holocausto, os memoriais e monumentos que na América Latina remetem aos horrores das ditaduras da segunda metade do século XX. São questões que nos fazem pensar o que queremos celebrar do passado. Ou esquecer. Uma angústia que pode se tornar insuportável, fruto de nossas memórias. Memórias do cárcere. Referências bibliográficas CENTRO de las Artes Centenario – San Luis Potosí. México D.F.; San Luis Potosí: Consejo Nacional para la Cultura y Artes; Secretaría de Cultura de San Luis Potosí, 2009. CLOQUET, L. Traité d’Architecture. Paris; Liège, Librairie Polytechnique, Ch. Béranger, 1900, v. 4. EASTERN State Penitentiary. Mission statement. Philadelphia: Eastern State Penitentiary Historic Site. Página web da organização. Disponível em: <http:/ /www.easternstate.org/contact/mission-statement>. Acesso em 03 set. 2014. EASTERN State Penitentiary. Philadelphia: Eastern State Penitentiary Historic Site. Página web da organização. Disponível em: <http:// http:// www.easternstate.org/home>. Acesso em 03 set. 2014. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 2. ed. Petrópolis, Vozes, 1983. GUADET, Julien. Élements et théorie de l’architecture. 4. ed. Librairie de la Construction Moderne, s.d. 4v., Paris, 1910. JOHNSTON, Norman, FINKEL, Kenneth, COHEN, Jeffrey A. Eastern State Penitentiary: crucible of good intentions. Philadelphia: Eastern State Penitentiary Historic Site, 2010. | 25 Meta-Fetishismos:1 Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação nas artes digitais/ contemporâneas MASSIMO CANEVACCI* Resumo: A imaginação sincrética e polifônica apresenta uma epistemologia transitiva entre as artes e as perspectivas antropológicas. O corpo do artista sempre foi conectado no desejo manifesto de se autorrepresentar. Nesta fase, as relações entre consumo performático, tecnologia digital, autonomia individual mobilizam em formas crescentes um sujeito expandido e cocriador de modelos diferenciados de arte nos territórios material e imaterial da comunicação digital. Assim, as dimensões indisciplinares e ubíquas aplicam o método etnográfico até a revelação do metafetichismo visual e suas reverberações nas facticidades contemporâneas. Ao final, o estupor metodológico observa como test case a obra d’arte descongelante e perturbadora de Nele Azevedo. Palavras-chave: Fetichismos Digitais. Sincretismos Culturais. Comunicação Ubíqua. Artes Interdisciplinares. 1. Em italiano, referente à adoração extremada, ou sexual, relacionada a indumentária. Diferente de fetichismo, adoração fanática por algo ou alguém. (fonte: Dizionario Grazanti 2.0) * Professor de Antropologia Cultural e de Arte e Culturas Digitais na Faculdade de Ciências da Comunicação, Universidade de Roma “La Sapienza”. Professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). 26 | Massimo Canevacci Metafetishism: ubiquitous ethnography on self-representation in the digital/contemporary arts Abstract: The syncretic and polyphonic imagination presents a transitive epistemology between arts and anthropological perspectives. The artist’s body has always been linked to the manifest desire of the self-representation. At this stage, the relations between performatic consumption, digital technology, and individual autonomy mobilize, in increasing forms, an expanded subject and co-creator of different art models in material and immaterial territories of digital communication. Thus, the ubiquitous and indisciplinary dimensions apply the ethnographic method until the revelation of the visual metafetishism and its reverberation in the contemporary facticities. After all, the methodological stupor treats the unfreezing and disturbing artwork of Nele Azevedo as test case. Keywords: Digital Fetishism. Cultural Syncretism. Ubiquitous Communication. Interdisciplinary Arts. Introdução-design Desenhar um projeto de pesquisa empírica através de uma perspectiva antropológica significa desenvolver visões baseadas sobre a imaginação exata e aplicar uma etnografia ubíqua nas conexões entre artes digitais, fetichismos visuais e performances urbanas. O método etnográfico se caracteriza por sempre estar menos ligado a uma disciplina (antropologia cultural) e mais expandido segundo características “não disciplinares” e “ubíquas”. As várias pesquisas no âmbito dos estudos culturais têm necessidades de desenvolver métodos autônomos, descentrados, diferentes, para afirmar uma visão pragmática e experimental transdisciplinar. A visão crítica da teoria é adequada a este modelo pluralizado de fazer pesquisa no campo em direção de um flutuante panorama das artes que, na sua imanência, precisa incorporar referencias lógicas, estéticas, expressivas, orientadas a relevar tendências progressivas das culturas contemporâneas. Por isso, o modelo de influência e de transformação é a teoria crítica experimental, por conseguir, conecta a abstração teórica, a interioridade empírica, a elaboração compositiva. O conceito-chave – que influencia e mistura valores declarados, métodos etnográficos descentrados, teorias críticas experimentais – é a autorrepre- Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ... | 27 sentação. Neste projeto-desenho, o etnógrafo está legitimado para interpretar o outro – através da comunicação visual, escrituras polifônicas, composições performáticas – apenas quando está disponível para se deixar interpretar pelo outro. Este dialógico sincrético e este desafio polifônico apresentam uma epistemologia transitiva da representação. O corpo do artista sempre foi conectado no desejo manifesto de se autorrepresentar. Nesta fase, as relações entre consumo performático, tecnologia digital e autonomia individual mobilizam em formas crescentes um sujeito expandido e cocriador de modelos diferenciados de arte nos territórios material e imaterial da comunicação digital. Método etnográfico indisciplinar, teoria crítica experimental, autorrepresentação dialógica: sujeitos transitivos que configuram a pesquisa em forma de constelação móvel. Emerge uma etnografia ubíqua baseada sobre tensões sincréticas e polifônicas verificável empiricamente entre identidades flutuantes, fetichismos visuais e culturas digitais. A metrópole muda e a tríade comunicaçãocultura-consumo é sempre mais determinante na experiência cotidiana, em particular das culturas juvenis, e se inserem nos fluxos contemporâneos da autorrepresentação praticados nos interstícios transurbanos e nos social networks. Neste contexto, uma cidadania transitiva e participada apresenta uma crítica política horizontal sobre a divisão comunicacional do trabalho: uma crítica pragmática além do poder vertical de “quem-representa-quem”. Este movimento transitivo se manifesta em direções espontâneas de narrativas descentradas e performances urbanas que misturam arte com publicidade, design, arquitetura, música, moda, esporte e, atualmente, séries de TV mais que cinema (Black Mirror ou Breaking Bad). A proliferação dos fetichismos visuais é o quadro teóricoempírico sobre o qual se enfocará a pesquisa, em conexão com culturas digitais e identidades flutuantes praticadas através da autorrepresentação. 1. Autorrepresentação A questão do trânsito da identidade individual – singular, compacta e unitária, própria da era industrial – em direção a uma mistura de percepções e práticas indenitárias mais ubíqua e transitivas no corpo do mesmo sujeito, precisa ser focalizada teoricamente e, ao mesmo tempo, selecionada em contextos empíricos onde se possa verificar as complexas problemáticas derivadas desta mutação. Esta condição favorece, como nunca visto anteriormente, a proliferação de tendências baseadas na autorrepresentação de um sujeito que foi, e em parte 28 | Massimo Canevacci ainda é, representado e objetivado pelos “outros” (sociólogo, filósofo, antropólogo, artista, etc.). Nesse sentido, a autorrepresentação não informa só a comunicação digital em geral e as artes em particular, mas determina o que se entende agora como política: uma política comunicacional que precisa – na hipótese a ser verificada – de um multivíduo que afirma a sua presença autônoma nas culturas digitais. Ele desenvolve o desejo de manifestar a sua própria autônoma visão de mundo ou, do que é afim ou quase idêntico, de si mesmo: por isso, o contexto cenográfico da comunicação digital mistura a clássica dicotomia público/privado. Assim, autorrepresentação e ubiquidade cruzam comportamentos miméticos, difundidos e oscilantes entre um narcisismo excepcional por reelaborar e os fetichismos visuais por focalizar (metafetichismo). Desde o final dos 1990, as minhas pesquisas tiveram como posicionamento afirmar tensões polifônicas, dialógicas, sincréticas, comunicacionais entre hetero e autorrepresentação. Por isso, atualmente, a pesquisa criticamente posicionada precisa enfrentar contextos descentrados, múltiplos, alterados. Os procedimentos metodológicos, segundo os quais tradicionalmente o pesquisador representava o outro – com suas lógicas externas, com escritas alheias, com autoridades discutíveis –, foram em parte exauridos, talvez atenuados e às vezes inovados. Os impulsos pós-coloniais, que denunciaram um persistente contexto políticocultural mundial ainda discriminativo, foram determinantes. Parece evidente que “quem tem o poder de representar quem” está se tornando um nó central que se emaranha no domínio do “científico” que uma parte majoritária do Ocidente continua a exercer em direção e contra o “outro”. A crítica sobre o poder da representação se posiciona do lado de quem entrou na autonomia construtiva do próprio eu: individualidade que havia sido excluída como subalterna e agora coloca em discussão as modalidades clássicas desta representação monológica. A escrita aplicada na tradição etnográfica mostra todo o seu domínio político estrito e controle retórico, como gênero linguístico não neutral. Uma epistemologia transitiva da representação pode desenhar o tema da autorrepresentação em diálogo com a heterorrepresentação, envolvendo as subjetividades nativas ou dos jovens urbanos que praticam a expansão ubíqua da comunicação visual e da cultura digital. Apresenta-se em um campo de aplicação – comunicacional, iconográfico e artístico – crescente além da clássica hegemonia de oralidade e escrita, ou, do decomposto dualismo modernista entre centro e periferia. Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ... | 29 A questão “de-quem-representa-quem” retoma e amplia a crítica sobre a divisão do trabalho assim como Marx a tinha representado, tornando insuficientes as leituras dos séculos XIX e XX, baseadas na centralidade estrutural de estratificação social e processos produtivos. A atual fase pós-industrial e a aceleração das culturas digitais incluem outras “divisões” entre sujeitos pertencentes a culturas e experiências diversas, por exemplo: a divisão entre quem comunica e quem é “comunicado”; entre quem tem historicamente o poder de narrar e quem está apenas na condição de ser um objeto narrado. Tornou-se insuficiente até a clássica vocação da antropologia de “colher o ponto de vista nativo”, que pode manter uma parcial legitimidade apenas quando este mesmo nativo – individualizado e diferenciado – também consegue comunicar o próprio ponto de vista. Por isso entre “quem representa” e “quem é representado” há um nó linguístico específico, – dentro e fora das artes no sentido expandido – relativo ao que chamo divisão comunicacional do trabalho, que precisa ser enfrentado nos métodos e nas pragmáticas. Entre quem tem o poder de enquadrar o outro e quem deveria continuar a ser enquadrado – para ser um eterno panorama humano – se ossificou uma hierarquia da visão que é parte de uma lógica dominante a ser posta em crise na sua presumida objetividade. As novas subjetividades que estão se afirmando como “outras” têm a vantagem de poder usar as tecnologias digitais que favorecem esta descentralização com um efeito de ruptura não comparável com o analógico. Facilidade de uso, redução dos preços, aceleração das linguagens, descentralização de ideação, editing, consumo. A divisão comunicacional do trabalho entre quem narra e quem é narrado – entre auto e heterorrepresentação – penetra na contradição emergente entre produção das tecnologias digitais e uso destas mesmas tecnologias por sujeitos ubíquos com autônomas visões do mundo, isto é, nos panoramas confusos e opacos das artes contemporâneas. Sincretismos culturais, pluralidades de sujeitos, polifonias de linguagens: aí está a premissa de valores e metodológica das representações transitivas que apoia as criatividades estéticas indisciplinadas. 2. Ubiquidade Outro conceito-chave é a ubiquidade que determina as dimensões práticas da comunicação digital e favorece, consequentemente modificando, a percepção cotidiana das clássicas coordenadas espaços-temporais nas experiências do 30 | Massimo Canevacci sujeito: um sujeito multivíduo. A ubiquidade permeia a experiência material/ imaterial de um sujeito ubíquo que transita entre a metrópole comunicacional e as social networks. Por isso, nos últimos anos, houve um forte uso metafórico do conceito de ubíquo para identificar um modus de atuar através da web-cultura e, em particular, o design digital avançou muito em tal conexão: a web é ubíqua e a ubiquidade caracteriza as relações espaço-temporais da internet. A acepção atual de tal conceito herda e expande o de simultaneidade. Os futuristas, em primeiro lugar, afirmaram e amaram tal conceito, aplicando-o seja nas artes plásticas (pintura e escultura), seja naquelas performáticas, nas quais as declamações de poesias, músicas e contos eram apresentadas simultaneamente nos palcos. Esta escolha expressiva é de fundamental interesse para o meu discurso: os futuristas foram os primeiros que, como vanguarda, amaram a metrópole contraposta ao tédio da campanha e aos raios de lua. Desta “metrópole-que-sobe” (“La città che sale”, pintura famosa de Boccioni) emergem panoramas dissonantes, extensões corpóreas, rumores deslocados, em suma todas as sensorialidades aumentadas simultaneamente na experiência tecnológica urbana. A simultaneidade se apresenta como a irmã “material” da ubiquidade. Para os futuristas, a simultaneidade é a experiência estética feita de inserções fragmentadas entre metrópole e tecnologia, um pulsar expressivo de imagens ou “palavras livres”, do consecutio2 clássico que é possível graças a um sujeito igualmente simultâneo: o futurista. Aquele que tem a subjetividade adestrada para entender a flexibilidade estendida entre os espaços-tempos vividos nos panoramas urbanos. Esta ótica simultânea é poesia em direção a um futuro anunciado nos movimentos icônicos/sônicos que nascem na estrada, atravessam a janela do atelier e se posicionam na tela do pintor ou na partitura do musicista. O conceito de ubíquo é desvinculado de tal matriz só material da simultaneidade. Talvez esta maior autonomia derive de ser – a ubiquidade – uma condição abstrata já ligada misticamente a um ser divino ou sagrado. O ubíquo pertence a uma percepção visionária do invisível no qual a condição humana é constantemente observada pelo divino e da qual não se foge escondendo-se em 2. Referente à consecutio temporum, ou seja, a norma que regula as conjunções entre tempo e verbo. (lat.) – do latim: ação de seguir, acompanhar, ou ainda, consequência, efeito, ligação adequada. (fontes: Dizionario Grazanti 2.0 e Dicionário do Latim Essencial (REZENDE, A.M.; BIANCHET, SB) Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ... | 31 algum lugar secreto, enquanto isto (“o ser”) que é ubíquo atinge você enquanto lhe transcende. Na contemporaneidade, o ubíquo desenvolve a imanência lógico-sensorial de caráter material/imaterial. Exprime tensões além do dualismo, isto é, o sentir simplificado da condição humana na qual as oposições binárias são funcionais para reconduzir a complexidade cotidiana no domínio dicotômico da ratio.3 Ubíquo é incontrolável, incompreensível, indeterminável. Fora do controle político vertical, da racionalidade monológica, de cada determinação linear espaço-temporal. Nesta perspectiva, é possível elaborar visões ubíquas em direção àquelas invenções humanistas que se movem à beira do além: além da fixidez identitária das coisas e do ser que, por esta qualidade, oferece visões poético-políticas ilimitadas. Ubíquo é a potencialidade da fantasia que se conjuga com a tecnologia. O movimento ubíquo se ampliou nos últimos anos em relação à etnografia da web. Desde então, as pesquisas sobre a web-etnografia se difundiram cada vez mais. As trocas entre as diversas culturas, que no passado foram vistas e analisadas como dissolução das culturas “fracas” crescem segundo misturas ativas caracterizadas por hibridações-sincretismos e não por passivas homologações. O etnógrafo não é mais só o antropólogo ou pesquisador de estudos culturais, adestrado segundo procedimentos estabelecidos durante a pesquisa em campo. No sentido que o campo se ampliou, estendeu-se numa simultaneidade diaspórica, digital e multividual, na qual é cada vez mais imanente a ubiquidade material/ imaterial. Tal ubiquidade da etnografia requer ser penetrada e precisada. A minha identidade de pesquisador não permanece idêntica a si mesma, enquanto desenvolve ao mesmo tempo relações diagonais que usam diferenciadas expressões metodológicas em diversas zonas glocais.4 Tal identidade é mais flexível em relação ao industrialista, é uma identidade em parte mutante acomodada numa balsa instável, que oscila entre sujeitos/contextos diversos na mesma moldura. Por isto, o olho etnográfico é ubíquo enquanto adestrado para decodificar a coexistência de códigos discordantes (escritos, visuais, musicais, mixados, etc.) e a praticar módulos igualmente diferenciados. 3. Razão, motivação – em latim, o valor, o cálculo, avaliação. 4. Ligado ao local e ao global simultaneamente. 32 | Massimo Canevacci As coordenadas espaço-temporais se tornam tendencialmente supérfluas e expandem um tipo “confuso” de experiência subjetiva ubíqua. O mim pesquisador se coloca na situação de ubiquidade imerso na própria experiência pessoal e na relação instantânea com o outro; e este outro é igualmente ubíquo, no sentido que vive onde está aquele momento ativo do seu sistema comunicacional digitalizado. Tal experiência não significa desmaterialização das relações interpessoais, atesta uma complexa rede psicocorpórea, conexões óticas e manuais, seguramente cerebrais e imaginárias que deslocam também na aparente mobilidade a experiência do sujeito. O conceito de multivíduo (já precisado em diversos ensaios)5 se manifesta plenamente em tais conexões ubíquas. A etnografia ubíqua expande a multividualidade conectiva. São tramas que conectam fragmentos de espaço-tempos sem a identificação determinada por “normal” além de multiplicar identidades/identificações temporárias. O sujeito da experiência etnografia ubíqua é o multivíduo. Fazer etnografia significa que o sujeito da ubiquidade performática não está na bibliografia acadêmica, mas entre sujeitos ativos da criatividade: em primeiro lugar entre alguns arquitetos que sentem o pulsar da mutação e o endereçam a composições inéditas. Zaha Hadid é uma destas fontes pulsantes. Ela é uma filósofa expandida que inventa cenários presentes/futuros. É necessário saber interrogar as suas obras, observá-las e participar delas, dialogar com cada detalhe expresso pelas suas formas dispares, ler as suas entrevistas ou declarações de estilo, endereçar sensibilidades óticas entre os contornos destas obras que deixam o estupor que desenvolve geofilia redesenhando as geografias. Uma etnografia performática dirige uma atenção ubíqua para esta antropóloga da arquitetura dionisíaca que antecipa e plasma novas sensioralidades transurbanas. É ela a filósofa do contemporâneo que desdobra o presente-futuro, antes e melhor que os clássicos autores citados para cada ocasião. 3. Metrópole comunicacional O processo que iniciou mais ou menos nos anos 70 no mundo, não só “ocidental”, foi a transição da cidade industrial para a metrópole comunicacional. 5. Ver “Multivíduo conectivo: Gregory Bateson” – In: Cienc. Cult. vol. 64 no. 1 São Paulo, Jan. 2012 – http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S000967252012000100016&script=sci_arttext Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ... | 33 Isto é, a cidade industrial tinha como momento central a fábrica. A fábrica era o lugar não somente da produção econômica de valor, mas também o lugar de produção política de valores. Era o centro do conflito. Era também o contexto que desenvolveu a forma mais poderosa da lógica, isto é, a dialética e a formação dos partidos. Então, a fábrica “produzia” o sentido da transformação não somente econômica, como sociológica e urbanística da cidade. Naquela época, dava para entender a cidade se relacionando à produção industrial, às classes sociais, à dialética política. Aconteceu, nos últimos 30 anos, um processo que vem ocorrendo lentamente – e que ainda não acabou – de transformar esse centro urbanisticamente pesado num policentrismo flexível. A metrópole comunicacional não tem um centro histórico e politicamente definido, mas uma constelação de centros diferenciados e móveis, desenhados temporariamente pelos tecidos já delineados. Visões poéticas sobre espaço/tempo são fundamentais por entender e modificar esta metrópole material/imaterial. O policentrismo “just-on-time” significa que consumo-comunicação-cultura tem agora uma importância crescente em relação à produção. E que, em particular, o consumo, que é baseado não somente sobre shopping-centers, também parques temáticos, museus de arte, exposições universais, estádios de futebol, desfiles de moda, etc., desenvolve um tipo de público que não é mais o público homogêneo e massificado da era industrial. É um público muito mais pluralizado, ou podemos dizer, públicos fragmentados: públicos que gostam de “performar” o consumo ativamente. Públicos de espect-atores. Por isso, os lugares do consumo e os espaços da comunicação têm uma importância que aparenta, mais ou menos, a da fábrica do passado. Para entender a metrópole comunicacional, precisamos estudá-la, fazer pesquisa e também transformá-la. As artes sempre tinham, implícita ou explicitamente, um poder transformador. A comunicação na era digital é ainda mais importante: seja pelo aspecto produtivo, seja pelo aspecto de inovações tecnoculturais, de valores comportamentais, linguagens icônicas, de relações corpo-metrópole, identidades ubíquas. E a cultura – no sentido amplo antropológico que inclui os estilos de vida, visões do mundo, mitos, artes, etc. – é cada vez mais parte constitutiva da metrópole comunicacional. Para entender essa nova metrópole, é fundamental olhar o tipo de reforma, não somente urbanística, mas de prédios, lojas, museus, estádios e, em geral, de lugares de exposições que têm como modelo arquitetônico e filosófico um tipo de desenho, de lógica pós-euclidiana. Arquitetura como obra de arte e o design expandido nos territórios urbanos transitivos. Por isso, a citada 34 | Massimo Canevacci arquiteta Zaha Adid é uma das máximas figuras filosóficas e artísticas contemporâneas: ela cria pensamentos que modificam a sensibilidade conceitual dos indivíduos e dos públicos. O conceito de cidade é baseado numa concepção de cidadania e de produção que é desafiada nas novas culturas e nas subjetividades transitivas. O consumo contemporâneo dos últimos anos favorece um tipo de dimensão pragmática mais performática, desenvolve um diferente tipo de relação entre individuo e sociedade. Talvez o conceito de sociedade não seja mais forte como era antes. A sociedade era baseada sobre a cidade industrial e aquela cidade desenvolveu um tipo de identidade fixa na família, no trabalho e no território. Mas a metrópole comunicacional é muito mais fluida e multíplice nas identidades de sexo-território-trabalho. Isso significa uma transformação não somente no modelo de trabalho: é quase impossível para cada pessoa fazer o mesmo trabalho por toda a vida e morar no mesmo território. Por outro lado, a comunicação favorece quando o público faz parte constitutiva da obra, onde seja possível presentear a sua própria história, contos, figuras, imaginação. Marina Abramovich fica sentada em uma mesa diante de um/uma convidado/a e juntos cocriam a obra performática e pública que emociona e envolve. Por isso, o público, que era somente espectador, vem agora ser espect-ator, isto é, não só participa, mas é também ator-nosespaços. Espect-ator significa esse tipo de coparticipação que desenvolve um tipo de atitude ubíqua nos públicos. Espect-ator performático não é mais passivo, mas é parte constitutiva da obra aplicando a tecnologia digital nos espaços metropolitanos. Se a história da modernidade capitalista burguesa diferenciou o espaço privado da cena pública, agora está acontecendo uma transição, em que o conceito de espaço urbano não é mais bloqueado na distinção dualística público-privado: há uma expansão da privacidade num território que antes era totalmente público; e às vezes há uma expansão assimétrica de um território público num lugar que era antes totalmente privado. Por exemplo, a comunicação digital é um espaço/ tempo ubíquo onde eu tenho direitos transitivos. A tela ubíqua do meu computer é espaço/tempo onde, praticando uma social network, eu sou público-privado. A cidade absorve o acontecimento como uma esponja e expulsa em sua linguagem, que as áreas metropolitanas reelaboram influenciando os comportamentos das pessoas. Por isso, a linguagem da metrópole-esponja é baseada sobre lugares, espaços, zonas e interstícios (áreas in between entre um espaço conhecido e um desconhecido). Esses interstícios favorecem um tipo de linguagem urbano Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ... | 35 dialogicamente entrelaçada com a linguagem do corpo, esta diferenciação baseada sobre um mix de linguagem do corpo/metrópole favorece uma extrema mobilidade dos sincretismos culturais como parte da experiência cotidiana. Ela se desenvolve graças aos interstícios. Os interstícios favorecem um tipo de dialógica entre body-scape e location. Body-scape é um corpo-panorama; location é um corpo-esponja. A dialógica dissonante da metrópole comunicacional é essa interação flutuante entre interstícios corporais. A dissonância dialógica mistura o orgânico e o inorgânico, corpo e coisa, body e corpse: body como o corpo vivo, e corpse como o corpo morto; no hífen, que separa e unifica body-corpse, acontece o trânsito post-human entre corpo vivo e corpo morto. 4. Fetichismos visuais Os fetichismos visuais – material/imateriais – desenvolvem uma pragmática além do dualismo clássico e da mesma dialética; “ele” (o fetichismo) pode liberarse das incrustações conectadas à reificação e alienação. Ele incorpora também – misturado e sincretizado ao domínio – um desejo perturbado e parcialmente desviado quanto difundido em culturas diversas e em modalidades diferentes: enfrentar praticamente a relação orgânico/inorgânico, corpo/mercadoria, olho/ screen, carne/tecnologia (talvez vida/morte) numa maneira envolvida seja na produção industrial e pós-industrial, seja nas relações míticas ou sagradas (“artísticas”) que animam o que parece coisa morta. O fetichismo conecta, cruza e mistura reificações e petrificações, histórias e mitos. Fica dentro do corpo do capitalismo velho e novo e, no mesmo espaço-tempo, nos corpos arcaicos/ contemporâneos daquilo que chamamos mitologias. O fetichismo não anima só mercadoria e reifica contextualmente os trabalhadores: ele vivifica o que é fixo, um objeto ou uma coisa. Por isso, os fetichismos visuais se determinam no conceito de facticidade (ADORNO, 1970), um conceito sensorial onde viajam – em tensões híbridas e misturadas – coisas, objetos, mercadorias, pixel. Neste conceito de matriz colonial, esconde-se um desejo obscuro/luminoso que os portugueses tentaram fechar numa regressão primitivista e animista, sem história e sem teologia. O animismo como uma anima secundária e inferior. Talvez degenerada. Uma possibilidade do fetichismo aspira a um desejo a se relacionar e tentar resolver dia a dia as diferenças entre o que esta morto e o que está vivo (body-corpse), entre o sagrado e o religioso, sexo e erótica, trabalho e arte. Em conclusão, o fetichismo incorpora o desejo de perceber e vivificar os 36 | Massimo Canevacci fragmentos (imóveis) dos mundos além do dualismo conceitual ou dos paradigmas dicotômicos: ele é filosofia pragmática e perturbativa, que entende a relação entre reificação e petrificação. E a resolve ou dissolve. Chamo este outro lado meta-fetichismo. Nele, sobrevivem desejos transculturais, esperanças políticas, desvios subterrâneos que flutuam, diferenciam-se e se misturam nas diversas culturas. Os meta-fetichismos se cruzam com as metamorfoses e – sincretizados – afirmam a potencialidade de subverter o “estado das coisas”: porque as coisas são materiais/imateriais e não têm estado, mas movimento. Desenho o fetichismo metodológico como aquela abordagem das facticidades fetish ou “coisas-animadas” que dissolvem o caráter reificado da mercadoria através do deslizamento semiótico dos códigos nelas incorporados. A interpretação é, ao mesmo tempo, uma destruição. É essa destruição que assume as espirais linguísticas da desconstrução. O fetichismo metodológico é, por assim dizer, homeopático. Ele cura o fetichismo, exasperando e dilatando as construções interpretativas encenadas pelas próprias coisas, ao longo de sua vida comunicativa. Uma pesquisa sobre as artes necessita de um envolvimento fortemente caracterizado no sentido “trans” ou “in” disciplinar, favorecendo em particular as relações entre ciências humanas (antropologia cultural, psicologia social, sociologia, filosofia, arquitetura). Focalizando a obras de Adorno, Benjamin, Kracauer e outros representantes da assim dita “Escola de Frankfurt”, o projeto enfrenta a indústria cultural na época da comunicação digital que, diferindo da visão opositiva de Benjamin, mistura as dimensões auráticas e reproduzível. A troca epistolar entre Benjamin e Adorno é fundamental: nas cartas, antecipa-se um debate que ainda agora endereça à crítica e à experimentação na relação entre arte reprodutível e tecnologia reificada. O conceito-chave é o estupor da facticidade (Stauende Factizität). O estupor como posicionamento do sujeito-pesquisador indica uma abertura psicocorporal em relação ao encontro com uma coisa, um evento, uma pessoa não conhecida: e que, justamente por isso, enquanto estrangeira, é desejada. Estupor é a abertura porosa da sensibilidade intelectiva em direção de um descobrimento não procurado ou não previsto. A facticidade é uma mistura de coisas, objetos, mercadorias. É também próxima lexicalmente ao fetichismo e as narrações. Fetichismo deriva da facticius; ficção da fictio; facticidade mistura as duas filologias e as expandem nas produções material/imateriais atuais. Verifica nas áreas da estética digital a hipótese de meta-fetichismo e meta-morfose. Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ... | 37 A reflexão histórica sobre estes pensadores tem uma angulação caracterizada na focalização de algumas tendências contemporâneas no tema da autorrepresentação e em relação à proliferação dos fetichismos visuais. Por exemplo: nos anos 1930, Kracauer afirmou que “self-representation of the masses subject to the process of mechanization is the conditions of possibility for a democratic culture” (1995:34). Nesse sentido, aqui tento introduzir a hipótese conceitual de meta-fetichismo que incorpora um potencial além do dualismo orgânicoinorgânico ou ainda da dialética sujeito-objeto, natureza-cultura, reificaçãoidentificação. O desenho apresenta uma perspectiva determinante ao experimentar pragmaticamente constelações performáticas que verificam e, assim, pretendem aplicar provisórias conclusões. No entanto, a perspectiva tradicional sobre o fetichismo e reificação (de Marx a Freud para a Escola de Frankfurt) reproduz um ponto de vista antropocêntrico, bem como a dicotomia metodológica que pode ser possível superar através de uma perspectiva eco-totêmica Batesoniana. Vou tentar reencenar o duplo vínculo e a ecologia da mente de Bateson em minhas pesquisas etnográficas. A comunicação digital está cruzando e misturando sujeito e objeto, natureza e cultura, corpo e cadáver. Body-corpse, seres vivos são seres de transição: o material/imaterial do corpo/cadáver. Há um padrão sincrético que liga as coisas, objeto e commodities além de seu histórico (reificado) destino como um valor de uso ou valor de troca. Meu objetivo é desenvolver conexões ecológicas e sincreticas – além da dicotomia sujeito/objeto – entre culturas digitais, mentes expandidas, facticidades viventes: uma comunicação transitiva através de meta-fetichismos :: meta-morphosis :: eco-fisionomias. Enfim, Edward Said enfrentou, em seu último livro, o desafio cultural existente no pensamento de Adorno e, em particular, focalizou o conceito de late style aplicado a Beethoven e que Said expande no mesmo Adorno e em outros autores: “to explore the experience of late style that involves a nonharmonious, non serene tension, and above all, a sort of deliberately unproductive productiveness going against …” (2006:7). O estilo último é produtivo enquanto elabora óperas e, ao mesmo tempo, coloca em discussão o princípio instrumental da produtividade (Spätstil Beethovens é um ensaio de Adorno de 1937). “For Adorno, far more than anyone who has spoken of Beethoven’s last works, those compositions that belong to what is known as the composer’s third period (…) constitute an event in the history of modern culture: a moment when the artist who is fully in command of his medium nevertheless abandons communication 38 | Massimo Canevacci with the established social order of which he is a part and achieve a contradictory, alienated relationship with it. His last works constitute a form of exile” (SAID, 2006:7-8). Late style, exact imagination, Stauende Factizität, self-representation são conceitos operativos que inspiram as perspectivas de um projeto-constelação sobre as artes contemporâneas. 5. Estupor descongelante Ao final, quero escolher como test case a arte descongelante e espantosa da artista brasileira Nele Azevedo. Com a ajuda dos habitantes locais ou turistas casuais, ela aplica, em determinados espaços urbanos públicos, uma quantidade variável de pequenas estátuas geladas que chegam com um carro frigorífico. No início, estes seres são todos iguais, gelo estampado reprodutível no centro de uma praça. Foram expostas em diversas cidades do Brasil, em Paris, Porto e Florença. Em geral, são cerca de 300 esculturas. Mas, em 2014, ela foi convidada, em Birmingham, para comemorar o centenário do inicio da 1ª guerra mundial. E a sua ideia foi colocar 5.000 seres de gelo. The Minimum Monument project is a critical reading of the monument in the contemporary cities. In a few-minutes action, the official canons of the monument are inverted: in the place of the hero, the anonym; in the place of the solidity of the stone, the ephemeral ice; in the place of the monumental scale, the minimum scale of the perishable bodies. Thousands of small sculptures of ice are placed in public space. The memory is inscribed in the photographic image and shared by everyone. It is no longer reserved to great heroes nor to great monuments. It loses its static condition to gain fluidity in the urban displacement and in the change of state of the water. It concentrates small sculptures of small men, the common men. (Birmingham Post, 01 Aug 2014). Ao contrário de imaginar uma comemoração retórica – nacionalista ou heroica –, a artista escolheu mostrar o simbólico no espaço público da cidade uma obra multíplice que favorece o processo meta-fetichista através do estupor do descongelamento do monumento mínimo e de cada espectador-ator presente. E, ao final, o que fica são manchas de águas que em breve são absorvidas pelo território. A comoção envolve a praça inteira, o público de diferentes idades e Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ... | 39 gêneros, a participação ativa das pessoas, a possibilidade de mover-se e contribuir na construção da obra, não somente bloqueada na distância congelante e reificada do espectador tradicional, mas solicitada por impulsos próprios a cocriar a obra. O público acompanha o emocionante e comovido processo de uma memória trágica que esta arte consegue realizar numa catarse aquática. Dor e sorrir, choro e alegria, atividade e fixidez: tudo se mistura na experiência que desafia a noção de arte tradicional. A primeira vez que acompanhei a obra inteira, no Memorial da América Latina, em São Paulo, fiquei preso num ambíguo desejo de olhar fixamente este lento desaparecimento dos seres e, ao mesmo tempo, um frenesi de fotografar tudo, quase por salvar um mínimo de lembrança. Experimentar a comoção reflexiva e, junto a isso, a mobilidade cognitiva ou estética, foi um trecho inesquecível. Nele Azevedo, tímida e reservada, exprime e experimenta o existente além das artes fixas. E posso concluir que a necessidade e o desejo de aprender a descongelar-se como identidade fixa a congelou no próprio passado. O descongelamento dos seres acompanham a delicadeza do próprio descongelamento, frequentemente bloqueado na repetição do passado e que não consegue aceitar a beleza da própria “mutação” (mudança). Mutação Máxima no monumento mínimo. A artista Nele Azevedo com uma das 5.000 esculturas “It is stunning art with a powerful message to melt the heart. All that will be left to show for two weeks of intensive work are puddles of water in Birmingham’s Chamberlain Square. But before they melt, 5,000 tiny ice sculptures of figures will be placed by the public on the steps to remember those men and women who made sacrifices in the First World War. Descendants of those who fought in the conflict, especially those who are not remembered on 40 | Massimo Canevacci war memorials, will be asked to place a figure on the steps. Then the public can join in, helping to fill the wide steps in the square with thousands of the figures before they all melt. Its creative programme director Paul Kaynes says: “Watching the figures melt, and on such a vast scale, will undoubtedly effect people in many different ways – the city will not have seen an exhibition like it.”(ibidem) A coisa mais impressionante é que cada ser ou escultura, descongelandose, é diferente da outra. É a afirmação da beleza da singularidade de cada sujeito, de carne ou de gelo, que no processo vira multivíduo: uma polifonia sincrética e extraordinária do eu pluralizado em “eus”. A beleza do transitório e da relação constitutiva coagulada entre os corpos das esculturas e o gelo do público. “No monumento mínimo, as pessoas cruzam, acariciam, dialogam com as obras como seres que, na frente delas, começam na hora a perder força. Mas é esta perda da identidade compacta que causa a libertação da mudança subjetiva. Se percebe uma afinidade entre as metamorfoses processuais da arte pública e do sujeito privado. As metamorfoses cruzam e modificam a distinção moderna entre público e privado, cada vez menos dicotômicos e mais misturados e conectados. A arte processual pública difunde ternura. A obra que se derrete é um gelo macio. Observando as fisionomias de cada ser que se modifica em relação ao calor do ar, um sentimento de morte doce, progressiva, de um diminuir de tamanho, de um chorar lágrimas de água que molham o chão da praça e, de alguma maneira, a intimidade de cada um. Ninguém pode ficar normal acompanhando a progressiva metamorfose de seres em água. Um sentimento de ternura emociona o/a observador/a e os mesmos olhos se molham de lágrimas percebendo um destino finalmente igual aos humanos. A obra de arte não é mais imortal ou quase divina: é mortal e efêmera como nós” (CANEVACCI, 2013, p. 216). Segundo Nietzsche, um monumento exerce o poder da mnemotécnica, com isso, a vontade do filósofo é desmascarar a solenidade, gravidade, mistério que continuam a exercer o seu poder através da memória: “quando o homem considera necessário formar uma memória, nunca acontece sem sangue, mártires, sacrifícios... Tudo isto tem na dor o coadjuvante mais potente da mnemônica. O monumento resume e bloqueia este ar cruel mascarado de solenidade” (1976, p. 45). Este derretimento dos corpos difunde um sentido de ternura e inquietação, Meta-Fetishismos: Etnografia ubíqua sobre a autorrepresentação ... | 41 um desejo de parar este processo e ao mesmo tempo um desejo de vê-lo até o fim, de assistir com olhares ambíguos de um espectador cúmplice, que, com o seu próprio hálito, favorece este seu derretimento irreversível. Eis que começam a pender de um lado ou de outro, deitam-se nos degraus já molhados, transformam-se numa pequena poça d’água. O ser se transformou em algo ou alguém outro e, assim, realizou-se a metamorfose meta-fetichista da arte além da memória monumental. Referências bibliográficas ADORNO, T.W. Aestetische Theorie. Frankfurt : Suhrkamp Verlag, 1970. . Dialektik de Aufklarung. Amsterdam: Suhrkamp Verlag, 1966. APPADURAI, A. The Social Life of Things. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. BACHTIN, M. L’autore e l’eroe. Torino: Einaudi, 1988. Editor: Bateson, G. BATESON, G. Steps to an Ecology of Mind. Massachusetts: Chandler Publishing, 1972. BENJAMIN, W. L’opera d’arte nell’epoca della sua riproducibilità técnica. Torino: Einaudi.1966. . Lettere 1913-1940. Torino: Einaudi,1978. . Parigi capitale dei XIX secolo. Torino: Einaudi, 1986. BERMAN, M. All that is Solid Melt into Air: the Experience of Modernity. Nova York, Simon and Schuster, 1982. BHABHA, H. K. The Location of Culture. London: Routledge, 2001. HAUSEN, M. B. Cinema and Experience: Siegfried Krakauer, Walter Benjamin and Theodor W. Adorno. Berkeley: University of California Press, 2012. CANEVSCCI, M. SincretiKa: Explorações etnográficas sobre artes contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel, 2013. . A linha de pó: A cultura bororo entre tradição, mutação e autorepresentação. São Paulo: Annablume, 2012b. . Fetichismos Visuais. São Paulo: Atelier, 2007. 42 | Massimo Canevacci . Hybridentities, in: Ars Electronica 2005: Hybrid: Living in paradox. Ostfildern/Alemanha: Hatje Cantz, 2005. Publicação da Exposição, Série: Ars Eletronica, ISBN 978-3-7757-1659-8 CLIFFORD, J. The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature and Art, Cambridge: Harvard University Press, 1988. FREUD, S. Das Unheimliche. In: Imago. Zeitschrift für Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften V. pp. 297–324. Frankfurt, 1919. GEERTZ, C. The Interpretation of Cultures. Nova York: Perseus Books Group, 1973. GOLDBERG, R. A Arte da Performance. São Paulo: Martins Fortes, 2006. HADID, Z. (). Recent Work. In: NOEVER, P. (et al.) Architecture in Transition Between Deconstruction and New Modernism. Munich: Prestel Publishing, 1991. pp. 47-61 HAUSER, J. Bio Art: Taxonomy of an Etymological Monster, in: Ars Electronica 2005: Hybrid: Living in paradox. Ostfildern/Alemanha: Hatje Cantz, 2005. Publicação da Exposição, Série: Ars Eletronica, ISBN 978-3-7757-1659-8 HERSCH, J. Storia della filosofia come stupore. Milano: Mondadori, B., 2002. KOOLHAAS, R. et al. Project on the City II: The Harvard Guide to Shopping. Colônia: Taschen, 2001. Kracauer, S. The Mass Ornament. Cambridge: Harvard University Press, 1995. Appadurai, A. et al. Transurbanism. Rotterdam: Brouwer&Mudler, 2002. Nietzsche, F. Genealogia della Morale. Milano: Mondadori, 1976. Robertson, R. Globalisation: Social Theory and Global Culture. Londres: Sage Publication, 1992. Said, E. On Late Style. Nova York: Pantheon Books, 2006. Sobchack, V. et al. Meta-morphing: visual transformation and the culture of quickchange. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000. Turkle, S. Life on the Screen: Identity in the Age of the Internet. Nova York: Simon & Schuster, 1995. Turner, V. From Ritual to Theatre. New York: Performing Arts Journal, 1982. | 43 Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum of Modern Art (MAM), and its primary collection1 ANA GONÇALVES MAGALHÃES* Abstract: Ongoing research about the Matarazzo collections, now belonging to MAC USP. The project started out through the critical revaluation of the cataloging system of the Museum, and tackled the acquisitions of Italian works the couple Francisco Matarazzo Sobrinho and Yolanda Penteado realised between 1946 and 1947, for the first nucleus of the collection of the former São Paulo Museum of Modern Art (MAM). The research dealt with their provenance, their relationship with Brazilian artistic milieu and the so-called “Rappel à l’Ordre”. They allowed us to revaluate this term and the relationship between Margherita Sarfatti and the Novecento Italiano with Brazilian modernism. KEYWORDS: Matarazzo Collections. Italian Modern Art. Margherita Sarfatti. São Paulo Museum of Modern Art (MAM). Brazilian Modernism. A narrativa de arte moderna no Brasil, a formação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) e sua coleção inicial Resumo: Pesquisa em andamento sobre as coleções Matarazzo, atualmente pertencentes ao acervo do MAC USP. O projeto começou com a reavaliação crítica da catalogação do acervo do museu, e abordou a aquisição de pinturas 1. Este artigo foi originalmente publicado, numa versão mais curta, em: Ulrich Grossmann e Petra Krutisch. 33rd Congress of the International Committee of the History of Art (CIHA). Nuremberg: Germanisches National Museum, 2013, vol. 1, pp. 86-90, resultante de comunicação apresentada no congresso do CIHA em 2012. * Professora Doutora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica. 44 | Ana Gonçalves Magalhães italianas que o casal Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado realizou entre 1946 e 1947, para o núcleo inicial do acervo do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). A pesquisa tratou da procedência das obras, sua relação com o meio artístico brasileiro e com o ambiente do chamado “Retorno à Ordem”. Elas nos permitiram reavaliar esse termo e a relação entre Margherita Sarfatti e o Novecento Italiano com o modernismo brasileiro. Palavras-chave: Coleções Matarazzo. Arte Moderna Italiana. Margherita Sarfatti. Museu de Arte Moderna de São Paulo. Modernismo Brasileiro. MAC USP The history of the Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo (MAC USP) unfolds into two aspects that allow one to enter the narrative of modern and contemporary art in Brazil and reevaluate it in the light of new elements. The first one stems from the fact that MAC USP is a university museum, what has endowed it with an infrastructure of scholarly research.2 The second one regards the connection of its institutional history to that of the former São Paulo Museum of Modern Art (MAM) and the São Paulo Biennial (FABRIS; OSORIO, 2008). The foundation of the Museum at the University, in April 1963, was the result of the separation between the former MAM and the São Paulo Biennial, the disappearance of MAM in the previous year, and the cession of its collection to the University. Such events, narrated by Brazilian historiography in a controversial and polemical tone, turned MAC USP into the owner of the most important collection of modern art in the country. Its course in the University has turned it into a privileged site for the dissemination of modern and contemporary art, as well as a place for artistic exchange. As proposed by its first director, Walter Zanini, MAC USP was a “laboratory of experimentation,” and since 1964, by the elaboration of exhibition programs geared towards young artists, it continued to update its collection. Zanini was engaged in a two-fold duty: thinking about the museum in a retrospective way, through the collection received from the former MAM, by updating the research on the history of modern art in Brazil; and in a prospective 2. On the issue of considering MAC USP a university museum (and not a “museum at the university”), see Aracy Amaral, 2006, pp. 207-212. Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ... | 45 way, while promoting the update of its collection, by assimilating the most relevant trends in contemporary art. This project, which remained asleep in the last two decades, is starting to be revised by the current director, Tadeu Chiarelli (2011), when MAC USP is being given a new venue, at Ibirapuera Park in São Paulo, which has presented itself as an opportunity for the research department to reevaluate the narrative of modern art projected by the museum. Critical Reevaluation and Revision of the Records of the MAC USP Collection In 2008, we started out a research project the main aim of which was to reevaluate the procedures of registry of the MAC USP collection, and allow the updating of its records database, so as to provide the means for the publication of a new version of the general catalogue of the collection. The museum had previously had three opportunities to document its collection. The first general catalogue of the collection was published in 1973, by Walter Zanini, almost in an inventory format (ZANINI, 1973). Perfil de um acervo, organized by Aracy Amaral in 1988, while inventorying works that had entered the museum collection until 1987, sought to reevaluate the knowledge on the main works in the collection through a series of entries created with the collaboration of various researchers and authors (AMARAL, 1988). The last general catalogue of our collection, organized by Ana Mae Barbosa in 1992, benefited mostly from the first record review of the collection, carried out from 1985 onwards, with the creation of our Registrar Section, when the basic documentation of the works was systematized in curatorial records for the first time (BARBOSA, 1992). After seventeen years, and on account of the fact that important sets of the collection had no published record, it was vital for us to rethink the procedures by which we were to publish and document our collection. The reevaluation of the museum records was addressed taking into consideration the fact that this was not a neutral procedure, insofar as we were working with very distinctive categories, construed by paradigms very different from what one can understand by art. The collection of MAC USP was formed in a context that defines a watershed in art history. On the one hand, we have objects which conception is based on a set of modernist notions that define what we call modern art; on the other, a second set that emerged while confronting that former set of paradigms, testing the boundaries of the museum, which is what 46 | Ana Gonçalves Magalhães we call contemporary art. Therefore, any criterion to be adopted to the description of our collections, in an apparently simple procedure – of the basic constitution of a records chart with technical information of the artworks – would require a deeper conceptual discussion. Another issue that was raised regarding the records review and the reevaluation of the MAC USP collection has to do with its “gaps”. The expression is used here between inverted commas, because for Brazilian historiography, it derives from the fact that MAC USP has suffered, along the years, with a lack of understanding from the part of the university central administration of the importance of an acquisition policy (AMARAL, 2006; CHIARELLI, 2011). However, it seems to be a fruitful exercise to review such “gaps” by comparing them to the notion of discontinuity, as conceived by Michel Foucault (2008). Foucault construed the critique to the history of mentalities by means of what historians of the Annales School called the “long duration,” and which, therefore, implied working with the notion of continuity. He proposed an interpretation of historiographical discourse that could encompass and deal with discontinuity, from the aporia of such discourse to work with such notion, at the same time that it was already given by the very object of study of the historian. His argument proved quite relevant in the museum collection context, in which we have to constantly deal with discontinuity, while bringing to the surface what he called “white spaces” (FOUCAULT, 2008, p.17) left by narratives of art history. To work with a museum collection means, above all, to confront oneself constantly with its relation to its own territory, its local dimension, as well as reviewing the roles and places given to certain artworks and artists in different contexts. In this sense, MAC USP modernist collections offer a fertile field to interpretation, for the very reason that they are “dated” (AMARAL, 2006, p.270). First of all, the modernist works in our collections were gathered in the very process of the making of a history of modern art, in which critics were formulating the terms while these creative procedures were also in the making, and artists and works chosen were still to be confronted with time. MAC USP modernist collections must be reviewed in the light of São Paulo modernism and its relation to international context. The modernist project proposed here tried to establish a local model for the narrative of art history, as we will see. It is by elucidating such narrative that we will be able to rethink such collections and their role in the history of modern art in Brazil. Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ... | 47 Matarazzo Collections and the Records of the Former MAM The cession of the collections of the former MAM to the University had been initiated by the donation of the so-called Collections Francisco Matarazzo Sobrinho and Francisco Matarazzo Sobrinho & Yolanda Penteado.3 It is common for experts to consider the Matarazzo collections as private ones, which had no direct relation with the collection of the former MAM or the Brazilian artistic milieu, the donation of which to the University of São Paulo would have served as a pretext to force the cession of the collection of the former MAM to the University. However, as we started out the research on the documentation of the first acquisitions of the Matarazzo couple, it became very clear that such works were part of the collection of the former MAM. They had been acquired with the sole purpose of constituting the stone mark nucleus of its collection, and during the 1950s, they were constantly exhibited as the museum primary collection, particularly in the case of the seventy-one Italian paintings acquired between 1946 and 1947, with which we have worked so far. Moreover, they helped us to establish the primary records of the collection of the former MAM. In addition to the museum record charts that had been rescued by MAC USP Registrar Section in 1985, we have found at least three other documents that belong to the records of the works of the former MAM. The first is a fifteenpage-long typed list of the works bought between 1946 and 1947, with their basic technical information. The others are two versions of an inventory book, the first one being a card index, which was organized according to the following criteria: 3. Francisco Matarazzo Sobrinho or Ciccillo Matarazzo (1898-1977) grew into a very rich family of Italian-born entrepreneurs, who had established themselves by the end of the 19th century in Brazil. By the mid-1930s, he founded his own company, the Metalúrgica Matarazzo, and from the 1940s, started building his identity as a great patron of the arts, engaging in the creation of various institutions to foster modern art in the country. In 1947, he married Yolanda de Ataliba Nogueira Penteado (1903-1983). Heir of a rich family of São Paulo coffee producers, she was a key figure in the legitimation of Ciccillo as a representative of Paulista elite and patron of the arts. Her relationship with Brazilian artistic milieu came from her family bonds, especially through her aunt, Olívia Guedes Penteado (1872-1934) – collector and promoter of modern art in São Paulo, who had been hostess of a modernist salon that would give birth to the Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM – Society Pro-Modern Art), in 1932. 48 | Ana Gonçalves Magalhães a) on the first level, there was a division between foreign and Brazilian works; b) on the second level, they were organized by medium: painting, sculpture, and print; c) on the third level, they were organized in alphabetical order, according to the artists’ last names. The second version of this inventory book, also organized as a card index, had two volumes, the first being for works in painting and sculpture; and the second, for works on paper, and still maintaining an internal division between foreign and Brazilian works. As for the term “print” in such context, it was used for any kind of work on paper. Such categories by medium were the same used in the sessions of the Venice Biennale, from its origins, and thus, in those of the São Paulo Biennial, at least in its first decade of existence. The awards granted at those exhibitions followed those categories. It also is worth mentioning that MoMA in New York had its curatorial, conservation, and records infrastructure organized following those categories, with its historical departments of painting and sculpture, and prints and drawings – still operating today as such. To a certain extent, MAC USP preserved this same infrastructure, if we think that our conservation laboratories and storage rooms follow those categories. MAM inventory books and record charts respect the system of the first typed list registering the works (even if out of alphabetical order by artist’s surname) acquired by the Matarazzo couple between 1946 and 1947, as MAM inventory number was created from it. A major element is describing the works based on their medium and their nationality, i.e., the separation between the FOREIGN collection and the BRAZILIAN collection. The inventory numbers are thus indexed: PE = Pintura Estrangeira [Foreign Painting] PB = Pintura Brasileira [Brazilian Painting] EE = Escultura Estrangeira [Foreign Sculpture] EB = Escultura Brasileira [Brazilian Sculpture] GE = Gravura Estrangeira (for any kind of work on paper) [Foreign Print] GB = Gravura Brasileira (idem) [Brazilian Print] Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ... | 49 The cession of these works to USP generated another inventory number for them, which emphasized the origin of the donation of the work and the history of its cession to MAC USP. Albeit very frequent in record proceedings, such system underlined the division between the Matarazzo collections and the socalled MAM collection. The set of Italian paintings acquired between 1946 and 1947 revealed a double interpretation of these objects, the juxtaposition of their provenance, and the survival of the separation between what Brazilian historiography had always considered international art (or “foreign”) and what was Brazilian art. Their inventory numbers, first at the former MAM and then at MAC USP, reflect two layers of categories given to describe these objects: at former MAM, their description by medium seemed key in their understanding, defining the paradigms by which they should be considered art; at MAC USP, their belonging to a larger set of works (the donation) imbued them with an extra element and allowed them to be seen in relation to other works in different media and by different artists. So, if the context for the description of our Gino Severinis, Ardengo Sofficis, Giorgio Morandis of the Francisco Matarazzo Sobrinho Collection, at the former MAM, was painting, at MAC USP, they were necessarily engaged in one and the same history and took us to another moment, which was the history of their reception and the relationship between the Italian artistic milieu and São Paulo modernism. It is worth going back to the separation between foreign and Brazilian works, as it seems to have been a conceptual display through which these objects were seen by Brazilian historiography. Its persistence is quite remarkable, and the general catalogues of MAC USP, which tried to construe any kind of discourse to the museum’s collection, are those that actually make use of this separation (ZANINI, 1973, pp.293-451; AMARAL, 1988). Such an organization should be analyzed in the light of other elements that seem relevant in the context of the making of this collection. First of all, the very moment of our modernist formation was in the context of the affirmation of a national identity, in-between the two World Wars, which characterized the so-called “Return to Order” period in Europe. This, of course, was marked by the rejection of any kind of internationalism and transnational artistic experiences, as it also meant the banning of the avant-garde in certain territories. We only have to think about some examples of exhibitions and institutions which fostered modern art in Europe, in those days, and how they 50 | Ana Gonçalves Magalhães tackled that issue. The Venice Biennale itself, following the system of universal exhibitions, contributed to the affirmation of national identities, since it was organized by country pavilions. Furthermore, and especially in the case of the Venice Biennale, the awards in the categories of painting, sculpture and print (in Italian, bianco nero”) were also divided between national and international awards – model to be adopted by the São Paulo Biennial in the 1950s. Even after World War II, when there was a revival of the early 20th-century avant-garde for the very reason of their being international, these experiences are shown in the framework of the country pavilion, in the big international modern art shows. In the case of the Venice Biennale, so as to redeem Italy from the fascist years, from 1948 onwards, there was a systematic program of exhibitions of the avant-garde movements. Such is the case of the retrospective shows of French Pontillisme and Italian Divisionismo at the Venice Biennale of 1952. The works of each current was presented side by side, so as to allow one to perceive the specificities of one and the other (PALLUCCHINI, 1952, pp. XVIIIXXIII; VALSECCHI, 1952, pp. 390-394). The São Paulo Biennial followed that trend, when negotiating important shows of avant-garde groups through the participating countries, in the 1950s. These elements thus reveal that there was a model concerned with the formation of modern collections that would have been more engaged with the notions of modern art in circulation during the 1930s and ’40s, which was not so alien to the Brazilian artistic milieu, as Brazilian historiography would claim. Without having reached the full analysis of all Matarazzo acquisitions, we can already revise some elements of the history of the São Paulo former MAM. Brazilian historiography claims the model of the North-American MoMA as the one that has served as the basis for the foundation of both modern art museums in Brazil (in São Paulo and Rio de Janeiro). However, the set of acquisitions already studied and the institutional culture that was to operate in the management of the former MAM in São Paulo seem to be more connected to the European context – more precisely, the Italian one – than the North-American context. Italian Paintings in the Matarazzo Collections We shall now concentrate in the first set of paintings acquired by Matarazzo in Italy, between 1946 and 1947. From the records review of this first set, it resulted in the acquisition of seventy-one works by Matarazzo, in Roman and Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ... | 51 Milanese galleries, or directly from Italian artists or collectors. Brazilian historiography that sought to tackle such acquisitions points Italian art critic Margherita Sarfatti (1880-1961) as a consultant for the Matarazzo couple (FABRIS; OSORIO, 2008). Margherita Grassini Sarfatti was a journalist and art critic, from a prominent Venetian Jewish family. In 1902, after marrying lawyer Cesare Sarfatti, she moved to Milan, where she was to join a group of socialist intellectuals and artists, and collaborate with newspaper Avanti!, in which she would be responsible for an art critique column from 1909 on. In 1912, she met Benito Mussolini, with whom she engaged in a love affair that would last until 1933. As an art critic, her role in the creation of the Novecento group in 1922 is vital. In 1924, she was to dedicate herself to write Mussolini’s biography, Dux. The following year would mark the reformulation of the Novecento group, now designated as Novecento Italiano, when she and other members of the group signed the Manifesto degli Intteletuali Fascisti. With the alliance between Mussolini and Hitler, and the publication of Racial Laws in Italy, in 1938, Sarfatti left her country. Between 1939 and 1947, she lived in exile between Argentina and Uruguay (GUTMAN, 2006). Little is known about her activities in South America, and her links with its artistic milieu.4 In Argentina, such relations have started to be studied, especially concerning the context of the exhibition of the Novecento Italiano group, in Buenos Aires, in 1930. The works bought in Italy form a panorama of Italian modern art between 1920s and ‘40s, in which the Novecento Italiano seems to dominate the scene – if we take into consideration that such trend is defined by a figurative art for which the notion of realism signifies the reinterpretation of certain elements of a socalled classic tradition. But if the term Novecento Italiano had been created by Margherita Sarfatti to designate the new currents that she would call classicità moderna, it soon took a new, more official dimension, in the context of a systematic policy of promotion of Italian modern art, representing the fascist regime abroad. From 1927, a series of exhibitions in various European capitals – 4. For the Matarazzo acquisitions and Sarfatti’s involvement with them, see Françoise Liffran, 2009, p. 713 and Phillip Cannistraro & Brian Sullivan, 1993, p. 531. Even so, this episode is doomed to confusion, when the authors take the former MAM for MASP (São Paulo Museum of Art, founded by media businessman Assis Chateaubriand, in 1947). 52 | Ana Gonçalves Magalhães beginning with Paris – engaged in the popularization of Italian art and artists of the period, resulting in the acquisition of works for public collections in those countries. The period dominated by the notion of Italian modern art as Sarfatti defined it ended precisely with the exhibition «Novecento Italiano» in Buenos Aires, Argentina, and Montevideo, Uruguay, in 1930. Although it did not travel to Brazil, it certainly allowed Margherita Sarfatti to visit the country for the first time, and make the first official contacts with Brazilian intellectuals and artists. Before arriving in Buenos Aires, she stayed in the country for about fifteen days, when she visited Rio de Janeiro, São Paulo, and some colonial cities in the state of Minas Gerais.5 But already in the mid-1920s, it is possible to trace the presence of some Brazilian artists in the Milanese context and in the group around Margherita Sarfatti. This is the case of Hugo Adami (who participated in the I Mostra del Novecento Italiano, at Palazzo della Permanente in Milan, in 1926) and Paulo Rossi Osir (graduated from the Accademia Brera in the 1910s, and who came back to Milan in 1927). When returning to Brazil in the mid-1930s, Rossi Osir identified a style of similar values with that of Sarfatti’s group, in a group of painters that shared studios in the so-called Santa Helena Building, in the heart of São Paulo, in 1934, and that had the participation of Italian immigrated artists such as Fulvio Pennacchi. The exhibition of works of these artists at the so-called Salão de Maio [May Salon] in 1937 was noticed and reviewed by critics Mário de Andrade and Sérgio Milliet.6 Milliet used a typical terminology of Italian art critique of the 1930s while defining Santa Helena Group (MAGALHÃES, 2010). In the first review written by Mário de Andrade, he named them «Família Artística Paulista», from a suggestion given by Paulo Rossi Osir, who saw them as the 5. On her visit to Brazil, see for instance Conhecida escriptora italiana chegou ao Rio, a bordo do ‘Conte Verde’. In: Correio da Manhã, August 21, 1930 – Fond Margherita Sarfatti, Museo di Arte Moderna e Contemporanea di Trento e Rovereto, Italy. 6. Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) is the most prominent modernist Brazilian critic, one of the leaders of the Semana de Arte Moderna [Modern Art Week] in 1922, in São Paulo, and whose critique has served as the foundation of the history of modern art in Brazil. Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) was, with de Andrade, also a prominent modernist critic, and key in the creation of the former MAM and other initiatives to fostering modern art. Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ... | 53 Brazilian version of the «Famiglia Artistica Milanesa» – expression borrowed from the exhibitions organized by fascist trade unions in Italy.7 Thus, the set of works bought in Italy for the former MAM bears a strait relation to São Paulo artistic milieu of the 1930s, and appears as a product of the exchanges that had been established in between the wars among modern Brazilian and Italian artists and critics. More precisely, it seems to have been conceived, even in immediate post-war context, taking as a reference Italian modern art private collections, which promotion was assured by a cultural policy undertaken by the minister of National Education in Italy, Giuseppe Bottai, from 1939 on (BOTTAI, 1939). This policy might be construed as a second phase of promotion of Italian modern art by the fascist regime – the first being marked by the Italian exhibitions abroad. In addition to the names, the works chosen for the Matarazzo Collections seem to reverberate this Italian modern art, for they seem to have been deliberately bought taking as guideline works and artists shown in official and international exhibitions organized and supported by the fascist regime. It is also noticeable the similarities of such works and others of the same artists that one could see, in those days, in prestigious Italian private collections, as in the case of the art dealer Vittorio Barbaroux, from Milan, the art dealer Carlo Cardazzo, from Venice, and men from the Italian industrial and business elite, whose activities as patrons of the arts actually helped out public collections in their country. At least seven paintings of the Matarazzo Collection come from the Carlo Cardazzo Collection. Cardazzo began to buy more systematically from 1931 onwards, when he became friends with painter Giuseppe Cesetti (FANTONI, 1996; BARBERO, 2008). He then gathered a remarkable collection with the help of Cesetti, who frequently acted as mediator. He was later to be awarded two prizes through the program created by Minister Giuseppe Bottai in 1941.8 Cardazzo’s collection is one of the various private collections to be shown at the Galleria d’Arte di Roma, between 1940 and 1942, such as the collection 7. For an analysis of the relations between the Santa Helena Group and the Novecento Italiano, see Tadeu Chiarelli,1995. 8. In the exhibition of private collections at Cortina d’Ampezzo and in the Galleria d’Arte di Roma. See Danka Giacon, 2005. The exhibition of his collection at the Galleria d’Arte di Roma was praised by Italian critique, and resulted in the publication of many articles and reviews. See, for instance, Attilio Crespi, 1941. 54 | Ana Gonçalves Magalhães of lawyer Rino Valdameri.9 The Galleria d’Arte di Roma had been created by the Sindacato Fascista degli Artisti [the national artists’ fascist union] in 1930 and its first artistic director had been Pietro Maria Bardi.10 Its aim was to promote Italian modern art through a program of exhibitions. A very important element to be discussed in the Matarazzo collections, as well as the context that they reflect, is what exactly is understood by Novecento Italiano. If Sarfatti had conceived a project of an artistic movement that would have characterized the New Italy and become the official art of the fascist regime, what happened was something else. From 1930s on, with the last exhibition organized by her in Buenos Aires, and after an intense campaign in various European cities, her project started to be attacked by the highest fascist elite. Sarfatti quickly lost terrain, first by being dismissed as an art critic from Mussolini’s newspaper, and slowly her participation in exhibition organization committees and all activities of the regime was denied. She ended up being totally silenced in Italy, and this period culminated with her exile between Montevideo and Buenos Aires, and her engagement in the Matarazzo acquisitions. At the same time, and in the context of the creation of the official exhibition of the fascist regime, the Quadriennale di Roma, as well as in the shows promoted from 1929 on by Italy abroad, the term Novecento Italiano seems to be used to designate the new Italian art, but in a much broader sense, which would include, for instance, the participation of the aerofuturists (of whom Filippo Martinetti continued to be the spokesman). In other words, what Margherita Sarfatti had conceived as Novecento Italiano was a structured-based painting, of very balanced composition, and that would, in any case, reflect this new painting long9. Also praised by the newspapers when opened in 1942. MAC USP “La Maddalena” (1929) by Piero Marussig, exhibited in this context, was to be chosen to illustrate an album of a panorama of Italian modern art, organized by the famous Galleria Il Milione. See Vittorio Barbaroux & Giampietro Giani, 1940, ill. 86. 10. Pietro Maria Bardi (1900-1999) was a journalist, gallerist and art critic. In 1946, he arrived in Brazil bringing two exhibitions of Italian art (Old Masters and modern art) in what seems to have been a post-war program of cultural affairs between Italy and Brazil, in the framework of an Italian-Latin American Committee. He was then invited to stay and help Brazilian media businessman Assis Chateaubriand to create MASP. Bardi had already travelled to South America in 1933, to foster the exhibition of MIAR architecture, in Buenos Aires. Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ... | 55 lasting relation with Paris as a major center of modernist ideas, even with avantgarde. For her, actually, the most important thing was the quality of the works, which could be retraced by the very relation of these artists with artistic tradition. The Matarazzo collections have some affinities with collections of Italian art donated to France in the 1930s (FRAIXE, 2010). Such donations were inaugurated by the exhibition “22 Artistes Italiens”, at the Gallery Georges Bernheim, in the summer of 1932, which resulted in the official donation by Milanese businessman Carlo Frua de Angeli of twelve paintings to the collections of the Musée des Écoles Étrangères Contemporaines (Jeu de Paume), in collaboration with gallerist and collector Vittorio Barbaroux (GEORGE, 1932). The Italian gallery in the museum, which was to be opened by the end of the year, had a Novecento group of works (Funi, Borra, Marussig, Sironi), and a group of the so-called Italiani di Parigi (such as Campigli, De Chirico, De Pisis and Tozzi). This donation seems to have opened a decade of activities of cultural exchanges between France and Italy, which focus was the debate around a common Latin root. Such debate was supported by the paradiplomatic organ Comité France-Italie. Created on the eve of World War I, and put to sleep, the Comité France-Italie reopened its activities in 1929 to favor the cultural approach between the two countries. They allowed to measure the role of the committee in the new cultural policy, and also to see how the notion of “latinité” was put to a test in a larger scale in the visual arts domain (FRAIXE, 2010). Apart from the similarities of such Italian modern art collections, a common ground between Brazil, France and Italy seems to be built through the notion of classic art of Latin roots, which revives the great tradition of Italian Renaissance art in the origin of modern art. In this framework the same networks acted in the three countries, and gave rise to fruitful artistic exchanges still to be studied. In addition to this, the Matarazzo acquisitions seem to follow the development of artists collected, as well as the updating of the trends in Italian modern art. For instance, works by artists Aligi Sassu and Renato Guttuso, of the Corrente group, were bought. The same updating is noticed when considering the works of the same artist in the collection, such as Felice Casorati and Mario Sironi. From Sironi, there is a Novecento painting, “I Pescatori” (1924), and his experimentation on mural painting and an approach to a more expressionistic language in “Invocazione” (1946). The original concept of Novecento Italiano, for Margherita Sarfatti, is jeopardized when there is a strong presence also of the artists of the so-called Scuola Romana, such as Mario Maffai and Scipione. 56 | Ana Gonçalves Magalhães It is worth mentioning here the one painting that reflects the very core of Sarfatti’s concept – at the same time very different of what the artist would do in the 1930s, although very much appreciated by Milanese collectors: “L’Indovina” (1924) by Achille Funi, which is very close to one of his paintings that belonged to the collection of Sarfatti herlself, “Donna velata” (1922). (MAGALHÃES, 2011) The influence of Sarfatti and her notion of Novecento italiano in the Brazilian artistic milieu must be reconsidered in the light of such new evidence. The making of the first nucleus of the former MAM collection seems to be more connected to the context of private collectionism in Italy, during the 1930s and early 1940s, and how they depicted a policy of promotion of Italian modern art. Moreover, such collection was gathered in a context in which diplomatic and political agendas were in action to legitimate a narrative of modern art so as to give support to the discourse of modernization (in the case of Brazil) and liberal democratic societies as a model for the Western World. This bears an apparent contradiction still to be studied. Another apparent contradiction is the fact that it was this collection of paintings, realized in the framework of the reevaluation of Realism and some elements of classic tradition, that established the criteria of documentation and records of the former MAM entire collection – which still dealt with categories created in the context of Beaux Arts, also reproduced in the major showcases of modern art during the 1950s. References AMARAL, Aracy A. (Org.). Perfil de um acervo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. São Paulo: MAC USP / TECHINT, 1988. 397 p. ______. MAC: da estruturação necessária à pesquisa no museu. In: ______. Textos do Trópico de Capricórnio: Artigos e Ensaios (1980-2005). São Paulo: Ed. 34, 2006, pp. 207-212. Vol. 2: Circuitos de Arte na América Latina e no Brasil. BARBAROUX, Vittorio; GIANI, Giampietro (Orgs.). Arte italiana contemporanea. Milão: Edizione del Milione, 1940. BARBERO, Luca Massimo. Carlo Cardazzo: Una Nuova Visione dell’Arte: catálogo. [Collezione Peggy Guggenheim, Veneza]. Milão: Electa, 2008. Catálogo de exposição. Brazilian modernist narrative, the making of São Paulo Museum ... | 57 BARBOSA, Ana Mae (Org.). MAC: Catálogo Geral das Obras, 1963-1991. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1992. BOTTAI, Giuseppe. “Fronte dell’Arte”. In: Le Arti, 1939, pp. 153-158. CANNISTRARO, Phillip; SULLIVAN, Brian. Il Duce’s other woman: The untold story of Margherita Sarfatti, Benito Mussolini’s jewish mistress, and how she helped him come to power. New York: William Morrow & Company, 1993. CHIARELLI, Tadeu. “O Novecento e a Arte Brasileira”. In: FFLCH USP. Revista de Italianística. São Paulo: FFLCH, ano III, no. 3, 1995, pp. 109-134. . A Arte, a USP e o devir do MAC. In: IEA / USP. Revista do Instituto de Estudos Avançados, 25, 2011, n. 73, pp. 241-252. CORREIO DA MANHÃ. Conhecida escriptora italiana chegou ao Rio, a bordo do ‘Conte Verde’. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 21 ago. p.3. Available at: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.aspx?bib=089842_04. CRESPI, Attilio. La Collezione Cardazzo (con 9 Illustrazioni). In: Emporium: Rivista Mensile Illustrata d’Arte e di Cultura, XLVII, jun. 1941, n. 6, XCIII, pp. 283293. FABRIS, Annateresa; OSORIO, Luiz Camillo (curadores). MAM 60: catálogo. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2008. 235p. Catálogo de exposição. FANTONI, Antonella. Il gioco del paradiso: La Collezione Cardazzo e gli Inizi della Galleria del Cavallino. Veneza: Edizione del Cavallino, 1996. FOUCAULT, Michel. L’Archéologie du Savoir. Paris: Gallimard, 2008. FRAIXE, Catherine. Les Artistes Italiens au Service de la Propagande Fasciste. Les Dons d’Oeuvres Italiennes aux Musées Français (1932-1936). Exposição. Bourges: École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, jan. 21 a fev. 20, 2010. GEORGE, Waldemar. 22 Artistes Italiens: catálogo. Galeria Berheim Jeune & Cie, 1932. Catálogo de exposição. GIACON, Danka. Cortina 1941: La mostra delle collezioni d’arte contemporanea. In: Rivista L’Uomo Nero: Materiali per la Storia delle Arti della Modernità, ano II, no. 3, set. 2005, pp. 51-68. GUTMAN, Daniel. El amore judío de Mussolini: Margherita Sarfatti, del fascismo al exilio. Buenos Aires: Lumière, 2006. LIFFRAN, Françoise. Margherita Sarfatti: L’Égérie du Duce. Paris: Éditions du Seuil, 2009. 58 | Ana Gonçalves Magalhães MAGALHÃES, Ana Gonçalves. “Margherita Sarfatti e o Brasil: A Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho enquanto Panorama da Pintura Moderna”. In: CONDURU, Roberto; SIQUEIRA, Vera Beatriz (Orgs.). Anais do XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro: UERJ/ FAPERJ, 2010, pp. 257-263 [publicação em CD-ROM]. ______. Achille Funi nella Collezione del MAC-USP. In: Rivista L’Uomo Nero: Materiali per una Storia delle Arti della Modernità. Milano, New Series, VIII, September 2011, ns. 7-8, pp.349-358. PALLUCCHINI, Rodolfo. Presentazione. In: XXVI Biennale di Venezia: catálogo. Venice: Biennale di Venezia, 1952. pp. XVIII-XXIII. Catálogo de exposição. VALSECCHI, Marco. Divisionismo italiano. In: XXVI Biennale di Venezia: catálogo. Venice: Biennale di Venezia, 1952. pp. 390-394. Catálogo de exposição. ZANINI, Walter. Catálogo Geral das Obras do MAC. São Paulo: Universidade de São Paulo / Museu de Arte Contemporânea, 1973. | 59 A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte e da curadoria CAUÊ ALVES* Resumo: O presente artigo se propõe a contribuir para a discussão do papel das instituições como museus, bienais e universidades na formação do profissional em crítica e curadoria, atualmente, no Brasil, bem como para o reconhecimento do aspecto pedagógico da arte. A partir do projeto curatorial da 8a Bienal do Mercosul, Ensaios de Geopoética, e dos trabalhos de Bruno Faria e Jorge Menna Barreto que integraram o 32o Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP, Itinerários Itinerâncias, trataremos da curadoria como formadora e da formação em curadoria. Desse modo, pretendemos introduzir uma reflexão sobre as possibilidades em aberto da formação acadêmica e não acadêmica na área de arte, crítica e curadoria. Palavras-chave: Curadoria. Arte Contemporânea. Formação. Projeto Pedagógico. Training in art criticism and curatorial design in Brazil and the educational role of art and curatorial design Abstract: This article aims to contribute to the discussion of the role of institutions such as museums, biennial shows and universities in the current professional training * Mestre e doutor em filosofia pela FFLCH-USP, é professor do Departamento de Arte da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras, e Artes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professor do bacharelado em artes visuais e do curso de pósgraduação em Museologia, Colecionismo e Curadoria do Centro Universitário Belas Artes; e professor colaborador do curso de Pós-Graduação da Escola da Cidade, Civilização América: Um Olhar Através da Arquitetura. 60 | Cauê Alves of art critics and curators in Brazil, as well as to promote recognition of the pedagogical role of art. Starting from the curatorial design of Essays on Geopoetics for the 8th Mercosur Biennial and the work of Bruno Faria and Jorge Menna Barreto, who showed in Itineraries, Itinerancies, the title of the 32nd Panorama of Brazilian Art at Museu de Arte Moderna de São Paulo, we shall address both, curatorial design as training, and training in curatorial design. Thus, we shall present a reflection on the open possibilities of academic and non-academic training in the fields of art, criticism and curatorial design. Keywords: Curatorial Design. Contemporary Art. Training. Pedagogical Project. I. No final do século XIX e início do século XX, fora da academia, a crítica exerceu um papel fundamental na consolidação da esfera pública da arte. Mais do que polemizar ou emitir juízos superficiais, a crítica de arte valorizou o confronto de ideias sem desconsiderar a pluralidade de posições. Assim, a crítica colocou as suas dúvidas, apostas e conseguiu refletir sobre os problemas de sua época elaborando as questões mais pertinentes para cada o momento. A crítica de arte no Brasil, desde os modernos, foi exercida predominantemente por literatos e livres pensadores. Escritores como Gonzaga Duque (18631911), Monteiro Lobato (1882-1948), Mario de Andrade (1893-1945), Manuel Bandeira (1886-1968) e Ferreira Gullar (1930) atuaram como críticos ao longo do século XX ao lado, entre outros, do físico Mario Schenberg (1914-1990) e do médico Clarival do Prado Valladares (1918-1983). O militante político Mario Pedrosa (1900-1981) foi o primeiro grande crítico de arte a se dedicar de modo mais sistemático à atividade. Em 1946, criou a seção de artes plásticas do jornal Correio da Manhã e, em 1957, instituiu a coluna de artes plásticas do Jornal do Brasil. Foi ainda diretor artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e organizou a 2ª e a 6ª Bienais de São Paulo. Desde então, a atividade de crítica de arte, assim como a de curadoria, vem sendo exercida por profissionais com uma formação diversa e híbrida. Filósofos, jornalistas, historiadores, artistas e bacharéis de um modo geral se dedicam à crítica e à curadoria em arte. É a variedade de pontos de partida, de formações e interesses o que permite que o ambiente seja de entrada livre. Embora recentemente tenham sido criadas oficinas, cursos de graduação e pós-graduação em A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte ... | 61 crítica e curadoria, para o seu exercício não há uma obrigatoriedade de formação específica, ao contrário do que se passa em áreas como medicina, direito ou engenharia. Assim como no caso do artista, qualquer um que se dedicar seriamente ao campo pode tornar-se crítico de arte ou curador. As instituições culturais como bienais, museus e centro culturais foram fundamentais na formação não apenas de diversos públicos para as artes, mas de profissionais de crítica e curadoria que apreenderam o ofício no contato direto com exposições de arte. A maioria dos agentes que atuam nessas instituições tiveram ao menos uma parte de seus estudos realizada de modo autodidata ou informal. Uma profissional respeitada no meio como Aracy Amaral (1930), no início da carreira, trabalhou como educadora nas primeiras Bienais de São Paulo. Esse foi o caso também de muitos outros críticos e curadores das gerações seguintes. As Bienais do Mercosul, por exemplo, foram fundamentais para a formação de centenas de profissionais do circuito das artes em Porto Alegre. II O papel formador da arte e da instituição foram colocados em primeiro plano na 8a edição da Bienal do Mercosul, em 2011. O curador geral José Roca (1962) formou uma equipe de curadores1 e convidou o curador Pablo Helguera (1971) como responsável pela integração entre o projeto curatorial e pedagógico. As premissas curatoriais foram implementadas de forma prática e teórica. Como membro da equipe de curadores, Helguera participou e colaborou ativamente dos encontros em que a curadoria selecionou trabalhos que se relacionavam com a discussão de Ensaios de Geopoética, que investigou as diversas formas que os artistas propõem para definir o território, a partir das perspectivas geográfica, política e cultural. A 8ª Bienal do Mercosul tratou das tensões entre territórios locais e transnacionais, entre construções políticas e circunstâncias geográficas. Segundo Helguera, nesse contexto o projeto pedagógico visa rever o campo da pedagogia na arte: 1. Integraram a equipe os curadores adjuntos Alexia Tala, Cauê Alves e Paula Santoscoy, a curadora a assistente Fernanda Albuquerque e a curadora convidada para a mostra Além Fronteiras Aracy Amaral. 62 | Cauê Alves Reconhecemos, assim, que a pedagogia das artes visuais – e em particular da forma como se aplica em museus e bienais – é uma ação que, tradicionalmente, limita a sua potencialidade, tanto no conteúdo quanto na prática. Em relação ao conteúdo, predomina ensinar arte para entender a arte e não para entender o mundo; em relação à prática, predomina o ensino como disseminação de informação e não como gerador de consciência crítica. Essa tendência de aplicação tradicional da educação também se contrapõe com a prática de vários artistas contemporâneos que, por conta própria, tem adotado elementos da pedagogia, tais como processo, pesquisa, colaboração e interpretação. (ROCA, 2011, p: 558) Muitos dos artistas da 8a Bienal do Mercosul produziram trabalhos processuais que exigem a participação do espectador. A obra apenas se completa com o processo de aprendizado e esse processo é a própria proposta artística. Ainda em 2011, o 32o Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP, Itinerários Itinerâncias, sob curadoria de Cauê Alves (1977) e Cristiana Tejo (1977), também trouxe no interior da própria exposição trabalhos que discutiam práticas pedagógicas. Dois artistas foram convidados para trabalharem e desenvolverem projetos em conjunto com o setor educativo do MAM-SP. Itinerários Itinerâncias foi uma plataforma de discussão e decantação de processos artísticos. Trata-se de uma reflexão sobre o estado atual da arte contemporânea que pressupõe, especialmente na última década, um tempo cada vez mais acelerado. O projeto curatorial infiltrou-se na espacialidade do museu, propondo um breve desnudamento da estrutura institucional a partir de diálogos mais abertos com todos os setores do MAM-SP, entre eles o educativo. A partir das noções de itinerário como um caminho percorrido rumo a um objetivo definido e de itinerância como desvio e trajetória em que a ênfase está no processo e no percurso, pretendeu-se refletir sobre o crescente deslocamento dos artistas e trabalhos de arte pelo globo e seus reflexos na arte chamada de brasileira. As questões centrais que orientaram a pesquisa para a mostra foram: Quando a itinerância decanta resíduos, restos, sobras e percursos? Quando a itinerância decanta tramas, redes, circuitos e colaborações? Quando a itinerância decanta trabalhos de arte e fatos estéticos? Em que medida a facilitação do deslocamento indiretamente proporciona uma homogeneização da produção contemporânea? Em que sentido o fluxo contínuo dilui algumas especificidades e identidades locais na arte contemporânea? A especificidade das artes visuais A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte ... | 63 se desfaz na medida em que o artista contemporâneo viaja constantemente, trabalha com toda e qualquer matéria, tema ou ideia, assim como dialoga com o cinema, o som, a literatura ou projetos educativos? Em vista dessas questões a curadoria investigou as noções de permanência e movimento na arte, bem como voltagens de tempo de ações artísticas e posturas diante da urgência de se estar sempre em deslocamento. Mapear algumas noções de circulação e deslocamento na prática artística, do corpo dos artistas e do pensamento permitiu uma visada ampla da multiplicidade da arte no Brasil. A ideia é que os artistas colaborassem para uma reflexão sobre( o papel e a importância do trabalho pedagógico em museus. Os educadores não foram compreendidos apenas como mediadores das proposições curatoriais e artísticas, prestadores de serviço e fornecedores de conteúdo para o público, mas como agentes fundamentais na reflexão sobre o lugar do artista, do curador, da instituição e do modo pelo qual a arte, ela mesma, possui um papel formador. O trabalho realizado por Bruno Faria (Recife, PE, 1981) se apropriou do recurso de áudio-guias comumente encontrado em museus e desenvolveu um novo sistema. Com a colaboração de outros artistas convidados pela curadoria para o Panorama, a proposta problematizou a mediação tradicional realizada por serviços pedagógicos em museus. O visitante que recorreu ao áudio-guia ouviu como introdução a seguinte frase: “Para dar início à visita guiada dirija-se à área externa do museu. Deixe-se ser guiado pela ordem do aparelho ou selecione cada faixa aleatoriamente. Boa visita!” E, assim, em vez de explicações didáticas sobre os trabalhos expostos, o público que requisitou o aparelho encontrava um conjunto de proposições artísticas que traziam indicações das mais diversas. Entre as 23 propostas gravadas estava a de Wagner Malta Tavares (São Paulo, SP, 1964): “Faça algo que lhe permita sentir o ar que lhe cerca: brincar em um balanço, num gira-gira... correr um pouco, andar de patins ou skate, sente num banco ou na grama e respire bem fundo, e se quiser ver o ar, compre um catavento.” Havia entre as proposições a indicação de Romano (Rio de Janeiro, RJ, 1969): “Caminhe pelo parque e ouça a natureza como uma orquestra. Diferencie os sons ouvidos em camadas. Atribua cores a elas”. Já Lourival Cuquinha (Olinda, PE, 1975) propôs: “Plante no parque a nota mais valiosa de sua carteira, reguea todo dia”. Além do áudio-guia, foram comissionados trabalhos de Jorge Mena Barreto (Araçatuba, SP, 1970) que também dialogassem com o educativo do museu. Um tapete no qual estava escrito a palavra “infixidão” recebia o público do museu. 64 | Cauê Alves A proposta materializa( a ideia de mediação e tradução verbal da mostra a partir de vários tapetes usados pelos educadores em atividades pedagógicas feitos com híbridos de palavras. Os termos fundidos criam novas possibilidades de relação com os trabalhos exibidos. Além disso, o artista montou no espaço expositivo um Café educativo, para o público descansar, consultar material sobre os artistas e conversar sobre a mostra com mediadores que servem gratuitamente café. No mesmo ano, a obra de caráter relacional foi escolhida pelo Conselho Consultivo e adquirida pelo MAM-SP para compor o seu acervo. Um novo projeto foi elaborado pelo artista e cada vez que o museu expõe o Café Educativo os educadores traçam, junto com o artista, estratégias para a ativar o trabalho. É a partir do contato com a arte e no interior dela mesma que o programa educativo do museu pode não apenas propor exercícios que aproximem os visitantes dos processos artísticos, mas reinventar sua prática de dentro dos trabalhos de arte. Deixar os limites entre as propostas pedagógicas e artísticas mais fluidos é mais do que reconhecer o caráter inventivo do educador, é também estreitar vínculos e abrir caminhos entre as proposições artísticas e as inquietações do público, assim como qualificar a participação nos trabalhos de arte e torná-la mais consciente. Experiências proporcionadas pelos trabalhos de arte sem dúvida colaboram na formação de um pensamento crítico. III Dos anos de 1970 para cá, apesar da evidente crise da crítica, o circuito da arte se tornou mais profissional, com especializações mais definidas e, com isso o campo da curadoria se consolidou. A crítica deixou de ser exercida predominantemente por literatos e livres pensadores e sobreviveu na academia, em teses, revistas especializadas e atividades universitárias. Mas, enquanto as instituições avançavam no amadurecimento e discussão do papel da curadoria, a universidade demorou até dedicar um espaço específico para a formação do curador. O MAM-SP, na gestão de Tadeu Chiarelli, criou, em 1997, um grupo de estudos de curadoria que foi importante não apenas como um exercício de novos modos de apresentar mostras de arte, mas também para uma reflexão interna do museu sobre o perfil de sua coleção e sua ampliação em arte contemporânea. É inegável que o circuito da arte cresceu exponencialmente desde os anos de 1980 devido ao florescimento de um mercado de arte contemporânea no Brasil. Mas, desde o início dos anos 2000, esse crescimento foi surpreendente. A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte ... | 65 Intercâmbios internacionais entre instituições, assim como o crescimento das feiras de arte pelo mundo, aceleraram um processo de trocas e de circulação da arte brasileira. No mesmo período, a economia se expandiu, assim como a rede de galerias comerciais e de espaços institucionais e independentes voltados para a arte. O público interessado cresceu tanto quanto se multiplicaram as exposições, pesquisas e mecanismos de incentivo e patrocínio em todo o Brasil. Com o sistema da arte mais sólido a tendência foi a profissionalização das galerias, dos espaços de exibição e das publicações sobre arte. Nesse cenário, é natural que cresça a demanda por cursos na área. Há cada vez mais a necessidade de profissionais especializados em todos os campos, desde os trabalhos mais técnicos como montagem de exposição e produção, até as áreas mais teóricas, ligadas à escrita, à teoria, à crítica e à curadoria. Em São Paulo, por exemplo, há cursos já tradicionais de artes visuais e humanidades, tanto em universidades privadas como em públicas (Centro Universitário Belas Artes, Faculdade Santa Marcelina, Fundação Armando Álvares Penteado, Universidade Estadual Paulista, Universidade de São Paulo), que formam profissionais que irão trabalhar não somente como artistas, mas também em áreas correlatas, como educação em museus, conservação, restauração, produção de mostras, crítica, pesquisa e curadoria. Existe uma série de disciplinas que propõem discussões sobre práticas curatoriais e exercícios críticos no campo das artes visuais contemporâneas. Algumas subsidiam a realização de projetos de curadoria em arte envolvendo pesquisa, seleção dos artistas, redação de texto crítico e montagem. Em geral, o aluno de artes visuais necessita de uma compreensão da complexa multiplicidade que configura o sistema da arte contemporânea e, assim, tem a oportunidade de ampliar seus horizontes de atuação profissional. Entretanto, foi na primeira década do século que surgiram cursos pioneiros de graduação voltados não somente para a história da arte, como também para suas relações com a crítica e a curadoria, uma vez que não havia no Brasil uma sólida formação universitária na área. O curso Arte: História, Crítica e Curadoria, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é voltado para a pesquisa, com grande carga humanística, que forma o profissional que irá atuar como crítico de arte, curador de eventos culturais em galerias, museus, centros culturais e institutos de arte; como consultor, assessor ou produtor de eventos artísticos e culturais. 66 | Cauê Alves A própria PUC-SP possui hoje um curso de pós-graduação lato sensu em Arte: Crítica e Curadoria, assim como o Centro Universitário Belas Artes, que possui o curso Museologia, Colecionismo e Curadoria. Também, o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), em 2013, abriu o curso: Curadoria em Arte. Esses são cursos para quem já possui uma graduação e está com interesse em se especializar na área, buscando uma fundamentação teórica e prática para atuar seja como crítico, seja como gestor ou curador independente e institucional. Há ainda uma porção de bolsas, prêmios, editais e residências voltados para jovens curadores e críticos, bem como workshops e oficinas livres sobre curadoria. Em 2012, a produtora cultural Expomus lançou o projeto Novos Curadores, um laboratório de criação e discussão sobre curadoria de arte contemporânea que teve como objetivo estimular o exercício e a reflexão de uma nova geração de curadores. Por meio de uma plataforma virtual, Novos Curadores tornou possível que interessados de diversas partes do Brasil pudessem enviar seus préprojetos para uma equipe de orientadores que selecionou e acompanhou o desenvolvimento das pesquisas. Ao final, um dos premiados realizou a exposição no Paço das Artes, em São Paulo, e no Santander Cultural, em Recife. A 31a Bienal de São Paulo realizou ao longo de 2014 o Workshop: Ferramenta para Organização Cultural, liderado pela equipe de curadores desta edição do evento. A procura de formação nesse campo é crescente. Quinze jovens foram selecionados de um universo de 300 inscritos interessados em investigar estratégias curatoriais com profissionais renomados internacionalmente. O MAM-SP, dando prosseguimento a sua tradição de formação em curadoria desde os anos 90, realizou em 2014 a mostra 140 Caracteres, fruto de um laboratório de curadoria ministrado por Felipe Chaimovich para vinte curadores. Trata-se de uma curadoria coletiva, assinada pelos alunos, que passaram por todas as etapas do processo de realização de uma mostra de acervo, com ênfase no projeto expositivo, na ação educativa, na captação de recursos e estratégias de marketing. O exercício da crítica e da curadoria, como ocorre em muitas outras profissões, necessita formação e pesquisa constantes. A curadoria é um campo interdisciplinar que envolve noções conceituais, reflexão, tomada de partido, arquitetura, produção, montagem de exposição, design de interiores e gráfico, contabilidade, iluminação, conservação, setor educativo, editoração e publicação. Por isso, qualquer exposição, por mais que tenha um responsável à frente, o curador, é sempre fruto de um trabalho de uma série de profissionais e reflete de certo modo o amadurecimento do meio da arte em que ela se realiza. A formação em crítica e curadoria no Brasil e o papel formador da arte ... | 67 Assim como a crítica de arte, a curadoria integra um circuito da arte maior e seu exercício exige constante posicionamento em relação a trabalhos de arte, defesa de ideias e apostas que envolvem riscos quando feitas ao calor da hora. Quanto mais maduro for o curador mais ele terá condições de resistir a interesses vários e, ao marcar posições, evitar a máscara da neutralidade. Uma de suas funções, mesmo que o espaço público da arte esteja cada vez mais diluído no mercado, é rever continuamente a hierarquia forjada pelo “consenso” do circuito e contribuir para assentamento de valores que nem sempre coincidem com os do mercado, especialmente naquilo que ele tem de passageiro e de modismo. E isso exige preparo. Se a crítica de arte pressupõe uma formação sólida e um espaço público que respeita as diferenças para o debate de ideias e posturas, ou seja, a diversidade e o conflito, a curadoria envolve negociações com as mais diversas instâncias institucionais (museus, galerias, centro culturais prefeituras, secretarias e ministérios da cultura), com artistas, família de artistas ou herdeiros, além de patrocinadores, produtores, colecionadores com os mais diversos interesses. Entretanto, não basta ao crítico, tampouco ao curador, emitir uma opinião, é preciso justificála e assim esclarecer seus critérios. Para isso, é necessário mais do que saber montar exposições, ter uma formação humanística, sensível às questões sociais, políticas, culturais e éticas. Na verdade, há pouco ou nenhum sentido na curadoria e na crítica que não possui embasamento histórico e teórico. Apesar disso, a experiência direta com o trabalho de arte jamais pode ser desprezada ou eclipsada pela teoria. A universidade é historicamente um lugar privilegiado em relação a sua autonomia e liberdade para desenvolver conhecimento. Por isso, o exercício crítico e a reflexão sobre arte, história, teoria e curadoria são campos férteis para ela. Entretanto, a academia poucas vezes possui a agilidade em acompanhar as manifestações contemporâneas ao calor da hora. Mas ela não pode deixar de valorizar a formação em curadoria e tampouco o aspecto formador da arte, da atividade crítica e curatorial. O desafio da universidade é conseguir se relacionar diretamente com o circuito da arte e realizar pesquisas rigorosas que a mantenha atualizada, fazendo com que o que ocorre para além de seus muros seja objeto de investigação que possa alimentar seus cursos. 68 | Cauê Alves Referências bibliográficas ADORNO, T. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2011. AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. ALVES, C.; TEJO, C. [et al.] Itinerários, Itinerâncias: 32o Panorama da Arte Brasileira. São Paulo: Museu de arte Moderna de São Paulo, 2011. FERREIRA, G. Crítica de Arte no Brasil: temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários para a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2013. ROCA, J.; HELGUERA, P.; TALA, A.; ALVES, C.; SANTOSCOY, P. ALBUQUERQUE, F.; AMARAL, A. 8a Bienal do Mercosul: Ensaios de Geopoética: Catálogo. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2011. | 69 Arte e mercado: alguns conceitos e valores EDSON LEITE* Resumo: Este artigo apresenta alguns conceitos relativos à arte e aos valores de mercado, institucional e cultural da arte; e também algumas das obras mais caras negociadas em acordos particulares e em casas de leilões como a Christie’s e a Sotheby’s, demonstrando que as obras transcendem sua propriedade de modo a criarem discussão estética, simbólica e ao mesmo tempo mercadológica, relacionando produção e consumo. Palavras-chave: Mercado de Arte. Valor Artístico. Valor de Mercado. Art and Marketing: some concepts and values Abstract: This article presents some concepts related to art and to market values, institutional and cultural art and features some of the most expensive works traded in private agreements and auction houses such as Christie’s and Sotheby’s, demonstrating that the works transcend their property so to create aesthetic, symbolic and while discussing marketing, linking production and consumption. Keywords: Art Market. Artistic Value. Market Value. A palavra mercado tem sua origem no latim “mercatus” que deriva do verbo “mercari”, que significa comprar. O mercado pode ser também entendido como um local no qual os agentes econômicos efetuam a troca de bens por uma unidade monetária ou por outros bens, a lei da oferta e da procura tende a equilibrá-lo. * Professor Titular da Escola de Artes, Ciência e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. 70 | Edson Leite Os mercados agrupam os vendedores interessados e facilitam o encontro com os potenciais compradores. Eles podem ser genéricos ou especializados, onde apenas um tipo de mercadoria é trocado. Segundo Norbert Elias (1995), os artistas sempre estiveram sujeitos a estruturas sociais que ele denomina configurações e que possibilitaram a realização do trabalho artístico em determinadas condições históricas e sistemas de interações. A autonomia da arte implicou na separação gradual da aristocracia, no surgimento de uma burguesia enriquecida e no desenvolvimento do mercado. O artista burguês, na sociedade da corte, trabalhava num contexto que não reconhecia a superioridade de seu valor artístico e a necessidade de sua independência material e estética. Desde o século XIX, o Estado assume a política que organiza e financia a arte e o artista. A ampliação do material da arte ultrapassa os limites do mundo das coisas e da autoexpressão do artista. Ocorre a expansão do universo expressivo e a possibilidade de cogitar-se uma arte não representativa. Falar em arte e mercado apresenta um antagonismo devido a valores de natureza completamente diversa: a arte é pura significação e o mercado a considera como simples mercadoria. Contudo, Um problema usual ao se iniciar o exame de uma obra de arte é fazer uma distinção entre seu valor estético e outras dimensões de valor que podem ser associadas ao objeto. Há o valor decorrente do trabalho despendido em sua manufatura, há o valor associado à sua utilidade, há o valor de mercado ou de troca, que se traduz em um preço (LINS, 2012, p. 103). Além do valor estético, portanto, há um valor de mercado para a arte. Este mercado realiza a [...] articulação cambiante de múltiplas e heterogêneas redes de compradores e vendedores profissionais, que buscam objetos únicos, raros, e insubstituíveis, um universo caracterizado pela combinação da assimetria de conhecimento sobre objetos e interlocutores, de uma hierarquia organizando as possibilidades de captação e de venda. [...] É um sistema de alianças, relativamente estáveis, rivais, baseadas na confiança e no segredo, portanto personalizado ao extremo, inclusive em relação à avaliação das peças, com cotações distintas para cada obra do mesmo artista (VEIGA, 2002, p. 197). Arte e mercado: alguns conceitos e valores | 71 A partir da sociologia da arte, não é possível falar em autonomia da arte, que existe em si mesma, por si mesma e para si mesma. Ela influencia e é influenciada tanto pelos artistas e especialistas quanto pelo público, pelos mediadores e pelas instituições – afinal, pela sociedade: “no campo artístico são operadas e revisadas as avaliações estéticas. No mercado se realizam as transações e se elaboram os preços” (MOULIN, 2007, p. 9). O mercado de obras de artes constitui uma esfera relativamente específica do mercado dos bens de (alto) luxo, cuja posse e modo de consumo produzem efeitos de distinção social (DURAND, 1989). A arte pode ser pensada como investimento, afinal: A obra de arte é um bem raro, durável, que oferece a seu detentor serviços estéticos (prazer estético), sociais (distinção, prestígio) e financeiros. Ela não fornece renda, mas, devido ao fato de ser um bem móvel, suscetível de ser revendido com uma eventual mais-valia, constitui um objeto potencial de investimento alternativo a outros ativos (MOULIN, 2007, p. 37). Segundo Greffe, “como toda atividade humana, a atividade artística precisa de recursos, e a maneira como estes são obtidos influencia tanto o modo de expressão dos artistas quanto suas carreiras” (GREFFE, 2013, p.19). Ainda segundo o autor: A invenção da arte levou os artistas a procurar um meio de vida fora dos circuitos econômicos já estabelecidos e a assumir os riscos de um mercado fundado na incerteza. Enquanto sua competência pôde ser útil a certos circuitos econômicos conhecidos, eles tiveram, a partir de então, de se fazer valer com base em motivações estéticas, e convencer aqueles que poderiam sentir a necessidade de os compensarem por isso, de maneira direta ou indireta (GREFFE, 2013, p. 337). O mercado de arte não possui estilos prediletos, adere ao que for mais rentável ou que garanta a distinção de classe. Esse mercado age sobre outras instituições, como museus, universidades, e sobre a mídia, além de influenciar cada vez mais a produção dos artistas (MOULIN, 2007). Como já observamos em outro estudo: 72 | Edson Leite Qualquer mercado vive de oscilações, mas há uma curva constante no mercado de arte que leva à objetivação dos negócios. O mercado de arte é muitas vezes irracional e frágil, onde o valor da informação, especialmente da informação midiática, provoca muitas reações. Este mercado está capitalizado por grandes galerias que estabelecem os primeiros postos nos rankings mundiais. Mas será que somente obras catalogadas e incorporadas a este sistema das grandes galerias têm valor? E qual é esse valor? Na prática, os museus costumam comprar obras de um artista quando ele está em alta. Já os colecionadores compram antes, para ganhar mais dinheiro (LEITE; CAPONERO, 2011, p. 71). A incerteza do valor artístico das obras de arte deve ser certificado por especialistas que participam do mercado de arte e das instituições de arte. O paradoxo do artista é que, hoje, após ter reivindicado a autonomia de sua arte, ele seja levado a valorizá-la junto a forças a priori anônimas, aleatórias e muitas vezes difíceis de compreender. “O surgimento de um mercado de arte iria consagrar definitivamente a noção de artista e separá-la da de artesão. A consequências paradoxal disso será ‘libertar’ os artistas, ao mesmo tempo que os ‘fragiliza’.” (GREFFE, 2013, p. 68). O mercado de arte se vale de várias instituições. Além dos artistas, ele inclui os galeristas, marchands, críticos, curadores, diretores de museus, colecionadores e consultores, museus, escolas de arte, galerias, leilões, centros culturais, feiras de arte, bienais e considera, também, os prêmios dos artistas. A reprodução técnica também afetou a autenticidade das obras de arte, tornando uma tarefa quase impossível a determinação da cópia e do original nas artes reproduzíveis. As obras não mais carregam em si as marcas da história e das mudanças ocorridas, perdendo o “aqui e agora” de sua produção e sua autenticidade como objetos artísticos (BENJAMIN, 1980). Na atualidade, a falta de normas precisas e de regras estéticas leva a uma grande incerteza sobre a qualidade plástica das obras de arte. A arte é definida como algo que um artista produziu e o artista é definido como aquele que produz obras de arte (MOULIN, 1997 e HEINICH, 1997). Qualquer coisa pode, em princípio, entrar na esfera da arte, embora mais do que nunca, a arte se constitua como uma esfera à parte, com pessoas que a produzem, instituições que a fazem circular e seus críticos (RANCIÈRE, 2008). O processo mercantil da arte inclui o artista, mas incorpora um sistema de corretagem formado por agentes e marchands, um sistema de sinalização e Arte e mercado: alguns conceitos e valores | 73 atribuição de valor formado por críticos e curadores e um sistema de financiamento formado por proprietários, investidores e mecenas. Neste processo, a crítica deve desenvolver uma compreensão clara do significado da arte e de sua relevância para a vida social, utilizando abordagens e ferramentas de análise que legitimem suas avaliações. As fontes para o consumo da arte perpassam os leilões, galerias, mostras, museus, colecionadores (proprietários), feiras, compras diretas com os artistas, reproduções e cópias, livros, revistas, catálogos e a Internet. O mercado primário de arte é constituído pelas galerias ou agentes que representam os artistas e funciona como mecanismo de identificação de artistas a serem “lançados”. O mercado secundário é aquele das obras recolocadas em circulação (leilões) e funciona como sistema especulativo que objetiva aumentar a renda de quem é dono das obras (GREFFE, 2013). As galerias atendem, em sua maioria, à demanda de quem já acompanha o circuito das artes. Para quem não é do meio e não sabe por onde começar existe a ideia de que é preciso muito dinheiro. A avaliação de objetos artísticos pode ser afetada por jogadas especulativas de marchands, mudanças de gosto do público, crises econômicas etc. O valor artístico de uma obra de arte e o seu valor de mercado não são, necessariamente, coincidentes. Greffe esclarece que: Com efeito, o modo como os preços são fixados não corresponde nem um pouco à forma como o mercado pretende fixá-los para garantir um ajuste tão racional quanto possível da oferta e da procura. Quando os galeristas fixam o preço, eles não evocam fatores objetivos, mas, ao contrário, ‘histórias’ específicas que levam a justificar um preço dado por toda uma série de elementos contingentes à obra, ao artista e mesmo ao comprador. (...) Assim, cada vez é mais difícil explicar as diferenças de preço entre as obras, o que faz com que o mercado de leilões empregue dados bastante obscuros. (GREFFE, 2013, p. 159-160). Galerias virtuais ganham força nos dias atuais: é fácil comprar pela Internet. Contudo, é bem mais difícil analisar uma obra original na tela do computador, falta precisão. Este tipo de serviço é indicado apenas para obras mais baratas ou múltiplas. Uma coleção constituída em leilões costuma custar muito mais caro. Os leilões não costumam trabalhar com artistas pouco conhecidos. Para adquirir nomes novos, há a necessidade de frequentar mostras e galerias. O sucesso de um 74 | Edson Leite leilão costuma estar vinculado à confiabilidade ou tradição da casa de leilões, à qualidade das obras, ao patamar do preço inicial das obras e a uma boa divulgação realizada para o público alvo. Entretanto, cumpre ressaltar que não há uma lógica confiável nos mercados de arte: tudo se resolve dentro de uma dinâmica que mistura desejo e oportunidade. Quando há folga financeira, as pessoas são menos seletivas. Em épocas de recessão, a tendência é que os colecionadores fiquem mais seletivos e prefiram comprar obras de artistas mais reconhecidos. Aos museus, corresponde o dever de possibilitar ao público o acesso fundamental à arte de diferentes épocas, através da preservação dos objetos, formação de acervos de estudo, pesquisa e exposição. Devem incluir a arte de nosso tempo, oferecendo a oportunidade do diálogo com os artistas. Algumas obras possuem valor inestimável, como é o caso, por exemplo, da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Exposta como principal atração no Museu do Louvre, em Paris, é praticamente inconcebível que ela venha a ser vendida. Mas se o fosse, qual seria o seu preço? Seria possível dimensionar o seu valor de mercado? A história do autor, da obra e sua popularidade mundial fariam, provavelmente, que a sociedade se rebelasse contra uma negociação financeira envolvendo a Mona Lisa. Entretanto, a maior parte das obras de arte pode fazer parte do mercado. No próximo, item destacaremos algumas das obras mais caras já negociadas. Obras de arte que atingiram os maiores valores no mercado Apresentamos, a seguir, algumas das obras que foram negociadas pelos maiores preços nos últimos anos.1 Cumpre ressaltar que algumas transações são realizadas de forma privada, sem que se tenha conhecimento dos valores atingidos. Contudo, especialmente as obras adquiridas em leilão, têm seus valores divulgados. Uma obra de arte, constituída de materiais muito baratos – como o tecido e a tinta – mas utilizados com a criatividade e a técnica humana, pode chegar a custar milhões de dólares, embora muitas vezes sem qualquer possibilidade de retorno financeiro ao artista criador, como acontece quando se comercializa obras de autores falecidos, geralmente os mais valorizados (LEITE; CAPONERO, 2011, p. 71). 1. Informações coletadas até 7 de setembro de 2014. | 75 Arte e mercado: alguns conceitos e valores A obra de arte mais cara vendida no Brasil, até o momento, foi o painel composto por três telas de 89 cm de largura por 130 cm de comprimento, em óleo sobre tela, intitulada Sol sobre paisagem, de autoria de Antonio Bandeira (* Fortaleza, 1922 + Paris, 1967). Bandeira foi pioneiro do abstracionismo informal na pintura brasileira e, ainda jovem, fez parte do Movimento Modernista de Fortaleza. Viveu algum tempo no Rio de Janeiro e decidiu morar em Paris, onde sua carreira alavancou. Realizou diversas exposições na Europa e no Brasil durante os anos 40 e 50 e também produziu aquarelas. Sol sobre paisagem foi pintada em 1966, em Paris, um ano antes de sua morte. Antônio Bandeira: Sol sobre paisagem Sol sobre paisagem foi leiloada pela Bolsa de Arte de São Paulo, em dezembro de 2010. Foi arrematada por 3,5 milhões de reais por um colecionador que não quis se identificar. O comprador da obra ainda desembolsou 5% do valor do lance com despesas do leiloeiro, resultando, no total, em uma soma de três milhões seiscentos e setenta e cinco mil reais. Antes da obra de Antonio Bandeira, o objeto artístico mais caro vendido no Brasil foi um quadro de Frans Post (1612-1680), que foi vendido por 2 milhões de reais. Adriana Varejão: Parede com Incisões a La Fontana II 76 | Edson Leite Entre as obras mais caras de artistas nacionais vivos, vendidas no exterior, está a obra Parede com Incisões a La Fontana II, da artista carioca, Adriana Varejão, arrematada em leilão da Casa Christie’s de Londres, no ano de 2011, pelo valor de 1,1 milhão de libras. A recordista de preços entre os artista brasileiros vivos é outra artista carioca, Beatriz Milhazes, com três obras em destaque: O Mágico, vendida em leilão pela Sotheby’s (New York), em 2008, por 1,05 milhão de dólares; O Elefante Azul, vendido em leilão pela Christie’s (Londres), em 2012, por 1,46 milhões de dólares e Meu Limão, vendido em 2012 pela Sotheby’s (New York), por 2,1 milhões de dólares. Beatriz Milhazes: O Mágico Beatriz Milhazes: O Elefante Azul Beatriz Milhazes: Meu Limão Das negociações mundiais reveladas ao público, as duas obras mais caras foram o N5 – 1948, de Jackson Pollock, vendida por David Geffen para David Martinez, em uma transação particular, pelo valor de 140 milhões de dólares, e a obra Três estudos de Lucian Freud, de Francis Bacon, que alcançou o maior valor já registrado para uma obra de arte em um leilão. Antes mesmo do leilão começar, o tríptico já era recordista com o lance mínimo de 85 milhões de dólares. Esta série de pinturas a óleo, em que Bacon retratou o amigo Lucian Freud, Arte e mercado: alguns conceitos e valores | 77 também artista plástico, em 1969, alcançou o valor final de 142,4 milhões de dólares, no ano de 2013, em leilão da Christie’s (New York). Jackson Pollock: N5 – 1948 Francis Bacon: Três estudos de Lucian Freud 78 | Edson Leite Referências bibliográficas BENJAMIN, Walther. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo: Perspectiva, 1989. ELIAS, Norbert. Mozart: sociologie d’um génie. Paris: Le Seuil, 1995. GREFFE, Xavier. Arte e mercado. São Paulo: Iluminuras; Itaú Cultural, 2013. HEINICH, Nathalie. La sociologie de Norbert Elias. Paris: La Découverte, 1997. LEITE, Edson; CAPONERO, Maria Cristina. Paradoxos entre arte e mercado. In SALZEDAS, Nelyse; NICOLA, Ricardo (Orgs.). Poéticas Visuais: Arte & Tecnologia, v. 2. Bauru: FAAC; UNESP, 2011, p.66-81. LINS, Bernardo E. Elementos de economia política na crítica de arte. Cadernos Aslegis, n. 46, p. 99-124, maio/ago, 2012. MOULIN, Raymonde. O mercado de arte, mundialização e novas tecnologias. Porto Alegre: Zouk, 2007. RANCIÈRE, Jacques. Le spectateur émancipé. Paris: Fabrique, 2008. VEIGA, Roberto de Magalhães. O mercado de arte na visão de um Marchand. ALCEU – v. 2, n. 4, p. 191-203, jan/jun, 2002. | 79 O museu de arte e o contexto das imagens atuais1 CARMEN S. G. ARANHA * ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA ** Resumo: O museu de arte tem como desafio mediar os fios e as tramas que envolvem a ordem do conhecimento e a intensa profusão de imagens – característica do mundo contemporâneo. Como os museus de arte podem lidar com imagens, inscritas em obras de arte, objetivando auxiliar a construção do conhecimento artístico atual? A partir de uma reflexão que procura fundamentos 1. Artigo originalmente apresentado para o livro “Educação da Arte na Contemporaneidade”. Universidade Federal do Espírito Santo. No prelo. ** Professora Associada do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade de São Paulo e Livre Docente em Teoria e Crítica de Arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Atuou nos Ensinos Fundamental e Médio como professora de Artes Visuais e História da Arte durante dezoito anos. Foi professora da Fundação Armando Álvares Penteado, entre 1982 e 1993, na cadeira de Metodologia do Ensino para Professores de Arte. Atualmente, coordena o Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. É autora do livro: Exercícios do Olhar: Conhecimento e Visualidade (UNESP, FUNARTE, 2008). ** Graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (1995), Mestre em Ciências da Comunicação (2003) e Doutora em Artes (2008) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Atualmente é Especialista em Cooperação e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em História da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: museus, arte, história da arte, arte brasileira, história e crítica de arte. É autora do livro: Schenberg: Crítica e Criação (EDUSP, 2011). 80 | Carmen S. G. Aranha e Alecsandra M. de Oliveira teóricos, o presente artigo discute a profusão de imagens na atualidade e como a contextualização do conhecimento pode se dar com o museu de arte, visto aqui como ferramenta para o desenvolvimento de pensamentos e percepções. Nessa tarefa, recorre-se aos estudos de Edgard Morin, Marilena Chauí e, particularmente, Merleau-Ponty. Palavras-chave: Museus. Arte. Contexto. Conhecimento. The art museum and the contemporary images in context Abstract: The art museum’s challenge is to mediate the wires and the plots involving the order of knowledge and the intense profusion of images - characteristic of the contemporary world. How art museums can handle images inscribed in works of art, aiming to build current artistic knowledge? From a theoretical point of view, this article discusses the profusion of nowaday images and the contextualization of contemporary knowledge through the art museums, seen here as a tool for the development of thoughts and perceptions. In this task, it is through the study of Edgard Morin, Marilena Chauí and particularly Merleau-Ponty. Key words: Museums. Art. Context. Knowledge. Imagens, milhões de imagens, eis o que eu devoro... Já procurou abandonar esse vício com morfina? William Burroughs O museu de arte faz-nos refletir sobre os sentidos das imagens e reconstrói os fios e as tramas da ordem do conhecimento artístico. Merleau-Ponty É da natureza da arte visual desvelar o contexto no qual foi produzida. Isto se deve ao fato de que a arte é uma linguagem, ou seja, é a construção de uma ordem do conhecimento com a qual é possível se ter a experiência da cultura. Talvez, essa construção seja uma movimentação do espírito humano na busca de um “lugar visual”, no qual imagens, milhões de imagens, apreendem articuladamente as visualidades do mundo (CARMAN, T. et al & HANSEN, M.B.N., 2006, p. 151). Seria o consumo das imagens, o “vício da morfina” dos dias atuais? A arte não deve entorpecer como os “vícios”, nem as imagens que a nutrem devem O museu de arte e o contexto das imagens atuais | 81 se enfraquecer. Ao contrário, a arte e as imagens potencializam o conhecimento. O contato com o objeto artístico provoca, instiga, estimula os sentidos; subverte a ordem pré-estabelecida, sugerindo novos modos de organização da vida e do mundo. Estabelecer um conceito com parâmetros precisos de interpretação para a obra de arte subverte a ideia que as imagens ali inscritas podem estabelecer o “motivo central” de um pensamento: [...] como numa tapeçaria, numa renda, num quadro ou numa fuga, nos quais o motivo puxa, separa, une, enlaça e cruza os fios, traços e sons, configura um desenho ou tema a cuja volta se distribuem os outros fios, traços ou sons, e orienta o trabalho do artesão e do artista. (CHAUI, 2002, p. 28) Assim, o “motivo central” de um pensamento nos permite indicar que imagens, assim configuradas, podem se transformar no ponto de mudança de forças invisíveis para coisas visíveis (ADRIANI, p. 10-12). A obra de arte, pendente desse processo, situa a presença genuína da linguagem artística e assim sendo nos acessa aos sentidos da cultura, também, refletidos nos códigos artísticos inscritos nas matérias plástica ou virtual. Isto quer dizer, então, que procuramos obras e imagens que criem contextos culturais e, sob essa perspectiva, o “contexto torna-se o tecido de correlações”, no qual as coisas surgem à medida que nossa vivência se apropria desses objetos estéticos para refundar nosso conhecimento do mundo. Metaforicamente, os museus de arte estão imersos nesse tecido de correlações e, desse modo, adquirem a função de reflexão e reexame deste panorama da cultura atual. * Ao colocarmos lado a lado, por exemplo, as obras de Velásquez e Picasso, ambas nomeadas como Las meninas, vemos que as mesmas imagens do tema central situam contextos culturais específicos das épocas em que foram criadas. Picasso, em 1956, ao se apropriar da obra de Velásquez, de 1656, a recria num cubismo tardio, mas com todos os elementos formais pertencentes à arte moderna cubista. 82 | Carmen S. G. Aranha e Alecsandra M. de Oliveira Velásquez, Las Meninas, 1656-1657. Picasso, Las Meninas, 1956. Então, ao criar trocas “dentro de um organismo maior”, podemos dizer que o fenômeno da criatividade artística é diagramado, de algum modo, no conhecimento e, uma vez assim compreendido, passeia com suas sínteses culturais, materializando uma etérea linha decisiva entre fato e essência. A contextualização do conhecimento, frente a um recorte da cultura, apresentada por meio de obras de arte, não deveria se dirigir à explicação de correlações, ponto por ponto, entre obras, imagens e discursos históricos, O museu de arte e o contexto das imagens atuais | 83 sociológicos ou antropológicos. Ao contrário, “contextualizar” é buscar um “campo para desenvolver todos os nossos pensamentos e nossas percepções” (M ERLEAU-P ONTY, 1967, p. 166-9) e não um mundo de objetos, do qual simplesmente nos apropriamos e nos servimos deles para explicações diretas que, inclusive, não nos oferecem nenhuma interrogação mais profunda. Sob esse signo, o museu inspira ser um lugar para questionamentos e produção crítica, passando a ser um espaço para a experiência do fenômeno da vida. O fenômeno da vida aparece quando a extensão de um corpo, pela disposição de seus movimentos, e pela alusão que cada um faz a todos os outros, volta-se sobre si mesmo e começa a expressar alguma coisa, a manifestar um interior sendo exteriorizado. (Idem, 1967, p. 162) Ao falarmos sobre a construção do conhecimento artístico, sabemos que um conhecimento formal, arduamente aprendido na militância intelectual, muitas vezes, nos aprisiona, penetra em essências e passa a comandar nossas percepções: só se vê o que a razão permite ver. É neste instante que a arte pode começar a interferir como um ponto de fuga na cadeia de conhecimento, não por ser uma “desrazão”, mas pelo assombro que provoca. A função da arte na cultura sempre foi dar vazão e voz àquele “nada” que, entretanto, é “tudo” e não encontra, por isso, expressão na racionalidade vigente, nessa sintaxe da ordem prática que, às vezes, inutilmente se propõe a explicá-la. Segundo Morin (2000, p. 22), “os sistemas de ideias que embasam nosso saber, com sua linguagem de significados lógicos, são resistências à informação”. São proteções que nos convêm: “[...] afastamos os saberes que nos refutam com argumentos contrários” (MORIN, 2000, p. 23). O pensador nomeia esse modo de se aproximar do mundo como [...] a “racionalidade” que se transforma em “racionalização”, que verifica o caráter lógico da organização das teorias, a compatibilidade entre ideias que a compõem, suas asserções e dados empíricos aos quais se aplica. “Como é perfeita, opera em um ir e vir entre o real e a lógica, fundamentada na dedução ou na indução, com bases duvidosas, às vezes, com partes suprimidas”. (Idem). O objeto artístico contemporâneo, por exemplo, foge dessa dinâmica; questiona a organização das teorias; cria incompatibilidades indissolúveis entre ideias; não permite a operação de ida e volta entre o real e o lógico. Destituída 84 | Carmen S. G. Aranha e Alecsandra M. de Oliveira de aura da eternidade, do sentido de unicidade e durabilidade, a arte atual chama à participação do espectador, tornando insuficiente a contemplação à distância. Cabe ao museu, nesse contexto, estimular o conhecimento sobre a produção artística, assumindo sua condição de lócus de criação e de reflexão sobre a arte, discutindo suas formulações, sua manutenção e transformações (MENESES, 2006, p. 32). Mas como nos aproximar desses fenômenos quando falamos de cultura artístico-visual? Como os museus de arte podem lidar com obras e imagens objetivando auxiliar a construção do conhecimento artístico atual? Um dos caminhos é reconhecer que a imagem, fundamento do mundo contemporâneo, tem sido infinitamente redesenhada, das suas primeiras transformações de forças invisíveis para coisas visíveis, quer seja pela apropriação fácil de imagens de segunda geração,2 quer seja pela sua rápida aplicação em campos profissionalizantes ou, ainda, pelos recortes criados e recriados a partir dos objetos considerados culturais. Hoje, podemos apontar o enfraquecimento da percepção visual da “imagem de primeira geração” e a assimilação de “imagens de segunda geração”. A partir da emergência da arte moderna, as imagens se disseminam excessivamente e necessitam de uma ordenação que, como já apontamos aqui, não é necessariamente regular ou linear. A proliferação do uso da fotografia, por exemplo, contribui para a formação do novo sistema visual, registrando o instante. As vanguardas históricas e, mais tarde, a arte contemporânea estão envoltas nesse movimento acelerado de proliferação de imagens. Outra bifurcação – nesse caminho de reconhecimento da cultura artística contemporânea e suas imagens – está na discussão que leva em conta que, a partir dos anos de 1980, além da suspensão de certos significados, “as forças culturais mais coesas também se dispersaram pela importância dada às impressões transformadas em linguagem significativa”, ou seja, a construção social tornou2. O termo “imagem de primeira geração” é usado aqui em paralelo à definição do artista Joseph Beuys em relação à linguagem do desenho: “desenho é a primeira visualidade do pensamento, transformado no ponto de forças invisíveis para coisas visíveis” (Adriani. Op. Cit. p. 10-12). Há uma estrutura de pensamento para ser reconhecida na imagem. Por outro lado, as “imagens de segunda geração” são aquelas cuja estrutura de “primeira visualidade do pensamento” se perde por meio das inúmeras vezes que são redesenhadas. O museu de arte e o contexto das imagens atuais | 85 se um discurso de linguagens histórica, sociológica ou antropológica, muito mais do que uma construção gerada em um mundo vivido (Idem). Nesse mesmo momento, surge a “imagem por excelência” (MORIN, 2000, op. cit.) que, aos poucos, visa substituir a significação linguística pela visual sem, entretanto, decompor os mesmos vazios: jornais, televisão, a própria cidade e outros meios de veiculação de imagens. A cultura atual se define – como num passe de mágica – como “cultura de imagens”. Sem a temporalidade para refletir sobre essas afirmativas, as imagens se transformam em apreensões imediatas e sem número de relações nelas submergem. Por outro lado, ocorre uma síntese geral da cultura de visualidade deslocada do olhar. As cifras da vida diagramadas no corpo cultural (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 132) são, apenas, colagens de seus próprios pedaços. Nas sucessões vertiginosas, como diz Sarlo (2004, p. 53-68), “a compreensão não está aparelhada para essa veloz e dupla decodificação simultânea de áudio e vídeo”. Segundo a autora, a sociedade veicula imagens, mas imagens sem intensidade, sem intenções. “A imagem não provoca espanto nem interesse, não resulta misteriosa nem particularmente transparente” (Idem). * Cabem às mediações ocorridas nos espaços dos museus romperem com essa apatia provocada pela profusão de imagens de segunda geração e não se perderem na vontade de construção apenas do conhecimento formal (aquele resistente à informação). Cabe a valorização da liberdade das percepções desregradas presentes no objeto artístico, cumprindo, assim, funções ligadas à valorização do indivíduo, à abertura para o desenvolvimento de suas potencialidades e à construção de um conhecimento sensível. O exercício do olhar criador tece o conhecimento visual e o traz à luz, no seu sistema de correlações e nas tensões recolhidas nas imagens das obras de arte e nas imagens veiculadas pela chamada cultura de visualidade atual. Ao compreendermos que há uma visualidade no mundo, um lugar de passagem de forças invisíveis para coisas visíveis como dissemos, e que as imagens atuais significativas advém de processos criadores contextualizados culturamente e interpretados com as materialidades das artes visuais, sabemos que um processo de conhecimento está sendo ordenado, certamente mais orgânico que a leitura da imagem, ou seja, à sua adequação a um texto: para além de qualquer enunciado, há o cogito tácito (CARMAN, T. et al, 2006, op. cit.) que a arte pode, em uma espiral 86 | Carmen S. G. Aranha e Alecsandra M. de Oliveira de aproximação, resgatar a ordem de visualidades apreendidas nos fenômenos vividos no mundo. Parte da investigação sobre o olhar criador funda-se na procura de correlações que contribuam para a formação do conhecimento visual e possam ser vistas nos processos do fazer artístico. O que interessa agora é o olhar que se aproxima dos códigos da visão e, com eles, tece correlações que se aproximam da cultura de visualidades. Esse olhar, com múltiplas dimensões, situa-se longe dos sistemas e se aproxima de um pensar que, por sua vez, sacode as falsas evidências abstratas de qualquer observador absoluto (CHAUI, 2002, op. cit.), porque, se os conceitos podem facilmente virar simulacros e esconder a motivação que desvela a dimensão da ideia, o olhar pode situar as cifras que recortam o mundo e dão nascimento às formas criativas da cultura, na matéria plástico-visual da obra de arte. Portanto, nos museus de arte, sobretudo, os dedicados à arte contemporânea, é necessário um olhar que pode tudo ver e desmanchar os pensamentos tecidos somente com a razão (Idem). Um olhar-pensar puxando seus fios com argumentos sobre não coincidências e “irrazões” para olhar as coisas do mundo ao invés de lê-las. Um olhar que tece um pensamento visual – um contexto. Referências bibliográficas ADRIANI, Gotz. Joseph Beuys: Drawings, Objects and Prints. Stuttgart: Institute for Foreign Cultural Relations. Catálogo. ARANHA, Carmen S.G., BRITO, Amauri Costa & ROSATO, Alex. “Cultura de visualidades: aproximações da linguagem artístico-visual”. In: Espaços da mediação. Organizadoras: Carmen Aranha e Kátia Canton. São Paulo: PGEHA / Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2011. ARANHA, Carmen S.G. [BRITO, Amauri C., ROSATO, Alex & NICOLAU, Evandro C. (Assistentes de pesquisa)]. Exercícios do Olhar: Conhecimento e visualidade. São Paulo: UNESP/ Funarte. 2008. CÂMARA, José Bettencourt da. Expressão e contemporaneidade: A arte moderna segundo Merleau-Ponty. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 2005. CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: Ensaios sobre a obra de MerleauPonty. São Paulo: Martins Fontes. 2002. O museu de arte e o contexto das imagens atuais | 87 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as coisas: Uma arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes. 1981. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática. 2004. MENESES, Ulpiano Bezerra. “Imagem e História”. Aula magna. Programa de PósGraduação Interunidades em Estética e História da Arte. São Paulo: MAC USP. 07/03/2006. MORIN, Edgar. Os Sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez Editora. 2000. MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naif. 2004. MERLEAU-PONTY, M. Phenomenology of perception. London, Routledge & Kegan Paul Ltd. 1978. MERLEAU-PONTY, M. The structure of behavior. Boston: Beacon Press. 1967. OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Poética da Memória: Maria Bonomi e Epopeia Paulista. São Paulo: ECA USP, 2008 (Tese de doutoramento). OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Schenberg: Crítica e Criação. São Paulo: EDUSP, 2011. SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: Intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2004. | 89 Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas KATIA CANTON* Resumo: O artigo apresenta o pensamento de Roland Barthes em relação à invenção de conceitos capazes de “furar” a tendência fascista do texto. Esse pensamento é transposto para a possibilidade da criação de uma leitura da narrativa na arte contemporânea, particularmente aplicada aos contos de fadas. Palavras-chave: Narrativa. Arte Contemporânea. Contos de Fadas. Interdisciplinaridade. Liberdade. Oblique Narratives: Roland Barthes, contemporary art and fairy tales Abstract: The text presents the ideas of Roland Barthes concerning the invention of language and theoretical concepts that can create new meanings. I propose the application of these ideas vis-à-vis the use of narrative in contemporary art, particularly fairy tales. Keywords: Narrative. Contemporary Art. Fairy Tales. Interdisciplinarity. Freedom. * Professora Livre-docente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Docente credenciada no Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA USP). 90 | Katia Canton Introdução: invenção e liberdade de pensar de Roland Barthes Por que começar com Roland Barthes? Para resumir uma longa história, vale a pena pontuar a aula inaugural ministrada por ele, na cadeira de Semiologia Literária, no prestigiado Collège de France, em 7 de janeiro de 1977, mais tarde transformada em livro. Ali, o pensador francês alegava publicamente que era preciso criar mecanismos capazes de sabotar a tendência fascista do texto. O fascismo, no entanto, não estaria no ato de se impedir de dizer, mas, sim, em obrigar a dizer. Para Barthes, como contraponto, seria preciso criar uma linguagem crítica da própria linguagem, capaz de trapacear esse fascismo: “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo de literatura”. (BARTHES, 1988. p.14) Para o autor, a importância da literatura estaria no fato de ela exercer uma “função utópica”, uma vez que consiste num discurso teoricamente vindo de fora do poder. Para ele, “a ciência é grosseira e a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa” (p. 19). A Invenção de um conceito: narrativas enviesadas Proponho o uso do conceito de “narrativas enviesadas” para comentar uma forma particular e contemporânea de produzir arte, contar histórias. Nesse exercício de criação conceitual, busco o pensamento de Barthes, procurando aproximar-me dos sentidos instáveis, dos textos não ditos (ao menos, não inteiramente), construções fluidas. Parece-me que está justamente nas junções escorregadias e instáveis o que chamo de narrativas enviesadas, em que os artistas escapam dessa tendência fascista do texto e da obra. Sabotam, subvertem, quebram as possibilidades de um sentido narrativo único. Desestabilizam nossas compreensões da vida e injetam sutilezas, incertezas, sons que se recombinam e formam camadas, ainda que se estranhem mutuamente. Os sentidos, na obra dos artistas contemporâneos, não estão prontos, mas se configuram no acontecimento, isto é, na construção das múltiplas relações que acontecem entre a obra e o observador. Essas construções têm como herança uma atitude singular diante da vida Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas | 91 pós-muro de Berlim, somada a um outro inventariado, esse herdado das vanguardas modernas que se configuraram a partir do final do século XIX. A modernidade, que matura no século XX, buscava libertar a arte da representação do real, desembocando em projetos de autonomia, que se espelhavam e se refletiam em fenômenos estéticos como a geometrização e a abstração formal. De fato, essa somatória de experimentações modificou radicalmente a noção de estrutura narrativa de que se faz uso hoje: as narrativas enviesadas contemporâneas, também narram histórias, mas de modo não linear. No lugar do começo/ meio/fim tradicionais, compõem-se a partir de tempos fragmentados, sobreposições, repetições, deslocamentos. Elas contam; porém, não necessariamente, resolvem as próprias tramas. Textos e obras de arte contemporâneas — incluindo aqui as artes visuais, o teatro, a dança, o cinema, a literatura — muitas vezes dão indícios de contar histórias, mas na verdade se recusam a criar uma narrativa cujo sentido seja fechado em si mesmo ou que possa ter alguma linearidade, que “fecharia” seu sentido. Essa mudança de paradigma, em relação à narrativa, tem como ponto estrutural a transferência das vanguardas, da Europa para os Estados Unidos, particularmente para Nova York, onde se inaugura o expressionismo abstrato. Trata-se de um momento de emancipação da arte norte-americana: uma arte criada no Novo Mundo e que busca um “novo absoluto”, desancorado de qualquer tradição ou comprometimento com a história e suas cargas de passado. Essa postura equivale ao abandono da hegemonia europeia, com sua memória e sua história. As pinceladas livres de William de Kooning; as imensas telas monocromáticas de Barnett Newman, responsável pelo encontro com o sublime através da criação de campos de cor; a valorização do tempo presente em movimentos de pinceladas e drippings (escorridos) na action painting (pintura de ação) de Jackson Pollock – tudo isso fazia parte de uma necessidade de autonomia e valorização do “agora”, o que superaria as experiências das vanguardas europeias, que dialogavam com as próprias tradições históricas. Essa noção, legitimada por críticos norte-americanos importantes, sobretudo Clement Greenberg, começou a ser testada e levada a outras direções pelas próximas gerações. No cenário norte-americano dos anos 1960-1970, o movimento do mini- 92 | Katia Canton malismo propunha: “Menos é mais”. Isso correspondia, na dança do coreógrafo Merce Cunningham, seguida daquela criada pelos dançarinos que compunham o grupo Judson Memorial Church, à incorporação do acaso, à economia de gestos, ou à possibilidade de dançar sem música. A música serial de Steve Reich e Philip Glass sintetizam uma arte emblemática de negação – uma arte analítica, que reage à narrativa, ao academicismo e ao drama, realçando os aspectos formais e funcionais da arte, materializando uma preocupação com a abstração, a austeridade e a noção democratizante de que “qualquer um pode ser artista”. Esse despojamento liga-se a uma atitude política de reação não só aos exageros propostos pelo consumismo do “American way of life”, que ganha força a partir do final da Segunda Guerra Mundial, mas também como reação à atuação norte-americana na Guerra do Vietnã (1954-75), que provocou muitas mortes e destruição. O espírito do tempo, que marcou as décadas de 1960 e 1970, foi registrado no livro Against interpretation [Contra a interpretação], da filósofa Susan Sontag, para quem a arte estabelece um valor per se, suficiente em suas características visíveis, táteis e auditivas, o que a libera de interpretações críticas, implicações autorais e históricas (SONTAG, 1987). Essa ideia é reforçada por uma declaração-manifesto escrita pela coreógrafa e cineasta Yvonne Rainer, em 1965, e intitulada “manifesto de renúncia”: Não ao espetáculo não ao virtuosismo não à transformação e magia e ao faz de conta não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela não ao heroico não ao anti-heroico não ao lixo metáfora não ao envolvimento do intérprete ou do espectador não ao estilo não ao camp não à sedução do espectador pelos artifícios do intérprete não à excentricidade não ao mover ou comover não a ser movido ou comovido. (CANTON, 2001, p.19) A ideia era retirar do espectador a possibilidade de se identificar com a narrativa. Essa estratégia se liga ao uso de métodos anti-ilusionistas ou antinarrativos. Em arte, ilusionismo é a capacidade de conectar o espectador em um nível diegético, ou seja, de identificação e de relacionamento com a obra. O modernismo norte-americano busca, no momento de seu auge, o desenraizamento dos artifícios da narrativa do cotidiano para alocar o observador em um mundo sintético, puro e transcendente: o mundo da arte abstrata. Os artistas de vanguarda, que produziram a abstração, buscavam, por sua Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas | 93 vez, o fim da arte como representação de algo fora dela mesma. Isto é, almejavam a abstração pura, sem equivalências na realidade. Mas seria possível para a percepção humana olhar uma superfície como essa sem fazer nenhuma associação com as bagagens da história pessoal, da memória, da associação que todos nós produzimos com as questões da vida? O coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, por exemplo, artista que trabalhou muitos anos com o músico John Cage, propôs-se a criar coreografias completamente abstratas explorando um modo singular de operação. Por meio de um acaso absoluto, Cunningham procurou desvencilhar-se de qualquer intenção narrativa a priori. Em primeiro lugar, muitas de suas coreografias eram compostas mediante sorteios de gestos, que eram colados como num livro de consultas de I Ching. Outro elemento importante de suas obras era a ocupação não linear do espaço teatral do palco pelos bailarinos, que preenchem a frente, os fundos, as laterais e as costas, desrespeitando o palco italiano, em que os bailarinos costumam se virar para a frente. A maneira como Cunningham propunha as colaborações também se concretizava de forma ímpar: o coreógrafo, o músico, o artista responsável pelos figurinos e cenários, cada um trabalhava a seu modo, no seu tempo, sem nenhum conhecimento do trabalho do colega até o dia da apresentação inaugural. Assim, os elementos compostos, sem a obrigatoriedade de uma hierarquia, proporcionavam liberdade, independência aos diversos elementos. Eliminava-se dessa forma a possibilidade de criar uma narrativa como resultado de uma junção linear. Em 2007, na Califórnia, a Merce Cunningham Dance Company realizou um experimento explorando percepção e acaso: durante a apresentação, os espectadores receberam um aparelho iPod. Assim, cada membro da plateia podia escolher as músicas para a gestualidade dos bailarinos. Em uma entrevista que realizei com Merce Cunningham, em 1989, em seu estúdio nova-iorquino, ele explicou que, mesmo com todas as estratégias criadas para atingir uma abstração capaz de subverter a narrativa, o público muitas vezes tende a atribuir sentidos próprios para o modo como o som, os gestos e a luz se combinam. Isto é, de formas singulares, os espectadores acabam retirando dos espetáculos uma narrativa. Enquanto Cunningham e Cage desenvolviam esse método de trabalho, nas artes visuais dos anos 1950, despontavam nomes como Jasper Johns, que realizava experimentos paralelos a fim de testar os limites da 94 | Katia Canton possibilidade de criar uma arte cujo valor é simplesmente ela mesma. Desviandose do caminho transcendente proposto pelos expressionistas abstratos, em cujos campos de cor o espectador era convidado a mergulhar livremente, Johns, então um jovem artista, concluiu, em 1955, uma obra que gerou polêmica. Intitulada Flag [Bandeira], ela apresentava as listras e estrelas da bandeira norte-americana, em grande dimensão, utilizando pintura e encáustica. A simples apresentação da bandeira, sem nenhum comentário extra, assim como o incômodo e a atração gerados pela obra nos espectadores, deixou claro o fato de que é inevitável que uma imagem contenha índices culturais e esteja necessariamente mergulhada em implicações sociopolíticas e ideológicas. Flag abre o caminho para a arte pop e atesta inexoravelmente o poder das imagens midiáticas de gerar narrativas próprias. Experimentalismo e crise da abstração A partir desse momento, nos Estados Unidos, muitos artistas mergulham sua produção em experimentações que buscam expandir os limites entre arte e não arte. Tratava-se de utilizar o conceito de “arte expandida”, cunhado pela crítica Rosalind Krauss. Dançar nas paredes verticais de prédios, como fez a coreógrafa Trisha Brown, parecia muito mais interessante do que se apresentar no palco de um teatro, por exemplo. Porém, por conta de experimentalismos que buscavam um alargamento cada vez maior de limites, instaurou-se no cenário artístico uma sensação de hermetismo entre os artistas e o público. Este último sentia-se muitas vezes desconfortável com a dificuldade de compreender as obras, cada vez mais conceituais e menos retinianas. Esse cenário de estranhamento colaborou para o afastamento gradual do público. Como resposta, no decorrer do tempo, em especial a partir da década de 1980, muitos artistas sentem uma necessidade de se reaproximar da realidade e do público e retomam a ideia de narrativa. Eles passam a buscar uma produção que se relacione diretamente com os fatos e movimentos da vida, e deixam de se colocar numa posição transcendente, na qual a arte poderia se valer por si mesma, descolada dos limites impostos pela vida real. Outro elemento a ser levado em consideração é o mercado. Depois de algumas décadas experimentando dançar sem música ou realizar performances que não podiam ser comercializadas, os artistas percebem a necessidade de poder viver do próprio trabalho, expondo em galerias, apresentando-se em teatros e Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas | 95 em casas de espetáculos. Em oposição às experiências das vanguardas norte-americanas, o uso consistente da narrativa tornou-se progressivamente uma âncora para a representação contemporânea. A década de 1980 – chamada nos Estados Unidos de era republicana de Reagan e Bush (pai), ou de era dos yuppies (jovens urbanos que enriqueceram com o mercado financeiro) – substitui as experiências da vanguarda e o senso de comunidade artística pelo recrudescimento do consumismo e o fascínio pela opulência, ilustrado em seriados norte-americanos de televisão, como Dallas (1978-91) e Dinastia (1981-89). Nesses anos, o refrão minimalista “Menos é mais” é trocado pela máxima de que “Mais é mais”. Um panorama breve dos anos 1990 O período de transição entre os anos de 1980 e de 1990 anuncia mudanças no panorama internacional. Elas terão forte impacto na formação artística da nova geração e passarão a compor as bases para um novo mundo – um mundo de excessos, que despreza a noção de privacidade, que é substituída pela busca de celebridade. Um mundo que estetiza a violência, anestesiando nossos sentidos, e que transforma a informação em uma comodidade descartável, com pouco resquícios de memória. Nesse mundo, o sistema de corporações e o anonimato reestruturam as relações sobre um terreno globalizado. A queda do Muro de Berlim e o final do comunismo reajustam as estruturas políticas em favor do neoliberalismo. Os problemas ecológicos passaram a fazer parte da rede de interesses econômicos do Primeiro Mundo: a crise ambiental, ditada pelo crescimento de poluentes; o aquecimento generalizado e gradual do planeta; e a iminência da falta de água pura no médio prazo fazem da ecologia a palavra de ordem de grupos da sociedade civil e ONGs. A AIDS, o Ebola, as gripes aviária e suína, além de outros vírus fatais, desafiam um mundo que parecia dominado e controlado pela ciência. A física quântica, o Projeto Genoma e as clonagens de DNA relativizam conquistas científicas e apresentam ao mundo uma estreita ligação entre arte, ciência e tecnologia. A internet, com suas redes sociais e outros desdobramentos virtuais, constrói promessas de núcleos cibernéticos de vida e reafirma o conforto doméstico dos contatos humanos à distância. A importância dada à moda, ao mundo das aparências e “atitudes”, em 96 | Katia Canton conjunção com uma tecnologia sofisticada de cirurgias plásticas, implantes, aparelhos de ginástica, vitaminas e outras substâncias químicas, ao lado da possibilidade de modificações genéticas que se abrem com os primeiros sequenciamentos cromossômicos, faz do corpo um campo de experimentações futuristas. Culturalmente, a busca de originalidade e experimentações, que caracterizou a vanguarda modernista do século XX, é substituída pela busca de fama e celebridade, numa transferência do foco das preocupações e olhares – da produção para o produtor, da obra para o autor. Um exemplo desse tipo de comportamento está no sucesso da revista Caras, lançada no Brasil, em 1993, pela editora Abril, seguida por outras publicações do gênero. No contexto econômico, o desgaste dos mercados ditos de Primeiro Mundo e as demandas de expansão ditadas pelo corporativismo e pela globalização impulsionam a conquista de mercados alternativos, com o uso de discursos “politicamente corretos” e a ativação de termos como “transculturalidade” e “multiculturalismo”. Este último, de acordo com a antropóloga Barbara Kirshenblatt-Gimblett, torna-se um código para a palavra “etnia” (1993), ao mesmo tempo em que guerras étnicas explodem em meio aos limites da nova geografia mundial. Novas configurações geopolíticas provocam deslocamentos humanos que instauram uma nova noção de identidade e de nacionalidade. O espaço flexível e instável, emblemático da era global, expande-se em um tempo também marcado por instabilidade e fragmentação de informações e por excesso de imagens e estímulos de múltiplas naturezas. Tempo e espaço se redefinem na linguagem dos videoclipes da MTV, na comunicação via internet, nos painéis eletrônicos de alta definição, instalados estrategicamente nas grandes cidades, observados pela massa de automóveis estagnados no trânsito. A esse panorama, soma-se uma ideia fundamental para a produção artística que se desenvolve nos anos 1990: a originalidade da criação é um mito modernista. A afirmação, discutida pela crítica norte-americana Rosalind Krauss, no livro The originality of the Avant-Garde art and other modernist myths, difunde-se com as noções e práticas pós-modernas, ligadas a uma atração pelo passado, pela memória, pelas convenções e clichês. Segundo Krauss, a busca de originalidade e autenticidade está sendo progressivamente engolida e perde, assim, seu lugar e sentido em um mundo gerado pela informação midiática e pela reprodutibilidade virtual. Nesse contexto histórico, numerosos debates sobre uma “crise da arte” se Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas | 97 instauraram numa sociedade bombardeada por excessos de toda sorte. O mundo da arte contemporânea, não isento de tais excessos, move-se no interior de uma densa rede que envolve o mercado, o sistema de galerias e museus, as feiras nacionais e internacionais, os salões, os curadores e os críticos, as bienais, os colecionadores. A própria definição de arte, nesse momento, está mergulhada numa condição de estranhamento e instabilidade, gerada durante o percurso histórico das experimentações postas em prática por artistas do século XX. Isso ocorre sobretudo após as pesquisas do francês Marcel Duchamp, que, no início do século XX, incorporou ao universo artístico a noção de ready-made. No decorrer do desenvolvimento da arte conceitual, nos anos 1960 e 1970, Duchamp enfatiza o processo e as propostas artísticas em lugar dos “produtos”, validando como arte objetos como uma bula, um cartão-postal, um biscoito, uma cópia xerográfica. Nesse processo, e na incorporação de meios virtuais e tecnológicos, a produção artística proliferou a tal ponto que se perderam de vista os limites que delimitavam o universo artístico. A high art, as belas artes foi separada de todo o resto da produção gerada pela sociedade pós-industrial. Essa instabilidade na arte, ao repercutir numa sociedade marcada progressivamente pela informação virtual e pela engenharia genética, desnorteia e intriga. Provoca. Não permite mais aos artistas adotar uma postura descolada dessas redes que amarram a vida. Os artistas contemporâneos não podem compartilhar uma atitude modernista, que buscava na arte uma resposta transcendente, abstrata e sintética, acima das coisas que formam a complexa tessitura do mundo real. A arte não redime mais. E os artistas contemporâneos incorporam e comentam a vida em suas grandezas e pequenezas, em seus potenciais de estranhamento e em suas banalidades. No Brasil, logo após a efervescência da pintura instituída pela Geração 80, discutiu-se e polemizou-se a “morte teórica da pintura”. Porém, à geração seguinte, não coube mais discutir questões relativas aos suportes. A pintura não morreu, tampouco a escultura. Juntaram-se a elas instalações, objetos, textos, internet e outros meios. Um elenco complexo e sofisticado de suportes e possibilidades de materiais se abre naturalmente aos artistas, que substituem essa preocupação com o meio por outra, ligada ao sentido. Artistas contemporâneos buscam sentido. Um sentido que pode estar alicerçado em preocupações formais – que são intrínsecas à arte e que se sofis- 98 | Katia Canton ticaram no desenvolvimento dos projetos modernistas do século XX –, mas que finca seus valores na compreensão (e na apreensão) da realidade, infiltrada dos meandros da política, da economia, da ecologia, da educação, da cultura, da fantasia, da afetividade. Em vez de uma arte per se, potente em si mesma, capaz de transcender os limites da realidade, a arte contemporânea penetra as questões cotidianas, espelhando e refletindo exatamente aquilo que diz respeito à vida. O tempo e a memória, o corpo, a identidade e o erotismo, o espaço e o lugar, as micropolíticas – tudo isso é tema de inquietação para a geração atual. Esses temas se estruturam a partir de arranjos formais e de construções conceituais que formam narrativas não lineares, enviesadas, e que muitas vezes emprestam a sofisticação estrutural e a variedade no uso de materiais justamente dos projetos desenvolvidos pela vanguarda modernista, que marcou uma parte significativa do século XX. A produção contemporânea não é uma produção de negação, como foi a produção moderna de vanguarda. As experimentações realizadas no percurso do século XX foram apreendidas e incorporadas, injetadas, através dessa busca de sentido, que se liga às especificidades de um novo contexto sócio-histórico. As heranças recebidas pelo modernismo – a abstração, a valorização dos aspectos formais da obra de arte, a não linearidade das estruturas de pensamento, a valorização dos mecanismos que compõem os processos de concepção de uma obra – são elementos que foram incorporados pela arte contemporânea, que, por sua vez, a eles acrescenta uma relação de sentido, significado ou mensagem, criando, nos processos aglutinadores da obra contemporânea, uma narrativa fragmentada, indireta, que desconstrói as possibilidades de uma leitura única e linear. Uma particularidade narrativa: os contos de fadas As palavras e seus sentidos, a memória, a herança e a tradição são elementos que passam a ser revalorizados num mundo inundado por imagens propagadas incessantemente pela mídia. Eles formam uma narrativa que incorpora sobreposições, fragmentações, repetições, simultaneidade de tempo e espaço, enfim, todo o jogo que pode fornecer elementos para a criação de uma obra de sentido aberto, que se constrói durante a relação com o outro, com o público, com o leitor, o observador. Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas | 99 Para criar suas narrativas enviesadas, uma das estratégias dos artistas contemporâneos é a utilização de contos de fadas. Essas histórias paradigmáticas do mundo ocidental são conhecidas o suficiente para poderem ser fragmentadas, repetidas, desconstruídas e viradas do avesso pelos artistas. As origens dos contos de fadas na civilização ocidental estão nos contos populares de magia, um tipo de conto oral em que as histórias eram simbolicamente criadas e adaptadas, conforme a interação viva entre os narradores e os espectadores/ouvintes. Em sua forma oral, o conto popular de magia é antigo, provavelmente coincidindo com os primeiros rituais de comunicação entre seres humanos. A falta de documentação torna difícil localizar com precisão as origens históricas do conto oral de magia; já a formação dos contos de fadas literários é algo que pode ser estudado. O conto popular de magia faz parte de uma tradição oral pré-capitalista que expressa os desejos básicos dos seres humanos de obterem melhores condições de vida, enquanto o termo conto de fadas indica o advento de uma forma literária que se apropria de elementos populares para apresentar valores. Em pesquisa de mestrado e doutorado, no departamento de Performance Studies, Tisch School of the Arts, e no Departament of Art and Art Professions, ambos na New York University, estudei a obra de três coreógrafas/criadoras performáticos que se envolveram particularmente com o tema dos contos de fadas e os reapresentaram de maneira instigante: Pina Bausch, na Alemanha, Maguy Marin, na França, e o grupo de performance Kinematic, nos Estados Unidos. Já no final dos anos 1970, a coreógrafa alemã Pina Bausch, introdutora do tanztheatre ou dança-teatro, pôs em cena o espetáculo Barba-Azul. Nesse conto de fadas escrito por Charles Perrault, no século XVIII, narra-se a história de um homem muito rico que se casa repetidas vezes e dá uma vida luxuosa para suas mulheres. Mas ele as proíbe de entrar em um quarto encantado. Cada uma das esposas falha: sem conseguir conter a curiosidade, elas usam a chave mágica, entram no quarto e são traídas por uma mancha de sangue que nunca mais sai de sua chave. Pina Bausch explora a trilha sonora da ópera O castelo de Barba-Azul, do compositor húngaro Béla Bártok, que é acionada em um gravador em plena cena. O chão do espetáculo é recoberto por folhas secas e os protagonistas, Barba-Azul e sua esposa, são envolvidos em jogos gestuais repetitivos, exaustivos, espelhados em outros dançarinos: assim, os papéis de vítima e algoz constantemente se alternam e se confundem. 100 | Katia Canton Na década de 1980, a francesa Maguy Marin cria, sob encomenda do Lyon Opera Ballet, uma Cinderela esquemática, desprovida de romantismo ou pieguice. Nessa versão, não prevalece nem a versão de Perrault, a mais conhecida, nem a dos irmãos Grimm. Marin propõe uma versão própria, em que os personagens são bonecos de pano. A fada-madrinha é um boneco que se transforma em robô, e sua carruagem é um pequeno calhambeque conversível, que a própria Cinderela é convidada a dirigir. Ela e o príncipe são duas crianças que dançam de maneira espelhada, sem a hierarquia típica do balé clássico, nem a passividade atribuída às mulheres nos tempos de Perrault. E tudo termina com uma bem-humorada procissão de brinquedos. O espetáculo A menina sem mãos, do grupo norte-americano de dança-teatro Kinematic, é baseado na história de mesmo nome escrita pelos irmãos Grimm no século XIX. O conto narra a trajetória de uma menina oferecida ao diabo por seu pai, que se vê obrigado a cortar fora as mãos da filha. Depois de um longo processo, doloroso e rico de maturação, a menina vê suas mãos crescerem novamente. As dançarinas do grupo Kinematic encenaram a história de forma austera e enviesada. O texto da história foi cortado ao meio e depois remendado, numa desconstrução levada à fisicalidade de uma tesoura cortando o papel. Esse texto, recortado e recolado de modo aleatório, foi lido por um narrador em off, enquanto as três dançarinas criavam gestos que se colavam às palavras através de sua sonoridade. Algumas pausas foram introduzidas no espetáculo com a inserção de músicas folclóricas e de deslocamentos no espaço por parte das bailarinas. O estranhamento do espetáculo A menina sem mãos se completa com o fato de que, apesar de explorar um texto todo fragmentado, é possível perceber de algum modo o fio condutor que assinala a narrativa da história é exatamente aquela escrita pelos irmãos Grimm. Ao estudar essas obras, pensei na possibilidade da criação de uma narrativa diferente, própria de um tempo em que queremos histórias, mas não confiamos em seus finais felizes, ou mesmo finais fixos. Assim, surgiu o conceito de narrativas enviesadas. Narrativas enviesadas: Roland Barthes, arte contemporânea e os contos de fadas | 101 Referências bibliográficas BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988. CANTON, Katia. Novíssima arte brasileira, um guia de tendências. São Paulo: Iluminuras/ MAC-USP/ Fapesp, 2001. | 103 A construção do plano moderno: Planos em Superfícies Moduladas nº 2 - Lygia Clark, 1956 RODRIGO QUEIROZ* Resumo: Planos em superfícies Moduladas nº 2 revela a passagem da ação pictórica sobre o plano para a construção do próprio plano na obra de Lygia Clark. A confecção modular das superfícies planas e o posterior processo de associação e montagem dos módulos a partir do encaixe, assim como sua fixação vertical sutilmente solta do plano da parede, consiste em um processo de sinaliza para a uma relação de unidade com o espaço arquitetônico que ultrapassa a linear reação em cadeia crescente “arte/arquitetura/cidade” que caracteriza diferentes manifestações da vertente construtiva da arte moderna, como a Bauhaus, o De Stijl e o Construtivismo Russo. A autonomia das superfícies de Lygia Clark pressupõe justamente a possibilidade do deslocamento da experiência artística para além do espaço idealizado moderno, originalmente condicional à exposição da obra de arte, ao constituírem módulos de uma unidade que se permite dispersar no mundo real. Palavras-chave: Arte Moderna. Neoconcretismo. Lygia Clark. The construction of the modern plan: Plans in modulated surfaces # 2 – Lygia Clark, 1956 Abstract: Plans in modulated surfaces # 2 reveals the passage of pictorial action on the plan to build the own plan in the work of Lygia Clark. The modular * Professor Doutor do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Docente credenciado no Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHAUSP). 104 | Rodrigo Queiroz manufacture of plane surfaces the subsequent process of association and assembly of the modules, as well as its vertical subtly loose fixing plane of the wall, is a process of signaling for a relationship of unity with the architectural space that goes beyond the linear reaction growing chain “art / architecture / city” featuring different manifestations of the constructive strand of the modern art, such as the Bauhaus, De Stijl and Russian Constructivism. The autonomy of the surfaces of Lygia Clark rightly presupposes the possibility of displacement of the artistic experience beyond the idealized modern space, originally conditional to the exhibition of the work of art, to constitute a unit that allows to disperse in modules in the real world. Keywords: Modern Art. Neo-Concretism. Lygia Clark. Lygia Clark – Planos em Superfícies Moduladas nº 2, 1956 Tinta industrial s/ celotex, madeira e nulac 90,1cm x 75,0 cm – Acervo MAC USP Planos em superfícies moduladas nº 2 integra um conjunto de trabalhos de Lygia Clark, identificados pela construção de um plano vertical resultante do encaixe de finas placas poligonais. A escolha precisa das palavras que formam o título da obra informa sobre a posição e a conduta da artista, frente à codificação tradicional da pintura. Nesses trabalhos de Lygia Clark, inexiste o plano como suporte que antecede o ato pictórico, superfície que recebe o registro do gesto. Ao contrário, a obra é a produção do próprio plano, é a imagem de sua construção. A tentativa da construção do plano como experiência pictórica e espacial consiste em uma das principais estratégias da vertente construtiva do projeto moderno. A desmontagem da perspectiva linear, por parte do cubismo, e o achatamento absoluto da profundidade, como procedimento chave de neoplasticistas e suprematistas, são dispositivos que intentaram unificar os planos da arte e da vida, em um plano comum, o da arquitetura, ainda mero recorte doméstico de um ambicionado “espaço total”. Entretanto, a construção do plano, para Mondrian e Malevich, preserva um expediente pictórico tradicional: o movimento A construção do plano moderno: Planos em Superfícies Moduladas nº 2 ... | 105 do pincel sobre tela. O plano, apesar de moderno, ainda decorre de um ato prémoderno. A superfície geométrica e uniforme dos planos de Lygia Clark elimina qualquer vestígio de manualidade. A obra resulta de uma sequência de ações, instrumentalizadas pelo moderno universo da razão, da consciência produtiva do sistema industrial. O chassi de madeira e a tela de tecido dão lugar às placas de Eucatex; a tinta de bisnaga e o pincel são substituídos pela tinta industrial e a pistola de ar comprimido. É provável que os precisos recortes dos planos tenham sido realizados por algum tipo de serra circular de bancada. Os instrumentos e os meios utilizados por Lygia Clark pertencem à realidade industrial, distante da atmosfera intimista de um ateliê. A obra não é ingenuamente “concebida”, ao contrário, convoca o funcionamento das máquinas e o ofício racional de operá-las. Tais procedimentos evidenciam uma nítida aspiração coletiva, que aproxima a obra e sua produção a determinada prática do desenho industrial e também da arquitetura moderna: a forma é a imagem de sua própria montagem, pois preserva intacta a legibilidade dos componentes que a integram. Não há qualquer revestimento sobre a construção, pois a verdade produtiva deve se revelar como a obra em si. Os componentes do plano da arte – as tais superfícies moduladas – são produzidos por um mecanismo industrial, o que não significa que pertençam a um sistema produtivo industrial. Apesar do uso de materiais industrializados e de precisas máquinas de pintura e corte, a escala de produção é artesanal. São protótipos que apresentam, a partir da construção de uma única unidade, a possibilidade de aproximação entre arte e indústria, que, exceto no caso do desenho industrial, acabou mesmo limitando-se ao ensaio. Lembremo-nos das experiências da arquitetura moderna, monumentos de uma modernidade reduzida à demonstração. Ao qualificar como moduladas, as superfícies que integram os planos, Lygia Clark reforça a perspectiva serial desse componente, que resulta de um raciocínio normativo. O elemento individual contido no plano só assume a condição de módulo, se cumprir o papel de se multiplicar em grupos de formas padronizadas e encaixadas entre si, a partir de um nítido senso de ordenação. São peças definidas por um conjunto fechado de figuras geométricas que se repetem, por isso moduladas. Notem que o instrumental e os materiais utilizados para a confecção das superfícies de Lygia Clark são objetos comuns às oficinais de marcenaria, local onde justamente se produz a mobília mais aderente à superfície da arquitetura, como armários, estantes e prateleiras. 106 | Rodrigo Queiroz A linha que resulta do encontro desses módulos poligonais de madeira é, na verdade, uma fresta. Sua constituição não resulta da grafia do movimento sobreposto à tela, que identifica a linha na pintura, mas de uma delgada penumbra entre as peças. A natureza espacial e não planar da fresta confere espessura vazia e profundidade à obra, que decorre da montagem da superfície. A fresta entre os planos é chamada pela artista de “linha orgânica”, pois justamente não se faz sobre o plano, é um vazio, um hiato que não está ilhado no plano, mas se prolonga de modo anguloso, até as bordas da superfície montada, como um canal cuja extensão sangra o limite entre a obra e o espaço. Do mesmo modo que os planos recortados são separados pela linha orgânica, a superfície da obra também se mantém em suspensão, solta como em relação ao plano da parede. A linha orgânica contorna a espessura da obra, transformando-se novamente em fresta, dessa vez, entre os planos da obra de arte em si e da arquitetura. Em Plano em Superfície Modulada nº 2, a disposição dos módulos consiste em uma composição espelhada, cujo rebatimento obedece a um eixo de simetria diagonal, do canto superior esquerdo ao canto inferior direito. Não se trata do rebatimento de uma figura sobre o plano, mas do rebatimento dos próprios módulos que compõem o plano. Apesar da irreversível tendência da abstração geométrica, em romper com a literalidade da profundidade linear, seja pela resistência em sucumbir a uma quase inevitável relação figura-fundo, seja pela negativa em representar um plano perpendicular ao plano da tela, as arestas diagonais comuns aos módulos brancos que integram o plano construído por Lygia Clark aludem a uma tridimensionalidade percebida em perspectiva cavaleira, construção geométrica na qual a volumetria ortogonal é constituída por um plano frontal em projeção ortogonal (em elevação) e por planos laterais e superior, cujas arestas, perpendiculares ao plano frontal – e, consequentemente, ao plano da tela –, são definidas por linhas inclinadas a 45°, paralelas entre si. A construção da profundidade no plano pelas perspectivas cavaleira ou isométrica não desdobra a histórica tentativa de representação da profundidade, que codifica a experiência ótica com expedientes gráficos, como linha do horizonte, pontos de fuga central e laterais e planos convergentes, mas consiste na construção, no plano, de um espaço abstrato, mental. A tentativa de reprodução de uma realidade visível dá lugar ao projeto de uma realidade futura. A construção do plano moderno: Planos em Superfícies Moduladas nº 2 ... | 107 A flutuação da superfície demonstra a relutância em corporificar-se no plano opaco e ainda artesanal da arquitetura, estratégia oposta ao mural cerâmico, que consiste no próprio plano da arquitetura. No caso do painel cerâmico, de modo inverso aos planos de Lygia, a imagem dilui a percepção da modulação das peças esmaltadas, a partir da constituição de um campo inteiro, que preenche toda a extensão da parede, mantendo o olho em um travelling ininterrupto, sem fixarse em pontos específicos, seja no suposto cubismo local de Portinari, seja na geometria de extração construtiva de Athos Bulcão. Nesses casos, necessariamente, a fresta é preenchida com um rejunte, que minimiza a modulação ortogonal dos azulejos. Segue trecho em que Lygia Clark aborda os procedimentos que intentam a continuidade espacial entre a obra de arte e a arquitetura: Quando rompo a moldura, destruo esse espaço estanque, reestabelecendo a continuidade entre o espaço geral do mundo e meu fragmento de superfície. O espaço pictórico se evapora, a superfície do que era “quadro” cai ao nível das coisas comuns e tanto faz agora essa superfície como a daquela porta ou daquela parede. Na verdade, liberto o espaço preso no quadro, liberto minha visão e, como se abrisse a garrafa que continha o Gênio da fábula, vejo-o encher o quarto, deslizar pelas superfícies mais contraditórias, fugir pela janela para além dos edifícios e das montanhas e ocupar o mundo. É a redescoberta do espaço. (CLARK apud GULLAR, 1999: 272, grifo nosso.) Apesar de herdeira de uma intenção construtiva motivada pelo desejo por uma espacialidade unitária, que torna indistintos os limites entre a obra de arte e a arquitetura, os planos em superfícies moduladas de Lygia Clark não contêm em si o condicionamento à ordenação e ao controle que rege as ações suprematistas e neoplasticistas. Ao contrário, apesar de precisamente encaixados, seus planos guardam a perspectiva de dissolvência e dispersão, que põe em xeque o pressuposto construtivo de uma espacialidade universal. Esse talvez seja o ponto de descolamento da arte brasileira com relação à referência das vanguardas históricas, e marque com precisão a dimensão emancipatória neoconcreta. Ao “deslizar pelas superfícies mais contraditórias”, a superfície deixa de ser modulada, pois dissocia-se do conjunto e transforma-se em unidade autônoma, como se a arte pudesse aderir, quase que incognitamente, à vida, sem a pretensão moral de transformá-la. 108 | Rodrigo Queiroz Referências bibliográficas AJZENBERG, Elza (org.) MAC USP: acervo virtual. São Paulo: MAC USP, 2006. AMARAL, Aracy (org.). Arte Construtiva no Brasil – Construtive art in Brazil (Coleção Adolpho Leirner). São Paulo: Companhia Melhoramentos; São Paulo: DBA Artes Gráficas, 1998. BOIS, Yves-Alain. A pintura como modelo. São Paulo: Martins Fontes: 2009. BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo. São Paulo: Cosac Naify, 1999. GULLAR, Ferreira. Etapas da Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999. MAMMÌ, Lorenzo. O que resta. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. OVERY, Paul. De Stij. Londres: Thames and Hudson, 1997. TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001. | 109 Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção ANA PAULA CATTAI PISMEL* Resumo: Mario Schenberg (Recife PE 1914 – São Paulo SP 1990), conhecido internacionalmente por seu trabalho como físico teórico, foi também militante político e crítico de arte. Nos anos de 1960, tornou-se teórico do Novo Realismo e sua perspectiva influenciou artistas importantes nos desdobramentos das Vanguardas Brasileiras como Lygia Clark, Maurício Nogueira Lima e Hélio Oiticica. Este artigo visa tratar da participação do crítico no Júri Nacional de Seleção das Bienais de São Paulo ocorridas em 1965, 1967 e 1969, tendo em vista elementos como o contexto político do período (ditadura militar) e a estrutura de organização do evento, que vinha sofrendo mudanças. Palavras-chave: Mario Schenberg. Bienal de São Paulo. Crítica de arte. 1960 e 1970. Mario Schenberg and the Biennial: the National Jury Selection Abstract: Mario Schenberg (Recife PE 1914 - São Paulo SP 1990), known internationally for his work as a theoretical physicist, was also a political activist and art critic. In the 1960s, became a theorist of the New Realism and important artists influenced your perspective of Brazilian Vanguards, such as Lygia Clark, * Bacharel em Filosofia (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP); mestre em Estética e História da Arte (Programa Interunidades de Pós-Graduação em Estética e História da Arte – USP) e doutoranda pelo mesmo programa. Sua pesquisa se intitula Mario Schenberg e as Bienais de São Paulo, está na linha de pesquisa “teoria e crítica de arte”, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Elza Ajzenberg. 110 | Ana Paula Cattai Pismel Maurício Nogueira Lima and Hélio Oiticica. This article aims to address the critical participation of the National Jury Selection of the São Paulo Biennials occurred in 1965, 1967 and 1969, based on the political context of the time (military dictatorship) and the organizational structure of the event, which was undergoing changes. Keywords: Mario Schenberg. São Paulo Biennial; Art Criticism. 1960 and 1970. Introdução Para Mario Schenberg (1914-1990), cuja esfera de atuação orbitava entre sua atividade acadêmica como docente na então FFCL (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP), a militância política e a crítica de arte, os anos de 1960 foram intensos e repletos de acontecimentos marcantes. Comunista assumido (KINOSHITA, s. d.), Schenberg também teve que lidar com a perseguição política, decorrente da instauração do Regime Militar, em 1964. As complicações advindas do momento político de então prejudicaram também o exercício de suas atividades enquanto pesquisador e docente na Universidade de São Paulo. Nesse momento de agitação política e cultural, Mario Schenberg voltou a se envolver com a organização das Bienais, dessa vez como membro do Júri Nacional de Seleção (em 1961, na VI Bienal, havia sido responsável pela retrospectiva de Alfredo Volpi). Participou, assim, da organização da VIII, IX e X bienais de Arte de São Paulo (em 1965, 1967 e 1969), para a qual foi eleito pelos próprios artistas (AGUILAR, 1996). Com o objetivo de analisar a participação de Mario Schenberg na organização das Bienais de São Paulo, este artigo mobiliza a documentação depositada no Acervo do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Arte – ECA/USP, bem como no Arquivo Histórico Wanda Svevo, sediado na Fundação Bienal. O presente texto faz parte da dissertação de mestrado apresentada em 2013, intitulada Schenberg: em busca de um Novo Humanismo, que analisou a atuação do crítico nas décadas de 1960 e 1970. Figura a seguir, especificamente, a atuação do crítico enquanto membro do Júri Nacional de Seleção, para o qual foi eleito pelos artistas, nas edições do evento dos anos de 1965, 1967 e 1969. Nesse contexto, destaca-se a polêmica em torno da aceitação do cientista conhecido internacionalmente enquanto crítico de arte. Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção | 111 Júri de Seleção da Bienal de São Paulo Cabe dizer que até o ano de 1969 quando, por força do Ato Institucional nº 5, foi aposentado compulsoriamente de seu cargo na Universidade de São Paulo, Mario Schenberg conciliava a atuação como cientista, a militância política e a crítica de arte. Somente após esse afastamento, passou a ter nessa última sua principal atividade (OLIVEIRA, 2010).1 Ao integrar o Júri de Seleção da VIII Bienal, Mario Schenberg estava enfrentando diversos processos judiciais. Foi em meio a essa tensão que o crítico participou, no decorrer de maio de 1965, de algumas das reuniões para selecionar as obras que participariam da edição daquele ano. Segundo o regulamento da VIII Bienal, o Júri de Seleção era composto por cinco membros, todos escolhidos pelos artistas. Tinham direito a voto apenas aqueles que já haviam participado de pelo menos uma bienal anterior. Cada um deles indicava dois nomes no ato de sua inscrição que, depositados numa urna, aguardavam o dia marcado para apuração (FUNDAÇÃO BIENAL, 1965). Em 27 de abril de 1965, foram conhecidos os nomes dos representantes dos artistas: José Geraldo Vieira (71 votos), Walter Zanini (64), Geraldo Ferraz (38), Fernando Lemos (33) e Mário Pedrosa (31). Em seguida, Sérgio Milliet (25) e Mario Schenberg (22) ficaram como suplentes (ZANINI, 1965). Em 30 de abril, Walter Zanini escreve à Diná Lopes Coelho, secretária da Fundação Bienal, informando que viajaria para o Japão, a fim de participar do Júri de Seleção da Bienal de Tóquio, e não conseguiria retornar ao país a tempo de integrar o júri brasileiro.2 Conforme o regulamento, o crítico Sérgio Milliet foi chamado para substituílo, mas pôde comparecer apenas à primeira reunião do Júri, no Museu de Arte 1. A VIII Bienal de Arte de São Paulo, formalmente desvinculada do Museu de Arte Moderna, esteve aberta entre 4 de setembro e 28 de novembro de 1965. A mostra foi organizada pelas assessorias de artes plásticas (Geraldo Ferraz, Sérgio Milliet e Walter Zanini), teatro (Aldo Calvo e Sábato Magaldi), arquitetura (Oswaldo Corrêa Gonçalves) e artes gráficas (Jannar Murtinho Ribeiro). Em seus quase três meses de duração, foram apresentadas ao público 653 artistas de 54 países, totalizando 4.054 obras (FUNDAÇÃO BIENAL, 2013). 2. Carta de Walter Zanini à Diná Coelho Lopes, de 30 de abril de 1961 (Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal). 112 | Ana Paula Cattai Pismel Moderna do Rio de Janeiro, em 6 de maio. Nas reuniões posteriores, Mario Schenberg esteve presente em seu lugar.3 Tanto na ata final do Júri Nacional de Seleção, quanto em nota divulgada à imprensa ao final dos trabalhos, é o nome de Mario Schenberg que consta no lugar do de Walter Zanini, como membro eleito pelos artistas.4 Uma vez integrando o Júri, Mario Schenberg não hesitou em defender os artistas com os quais mantinha contato, notadamente aqueles que estavam alinhados com tendências como as novas figurações, a saber, José Roberto Aguilar, Cláudio Tozzi e Rubens Guerchmann, entre outros; e a arte primitiva, como Waldomiro de Deus. Após a finalização dos trabalhos de seleção das obras para a VIII Bienal, Aracy Amaral traça um perfil das interações dos membros do Júri, na qual aponta Mário Pedrosa e Mario Schenberg como maiores definidores das escolhas feitas pelo grupo, no interior das discussões “tão comuns nesse tipo de Seleção”.5 3. Sérgio Milliet teve de ser substituído às vésperas de viajar ao Rio de Janeiro para o prosseguimento dos trabalhos do Júri devido a um mal estar. (Schenberg em Vez de Milliet. Correio da Manhã – Estado da Guanabara, 07/05/1965). 4. Em 19 de Maio, Francisco Matarazzo Sobrinho envia a Vasco Mariz, chefe da divisão de difusão cultural da Fundação Bienal, a lista de artistas que foram aceitos na oitava edição do evento, na qual constava a composição final do Júri de Seleção (Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal). 5. “O trabalho do Júri, além de difícil, duro e intenso, foi marcado por discussões tão comuns nesse tipo de seleção. Mario Pedrosa e Mario Schenberg, ao que tudo indica, definiam as escolhas, parece ter havido pouca identidade de pontos de vista entre Geraldo Ferraz e Fernando Lemos. José Geraldo Vieira, como sempre, atuou como poder moderador” (AMARAL, Aracy. Terminada a Seleção da Bienal. A Gazeta, São Paulo – Capital, 18/05/1965). O crítico, contudo, não pôde comparecer à inauguração da VIII Bienal de São Paulo, em 4 de setembro, pois estava preso. Nessa ocasião, os artistas manifestaram seu apoio: na inauguração da VIII Bienal, após a cerimônia de premiação, os artistas Maria Bonomi e Sérgio Camargo (ambos premiados naquela edição) foram ao encontro do presidente da república, o militar Castelo Branco, e entregaram a ele uma carta que ficou conhecida como Manifesto dos 4. Esse documento, assinado por vários artistas, continha o pedido para que o presidente intercedesse em favor de Mario Schenberg, Florestan Fernandes, João Cruz Costa e Fernando Henrique Cardoso, docentes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção | 113 Dois anos mais tarde, o Júri de Seleção da IX Bienal de São Paulo foi constituído por dois nomes indicados pela Diretoria Executiva da Fundação Bienal, dois escolhidos pelos artistas por meio de votação e um quinto escolhido por esses quatro. Novamente, o direito a voto cabia apenas aos artistas que já tinham sido aceitos em pelo menos uma Bienal anterior. Cada um deles deveria indicar, no ato da inscrição, dois nomes de críticos de arte, em ficha fornecida pela Bienal (FUNDAÇÃO BIENAL, 1967). A apuração não sofreu mudanças em relação à edição anterior. Assim, o corpo de jurados foi integrado por: José Geraldo Vieira e Mario Schenberg (eleitos pelos artistas com 41 e 32 votos respectivamente),6 Geraldo Ferraz e Jayme Maurício (indicados pela Fundação bienal), Clarival Valadares (escolhido pelos quatro).7 Momento final de um período de efervescência cultural no país, 1967 foi o ano de Terra em Transe, O Rei da vela, da exposição Nova Objetividade Brasileira, assim como de Tropicália, o ambiente de Hélio Oiticica e da explosão do tropicalismo na música, manifestações que marcaram os anos de 1960 (FAVARETO, 2001). Cinema, teatro, música e artes plásticas manifestavam o anseio de dar uma contribuição original à esfera da cultura, seja em nível nacional, seja internacional. O crescendum dessa movimentação, iniciado na década de 1950 e perturbado com o golpe de 1964, seguiria até a decretação do AI-5, quatro anos depois. Diferente do regulamento da edição anterior, no qual eram elegíveis não apenas críticos de arte, mas também artistas (Regulamento da VIII Bienal, Art. 5º), na IX Bienal, apenas críticos de arte poderiam ser votados para integrar o Júri de Seleção (Regulamento da IX Bienal, Art. 4º). Na edição seguinte, em 1969, seria ainda mais enfatizada a exigência de que todos os membros do Júri deveriam ser críticos de arte, na medida em que essa informação foi destacada num subitem exclusivo a esse respeito (conforme o Regulamento da X Bienal, 6. MAURÍCIO, Jayme. Bienal: eleitos dos artistas. Correio da Manhã, 06/06/67. 7. A IX Bienal teve lugar entre 22 de setembro de 1967 e adentrou em 1968, indo até 8 de janeiro. Foi uma edição de grandes proporções, trazendo 956 artistas de 63 países, somando 4.338 obras expostas. Tais dimensões, sobretudo relativas à representação brasileira (366 artistas, entre os quais contavam 253 estreantes), foram um dos aspectos criticados nessa edição. Critica essa, que já era tecida desde as primeiras bienais. FUNDAÇÃO BIENAL, 2013). 114 | Ana Paula Cattai Pismel Capítulo II, item V, subitem a) (FUNDAÇÃO BIENAL, 1965, p. 20; FUNDAÇÃO BIENAL, 1967, s.p.; FUNDAÇÃO BIENAL, 1969, p. 449). Se por um lado, as mudanças na conformação do Júri de Seleção, expressas nas sucessivas alterações dos regulamentos, enfatizam a posição de que as obras inscritas pelos artistas seriam julgadas com mais propriedade por críticos de arte que por outros artistas; por outro, em nenhum momento a Fundação Bienal define o que entende por crítico de arte. É a partir dessa indefinição que surge a polêmica em torno da aceitação de Mario Schenberg como membro do Júri de Seleção nas edições das quais participou, pois apesar de ser considerado como tal pelos artistas, seu nome foi recebido com dúvidas pela Fundação Bienal. Na ocasião, Luíz Rodrigues Alves, então diretor da Bienal, fez restrições à indicação do Professor Schenberg, devido ao dato de ele não assinar nenhuma coluna em jornal e, também, por conta de sua situação política, posição que desmentiu logo em seguida, tendo sido respeitado o resultado da eleição (SCHENBERG FICA, 1997). De fato, o incidente com relação à eleição de Mario Schenberg trouxe à tona essa demanda que há tempos era feita por artistas e críticos. A tentativa de definir como crítico de arte o profissional que mantinha colunas em jornais, contudo, não pareceu ter caído muito bem nesse caso, conforme ficou evidente pelo posicionamento dos artistas presentes na apuração dos votos, que saíram em defesa do crítico (ARTISTAS A FAVOR DO CRÍTICO, s. d.). Sobre isso, o próprio Schenberg (SCHENBERG, 1995, p. 142) diria anos mais tarde: Eu, que já tinha organizado a primeira exposição de Volpi em 1944, organizei em 61 a sua primeira retrospectiva. Depois disso, começaram a votar para que eu fizesse parte dos júris de seleção das Bienais. O primeiro júri que integrei foi em 1965, depois 67 e 69. E, a partir daí, a Bienal me aplica o Ato 75. Mas antes disso, já em 67, ganhei a eleição por maioria e quiseram me impugnar, alegando que eu não era crítico de arte, que não escrevia em jornal, coisa de que, aliás, nunca gostei. Sempre preferi escrever esporadicamente. Mas, finalmente, tiveram que recuar, porque fui aceito pela Associação dos Críticos de Arte. Também a Associação de Artistas Plásticos firmou posição a meu favor. A participação de Schenberg nas Bienais se deu por força de sua atuação junto aos artistas, os quais confiavam em sua atuação e acreditavam que ele poderia defender seus interesses junto ao júri do evento (OLIVEIRA, 2010). Da Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção | 115 parte da maioria de outros críticos, ele se deparava com o preconceito, em parte devido à sua formação e metodologia peculiar, em parte devido ao seu posicionamento político. Segundo afirma a pesquisadora Alecsandra Matias de Oliveira, em Schenberg: Crítica e Criação, os lugares de divulgação da arte, para o crítico, eram os meios especializados, como galerias, catálogos e álbuns de artistas, além do ambiente universitário. Schenberg não tinha acesso a jornais e revistas: sendo físico, era objeto de preconceito por parte dos demais críticos de arte, geralmente literatos ou ligados às ciências humanas. Além disso, se outros críticos de arte mantinham seu posicionamento político de modo a não prejudicar seu relacionamento com a imprensa, as ideias de Schenberg, em sua especificidade, não eram vistas como passíveis de veiculação periódica, pois o físico era um “incontrolável marxista, mesmo para os colegas de doutrina” (2010: p. 83-4). Retomando: um dos motivos para a tentativa de impugnar sua participação no Júri das bienais foi a alegação de que ele não escrevia em jornais. É possível constatar que Mario Schenberg não concordava com esse requisito, pois não o via como condição necessária (nem suficiente) para o exercício da crítica de arte. Se o que conferia a alguém a competência para tal atividade era a formação teórica adequada, então, era perfeitamente possível que houvesse críticos que não escrevessem em jornais e, principalmente, que houvesse pessoas que escrevessem em jornais sem ter a competência para tanto. A esse respeito, Schenberg afirmou o seguinte: Aqui no Brasil, as exigências em relação ao crítico de arte são muito pequenas, de modo que qualquer pessoa que tenha algumas ideias sobre arte, algumas experiências de arte, já é considerado um crítico. Mas acho necessário superar esse período, eu acho necessário haver uma crítica de arte baseada em outros critérios que não seja simplesmente o de escrever em jornais. (2011, p. 155) Schenberg não se considerava um crítico de arte, pois não julgava ter o embasamento necessário a tal atividade, uma vez que seus estudos sobre Filosofia e Teoria da Arte tinham se dado esporadicamente, por meio de leituras motivadas pela curiosidade: “Nunca me coloquei como crítico de arte, outros é que disseram que eu era [...]” (SCHENBERG, 2011, p. 154). Enquanto acadêmico, dava muita importância à formação teórica requerida para tanto e, como sua aproximação com a arte foi menos disciplinada do que com a ciência, não considerava ter o 116 | Ana Paula Cattai Pismel embasamento que julgava necessário ao exercício da crítica de arte (GOLDFARB, 1994). É claro que nem todos os críticos da época se enquadravam na objeção feita por Schenberg à ideia pré-concebida de que manter colunas em jornais fazia de alguém crítico de arte. Mas pode-se ver que, em seu entender, essa concepção corrente do crítico de arte era prejudicial ao desenvolvimento da arte no país. No fim de 1968, sobreveio o endurecimento da censura. Tendo repercutido em diversas instituições públicas federais, estaduais e municipais, o decreto atingiu, no início do ano seguinte, vários professores e funcionários da Universidade de São Paulo, que foram demitidos ou aposentados compulsoriamente, em abril de 1969 (meses depois de o A I – 5 ter sido decretado, em 13 de dezembro de 1968), restringindo atividades políticas e manifestações culturais (FOLHA DE S. PAULO, 2011). Entre eles, estava o Professor Mario Schenberg, que, a partir de então, passou a dedicar mais tempo à crítica de arte, uma vez que foi impedido até mesmo de frequentar bibliotecas e ambientes universitários. Marcada pelo boicote internacional, ao qual aderiram artistas, críticos de arte e intelectuais, todas as fazes da realização da X Bienal enfrentaram dificuldades que, com maior ou menor êxito, foram contornadas pela Comissão Técnica e pelo Júri de Seleção, que organizou várias salas especiais, além da sala geral da representação brasileira.8 Toda a segmentação cultural do país ressentia-se da censura que, não ocorrendo apenas nas bienais, alcançava diversas outras exposições, das quais eram retiradas quaisquer obras consideradas ofensivas ao regime militar. No mesmo ano, ocorreu a invasão e o fechamento da exposição que apresentaria os trabalhos dos artistas que participariam da VI Bienal dos Jovens de Paris (no MAM do Rio de Janeiro), antes mesmo de sua inauguração (AMARANTE, 1989). Essa foi a causa imediata do movimento de boicote à X Bienal de São Paulo, catalisando a revolta perante a situação incômoda em que se encontrava o país 8. A mostra teve lugar entre 27 de setembro e 14 de dezembro de 1969. A comissão de técnica de artes plásticas foi integrada por Aracy Amaral, Edyla Mangabeira Unger, Frederico Nasser, Mário Barata, Waldemar Cordeiro e Wolfgang Pfeiffer9. Participaram da X Bienal de São Paulo 446 artistas provenientes de 53 países, exibindo 2.572 obras. Diante do movimento internacional de boicote à Bienal, o número de artistas participantes caiu pela metade, se comparado à edição anterior. Esse período de baixa da bienal se agravaria ainda mais no ano seguinte. Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção | 117 por parte de artistas, críticos e intelectuais. Some-se a isso o fato de que, também nessa mostra, a retirada de inúmeras obras pela polícia antes mesmo de sua inauguração, não tendo despertado protestos da Fundação Bienal, pôs fim à esperança de que ela se tornasse um polo de resistência ao autoritarismo (AMARANTE, 1989, p. 182). Outro aspecto dessa situação era o fato de que, sendo a Fundação Bienal subvencionada por verbas estaduais e municipais, dependia do governo para levar a cabo suas atividades. Francisco Alambert & Polyana Canhête (2014) observam que isso levava a Bienal a ser vista como evento oficial e, portanto, aderida ao status quo do regime militar. Nesse sentido, ao se recusarem a participar dela, artistas, críticos de arte e intelectuais endereçavam ao governo instaurado no país sua manifestação de repúdio. Mário Pedrosa, então presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), foi quem deu início ao movimento pelo boicote, protestando violentamente “contra a censura do Itamaraty às obras selecionadas, em exposição no MAM do Rio, para a VI Bienal de Paris” (PEDROSA, 1995, p. 360). No exterior, foi o crítico Pierre Restany o propagador dessa bandeira: organizou em 16 de junho de 1969, no Museu de Arte Moderna de Paris, uma reunião na qual artistas e intelectuais elaboraram uma petição de boicote, com cerca de 300 assinaturas, enviada a Ciccillo Matarazzo (ALAMBERT & CANHÊTE, 2004, p. 124-25). Artistas e intelectuais se dividiam, basicamente, em duas posições: aderir ou não ao boicote, com as implicações decorrentes disso, a saber: dar aval ou protestar contra o sistema político de forças que amparava a Bienal (FUNDAÇÃO BIENAL, 2001). Nesse contexto, apesar de assumidamente comunista, Mario Schenberg optou por levar adiante sua função de jurado na seleção das obras daquela edição. O crítico não apenas se posicionou contra o boicote, como organizou a sala Novos Valores, assinando o texto de apresentação no catálogo da mostra (AMARANTE, 1989; FUNDAÇÃO BIENAL, 1969, p. 445). Mas não se pode dizer que, ao participar da Bienal e levar adiante sua colaboração no Júri de Seleção e organização geral, o crítico estivesse dando seu aval ao estado de coisas. Leonor Amarante destaca que seu posicionamento era diferente: dar continuidade a sua função no Júri de Seleção significava ocupar um espaço que, apesar de todos os problemas e críticas com que tinha de lidar, ainda era o foro mais privilegiado para as Artes Plásticas no país. Boicotar a Bienal, nesse sentido, significaria deixar de defender os interesses dos artistas, bem como seu espaço na mostra internacional. Por isso, o crítico 118 | Ana Paula Cattai Pismel não via sua participação como adesão aos desmandos do regime totalitário, mas como uma forma de protesto, na medida em que marcava sua posição.9 Com relação à formação do Júri de Seleção da X Bienal, é preciso acrescentar que não foi isenta de polêmicas. A Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e a Associação Internacional de Artistas Plásticos (AIAP) reivindicavam representação nesse Júri, bem como na Assessoria Técnica e nas comissões que realizariam a organização da mostra. Em Janeiro de 1969, as duas associações recusam o convite da Fundação Bienal, pois entendiam que não fazia sentido “terem representantes no certame a se realizar em setembro próximo sujeitos a acatarem as decisões da Fundação Bienal, que terá sempre maioria de membros e, portanto, de votos” (FOLHA DE S. PAULO, 1969). Além disso, as decisões da Assessoria Técnica teriam de passar pela aprovação da Diretoria da Bienal, que não era formada por pessoas conhecedoras de arte. Essa era, aliás, uma crítica à organização das bienais que vinha desde a extinção da função de Diretor Geral, a partir da VII Bienal. Diante desses aspectos, as suas associações consideravam muito difícil o diálogo com a Bienal. Finalmente, dado o convite tardio e o fato de que todas as decisões já haviam sido tomadas, não era possível “assumir a responsabilidade de uma programação já estabelecida”, apoiando-a “como entidades especializadas”.10 Já no que tange ao Júri de Seleção, o convite foi aceito, mas não sem restrições. Em 2 de maio do mesmo ano, a Fundação Bienal convida a AIAP a enviar uma lista com cinco nomes eleitos por seus quadros sociais, a fim de escolher dentre as sugestões um representante para integrá-lo.11 A resposta, contudo, não foi a lista solicitada, mas um único nome, conforme se lê: 9. O texto de Amarante (1989) foi a única fonte que permitiu situar a posição de Mario Schenberg nessa ocasião. É possível que, no futuro, a continuidade das pesquisas sobre sua atuação nas bienais traga à luz outras fontes, inclusive primárias, a esse respeito. Agradecimentos são devidos a Alecsandra Matias de Oliveira, Palyana Canhête e Francisco Alambert, pela contribuição em relação a esse ponto. 10. Resposta oficial enviada a Francisco Matarazzo Sobrinho por Quirino Campofiorito (1º Vice-Presidente da AICA) e Mirian Quiaverini (Presidente da AIAP), correspondência datada de 31 de Janeiro de 1969. Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal. 11. Carta de Francisco Matarazzo Sobrinho a Maurício Nogueira Lima (Presidente da AIAP), datada de 2 de maio de 1969. Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal. Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção | 119 [...] nossa entidade, atendendo, solícita, ao pedido da Fundação Bienal, promoveu eleições livres em São Paulo e no Rio par a indicação de um membro do Júri de Seleção, convocando todos os artistas interessados, mesmo aqueles que não pertencem aos seus quadros sociais. Infelizmente não estamos aparelhados para promover eleições em outras cidades brasileiras. O resultado, portanto, não tem valor nacional. [...] Da nossa consulta, resultou como o mais votado o crítico de arte Mário Schenberg.12 Constata-se que, também na Bienal de 1969, Mario Schenberg integrou o Júri com o apoio dos artistas, mesmo que não tenha havido uma eleição organizada pela Fundação Bienal. Maurício Nogueira Lima, então presidente da AIAP, lembra, ainda, que a associação defendeu, quando da elaboração do regulamento da X Bienal, a posição de que a eleição deveria ser realizada diretamente por essa instituição. Isso foi feito, segundo o artista, por meio de um representante na Assessoria, o que sugere que, após a recusa inicial, a AIAP aceitou a representação nessa comissão, possivelmente após negociação a respeito dos pontos levantados. Desse modo, integraram o Júri de Seleção os seguintes nomes: Mark Bercowitz (indicado pela ABCA), Mario Schenberg (pela AIAP), Edyla Mangabeira Unger, Oswaldo de Andrade Filho e Walmir Ayala (pela Fundação Bienal). Segundo o regulamento da X Bienal, caberia ao Júri convidar 25 artistas e escolher, entre os inscritos, outros 25. No que diz respeito às salas especiais, os membros entendiam que os artistas não seriam escolhidos entre os convidados regulamentares.13 A partir da análise das atas das reuniões do Júri de Seleção disponíveis no Arquivo Histórico Wanda Svevo, é possível ver que Mario Schenberg foi muito participativo nas discussões e manteve-se sempre a favor dos artistas, na medida em que discordava de qualquer sugestão de diminuição do número da representação brasileira. 12. Carta de Maurício Nogueira Lima (Presidente da AIAP) a Francisco Matarazzo Sobrinho, datada de 16 de maio de 1969, p. 1 (foi mantida a grafia original). Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal. 13. Nota divulgada à imprensa pela Fundação Bienal, em 28 de maio de 1969, intitulada: “Júri da X Bienal convida vinte e cinco artistas”. Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal. Cf. também FUNDAÇÃO BIENAL, 1969, p. 449. 120 | Ana Paula Cattai Pismel Considerações finais Nas Bienais de São Paulo, o crítico se posicionou sempre a favor dos artistas, defendendo a abertura do certame àqueles em começo de carreira, bem como aos que encontravam novos caminhos nas tendências nascentes. Diante das mudanças na configuração da representação brasileira, que visavam maior qualidade e menor número de participantes, Schenberg foi contrário a qualquer ação que pudesse diminuir o número de artistas no certame. O crítico defendeu, ainda, a abertura da Bienal às novas formas de arte que surgiram no período, como a arte de participação, as proposições e os objetos. Por sua atitude corajosa e firme em relação aos artistas, o Professor Schenberg foi visto por eles como alguém que poderia defender seus interesses perante a organização do evento. Por fim, considerou-se apropriado pontuar que muitos aspectos da participação de Mario Schenberg nas Bienais de São Paulo, não puderam ser aprofundados neste estudo e, nesse sentido, constituem caminhos passíveis de exploração em estudos posteriores. Referências bibliográficas AGUILAR, José Roberto. O mundo de Mario Schenberg. São Paulo: Casa das Rosas, 1996. AIAP e ABCA recusam convite da Bienal. Folha de S, Paulo, 1o de fevereiro de 1969. ALAMBERT, Francisco & Polyana CANHÊTE. Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores. São Paulo: Boitempo, 2004. AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo: 1951 a 1987. São Paulo: Projeto, 1989. ARTISTAS a favor do crítico, s/p, s/d, sem identificação de jornal. FAVARETTO, Celso. A outra América. Folha de S. Paulo, 09 de junho de 2001. FOLHA registrou trajetória de FHC, da USP à Presidência. Jornal Folha de S, Paulo, 18 de junho de 2011. FUNDAÇÃO BIENAL. Bienal a Bienal. Disponível em: http://www.bienal.org.br/ FBSP/pt/AHWS/BienalaBienal/Paginas/6BienalSaoPaulo.aspx?selected=6 Acesso em 15/01/2013. Mario Schenberg e a Bienal: júri nacional de seleção | 121 FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. 50 anos Bienal de São Paulo: 1951-2001. (catálogo de exposição) São Paulo: Fundação, 2001. FUNDAÇÃO BIENAL. X Bienal. (catálogo de exposição) São Paulo: Fundação Bienal,1969. FUNDAÇÃO BIENAL. IX Bienal. (catálogo de exposição) São Paulo: Fundação Bienal, 1967. FUNDAÇÃO BIENAL. VIII Bienal. (catálogo de exposição) São Paulo: Fundação Bienal, 1965. GOLDFARB, José Luiz. Voar também é com os Homens. São Paulo: EDUSP, 1994. KINOSHITA, Dina. A Política para Mario Schenberg, s.p. (texto digitado – Arquivo do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes – ECA/ USP). OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Schenberg: crítica e criação. São Paulo: EDUSP, 2010. PEDROSA, Mário. Política das Artes, (org.) Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo: EDUSP, 1995. SCHENBERG, Mario. Entrevista com Mário Schenberg. (Publicada originalmente na Revista Trans/Form/Ação, v. 3, p. 6-62, 1980). In Trans/Form/Ação. Marília, v.34, 2011. Edição Especial. SCHENBERG, Mario. Depoimento. In AJZNBERG, Elza. Schenberg – Arte e Ciência. São Paulo: ECA/USP, 1995. SCHENBERG fica. Correio da Manhã, 06/06/67. ZANINI, Ivo. Indicado o Júri da VIII Bienal. Folha de S. Paulo – Ilustrada (São Paulo – Capital). 27/04/1965. | 123 Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica renascentista GUILHERME WEFFORT RODOLFO* “Compreender a fala é reconstruir a imagem a partir das peças desmontadas” Arnhein1 Resumo: Existem muitos procedimentos de análise para uma obra de arte. O processo analítico tende a auxiliar o observador sobre os processos, as técnicas, os temas, estilos, abordagens, enfim, auxiliam a observação estética de uma peça. Entretanto, uma análise não depende apenas de termos complexos e métodos profundos, mas também de intuição e percepção do observador sobre o objeto artístico. O percurso que atende a intuição e a percepção poderá ser apresentado pela diferenciação de conceitos entre duas áreas geradoras de análises artísticas, a linguística e a fenomenologia, a fim de encontrar o eixo comum orientador de análises. O objeto escolhido é a pintura do Renascimento. Embora grande e volumosa, este trabalho não pretende planificá-la em resultados, o que seria, além de um erro, impossível, mas de forma simples, pretende apontar estruturas reconhecíveis que possam indicar as conjunções conceituais entre os dois campos do conhecimento analíticos. Palavras-chave: Linguística. Fenomenologia. Análise. Intuição. Percepção. * Mestre em Estética e História da Arte pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte – PGEHA/USP; é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Linguística do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo – FFLCH/DL/USP; é bolsista CAPES. 1. ARHNEIM, Rudolf. Intuição e intelecto na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2004; p. 97. 124 | Guilherme Weffort Rodolfo Phenomenon-linguistic analysis: elements of pictorial analysis of Renaissance Abstract: There are many analysis procedures for a work of art. The analytical process tends to assist the observer about the processes, techniques, themes, styles, approaches, in order, help the aesthetics watching for an art object. An analysis does not rely on complex terms and profound methods, but intuition and perception of the observer on the artistic object. The route which meets the intuition and perception may be submitted by differentiating between two concepts generating areas of artistic analysis, linguistics and phenomenology in order to find the common axis guiding analysis. The object chosen is a Renaissance painting. While big and bulky, this work does not intend to plan for results, which would be in addition to an error, impossible, but simply form, want to point out recognizable structures that may indicate the conceptual conjunctions between the two fields of analytical knowledge. Keywords: Linguistics. Phenomenology. Analysis. Intuition. Perception. Ao contrário do que se acredita, uma análise de obras artísticas não tende a diminuição de estesias ou essências fundamentais da arte. Na verdade, esta atividade em constante utilização passa por processos e transformações para auxiliar observadores da arte nos seus vários níveis de conhecimento e aplicação. As mudanças estão nas utilizações de paradigmas conceituais que circundam o objeto arte e, invariavelmente, dependem de intuição ligada à arte e à percepção artística. Mesmo correndo o risco de parecer simplista em indicar estas duas esferas de pensamento, aviso que estes são dois polos de densa massa e grande amplitude aos argumentos de uma análise. Aponto ainda que ambas buscam elementos simbólicos estruturais formadores de leituras, em nosso caso, de figurativas planares com efeito de realidade, ou ainda, da pintura do Renascimento. A escolha desse objeto está vinculada à facilidade em encontrar descrições desta arte plástica por pesquisadores, além de manter um conhecimento em nível geral a quase uma totalidade de leitores de arte. Como se sabe, em linhas amplas e gerais, o período renascentista apresenta uma constante preocupação com a representação do “real” em temas mítico-religiosos. As pinturas acabaram por criar símbolos permanentes que foram reutilizados por gerações de pintores. Manteremos nossa ótica sobre estes símbolos que, via intuição ou percepção, comporão elementos em uma análise. Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica renascentista | 125 As primeiras indagações a que devemos sobrepor passam em torno dos eixos de sentido de informação e comunicação do período. Ou seja, o porquê da figuração de naturezas idealizadas, de passagens bíblicas, das formas de corpos, dos elementos no campo da visão dos suportes pintados. Ou ainda, o porquê destas representações de real serem perpetuadas e compreendidas como tal até hoje. A primeira descrição segura para compreender a análise fenômeno-linguística para a obra de arte está no próprio contexto em que as pinturas estavam inseridas, pois dizem respeito aos seus “públicos”. Estamos na atividade da arte como referencial religioso e de forte propagação das ideias erigidas por uma entidade divulgadora de saberes: a Igreja. Com uma produção abundante, a necessidade de propagação de conhecimentos sobre a religião produziu um modo de operação da figuração pintada: uma comunicação direta entre a entidade e seu público. Esta necessidade já é observada desde o período conhecido como gótico, portanto anterior ao Renascimento, no qual são desenvolvidos os ornamentos ligados às escrituras católicas – “A pintura estava, de fato, a caminho de se converter numa forma de escrita por imagens [...]” (GOMBRICH, 1999, p. 183).2 O processo que culminou em certa estabilização do estilo pictórico renascentista, além do claro percurso de amadurecimentos, passou pela observação gradual do “diálogo” das obras como os públicos. As mudanças podem ser atribuídas às tendências culturais e, assim como se observa hoje, são meios dirigidos aos observadores que participam, eles mesmos, do processo de modificação. Um verdadeiro processo de ação e reação permanentes. No caso da pintura renascentista, as utilizações dos temas míticos da religião foram sendo aceitos e gradualmente ampliados, firmando uma ideia permanente para a produção (ARNHEIM, 2004, p. 96). Forma-se, desse modo, uma produção pelos símbolos. Uma produção que dialoga com seus observadores de forma tão estável e duradora é, provavelmente, a construção de constantes significações de conteúdos, estes alinhados em um sistema, já estabelecido como no caso da pintura renascentista, com linhas de hierarquias e usos. Além disso, a produção dessas pinturas pode ser observada como uma consequência de fenômenos de produção e aceitação cultural, todos relacionados ao bom desenvolvimento do conteúdo religioso do momento. Logo, trata-se de uma língua pictórica renascentista provavelmente construída por uma série de fenômenos observáveis, todos ligados ao vetor da persuasão via elementos simbólicos. 2. Além dos capítulos 12 a 14. 126 | Guilherme Weffort Rodolfo Elementos Em vista da manutenção do diálogo durador entre produção e público, podemos partir de dois pilares do conhecimento promotores de análise. O primeiro é a formação de um sistema coletivo do qual todos os viventes ao seu redor o reconhecem e trocam informações na forma de soma de sinais, em sua maioria reconhecíveis, e, desde a organização metodológica da linguística proposta por Saussure, chamado de “língua”. A língua existe na coletividade sob a forma de uma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, são repartidos entre os indivíduos. (SAUSSURE, 2012, p. 51) Com isso, observa a fala, o mecanismo direto da língua, que contém os elementos simbólicos do sistema e suas variações de combinações. Cada indivíduo combina os elementos do sistema para ser compreendido pelo seu ouvinte, que também reconhece o mesmo sistema. É uma atividade que faz parte de uma coletividade, mas ela mesma não é coletiva. Ou seja, é de uma coletividade por pertencer ao ambiente social e, com isso, formar ou derivar da cultura da época, dos conceitos, etc; ao mesmo tempo, cada indivíduo a executa à própria vontade de emissão de códigos, logo, por ação da subjetividade e, assim, individual. Certo que cada emissor está envolvido no mesmo universo de códigos, passamos a formação de estilos próprios pela necessidade de comunicação social. O mesmo pode ocorrer na pintura e seus pintores de uma mesma época. Dentro de uma rede de informações e símbolos pertencentes a um sistema estabelecido, a produção pictórica acompanha uma esfera de símbolos que substitui ou representa o real. A representatividade na pintura renascentista, no nosso caso, está baseada em uma formulação da realidade, simbólica, com conceitos de imagens adotadas pela época. O artista pinta algo que signifique, ou ainda, que possa gerar significado ao observador: símbolos reconhecíveis e reutilizáveis formadores de ideias. Estes “significantes” não são obrigatoriamente claros, mas persistem na esfera de conceitos culturais da época. O segundo pilar conceitual é o que observa os símbolos em uma pintura, do renascimento como definimos, entendidos como intencionalmente composto para que produza efeito sobre seu observador. Sendo o símbolo ou “objeto”, no caso da fenomenologia assim chamado, a manifestação pictórica é passível de Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica renascentista | 127 interpretação e recomposição pelo observador. Para isso, a decifração do objeto depende de uma dupla ótica: uma da natureza, a qual o objeto, o mesmo proposto na pintura, ocupa seu lugar sem que seja intencional sua aparição; ou, em uma ótica fenomenológica, que observa o objeto intencional e como este objeto se manifesta ligado a um ser (HUSSERL, 2006). A observação do objeto deve passar por um modo de doação, em nosso caso, elementos dos quadros renascentistas, e sua estabilidade diante do observador revelará uma consciência, a qual é chamada de “noema”. Noema é o meio ideal pelo qual a manifestação fenomênica da realidade se torna possível ao seu observador. O processo torna viável o objeto à consciência do observador e, assim compreendido, tornando-o presente à percepção.3 A percepção e a intuição estão presentes nos processos, aqui apresentadas objetivando aplicá-las apenas à problemática escolhida. Percepção e intuição são situadas como atos subjetivos, necessários aos processos fenomenológicos e linguísticos de conhecimento de mundo. A coletividade torna possível a estrutura, mas a atividade vem do observador. As obras e seus elementos constitutivos podem ser analisados diante do observador esperto ao meio, ou ao meio do registro da obra, apto a reconhecer seus traços salientes formadores de elementos analisáveis. Efeito A compreensão da pintura diante de seu tempo, ou seja, em uma ótica diacrônica dos fatos, nos faz intuir os processos de observação do objeto pictórico no Renascimento. Sabemos, através de estudos e arquivos, como eram as técnicas e idiossincrasias da época, sem delimitar uma sequência fixa e adotando um amplo registro. Sabemos que o período é marcado por uma renovação em todas as artes e em toda a sociedade. A escrita religiosa passa a ser mais amplamente divulgada e remodela sua forma passando a adotar a descrição e a simbologia como efeitos literários. A pintura a segue, revelando as imagens contidas nos textos e gerando imagens relacionadas aos mesmos. No Renascimento, o texto se torna um veículo 3. Em linhas gerais, a fenomenologia segue em um percurso de descobertas sobre a apreensão dos sentidos no vivido; por questões metodológicas, aqui não darei continuidade à discussão dessas motivações. A saber, seguem-se os conceitos sobre a essência do ser geradora do “eidos” intuitivo, juízos, estados, etc. 128 | Guilherme Weffort Rodolfo de expressões visuais e a pintura um veículo de expressões verbais (ARNHEIM, 2004, p. 97). O processo de observação da pintura, assim como seus elementos, necessita dos dois métodos descritos, e podem aqui ser observados juntos: um ideograma pintado, ou gesto reconhecível, é observado como um indicador de um conceito e este tanto é um significante pronto dentro de um sistema “padrão” da época, tal qual aponta a linguística; como também é um objeto intencional manifestado, revelador de uma consciência, um noema, explicado pela fenomenologia. Essa constatação é providencial ao analista que pode intuir suas características dentro do sistema, portanto, existentes dentro de uma “linguagem pictórica local”, quanto perceber os símbolos dispostos na obra e relacioná-los ao período, observado o fenômeno que o cerca. A percepção e a intuição reconhecerão os traços salientes ou distinções existentes nas linhas e formas da obra. Cada pintor, como indivíduo dotado de expressão e escolhas, transita no mesmo sistema já observado no período, mas com as diferenças possíveis de suas subjetividades. Isso construirá uma gama de conteúdos simbólicos, possivelmente reconhecíveis por suas pequenas diferenças, ou saliências. Em análise “Começo a compreender uma filosofia introduzindo-me na maneira de existir desse pensamento, reproduzindo seu tom, o sotaque do filósofo.” Merleau-Ponty4 A fisionomia coletiva da pintura renascentista permite observar distinções. Como vimos, os dois métodos buscadores de significação concordam com a questão da individualidade geradora de símbolos destinadas ao observador da época, cada vez mais, inserido no próprio contexto. É possível distinguir traços por suas pequenas diferenças. Os traços salientes podem ter uma imensa variação, mas não saem do espectro do sistema. Devem conter suas características que os 4. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Análise fenômeno-linguística: Elementos de análise pictórica renascentista | 129 tornem possíveis de identificá-los como “reais” e dentro do sistema ali existente. O feixe de traços salientes poderá formar unidades comparáveis, reconhecidas como distinções e redundâncias, elementos já mais sólidos em uma análise (JAKOBSON, 2011, p. 74-76). O reconhecimento dos elementos de uma obra situa a compreensão do “texto” da pintura e sua reconstrução, mesmo que imaginária, trazendo a recomposição da obra ao observador. A intenção é analisar algo que já é enriquecido pelo seu próprio conteúdo, ou ainda, descobrir tal forma enriquecida, sem que a análise seja a diferenciadora, mas a promotora da observação. Ao final, outros elementos poderão compor os argumentos definidores da obra: a distribuição, a relevância ao tema principal, em qual narrativa é situada, os humores apresentados, todos formadores de códigos ao analista e teorizados dentro de uma classificação possível entre: a obra, emissor de conteúdos, e seu observador, receptor ideal. O conjunto da obra não transmite com clareza sua essência, nossa subjetividade intuitiva e perceptiva passa a traduzir o polissêmico em linhas puras. Tanto naquele que fala como naquele que escuta, ela (a linguagem) é completamente diferente de uma técnica de cifração ou decifração para significações já prontas: primeiro é necessário que ela as faça existir a título de entidades referenciáveis, instalando-as no entrecruzamento dos gestos linguísticos como aquilo que este mostra de comum acordo. Nossas análises do pensamento fazem como se, antes de ter encontrado as suas palavras, ele já fosse uma espécie de texto ideal que nossas frases procurariam traduzir. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 71) Ao que parece exclusivo da linguística, o efeito a ser traduzido pelo indivíduo é também matéria permanente da fenomenologia. Analisamos a opacidade de sentidos. A divisão, o reconhecimento e, depois, a classificação permitirão o entendimento de uma obra em um universo reconhecível. Partimos das coisas que uma obra nos transfere, nos secreta e observamos nelas o que já existe em nós (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 244). A intuição nos estabelece como observador atemporal da obra, enquanto a percepção nos habilita como coautor da mesma. A intuição e a percepção ampliam a capacidade de compreensão do analista, observando o período, as ideias, as formas e os sentidos deixados por uma obra. 130 | Guilherme Weffort Rodolfo Referências bibliográficas ARNHEIM, Rudolf. Intuição e Intelecto na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2004. GOMBRICH, Ernst H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999. 16° edição. HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução Márcio Suzuki, Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2011. MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac&Naify, 2004. . Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye. São Paulo: Cultrix, 2012. | 131 Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea JULIANA FROEHLICH* Resumo: O método de uma pesquisa não é habitualmente objeto de um texto, pelo contrário, ele busca evidenciar o objeto. Entretanto, este artigo pretende relatar uma metodologia de pesquisa de mestrado que, ao longo do processo, fez-se em função do fenômeno ao qual se debruçava, a saber, a criação da obra de arte. O caminho da pesquisa é apresentado em dois movimentos: a descrição da escolha de adentrar o fenômeno da criação da artista Inês Moura em seu ateliê e, em seguida, o relato das decisões de apropriação de imagens e das interpretações dos registros. Palavras-chave: Arte Contemporânea. Método. Fenomenologia. From the studio to the text in the contemporary art research. Abstract: The method of a research is not usually an object of a text. On the contrary, the method aims to clarify the object. Nonetheless, this paper intends to narrate a master´s research methodology, that during the process was made according to the studied phenomenon, which is the art work´s creation. The research path is here presented in two movements: the description of the choice to approach the creation´s phenomenon inside the artist´s studio and then we detail the decisions made for the appropriation of images and the interpretations of Inês Moura creation´s phenomenon. Keywords: Contemporary Art. Method. Phenomenology. * Mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA USP) 132 | Juliana Froehlich Esse texto pretende apresentar uma discussão metodológica sobre a pesquisa em arte contemporânea a partir da dissertação de mestrado Juventude e arte contemporânea: indefinição e itinerância em nove obras e duas exposições de Inês Moura,1 desenvolvida entre 2011 e 2013. Considerando que a arte “contemporânea” está ainda em processo e tem definições mutáveis, há de se considerar que os caminhos da pesquisa em arte devem ser pensados desde a delimitação apresentada pelo objeto até a forma textual final. Mesmo que este artigo seja praticamente um relato, esperamos que ele possa contribuir para o pensamento entorno de uma produção artística recente que ainda está “escrevendo” seu nome, suas denominações. A pesquisa de mestrado começou com a aceitação de uma premissa para resultar na negação da mesma. Isto é, partiu de uma categoria existente no sistema da arte contemporânea, a jovem arte contemporânea, e se propôs a acompanhar um artista jovem com a tentativa de adentrar a criação de suas obras de arte. Porém, essa categoria era associada a noção de “novo”, o que não se verificou nas obras ou mesmo na relação da artista com o circuito. Desse modo, tal categoria era negada a cada capítulo da dissertação. Aqui não abordaremos essas análises, melhor descritas e desenvolvidas ao longo dos capítulos e nas considerações finais da dissertação citada.2 Portanto, ficaremos aqui no relato do método, o qual foi imprescindível para as nossas interpretações. O objetivo era abordar a criação, este entre do homem e sua obra, como um fenômeno. Pretendíamos “[...] deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 2009, p. 74). Desse modo, as reflexões que tecemos sobre o fenômeno da criação existiram a partir da criação das obras de um artista. A reflexão se adequaria ao que se mostra: o que artista e obra evidenciam direcionaria as interpretações e escolhas de teorias sobre a arte contemporânea. Destarte, dividimos o presente relato do método em dois movimentos: o primeiro, entendimento de categorias exteriores ao processo criador, mas que, 1. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. Linha de pesquisa: metodologia e epistemologia da arte. 2. FROEHLICH, Juliana. Juventude e arte contemporânea: indefinição e itinerância em nove obras e duas exposições de Inês Moura. Dissertação de Mestrado. PGEHA/USP. 2013. Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea | 133 mesmo assim, delimitam a criação, como a categoria “jovem arte contemporânea” e, em seguida, a aproximação do processo do artista. Este movimento seria a entrada e o acompanhando da criação de obras de um artista que, no nosso caso, aconteceu dentro de ateliê e exposições. Descrevemos assim o processo de estar com o artista que se dispôs a abrir o seu ateliê. Depois que o trabalho de “campo” havia terminado, abordamos os registros das obras e dos processos de criação com o mesmo cuidado em que fizemos durante a estadia no ateliê. O que chamamos de segundo movimento seria a interpretação das obras com referenciais teóricos, a apropriação das fotografias da artista e do que recolhemos durante oito meses com Inês Moura e suas obras. Dois movimentos que unem um fenômeno, o da criação, que compreende o artista e sua obra. Sob o mesmo ponto de vista, a obra de arte e o artista são sempre, para nós, enigmas, logo, merecedores de reflexões extensivas, não precisamente de conclusões e afirmações que encerram suas possibilidades de ser. Primeiro movimento: ateliê, artista e obra O que seria jovem arte contemporânea? Esta questão movimentou a busca de uma definição, a qual se apresentava de formas distintas pelo mercado e pelas instituições de arte em textos de editais, exposições e catálogos. Editais brasileiros, como o Prêmio EDP (2012) e o Rumos Itaú Cultural (2011), assim como exposições internacionais,3 colocavam a juventude dos artistas como critérios determinantes para a curadoria. Um exemplo, foi a exposição de arte brasileira, montada no Rio e em São Paulo, em 2009, chamada Nova Arte Nova, que explicita a escolha curatorial de artistas de menos de 30 anos. “Nova Arte Nova traz artistas jovens, na maioria entorno dos 30 anos, que já tenham se destacado por uma produção original e coerente” (VENANCIO FILHO, 2008, p. 4).4 A partir dessas fontes, foi possível configurar que a jovem arte é uma categoria aberta de significados, mas que se relaciona diretamente ao artista, primeiro 3. Exposição Uncertain States of America — American Art in the 3rd Millennium em 2005 na Noruega. Há também uma galeria francesa só de jovens artistas chamada “Galerie Jeune Artistes”. 4. Grande parte dos 57 artistas apresentados nessa exposição são atualmente representados por galerias e já fizeram suas exposições individuais pelo Brasil. 134 | Juliana Froehlich a sua idade e depois a sua posição em relação ao circuito da arte, sendo esta marginal. Assim, já que o circuito apresentava a jovem arte nesses moldes, buscamos identificar, na pesquisa, o que era correspondente ao mercado e às instituições, depois ao artista e, por fim, à obra, ou o que estava “em obra” em uma juventude. Portanto, primeiramente, selecionamos uma artista jovem, nos referenciais recorrentes do sistema da arte contemporânea: Inês Moura tinha menos de 30 anos, produzia e fazia exposições como jovem artista ou margeando o circuito. O primeiro movimento foi acompanhar a criação de obras de uma “jovem artista”, de forma que ela e seus trabalhos fossem pensados a partir do que eles mesmos desvelassem. “Em outras palavras, para saber o que é a subjetividade produtora, temos que partir do caso [der Fall] e não da regra ou de regras, ainda mais quando essas são abstratas e resultam de um entendimento limitado” (WERLE, 2009, p. 178). Voltamos ao caso em sua profundidade numa tentativa de escapar da superficialidade da regra. Assim sendo, propusemo-nos a acompanhar o trabalhar em ateliê de Inês Moura, semanalmente, durante oito meses. Contamos, para isso, com um termo de consentimento da artista.5 Durante esse período dentro do ateliê, evitamos qualquer interpretação, indicação ou suposições sobre o que se apresentava. O propósito era ir ao ateliê como assistente da artista ou observadora do que fosse que Inês Moura se propunha a fazer. A presença de uma pesquisadora não era algo neutro, desse modo, decidimos que as escolhas sobre o que fazer e como seria o dia de ateliê deveriam ser sempre da artista, portanto, a pesquisadora só respondia aos movimentos de Inês Moura. Como explica Amatuzzi: “às vezes, não há como separar pesquisa e intervenção. A pesquisa fenomenológica se apresenta, sob essa luz, como pesquisa participante, em ação, interventiva.” (AMATUZZI, 2003, p. 24) Para a pesquisa, queríamos algum registro do período do ateliê e, como a pesquisadora já era algo que exercia uma mudança no trabalhar de Inês, foi preciso escolher aparatos que interferissem menos. A câmera do celular se tornou algo corriqueiro. Como o procedimento fotográfico era parte da linguagem da 5. O tempo de oito meses de encontro semanais estava de acordo com um cronograma de pesquisa, ou seja, o máximo de meses possíveis dentro de período letivo e de mestrado. Os oito meses procuravam manter uma rotina na qual a presença da pesquisadora, se tornasse cada vez mais intrínseca, participante e contínua. Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea | 135 artista, pareceu pouco intervir, assim foi possível registrar Inês Moura enquanto trabalhava. Essas fotos foram selecionadas e organizadas como anexo ao final da dissertação com título de Diário Fotográfico (Imagem 1). Imagem I: Foto da página 179 da dissertação com série de imagens do Diário fotográfico. Após o período de ateliê, a decisão para a redação final foi partir das obras e de sua criação para abordar suas temáticas, como se pudéssemos abrir os bastidores do processo de ser artista atualmente por meio de alguns trabalhos. Obra e vida dialogam no sentido amplo, ou seja, não se tratava de analisar o artista em busca de sua obra, ou de analisar a obra em busca do eu do artista, pois “o sentido de sua obra não pode ser determinado por sua vida” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 125). Quando nos referimos à vida, queremos dizer: vivência enquanto artista e nada além do que é ser artista. Seria abordar a “vida de artista”, diferente do que seria abordar somente sua vida psíquica.6 Segundo movimento: da imagem ao texto e vice-versa Como o objetivo era partir das obras e nos aproximar de sua criação, era preciso selecioná-las para olhar esse processo criador. Portanto, o segundo movimento da pesquisa foi o de apropriação dos registros, isto é, a interpretação do material recolhido a partir da convivência com a artista e do ateliê. Inicialmente, optamos pelas obras e exposições que acompanhamos a criação. Em seguida, queríamos garantir que o leitor da dissertação pudesse “ver” os trabalhos selecionados de Inês 6. Para auxiliar essa compreensão e interpretação, lançamos mão de aspectos da fenomenologia de Merleau-Ponty, principalmente o que está descrito em: MERLEAUPONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac&naify, 2004. 136 | Juliana Froehlich Moura. Logo, foram privilegiadas as obras e exposições das quais o acesso às imagens era permitido, pois a artista nos ofereceu ou havia disponibilizado em seus sites. Outra decisão foi abordar mais obras, de modo que o leitor pudesse ter referências visuais da abrangência da pesquisa da artista. As obras foram agrupadas em três tópicos/capítulos: Flutuações, Sobrevivência e Entre artistas. Ao longo de cada tópico, as imagens (fotografias) das obras e das exposições foram recortadas de forma indiscriminada, porém nada aleatórias, de modo que se estes recortes se tornassem uma possibilidade de “ver nos trabalhos de Inês as análises, interpretação e aproximações propostas pela escrita.” (FROEHLICH, 2013, p. 31). Dessa maneira, há na dissertação um pequeno percurso visual a cada página, que complementa, ilustra e possui a sua própria narrativa junto ao texto. O texto se refere ao que pode ser visto, sequencialmente, pelos números das imagens de modo que, por vezes, fica óbvia a relação mais obscura, propondo ao leitor o desafio que é decifrar o visual em palavras (Imagem II). As obras de Inês são as únicas que figuram no texto. Imagem II – Foto da página 92 da dissertação. Exemplo dos recortes e da relação do texto com as imagens através de números Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea | 137 A pretensão é, fundamentalmente, “ver” o enigma da criação, sem apresentar resoluções e novos critérios, mas discorrer sobre alguns aspectos que ambos apresentam. De modo que, “está longe a pretensão de resolver o enigma. Permanece a tarefa de ver o enigma.” (HEIDEGGER, 2010, p. 201). Este “ver” é contemplar, “olhar” desinteressadamente e, assim, aproximar-se de um desvelar da obra. Aranha aponta: “quando o ser apreende os sentidos visuais da experiência vivida, está originando a possibilidade de conhecer o mundo num código diferente do código verbal.” (1997, p. 156). Ou seja, a arte é conhecimento em si, conhecimento articulado não só de forma verbal, mas visual. E ele é produzido, mantido e circulado pelo próprio “ser-artista”. Logo, procuramos disponibilizar um percurso visual-textual, pois poderia haver aí um conhecimento visual sobre o mundo. O primeiro tópico da dissertação, Flutuações, concentra obras que tematizam o mar, a navegação e a itinerância. Temas que igualmente apontam para a vivência de Inês e outros artistas, como “radicantes”, termo cunhado por Nicolas Bourriaud (2010), que vem em auxílio às interpretações das obras, assim como a delimitação do sistema da arte contemporânea compreendida como rede, descrito por Anne Cauquelin em Arte contemporânea: uma introdução (2005). Uma vez que “Inês Moura (assim como nós, cada um a sua maneira) flutua, não só entre culturas, porque viaja constantemente entre Brasil e Portugal, mas também entre determinações de um sistema.” (FROEHLICH, 2013, p. 59). Neste tópico, temos primeiro um desenho da série Navegações #1 (2012), em seguida detalhes dos desenhos da instalação Tanto Mar módulo #1 (2011), seguidos por uma fotografia da instalação na exposição Aduana. Essas obras são abordadas individualmente. Em seguida, elegemos alguns desenhos das séries: Divagações poéticas (2012), Lugares (2012) e Our relationship explained by nature #2 (2012). Estas são analisadas como um conjunto. “Como os desenhos suspensos no espaço do papel, pretendemos flutuar entre as linhas que a artista nos oferece como experiência de mundo vivido. Mundo seu, mundo nosso, compartilhado.” (FROEHLICH, 2013, p. 44). No segundo, Sobrevivência, a partir da temática da sobrevivência evidenciada no embate de vegetações sobre construções de algumas obras de Inês, procuramos por analogia a sobrevivência da artista e de seus pares, categorizados como jovens, que buscam o seu reconhecimento no circuito da arte. A compreensão da paisagem e representação da natureza, em A invenção da paisagem 138 | Juliana Froehlich (2007) e Hal Foster, no livro Return of the real (1996), auxiliam nessas analogias interpretativas do sobreviver no circuito artístico. “Como uma planta que nasce sobre o concreto, o jovem que é artista se depara com tudo que existe antes dele, ou seja, com uma “tradição” de produção visual, de arte e de obra.” (FROEHLICH, 2013, p. 90) As obras Paisagens (2012), Our relationship explained by nature #1 (2012) e Herbarium in Loco (2011), que direcionaram este tópico, evidenciam visualmente e em seus títulos a temática da natureza, a paisagem, o orgânico e o estudo da botânica. A última obra dialoga com as ciências que chamamos “duras” (empiristas), pela sua coleta, categorização e catalogação de espécimes de um sítio específico. Como estudos de botânica e a consequente domesticação da natureza em jardins e herbários. “A artista ‘cuida’ de seu objeto de estudo aos olhos do espectador, porque o mundo natural, seu objeto, lhe é constituinte.” (FROEHLICH, 2013, p. 111). Por último, o tópico Entre artistas parte da análise da montagem de duas exposições: Aduana (2011) e Uma América7 (2011), das quais Inês Moura tomou parte, assim como a obra coautoral Vou te contar me (2011), de Inês Moura e Sofia Costa Pinto. A montagem desses trabalhos se apresenta como lugar do entre e é compreendida como lugar possível de diálogo, cooperações e encontros dos artistas com seus pares. Situação vislumbrada na “partilha do sensível” de Jacques Rancière, a qual compreendemos ser entre artistas na montagem das exposições e, posteriormente, com o público. “Ou seja, seria nas montagens onde tudo “toma forma”, onde o corpo de obras da artista se ofereceria quase por completo ao seu espectador, convidando-o a partilhar do mesmo enigma do visível.” (FROEHLICH, 2013, p. 141). Nos dois primeiros tópicos, propusemos reflexões com desenhos, fotografias e instalações, trabalhos individuais da artista Inês Moura. Já no último, os trabalhos coletivos são objeto de reflexão, pois a trajetória da artista é marcada por consecutivos trabalhos coletivos, como obras coautorais, exposições compartilhadas e o próprio ateliê. 7. Aduana aconteceu na Sala do Picadeiro Real no Museu de História Natural e da Ciência de Lisboa e Uma América, na Galeria Municipal de Montemor-o-Novo, ambas no período entre outubro e novembro 2011. Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea | 139 Os coletivos conectam os artistas, abrindo uma dimensão do “entre- artistas”. Neste entre é possível acolher um lugar que seria igualmente um “não lugar”, como do artista estrangeiro e sua itinerância. Consequentemente, os artistas, muitos deles jovens, encontram sua resistência nessas associações […]. (FROEHLICH, 2013, p. 140 e 141) Considerações finais Buscamos aqui relatar uma preocupação com a metodologia de pesquisa em arte contemporânea, que precisa, a cada passo, ser repensada em função de seu objeto e não de alguma teoria, pois a teoria viria aqui em função de conceitos apresentados pelo fenômeno estudado. Desse modo, lançamos mão de aspectos da fenomenologia na compreensão de que objeto e sujeito de pesquisa são parte do mesmo mundo. “O termo ‘fenomenologia’ não evoca o objeto de suas pesquisas nem caracteriza o seu conteúdo qüididativo. A palavra se refere exclusivamente ao modo como se demonstra e se trata o que nesta ciência deve ser tratado.” (HEIDEGGER, 2009, p. 74) Isto é, fazer uma pesquisa fenomenológica, por nós, foi compreendido como uma metodologia na qual primeiramente não tratamos de explicar o fenômeno, pois, ao fazê-lo, encerar-nos-íamos em algo que não o é. A tentativa foi estabelecer uma relação entre o que se vivia no ateliê com teorias existentes sobre uma produção visual, ao invés de sobre delimitações do que um artista deve ser. Como aponta Merleau-Ponty, em seu texto sobre Cézanne, quando após descrever o artista, ele faz a seguinte observação: As criações do artista, como aliás as decisões livres do homem, impõem a esse dado um sentido figurado que não existia antes delas. Se nos parece que a vida de Cézanne trazia em germe sua obra, é porque conhecemos a obra primeiro e vemos através dela as circunstâncias da vida, carregando-as de um sentido que tomamos emprestado à obra.[...] É certo que a vida não explica a obra, mas é certo também que elas se comunicam. A verdade é que essa obra por fazer exigia essa vida. (MERLEAU-PONTY , 2004, p. 136). Ou seja, os caminhos que nos levaram durante a escrita dissertação foram a partir da criação, da obra que se fazia em relação a uma vida de artista. E as 140 | Juliana Froehlich leituras visuais propostas junto ao texto nasciam desta mesma relação. Como um enigma existente além do mercado, das instituições e mesmo da academia, a arte por vezes nos convida a voltar a olhá-la com diferentes perspectivas, como fizemos com a fenomenológica. Referências bibliográficas AMATUZZI, Mauro M. Pesquisa Fenomenológica em Psicologia. In: BRUNS, M.A.T. e HOLLANDA, A.F. (Orgs.) Psicologia e fenomenologia : Reflexões e perspectivas. Campinas: Ed. Alínea, 2003. ARANHA, Carmen. Movimento fenomenológico: aproximação do fenômeno. In: Joel Martins.Um seminário avançado em fenomenologia. São Paulo: EDUC, 1997. BOURRIAUD, Nicolas, Radicante. São Paulo: Martins Fontes, 2011. CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _______. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007. FOSTER, Hal. Return of the real the avant-garde at the end of the century. Cambrige MIT Press, 1996. FROEHLICH, Juliana. Juventude e arte contemporânea: indefinição e itinerância em nove obras e duas exposições de Inês Moura. 2013. 190f. Dissertação de Mestrado do Interunidades em Estética e História da Arte. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010. ______. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2009. INSTITUTO TOMIE OTHAKE. Prêmio EDP nas Artes – Incentivo ao Jovem. São Paulo: 2012. <http://www.canalcontemporaneo.art.br/saloesepremios/archives/ 004695.html> Acesso: 17 de abril de 2012. ITAÚ CULTURAL. Edital Rumos Artes Visuais 2011-2012, São Paulo: 2011. <http:/ /www.itaucultural.org.br/cadastros/precadastro/pdf/Edital_ArtesVisuais.pdf > Acesso: 17 de abril de 2012. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac&naify, 2004. Do ateliê à escrita na pesquisa em arte contemporânea | 141 MOURA, Inês <http://inesmoura.com/Vou-Te-Contar-Me-I-Will-Tell-You-Me> Acesso: 28 de janeiro de 2013. . Vou te contar me. Caderno de Wokshop, 2012. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009. VENANCIO FILHO, Paulo. et al. Nova arte nova. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2008. WERLE, Marco Aurélio. Subjetividade artística em Goethe e Hegel. In: GALÉ, P. F.;WERLE, M. A. Arte e filosofia no idealismo alemão. São Paulo: Editora Bacarolla, 2009. | 143 Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira SILVIA MIRANDA MEIRA* Resumo: A cultura brasileira, diversificada e descompromissada, compartilha múltiplas realidades com crenças e valores que se aproximam e se distanciam, num jogo abrangente de identidades culturais. Hoje é necessário ampliarmos o nosso olhar para essa relação de coexistência e de interação na nossa produção artística, provocada pela convivência e pelo cruzamento de diversas filiações. Cabe, na História da Arte feita no Brasil, um trabalho mais rigoroso de mapeamento dos testemunhos materiais das diferentes culturas que aqui habitam, dos estilos que se compõem enquanto expressão, no contexto como interconexão, em símbolos e signos distintos, interconectados e heterogêneos que aqui se desenvolvem. O lugar do discurso dessa fala de compreensão implica os diferentes no que são, sem ambiguidades ou discrepância, e uma visão redimensionada para o conceito de arte. Modalidades híbridas de organização com espaço para o outro, com disposição e presença efetiva de entendimento. O processo implica em aceitarmos que vivemos uma cultura feita de traduções, dublagens e legendas, onde não há raízes que suportem formas e bases culturais. O objetivo da pesquisa é propiciar um debate sobre o possível entendimento das identidades regionais, locais e globais, que aqui existem, e se misturam, no conceito contemporâneo de brasilidade. Pesquisar o entorno para a ampliação da compreensão de nossa cultura e de suas interações com o intuito de promover entendimento do que é a nossa diferença. Palavras-chave: Diversidade. Arte. Brasil. * Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte / Livre Docente pela ECA/ USP / Doutora em História da Arte séc. XX / Univ. Paris IV – Sorbonne / Especialista em Pesquisa no MAC USP. 144 | Silvia Miranda Meira Aesthetic and ideological reasons revealed in Brazilian art Abstract: The diverse Brazilian culture shares multiple realities, beliefs and values that approach and move away from a comprehensive set of cultural identities. Today it is necessary to broaden our gaze to this relationship of coexistence and interaction in our artistic production, caused by the coexistence and the intersection of various affiliations. In Art History in Brazil a more thorough job of mapping material evidence of the different cultures that live here is in need. A style that includes expression of the context of the interconnection of symbols and distinct the heterogeneous signs that are being developped . A place of discourse that speaks how to understand the different, even in a unambiguous or discrepancy way, but give a view of the concept of true art. Hybrid organization of arrangements with room to the another, with effective layout and presence of mind. The process involves accepting that we live in a culture made of translations, voiceovers and subtitles, where there are no roots that support cultural forms and bases. The research objective is to promote a debate on the possibility of understanding the melting pot of regional, local and global identities that exist in the contemporary concept of Brazilianness. The study search environments for increasing the understanding of our culture and their interactions, in order to promote the understanding of what is our difference. Key-words: Diversity, Art, Brazil. Introdução A História da Arte, como um campo do conhecimento que pensa a arte e suas especificidades, deve ampliar suas considerações às múltiplas realidades, diversificadas e descompromissadas, da arte brasileira. A cultura brasileira compartilha crenças e valores que se distanciam no jogo abrangente das identidades culturais. Hoje, é necessário ampliarmos as investigações e considerar a inclusão de estudos étnicos, de representação identitária nacional, desenvolvidos a partir de perspectivas distintas, nas linhas de pesquisa de História da Arte no Brasil. As discussões às quais a História da Arte no Brasil se vê atrelada, muitas vezes, apresentam ao campo de estudo visões limitadas, pela falta de integração de modelos diferentes de arte, que não se enquadram nos critérios da historiografia tradicional europeia, como menciona Pereira. (2012, pp. 87-106) A atitude que procura uma mudança de enfoque, para além dos modelos hegemônicos e critérios que foram disseminados pela Europa e transformados Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira | 145 em valor universal, é de reflexão face a determinados pressupostos da estética, crítica e teoria da arte que interferiram e nortearam os modelos de estudo e de investigação no Brasil. Valores que, aplicados ao caso brasileiro, não se adequaram muito bem à realidade artística local, segundo Chiarelli (1999, p.12). A arte ligada ao avanço tecnológico, como menciona Pignatari (1987, p.76), criaria um embate ideológico violento à brasilidade, já que a expectativa era que a América Latina revelasse o processo da nação, que vivia ligada ao mundo rural e agrário, e aos nativos da terra. A catequese acadêmica do homem vestido, apregoada desde a Academia Imperial, desenvolveu, segundo Schwarz (1989, pp.37-38), “um caráter postiço, inautêntico, e imitado da vida cultural que levamos”, importadores de consciência enlatada, segundo já ironizava Oswald de Andrade, em 1928, em seu Manifesto Antropofágico. Nesse sentido, uma revisão sobre os princípios nos quais a História da Arte se desenvolveu no Brasil foi um dos seguimentos desse estudo, que investigou, de início, o processo de formação dos acervos nacionais e, atrelado a eles, as diferentes linhas de pesquisa de História da Arte desenvolvidas no Brasil, de maneira a desvendar o “fora do eixo”: o mundo não europeu, primitivo e exótico. (MEIRA, 2012) Atualmente, o campo de pesquisa em História da Arte se enquadra em critérios adotados pela historiografia tradicional, que, segundo Maria Lucia Kern (2004, p.3), “é resultante de seleções e exclusões adotadas por certas coleções, e museus, que criaram um sistema de representação da arte que geraram sérias consequências para a historiografia no Brasil, tais como as classificações, hierarquias, sacralizações de obras-primas, entre outras”, conduzindo a valorização de certas manifestações em detrimento de outras. As diferentes maneiras como a identidade nacional e a cultura brasileira foram consideradas na sua autenticidade, e construção simbólica, procurariam impor como história legítima critérios correspondentes aos interesses e questões políticas do estado e da academia: modelos de ensino artístico ligados ao compromisso com uma concepção idealista da arte; aspectos de um mundo de colonizadores; e aspectos considerados em sociedades industrializadas como forma de consolidação do capitalismo, estratégia de posição hegemônica do mundo ocidental. A tradição em pesquisa de História da Arte brasileira nos contornos do regional, a exemplo da Paraíba, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, acentua predominantemente o debate em torno da busca de identidade cultural, 146 | Silvia Miranda Meira focalizando o regional no universal, o rural no urbano; delimitando uma fronteira e barreira dificilmente diluída, em detrimento a suas autenticidades, contaminada pela terminologia da exclusão em suas considerações. A necessidade de uma ampliação da visão e do rumo histórico da arte brasileira, demanda crescente do circuito brasileiro contemporâneo, acabaria por diferir a arte local daquela produzida em outros países, aceitando nela a presença de um substrato popular e artesanal, questionando a especialização e exclusividade das técnicas do oficio do artista, a exemplo da arte da literatura de cordel, entre outras. A ampliação do conceito de arte visual para cultura visual, ancorando a prática artística a outros territórios, além das coleções nacionais de obras reconhecidas, criaria a possibilidade do entendimento e do olhar aproximado de arte e cultura brasileiras. O estudo e projeto de pesquisa em História da Arte aberto a fatos históricos e acontecimentos culturais notáveis no país, onde a cultura local designaria o território do circuito artístico, transgride os contornos tradicionais da História da Arte e incorpora opções das teorias das diferenças, como menciona Canclini (2009, p. 61), ao permitir a circulação entre matrizes culturais diversas e o entendimento dos processos de mestiçagem e hibridização da arte, não a parir da desigualdade técnica ou simbólica, mas trazendo à historiografia brasileira o acesso de determinadas manifestações de arte vinculadas a nossa cultura. Reconhecer a prática artística associada às relações de significação e de sentido para a cultura brasileira exige uma operação de reconceituação da arte. O conceito, ainda impreciso, busca incluir narrativas reducionistas e fragmentadas de práticas artísticas brasileiras. A inclusão de novos parâmetros na caracterização da arte nacional, com o reconhecimento de diferentes repertórios a ela filiados, permite mapear os distintos modelos de arte e produzir entendimento de dentro da diferença. Investigações antropológicas em torno das funções outras da arte, com abordagens metodológicas diferenciadas, inserem as produções artísticas nativas da terra dentro de seus próprios contextos socioculturais, possibilitando, de modo mais amplo, descrever e revelar diferentes funções, estatuto e significação da arte. Em contextos culturais regionais, fora do modo de vida urbano e de instituições de ensino e colecionismo, a arte brasileira se vincula a outros campos do saber. Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira | 147 A ideia de arte em culturas primitivas A ideia de cultura e arte primitiva, que habita o vasto território brasileiro, cujo papel está ligado a uma atividade artística dentro de um contexto cerimonial e a conteúdos simbólicos, onde é possível observarmos também um valor estético, foi outro segmento desse estudo. A contribuição de diversas culturas – como as de derivação indígena, africana, caiçara, cabocla, etc., manifestações que teriam um caráter fundamentalmente popular, proveniente de comunidades marginalizadas, não representadas em setores oficiais nem em coleções nacionais representativas, corrente principal da arte do país, não da arte europeia no Brasil – sofre, no entanto, quase que exclusão de um modelo de historiografia. Em terras brasileiras, vários fenômenos artísticos são continuamente produzidos em festas ou rituais regionais, por culturas indígenas, afro-brasileiras, caboclas, caiçaras, caipiras, entre outras, pelos habitantes das matas, das praias, margens de rio e dos sertões, que se delineiam movimentos artísticos em conexão com processos sociais, cuja identidade cultural não se assemelha ao mundo ocidental. A forma estética é conseguida através de um conjunto de recursos, desde a roupa e artefatos, que servem de adorno ou como motivos decorativos, até uma cenografia, enredo musical e coreografia. O espetáculo constitui identidade e cultura artística própria em lugar da obra. Trata-se de pensar como o repertório disperso da arte, daquilo que podemos identificar como distinto, mas artístico, outrora des-significado, pode contribuir hoje como memória cultural, superando a diferenciação das operações e traduções da historiografia clássica. A obra de arte pertence a sua época, a seu povo, a seu ambiente e depende de concepções e fins particulares, históricos e de outras ordens. Rever criticamente os princípios da História da Arte no Brasil e a posição crítica que ocupamos dentro dela é fundamental. Hoje, é preciso evitar noções associadas ao fenômeno artístico originárias de outro contexto, em que tradições diferentes e politicamente antagônicas formularam uma tradução do que seria a arte e a cultura nacional, segundo Ortiz. (2006, p.7) A operação de reconceituação de nossas valorizações artísticas e culturais, como propõe Canclini (2009, p.51), exige uma redefinição daquilo que entendemos por cultura e arte. O lugar como diferentes, desconectados e desiguais, procedimento que pretende aceitação e inclusão daquilo que outrora fora excluído, é uma posição de integração dos diferentes patrimônios brasileiros. Nossa cultura, variada e dinâmica, necessita de um aprofundamento das questões 148 | Silvia Miranda Meira a ela pertinentes, além de análises mais cuidadosas dos processos de inserção de critérios artísticos e de exclusão no meio ambiente nacional. A produção cultural de sociedades periféricas, como a das comunidades no Brasil, fora durante muito tempo duramente considerada como defasada, devido ao seu caráter fundamentalmente artesanal, distorcendo de certa maneira o entendimento de sua especificidade, abrangência e valor que muito contribuíram para a mestiçagem e para o sincretismo cultural de nossas verdadeiras origens. (CANCLINI, 2009, p.15) Uma convivência mais justa entre diferentes culturas aflora, hoje, como ideia de uma História da Arte com respeito às diversidades culturais, estratégia de exaltar a diferença, porém, difícil de ser instrumentalizada, menciona Barriendos (2013, pp. 177-183). O crítico e poeta africano Olu Ogube, à conferência A Brief Note on Internationalism in the Visual Arts, Barriendos, afirmou que “Tolerar os outros significava aceitar a diversidade das culturas como uma forma de correção política, como uma concessão que o Ocidente estivesse obrigado a fazer ao Terceiro Mundo para ser congruente com o discurso da descolonização, e com o da globalização da democracia”. (2013, p.178) Deve-se pensar até onde a História da Arte no Brasil abrange a nossa dimensão geográfica e cultural e não omite nossos polos culturais nem a própria arte de nosso tempo. (MEUCCI, 2004, pp. 86-91) Referências bibliográficas BARRIENDOS, J. O sistema internacional da arte contemporânea: universalismo, ‘colonialidade’ e transculturalidade. In: Arte & ensaio. Revista do PPGAV/EBA/ UFRJ. n. 25, maio 2013, pp. 177-183. CANCLINI, N.G. Diferentes, Desiguais e Desconectados. Rio de Janeiro, ed. UFRJ, 2009, p. 61. CHIARELLI, T. Arte brasileira ou arte no Brasil? In: Arte Internacional Brasileira. São Paulo: Lemos editorial, 1999, p.12. KERN M.L. Historiografia da arte: revisão e reflexões face a arte contemporânea. In XXIV Colóquio de História da Arte, 2004, p.3. MEIRA, S. Outra forma de ver a filiação estética da arte no Brasil. XXXII Colóquio do CBHA – Direções e Sentidos da História da Arte. Brasília: UNB, 2012. Razões estético-ideológicas reveladas na arte brasileira | 149 MEUCCI, A. Ensaio sobre uma revisão crítica da História da Arte. In: Estética USP 70 anos. São Paulo: Ed. USP, 2004, pp.86-91. ORTIZ, R. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006, p.7. PEREIRA, S.G. Revisão historiográfica da arte brasileira do séc. XIX. Revista IEB, n.54, 2012, set./mar., p. 87-106. PIGNATARI, D. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, 1987, p. 76. SCHWARZ, R. Nacional por subtração. In: Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras, 1989, pp.37-38. Novos caminhos na produção acadêmica | 153 Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna SIMONE ROCHA DE ABREU* DILMA DE MELO SILVA** Resumo: Este artigo enfoca a série Juanito Laguna, de autoria de Antonio Berni (1905-1981), destacando-a como uma narrativa plástica de resistência a uma leitura única e predominante relacionada aos valores da sociedade de consumo. Berni transformou em arte a sua percepção sensível frente aos problemas sociais de sua geração, caminhou em uma poética que nos possibilita ver essas obras como expressão de um sentimento de solidariedade. Palavras-chave: Antonio Berni. Resistência. Solidariedade. ** Pesquisadora em arte, especialista em História da Arte e Cultura Contemporânea pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), é mestre e doutora em Integração da América Latina, linha de pesquisa Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Fórum Permanente de Arte e Cultura da América Latina e da Sociedade Científica de Estudos da Arte. e-mail: [email protected] ** Professora Doutora, orientadora do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte, nas linhas de pesquisa “História e Historiografia” e “Metodologia e Epistemologia da Arte” e do PROLAM, na linha de pesquisa “Comunicação e Cultura”. 154 | Simone R. de Abreu e Dilma de M. Silva Visual narratives of resistance in Antonio Berni: Juanito Laguna in focus Abstract: This article focuses on the Juanito Laguna series authored by Antonio Berni (1905-1981), highlighting it as a plastic narrative of resistance to a single, predominant reading related to the values of the consumer society. Berni turned into art his sensitive perception into art facing the social problems of his generation, walked into a poetics that enables us to see these works as expression of a feeling of solidarity. Keywords: Antonio Berni. Resistance. Solidarity. Este artigo sobre a obra de Antonio Berni1 e, em particular, sobre a sua série Juanito Laguna tem início destacando um trecho de uma entrevista cedida pelo artista argentino. Esta frase está repleta de significados e esses ajudam-nos a caminhar pela sua obra: “Lo importante, por más graves que sean los problemas de cada generación, es hacer cosas; si uno no hace cosas, no resiste”.2 Essa frase revela o comprometimento social que Berni expressou em sua produção artística. O artista argentino defendeu que o exercício da arte deveria ser uma maneira pela qual o artista deveria abordar os novos fenômenos da realidade e se posicionar frente a eles, com essas premissas Berni lançou as bases do que chamou de “Nuevo Realismo”, ideias que foram publicadas pela primeira vez em agosto de 1936 na revista Forma, uma publicação da Sociedad Argentina de Artistas Plásticos (SAAP). Berni criou em sua obra plástica diversos personagens, os mais evidentes são Juanito Laguna e Ramona Montiel, ambos excluídos da sociedade moderna que crescia de maneira desenfreada na época da produção dessas obras, ou seja, a partir de 1956. Berni foi um observador atento dos subúrbios de Buenos Aires e de outras províncias argentinas, registrou em desenhos ou fotografias os trabalhadores e seus filhos. Nesse caminhar, podemos dizer que muitos foram os seus personagens, mas para Ramona Montiel e Juanito Laguna, o artista 1. Antonio Berni: artista argentino, nascido em Rosario, província de Santa Fé em 1905, faleceu em Buenos Aires em 1981. 2. Trecho de entrevista concedida por Antonio Berni publicada pouco antes de sua morte. Reportaje. Revista Cultural nº2, Córdoba, set. 1981. Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna | 155 dedicou-se a criar grandes séries de obras que representam a sua síntese das questões observadas durante essas incursões pelos subúrbios. Podemos seguir as peripécias desses personagens em tempos distintos, como em um relato narrativo pictórico. A partir de 1956, Antonio Berni iniciou a série Juanito Laguna, uma criança magra que aparece nas obras entre tarefas, que refletem as necessidades cotidianas, como levar comida ao pai na fábrica (Fig. 1, 1961), e as brincadeiras infantis como o pião ou a pipa (Fig. 4, 1973). Nas obras, quase sempre Juanito está sozinho e alheio à sujeira do lugar, repleto das embalagens de diversos produtos, restos descartados pela sociedade de consumo, que o exclui e o envolve. Juanito é claramente socialmente marginalizado: ele está fora da cidade, pertence ao lugar dos restos e das sujeiras. Mas o que isso realmente pode dizer sobre Juanito? Também cabe o questionamento sobre os demais aspectos da personalidade da personagem: será Juanito um menino triste? Será que os demais componentes da obra podem acrescentar outras camadas de leitura: o que mais existe à margem nessas obras? A ideia de marginalização pressupõe um centro e uma periferia, uma situação melhor e uma situação pior. De maneira pejorativa, supõe-se que a periferia seja o lugar não oficial, o lugar onde não é seguido o conjunto de normas oficiais da sociedade central e, portanto, onde o imprevisto ou não estipulado pode acontecer. Estar à margem não implica uma completa exterioridade do centro, os marginalizados habitam uma fronteira. É o lugar da articulação de dois mundos, duas posições culturalmente e socialmente diferentes, o centro estabelece modelos, mas recebe influências da periferia, mesmo que não as aceite como tal. Fig.1 – BERNI, Juanito lleva la comida a su padre peón metalúrgico, 1961. Óleo e colagem de metais sobre tela, 211 X 153 cm. Colección Museo de Arte Moderno de Buenos Aires. Envio a XXXI Bienal de Venecia. Fonte: BERNI, Centro Recoleta,2002, p.46. 156 | Simone R. de Abreu e Dilma de M. Silva Juanito é uma criança absolutamente incluída no universo infantil quando aparece brincando e também excluída deste universo quando deixa a brincadeira infantil para cumprir tarefas alheias a sua idade, como ir à fábrica levar comida para o pai e mais tarde para ir trabalhar. Juanito é, portanto, um incluído e excluído, vive na fronteira articulando dois mundos. Ele é criança em um mundo de fábricas e, portanto, novamente está à margem de uma idade conceituada como a “camada produtiva da população”. Na obra Juanito Laguna lleva la comida a su papá peón metalúrgico (Fig. 1, 1961), essa inadequação de Juanito ao ambiente está clara na proporção entre o menino e as enormes, quase monstruosas, fábricas. Mas a expressão à margem também pode ter como referência a composição plástica. Precisamos ver o que temos à margem na organização espacial da obra de Berni. Para isso, vamos enfocar a obra Juanito em la playa (Fig. 2, 1973), como exemplo de construção pictórica desta série. Quase exatamente no centro do espaço figurativo está Juanito, a personagem-tipo da obra, e à margem estão os objetos secundários, que estariam ali somente para criar o ambiente. São os restos da sociedade de consumo – esses objetos adicionam complexidade à obra, uma vez que os restos de embalagens industriais estão cautelosamente prensados dispostos de uma maneira que possam ser reconhecidas em suas marcas e outros atributos. Esses itens são tão nítidos na obra de Berni que passo a perguntar se chamá-los de secundários é ou não apropriado? Será que esses restos da sociedade de consumo são o centro temático da obra? Para discutir, voltemos a obra Juanito em la playa (Fig. 2, 1973). Nesta obra, o artista não detalha o rosto de Juanito, o menino está quieto, posição estática que enfatiza a situação de contraste de um menino que leva a vida e a sua infância entre restos de uma sociedade de consumo, a qual não pertence e provavelmente não pertencerá. Ele se mantém alheio a esses objetos descartados que não o atrapalham. O detalhamento que falta ao rosto da personagem é farto em referência às embalagens vazias e amassadas que aparecem nítidas. O artista, portanto, volta a turvar as fronteiras entre o que é o centro e a margem, entre o tema-título da obra e os itens secundários, entre o que é principal e marginalizado. Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna | 157 Fig. 2 – Antonio BERNI, Juanito em la playa, 1973. Óleo, pintura acrílica, cartão, tela, chapa, latas, cola, plástico, partes de bicicleta, peças de metal, 162 X 102 cm. Fonte: MALBA, 2005, p. 127. Berni caminhou em sua poética borrando as fronteiras da marginalidade, deu complexidade à noção do que é classificado como marginal e como central, do que é pior e melhor. Com isso, o artista transformou em arte a sua percepção sensível frente aos problemas sociais de sua geração, tudo isso para resistir a uma leitura única e predominante dos valores da sociedade de consumo. Berni assim definiu Juanito Laguna: [...] Yo, a Juanito Laguna lo veo y lo siento como arquetipo que es; arquetipo de uma realidad argentina y latinoamericana; lo siento como expresión de todos los Juanitos Laguna que existen. Para mí no es un individuo, una persona: es un personaje; y, [...], en él están fundidos muchos chicos y adolescentes que yo he conocido, que han sido mis amigos, con los que he mezclado, con los que he jugado em la calle. También es una parte de mí mismo; no me identifico ni puedo identificarme totalmente con él, porque yo no fui um niño de las villas miseria; aunque fuera pobre en mi persona real y concreta. Juanito es um símbolo que yo agito para sacudir la consciencia de la gente. Porque yo puedo salvar a una persona, puedo salvar a dos personas, puedo salvar a diez, pero no puedo salvar a todo el resto, y a mí me interesa que todo el resto se salve.3 3. Berni em entrevista a José Viñals, editado por Imagen Galeria de Arte, Buenos Aires, 1986. In: PACHECO, M. E. Berni escritos y papeles privados.Buenos Aires: Temas Grupo Editorial, 1999, p. 58-61. Tradução livre da autora: [...]Eu, a Juanito Laguna o vejo e o sinto como um arquétipo de uma realidade argentina e latino-americana, sinto que ele é a expressão de todos os Juanitos Lagunas que existem. Para mim não é um indivíduo, uma pessoa: é um personagem; e, [...], nele estão unidos muitas crianças e adolescentes que eu conheci, que foram meus amigos, com os quais convivi, com os quais brinquei na rua. Também é uma parte de mim, não me identifico nem posso me identificar totalmente com ele, porque eu não fui uma criança de favela, embora tenha sido pobre. Juanito é um símbolo que eu agito para sacudir a consciência das pessoas. Porque eu posso salvar uma pessoa, posso salvar duas pessoas, posso salvar dez, mas não posso salvar a todos, e interessa-me que todos se salvem. 158 | Simone R. de Abreu e Dilma de M. Silva E Berni advertiu: [...] Laguna no piede limosna, reclama justicia, en consecuencia pone la gente ante esa disyuntiva, los cretinos compadecerán y harán beneficencia con los Juanitos Laguna; los hombres e mujeres de bien, le harán justicia.4 A primeira exposição da série Juanito Laguna ocorreu na Galeria Witcomb, em Buenos Aires, em novembro de 1961. É significativo perceber que é o próprio personagem que faz o convite para o público: este é mais um capítulo da construção que o artista faz da persona de Juanito. Em parágrafos anteriores, indaguei se Juanito é uma criança triste, com o objetivo de me aproximar de uma resposta é necessário observar mais obras da série. Para isso, vamos enfocar a obra Juanito Laguna remontando um barrilete (Fig. 4, 1973). Fig. 3 – Convite para a exposição “Berni em el tema de Juanito laguna”, Galeria Witcomb, Buenos Aires, 1961. Fonte:Fundación Espigas, pasta Berni. Juanito é um menino que brinca, sonha, caminha, apesar da sujeira do ambiente onde vive. Durante esses momentos, Juanito fabula, cria, sonha. Na obra Juanito Laguna remontando um barrilete (Fig. 4, 1973), o primeiro impacto visual é dado por uma grande nuvem que apresenta um formato revolto. Essa nuvem chama atenção pela sua concretude e porque é a imagem especular da pipa (papagaio) e de sua rabiola com a qual brinca o menino. A consistência da nuvem é o sonho de Juanito, menino que não perdeu a capacidade de fabular e, assim, mantém a sua capacidade de sonhar, mantém a sua humanidade. O sonho, a fabulação é importante para todos e, para Juanito, seja talvez o único espaço possível para a 4. Berni em entrevista a José Viñals, op. cit., p. 59. Tradução livre da autora: [...]Laguna não pede esmola, reclama justiça; em consequência coloca as pessoas frente ao dilema; os cretinos se compadecerão e farão beneficências com os Juanitos Laguna, os homens e mulheres de bem, lhes farão justiça. Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna | 159 sua existência saudável. A capacidade de sonhar representa um espaço possível, uma lagoa que cerca Juanito e o salva da crueza da realidade vivida. É a lagoa deste Juanito que se chama Laguna. Fig. 4 – Antonio Berni. Juanito Laguna remontando um barrilete, 1973. Óleo, latas, telas, plástico, madeira, corda e papel sobre madeira, 192 X 109 cm. Fig. 5 – Berni. La família de Juanito Laguna se salva de la inundación, 1961. Óleo, metal y cartón sobre hardboard, 185 X 122 cm. Envio a la XXXI Bienal de Venecia.Fonte: Recoleta, 2002, p. 42. La família de Juanito Laguna se salva de la inundación (Fig. 5, 1961) evidencia uma realidade das “villas miseria”. A inundação como consequência dos espaços ocupados sem urbanização, que crescem ao sabor da necessidade das famílias marginalizadas pela sociedade dita “moderna”. A inundação é uma tragédia para a mãe que ao carregar um Juanito chora: ela está ao lado de um barco, comandado pelo pai da família, e que leva seus dois outros filhos. No barco, estão as crianças menores, com expressões faciais tensas, mas salvaguardadas no interior do barco. Fora, em pé, com água até a cintura, está uma jovem adolescente provavelmente também filha, enfrentando com mais crueza esta dura situação. O relógio, símbolo do tempo, o bem que parece ter sobrado das perdas da família nesta inundação, é carregado com certo esforço para não ser estragado nas águas turvas da inundação. Será um símbolo de 160 | Simone R. de Abreu e Dilma de M. Silva esperança? Símbolo de novos tempos? Ou o relógio está marcando o tempo para que esta situação ocorra novamente. Tudo é sujeira, desencanto e destruição na obra La família de Juanito Laguna se salva de la inundación (Fig. 5, 1961). O único elemento preservado desta destruição é uma placa vermelha onde se lê “se venden terrenos”, mostrando que Berni está atento aos desmandos da ocupação imobiliária desregrada, que, em nome do progresso, empurra a população mais pobre para os espaços com menor infraestrutura e causa desequilíbrios ecológicos durante este processo de ocupação determinado pela necessidade. Plasticamente, a obra La família de Juanito Laguna se salva de la inundación (Fig. 5, 1961) guarda relação com a construção informalista de Kenneth Kemble (1923–1998) e com o que se convencionou chamar de Arte Bruta, de Jean Dubufett (1901–1985), evidenciado pela colagem de vários materiais na tela e pelas manchas de uma palheta suja. Nesta época, as cores sujas constituíam um valor plástico que se aproximava das formas expressionistas. Voltando a obra de Berni (Fig. 5), diversas texturas são unificadas por uma veladura, que as integra e que tem o mesmo valor cromático das poucas figuras que detêm a narrativa da obra segundo a indicação do título. Com este texto de análise crítica de alguns trabalhos de Antonio Berni, foi possível evidenciar como característica o emprego da plástica como expressão de um sentimento de solidariedade. O artista se mostrou solidário com as situações que percebeu como aflitivas aos outros e também a ele: pois se sentiu partícipe das questões; porque se colou no lugar do outro e, desse modo, foi solidário com os oprimidos. Referências bibliográficas PACHECO, M. E. Berni escritos y papeles privados.Buenos Aires: Temas Grupo Editorial, 1999. Catálogos de exposição: Antonio Berni – A 40 años del Premio de la XXXI Bienal de Venecia 1962 – 2002.Buenos Aires: Asoc. Amigos del Centro Cultural Recoleta, 2002. Antonio Berni – Obra Gráfica. Porto Alegre: Museo de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, 2001. Narrativas plásticas de resistência em Antonio Berni: em foco Juanito Laguna | 161 BERNI y sus contemporâneos correlatos. Homenaje a 100 anõs de su nacimiento. Buenos Aires: Fundación Eduardo F. Constantini MALBA, 2005. BERNI: narrativas argentinas. Curador Roberto Amigo. Buenos Aires: Asoc. Amigos del Museo de Bellas Artes, 2010. | 163 A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil: identidades quilombolas ISA MÁRCIA BANDEIRA DE BRITO* Resumo: Um dos primeiros projetos fotográficos na trajetória de Ricardo Teles, “Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove comunidades Negras Rurais do Brasil”, é o registro da vida nas comunidades quilombolas no País. Considerar o negro brasileiro um personagem desta narrativa possibilita mais um instrumento de capacitação para uma consciência crítica através da fotografia documental. Neste cenário, Ricardo Teles age na construção de um patrimônio histórico-cultural, registrando as comunidades afrodescendentes e temas da cultura nacional. A identidade brasileira que atribui à miscigenação o caráter nacional tem sido questionada, assim como uma dada identidade latinoamericana, ao ver a ocupação do território nacional e do continente como um embate entre vários povos, culturas e religiões. O legado da fotografia ganha contornos artísticos mesmo associada à expressão da realidade. Palavras-chave: Fotografia. Arte. Política. Identidade. La fotografía documental resgistrando el espacio ilegal, la África en el Brasil: Identidades Quilombolas Resumen: Uno de los primeros proyectos fotográficos de la trayectoria de Ricardo Teles se llama “ Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove comunidades Negras Rurais do Brasil” es el registro de la vida en las comunidades * Mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA). Doutoranda pelo Programa de PósGraduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM). Bolsista Capes. [email protected] 164 | Isa Márcia Bandeira de Brito quilombolas en el país. Conceptuando el negro brasileño un personaje de este relato permite aún otra herramienta de formación para una conciencia crítica a través de la fotografía documental. En este escenario, Ricardo Teles actúa en la construcción de un patrimonio histórico-cultural resgistrando las comunidades afro-descendientes y los temas de la cultura nacional. La identidad brasileña que asigna al mestizaje el carácter nacional ha sido cuestionada, así como una identidad latinoamericana dada, teniendo en cuenta la ocupación del territorio nacional y del continente como un choque entre los diferentes pueblos, culturas y religiones. El legado de la fotografía gana entornos artísticos asociados a la expresión de la realidad. Palabras clave: Fotografía. Arte. Política. Identidad. Um dos primeiros projetos fotográficos na trajetória de Ricardo Teles,1 “Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove comunidades Negras Rurais do Brasil”, é o registro das comunidades quilombolas: no Pará Trombetas e Igarapé dos Pretos, no Maranhão; o Frechal e Jamary dos Pretos, em Pernambuco, em Conceição das Crioulas; na Bahia Rio das Rãs e Mangal, em Goiânia Kalunga; e, por fim, em São Paulo, junto ao Vale da Ribeira. O registro mostra resquícios de um passado escravocrata e se insere na fotografia documental. Orientando seu trabalho, Teles chama a atenção para a realidade brasileira: “Entre o grande mosaico de formação étnica do povo brasileiro estão as culturas vindas da África. Hoje os afrodescendentes representam 50% da nossa população, fazendo do Brasil a segunda maior nação negra do mundo, atrás apenas da Nigéria.”2 Esse delineamento é compreensível, considerando-se o processo de transculturação onde os ameríndios, os africanos e os portugueses vão compartilhar o espaço político, geográfico, social e cultural brasileiro. Vale lembrar que, anteriormente, quando o negro aparecia como figura de destaque na literatura nacional ou nas demais expressões artísticas, carregava em sua identidade e atitudes resquícios de uma africanidade mimetizada e louvada pelos principais intelectuais da época, como Jorge Amado (1912), Gilberto Freyre 1. Ricardo Teles, fotógrafo brasileiro eleito “Fotógrafo do Ano” na categoria “Viagem” do Sony World Photography Awards 2014, um dos maiores prêmios de fotografia do mundo, organizado pela World Photography Organization, com o apoio da Sony. Londres, 2014. 2. Ricardo Teles, in Projeto O Lado de Lá, material cedido pelo fotógrafo. s/p. A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ... | 165 (1933), Sérgio Buarque de Holanda (1936), entre outros, o que de certa forma ajuda a criar uma imagem do negro no Brasil. A constatação, e o consequente interesse pela dimensão do universo afrodescendente, já é observada também nos cenários acadêmicos com o aumento das pesquisas sobre uma diversidade de temas como: o levantamento do patrimônio imaterial e os aspectos socioeconômicos, em que, agora, a identidade negra reaparece sob outra dinâmica, contestadora da imagem criada pelos autores citados. No contexto do século XXI, a comunidade negra quantitativamente constitui 50% da população brasileira e espelha um percurso de resistência, de luta, de um gritar e de um calar. Porém, apesar da abolição ocorrida no Brasil, que propunha entre outras coisas a integração dos negros à sociedade, o que notamos é que na prática a marginalização socioeconômica e cultural permanece e a inserção no mercado de trabalho ainda é um desafio para as comunidades afrodescendentes. Como assevera Mattos (2011, p. 186) sobre o tema, “Para a elite brasileira, o negro, por conta do seu ‘caráter bárbaro’ e ‘estado de selvageria’, era um empecilho à formação de uma nação, pretendida o mais próximo possível da civilização.” E que civilização era essa aclamada pela elite? A resposta traz um conjunto de complexidades que irão colocar todo o processo de colonização da América Latina em xeque. Para o colonizador, bárbaros, agressivos e selvagens são os outros, não há uma relação de alteridade.3 Simões (2012, p. 14 e p. 15) defende também a tese histórica como base para novas reflexões: Antes de buscar compreender os rumos da América do Sul hoje, é preciso não perder de vista alguns aspectos definidores de nossa história. O que somos hoje é, em boa parte, produto de processos históricos, que deixaram marcas profundas e condicionaram longamente nossas potencialidades. Compreender o passado ajuda a preparar o futuro. A primeira marca política da América do Sul foi sua divisão ao meio, antes mesmo de nascer. A linha imaginária definida no Tratado de Tordesilhas, de 1492, definiu um espaço de separação entre os territórios submetidos a Lisboa 3. MARCUSE, Herbert, Eros e Civilização. Uma Interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, apud p. 41. “Freud descreve o desenvolvimento da repressão na estrutura instintiva do individuo. A luta pelo destino da liberdade e felicidade humanas é travada e decidida na luta dos instintos – literalmente, uma luta de vida e morte – em que o soma e psique, a natureza e a civilização participam...”. 166 | Isa Márcia Bandeira de Brito e aqueles submetidos a Madri. Ainda que essa linha fronteiriça tenha evoluído ao longo dos séculos, manteve-se continuamente como linha de separação. Ao mesmo tempo, Tordesilhas pode ser interpretado como o primeiro produto da solução pacífica de uma controvérsia, pois evitou potencial conflito entre portugueses e espanhóis pela conquista das novas terras sul-americanas. Mais além, de acordo com Jaguaribe (1976, p. 4): “A origem da expressão América Latina é alheia à própria América Latina e procede do desejo étnico dos Estados Unidos de diferenciar a sua própria América da de seus vizinhos”; ou seja, é evidente que os conflitos entre os portugueses e espanhóis foram minimizados, segundo a teoria de Simões, através do Tratado de Tordesilhas. Porém, ao longo do tempo, os conflitos internos entre os diferentes grupos culturais e étnicos existiam e aumentaram, tanto no Brasil, quanto no contexto do continente latino-americano. Resultado: as comunidades afrodescendentes sofreram consequências negativas perceptíveis hoje principalmente no tecido urbano e na marginalização destas comunidades. A necessidade de autopreservação do grupo se impõe cada vez mais e, apesar destes obstáculos, os negros continuam buscando sua independência e a importância do seu papel histórico na construção da identidade nacional. Da mesma forma, sublinha-se a importância do documento fotográfico como registro destas resistências que ainda sobrevivem na contemporaneidade, ao contrário do que gostariam determinados grupos hegemônicos no passado e no presente. Sobre este processo de documentação e experiência, Teles (2002, p. 2) comenta: Ao longo dessa quase uma década de documentação fotográfica, estive em locais distintos que variam de região, meio natural e ciclos econômicos que lhes deram origem durante o período colonial. Em todos eles, pude perceber a afirmação destas comunidades apesar da diversidade de suas paisagens. O convívio entre as culturas de diversos grupos que vieram para o Brasil e o território nacional é evidente: cidadãos em diáspora pelo mundo, pelas razões mais diversas, deram origem aos mais distintos movimentos coletivos em áreas rurais e urbanas; modificaram e criaram paisagens, no domínio da natureza pelo homem, em busca da sobrevivência individual e do grupo. Teles narra essa trajetória através da linguagem da fotografia realizando uma etnografia do real. Laplatine (2004, p. 82) observa: A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ... | 167 A fotografia não é faladora, além disso, é uma superfície plana. Mas o que ela nos mostra, sem nunca ter a pretensão de demonstrar, é um fato único. Ela mostra-nos a natureza idiota da realidade, no sentido etimológico do termo (idiota = particular) que também foi escolhido por Dostoïevski em seu romance do mesmo nome. A possibilidade que a fotografia dá à descrição e leitura da realidade é muito próxima da relação dos primeiros viajantes na anotação dos lugares, das pessoas, dos hábitos, enfim, na formação destas documentações etnográficas que nos chegaram através da pintura, dos desenhos, das primeiras notações. Um pouco deste universo africano no Brasil foi amplamente delineado nas obras dos autores nacionais, na música e em diversas formas de expressão e no construto da própria língua. Simbolicamente, esse construto está inserido na cultura nacional sem ao menos nos darmos conta de sua origem, intricado no cotidiano de cada brasileiro. É cada vez mais improvável configurar uma identidade nacional, e mais notável é a noção de um território de fronteiras múltiplas. Daremos um exemplo da literatura urbanística que irá tratar da esfera simbólica e física da cultura africana no país, especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Assim como os quilombos, as favelas4 surgem como espaços de resistência, tanto sob a perspectiva da sua morfologia quanto da sua organização política. Com o decorrer da afirmação do capitalismo, a estrutura especulativa do espaço urbano vai alternando e criando novas relações de valores nestes espaços socioeconômicos e culturais, consequentemente expulsando e eliminando às vezes grupos inteiros, como ocorreu com alguns quilombos. Curiosamente, estas resistências aparecem em muitas ocasiões de forma simbólica, na adoção de uma identidade, que nos remete ao passado da qual é exemplo a Escola Quilombo; Trata-se de uma escola de samba peculiar no Rio de Janeiro, estando sua sede localizada próxima às duas favelas e com grande parte dos seus integrantes residindo em uma delas. 4. Favela: termo usado na literatura técnica principalmente nas décadas de sessenta e setenta até meados da década de oitenta passando posteriormente a ser substituído paulatinamente pelo termo Comunidade. 168 | Isa Márcia Bandeira de Brito Com efeito, inicialmente, a Quilombo se fazia representar no processo pela presença de um ou outro de seus membros nas reuniões quinzenais realizadas na associação de moradores.5 Como notamos, a escola de samba chama-se Quilombo e está dentro de um espaço geográfico denominado favela, ou seja, permanência e resistência em uma história que vem se repetindo ao longo das gerações de afrodescendentes, que continuam à mercê de uma política pública, que os considera meros empecilhos, como comenta Mattos (2011), sobre o que a elite brasileira almejava como um padrão nacional. Não é apenas no Brasil que as populações negras batalham para romper esta marginalização. Por todas as partes do globo, onde os negros foram mão de obra e considerados bens econômicos alienados de suas características humanas, esse processo de exclusão foi registrado e as consequências são sentidas até hoje, seja na América-Latina ou mesmo no Continente Africano, com os processos de colonização. Convém ressaltar que a administração das colônias foi baseada na exploração e, no primeiro momento, foram os produtos exóticos e as matérias primas que interessaram aos mercados europeus. Uma política de dominação direta e indireta. Silva6 narra a trajetória da sociedade brasileira de 1500 a 1808, depois o Império, a República, a era Vargas, a ditadura e a pós-ditadura, sublinhando como a hegemonia, no caso a branca, de um grupo sobre o outro foi sendo afirmada através dos sucessivos sistemas representativos desde a colônia, como já notamos. Para nos situarmos apenas no Brasil, entre os anos de 1964 e 1968, encontramos Guarnieri e o teatro paulistano denunciando a situação histórica dos negros através da peça “Arena conta Zumbi”. Notem a fala de um dos personagens: Zambi – Eu vivi nas cidades no tempo das desordem. Eu vivi no meio da minha gente no tempo da revolta. Assim passei os tempo que me deram pra vivê. Eu me levantei com a minha gente, comi minha comida no meio das batalha. Amei, 5. CASTRO, Pedro. Indícios na teia da mobilização popular urbana: O caso Acari, apud BOSCHI, Renato Raul, (org.). Movimentos Coletivos no Brasil Urbano. Debates Urbanos, vol. 5. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1982. p. 92 6. SILVA, Dilma de Melo, org. Formação Histórica da Cultura Brasileira. apud: Brasil: Sua gente e sua cultura.São Paulo: Terceira Margem, 2007. A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ... | 169 sem ter cuidado...Olhei tudo que via, sem tempo de bem ver...Assim passei os tempo que me deram pra viver. A voz da minha gente se levantou e minha voz junto com ela. Minha voz não pode muito mas gritá eu bem gritei. Tenho certeza que os donos terra e Sesmaria ficaria mais contente se não ouvisse a minha voz... Assim passei os tempo que me deram pra viver. (MARTINS, 1980, p. 84) É sobre esta questão ideológica, do papel do negro na sociedade brasileira, que muitos outros continuam gritando com Zambi em diversas áreas do conhecimento, como na obra fotográfica de Ricardo Teles. Novas gerações nascem nos quilombos contemporâneos e necessitam entender seu espaço como um arcabouço histórico dentro do País. Estes quilombos que pouco a pouco se integram legalmente no espaço geográfico e político brasileiro têm nos seus antepassados os fundadores de uma comunidade de resistência, de autossustentabilidade e de laços de fraternidade que ressoam a África no Brasil. Antes de pensarmos o que foram e o que são hoje os quilombos, Munanga (2008, p. 48) desenvolve reflexão ampla sobre o tema e nos instiga a repensar o país: A pluralidade racial nascida do processo colonial representava, na cabeça dessa elite, uma ameaça e um grande obstáculo no caminho da construção de uma nação que se pensava branca; daí por que a raça tornou-se o eixo do grande debate nacional que se tratava a partir do fim do século XIX e que repercutiu até meados do século XX. Elaborações especulativas e ideológicas vestidas de cientificismo dos intelectuais e pensadores dessa época ajudariam hoje, se bem reinterpretadas, a compreender as dificuldades que os negros e seus descendentes mestiços encontram para construir uma identidade coletiva, politicamente mobilizadora.7 Na esteira posta por Munanga, convidamos para o debate Mattos (2011, p. 137), que advertidamente nos auxiliará na definição dos quilombos: Alguns escravos fugidos construíram comunidades independentes não muito isoladas, para que pudessem interagir com a sociedade, comercializando sua 7. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra, Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 48. 170 | Isa Márcia Bandeira de Brito produção agrícola, mesmo que de forma clandestina, com a ajuda de pequenos comerciantes, agricultores e até mesmo escravos... Conhecidas como quilombos ou mocambos, essas comunidades foram aparecendo em várias localidades brasileiras próximas aos engenhos, às minas de ouro e pedras preciosas, nos sertões e nos campos. Além da definição conceitual para os quilombos, a cultura é outro aspecto a ser considerado na identidade de um indivíduo ou de um grupo e a forma de expressá-la. Em geral, é um dos primeiros pontos a serem abafados pelo dominador. Conduru (2007, p. 13) a este respeito também se pergunta; Quais foram as contribuições africanas efetivas para a configuração da arte portuguesa no Brasil, da dita arte luso-brasileira? Como os modelos e tipos europeus foram revistos à luz daquilo que Emanoel Araújo chamou de “A mão afro-brasileira”,8 pressupondo saberes e fazeres, sensibilidades africanas que participaram da conformação da arte no Brasil? A identidade afrodescendente abarca um amplo horizonte que não se limita apenas à sua posição histórica ou geográfica, mas abrange todas as suas formas de expressão. Se por um lado assumimos uma africanidade, é porque há um sentido de brasilidade implícita; e, seguindo este raciocínio, uma latinidade, um marcador que nos posiciona em um determinado espaço geográfico com detentores de saberes específicos que integram um grupo, seja ele afrodescendente, brasileiro ou latino-americano. Considerando a pluralidade de etnias que marcam o território nacional, Teles nos fornece um manancial de informações sobre as comunidades quilombolas, através da fotografia documental: os jogos e brincadeiras infantis, o trabalho na agricultura, as festas religiosas e pagãs que podem fornecer-nos pistas de quais seriam as outras identidades partilhadas nestes grupos. Essa investigação inserida na fotografia documental avança para outras disciplinas como a sociologia, a antropologia etc. Não se trata apenas de registro de comunidades quilombolas, mas do que seria afinal a identidade brasileira e quais os contornos dessa cidadania. Com a 8. ARAÚJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira. Significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenege,1988. A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ... | 171 instituição dos direitos e deveres reforçados pela Constituição de 1988, a sociedade brasileira vem ampliando a sua participação como cidadã. As comunidades antes com pouco espaço para ação veem a possibilidade real de colaborar para que suas reivindicações ganhem corpo. Os quilombolas iniciam sua luta de reconhecimento da terra e de suas atividades socioculturais como grupos que se organizam e se mobilizam no espaço democrático. A organização da sociedade e o reconhecimento das mais diversas populações que compõem o tecido social no Brasil geraram também outros dispositivos aqui definidos pela Fundação Palmares.9 Por Ação Afirmativa entende-se o conjunto de políticas públicas adotadas com o objetivo de promover a ascensão de grupos socialmente minoritários, sejam eles étnico-culturais, sexuais ou portadores de necessidades especiais. Em síntese, a ação afirmativa tem como objetivo combater as desigualdades sociais resultantes de processos de discriminação negativa, dirigida a setores vulneráveis e desprivilegiados da sociedade.10 Esta promoção positiva da nossa “brasilidade” é mais uma motivação para que outros trabalhos surjam e contribuam com sua documentação e registro. Nesta perspectiva sobre a leitura que podemos fazer através de uma imagem, nota-se que apenas poucos elementos, ou mesmo a ausência deles, como a ferramenta de trabalho, a indumentária, poderiam identificar não somente em que nível socioeconômico se encontrava o retratado, mas ainda o espaço físico e geográfico em que ele habitava. Os afrodescendentes tentavam manter elos com a sua pátria, a África. Porém, submetidos à dominação do colonizador, já se resentiam de uma posição independente, motivados pela hierarquia e posição social que ocupavam, então, e que os desfavoreciam, é o que ressalva Koutsoukos (2010, p. 97): No estúdio do fotógrafo o negro livre e o forro tratavam de se fazer representar seguindo, via de regra, os itens do padrão europeu da moda então vigente. Em 9. Definição extraída do site “A Fundação Cultural Palmares (FCP), criada pela Lei nº 7.668, de 22 de agosto de 1988, tem por finalidade promover os valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira...” Fonte: http://www.palmares.gov.br/acoes-e-programas/, último acesso, abril de 2013. 10. Ações afirmativas, Fonte: http://www.palmares.gov.br/acoes-e-programas/, último acesso, abril de 2013. 172 | Isa Márcia Bandeira de Brito tais fotos, raras vezes encontraremos algo que ligue as figuras representadas a algum tipo de trabalho ou profissão (assim como nas fotos das pessoas brancas), pois a apresentação do instrumento de trabalho ligava a pessoa aos setores livres mais pobres, ou à classe escrava. A importância destes elementos e o que eles representavam no cenário nacional, e que hoje são passíveis de observação, pesquisa e análise crítica da nossa história, já denotavam também o projeto que se urdia para o Brasil e ao mesmo tempo o destino do processo de colonização controlado por um corpo administrativo, testemunhando transformações que se deram no espaço e nas relações sociais. Como a fotografia atuou e atua sobre este universo? Para incrementar este debate, foi necessário buscar alguns conceitos iniciais sobre o que venha a ser a própria fotografia. Kubrusly (2006, p. 8) comenta: Afinal, o que é fotografia? A possibilidade de parar o tempo, retendo para sempre uma imagem que jamais se repetirá? Um processo capaz de gravar e reproduzir com perfeição imagens de tudo que nos cerca? Um documento histórico, prova irrefutável de uma verdade qualquer? Ou a possibilidade mágica de preservar a fisionomia, o jeito e até mesmo um pouquinho da alma de alguém de quem gostamos? Ou apenas uma ilusão? Uma ilusão de ótica que engana nossos olhos e nosso cérebro com uma porção de manchas sobre o papel, deixando uma sensação tão viva de que estamos diante da própria realidade retratada? As questões iniciais da fotografia, na sua origem, tratam a imagem primeiramente como uma possibilidade de retratar o real da forma mais fiel e objetiva possível, ainda que sob o encantamento da sua reprodução enquanto técnica. A fotografia, porém, vem ao longo do tempo trazendo outras discussões, segundo Cotton (2010, pp. 7-11). Nesta análise, o tema é subdivido em oito linhas de pensamento sobre a estética da fotografia de arte, aqui resumidas: 1o Como os fotógrafos criam estratégias, performances e eventos especialmente para a câmera; 2o Concentração nas narrativas de histórias dentro da fotografia de arte; 3o Exame da ideia de uma estética fotográfica; 4o Limites do que pode ser considerado um tema visual crível; A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ... | 173 5o Concentração nas relações psicológicas e pessoais, como num tipo de diário da intimidade humana; 6o Capacidade de uso documental da fotografia na arte; 7o Variedade de métodos recentes; 8o Natureza do meio como parte da narrativa da peça. Em complementação, após uma descrição das origens da fotografia, Kubrusly testemunha que o horizonte da fotografia está ampliado e a dúvida sobre a sua inserção como objeto de arte já não existe. Diante dos pontos identificados por Cotton, poderíamos deduzir em qual deles se enquadraria a obra de Ricardo Teles. Certamente, o sexto item na lista classificatória de Cotton poderia abarcar o projeto “Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove comunidades Negras Rurais do Brasil”: sendo a fotografia aqui entendida como um documento cuja importância estética a classificaria de igual forma ao status de obra de arte, uma vez que o “olhar” do fotógrafo busca no fotografado uma aura psicológica que transpassa o lugar do íntimo. É para o observador algo que vai além do registro, sendo assim a poética da imagem que se revela. Tratando-se o íntimo na perspectiva de Bachelard (1993, p. 189), Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espetáculos variados; mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito. A obra de Teles coloca seus protagonistas no centro da ação interagindo com as paisagens locais e desta forma as imagens transbordam para além das suas significações e das arenas do cotidiano dos quilombolas. A fotografia de Teles é um texto histórico se contabilizado apenas como um documento, mas é fundamentalmente um texto visual alçado à arte através da estética que imprime o fotógrafo em cada ângulo, em cada recorte que escolhe no momento do click. Além disso, capta o fazer-saber11 da comunidade (Fig. 1), na 11. Fazer-saber, termo utilizado por PIETROFORTE na análise de uma fotografia do poeta Haroldo de Campos, do livro O lugar do escritor, Eder Chiodetto, 2003. 174 | Isa Márcia Bandeira de Brito sobreposição das gerações de quilombolas, que podem ser lidas por inúmeros detalhes, tais como as diferentes mãos que tocam o objeto: cabelo-menina. Fig.1. Frechal,1996. – Foto: Ricardo Teles. Ao tentar decifrar a obra de Teles é inevitável recordarmos das primeiras lições da arte moderna em Klee e sua máxima sobre a filosofia da criação: “La force créatrice échappe à toute dénomination, elle reste en dernière analyse un mystère indicible. Mais non point un mystère inaccessible, incapable de nous ébranler jusqu’au tréfonds”.12 Todo o esforço empregado nesta pesquisa continuará sendo pequeno em relação à grandeza da obra de arte que só se complementa a partir do outro e de sua alteridade, assim como os diferentes grupos que convivem em nosso território geográfico e emocional. Referencias bibliográficas: ARAÚJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira. Significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenege,1988. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. CASTRO, Pedro. Indícios na teia da mobilização popular Urbana: O caso Acari, apud BOSCHI, Renato Raul, (org.). Movimentos Coletivos no Brasil Urbano. Debates Urbanos, vol. 5. Rio de Janeiro: Zahar Editores.1982. CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte; C/Arte, 2007. 12. KLEE, Paul. Theorie de L’art Moderne. Éditions Gonthier: Genève, p. 57. A fotografia documental registrando o espaço ilegal, a África no Brasil ... | 175 COTTON, Charlotte. A Fotografia como Arte Contemporânea. São Paulo; Editora WMF Martins Fontes, 2010. Coleção Arte & Fotografia. JAGUARIBE, Hélio. Crises e Alternativas da América Latina. Perspectiva: São Paulo, 1976. KLEE,Paul. Theorie de L’art Moderne. Éditions Gonthier: Genève. KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotógrafo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. KUBRUSLY, Cláudio A. O que é fotografia. São Paulo: Brasiliense, 2006. LAPLATINE, François. A descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004. MARCUSE, Herbert, Eros e Civilização. Uma Interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. MARTINS, Maria Helena Pires. Gianfrancesco Guarnieri, seleção de textos, notas, estudos biográficos, histórico e crítico e exercícios. São Paulo: Abril Educação, 1980. MATTOS, Regiane Augusto. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2011. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. PIETROFORTE, Antonio Vicente. Análise do texto visual, a construção da imagem. São Paulo: Contexto, 2008. TELES, Ricardo. Terra de Pretos – Mocambos, Quilombos: Histórias de nove comunidades Negras Rurais do Brasil. São Paulo: ABooks Editora, 2002. TELES, Ricardo. Projeto O Lado de Lá, material cedido pelo fotógrafo. s/p. SILVA, Dilma de Melo, org. Formação Histórica da Cultura Brasileira. apud: Brasil: Sua gente e sua cultura. São Paulo: Terceira Margem, 2007. SIMÕES, Antonio José Ferreira. Eu sou da América do Sul. Brasília: FUNAG, 2012. | 177 Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei1: ações em interface2 ISABELA UMBUZEIRO VALENT* ELIANE DIAS DE CASTRO** Resumo: Este estudo se tece a partir de experiências acompanhadas no Ponto de Cultura é de Lei, onde a arte contemporânea, em especial fotografia e audiovisual, instauram-se na vizinhança de práticas de saúde ou envolvem a presença de pessoas em situações de vulnerabilidades. Num exercício cartográfico, mapeou-se linhas singulares nos acontecimentos vivenciados: a presença da câmera fotográfica ou audiovisual e a circulação nos diferentes espaços da cidade e da vida coletiva. Relatos se entrecruzam com conceitos filosóficos, estéticos e culturais, somados às referências artísticas baseadas em processos colaborativos, e discutem problemáticas relativas às estratégias de 1. O Centro de Convivência É de Lei é uma organização da sociedade civil que existe desde 1998 e atua na região central da cidade de São Paulo. Desenvolve ações interdisciplinares e intersetoriais como estratégias para a recuperação e redução de danos. Para saber mais acesse www.edelei.org. 2. Este estudo é parte da dissertação de mestrado de Isabela Umbuzeiro Valent, intitulada “Fazer imagens, inventar lugares: Experimentações fotográficas e audiovisuais em práticas artísticas na interface Cultura e Saúde”, desenvolvida no PGEHA e finalizada em agosto de 2014. * Terapeuta ocupacional pelo Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP. Mestra em estética e história da arte (PGEHA/USP – Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo) - Agência de fomento: CAPES ** Professora Doutora do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP. Orientadora do Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. 178 | Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro participação social e cultural. As práticas artísticas destacam-se enquanto alternativas para instaurar experimentações que possibilitam a produção de subjetividade a partir da heterogênese e compõem o conjunto de estudos interdisciplinares na interface das artes, da cultura e da produção de saúde. Palavras-chave: Processos Colaborativos em Arte. Cultura. Produção de Subjetividade. Populações em Situação de Vulnerabilidade. Emancipação. Trials in Cultural Point É de Lei: interface actions Abstract: This study is determined by accompanied experiences at Culture Point É de Lei, where contemporary arts, especially photography and video – are established in the neighbordhood of health practices or involve the presence of people in vulnerable situations. As a cartographic exercise, singular lines were mapped in the experienced events: the presence of a camera and the circulation in different urban and collective spaces. Reports of these experiences are mutually crossed with philosophical, esthetical and cultural concepts, added to artistic references based on collaborative processes in order to discuss and appoint problems related to strategies of social and cultural participation. The artistic practices appear as alternatives to establish experimentations that allow the subjectivity production from heterogenesis and comprise the set of interdisciplinary studies on arts, culture and health production interface. Keywords: Collaborative Processes in Arts. Culture. Subjectivity Production. Populations in Vulnerable Situations. Emancipation. Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”.3 MICHEL FOUCAULT 3. Trecho do prefácio escrito por Michel Foucault à edição americana do AntiÉdipo, de Gilles Deleuze e Feliz Guattari. Republicado em M. Foucault, Dits et Ecrits, volume III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994. Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface | 179 Um dia, depois do trabalho, eu conversava com meu colega oficineiro. Ele habitava as tardes de quarta-feira com a oficina de vídeo e eu as tardes de quintafeira com a oficina de fotografia. Ele me dizia sentir dúvida quanto ao que produzíamos, à eficácia de nossas ações diante de tamanha carência, miséria, vidas com tantas demandas como aquelas dos participantes das oficinas. Realmente, algo grande demais para darmos conta. Grande demais para colocarmos enquanto objeto de nossa intervenção numa oficina semanal de experimentação em fotografia e vídeo. Enquanto ele enunciava essas questões, que ressoavam em mim, eu lembrava das tardes de quinta-feira. Das nossas saídas pelo centro da cidade em grupo para fotografar. Da descoberta das luzes que passam em diferentes momentos por entre as brechas dos prédios. Dos ambientes, pessoas, situações que cada um ia mostrando nesse caminhar. De ficar preocupada com aquele que sempre sumia com a câmera na mão e voltava rindo, sabendo que havia nos provocado. Feliz de voltar ao grupo, feliz de estar com a câmera na mão, feliz de voltar, de nos fazer preocupar e rir. De contar para o grupo como funciona uma câmera fotográfica por dentro, de redescobrir o encanto que as máquinas fotográficas sempre me proporcionaram.De ver o olho de um participante vibrar quando ele descobre a câmera escura por um furinho na parede de um caminhão em que ele estava dentro e por ele as imagens da rua se projetavam em sua parede interna.De alguém pegar na câmera, explorar suas possibilidades, querer ser fotografado, ficar curioso com o outro, pedir uma entrevista, dar uma entrevista, contar histórias. Lembrando de tudo isso, inundava-me uma sensação de alegria. Era alegria que eu sentia em muitas daquelas tardes. E eram elas as que mais me mobilizavam no preparo dos encontros das oficinas e no modo de conduzi-las. Diante de tantas questões relacionadas à falta, à precariedade, à vulnerabilidade e a violência vinculadas ao cotidiano dos conviventes do É de Lei, muitas vezes, no lugar de propositores de experiências artísticas, deparávamonos com inúmeras inquietações éticas. Quais eram nossos objetivos ali? O que o fazer artístico poderia proporcionar naquele contexto? Contexto povoado por faltas: de moradia, de comida, de projetos de vida, de emprego, de segurança etc. Diante da violência, de violações de direito, de conflitos territoriais, de opressões políticas, de situações de exclusão e tantos outros, que sentidos teriam aqueles fazeres nesse contexto? Em Beleza Exorbitante, o filósofo e historiador da arte, Jean Galard (2012), 180 | Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro trata de questões ligadas ao estatuto da imagem no contemporâneo e aponta questões semelhantes com as quais nos deparávamos. Como as de um fotógrafo que realiza imagens diante de situações de horror: fotografar nessas situações, em essência, é um ato de não intervenção? “Olhar é colocar-se numa posição indigna: a do espectador que assiste passivamente à angústia do outro. Somos culpados – ou de voluntária ignorância, ou de voyeurismo” (ibidem, p. 11). Um primeiro ímpeto nos toma, sobretudo quando esse fazer está ligado ao aparato fotográfico e audiovisual. Se trata da intenção de utilizá-lo para denunciar essas situações, para torná-las evidentes. O primeiro documentário do Ponto de Cultura É de Lei parece caminhar nessa direção, Na Rua, Da Rua, Pra Rua (PONTO DE CULTURA É DE LEI, 2011a): um documentário experimental que tem como tema questões específicas ligadas à situação de rua e ao consumo de drogas; uma espécie de ímpeto jornalístico, num esforço para enquadrar naquele contexto imagens que representem essas faltas e excessos, mas que, talvez, nesse movimento, poderiam acabar por reiterar a própria lógica de produção dessas representações. Basta repararmos no excesso de imagens que povoam os programas de televisão. Qual será o papel desse intuito de denúncia? Pois parece que, fotografar o horror só tem sentido se for para acabar com ele (...) Mas o horror está em toda parte, o escândalo ressurge de todos os lados. O testemunho não pesa, não tem efeito. (...) a foto de uma cena de horror pode não significar nada mais que um horror geral à guerra, o que equivale recusar a história singular do país onde ela ocorreu, a se desinteressar por ela, a não ver senão a guerra genérica, o escândalo eterno, isto é, na verdade, a não ver nada. (GALARD, 2012, p. 118-119) Teria a arte da fotografia e do vídeo alguma responsabilidade sobre essas questões que extrapolam a própria arte? Se sim, corremos o risco de adentrar outros campos e utilizar a arte como ferramenta para uma certa reparação de questões de outras ordens – culturais, socioeconômicas, políticas. Se não, como a arte e o fazer artístico poderiam compor com aquele contexto? Preocupar-se em criar uma bela imagem acerca dessas questões seria uma espécie de abuso? Seria estetizar esses acontecimentos? Tirar uma foto estética do mundo não significa exatamente “estetizá-lo”. A estetização é uma operação que transforma objetos, seres ou situações em um espetáculo de que se pode usufruir sem se sentir vitalmente implicado. (...) o Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface | 181 estetismo consiste em tornar a realidade aceitável, olhável, consensual. (...) a estetização é o desvio da atenção estética. (ibidem, p. 30-31) Sentirmos alegria naqueles encontros da oficina seria um abuso diante daquela realidade? Teria a poesia, a arte, a dimensão estética e a ficção alguma relação com tudo isso? Que formas de implicação com aquelas pessoas e aquele contexto poderiam se produzir? Em 2011, a oficina de vídeo realizou o filme A mala de um milhão de dólares (PONTO DE CULTURA É DE LEI, 2011b), um curta-metragem, ficção, de 3 min, onde os participantes filmam, atuam e elaboram o roteiro. Esse vídeo pareceu mobilizar e envolver a todos. Era notável e contagiante a alegria com que se assistia suas exibições no Centro de Convivência e a reverberação que ganhou entre os conviventes. Começamos a nos perguntar o que será que mobilizava os conviventes? Que coisas cada um gostava e que histórias gostariam de compartilhar? Que conversas poderiam acontecer para além da temática situação de rua ou uso de drogas? E para isso bastava silenciar, deixar que vozes dissonantes ocupassem o espaço: silenciar, talvez, a própria angústia, podendo reconhecer outras coisas para além daquela falta. Ao definirmos uma pessoa como usuária de drogas ou moradora de rua, nós a reduzimos a apenas um traço de sua história. Olhamos aquilo que ela não é e deveria ser, numa imposição autoritária de um modo de vida ideal ou socialmente aceito. Na melhor das intenções, naquele momento, acabava-se por impor uma temática que reiterava aquelas pessoas enquanto objetos de um discurso, ao invés de afirma-las suas posições como produtoras de discursos. Nesse silenciamento, abrindo espaço a novos imaginários, passávamos talvez a habitar, coletivamente, outros lugares. Não há real em si, mas configurações daquilo que é dado como nosso real, como o objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é sempre objeto e uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real o das representações e aparências, opiniões e utopias. A ficção artística e a ação política sulcam, fraturam e multiplicam esse real de um modo polêmico. O trabalho da política que inventa sujeitos novos e introduz objetos novos e outra percepção dos dados comuns é também um trabalho ficcional. Por isso, a relação 182 | Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro entre arte e política não é uma passagem da ficção para a realidade, mas uma relação entre duas maneiras de produzir ficções. As práticas da arte não são instrumentos que forneçam formas de consciência ou energias mobilizadoras em proveito de uma política que lhes seja exterior. Mas tampouco saem de si mesmas para se tornarem formas de ação política coletiva. Contribuem para desenhar uma paisagem nova do visível, do dizível e do factível. Forjam contra o consenso outras formas de “senso comum”, formas de um senso comum polêmico. (RANCIÈRE, 2012, p. 74-75) É de dentro e de fora – É de Lei participa do INSIDE OUT Em 2011, o É de Lei participou do projeto artístico internacional: INSIDE OUT.4 A participação envolveu integrantes do Ponto de Cultura É de Lei, que realizaram a intervenção urbana É de dentro e de fora na cidade de São Paulo, colando 34 retratos na Câmara dos Vereadores e em uma banca de jornal sobre o Viaduto do Chá. Essa ação, iniciada nas oficinas de fotografia, contou com diversas etapas e envolveu pessoas que trabalhavam, frequentavam e circulavam no Centro de Convivência É de Lei, num processo que durou um ano (2011-2012). Tapume da Câmara dos Vereadores da Cidade de São Paulo. 4. Página da intervenção do É de Lei no site oficial do projeto: http:// www.insideoutproject.net/en/group-actions/brazil-sao-paulo-1 Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface | 183 Para refletir sobre os efeitos dessa participação, foram destacados alguns elementos que constituem as práticas artísticas participativas na arte contemporânea. Tomarei como ponto de partida para a reflexão o próprio Projeto INSIDE OUT, do fotógrafo francês JR. Este trabalho é constituído por um projeto artístico participativo internacional em andamento. Suas ações se desenvolvem em escala global. Até hoje, contou com a participação de cerca de 200.000 pessoas, em mais de 112 países.5 O projeto é inspirado em trabalhos anteriores do artista, em que ele realizou e colou retratos fotográficos preto e branco em grande formato nos muros de diferentes cidades. Com a chamada de maior projeto artístico participativo do mundo, INSIDE OUT consiste num dispositivo no qual qualquer pessoa ou grupo realiza retratos de si, de outros, de pessoas comuns. Após enviar os retratos em formato digital para a equipe de produção do projeto, ela recebe impressões em tamanho grande, que posteriormente são coladas em espaços públicos escolhidos pelos participantes. O registro fotográfico e audiovisual dessas ações é adicionado a uma plataforma virtual, que reúne todos os participantes. Alguns críticos6 apontam tendências na arte contemporânea a buscar espaços fora das instituições que validam o que é e o que não é arte, buscando prescindir das galerias e museus. O discurso de JR mostra um pouco dessa tentativa: JR é dono da maior galeria de arte no mundo. Ele exibe livremente nas ruas da cidade, capturando a atenção de pessoas que não são típicos frequentadores de museus. Seu trabalho mistura Arte e Ação, fala sobre compromisso, liberdade, identidade e limite. (JR, 2014, tradução nossa) A trajetória do artista mostra sua intenção em realizar e exibir suas produções de maneira independente do sistema da arte e seu mercado. JR iniciou seu percurso realizando grafites nos muros de Paris. Começou a fotografar e colar suas primeiras fotografias nas ruas criando o que ele denominava Expo 2 Rue. As imagens eram impressas em papel comum e coladas pelo método lambelambe, cola produzida com farinha e água, comumente utilizada para colagem de anúncios em postes e muros. Ao redor das imagens, JR desenhava uma moldura 5. Fonte: site oficial do projeto: http://www.insideoutproject.net/en/about Acessado em 20/07/2014. 6. (Fabbrini, 2010), (Groys, 2008), (Bishop, 2008). 184 | Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro com tinta spray e escrevia: Expo 2 Rue ou Sidewalk Gallery (2001-2004). Mesmo depois das fotos removidas pela chuva ou arrancadas, ali ficava a imagem da moldura criada. Boris Groys (2008), crítico de arte e filósofo, traz questões para essa discussão. Para o autor, há uma tendência na arte contemporânea a ver o museu com ceticismo e desconfiança, buscando-se uma arte que se realize diretamente na vida, tendendo a abolir os museus, herança vinda das estratégias vanguardistas do modernismo e abraçada pela arte contemporânea. Mas, naquele contexto, esse protesto em relação ao museu era também contra as instituições que ditavam as normas de produção artística vigentes. O autor chama a atenção para mudanças políticas e institucionais no contexto atual. Para ele, o que mais dita e normatiza os valores estéticos das produções é o mercado midiático global, de onde o público, em geral, desenha suas noções artísticas, com um poder aparentemente muito mais abrangente que os museus e as instituições artísticas. A comunicação imagética digital bombardeia o cotidiano das pessoas, com um poder fortíssimo nos processos de subjetivação. Segundo Foucault, os mecanismos de poder passam a operar não mais numa lógica disciplinar, na qual estariam implicados indivíduos e instituições, mas na lógica de controle. Na sociedade de controle, o poder atua de forma capilar sobre a vida de cada sujeito, não mais categorizando e confinando populações em determinadas instituições (escola, hospital, fábrica) como na sociedade disciplinar, mas a partir de uma economia do poder que gerencia os corpos por meio de um sistema de individualização que busca modelar cada indivíduo, gerindo sua existência (FOUCAULT apud DELEUZE, 2005b) Esses mecanismos de poder incidem sobre o campo da prática artística contemporânea. Segundo Groys (2008, p. 55, tradução nossa): A arte se torna uma forma de vida, e a obra de arte se torna não-arte, um simples registro dessa forma de vida. Também é possível dizer que a arte se torna biopolítica, na medida em que os meios artísticos começam a ser utilizados para gerar e registrar a vida como pura atividade. Na realidade, o desenvolvimento do registro artístico só é possível nas condições biopolíticas atuais, já que a vida em si passou a ser objeto de intervenções técnicas e artísticas. Esse embaralhamento arte e vida parece habitar as imagens de JR. Ao descrever seu próprio trabalho em vídeo, o artista fala da motivação para reali- Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface | 185 zação de seu segundo trabalho, Portraits of a Generation (2004-2005). No contexto das manifestações ocorridas no subúrbio de Paris em 2005, nasce o primeiro projeto que inaugura a série 28 Millimeters, onde o fotógrafo realiza retratos e autocaricaturas com estética próxima da que prevalece no projeto INSIDE OUT. JR sente-se incomodado com a forma ameaçadora com que a TV mostrava os manifestantes da periferia de Paris. Relata estranhamento ao ver pessoas que ele já conhecia e fotografava, que “não eram anjos, mas também não eram monstros”, como apareciam na televisão. Assim, ele voltou àquele território e realizou retratos das pessoas, com sua confiança e consentimento, já que, com uma lente 28mm, você tem que estar muito próximo daquele que retrata. Depois, colou os retratos no centro de Paris. Nesse momento, parece nascer uma forte marca do trabalho de JR, que irá culminar em escala global no projeto INSIDE OUT. Essa aproximação, que inclui a escolha do sujeito fotografado a expor sua face, construindo junto com o artista a própria imagem, instaura um campo de negociação do sujeito com a própria imagem e exposição, diferentemente da relação que a mídia parece estabelecer com aqueles que ela pretende documentar. A exposição, circulação e exibição desses retratos utilizam-se da mesma linguagem e recursos dos meios de comunicação de massa para veicular outras imagens, instaurando novas posições entre retratar e ser retratado. O trabalho de JR acontece no interstício dos dispositivos, compondo-se de elementos heterogêneos, operando por práticas discursivas e não discursivas. Engloba diferentes atividades e relações humanas e habita os campos da comunicação, do sistema da arte, da mídia, do mercado, da publicidade, da vida de pessoas comuns, atuando de forma local e global. Instâncias que extrapolam a materialidade dos elementos formais empregados: cola e papel. É na trama da cidade e da vida que essas ações se dão. Neste, como em outros projetos, a vida torna-se objeto e campo das intervenções artísticas, que também são terreno da política. Groys (2008) destaca o fato de que hoje a política mudou seus domínios de atuação, os quais se baseiam fortemente na produção imagética veiculada pela mídia. Os políticos parecem ser julgados cada vez mais pela estética de sua performance. Segundo ele, essa estetização da política nos oferece a possibilidade de analisá-la sob critérios artísticos. À primeira vista, a diversidade de imagens produzidas e veiculadas pela mídia parece ser incomensurável, mas ela é altamente limitada. Para serem reproduzidas, essas imagens precisam ser 186 | Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro facilmente reconhecidas pela grande audiência tornando essa comunicação quase tautológica. Assim, a diversidade de imagens em circulação no acervo de um museu produzidas pela arte tem uma amplitude muito maior, pela sua diversidade, do que as produzidas pela mídia de massa. Para o autor, torna-se importante preservar os espaços instituídos da arte, na medida em que podem oferecer a possibilidade de acesso a diferentes imagens, fornecendo referências para o público reconhecer o novo do velho e o mesmo do diferente, garantindo o que ele denomina direitos estéticos iguais. Para Groys (2008), na contramão de algumas teorias artísticas recentes, que negam a autonomia da arte, pode-se falar de um poder autônomo de resistência da arte. Isso não significa que o sistema da arte tenha total autonomia, já que está submetido a julgamentos de valores e regras de inclusão e exclusão que refletem convenções sociais e estruturas de poder hegemônicas. Mas, se a autonomia da arte se der num regime de direitos estéticos iguais para todas as formas, objetos e mídias, teríamos aí um balizador que garantiria um olhar igualitário para as diferentes produções, podendo inclusive indicar quando há desigualdades culturais, sociais ou políticas. Quais as diferenças de algumas experiências produzidas e protegidas sob a denominação de práticas artísticas daquelas, muito similares, que são produzidas por pessoas diretamente na vida, sem a mediação dessa denominação? No encontro com participantes do Ponto de Cultura É de Lei, podemos acompanhar pessoas que, em seus gestos cotidianos, realizam ações estéticas na trama da cidade similares às de alguns artistas contemporâneos em happenings ou performances, nas quais convenções e limites são colocados em xeque. Esses gestos, muitas vezes, acabam encerrados sob a marca da estranheza e quase sempre são reprimidos por forças policiais e mantenedoras da ordem social, algo bastante diferentes do que ocorre com os artistas. Se a diferença entre esses gestos não está propriamente na forma – o que se faz, aspectos relacionados a uma dimensão estética desses gestos – onde ela estaria? O que parece prevalecer é a posição social dessa pessoa. Ou seja, aspectos políticos, socioeconômicos, culturais, etc. Assim, é importante atentarmos para os contextos e condições de enunciação dessas práticas. O lugar social atribuído ao artista, garantido por uma posição socioeconômica, sua inserção e reconhecimento nas redes de pertencimentos, além da presença de um aparato de comunicação envolvido na legitimação de uma ação denominada enquanto artística, são pontos cruciais para a recepção desses gestos performáticos. Poder- Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface | 187 se-ia dizer que se trata de uma posição privilegiada, porém aí teríamos um paradoxo: todas essas condições podem funcionar como força para a sustentação de conflitos e estranhamentos – ou seja, o não enquadramento imediato dessa situação como loucura, ato infracional, etc. – como também podem funcionar como lugares garantidos que apaziguam essa potência, justamente no instante em que o público percebe que aquela ação se trata de performance artística. Sob essa legenda, passamos a nos relacionar com a situação habitando esse simulacro. O que acontece ali é e não é a vida real. Assim, efetivamente, como esses gestos e ações podem engendrar acontecimentos na vida? E, além disso, onde estaria a potência de ações estéticas realizadas por pessoas que não estão protegidas por essa posição social? Como ampliar o reconhecimento dessas ações antes que sejam totalmente reprimidos por outras forças? Como compor relações entre esses diferentes lugares? Voltemos a experiência concreta dos integrantes do Ponto de Cultura É de Lei em sua participação no Projeto INSIDE OUT. Com cerca de um ano de duração, gerou intensa mobilização entre os participantes. Fomentou discussões importantes acerca da prática artística e cultural ali desenvolvida e do modo como cada um e o coletivo desejavam mostrar-se nas imagens. Determinadas consignas do projeto foram importantes para o processo: a participação poderia se dar em duas modalidades, ações em grupo ou individuais. As ações em grupo – nosso caso – deveriam ser lideradas por qualquer pessoa de uma comunidade, e não por instituições ou empresas. Não se deveria usar o projeto para fins comerciais, nem para promover um produto ou marca, nem para a publicidade de qualquer organização. A proposição era enfática no intuito de destacar histórias pessoais e não discursos de uma organização específica. Essas condições propiciaram deslocamentos em tendências consensuais que talvez enfraquecessem o processo. Ao invés disso, fomentaram dissensos, preservando algumas distâncias e a diferença. O que nos constituía não era uma causa ou uma instituição, apesar de estarmos ligados pelo Centro de Convivência. Éramos ali um aglomerado de pessoas que acordavam uma ação coletiva onde cada um estaria implicado. Não havia nada que nos denominasse ou nos agrupasse a não ser o desejo pessoal de colocar nossa cara no muro, como dizia um dos participantes. Assim, muitas conversas aconteceram. Alguns, desconfiados, diziam: quem é esse francês aí, o que ele quer com a gente? Outros, ao verem os vídeos e referências, encantavam-se com o projeto e imaginavam formas de participação, gerando novas conexões. Pessoas vinham fotografar e ser 188 | Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro fotografadas e se envolviam nas atividades do Centro de Convivência, sem necessariamente essa aproximação estar atrelada a alguma questão relacionada ao uso de drogas ou a demandas sociais, o que propiciava novos encontros. Não havia necessidade de acoplar nenhuma legenda à imagem, embora alguns desejassem. A chegada dos retratos impressos fascinou muitos, que queriam ver sua imagem em tamanho gigante. Até hoje, quando mencionamos alguém no Centro de Convivência, basta apenas olhar para os postais de registro da ação e dizer esse que é o tal, esse é aquele outro, que faz tempo que não vem aqui... Nota-se que a participação no projeto tornou possível aproximações e distâncias entre as diferentes pessoas que ali circulavam, promovendo situações que embaralhavam imagens de si e do outro, que, em outros momentos, eram predeterminadas por uma identidade socialmente construída: o usuário de drogas, o morador de rua, o redutor de danos, o psicólogo, a estagiária burguesa etc. O retrato em preto e branco, igual para todos, instaurava um campo novo de relações. O que nos aglutinava era cada um ter seu retrato e a ação coletiva de colocá-los na cidade e não outras identificações grupais baseadas em certas categorias sociais, ideológicas, psiquiátricas, políticas etc. Os locais propostos para a colagem dos pôsteres foram muitos. Alguns queriam colar nos estádios de futebol, como um protesto à realização da Copa, outros desejavam colocar em baixo de viadutos, outros na denominada Cracolândia, outros em muros de hospitais psiquiátricos. Os conflitos começaram a aparecer. Uns queriam fazer intervenções nas imagens, outros não queriam se meter em política. Aos poucos, fomos negociando uns com os outros as possibilidades, processo que permitiu muitas trocas. Finalmente, escolheu-se a Câmara dos Vereadores da cidade de São Paulo. Estávamos nos aproximando do período de eleições municipais e a cidade enchia-se de retratos de políticos, o que propiciava novos embaralhamentos. Partimos para a negociação de autorização da colagem dos retratos. Essa ação permitiu que os participantes experimentassem outras posições sociais, apresentando-se como artistas ou participantes de um projeto artístico, enriquecendo possibilidades de se nomear, passando a fazer parte do repertório de cada um também esse lugar social. Muitas fantasias rolavam, eles não vão deixar a gente colar, vão nos prender. Depois de um longo processo, nosso pedido foi parar na Câmara dos Vereadores e, finalmente, foi aprovado. Como a Câmara dos Vereadores estava em reforma, havia ali um grande tapume, onde os retratos foram colados. Realizamos duas saídas, em que carregávamos os pôsteres em nossas mãos Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface | 189 durante um trajeto pelo centro da cidade, encontrando pessoas, conversando, gerando curiosidades. As pessoas criavam explicações para aquelas imagens: são políticos, estão vendendo alguma coisa, são artistas que não tem o reconhecimento devido etc. Depois de um tempo, alguns de nós éramos reconhecidos nas ruas. Esse efeito era bastante forte para pessoas que muitas vezes pareciam ser invisíveis aos outros, que já não mantém projetos que os ligue ao sistema de produção e circulação de bens, valores e imagens. Nessa experiência, criavam-se outras possibilidades de apresentação e apropriação de si: nos reconhecíamos como integrantes desse projeto artístico e como pessoas que produziam algo que podia ser colocado no mundo. Durante o processo, realizamos diversos registros que culminaram no vídeo documentário É de dentro e de fora (PONTO DE CULTURA É DE LEI, 2012), cartões postais e um flipbook. Esses documentos foram apropriados pelos participantes e ainda vivem desdobramentos. Diante desse contexto, percebemos alguns efeitos. Será que, em alguma medida, eles instauram mudanças sociais? Há efeitos políticos? Quais elementos, nesse processo, se relacionam com esses efeitos? JR aponta para uma possível perspectiva: De certa forma, a arte pode mudar o mundo. A arte não é feita para mudar o mundo, para mudar coisas práticas, mas para mudar percepções. A arte pode mudar o modo como vemos o mundo. A arte pode criar uma analogia. Atualmente o fato da arte não poder mudar as coisas a torna um lugar neutro para trocas e discussões, e então te possibilita mudar o mundo” (JR, TED Prize, 2011, tradução nossa). O efeito político da arte não teria exclusivamente a ver com um intuito de promover transformações sociais ou comunicar uma mensagem ideológica. Talvez, esse efeito seja promovido pelo lugar transversal que instaura no espaço cotidiano, atravessando e sendo atravessado pelas linhas de poder, podendo propiciar processos de emancipação. A prática e a proposição artística podem instalar-se como uma terceira coisa, como diz Rancière, entre pessoas que ocupam posições distintas: Dir-se-á que o artista, ao contrário, não quer instituir o espectador. Hoje ele se defende de usar a cena para impor uma lição ou transmitir uma mensagem. Quer apenas produzir uma forma de consciência, uma intensidade de sentimento, uma 190 | Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro energia para a ação. Mas supõe sempre que o que será percebido, sentido, compreendido é o que ele pôs em sua dramaturgia ou em sua performance. Pressupõe sempre uma identidade entre causa e efeito. Essa igualdade suposta entre a causa e o efeito baseia-se num princípio desigualitário: baseia-se no privilégio que o mestre se outorga, no conhecimento da “boa” distância e do meio para eliminá-la. Mas isso é confundir duas instâncias bem diferentes. Existe a distância entre o artista e o espectador, mas existe também a distância inerente à própria performance, uma vez que, como espetáculo, ela se mantém como coisa autônoma, entre a ideia do artista e a sensação ou a compreensão do espectador. Na lógica da emancipação há sempre entre o mestre ignorante e o aprendiz emancipado uma terceira coisa – um livro ou qualquer outro escrito – estranha a ambos e à qual eles podem recorrer para comprovar juntos o que o aluno viu, o que disse e o que pensa a respeito. O mesmo ocorre com a performance. Ela não é transmissão do saber ou do sopro do artista ao espectador. É essa terceira coisa de que nenhum deles é proprietário, cujo sentido nenhum deles possui, que se mantém entre eles, afastando qualquer transmissão fiel, qualquer identidade entre causa e efeito. (RANCIÈRE, 2012, p. 19, grifo nosso) Para o autor, emancipação não é a saída de um estado de minoridade, mas [...] ela começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição [...] A emancipação intelectual é a comprovação da igualdade das inteligências. Esta não significa igual valor de todas as manifestações da inteligência, mas igualdade em si da inteligência em todas as suas manifestações.[...] É o poder que cada um tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de relacionar isso com sua aventura intelectual singular que o torna semelhante a qualquer outro, à medida que essa aventura não se assemelha a nenhuma outra. Esse poder comum de igualdade das inteligências liga indivíduos, faz que eles intercambiem suas aventuras intelectuais, à medida que os mantém separados uns dos outros, igualmente capazes de utilizar o poder de todos para traçar seu caminho próprio. (ibidem, p.20-21) Podemos traçar um paralelo entre o conceito de igualdade de inteligências à questão dos direitos estéticos iguais proposto por Groys (2008). Em ambos os conceitos, evidencia-se que as condições desigualitárias que se refletem na Experimentações no Ponto de Cultura É de Lei: ações em interface | 191 dimensão estética estão ligadas a outras questões, a elementos heterogêneos dos dispositivos de poder. Assim, manter algumas distinções entre arte e vida, entre estética e política, entre ação artística e ação social, torna-se importante para que uma questão não seja engolida pela outra. A arte, em sua autonomia, pode criar linhas transversais aos processos de subjetivação hegemônicos. Na experiência É de dentro e de fora, proposta pelo artista JR, o lugar de enunciação da arte tem um lugar importante, muitos processos nãos seriam possíveis sem esse lugar. Mas, isso nos deixa com muitas perguntas. Afinal, é um projeto artístico? Um projeto social? Um projeto de comunicação global? Nessa ação globalizada, corre-se o risco de tornar essas imagens clichês? Quais as potências e seus apaziguamentos quando o projeto ganha essa dimensão e pulverização? Quem são os autores da obra? Quais as camadas de participação que as ações possibilitam? Quais os espaços expositivos desse projeto? Onde afinal está a obra? Quais são os objetos artísticos produzidos? A intervenção? Os retratos? Os registros audiovisuais e fotográficos? A plataforma digital? A equipe de produção? A própria rua? Alexandre Sequeira, fotógrafo e pesquisador de projetos participativos na arte contemporânea contribui no emaranhado desses nós: Mesmo que eventuais pretensões de uma retomada de ideais políticos dessas ações sejam incapazes de promover uma efetiva transformação social de forma abrangente, não podemos deixar de admitir sua possibilidade em atuar numa esfera mais reduzida, envolvendo pequenos grupos em torno de um objeto comum. E, assim, na medida em que seu raio de ação se amplia, quanto mais a experiência se torna coletiva, o que se tem é um grande impacto diante do empenho em decifrar a lógica que a contém. (SEQUEIRA, 2010, p. 87) A participação no Projeto INSIDE OUT promoveu fortes transformações e apropriações do público que ali circula. Depois desse processo, foi perceptível uma mudança de posição dos participantes em outros projetos, que trazem fortemente a sensação de terem participado de um projeto coletivo. Depois dessa experiência, alguns se engajaram cada vez mais em seus próprios projetos, validando e investindo em suas ideias de intervenções artísticas na cidade a partir de seus próprios argumentos. Além disso, pode-se, a partir dela, pensar que tipo de espaços um dispositivo como um ponto de cultura – um espaço nomeado cultural acessível aos conviventes do Centro de Convivência – pode promover nesse contexto. 192 | Isabela U. Valent e Eliane D. de Castro Referências bibliográficas BISHOP, C. Antagonism and Relationnal Aesthetic. In October, n. 110, 2004. DELEUZE, G. [1988]. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005b. FABBRINI, R. N. Arte relacional e regime estético: a cultura da atividade dos anos 1990. Revista Científica/FAP (Curitiba), v. 5, p. 11–24, 2010. FOUCAULT, M. Dits et Ecrits, volume III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994. GALARD, J. Arte, transfiguração e encontro no mundo contemporâneo: metáforas pétreas. Sesc Pompéia, 2005. GALARD, J. A Beleza Exorbitante: Reflexões sobre o abuso Estético. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2012. GROYS, B. Art Power. Cambridge: The MIT Press, 2008. RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. | 193 Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos SILFARLEM JUNIOR DE OLIVEIRA* GISELE BARBOSA RIBEIRO** Resumo: O artigo discute as duas vertentes da produção artística conceitual, a analítica (tautológica) e a ideológica (política), visando rever os argumentos que defendem a divisão e oposição entre as duas, nos termos “tautológico apolítico versus político antitautológico”. Percebendo uma possível lacuna na abordagem dos estudos teóricos e historiográficos até então desenvolvidos, procuramos confrontar a separação entre tautologia e política na arte conceitual anglo-saxã e latino-americana, ressaltando as abordagens comuns e demonstrando que o tautológico – a arte como arte – é político. Para tanto, o argumento se baseia nas reflexões de Simón Marchán Fiz, Mari Carmen Ramírez, Jorge Glusberg, bem como nas posições de autores mais recentemente ligados à Red Conceptualismos del Sur, sem deixar de considerar os trabalhos dos artistas implicados no debate. Palavras-chave: Arte Conceitual. Conceitualismos. Tautologia. Política. ** Mestre em Artes pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. ** Artista, pesquisadora e professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. 194 | Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro Entre tautología y política: arte conceptual analítica y conceptualismos ideológicos Resumen: El texto discute las dos vertientes de la producción artística conceptual, la analítica (tautológica) y la ideológica (política), visando rever a los argumentos que defienden la división y oposición entre las dos, en términos de “tautológico apolítico versus político antitautológico. Percibiendo una posible falla en el abordaje de los estudios teóricos y historiográficos desarrollados hasta hoy, buscamos confrontar la separación entre tautología y política en el arte conceptual anglosajón y latinoamericano, resaltando los puntos comunes y demostrando que lo tautológico – el arte como arte – es político. Para eso, el argumento se basa en las reflexiones de Simón Marchán Fiz, Mari Carmen Ramírez, Jorge Glusberg, así como en las consideraciones de autores más recientemente ligados a la Red Conceptualismos del Sur, sin dejan de tener en cuenta a los trabajos de los artistas. Palabras-clave: Arte Conceptual. Conceptualismos. Tautología. Política. Na contramão da maioria dos relatos artísticos, teóricos e historiográficos atuais, este artigo procura realizar uma revisão da arte conceitual analítica e do conceitualismo ideológico dos anos 1960 e 1970 provenientes do “norte” (principalmente dos Estados Unidos e Inglaterra) e do “sul” (América Latina), colocando em questão os “lugares” teóricos estabelecidos pelas categorias historicamente constituídas, como aqueles produzidos por pensadores como Simón Marchán Fiz, Mari Carmen Ramírez e, recentemente, a Red Conceptualismos del Sur. Em seu livro Del arte objetual al arte de concepto, publicado originalmente em 1972, o teórico espanhol Marchán Fiz classificou a produção conceitual latino-americana de “conceitualismo ideológico” (político) em contraposição à vertente anglo-saxã demarcada como “conceitualismo puro” ou “conceitual linguístico e tautológico”. Sua alegação para tal categorização seria de que o “conceitualismo analítico” isolaria o objeto artístico de qualquer referência contextual enquanto o “conceitualismo ideológico”, ao contrário, estabeleceria uma conexão direta e, consequentemente, ofereceria uma crítica sobre temas diretamente ligados ao contexto social, político e cultural mais amplo. Esta rama analítica aísla el arte de toda representación material y de toda dependencia contextual. […] La ruptura con dependencias contextuales aboca en última instancia a un estudio específico, inmanente y cerrado sobre sí mismo […].El arte “conceptual” [estricto] no posee vinculación alguna de tipo referencial con el mundo y las cosas. El arte como tautología se presenta como contexto autónomo […] (MARCHÁN FIZ, 1986, p. 255-256). Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos | 195 Segundo Marchán Fiz, a principal característica combatida pelo “conceptualismo ideológico” (em contraposição ao “conceptualismo puro”) seria o hermetismo, o isolamento da arte e a separação entre arte e vida provocados pelo enquadramento tautológico da vertente analítica anglo-saxã. Em contraposição à vertente “conceitual analítica” (autorreflexiva), o “conceitualismo ideológico” apresentaria, de maneira explícita, elementos de atitude política, o que o tornaria mais decididamente extra-artístico e contextual. Ainda nos termos de Marchán Fiz, a perspectiva analítica, que tem como máxima a arte como ideia como ideia, “tende a provocar uma dicotomia entre conceito e percepção”, diferentemente de outras propostas conceituais como o conceitualismo “empírico-medial” (fenomenológico) ou o “conceitualismo ideológico” (político), onde “não se elimina a materialização, já que o projeto tende a sua realização” (MARCHÁN FIZ, 1986, p. 251). Poderíamos afirmar que os principais artistas da vertente tautológica da arte conceitual, e os mais criticados por sua atitude supostamente “obscurantista” (hermética), são o norte-americano Joseph Kosuth e o grupo inglês Art & Language, cujos procedimentos artísticos se baseiam, entre outras possibilidades: na “suspensão” de pressupostos estéticos (puramente visuais); na utilização da teoria como obra; no uso da linguagem (escrita e oral); e na autorreflexão. Na perspectiva do teórico espanhol, tais pressupostos remeteriam a uma tentativa de racionalização meramente cientificista dos processos artísticos. A obra “estritamente conceitual”, de modo geral, buscaria eliminar “toda ambiguidade e metafísica” das construções artísticas (MARCHÁN FIZ, 1986, p. 261). Nestas bases, teríamos de um lado, no contexto do “norte”, o “conceitual analítico” (restritivo), tendo como expoentes Kosuth e o grupo Art & Language, e do outro, no contexto do “sul”, o “conceitualismo ideológico” (aberto e abrangente), que teria como principal referência, segundo Marchán Fiz, os artistas argentinos participantes das atividades do Grupo de los Trece,1 ligado ao Centro de Arte y Comunicación (CAyC),2 em Buenos Aires. 1. Grupo formado pelos artistas Jorge Glusberg, Carlos Ginzburg, Víctor Grippo, Jorge Gonzales Mir, Jacques Bedel, Luis Benedit, Gregorio Dujovny, Vicente Marotta, Luis Pazos, Alberto Pelegrino, Alfredo Portillos, Juan Carlos Romero e Julio Teich. 2. Instituição fundada e dirigida pelo artista e teórico Jorge Glusberg. O CAyC ocupando o espaço deixado pelo extinto “Instituto Di Tella” (em 1970) foi um importante “centro” aglutinador e difusor de artistas experimentais e de vanguarda. Além do mais, considerando a participação de Glusberg, serviu de ponto de encontro para as reuniões do “Grupo de los Trece”. 196 | Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro A fim de discutirmos as atividades deste grupo, utilizado como base para a argumentação de Marchán Fiz, analisaremos brevemente o material enviado pelo Grupo de los Trece aos Encontros de Pamplona, evento ocorrido na cidade espanhola em 1972.3 No material gráfico enviado pelo grupo à mostra de Pamplona, intitulado Hacia un perfil del arte latino-americano (1972), Jorge Glusberg declara – ao escrever sobre “arte e ideologia” em uma das peças/páginas de introdução do material – que o Grupo de los Trece, bem como os demais artistas convidados a participar da mostra, transmitia uma atitude na qual, sendo provenientes de países “ideologicamente submetidos pelas metrópoles e economicamente escravizados, as manifestações artísticas não podem deixar de significar esta realidade dependente e tributaria [...]”: [...] lo importante es exaltar y hacer explícito y manifiesto este contenido casi oculto en muchas de las manifestaciones artísticas latinoamericanas. Ya sea en contra o a favor, el artista siempre revela su situación de dependencia. El propósito conciente de que este significado esté presente y adopte formas precisas, determina la constitución racional y sistemática de un nuevo programa creativo (el GRUPO DE LOS TRECE) donde la sustancia de los significantes remiten a un significado determinado y unívoco, independientemente del contenido conceptual que podrá ser más o menos revolucionario según la actitud de cada artista (GLUSBERG, 1972, s/p.). Não obstante, para estes artistas, a “linha” principal não era tanto criar (ou reafirmar), como uma espécie de produto (ou estilo), “uma arte dos países latinoamericanos, mas sim uma problemática própria, consequente com sua situação revolucionária” (GLUSBERG, 1972). Recorrendo ao significado de ideologia do filósofo Louis Althusser, como “um sistema de representações coletivas sobre as condições de existência”, o grupo delimita seu posicionamento baseado na tomada de “consciência” das “condições de existência social e material”. Neste sentido, marcando distância das propostas de arte conceitual, afirmam que “a arte como ideia” é uma “arte opaca, oposta ao ideológico (domínio dos signos transparentes)” (GLUSBERG, 1972). Consideramos, portanto, que essa posição artística (e também política) defendida pelo Grupo de los Trece, o deslocamento da arte conceitual analítica 3. Mesmo ano em que Marchán Fiz publica Del arte objetual al arte de concepto. Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos | 197 pelo conceitualismo ideológico, é o ponto inicial que proporciona sustentação à argumentação de Marchán Fiz em sua empreitada contra as proposições artísticas tautológicas e, consequentemente, contra as considerações da filosofia analítica empreendidas por pensadores como Ludwig Wittgenstein. Nesse mesmo viés, compartilhando similaridades “programáticas”, encontramos outras propostas artísticas no contexto latino-americano, dessa mesma época (1960/1970), ainda que não apontadas no texto de Marchán Fiz, que se encaixam dentro do enfoque político e ideológico. Por exemplo: no Chile, o artista Alfredo Jaar e o grupo CADA (Colectivo de Acciones de Arte); no Uruguai, Luis Camnitzer, Clemente Padim e as ações estético-políticas dos Tupamaros; na Argentina, o Grupo de artistas de vanguardia e o grupo Arte de los medios de comunicación de masa; no Brasil, trabalhos de Cildo Meireles, Anna Bella Geiger, Artur Barrio e Paulo Bruscky. No contexto espanhol, de onde provém Marchán Fiz, encontramos também exemplos similares de conceitualismos ideológicos e políticos como é o caso do Grup de Treball. Traçando um “desenho de pesquisa artística e historiográfica” – a partir de Marchán Fiz até os dias de hoje –, o que observamos como “imagem metodológica” é a insistência de alguns artistas, teóricos e historiadores, como a portoriquenha Mari Carmen Ramírez (1993) e a Red Conceptualismos del Sur (2007), em reafirmar a disposição “tautológico versus ideológico” como parâmetro para estabelecer suas críticas, principalmente com relação ao “conceitualismo analítico” (anglo-saxão), colocando o “conceitualismo ideológico” (latino-americano) em uma posição contemporaneamente “privilegiada” frente às demais vertentes conceituais, por, supostamente, ser mais aberto e abrangente tanto em termos artísticos quanto políticos.4 Concretamente, em “Blueprint Circuits: Conceptual Art and Politics in Latin America” (2001), a historiadora Mari Carmen Ramírez se refere à arte conceitual norte-americana (principalmente às proposições artísticas de Kosuth, mas também às propostas mais diretamente políticas como aquelas ligadas à crítica 4. Jaime Vindel, no texto “Los 60 desde los 90: notas acerca de la reconstrucción historiográfica argentina de la vanguardia sesentista” (2008), afirma que o empenho dos historiadores latino-americanos em equiparar as práticas conceituais linguísticas e analíticas (assim como toda filosofia da linguagem) ao Tractactus logico-philosophicus não deixa de constituir uma manobra teórica orientada à valorização positiva das práticas hispano-americanas em oposição as anglo-saxãs. 198 | Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro institucional), como práticas que operariam um reducionismo apolítico (RAMÍREZ, 2001, p. 162, grifo nosso). A partir dessa constatação, Ramírez chega ao seguinte esquema de oposições: latino-americano contextualização relatividade ativismo mediação x x x x x norte-americano autorreflexividade tautologia passividade imediação Ao enfrentarmos esse esquema, um primeiro ponto que devemos ressaltar é que as práticas conceituais de cunho político e ideológico – ainda que sejam mais evidentes no contexto do “sul” devido, entre outros elementos, às “tensões provocadas pelas contradições sociais peculiares” (MARCHÁN FIZ, 1986), como foi o caso da América Latina – estão presentes também em práticas conceitualistas produzidas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Nesses contextos, encontramos propostas conceituais próximas às práticas que se convencionou chamar de primeira geração de “crítica institucional”, como seria o caso da produção dos artistas Hans Haacke, Daniel Buren, Marcel Broodthaers, Michael Asher, Martha Hosler, entre outros, que irão pensar a relação da arte com as diversas estruturas de poder. Além disso, a presença de artistas mulheres na arte conceitual nova-iorquina, engajadas nas demandas feministas, sinalizava a abertura do conceitual a abordagens explicitamente sociais e políticas. Nesse período, destacam-se as práticas de artistas como Christine Koslov, Yoko Ono, Yvone Rainer, Martha Rosler, Suzanne Lacy, Susan Hiller e Mary Kelly, citando apenas algumas, que trabalhavam com questões que atravessavam desde a luta pela emancipação feminina até os diversos modos de ativismo político. Para a artista e teórica Lucy Lippard, a inclusão de tais demandas políticas na pauta dessas artistas (e dos artistas anteriormente citados) teria proporcionado uma abertura do campo artístico, já que essas questões políticas “afetaram em sua totalidade a concepção do que a arte era e o que ela podia fazer” (LIPPARD, 2004, p.19). Ainda assim, Lippard reconhece que a arte produzida no hemisfério sul (referindo-se à América do Sul) seria socialmente mais revolucionária do que a arte produzida por seus companheiros em Nova York. Após uma visita à Argentina em 1968, teria dito: “Volví radicalizada con retraso por el contacto Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos | 199 con los artistas de allí, especialmente con el grupo Rosario, cuya mezcla de ideas políticas y conceptuales fue una revelación” (LIPPARD, 2004, p.10). Um dado interessante de se extrair desta declaração de Lippard é que sua “descoberta” sinaliza que este contato entre América do Norte e América do Sul, ou ainda entre arte conceitual e conceitualismos, possivelmente gerou, para além das diferenças programáticas e contextuais constadas, aproximações e interesses comuns entre propostas artísticas que, de um modo ou de outro, seriam notadamente revolucionárias, seja em termos artísticos ou extra-artísticos. E, o mais importante, que as influências e os desdobramentos não se dão em um sentido único, neste caso do norte em direção ao sul, mas em vias de mão dupla (do sul ao norte e vice e versa). Quanto ao processo de autorreflexão, questão chave no debate entre o tautológico e o ideológico, Marchán Fiz – ciente de que desde que a arte “abandonou o princípio mimético de construção a favor do sintático formal”, “se interessa pela reflexão sobre sua própria natureza” (1986, p. 268) –, considera que, “após uma primeira apropriação mimética das tautologias e do colonialismo cultural”, uma vez superadas as “restrições” das práticas analíticas, as práticas conceituais (em seus aspectos políticos, perceptivo-cognoscitivos e criativos) podem fomentar uma autorreflexão crítica e expansiva, “aperfeiçoando o próprio processo de autorreflexão” (MARCHÁN FIZ, 1986, p. 268-269), tornando-o mais aberto e abrangente do ponto de vista do desvelamento das ideologias implícitas e explícitas contidas nas manifestações artísticas e extra-artísticas. Temos que dizer que, a nosso ver, esta é a parte mais produtiva das colocações de Marchán Fiz, por reconhecer a importância de se “aperfeiçoar” os processos de autorreflexão ao invés de rejeitá-los. Podemos dizer que o conceitualismo ideológico poderia ser visto, portanto, como uma espécie de amadurecimento da proposta conceitual analítica, o que permite, nesta perspectiva, desenharmos outros caminhos de pesquisa pautados na conjunção entre o contextual e o tautológico. Pesquisadores como o espanhol Jaime Vindel, diferentemente da maioria dos seus colegas integrantes da Red Conceptualismos del Sur, vê as estratégias conceitualistas analíticas como estratégias de contextualização: La extrema autorreferencialidad de las tautologías kosuthianas podría ser interpretada, por otra parte, como la clausura o cancelación de la autonomía de la obra de arte. Constatando la imposibilidad de construir significados ajenos 200 | Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro al entorno en que se exhibe, la obra pasaba a presentarse a modo de señuelo o índice negativo destinado a disparar la reflexión acerca de cómo se originan aquellos en su contexto específico (VINDEL, 2008, p. 220). Seja como for, de um modo e de outro, as práticas conceitualistas (analíticas e ideológicas) do período entre 1960 e 1970 representaram uma substancial ênfase sobre os aspectos políticos da arte e da cultura em geral, uma “politização” da atitude do artista e de sua produção. Consequentemente, uma revisão das práticas conceituais envolve a observação destas estratégias em seu sentindo mais amplo, como atividades que ao mesmo tempo em que buscaram alargar o entendimento sobre o campo da arte desenvolveram também, em muitos casos, paralelamente, uma crítica aos valores hegemônicos decorrentes dos diversos modernismos. Nesse sentido, conseguimos entender porque a arte conceitual proveniente de países economicamente desenvolvidos e associados com o imperialismo global (América do Norte e Europa Ocidental) é vista com suspeita pelos artistas e teóricos atuantes em regiões que historicamente foram (e, de certo modo, ainda são) oprimidas (economicamente e culturalmente) por estes grandes centros hegemônicos. No entanto, acreditamos que tal perspectiva não inviabiliza o projeto de muitos artistas conceituais interessados numa renovação dos limites conceituais da arte. A tentativa de constituir uma revisão das teorias sobre as diversas vertentes conceituais nos diversos cantos do mundo (no nosso casso específico, sobre o conceitualismo ideológico e político na América Latina) deve ter o cuidado de não reduzir os diversos conceitualismos “a um ‘cânone’ anglo-americano (e agora histórico) do que se entende como conceitual [...]” (WOOD, 2002, p. 9). Por outro lado, do mesmo modo, a tentativa de rastrear e de alargar os relatos sobre outras estratégias conceituais não tem porque necessariamente estar pautada sobre uma negação das virtudes e conquistas exercidas pela arte conceitual anglo-americana. Deveríamos evitar simplificações, por exemplo, contidas nos pressupostos de que as práticas conceituais analíticas (cânone hegemônico) seriam práticas que não dariam qualquer atenção a aspectos políticos, ou que seriam apolíticas, por outro lado, deveríamos também evitar acreditar que os conceitualismos ideológicos (cânone “periférico”) manifestam enquadramentos estritamente sociopolíticos, sem qualquer preocupação com o campo da arte. Ciente dos perigos de que essa afirmação seja usada no sentido de esvaziar (ou neutralizar) o termo político, alegando indiscriminadamente que tudo é polí- Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos | 201 tico, o que percebemos na disposição “tautológico versus ideológico” é uma diferença de enfoque sobre o político – no sentido dado por Chantal Mouffe (2007) a partir de Carl Schmitt – ou sobre o uso e definição do que seria o político, mais que sua rejeição por um lado ou sua completa adesão por outro. Nesse sentido, é pertinente dizer que acreditamos que o que ocorre nesse antagonismo entre “conceitualismos” é a materialização daquilo que podemos nomear de estratégias que elaboram em certos casos uma política implícita e, em outros casos, uma política explícita. Algo entre uma espécie de “política centrípeta” e uma “política centrífuga”. Umas realizam um debate mais “particular”, não menos importante, sobre as “políticas da arte” – ou, como diria Jacques Rancière (2005), sobre as políticas estéticas – e outras sobre o mundo em geral. No caso do enquadramento “tautológico” anglo-saxão versus “ideológico” latino-americano, o que temos, então, contidos nestes termos, são “posicionamentos” sobre o que é (e como se mostra) o “ser político” da arte. Diferentemente do que propõe Ramírez – ou mesmo Marchán Fiz –, acreditamos que nenhuma das duas vertentes conceituais seria totalmente apolítica ou estritamente antitautológica. Acreditamos que, até mesmo, do ponto de vista das territorialidades (Norte/Sul), o que temos são pontos de contaminação recíprocos – “inversões”, apropriações, resignificações, do que negações. Portanto, discordamos de Marchán Fiz quanto a ideia de que a arte “conceitual estrita” (como ele costuma chamar o conceitual anglo-saxão) seja acrítica, tampouco estamos de acordo com as separações assépticas expostas no esquema de posições de Ramírez. Entendemos as duas vertentes conceituais como radicalmente engajadas e altamente críticas, ainda que existam diferenças de enfoque quanto à postura que cada uma adquire. Nosso “desenho de pesquisa invertido” apresenta uma arte com aspectos tautológicos (analítica) como uma arte política, já que acreditamos que a autorreflexão gera, por meio da sinalização dos processos artísticos, uma análise mais ampla sobre processos culturais e até mesmo sociopolíticos. Embora não caiba neste texto todo quadro elaborado, deixando de fora, por exemplo, uma reflexão mais aprofundada sobre a ideia de tautologia, acreditamos ter traçado os primeiros riscos em direção ao embate contra a percepção de que as proposições conceituais tautológicas seriam necessariamente apolíticas (ou acríticas). Se muitas delas estão discutindo problemas políticos internos ao campo (participação, autoria e função da arte, crítica institucional), também colocam, simultaneamente, em evidência os desacordos simbólicos e discursivos do “espaço público”. Do mes- 202 | Silfarlem Jr. de Oliveira e Gisele B. Ribeiro mo modo, consideramos que os trabalhos que priorizam processos contextuais de caráter político e social, como o conceitualismo latino-americano, não são imunes aos efeitos da tautologia mesmo quando realizados fora do campo tradicional da arte. Para indicar alguns trabalhos contextuais/políticos latino-americanos que utilizam estratégias tautológicas citamos, por exemplo, a obra Botella de CocaCola embotellada en botella de Coca-Cola (1973) do artista uruguaio Luis Camnitzer, a instalação Oficina de información sobre la guerra de Vietnam a tres niveles: la imagen visual, el texto y el áudio (1968) do artista argentino David Lamelas, as “páginas em branco”, parte da ação Para no morir de hambre en el arte, realizada no Chile pelos artistas do grupo CADA, a proposta de Telexarte dos artistas brasileiros Paulo Brusky e Daniel Santiago. Com isso, podemos dizer que a relação entre tautologia e política na arte conceitual é mais complexa do que sugere a dupla negação e assepsia das oposições. Ao contrário do que indica o esquema de contrários de Ramírez, portanto, não temos que escolher entre autorreflexão e contextualização. Em ambos os casos, tanto no conceitualismo latino-americano quanto na arte conceitual anglo-saxã, não se trata de se afirmar uma dicotomia entre práticas políticas e não políticas, contextualistas e não contextualistas, tautológicas e não tautológicas. Trata-se, antes de tudo, de procurar entender como cada um destes elementos é trabalhado em cada uma destas vertentes. Referências bibliográficas FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana (orgs.). Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: Annablume, 2009. GLUSBERG, Jorge (org.). Hacia un perfil del Arte Latinoamericano. Muestra del Grupo de los Trece e invitados especiales. Buenos Aires: CAYC, 1972. LIPPARD, Lucy R. Seis años: la desmaterialización del objeto artístico de 1966 a 1972. Madrid: Akal, 2004. MARCHAN FIZ, Simón. Del arte objetual al arte de concepto (1960-1974). Madrid: Akal, 1986. MOUFFE, Chantal. Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: MACBA/UAB, 2007. Entre tautologia e política: arte conceitual analítica e conceitualismos ideológicos | 203 RAMÍREZ, Mari Carmen. “Circuitos das heliografias: arte conceitual e política na América Latina”. In: FERREIRA, G.; VENÂNCIO, P. Filho (eds.), Arte & Ensaios, n. 8. Revista do PPGAV, EBA - UFRJ, Rio de Janeiro, 2001. RANCIÈRE, Jacques. Sobre políticas estéticas. Barcelona: Universidad Autónoma de Barcelona, 2005. VINDEL, Jaime. “Arte y publicidad del arte pop a la crítica institucional”. In: De arte: revista de historia del arte, nº 7. León: Universidad de León, 2008. . “Los 60 desde los 90: notas acerca de la reconstrucción historiográfica argentina de la vanguardia sesentista”. In: LONGONI, Ana (Ed.). Ramona n. 82. Buenos Aires: julho de 2008. WOOD, Paul. Arte conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. | 205 Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo de Obás de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá MARCELO MENDES CHAVES* Resumo: O presente artigo dedica-se à análise da formação do corpo de Obás de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá, uma casa de candomblé Queto situada na cidade de Salvador (Bahia). Fundamenta-se em cinco autores – Capone, Dantas, Lima, Verger e Silva – e procura uma interlocução entre alguns artistas, sacerdotes pertencentes à casa, como Carybé, Pierre Fatumbi Verger, Jorge Amado e Dorival Caymmi. Desse modo, o debate amplia-se e possibilita um diálogo com as artes plásticas, fotografia, literatura e música por meio da religião de matriz iorubá no Brasil. Palavras-chave: Arte Afro-Brasileira. Sincretismo. Candomblé. Diáspora Iorubá. Los ministros de Shango: un análisis de la formación del cuerpo de Obás de Shango del Ilê Axé Opô Afonjá Resumen: Este artículo está dedicado al análisis de la formación del cuerpo de Obás de Shango del Ilê Axé Opô Afonjá. Una casa de Candomblé Ketu ubicado en Salvador (Bahia). Se basa principalmente en cuatro autores – Capone, Dantas, Lima e Verger – y busca un diálogo entre algunos sacerdotes artistas que pertenecen a la casa, como Carybé, Pierre Fatumbi Verger, Jorge Amado y Dorival Caymmi. * Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM USP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA USP) – Linha de Pesquisa: História e historiografia da arte. CAPES 206 | Marcelo Mendes Chaves Por lo tanto, el debate se amplía y permite un diálogo con las artes visuales, la fotografía, la literatura y la música, través de la religión yoruba en Brasil. Palabras clave: Arte Africano-Brasileño. Sincretismo. Candomblé. Yoruba Diáspora. Em meados de 1868, alguns escravizados libertos formavam um importante grupo denominado brasileiros na África, em Lagos, Nigéria. Essa comunidade cumpriu o papel de símbolo de identidade na volta às raízes da cultura iorubá. No Brasil, essas viagens assinalavam, de certa forma, um esquecimento das marcas deixadas pela escravidão. Assim, para os brasileiros, ex-escravizados, residentes em Lagos, a escravidão tornava-se um mito civilizador e a viagem à terra de origem possuía um caráter de prestígio. Segundo Dantas (1998), a significação da “volta à África” e a exaltação do “nagô puro”, ou seja, a busca de legitimação, marca a construção da identidade ligada ao candomblé Queto em uma dicotomia: tradição e pureza, como apontam Ranger e Hobsbawm (1984 apud CAPONE, 2009, p.255): “Não é necessário recuperar nem inventar uma tradição quando os velhos usos ainda se conservam” versus o distanciamento da matriz negro-africana, observada nas demais modalidades do culto. Neste contexto, o movimento de volta à África, liderado por Mãe Aninha, primeira Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, acaba por influenciar uma parcela da população negra. Com o crescente prestígio da terra-mãe, os negros passam a mandar seus filhos para a África com o propósito de aprender a tradição dos cultos religiosos e introduzi-la no Brasil. A primeira dessas viagens míticas teria sido realizada pela fundadora do terreiro do Engenho Velho, Iyá Nassô, casa que deu origem a outras duas, consideradas berços da tradição iorubá: o Gantois e o Ilê Axé Opô Afonjá. Segundo o mito, Iyá Nassô viajou com Obá Tossi. Iyá Nassô, Obá Tossi e sua filha, Magdalena, passaram sete anos em Queto, onde a filha de Obá Tossi gerou três filhos. A caçula, Claudiana, é a mãe biológica de Mãe Senhora, Iyalorixá dos quatro artistas citados. Elas acabaram por retornar a Salvador, acompanhadas do africano Rodolfo Martins de Andrade. Após a morte de Iyá Nassô, Obá Tossi tornou-se a Iyalorixá do Engenho Velho, onde iniciou Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. Outra viagem importante à África, nessa mesma época, que também possui um caráter de mito fundador, é a de Marcos Teodoro Pimentel, fundador do Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ... | 207 primeiro Terreiro de Egungun na ilha de Itaparica (Bahia). A terceira viagem que se forma em torno do mito fundador é a de Martiniano Eliseu do Bonfim, informante e colaborador de Nina Rodrigues.1 Martiniano do Bonfim nasceu por volta de 1859 e foi pela primeira vez à Nigéria com seu pai, em 1875, permanecendo em Lagos até 1886. Usava o título honorífico de babalaô Ojelade e era muito procurado pelos adeptos do candomblé. Segundo a tradição oral, aprendeu os fundamentos do culto aos ancestrais com seu pai e, durante seu período na África, foi considerado um mestre por Marcos Teodoro Pimentel. Mãe Aninha fundou juntamente com Martiniano do Bonfim, em 1910, o Ilê Axé Opô Afonjá e consagrou à Mãe Senhora o cargo de Iyamorô e Ossi Dagan, que viria ser a segunda Iyalorixá da casa. Nesse período, Mãe Aninha passava longas temporadas no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Ao retornar definitivamente para Salvador e com a colaboração de Martiniano do Bonfim, criou a instituição dos Obás de Xangô: No Centro Cruz Santa do Axé do Opô Afonjá, terreiro de candomblé situado no Alto de São Gonçalo, no bairro do Retiro, em Salvador da Bahia, existe um grupo de oloiês2 conhecido como Obás de Xangô ou Ministros de Xangô. (LIMA, 1966, p. 5-6). O Ilê Axé Opô Afonjá foi o primeiro a modificar seu ritual ao introduzir a instituição dos Obás de Xangô. Trata-se de um grupo de dignitários do culto, com títulos honoríficos, ligados ao culto do orixá Xangô. Dantas (1998) considera de suma importância para a popularização da herança africana no Brasil dois congressos Afro-brasileiros, ambos realizados 1. Nina Rodrigues: “O médico Raimundo Nina Rodrigues foi o primeiro a se interessar pelo estudo das religiões afro-brasileiras. Para escrever seu trabalho pioneiro nesse campo – O animismo fetichista dos negros bahianos (publicado no Brasil em forma de artigos em 1896, e na França em forma de livro em 1900), visitou inúmeros terreiros de candomblé situados em Salvador, uma das principais cidades brasileiras na difusão do candomblé.” Em: SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. 2ª ed – São Paulo: Selo Negro, 2005. p. 55. 2. Oloiê: Oloiê, também oiê, ojoiê e ijoij. As formas adotadas nos candomblés da Bahia, com a mesma significação: o portador de um título honorífico, um “cargo”, um “posto” num terreiro. 208 | Marcelo Mendes Chaves na década de 1930. O primeiro ocorreu em 1934, foi sediado no Recife e teve como idealizador Gilberto Freyre. O segundo ocorreu em Salvador, no ano de 1937, e contou com a organização de Édson Carneiro, Aydano do Couto Ferraz e Reginaldo Guimarães, que procuraram enfatizar a teoria de Nina Rodrigues. Silva comenta sobre a referida teoria: Para ele, o fato de a religião do africano e a de seus descendentes ser politeísta (que acredita em vários deuses) e animista (atribuir alma, vida, a objetos inanimados) demonstrava a inferioridade do negro em relação ao branco cuja religião, monoteísta (que acredita num único Deus), exigia abstrações mais sofisticadas de pensamento. Nina Rodrigues concluiu, então, que o Brasil jamais chegaria a ser um país como os da Europa, onde a raça negra não exerceu influência. (SILVA, 2005, p.55-56) Durante o segundo Congresso Afro-brasileiro, antes mesmo de ser colocado em prática, Martiniano do Bonfim tornou pública a existência do corpo de Obás de Xangô. Segundo Bonfim3 (1950, p. 374-379) e Verger4 (1999, p. 326 apud CAPONE, 2009, p. 282), que retoma sua teoria, os Obás de Xangô formam um conselho encarregado de manter o seu culto. O conselho seria composto, a princípio, por doze ministros que o acompanharam, a exemplo do que ocorria quando estava na vida terrena, sendo seis do lado direito e seis do lado esquerdo. Desse modo, estaríamos, diante de uma instituição africana reproduzida fielmente na Bahia: “Essa polarização entre direita (Otún) e esquerda (Osì) é encontrada na organização religiosa e política entre os iorubás”. (CAPONE, 2009, p. 283). Lima (1966) discorre sobre o corpo de Obás de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá. Além da introdução explicativa sobre os principais fundamentos religiosos, divide a análise nos seguintes tópicos: Quadro atual dos Obás; Os Otuns e os Ossis: a polaridade; A função dos Obás no terreiro; Admissão no grupo; Substituição e Renovação do quadro; Os nomes títulos dos Obás. 3. BONFIM, Martiniano Eliseu do. “Os ministros de Xangô”. Em: CARNEIRO, Édson (org.). Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1950. p. 374-9. 4. VERGER, Pierre. Notas sobre o cultor aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Edusp. 1999. Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ... | 209 Segundo o autor, os Obás recebem na cerimônia de sua confirmação nomes ou oiês alusivos a personalidades ligadas à história da cultura iorubá. Dessa maneira, os Obás são divididos em direita e esquerda. Os Obás da direita são classificados em: Obá Abiodum; Obá Aré; Obá Arolu; Obá Telá; Obá Odofim; Obá Cancanfô. Os Obás da esquerda, por sua vez, dividem-se: Obá Onanxocum; Obá Arecá; Obá Elerim; Obá Onicoí; Obá Olugbom; Obá Xorum. Com a morte de Mãe Aninha, sua sucessora, Mãe Senhora, diante de um período de tensões, decidiu substituir alguns Obás e também modificar a estrutura do grupo. O número de Obás, que somavam doze e estava dividido entre os da direita e os da esquerda, ganhou mais uma subdivisão, cada posto ganhou Otun Obá e Osì Obá, isto é, um substituto da direita e outro da esquerda, passando, dessa maneira, para trinta e seis membros. Como por exemplo: Obá Onaxocum, Obá Onaxocum Otun; Obá Onaxocum Osi. Ainda segundo Lima (1966), no Opô Afonjá, hierarquicamente, os Obás estão em uma categoria superior à dos ogãs,5 sendo considerados mais graduados por serem consagrados ao próprio patrono do axé da casa, Xangô Afonjá. Cabe aos Obás a responsabilidade de ajuda financeira à Iyalorixá nas obrigações religiosas da casa dedicadas ao Orixá Xangô, como também em quaisquer outras festas do Axé a que cada Obá esteja associado por suas ligações rituais secundárias. Desse modo, o Obá deve contribuir financeiramente com uma cota, muitas vezes estipulada pela Iyalorixá. O caráter político dos Obás de Xangô fica evidente na escolha das pessoas que ocupam esses cargos, podendo defini-los como a elite dos ogãs e pessoas influentes na sociedade. Mãe Senhora, preocupada com sua posição e poder, recrutou para compor o corpo de Obás os intelectuais mais importantes da Bahia, entre eles Carybé, Verger, Dorival Caymmi e Jorge Amado; buscava, nesse movimento, a legitimação de sua tradição. Capone (2009) comenta que os títulos apresentados por Bonfim resultam de uma bricolagem da história iorubá, presentes na obra de Johnson (1957), escrita antes de 1887 e reeditada em 1921, que compreendia o texto de referência sobre a história iorubá, estudado nas escolas da Nigéria. Tais influências são notórias em Bonfim, devido ao longo período em que viveu em Lagos. Assim, 5. Ogã: Cargo reservado aos homens “não rodantes” (que não entram em transe) e cuja função é auxiliar o pai ou a mãe de santo. Em: SILVA, 2005. p. 139. 210 | Marcelo Mendes Chaves no caso dos Obás de Xangô, houve uma recriação da tradição baseada em dados históricos, procurando reatualizar um passado remoto. Essa reconstrução do corpo de Obás, realizada por Mãe Aninha, reforçou a sua origem iorubá, fazendo com que sua casa se reaproximasse da África, tornando-se mais “tradicional”. Como Mãe Aninha fundou sua casa em decorrência da cisão da Casa Branca do Engenho Velho, ela sentia a necessidade de se diferenciar em relação à casa mãe. Ojú Obá, Essá Elemexó: Pierre Fatumbi Verger O espetáculo da Bahia está nas ruas. Nos anos 40 eram calmas e agradáveis. Nestas ruas era constante o desfile de pessoas que levavam toda sorte de coisas sobre a cabeça... Mas o que era mais remarcável e continua sendo, nas ruas da Bahia, a Boa Terra, é a extraordinária e alegre mistura, o convívio amigável de pessoas brancas e morenas, amarelas e negras que fazem a Bahia de todas as cores. (VERGER; BARRETO, 2008, p. 78). Pierre Fatumbi Verger chega ao Brasil em 1946, encantando-se com os afrodescendentes e seus cultos religiosos e cumprindo importante papel na comparação entre África e Brasil. Também iniciado por Mãe Senhora, reconta a tradição iorubá por meio das inúmeras notas de suas viagens. Em 1952, chegou a Porto Novo (Benin), de onde partiu para incursões na Nigéria. Em 1953, obteve, pelas mãos do rei de Oshobó, uma carta para Mãe Senhora, consagrando-a com o título de Iyá Nassô, dignatária do culto de Xangô. Tal valor simbólico foi fundamental para que Senhora aumentasse seu poder diante da tradição iorubá em Salvador. Durante a comemoração dos cinquenta anos de seu sacerdócio, em 1958, grande número de personalidades compareceu ao evento, entre eles o presidente da República, Juscelino Kubitschek. Em 1965, Mãe Senhora foi eleita “Mãe preta do ano” e, em 1966, recebeu do governo do Senegal a “ordem dos cavaleiros do mérito” pela sua atividade de preservação da cultura negro-africana. Em seu enterro, no ano de 1967, uma verdadeira multidão esteve presente. Verger passou perto de 17 anos entre Brasil e África. Foi iniciado em 1953 no culto a Ifá, tornando-se babalaô, ajudando de forma significativa no vínculo simbólico entre África e Brasil. Em decorrência de suas pesquisas, foi fundado em 1959 o CEAO – Centro de Estudos Afro-orientais de Salvador. Durante os anos 1960, os pesquisadores viajaram, em sua grande maioria, para a África ocidental. Em 1967, Mestre Didi – filho biológico de Mãe Senhora – e sua esposa, Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ... | 211 a pesquisadora Juana Elbein dos Santos, partiram para o Benin, com o objetivo de visitar o rei de Queto, em companhia de Verger, contando com uma bolsa da UNESCO. A atual Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Stella de Oxossi, Odekayodè, quarta Iyalorixá na sucessão do terreiro, também esteve na África. Tais viagens representam um prestígio no meio dos cultos e uma forma de adquirir conhecimentos perdidos ou diluídos na diáspora. Otum Arolu – Jorge Amado Jorge Amado é um dos escritores brasileiros mais lidos e traduzidos. Seu percurso procura narrar o processo histórico e dar lugar a inclusão social, seja de gênero, etnia ou classe, como afirma Duarte (1997, p. 89): “Jorge Amado colocaria o povo como personagem para ganhá-lo como leitor”. Encontramos, portanto, uma fórmula comum dentro de sua obra: explorados, marginais, mulheres, negros, mestiços, trabalhadores, etc. Tomaremos como exemplo o romance Jubiabá (1935) que, além de ser considerado um marco na obra de Jorge Amado, possui um apelo popular capaz de incorporar uma estratégia narrativa inovadora, inspirado na linguagem cinematográfica. Duarte (1997) classifica o romance como um modelo popular/ popularizado que preside a ascensão na cena narrativa das vozes vindas “de baixo”. Ao mesmo tempo, seu discurso ganha um caráter de utopia socialista, o texto passa a revelar o político no escritor. Jubiabá traz na figura de Balduíno, o protagonista, o primeiro herói negro do romance brasileiro. “Balduíno opõe o instrumento da greve às rezas do pai-de-santo, tentando desqualificá-las no momento em que invade a sessão de umbanda.” (AMADO, 1935, p.93) O personagem procura num primeiro momento, com essa atitude, esvaziar o ritual e angariar pessoas para o movimento político, lamentando que o líder espiritual, Jubiabá, tenha falhado em não orientar politicamente seus filhos, partindo do princípio de que ele deveria saber de tudo o que viria a acontecer. Por outro lado, com o sucesso da paralisação narrada no livro, Pai Jubiabá o reconhece e o destaca como líder e exemplo para os homens do morro do Capa Gato, demonstrando a coesão que deve existir nas diversas lutas, a exemplo das políticas afirmativas nos dias de hoje. Jorge Amado foi deputado-constituinte em 1946, responsável pelo projeto de lei que estabeleceu a liberdade de culto no País e descriminalizou os rituais afro-brasileiros. É a partir da década de 1960, entretanto, que a temática afro- 212 | Marcelo Mendes Chaves brasileira ganha corpo na obra do escritor. O discurso passa a tratar de questões étnicas e raciais, práticas ainda estranhas à cultura etnocêntrica branca, ocidental e judaico-cristã; a exemplo de Tenda dos Milagres (1969). A obra em questão busca o discurso paralelo de elevação da cultura afro-brasileira por meio da miscigenação, provavelmente influenciada pela tese de Freyre.6 Obá Ónikôyi – Dorival Caymmi Silva e Amaral (2006) analisam as múltiplas relações entre os valores e símbolos religiosos afro-brasileiros e a música popular brasileira. Buscam a estreita relação da música com as religiões de matriz negro-africana e a construção da identidade nacional, aprofundando o diálogo entre os fundamentos religiosos e a cultura. A partir da década de 1920, o rádio ganha popularidade e torna-se o maior veículo de comunicação do país; momento em que o samba e os outros gêneros populares, até então ritmos considerados regionais, ganham expressão nacional. O Estado Novo (1937 – 1945), na gestão de Getúlio Vargas, “incluía a valorização e promoção das práticas culturais ‘brasileiras’ capazes de congregar o sentimento de unidade nacional” (SILVA; AMARAL, 2006, p. 168), complementando, nesse período, a cultura popular. Segundo os autores, o candomblé, por ter em sua base os elementos afro-brasileiros, além da projeção, recebe oficialmente o apoio do governo, a exemplo da capoeira, que passa a ser considerada “esporte nacional”. As classes populares encontram na música um campo semântico que suporta diversas experiências e valores. Outros tipos simbolizam o Brasil em âmbito nacional e internacional na figura de Carmem Miranda e do Bando da Lua: O que é que a baiana tem? [...] Tem torso de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem! Corrente de ouro, tem! 6. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala (1933). Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ... | 213 Tem pano da costa, tem! Sandália enfeitada, tem! [...]7 Para Silva e Amaral (2006), devido a grande presença de baianos no Rio de Janeiro nesse período, capital federal, a projeção nacional da Bahia aconteceria. As “tias” baianas,8 a exemplo de Tia Ciata, com sua cultura, seus trajes típicos presentes nos terreiros e no carnaval, são sintetizadas na figura de Carmem 7. CAYMMI, Dorival. Letra de música: O que que a baiana tem? 1939. 8. A musicalidade dos terreiros, marcada pela herança africana, foi um dos pontos que mais atraíram a atenção para a diferenciação dessas crenças, servindo como elemento aglutinador e difusor de estilos musicais “profanos” que participaram da formação da cultura musical brasileira sob diferentes formas ao longo dos vários contextos históricos. Exemplos bem conhecidos destes processos são os ritmos maxixe e lundu. Em fins do século XIX, como atestam os jornais e outros documentos da época, havia uma grande restrição, por parte de segmentos dominantes da sociedade, às práticas religiosas afrobrasileiras. Atribuía-se a eles o caráter de “selvageria”, cujos exemplos, constantemente citados, eram a “lasciva das suas danças” e o “estrondoso barulho” de suas batucadas. Esta situação de rejeição – e consequentemente repressão – aos cultos afro-brasileiros colocou-os, do mesmo modo que à sua música, na situação de clandestinidade até meados do século XX. Entretanto, esta situação não impediu a incorporação dos ritmos africanos ao repertório musical brasileiro em vários pontos do Brasil, influenciando a criação de estilos musicais populares como o lundu, maxixe, coco, lelê, tambor-de-crioula, “sotaques” de bumba meu boi, jongo, maculelê, maracatu, afoxé e o samba, entre muitos outros. No caso do samba – bom exemplo por sua relevância presença como um dos elementos constitutivos do gosto nacional e da identidade brasileira -, sabe-se que sua origem está ligada à religiosidade dos grupos banto trazidos para o Brasil. Este ritmo, tocado sobretudo em terreiros de candomblé de angola (que enfatizam uma identidade de origem banto) e, posteriormente, na umbanda, constitui um dos principais elementos de identidade de ambas as religiões. Sendo a música religiosa, o samba enredou-se, contudo, nos espaços profanos, num intenso fluxo de trocas simbólicas entre as religiões afro-brasileiras e a sociedade. No Rio de Janeiro este entrelaçamento é perceptível pelo menos desde as primeiras décadas do século XX, quando dos núcleos religiosos surgiram compositores que consolidaram esse estilo musical e o disseminaram entre o grande público. Alguns destes compositores eram filhos das famosas “tias” em torno das quais as colônias de migrantes baianos no Rio de Janeiro se reunia para dançar, cantar, comer comidas baianas e cumprir as obrigações rituais para com seus orixás. Assim, nesses 214 | Marcelo Mendes Chaves Miranda. Em 1939, no filme Banana da Terra, Carmem Miranda interpretaria “O que é que a baiana tem?”, portando um figurino customizado, com base na indumentária das filhas de santo do candomblé, contando ainda com as contas em colares, pulseiras e torso. É como se ela própria representasse o Brasil e estes símbolos representassem a força da religiosidade de origem africana na constituição de nossa identidade. Carmem Miranda interpretou várias composições de Caymmi, com temas ligados à cultura afro-baiana: A Bahia, a vida litorânea, o cotidiano dos pescadores, o mar, a religiosidade de matriz negro-africana. O meio musical absorveu a religiosidade de matriz negro-africana nesse período. Outro exemplo de composição de Caymmi seria Oração a Mãe Menina; criada em homenagem a Iyalorixá do terreiro do Gantois: [...] O consolo da gente, hein? Tá no Gantois E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois Olorum quem mandou Essa filha de Oxum Tomar conta da gente E de tudo cuidar [...] 9 Como citam Silva e Amaral (2006, p. 162), “nas religiões afro-brasileiras, a música desempenha um papel fundamental”, os autores consideram a música um dos principais veículos pelo qual os adeptos invocam os orixás, seja na umbanda ou no candomblé, fazendo uso de diversos instrumentos: atabaques; cabaças; chocalhos; agogôs; ganzás. A musicalidade se faz presente tanto em cerimônias abertas como fechadas. Essa é uma das características da herança da matriz negro-africana. espaços reuniam-se, entre outros, compositores que se tornariam famosos na história da música popular brasileira como Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos), João da Baiana (João Machado Gomes), Sinhô (José Barbosa da Silva, o Rei do Samba) e Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Jr.). SILVA e AMARAL (2006, p. 162). 9. CAYMMI, Dorival. Letra de música: Oração a Mãe Menininha, 1972. Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ... | 215 Otum Onaxocum: Carybé Segundo Carybé (1962, p. 37), o candomblé: “[...] estará presente na mesa rica e na pobre, nos arvoredos sagrados, nos pés de Loko, nas encruzilhadas onde moureja Exu, nos quindins das baianas, nas igrejas, nos mercados, nas folhas da mata.” Carybé chega à Bahia em 1938, seduzido pelo romance Jubiabá de Jorge Amado, ocasião em que representava o jornal argentino El Pregon. Desse primeiro contato até o convite de Anysio Teixeira, secretário de Educação da Bahia, para desenhar os costumes afro-baianos, passaram-se 12 anos de longa espera. No início dos anos 1950, Carybé decidiu fixar-se na cidade de Salvador, integrando, a partir de então, o movimento de renovação das artes plásticas baianas e tornando-se mais do que um brasileiro – um baiano por excelência. Sua plástica sofreu uma profunda transformação, sobretudo pelos valores da arte e cultura africana e sua miscigenação na Bahia, passando a reestruturar sua estética. Em torno da plástica de Carybé, revelam-se ensinamentos tradicionais, valores ancestrais africanos, mitos e ritos, compondo uma extensa produção com mais de cinco mil trabalhos, dentre pintura, escultura, gravura, murais, cerâmica, ilustrações, figurinos e cenários, além da importante pesquisa etnológica realizada por ele. A cosmogonia dos iorubás engloba a visão de mundo dos povos originários, principalmente do que hoje chamamos de Nigéria e Benin, fazendo surgir nas Américas um tronco de religiões de mesma matriz, como a santeria em Cuba e o candomblé no Brasil. A mitologia desses povos é transmitida por Itans (histórias míticas), que Carybé transcreve em Os Deuses Africanos no Candomblé da Bahia (1993), sendo os ancestrais os guardiões supranaturais desse legado. Nesse sentido, o crescer da temática afro-brasileira torna-se um emblema na perspectiva do artista. Sua plástica busca um retorno à “África Mítica” dos ancestrais escravizados e sua cosmologia. Com a colaboração de outros Obás de Xangô, em diferentes campos do saber, é inevitável não fazermos um estudo comparado, indicando que Fatumbi, Jorge Amado e Caymmi seguem na mesma direção. 216 | Marcelo Mendes Chaves O Diálogo entre os Obás Um babalaô me contou: Antigamente, os orixás eram homens. Homens que se tornaram orixás por causa de seus poderes. Homens que se tornaram orixás por causa de sua sabedoria. Eles eram respeitados por causa de sua força Eles eram venerados por causa de suas virtudes. Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram. Foi assim que estes homens se tornaram orixás. Os homens eram numerosos sobre a terra. Antigamente, como hoje, Muitos deles não eram valentes nem sábios. A memória destes não se perpetuou. Eles foram completamente esquecidos. Não se tornaram orixás. Em cada vila um culto se estabeleceu Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio E lendas foram transmitidas de geração em geração Para render-lhes homenagem 10 Oju Obá (Pierre Fatumbi Verger), Otum Arolu (Jorge Amado), Obá Ónikôyi (Dorival Caymmi) e Obá Onaxocun Otun (Carybé), apesar da origem e formação distintas, comungam do mesmo olhar sobre a Bahia, sua cultura e sua gente. Trouxeram importantes contribuições por meio de suas criações artísticas, seja qual for o veículo de expressão, contribuindo acima de tudo para a aceitação e a afirmação da diversidade cultural. Sob diferentes expressões artísticas como fotografia, literatura, música e artes plásticas, os quatro Obás parecem cumprir a função de agentes da disseminação de uma linhagem religiosa de matriz negro-africana iorubá, o tronco jeje-nagô. Fizeram parte, não somente do corpo de Obás, mas da mesma casa de candomblé e foram iniciados pelas mãos de Mãe Senhora, além de terem como ofício o amplo campo da arte afro-brasileira. Fica evidente, portanto, a malha construída na estruturação do candomblé Queto na Bahia, iniciado na Casa Branca do Engenho Velho por Iyá Nassô, seu 10. Verger e Carybé (2009, p. 188). Os ministros de Xangô: uma análise sobre a formação do corpo ... | 217 contínuo com Mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá e na figura de Martiniano do Bonfim, fundamental interlocutor na criação do corpo de Obás de Xangô. É importante frisar o papel de Mãe Senhora, segunda Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, na reestruturação do corpo de Obás, aumentado seu número de 12 para 36, bem como a substituição de alguns nomes; pois nesse período a trama de caráter político foi imprescindível para a descriminalização e liberdade do culto. Podemos observar a estreita relação entre a arte e a religião de matriz negroafricana jeje-nagô (Queto) na produção artística dos quatro Obás, travando um constante diálogo com questões do sistema religioso referido, contribuindo de maneira global no debate sobre a diáspora iorubá. Referências bibliográficas AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Martins, 1935. . Tenda dos Milagres. São Paulo: Martins, 1969. AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e de viver no candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Jorge Amado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1997. CAPONE, Stefania. A busca da África no Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2009. CARNEIRO, Edson. Candomblés da Bahia. (9ª ed). São Paulo: Martins Fontes, 2008. CARYBÉ, Hector Júlio Paride Bernabó. As sete portas da Bahia. São Paulo, Martins. 1962. . As Sete Portas da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1976. ; VERGER, Pierre Fatumbi; BARRETO, José de Jesus. Entre Amigos: Carybé & Verger, Gente da Bahia. Salvador: Fundação Pierre Verger e Solisluna Design Editora, 2008. ; CAYMMI, Dorival; VERGER, Pierre Fatumbi; BARRETO, José de Jesus. Entre Amigos, Carybé & Verger, Caymmi: Mar da Bahia. Salvador: Fundação Pierre Verger, Solisluna Design Editora, 2009. . Os Deuses Africanos no Candomblé da Bahia. Salvador: Bigraf. 1993. 218 | Marcelo Mendes Chaves DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1998. JOHSON, Samuel. The History of the Yorubas. London: George Routledge & Sons, 1957. LIMA, Vivaldo da Costa. Os Obás de Xangô. 1966. Disponível em: <www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n2_3_p5. pdf>. Acesso em: 02 jun.2014. SILVA, Dilma de Melo; CALAÇA, Maria Cecília Felix. Arte Africana & Afro Brasileira. São Paulo: Terceira Margem, 2007. SILVA, Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda – Caminhos da Devoção Brasileira, 2ª ed – São Paulo: Selo Negro, 2005. ; AMARAL, Rita. Foi conta pra todo canto: Música popular e Cultura Religiosa afro-brasileira. Disponível em: <www.doafroaobrasileiro.org/ contacanto1.html>. 2006. Acesso em: 01 jun.2014. VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e nas antigas Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Edusp. 1999. ; CARYBÉ, Héctor Júlio Paride Bernabó. Lendas Africanas dos Orixás. 4ª. Ed. Salvador: Corrupio, 2009. | 219 A influência de Paul Cézanne na pintura de Arturo Tosi: o caso Ponte di Zoagli na Coleção MAC USP DÚNIA ROQUETTI SAROUTE* Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir a influência de Paul Cézanne na pintura de Arturo Tosi, baseado na análise da obra Ponte di Zoagli, do MAC USP. As ideias apresentadas neste trabalho fazem parte da pesquisa de mestrado em andamento, com orientação da Profª. Drª. Ana Gonçalves Magalhães, a respeito das cinco obras de Arturo Tosi na coleção do MAC USP. Palavras-chave: Arturo Tosi. Paul Cézanne. Arte Moderna Italiana. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. The influence of Paul Cézanne on Arturo Tosi’s painting: the case of Ponte di Zoagli in the MAC USP Collection Abstract: This article aims to discuss about the influence of Paul Cézanne on Arturo Tosi’s painting, based on the detailed analysis of the work Ponte di Zoagli, of MAC USP. The ideas presented in the current article are part of the ongoing master’s degree program research, under orientation of Profª. Drª. Ana Gonçalves Magalhães, about Tosi’s five works of MAC’s collection. Keywords: Arturo Tosi. Paul Cézanne. Italian Modern Art. Museum of Contemporary Art of University of São Paulo. * Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. 220 | Dúnia Roquetti Saroute Introdução As ideias apresentadas neste artigo são frutos dos primeiros resultados e reflexões da pesquisa de mestrado “Arturo Tosi na Coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo”. Esta pesquisa, por sua vez, se propõe a realizar o inédito estudo crítico-reflexivo baseado nas cinco obras do pintor italiano Arturo Tosi (Busto Arsizio, 1871 – Milão, 1956), pertencentes à coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). São elas: Paesaggio della Val Seriana [Paisagem de Val Seriana], sem data; Natura Morta Pane e Uva [Natureza-morta com pão e uva], 1930; Ponte di Zoagli [Ponte de Zoagli], 1937 (fig. 4); Paesaggio – Ulivi su Lago d’Iseo [Paisagem – Oliveiras no Lago d’Iseo], 1946; e Paesaggio [Paisagem], 1947. O objetivo é considerá-las historicamente, contemplando as manifestações artísticas e culturais italianas da segunda metade do século XIX à segunda metade do século XX, para então examiná-las no percurso que se pontua desde o processo de suas aquisições – ocorrido entre 1946-1947, com orientação da jornalista e crítica de arte italiana Margherita Sarfatti (1880-1961), em nome de Francisco Matarazzo Sobrinho (1898-1977), para integrar a primeira coleção italiana do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) – até, atualmente, no desenlace do amplo projeto de reavaliação crítica do acervo MAC USP, empreendido pela historiadora da arte Ana Gonçalves Magalhães, no MAC USP. Como se reconhece até o presente momento, parece coerente sinalizar os caminhos artísticos de Arturo Tosi em três vias essenciais: a primeira, recortada entre os anos de 1885 e 1900, demanda suas significações às fontes do romantismo lombardo (Scapigliatura) e, ainda, às reproposições tocantemente abstratas de obras consagradas na tradição clássica italiana; a segunda, entre os anos de 1900 e 1920, sinalizada historicamente no seio de formação das vanguardas artísticas europeias, corresponde ao momento em que Tosi, imerso às lições da pesquisa visual científica do pintor divisionista Vittore Grubicy (1851-1920), começa a sentir a necessidade de desenvolver a sua consciência pictórica em termos mais límpidos; e, por fim, a terceira via que, fundamentada no estímulo do modelo cromático e estrutural da natureza em Paul Cézanne, entrecruza-se por um lado ao contexto político-cultural da Itália fascista e, por outro, ao cenário artístico propagandista do grupo milanês de Margherita Sarfatti, no qual Tosi se associa em 1925, o Novecento Italiano. Como se sabe, o cenário artístico italiano nos anos 1920 e 1930, da era A influência de Paul Cézanne na pintura Arturo Tosi ... | 221 fascista, desenhado pelo emaranhado espaço de antíteses, reticências e contradições, é campo vasto para polêmicas. Disso, Fagone (2001), prõpoe uma leitura interessante: As maiores dificuldades para a avaliação das manifestações artísticas da época [...] derivavam de dois elementos: o complexo enredo entre arte e política que se realiza na década [...] e o singular equilíbrio reflexivo que atravessa a Europa artística, pelo qual alguns dos grandes modernistas conseguiram separar-se da estrutura dos movimentos e dos ‘ismos’. (FAGONE, 2001, p. 9, tradução nossa) Com efeito, conforme salienta Magalhães (2013, p. 21), a tradicional historiografia da arte moderna, afirmada e firmada no discurso das práticas vanguardistas, até meados dos anos 1970, interpretava este período do entreguerras europeu – no caso italiano apresentando pelo carro chefe do Novecento Italiano a endossar o fenômeno do “retorno à ordem” – como um momento de retrocesso artístico na representação da forma. Sendo assim, este artigo propõe justamente levantar a complexidade dessa questão tendo como base a composição da obra Ponte di Zoagli, que, segundo afirma Magalhães (2013, p. 18), era tomada, naquele contexto, como “uma composição sólida, construída, equilibrada, herdeira da grande tradição mediterrânea”. Em linhas gerais, certamente pode-se afirmar que as cinco obras de Arturo Tosi, hoje na coleção MAC USP, em termos plásticos, primam pelo nivelamento da composição em planos, conservando a tradicional ideia de perspectiva ao manter linha e desenho como determinantes fundamentais a se entrelaçarem aos contrastes de cor. Disto, correspondendo todas elas aos ensinamentos filtrados de Cézanne, foram legitimadas, ao contexto político-cultural da Itália do entreguerras, em consoância à exigência novecentista de valorização do solo italiano no retorno à prestigiosa e sólida tradição clássica. De fato, a pintura de Tosi nas instâncias do grupo Novecento Italiano, embora nunca tenha deixado de observar, jamais buscou fontes na ânsia pela novidade. Atinha-se na observação das coisas do mundo elaboradas no eixo da sensibilidade, pintando como um poeta que, demasiadamente humano, reconhece-se parte da natureza, observando nela, como em si próprio, uma vital e constante renovação. Em tempo, o pintor não procura uma significação para a natureza, testemunha, antes de tudo, a sua existência. Sem valorizar, no entanto, uma possível superioridade da natureza com sensismos naturalistas fáceis, Tosi, conforme reconhecia Giulio Carlo Argan (1942, p. 13), salvando ao termo naturalismo o que tem nele de histórico, se 222 | Dúnia Roquetti Saroute distancia da arte enquanto imitação aristotélica da natureza, se distancia da arte como impossibilidade platônica de uma realidade, se distancia da arte enquanto conflito aflitivo entre homem e natureza romântica. Rumando antes ao fenômeno da estruturação matemática e maiêutica cezánniana, Arturo Tosi emparelha novamente o homem, enquanto consciência humana que observa, produz e sente, e a natureza, enquanto própria realidade de cognição, à sua justa harmonia. A influência de Paul Cézanne De acordo com estudos recentes, presume-se que Arturo Tosi (2006, p. 142) tenha tomado conhecimento da pintura de Paul Cézanne (1839-1906), além das de Édouard Manet (1832-1883) e Pierre-August Renoir (1841-1919), durante uma viagem a Paris, em 1900, no contexto da Exposição Universal, que acontecia na cidade no mesmo ano. A influência efetiva da linguagem plástica do francês na obra de Tosi, no entanto, só se faz sentir substancialmente a partir dos anos de 1920, após o artista presenciar vinte e oito obras do pintor francês na 12ª Bienal de Veneza. Não cabe, nos limites deste artigo, explorar a fundo a complexa obra de Cézanne. Porém, para este momento é imprescindível pontuar a essência do novo princípio introduzido pelo artista no campo das artes plásticas, buscando dar conta de parte desse processo no que tange à apreensão de Arturo Tosi. A criação artística de Cézanne, tendo como ponto de partida o romantismo, tal como se compõe a partir da década de 1870, torna-se o paradigma crucial das mais variadas vanguardas artísticas da primeira metade do século XX, em comum diálogo ao conceito primordial da poética impressionista, segundo Argan (1995, p. 109-116): a captura da impressão instantânea e fulgaz da visão na pintura ao ar livre ou, como sintetiza Merleau-Ponty (1975, p. 305), a captura da verdade geral da impressão. Cézanne, no entanto, situado historicamente ao final do impressionismo, aplica o que este tem de original, ou seja, a impressão direta do objeto a ser pintado, englobando elementos e procedimentos que, de modo empírico, se desdobram em uma espécie de impressão da sensação solidamente e tecnicamente montada. O ato de se decodificar uma sensação em termos pictóricos, anseado por toda a vida de Cézanne, vale dizer, na leitura de Roger Fry (2002, p. 279), é colocado simplesmente como a peça chave de sua pesquisa artística. Ainda nesse rumo, Carmen Aranha, dando continuidade à linha fenomenológica de análise A influência de Paul Cézanne na pintura Arturo Tosi ... | 223 de Merleau-Ponty, abre as significações do resultado da pesquisa cézanniana ao contejá-lo diante à plástica impressionista: Em Cézanne, o que vemos é o desenho da vibração presente, entrelaçando volumes de cores sem perder nenhuma densidade do objeto que está sendo pintado; seria como dizer que a materialidade do material também pertence à “ordem nascente”. A busca de uma estrutura lógica para situar esse novo impressionismo é seu projeto: é como se Cézanne “desfragmentasse” o impressionismo numa volumetria de formas e cores, sem perder a abstração, já então imanente à própria “visualidade”. (ARANHA, 2012, p. 185) Nesse sentido, é justamente a superação dos moldes impressionistas nos contornos sólidos das formas da natureza de Cézanne, que tocam Tosi de modo profundo. Sua fascinação, vale dizer, era tamanha que durante anos ele recorta fragmentos de revistas cujas análises recaem sobre o pintor francês e seleciona imagens de quadros de Cézanne para utilizar ao lado do seu cavalete, cotejando constantemente sua produção à do francês.1 Em consequência direta, o que se vê a partir de 1920 em suas obras é o abandono quase completo do rugoso cromatismo Alcoólico (fig. 01) em direção a um equilíbrio das formas, que usam a cor para sustentar um novo meio de construção espacial. Quanto a isso, a questão da cor na pintura, tão reconhecida quando se trata da produção de Cézanne, é também fator crucial no processo criativo de Tosi. Figura 01 – TOSI, Arturo. Venezia. 1910. Óleo sobre tela, 20,5 x 29 cm. Coleção particular. Em suas primeiras telas, Tosi trabalhava a coloração com uma espécie de unidade tonal carregada de emergência dramática. Com a apreensão de Cézanne, que assim como o expressionismo de Vincent Van Gogh (18531890), reestrutura o espaço da tela em profunda simbiose com sua coloração, 1. Informação extraída de uma das comunicações da autora deste trabalho com o neto do pintor que leva o mesmo nome do avô, Arturo Tosi. 224 | Dúnia Roquetti Saroute Tosi trabalha novas e espontâneas relações cromáticas que primam, antes de tudo, pela luminosidade e limpidez da tela. Assim: o céu azul, por vezes, será entrecortado por sutis verdes; o vermelho da terra, gozando de efêmeros tons escarlates, se estenderá às breves edificações e, ainda, o marrom das montanhas será surpreendido por fragmentos ora azuis, ora amarelos. Deste ângulo, a pintura Elegia Campestre, 1922 (fig. 02), comporta bem a ideia apresentada. Figura 02 – TOSI, Arturo. Elegia Campestre. 1922. Óleo sobre madeira, 73 x 92 cm. Archivio Storico Cariplo, Itália. A solução que Tosi emprega para compor o espaço da tela se encaminha visivelmente para a volumetria de Cézanne nas apreensões da matéria (fig. 03). O espaço, antes indefinido em seus contornos, é destacado e moldado por quadrados e retângulos de formas claras. Nota-se, assim, visivelmente, uma redefinição da consciência plástica do pintor diante do seu objeto. Afastando-se da pesquisa individual e subjetiva dos primeiros anos românticos, Tosi dá lugar ao método das formas, espaços, volumes e cromatismos. Porém, se a obra de Cézanne assinala a distância aos princípios românticos da Scapigliatura, Tosi, por outro lado, nunca se afasta das raízes lombardas, esboçando, ao contrário, uma singular matriz pictórica na junção das formas geométricas das “leis da natureza” do francês à emoção cognitiva do movimento romântico lombardo. Figura 03 – CÉZANNE, Paul. Strada a Montgeroult. [S.d.]. Óleo sobre tela, 25,5 x 20,5 cm. Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Estados Unidos. A influência de Paul Cézanne na pintura Arturo Tosi ... | 225 Quanto a isso, o pintor não abandona a premissa romântica da conservação emocional do sujeito na apreensão plástica da natureza. Tosi resgata no cerne da natureza a ambição estruturalista, própria do classicismo metodológico de Cézanne, equilibrando a emoção do rapporto intrínseco entre o homem e a natureza. O resultado, conforme se vê em obras como Paese, 1926 e Scilpario, 1932, e também em obras da coleção MAC USP, como por exemplo, Ponte di Zoagli, 1937 (fig.04), é a combinação equilibrada entre a consciência da pesquisa do mundo vísivel e a consciência emocional própria do sujeito. Il ponte Zoagli Ao primeiro plano da pintura Il ponte Zoagli, sobressai-se a apreensão geométrica em uma linguagem quase dissolvida das casas, representadas à direita da tela em linhas desconfiguradas estão tingidas de um marrom opaco e sujas pelas secas pinceladas em tons verdes e azuis. Dissolvendo-se em direção a representação figurativa à esquerda da pintura, as pinceladas organizadas no primeiro plano marcam também a sólida e cromaticamente harmônica construção do vermelho edifício de janelas verdes. Figura 04 – TOSI, Arturo. Ponte de Zoagli. 1937. Óleo sobre tela, 70 x 90 cm. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Brasil. Logo ao segundo plano, evidenciam-se as dimensões circulares da ponte que ajudam a sustentar o comprimido e aplanado mar, tomado em forma entre ela e o céu. O mar, de um azul transparente, inicia seu molde já na desconstrução das casas do primeiro plano e se estende até fundir-se às montanhas potencialmente azuis, que, marcadamente contornadas em tom marrom claro, cedem apenas um breve espaço para o impermeável verde espesso do pinheiro. A extensa e luminosa contraposição atmosférica, dialogando harmonicamente com as tonalidades da pintura, só é recortada por um fluxo de pinceladas, que alternam entre a continuidade e descontinuidade de um excerto de árvore, apreendido no canto esquerdo do alto da tela. 226 | Dúnia Roquetti Saroute A pintura tem como motivo um recorte específico da paisagem lígure, reproduzindo em efeito de proximidade a envolvente natureza mediterrânea. As cores são aplicadas como se constituíssem elementos sólidos que necessitassem um do outro; há, assim, passagens tonais entre cores diversas que, conduzidas por pinceladas ora curtas, ora longas, ora contínuas, ora descontínuas, produzem uma harmônica junção entre elementos naturais e estruturais. Trazendo a reminiscência do princípio racional e verossímil da pintura, corrobora à premissa de retornar-se ao clássico, ao alcançar a essência do motivo pelo tradicional caminho do desenho e da linha. É sabido que Tosi, em processos equivalentes, desenvolveu inúmeras releituras para temas muito próximos à Zoagli, da coleção MAC USP. As homônimas Zoagli, 1932 e 1935, são algumas delas, mas nenhum caso, de fato, é tão notável quanto Il Ponte a Zoagli, 1930, (fig.5). Frutos de esquemas idênticos, Tosi parece ter desejado reviver fundamentalmente o mesmo ângulo de Il Ponte a Zoagli, na obra da coleção de Matarazzo. Por certo, a pintura do acervo MAC USP, apresenta apenas uma delicada diferença de enquadramento do lado direito da composição e uma geometrização menos sólida ao canto esquerdo, quando comparada à obra destruída. Figura 05 – TOSI, Arturo. Il Ponte a Zoagli. 1930. Obra destruída. As razões de Tosi ter desejado reviver exatamente o mesmo ângulo e a mesma composição, ainda não se pode afirmar. Uma coisa, no entanto, é certa, tal é a notoridade da obra na produção do pintor que a sua “irmã gêmea” está reproduzida na monografia que Giulio Carlo Argan (1942, fig. 21, p. 23) dedicou a Tosi, como a emblemática pintura a dar conta da estrutura espacial de Cézanne em paralelo à experiência subjetiva do indíviduo. Deste modo, parece haver na composição de Ponte di Zoagli, após a assimilação da poética de Cézanne, um harmônico reencontro entre duas polarizações da criação artística: a experiência objetiva e a experiência subjetiva, o espontâneo e o clássico. O pintor que antes impulsionava suas pinceladas pela mão única da A influência de Paul Cézanne na pintura Arturo Tosi ... | 227 sensação agora usa de um procedimento próprio da tradição clássica, ou seja, da racionalização do ver para transmitir por meio de um procedimento racional, o conhecimento objetivo de seu sentimento. Referências bibliográficas ARANHA, Carmen S. G. ReVer Paul Cézanne. Revista USP, São Paulo, n. 93, p.157-186, mar./maio 2012. ARGAN, Giulio Carlo. Tosi. Firenze: Le Monnier, 1942. . Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. FAGONE, Vittorio. L’arte all’ordine del giorno: figure e idee in Italia da Carrà a Birolli. Milano: Feltrineli, 2001. FRY, Roger. Paul Cézanne. In: ______. Visão e Forma. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 273-289. MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Classicismo, Realismo, Vanguarda: pintura italiana no entreguerras” In: ______ (Org.). Classicismo, Realismo, Vanguarda: pintura italiana no entreguerras. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2013. p.7-22. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho de Cézanne. In: ______. Os Pensadores 41. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p.305. TOSI, Arturo. Umori di buona terra: i luoghi della pittura di Arturo Tosi Rovetta: Litostampa, 2006. p.140. (Catálogo da exposição, ocorrida no Centro Museale di Rovetta, de 15 de julho a 3 de setembro de 2006). | 229 Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho in situ de Daniel Buren1 TIAGO MACHADO DE JESUS* Resumo: Este artigo analisa um dos aspectos centrais no trabalho do artista plástico francês Daniel Buren: o papel da noção de jogo na elaboração de seus trabalhos in situ. Procura mostrar o funcionamento geral das propostas de intervenção do artista no interior do espaço institucional fornecido previamente pelos museus e galerias, selecionando algumas intervenções realizadas nas décadas 1970 e 1980 que fazem uso da noção de jogo, tal como o artista a elabora em suas intervenções escritas. Consideramos que a elaboração da noção de jogo e sua aplicação prática permitem ao trabalho se situar criticamente no contexto de exposição controlado previamente pela instituição do museu, e em lugares similares, abrindo espaço para a problematização das regras implícitas na exposição das produções culturais contemporâneas. Palavras-chave: Daniel Buren. Trabalho in Situ. Jogo. Crítica Institucional. To play with the institution: the notion of play within the work in situ of Daniel Buren Abstract: This paper analyzes one of the central aspects of the work of the French artist Daniel Buren, namely the role of the notion of play in the development of his work in situ. Selecting some proposals made in the 1970’s and 1980’s that mobilize the notion of play, as the artist draws on his written interventions, it aims to show the general functioning of the work within the institutional spaces. We argue that 1. A pesquisa que deu origem a este artigo contou com o auxílio da FAPESP na modalidade Bolsa de Doutorado. * Doutor em História Social (FFLCH-USP), Professor PUC-Campinas. 230 | Tiago Machado de Jesus the elaboration of the concept of play and its practical application enables the work to be critically situated in the exhibition spaces controlled by the institution of the museum and similar cultural institutions, making room for questioning of implicit rules ever present in the exhibition of contemporary cultural productions. Keywords: Daniel Buren. Work in Situ. Play. Institutional Critique. Para ver este trabalho devemos virar as costas para o museu. É jogar com o museu como uma dobradiça e capturá-lo em seu próprio jogo. Se o museu decidiu utilizar o exterior, utilizemos o exterior, mas o que será o interior? Daniel Buren, Drapeaux de Buren sur les toits de Paris, 1977. Um dos pontos fundamentais do trabalho do artista plástico francês Daniel Buren é a crítica aos mecanismos de exposição e conservação no interior dos museus de arte e nas propostas curatoriais, que envolvem tanto os museus quanto as exposições periódicas (exposições do tipo Bienais e Documentas). Contudo, seguindo o processo de crítica interna às instituições artísticas, pode-se verificar no desenvolvimento de seu trabalho a tentativa consciente de buscar novas articulações entre o espaço expositivo e a experiência visual, conforme o autor indica em uma entrevista concedida em 1979: Desde Pollock pelo menos, nós vemos as pinturas cercadas de pequenas molduras, talvez para vigiar as bordas da pintura retilínea, mas não vemos mais as molduras enormes, imponentes, como era o hábito antigamente, molduras formando arabescos em torno da pintura e voltadas para a luz. Passar da grande moldura dourada para a fina borda de madeira natural, não nos distancia do problema, e mesmo quando a moldura já magra desaparecer completamente, o problema fica, pois é a própria parede, suporte da obra, que se torna ela própria, a moldura. Trata-se então de algo com o qual se deve trabalhar e não ignorar como se isso não existisse ou não tivesse qualquer importância. (BUREN, 2012, p. 669) Este artigo procura explorar a maneira pela qual Buren operou, em alguns de seus trabalhos, no ponto limite entre o espaço do museu/galeria enquanto quadro fixo para a apresentação da proposta e a relação que o trabalho mantém Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho ... | 231 com elementos exteriores ou não considerados pela exposição de arte. De maneira geral, as propostas de trabalho realizadas com mais frequência por Buren, a partir de meados dos anos 1970, procuram endereçar o olhar para outros elementos até então invisíveis, mas presentes nos sistemas sociais, no espaço urbano e até mesmo no mundo natural (como a luz zenital, o vento, a chuva, etc.), articulando leituras possíveis a partir do lugar investido.2 Na trajetória de Daniel Buren, a diferença entre a “ferramenta visual”, que não é senão a materialização da relação de linhas verticais que distam 8,7cm entre si alternando uma faixa branca e outra colorida, e o trabalho realizado vai ficando mais clara a partir dos trabalhos efetivos realizados ao longo da década de 1970.3 O trabalho realizado depende fundamentalmente da negação dos princípios de autoridade e autonomia, bem como da afirmação de seu aspecto transitório, efêmero e contextual, refutando as expectativas de produção de um objeto de arte. Contudo, a instalação cria laços fortes com contexto de exposição e do jogo possível no interior do espaço a ser investido. Instalações como “Toile/Voile” (1975), “Oh Hisse” (1980) e “Plan contre plan” (1984) são exemplos de um trabalho que passa cada vez mais a colocar em questão os compromissos assumidos no interior dos espaços expositivos e sua relação com aquilo que se encontra fora de seu sistema de representação. A agressividade inicial de seus textos contra o sistema da arte é nuançada por uma perspectiva que busca levar em conta as possibilidades de jogo no interior deste sistema. Perspectiva que busca, através da realização do trabalho prático, construir uma proposição que problematize as regras implícitas que regulam o espaço expositivo para melhor sublinhar seus limites e possibilidades. A ferramenta visual é entendida, enfim, como “... uma ferramenta que se trata de utilizar. Nunca o material foi nem é um fim em si mesmo. Ele não significa senão quando aplicado, colado, grampeado, recortado, 2. No que segue retomo algumas questões presentes na minha tese de doutorado: JESUS, Tiago Machado de. Revelar o cenário, emprestar a paisagem: o trabalho in situ de Daniel Buren e o sistema da arte (1967-1987). 2013. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2013. A pesquisa contou com o apoio da FAPESP. 3. Para uma visão mais detalhada sobre a formulação da “ferramenta visual” como desdobramento da redução da pintura aos seus elementos mínimos, no trabalho de Buren, Cf. JESUS, op.cit., pp.43-70. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/ 8/8138/tde-12022014-110035/>. Acesso em: 2014-07-02. 232 | Tiago Machado de Jesus dobrado, rasgado, estendido, fluído, transparente, opaco... in situ.” (BUREN, 2012, p. 727). Em um texto de 1978, motivado pelos trabalhos realizados no, então, recém-inaugurado Centro George Pompidou, Buren afirma: “O que mais me apaixona e que mais me interessa é como essa ferramenta se infiltra através dos lugares, através dos tempos e o que isto quer dizer e o que é que eu consigo revelar.” (BUREN, 2012, p.643). Figura 1 – Photo-souvenir: Manifestation 1 – Pintura acrílica sobre tecido listrado Branco e cinza. (Fonte: BUREN, 1988). Um de seus primeiros trabalhos que elabora com clareza a questão dos hábitos esclerosados, que condicionam o espectador a ver algo pendurado na parede ou disposto no chão, dentro de um espaço determinado, foi sua instalação na Bienal de Veneza de 1976, organizada por Germano Celant, cujo tema era “Arte Ambiente”. O trabalho chamava-se “Quatorze verrière moins Une”, trabalho in situ (Figs. 2 e 3). Tratou-se de uma de suas primeiras instalações que trabalharam diretamente as implicações das janelas para a composição do espaço expositivo. Normalmente, a janela, quando não está simplesmente fechada, limita-se a fornecer luz solar para a galeria. Nesta instalação, contudo, elas são tratadas como aberturas possíveis no interior da arquitetura que delimita o espaço expositivo. Nela, Buren cobriu com papéis colados brancos todas as estruturas de vidro sobre as salas do pavilhão internacional, à exceção da sala reservada para sua exposição. Os vidros do teto desta sala permaneceram abertos dia e noite, sujeita às intempéries do clima (chuva, vento, sol). Foi instalado ali, inclusive, um sistema de drenagem para o caso de chuva. O resultado da instalação foi a modificação de toda a iluminação zenital durante os horários de funcionamento da galeria, alterando também a temperatura interna do espaço, uma vez que a luz solar encontrava a resistência dos papéis colados no teto. Esta alteração era mais perceptível quando o eventual espectador, após percorrer as galerias com as vidraças fechadas, encontrasse à sala com a vidraça aberta, totalmente exposta às intempéries do clima. Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho ... | 233 Figuras 2 e 3 – Photo-Souvenir: “Quatorze verrière moins Une”. Trabalho in situ, Veneza, 1976. Sala reservada a Buren na Bienal de Veneza. (Fonte: BUREN, 1988) Nestas efetuações do trabalho in situ, há uma relação a ser explorada entre o museu/galeria e o seu exterior. A principal preocupação é a de coordenar os discursos contingentes (fruto da proposta curatorial) e o ponto de vista produzido pelo Museu/Galeria. A expansão do trabalho se faz em direção aos mais variados elementos que se encontram além de seus muros, janelas e portas. O Museu/ Galeria é o lugar onde se vê (sente) o trabalho, mas também é entendido como ponto fixo sobre o qual um discurso sobre a visualidade é produzido e controlado. Por outro lado, a experiência de seguir a ferramenta visual, a partir do museu, pode se constituir no abandono temporário das restrições do quadro diretamente sugerido pela instituição, em prol de outros itinerários possíveis. Este efeito pode ser visto na instalação “Watch the doors please!” (trabalho in situ), realizado no Art Institute de Chigago, em 1980. Nesta ocasião, Buren investiu as paredes da galeria com uma lista dos horários das partidas e chegadas dos trens metropolitanos, fornecida pela companhia responsável pelo transporte ferroviário de Chicago. Simultaneamente, foi realizada a instalação da ferramenta visual sobre a parte exterior das portas dos trens da cidade. Considerando que o prédio que abriga o museu foi construído sobre uma estação de trem, o trabalho convidava os espectadores a acompanhar a passagem da ferramenta visual, ou seja, a passagem dos próprios trens, a partir da janela de uma das galerias do museu. Suspendendo os efeitos das sanções presentes na arquitetura do Museu (separação 234 | Tiago Machado de Jesus e conservação), mas sem abolir completamente sua materialidade (fazendo uso contextual da janela, por exemplo), o trabalho antes procurou jogar com elas: Poderíamos considerar que uma galeria de arte (ou um museu) que se constitui como um abrigo onde podemos ver as obras de arte pode também se constituir paradoxalmente como o maior obstáculo que nos impede de vê-las. (...) A galeria, ao invés de ser um obstáculo visual que reduz a obra exposta, é usada como uma ferramenta que permite vê-la e pode consequentemente ser considerada como um periscópio. (BUREN, 2012, p.901). Figura 4 e 5 – Photo-Souvenir: “Watch the doors please!”. Trabalho in situ, Chicago, 1980-1982. Art Institute de Chicago em colaboração com a Railway Company de Illinois. (Fonte: BUREN, 1988) Jogar com o sistema, ignorá-lo às vezes, criar novas regras ao invés de contestá-lo diretamente. Pois, segundo Buren, o sistema artístico é diferente dos outros sistemas de reprodução ideológica. Influenciado inicialmente pelo trabalho do filósofo francês Louis Althusser, os fundamentos para a elaboração do trabalho in situ estão condicionados a uma crítica ao caráter ideológico do sistema artístico dominante, incluindo os modos de produção e circulação de seus produtos.4 No 4. Em um texto de 1977 Buren comenta: “É conveniente indicar antes de qualquer coisa que este termo [sistema] recobre evidentemente o microssistema do mundo da arte, ou seja, os museus, as galerias, os críticos, os colecionadores e igualmente todo o aparato econômico, político e cultural no qual este microssistema se insere e faz funcionar, ou seja, o sistema ideológico dominante que o rege, que é como sabemos, em nossas latitudes, a ideologia burguesa” (BUREN, 2012, p. 551). Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho ... | 235 caso das obras de arte, até mesmo a sua forma de materialização e circulação respondem à ideologia dominante, contestá-la é contestar também o modo de produção, circulação e exposição das obras. Buren elabora seus jogos a partir de um diagnóstico que mostra com clareza o caráter recuperador do sistema artístico, que é capaz de transformar a contestação mais ácida em mais um produto a ser enquadrado. Objetos que, por mais surpreendentes que possam parecer, circulam, contudo, em meio ao sistema artístico dominante, que reforça e sanciona a concepção do trabalho do artista enquanto produto já acabado e manipulável. A base para a crítica dessa posição, sem se considerar o rompimento com o sistema artístico – pois romper seria já não jogar5 –, é montada sobre dois pilares: o primeiro, a recusa em fornecer um objeto de arte a ser manipulado pela exposição, afinal a ferramenta visual não é nada ou é quase nada em si mesma; o segundo, desobrigar-se de entender o Museu como lugar único para o trabalho, e, simultaneamente, procurar problematizá-lo como mais um componente para a realização das propostas. Isto é, trabalhar ativamente com aquilo que o sistema da arte pode mostrar/esconder ou tentar impor: Contestar o sistema é jogar com ele. Ignorá-lo é já jogar outra coisa. Recusar a relação artista/sistema – isto é aceitar o sistema para eventualmente dele se servir, mas de fato ignorá-lo – é recusar uma relação dialética na qual o artista sempre perdeu e sempre será o perdedor. O sistema artístico não é hoje (ainda menos do que há dez anos) mais contestável e ainda menos aceitável. Contestálo é aceitar o seu jogo e perder. Ignorá-lo é jogar outra coisa e ter eventualmente o prazer de ganhar. Ignorar o sistema é também inventar constantemente novas regras de jogo. Aceitá-lo tal como é e sem questionamento é ser frequentemente um artista de hoje, ou seja, um imbecil (BUREN, 2012 p.738). O trabalho de Buren, como o de muitos artistas de sua geração, não produz um objeto facilmente manipulável pelo corpus expositivo, mas, através do uso 5. “O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um “desmancha-prazeres”. Este, porém, difere do jogador desonesto, do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. É curioso notar como os jogadores são muito mais indulgentes para com o batoteiro do que com o desmancha prazeres; o que se deve ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo. Retirando-se do jogo, denuncia o caráter relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros.” (HUIZINGA, 2000, p.12) 236 | Tiago Machado de Jesus coordenado de diversos tipos de materiais semióticos, age ativamente no espaço de sua exposição. O trabalho in situ, marcado pelos eventos políticos e artísticos que permearam as ocupações, greves e revoltas observáveis em várias partes do globo ao final de década de 1960, deve ser compreendido como uma tentativa de conceber o espaço expositivo como um terreno de enfrentamento a partir de seus pressupostos a serem desconstruídos e, simultaneamente, como terreno de diálogo franco e de experimentações levando em conta as características físicas, culturais, históricas e simbólicas do lugar investido. Transformar essa organização em parte de uma proposta formulada pela prática artística demanda uma intervenção, uma postura de negociação do artista propositor do trabalho com as instituições museais e galerias, com seus curadores e, eventualmente, com o público. Neste contexto, a resposta à pergunta que consta na epígrafe deste artigo se torna central: o que será o interior do espaço de exposição em suas configurações atuais? O interior do espaço expositivo fornecido pela instituição constitui as linhas de demarcação através do qual um discurso, um ponto de vista, um itinerário pode ser construído, organizado e ganhar sentido. Tratar-se-ia de uma dobradiça que liga dois pontos: o trabalho proposto e o mundo da vida. Contudo, as “regras do jogo” podem ser casuísticas, ad hoc, fruto do resultado do trabalho criativo em face das sanções institucionais. Neste cenário, as regras podem ser parcialmente modificadas, reinventadas, sem que isso signifique necessariamente o fim do jogo. Nesta perspectiva, a recusa do fim de jogo consiste em operar um distanciamento da situação contemporânea da generalização do signo estético no campo cultural e, ao mesmo tempo, refutar a ideologia modernista da autonomia da obra de arte cujo primeiro passo, como se sabe, é ignorar o efeito ideológico do espaço de exposição criado pelos museus de arte.6 Importante notar que essa proposta de trabalho se desenvolveu após o esgotamento dos últimos impulsos vanguardistas, ao longo de um período considerado, pelo próprio Buren, como culturalmente reacionário, com intensificação da função conservadora da arte e o retorno de trabalhos não problemáticos para o museu, assinalados, inclusive, no retorno da pintura e da escultura como meios expressivos e a absorção não problemática da fotografia no interior 6. Sobre a generalização do signo estético no domínio ampliado da cultura: V. (ARANTES, 2005) e (JAMESON, 1998). Sobre os efeitos ideológicos do espaço expositivo voltado para a exposição da arte moderna: V. (O’DOHERTY, 2002). Para jogar com a instituição: a noção de jogo no trabalho ... | 237 do sistema artístico. No campo político, o autor nota o progressivo esfacelamento das posições ideológicas tanto de esquerda quanto de direita e, finalmente, o triunfo da sociedade mercantil e do espetáculo, com o decréscimo dos valores revolucionários ou da expectativa de modificação do status quo: Se eu tinha a impressão em 1969 de que a arte era reacionária em seu conjunto, eu devo dizer que esta tendência, em lugar de se enfraquecer, me parece ter sido confirmada pelo conjunto da produção verdadeiramente medíocre, pra não dizer débil destes últimos dez anos. Retorno sobre si, retorno à pintura acadêmica, aparição de uma nova arte pompier através dos abusos da fotografia, sentimentalismo ultrapassado, expressionismo desenfreado, a arte é hoje mais reacionária do que nunca e isto numa escala mundial. (...) Os governos se endurecem em todo o mundo, ao mesmo tempo em que as ideologias que defendem, seja à direita ou à esquerda colapsam. A sociedade mercantil e do espetáculo invadiu tudo (BUREN, 2012, p.728). Em suma, do ponto de vista da crítica e da história da arte contemporânea, se não quisermos entender o trabalho como uma proposição meramente adaptativa, como mais um toque de cor em um evento espetacular, ou ainda como obra institucionalizada pela força do sistema da arte, a resposta para a pergunta sobre a definição do espaço da arte contemporânea, ao menos para a lógica do trabalho in situ, deve ser uma tentativa de mapeamento que contemple no mínimo dois aspectos. Por um lado, um esforço de reconstituição da relação de pertinência do trabalho no interior das instituições artísticas, pressionadas por um sistema cada vez mais integrado ao processo de circulação mercantil ampliado para a esfera cultural. Por outro, não se deve desconsiderar a possibilidade de incorporação da dimensão política na produção artística contemporânea, através da tentativa de invenção de novas regras para o jogo, que pondere a relação artista/ sistema como uma questão aberta. Referências bibliográficas ARANTES, Otília. B. F. A “virada cultural” do sistema das artes. Margem Esquerda: ensaios marxistas (nº6, 2005). BUREN, Daniel. Photo-Souvenir 1965-1988. Villeurbane: Art édition, 1988. 238 | Tiago Machado de Jesus . Les Écrits 1965-2012: volume I 1965-1995. Paris: Flammarion, 2012. HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000. JAMESON, Fredric. The cultural turn: Selected writings on postmodern. London: Verso, 1998. JESUS, Tiago Machado de. Revelar o cenário, emprestar a paisagem: o trabalho in situ de Daniel Buren e o sistema da arte (1967-1987). 2013. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2013. KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the expanded field. October, Vol. 8. Spring, 1979. O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002. | 239 Projeto BarcoR – estética tocantina: intervenção urbana MAURÍCIO PINTO ADINOLFI* JOSÉ PAIANI SPANIOL** Resumo: Este artigo visa apresentar o processo de trabalho desenvolvido no Projeto BarcoR - estética tocantina, que foi uma residência artística realizada pelo artista plástico Mauricio Adinolfi, em conjunto com a Associação de Barqueiros e parceria com artistas da cidade de Marabá/PA, resultando na pintura de 30 barcos. É proposta uma investigação dos procedimentos adotados no decorrer do projeto, desde o primeiro contato com as lideranças locais até a prática de criação conjunta. Serão abordadas as conexões desenvolvidas, as trocas de conhecimentos e as negociações sociais/estéticas que permearam todo o processo de trabalho, analisando as influências e desdobramentos a partir de uma relação dialética entre construção e pulsão criativa. Palavras-chave: Intervenção Urbana. Processo Criativos Coletivo. Residência Artística. Estética Relacional. Arte e Sociedade. Barcoß Project - estética tocantina: urban intervention Abstract: This article presents the work in process of Projeto BarcoR - aesthetic Tocantina, produced by artist in residence, Mauricio Adinolfi in conjunction with the Association of Boatmen partnering with artists of Maraba City, Para. This ** Mestrando no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA Unesp). Bolsista CAPES. ** Artista Plástico e Professor Doutor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA Unesp). 240 | Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol collaboration resulted in the painting of 30 boats. Procedures used throughtout the project, from the first contact of with local leaders and to the methods and practices of joint creation, are examined. Also discussed are the connections made and exchange of ideas along with the social and aesthetic negotiations permeating the entire creative process in an attempt to analyze the dialectical relationship between construction and creative drive. Keywords: Urban Intervention. Collective Creative Process. Artistic Residence. Relational Aesthetic. Art and Society. A arte e as relações em que se constroem: o ser humano e suas transformações; a sociedade em que se vive. Lugares e espaços que o trabalho conjunto e a arte de estruturar ações formam através de sua prática. Nesse artigo, que trata de uma intervenção compartilhada, temos como ponto de partida, os primeiros contatos do artista com representantes da cidade e como se deu esse encontro. A relação do artista com a região Norte do país já se desenvolvia desde 2010, época em que Maurício Adinolfi realizou uma exposição na cidade de Belém, apresentando o trabalho Cores no Dique,1 projeto de intervenção urbana e pintura em casas de palafitas (foto 1). Tal projeto dialogava com a realidade cultural de algumas construções de moradia nesta região e foi convidado, então, a expor tais trabalhos na cidade de Marabá. Foto 1 - Cores no Dique Durante sua estadia na cidade, o artista propôs uma oficina de criação que resultou na pintura da canoa de um pescador local. Esta ação criou uma perspectiva e a expectativa em ampliar tal proposta, a mesma foi acalentada em escritas de projetos até sua realização atual, sendo agora objeto deste artigo. 1. Projeto Cores no Dique. Prêmio Interações Estéticas 2008, 2009 e 2012 – residências artísticas em Pontos de Cultura, Cultura Viva, Funarte. Projeto BarcoR – estética tocantina: intevenção urbana | 241 O projeto de intervenção BarcoR – estética tocantina, foi incluído na programação de um Encontro de artes visuais,2 que propunha intercâmbio entre as regiões sudeste e norte do país. Deize Botelho, produtora deste evento, iniciou os contatos com a Associação de Barqueiros de Marabá a pedido do artista que já programava sua intervenção. O primeiro encontro foi realizado com o presidente e um representante da associação junto com o artista e os produtores do evento. Nesta conversa, Maurício Adinolfi apresentou as ideias e propostas iniciais do projeto, ouvindo de Antonio Sérgio (presidente da associação), as intenções dos associados, as reais condições de trabalho e possibilidades de alcance da ação. A empatia foi imediata e, nesta reunião, ficou claro um comprometimento e a vontade de realização do projeto. A ideia de criação compartilhada começa a se esboçar neste momento, pois a partir de agora tudo depende de esforços coletivos e responsabilidades dependentes. A ideia de “espectador” de uma obra aqui já não existe, os envolvidos são construtores e ordenadores da criação. Reflete-se aqui pressupostos da filosofia Existencialista3 (SARTRE, 1978), que altera o ponto de vista do homem, dialogando com essa nova proposta artística, de imersão do ser nas obras, possibilitando uma reflexão sensorial e problematizando seu estar no mundo com o embate material, social e político, partes intrínsecas de sua existência e de uma visão fenomenológica4 das coisas. Nas palavras de um teórico atual, Nicolas Bourriaud (2009, p. 13) “[...] hoje, a prática artística aparece como um campo fértil de experimentações sociais, como um espaço parcialmente poupado à uniformização dos comportamentos”. Desta questão de formação a partir da troca de experiências, analisamos o segundo passo do projeto, que foi a realização de reunião com todos os barqueiros, artista e equipe de produção na sede da associação (foto 2), sendo 2. Encontro Carajás Visuais – entre rios e redes. Tallentus Amazônia. Selecionado na 9ª Edição do Edital Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais, Minc. 3. O Existencialismo admite o fato de que a existência precede a essência, ou seja, o que o ser se constrói a partir de suas experiências na vida, de sua subjetividade. In: “O existencialismo é um humanismo”, Sartre, 1978. 4. Fenomenologia: Propõe a extinção da separação entre “sujeito” e “objeto”. In: “O olho e o espírito”, Merleau-Ponty, 1980, p. 85. 242 | Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol apresentada a proposta de trabalho, ouvindo e entendendo particularidades, características de cada barco e adaptando cronograma de ação. Foto 2. Reunião na Associação dos Barqueiros de Marabá Foi determinado, nessa reunião, o lugar onde se desenvolveriam as oficinas de criação e pintura dos barcos: a escadaria próxima a cooperativa, na orla do rio Tocantins (espaço de trabalho, reforma e construção dos barcos), onde ficaria mais fácil para atracar e pintar (foto 3). Também foram reunidos alguns pintores, que se tornaram a equipe oficial responsável pela pintura. Estes trabalhavam junto aos barqueiros donos de cada embarcação. Como dito por um dos artistas participante das oficinas, criou-se um espaço alternativo de arte: pois a utilização constante da escadaria, fez com que, diariamente, ocorressem visitas de curiosos, da imprensa e de outros agentes que se juntavam ao trabalho. Foto 3. Escadaria no rio Tocantins (espaço independente de criação). Equipe de pintura. Estética Tocantina As formas e desenhos que constituíram as pinturas, além de dialogarem com a estrutura construtiva de cada embarcação, vieram de estudos e encontros com pesquisadores locais de iconografia da região dos Carajás, adaptações de traços Marajoaras e experiências diretas com a tribo dos índios Gaviões, reconhecidos pela rica pintura corporal. Dessas pesquisas, surgiu o nome estética tocantina, que reunia essas intenções referindo-se geograficamente ao principal rio que margeia a cidade. Foi realizado um estudo dos componentes físicos do barco, pois há algumas regras marítimas: como a pintura da linha d’água (obrigatória por marcar o peso do transporte), identificação dos barcos e numeração. Projeto BarcoR – estética tocantina: intevenção urbana | 243 A equipe de pintura trabalhava com certa liberdade de criação: havia um pintor responsável, o Cabeça, que organizava a pintura pós desenho inicial e esboços que partiam da pesquisa da estética tocantina, de acordo com as características do barco e de prioridades de cor escolhidas por seu dono, assim era definida a pintura geral. Todos os dias o grupo se reunia determinando as cores e composições, uma paleta cromática era debatida com o barqueiro e montada uma relação de escalas a partir dessa escolha tonal, dessa forma eram agregadas novas ideias, adaptadas às medidas da caixa (parte de resguardo lateral) e do teto de cada barco. Neste ponto, a ação compartilhada se torna mais concreta, pois uma intervenção coletiva só acontece plenamente quando todos os envolvidos manifestam suas vontades. Afirmamos aqui uma visão do fenômeno da criação, indissociando-a do mundo, do homem e do pensamento construído para abarcá-la. Pensando a atividade plástica como uma ação envolta na subjetividade do ser criador, Heidegger (1991) nos coloca a relação incessante e recíproca de formação entre criador e criação, artista e arte. Tal mudança na postura do artista do séc. XX e agora XXI pode ser verificada nas palavras de Harold Rosemberg: O desejo do artista de mudar o mundo foi substituído pelo desejo de transformar a si mesmo através do exercício da arte e isso significou também mudar a arte. [ ] A obra passou a ser vista não mais como um fim em si mesmo, mas como um acontecimento acidental na contínua atividade de criação do artista. (ROSEMBERG, 2004, p. 267, 268). Voltando na história da arte, em 1920, Malevitch e parte da vanguarda russa já agia com interesses sociais próprios da pintura, projetando ações pictóricas em carros de transporte público, fachadas de edifícios e vestuários. Era a ideia do suprematismo espacial, pensando na remodelação da realidade cotidiana. No manifesto do UNOVIS, Malevitch afirma: “a consciência venceu a superfície e avançou para a arte de configuração espacial” (SIMMEN, 2001, p. 68). Tais ações não foram levadas integralmente a cabo devido a situação política da época, mas tais artistas já demonstravam interesse profundo na penetração da arte na sociedade. Ampliando essa ideia para a intervenção urbana compartilhada, temos a postura revolucionária de Joseph Beuys (2001) e sua ideia de escultura social, projetando nas relações sociais em conjunto, um ser humano com potencial criativo. 244 | Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol Desta ideia de responsabilidade compartilhada, podemos analisar a forma de desenvolvimento do projeto. A intervenção BarcoR foi realizada junto de artistas locais, e recebia visitas constantes, principalmente por ter sido realizado em espaço aberto, num local de encontro da comunidade e o rio. Desses encontros, surgiu uma parceria com a Secretaria de Cultura de Marabá, que possibilitou a continuidade e expansão das pinturas e do número de barcos. Os momentos de reunião de trabalho, as oficinas de pintura (foto 4), os debates para definir cada desenho serviam também para o conhecimento de cada participante, num jogo de relações que se construíam por meio de brincadeiras e trabalho prático. Questões referentes à cultura, à representatividade e à organização social, eram amplamente discutidas nesses momentos, de forma livre a casual. A posição da Associação dos Barqueiros frente aos órgãos municipais, sua integração na comunidade eram questões correntes que dinamizavam outros problemas além da pintura. Foto 4. Ação de pintura O projeto teve a participação do artista Marcone Moreira, que durante três semanas deu continuidade na pintura de outros barcos, enquanto o artista Maurício Adinolfi realizava novos contatos com outros parceiros. A ação conjunta com a comunidade, a intervenção nos barcos (instrumento de trabalho dessas pessoas) e o desenvolvimento de uma pesquisa plástica caminharam para uma transformação social, pois a partir dessa relação social-estética, construtiva e prática, pensando a arte naÞo apenas como objeto, mas como um poder de formação do ser, desenvolveuse um pensamento estético sobre a vida (NIETZSCHE, 1998). A sede da Associação dos Barqueiros começou a ser mais frequentada e questões referentes à cultura, representatividade e organização social foram amplamente discutidas, criando uma interação entre os barqueiros, órgãos municipais e artistas locais. Levantou-se a possibilidade de integrar as atividades culturais da cidade e seus participantes/moradores no planejamento e execução das pinturas. Projeto BarcoR – estética tocantina: intevenção urbana | 245 Também foi reforçada a reflexaÞo sobre a necessidade de manutenção dos barcos, valorizando um olhar sobre a história dessas construções e de seus trabalhadores, refletido sobre a importância do fortalecimento da entidade/ associação. Antônio Sergio, construtor naval, fundador e atual presidente da Associação dos Barqueiros, comentou a importância do projeto para o despertar da comunidade sobre a necessidade de preservação da historia do trabalhador ribeirinho e do seu maior patrimônio: o rio. A política Uma nova questão se instaurou nesses debates – e que torna-se um problema recorrente em ações públicas de comunidades ou associações: o embate com grandes empresas. O problema está entre a propaganda que uma empresa colocava nos barcos, por um valor irrisório, e que agora encontra a força da pintura de cada barco, com uma identidade visual cultural de seu dono e da coletividade e a recusa desses (a Associação) em aceitar as propostas da empresa. Na explicação de sua estética relacional, Bourriaud afirma que “A arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relações”. (2009, p. 23). O projeto, desde seu início, trabalhou para a criação de parcerias com todas as frentes da sociedade; órgãos públicos e privados. Porém, genericamente, a forma de diálogo das grandes empresas difere de qualquer proposta de interelação ou construção conjunta. Suas intenções são primordialmente mercadológicas e de marketing, ignorando qualquer envolvimento social ou pensamento estrutural de construção cultural. Nesse ponto, o projeto envereda por um caminho político, que é a fortificação da entidade dos barqueiros, a construção da coletividade a partir da exposição desse grupo na mídia e de uma tomada de posição. Com a repercussão do projeto, a associação é agora mais reconhecida pela comunidade, tem uma voz ativa e começa a incomodar relações de poder e submissão antes incorporadas. Porém, demonstrando novamente suas intenções de desestruturação social, a empresa tenta desarticular a coletividade, propondo, individualmente e às escuras, valores para cada barqueiro mudar a pintura e expor sua publicidade. Dessa forma, os diálogos e embates são constantes, pois antes de negar ou compartimentar as relações de poder, tentamos trabalhar identificando-as e 246 | Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol invertendo valores, já que a presença dessas forças econômicas em qualquer cidade é intrínseca à sua conformação e história. Temos instaurado um problema que parte de uma ordem estética para um contexto político e ético. Com a visualidade dos barcos tomando conta dos rios Tocantins e Itacaiúnas (rios que margeiam toda a cidade de Marabá), uma identidade visual se apresenta à sociedade e é incorporada culturalmente por ela, ativando um outro senso de pertencimento e valorização regional (foto 5). Um questionamento é levantado quanto ao valor de uma publicidade privada que se constituía sem significados identitários e uma reorganizando de postura política coletiva erigida pela associação doa barqueiros, artistas e seus parceiros. Foto 5 – Barqueata no rio Tocantins (Cortejo Fluvial). Desenvolveu-se dessas discussões, a participação dos barqueiros na vida da cidade e na constituição de sua história, as condições de trabalho e as possibilidades futuras, levantaram ideias como a criação de uma escola de construção naval, um museu do rio (que contemple a genealogia dos pescadores e barqueiros do rio Tocantins), a organização da associação e sua ação política. Percebemos a fortificação de relações entre os barqueiros e uma tentativa de dinamizar os problemas levantados. Essas reuniões e atividades tiveram a participação de representantes políticos, como prefeito, secretário da cultura, do turismo, de serviços públicos, empresários, acadêmicos, estudantes e outros colaboradores. Uma ação colaborativa de intervenção distingui-se por essas características plurais é um procedimento político na prática, pois nos vemos envolvidos pelas relações sociais que definem esse lugar. O Projeto reafirma uma dialética, que é a relação entre o fazer e o pensar no momento criativo, ou seja, como a matéria influencia e determina o raciocínio e como este raciocínio estabelece esta matéria, delineando um método, pois o ambiente plástico erigido possui força e originalidade conforme a habilidade intelectual, e este campo poético reflete direta- Projeto BarcoR – estética tocantina: intevenção urbana | 247 mente o pensamento; é o pensamento organizado plasticamente, que se afirma através da materialidade da obra e da ativação do espaço que esta potencializa. Neste ponto se instaura o problema estético, sempre um jogo entre ação, espaço e pensamento. Performance Fluvial Confirmando a união que se formou entre todas as frentes envolvidas no projeto, um grande evento delimitou a conclusão do trabalho: a criação de um site-especific: A Buiúna Spiral Jetty, uma performance fluvial com os barqueiros realizando um grande desenho no rio, criando uma pintura espacial com os 30 barcos pintados e comemorando no dia 1º de maio o trabalhador ribeirinho. O desenho espacial projetado para esta performance possui duas referências: a Lenda da Buiuna, que é uma história sobre a presença de uma enorme cobra que habita os rios da amazônia; e a obra Spiral Jetty, trabalho central do artista norte-americano Robert Smithson, uma escultura em espiral feito de pedras basálticas e terra que adentra o mar com um comprimento de 457,2 metros. O evento acionou diversos agentes, articulando poderes e responsabilidades entre todos os participantes, seja para registro, estruturação da performance, organização entre os barcos, acompanhamento da correnteza, iluminação e etc. A intervenção discute vários limites e classificações presentes na história da arte, pois conjuga em sua realização o meio natural onde é realizada, o ser humano como parte da obra, a paisagem e as ferramentas utilizadas. (Foto 6) Foto 6. Performance Fluvial – Buiúna Spiral Jetty. (imag. Regina Suriane) 248 | Maurício P. Adinolfi e José P. Spaniol Referências bibliográficas ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac Naify, 2001. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2011. HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1991. KRAUSS, Rosalin. Caminhos da escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. in: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Ed Companhia das Letras, 1995. OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. RANCIERE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009. ROSENBERG, Harold. Objeto ansioso. São Paulo: Cosacnaify, 2004. SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é humanismo. in: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1978. SIMMEN, Jeannot e KOHLHOFF, Kolja. Malevitch.Portugal: Konemann, 2001. | 249 Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman ANDRÉIA PAULINA COSTA* RUY SARDINHA LOPES** Resumo: Esse presente artigo visa analisar as formas de crítica cultural inseridas nos trabalhos de Barbara Kruger e Cindy Sherman, como componente de uma produção cultural, cuja postura ativa propôs novas formas de relação entre arte e política. Através de uma linguagem acessível: a fotografia, as artistas percorrem de aspectos hollywoodianos, disformias corporais de revistas, dos anos 1950, à violência simbólica. Através do ato de personificação, e de técnicas de publicidade, Kruger e Sherman contextualizam uma sociedade de consumo irrefreado, cuja necessidade de se adequar, remodelar e pertencer se entremeia entre o físico e o simbólico. Palavras-Chave: Arte Contemporânea. Cultura Política. Desconstrução. Feminino. Abstract: This article intends to analyze the forms of cultural critique embedded in the work of Barbara Kruger and Cindy Sherman, like a component of a cultural production where the engaged attitude proposed new forms of relationship between art and politics. Through an accessible language: photography, artists sweep from Hollywood aspects to the body disformias, magazines 1950s and symbolic violence issues. Through the act of personification, and advertising techniques, Kruger and Sherman contextualize ** Mestranda em Arquitetura e Urbanismo, na linha de Artes, Estética e Arquitetura, Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP), bolsista FAPESP. ** Professor e pesquisador no Departamento de Arquitetura do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP), na área de Estética, Teoria e História da Arte. 250 | Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes a society of unbridled consumption, where the necessity to adapt, remodel and belonging are interspersed between the physical and the symbolic. Keywords: Contemporary Art. Culture Politics. Desconstruction. Feminine. As táticas de contra-apropriação em Barbara Kruger se pautam no cotidiano. As imagens, que emprestam temas as obras, são sempre feitas em esquemas simples: preto, branco e vermelho, uma imagem de fundo preta e branca e colagens de frases em fundo vermelho ou branco. A utilização de técnicas de superexposição e negativo empresta às linguagens da colagem e da litogravura aspectos dramáticos da realidade. O choque de suas frases impactantes é acompanhado pela ausência das bordas, trabalhando a ideia de campo expandido, em a infinidade de suportes possíveis possibilita que o distanciamento entre a obra e o espectador seja anulado. Kruger também dialoga com a ideia de xerox arte, em que o contraste entre o preto e o branco muito chapados cria uma linguagem própria, de incorporação do ruído. Aqui o ruído pode ser visto como analogia da tensão criada pela cultura de massas, suas dinâmicas de agregação e exclusão cultural. A linguagem, que busca colocar a chão a questão da autoria e da reprodução em seu trabalho, dialoga com o universo das mercadorias e dos fetiches produzidos pela cultura de massas. Em frases como “Your confort is my silence, Love for sale, If you don’t control your mind, someone else will, Money can buy you love, Your body is a batleground, You are not yourself…”, Kruger expressa as formas de dominação exercidas pelo capital. A transformação de todas as coisas, objetos e sentimentos, em mercadoria e a consequente satisfação encontrada no ato de consumo, de bens de capital e de bens simbólicos, são problematizadas na obra de Kruger pela escolha de fotografias do cotidiano, com ícones e símbolos, cujo contato direto é inevitável: a artista parte de partes do corpo feminino a cenas de rituais socialmente legitimados, de objetos de consumo e de perspectivas ácidas. “‘The construction the female subject’ as the main theme of her image-text montages and she acknowledges an interest in the journal Screen.” (EVANS, 2009, p. 19) As produções de Kruger de 1980 têm, em sua essência, uma movimentação política e de gênero. Fazem críticas às instituições e às formas de relação estabelecidas; críticas acerca da existência humana pautada em um consumo eminente de mercadorias das quais só precisamos através do fetiche, incutido socialmente através da publicidade. É com essa linguagem que Kruger procura combater os Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman | 251 vícios produzidos pela forma de produção do capitalismo. Como artista, revela os processos de produção cultural mistificada, a qual propõe mascarar a sexualidade do outro. A artista nota que, na sociedade de sua época, há uma discriminação disfarçada em códigos sociais, onde é necessário a aceitação social de um código normativo que ocorre por meio dos ritos culturais para que se legitime o contato com o outro do mesmo sexo. A aceitação só ocorre enquanto rito, só sendo legitimada nessa efemeridade. Há a aceitação social do rito, mas não da escolha sexual e de sua desmistificação: “I consider gender to biological defined while sexuality is socially constructed. Because of this, I am prone to a kind of a lascivious optimism. I want to questions the notions of heroism and skew the conventions which loiter around depiction.” (KRUGER, 2009, p. 112). Kruger trabalha no sentido de denunciar as falhas e as contradições inerentes à sociedade de consumo. Trabalha a perda da identidade pessoal e sua nova configuração com os modelos pré-estabelecidos por um regime cultural, cuja determinação se pauta no poder e no controle. O poder da mercadoria sobre o individuo, a transformação de indivíduo em consumidor, mas também a necessidade de emancipação sexual e de gênero. Emancipação das escolhas de cada um. Por outro lado, a fábrica de mulheres de Sherman trabalha com a questão da reprodução da indústria cinematográfica. Ao reproduzir cenas famosas de filmes noir, Sherman problematiza o papel da mulher na indústria do cinema. Mulher como papel de objeto, de desejo e de mercadoria. A artista propõe uma leitura que dialoga com o outro e procura nesse mesmo outro um reflexo do mundo. Seus cutting paper e dress up retratam a pluralidade sexual de nosso tempo. Ao passar por inúmeras formas de representação do feminino, Sherman retrata o impacto da cultura na subjetividade de cada um: como nos moldamos em torno das configurações sociais e nos produzimos de acordo com ela. Sherman nos fala da solidão da contemporaneidade e da busca por algo que supra as necessidades imediatas de carência: ao nos tornarmos objetos da cultura da qual produzimos e reproduzimos, o fetiche abarca o espaço do vazio da modernidade. Sherman brilliance is her ability, not to use a mirror, but to come one: to allow her body to reflect, in a detached and often humorous manner, the smorgasbord of images that constitute our vision of the world. Moving with equal ease through history and a fashion magazine, she transforms herself into a movie star, a witch, an Italian gentleman, or as aristocratic matron from art history. 252 | Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes Carefully manipulating lights, costumes, and props, she creates mise-en-scènes (with more than a hint of artifice) that place her within the lifestyles and environments of both her ancestors and her contemporaries […] Sherman’s, however, is an inverted odyssey; becoming a TV set, she allows the world’s images to flow through her. She identifies not with any one specific image but with the personal vortex that is her experience of contemporary life. Like Deren, she is embodying within himself the volatile character of a relativistic universe (RICE, 1999, p. 25) Cindy Sherman expõe os estereótipos com os quais ainda nos confrontamos na contemporaneidade. A prática da construção das identidades pessoais e a separação entre uma identidade social e cultural, a relação entre o que acontece na esfera do visível e ao cair da noite, é a necessidade de adequação ou de libertação, uma identidade que se torna múltipla, facetada. Põe em foco a questão da beleza, do natural e das disformidades causadas pela sociedade de consumo irrefreado: a imagem de uma mulher, em sua simplicidade cotidiana, e a transformação, por etapas, de sua identidade diária, coordenada pelas obrigações sociais e sua identidade pessoal, de características noturnas, performáticas; a própria relação performática da identidade e da sexualidade. Sherman evoca o sujeito observado, o sujeito-como-quadro, que também é o local principal de outras obras feministas do início da arte da apropriação. Seus sujeitos veem, é e outro claro, mas são muito mais vistos, capturados pelo olhar [do outro sujeito, do espetáculo do mundo, do vir de dentro]. Aqui Sherman mostra seus sujeitos femininos como auto-observados, não na imanência fenomenológica (vejo-me vendo-me), mas no estranhamento psicológico (não sou o que imaginava ser) […] Sherman captura a lacuna entre as imagens do corpo, imaginado e real, que se abre em cada um de nós, a lacuna do (ir)reconhecimento em que as indústrias da moda e do espetáculo operam dia e noite. (FOSTER, 1994 p. 142-3) Ao capturar as lacunas entre imagem e corpo, Sherman vagueia pelas fantasmagorias de Benjamin, produzindo uma reflexão entre o espaço vazio que flutua entre o imaginário e o real; um fantasma que mantém sua essência sem estar visível. A questão colocada é de percepção daquilo que se encontra entre a esfera do visível e do invisível, do real e do imaginário, e que nos mantém em suspensão, que nos faz acreditar em uma imagem produzida através da distorção Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman | 253 dos conceitos de cultura, de belo, promovendo como legítimo as formas que sustentam o sistema social vigente, sem necessariamente abranger a multiplicidade de formas de vivido contemporâneo. Temos uma flutuação entre os significados concretos e aqueles produzidos pelas ressignificações da indústria cultural. A fantasmagoria é tomada por elementos do fetiche marxiano e, sendo elemento constitutivo do fetiche, permeia pelas tramas simbólicas, produzindo uma percepção de mundo difusa e que culmina em formas alienantes de compreensão do real. A realidade é produzida através de um afastamento entre o significado real, concreto e a instauração de formas reificantes. For Benjamin, the phantasmagoria that results from such fetishism constitutes what passes for reality in every possible dimension. We project our fetishism onto the objects of the world, in effect enslaving ourselves via our treatment of them. From this fetishism, an entire political order is created.1 (MARTEL, 2013) A política de representação usada por essas artistas se relaciona com a arte de apropriação e a da desconstrução, que tem como referência a estética noir do new wave e a postura desconstrutiva do punk I shop, therefore I am. Esse impulso alegórico, (OWENS, 2001, p. 209) que transforma artistas em soldados, apesar de ser fundamental como contraponto a cultura dominante, tendo como papel a crítica e a produção de inquietações aos padrões de consumo, gênero, sexualidade e formas de ação política, tem como recorrência, e talvez por dialogar com uma estética produzida nas tramas da cidade, uma dualidade. A crítica pode vir a ser subsumida, tornando-se, ao olhar do outro, aliado daquilo a que tenta negar, justificando ações das quais é contrária. Pode perder-se no redemoinho da reprodução constante dos códigos culturais e tornar-se ideologia. A arte dos anos 1970 tem, em seu conteúdo, temas do cotidiano cultural de sua época e muitos foram os artistas que se debruçaram sobre temas polêmicos. Se no primeiro momento causaram estranhamento devido ao impacto de suas obras, em um segundo, conseguiram dialogar com o espectador e com o espaço 1. Anti-fetishism: Notes on the Thought of Walter Benjamin. Disponivel em: http:/ /criticallegalthinking.com/2013/04/22/anti-fetishism-notes-on-the-thought-of-walterbenjamin/#fn-14108-3 254 | Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes da cidade, físico e simbólico, através de uma linguagem contemporânea e acessível que fazia da tessitura urbana suporte. Os anos 1970 vêm como refugo das propostas colocadas pelos grandes nomes da década de 1960, Cage, Rauschenberg e Duchamp, em um processo não de superação, mas de compreensão crítica, teórica e prática: o que fazer com o que foi problematizado antes, como produzir arte em cima das questões do ready-made, dos happenings e do experimentalismo. À procura de novas linguagens artísticas, a década de 1980 abre diálogo para as questões da alteridade e vê no outro a oportunidade de expandir a crítica ao sistema capitalista e à cultura dominante. As novas formas de subjetividades, que eclodem das cenas juvenis e do circuito das artes alternativas, abrem espaço para as discussões acerca do gênero, de sexualidade, de etnicidades e formas díspares de viver o cotidiano. A crítica ao consumo e ao apoderamento cultural torna as artes da década de 1980 em narrativas culturais. Nas tramas da cidade, as produções de grande parte desses artistas se encontram na temática da sexualidade, da violência e das estruturas sociais. A imobilidade da cultura dominante em aceitar os novos paradigmas colocados pela juventude e a postura cada vez mais ofensiva das políticas públicas, possibilitou o surgimento de obras cujo teor político retomava a ideia de diálogo. O conceito de política extrapola a ideia de poder e permeia cada momento de nossa vida. Acho que a política está presente em cada momento que a gente tem, em cada negócio que a gente faz, em cada rosto que a gente beija. Um dia na ONU não é mais politico do que um jantar em família, e o poder e seus abusos estão por toda parte. Não me considero uma artista política nem feminista. Artistas têm habilidade de visualizar ou tornar texto suas experiências de mundo. Os artistas de minha geração, muitos deles vêem bastante tevê, lêem muitos jornais e vão muito ao cinema. Assim, nossas experiências acabam sendo construídas a partir dessas representações. (KRUGER, 1993, p. 26)2 Foi partindo dessa visão, em os pequenos atos da vida cotidiana se expandem como forma de política, que a linguagem da apropriação, do pastiche e da simulação, já usadas pela mídia, tornam-se elementos importantes para uma produção, que tem como objetivo questionar estereótipos, a autoria, a propriedade e em expor a realidade como uma representação (FOSTER, 2014, p. 115). 2. Encontro com Barbara Kruger. Revista MAC, nº 2, dezembro de 1993. Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman | 255 Nas obras dessas artistas, a crítica cultural se encontra nas formas de paródia e alegoria. Tanto Barbara Kruger quanto Cindy Sherman se preocupam em expandir o campo da percepção, com apropriações de elementos simbólicos de épocas passadas, ressignificações de fotografias de trabalhos famosos, uso da linguagem publicitária, focando na facilidade de reprodução e contestando a relação autor-produtor. Essa crítica parte da observação da dinâmica social (FOSTER, 2014, p. 116), produzindo, assim, uma reflexão sobre o estabelecimento das condutas e normas que modelam as relações sociais. Nesse sentido, as formas de alegoria e paródia trabalham no rumo das desconstruções: desconstrução de identidades sociais, sexuais, de estereótipos; e propõem um novo olhar sobre o outro. Trabalham com a ideia de transformação e de mutabilidade. São categorias que propõem formas de pensamento processuais, desvelando e recuperando o estado original, natural ou esquizofrênico do outro; revelando a personalidade e o distanciamento entre a imagem produzida e a real, as diversas possibilidades de autoconstrução do sujeito e de sua identidade social e pessoal. The Feminist Critique section focuses on two ideas that first emerged during the 1970s: that visual culture is one of the primordial sites where gender relations are produced; and that mainstream accounts of the modern author or artist inevitably foreground men of genius. Both ideas have informed range of appropriationist strategies to unfix the fixed. (EVANS, 2009, p. 18) A questão da cultura visual e das relações de gênero passa pela ideia do natural e do esquizofrênico na sociedade capitalista, onde o natural seria aquilo que é pautado pela normatividade social e o esquizofrênico pelas reverberações das minorias. Desse modo, a questão do natural e do diferente, e logo, a questão da alteridade, aparece na obra dessas artistas como componente etnográfico (FOSTER, 2014, p. 160-1), onde a questão do território é determinante. As obras de Kruger e Sherman vão de encontro às perspectivas de colocar em pauta as necessidades de reflexão sobre a sexualidade, masculina e feminina, sobre as formas de consumo e de pulsão das massas. Qual seria o papel de cada um na estrutura social, não um papel moldado pelas formas de legitimação da cultura dominante, mas como forma de inserção e captação de novas produções sociais, onde o outro também sou eu? Para Deleuze, a questão do natural e do esquizofrênico permeia toda a construção cultural de nossa época, sendo o mecanismo que engendra os posicionamentos políticos de cada um: paranoico ou esquizo- 256 | Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes frênico, o campo social é permeado por atitudes reacionárias ou revolucionárias, cabe então ao artista, produzir uma reflexão de mundo que problematize as esferas sociais, suas apatias e anomias. Neste sentido, já vimos que há dois grandes tipos de investimento social, um segregativo e outro nomádico, que são como dois polos do delírio:um tipo ou polo paranoico fascistizante, que investe a formação de soberania central e a sobre- investe, fazendo dela a causa final eterna de todas as outras formas sociais da história, que contra-investe os enclaves ou a periferia e desinveste toda livre figura do desejo […] E um tipo ou polo esquizo-revolucionário, que segue as linhas de fuga do desejo, que passa o muro e faz com que passem os fluxos, que monta suas máquinas e seus grupos em fusão nos enclaves ou na periferia, precedendo ao inverso do precedente […] Um é investimento de grupo sujeitado, tanto na forma de soberania quanto nas formações coloniais do conjunto gregário, que reprime e recalca o desejo das pessoas; o outro é investimento de grupo sujeito nas multiplicidades transversais portadoras do desejo como fenômeno molecular, isto é, objetos parciais e fluxos, por oposição aos conjuntos e às pessoas. (DELEUZE, 2010, p. 367-70) A questão da alteridade muda o foco do sujeito na arte, continua ainda a dialogar com a crítica as instituições, as quais a arte está vinculada: museus, academia, mercado e circuito, e passa a focar na identidade cultural. Retomando as questões de O autor como produtor de Benjamin, novas leituras acerca do real surgem em 1980: “[...] tal como Benjamin reagira à estetização da política sob o fascismo, esses artistas e críticos reagiram à capitalização da sociedade sob Reagan […] na arte de ponta da esquerda surgiu um novo paradigma: o artista como etnógrafo.” (FOSTER, 1994, p. 161). A criação de uma nova ordem política, que advém das formas fetichizadas e reificadas de mundo, produz, em seu polo oposto, uma necessidade de desfetichização do real. É nesse sentido que as obras de Kruger e Sherman procuram trabalhar, produzir formas de percepção que problematizem o domínio da cultura de massa. É na aproximação do artista com a comunidade, com o espaço limítrofe entre a arte institucionalizada e a que está à margem, que a produção da arte de apropriação procura intervir tendo a antropologia como substrato. A proximidade dos artistas com as questões antropológicas fez com que a comunidade e a identidade cultural se tornassem objeto de reflexão. Temos a Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman | 257 incorporação de temas pós-colonialistas, que tratam da subalternidade e das formas de subcultura, nesse sentido a temática da AIDS, da posição social da mulher, do homossexual, do negro e dos imigrantes se tornam emblemáticas. Autores como Barthes, Benjamim, Gramsci, Althusser e Freud se tornam referencial teórico para a produção da appropriation art: textos como Totem e Tabu, Cadernos do Cárcere, Aparelhos Ideológicos do Estado, Mitologias e O Autor como Produtor marcam a influência do pensamento estruturalista como base para a reflexão da esquerda artística em 1980. A proximidade com as teorias estruturalistas produziu uma linguagem artística mais crítica, mais consciente da dinâmica cultural e, logo, mais ativa. Nesse sentido, na tentativa de criar algo novo, Kruger produz cartazes que pretendem corromper com os códigos sociais estabelecidos. Ao questionar as questões de autoria e de originalidade e de utilizar suas produções como veículos de comunicabilidade em suportes publicitários (posters, camisetas, objetos acessíveis), a artista retoma a problemática acerca das construções sociais e de como elas remodelam nossos conceitos de fetiche, mito, texto e produzem uma imagem alienante de nós mesmos e do outro. Uma permissividade que adentra os códigos sociais e que engendra atitudes e posturas culturais que culminam ora em tabu, ora em legitimação. You mean that even though my work continues to foreground issues of power, gender and reception, when I include the positioning of the market, it removes my practice from the concerns of a feminist discourse? Is your question another assertion of the need to categorize or does it also suggest that you think that feminist exists outside the discourses of capital, as a kind of primordial meandering which escapes all economies except those of birth and rhythm? I consider sexuality an capital to be inextricably wedded and this coupling has the power to dictate the feel of the moments of our lives. As my position within the market structure became more palpable, I thought it increasingly important to comment on the financial proclivities which enveloped me: to be in and about consumption at the same time. (KRUGER, 2009, p. 115) Essa relação entre poder, gênero e recepção se encontra nas obras de Kruger e Sherman, assim como a desconstrução de tabus; o mito é outro elemento importante para a compreensão das apropriações feitas pelas artistas. A compreensão do conceito de mito em Barthes é usada como ponto de ruptura. Essas 258 | Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes produções buscam através do estético transcender o mito, tido como verdade; buscam retomar o sujeito como tema, em todos seus aspectos. A arte da apropriação trabalha com a desconstrução, de dogmas, de métodos e de legitimações impostas. Existe uma linguagem que não é mítica, é a linguagem do homem produtor: sempre que o homem fala para transformar o real, e não mais para conservá-lo em imagem, sempre que ele associa a sua linguagem à produção das coisas, a metalinguagem é reenviada a uma linguagem-objeto e o mito torna-se impossível. Eis a razão por que a linguagem revolucionária não pode ser uma linguagem mítica. (BARTHES, 2009, p. 238) Essa construção ideológica que ocorre no mito tende a ser desconstruída nas obras femininas do período de 1970. Abre-se espaço para uma linguagem que tende a dialogar com o Outro, “[...] for em Sherman images, disguise functions as a parody, its works to expose the identification of the self with an image as its dispossession. […] By implicating the mass midia as the false mirror which promotes such alienating identifications, Sherman registers this truth as both ethical and political.” (OWENS, 1994, p. 85) Esse diálogo com o outro pode ser visto nas obras Untitled Film Series, de Sherman, e nas produções na década de 1980 de Kruger. A questão da representação é latente, passa da questão do ético e político para o jogo do pessoal e impessoal, proximidade e distanciamento. É na representação e na política da representação que o mito se torna elemento fundamental: Myth is depoliticized speech. Myth is ideology. Myth is the act of draining history out of signs and reconstructing these signs instead as instances, in particular, instances of universal truths or of natural law, of things that have no history, no specific embeddedness, no territory of contestation. Myth steals into the heart of the sign to convert the historical into the natural—something that is uncontested, that is simply the way things are. (KRAUSS, 1999, p. 105) Na obra dessas artistas, as questões colocadas por Barthes ganham centralidade, no que dizem respeito a questão do texto e da autoria, como a arte pode ser produzida ser sem vinculada às questões modernistas, de sublime, de contemplação, e passa a ter um significado ativo na sociedade, seja como recurso Este outro também sou eu: a crítica cultural em Barbara Kruger e Cindy Sherman | 259 imanente, como força produtora de mudança, mas sobretudo como formas alternativas de leitura de mundo. As problemáticas inseridas na arte de apropriação se conectam ao cotidiano, pensando todas as formas de exclusão, procurando uma latência no intricamento social, que possa produzir um olhar novo, de aceitação do diferente. Bathes afirma que a cultura dominante opera por meio da apropriação: ela abstrai os significados especificos de grupos sociais em significantes gerais, que são então vendidos e consumidos como mitos culturais. Contra essa apropriação, Barthes propôs uma contra-apropriação: desmantelar o signo mitico, reinscrevê-lo numa montagem critica e então fazer circular ess mito artificial; (FOSTER, 1994, p. 96-97) Ao propor novas trajetórias, essas artistas conceituais encontram, na apropriação, uma válvula de escape aos dogmas da arte (a questão da autoria e da reprodução) e da cultura dominante. Propõem olharmos o real, através de uma mediação sensível, ver no outro aquilo que também poderíamos ser. Mostram proximidade e interesse sobre o real, procuram formas de reexistência em um sistema cujo foco se dá nas formas de apoderamento e de controle. Dialogam questões que ainda se encontram em pauta no tempo presente e buscam formas de alteridade em um espaço social, que transforma a diferença em mercadoria. Uma arte contemporânea de seu tempo e contemporânea do nosso. Referências bibliográficas DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Editora 34: São Paulo, 2010. EVANS, D. Appropriation. Whitechapel Gallery: Cambridge, 2009 FOSTER, H. O retorno do real. Cosac Naify: São Paulo, 2014. KRAUSS, R. Bachelors. Massachusetts Institute of Technology: Cambridge, 1999. LIPPARD, L. Get the Message: A Decade Of Art For Social Change. E. P. Dutton: S.l. 1984. OWENS, C. Beyond Recognition: Representation, Power, and Culture. University of California Press, S.l. 1994. 260 | Andréia P. Costa e Ruy S. Lopes RICE, S. Inverted Odyssyes. NYU; Museum of Contemporary Art: Nova Iorque, 2000. WALLIS, B. Arte después de la modernidad. Akal: Madrid, 2001 | 261 Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes JANAINA BARROS SILVA VIANA* Resumo: O presente artigo possui como interesse a articulação entre ato experimental e o gênero nos modos de construção de um discurso poético, numa autoria feminina e negra dentro da história da visualidade contemporânea, além de suas possíveis referências com a manualidade, presentes nas obras das artistas Rosana Paulino (1967) e Sonia Gomes (1948). Palavras-chave: Ato Experimental. Trabalho Feito à Mão. Gênero e Arte Contemporânea. Autoria Feminina e Negra. Craft and gender in the works of Rosana Paulino and Sonia Gomes Abstract: This article deal with issues from artist black women within the history of contemporary visuality, so developing the relationship between gender and experimental act in the ways of constructing a poetic discourse about craft and femininity, beyond its possible references about “the hand made”, in the works of Rosana paulino (1967) and Sonia gomes (1948). Keywords: Experimental Act. Hand Made Work. Gender and Contemporary Art. Black Woman Authorship. * Doutoranda em Estética e História da Arte (PGEHA/USP) na linha de pesquisa Metodologia e epistemologia da Arte. 262 | Janaina Barros Silva Viana Algumas digressões sobre autoria negra e o contemporâneo O presente artigo possui como interesse a articulação entre ato experimental e o gênero nos modos de construção de um discurso poético. O discurso pode ser entendido, nesta reflexão artística, como uma síntese significativa de uma visualidade, em atuam uma série de operações específicas e complexas que compreendem a existência de uma obra. O recorte dá-se a partir da localização de uma autoria feminina e negra, dentro da história da visualidade contemporânea, e suas possíveis referências com a manualidade. Desse modo, tem-se a produção de narrativas estéticas e políticas sinalizadas por meio do bordado e da costura, nas obras de duas artistas negras, Rosana Paulino (1967) e Sonia Gomes (1948). A leitura destas produções pode ser analisada pelas técnicas que as constitui e também como revisão de denominações em determinados discursos poéticos femininos numa história da arte contemporânea; socialmente pelo seu caráter ambíguo, principalmente em razão das possíveis noções sobre o objeto artístico quando se refere a procedimentos técnicos tangenciados pela costura e pelo bordado dentro de uma história da visualidade. O conceito de contemporâneo implica em rever a noção de modernidade,1 pois se torna possível entender a arte contemporânea como continuidade ou ruptura da arte moderna, no que tange historicamente a uma era industrial quando se refere a seu desenvolvimento e reflexo numa sociedade de consumo.2 O desenvolvimento na sociedade moderna pode ser definido de acordo com o nível 1. Giulio C. Argan na obra Arte moderna. Do iluminismo aos movimentos contemporâneos (1992) propõe a arqueologia do moderno e o seu projeto artístico a partir da aproximação com o Romantismo e os ideais iluministas. Estas aproximações encontram-se nas relações existentes entre o processo de tornar estético o real e a impossibilidade de se separar arte e vida na constituição de um objeto artístico. O indivíduo iluminista intentava sua emancipação total no ato de desvendar os mistérios da alma humana e da natureza, e na crença projetada nos poderes cognitivos e da razão. Consequentemente, isto permitiria provocar mudanças positivas na sociedade. 2. De acordo com Fredric Jameson com o esgotamento do projeto moderno há consequentemente, a retomada dos signos resgatados do passado na forma de clichê, onde a produção visual pós-moderna não renega o passado, pelo contrário, aparece de maneira fragmentada. O passado aparece descontextualizado historicamente, esvaziado de seu contexto, podendo ser encarado como uma espécie de amnésia histórica, ou ainda, uma Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes | 263 tecnológico alcançado por ela e balizado pela concepção ideal de progresso e as possíveis formas de identidades.3 O indivíduo ver-se como contemporâneo indicaria um lugar onde: [...] percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse à sua sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora. (AGAMBEN, 2009, p.72) Para Anne Cauquelin, as formas contemporâneas de produção e sua relação de proximidade com a tradição, vista, também, como processo de renovação de construção poética, sinalizam os diferentes estados da arte, localizada no retorno a ideia do artista como autor e a individualização dos critérios artísticos ao longo do século XX e XXI, como uma produção “em busca de uma nova definição, em busca também de uma posição reconhecida pelo conjunto dos atores de cena artística”. (CAUQUELIN, 2005, p.151) A produção visual atual solicita a participação de diferentes atores e suas proposições em arte contemporânea enquanto formas de identidade cultural, de gênero e étnica nas construções de discursos que sistematizam e corporificam uma dada poética. De modo que o termo mais adequado para a inserção e a circulação de artistas negros, nos espaços culturais e artísticos, seria autoria negra, fragmentação da contemporaneidade localizadas na chave do ‘pastiche’ e da ‘esquizofrenia’(presente perpétuo). Em termos econômicos, a visualidade pós-moderna insere-se numa lógica da história e cultura no estágio contemporâneo do capitalismo tardio, em que se caracteriza pela expansão da intervenção do Estado, pelo desenvolvimento tecnológico gerando concomitantemente superprodução e arrefecimento da força de produção na indústria e seu redirecionamento na forma de serviços (terceirização) encarado também como mercadoria. 3. A identidade pode ser traduzida pelas condições sociais e materiais como distinção de um grupo de indivíduos em relação a outros, busca-se uma história e/ou cultura comum como modo de inserção numa coletividade, compreendida na chave de marcadores de diferença relativizada às questões de sexualidade, étnicas e/ou religiosas. 264 | Janaina Barros Silva Viana que amplia e abarca diferentes percursos poéticos e operativos. A revisão de uma arte afro-brasileira,4 distante de rótulos limitadores, para a compreensão de uma poética autoral negra contemporânea, com discursos e visualidades distintas, justifica-se, historicamente, pela mudança do cenário artístico no pós-guerra da Europa para os Estados Unidos e as discussões sobre multiculturalismo numa arte pós-colonial.5 Acresce-se, também, as formas definidoras de um paradigma pautado no conceito de universalismo artístico, como modo de delinear a existência de uma produção de artistas negros numa contemporaneidade pós-colonial, além do debate sobre gênero no campo político das artes visuais a partir da década de 70. O Museu Afro Brasil é um lugar que se insere num campo de discussão estética e política por aspectos não somente referentes à produção artística, mas também à circulação nas instituições culturais e à reflexão curatorial de diferentes vias poéticas articuladas com a história, a antropologia e a estética numa arte brasileira. Destaca-se entre várias publicações nacionais sobre o negro como produtor artístico e cultural, organizadas por Emanoel Araújo, a publicação do catálogo A mão afro-brasileira, lançado em 1988, em comemoração ao centenário da abolição, e reeditado em 2010, no qual havia, como uma das 4. Na leitura inicial sobre o conceito de arte afro-brasileira tem-se associada em sua visualidade a uma produção religiosa, étnica e/ou aproximadas a valores estéticos de uma arte tradicional africana no olhar de teóricos como Manuel Carneiro da Cunha, como uma arte de caráter local. Podem-se indicar os seguintes destacamentos históricos no campo artístico para o delineamento deste conceito: o Festival de Artes Negras de Dakar (Senegal) em 1966 representando o Brasil artistas como Agnaldo Manoel dos Santos, Mestre Didi e Rubem Valentim; A criação do Museu de Arte Negra por Abdias do Nascimento em 1968, sem sede própria e, apenas única exposição, no Museu de Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro; Ou ainda, posteriormente, a ampliação deste conceito para a sua ‘inserção’ numa arte brasileira, nos estudos de Kabengele Munanga, Roberto Conduru, etc; E a criação do Museu Afro Brasil pelo artista e curador Emanoel Araújo, em 2004. 5. Três exposições tornam-se interessantes para esse debate a respeito de narrativas hegemônicas e multiculturais nas construções de marcadores de identidades na redefinição do papel da arte na tradição ocidental: Primitivismo na arte do século XX, no Museum of Modern Art (MOMA), em 1984. E, ocorre, posteriormente como questionamento a essa exposição, Magiciens de la terre, no Centro Georges Pompidou de Paris, em 1989. E, mais recentemente, a exposição Afro Modern: Journeys through the Black Atlantic, no Tate Liverpool, em 2010. Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes | 265 proposições, o mapeamento de artistas negros contemporâneos. Incluía-se nesta edição a artista paulistana Rosana Paulino (1967). Numa exposição comemorativa, renomeada como A nova mão afro-brasileira, realizada a partir de 20 de novembro de 2013, houve o acréscimo de novos 15 autores negros de diferentes regiões do país. E, traz somente um nome para o debate sobre gênero numa produção autoral negra feminina, a artista mineira Sonia Gomes (1948). Um breviário sobre gênero para constituição de uma história visual contemporânea Linda Nochlin escreveu um ensaio referencial para o debate contemporâneo sobre arte e gênero no cenário das instituições artísticas no século XXI, intitulado Por que não existem grandes mulheres artistas? Neste artigo, Nochlin questiona como se dá a presença feminina na história da arte e qual o lugar da mulher nessa construção do conceito de gênio e a dificuldade de haver um paralelo feminino para o que seria um grande artista. Torna-se pertinente para a reflexão sobre gênero as seguintes questões: como fazer uma revisão de outras autorias femininas não concernentes apenas aos cânones europeus e norte-americanos? Como incluir numa abordagem crítica, por exemplo, as produções de artistas latino-americanas e africanas num cenário de arte internacional contemporânea? A pesquisadora Vânia Carneiro de Carvalho (2008), na obra Gênero e Artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920, discute a desnaturalização e historicização dos papéis sexuais no processo dicotômico presentes nas relações entre natureza versus cultura, trabalho versus família, público versus privado, a partir dos padrões de organização do mobiliário, a ornamentação dos objetos pessoais e domésticos, como também, as formas de trabalho como invenção e reprodução de distintas naturezas sexuadas, introjetadas de maneira inconsciente dos comportamentos cotidianos. Transposto este olhar sexuado para a produção artística após os 70, com o advento do feminismo, tem-se a transgressão dos sentidos daquilo que é considerado feminino, tendo como referência visual o debate proposto pela artista Mirian Schapiro. Posteriormente, após os anos 80, verifica-se a proposição de estratégias ou manobras conceituais como crítica as noções tradicionais de feminilidade e representação das representações da linguagem que sustenta e fomenta este tipo de discurso na contemporaneidade. Faz-se uma apropriação crítica atualmente sobre 266 | Janaina Barros Silva Viana os chamados ícones de feminilidade, presentes nos seguintes temas: sensualidade, corpo, maternidade, etc. A pertinência deste debate encontra-se na inserção de mulheres artistas no cenário artístico pós anos 90 e nos modos como manipulam determinadas materialidades, procedimentos técnicos e faturas para uma dada formalização poética numa história da arte contemporânea. Destaca-se, no cenário nacional, a exposição Manobras Radicais: artistas brasileiras (1886-2005), ocorrida no Centro Cultural Banco do Brasil (SP), em 2006. Os curadores Paulo Herkenhoff, crítico de arte, e Heloisa Buarque de Hollanda, crítica literária, propunham a análise multifacetada dos discursos de mulheres artistas e seus saberes estratégicos de inserção e circulação no sistema institucional artístico dentro de uma série de “lógicas sutis de uma microfísica do poder, em busca da presença e da radicalidade com que as mulheres enfrentaram situações de silêncio forçado, opressão e exclusão.” (HOLLANDA, 2006, p. 2006) As formas de apropriação nas narrativas visuais contemporâneas: as poéticas de Rosana Paulino e Sonia Gomes O papel político do artista em determinar o contexto de sua obra, sistematizála e formalizá-la reflete o pensamento poético proveniente do conceitualismo e da teoria neomarxista, que solicitava tanto do artista quanto do fruidor a responsabilidade a respeito do significado político de um objeto artístico. A relação existente entre arte e política retoma o debate feminista nos anos 70 sobre os diferentes meios de acessos nos espaços institucionais artísticos entre homens e mulheres. Busca-se o reconhecimento da autoria feminina nestes circuitos, traduzindo-se em identidade de gênero, como também, possíveis considerações sobre sexualidade, classe social, origem racial e cultural. A relação tensa entre arte, gênero e identidade numa territorialidade visual no campo da política aparece após os anos 70 do século XX nas narrativas políticas e estéticas de artistas negras, como a norte-americana Adrian Piper (1948), a cubano-americana Coco Fusco (1960), a queniana Ingrid Mwangi (1975) e as brasileiras Michelle Matiuzzi (1983), Renata Felinto (1978), Rosana Paulino (1967), Sonia Gomes (1948). O debate sobre raça na produção artística contemporânea aparece em dois debates no primeiro semestre de 2014: Arquivos sobre o Não-Racialismo promovido pela Associação Cultural Videobrasil em parceria com o Sesc São Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes | 267 Paulo e o Goethe Institut, a Universidade de Witwatersrand (África do Sul), Universidade Johns Hopkins (EUA) e o Instituto de Pesquisa em Humanidades da Universidade da Califórnia. Cita-se, ainda, a realização pela Galeria Mendes Wood do debate sobre os desafios contemporâneos de um sistema cultural e artístico heterogêneo intitulado Ajuste de cor: Conflito Social, a Política racial e as Artes Visuais no Brasil de Hoje, com os artistas Coco Fusco, Sonia Gomes, Paulo Nazareth, Daniel Lima e o pesquisador e crítico literário Jaime Ginzburg. Neste cenário, localiza-se a produção visual da artista Rosana Paulino6 (São Paulo, 1967), que discute em sua poética a desconstrução dos modelos instituídos, como forma de articulação das noções de herança e referência, memória física e psíquica, com os modos de individualização, e a manifestação de sua sexualidade tendo como recorte a compreensão do feminino negro. Ampliando questões de um universo particular para o global, o entendimento do corpo pela existência do feminino na elaboração de um discurso autoral. A instalação Assentamento (2013) é composta por dois fardos de mãos feitas de cerâmica sobre uma estrutura de pallets de madeira cada um deles, em posição oposta, acompanhados contiguamente por dois tablets de cada lado. Os fardos fazem analogia ao conceito de trabalho durante o período de escravidão, funcionando como mercadoria no qual todo o esforço humano negro era absorvido como lenha ardente. No centro fixada a parede, entre os fardos, tem-se a imagem digital impressa de uma mulher,7 em dimensão real (1,80 cm). A artista divide este corpo feminino em cinco partes e recompõe os pedaços de modo desencontrado, unidos por uma costura marcada em linha preta. A mulher encontra-se em três posições distintas: frontal, lateral e costas. O bordado incorpora os sentidos de ‘dar vida’ e de continuidade pela inserção de um coração impresso pelo procedimento técnico da gravura (imagem frontal), um feto realizado pela mesma técnica (imagem lateral) e desenhos de raízes bordadas diretamente no tecido em negro e vermelho ocupando a base (imagem costas). 6. Rosana Paulino é bacharel em gravura (1995) pela Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), especialista em gravura pelo London Print Studio (1998), e Doutora em Poéticas Visuais pela ECA/USP. 7. Mulher negra fotografada durante a expedição Thayer dirigida pelo cientista suíço Louis Agassiz, pautado nos seus registros pelas teorias raciais vigentes, durante o período de 1865 e 1866. 268 | Janaina Barros Silva Viana Vê-se um corpo que busca refazer-se após a violência e destituição de direitos pela escravidão a religar-se com a sua origem cultural, religiosa e familiar. O termo assentamento refere-se à ideia de lugar e de ritual compreendida no sentido do duplo sobrenatural do orixá fixado na cabeça de um filho (a). Desvela-se ainda a presença de dois tablets na extrema direita e esquerda, ao lado externo dos fardos, em “looping”, apresentando o mar como travessia e traduzindo o conceito de assentamento, também, como a ação de um indivíduo instalarse num lugar, ao (re)construir uma história. Um protagonismo diante dos embates entre a cultura hegemônica sobre a hegemonizada na reedificação de uma corporeidade ancestral, cultural e social. Assentamento (2013). Museu de Arte Detalhe Contemporânea de Americana Instalação em técnica mista. Impressão digital, desenho, linóleo, costura, bordado, madeira, paper clay e vidro. Dimensão variável. De Sonia Gomes8 (Caetanópolis/MG, 1948), a obra Mãos de Ouro (2008) é um livro visual e tátil, feito de tecidos, linhas, etc. O título remete às publicações de manuais de atividades de costura, bordado, tricô, crochê, etc., comuns nos anos 70 do século passado, que cumpriam a função de ocupar o tempo ocioso feminino, como também, de acordo com suas habilidades manuais, de organizar a vida e dar sentido estético aos objetos domésticos. Figura-se a ideia da mulher ‘prendada’ e ótima dona de casa cuidando do marido, das tarefas da casa e da educação dos filhos. As páginas do trabalho sugerem aqueles livros de amostras 8. Sonia Gomes reside e trabalha em Belo Horizonte, fez cursos livres em artes visuais na Escola Guignard e na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) durante o período de 1995-1997. Ofício e gênero nas obras de Rosana Paulino e Sonia Gomes | 269 de pontos que conservam os modos de fazer e demonstram certa habilidade manual. Há a sobreposição de cores, níveis de transparência, texturas visuais nas formas estampadas de caráter gráfico e pictórico. O ato de coleta de tecidos distintos e transformados pela urdidura de fios em páginas que compõem o livro. O discurso visual implica de modo sutilmente irônico na maneira em que se dá a construção de gênero e nos modos operativos sinalizadores dessa condição. Têm-se os tensionamentos existentes no embaralhamento entre arte e vida quando se perpassa pelas formas de culturalidades na arte contemporânea a partir do olhar da artista para a tradição popular. Mãos de Ouro (2008) – grafite, caneta, costura, amarrações, tecidos e rendas variadas sobre papel. 48 x 37 cm Os modos de operar a instrumentalidade técnica no jogo entre os atributos materiais dos objetos artísticos, num universo proveniente das artes têxteis (bordado/costura), aparecem num percurso investigativo e poético onde se insere a manualidade na arte contemporânea. Define-se como uma estratégia de ação estética para demarcar uma espacialidade numa arte internacional: “costurando, bordando, ligando, colocando dobradiças entre a visualidade não erudita brasileira e algumas das grandes questões da arte internacional das últimas décadas.” (CHIARELLI, 2002, p.127) 270 | Janaina Barros Silva Viana Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. Do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: O Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultural Material. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2008. CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CHIARELLI, Tadeu. Arte Brasileira Internacional, São Paulo: Lemos – Editorial, 2002. HERKONHOFF, Paulo; HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Manobras radicais. São Paulo: Associação de Amigos do Centro Cultural Banco do Brasil, 2006. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1996. SIMIONI, A. P. C. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e Rosana Palazyan. IN: Proa – Revista de Antropologia e Arte [online]. Ano 02, vol.01, n. 02, nov. 2010. Disponível em: http:// www.ifch.unicamp.br/proa/ArtigosII/anasimioni.html, acesso em:11/07/2014. http://www.rosanapaulino.com.br/wp-content/uploads/2013/11/PDFEducativo.pdf http://www.mendeswooddm.com/artists/19 | 271 Dança contemporânea e o ciclo da arte AILA REGINA DA SILVA* ARTHUR HUNOLD LARA** Resumo: A partir da obra coreográfica realizada em 2013, Corpo sobre tela, de Marcos Abranches, este artigo analisa a relação entre a dança contemporânea e a arte visual modernista de Francis Bacon, cuja vida e obra são bases para a realização do espetáculo de dança. Com o objetivo de aprofundar a investigação do artista plástico começada pelo coreógrafo-bailarino, o artigo apoia-se na arte performática e nas questões da dança contemporânea para mostrar um ciclo de criação artística, onde o dançarino representa a obra de Bacon (re)significando-a pela dança, transpondo as imagens da tela na coreografia e, pela dança, cria uma outra tela original. Palavras-chave: Dança Contemporânea. Performance. Criação Artística. Corpo. Contemporary dance and the cycle of art Abstract: Starting from the choreographic work made in 2013, Corpo Sobre Tela, by Marcos Abranches, this article analyses the relationship between contemporary dance and the modern figurative painter Francis Bacon, whose life and work are the basis for the dance show. Aiming to deepen the investigation of the artist initiated by the dancer-choreographer, this article presents a cycle of artistic creation based on performing art and on contemporary dance issues, whereas the dancer represents Bacon’s work (re)framing by dance, transposing the canvas to choreography and, through the dance, creating a new painting. Keywords: Contemporary Dance. Performance. Artistic Creation. Body. ** Bailarina e mestranda da Pós-Graduação em História e Estética da Arte, linha de pesquisa em Produção e Circulação de Arte da Universidade de São Paulo. ** Professor da FAU-USP e do MAC-USP e orientador responsável da autora. 272 | Aila R. da Silva e Arthur H. Lara Introdução O filósofo Friedrich Nietzsche (ROCKEN, 1844; WEIMAR, 1900) e o compositor Richard Wagner (LEIPZIG, 1813; VENEZA, 1883) já rascunhavam ideias de uma dança comprometida com o corpo e o movimento, algo que libertasse o ser humano das amarras da técnica ocidental civilizada que eram esteticamente rígidas. No século XX, na Europa, alguns grupos seguiram esse raciocínio, como o de Sergei Diaghilev e o de Jean Börlin. O primeiro reuniu os principais nomes do balé do século XX, Anna Pavlova, Vaslav Nijinsky, Michel Fokine e George Balanchine, inovando na linguagem do balé clássico. Diaghilev acreditava que a dança deveria ser o encontro de todas as artes e, além da coreografia, o cenário e a música vinham de encontro ao seu pensamento de vanguarda, para tanto usou Picasso nos figurinos e o jovem Stravinsky nas composições.1 O grupo de Bördan, provindo da Ópera Real de Estocolmo, usufruía de extravagante criatividade, pensamentos e mensagens condizentes com a sua época, entretanto, também como Diaghilev, mantinha a técnica clássica como base principal para o bailado. Ambas companhias tiveram resultados negativos da sociedade, onde o público dos espetáculos vaiava e a crítica era desfavorável. Quando o teórico de dança Rudolf Laban2 (BRATISLAVA, 1879; WEYBRIDGE, 1957) propõe seus novos meios e estudos, que integram artes visuais, música, escrita, espaço cênico e corpo, a ruptura com a técnica clássica dá lugar a um novo modo de enxergar o movimento e, portanto, um novo caminho se abre, livre do antigo sistema técnico e comprometido em totalidade com a busca pela consciência corporal conectada com o sentimento. 1. Referências aos balés Parade, em 1917 com design de Pablo Picasso e música de Erik Satie; e Pulcinella, em 1920, com design de Pablo Picasso e música de Igor Stravinsky. 2. Rudolf Von Laban criou vários centros de pesquisa buscando o retorno aos movimentos naturais na sua espontaneidade e riqueza, e na plena vivência consciente de cada um deles, a acarretar um desenvolvimento amplo e profundo em quem o pratica. Bailarino, renovador da dança e de seu enfoque teatral. Sua pesquisa e metodologia sobre o uso do movimento humano, pela profundidade e extensão, são hoje base para uma melhor compreensão do homem por meio do movimento, modernamente utilizada nos mais diversos ramos da arte e da ciência; dança, teatro, educação, trabalho, psicologia, antropologia, etc. Dança contemporânea e o ciclo da arte | 273 É nesse contexto histórico que o cenário da dança contemporânea começa a se formar. Durante muitos séculos, a dança manteve-se como entretenimento e estava subordinada à música (SOARES, 2002, p.10), hoje a dança contemporânea pode construir-se sobre a mensagem antes da escolha da técnica ou estética final, como afirma a bailarina americana Isadora Duncan: Para mim, a dança não é só a arte que exprime a alma humana através do movimento, mas o fundamento de uma concepção completa de vida, mais livre, harmoniosa, mais natural. Resumirei isso num aforismo: Dançar é viver. (DUNCAN, 1927, p.33) Essa tendência na dança é vista no oriente com o surgimento do Butoh; na América do Norte com a dança moderna; com a visitação da dança contemporânea sobre as danças étnicas asiáticas e africanas e com a valorização das danças regionais no Brasil. A realidade da dança contemporânea caminha junto da arte performática e do teatro, no momento em que todos usam o corpo como base para expressar sua ideia maior. Renato Cohen define o processo performático: À medida que o ator entra no ‘espaço-tempo-cênico’ ele passa a ‘significar’ (virar um signo) e com isso ‘representar’ (é o próprio conceito de signo, algo que represente outra coisa) alguma coisa, podendo ser isto algo concreto – o qual temse nomeado ‘personagem’ – ou mesmo abstrato. (COHEN, 2002, p. 95) É nessa reinvenção que a essência da relação arte-corpo flutua, na resignificação da transmutação de dança em teatro (a exemplo de Pina Baush), do teatro em happening (experiências do Teatro Oficina) e do produto da dança em arte plástica (performances de Trisha Brown fazendo desenhos através da dança). Este artigo propõe-se a analisar, com base na obra de dança contemporânea, a aproximação da dança com a arte plástica. Visa mostrar um ciclo criativo, onde a dança torna-se espelho do trabalho de um artista plástico, representada pelo processo criativo de Marcos Abranches na vida e obra de Francis Bacon e, depois, onde o mesmo bailarino produz uma outra obra plástica, a partir da célula coreográfica. 274 | Aila R. da Silva e Arthur H. Lara Marcos Abranches Marcos Abranches é bailarino e coreógrafo nascido em São Paulo. Fundador da Cia Vidança, passou pela tradicional Companhia de Dança FAR-15 e percorre festivais nacionais e internacionais com experiências na dança que buscam o equilíbrio do ser humano, há 10 anos. Participou de algumas montagens com a FAR-15 e seu primeiro trabalho, enquanto coreógrafo, foi D...equilibrium: solo apresentado em diversos festivais que tem por livre inspiração o livro Cantos Malditos, de Austregésilo Carrano Bueno, que deu origem ao premiado filme Bicho de Sete Cabeças, dirigido por Laíz Bodansky. A história trata de uma personagem que, em dado momento da sua vida, se descontrola e comete diversas ações desarmoniosas, fugindo do padrão social imposto e sofrendo suas consequências. Marcos Abranches tem paralisia cerebral, deficiência física que não afeta seu raciocínio lógico em âmbito algum, embora tenha efeitos sobre sua fala e movimentos. Marcos Abranches, cena de Corpo sobre Tela, 2013. Divulgação Francis Bacon Francis Bacon (DUBLIN, 1909; MADRI, 1992) foi um pintor moderno e marginal. Bacon, desde a infância, sofreu com um pai autoritário e as mudanças de cidades. Embora seja um dos últimos pintores figurativos do seu tempo, ele sempre andou na contramão: foi alcoólatra, homossexual, viciado em jogos e nunca frequentou à academia ou bajulou críticos de arte. Dono de um traço intuitivo e feroz, olhar para uma obra sua é uma experiência que perambula entre o horror da sua realidade e a beleza plástica do momento. Aos 16 anos, foi exilado de casa e passou a viver por diversas cidades da Europa, sobrevivendo de trabalhos domésticos e algum dinheiro que sua mãe conseguia enviar. Em 1926, chega a Berlin onde descobre que pode viver de favores a senhores da sociedade. Um ano depois, chega a Paris, onde entra em Dança contemporânea e o ciclo da arte | 275 contato com Picasso, Braque e os modernistas. Já em Londres, cidade de seus pais, aprofunda suas próprias técnicas (pois é autodidata) e, finalmente, em 1954, é convidado a representar a Grã-Bretanha na Bienal de Veneza e, a partir de então, sua carreira engrena. Bacon, Figure with Meat, 1954 Bacon, (duas partes de) Three Studies for a Crucifixion, 1962 Corpo sobre tela Espetáculo de Marcos Abranches, realizado pela primeira vez em 2013, com base na vida e obra de Francis Bacon, sai da pesquisa corporal do bailarino e materializa-se sob a forma plástica de telas viscerais e únicas. Embora ambos artistas tenham contexto social diferentes, eles partilham a mesma margem da sociedade, a ala destinada aos que não se encaixam nos espaços projetados à massa. Em entrevista sobre sua peça, Abranches diz: Sou livre para o silêncio das formas, das cores na riqueza de pintar uma obra. As cores são vida. Podemos ser mais coloridos na forma de pensar. O mundo ainda está muito escuro pelo lado negativo do pensamento de cada um, todos nós podemos colorir a maneira de pensar e ser mais felizes, pois somos a própria arte. Nossa sociedade, por falta de conhecimento, trata o deficiente como um coitado. Se eu fosse me basear nesse tipo de pensamento, não colocaria meus pés para fora de casa. No meu espaço, não há sofrimento. (ABRANCHES, 2010)3 3. Jornal Folha de S. Paulo, caderno ‘Ilustrada’ em 17 de outubro de 2010. http:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1357480-coreografo-com-paralisia-cerebrale-destaque-em-mostra.shtml 276 | Aila R. da Silva e Arthur H. Lara Abranches parte da zona improdutiva imposta aos deficientes físicos, numa explosão criativa que, pela intensidade, busca o equilíbrio e acha sua própria estética. Já Bacon catalisa a violência imposta pela família e pela sociedade por sua opção sexual e comportamento fora de padrão e pinta a tortura de sua alma encontrando uma estética única e inextinguível no percurso. Individualidade Francis Bacon sempre foi tímido e discreto, desde criança muito afeiçoado as roupas da moda, gostava de estar sempre bem vestido. Na adolescência, demonstrava traços mais femininos que os rapazes da época, o que deixava seu pai constrangido e, portanto, usava da violência física contra o filho para corrigir os modos que considerava inadequados. O artista, desde seus primeiros contatos com a pintura, usa suas referências mais oprimidas para trazer em suas telas o filtro violento com o qual ele está habituado, suas pinceladas são veementes, suas cores são vibrantes, como se a cada naco de tinta houvesse uma entranha do artista exposta. Os temas escassos de Bacon não exprimem pouco repertório. Ao contrário, as telas são consistentes e vão cada vez mais a fundo na intempérie humana mostrando, figurativamente, sob qual prisma Bacon lê a sociedade. Marcos Abranches trilhou um caminho incomum se comparado a outros coreógrafos de seu tempo. De oficinas de Contato e Improvisação a bailarino convidado da FAR-15, em pouco tempo, o trabalho de Marcos Abranches foi reconhecido no meio artístico pela intensidade e originalidade apresentadas. De sensibilidade marcante, o corpo de Marcos move-se como se os membros fossem pincéis e seu corpo inteiro uma tela em transformação constante. Sob outro aspecto, o bailarino catalisa o íntimo do homem, a corda bamba entre equilíbrio e desequilíbrio, graça e brutalidade numa coreografia-tela-performance que flutua sobre o óbvio acadêmico. Ambos artistas têm seus peculiares históricos de vida como marca onipresente, resultando na originalidade das obras. Abranches, ao colocar em seu cenário as telas produzidas pela dança, literalmente mostra que cada obra é única e, se observarmos os dois, lado a lado, enxergamos a unidade e semelhança entre eles. Dança contemporânea e o ciclo da arte | 277 Abranches, ensaio de Corpo sobre tela , 2013. Fotografia Eduardo Knapp/ Folhapress Bacon, Study after Velazquez’s Portrait of Pope Innocent X, 1953 Música, voz e LIBRAS No espetáculo há ambiência sonora, vozes e sons que fazem o espectador imergir na peça e sugerem sentimentos e imagens. Tais sons são interpretados em LIBRAS,4 por Amanda Oliveira, como forma de inclusão social. A participação da intérprete é analisada aqui em dois momentos. O primeiro quando a força da gestualidade não apenas é usada como forma de expressão linguística, mas tem representatividade em cena pelo próprio movimento executado. Além do papel inclusivo que a intérprete executa, a intensidade da gestualidade apresentada na peça coloca Oliveira como parte integrante da cena, vivendo os momentos junto ao bailarino e transmitindo ao público com expressividade teatral. Em segundo momento, o bailarino e a intérprete interagem em cena, extrapolando as barreiras pré-estabelecidas. O bailarino pinta a moça com tinta, trazendo-a definitivamente para o palco e coloca-a em posição de agente performática. O som – ou sua falta – tem papel fundamental no espetáculo, reinterpretálo através das LIBRAS não só torna o ambiente da peça mais acessível a todos, 4. A Linguagem Brasileiras de Sinais (LIBRAS) é reconhecida e aceita como segunda língua oficial brasileira. A língua de sinais se difere das línguas orais-auditivas, uma vez que elas se realizam pelo canal visual e da utilização do espaço, por expressões faciais e até movimentos gestuais perceptíveis pela visão. Note-se aqui que a língua de sinais não faz apenas uso de gestos. 278 | Aila R. da Silva e Arthur H. Lara como permite uma interpretação pessoal para quem não lê LIBRAS. Paul Zumthor ao discorrer sobre a compreensão da voz e da leitura performática diz: Compreender-se, não será surpreender-se, na ação das próprias vísceras, dos ritmos sanguíneos, com o que em nós o contato poético coloca em balanço? Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. (ZUMTHOR, 2007, p. 54. Grifo do autor) Portanto os caminhos de linguagem utilizados para transmitir a mensagem final, não são somente variados, mas permitem cruzar-se para formar um novo signo, para remeter o olhar a um novo prisma e permitir que os diferentes receptores possam ter acesso à compreensão. Conclusão As técnicas de arte vêm fundindo-se e as conexões dos movimentos artísticos aumentam e aliam-se cada vez mais. Essa mistura irrefreável entre objeto e signo, cinestesia e sinestesia,5 (re)construir-se, a constante troca de movimentos e evolução dos mesmos, são reflexões a serem pensadas a cada obra nova. Nesse artigo especificamente, à dança hoje e, por meio da experiência e interação entre coreógrafo, bailarino e envolvidos, a forma está em constante mutação. Merleau-Ponty em seu livro O visível e o invisível traz-nos a concepção de percepção compreendida como ação do corpo: Antes da ciência do corpo – que implica a relação com outrem – a experiência de minha carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a percepção não nasce em qualquer outro lugar, mas emerge no recesso de um corpo. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 21) 5. Em fisiologia, cinestesia é a consciência através da qual percebemos a movimentação especial de nosso corpo, nossos movimentos musculares. Em psicologia, cinestesia é quando um perfume nos lembra determinada cor ou um som nos traz uma imagem qualquer, ou seja, quando um determinado estímulo nos remete à uma determinada memória ou sentimento. Dança contemporânea e o ciclo da arte | 279 Então, tal qual o corpo está em constante transformação, nossa percepção de nós mesmos e do que é externo também está. Se voltarmos a essas mesmas obras daqui algum tempo, as diferenças poderão ser aprofundadas, distinguidas e percebidas. Poderíamos seguir adiante, dentro da obra de cada um e certamente haveria mais a acrescentar. Ver ambos os artistas analisados aqui é como assistir a uma cena de tiro à queima roupa: indelével da memória. Entretanto, nesta mesma cena, Francis Bacon trata da dor, sangue e o desespero da morte; já Marcos Abranches prendese no momento sublime do último suspiro, do marejar de lágrimas, da leveza de perder o peso e entregar-se à própria natureza. A manipulação de técnicas utilizadas por Abranches não só abre espaço às diferentes leituras pela (re)criação de janelas dentro da obra coreográfica, mas, além de tratar da inclusão social, leva os receptores a novos estados da consciência. Referências bibliográficas COHEN, Renato. Performance como Linguagem. Ed. Perspectiva, 2002. DUNCAN, Isadora. Isadora – fragmentos autobiográficos. Porto Alegre: L&PM, 2001. FICACCI, Luigi Bacon. Taschen, 2004. GATTINONI, Rosita. Danse et art contemporain. Paris: Scala, 2011. HUYGHË, René (editor geral). Larousse Encyclopedia of Modern Art, Reedição, Paris: Librairie Larousse, 1967. LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. Ed. Summus, 1978. MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Cosac Naify, 2004. NOBREGA, Terezinha P., Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty. Revista de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. PINHEIRO, Catarina e ROSA, Alda. Estética da subversão e violência nas obras de Francis Bacon e Frida Khalo. Revista de Psiquiatria do Hospital Dr. Fernando Fonseca, 2009. SOARES, Marília. Ballet ou dança moderna? Juiz de Fora: Clio Edições Eletrônicas, 2002. 280 | Aila R. da Silva e Arthur H. Lara VALERY, Paul. Degas, dança, desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2003. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007. Sites http://marcosabranches-vidanca.blogspot.com.br/ – Acessado durante o mês de maio de 2013; http://www.francis-bacon.com/ – Acessado durante o mês de maio de 2013. | 281 Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações HELOISA DE SÁ NOBRIGA* Resumo: A relação de autoria é hoje repensada tanto na moda quanto na arte, visto que em ambas o olhar do observador/usuário é capaz de atuar como cocriador, modificando a percepção estética proposta pelo criador. Neste artigo que faz parte da dissertação de mestrado defendida em agosto de 2011, denominada “Moda vestida de Arte: Um pouco além do efêmero”, abordaremos algumas questões iniciais da autoria em moda com foco nas motivações relacionadas à temporalidade histórica e hierárquicas entre criador, usuário e formador de opinião. Palavras chave: Moda. Autoria. Consumo-Autoral. Fashion, authorship, aesthetics and consumption: some brief remarks Abstract: The relationship of authorship is rethought both fashionable as in art, seen that in both the look of the observer or user is able to act as co-creator, changing the aesthetic perception proposed by the creator. This paper is part of the master dissertation that was defended in August 2011, called “Art Dressed of Fashion: Just beyond the ephemeral”, and intent discuss some initial issues of authorship in fashion and their historical´s temporality motivations addressing hierarchical between creator, user and opinion leader. Keywords: Fashion. Authorship. Authorial Consumption. * Doutoranda em Estética e História da Arte (PGEHA-USP). Mestre em Estética e História da Arte (PGEHA-USP). Docente na pós-graduação Estética e Gestão da ModaECA-USP e nos cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo e Tecnologia em Design de Moda da UNIAN de São Paulo 282 | Heloisa de Sá Nobriga Introdução A Moda e seu sistema podem ser considerados como um conjunto de elementos capazes de refletir esteticamente um determinado tempo num determinado espaço. O vestuário encaixa-se nesta definição, assim como a música, o comportamento gestual, a linguagem (verbal ou não), a decoração de interiores, sendo estes objetos pertinentes, ou não, à esfera mais ampla da Moda. Hoje a moda é um complexo reconhecido por seu braço de capitalismo e consumo. Entretanto, os aspectos da criação englobam fatores que vão além de seu ciclo de consumo e desgaste. Historicamente, a roupa surge da necessidade, acrescida ao misticismo e à significação simbólica, e a Moda da alternância entre o pertencimento e a distinção. Para conseguir entender os conceitos criativos que atuam nessa diferenciação entre o objeto e seu consumo (a roupa e a Moda), pensemos quais são os aspectos utilitários que na atualidade podem ser considerados como necessidades básicas ou naturais de uma roupa (incluindo seus acessórios e adornos, tais como calçados, chapéus, luvas, etc.): proteger contra o frio, ou outros obstáculos naturais, e nos prestar resguardo moral através da sua relação social com o pudor. Por conseguinte, os demais aspectos e objetivos de uso das vestes estariam localizados em instâncias culturais e/ou psicológicas mais complexas (FLÜGEL, 1966). Entretanto, hoje, quem pode afirmar que elege suas vestes buscando apenas os aspectos mais primordiais da roupa? Se assim fosse, para proteção contra o frio bastaria qualquer casaco. Não importaria cor, nem comprimento, muito menos a forma, o modelo ou a modelagem deste. Seria suficiente que tivesse proporção maior do que o corpo que se deseja cobrir e que fosse confeccionado em matéria-prima que proporcionasse boa adequação térmica. Pronto, o problema estaria solucionado. Mas denota-se que vestir-se não é apenas buscar proteção contra o frio e/ ou proporcionar resguardo ao corpo pudico. Vestir-se é buscar individualidade e pertencimento, é cobrir a vaidade, adequando a mensagem de um ou mais corpos com elementos do prazer estético visual que pouco diferem das necessidades estéticas do adorno no homem primitivo. Dessa forma também esclarecemos o quanto é difícil separar a moda de sua estratificação social, por mais que hoje tal critério perceba-se gradativamente Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações | 283 menos relevante do que num passado próximo, e que este não seja o único fator que estimula o seu ciclo na atualidade (BOURDIEU, 2008).1 Neste caminhar, vamos tentar estabelecer algumas considerações acerca das relações entre a criação, o consumo e a formação de opinião na difusão de aparências, nos balizando pela funcionalidade e/ou esteticidade envolvidas no processo de individuação e pertencimento, assim como na autoria do produto de moda. Desenvolvimento Desde que o homem primitivo passa a estabelecer códigos de diferenciação e individualização nas suas vestes, é possível deduzir um distanciamento objetivo à mera funcionalidade; com um osso-troféu, status e poder, por exemplo, podem ser simbolicamente acrescidos ao seu vestir e, de acordo com as colocações de Osborne (1970), Wilson (1985), McCloud (2004) e Gombrich (2008), levam ao estreitamento com questões pertinentes à esfera da Arte, já que possuem um enlevo de transcendência. Se voltarmos às ideias desses autores, a partir do momento em que o vestir deixa de ser compreendido como objeto unicamente utilitário, ele passa a pertencer a uma esfera relativa ao universo estético, que poderia ser relacionado à sua artisticidade. A moda pode, neste sentido, ser considerada uma expressão artística dentro de uma linguagem, sendo indissociável de seu tempo tal qual a Arte. Corroborando, Gombrich (2008, p. 15) diz que “Nada existe realmente a que se possa dar o nome Arte. Existem apenas artistas”, e Poiret2 declara não ser meramente um costureiro, mas sim um artista (SEELING, 1999, p. 24). Quais as relações que podemos estabelecer entre as duas afirmações? A princípio, e a partir dos conceitos de Duchamp, existe a necessidade de um julgamento interior daquele que faz (agente-criador) estabelecendo se essa 1. Para Lipovetsky (1998), a ascensão social não é importante na Moda Consumada (contemporaneidade), entretanto, Baudrillard (2005), Simmel (2008) e Bourdieu (2008) discordam deste argumento, confirmando, que a classificação social (pertencimento) mescla-se com o desejo de individuação na configuração da Moda. 2. Paul Poiret: estilista francês conhecido como o “Imperador da Moda”, a quem é atribuída a retirada do espartilho, evento importantíssimo para a reviravolta da Moda que culminará na evolução da “Moda de Cem Anos” para a “Moda Aberta”. 284 | Heloisa de Sá Nobriga obra individual deve, ou não, receber classificação como Arte. A segunda é que, se um artesão3 exerce sua função com técnica e habilidade, embora desconheça os mecanismos diferenciais institucionalizados de consagração, ele não conseguirá posicionar seu trabalho na classificação de Arte (com inicial maiúscula), a menos que haja intervenção de terceiros (crítica e público). Tal mecanismo poderia incorrer nos “equívocos do elitismo” (SANTAELLA, 1990), já que o “fazedor” (agente-criador) depende unicamente, neste caso, do julgo externo do sistema constituído para que haja o transpasse hierárquico (BORRIAUD, 2009). O que culmina na separação dos agentes da moda, proposta por Bergamo (1998), em consumidores, criadores e formadores de opinião, que, [...] ao mesmo tempo em que dá forma ao campo da moda, instaura uma dinâmica própria ao mercado: a segurança de seu funcionamento e a crescente de cada segmento - criador ou formador de opinião - residem na impossibilidade de resolução desse conflito (BERGAMO, 1998). Entretanto, se pensarmos no período anterior ao início da alta-costura (A Moda de Cem Anos4), a relação é justamente inversa, pois até o seu surgimento e de seus criadores, cada pessoa era agente direto nas escolhas de seus trajes e planejava individualmente a estética de seu vestir, não recorrendo às ideias déspotas de renovações impostas por outrem – o vestir respondia individualmente a um conjunto de aculturações e influências externas, sendo um composto de desejos individuais autorais e representações coletivas de pertencimento (Moda Aristocrática5). Lembremos também que a vestimenta era, antes do processo industrial, produto de fabrico bastante oneroso. Adquirir um casaco ou um vestido de um bom alfaiate/artesão era adquirir um bem duradouro, às vezes, passado de uma geração a outra, podendo ser utilizado como moeda de troca financeira em penhores, ou como item testamental (STALYBRASS, 2004). Até a Revolução Industrial, 3. Entendendo o artesão como um manipulador de elementos da artisticidade. 4. Termo cunhado por Lipovetsky em “O Império do Efêmero” (1989) para a moda surgida com os primeiros estilistas que passam a ditar formas e tendências para a Moda. 5. Denominação cunhada por Lipovetsky para o período anterior ao domínio das escolhas estéticas da Moda pelos estilistas e criadores. Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações | 285 não havia maquinário que permitisse a produção seriada desse tipo de objeto e, assim sendo, sua produção artesanal dificultava tanto a evolução de modismos quanto a aquisição de peças diferenciadas pela maior parcela da população. Observar a moda do passado – não só do séc. XVI, mas também a dos períodos precedentes – numa perspectiva atual não pode deixar de desconcertar e, de certa maneira, abalar muitas das convicções que ingenuamente alimentamos acerca da indumentária daqueles tempos. Mas é precisamente esta «perturbação» que é frutífera, pois ensina-nos, melhor do que qualquer tratado histórico ou qualquer pesquisa antropológica, até que ponto foram alteradas as relações entre moda e sociedade, entre moda e ritmos temporais ao longo dos séculos. A relação que nos parece ter sido mais alterada é, precisamente, a temporal – habituados como estamos a ver mudar de ano para ano, para não dizer todos os meses, as nossas modas, ficamos fascinados perante as imagens que nos mostram a persistência no tempo do vestuário de então (DORFLES, 1988, p. 112). Assim, as vestes podem ser consideradas como testemunhos da forma de pensar de uma época, e a classificação social será fortemente marcada tanto pela mimese quanto pela periodicidade com que a substituição por novos itens é determinada pela elite. Na “Moda Aristocrática”, atestando pessoalidade e identidade ao novo bem, a pretendente ao vestido transmitia a ideia geral ao profissional encarregado da confecção, que por sua vez o executaria sob as medidas da cliente, tendo como resultante um produto único e exclusivo, idealizado por seu usuário e produzido por um artesão. Essa mesma peça depois de pronta teria divulgação, exibição e apreciação restritas ao círculo social de pertencimento de nossa protagonista e, de acordo com o seu nível de influência (status e poder), os atributos do novo vestido poderiam, ou não, ser copiados, ou adaptados, o que alimentaria o ciclo de mimese da moda numa velocidade muito mais controlada daquela que hoje conhecemos. Tal realidade permanece até o final do século XIX com a chegada da “Moda de Cem Anos”. Worth,6 estilista anterior a Poiret, é considerado o primeiro a criar e propor novos modelos, colocando-o na posição elitizada de um formador de opinião. 6. Frederick Charles Worth, estilista inglês considerado o primeiro criador de moda. Responsável pela caracterização da alta-costura tal como a conhecemos hoje e pelo início da “Moda de Cem Anos”. 286 | Heloisa de Sá Nobriga Ele adquire semelhança a um pintor que, ao elaborar um quadro sem ter tido qualquer encomenda prévia ou saber se seu trabalho será aceito, antecipa-se, mostrando-se como um propositor de ideias. Agindo assim está, de certa forma, desvinculado do circuito mercadológico dos objetos de consumo comuns ou funcionais do qual o vestuário cotidiano massificado é indissociável. Assim se paraleliza aos objetos de Arte onde o valor simbólico não se condiciona ao seu valor de produção e toda sua magia se debruça no fato de não ter outra função que a fruição singular. Se analisarmos os vestidos dos primórdios da alta-costura, levando-se em conta apenas os quesitos criatividade e requinte formal talvez pudéssemos considerá-los “obras de arte”, entretanto, é curioso refletir sobre essas peças, já que, além de admitirem considerações referentes ao “belo”, concomitantemente asseguravam status a quem pudesse adquirir um vestido de noite “assinado”, assegurando pela individualidade e exclusividade do produto a distinção advinda de seu posicionamento social. Lembremos que dentro da Arte institucionalizada a assinatura do artista tem o poder de autenticar o objeto, garantindo-lhe posicionamento hierárquico. O esmero estético, aliado à postura crítica de seu próprio tempo, afasta-os da moda vigente e os aproxima da artisticidade, porém, o fato de esses criadores serem também empresários contribui para transformar significativamente o modo de veiculação e circulação de sua categoria de produtos, o que dificulta sua consolidação como objeto artístico. Independentemente dos vestidos de alta-costura serem considerados belos ou não, a transferência de um fazer artesanal anônimo para a batuta de um pensador/ditador de formas (a partir de Worth) deu ao vestir uma concepção elitista apoiada em inovações estéticas e, desse modo, mais tangente à Arte. Mas, justamente por não se tratar de uma pesquisa estética autônoma, independente de um mercado de consumo, pode-se entender que este equívoco – de denominar automaticamente o fazer da alta-costura como Arte – traduz-se pelas dinâmicas de poder e classificação social como o ponto crucial da moda contestado por Lipovetsky (1989) e descortinado por Bourdieu (2007), Baudrillard (2008) e Simmel (2008), posto que, se não primordial, ao menos inseparável dos mecanismos da moda. A Arte é até meados do século XVIII algo feito pela elite e para a elite e, neste contexto, a proposta dos novos estilistas – mesmo se tratando de vestuário – enquadra-se perfeitamente. A inovação das maisons consiste principalmente em transferir a arte do fazer (roupa) para a arte daquele que faz (moda), de modo Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações | 287 que não é a raridade do produto, mas a do produtor que trará a aura de consagração ao produto (BOURDIEU, 2007, p. 146 a 152). Não por acaso, Poiret surge em um momento no qual o prêt-à-porter começa a tomar vulto graças à popularização do maquinário e do sistema industrial. O que o diferirá na emergente industrialização será o foco em um público seleto – a elite econômica e cultural – e uma prática condizente com os desejos destes com a feitura oportuna de obras únicas, sem recorrer a cópias ou réplicas, garantindo-lhes posição social pela exclusividade. Devemos ressaltar o quanto a Moda e seu sistema se encaixam no formato de produção capitalista, alicerçada pela larga escala produtiva, na padronização e na constituição cíclica, que impulsiona e é impulsionada pela máquina do consumo. Essa proximidade cotidiana advinda de seu apelo pessoal dá ao vestir uma familiaridade estética tangível ao homem médio e seu vínculo com o design só faz estreitar essa condição. O desejo do novo, a vontade de individualização e de, ao mesmo tempo, fazer parte de determinado grupo fazem a sociedade de consumo implicar a renovação constante de seus produtos e, consequentemente, também dos impulsos produtivos. Os designers fazem o intermédio para que isso aconteça, já que a criatividade e a estética aparecem como pontos centrais na inserção das novidades constantes que propulsionam a ação da compra, transformando o que era necessidade em desejo, amparado por iscas de superfície. Este processo faz com que o sujeito mecanizado pela Revolução Industrial acredite que ser criativo é cada vez mais difícil, principalmente em razão da velocidade com a qual a inovação é desejada e imposta e, diante desse cenário, pessoas dotadas de tal potencial são transformadas em verdadeiras divindades (MASI, 2000). O estratagema ditatorial proposto por Worth não foge a esta lógica, que se baseia na apropriação de elementos já efetivos no sistema da moda (individualização e pertencimento), em busca de reconhecimento e valorização social, com o auxílio da utilização de elementos de artisticidade e esteticidade. Mesmo com a estetização da vida cotidiana e com a apreensão do design pelo campo das artes, o fechado circuito de críticos e iniciados acadêmicos nas artes visuais faz com que, em muitos casos, seus princípios estéticos sejam absorvidos apenas por conhecedores, distanciando leigos e admiradores ocasionais de sua livre apreciação, garantindo, porém, que as estratificações sociais e culturais permaneçam inalteradas. 288 | Heloisa de Sá Nobriga Na verdade, se alguns gêneros são considerados “puros”, é porque foram objeto de demoradas e duradouras práticas de “purificação”. Ou seja, de rupturas entre, de um lado, a prática e a contemplação estética e, de outro lado, a fabricação e o consumo de utilidades. Ora, essas rupturas são eminentemente sociais, pois resultaram de incessantes lutas que geraram aproximações e distanciamentos, e cujo efeito final veio a ser a formação de “circuitos artísticos” sob a forma de pequenas igrejas relativamente isoladas do conjunto da sociedade e mesmo do conjunto das classes abastadas e cultivadas. É o mesmo que dizer que tais rupturas ou partições produziram a arte pura, produzindo-a como arte “exclusiva”, ou seja, como arte que “exclui” socialmente os não iniciados, da mesma forma como em religião se distinguem o sagrado e o profano. (DURAND, 1988, p. 124, grifo nosso) Com o surgimento do conceito de apropriação da vida pela arte, há um discurso e um movimento a favor de sua democratização, concomitante à estetização da vida cotidiana. Porém, o que observamos é que o público leigo não se aproxima de imediato a propostas vanguardistas, conceituais ou experimentais, justamente por não compreender as motivações, os mecanismos, os objetivos e as correlações de espaço-tempo que se vinculam à experiência cotidiana na obra de arte contemporânea. Considerações finais Aceitar certas categorias de produtos de moda como objeto de arte pode ser vista como a autenticação da obra de arte acessível a qualquer pessoa, autorizados pela estetização da vida cotidiana, que tende a pasteurizar os conteúdos em favor das formas. Contraditoriamente, sobretudo a partir da consolidação da “Moda Aberta”,7 a junção da Moda com a Arte corre no revés da democratização do sistema da 7. Termo cunhado por Lipovetsky em “O Império do Efêmero” (1989) para a moda surgida após os anos 1960, em que todo o esquema de influências e tendências da moda se modifica, induzido por uma série de novas características sociais, onde se quebra a ditadura dos estilistas e surge uma moda mais livre, em que o círculo de referências e influências se multiplica e torna-se mais democrático. Ver Capítulo II. Moda, autoria, esteticidade e consumo: breves considerações | 289 Moda, pois com este artifício os conteúdos tornam-se novamente inacessíveis, mantendo a elite como detentora das escolhas, percepções e entendimentos dos elementos formais que são garantias de distinção, com a única diferença de que não mais pelo capital econômico, mas pelo capital cultural (BOURDIEU, 2008). Fatos estes podem ser considerados justificativos da aparição do consumidor autor (MORACE, 2009) e sua importância contemporânea, apontando novos caminhos para o estudo da autoria, circulação e veiculação do produto de moda. Referências bibliográficas BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de consumo. [trad.] Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2008. BERGAMO, Alexandre. O campo da moda. Revista de Antropologia, v. 41, n.2,disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext &pid=S0034-77011998000200005&lng=en&nrm=iso.> BORRIAUD, Nicolas. Estética relacional. [trad.] Denise Bottmann. São Paulo, Martins, 2009. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. [trad.] Daniela Kern; Guilherme. J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. . A produção da crença: contribuição para uma economia de bens simbólicos. Porto Alegre: Zouk, 2008. DORFLES, Gillo. A moda da moda. São Paulo: Martins Fontes, 1988. FLÜGEL, J.C. A psicologia das roupas. [trad.] Antônio Ennes Cardoso. São Paulo: Mestre Jou, 1966. GOMBRICH, E.H. A História da Arte. [trad.] Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2008. LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo. Cia das Letras, 1989. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: MBooks, 2004. MORACE, Francesco. Consumo autoral: as gerações como empresas criativas. [trad.] Kathia Castilho. São Paulo: Estação das Letras e Cores Editora, 2009. OSBORNE, Harold. Estética e teoria da Arte: uma introdução histórica. [trad.] Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix,1970. 290 | Heloisa de Sá Nobriga SANTAELLA, Lúcia. (Arte) & (Cultura): equívocos do elitismo. São Paulo: Cortez, 1990. SEELING, Charlote. Moda. O século dos estilistas 1900 -1999. Colonia: Könemann Verlagsgesellschaft mbH, 1999. SIMMEL, Georg. Filosofia da Moda e outros escritos. [trad.] Artur Morão. Lisboa: Texto e Grafia, 2008. STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: Roupas, memória, dor. [trad.] Tomás Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. WILSON, Elizabeth. Enfeitada de sonhos. Moda e modernidade. [trad.] Maria João Freire. Lisboa: Edições 70, 1985. | 291 Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento ARACELI BARROS DA SILVA JELLMAYER BEDTCHE* LISBETH REBOLLO GONÇALVES** Resumo: Este artigo apresenta análise das contribuições do crítico de arte argentino, Jorge Romero Brest, para o panorama artístico brasileiro, estabelecendo aproximações políticas e culturais entre Brasil e Argentina. Enfatiza-se também a importância da Revista argentina Ver y Estimar como veículo de difusão das ideias vanguardistas. Abordam-se, ainda, a atuação de uma crítica de arte especializada no Brasil, como a de Antonio Bento de Araújo Lima, além de uma iniciativa cultural privada atuante no processo de divulgação da arte abstrata como linguagem universal. Constituem as principais fontes utilizadas: a Revista Ver y Estimar e artigos de autoria de Antonio Bento publicados em 1950 no Jornal O Diário Carioca. Palavras-chave: Revista Ver y Estimar. Abstracionismo. Romero Brest. Antonio Bento. ** Mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA). Doutoranda pelo Programa de PósGraduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM USP). ** Professora titular da Universidade de São Paulo. Foi Diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo de 1994 a 1998 e de 2006 a 2010. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA; Vice Presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte – AICA e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM USP). 292 | Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves Reflexiones sobre la crítica de arte: las experiencias de Romero Brest y Antonio Bento Resumen: En este artículo se presenta un análisis de las contribuciones del crítico de arte argentino Jorge Romero Brest para la escena artística brasileña, proponiéndose aproximaciones políticas y culturales entre Brasil y Argentina. También acentuamos la importancia de la revista argentina Ver y Estimar como un vehículo para la difusión de ideas vanguardistas. Este artículo se ocupa también de las producciones de una crítica de arte especializada en Brasil, como la propuesta por Antonio Bento de Araújo Lima, además señalamos la presencia de una iniciativa cultural privada activa en el proceso de difusión del arte abstracto como un lenguaje universal. Son las principales fuentes utilizadas: la Revista Ver y Estimar, artículos escritos por Antonio Bento publicados en 1950 en el Diario Carioca. Palabras-clave: Revista Ver y Estimar. Abstraccionismo. Romero Brest. Antonio Bento. Introdução O presente artigo tem por objetivo identificar a produção teórica, tanto no Brasil quanto na Argentina, para a tentativa de construção e entendimento de uma arte abstrata como linguagem universal, após a Segunda Guerra Mundial. Estabelece-se também uma aproximação política entre ambos os países, Brasil e Argentina, considerando-se uma atuação diferenciada da iniciativa privada brasileira na criação de órgãos culturais. À medida que avançamos no estudo da arte abstrata no Brasil, torna-se importante correlacionar a atividade crítica de Brest com a produção local, na tentativa de evidenciar as trocas culturais entre ambos os países no contexto da divulgação e promoção do abstracionismo. Junto com a fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em julho 1948, instituía-se o debate figuração x abstração, campo em que se deu a crítica elaborada por parte do crítico Antonio Bento, detentor de coluna regular no jornal O Diário Carioca. A Bienal, por sua vez, foi a via pela qual se deu o contato e, por conseguinte, um embate com a arte estrangeira. A abstração foi inserida e acabou por se afirmar por meio da intensa polêmica com a arte figurativa de pintores modernos brasileiros. Com a Bienal, predominou o espírito de liberdade, e a ideia que prevaleceu foi a de ser a Bienal um acontecimento de atualização para a arte brasileira. Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento | 293 Embora existam alguns estudos sobre abstração no Brasil, como o de Leonor Amarante, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale, não há até o momento uma produção que correlacione os apontamentos críticos de Brest com as produções locais, como as de Antonio Bento, por exemplo. O contexto histórico A partir da Segunda Guerra Mundial, mudanças significativas nas esferas política, econômica e social modificaram as relações internacionais mundiais, assim como demudaram o campo artístico. Ao final da Guerra, países como Brasil e Argentina apresentavam, em alguns aspectos, importantes semelhanças. Houve um retorno à democracia, com os presidentes de ambos os países, coincidentemente militares eleitos pelo voto direto.1 Soma-se a isso, o fato de que desde a década anterior, ambas as nações experienciavam o crescimento da atividade industrial e uma atmosfera favorável ao seu beneficiamento e desenvolvimento. O centro da cultura artística mundial, e, por conseguinte do mercado de arte, deslocou-se de Paris para Nova Iorque. Como mostra Giulio Carlo Argan, as tendências não figurativas (mais imunes aos conteúdos e características nacionais) passaram a angariar um número cada vez maior de adeptos. A arte se configurara como ambiente profícuo à regeneração do pragmatismo alienante da vida cotidiana: se por um lado a arte assumia dimensões ativistas e objetivas, por outro ela propunha o domínio do espiritual, do criativo. Como fonte teórica, explicitasse a importância da Revista Ver y Estimar, dirigida por Jorge Romero Brest,2 contribuindo para a construção de um 1. Com o fim do Estado Novo (1937-1945) chefiado por Getúlio Vargas, os brasileiros reencontravam-se com a democracia, elegendo para a presidência do país o general Eurico Gaspar Dutra, candidato do Partido Social Democrático. Em 1951, Getúlio Vargas retorna ao poder, com mandato até 24 de agosto de 1954. No mesmo período, na Argentina, 1946, Juan Domingo Perón, assumia o governo. Geralmente se divide a gestão econômica do governo de Perón em duas fases. A primeira cobre o período 1946-1949 e a segunda o período 1950-1955. 2. Jorge Aníbal Romero Brest nasceu em 02 de outubro de 1905 em Buenos Aires, tendo contribuído para a divulgação da arte abstrata na Argentina até seu falecimento em 12 de fevereiro de 1989, em sua cidade natal. Brest foi fundador e diretor da Revista Ver y Estimar, que teve quarenta e quatro números publicados ao longo de sua existência 294 | Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves pensamento de vanguarda na Argentina, assim como a atuação de uma crítica especializada brasileira, com importantes publicações e periódicos acerca dos rumos e desenvolvimento de uma arte abstrata no país, como a realizada por Antonio Bento de Araújo Lima,3 Sérgio Milliet e Mário Pedrosa, entre outros críticos de renome, por exemplo. Um encontro cultural: do regional ao universal Para a uma breve análise do processo de estreitamento das relações entre Brasil e Argentina, aponta-se primeiramente como um importante marco a ser considerado: a presença do crítico Jorge Romero Brest em solo brasileiro, em fins de 1940. Tal presença teria corroborado para a legitimação das correntes modernistas, com abertura para o abstracionismo como ápice de uma arte que se apresenta essencialmente por formas, através de um discurso progressista de âmbito internacional. A partir de uma trama regional, deu-se a interação entre artistas, críticos e instituições na criação e divulgação da arte abstrata como linguagem universal. Para Aracy do Amaral,4 a efervescência cultural paulista de fins dos anos de 1940 e as palestras proferidas pelo crítico no MASP foram de salutar importância para o surgimento da arte concreta brasileira. Quanto aos programas das conferências proferidas no MASP, consistiam em um balanço de meio século de pintura, em que a partir dos ensinamentos de Picasso e Matisse, perpetuaram-se quatro falsos ideais na história da representação: o neo-humanismo, o neorromantismo, o neonaturalismo e o neorrea(1948-1953 e 1954-1955). Brest pretendeu conceder à sua publicação um caráter crítico e investigativo capaz de impulsionar o desenvolvimento da arte abstrata, que naquele momento encontrava resistências e questionamentos dentro do sistema oficial da arte. Deste modo, Ver y Estimar, constituiu um marco importante para a propagação e desenvolvimento do discurso crítico, personificando as elucubrações e anseios em torno do abstracionismo. 3. Antonio Bento de Araújo Lima, jornalista, escritor e crítico de arte, nasceu em Araruna na Paraíba em 5 de outubro em 1902 e residiu, a partir da década de 1920, na cidade do Rio de Janeiro, até seu falecimento em 1988. 4. AMARAL, Aracy. (org.). Projeto Construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro/São Paulo: Museu de Arte Moderna/Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1977. Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento | 295 lismo. A arte baseada nestes ideais era para o crítico, uma arte sem autenticidade. Consequentemente, o balanço da história da arte argentina era negativo, por ser uma arte proveniente de um passado pré-hispânico pobre. Para Brest, entre o velho e o novo em artes plásticas figurava a ideia da abstração, entendida como a autonomia da linguagem. Neste ponto, surgem as distinções entre o abstrato e o concreto, o orgânico e o inorgânico, o funcional e o expressivo. Todas essas abordagens permitiam a Brest marcar a dicotomia entre esse novo momento histórico e o rumo das artes plásticas na América Latina. A formação de um legado cultural autônomo A percepção de Brest sobre a realidade brasileira em contraposição ao cotidiano cultural argentino possibilita-nos realizar algumas aproximações e distanciamentos quanto à iniciativa privada e estatal de ambos os países no campo das artes. Brest divulgava através das páginas da revista Ver y Estimar a vontade dos brasileiros em consolidar um projeto de caráter modernista. Na publicação do número 26, de 1951, o crítico mostrava-se intrigado com o processo singular e expressivo de implementação de novos museus no Brasil, ou seja, empreendimentos financiados por capitais privados e subsídios públicos. A criação, em 1947, sob o patrocínio do empresário de comunicações Assis Chateaubriand (1892-1968), do Museu de Arte de São Paulo desempenhou importante papel, ao abrigar a mais valiosa pinacoteca reunida no cenário mundial da época. A iniciativa do empresário financiou a vinda do casal Lina Bo e Pietro Maria Bardi para a organização de um novo espaço cultural, assim como a aquisição de importantes obras de significativos pintores europeus de várias épocas, constituindo o mais importante acervo do gênero na América do Sul. Para a formação dessa cultura cosmopolita, contribuíram também a criação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu de Arte Moderna de São Paulo (Núcleo gerador das bienais de artes plásticas), ambos em 1948. Brest acompanhou rigidamente todos estes projetos: as conferências, os cursos, as compras de obras e publicações realizadas pelo MASP, além da criação do MAM-SP, sobretudo a sua exposição inaugural, “Do Figurativismo ao Abstracionismo”, realizada em 1949. Léon Degand, primeiro diretor do MAM de São Paulo, era filiado às correntes francesas da abstração e ao convidar para a exposição em sua maioria artis- 296 | Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves tas franceses, contribuía decisivamente para o conhecimento desta corrente no Brasil, fortalecendo o caráter didático-informativo das primeiras bienais. A exposição organizada por Léon Degand também foi apresentada em Buenos Aires no Instituto de Arte Moderno (IAM), instituição fundada em 1949 e financiada exclusivamente por Marcelo De Ridder. O Instituto mantinha um projeto diferenciado com a presença de artistas nacionais e estrangeiros, alguns nem sempre consagrados. Romero Brest acompanhou também de forma bastante próxima o nascedouro e desenvolvimento do IAM, através de Ver y Estimar. Porém, para Brest o IAM não foi capaz de representar um projeto realmente moderno, pois o critério para a eleição de exposições, assim como os textos dos catálogos e os conjuntos selecionados para os salões “A Jovem Pintura Argentina” (prêmio que Ridder sustentou de 1949 a 1959) não estimulavam a projeção de uma arte vanguardista. Ao contrário da dinâmica paulista, Ridder, na opinião de Brest, executava apenas um projeto de cunho romântico, individualista. Em São Paulo, instituía-se uma nova modalidade de mecenato, vinculado à indústria e aos setores emergentes da sociedade paulista, que buscavam projetar-se em um mundo econômico através de dispositivos culturais. Romero Brest e a consolidação de um projeto vanguardista brasileiro A Revista Ver y Estimar ficou conhecida por constituir um novo canal de difusão da arte contemporânea do período, auxiliando os leitores na apreciação estética e na elaboração de um pensamento crítico sobre o panorama estético local e mundial. Romero Brest, através de sua revista, revelava-se extremamente contrário aos partidarismos, determinismos e tradicionalismos impostos à arte argentina. O fato era que, no que tange às artes, a Argentina assumira uma posição introvertida, posicionando-se às margens dos eventos internacionais. Coube à heterogeneidade temática de sua revista romper as barreiras históricas e geográficas impostas pelo regime peronista, ao analisar indiscriminadamente os expoentes de uma arte latino-americana, europeia ou norte-americana. Foi somente em 1952 que se promoveu um significativo envio de obras para a participação da XXVI Bienal de Veneza. Tal realidade, em termos compa- Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento | 297 rativos, demonstrava que nem a gestão privada, nem o deficitário projeto cultural peronista eram capazes de sustentar um projeto tão atrativo e aglutinante quanto o brasileiro: El proyecto paulista no sólo era avasallador como emprendimiento sino que también asombraba a Jorge Romero Brest la voluntad institucional de confrontar las numerosas líneas vinculadas a la definición de lo moderno. Recuérdense las exposiciones de Alexander Calder en Río y la de Max Bill en San Pablo a fines de los 40 y principios de los 50. Para JRB éste era un espacio de acción claro y específico que se articulaba con su propio programa moderno e internacional de cultura y lo legitimaba. Espacio que le era negado, al igual que a otras tendencias progresistas del ámbito de la cultura argentina, en el medio local. (GIUNTA, 2005, p. 39) Pode-se afirmar, portanto, que o desenvolvimento da arte abstrata no Brasil, seguiu caminhos diversos daqueles percorridos pelos argentinos. Ainda que o governo brasileiro não fosse adepto do movimento, valorizando uma arte nacionalista, como também o fez o governo Perón, o diferencial era a porcentagem de envolvimento do setor privado em consonância com subsídios públicos, notadamente na gestão de Eurico Gaspar Dutra.5 Além disso, a criação do movimento de Arte Concreta, com Waldemar Cordeiro, Luís Sacilotto, Geraldo de Barros e outros importantes nomes, em fins de 1949, também contribuiu para o fortalecimento e afirmação do modernismo brasileiro. Suas influências transcenderam a década de 1950, sendo visível a opinião do grupo em 1961, através da fala de Cordeiro no II Congresso de Críticos de Arte.6 O Manifesto 5. As ideias gestadas em 1945 tiveram a sua consolidação efetiva no Governo Dutra (31/01/ 1946-31/01/1951), prolongando-se para além do retorno de Vargas em 1951. 6. De 12 a 15 de dezembro de 1961 realizou-se, por ocasião da 6ª. Bienal de São Paulo, o II Congresso de Críticos de Arte, realizado pela Associação Brasileira de Críticos de Arte, com patrocínio do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Tal evento dispôs da presidência geral de Antonio Bento de Araújo Lima, e teve por tema comum: A problemática da Arte Contemporânea. Integraram a lista de convidados: Francisco Matarazzo Sobrinho (Presidente da Bienal), Mário Pedrosa (Diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo), Aloísio de Paula (Diretor do Museu de Arte Moderna do Rio), José Roberto Teixeira Leite (Diretor do Museu Nacional de Belas Artes), Ícaro de Castro Melo (Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil), dentre outros. 298 | Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves Ruptura seria assinado pelos artistas concretos em 1952. Porém, desde 1948, Samsor Flexor já se dedicava à pintura abstrata, fundando na sequência o ateliê Abstração. O Rio de Janeiro, entre 1947 e 1948, contava com a presença de artistas concretos (Abraham Palatnik, Ivan Serpa etc) ligados ao crítico de arte Mário Pedrosa profundo defensor e divulgador da arte concreta no país. O panorama artístico brasileiro através das páginas do Diário Carioca e a importância das Bienais Em fevereiro de 1950, Antonio Bento afirmara em sua coluna no Diário Carioca, que o movimento artístico em São Paulo, notadamente em questão de exposições, permanecia melhor que no Rio de Janeiro. O Museu de Arte Moderna e o Museu de Arte de São Paulo recebiam um fluxo intenso de visitantes, ao contrário da capital carioca. O evento considerado ápice desta rápida fermentação foi a Bienal Internacional de Artes Plásticas de São Paulo, ligada ao MAM-SP e realizada pela primeira vez em 1951, como gesto do industrial Francisco Matarazzo Sobrinho. Lourival Gomes Machado, diretor artístico da 1ª mostra e encarregado de organizar o texto do catálogo da primeira versão, afirmava que o propósito da Bienal era colocar a arte moderna do Brasil em contato com o circuito internacional e, ao mesmo tempo, situar São Paulo como centro artístico internacional. Assim, os artistas ficariam informados sobre o que ocorria em Paris e Nova Iorque e também sobre o que se passava na América Latina. Por ocasião da I Bienal, Brest foi convidado por Ciccillo Matarazzo a participar como membro do Júri. Nesta primeira edição, a Argentina, por conta do marasmo cultural imposto pelo peronismo, não participou com o envio de obras. Brest teve a oportunidade de utilizar a legitimidade adquirida no ambiente paulista para marcar uma adesão total à causa abstrata, argumentando e defendendo a outorga do primeiro prêmio em escultura à obra Unidade tripartida de Max Bill. Deste modo, o posicionamento de Brest frente à I Bienal paulista foi de vital importância para a evolução da arte abstrata brasileira. A sua figura de estudioso sério e reconhecido, juntamente com uma atuação marcante em Ver y Estimar, constituiu meio relevante de inserção no cenário internacional, estabelecendo contatos com distintas personalidades no âmbito da cultura. O número 26 da revista trazia uma crítica elogiosa aos esforços empreendidos por Francisco Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento | 299 Matarazzo e sua esposa Yolanda Penteado em desviar a geografia das artes para São Paulo. Tratava-se de um grande esforço para promover a participação de artistas e obras europeias e americanas em edições futuras da Bienal paulista. Consoante Kátia Canton,7 a Bienal paulistana exerceu um papel de referência ao divulgar e expor aos brasileiros ao que havia de mais novo e significativo na arte internacional. O prêmio em sua edição inaugural à escultura Unidade Tripartida foi um reflexo do impacto causado por Max Bill com suas formas geométricas e matemáticas. Esse abstracionismo rigoroso influenciara definitivamente as artes brasileiras. A sua obra tornou-se um símbolo que corroborou para o desenvolvimento da arte construtiva brasileira a qual já passava por um processo de expansão desde o desenvolvimento da arquitetura moderna brasileira dos anos de 1930 e 1940. Considerações Finais De fato, as influências da arte abstrata transcenderam o circuito europeu e, no Brasil, assumiram características e dimensões bastante peculiares. Se em Nova Iorque a grande questão era por qual motivo a arte abstrata consolidara-se de forma tão unânime, se por convicção ou gosto, no caso do Brasil, o problema era de outra ordem. Aqui o que permanecera era a dúvida sobre a capacidade da arte abstrata em expressar a preocupação com o homem e os problemas sociais, principal inquietação dos figurativos. A conotação alienada, individualista impingida aos abstratos, desde fins do Estado Novo, fortalecia a ideia de uma arte frágil e pouco útil à sociedade como instrumento de mudanças e crítica social. Tal imagem fortalece-se no final da década de 1950, quando o Brasil, sob a presidência de Kubistchek, busca um novo padrão de desenvolvimento e industrialização proposto pelo plano de Metas. É fato que, ao tornar-se centro de atração para todos os artistas do Brasil e do mundo, a Bienal pôde, por sua vez, despertar também um movimento interno de aproximação artística entre as diversas províncias culturais do país. Deste modo, para além das fronteiras nacionais, foram de grande importância as intervenções culturais e análises realizadas por Jorge Romero Brest, 7. CANTON, Kátia. Tendências Contemporâneas: Questões sobre a Arte no Brasil e no Mundo Ocidental. In: AQUINO, Victor. (org.) Metáforas da Arte. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte/MAC USP. 2008. 300 | Araceli B. da S. Jellmayer Bedtche e Lisbeth R. Gonçalves através das páginas da revista Ver y Estimar. O intenso diálogo praticado entre os dois países, Brasil e Argentina, permitiu vislumbrar duas nações com projetos vanguardistas em níveis diferenciados, mas que passaram por momentos políticos bastante próximos. Assim, salienta-se a posição de Romero Brest como divulgador e propulsor da arte de vanguarda na Argentina. Ver y Estimar assumiu papel ímpar no cenário artístico argentino, uma vez que os canais difusores para a nova vertente artística eram escassos. Brest confirmava, assim, a postura de que a crítica deve enriquecer-se por seus fundamentos teóricos e por seu modo inteligente de explorar, conhecer e conceber a realidade. A década situada entre a criação da Bienal, em 1951, e a inauguração de Brasília, em abril de 1960, foi um dos períodos mais férteis da história da arte brasileira no século passado. Foi também o período áureo da crítica de arte no país. As críticas difundidas em periódicos, como o Diário Carioca, por exemplo, buscavam uma aproximação do público e dos intelectuais da época com os principais debates e mudanças artísticas vivenciadas pelo país. A presença de uma crítica especializada como a de Antonio Bento de Araújo Lima fomentou os debates em torno da abstração versus figuração rumo à consolidação da arte abstrata como linguagem artística válida também para a realidade brasileira. Isso porque, simultaneamente à busca de uma linguagem universal, fez-se um esforço extraordinário no sentido de definir uma linguagem própria para as artes visuais, promovendo a autonomia dos meios plásticos e, ao mesmo tempo, a criação de um vocabulário específico para a crítica de arte. Referências bibliográficas AMARAL, Aracy. (org.). Projeto Construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro/São Paulo: Museu de Arte Moderna/Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1977. AQUINO, Victor. (org.) Metáforas da Arte. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte/MAC USP. 2008. FERRER, Aldo. História de la globalización: orígenes del orden económico mundial. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2000. GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política. Arte argentino en los años sesenta. Buenos Aires: Paidós, 2001. Reflexões sobre a crítica de arte: as experiências de Romero Brest e Antonio Bento | 301 GIUNTA, Andrea; COSTA, Laura Malosetti. (orgs) Arte de Posguerra- Jorge Romero Brest y la Revista Ver y Estimar. Buenos Aires: Paidós, 2005. ROMERO BREST, Jorge. El arte en la Argentina. Buenos Aires: Paidós, 1969. . La Pintura Europea – 1900-1950. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1952. | 303 Tatuagem: ritual, arte e moda RICHARD DE OLIVEIRA* JOÃO AUGUSTO FRAYZE-PEREIRA** Resumo: Na atualidade, a prática da tatuagem disseminou-se. Muitas pesquisas têm sido feitas, visando compreender esse espraiamento, a partir das mais diversas teorias e métodos. E os resultados têm sido variados e discordantes, o que demonstra a riqueza e complexidade desse campo temático. Este artigo apresenta uma reflexão com base na pesquisa que realizamos sobre a prática da tatuagem. Entrevistando tatuadores urbanos, com a técnica de “história de vida”, constatamos que a percepção da tatuagem como “arte” relaciona-se à romantização da prática, assim como à oposição entre as ideias de “ritual” e “moda”. Também indicamos as noções de “pele” e “desenho” como os principais organizadores dos sentidos psicossociais e estéticos dessa prática. Palavras-Chave: Tatuagem. Pele. Desenho. Arte. Psicologia Social. Tattoo: ritual, art and fashion Abstract. Nowadays, the practice of tattooing has become popular. Several researches have been realized to understand this spreading, from the most diverse theories and ** Mestrando do programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Fapesp). Linha de Pesquisa: Psicologia Social de Fenômenos Histórico-Culturais Específicos – Arte. Pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte do IPUSP. ** Professor Livre Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP. Pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte do IPUSP. 304 | Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira methods, and the results have been the most varied and discordant, demonstrating the richness and complexity of this research field. This article presents a reflection based on a survey that we have conducted on the practice of tattooing. Interviewing urban tattooers, using the technique of life stories, we found as a result that the perception of tattoo as art is related to the romanticizing the practice, as well as with the oposition between the terms “ritual” and “fashion”. We also indicate the notions of “skin” and “design” as the major organizers of the psychosocial and aesthetic meanings of that practice. Keywords: Tatoo. Art. Ritual. Aesthetics. Social Psychology. Na sociedade atual – definida a partir de conceitos como “sociedade do vazio” (LIPOVESTSKI, 2005), “modernidade líquida” (BAUMAN, 2003) e, ainda, “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997) –, a prática da tatuagem tem cada vez mais se disseminado e popularizado. Essa prática deixou de pertencer exclusivamente às organizações tribais ou a grupos marginalizados, subversivos e de contracultura, para passar também a adornar corpos de indivíduos de diferentes idades, classes, status sociais e gêneros (PÉREZ, 2006; FERREIRA, 2006; L EITÃO, 2004; ARAÚJO , 2003). Tal fenômeno tem chamado a atenção de pesquisadores nas diversas áreas das Ciências Humanas. Encontramos trabalhos recentes nos seguintes campos: Sociologia (FERREIRA, 2006), Antropologia (PÉREZ, 2006; L E BRETON, 2002, OSÓRIO, 2006), Semiótica e Linguística (BRAGA, 2009), Psicanálise (ALMEIDA, 2011; COSTA, 2003, MOREIRA et al. 2010; SILVA JÚNIOR et al., 2009), Artes Visuais (SILVA, 2010), Criminologia (CHAVES & SILVA, 2012) e Saúde (CARONI & GROSMANN, 2012; TOSTES, 2005). E, ao ler esses trabalhos, constatamos a complexidade do tema como campo de pesquisa. Em primeiro lugar, cabe notar a diversidade de eixos temáticos: preconceito e estigma social; relações de gênero; grupos marginalizados e/ou em situação de vulnerabilidade social; ideário político e formas de vida; conteúdos inconscientes dos tatuados; tatuagem como atividade profissional; metamorfose do sentido da prática de tatuar; laço social; tatuagem como experiência, linguagem, discurso e comunicação; tatuagem como recurso para reparação estética. Em segundo lugar, também é notável o uso de diferentes métodos de pesquisa: ensaios teóricos; análise de imagens; entrevistas semiestruturadas; pesquisas quantitativas; pesquisa etnográfica; coleta de depoimentos pessoais; estudos clínicos de reconstituição estética. Em terceiro lugar, quanto ao objeto de pesquisa específico, a variação também é grande: pessoas tatuadas em geral; pessoas que passam por um processo de tatuar grande parte do corpo; a imagem propriamente Tatuagem: ritual, arte e moda | 305 dita de tatuagens; percepção das pessoas (tatuadas ou não) acerca da prática da tatuagem; trabalho dos tatuadores, etc. Além disso, ora a tatuagem é estudada de forma isolada, ora colocada junto a outras modificações corporais, como a escarificação, o branding e o body-piercing. Finalmente, em quarto lugar, é importante apontar que as conclusões das pesquisas citadas são não apenas variadas, como discordantes entre si: o fenômeno da tatuagem é tratado como uma versão contemporânea do ritual frente ao sagrado ou como um fenômeno marcado pela categoria do “impuro”; como marca de identidade e demanda de reconhecimento ou como um novo tipo de adereço estético e dispositivo de sedução; como expressão de singularidade e de não conformismo no plano sóciopolítico ou como um projeto de adaptação a projetos estéticos hegemônicos e normativos; como resultado da incapacidade simbólica do individuo que se tatua ou como projeto de construção da imagem do corpo que funciona como signo de liberdade – só para citar algumas antinomias. Em suma, essa diversidade de disciplinas, eixos temáticos, métodos de pesquisa, objetos e resultados específicos, expressa a complexa pluralidade de significados presentes no universo da tatuagem urbana. Assim, considerando esse prolífico campo de estudos, desenvolvemos um projeto de pesquisa, com o apoio da FAPESP (OLIVEIRA e FRAYZE-PEREIRA, 2013), voltado para a tatuagem como uma produção estética-visual-plástica, cujos estilos mais tradicionais possuem vínculos históricos com outras artes visuais. Mesmo nos contextos em que não é considerada arte, a tatuagem segue certas regras de composição visual e estilo que são parte de sua essência, aspecto cujo conhecimento é importante para acessarmos os sentidos dessa prática. Além disso, como encontramos na literatura e em nossa própria experiência de campo, é a partir principalmente de seu valor estético que a tatuagem é atualmente valorizada e vinculada ao campo artístico. Nessa medida, quem poderia ser o sujeito mais habilitado a nos ajudar a compreender esses aspectos, senão o tatuador? Partindo da hipótese que existe uma poética da tatuagem – poética entendida no sentido de Pareyson (2000), isto é, uma maneira programada ou regrada de formar que seria própria à prática da tatuagem – os tatuadores seriam aqueles que poderiam nos revelar essa maneira. Afinal, são eles os peritos nesse fazer, os que tornam possíveis esses projetos estéticos e os desenvolvem no sentido de um trabalho. Além disso, os tatuadores, justamente por serem trabalhadores, são personagens que formam o epicentro do universo da tatuagem urbana, pois em sua atividade há um horizonte cotidiano privilegiado para conhecer tanto as 306 | Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira características particulares da atividade de tatuar, quanto os sentidos presentes no universo mais geral da tatuagem, inclusive o ponto de vista e as motivações que caracterizam os seus clientes. Nessa medida, seria interessante conhecer esse aspecto do cotidiano do trabalho no próprio espaço de trocas psicossociais em que se situam esses atores. Por isso, a pesquisa não se alojou apenas no campo da estética, mas também no da psicologia social, ou melhor, na interface entre as duas disciplinas, interface que, associada à história da arte, define o campo da Psicologia Social da Arte (FRAYZE-PEREIRA, 2010). Nesse sentido, o procedimento escolhido para explorar o mundo do tatuador foi o da história de vida artística, uma variação da técnica dos registros orais, técnica consagrada nas ciências sociais (PEREIRA DE QUEIROZ, 1988). Assim, nosso procedimento consistiu em pedir ao entrevistado que contasse a sua vida, com a atenção do entrevistador focada no tornar-se ou no vir a ser tatuador, deixando o entrevistado livre o bastante para compor a sua narrativa. Várias entrevistas foram realizadas com cada tatuador para explorar mais a fundo a sua vida atual, seu espaço de trabalho, sua concepção da prática de tatuar, suas preferências estéticas, desafios técnicos, parentesco possível da tatuagem com outras artes, relação com os clientes, o processo de feitura da tatuagem, desde a demanda do cliente até a última agulhada. Todo o material obtido no contato com dez entrevistados, foi registrado em seus respectivos ambientes de trabalho, na cidade de São Paulo, para termos uma visão dos aspectos estéticos encarnados na existência cotidiana do tatuador. A partir daí, formulamos algumas perguntas: 1) no âmbito da experiência dos tatuadores, como esse trabalho é percebido? 2) será ele um fazer poético, isto é, um fazer formativo-expressivo-cognitivo, tal como acontece no campo das artes? 3) se ele for situado pelos tatuadores no campo das artes, com qual das linguagens a tatuagem teria mais afinidade? A seguir, apresentamos resumidamente os caminhos da pesquisa e a reflexão por eles engendrada. Durante o trabalho de campo, observamos que se os tatuadores reconhecem seu fazer como arte, existe variação na forma pela qual esse reconhecimento acontece. E, como há coerência dos valores estéticos entre tatuadores que se inserem no mesmo contexto social, classificamos os entrevistados em dois grupos: “tatuadores populares” – aqueles que exercem seu trabalho em bairros de classe média de São Paulo, cujo público situa-se nessa classe e cujos trabalhos possuem preço coerente com essa situação; “tatuadores prestigiados” – aqueles que atuam em bairros de classe alta, cujos clientes pertencem a essa classe e cujos preços são compatíveis. Tatuagem: ritual, arte e moda | 307 Segundo os “tatuadores populares”, em primeiro lugar, é o fazer propriamente técnico do tatuar que permite perceber a tatuagem como arte. É o fazer que a vincula às artes plásticas, principalmente ao desenho, pois é este que distingue a habilidade do tatuador. Em outras palavras, sendo uma produção plástica, a tatuagem tem maior valor artístico na medida em que sua forma é uma perfeita realização, que envolve pesquisa dos instrumentos e técnicas (agulhas, tintas, posição da mão, etc.) e da pele como suporte (local, densidade, textura, absorção da tinta). A pele é uma característica fundamental da tatuagem: é o lugar onde ela acontece, a condição da tatuagem e o campo visual da sua exposição pública. Paralelamente, a realização de uma imagem original também aparece como um valor artístico, estético e psicossocial para o tatuador, ligado às aspirações dos clientes desejosos de possuir uma imagem única em seu corpo. Mas, além da questão da originalidade da imagem, não constatamos qualquer ênfase nos símbolos particulares que as imagens tatuadas carregam, nem nos grupos e estilos de vida que supostamente elas representariam. Entre os motivos para as pessoas se tatuarem, o mais citado é o ditado pela moda – questão que, em geral, ao ser formulada ao “tatuador popular”, causa perplexidade, pois os motivos podem ser muitos e nada interfere na “forma de seu fazer”: a “perfeição da forma” é o valor mais importante. Se levarmos em conta que a tatuagem urbana se ligava às representações de grupos marginalizados e, posteriormente, aos grupos autodeclarados subversivos e aos valores de individualidade (PÉREZ, 2006; FERREIRA, 2007), a ausência, nas falas dos tatuadores, de qualquer referência a esses temas é um aspecto a notar. Somase a isso o fato de que, nas entrevistas, as referências a outras práticas corporais consideradas mais radicais e menos popularizadas – como o branding, a suspensão corporal, os implantes dérmicos, as performances artísticas na linha da body art – foram avaliadas negativamente como projetos bizarros, cujo sentido está voltado apenas para “chamar a atenção”. Vale lembrar que, comparadas às formas antigas da prática da tatuagem, tais projetos corporais também são percebidos como desviantes, sendo muitos deles realizados no contexto de rituais coletivos nos quais a afirmação individual se articula com a afirmação de sentidos grupais, que contestam incisivamente – de forma mais ou menos consciente – os modelos estéticos tidos como desejáveis e normais (PIRES, 2008). Também, deve ser notado que não existe qualquer conflito entre os aspectos artístico e mercadológico do seu trabalho. E tampouco qualquer diferenciação entre arte e trabalho. A arte de tatuar, segundo os tatuadores, é resultado de treinamento e pesquisa, pois a afinidade inicial (“talento”) é atrelada à habilidade de desenhar. 308 | Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira Assim, para os “tatuadores populares”, se a tatuagem é um trabalho cuja demanda é ditada pela pluralidade de desejos do público e seu processo de perfeição não é diferente do processo idealizado para qualquer trabalho, é o vinculo com as artes plásticas que garante seu estatuto de arte. Ou seja, é sempre através da comparação com o desenho e a pintura que a tatuagem é explicitamente denominada “arte”. A concepção dos “tatuadores prestigiados” sobre a tatuagem não é exatamente distinta da formulada pelos “tatuadores populares”: além de retificarem os valores de perfectibilidade estética e a importância do desenho e da pele em seu trabalho, amplificam a vinculação com a arte, dando a essa vinculação contornos mais bem acabados e específicos. Os “tatuadores prestigiados” que entrevistamos são profissionais que lançam moda, pesquisam meios técnicos e apresentam para a grande mídia o trabalho; são reconhecidos como artistas de excelência em seu meio. As entrevistas realizadas pessoalmente com tais tatuadores possuem grande afinidade temática com as entrevistas dos tatuadores famosos encontradas em sites e revistas especializadas. Além disso, as concepções encontradas em ambos os materiais acerca do universo da tatuagem são corroboradas pela linha editorial de revistas de prestígio, como Inked (Estados Unidos e Brasil), Total Tattoo Magazine e SkinDeep (Reino Unido). Dado que são materiais que discursivamente se harmonizam com as falas dos “tatuadores prestigiados”, incluímos as entrevistas publicadas e as reportagens das revistas no material que analisamos. Nessa medida, podemos afirmar que os “tatuadores prestigiados”, assim como os “populares”, percebem a tatuagem como fazer artístico, no sentido convencional, e se reconhecem artistas. Além disso, conferem ao processo técnico-artístico a essência da tatuagem. É na busca pela aplicação perfeita da imagem à pele que se desenrola a jornada artística do tatuador. No entanto, em contraste com a perspectiva dos “populares”, para os “prestigiados” esse processo técnico possui relações íntimas com a história de vida do tatuador – formação cultural, gostos particulares, afinidades artísticas e objetivos pessoais. Para esses tatuadores, a técnica de tatuar é inseparável da existência particular e, portanto, da subjetividade do tatuador, em sua forma mesmo, na sua maneira singular de compor. Assim, cada um desses “tatuadores prestigiados” se especializa em um estilo de tatuagem específico que mantem relações expressivas com a história de vida de cada um. Os estilos (old school, oriental, new school, maori) diferem entre si em vários aspectos: imagens, tintas, objeto perfurante que entinta a pele, Tatuagem: ritual, arte e moda | 309 formas de aplicação, etc. E tal diversidade promove uma divergência de caminhos da formação artística. Além disso, se os estilos assumidos por esses artistas têm origem em formas tradicionais de tatuagem, através da prática e da pesquisa, tais tatuadores acabam por desenvolver um estilo próprio, plenamente reconhecível pelo público iniciado. Em suma, a tatuagem é uma arte milenar, baseada em tradições díspares, mas cada “tatuador prestigiado” desenvolve um trabalho de busca da perfeição de seu estilo pessoal, isto é, a questão da individualidade do artista guia o fazer. Esse modo de concepção da tatuagem se alinha com concepções românticas do fazer artístico que concebem a arte como processo a dar existência sensível, portanto, expressão, aos aspectos pessoais e subjetivos. E, por isso, descompromissada com a sua origem “underground”, origem vinculada a grupos marginalizados ou tidos como “subversivos” na nossa sociedade, essa “libertação” da tatuagem é considerada um dos motivos da intensificação do diálogo dessa arte com outras artes plásticas e com o universo imaginário de outros nichos culturais, para além dos tradicionais (como o “punk” e o “heavy metal”), diálogo que estaria enriquecendo o mundo da tatuagem. Muitos tatuadores famosos, como Jun Matsui e Akemi Higashi, têm se engajado em outras artes além da tatuagem, como a confecção de joias e a pintura. Outros tatuadores têm feito pesquisas específicas sobre a emulação no tatuar de outras artes plásticas, como o grafite e a fotografia. Ou seja, existe na camada mais prestigiada dos tatuadores a tendência a buscar modos cada vez mais singulares de realizar a tatuagem. Essa individualização da prática do tatuador associa-se ao perfil do tatuado tal como desenhado pelas revistas de prestígio. Nesse ponto, é importante ressaltar as diversas publicações sobre tatuagem cujo eixo discursivo central é apontar que nem todas as pessoas tatuadas fazem parte de grupos subversivos e, principalmente, que muitas delas representam o modelo de sucesso da sociedade atual (empresários, modelos, gourmets etc.), pessoas cujo estilo pessoal a tatuagem deve expressar; indivíduos cujos modos de vida não contrariam necessariamente ideais hegemonicamente valorizados em nossa sociedade, tidos como ideais de sucesso (GUIMARÃES, 2003). Ao contrário, ainda segundo essas publicações, os indivíduos tatuados atingem com êxito os ideais socialmente valorizados. Tal êxito é, em geral, atribuído à individualidade, à aposta feita na própria singularidade, cujo aspecto subjetivo é expresso pelas tatuagens. O que é curioso, a partir desse campo prestigiado da tatuagem, é que os sentidos coletivos apontados anteriormente na história da tatuagem são ressigni- 310 | Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira ficados, seja em relação ao tatuador, seja em relação ao tatuado. O valor de transgressão abandona o vínculo com a marginalidade e a coletividade e passa a pertencer à história individual do tatuador, na sua luta pessoal para realizar suas aspirações com o seu estilo de tatuar. E a mesma questão do estilo é colocada para quem se tatua e afirma a sua individualidade com essa prática, sem que esse estilo singular e sua afirmação na pele tenham qualquer conotação subversiva em relação aos valores socialmente estabelecidos, valores tais como como: sucesso profissional e financeiro, individualismo, valores familiares tradicionais, etc. O valor de ritual também perde suas significações coletivas para passar a significar a realização profundamente pessoal de ambos os atores. Aqui, reaparece a questão do tatuar por moda, criticado como um tatuar inautêntico, pois feito por motivos superficiais, dado que o ato de tatuar autêntico, segundo os tatuadores, teria motivos mais profundos, ligados a uma noção de ritual, interior e subjetivo. Em suma, segundo as concepções dos tatuadores e as revistas prestigiadas, tanto o estilo do tatuador, quanto a imagem que o tatuado carrega devem falar da sua maneira de ser. Devem expressar um estilo autêntico, pessoal e intransferível. Mas, note-se que a elaboração da tatuagem exige uma relação íntima entre a imagem a ser tatuada e a singularidade do tatuado. Para tanto, o tatuado é convocado a participar ativamente do processo, ao mesmo tempo em que deve ter uma relação simbólica e afetiva com o tema, com a imagem a ser tatuada, uma relação que não seja apenas estética. Mais ainda, a tatuagem como arte é um processo que exige um trabalho a dois, o tatuador e o tatuado, e, portanto, não depende apenas do artista. O trabalho do tatuador seria dar forma e expressão sensível a algo que se encontra em estado latente na subjetividade do tatuado. Nessa perspectiva, tatuagens feitas por modismo não seriam propriamente artísticas, independente do talento, das disposições e valores do tatuador. Tais tatuagens produzem uma “falsa diferenciação”, uma perversão da função legítima da tatuagem, que é a de singularizar o corpo da pessoa ao dar forma plástica a algo que jaz em sua interioridade. Assim, apoiados no campo das artes plásticas, tendo como suporte o corpo, mais especificamente a pele, os tatuadores entrevistados assimilam a tatuagem ao campo do fazer artístico no seu sentido mais ortodoxo. A partir da concepção essencialmente técnica da tatuagem, presente nas histórias de vida registradas, percebemos uma progressiva injeção, na concepção da tatuagem como arte, de valores ligados à subjetividade, à expressão do singular e de sentidos profundos Tatuagem: ritual, arte e moda | 311 do espírito humano que os meios técnico-artísticos devem dar forma. Na fala dos “tatuadores prestigiados”, seria essa expressividade que tornaria a tatuagem arte. Mas, é a dupla tatuador-tatuado que confere à tatuagem o caráter de um processo ritual. Assim, explicita-se com mais clareza a oposição entre dois valores importantes que caracterizam a tatuagem, segundo os “tatuadores prestigiados”: a autenticidade e a falsidade. A primeira vincula-se à realização artística a partir de aspectos íntimos e subjetivos e a segunda, ao mercado e aos fins estéticos ditos superficiais; a primeira estaria associada à estabilidade de certos valores e a segunda, a certa instabilidade própria do mercado. Ou seja, marca-se a diferença entre o mundo da tatuagem como “arte” e o mundo da tatuagem como “qualquer coisa comercial”. Essa visão dos tatuadores famosos encontra correspondência em certas análises de cunho sociológico e psicanalítico focadas na sociedade atual. Por exemplo, a psicanalista Silvia Ons (2012) afirma sobre a “cultura das tatuagens”: [...] nada parece perdurar e há a demanda de reinventar-se a cada dia, deixando para trás antigas marcas; em tempos caracterizados como ávidos de novidades, a tatuagem aponta para algo não perecível. Tanto aqueles indivíduos flutuantes em sua vida amorosa [...], quanto aqueles que padecem no mundo atual as consequências de um andar sem bússola, são os que apelam à tatuagem para que algo se fixe e não se apague. Considerando a extrema fragilidade dos vínculos humanos na sociedade contemporânea, Ons (2012) ainda observa que [...] a cultura da tatuagem mostra a necessidade de ancoragem dos sujeitos que estão mais adaptados ao mundo líquido. Além disso, se tanto a dessacralização da existência quanto a crença no progresso pareciam dominar o século anterior, assim como estão presentes no atual, também cabe reconhecer a convivência de um retorno ao paganismo e as crenças nos símbolos de outrora. Assim, em uma época líquida de relações instáveis (BAUMAN, 2003), o valor da prática de tatuar estaria em oferecer um ancoradouro subjetivo profundo, paradoxalmente, na superfície da pele. Ora, não custa enfatizar que, essencial e progressivamente, os valores que se incorporam na concepção da tatuagem como arte são valores de inspiração romântica (ROSENFELD & GUINSBURG, 1978; PAREYSON, 2000). Sem querer aqui entrar em detalhes sobre o romantismo, cabe lembrar que esse foi um movimento 312 | Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira artístico que tem início na segunda metade do século XVIII, momento em que coincidentemente a tatuagem é introduzida no ocidente. Tal movimento constróise principalmente em torno da contestação dos valores clássicos, marcando de forma profunda toda a arte que veio depois dele. Neste momento, os valores românticos importantes a salientar são: a arte como expressão da interioridade da alma, a valorização do sentimento, o valor da autenticidade do estilo do artista, da sua individualidade, singularidade e originalidade, sendo esses mesmos valores transmitidos à obra; e a arte, como um fazer “puro”, tem o seu campo de valores estéticos e morais próprios e permanentes. Se esses valores subsidiaram um movimento artístico particular, é inegável o seu impacto em todo o imaginário sobre a arte e os artistas, produzindo uma imagem do artista e da obra que se torna prerrogativa essencial para a legitimação dos mesmos no campo social. Inclusive, como aponta Cauquelin (2005), a presença desse imaginário pode impedir o público de compreender as regras e valores de novas formas de arte, como a arte contemporânea. Segundo a autora, é esclarecedor atentar para o uso da imagem do artista que foi vinculada pelos organizadores do mercado de arte à era das vanguardas históricas, como Van Gogh, à imagem do artista romântico, operação que visava: [...] manter intacta a fonte de produção, o criador, independente do mercado e, portanto, livre de qualquer suspeita de comercialização, para que sua credibilidade junto ao público permanecesse inabalável. Voluntária ou não, a exibição do artista como contrário, fora ou além das regras do mercado de consumo é tida como certa. Tática vitoriosa uma vez que, se já não se tratava mais do estudante pobre em seu casebre, que frequenta tavernas com amigos e arruína sua saúde e família- imagem herdada do século XIX romântico- nem por isso a imagem que o público faz do artista é muito diferente dessa historieta (CAUQUELIN, 2005, p. 13). Ou seja, dotada da marca da singularidade, da pureza e da autenticidade, a imagem do artista e da arte romântica pode ser um operador importante no que concerne a legitimação de uma atividade como artística e uma pessoa como artista. E se no campo mais prestigiado da arte, o da arte contemporânea, os valores se transfiguraram, podemos dizer que para o grande público tais valores românticos ainda são essenciais para que um fazer seja reconhecido como artístico (FRAYZE-PEREIRA,1995). Tatuagem: ritual, arte e moda | 313 Com efeito, se na fala dos tatuadores “populares”, constatamos a ausência de referências culturais coletivas no seu fazer, nas falas dos tatuadores “prestigiados”, o próprio trabalho de tatuar é visto como uma atividade artística propriamente romântica. E, cabe lembrar, diferente dos primeiros, esses tatuadores são os que atendem às classes mais altas e tem participação nos circuitos da arte e da moda nos quais eles se expõem e são expostos. Podemos aqui indagar sobre uma “romantização” do trabalho do tatuador, conforme seu fazer é assimilado pelo campo discursivo da arte. Esse fenômeno afetaria a forma como os tatuadores concebem a sua arte, o modo como a apresentam ao campo social e oferecem seus serviços ao mercado. Para tal fenômeno de “romantização”, podemos supor que tenha contribuído o próprio imaginário da tatuagem, percebida socialmente como uma prática “exótica” e “estrangeira”, e ao mesmo tempo “desviante” e “marginal”, pois tanto o interesse pelo exótico – pelas imagens, objetos e práticas das culturas distantes, no tempo ou no espaço, da cultura europeia – quanto a marca do “fora da sociedade” são aspectos essenciais da poética romântica (CAUQUELIN, 2005; ROSENFELD & GUISNBURG, 1978). Talvez essa questão do exótico, do tribal e do ritual esteja no coração de todo esse sucesso da tatuagem, mas não como reedição desses gestos coletivos, dessas marcações simbólicas como são apontadas por alguns estudos (COSTA, 2003), mas, ao contrário, na versão romântica, como prática subjetivada, psíquica e esteticamente elaborada. Finalmente, apresentado o complexo campo da tatuagem a partir da sua vinculação com o campo artístico, podemos discutir, ainda que de forma sucinta e especulativa, as noções de “pele” e “desenho”, noções que são apresentadas como centrais para a prática dos entrevistados. São indicativas de aspectos mais específicos dessa atividade formativa, assim como podem esclarecer o seu papel na sociedade contemporânea. Nesse sentido, antes de encerrarmos, seguem algumas breves considerações sobre essas questões: a “pele” e o “desenho”. Então, com base em ideias de Merleau-Ponty (1964) e Thévoz (1984), cabe lembrar que é a partir de seu corpo que o homem se diferencia dos outros seres. É a partir de seu corpo, um ser que é ao mesmo tempo sensível e sentiente, isto é, uma unidade ambígua que de modo reflexionante articula sujeito e objeto, que o homem pode desvelar a interioridade inesgotável das coisas e de si mesmo, dotando-os de sentido e expressividade. E também se pode dizer que é a partir desse exercício corporal reflexionante que o homem funda um mundo existencial próprio – mundo da linguagem, do trabalho e da arte, ou seja: o mundo da cultura. 314 | Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira Nesse campo, a pele tem um papel fundamental. Se em todos os seus atos expressivos, como a arte, o homem empresta seu corpo, é propriamente em sua pele, e na possibilidade de nela imprimir sentidos, que ele inicialmente expressa e propaga a inesgotável relação ambígua com sua imagem, isto é, com a sua identidade: [...] se o homem nasce prematuramente, com uma pele muito fina, muito frágil, muito pura e que, por isso pede uma proteção artificial, está não é apenas física, mas, sobretudo, simbólica. Quer dizer, ao nascer, o homem fica exposto num duplo sentido: aos perigos, mas também aos olhares. Ele é com toda certeza o único animal que nasce nu e que faz de sua pele uma superfície a pintar superfície na qual gradualmente se inscreve uma identidade que a tela, epiderme ultra-sensível, através da pintura e de toda arte, vai ampliar (FRAYZE-PEREIRA, 2010, p.48). A tatuagem, nesse sentido, pode ser considerada uma das formas mais arcaicas de arte, em uma situação cultural na qual o fazer artístico é inseparável de outras organizações simbólicas e expressivas, como a política e a religião. Pois, se a caverna ofereceu um dos primeiros suportes para a arte, outra tela primordial oferecida ao homem foi sua própria pele que, talvez, tenha instigado a possibilidade de realizar formas expressivas, por um lado, para conferir eternidade simbólica à sua existência mortal e, por outro, para estabelecer certo contato com o outro (THÉVOZ, 1984). Ora, se passarmos dessa visão inspirada na antropologia para o pensamento freudiano, encontraremos que a pele é ao mesmo tempo sede do movimento pulsional e objeto da pulsão, em especial a pulsão escópica. E de posse de uma dupla vinculação com o desejo próprio e com o desejo do outro, a pele pode ser considerada um órgão básico para tecer uma relação primordial, pois de todos os sentidos é o que mais primitivamente vincula o eu e outro (ULNIK, 2011). Assim, pode-se reforçar a complexidade de uma prática como a tatuagem, pois ela apresentaria articulações imbricadas ontologicamente (corpo-estrutura simbólica), psicologicamente (pele-imagem- identidade) e socialmente (eu-outro, história coletiva-história individual) entre o homem e a cultura. Não é por acaso que, em situações adversas e opressivas, as pessoas vejam na tatuagem uma maneira de resistir ao apagamento de sua identidade, ao mesmo tempo em que veem nela uma maneira de produzir uma relação expressiva, formativa, e, num Tatuagem: ritual, arte e moda | 315 sentido bastante profundo, uma relação estético-artística consigo mesmas, com seus pares e seus antagonistas (PIRES, 2008). Nesse sentido, cabe lembrar o trabalho de Rosangela Rennó, Cicatriz (1996-1997), em que a artista se apropria de fotos de identificação dos detentos, conservadas no Museu Penitenciário Paulista, no complexo do Carandiru, entre 1922 e 1940, dando visibilidade à tentativa de tornar-se distinguível, de subverter o mero enquadramento de uma imagem que, como muitas outras, será entregue ao esquecimento e à deterioração. As imagens são de cicatrizes, tatuagens e coroas de cabelo – formas de resistir ao anonimato, expressão de um movimento de resistência ao ato arbitrário de ser abandonado no meio de uma multidão, tendo mutiladas a memória e a identidade (RENNÓ, 2003). Mas, se com a noção de “pele”, fomos remetidos às práticas ancestrais que organizam a experiência expressiva e ao mesmo tempo coletiva dos homens, a noção de “desenho” nos remete à Renascença. Como se sabe, o desenho, tal como é concebido na prática artística, surge na Renascença como teoria das artes plásticas (HAUSER, 1998), como um conceito que se refere ao resultado do contato de uma ferramenta com um material, mas, sobretudo, se refere a uma maneira de pensar. O desenho, tal como surge na Renascença, é propriamente projeto, isto é, um esboço material da obra artística a se realizar; e, ao mesmo tempo, é um trabalho ideativo que visa organizar racionalmente, no sentido clássico, a intervenção sobre a matéria (GODOY, 2013). No interior do universo cultural renascentista, o desenho representa a projeção da mentalidade renascentista sobre a matéria (PANOFSKY, 1975). Através da busca pelas relações matemáticas que organizam as formas, as medidas perfeitas, a harmonia das partes que compõem a figura plástica, o desenho é arte no sentido do “conhecer”, isto é, uma investigação incessante de como representar a “realidade sensível em sua plena evidencia” (PAREYSON, 2000, p.22). Mas essa perfectibilidade não é buscada apenas na investigação das formas sensíveis do mundo, mas também do seu fundamento metafísico (divino), a inteligência imaterial que organiza o próprio sensível. Aqui, ao invés da totalidade expressiva que fundamentava a arte medieval, é a perfeita organização de cada detalhe da imagem que garante a perfeição da obra. E essa relação perfeita é organizada em torno do uso da perspectiva. Em suma, o desenho, em especial a técnica da perspectiva, muito além de uma técnica artística, é a expressão sensível do universo de valores renascentistas. Como sabemos, tais valores são pressupostos pelo mundo moderno, desde a filosofia clássica à ciência, da política à economia e à jurídica modernas. E, em 316 | Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira relação ao corpo, é Foucault (1997) o pensador que o articula à produção do indivíduo disciplinado, como contrapartida à concepção ideal de individuo racional moderno: ao interpretar como se produziu a “alma moderna” (prisão do corpo), mostra o aprisionamento da multiplicidade em potência que habita os corpos humanos em uma rede de adestramento cujo propósito é separar o poder do corpo, identificar o indivíduo com certa norma de conduta, produzir habilidades e inclinações, ou seja, modos de ligar esses indivíduos a outros planos estratégicos do poder (governo). Fundamentalmente, as estratégias disciplinares são uma série de ações organizadas sobre os corpos que visam domesticá-los, modulá-los em relação a certa norma, tornando-os previsíveis e operacionais em relação a um outro que os controla, ou melhor, a um poder que organiza a conduta dos corpos na modernidade. Ou seja, as estratégias disciplinares tornam os corpos individuais dos governados politicamente dóceis e economicamente produtivos. É na imagem produzida pela antecipação dos atos, sentimentos e pensamentos desses corpos disciplinados que se encontra a noção de “psicológico”, a “alma” moderna que se formou no século XIX e impera ainda nos dias de hoje: alma como prisão da experiência e da liberdade. Ora, se considerarmos que o “desenho” renascentista é o operador estético que permeia a montagem do processo disciplinar – sendo que o próprio panóptico, olho do poder invisível, é o desenho em perspectiva encarnado como sonho político –, em que medida não poderíamos entender o desenho, mais amplamente, como o operador estético que produz a “romantização” da atividade de tatuar, assim como assimila a tatuagem aos modelos normativos da sociedade contemporânea? Assim é que a tatuagem urbana, hibridização de formas ancestrais de expressão coletiva e de demandas de individualização tipicamente modernas, concentra em seu âmago uma contradição entre processos de singularizarão e coletivização demandadas pela pele e de individualização e normatização social proposta pelo sonho político expresso pelo desenho. Nesse sentido, percebendo que a popularização da tatuagem se compõe com uma individualização do ritual e do gesto transgressivo, não caberia pensar que essa individualização de um gesto coletivo exige certa matematização do gesto que, precisamente, a ideia de desenho contém? Tatuagem: ritual, arte e moda | 317 Referências bibliográficas ALMEIDA, M.I.M. Nada além da epiderme: a performance romântica da tatuagem. Revista Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v.12, n.2, p. 103-123, 2001. ARAÚJO, L. Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo. São Paulo: Cosac Naify, 2005. BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. BRAGA, S. A Tatuagem como Gênero: uma visão discursiva. Linguagem em (Dis) curso, v.9, n.1, p.131-155, 2009. CARONI, M.M.; GROSSMAN, E. As marcas corporais segundo a percepção de profissionais de saúde: adorno ou estigma?. Ciência e Saúde Coletiva, V.17, n.4, p. 1061-1070, 2012. CAUQUELIN, A. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CHAVES, K.B.; SILVA, R.C.M. Tatuagem na Prisão: Considerações acerca da identidade e do estigma. Pleiade, Foz do Iguaçu, v.11, n.111, p. 7-32, 2012. COSTA, A. Tatuagem e marcas corporais. Casa do Psicólogo, 2003. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de janeiro: Contraponto, 1997. FERREIRA, V. S. (2006). Marcas que demarcam: corpo, tatuagem e body piercing em contextos juvenis. 2006. 646 f. Tese (Doutorado em Sociologia). Escola Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Lisboa, 2006. Versão eletrônica. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1997. FRAYZE-PEREIRA, J. Olho d’água. Arte e loucura em exposição. São Paulo: Escuta/Fapesp, 1995. . A. Arte, Dor: Inquietudes entre estética e psicanálise. 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010. GODOY, V.O. O que o desenho nos propicia?. Revista-Valise, v.3, n.5, p. 85-96, 2013. GOMBRICH, E.A. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008. GUIMARÃES, E. V. Executivos em revista: Discursos de e para executivos e aspirantes a executivo. 2003. 455 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Paidéia, 1998. LE BRETON, D. Signes d’identité. Tatouages, piercings et autres marques corporelles. Paris: Métailié, 2002. 318 | Richard de Oliveira e João A. Frayze-Pereira LEITÃO, D.K.. Mudança de significado da tatuagem contemporânea. Cadernos IHU Idéias, São Leopoldo (RG) v.2, n.16, p.1-24, 2004. LIPOVETSKY, G. “A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo.” A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Manole, 2009. MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. In: Merleau-Ponty. Col. Os Pensadores: Abril Cultural, 1975 (trabalho original publicado em 1964), ps.275-301. MOREIRA, J. O., TEIXEIRA, L. C.; NICOLAU, R. F. Inscrições corporais: tatuagens, piercings e escarificações à luz da psicanálise. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 13, n.4, p. 585-598, 2010. OLIVEIRA, R. e FRAYZE-PEREIRA, J.A. Tatuagem: estudo com tatuadores. São Paulo, Fapesp, 2013. ONS, S. (2012) El tatuaje, un ancla en un mar de sentimientos líquidos.h, 08/07/ 2012. OSÓRIO, A.. Tatuagem e Autonomia: reflexões sobre a juventude. Cadernos de Campo, São Paulo, V. 14/15, n. 14/15, p. 83-98, 2006. PANOFSKY, E. La perspective comme forme symbolique. Paris: Minuit, 1975. PAREYSON, L. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 2000. PÉREZ, A. L. A identidade à flor da pele: etnografia da prática da tatuagem na contemporaneidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 12.n.1, p.179-206, 2006. PIRES, B. O corpo como suporte da arte. São Paulo: Senac, 2008 QUEIROZ, M.I.P et al. Experimentos com histórias de vida. São Paulo: Vértice, 1988. ROSENFELD, A. E GUINZBURG, J. Romantismo e classicismo. In: Guinzburg, J. O romantismo. São Paulo, Perspectiva, 1978, ps. 261-274. RENNÓ, R. O arquivo universal e outros arquivos. São Paulo, Cosac & Naify, 2003. SILVA, G. F. (2010). Primitivismo contemporâneo: o corpo como objeto da arte. Revista Digital do Laboratório de Artes Visuais, 2(2), 196-216. SILVA JUNIOR, N. et al. A narrativa do destino e a função identitária do corpo na pós-modernidade. A Peste, v.1, n.1, p. 127-141, 2009. THÉVOZ, M. Le corps peint. Genève: Skira, 1984. TOSTES, R. O. G. et al. (2005). Reconstrução do mamilo por meio da técnica do retalho CV: contribuição à técnica. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica, v.20, n.1, p 36-39, 2005. ULNIK, J. El psicoanalisis y la piel. Buenos Aires: Paidos, 2011. | 319 Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960 GRAZIELA NACLÉRIO FORTE* Resumo: Este artigo analisa as razões do artista plástico Carlos da Silva Prado (1908-1992), irmão mais novo do intelectual Caio Prado Júnior (1907-1990), ter se afastado do sistema das artes durante a década de 1960, quando passou a escrever e tecer considerações sobre o que era a crítica de arte. Atuante desde o início da carreira em 1932, quando ficou conhecido graças às obras sociais que produziu e pela breve atuação na Sociedade de Socorros Mútuos Internacionais (SSMI), no Partido Comunista (PCB) e no Clube de Artistas Modernos (CAM), agremiação fundada por ele juntamente com os também pintores Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti e Antônio Gomide. Ao longo das décadas de 1930, 1940 e 1950, o artista havia criado uma obra diversificada em termos de técnica, linguagem e tema. Após dez anos sem produzir, voltou a pintar no início dos anos 1970, quando continuou utilizando a técnica da sobreposição de imagens. Palavras-chave: Modernismo. Arte nos anos 1960. Carlos Prado. Arte Brasileira. Vanguarda Brasileira. * Doutora pela Universidade de Campinas (2014) e Mestre pela USP (2008). Professora-pesquisadora da arte brasileira do século XX, tendo adotado como linha de pesquisa os artistas e a esquerda no Brasil e política nas artes. Participa do Núcleo de Estudos de Arte e Poder no Brasil, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), e dos Grupos de Pesquisas intitulados Pensamento Político Brasileiro e Latino Americano, do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da UNESP de Marília e Pensamento Social do Brasil, do Departamento de Sociologia da Unicamp. Fomento: Capes (1 ano) e CNPQ (3 anos). Contato: [email protected]. 320 | Graziela Naclério Forte Considerations of Carlos Prado and the Figurative Art in the 1960´s Abstract: This article analyzes the reasons for the Brazilian artist Carlos da Silva Prado (1908-1992), the youngest brother of the intellectual Caio Prado Júnior (1907-1990), stopped painting and remained out of the “arts system” in the 1960s, when he started to write about the importance of the critic of arts. He produced a lot since the beginning of his career in 1932, when he started to produce a social art and brief actuation in the International Society of Mutual Aid, the Communist Party and Modern Artists Club, that was founded with Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti and Antônio Gomide. After ten years without producing, he stood back in the early 1970s, when he continued using an overlap technique. Key-words: Modernism. Art in the 1960s. Carlos Prado. Brazilian Art. Brazil Avant-garde. Carlos da Silva Prado teve parte atuante no modernismo como artista plástico, arquiteto e teórico da arquitetura funcional. É possível encontrar obras de sua autoria nos acervos da Pinacoteca Municipal e do Estado, do Museu de Arte de São Paulo, da Coleção Mário de Andrade pertencente ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, no Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão e em coleções particulares. O artista teve maior relevância nos meios oficiais do Estado de São Paulo, tendo sido consagrado pela crítica especializada antes do que pelo público. Conquistou em vida o respeito de figuras emblemáticas das artes modernas de nosso país, como Pietro Maria Bardi, Geraldo Ferraz, Quirino da Silva, Sérgio Milliet e Paulo Mendes de Almeida. Com todas as mudanças ocorridas nas décadas de 1950 e, principalmente de 1960, Carlos Prado passou a se sentir à margem e, assim se colocou, quase sem coragem de lutar por um espaço, mesmo tendo sido detentor de variados trunfos: a origem familiar, a formação e o treinamento teórico; as vivências no exterior, a breve militância política no Partido Comunista junto com o irmão Caio Prado Júnior, o bom trânsito em esferas sociais distintas e o acesso aos dirigentes culturais. Estava ligado pelo parentesco, mesmo que distante, a três grandes incentivadores das artes do século XX: Paulo Prado, Olívia Guedes Penteado e Yolanda Penteado. Além disso, quando jovem, Carlos Prado frequentou as reuniões promovidas por Carlos Pinto Alves em sua biblioteca particular, juntamente com Mário de Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960 | 321 Andrade, Murilo Mendes, Gilberto de Andrade e Silva, os irmãos Tácito e Guilherme de Almeida, os pintores Quirino da Silva, Antônio e Regina Gomide, o arquiteto Gregori Warchavchik e os irmãos Alves de Lima. Diversos nomes do primeiro modernismo tinham passado pelo Clube de Artistas Modernos, agremiação cultural que Prado junto aos amigos Flávio de Carvalho, Antônio Gomide e Di Cavalcanti fundou em 1932. Tais amizades e a proximidade familiar não foram suficientes para constituir uma sociabilidade expressiva. Mais que isso: como portador de capital de diversas naturezas (seja cultural, social, político, artístico e econômico), contestou, até o início da década de 1960, as diretrizes que definiam as bases da sociedade, optando pelo isolamento: como não conseguia mudar o sistema, não se rebelou e nem adotou uma postura marginal, preferindo apenas não fazer mais parte. Crítica aos críticos Os críticos de arte continuavam sendo os legitimadores das obras e dos artistas. Nessa época, mantinham colunas nos jornais, ocupavam posições de destaque em instituições como museus ou salões e, com o advento da Bienal Internacional de São Paulo, passaram a compor o rol de diretores, organizadores ou jurados do evento. Até a década de 1940, Mário de Andrade e Sérgio Milliet eram os grandes incentivadores tanto da arte popular quanto da social; e Carlos Prado esteve alinhado aos dois desde o início da carreira em 1932, quando os três frequentaram o CAM. Foi nesse período que obras assinadas por Prado foram incorporadas nas respectivas coleções. Além do retrato do próprio Mário, fazem parte o guache Varredores, de temática social e datado de 1935, e quatro desenhos: uma paisagem com casarios na colina, um nu de costas, um nu feminino e a cabeça de homem. Já Sérgio Milliet e sua colaboradora Maria Eugênia Franco incluíram o óleo Paisagem (1944), também de autoria de Carlos Prado, na coleção da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, dada a importância do artista como representante das linguagens do seu próprio momento histórico. No entanto, na década seguinte, a arte abstrata passou a dominar a preferência de alguns críticos e eram eles que assinavam os artigos nos jornais, compunham a organização e o júri de exposições e da recém-criada Bienal, principalmente. Diante das novidades que vinham surgindo no sistema das artes, Prado possivelmente deveria ter se associado a um marchand, que negociaria 322 | Graziela Naclério Forte seus trabalhos, orientando-o e, principalmente, colocando-o em evidência. Mas ele nunca aceitou a ideia. Por outro lado, não conseguia se conectar à indústria de massa, que se impunha. Desta forma, Carlos Prado optou por retirar-se da vida de artista, deixando de produzir nos anos 1960, quando os meios de comunicação tornavam-se fundamentais na difusão das práticas artísticas e a programação dos espaços tradicionais (galerias, teatro, cinema) passava a ser divulgada pelos jornais, rádios, revistas e redes de televisão, estabelecendo uma série de dependências (GARCIA, 1990: 89-90). Desde então, Carlos passava boa parte do tempo escrevendo. De acordo com Edgar Pacheco de Albuquerque,1 o padrasto preparava um livro, onde “escrevia e reescrevia, escrevia e reescrevia, era uma coisa obsessiva mesmo, escrevia e depois rasgava”, cujo título seria Os Cachimbólogos (ou seja, sobre os entendidos em cachimbos). Na realidade, pretendia fazer uma metáfora com os críticos de arte que estavam em evidência no período, de quem tinha horror.2 Nesses manuscritos eram tecidas considerações sobre o que era a crítica.3 Mas, se por um lado, a crítica auxiliava a “por um pouco de ordem no jogo”, por outro controlava tudo. Na opinião de Carlos Prado, um pequeno grupo de pessoas era quem tinha o domínio total e isso o irritava, pois não concordava com os conceitos desenvolvidos pela crítica da época e a quem se referia como sendo os “entendidos em arte”, sem nunca citar nomes. Em 1966, Carlos Prado redigiu um pequeno ensaio, onde procurava destrinchar textos críticos extraídos ao acaso de periódicos brasileiros e estrangeiros, providencialmente, eliminando dos comentários as indicações de fontes, a identidade dos críticos e dos artistas que tiveram suas produções analisadas, na tentativa de não dar um cunho pessoal. Assim, destacou: 1. Enteado de Carlos entre 1958 e 1963, período em que o artista foi casado com Esther Galvão de França Pacheco e, portanto, quando eles tiveram um maior convívio. 2. Os críticos do modernismo, tais como Geraldo Ferraz, Paulo Mendes de Almeida, Pietro Maria Bardi, Quirino da Silva e Sérgio Milliet consideravam Carlos Prado e seu trabalho artístico. Portanto, o ódio que Prado sentia dos críticos não tinha nada que ver com eles. Ele alimentava tal sentimento por aqueles que defendiam a arte abstrata. 3. Edgar Pacheco de Albuquerque em entrevista concedida à autora, em 28 out. 2009. Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960 | 323 [...] O espaço, na pintura de X, não é a representação convencional do espaço tri-dimensional da pintura renascentista, mas é um espaço puramente pictórico, válido por si mesmo, cujas múltiplas dimensões são criadas por um jogo perfeitamente equilibrado de valores plásticos [...]. [...] X, na sua última fase, vem pesquisando com tenacidade o problema das relações bi-valentes [sic.] entre massas e volumes múltiplos [...]. [...] Embora o tema de que se serve X (trata-se de um escultor, cujas esculturas representam nus femininos) seja convencional, embora às vezes suas obras beirem o anedótico, pela sua evidente preocupação de representar a anatomia das figuras, elas atingem frequentemente um alto nível escultórico, pois graças ao instinto seguro do artista, apoiam-se sempre em formas básicas, que servem como ponto de partida para o estudo e aprofundamento dos problemas plásticos que ele pesquisa [...]. (PRADO, 1966-1980) A partir dos três trechos, ele mesmo acabou concluindo não ser capaz de compreender os críticos, chegando a se autodeclarar, ironicamente, um “não entendido em arte”, porque o modo que os “entendidos em arte” interpretavam as obras não tinha relação alguma com o que os artistas procuravam exprimir. O que fica evidente, entretanto, é que o discurso de Carlos Prado atacando os críticos tinha como alvo Mário Pedrosa e os que se relacionavam com a Associação Internacional dos Críticos de Arte (Aica), cuja atuação se pautava, em certa medida, pela Unesco, instituição que pretendia fazer uma política de diplomacia entre Estados nacionais no âmbito da cultura, além de estimular a circulação de pessoas e bens no plano internacional. Eles haviam assumido o discurso de internacionalização da arte, visando trocas culturais, combatiam o nacionalismo somado à relação da URSS com o nazismo, estimulando o abandono da linguagem figurativa em detrimento da abstração como um gênero independente. Ou seja, promoviam a abstração, deixando a arte figurativa para o passado. Pedrosa foi uma figura fundamental para o surgimento e consolidação do movimento de abstração geométrica, contribuindo sobremaneira para a transformação dos cânones estabelecidos na arte brasileira que até aquele momento era dominada pelos artistas representantes do realismo pictórico, assim como Carlos Prado. 324 | Graziela Naclério Forte Dificuldades para se reintegrar Além da nítida retração da produção e recepção da arte figurativa pela crítica de arte, a lógica do mercado se impunha às artes desse período, atingindo todos os setores e instâncias, desde a produção até a circulação. Dentro da sociedade de consumo, as artes plásticas também ficaram sujeitas às leis da oferta e demanda, as quais passaram a apresentar uma complexidade crescente dos mecanismos de legitimação. As qualidades e o valor das obras eram definidos através das estruturas institucionais, dentro das quais se inseriam a produção, distribuição e o seu consumo. O papel do crítico era determinante na adoção dos critérios para a definição do valor artístico. Absorvidas pelas relações capitalistas, as artes plásticas tornaram-se mercadorias de luxo em um circuito muito particular. Na opinião de Carlos Prado, a cultura de massa havia feito com que a arte se tornasse banal como qualquer outro produto disponível para consumo. Em entrevista ao arquiteto Hugo Segawa, afirmou que: [...] a verdade, portanto, a avaliação do ‘valor’ das obras de arte (e do trabalho dos artistas) depende, em última instância, do julgamento dos ‘entendidos em arte’. Os ‘entendidos em arte’ estão porém raramente de acordo. Na realidade, portanto, o valor ‘artístico’ das obras de arte depende, tal como seu valor mercantil, da maior ou menor publicidade que delas é feita. Em suma, tal como sucede no caso de refrigerantes, sorvetes, cuecas, etc. (SEGAWA, 2008). Descontente com os rumos que a arte havia tomado, Carlos Prado também passou a questionar, nos anos 1960, o que ela era e para quem se destinava. Contrário à ideia de que arte é sinônimo de elitismo, conhecimento para poucos, passou a entrevistar pessoas dos mais variados níveis sociais. Notou que a maioria desculpava-se, quase de imediato, quando solicitada a opinar sobre determinada obra, evocando o bordão “eu não entendo de artes plásticas”. Na opinião do artista, isso era quase como um pedido de perdão por estar se metendo em uma seara que acreditavam ser propriedade exclusiva dos “entendidos em arte”, ou seja, pessoas com cursos universitários, que produziam os tratados, ensaios, monografias, artigos ou proferiam cursos e conferências sobre o assunto, passando a explicar sua significação e razão de ser. Prado ainda fez questão de ressaltar que as pessoas, de modo geral, demonstravam pouco interesse por mostras de arte, museus, galerias ou salões. Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960 | 325 Muitas vezes, o acesso a esses eventos era gratuito ou a um baixo custo e mesmo assim, não apresentavam grande público em seus corredores, chegando a ser ínfimo quando comparado aos frequentadores de cinemas, que têm preços mais elevados. Finalmente, concluiu que se o interesse pelas artes plásticas tivesse sido grande, constantemente estes locais estariam repletos de visitantes. Apenas uma minoria, denominada elite, por elas se interessavam. Assim, uma nova questão surgia: tentava-se sempre relacionar o público interessado pelas artes plásticas com pessoas provenientes de uma classe social economicamente privilegiada. De acordo com ele: Há quem considere essa minoria como sendo uma elite. É preciso porém que nos entendamos sobre o que vem a ser uma elite. O que normalmente se entende por essa palavra, é a nata de uma sociedade, isto é, os expoentes máximos de uma certa cultura, a cúpula de uma estrutura cultural. Para que possa haver uma cúpula, porém, é preciso que exista uma estrutura que a sustente. Para que a minoria interessada nas artes plásticas pudesse merecer o título de elite, seria portanto preciso que ela fosse a nata de um público interessado em artes plásticas. Uma minoria não tem o direito de se considerar uma elite, porque se interessa por uma certa atividade humana (SEGAWA, 2008). E assim, após dez anos sem produzir (1960), Prado retomou as atividades artísticas, possivelmente, porque, na década de 1970, ocorreu “uma nítida retração da produção e recepção da crítica de arte” (BARROS, 2008:2). Logo no início da década, Mário Pedrosa havia deixado o Brasil, passando a viver exilado no Chile, durante o governo de Salvador Allende. Além disso, houve a consagração máxima da Semana de Arte Moderna por ocasião das comemorações de seu cinquentenário, em pleno período da ditadura militar, tornando-se um fenômeno de interesse oficial e popular. O Modernismo, por sua vez, virou tema de documentários, filmes de ficção, peças de teatro, etc. O Instituto Nacional do Livro publicou a obra completa de Mário de Andrade. A Revista Cultura dedicou um número inteiro ao Modernismo, com ensaios de renomados pesquisadores. O Museu de Arte de São Paulo, contando com o apoio de Pietro Maria Bardi, montou uma grande exposição, retomando as obras de artistas ligados à Semana de Arte de 1922 (COELHO, 2012:20). Ou seja, a valorização dos modernistas só se consolidou no início dos anos 1970, quando passou a fazer parte do calendário oficial da cultura brasileira e foi visto como uma das mais valiosas tradições. 326 | Graziela Naclério Forte Em fins da década de 1960, Carlos Prado retomou a técnica da sobreposição de imagens em seus trabalhos, a qual havia adotado ainda nos anos 1950, onde os elementos se organizam uns por cima de outros para expressar uma interação. Nessa época, a Secretaria da Fazenda do Governo do Estado de São Paulo adquiriu a tela Peixe (1946), que foi transferida em 1971 para o acervo do Palácio Boa Vista, localizado na cidade serrana de Campos do Jordão. A justificativa para a compra é o espírito nacionalista da obra que identifica o momento cultural do Modernismo, ao lado de peças de mobiliário artístico colonial brasileiro e imagens sacras do século XVIII.4 Em 1976, a antiga Pinacoteca Municipal de São Paulo, hoje transferida para o Centro Cultural São Paulo, adquiriu do Museu de Arte Moderna de São Paulo, através da Secretaria de Cultura, a obra Zeolandro (1940). Já Varredores (1935) pertencia ao colecionador, ex-presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo e empresário Aparício Basílio da Silva, quando foi exposta na Bienal de 1985. Depois ela foi negociada e passou a fazer parte do acervo de MASP, onde se encontra até agora. Assim, as aquisições do Palácio Boa Vista, do MAM e da Pinacoteca Municipal deram-se também na década de 1970. Em comum, esses trabalhos assinados por Carlos Prado e que se encontram nos acervos de museus e instituições paulistas são datados das décadas de 1930 e 1940. Obras de Prado voltaram a figurar ainda em mostras coletivas. Em maio de 1976, o Museu de Arte Moderna de São Paulo realizou uma retrospectiva. Portanto, o afastamento dele do sistema das artes plásticas, no nosso entender, deu-se em uma época de transformações significativas. A mudança nas relações entre os artistas e o público, a expansão da cultura de massa e a implantação da sociedade de consumo, o aumento no número de instituições (museus, mostras coletivas), a atuação cada vez maior dos críticos de arte e a diversificação das linguagens, além da reconfiguração dos discursos artísticos em defesa da Arte Abstrata e, paulatinamente, da Arte Contemporânea foram se estabelecendo como uma nova classificação artística. Todos estes aspectos podem explicar em parte a decadência de Carlos Prado e a opção pelo afastamento do sistema das artes plásticas e, principalmente, as dificuldades que teve no sentido de retomar a carreira dentro de um novo contexto. 4. Juliana Rodrigues Alves, responsável pela documentação e informação do acervo artístico-cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo, em depoimento à autora, em 27 maio 2011. Considerações sobre Carlos Prado e a arte figurativa nos anos 1960 | 327 Referências bibliográficas GARCIA, Maria Amélia Bulhões. Artes Plásticas: Participação e Distinção Brasil Anos 60-70. Tese de Doutorado, São Paulo, FFLCH-USP, 1990, pp. 89-90. Arquivo Carlos Prado, São Paulo, Pasta II, Capítulo I – “Eu não Entendo de Arte”, de 1966 até fins da década de 1980. SEGAWA, Hugo. “A Entrevista”. In: Carlos Prado. Memórias sem Palavras. 2ª. ed. São Paulo, FAU-USP, 2008. BARROS, José D´Assunção. “Mário Pedrosa e a Crítica de Arte no Brasil”. ARS, São Paulo, vol. 6, no. 11, 2008, p. 2. COELHO, Frederico. A Semana sem Fim. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2012, p. 20. | 329 A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da Cidade de São Paulo: restaurações MARIA LUCIA BIGHETTI FIORAVANTI* PERCIVAL TIRAPELI** Resumo: O estudo das pinturas franciscanas da cidade de São Paulo, dos séculos XVIII e XIX, foi o foco de minha pesquisa de mestrado. Proponho apresentar uma reflexão sobre a questão dos restauros em produções pictóricas coloniais, especialmente as de 2007 na igreja Conventual de São Francisco e a que teve início em 2010 na Capela da Venerável Ordem Terceira do Seráphico Pai São Francisco. Palavras-chave: Arte Sacra. Patrimônio. Pintura. Franciscanos. Franciscan Painting from XVIII and XIX Centuries in Churches of Sao Paulo City: Restorations. Abstract: The study on paintings in Franciscan churches in the City of Sao Paulo during the period from the last decades of 18th century and mid-19th century, which was developed as my master research. I propose to present a reflection about the painted ceilings and paintings of Conventual Church of Saint Francis during its restoration (2007) and the restoration at the Venerable Third Order of Saint Francis, that begans at 2010. Keywords: Art. Heritage. Sacrum. Painting. Franciscans. ** Mestre em Estética e História da Arte pelo Curso de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte MAC/USP, 2007; Curso de Pós Graduação em História da Arte, da Fundação Armando Alvarez Penteado, FAAP, 2002; Educação Artística pela Faculdade Santa Marcelina 1977; Participa do Grupo de Pesquisa Barroco Memória Viva, coordenado pelo Prof.Dr. Percival Tirapeli. ** Professor titular de História da Arte Brasileira, UNESP. Doutor e Mestre em Artes Visuais pela ECA/USP em 1984 e 1988 respectivamente. 330 | Maria Lucia Bighetti Fioravanti O assunto de minha pesquisa de mestrado engloba os forros pintados e os quadros de três edificações paulistanas: a igreja Conventual de São Francisco, a Capela da Venerável Ordem Terceira do Seráphico Pai São Francisco e a igreja do Mosteiro da Luz. Nesta última, realizei um estudo inédito da pintura do teto do coro, dada a sua inacessibilidade, por estar localizado dentro da clausura das irmãs Concepcionistas, que habitam o convento. A análise das pinturas e dos documentos existentes nos arquivos dessas instituições permitiu estabelecer os motivos que levaram os religiosos da Ordem Franciscana a se tornarem seus comitentes e muitas vezes seus próprios autores. Investiguei as fontes destas pinturas, bem como a mentalidade que transitava no universo em que essas obras extremamente simbólicas foram produzidas. Pude também situar dentro de um período de tempo a datação da pintura do teto do coro da igreja da Luz. Por uma feliz circunstância, naquela ocasião, quase no final de meu trabalho, quando todas as pinturas já estavam fotografadas, foi iniciada uma reforma com restauração na igreja conventual de São Francisco, o que veio revelar partes pintadas do teto da capela-mor que estavam encobertas de tinta branca e resgatar uma pintura anterior no teto da nave. Comparando as fotos que eu já havia feito com as imagens que estavam surgindo à medida que os trabalhos dos restauradores avançavam, pude avaliar que o que estava apresentado anteriormente era resultante de uma intervenção mais recente; na verdade, uma perversão da verdadeira obra artística executada após o incêndio ocorrido em 1880. Nota-se essa questão na mesma cena pintada no teto da nave, localizada junto ao arco-cruzeiro, antes e após do restauro de 2007. Fig. 1 Aqui a foto mostra a pintura como estava antes da restauração de 2007 (fig. 1), perto do arcocruzeiro. Porém, após a restauração foram revelados elementos dessa composição que estavam escondidos pelas camadas de tinta (fig. 2). Assim, também se revelaram os raios na cor vermelha que emanam do menino Jesus, que incidem diretamente na parede lateral da igreja, onde hoje A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da Cidade ... | 331 aparecem pintados dois frades (fig.3) prostrados por terra e que anteriormente haviam sido encobertos por tinta azul. Fig.2 Esses dados podem nos trazer nova luz sobre o significado da iconografia. Quanto ao estilo e composição, pode-se dizer que além da revelação iconográfica, que antes se achava oculta, evidenciouse toda a expressão e leveza da pintura, que havia perdido a suavidade dos traços e das cores originais. Referente à autoria, os relatórios da equipe de restauradores, baseados em fontes de pesquisa como documentos e atas da Arquidiocese de São Paulo, afirmam que os retábulos da igreja foram montados nas dependências da Faculdade de Direito de São Paulo, pelo artista Franz Xavier Rietzler, responsável também pela pintura a óleo do teto. Fig.3 [...] Francisco Xavier Rietzler, escultor premiado do Instituto Artístico de Munique, foi contratado para executar um altar em carvalho policromado e dourado; três grandes imagens (São Pedro de Alcântara São Domingos e a Santíssima Trindade); pintura a óleo do teto segundo esboço apresentado pela Ordem, entre outras artes. Quanto à pintura anterior, de 1951, estava assinada por Franz Bäthe. Aconteceram obras na igreja como registra o texto abaixo que se encontra a página 145, ano de 1951, do Livro de Crônicas de 1908, sobre a reforma efetuada na igreja conventual de São Francisco, no ano de 1951. [...] No decorrer deste ano de 1951, passou o interior da nossa Igreja de São Francisco por uma ótima reforma. O pintor Francisco Bäthe pintou o fôrro, as paredes e o púlpito e os doirou, lavou e pintou o altar-mor doirando-o em parte tendo deixado sem alteração o ouro velho que é mais precioso. 332 | Maria Lucia Bighetti Fioravanti Este fato gerou o seguinte questionamento: poderia esta assinatura referirse ao autor de uma pintura ou teria havido apenas uma restauração ou mesmo simples retoques, como nos sugere Hanna Levy: “Nos tempos modernos, uma inscrição, gravada na própria obra, indica às vezes a última restauração feita”. (LEVY, 1942, p. 22) Nesse caso fica a questão para nossa reflexão: Será que Franz Bathe pintou por cima das pinturas, existentes desde a reforma que se seguiu ao incêndio de 1880, tendo feito um trabalho de restauração? São episódios que causam surpresa ao pesquisador e que se constituem em pontos importantes para que outros pesquisadores deem prosseguimento ao trabalho com a finalidade de conseguir mais esclarecimentos. Dando continuidade à pesquisa, a partir de 2010, junto ao acervo da Venerável Ordem Terceira de São Francisco sob a coordenação do Professor Percival Tirapeli, por ocasião do restauro que permitiu a reabertura da igreja para o público em 2014, pude ter acesso a vários documentos. Esta análise da documentação e das pinturas que foram restauradas ocasionou uma série de questões. A primeira delas envolve a autoria da pintura dos sete painéis que compõem o zimbório (fig. 4) da capela dos terceiros e se baseia em pagamentos que constam do Livro de Recepção e Despesas (1798/99), fotos feitas em 2006 e do Relatório de 1949-1952, fotografado em 2013. Fig.4 Durante os trabalhos no acervo em 2013, surge a notícia de que, em decorrência do grande restauro que estava ocorrendo na igreja, o professor Percival Tirapeli constatou, no zimbório (Fig. 4), a existência de um tipo de madeiramento não compatível com a época em que pintura foi datada, século XVIII, o que colocou em dúvida tanto a autoria atribuída, por Frei Ortman (1951, pp.334-335) primeiramente, a José Patrício da Silva Manso e depois a Manuel da Costa Vale ou Manoel Costa (FIORAVANTI, 2007, p.311), conforme apresentei na pesquisa em 2007. A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da Cidade ... | 333 Porém, ao prosseguir com o trabalho junto aos arquivos, justamente foi encontrado um relato,1 que foi fotografado em 2013, sobre reformas feitas no telhado da instituição no ano de 1950 (fig. 5). O documento descreve o péssimo estado da cúpula e afirma que as pinturas não puderam ser salvas. No ano de 2014, pude fotografar novos registros que se referem à reforma da cúpula em 1970, 1971 e 1973. Fig. 5 Outra dúvida aparece quando o relatório de 1970 se refere a 12 painéis da cúpula. Quais seriam? O zimbório é octogonal e construído sobre uma base de pilão quadrada e possuía, até 1799, dois painéis a mais, que, naquela ocasião, foram substituídos por vidraças (ORTMANN, 1951, pp.334-335). Hoje se veem apenas seis painéis em forma de trapézio e um circular central! Outro ponto importantíssimo para esclarecer. Nova descoberta abriu caminho para mais uma série de problematizações. Foi possível ter acesso e fotografar, em 2010, uma matriz litográfica (Fig. 6). Trata-se de uma peça de pedra gravada representando São Francisco entregando as regras da ordem a dois santos terciários, Lucio e Bona, rodeados de várias figuras, tendo no verso diversos modelos de emolduramento além da palavra “Porto” (Fig. 7). Fig. 6 Fig. 7 1. Arquivo V. O. T. S. F. Relatório Geral da Fraternidade 1949-1952. Caixa de Documentos. Livro nº 227. P.26 334 | Maria Lucia Bighetti Fioravanti A análise desse objeto remeteu à pintura do teto da nave da igreja dos terceiros.2 que apresenta a mesma cena, embora contendo apenas as três figuras centrais e de forma espelhada, surgiram então vários questionamentos: • A encomenda da pintura poderia ter sido baseada numa gravura gerada por essa matriz? • A palavra PORTO gravada no verso seria uma referência à cidade portuguesa? • Foi possível observar também que a pintura da igreja está contida dentro de uma moldura de formato oval. Estaria obedecendo a um dos modelos de contornos desenhados no verso da pedra? Esse episódio, de acordo com Hanna Levy (1942, p. 7), pode ser considerado como uma fonte, que indicaria o modelo apresentado pelo comitente ao pintor o que levanta a questão: Poderia essa matriz ter sido trazida de Portugal como era costume? Da cidade do Porto? Em 2014, com o avanço dos trabalhos de restauração tanto do edifício, seus retábulos, imagens e quadros, oito pinturas foram encaminhadas para o atelier de Julio Moraes e retornaram totalmente diferentes. São elas: Morte de São Francisco (lado do Evangelho), Renúncia de São Francisco aos seus direitos de Herdeiro (lado da Epístola), Divina Justiça (lado do Evangelho), Indulgência da Porciúncula (lado da Epístola) (fig. 8 e 9), Anunciação, Nascimento, Apresentação e Adoração dos Magos (quadros da capela da Conceição). Em meu trabalho de mestrado, fotografei todas as pinturas e tomei por base as descrições e atribuições registradas por Frei Ortman em seu livro: A historia da Antiga Capela da ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo. Porém, diante dos avanços atuais, do surgimento de traços, cores e até personagens que estavam encobertos por camadas de tinta que o restauro retirou, a pesquisa se vê diante de novas possibilidades e da necessidade de se refazer essas leituras, com novas reflexões sobre autoria e datação. 2. Atribuida, por alguns autores, a José Patrício da Silva Manso, entre os anos de 1790-1793. (ORTMANN, 1951, p.93 e ARAÚJO p.122) A pintura franciscana dos séculos XVIII e XIX em igrejas da Cidade ... | 335 Fig.8. Anterior ao restauro Fig.9 Após o restauro Indulgência da Porciúncula Na continuidade da pesquisa acompanhando os restauros e trabalhando em arquivos, percebe-se que podem surgir praticamente outras pinturas, embaixo das camadas retiradas, sejam elas de verniz e veladuras do tempo, sejam elas retoques feitos por mãos inábeis. Também convém salientar a importância do conteúdo de documentos, porque muitas vezes surgem registros inesperados que subvertem aquilo que já era dado como certo. Nas duas ocasiões citadas, surgiram traços, cores, suportes que trouxeram uma série de indagações e problematizações envolvendo autoria e datação, que muitas vezes já tinham sido confirmadas até por registros existentes em Livros dos Arquivos. Uma pesquisa nunca está definitivamente terminada, pois, embora após um percurso de averiguação e reflexão possam ser colocadas algumas considerações, outras questões permanecem em aberto para serem investigadas especialmente as que derivam das descobertas pós-restauros. Porém, em decorrência do trabalho foi possível considerar a singularidade da arte franciscana em São Paulo, delineada por características próprias como a questão ascética que se reflete na forma, pelo despojamento que faz parte do pensamento franciscano, aliado às dificuldades técnicas de produção artística que resultaram em composições bem diferenciadas das apresentadas pelos locais mais desenvolvidos da Colônia. É uma arte que possui a emoção contemplativa da mentalidade franciscana, ou seja, uma expressão de êxtase místico, porém, mais contida e apresentada de forma despojada. 336 | Maria Lucia Bighetti Fioravanti Referências bibliográficas ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno de Monte Carmelo. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1944. FIORAVANTI, Maria Lucia Bighetti. Dissertação de Mestrado. A Pintura Franciscana dos séculos XVIII e XIX na cidade de São Paulo: Fontes e Mentalidade. MAC/USP, 2007. LEVY, Hanna. A pintura colonial no Rio de Janeiro: notas sobre suas fontes e alguns aspectos. Revista do SPHAN. Rio de Janeiro, n. 6,1942. LEVY, Hanna. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do SPHAN. Rio de Janeiro, n. 8, 1944. ORTMANN, Frei Adalberto O. F. M. História da antiga capela da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo. São Paulo: DPHAN, 16,1951. RÖWER, Pe. Dr. h. c.Frei Basílio O.F.M. Páginas da história Franciscana no Brasil. São Paulo: Vozes, 1957. TIRAPELLI, Percival; PFEIFFER, Wolfgang. As mais belas igrejas do Brasil. São Paulo: Metalivros, 2000. TIRAPELLI, Percival; SALOMÃO, Myriam. Pintura colonial paulista. In: TIRAPELLI, Percival (Org.). Arte sacra colonial. São Paulo: EDUNESP, 2001. | 337 Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo LAUCI BORTOLUCI QUINTANA* Resumo: Trata sobre a coleção de livros de artista da Biblioteca do MAC USP. Aborda os principais pontos da inserção de uma nova coleção em uma biblioteca de museu, principalmente enfocando sua publicidade em banco de dados, para que a coleção possa ser descoberta e utilizada pelos usuários. Este texto traz a memória do processo de incorporação desta nova coleção ao trabalho da Biblioteca e sua inserção no sistema de catalogação automatizada, fazendo com que a tecnologia seja a via de disseminação de coleção. Serão abordados os tipos de material, seu tratamento e a metodologia aplicada. Será dada ênfase ao fato de que a nova coleção está situada em uma biblioteca com o caráter de pertencer a uma universidade pública, além também de ser uma biblioteca de museu, tendo que responder aos anseios museológicos e universitários. Palavras-chave: Livro de artista. Bibliotecas de arte. MAC USP. Special Collection of Artist’s books of the Museum of Contemporary Art, University of São Paulo Abstract: The text deals with the collection of artist’s books from the Library of MAC USP. It brings the main points of insertion of a new collection in a museum library, mainly focusing their advertising on database so that the collection can be discovered and used by the society. This text also brings the memory of the process of incorporation of this new collection to the activities of the Library, and their inclusion * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e Historia da Arte da Universidade de São Paulo. 338 | Lauci Bortoluci Quintana in automated cataloging system, making the technology the aim of spread of an unknown collection. We will discuss the types of material, its treatment and the methodology applied. Emphasis will be given to the fact of the new collection is located in a public university library, and also a museum library, having to respond to the museums needs. Keywords: Artist’s books. Art Library. MAC USP. Introdução A coleção especial de livros de artistas foi iniciada na Biblioteca MAC USP no ano de 2011, com o início dos trabalhos relacionados ao recebimento, ao tratamento técnico descritivo e à disponibilização do material ao usuário. Este texto traz a memória do processo de incorporação desta nova coleção ao trabalho da Biblioteca e sua inserção no sistema de catalogação utilizado para os documentos já existentes. Serão abordados os tipos de material, seu tratamento e a metodologia aplicada. Livros de artista no Museu de Arte Contemporânea O MAC USP é considerado um espaço de experimentação nas artes plásticas e visuais brasileira e internacional. É notória sua capacidade de assimilar, aglutinar e proliferar as novas tendências e ser receptáculo de novas ideias, artistas e fenômenos culturais. Nesse sentido, sua Biblioteca também, como um organismo vital, acompanha os passos de seu caminhar, colaborando na disseminação dessas novas ideias, com a adição de ser sua tarefa fazer com que esse conceito de experimentação tome forma documental. Iniciar novas coleções que surgem no cenário artístico, faz-se como nova empreitada de trabalho, desafiando os conceitos tradicionais da Biblioteconomia e da Documentação. Reportemo-nos a Douglas Crimp, que ao realizar pesquisa sobre meios de transporte, encontrou o livro de fotografias do artista Ed Ruscha, intitulado “Vinte e seis postos de gasolina” (fig. 1), classificado na rubrica “meios de transporte”. Nessa ocasião, ele comentou que achava engraçado que o livro fora mal catalogado e agrupado junto a livros sobre automóveis, estradas, etc. Imaginou que a bibliotecária desconhecia o fato do livro ser sobre arte, uma vez que não fazia nenhum sentido o livro de Ruscha estar dentro das categorias, Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte ... | 339 segundo as quais os livros de arte são catalogados. Nisso verificamos, justamente, o mérito desse artista O fato de não haver nenhum lugar para “Vinte e seis postos de gasolina” no sistema de classificação já era indício de seu radicalismo em relação às formas instituídas de pensamento. A arte conceitual quebra expectativas arraigadas e até mesmo rompe com paradigmas estabelecidos de pensamento, criando um desconforto intelectual ao espectador. Seja em intervenções no ambiente ou via projetos que envolvem o telespectador, o que importa ressaltar é o predomínio da arte e do pensamento sobre o objeto. Nesse sentido, o livro de artista, como uma dimensão da publicação de artista, traz intrínseca a teoria da arte que o abriga, qual seja a arte conceitual. Os livros de artista do MAC USP, quando do início das atividades do Museu, em 1963, foram catalogados como obras de arte caso tivessem sido originados de exposições, corroborando o “valor de exibição” como fato norteador de sua inserção no acervo. Já outros trabalhos semelhantes, uma vez que não tivessem esse mesmo princípio de origem, ou seja, não tivessem sido participantes de exposições, não seriam então catalogados como obras, permanecendo num limbo de “não lugar”, conceito definido por Marc Augé, utilizado aqui exatamente pela falta desse lugar filosófico e conceitual. Assim, o que se assistiu foi o encaminhamento dos materiais à biblioteca, sem qualquer princípio de formação de coleção. Isso não foi prerrogativa do MAC USP, mas da situação da própria arte conceitual nos museus e do desconhecimento do tratamento desses materiais tão estranhos ao mundo bibliotecário. A busca de um “lugar” para a coleção de publicação de artista, retirando-a desse limbo conceitual, nos coloca na posição de fomentar a práxis que corrobore com a teoria até então esquematizada. A coleção, enquanto item documentário, passa então a ter seu lugar estabelecido no esquema de trabalho bibliotecário. Mas hoje, com um novo entendimento para os materiais artísticos, o item então classificado como obra de arte no formato livro deixa de fazer parte das obras de arte deste Museu e retorna à Biblioteca que primeiramente o tinha recebido, há quarenta anos atrás, agora fazendo parte de um novo olhar, de um novo entendimento desse suporte, enquanto novo recurso documentário e artístico. A conceituação e titulação dos livros de artista é parte de um todo maior, no qual estão inclusas todas as publicações de artista. Esse termo, por sua vez, não faz referência somente ao suporte livro, mas sim ao suporte impresso e seu caráter múltiplo e distributivo, pressupondo uma edição, tiragem e circulação. 340 | Lauci Bortoluci Quintana Essas publicações são as circuladoras das novas poéticas dos novos artistas. Quebramos aqui paradigmas artísticos e filosóficos até então vigentes, como a questão da unicidade, valoração e maleabilidade da obra. Essas novas noções, ou estruturas de pensamento, são atualizadas por produções de tiragens múltiplas, possibilitando ao trabalho artístico uma porosidade em relação ao seu caráter institucional e geográfico. Receber esses novos formatos se constitui no ponto crucial para o sucesso da disseminação desta informação. Geralmente, essas produções se configuram em meio impresso, com tiragens limitadas, por meio das artes gráficas, imagens ou textos. Projetos artísticos se utilizam desses novos formatos, configurandoos em novos trâmites de edição, publicação, distribuição e circulação. Interessante observar que nem todas as publicações de artistas possuem o formato tradicional de livro. O meio impresso (xerox, laser, serigrafia, selos, cartões postais, gravuras, folhetos, adesivos, cartas, cédulas, cartazes, jogos, mapas) também se presta às dimensões interdisciplinares da publicação, ou seja, meios em geral, sonoros e midiáticos, inclusive, colocam-se como veículo das poéticas dos artistas na disseminação de sua obra, seu projeto artístico. O conceito de raridade do trabalho vem também para questionar o caráter da obra e sua circulação, quebrando paradigmas até então estáticos da obra de arte. Importante notar que o início de uma coleção, e seu tratamento, em especial uma coleção com esse caráter conceitual, vem atrelado ao trabalho de um curador que avalize sua pertinência na coleção. Neste trabalho, além de demonstrar o esquema de inserção e início de uma nova coleção, é importante ressaltar que o trabalho do curador da coleção traz à tona a práxis pensada e teorizada sobre a questão do lugar da arte conceitual, tanto nos museus quanto nas bibliotecas. A questão levantada pelas pesquisas sobre o assunto abrange três momentos distintos: a obra de arte e a distinção entre ela e sua própria documentação; como dar inteligibilidade à obra de arte; e por fim, como encontrar o locus da coleção e fazer com que as obras sejam opções de acolhimento do publico no museu. Essas três questões permeiam a própria arte contemporânea e se colocam como temas importantes no processo de identidade dos trabalhos documentários. Para esta Biblioteca e este Museu, as questões nos levam a três respostas que se completam: a obra de arte e sua distinção entre ela mesma e sua documentação, ou seu registro, é demonstrada pela capacidade de transformação dessa obra em registro catalográfico por meio de base de dados desenvolvidas para tal (ver anexo). A inserção de catálogos na internet é o meio utilizado para que essa Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte ... | 341 obra seja imbuída de inteligibilidade, fazendo com que os meios tecnológicos sejam a ferramenta, com a qual se derrubem as fronteiras entre o material desconhecido e o público. A presença desses materiais na internet, melhor dizendo, de seus registros inteligíveis, é a única maneira que possuímos de trazer à sociedade a própria existência deles e de suas novas relações artísticas e sociais que podem ser o instrumento de mudança de paradigmas na própria história da arte contemporânea. A missão desta Biblioteca é a de lançar luz a uma coleção até então desconhecida aos pesquisadores, iniciando um movimento que vise à importância dessa documentação enquanto ferramenta que busque a mudança na mentalidade instituída em relação à arte e ao lugar do artista enquanto produtor de arte. Tipos de aquisição Detectar publicações de artista no próprio acervo da Biblioteca Após detectar publicações de artista no próprio acervo da Biblioteca, iniciamos o tratamento deste material, como, por exemplo, o catálogo de Marcel Duchamp “The bride stripped bare by her bachelors even: a typographic version”. Essa nova perspectiva fez com que o material fosse retirado da coleção de livros circulantes e agrupado à nova coleção, a saber, a de livros de artista. Material recebido da Divisão de Acervo do MAC USP Iniciamos o tratamento de catalogação com o registro do material recebido da coleção de livros de artista da Divisão de Acervo, o local por excelência das obras de arte do Museu. Esse material foi então o primeiro a ser trabalhado, com a elaboração da ficha matriz nos novos moldes, colocando-se a rubrica Livro de Artista. Material recebido em doação externa Passamos, por fim, a receber material externo que inicialmente é avalizado pela curadoria da coleção, a cargo da idealizadora da incorporação e tratamento deste novo material, Profa. Dra. Cristina Freire. A proposta da curadoria da 342 | Lauci Bortoluci Quintana coleção se dará não somente para avaliar o material externo que se apresenta para tal, como também pelo próprio início da coleção com o já mencionado catálogo de Duchamp. Tratamento técnico O início do tratamento técnico de qualquer material desta Biblioteca acontece pela feitura da ficha topográfica – ou matriz – que é utilizada para, além da descrição física do volume, receber o número de tombo de cada volume em particular. Sendo o tombo chave única para cada volume físico, uma ficha pode conter vários tombos e volumes, se o que ela contiver for o mesmo material. Iniciou-se aqui o pedido formal ao Sistema Integrado de Bibliotecas da USP (SIBi-USP) para a criação de uma sigla que unisse o material pertinente a esta nova coleção. Uma das razões era que a rubrica permitiria que toda a coleção fosse recuperada por um único cabeçalho. Inclusão do titulo “Publicação de Artista” A pedido da curadora da coleção, buscamos nos trâmites a possibilidade da abertura de uma chave maior que abrigasse outros tipos de documentos, que não somente os livros de artistas. As reuniões de curadoria nos levaram a solicitar, então, a abertura da rubrica mencionada, Publicação de Artista, como coleção especial. Isso significa que a coleção recebeu uma sigla em Sistema, intitulada PAR, que agrupasse os livros como também outros materiais que pudessem, no futuro, servir-se deste mesmo parâmetro de pensamento e contivessem outros tipos de materiais como discos de vinil, CDs, DVDs, etc. Nosso pedido passou, então, a explicitar a necessidade da existência desta sigla PAR e que ela fosse a agrupadora de outras rubricas que porventura viéssemos a necessitar. Abertura da rubrica Livro de Artista Após a abertura da coleção em sistema com a sigla mencionada, pedimos a abertura do novo cabeçalho Livro de Artista dentro desta nova coleção siglada. A abreviatura ficou estabelecida como “Liv. Art.”, tanto na etiqueta de chamada e na ficha matriz, como no registro em sistema. Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte ... | 343 Após esse procedimento, foi possível catalogar os novos materiais colocando-os na coleção especial PAR, e dentro dessa, com a rubrica “Liv. Art.”. Isso fez com que esse material ficasse logicamente separado da coleção circulante de livros em geral. Nota-se que os livros da coleção circulante, que tratam do assunto Livro de Artista, em seu contexto, não podem ser erroneamente catalogados como livros de artista, visto esse ser seu assunto de interesse, mas não se trata de um livro de artista, propriamente dito. Conclusão Esta comunicação não tem a pretensão de ser exaustiva sobre a descrição dos trabalhos desenvolvidos pela Biblioteca para o acolhimento da nova coleção de livros de artista. Esperamos que tenhamos conseguido descrever que o trabalho não se encerra nos trâmites técnicos, mas, como o próprio material que trata, deve estar sempre pronto a se descobrir, se modificar para a busca da sedimentação de sua identidade documentária. O trabalho técnico não se finda nos esquemas aqui encontrados para resolução do tratamento da coleção, mas, como a própria coleção, tem que ser dinâmico e flexível, e ser capaz de mostrar que é possível mudarmos as estruturas que estão dispostas, para que todos possam ter acesso a esse desafio que estamos vivendo. Referências bibliográficas FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo. São Paulo: Iluminuras, 1999. ROCHA, Michel Zózimo da Silva. Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes. Porto Alegre: Edição do Autor, 2011. SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura á injuria na construção do livro de artista. Porto Alegre: UFRGS, 1999. (Dissertação de Mestrado). THURMANN-JAJES, Anne (Ed.). Manual for Artists’ publication (MAP): cataloguing rules, definitons and descriptions. Bremen: Research Centre for Artists’ Publication, 2010. 344 | Lauci Bortoluci Quintana ANEXO A LIVRO DE ARTISTA: EXEMPLOS DE MATERIAIS E REGISTRO Coleção especial de livros de artista da biblioteca do Museu de Arte ... | 345 | 347 Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz com técnicas multiespectrais para caracterização executiva ELIZABETH A. M. KAJIYA* REGINA A. TIRELLO** Resumo: Este trabalho apresenta parte de pesquisa realizada no âmbito de curso de mestrado em desenvolvimento, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade da FEC-UNICAMP,1 voltado ao estudo de técnicas artísticas de pinturas murais brasileiras; tomando-se como caso analítico os afrescos realizados por Fúlvio Pennacchi (1905-1992) na Igreja N. S. da Paz, em São Paulo – templo que o artista projetou e decorou entre os anos de 1940 a 1947. Pennacchi retoma a antiga arte do buon fresco, mas a reinterpreta criativamente, tanto no aspecto técnico como no estético, conforme demonstraram resultados de estudos científicos de caracterização material realizados nos afrescos da Capela do Hospital das Clínicas-SP.2 Dentro dessa perspectiva, o estudo da ** Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade da FECUNICAMP – [email protected]. ** Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP – [email protected]. 1. Pesquisa de mestrado de Elizabeth Kajiya intitulada “Afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz, SP: estudos diagnósticos para caracterização executiva com técnicas multiespectrais, em desenvolvimento no Programa de Pós Graduação “Arquitetura, Tecnologia e Cidade” da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp. 2. TIRELLO, R. A. “Afresco de Fulvio Pennacchi na capela do Hospital das Clínicas da FM-USP: estudos científicos de caracterização material e executiva”. In: Revista CPC-USP, v.1, n.1, p. 103-120, nov. 2005/ abr. 2006. 348 | Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello história da arte técnica, vida e obra do artista e as análises multiespectrais são temáticas balizadoras para esta pesquisa. Palavra-chave: Fulvio Pennacchi. Afrescos. Pintura Mural. Análises Multiespectrais. Técnicas Artísticas. Studies of frescos Fulvio Pennacchi in church Nossa Senhora da Paz: diagnostic for the executive characterization using multispectral techniques Abstract: This work presents one part of the research developed under the Masters course of the graduate program in Architecture, Tecnology and City of the FECUNICAMP¹, focused in the study of artistic techniques of Brazilian wall paintings. Taking as analytical cases the Fresco paintings made by Fúlvio Pennacchi (19051992) in the Igreja N. S. da Paz church, in Sao Paulo; temple which the artist projected and decorated over the years 1940 to 1947. Pennacchi reincorporates the ancient art buon fresco, but creatively reinterprets its both technical and aesthetics aspects, as it has been shown by cientific studies on the characterization of Fresco walls in the chapel of the Hospital das Clínicas in Sao Paulo². Within this perspective, study of the history of the artist’s technical art, life and work together with multispectral analyses are the defining themes of this research. Keywords: Fulvio Penacchi. Fresco Art. Wall Painting. Multispectral Analysis. Arts Techniques. Introdução Esta comunicação apresenta alguns resultados de trabalho de mestrado,3 em desenvolvimento Programa de Pós-Graduação Arquitetura, Tecnologia e Cidade da FEC/Unicamp, voltado aos estudos de técnicas artísticas tradicionais de pinturas murais brasileiras. Refletem temas pertinentes à linha de pesquisa “Arqueologia da Arquitetura (AA) e Arqueometria: metodologias científicas 3. Pesquisa de mestrado de Elizabeth Kajiya intitulada “Os afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz: análises multiespectrais e cientificas para caracterização executiva de obras de arte”, em desenvolvimento no Programa de PósGraduação “Arquitetura, Tecnologia e Cidade” da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp. Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ... | 349 aplicadas ao estudo histórico material da arquitetura e de obras de arte” do GCOR – Arquitetura (Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura e Sítios Históricos) da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP,4 grupo que tem como objetivo realizar estudos analíticos de técnicas artísticas e arquitetônicas tradicionais visando datação, caracterização e diagnósticos de estado conservação de materiais artísticos e construtivos. O trabalho proposto para este evento trata de estudo de técnicas tradicionais de pinturas murais adotadas no Brasil, especificamente das variantes da tradicional pintura à fresco, tomando-se como caso analítico principal os murais feitos na década de 1940 pelo pintor toscano Fúlvio Pennacchi (1905-1992), radicado em São Paulo e ligado ao grupo Santa Helena.5 Consideramos que a produção artística de Pennacchi, apesar de muito profusa e variada, ainda é muito pouco estudada sob o ponto de vista técnico executivo, um aspecto que interessa diretamente à conservação e ao restauro de obras de arte. No caso específico de sua produção muralística, tal desconhecimento tem significado alterações grosseiras de textura, refletância e até de desenho de seus afrescos, conforme vimos observando em obras de restauração empreendidas nos últimos tempos em São Paulo, as quais priorizam a resultante estética em detrimento da manutenção da autenticidade material. Pennacchi é um artista singular no quadro da produção muralística paulista. Retoma a antiga arte do “buon fresco”, mas a reinterpreta criativamente, tanto no aspecto técnico como no estético, conforme demonstraram resultados de estudos científicos de caracterização material já realizados por uma das autoras sobre afrescos da Capela do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (TIRELLO, 2006).6 As balizas metodológicas desse estudo se constituem em referência processual para o desenvolvimento de análises multiespectrais e labo4. Site do GCOR-Arquitetura /Unicamp. Disponível em: http://www.fec.unicamp. br/~gcor_arquitetura/. Acesso em: 15 fev. 2013 5. O Grupo Santa Helena, constituído na década 1930, por pintores paulistas e estrangeiros, se reunia com o intuito de aprimoramento artístico, técnico e prático, teve em sua formação os artistas: Rebolo Gonsales, Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, dentre outros. 6. TIRELLO, R..A: “Afresco de Fulvio Pennacchi na capela do Hospital das Clínicas da FM-USP: estudos científicos de caracterização material e executiva”. In: Revista CPC-USP v.1, n.1, p. 103-120, nov. 2005/ abr. 2006. 350 | Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello ratoriais de nosso trabalho que visa à identificação das variáveis técnicas executivas do conjunto de afrescos realizados por esse artista na Igreja Nossa Senhora da Paz, no bairro do Glicério, em São Paulo, templo que Pennacchi projetou e decorou entre os anos de 1940 a 1946. A idealização, o projeto e a construção da Igreja Nossa Senhora da Paz se inserem no contexto da imigração italiana no Brasil e se integram aos objetivos das ações da Congregação Carlistas para assistência social e espiritual de imigrantes. Os padres Carlistas iniciaram, em 1940, a construção da igreja no bairro do Glicério com o apoio da elite paulistana (Figura 1). Figura 1: Ao fundo terreno em 1938, doado pela família dos Condes Penteado para a Congregação Carlista em prol da construção da Igreja de N. S. da Paz. Fonte: Acervo da Igreja N. S. da Paz, 2013. Tratam-se de vinte painéis murais de diferentes dimensões, com trinta e uma cenas representando temas religiosos que se distribuem nos espaços da igreja e convento (Figura 2). O fato dessas obras terem sido pouco alteradas ao longo do tempo possibilita a realização de múltiplos estudos sobre seus materiais artísticos constitutivos e reconhecimentos importantes dos processos executivos deste pintor, além do aprofundamento de pesquisas anteriores, contribuindo assim na constituição de uma base de referências para melhor entendimento histórico, técnico e artístico da obra de Pennacchi e também de outros artistas que produziram afrescos no Brasil na primeira metade do século XX. Figura 2: À esquerda, Vista geral das Capelas laterais da Igreja Nossa Senhora da Paz. Acervo: Elizabeth Kajiya, 2012. À direita, um dos vários croquis de estudos da decoração das capelas, realizado pelo artista. Acervo: Igreja Nossa Senhora da Paz, s/d. Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ... | 351 Para observação da morfologia superficial das pinturas da Igreja Nossa Senhora da Paz, entendida como texturização da argamassa, marcas de jornadas e incisões características do artista, vem sendo adotada a seguinte instrumentação: documentação fotográfica com luz visível (detalhamento técnico), luz rasante (morfologia/texturização) e radiação ultravioleta (identificação de alterações ou emprego de materiais estranhos à técnica original e imperceptíveis a olho nu) (TIRELLO , 2006), que gerarão mapas sínteses das características picturais distintivas dos afrescos estudados. Pretende-se que o resultado final desta pesquisa possa ir além da mera aplicação de técnicas analíticas, hoje, colocadas a serviço da conservação de bens culturais. Em perspectiva multidisciplinar, tenciona-se aprimorar procedimentos metodológicos de avaliação dos objetos artísticos que possam efetivamente subsidiar o trabalho de pesquisadores, historiadores, curadores e conservadores/restauradores que se dedicam ao estudo da muralística brasileira. O artista Fulvio Pennacchi Fulvio Pennacchi foi um artista plural. Pintor, desenhista, muralista e ceramista, Pennacchi imigrou para a cidade de São Paulo, em fins de 1929, onde viveu até sua morte em 1992. Nascido em 1905 na Itália, Villa Collemandina, na província de Lucca, região da Toscana, inicia seus estudos superiores na “Real Academia de Arte Augusto Passaglia” (PENNACCHI, 2009). Documentos encontrados no decurso dessa pesquisa contradizem os defensores da tese de ser o artista um autodidata, pois demonstram que sua formação é erudita, sendo graduado em Licenciatura – Decoração Mural. Inicia suas atividades acadêmicas ainda no ano de sua formação, em 1928, quando substitui como professor na Academia seu mestre e orientador o pintor Pio Semeghini (1878-1964).7 A teoria aplicada deste mestre torna-se influência para o artista Fulvio Pennacchi e sua obra, como também o movimento do “Retorno à Ordem”8 que surge entre as renovações que arte italiana experimenta nos 7. Pio Semeghini (1878- 1964),pintor desenhista, mestre e orientador de Pennacchi. Disponível em http://www.fulviopennacchi.com/d20_antonio.html. Acesso: 21/03/2012. 8. O “Retorno a Ordem” “corresponde” é expressão usada amplamente em toda Europa para expressar uma reação às experimentações das vanguardas artísticas (pinturas cubistas, futuristas e metafísicas)com reabilitação da dicção realista, da tradição e da 352 | Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello primeiros decênios de 1900 (PENNACCHI, 2002). O artista ainda estudante da academia executa em caráter experimental, os primeiros murais com técnica a tempera,9 em algumas casas na região de Gargagnana – Lucca. Entre essas pinturas murais, a têmpera e afresco, o artista tem uma fase intermediária com as pinturas murais a óleo, uma técnica bastante adotada no Brasil de então. (PENNACCHI, 2002). Segundo Zannini (1991), em São Paulo, Pennacchi integra o “Grupo Santa Helena”10 e, nos dez anos seguintes, suas pinturas murais tornam-se bem aceitas, principalmente entre representantes da alta sociedade ítalo paulistana.11 No ano de 1947, realiza dois afrescos “A ceia de Emaús” e a “Anunciação” (Figura 3), na Capela do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (TIRELLO, 2005/2006), mesma época em que o artista esteve envolvido com projeto e execução do majestoso ciclo de afrescos que escolhemos como objeto de estudo de mestrado. Figura 3: “Anunciação” à direita, “A ceia em Emaús”. Cópia fotográfica do estudo em aquarela sobre papel, 1946, de Fulvio Pennacchi, para o afresco da Capela do Hospital das Clinicas da FMUSP. Fonte: Regina Tirello. história, e da fidelidade figurativa, da celebração áulica e dos valores culturais nacionais de cada país. 9. Na técnica à têmpera podem ser utilizados diversas emulsões aglutinantes, as quais determinam o tipo de têmpera. Nessas emulsões são misturados líquidos aquosos com substâncias oleosas, gordurosas, cerosas ou resinosas. (MAYER, 1996, p. 289). 10. Sem programas preestabelecidos, o grupo Santa Helena surge na década 1930, por pintores paulistas e estrangeiros que se reúnem com o intuito de aprimoramento artístico, técnico e prático. Participaram deste grupo: Rebolo Gonsales, Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, dentre outros. Alguns artistas usam salas como ateliê no Palacete Santa Helena, antigo edifício na Praça da Sé, em São Paulo, a partir de meados de 1934. Em 1971, o prédio já em decadência foi demolido para dar lugar à nova estação Sé do metrô. 11. São realizadas as seguintes pinturas nas residências de: Rubens Filizola, “Colheita de Uva”; na de Carlos Botti, “A Última Ceia”; na do Engenheiro Carlos Botti, “A Visita”; na de Galileo e Plínio Emendabili, “Fazendo o Pão”, “Colheita de Uva”, “Sagrada Família”, “Madona com menino”, “Madona”; na do Comendador Alberto Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ... Figura 4: à esquerda. Esboço do Projeto Pennacchi e Petitni, 1939. Fonte: Acervo da Igreja N. S. Paz. | 353 Figura 5: à direita. Fachada interna Lateral – Estudo da decoração, 1939. Fonte: Acervo da Igr. N. S. Paz. Os anos dedicados à “Igreja de Nossa Senhora da Paz” vão de 1940 a 1947, quando projeta a arquitetura e as pinturas artísticas (Figuras 4, 5), executando os 20 (vinte) afrescos que se constituem no maior conjunto e pinturas brasileiras realizadas com esta técnica difícil e tradicional. Figura 6: Pintura afresco do Altar-Mor, 1942. Ao centro Cristo Crucificado, abaixo nas laterais as cenas da “Natividade”. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Figura 7: Pintura afresco à cima Nascimento de N. Senhora, e abaixo o Nascimento do Menino Jesus, 1942. Foto: Elizabeth kajiya, 2013. Bonfiglioli, “Colheita da Uva Numa Macieira”; e na de Dimas Moraes Correa, “Santa Ceia”. Nos anos seguintes, sua produção estará focada nos trinta e um afrescos da “Igreja Nossa Senhora da Paz” (PENNACCHI, 2002). 354 | Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello Esses afrescos são realizados em conformidade com o programa préestabelecido por Fulvio Pennacchi. Os espaços arquitetônicos, a pintura mural e os móveis são projetados como um todo. Fulvio Pennacchi é reconhecido como um pintor muralista especialista em afresco, e sua obra muraria na Igreja Nossa da Paz é considerada por muitos especialistas como a sua maior realização. As figuras 6 e 7 são exemplos de pinturas realizadas pelo artista na igreja. Tratamse dos afrescos sobre a “Cristo Crucificado”, a “Natividade” de Nossa Senhora e do Menino Jesus, pintados em 1942, que localiza,-se na abside do Altar-Mor. Notas sobre a secular técnica do afresco O termo “afresco”, definido por Ralf Mayer (1996), é utilizado para referir o processo tradicional do “buon fresco”, técnica que consiste em pintar sobre uma argamassa de cal de preparo recente, ainda úmida, com pigmentos moídos diluído em água. Quando a argamassa e os pigmentos secam, ocorre a carbonatação: as partículas de pigmentos fixam à cal da superfície do mesmo modo que as partículas de cal se ligam entre si, e com a areia formam a parte integral da superfície dando adesão ao suporte. Tirello (2001), em seus estudos sobre pintura murais, define dois sistemas principais adotados ao longo dos tempos para se realizar murais: “a pintura à seco” e “a pintura a fresco”. “No primeiro caso [a pintura], fixa-se ao suporte por adesão; no segundo por coesão, integrando-se ao reboco depois de secar, sem formar película”. A autora comenta que: “o substrato das pinturas a seco é constituído de apenas dois estratos de argamassa, o emboço e o reboco respectivamente”. Já o afresco exige um maior número de estrato: emboço, reboco e camada de massa fresca sobre a qual são aplicados os pigmentos na superfície ainda úmida. Seus procedimentos executivos são mais complexos. Caso o artista trabalhe numa área muito grande e tenha a necessidade de interromper o processo, deve cortar a argamassa no sentido oblíquo. Ao reiniciar a jornada12 no dia 12. Segundo Tirello (2001), as “jornadas” eram realizadas a partir do alto e da esquerda para direita, ao longo da linha horizontal. A junção entre elas se fazia com um corte diagonal nas bordas da massa, pintada e ainda molhada, com o auxilio de uma plaina, sobrepondo-se a esse pequeno plano inclinado a borda reta da jornada confiante. Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ... | 355 seguinte, deve-se primeiro molhar e raspar a área do corte para que a massa fresca pigmentada adira à parte já seca. Esses estratos estão representados no desenho esquemático da Figura 8, como um exemplo de um estudo de afresco brasileiro moderno.13 Figura 8: Esquema estratigráfico das camadas preparatória de uma pintura mural afresco moderno. A 1ª camada é o suporte; a 2ª e 3ª são os sistemas de massas que geralmente se aplica com grãos diferenciados e dias alternados; a 4ª camada é o estrato de cor que tem sua granulometria mais fina.. Acervo: CPCUSP, 2001. Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja N. S. da Paz: Identificando os padrões de textura Para identificar a morfologia superficial dos murais da igreja entendida aqui, como texturização da argamassa, marcas de jornadas e incisões, características da técnica de Pennacchi, e futuramente compará-las com os resultados obtidos nas já mencionadas análises da obra do pintor nos murais de Hospital das Clínicas, estão sendo adotados os mesmos parâmetros de observação e estudo da morfologia pictural de Tirello (2006), que se relacionam à identificação das diferentes texturas presentes nas superfícies pintadas. A saber: Textura tipo 1: Corresponde a trechos de massa pigmentada, de aspecto bastante granuloso, com agregados visíveis. A cor espalha-se nos interstícios dos grãos, sem formar camada aparente, como se aplicada quando a massa estivesse úmida. Sugere processo completo de carbonatação. Textura tipo 2: Material colorido espesso que distribui-se nos trechos grandes e mais abstratos da composição, encobrindo completamente a texturização da argamassa de reboco subjacente. 13. Desenho esquemático da pintura mural do artista Carlos Magano. In: Tirello 2001. 356 | Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello Textura tipo 3: Superfícies lisas, com aplicação de “massa e/ou tinta” homogênea formando camadas de textura fina, levigadas. Sobre superfícies com essas características pode ter ou não riscos feitos a pincel, em tons terra, definidores das formas representadas. Experimentos em curso. Selecionamos inicialmente duas obras em diferentes estados de conservação para delinear um “estado de autenticidade” referencial: o painel da “Santa Ceia” (figura 9), 1947, do refeitório do convento (com evidentes repinturas) e “Os Bem Aventurados”, 1947, do Juízo Final, localizado no espaço da igreja. Figura 9: Painel da “Santa Ceia”, 1947, Fulvio Pennacchi, 1947, 2,40 x 6,00 m, localizado no refeitório do Convento. A área demarcada na foto correspondente ao detalhamento da figuras subsequentes. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. “Santa Ceia” apresenta intervenções de restauro que descaracterizaram sobremaneira as superfícies aos padrões de Textura Tipo 1, ou seja, de áspera e nuançada, áreas inteiras foram encobertas com grossas camadas de repintura feita “a seco”, que as fazem assemelhar-se a uma pintura a óleo.Ver detalhe do fenômeno nas Figuras 10 e 11, nas imagens obtidas com radiação de luz ultravioleta, nas quais nota-se trecho de pintura empastada, sem nuanças claro/escuro, com ausência de texturização e incisões típicas da linguagem plástica deste artista nos afrescos. O painel “Os Bem Aventurados” do Juízo Final, localizado no espaço da igreja, sem restauros anteriores, permitiu a observação dos modos peculiares do Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ... | 357 fazer artístico de Fulvio Pennacchi, com suas incisões e granulometria características. Nas Figura 12, 13 e 14, nota-se a ocorrência de Texturas Tipo 1, feita com argamassa pigmentada, granulosa. Figuras 10, 11: à esquerda, detalhe da fotografia com luz ultravioleta. Observa-se o empastamento da massa pigmentada na “Última Ceia”. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Figura 12: Pintura “Os Bem Aventurados” Fulvio Pennacchi, 1947. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Figura 13: Neste personagem, como em todas as aureolas das figuras do painel comprova-se a adoção de textura do tipo 1. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Nas figuras 15, 16, 17, observa-se com fotografia feitas com “luz visível” exemplo Textura Tipo 2, com material mais espesso, encobrindo completamente a texturização da argamassa de reboco subjacente. Na Figura 18, tem-se exemplo de Textura Tipo 3, que corresponde às superfícies lisas, obtidas com aplicação de “massa e/ou tinta” homogênea, formando camadas de textura fina. Essa texturização Pennacchi usou em alguns detalhes dos personagens (Figuras 19, 20). 358 | Elizabeth A. M. Kajiya e Regina A. Tirello Figura 15: Pintura “Os Bem Aventurados” Fulvio Pennacchi, 1947. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Figuras 16 e 17: Recorte ( mãos) para avaliação de texturização característica. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Figura 18: Pintura “Os Bem Aventurados” Fulvio Pennacchi, 1947. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Figura 19: Detalhe da textura tipo 3. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Figura 20: Macrofotografia. Observa-se superfície lisa e homogênea formando textura fina. Textura Tipo 3. Foto: Elizabeth Kajiya, 2013. Conclusão: Os registros fotográficos com técnicas multiespectrais processados, até o momento, demonstram a similaridade entre os modos de trabalhar as argamassas e das opções colorísticas que Pennacchi adotou para ressaltar detalhes da Estudos dos afrescos de Fulvio Pennacchi na Igreja Nossa Senhora da Paz ... | 359 composição dos afrescos realizados na Igreja N. S. da Paz e na Igreja e na Capela do Hospital das Clínicas-SP, mostrando a assertiva da hipótese inicial de nossa pesquisa. Além de constituir um banco de dados documentais sobre as pinturas artísticas da igreja em estudo, dar-se-á prosseguimento ao trabalho realizando mapas de distribuição de cores para estudo da paleta cromática e demarcação dos pontos a recolher amostras para processar exames de caracterização dos pigmentos. Pennacchi incorpora a técnica do buon fresco italiano e a interpreta criativamente, nos seus aspectos técnicos e formal. Constata-se que usa a sobreposição de camadas de tinta aplicadas “a seco” sobre a argamassa pigmentada já enxuta (o afresco) como um recurso expressivo. Esse é um reconhecimento fundamental tanto para a história da teoria da técnica artística brasileira como para balizar diagnósticos de conservação futuro, contribuindo assim com planejamento de intervenções de restauro que preservem a autenticidade material da obra muralística de Fulvio Pennacchi. Referências bibliográficas MAYER, R. Manual do Artista de técnicas e materiais. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PENNACCHI, V. A. Fulvio Pennacchi: seu tempo, seu percurso. São Paulo: Lazuli Editora, 2009. . Pennacchi: Pintura Mural. São Paulo: Metalivros, 2002. Pio Semeghini (1878-1964), pintor desenhista, mestre e orientador de Pennacchi. Disponível em http://www.fulviopennacchi.com/d20_antonio.html. Revista Mensageiro da Paz, v.1, nº 8, maio 1940. Arquivo da Igreja Nossa Senhora da Paz. TIRELLO, R. A. O restauro de um Mural Moderno, na USP: O Afresco de Carlos Magano, São Paulo: CPC-USP, 2001. ______. “Afresco de Fulvio Pennacchi na capela do Hospital das Clínicas da FMUSP: estudos científicos de caracterização material e executiva”. In: Revista CPC-USP, v.1, n. 1, p. 103-120, nov. 2005/ abr. 2006. ZANNINI, M. A arte no Brasil na deìcada de 1930-40, O Grupo Santa Helena. São Paulo: Nobel-Edusp, 1991. | 361 A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível ROSANA GARCETE MIRANDA FERNANDES DE ALMEIDA* EDSON LEITE** Resumo: Este artigo trata da transferência da obra tumular de Victor Brecheret intitulada Musa Impassível, que foi criada por inspiração do soneto da poetisa Francisca Julia, e feita para ter morada sobre o túmulo da poetisa no cemitério do Araçá, em São Paulo. Ocorre que, no ano de 2006, a obra foi transferida para a Pinacoteca do Estado e, a partir de então, deslocada de sua função inicial, ela pode ser visitada como parte do acervo artístico. Palavras-Chave: Arte tumular. Victor Brecheret. Musa Impassível. Death on Chisel Victor Brecheret: Unmoved Muse Abstract: This Article attends on the transference of Victor Brecheret’s funerary art entitled Unmoved Muse witch was created by inspiration of poet Francisca Julia’s sonnet and done to be placed above hers tomb at Araçá’s cemetery in São Paulo. In the year of 2006 the piece was transferred to “Pinacoteca do Estado” and since then, removed from its initial position, it can be visited as of the artistic collection. Keywords: Funerary art. Victor Brecheret. Unmoved Muse. ** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo na linha de pesquisa Produção e Circulação da Arte ** Professor Titular da Escola de Artes, Ciência e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. 362 | Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite Introdução Dentro do contexto da arquitetura tumular, de obras tumulares, da memória familiar e de registros em cemitérios, Borges (2002) faz uma abordagem relevante e pertinente à construção de monumentos funerários em cemitérios secularizados. A autora relaciona tais obras com o comportamento da burguesia no início do século XX diante da morte. Segundo Borges, a história da arte contemporânea esteve mais absorvida com a cidade dos vivos do que com a produção de arte funerária. Ela ressalta a dificuldade dos historiadores quanto ao procedimento metodológico utilizado para estudar o cemitério e seus túmulos e relacionar os estilos com os temas, pois nem sempre eles caminham juntos; e conclui que falta perceber o poder da história da arte em se tornar uma força gerativa nas interpretações do que vemos nos cemitérios dos séculos XIX e XX agregada ao conhecimento da história da imagem e da cultura visual. Afinal, “o cemitério é um local que provoca efeitos, produz formas de sociabilidade e de poder e agrupa códigos simbólicos baseados no nosso modo de ver e sentir a morte” (BORGES, 2010, p. 638). A obra de Victor Brecheret intitulada Musa Impassível, instalada no ano de 1923 no cemitério do Araçá, na Capital de São Paulo, foi transferida para a Pinacoteca do Estado no ano de 2006, permitindo o ingresso de uma obra tumular num museu, caracterizando uma ação que ativa o imaginário dos visitantes, frente à fala instituída pela cultura contemporânea. É comum nos dirigirmos até um museu, uma pinacoteca, uma galeria, uma igreja, ou aos espaços culturais destinados à apresentação ou exposição de obras de artes e esculturas. Entretanto, não é somente nesses lugares que podemos visitar e ter acesso a um acervo artístico. Menos conhecidos e também menos visitados, podemos destacar como expositores a céu aberto de grandiosas obras de arte e belíssimas esculturas os cemitérios. Como relata Martini: Os cemitérios, apesar da aparência triste, podem guardar ricas surpresas para quem se dispõe a procurar. Principalmente nos mais antigos. Alguns podem ser considerados verdadeiras galerias de arte a céu aberto sendo possível encontrarmos peças e esculturas de artistas famosos (MARTINI, 2006). Analisar, estudar e abordar temas que se entrelaçam com a morte ou assuntos relacionados com cemitérios pode parecer uma excentricidade ou morbidez. A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível | 363 Dentro dessa ótica, é compreensível perceber que, desde sua criação até os dias atuais, o sagrado lugar de repouso eterno e absoluto dos mortos passou por diversas transformações ao longo dos séculos, encontrando nos dias atuais espaço para obras de arte e esculturas. O sepultamento surgiu por intermédio de uma crença: Um verso de Píndaro guardou-nos curioso vestígio desse pensamento das gerações antigas. Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia, fugindo até a Cólquida, onde morreu. Mas, embora morto, desejava retornar à Grécia. Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que fosse à Cólquida para de lá trazer sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio, do túmulo da família; mas, unida aos restos corporais, não podia deixar sozinha a Cólquida. (COULANGES, 2008, p. 13-14) Com o passar do tempo, os sepultamentos que eram realizados dentro de suas casas, onde a família mantinha um culto fúnebre doméstico, ganharam novos espaços; um deles foi o solo sagrado da igreja e, por fim, os cemitérios. Como relata Dias (2011), “na Europa, os sepultamentos dentro das igrejas eram comuns até o momento da peste negra (peste bubônica) quando as igrejas não comportaram mais tantos corpos, além do risco de contaminação, quando os enterros foram instituídos”. A autora complementa: No Brasil colonial e imperial os sepultamentos dentro de igreja também existiram até o ano 1820, quando foram proibidos, momento que construíram os primeiros cemitérios. Até então somente negros (escravos) e os indigentes eram enterrados. Os homens livres eram sepultados nas igrejas, por isso o tamanho de uma cidade era medido pela quantidade de igrejas que possuía, pois as igrejas faziam o papel dos cemitérios e algumas cidades coloniais, no Brasil, por exemplo, possuíam mais de 360 igrejas. (DIAS, 2011) Com a necessidade de enterrar seus mortos em locais apropriados, pois a igreja não comportava mais o contingente, e também por causa das doenças e epidemias, surgem os cemitérios. Segundo Reis: Quando a preocupação com a higiene passou a ser tema central no império brasileiro, a partir da segunda metade do século XIX, visto que já era uma 364 | Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite realidade na Europa, os governos passaram a aderir a esse novo padrão, reorganizando o espaço e a relação dos mortos com os vivos. Uma organização civilizada do espaço urbano requeria que a morte fosse higienizada, sobretudo, que os mortos fossem expulsos de entre os vivos e segregados em cemitérios extramuros. (REIS, 1991, p. 247) Nessa linha evolutiva, podemos destacar que os cemitérios tiveram que se afastar das cidades, iniciando assim a divisão das cidades entre os vivos e os mortos. De acordo com Faria (1999, p. 57), “hoje, em algumas cidades, a zona urbana cresceu tanto que de novo aproximou os mortos dos vivos”. Além desse crescimento, eles evoluíram também por dentro, tornando-se verdadeiros museus a céu aberto. Assim, os cemitérios passaram a ser vistos, pelos artistas e escultores como uma nova oportunidade de expor suas obras e demonstrarem seus talentos, o que lhes garantiu renda e de certa forma reconhecimento. Entretanto, no Brasil, segundo Algrave (2004), a visita aos cemitérios e a apreciação desse costume não foi incorporado na vida dos brasileiros, pelo contrário, o cemitério trouxe um aspecto negativo, ruim, triste, dramático e a visita era feita apenas no dia de finados ou por alguma outra ocasião esporádica. Nesse sentido, [...] a beleza das imagens e formas que adornam os jazigos são ignoradas, e os cemitérios tornam-se apenas um depósito de cadáveres. Na segunda metade do século XIX, o imigrante europeu no Brasil possuía a necessidade de eternizarse perante a sociedade e fazer do seu túmulo um símbolo de prosperidade junto aos seus compatriotas. Assim, os jazigos eram confeccionados por artistas trazidos da Europa especialmente para adornar a morada definitiva do colono. [...] Na verdade, a intenção das famílias imigrantes era fazer dos túmulos extensões do próprio lar. Os aspectos monumentais, ou humildes dos mausoléus representavam indiretamente a importância de determinadas famílias perante à sociedade da época.(ALGRAVE, 2004) Obras de Brecheret em Cemitérios O artista Victor Brecheret, ao longo de sua vida como escultor, desenvolveu diversas obras grandiosas, magníficas e majestosas, sendo que muitas delas fazem parte do dia a dia do povo brasileiro, que pode apreciá-las no vai e vem de suas vidas. Entretanto, o artista também abriu espaço e precedentes em sua carreira e A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível | 365 nos enriqueceu com algumas obras denominadas tumulares. A seguir nos deteremos sobre algumas delas: O Sepultamento Fonte: Pellegrini (s.d.) A obra O Sepultamento, de 1923, está localizada no Cemitério da Consolação, em São Paulo, no túmulo da paulista Olivia Guedes Penteado. Segundo Queiroz: Cabe lembrar que este conjunto representa o lamento e a despedida das 3 Marias, que ao pé do túmulo choram a morte de Jesus. Por esta belíssima escultura, toda em granito, com traços retos e relevo pouco acentuado o escultor foi premiado no Salão de Outono, também no ano de 1923. Anjo Fonte: Pellegrini (s.d.) A obra Anjo está localizada no Cemitério da Consolação, no túmulo da família Botti. Segundo Comunale, a obra foi “[...] produzida na década de 1940. A escultura apresenta um anjo com características brasileiras é uma clara referência aos ideais modernistas. A escultura apresenta as mesmas características de outra obra, A Deusa da Primavera, produzida na década de 1930”. Anjos Fonte: Baruch (2013) A obra Anjos está localizada no Cemitério São Paulo, na Capital paulista, no túmulo da família Schuracchio. Segundo Comunale (2011), construída na década de 1950, a obra apresenta um fundo em granito rústico e dois anjos em 366 | Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite bronze em oração. Novamente, os anjos apresentados aparentam representar a miscigenação brasileira. Cruz Fonte: Pellegrini (s.d.) A obra Cruz está localizada no Cemitério da Consolação, em São Paulo, no túmulo da família Julio Mesquita. Segundo Comunale (2011), não se tem informação da data de produção dessa obra. Ao contrário das outras representações aqui, a cruz aparece deitada sobre o túmulo, com um desenho e volume diferente dos apresentados nos cemitérios. A Musa Impassível A Musa Impassível foi esculpida pelo artista Victor Brecheret em 1923, na França, e foi encomendada pelo Estado de São Paulo para homenagear a poetisa Francisca Julia, que nasceu no ano de 1871, na antiga Vila de Xiririca (hoje município de Eldorado), interior do estado. Ela se mudou para Capital aos 8 anos de idade e, aos 14 anos, começou a desenvolver pequenos versos que eram publicados no jornal O Estado de São Paulo, em seguida, passou a escrever para o Correio Paulistano e para O Diário Popular. Poetisa Francisca Julia Fonte: Garcia (2012) Vocação literária, dedicação e facilidade para a escrita levaram a que, no ano de 1895, Francisca publicasse o livro intitulado “Mármores”, obra bastante elogiada pela crítica, pela qual “Francisca Julia quebrou barreiras em uma época onde quem ditava as regras era o universo masculino”. A poetisa recebeu o título de “A Musa Impassível” por intermédio da criação de sonetos intitulados “Musa Impassível I” e “Musa Impassível II”. (MIRANDA, 2008) A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível | 367 Francisca Julia viveu uma vida relativamente simples para os padrões da época; não participava das festas que aconteciam em torno dos grandes escritores. Mesmo assim, ela era aclamada por diversos poetas, tais como Olavo Bilac e Vicente de Carvalho, além de ter uma forte e enorme atuação nos circuitos literários. Segundo Garcia: Casou-se em 1909 com o telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil, Philadelpho Edmundo Munster. Em 1916, seu marido é diagnosticado com tuberculose. Neste momento, Francisca Júlia isola-se e seu lado espiritual começa a florescer. Continua a publicar seus poemas, mas agora são poucos e voltados para o lado da religiosidade. Alguns anos depois, em 31 de outubro de 1920, Philadelpho veio a falecer. (GARCIA, 2012) Fato bastante interessante, um tanto quanto inusitado e com traços de puro romantismo, gira em torno de sua morte, pois, horas após o falecimento do marido Philadelpho Edmundo Munster, a poetisa é encontrada morta no seu próprio quarto. À época, ninguém declarou que Francisca Julia havia cometido suicídio, “mas dizem que a poetisa morreu por amor, pois não iria aguentar a ausência de seu marido”. (GARCIA, 2012) Processo de Desenvolvimento da Obra A Musa Impassível de Victor Brecheret foi esculpida em mármore de Carrara. É uma obra de três toneladas e quase três metros de altura feita na imagem de uma figura feminina. A obra foi esculpida na França e ornamentava o túmulo nº9, quadra 6-A da poetisa Francisca Julia, até o ano de 2006. Com a morte da poetisa Francisca Julia, em 1920, foi despertada em alguns intelectuais liderados pelo senador e mecenas José Freitas Valle a vontade de homenageá-la. Assim, eles entraram em contato com o Presidente do Estado de São Paulo, Washington Luís, para fazer a encomenda de uma escultura e colocála no túmulo da poetisa. Nessa época, Victor Brecheret encontrava-se em Paris, estudando como bolsista, quando Freitas Valle entrou em contanto com ele e lhe propôs a criação de uma escultura póstuma para homenagear a poetisa. Segundo Garcia: Tendo em mãos alguns poemas de Francisca Júlia, Brecheret realizou o trabalho de 1921 a 1923 em Paris. Feita em mármore, o resultado não poderia ser melhor. 368 | Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite Uma linda escultura envolvida por sensualidade. Olhos fechados que nos remete a querer esquecer a dor da morte. Seios grandes e fartos para afirmar a importância da mulher na sociedade. Dedos e braços longos e delicados simbolizando a força e a superioridade de uma mulher que abriu segmento na literatura feminina. Nascia a Musa Impassível. (GARCIA, 2012) Musa Impassível no Túmulo de Francisca Julia. Fonte: Garcia (2012) A Transferência para a Pinacoteca do Estado A Musa Impassível saiu do seu local de origem, o cemitério do Araçá, e foi transferida para a Pinacoteca de São Paulo. A escultura sofreu as consequências do crescimento e da urbanização desenfreados da cidade de São Paulo, gerando problemas como relata Garcia: “A escultura estava se desgastando com a ação do tempo, principalmente com a chuva ácida. Sendo assim, foi necessária a sua remoção para desacelerar este processo de desgaste”. (GARCIA, 2012). Segundo Camargos: Na manhã de 13 de dezembro de 2006, teve início a delicada operação de retirar do Cemitério do Araçá, em São Paulo, uma obra de arte de quase três toneladas. Primeiro, a escultura recebeu um manto protetor e cordas atadas em volta do torso. Depois, com cuidado, foi suavemente empurrada. Devagar, como se não tivesse pressa em deixar o local que ocupava desde 1923, o colosso de mármore começou a se mover. Após horas de trabalho árduo, a equipe especializada conseguiu içá-la com um guindaste. Por minutos, a Musa Impassível alçou voo. Em seguida, pousou no caminho que a conduziu até a Pinacoteca do Estado, Ali, ergueu-se em um dos pátios internos para, finalmente, ser apreciada pelo grande público. (CAMARGOS, 2007, p. 117) Vale ressaltar que, na história da arte e da cidade de São Paulo, foi a primeira vez que uma obra tumular saiu de seu espaço cemiterial e foi transferida para outro lugar que não faz parte nem de sua essência e natureza nem do seu objetivo inicial e principal, o túmulo. No espaço ocupado pela Musa Impassível, foi colocada uma réplica em bronze, na tentativa de diminuir a eloquência da transferência da obra original. De acordo com Garcia: A Morte no cinzel de Victor Brecheret: Musa Impassível | 369 [...] a Musa Impassível continua a deslumbrar os olhares, seja na Pinacoteca, ou em sua antiga morada. Não há como desvincular a Musa Impassível do túmulo de Francisca Júlia, as duas estão ligadas intimamente desde o instante em que o poema foi escrito. As palavras da poetisa foram transformadas no mármore, por Victor Brecheret, em traços delicados. Ele conseguiu perpetuar a história dessas duas mulheres magníficas, Francisca Júlia e sua Musa Impassível. [...] A data de 13 de dezembro de 2006, 83 anos depois de sua instalação, foi o último dia da Musa Impassível no Cemitério do Araçá. A retirada da escultura envolveu mais de 15 pessoas, um guindaste e muitos curiosos. Após mais de seis horas de trabalho, com muito esforço dos envolvidos, a escultura despediu-se do mundo dos mortos para entrar no mundo dos vivos. (GARCIA, 2012) Segundo Camargos (2007), a transferência da Musa Impassível para a Pinacoteca do Estado foi possível e realizada com a anuência de ambas as famílias, a do artista Victor Brecheret e a da poetisa Francisca Julia. O que acontece é que foi possível “resgatá-la e dar-lhe o espaço nobre que ela merece, na Pinacoteca do Estado, para ser finalmente apreciada pelo público” (CAMARGOS, 2007, p. 11). Parece, afinal, que espaços antes importantes para a exposição e permanência de obras de grande valor estético, como os cemitérios, tornaram-se espaços não nobres e distanciados das possibilidades de apreciação pública, que definitivamente se deslocou para os museus. Figura 53: Musa Impassível Instalada na Pinacoteca Fonte: Garcia (2012) 370 | Rosana G. M. Fernandes de Almeida e Edson Leite Referências bibliográficas ALGRAVE, Beatrix. Arte cemiterial. 2004. Disponível em: <http:// www.spectrumgothic.com.br/gothic/acerv o_cemiterial/arte_cemiterial.htm>. Acesso em: 09 jan. 2014BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil (1890–1930): ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Belo Horizonte: C/ Arte, 2002. BARUCH, Alice. Victor Brecheret: nacionalidade brasileira: cidadão do mundo. 2013. Disponível em: <http://lendasdecaissa.blogspot.com.br/2013/03/victorbrecheret-nacionalidade.html>. Acesso em: 04 jan. 2014. CAMARGOS, Márcia. Musa Impassível. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007. COMUNALE, Viviane. A presença de Victor Brecheret na arte tumular em São Paulo. 2011. Disponível em: <http://www.congressohistoriajatai.org/ anais2011/link%2083.pdf>. Acesso em: 08 jan. 2014. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2008. DIAS, Adriana. Cultura funerária. 2011. Disponível em: <http://int-pub-coletivoadriana-dias-1-2011.blogspot.com.br/2011/03/pesquisa-culturafuneraria.html>. Acesso em: 15 fev. 2014. GARCIA, Glaucia. A história da Musa Impassível. 2012. Disponível em: <http:// www.saopauloantiga.com.br/a-historia-da-musa-impassivel/>. Acesso em: 30 mar. 2014 MARTINI, Augusto. Cemitérios, túmulos e obras de arte. 2006. Disponível em: <http://asimplicidadedascoisas.wordpress.com/2006/07/13/cemiteriostumulos-e-obras-de-arte/>. Acesso em: 05 jan. 2014. MIRANDA, Antonio. Francisca Júlia da Silva (1871-1920). 2008. Disponível em: <http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/ francisca_julia_da_silva.html>. Acesso em: 03 mar. 2014. PELLEGRINI, Sandra Brecheret. Victor Brecheret: obras. Disponível em: <http:// www.victor.breche ret.nom.br/dec_20/20_19.htm>. Acesso em: 04 jan. 2014. QUEIROZ, Eliana. Cemitério da Consolação: arte e história imortais. 2007. Disponível em: <http://www.partes.com.br/especial_sp_450/artetumular.htm>. Acesso em: 30 jan. 2014. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. | 371 A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase ADRIANA BOMENY FREIRE* EDSON LEITE** Resumo: O presente artigo visa demonstrar que a arte floral da Ikebana é uma manifestação estética significativa, integrante da história da arte japonesa e que vem se disseminando pelo mundo. A arte japonesa é baseada nos sentimentos e na simplicidade de expressão, que motivaram este povo a utilizar a natureza como suporte para executar memoráveis obras de arte. Para compreensão de sua estética, e das características do “Zen”, este artigo terá como foco o trabalho do artista contemporâneo Toshiro Kawase, especialista em arte da Ikebana e que possui dois livros de âmbito internacional: Inspired Flower Arrangements (1990) e The Book of Ikebana (2000). Palavras chaves: Ikebana. Arte Japonesa. Arranjo Floral. Toshiro Kawase. The Ikebana and Toshiro Kawase Production Abstract: This article aims to demonstrate that the floral art of Ikebana is a significant aesthetic manifestation, part of the history of Japanese art and has spread throughout the world. Japanese art is based on feelings and simplicity of expression that motivated these people to use nature as a support to execute memorable works of art. To understand its aesthetics and characteristics of “Zen”, this article will ** Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo na linha de pesquisa Produção e Circulação da Arte. ** Professor Titular da Escola de Artes, Ciência e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. 372 | Adriana B. Freire e Edson Leite focus on the work of contemporary artist Toshiro Kawase, specialist in art of Ikebana and has two books of international scope: Inspired Flower Arrangements (1990) and The book of Ikebana (2000). Key Words: Ikebana. Japanese Art. Flower Arrangement. Toshiro Kawase. Introdução A ligação da arte com a religião sempre esteve presente nas diversas etapas da História da Arte. Além da pintura, da música, das artes cênicas e da escultura, os japoneses consideram a arte nas mais diversas formas. A finalidade deste trabalho de pesquisa é possibilitar o conhecimento da Arte Oriental, sua estética e utilização, através das Ikebanas, arranjos florais ligados a fundamentos religiosos da tradição japonesa, feitas pelo artista Toshiro Kawase. As diversas manifestações de arte foram as primeiras formas de comunicação entre os povos. Elas sempre estiveram ligadas à formação ética e cultural do indivíduo. Para ser um cidadão de respeito, era necessário saber tocar algum instrumento, ter conhecimento de poesia e até mesmo confeccionar trabalhos manuais. Desta forma, os seres humanos, além de preparados profissionalmente, estavam sempre ligados às áreas sensíveis das artes. A arte no Japão e o zen Para entender a arte japonesa, é preciso compreender a história deste país tão cheio de contradições. Segundo Baragwanath (1968), o Japão, num primeiro contato, pareceu aos europeus um país remoto, habitado por um povo estranho, possuidor de vigorosas tradições militares, misturado com uma grande habilidade nas artes da paz. Atualmente, o país é visto como um Estado oriental, onde as indústrias se baseiam numa avançada tecnologia ocidental, um povo ao mesmo tempo imitador e imaginativo em elevado grau; um país marítimo onde os habitantes se identificam de um modo quase religioso com a própria terra. A arte japonesa teve como base a arte chinesa. O Budismo entrou no Japão através de uma estátua de Buda acompanhada de textos, oferecidos pelo reino coreano de Paekche à corte imperial japonesa, em 552 d.C. Um debate acalorado foi levantado entre a nobreza a respeito dos méritos da nova religião que acabou por triunfar, estabelecendo-se firmemente sob a proteção especial da casa regente. O príncipe Shotoku Taishi (574-622 d.C.) foi um defensor caloroso do budismo A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase | 373 e o responsável pelo alto nível artístico do país. Ele incentivou a arte, convocando artistas chineses para a sua corte (AUBOYER, 1966). A religião Budista venera o espírito das divindades existentes nas montanhas, nos rios, nas árvores e em outras entidades naturais. Nos ensinamentos budistas, há um pacto de respeito à natureza por toda a vida. No pensamento ocidental, em oposição ao pensamento oriental, a imagem do homem está situada em primeiro plano, subordinando assim, todos os outros seres vivos. Para os orientais, o homem não está na posição central: ele está ligado harmoniosamente com a natureza, sem com isso ter o direito de dominá-la, nem controlá-la. “Na natureza, não se pode ser independente a não ser dependendo do próprio ambiente. O que vale para o ambiente biológico, vale também para o ambiente social, urbano, cultural e religioso” (MORIN, 2008, p. 2). Na cultura oriental japonesa, a arte representa a vivência do artista com o mundo. Os elementos da natureza são valorizados e utilizados como fonte de inspiração. Esta arte é baseada na simplicidade de expressão. A complexidade é significado de imaturidade, de decadência. Acredita-se no princípio de que a simplicidade não é jamais simples. Na concepção oriental, a arte precisa necessariamente estar ligada ao belo. Para os japoneses, a beleza eleva o espírito. Se o artista não enobrecer seu espírito, suas reproduções serão apenas cópias do seu cotidiano e de nada servirão aos outros como ferramentas para o autoconhecimento. O Zen consiste na procura da luz interior através da meditação. A prática da meditação considerada suprema surgiu no Japão acompanhado da religião Budista e começou a criar raízes, como escola independente, a partir dos séculos XII e XIII. Depois de Dogen, os primeiros defensores do Zen foram monges treinados no budismo Tendai, que procuravam no Zen chinês uma forma de reviver o budismo tradicional japonês. Mesmo sendo uma tradição chinesa, o Zen japonês acabou ganhando autonomia para se encaixar da melhor forma aos hábitos japoneses. Esta prática ganhou forte influência junto aos governantes e militares no período Kamakura (1185-1333), em virtude da importância dada à disciplina e à austeridade. “A ideia central do Zen é a súbita iluminação, o reconhecimento da natureza ilusória de toda existência” (LEONARD, 1992, p. 83). O Zen ensinou que esta iluminação poderia ser conquistada através de uma disciplina mental e física. Uma das características do pensamento Zen é começar com algo pequeno e modesto, que deve ser praticado, tantas e tantas vezes, até que não haja mais nenhuma imperfeição, até que seja assimilado pelo praticante, passando a fazer 374 | Adriana B. Freire e Edson Leite parte da sua própria individualidade. Desta forma, ele pode encaixar-se nas atividades do dia a dia, produzindo manifestações diferentes de arte. Para entender a cultura do Zen, a lógica do pensamento ocidental deve ser posta de lado. Segundo Gombrich (1972), pode-se afirmar que o fator estético não é o objetivo de importância da arte japonesa, ele acaba sendo uma consequência. A ikebana Durante muitos séculos, o Japão foi governado por mulheres. Segundo relatos de desdenhosos viajantes chineses, um dos quais informou que no ano de 238 d.C., a sudoeste, por ele denominado Wa, o Japão dividia-se em pequenos estados, governados por feiticeiras. Entre as rainhas que praticavam a magia, a que mais se destacou foi Pimico, que viveu enclausurada, num palácio fortificado, na companhia de mil servidoras e de um homem, que a ajudava a se comunicar com os súditos. Este velho costume japonês de governos exercidos por mulheres permaneceu de modo intermitente até a segunda metade do século VIII. “As mulheres gozavam de considerável influência política e social, tornando-se completamente submetidas aos homens somente a partir do século XV” (LEONARD, 1973, p.13). O gosto feminino pela delicadeza e sutileza, aliado à mitologia japonesa, ligada à natureza e seus fenômenos, fizeram com que este País de agricultores tivesse um nível bastante refinado para a arte, colocando-a como necessidade vital desde o início de sua civilização. Segundo Huyghe (1986), a arte no Extremo-Oriente nunca se deixou encerrar e imobilizar nas estruturas da razão, sempre procurou um contato íntimo com a natureza na sua essência secreta. Segundo reza a tradição histórica do oriente, a Ikebana teve sua origem na Índia. Conta-se que, certa vez, Buda viu no chão um galho com flor em botão quebrado pelo vento e pediu para um de seus discípulos que colocasse o galho na água, para que tivesse mais tempo de vida. Porém, foi no Japão que esta arte se difundiu e permaneceu viva até os dias atuais. A origem da palavra Ikebana vem dos verbos em japonês “Ikeru” (colocar, dispor), “Ikeri” (viver, tornar vivo) e da palavra “Hana” (flores) ou, traduzindo para o português, flores vivas. O ato de arranjar flores, para os japoneses, não é apenas colocar as flores no vaso; consiste numa atitude espiritual, considerada para eles algo mais profundo e elevado. Este povo acredita que todos os seres vivos compartilham a capacidade de sentir e que, como seres humanos, eles são apenas manifestações A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase | 375 temporárias de vida, sujeitos à transmigração, partilhando em última instância no destino comum de todos. O principal objetivo do artista japonês é captar o coração interior dos seres da natureza e utilizar de técnicas para prolongar suas vidas. Dizem os escritos antigos que o primeiro arranjo de Ikebana foi feito de flor de lótus e oferecido a Kannon,1 logo após a oficialização do budismo no País. Mesmo assim, somente no século XVII, é que esta prática começou a ser chamada por este nome e aparecer nos principais pontos frequentados pela elite japonesa. No arranjo de Ikebana, o vaso representa o palco da vida do artista que está trabalhando neste arranjo; o fixador de flor, o apoio ou caminho escolhido por ele; e as flores, os relacionamentos passados, presentes e futuros. Acredita-se que a relação com a flor possa refletir o estado de espírito do artista no momento da execução do arranjo, permitindo com que se perceba e se transforme, passando seus conhecimentos para outras pessoas, que passarão para outras pessoas e assim sucessivamente. O plano espiritual atua criando uma espécie de harmonização, permitindo com que a energia do ambiente, onde o arranjo é colocado, se transforme em um local agradável e feliz. Toshiro Kawase Toshiro Kawase nasceu em 1948, na cidade de Kyoto. Filho de uma família de importantes floristas, ele demonstrou desde cedo um grande interesse pelas flores. Sua família foi responsável, durante gerações, pela entrega de flores para a famosa escola Ikenobo, de Kyoto. Antes de iniciar a escola formal de Ikebana, já produzia arranjos instintivamente de maneira livre. Com apenas dez anos de idade, ele já executava arranjos em casas particulares. Um dia após entregar flores frescas da loja de sua família no Templo Budista onde a escola Ikenobo tinha 1. Segundo a mitologia chinesa e japonesa, Kuan Yin (Kannon) nasceu neste mundo como filha do Rei da dinastia Chow (1122 a. C. a 255 a.C.). Sentenciada de morte por seu pai por se recusar a se casar, ela foi enviada por seus executores, mas a espada se quebrou sem feri-la. Indo para o inferno, o rei de lá a enviou novamente para a terra, transportando-a sobre uma flor de lótus. Esta flor, a partir de então, tornou-se símbolo desta entidade. No Japão a adoração a Kannon começou na introdução do budismo, sendo considerada a Deusa da Compaixão de acordo com os ensinamentos búdicos (CHAMAS, 2006, p. 72). 376 | Adriana B. Freire e Edson Leite sua sede, Kawase viu o professor da escola curvado em oração e a partir deste momento ele se convenceu de que o espírito de um arranjo de flor deveria ser igual ao espírito de uma oração “Inori”. Em 1970, ele estudou produção teatral na Universidade Sorbonne, em Paris, mas depois de dois anos e meio na Europa, sentindo-se atraído pelo mundo das flores, retornou ao Japão. Novamente em Kyoto, Kawase ingressou na escola Ikenobo Cultural Academy e tomou como seu mestre para a vida o artista floral Kozo Okada. Normalmente, os artistas de ikebana realizam uma montagem para ser fotografada e colocada em livros. Toshiro Kawase realizou Ikebanas para muitas publicações ao longo de sua carreira artística. As principais são com obras apenas de sua autoria foram: Inspired Flower Arrangements (1990); The Book of Ikebana (2000) e Imasama Kodensho (2002). Utilizando elementos da Natureza, Kawase vai dando forma aos elementos, recriando seu lugar no espaço, juntando formas e elementos diferentes, a fim de modificar sua estética natural. “O artista tem não só o direito, mas o dever de manipular as formas da maneira que julgar NECESSÁRIA para alcançar SEUS fins” (KANDINSKY, 2000, p. 126). Por ser uma arte que utiliza de elementos vivos, torna-se possível imaginar a sequência de transformações dos galhos e das flores. Quando o artista faz o trabalho, ele posiciona os elementos de acordo com sua vontade estética. Após o trabalho concluído, a massa viva vai se moldando conforme seu desejo, por vezes mudando completamente a posição inicial do trabalho. Da mesma forma em que o artista observa os galhos e as flores, ele também é observado por eles. Toshiro Kawase utiliza dos galhos e flores como objetos para discernir sua vida, permitindo com que surjam novas experiências, através de sua criatividade, facilitando o caminho solitário do autoconhecimento através da Natureza. Por esta razão, a Ikebana surgiu a partir da tradição de venerar flores como algo divino, capaz de revelar os enigmas de cada artista floral. Kawase deixa transparecer sua formação acadêmica, quando tudo parece estar colocado, para alguma cena ser filmada ou fotografada. É possível perceber o frescor das flores e até mesmo o cheiro se nelas houvesse. O arranjo da figura a seguir mostra uma composição com flores de Iris, colocadas dentro de um vaso, como se estivessem plantadas. Elas foram trabalhadas de forma a mostrar um ritmo de crescimento, respeitando, no posicionamento, a beleza de todas as flores que fazem parte deste cenário. A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase | 377 Iris Japonesa. Vaso de bronze, Período Momoyama (1573-1615 d. C.). Templo Daichuji, Shizuoka. Fonte: Inspired Flower Arrangements, 1990, p. 24. Kawase é um artista bastante versátil em seu trabalho. Da mesma maneira que expõe obras de que representam verdadeiras instalações, é capaz de trabalhar com pequenos detalhes. A próxima figura possui uma peça de cerâmica, rachada ao meio, dando uma conotação de contemporaneidade a uma peça tradicional na história da arte japonesa. Neste caso, ela está funcionando como um suporte para abraçar delicadamente o galho de pêssego e a flor de margarida. Para os leigos, esta flor poderia, até mesmo, fazer parte deste galho. Incrível o encaixe perfeito dessas formas tão diferentes e, apesar da cerâmica estar partida ao meio, quase como se tivesse sido quebrada, ela não parece estar maltratando o galho, ao contrário, parece que o está acolhendo. Galho de pêssego e Margarida. Fonte: Imasama Kodensho, 2002 p. 117. Kawase é um dos artistas que traz para a contemporaneidade a importância de valores perdidos no fazer de cada artista e utilizando a beleza esquecida nos dias atuais. Sua obra possui um conceito minimalista, próprio da cultura japonesa. A Ikebana se diferencia dos arranjos florais não só pela sua estética, centrada na simplicidade de expressão e nas medidas préestabelecidas, como também no posicionamento dos galhos e das flores. O material é colocado no arranjo de forma livre, sem esponjas florais ou qualquer tipo de fixação. As flores são apoiadas umas nas outras, proporcionando um encaixe perfeito entre elas. Depois de pronta, é possível notar este encaixe dos elementos, que muitas vezes, parecem uma verdadeira trama, onde os galhos e 378 | Adriana B. Freire e Edson Leite as flores convergem para o mesmo ponto. Para fazer tal amarração, o artista deve conhecer profundamente os elementos a fim de utilizá-los de acordo com seu peso e seu tamanho, permitindo com que os menores se encaixem nos espaços vazios, apoiando na estrutura formada pelos galhos maiores. Considerações finais A Ikebana é um simples ato de tentar olhar além das flores, fixar os olhos no que está oculto, no íntimo de cada coração e procurar a verdade contida neste ser, tentando uma troca de energia movida pela beleza. A meta de um arranjo de Ikebana não é utilizar flores aleatoriamente, mas captar a vibração do espaço no qual elas vivem, carregadas de sua vida selvagem. Utilizar o fenômeno material para expressar e incluir o espírito que existe em cada ser da Natureza é a principal meta da arte japonesa. Por esta razão, os artistas de Ikebana, costumam utilizar flores da época em suas composições, no intuito de aproveitar a beleza de cada estação do ano. A obra de Toshiro Kawase encontra os elementos da cultura tradicional e, ao mesmo tempo, os arrojos da contemporaneidade. Ele procura enfatizar a arte japonesa, centrada nos detalhes e na espiritualidade, permitindo com que o observador possa alterar sua visão estética e entrar no mundo oriental centrado na beleza, quase como numa cerimônia religiosa. Referências bibliográficas AUBOYER, J; GOEPPER, R. O Mundo da Arte – Enciclopédia das Artes Plásticas em Todos os Tempos – Mundo Oriental. Lisboa, José Olympio, 1966. BARAGWANATH, L.E. “Introdução”. In LEONARD, J.N. Japão Antigo. Biblioteca de História Universal Life. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973. CHAMAS, F. Escultura Budista Japonesa até o período Fujiwara (552-1185): a arte da iluminação. São Paulo, 2006. Dissertação (Mestrado em Filosofia) Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas USP. GOMBRICH, E. A História da Arte. “Olhando para o Oriente”. Rio de Janeiro, Zahar, 1985. A Ikebana e a produção de Toshiro Kawase | 379 HERRIGEL, E. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen. São Paulo, Pensamento, 1975. HUYGHE, R. O Poder da Imagem. São Paulo: Martins Fontes, 1986. ______. Sentido e Destino da Arte I. São Paulo: Martins Fontes, 1986. KANDINSKY, W. Do Espiritual na Arte. São Paulo, Martins Fontes, 2000. KAWASE, T. The Book of Ikebana. Tokyo, Kodansha International Ltd, 2000. ______. Inspired Flower Arrangements. New York, Kodansha International, 1990. ______. Imasama Kodensho. Tokyo, Shinchosha, 2002. LEONARD, J.N. Japão Antigo. Biblioteca de História Universal Life. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973. OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis, Vozes, 1977. | 381 A intervenção no machinima1 FERNANDA ALBUQUERQUE DE ALMEIDA* Resumo: A noção de machinima vem sendo associada às normas e às convenções do cinema clássico desde que os seus primeiros filmes foram realizados. Contudo, essa é apenas uma das possibilidades de criação fílmica nos ambientes virtuais interativos. Tendo isso em vista, o objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão sobre essa noção, que não esteja diretamente vinculada à narrativa desse cinema. Busca-se fazer uma relação entre o conceito de intervenção e o machinima, de modo que uma ampliação e um aprofundamento dessa noção inicial possam ser estimulados. Essa reflexão baseia-se em uma análise interpretativa do texto Arte e Mídia: Aproximações e Distinções (2002), de Arlindo Machado, o qual será comentado em analogia com aspectos da produção dos filmes em machinima. Palavras-chave: Machinima. Intervenção. Artemídia. Arte Contemporânea. The intervention in machinima Abstract: The notion of machinima has been associated to the norms and conventions of classical cinema since its first films were accomplished. However, this is just one of the possibilities of filmic creation in interactive virtual environments. Therefore, the main goal of this article is to present a reflection about this notion, which is not directly linked to the narrative of this cinema. It is aimed to establish a relation between the concept of intervention and the machinima, so an 1. Este artigo faz parte da pesquisa de mestrado intitulada Machinima: entre a narrativa e a experimentação, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. * Mestra pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]. 382 | Fernanda Albuquerque de Almeida amplification of this initial notion can be stimulated. This reflection is based in an interpretative analysis of the text Arte e Mídia: Aproximações e Distinções (2002), by Arlindo Machado, which will be commented in an analogy with some aspects of the production of machinima films. Keywords: Machinima. Intervention. Media Art. Contemporary Art. Desde meados dos anos 2000, machinima é o termo que representa a apropriação de ambientes virtuais interativos, como os de jogos digitais, para a produção fílmica. A partir do seu primeiro filme, chamado Diary of a Camper2 (United Rangers Films, 1996, Estados Unidos), essa noção vem sendo associada às convenções do cinema clássico, as quais reverberaram na sua compreensão como meio de produção audiovisual. Esse filme conta a breve história de um grupo de jogadores que entra em conflito com um camper.3 Embora simples, a sua narrativa é composta por um evento com início, meio e fim, permeado pelo diálogo dos personagens, o qual aparece por escrito na parte de cima da tela. Devido a essa constituição, Diary of a Camper estabeleceu a prática de contar histórias (storytelling) como uma característica fundamental do machinima. Contudo, como será visto, essa noção não abrange a diversidade dos seus filmes. Há, por exemplo, machinimas que correspondem à documentação de performances e intervenções, além de filmes abstratos. Por isso, é necessário buscar outros elementos que possam auxiliar em uma melhor compreensão dessa ideia. Nessa busca por características que permeiam todos machinimas, independentemente da sua proposta ser contar uma história ou documentar uma performance artística, pode-se constatar que todos eles são criados em ambientes virtuais. Esses possuem uma realidade pré-existente, na qual o criador intervém para realizar os filmes. Assim, pode-se inferir que um elemento em comum seja a intervenção. A intervenção ocorre fundamentalmente sobre uma realidade com existência prévia, dotada de estrutura, dinâmica e características específicas. Através da ação sobre essa realidade, alteram-se ou acrescentam-se novos usos, atributos e funcionalidades. Em termos práticos, intervenções podem ser realizadas em quaisquer espaços que reúnam esses requisitos. Como exemplos, podem ser men2. Disponível em: <http://youtu.be/mq4Ks4Z_NGY>. 3. O jogador que permanece em um local estratégico de um jogo para múltiplos jogadores onde armas e munições são reabastecidas, concedendo suprimentos infinitos. A intervenção no machinima | 383 cionados a paisagem natural e os ambientes urbanos e arquitetônicos (internos e externos). Quando ocorrem nesses contextos, elas resultam em diversas formas, como performance art, pôsteres e grafite. Na maioria das vezes, elas têm caráter social, de modo a disseminar os ideais de seus realizadores. Além desses espaços, intervenções também podem ocorrer nos domínios da imagem, através de procedimentos como colagem, montagem e assemblage. Com isso, pode-se modificar ou combinar uma ou mais realidades, de modo que se alteram totalmente os ambientes originais (suas características, usos e até mesmo funcionalidade). Tanto a intervenção nos ambientes quanto a que ocorre nas imagens são abrangidas pelos filmes em machinima. Como foi mencionado, esses filmes se baseiam em realidades pré-existentes, portanto o seu processo de realização tende a modificar a dinâmica e até mesmo os elementos dessas realidades. Por sua vez, as imagens captadas podem ser geradas ou manipuladas por processos diversos, como a colagem e a montagem, de modo a alterar desconstruir e sintetizar diferentes ambientes virtuais. Apesar dessas características, a relação entre machinima e intervenção não é abordada claramente nos estudos sobre machinima. Contudo, ela encontra-se paralela às investigações conduzidas por Katie Salen (2002) e Henry Lowood (2007 e 2008), sobre a constituição dos filmes, e até mesmo nas considerações de Rebecca Cannon (2007), em relação às modificações artísticas. Essas pesquisas são fortemente embasadas na performance intervencionista dos usuários sobre os jogos digitais. Isso porque essas modificações e as noções de transformative play (SALEN, 2002), de alto desempenho (LOWOOD, 2007) e de tecnologia encontrada (LOWOOD, 2008), partem do pressuposto de que existe uma realidade prévia que é expandida ou alterada na apropriação dos seus usuários.4 Assim, é através desse tipo de ação que novas obras são constituídas, entre as quais estão os filmes de machinima. Além desses estudos, a reflexão acerca da relação entre intervenção e machinima também pode ser encontrada no artigo Arte e Mídia: aproximações e distinções (2002), de Arlindo Machado. Nele há três blocos temáticos que 4. Para uma explicação mais detalhada das ideias desses autores, Cf.: ALMEIDA, F. A. de. Machinima: entre a narrativa e a experimentação. 2014. 119 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 50-57. 384 | Fernanda Albuquerque de Almeida incluem o desvio do projeto industrial midiático em obras artísticas, a arte como metalinguagem da mídia e a mídia como agente colaborador de um reordenamento do estado atual da arte, os quais podem ser compreendidos em uma analogia entre o machinima e os ambientes virtuais interativos. Devido a essa possibilidade de diálogo, esse artigo de Machado será analisado em uma analogia com o machinima, para que se possa buscar uma ampliação e um aprofundamento da sua noção. * * * Machado (2002, p. 20) inicia sua reflexão com o esclarecimento do termo artemídia, tradução da expressão inglesa media art, que designa “formas de expressão artística que se apropriam de recursos tecnológicos das mídias e da indústria do entretenimento em geral, ou intervêm em seus canais de difusão, para propor alternativas qualitativas”. Uma vez que a arte sempre foi produzida com os meios de seu tempo, é previsível que a televisão, o computador e os games sejam apropriados para esse fim. Nesses contextos, é mantido o desafio de extrair o máximo das possibilidades dos novos instrumentos que dão forma à sensibilidade da época respectiva. Essa apropriação artística da tecnologia pode ser realizada de diversas maneiras. Uma delas é a subversão da funcionalidade originária. Isso ocorre, por exemplo, quando Nam June Paik utiliza ímãs para desconstruir as imagens da televisão em TV Magnet (1965), quando Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz propõem a interação em vídeo entre pessoas geograficamente distantes em Hole in Space (1980), ou ainda quando Frederic Fontenoy capta múltiplas imagens, em uma única película, obtidas pela modificação do obturador da câmera fotográfica em Métamorphose (1988–1990). Analogamente, o machinima pode ser compreendido como resultado desse tipo de apropriação criativa, quando, de forma similar a Paik, Galloway, Rabinowitz e Fontenoy, os Rangers utilizaram as engines5 de jogos para produção fílmica. Com isso, eles subverteram a funcionalidade de Quake e operaram fora 5. A engine corresponde à estrutura do jogo. Diferentes engines são responsáveis por diferentes aspectos do jogo, a exemplo da engine física, a qual controla a gravidade interna do ambiente. É ela que define, por exemplo, o que acontecerá caso um carro colida com uma parede. A intervenção no machinima | 385 do campo de ação previsto inicialmente pelos desenvolvedores. Afinal, como afirma Machado (2002, p. 23): O que faz [...] um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina ou do programa de que ele se utiliza, é manejá-los no sentido contrário de sua produtividade programada. Talvez até se possa dizer que um dos papeis mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. Esse autor ressalta a subversão da funcionalidade técnica como uma das ações artísticas mais importantes em uma sociedade tecnocrática. Tal consideração é particularmente aplicável aos criadores de machinima, uma vez que eles geralmente utilizam plataformas que possuem um objetivo predeterminado, o qual não é cumprido na realização audiovisual.6 Assim, eles subvertem a função dos jogos e os reinventam como meios de realização fílmica. Não obstante, apesar dessa origem transgressora, a forma encontrada pelos primeiros criadores de machinimas para o seu estabelecimento foi a sua associação com cinema clássico. Dessa forma, eles se voltaram à narrativa clássica e à mimetização do mundo, ao invés de investigarem a diversidade de possibilidades compreendidas pela apropriação dos ambientes virtuais. Por outro lado, as obras experimentais que se distanciam dessa narrativa retomam esse ímpeto transgressor dos artistas, o qual permeia a subversão que Machado destaca. Com isso, elas também auxiliam no entendimento da própria noção de machinima, pois, através delas, é possível aos artistas pesquisar formas de composição audiovisual, a partir dos recursos e das características dos ambientes virtuais. Esses filmes podem expandir o formato consolidado com o cinema clássico e também questionar as próprias ideologias propagadas pelos jogos. Quando esse questionamento é realizado, configura-se o que esse autor entende por metalinguagem da mídia. 6. Um exemplo de machinima que ressalta a subversão do jogo em sua proposta é Another Day of Depression in Kowloon (Ip Yuk-Yiu, 2012, Hong Kong). Feito no jogo de tiro em primeira pessoa Call of Duty: Black Ops (2010), esse filme é uma viagem pelas paisagens despovoadas da cidade de Hong Kong conforme simulada no jogo. 386 | Fernanda Albuquerque de Almeida Para Machado (2002, p. 26, grifo do autor), a metalinguagem da mídia ocorre quando há “um ataque por dentro” ou “uma contaminação interna, que faz com que essas estruturas deixem momentaneamente de funcionar como habitualmente se espera, para que as possamos enxergar por um outro viés, preferencialmente crítico”. O autor desenvolve essa linha de pensamento em relação à videoarte, a qual considera um dos primeiros lugares em que essa consciência se constituiu desde o início, dado que boa parte das pesquisas plásticas em vídeo ocorreu através da perturbação dos signos audiovisuais da televisão e da desmontagem de seus programas. Além de Paik, outro exemplo é Antoni Mundanas, cuja obra evidencia a dominação cultural imperialista através de compilações de imagens similares captadas em televisões do mundo inteiro. Outros autores, entre os quais estão Cannon (2007) e Alessandro Ludovico (2004), acreditam que essa autorreflexão marca também e especialmente as modificações artísticas realizadas em jogos digitais. Cannon, por exemplo, compreende o machinima como uma modalidade de modificação artística, o que significa que ele envolve a reutilização criativa de softwares ou hardwares de jogo para um resultado especificamente artístico. Assim também pensa Ludovico (2004, tradução nossa), que declara: Mais e mais artistas estão hackeando os códigos dos jogos de modo a desconstruir o paradigma de entretenimento adicionando valores sociais, descontextualizando os personagens principais e as suas ações, e subvertendo as regras comuns de contraposição. Dessa forma, os significados são definitivamente alterados e a paisagem digital é claramente manipulada.7 Esse autor constata uma tendência dos artistas que trabalham com os jogos digitais e que envolve a modificação desses jogos através de diversos processos. Esses abrangem desde o deslocamento dos personagens e suas ações até a interferência no seu código de programação. Assim, a partir do momento em que altera esses ambientes de modo a questionar seus paradigmas, a figura do artista 7. More and more artists are hacking into games’ codes in order to deconstruct the entertainment paradigm by adding social values, decontextualizing lead characters and their actions, and subverting the usual rules of contraposition. In this way, the meanings are definitively changed and the digital landscape is clearly manipulated. (original) A intervenção no machinima | 387 como modificador de jogos coincide com a do hacker. Para Juan Martín Prada (2012, p. 241-242, tradução nossa), é como se o artista se tornasse uma modalidade de hacker cultural ao manipular “as estruturas tecnoseminóticas imanentes aos produtos de entretenimento, distorcendo-as, subvertendo-as, fazendo-as derivar a outras esferas de sentido”.8 Dessa forma, os artistas modificam o que é produzido com os jogos e outros produtos de entretenimento quando eles intervêm nas suas formas de representação. Contudo, não são apenas as mídias ou os produtos (e as produtoras) de entretenimento que são influenciados pelas atividades artísticas. O movimento inverso também ocorre e eles exercem influência sobre a arte. Machado (2002, p. 29) se apoia no que Walter Benjamin (1969, p. 72) pensa sobre a fotografia e o cinema para explicar que a questão principal não está em considerar ou não os novos meios de expressão, como o vídeo e as histórias em quadrinhos, obras de arte, mas “perceber que a existência mesma desses produtos, a sua proliferação e a sua implantação na vida social colocam em crise os conceitos tradicionais e anteriores sobre o fenômeno artístico, exigindo reformulações mais adequadas à nova sensibilidade que agora emerge”. Dessa forma, os limites entre a arte e os produtos industriais (de entretenimento) se tornam menos rígidos, estabelecendo a necessidade de um novo pensamento crítico sobre as questões que perpassam as recentes produções expressivas. De forma similar, tanto a noção de machinima quanto as obras experimentais desempenham um papel subversivo e muitas vezes crítico em relação às plataformas apropriadas. Elas influenciam as ferramentas que os desenvolvedores disponibilizam aos usuários, como, por exemplo, as funcionalidades para criação de filmes incluídas em The Sims 2 ou até mesmo as engines voltadas especificamente à realização de machinimas.9 Não obstante, o movimento contrário também ocorre. Isso porque a criação de filmes em ambientes virtuais só foi possível com a adição da ferramenta demo recording em Quake, a qual possibilitava ao jogador registrar as suas ações no ambiente virtual desse jogo. 8. la figura del artista como una modalidad de hacker cultural que manipula las estructuras tecnosemióticas inmanentes a los productos del entrenimiento distorsionándolas, subvirtiéndolas, haciéndolas derivar hacia otras esferas de sentido. (original) 9. Há engines desenvolvidas com o único objetivo de produzir filmes. Alguns exemplos são iClone e Moviestorm. 388 | Fernanda Albuquerque de Almeida * * * Tendo em vista o que foi abordado até este momento, pode-se inferir que a intervenção ocorre nos filmes e na noção de machinima em vários aspectos da sua criação. Quando a função do jogo é subvertida e ele é transformado em um meio de produção audiovisual, caracteriza-se a intervenção funcional. Por sua vez, quando esse ambiente é modificado para a realização dos filmes qualificase a intervenção do ambiente virtual (ambiental). Essas modificações podem ocorrer como a adição de elementos discretos, como texturas e animações, ou a desconstrução das imagens fornecidas com o ambiente original. Essas mesmas intervenções ambientais podem representar atos de resistência. Resistir significa aqui opor-se a algum aspecto desse ambiente. Desse modo, a resistência pode ocorrer em relação ao discurso ou a narrativa do jogo, ou ainda às suas imagens. Na primeira situação, questionam-se os signos e os significados que estão sendo passados com as representações do jogo. Na segunda, as imagens são geralmente submetidas a processos de desconstrução, de modo a romper com seus elementos figurativos. Nesses contextos, resistir se aproxima da noção de metalinguagem da mídia apresentada por Machado, em que a obra se constitui como um ataque “por dentro”, ou seja, uma forma de criticar as mídias através da modificação dos seus elementos ou até mesmo da sua estrutura. Seguindo essa linha de pensamento, o termo “resistência de mídia” foi associado ao machinima e à crescente produção de conteúdo amador na internet por Elijah Horwatt (2008). Para o autor, essas produções são realizadas muitas vezes por indivíduos que desejam se engajar com os veículos e as formas predominantes de comunicação visual, o que é possibilitado pela crescente acessibilidade aos jogos e às câmeras digitais. Segundo Horwatt (2008, tradução nossa), apesar de parecerem exemplos de fan fiction, muitas obras de machinima constituem críticas radicais, “tentando redefinir as políticas e a ideologia da cultura dos jogos digitais ao invés de louvá-la”.10 O que significa que há obras de machinima que compõem críticas aos jogos. 10. attempting to redefine the politics and ideology of video game culture rather than praise it. (original) | 389 A intervenção no machinima Um exemplo que atua nesse sentido, resistindo ao discurso que permeia o jogo Tomb Raider, é She Puppet11 (PEGGY AHWESH, 2001, Estados Unidos). Nesse filme, as expectativas de desempenho da protagonista Lara Croft são desestabilizadas pela sua morte recorrente. Outro exemplo é a série Ready for Action12 (KENT SHEELY, 2013, Estados Unidos) (Figura 16), na qual avatares armados de diversos jogos de tiro em primeira pessoa são registrados à mercê do transporte público. Como em She Puppet, os avatares, que supostamente desempenhariam ações como correr, pular e atirar, são deslocados para situações incomuns no jogo. Por sua vez, um exemplo de resistência às imagens originais é a série Adaptation13 (KENT SHEELY, 2010, Estados Unidos) (Figura 17). Ela é constituída por três filmes, cada um representando uma fase do processo de adaptação do artista após a sua mudança para Nova York. Com ritmos diversos por representarem períodos distintos, eles abarcam imagens abstratas captadas em engines de jogos modificados. Figura 16 – Ready for Action Figura 17 – Adaptation Assim, considerando os exemplos mencionados e a analogia com o texto de Machado, constata-se que há uma relação entre o machinima e a ideia de intervenção, que se revela tanto na constituição da sua noção quanto na composição de muitos filmes experimentais, cuja crítica aos ambientes virtuais é parte da sua proposta. Dessa forma, as ações do criador no ambiente virtual, em suas diversas funções, têm caráter intervencionista, uma vez que tomam parte em espaços previamente existentes e, muitas vezes, alteram as suas características e a sua estrutura, além de influir em seu desenvolvimento. 11. Disponível em: <http://vimeo.com/9197535>. 12. Disponível em: <http://vimeo.com/user5165543/videos/search:ready%20for% 20action/sort:date>. 13. Disponível em: <http://www.kentsheely.com/adaptation>. 390 | Fernanda Albuquerque de Almeida Referências bibliográficas ALMEIDA, F. A. de. Machinima: entre a narrativa e a experimentação. 2014. 119 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. CANNON, Rebecca. Meltdown. In: CLARKE, Andy; MITCHELL, Grethe. (Ed.) Videogames and Art: Intersections and Interactions. United Kingdom: Intellect Books, 2007, p. 38-53. HORWATT, Elijah. New Media Resistance: Machinima and the Avant-Garde. In: Cineaction 73/74, 2008. Disponível em: <http://cineaction.ca/issue73 sample.htm>. LOWOOD, Henry. High-Performance Play: The Making of Machinima. In: CLARKE, Andy; MITCHELL, Grethe. (Ed.) Videogames and Art: Intersections and Interactions. United Kingdom: Intellect Books, 2007, p. 59-89. . Found Technology: Players as Innovators in the Making of Machinima. In: McPHERSON, Tara. (Ed.) Digital Youth, Innovation, and the Unexpected. The John D. and Catherine T. Mac Arthur Foundation Series on Digital Media and Learning. Cambridge: The MIT Press, 2008, p. 165-196. LUDOVICO, Alessandro. Video-Game Art: Changing Software Meanings. In: Springerin: Hefte für Gegenwartskunst, issue 1/04, 2004. Disponível em: <http://www.springerin.at/dyn/heft.php?id=38&pos=1&textid =1435&lang=en>. MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia: Aproximações e Distinções. In: e-compós, 1ª Ed., dez. 2004. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/index.php/ecompos/article/viewFile/15/16>. PRADA, Juan Martín. Prácticas Artísticas e Internet en la Época de las Redes Sociales. Madrid: Akal, 2012. SALEN, Katie. Quake! Doom! Sims! Transforming Play: Family Albums and Monster Movies, 2002. Disponível em: <http://www.walkerart.org/gallery9/ qds/>. | 391 Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais EUNICE MARIA DA SILVA* ARTUR MATUCK** Resumo: Este artigo explora as possibilidades da ciberpercepção para a apreensão da natureza estabelecento conexões entre os modos de circulação de arte na contemporaneidade e as possibilidades de novas formas de percepção que estão se configurando com os recursos virtuais e reticulares. Uma pergunta guiou o percurso da investigação: qual o conhecimento que se pode obter através da internet sobre a Floresta de Fontainebleu, retratada pelos pintores da Escola de Barbizon no passado? Neste sentido, dois recortes foram selecionados para explorar o ciberespaço: o artístico e o ambiental buscando evidenciar um conhecimento emergente da complexa visualidade contemporânea e diverso daquele estabelecido pela ciência tradicional. Palavras-chave: Ciberpercepção. Ambiente Múltiplo. Renatureza. Intervisualidade. Arte Ambiental. Nature and cyberpercetion: artistic and environmental explorations Abstract: This article explores the possibilities of cyberperception in grasping nature and establishing connections between modes of movement in contemporary art and the possibilities for new forms of perception that are reformating reticular and virtual ** Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo – PGEHA USP. ** Professor Doutor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA USP. 392 | Eunice M. da Silva e Artur Matuck resources. One question guided the course of the research: what knowledge can you get, through the internet, of Forest of Fontainebleau, as depicted by Barbizon School the painters of the in the past? In this sense, two approaches were selected to explore cyberspace: the artistic and the environmental. The aim is to provide an emerging understanding of the complex and diverse contemporary visuality contrating with that established by traditional science. Keywords: Cyberperception. Multiple Environment. Renature. Intervisuality. Environmental Art. Ciberespaço e ambiente O ciberespaço é a nova fronteira de interações culturais, simbólicas e sociais da atualidade. O termo, criado em 1984 por William Gibson, em seu livro de ficção científica, Neuromancer, tem sido empregado para designar o espaço virtual onde acontecem as interações e comunicações propiciadas por dispositivos computacionais. O filósofo francês da cultura virtual contemporânea, Pierre Levy, define o ciberespaço como: [...] o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores[...] Insisto na codificação digital, pois ela condiciona o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informação que é, me parece, a marca distintiva do ciberespaço. (LÉVY, 1997, p. 92). Lucia Leão, artísta plástica e professora do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, aponta outros aspectos do ciberespaço: Como pensar o ciberespaço, esse gigantesco e quase-infinito labirinto de interações da era contemporânea? [...] um território em constante ebulição. Camaleônico, elástico, ubíquo e irreversível, o ciberespaço não se reduz a definições rápidas. (LEÃO, 2004, p. 9). O que nos interessa aqui é o aspecto plástico e fluido que surge nas duas definições, pois situam o caráter caótico, diante da multiplicidade de opções, que o ciberespaço pode apresentar aos pesquisadores e internautas. No entanto, justamente essa multiplicidade de opções, ou essa plasticidade alimentada por todos os interessados em um determinado assunto, pode contribuir para um conhecimento diferenciado do ambiente e da arte. Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais | 393 Roy Ascott, artista e teórico britânico, já antevia, em 1990, o impacto que o desenvolvimento tecnológico teria sobre o indivíduo, a arte, a sociedade, e até o planeta, em seu ensaio Is There Love in the Telematic Embrace? A última década viu as duas poderosas tecnologias da computação e das telecomunicações convergirem em um campo de funções, o que tem atraído em seu abraço outros meios eletrônicos, incluindo vídeo, síntese de som, sensoriamento remoto, e uma variedade de sistemas cibernéticos. [...] A “cultura telemática”, que acompanha os novos desenvolvimentos consiste em um conjunto de comportamentos, ideias, meios de comunicação, valores e objetivos que são significativamente diferentes daqueles que moldaram a sociedade desde o Iluminismo. Novas metáforas culturais e científicas e paradigmas estão sendo gerados, novos modelos e representações da realidade estão sendo inventados, novos meios expressivos estão sendo fabricados. (ASCOTT, 2007, p. 233)1 O avanço das tecnologias computacionais e digitais produziu mídias que provocam novas visões e perspectivas da natureza, do ambiente e da própria arte, possibilitando uma visualidade expandida que se configura no ambiente virtual do ciberespaço. Possibilita também uma visualidade em camadas de informação, gerando imagens e significados em dispositivos diferentes que podem se sobrepor. O conhecimento advindo dessa forma de olhar/visualizar é radicalmente diverso do proporcionado anteriormente pela era da imagem impressa ou da televisão. Uma das principais diferenças é a multiplicidade de escolhas possíveis e a liberdade de definir a rota nessas escolhas. A Floresta de Fontainebleau e a Escola de Barbizon: uma exploração no ciberespaço A sobreposição de olhares e informações pode ser demonstrado com a Floresta de Fontaineblau, que abriga em suas proximidades o povoado de Barbizon. O lugar se tornou famoso por ser escolhido pelos pintores do realismo para retratar a realidade da paisagens. Nosso conhecimento sobre ele foi configurado por textos e pelas próprias pinturas produzidas pelos artistas do que se convencionou chamar de Escola de Barbizon. O conhecimento sobre a vegetação e a aparência da flo1. Tradução livre da autora. 394 | Eunice M. da Silva e Artur Matuck resta era acessível, para a grande maioria dos interessados, apenas pelas pinturas, ou melhor, pela reprodução de pinturas em livros de história da arte. As questões estéticas ligadas à Escola de Barbizon, proveniente da análise de historiadores e críticos, faziam parte do conhecimento de um público restrito, normalmente estudantes ou pesquisadores. Ocasionalmente, era possível ter acesso a uma foto da floresta em algum livro especializado, mas as imagens que formaram um referencial comum da floresta eram provenientes das pinturas feitas por pintores do “realismo”. A arte tornou esse local conhecido e divulgou suas características para o mundo todo. A perspectiva da arte é com certeza uma das mais importantes em relação à Floresta de Fontainebleau. Mas no “espaço digital” é possível explorar outros aspectos e ampliar o conhecimento sobre o lugar, a floresta, sua aparência e também sobre a arte. Basta digitar Floresta Fontainebleau para se ter acesso a 29.300 possiblidades ligadas à essas palavras. Imagens, artigos acadêmicos, blogs, mapas interativos e comunidades em redes sociais descortinam várias abordagens ou “trilhas” a seguir. Os primeiros níveis já disponibilizarão informações básicas como endereço e telefone para atendimento aos turistas. Também é possível ver comentários coletados de sites de viagens. Figuras 1 e 2 – Destaque de página da web com informações sobre Fontaineblau e sobre Barbizon É possível saber que “A Floresta de Fontainebleau é hoje uma das principais fornecedoras de madeira (figura 1) para a produção de tonéis de carvalho, onde os vinhos franceses envelhecem.” Essa informação, coletada automáticamente da Wikipedia, acrescenta uma nova camada de conhecimento ao históricoartístico, uma vez que o carvalho está ligado à própria identidade das regiões temperadas. Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais | 395 Figuras 3 e 4 – Pesquisa Floresta de Fontainebleau na internet resultando em grupo de imagens que misturam pinturas e fotos atuais do lugar. No entanto, o link para a Vila de Barbizon sugere outro percurso: o destaque da página chama a atenção para o aspecto pitoresco da “Vila” com galerias de arte e construções antigas. Um grupo de imagens mistura fotos da floresta com pinturas de autores variados, de Corot a pintores desconhecidos que divulgam seus trabalhos na internet. Rapidamente é possível conhecer dezenas de obras de Corot e outras imagens da floresta, camada sobre camada: a floresta, a pintura, a localização, as pessoas, as histórias. O conhecimento do local soma-se à ótica dos que frequentam os bosques de Fontainebleau hoje, com fotos de picnics em lugares que já foram pintados pela Escola de Babizon. Outra camada leva à história da Floresta de Fontainebleau, em que se acrescentam informações sobre a arqueologia do local, inclusive com inscrições do neolítico em cavernas e rochas. Apenas a colaboração de centenas de pessoas colocaria “na ponta dos dedos” imagens de um bosque da floresta lado a lado com a reprodução da pintura de Corot. Parecem ser do mesmo lugar e vemos que há mais árvores na foto recente do que na pintura. Serão os mesmos carvalhos da pintura de Corot que cresceram? 396 | Eunice M. da Silva e Artur Matuck Figura 5 – Mapa da França com “pin” sobre a Floresta de Fontainebleau. No livro A Pintura Impressionista, há uma referência a esses carvalhos quando o autor se refere a Barbizon: [...] Nestes anos 30, um número crescente de jovens pintores, deslocar-se-ia à zona florestal de Fontainebleau, a cerca de sessenta quilometros a sudeste de Paris, para estudar a natureza. Era aí que se situava a aldeia de Barbizon. Com seus carvalhos nodosos, os seus terrenos pantanosos e a forma insólita de seus rochedos, esta zona disposta em vales apresentava uma paisagem austera e variada. (FEIST; MILHEIRO; WALTHER, 1995, p. 24) A referência aos carvalhos surge novamente e agora a sua aparência “nodosa” acrescenta mais uma informação visual ao repertório sobre a floresta. Essa referência do livro demosntra que, em nenhum momento, diminui-se a importância dos meios convencionais de pesquisa, mesmo para os fins aqui propostos. Os meios digitais e a rede, no entanto, trazem possibilidades novas que se acrescentam às já existentes. Sob a pesquisa “árvores de carvalhos”, por exemplo, podemos obter 3.010.000 links e outros milhares de fotos. Figura 6 – Vista da Floresta de Fontainebleau com indicador da localização da foto. Google Maps. Figura 7 – Localização da Vila de Barbizon na extremidade da Floresta. Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais | 397 Figuras 8 e 9 – “Ponto de interesse” e Rua do Atelier de Theodore Russeau. Em um dos comentários dos internautas, é possível ler: “Fontainebleau, o pulmão da França!” O texto está em francês, mas dois “clicks” em um pequeno aplicativo traduz instantanemente o texto. É fascinate a possiblidade de entrar em contato direto com essa pessoa e se aprofundar em sua observação. Perguntar se ela já esteve na floresta, sobre os carvalhos e se conhece as pinturas que foram feitas no local e acrescentar outras camadas provenientes de todo esse material disponibilizado por internautas que trazem, além das fotos, suas histórias e conhecimentos. Um dos melhores recursos do ciberespaço são as explorações da superfície terrestres captadas pelos de satélites que mesclam mapas e imagens: Com um click, podemos visualizar o verde da floresta no mapa de ruas ou por satélite. Ao posicionar o mouse sobre qualquer foto abaixo do mapa, um indicador mostra a localização exata de onde foi feita a foto e é possível solicitar a inclusão no “círculo” de conhecidos do autor da foto, para “seguir suas postagens” ou para se comunicar com ele. É possível seguir a indicação de “ponto de interesse”: o atelier do pintor Theodore Rousseau, que morou em Barbizon até morrer. Um pequeno link nos remete a uma página de atrativos turísticos de Barbizon, com muita informação sobre os pintores, inclusive em áudio, endereços e compartilhamentos em redes sociais. Figure 10 – Página da internet com vários roteiros turísticos da região. Acima o roteiro para Barbizon com informações sobre os artistas que moraram ou pintaram na vila, muitos deles da Escola de Barbizon. 398 | Eunice M. da Silva e Artur Matuck Figure 11 - Página de site que contem link para informações detalhadas da floresta de Fontainebleau No mesmo site, outro link nos leva de volta à página da Floresta onde é possível escolher entre vários roteiros para viajar – ou para seguir virtualmente. O site contém muitas informações sobre as árvores e animais. Aqui descobrimos uma importante informação ambiental: a Floresta faz parte da Reserva da Biosfera2 de Fountainebleau e Gâtinais. As informações estão disponíveis através da página que é mantida pelos “L´amateur de la Fôret de Fontainebleau”. Todo esse percurso no ciberespaço começou com algumas perguntas: como é o local onde pintaram os artistas da Escola de Barbizon e que características tem esse lugar onde Corot, Milet, Rousseau e outros escolheram para buscar a “pintura ao ar livre”? As respostas acrescentaram camadas de conhecimento sobre a arte, o ambiente e a história da Floresta de Fontainebleau, situando-se entre várias disciplinas, como a geografia, a biologia, a história da arte e a ecologia. Podem ser aprofundadas em qualquer direção. Mas esse “entre”, que caracteriza a interdisciplinaridade, já configurou outra relação com a Floresta de Fontainebleau e a pintura da Escola de Barbizon, uma outra visualidade diferente de quem visita fisicamente o local, pois foi montada com múltiplos pontos de vista e perspectivas, inclusive com escalas diferentes, propiciadas pela visão do satélite. Estamos imersos em recursos visuais e instrumentos que permitem uma apreensão diferenciada da Terra, mais rica em dados, interações e visualidades, possibilitando um conhecimento inacessível para a maioria das pessoas em outras épocas. As novas tecnologias, e seus formatos reticulares de distribuição, alteram 2. Reservas da Biosfera são áreas de ecossistemas terrestres e/ou marinhos reconhecidas pelo programa MAB/UNESCO como importantes em nível mundial para a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável e que devem servir como áreas prioritárias para experimentação e demonstração dessas práticas. (“MaB – O Programa Homem e Biosfera”, [14/08/2014]). Natureza e ciberpercepção: explorações artísticas e ambientais | 399 Figuras 12 e 13 – Múltiplas visões da Floresta seguindo a localização da foto destacada até 60m do solo. o alcance, a escala e a profundidade do nosso conhecimento, da nossa percepção e também de nossas ações sobre o ambiente. Neste caso, as referências e imagens propiciadas pelos diferentes contextos durante a “navegação” no ciberespaço formaram um novo panorama, que complementou o conhecimento sobre o lugar onde os pintores de Barbizon fizeram muitas de suas pinturas realistas, mas também transformou a percepção sobre a Floresta de Fontainebleau, possibilitando a emergência da ciberpercepção. Ao olhar para as dezenas de fotos de vários ângulos, de autores diferentes, em todas as estações do ano e de épocas diferentes, surge algo como uma cultura em comum com essas pessoas desconhecidas, ao mesmo tempo em que emerge uma visualidade própria do lugar, que perpassa o tempo e que interessou aos pintores do realismo com sua luminosidade, folhas outonais e carvalhos nodosos, em uma natureza, que permanece, mas que, ao mesmo tempo, é diferente, porque revelada em seus múltiplos ambientes, uma renatureza. 400 | Eunice M. da Silva e Artur Matuck Referências bibliográficas ASCOTT, Roy. Is There Love in the Telematic Embrace? In: Telematic embrace visionary theories of art, technology, and consciousness. Berkeley, Calififornia, London: University of California Press London, 2007. FEIST, P.H.; MILHEIRO, A.; WALTHER, I.F. A pintura impressionista: 1860 1920. O impressionismo em França - Parte 1. Koln, London, Madrid New York, Paris, Tokyo: Taschen, 1995. LEÃO, L. Derivas: cartografias do ciberespaço. São Paulo: Annablume; Senac, 2004. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: São Paulo Editora 34, 1997. Digitais: FONTAINEBLEAU, Floresta. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Floresta_de_Fontainebleau acessado em 02/08/ 2014 FONTAINEBLEAU, Floresta. In: Google Maps. Dísponível em www.google.com acessado em 25/07/2014 Reserva da Biosfera, disponível em http://www.rbma.org.br/mab/ unesco_01_oprograma.asp acessado em 14/08/2014 UNESCO. Encyclopédie L´amateur de la Fôret de Fontainebleau. Disponível em http://www.fontainebleau-foret.fr/ acessado em 27/07/2014. | 401 Problemas estéticos do cinema experimental DONNY CORREIA* EDSON LEITE** Resumo: O presente artigo propõe a observação de alguns problemas existentes no estudo do cinema experimental sob a ótica da estética clássica, mais especificamente na visão de Hegel. Propõe expor alguns pontos de vista de autores como Sigfried Kracauer e Walter Benjamin, que procuraram estabelecer bases para um estudo estético próprio do cinema entendendo que, por se tratar de uma arte nova, baseada na percepção por meio do choque de imagens, o cinema exigiria um modelo forjado a partir da modernidade, com influências das rupturas propostas por movimentos de vanguarda, em particular, o dadaísmo. Palavras-chave: Cinema Experimental. Estética. Vanguarda. Dadaísmo. Aesthetic problems of the experimental cinema Abstract: This article intends to observe some of the problems concerning the study of the experimental cinema from the perspective of classical aesthetics, specifically in Hegel’s studies. It proposes to expose some points of view of authors such as Siegfried ** Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo na linha de pesquisa Produção e Circulação da Arte ** Docente da ECA USP, Artur Matuck tem atuado no Brasil, Estados Unidos, Canadá e Europa como professor, pesquisador, escritor, artista plástico, diretor de vídeo, performer, produtor de eventos de telearte e mais recentemente como filósofo da comunicação contemporânea e organizador de simpósios internacionais. Desde 1977, tem apresentado conferências, oficinas, e projetos, nacional e internacionalmente, em tópicos diversos tais como Artes Mediáticas, Arte e Tecnologia, Telecomunicações e Artes, Televisão Interativa, Arte Performance, História da Arte, Arte Combinatória, Direitos Autorais, e Criação Textual Computacional. 402 | Donny Correia e Edson Leite Kracauer and Walter Benjamin, who sought to establish a proper foundation for the aesthetic study of film, understanding that, because it is a new art, based on the perception achieved by the clash of images, film would require a model forged from modernity, with influences of ruptures proposed by avant-garde movements, in particular, Dadaism. Keywords: Experimental Cinema. Aesthetics. Avant-Garde. Dadaism. Este artigo pretende estabelecer um percurso de discussões sobre a estética do filme, esclarecendo um pouco a discussão no que diz respeito à produção e à recepção de obras experimentais. Henri Angel inicia seus estudos sobre a estética do filme com algumas questões elementares: Três questões se colocam simultaneamente a quem se interroga sobre a estética do cinema: estamos diante de uma arte legítima ou de um modo de expressão que desborda das perspectivas artísticas? O cinema é uma arte autônoma [...]? É ele, ao contrário, o produto das seis demais artes? (ANGEL, 1982, p.5) Uma vez tornado pelos artistas de vanguarda ferramenta de criação, o cinema passa a gerar efeitos de sentido. A arte cinematográfica passa a ser uma realidade e há uma clara cisão entre o cinema comercial e o cinema criativo, experimental. Isto gera a necessidade de se pensar o cinema esteticamente, conferindolhe valores e medindo sua real função artística. Este é o debate há muito travado entre várias correntes dos estudos de estética e causa divergências quando estudado segundo as leis da estética clássica. Em seu tratado sobre a estética, Hegel (2009) procura definir como obra de arte algo que existe realmente e é passível de reconhecimento. Para ele, a obra de arte verdadeira é fruto do espírito. Temos na arte um particular modo de manifestação do espírito; dizemos que a arte é uma das formas de manifestação porque o espírito, para se realizar, pode servir-se de múltiplas formas. O modo particular da manifestação do espírito constitui, essencialmente, um resultado. (HEGEL, 2009, p. 9) Segundo Hegel, é graças à arte que nos libertamos do mundo obscuro e perturbado e ascendemos ao reino tranquilo das aparências amigáveis. No entanto, ele mesmo reconhece quão vaga pode ser esta afirmação: Problemas estéticos do cinema experimental | 403 A determinação geral que permanece após todas as eliminações é a de que a arte destinar-se-ia a despertar em nós sensações agradáveis mediante a criação de formas com a aparência da vida. Além de nada poder ser mais vago do que esta definição, a expressão “sensações agradáveis” é de uma trivialidade impressionante. (HEGEL, 2009, p. 12) Ao falarmos do cinema experimental, que se consolida a partir da experiência dadaísta, mesmo nas artes visuais, tais manifestações do espírito artístico de fato partem do caos, e não parece correto dizer que a partir da contemplação de tais obras recuperemos a tranquilidade ou a liberdade. Longe disso, tais filmes e obras dadaístas parecem nos colocar numa posição desconfortável, dado o confronto com a realidade do mundo moderno. Sobre essa realidade irreconciliável, Hegel esclarece que: Ao contrário do que acontece na natureza, a arbitrariedade e a anarquia reinam, absolutas, no espírito em geral e, sobretudo, na imaginação, pelo que os seus produtos, isto é, a arte, se tornam completamente impróprios para o estudo científico. (HEGEL, 2009, p. 15) A compreensão estética do cinema requer que se assuma que não há precedentes de estudos estéticos possíveis de serem aplicados à cinematografia, como foram à literatura e ao teatro. No entanto, afirma Hebert Read que “toda obra de arte é produto da imaginação criadora e, para merecer o nome de arte, o cinema deve ser também produto da mesma fonte” (READ, 1969, p. 41). Benjamin, discorrendo sobre a estética aplicada ao cinema, indica que: Gastaram-se vãs sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era ou não arte, porém não se indagou, antes, se essa própria invenção não transformaria o caráter geral da arte; os teóricos do cinema sucumbiram no mesmo erro. Contudo, os problemas que a fotografia colocara para a estética tradicional não eram mais que brincadeiras infantis em comparação com aqueles que o filme iria erguer. Daí essa violência cega que caracteriza os primeiros teóricos do cinema. (BENJAMIN, 1969, p. 72) Benjamin condena as tentativas que julga frustradas, por parte de alguns autores reacionários, de interpretar o cinema dentro de uma perspectiva de gênero idêntico, atribuindo a esta arte um valor sagrado, no sentido sobrenatural (1969, p. 73). 404 | Donny Correia e Edson Leite Em 1928, ao assistir a uma adaptação cinematográfica de seu livro, Die Buddenbroken, o escritor Thomas Mann concluiu que não haveria sentido em aplicar ao cinema os mesmos critérios formulados pela estética clássica (KUENZLI, 1996, p. 21). E Georg Lukacs completa que: [...] something new and beautiful has developed in recent times, but instead of taking it as it is, people are attempting to classify it [...]. The cinema is regarded either as an instrument of education or as a cheap substitute for the theater; either didactic or economic. Few people if any remember that something beautiful belongs first and formost to the realm of beauty definition and evaluation is properly a task for aesthetics.1 (apud ELSAESSER, 1996, p. 21) Em outras palavras, Lukacs sugere que o cinema propõe um desafio à estética clássica, o qual precisa de uma resposta, e não pode ser meramente relegado à esfera da “vida” simplesmente, em oposição à esfera da “arte”. The images of the cinema [...] possesses a life of a completely different kind (from those on stage); in one word, the become – fantastic. But the fantastic is not opposite to living, it is another aspect of life: life without presence, without fate, without causality, without motivation; a life with which the core of our being will never be identical, nor can it be; and even if it – often – yearns for this kind of life, this yearning is merely after a strange precipice, something a long way off, inwardly distanced. The world of cinema is a life without background or perspective, without difference or properties or qualities. (The cinema) is a life without measures or order, without being or value, a life without soul, mere surface [...] the individual moments, whose temporal sequence brings about the filmed scenes, are only joined with each other insofar as they follow each other without transition and mediation. This is no causality which could joint hem, or more precisely, its causality is free from and unimpeded but any notion of content. “Everything is possible”: this is the credo of cinema, and 1. [...] algo novo e belo desenvolveu-se recentemente, mas ao invés de ser considerado como é, as pessoas tentam classificá-lo [...]. O cinema é considerado ou como instrumento educativo, ou como um substituto barato para o teatro; ou didático, ou econômico. Poucas pessoas, se tanto, lembram que algo belo pertence primeiro, e acima de tudo, ao domínio do belo e sua definição e avaliação são tarefas próprias da estética. (Tradução nossa) Problemas estéticos do cinema experimental | 405 because its technique expresses at every moment the absolute (even if only empirical) reality of this moment, “virtuality” no longer functions as a category opposed to “reality”: both categories become equivalent, identical. Everything is true and real, everything is equally true and real; this is what a sequence of images in the cinema teaches us.2 (apud ELSAESSER, 1996, p. 21) Esta noção de que tudo é real e possível era também o mote de dadaístas como Raoul Hausmann. Talvez, por isso, a apropriação do novo meio de reprodução da realidade tenha gerado a necessidade de se discutir onde residem suas propriedades estéticas. Elsaesser (1996, p. 23) lembra que, no começo de sua história, o cinema era apenas uma diversão de feiras e espetáculos de voudeville, em que a percepção da massa era erotizada, estimulada pela ilusão criada a partir da intermitência de imagens que criava a sensação de movimento. Mais adiante, no curso da história desse aparato, If the Dadaists took an interest in the phenomenon of the masses eroticized by cinematic spectacle, they were equally alert to the fact that here was a machine organized in a peculiarly contradictory way: the cinematic apparatus is devised to function so to disguise the actual movement of the image (passing through 2. As imagens do cinema [...] possuem uma vida de forma completamente distinta (daquela dos palcos); em outras palavras, elas se tornam – fantásticas. Mas o fantástico não é oposto ao viver, é um outro aspecto da vida: vida sem presença, sem destino, sem causalidade, sem motivação; uma vida na qual o cerne de nosso ser nunca será idêntico, nem pode, e mesmo que ele – por vezes – aspirar a este tipo de vida, esta aspiração busca algo no vazio, algo que está longe, completamente distante. O mundo do cinema é a vida sem antecedentes ou perspectiva, sem diferença de propriedade ou qualidade. (O cinema) é a vida sem medidas ou ordem, sem existência ou valor, uma vida sem alma, meramente superficial [...] os momentos individuais, cuja sequência temporal da forma às cenas filmadas, são apenas unidos uns aos outros enquanto seguem uns aos outros sem transição ou mediação. Não há causalidade que os pudesse juntar, ou mais precisamente, sua causalidade é livre e desimpedida pela noção de conteúdo. “Tudo é possível”: este é o credo do cinema, e porque sua técnica expressa a todo momento (mesmo que empiricamente) a realidade desse momento, “virtualidade” não mais serve como categoria oposta a “realidade”: ambas as categorias tornam-se equivalentes, idênticas. Tudo é verdadeiro e real, tudo é igualmente verdadeiro e real; isto é o que nos ensina uma sequência de imagens no cinema. (Tradução nossa) 406 | Donny Correia e Edson Leite the projector gate) in order to create a non existent movement in the image. Energy in the cinema appears not as in productive machines, to transmit, transfer, or transform movement, but in order to nullify, disguise, and revalue movement: mechanics has become the metamechanics of imaginary motion. This gives the cinema, in terms of its apparatus, the status not of an optical toy [...], but a philosophical toy, a machine transforming the useful energy of cogs and transmission belts into a useless energy of illusionist simulation.3 (ELSAESSER, 1996, p. 23) Pensamos que seja esta relação da máquina com a criação da ilusão a principal característica estética do cinema, uma vez que se trata de uma arte surgida em tempos de capitalismo e de avanço tecnológico. Portanto, seria um tanto arriscado tentar enquadrar as funções do cinema dentro de uma estética clássica. Finalmente, Elsaesser observa que The insertion of art into the sphere of technological, capitalist modes of production becomes, according to Benjamin, the only position from which a critique of that mode of production is possible. In this respect, the idea of cinema, viewed from the perspective of its particular apparatus, could serve as a sort of model for the representation of the relation between body and matter.4 (ELSAESSER, 1996, p. 24) 3. Se os dadaístas se interessaram pelo fenômeno da massa erotizada pelos espetáculos cinematográficos, estavam igualmente cientes do fato de que ali estava uma máquina organizada de maneira peculiarmente contraditória: o aparato cinematográfico é concebido de maneira que disfarce o real movimento da imagem (que passa pela janela do projetor), de maneira a criar um movimento não existente na imagem. A energia no cinema aparece não como em máquinas de produção, para transmitir, transferir, ou transformar movimento, mas para anular, disfarçar e revalorizar o movimento: a mecânica se tornou metamecânica do movimento imaginário. Isso confere ao cinema, no que tange ao seu aparato, não o status de um brinquedo ótico, [...] mas de um brinquedo filosófico, uma máquina transformando a energia útil, de rodas dentadas e correias, em vã energia de simulação ilusionista. (Tradução nossa) 4. A inserção da arte numa esfera dos modos de produção tecnológicos capitalistas se torna, segundo Benjamin, no único meio pelo qual se pode criticar o meio de produção. A esse respeito, a ideia do cinema, visto da perspectiva de seu aparato em particular, poderia servir como um modelo de representação da relação entre corpo e matéria. Problemas estéticos do cinema experimental | 407 A esse respeito, Benjamin nos diz, comparando a materialidade do cinema com o teatro, arte do qual muito emprestou a linguagem cinematográfica: Em vez de invocar quaisquer exemplos de grande massa daqueles que se apresentam, fixemo-nos em um especialmente ilustrativo. A presença, no palco, de um relógio em funcionamento seria sempre inútil. Inexiste lugar, no teatro, para sua função que é a de marcar o tempo. Mesmo numa peça realista, o tempo astronômico estaria em discordância com o tempo cênico. Nessas condições, é a da maior importância para o cinema poder dispor de um relógio a fim de assinalar o tempo real. Esse é um dos dados que melhor indicam que, numa circunstância determinada, cada acessório pode desempenhar um papel decisivo. Estamos aqui bem próximos da afirmação de Pudóviquim, segundo a qual “o desempenho de um ator, vinculado a um objeto e dependendo deste... sempre constitui um dos mais poderosos recursos de que dispõe o cinema”. O filme, então, é o primeiro meio artístico capaz de mostrar a reciprocidade de ação entre a matéria e o homem. Nesse sentido, ele pode servir com muita eficácia a um pensamento materialista. (BENJAMIN, 1969, p. 77) Essa relação entre atores e objetos pode ser observada no filme de Hans Richter, Ghosts before breakfest (1928), em que utensílios domésticos do dia a dia, peças do vestuário e ferramentas diversas se revoltam contra os humanos e ganham vida e vontade próprias. O que Benjamin nos diz é que o processo pelo qual o filme é feito, ou seja, pela montagem, cria efeitos, elipses e trucagens visuais que reconfiguram a relação material entre as partes. Segundo Benjamin (1969, p. 84), “o que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apresenta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele representa para si o mundo que o rodeia”, ou seja, podemos dizer que o cinema permite uma melhor observação crítica e analítica de uma realidade. E Sigfreid Kracauer pergunta retoricamente: Was the camera not an ideal means of reproducing and penetrating nature without any distortions? Leading scientists, artists and critics were predisposed to grasp and acknowledge the peculiar virtues of the emergent medium.5 (KRACAUER, 1997, p. 5) 5. Não seria a câmera o meio ideal de reproduzir e penetrar a natureza sem nenhuma distorção? Os principais cientistas, artistas e críticos estão predispostos a tomar posso e reconhecer as virtudes peculiares desse novo meio. 408 | Donny Correia e Edson Leite Implicitamente, Kracauer critica a forma tradicional da estética, que vê a pintura como reprodução da natureza, e questiona se não é o cinema a maneira mais adequada de se reproduzir aquilo que se vê. Sobre a suposta superioridade do cinema em relação à pintura, e como esse abre portas a uma percepção muito superior graças às suas vantagens, Benjamin comenta: Com relação à pintura, a superioridade do cinema se justifica naquilo que lhe permite melhor analisar o conteúdo dos filmes e pelo fato de ele fornecer, assim, um levantamento da realidade incomparavelmente mais preciso. [...] Graças ao cinema – e aí está uma das suas funções revolucionárias – pode-se reconhecer, doravante a identidade entre o aspecto artístico da fotografia e o seu uso científico, até então amiúde divergentes. [...] Os bares e as ruas de nossas grandes cidades, nossos gabinetes e aposentos mobiliados, as estações e usinas, pareciam aprisionar-nos sem esperança de libertação. Então veio o cinema e, graças à dinâmica de seus décimos de segundo, destruiu esse universo concentracionário [...]. Graças ao primeiro plano, é o espaço que se alarga; graças ao ralenti, é o movimento que assume novas dimensões. [...] o ralenti não confere simplesmente relevo às formas do movimento, já conhecidas por nós, mas, sim, descobre, nelas, outras formas, totalmente desconhecidas, que não representam de modo algum o retardamento de movimentos rápidos e geram, mais do que isso, o efeito de movimentos escorregadios, aéreos e supraterrestres. [...] Fica bem claro, em consequência, que a natureza que fala à câmera é completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem age conscientemente por um outro onde a ação é inconsciente. (BENJAMIN, 1969, p. 85-87) Benjamin reconhece a superioridade da cinematografia no que diz respeito à apreensão da realidade pela arte pictórica e com entusiasmo ressalta os recursos técnicos de manipulação da imagem, neste caso, a câmera lenta (ralenti), que é capaz de criar novas camadas de realidade, buscando no inconsciente uma materialidade verdadeira, que ressalta formas e expressões até então somente possível pela representação da pintura, mas aí sujeito à subjetividade do artista. Ele compara o efeito alcançado pela pintura e pelo cinema com uma analogia curiosa. Cabe, aqui, indagar qual é a relação entre o operador e o pintor. A fim de responder, permita-se nos recorrer a uma comparação esclarecedora, extraída da própria ideia de operação, tal como é empregada na cirurgia. No mundo opera- Problemas estéticos do cinema experimental | 409 tório, o cirurgião e o mágico ocupam dois polos opostos. O modo de agir do mágico, que cura um doente mediante a atuação das mãos, difere daquela do cirurgião que pratica uma intervenção. O mágico conserva a distância natural existente entre ele e o paciente [...]. O cirurgião, pelo contrário, a diminui consideravelmente, porque intervém no interior do doente [...]. Em suma: ao contrário do mágico [...], o cirurgião, no momento decisivo, renuncia a se comportar, face ao doente, de acordo com uma relação de homem a homem; é sobretudo através de modo operatório que ele penetra no doente. Entre o pintor e o filmador encontramos a mesma relação [...]. O primeiro, pintando, observa uma distância natural entre a realidade dada a ele próprio; o filmador penetra em profundidade na própria estrutura do dado. As imagens que cada um obtém diferem extraordinariamente. A do pintor é global, a do filmador divide-se num grande número de partes, onde cada qual obedece as suas leis próprias. (BENJAMIN, 1969, p. 82-83) Com isso, concluiu o autor que o homem moderno está em vantagem quanto à apreensão da realidade tal e qual, já que [...] a imagem do real fornecida pelo cinema é infinitamente mais significativa, pois ela atinge a esse aspecto das coisas que escapa a qualquer instrumento – o que se trata de exigência legítima de toda obra de arte – ela só consegue exatamente porque utiliza instrumentos destinados a penetrar, do modo mais intensivo – no coração da realidade. (BENJAMIN, 1969, p. 83) Benjamin estabelece uma curiosa relação entre “realidade” e “doente”, no que diz respeito ao cirurgião e ao filmador. Aqui, o autor parece relacionar a modernidade da era da máquina, da impessoalidade capitalista e do crescimento urbano, social e tecnológico a uma doença, em cuja intervenção caracterizaria uma operação quase no sentido de curar os males dessa modernidade. Relacionando a questão da recepção da arte enquanto pintura em comparação com o cinema experimental, que traz para o filme toda sorte de transgressões já praticadas nas artes plásticas, subvertendo o papel da arte mediante a sociedade, Benjamin observa que Para uma burguesia degenerada, o reencontrar em si mesmo tornou-se uma escola de comportamento associal; com o dadaísmo, a diversão tornou-se um exercício de comportamento divergente muito violenta, fazendo-se da obra de 410 | Donny Correia e Edson Leite arte um objeto de escândalo. O intento era, antes de tudo, de chocar a opinião pública. De espetáculo atraente para o olho e de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte, mediante o dadaísmo, transformou-se em choque [...]; adquiriu um poder traumatizante. E, dentro disso, favoreceu o gosto pelo cinema, que possui um caráter de diversionamento pelos choques provocados no espectador, devido às mudanças de lugares e de ambientes. [...] A pintura convida à contemplação, em sua presença, as pessoas se entregam à associação de ideias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já cede lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar. [...] De fato, a sucessão de imagens impede qualquer associação no espírito do espectador. Daí vem sua influência traumatizante[...]. (BENJAMIN, 1969, p. 89) Benjamin capta bem a natureza estética do novo meio e remete suas considerações às teorias do choque da montagem desenvolvidas por Sergei Eisenstein. Em sua reflexão sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, parece ser o cinema uma forma mais do que adequada à representação da realidade do homem moderno, visto que tal modernidade age como uma realidade de choque em cada indivíduo, dada a velocidade que a vida adquire e as novas configurações sociais vigentes. Para Benjamin: O cinema é a forma de arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa, destinada ao homem de hoje. A necessidade de se submeter a efeitos de choque constitui uma adaptação do homem aos perigos que o ameaçam. O cinema equivale a modificações profundas no aparelho perceptivo, aquelas mesmas que vivem atualmente, no curso da existência, o primeiro transeunte surgido numa rua de grande cidade e, no curso da história, qualquer cidadão de um Estado contemporâneo. (BENJAMIN, 1969, p 89-90) A esta observação de Benjamin, a respeito da dureza do filme, como forma moderna de representação da realidade, Hebert Read complementa afirmando que: [...] deve-se reconhecer que o filme não traduz transposição livre e direta do pensamento, através de um recurso dócil, como o de pintar, mas deve ser duramente extraído do material desordenado que propicia o mundo visível da atualidade. [...] A pintura é uma síntese [...] o cinema é essencialmente análise. (READ, 1969, p. 36) Problemas estéticos do cinema experimental | 411 A síntese, neste caso, parece ser um ato de violência cinematográfica, quando as camadas de imagens e ideias se interpõem ao espectador, que é obrigado a se relacionar com uma série de ideias simultâneas e assimilá-las num curto espaço de tempo – este regido pela montagem. Existe uma falta de lógica no cinema experimental, que, talvez, nos pareça a prerrogativa essencial à fruição intelectual do espectador, sem a qual não há ato participativo por parte de quem assiste a uma produção experimental. Esta falta de lógica, para Read, é exatamente o que confere valor estético ao filme. Talvez a única unidade possível seja a ausência de qualquer unidade – o filme é fundamentalmente alógico. Nele os acontecimentos podem advir simultaneamente; podem ser representados através de mais de uma unidade de dimensão; o próprio tempo, em si, pode ser controlado. Sua única unidade é a continuidade. (READ, 1969, p. 38) O cinema constitui um sistema de produção estética com autonomia e propriedade, conferindo ao realizador uma independência de suporte e uma legitimidade artística. O choque parece ser o princípio primordial na construção cinematográfica, que a diferencia da pintura ou da escultura, e mesmo do teatro. Este choque está em consonância com a realidade do homem moderno, posto numa sociedade que não mais dispõe do privilégio do tempo ao seu favor para exercer a fruição de um mundo que a cerca. Este mundo, agora, é o mundo hostil da modernidade, da máquina e do relógio. E são as chamadas “sinfonias das metrópoles”6 as obras filmográficas que melhor retrataram esta mudança no curso da história humana, ao aplicarem a estética experimental do cinema valendo-se das técnicas de montagem e construção, que oscilam entre a abstração e o retrato verídico da sociedade. 6. Estilo de filme experimental realizado ao longo da década de 1920 que pretendia retratar as grande metrópoles por meio de montagem inventiva e radical, buscando lançar um olhar crítico sobre a relação do indivíduo com sua cidade moderna, veloz e vertiginosa. Este embate entre o progresso desmesurado e o homem comum, sempre perdido na multidão e destituído de identidade própria, era o elemento principal da crítica implícita nessas produções. Algumas das mais representativas sinfonias das metrópoles são Berlim, a sinfonia da grande cidade (1928), de Walter Ruttmann, Rien que les heures (1926), de Alberto Cavalcanti, Regen (1929), de Joris Ivens e São Paulo, sinfonia da metrópole (1929), de Adalberto Kemeny e Rudolf Lustig. 412 | Donny Correia e Edson Leite Referências bibliográficas AGEL, Henri. Estética do cinema. São Paulo: Cultrix, 1983. BENJAMIN, Walter. Magia, Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987. . A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: GRÜNEWALD, José Lino. A ideia do cinema. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1969, pp. 55-95 ELSAESSER, Thomas. Dada cinema? In: KUENZLI, Rudolph E. (org.) Dada and surrealist film. Massachusetts: The MIT Press, 1996, pp. 15-21. GRÜNEWALD, José Lino. A ideia do cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2009. KUENZLI, Rudolph E. (org.) Dada and surrealist film. Massachusetts: The MIT Press, 1996. KRACAUER, Siegfried. Theory of film, the redemption of physical reality. New Jersey: Princiton University Press, 1997. READ, Herbert. A estética do filme. In: GRÜNEWALD, José Lino. A ideia do cinema. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1969, pp. 35-40. | 413 História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar REGILENE SARZI RIBEIRO* Resumo: Os anos 80 marcam a presença irreverente e experimental do vídeo independente na recente história da arte do vídeo no Brasil. Expressões singulares que transformam o meio televisivo em matéria prima para criação, os vídeos independentes estão entre as principais inserções da arte do vídeo. Visando avançar nos estudos sobre o vídeo e sua complexidade poética no campo da historiografia e história da arte, apresentamos este trabalho sobre um dos marcos da arte do vídeo no país: a sua inserção no circuito televisivo. A abordagem histórico-crítica revela como a videoarte arquiteta, somada às intercessões estéticas e formais na linguagem comunicacional, as ações poéticas de apropriar, subverter e hibridizar processos e procedimentos audiovisuais. Palavras-chave: História da Arte. Videoarte Brasileira. Televisão. Processos Criativos Audiovisuais. History of video art in Brazil: 80’s subvert and hybridize Abstract: The 80’s mark the irreverent and experimental presence of independent video at the recent history of video art in Brazil. Natural expressions that transform the television medium in raw material for creation, independent videos are among the main inserts of video art. Aiming to advance in studies on the video and its poetic complexity in the field of historiography and history of art, we present this work on one of the landmarks of video art in the country: its insertion on the television circuit. The historical-critical approach architect reveals how video art, * Pós-doutora em Artes (IA/UNESP/SP). Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Professora Titular, Coordenadora de Design Gráfico UNIP/Bauru/SP. 414 | Regilene Sarzi Ribeiro plus the aesthetic and formal intercessions in communicative language, poetic actions of appropriating, subverting and hybridize audiovisual processes and procedures. Keywords: Art History. Brazilian Video Art. Television. Audiovisual Creative Processes. Se entre os anos 1960 e 1970 o registro videográfico, que resulta da arte conceitual e do hibridismo entre a body art e a performance, pode ser considerado uma das chaves para compreensão da primeira produção artística em vídeo dos artistas brasileiros, nas décadas seguintes (a partir de 1980), a interação com a televisão, o surgimento dos videomakers e dos vídeos independentes são a base para compreensão de dois traços que representam a expressão singular da ação artística em vídeo: subverter e hibridizar os procedimentos audiovisuais. Os artistas se apropriam de recursos e materiais não artísticos que são criados para a comunicação e subvertem seus processos e procedimentos tanto técnicos quanto temáticos ou conceituais, gerando diferentes resultados estéticos e críticos. Entendermos que estas chaves de compreensão da arte contemporânea mantêm relações com o contexto, sobretudo na era do capitalismo global em que os processos de hibridização nas artes visuais se acentuam frente à comunicação de massa e à Indústria Cultural. Por isso, defendemos a realização de estudos que promovam a discussão do vídeo no campo da história e historiografia da arte visando contribuir para a compreensão do sistema videográfico e sua complexidade como linguagem poética. Com este propósito, apresentamos um breve estudo a década de 1980, um dos marcos da arte do vídeo no país, e a produção do “vídeo independente” (MACHADO, 2007) que subverteu o meio televisivo, hibridizou-se com o campo da comunicação e promoveu inserções político-culturais no circuito comercial da televisão. Cabe ressaltar que este ensaio apresenta parte dos resultados obtidos pela pesquisa de Pós-doutorado realizada pela autora em 2013, no Instituto de Artes da UNESP de São Paulo. Naquela foi produzida uma Historiografia da Arte do Vídeo no Brasil, que buscou somado ao panorama histórico que caracteriza uma historiografia, uma aproximação de diferentes períodos da arte do vídeo, de 1950 a 2013, aplicando o método diacrônico, sincrônico e crítico para contribuir com o campo da História da Arte Contemporânea. Da referida historiografia, optamos pelo recorte que comporta os anos de 1980, quando se desenvolve no Brasil um grupo de artistas, entre eles Tadeu História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar | 415 Jungle, Walter Silveira, Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Marcelo Tas, Renato Barbieri e Paulo Morelli. Estes exploram exaustivamente os pressupostos poéticos do vídeo e se posicionam criticamente diante do veículo televisual. A produção em vídeo da comumente denominada “segunda geração” da arte do vídeo brasileiro foi marcada pela crítica ao meio de comunicação de massa televisão e por inserções das experimentações artísticas neste meio. Conhecida como a “geração dos independentes”, tem como destaque dois grupos: o TVDO e a Olhar Eletrônico. Segundo o grande incentivador da videoarte no Brasil, o pesquisador Walter Zanini, que durante sua gestão do MAC/USP defendeu e promoveu o vídeo, o chamado vídeo independente: [...] que se reconheceu desde logo nos grupos “TVDO”, com os videomakers Tadeu Jungle, Walter Silveira, recém-egressos da ECA-USP, e Pedro Vieira, e “Olhar Eletrônico”, com Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Marcelo Tas, Renato Barbieri e Paulo Morelli, configuravam uma alteridade de princípios em relação aos seus antecessores, alguns dos quais prosseguiam ativos e ortodoxos, enquanto surgiam Otávio Donasci e Rafael França, valores novamente procedentes das escolas de arte. Foi o momento do aparecimento das produtoras de TV (ZANINI, 1997, p. 241). Neste contexto, é imperioso destacar um dos marcos da história da arte do vídeo no Brasil: a criação dos Festivais Videobrasil, em 1983, que se tornou depois a Associação Cultural Videobrasil, garantindo a organização coletiva e a institucionalização até se tornar hoje um dos polos culturais responsáveis pela memória e renovação na produção artística no país. A Associação Cultural Videobrasil, fundada e dirigida por Solange Farkas, visa fomentar, difundir e mapear a arte contemporânea. Outro interesse central é a formação de público e o intercâmbio entre artistas, curadores e pesquisadores. O festival é reconhecido por seu pioneirismo no incentivo a videoarte quando esta surgia na cena brasileira promovendo a consolidação do meio no país. Num segundo momento, desde 2011, o festival se soma a outras linguagens artísticas contemporâneas e amplia os horizontes de uma “ativa rede de cooperação internacional” (VIDEOBRASIL ONLINE). Em depoimento, Tadeu Jungle reitera a importância do Festival Videobrasil para os artistas nos anos de 1980: Em 1983 o vídeo brasileiro recebeu um norte. Era o I Festival Videobrasil. Um festival que existia com a bitola Super-8, e que agora ficava eletrônico. Era 416 | Regilene Sarzi Ribeiro dividido em categorias. Ficção, documentário, experimental... VHS ou UMatic... Surgia como uma necessidade de exibir e organizar o material já em produção. [...] o clima novo e a competição em si fizeram desse festival um foco constante de atenção entre todos que produziam ou se interessavam por novas linguagens (JUNGLE, 2007, p. 205-206). Entre os estudos sobre a televisão e vídeo de arte no Brasil, encontram-se as contribuições expressivas do pesquisador Arlindo Machado (2007), que caracteriza os artistas da geração dos anos de 1980 como artistas do audiovisual e do vídeo “independente”. Cristine Mello (2008) também relata o uso do vídeo como parte das ações que favoreceram a introdução de olhares críticos na televisão comercial por meio dos trabalhos dos comunicadores e artistas do grupo TVDO e Olhar Eletrônico, nos anos de 1980. Mello descreve a estética do grupo: Em 1983, a TVDO realiza Frau, como uma forma dessacralizadora de linguagem para o vídeo. Escapando a qualquer tipo de gênero, esse trabalho não pode ser considerado documentário, nem vídeo, nem programa de televisão, nem ficção, mas uma leitura muito singular, fragmentada, múltipla e visceral realizada por Tadeu Jungle, Walter Silveira e Isa Castro a partir do espirito antropofágico de José Celso Martinez, Neville D’Almeida e Julio Brassane. O vídeo Frau tornou-se o primeiro de uma trilogia da TVDO composta por Non plus ultra (1985) e Heróis da decadência (sic) (1987) (MELLO, 2008, p. 98-99). Estas experiências ampliaram as discussões sobre a linguagem audiovisual e a ligação entre os primórdios da televisão alternativa e a televisão convencional e os processos poéticos na arte do vídeo. Já nos anos de 1970, a TV teria percebido o valor das produções satíricas, irônicas e esteticamente inovadoras, introduzindo-as no cotidiano televisivo por meio da apropriação do modo como usavam a câmera e faziam, por exemplo, suas entrevistas para entretenimento do público. A partir de 1983, a Olhar Eletrônico também passa a se inserir na televisão comercial, em programas inovadores e inventivos gerados para as TVs Gazeta, Abril Vídeo, Manchete, Cultura e Globo. É nesse contexto que surgem as mais variadas e inéditas experiências na mídia televisiva. Uma delas, inesquecível, é o impagável personagem-repórter Ernesto Varela, criado por Marcelo Tas, que junto com seu câmera Valdeci, criado por Fernando Meirelles, abordava História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar | 417 situações sérias com uma mistura de acidez crítica e bom humor (MELLO, 2008, p. 102.). Para além desta forma irreverente de fazer televisão, as videoartes são uma expressão conceitual e autêntica de experimentação do meio por meio de propósitos legítimos no campo artístico, que surge em Nova York, por volta dos anos de 1965, como resultado de um movimento artístico com o objetivo de questionar o cinema. O vídeo tornou-se uma linguagem hegemônica mais evidente a partir da década de 1980. Foi nesta época que emergiu uma geração de videomakers propondo a utilização do meio como instrumento de invenção, transformando o aparato e o suporte televisivo em elemento de expressão. Muitas destas obras passam a utilizar em sua composição cenográfica o aparelho de TV (monitores tradicionais de tubo de raios catódicos), os equipamentos de captação e reprodução da imagem (câmeras de vídeo e players VHS, U-matic e posteriormente Betacam) e os projetores de vídeo (o modelo mais utilizado era o de três tubos da Sony CRT VPH 1000) (AMARAL e CRUZ, 2013, p. 40). Nos anos de 1960, a comercialização da televisão levou um grande número de pessoas ao contato com imagens antes vistas somente nas telas do cinema em noticiários ou pequenas peças comerciais. O fenômeno visual, composto de imagens, movimento, sons e uma avalanche de novidades apresentadas pela publicidade que agora adentrava a casa das pessoas, fez mudar os comportamentos culturais, diminuiu o público do cinema e do teatro e levou os pesquisadores a encararem a televisão como algo negativo e inimigo da arte. Estes e outros fatores, como as revoltas políticas e estudantis em Paris e Nova York, a revolução sexual em muitas partes do mundo, além de aspectos econômicos e sociais causados pela indústria cultural e pela industrialização de produtos em geral, contribuíram para o cenário cultural tumultuado no qual surge a videoarte. O movimento, para tornar as câmeras de vídeo Portapak (primeira câmera de vídeo portátil produzida pela Sony) uma forma de acesso à mídia, rapidamente se tornou moda e a indústria do vídeo tratou de vender esta ideia como palavra de ordem na década de 1960, como afirma Armes: O novo sistema de vídeo era perfeitamente adequado para certas aplicações sociais, tais como vigilância em ambientes de trabalho, ferramenta para ação 418 | Regilene Sarzi Ribeiro comunitária e alguns recursos pata técnicas de ensino. Ao mesmo tempo, alguns artistas fizeram uso do portapak, especialmente em situações interativas ou de performances, e instalações em galerias de arte (ARMES, 1999, p. 140). Unidos pelo pensamento do canadense Marshall McLuhan (1911-1980) sobre os efeitos da eclosão dos meios de comunicação na sociedade e nas artes, os artistas buscaram contato cada vez maior com estes meios para dar vazão aos seus modos de ver e sentir a nova configuração social, para criticar e refletir estas mídias. McLuhan (1979) afirma que todos estes novos meios de comunicação são formas de expressão que geram novas linguagens e novas codificações de experiências humanas produzidas coletivamente por novos hábitos de vida e de trabalho, resultantes de uma conscientização coletiva cada vez mais acentuada da necessidade de inclusão do indivíduo no cotidiano social. No início da sua recente história, a videoarte era reconhecida por dois tipos de práticas de vídeo: por documentários dirigidos por ativistas ligados a noticiários alternativos do meio televisivo e por vídeos artísticos elaborados como continuidade e extensão da produção plástica de artistas plásticos. Do primeiro grupo, há de se destacar os vídeos do americano, pintor e cineasta, Frank Gillette e do canadense Les Levine, recheados de conteúdo político que lhes rendeu o apelido de “videográficos guerrilheiros” (RUSH, 2006, p. 75). A irreverência e a audácia com as quais os vídeos destes comunicadores eram produzidos os levaram à fama e a se tornarem conhecidos por um estilo de imagem muito atraente e bem diferente do que produziam os canais convencionais de televisão. A cobertura política, evasiva, crítica e bastante criativa, produzida em cima da hora, lhes rendeu um espaço significativo na televisão comercial. Arlindo Machado (2007) relata a presença do uso do vídeo para introdução de olhares críticos na televisão comercial no Brasil, a partir dos comunicadores e artistas do grupo TVDO e Olhar Eletrônico, nos anos de 1980. Produções como “VT Preparado AC/JC” do Grupo TVDO e “[Rythm(o)z” dirigido por Tadeu Jungle, ambos de 1986, são exemplos das experiências limítrofes realizadas por artistas com linguagem da mídia eletrônica. Sobre o vídeo “VT Preparado AC/ JC” (1986), afirma Machado: Esse trabalho dá início então a uma série de outros em que a textura mosaicada da imagem de vídeo, bem como as suas propriedades lábeis e anamórficas, são diretamente invocadas pelos realizadores, para produzir uma outra espécie de História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar | 419 ‘estranhamento’ (no sentido que o termo foi empregado no formalismo russo) ou de ‘distanciamento’ crítico (no sentido brechtiano do termo) e assim investigar o modo como a televisão funciona em termos de máquina semiótica (MACHADO, 2007, p. 25). O vídeo “[Rythm(o)z” (1986) é descrito como um filme nunca antes pensado para ser exibido em televisão, pois sua composição: seis peças de curta duração, organizado por um rigoroso jogo de imagens e ritmos metronômicos, sem a presença do verbal, é marcada por cenas de emoção extrema que levam o público à sensação de nojo, perturbação e espanto. Machado (2007) comenta os aspectos estéticos e criativos do vídeo “[Rythm(o)z”: [Rythm(o)z é algo assim como uma reinvenção da produtividade de certos procedimentos expressivos do vídeo (e do cinema) tais como o corte, a zoom, os planos-sequência e a (des)sincronização entre som e imagem. Em cada segmento, apenas um recurso é utilizado, mas de forma concentrada e fulminantemente adequada ao tema focalizado (MACHADO, 2007, p. 27). Três décadas depois, em 2003, a Rede SESC SENAC de Televisão produziu o programa Oficina de Vídeo, que mostrou a breve trajetória do vídeo no Brasil e sua influência na televisão. O programa foi composto por depoimentos de artistas e pesquisadores como Tadeu Jungle e Arlindo Machado. Em seu depoimento, Machado (2003) afirma que a televisão aproveitou, mas não tudo o que poderia ter aproveitado no contato e nas trocas criativas que manteve com os artistas da geração do vídeo independente. A geração que fez vídeo nos anos 80 experimentou as possibilidades da linguagem eletrônica, procurou desenvolver uma linguagem própria para o meio, para a tela, para o ritmo da televisão, quer dizer, todas aquelas experiências num certo sentido se perderam, a televisão aproveitou pouco (30 ANOS..., 2003). Contudo, destaca Machado (2003) que o vídeo permanece vivo e continua mais presente do que nunca entre nós, pois se generalizou e como híbrido hoje está no computador, na televisão, distribuído por entre as mais variadas formas nas ruas e nos painéis eletrônicos. O pesquisador do audiovisual brasileiro esclarece: 420 | Regilene Sarzi Ribeiro [...] no começo dos anos 80, o vídeo era uma atividade quase marginal, o forte era o cinema, a fotografia, a televisão. Quer dizer, o vídeo era um meio que estava surgindo, pessoas começavam experimentar, pouca gente entendia qual era a novidade do vídeo, [...] eu diria até que quase tudo hoje é vídeo (30 ANOS..., 2003). Ainda segundo Machado (2003), a produção audiovisual independente deu certo no Brasil, já que os trabalhos da geração de 1980 influenciou muita gente, muitos artistas que vieram depois incorporaram os trabalhos pioneiros, e defende: [...] a gente poderia dizer que também Cézanne não deu certo no seu tempo, nem Van Gogh, foram pessoas que quando fizeram seus quadros ninguém viu e que durante muito tempo foram ignorados, mas estas obras influenciaram outros pintores que por sua vez acabaram assimilando as novas possibilidades e incorporando em seus próprios trabalhos (30 ANOS..., 2003). Uma década depois do programa realizado pelo SESC SENAC TV, em 2013, o Videobrasil On-line comemora trinta anos de atividade com uma mostra especial: o 18º Festival de Arte Contemporânea SESC Videobrasil. A edição comemorativa foi composta de exposições comemorativas, documentários e entrevistas com videoartistas, pesquisadores e curadores referências para as diferentes gerações do audiovisual brasileiro. Tadeu Jungle, uma das figuras centrais do vídeo independente no Brasil, em depoimento ao Canal Videobrasil, comenta a importância do início do Festival nos anos 1980 para os artistas da sua geração e sua participação com Heróis da Decadên(s)ia, premiado na quinta edição do Festival, em 1987. O trecho aqui transcrito faz parte da série “Videobrasil na TV”, temporada 2013, dedicada às comemorações dos trinta anos do Videobrasil. O videoartista comenta: [...] o Videobrasil começa pequeno e depois ele cresce e tá neste tamanho que ele tá hoje. Mas ali muita gente já falou, video, opa, dá pra fazer, opa. E começou a fazer video a partir deste pequeno movimento que era o Videobrasil no começo da década de 80. Quando em 87, o video “Heróis da decadência” foi eleito o melhor video do festival eu fui pra Cuba com esse video, ali eu achei que tinha dado a minha carta, o meu ás (30 ANOS..., 2013). História da videoarte no Brasil: Anos 80, subverter e hibridizar | 421 A videoarte nascida das intervenções artísticas no campo da comunicação de massa e da ligação entre os primórdios da televisão alternativa e da televisão convencional somada ao anseio dos jovens criadores leva tanto os artistas quando os meios de comunicação a perceberem a versatilidade da linguagem do vídeo. Ironia, crítica e intervenção política marcam o engajamento e a ação dos videoartistas da geração de 1980, que teriam percebido o valor destas produções satíricas introduzindo-as no cotidiano televisivo por meio da apropriação do modo, como usavam a câmera e faziam, por exemplo, suas entrevistas para entretenimento do público. No entanto, para além desta forma irreverente de fazer televisão ou das interferências estéticas e formais, a videoarte se identifica com procedimentos complexos no campo artístico: apropriar-se e subverter a linguagem comunicacional para se tornar um híbrido muito mais do que inserir-se no mercado da comunicação televisiva. Com isso, reafirma uma das posições críticas e irônicas de obras e artistas frente ao sistema das artes: a função da arte não estaria ligada à sua venda como um produto para ser consumido por uma massa, mas ao resultado de uma ideia autentica e livre do sistema de consumo. O que está em jogo é a intervenção no espaço comunicacional e o vídeo como linguagem poética, híbrida e subvertida dentro do seu próprio sistema. Desde a sua origem, o vídeo experimental produzido por artistas resulta da exploração do audiovisual para além dos usos comuns do vídeo para documentários, notícias e outros campos da comunicação de massa. Isso confirma a potência transformadora dos processos criativos e poéticos capazes de gerar inovações artísticas e interações sociais. Trazer à tona a memória da arte do vídeo, e promover sua história, é reconhecer que a videoarte é produto da cultura visual complexa e transnacional que a cada nova intervenção no meio social, onde se constitui ela também se edifica a partir do espaço urbano e da confluência das mídias. Referências bibliográficas AMARAL, Aracy e CRUZ, Roberto Moreira. EXPOPROJEÇÃO 1973-2013. Catálogo. SESC Pinheiros. São Paulo. Disponível em <http://www. expoprojecao. com.br/> Último acesso em 27 de Nov. 2013. PDF. ARMES, Roy. ON VÍDEO. O significado do vídeo nos meios de comunicação. Tradução de George Schlesinger. São Paulo: Summus Ed. 1999. 422 | Regilene Sarzi Ribeiro JUNGLE, Tadeu. Vídeo e TVDO: Anos 80. In: MACHADO, A. (org.) Made in Brasil. Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2007. p. 203-208. 30 ANOS: Tadeu Jungle, 18º. Festival, 2013. Produção Associação Cultural Videobrasil. Canal VB. Depoimentos. São Paulo, 2013. Disponível em <http:/ /site.videobrasil.org.br/festival/arquivo/festival/1352744> Último acesso em 27 de Nov. 2013. Vídeo. MACHADO, Arlindo. Made in Brasil. Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, 2007. 30 ANOS de Vídeo. Parte I. Programa Oficina de Vídeo. Direção Mario Luis Buonfiglio. Entrevista. Arlindo Machado – SESC SENAC TV. 2003. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=39WzDARHlrs> Último acesso em 29 Out. de 2013. Vídeo. MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: SENAC São Paulo, 2008. VIDEOBRASIL ONLINE. Quem somos. Disponível em <http://site.videobrasil. org.br/quem-somos> Acesso em 28 Ago. 2012. ZANINI, W. “Primeiros tempos da arte/tecnologia no Brasil”. In: DOMINGUES, D. (org.) A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997, p. 233-242. | 423 A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: uma investigação do papel das tecnologias de produção de imagens no âmbito dos museus PAULA DAVIES REZENDE* Resumo: Este trabalho tem como objetivo contribuir para compreensão dos equipamentos técnicos de fotografia e cinema (equipamentos que têm como função primária registrar, manipular, editar ou projetar imagens estáticas ou em movimento) como documentos, artefatos portadores de significados culturais, sujeitos ativos na produção de fotografias e filmes e atores fundamentais dentro da História da Fotografia e do Cinema. A partir dessa compreensão, refletir sobre a importância da pesquisa, documentação e preservação desse tipo de acervo. Palavras-chave: Musealização. Equipamentos Técnicos. Cinema. Fotografia. História da Tecnologia da Imagem. The preservation of photography and cinematography equipment: an investigation of the role of the imaging technologies in the museums Abstract: This work aims to contribute with the understanding of the technical equipment of photography and cinema (equipment whose primary function is to record, manipulate, edit or project still or moving images) as documents, artifacts bearers of cultural meanings, active subjects in the production of photographs and films and key actors in the History of Photography and Cinema. From this * Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. 424 | Paula Davies Rezende understanding, reflect on the importance of research, documentation and preservation of this type of collection. Keywords: Musealization. Technical Equipment. Cinema. Photography. History of Imaging Technology. Introdução É comum vermos museus e instituições que possuem acervos de fotografias, filmes e vídeos, sejam coleções de arte, documentos históricos, arquivos pessoais, entre outros. Mas é menos frequente ver instituições que possuam coleções constituídas pelos equipamentos técnicos que produziram essas imagens, tanto estáticas como em movimento. Mais esforços são colocados para preservar coleções fotográficas e cinematográficas do que para preservar as ferramentas que as tornaram possíveis. Este trabalho pretende abordar o equipamento técnico fotográfico e cinematográfico como artefato portador de significado e como sujeito ativo na produção de fotografias e filmes, defendendo assim sua importância e a consequente necessidade de preservar esse tipo de acervo através de sua musealização. Essa tipologia de objetos compreende a gama de equipamentos que tem como função primária registrar, manipular, editar ou projetar imagens (estáticas ou em movimento) com finalidade de servir ao cinema ou à fotografia. O cinema e a fotografia são frutos de tecnologias que vêm enfrentando uma rápida obsolescência. Viram equipamentos ultrapassados e sem utilidade, que não são tão antigos para despertar interesse histórico, e acabam sendo relegados a uma espécie de “limbo”, ou seja, armazenados de forma inadequada, esquecidos nas instituições e se deteriorando a olhos vistos, arriscando desaparecem sem terem a chance de contar sua história. É pertinente trazer para discussão a definição de Krzysztof Pomian (1984, p. 72) que divide os artefatos em coisa (objeto portador de utilidade), semióforo (objeto portador de significado) ou desperdício (objetos que não apresentam nenhuma das características anteriores). Os objetos fotográficos e cinematográficos que se propõe estudar aqui transitam entre os dois primeiros conceitos, pois podem ser despidos de seu uso primário, como ferramenta, para se tornar um portador de significados, um testemunho retirado de sua realidade original para poder representá-la. Nessa dupla função, reside um dos intuitos deste A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ... | 425 trabalho: demonstrar que esses equipamentos não são apenas instrumentos esvaziados de sentido e importância. O objeto técnico como documento A capacidade de fabricar ferramentas é uma das características que distingue o ser humano de outras espécies. As ferramentas por ele fabricadas são uma manifestação de suas fantasias, desejos e vontades. De acordo com Melville Herskovits (apud SCHLERETH, 1999, p. 2), a cultura material compreende o “vasto universo de objetos usados pela humanidade para lidar com o mundo físico, para facilitar as relações sociais, para deleitar a nossa imaginação, e para criar símbolos e significados”. George Basalla afirma que A história da tecnologia não é um registro dos artefatos construídos para garantir a nossa sobrevivência. Em vez disso, é um testemunho da mentalidade fértil e das diversas maneiras que as pessoas escolheram para viver. Visto por esta perspectiva, a diversidade de artefatos é uma das mais importantes expressões da existência humana. (BASALLA, 1989, p. 208, tradução própria) Para os estudiosos da cultura material, a análise desses artefatos contribui para a compreensão da sociedade na qual foram criados, e que deles fez uso, pois são fruto e testemunho dos valores, convicções e especificidade das práticas sociais. Os objetos são um importante veículo de informações, revelando aspectos importantes das esferas culturais, econômicas ou sociais. Essas informações podem ser extraídas não pelo estudo do objeto em si, e sim pela análise das [...] diferentes técnicas e tecnologias contidas naquele objeto, por quem e para quem este objeto foi construído, com que finalidade e se seu uso correspondeu ao objetivo para que foi originalmente construído. E ainda, a interação destes objetos com a ciência que o originou e os lugares e épocas onde esta foi produzida. (GRANATO et al, 2007, p. 3) Segundo McClung Fleming (1999, p. 153), os registros mais antigos do ser humano incluem objetos. A sobrevivência e autorrealização de uma cultura é absolutamente dependente dos artefatos pertencentes a ela. O estudo dos artefatos seria então um estudo sobre as sociedades humanas. Para conhecer o homem, 426 | Paula Davies Rezende devemos estudar as coisas que ele fez – o Parthenon, o Canal do Panamá, Stonehenge, o computador, o Taj Mahal, a cápsula espacial, a Pietà de Michelangelo, os cruzamentos das autoestradas, a Grande Pirâmide, os autorretratos de Rembrandt. Os artefatos feitos e usados por um povo não são apenas uma expressão básica dessa sociedade; eles são a própria cultura, um meio necessário para a autorrealização do ser humano. (FLEMING, 1999, p. 153, tradução própria) Apesar dessa clara vocação do objeto técnico como testemunho histórico, Viviane Couzinet (2004, p. 21) afirma que no âmbito da História, até o século XIX, o documento escrito tinha sido privilegiado pela corrente Positivista, sendo legitimado nesta posição por servir como instrumento de prova e testemunho de direitos e privilégios da classe social ligada ao poder. Nos anos de 1930, é com os historiadores da Escola de Annales, como Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, que os outros tipos de objetos, além do texto, passam a ser considerados como fonte documental histórica. A história se faz com documentos escritos, sem dúvida. Quando os há. Mas ela pode se fazer, ela deve se fazer, sem documentos escritos, se eles não existem. Com tudo o que a engenhosidade do historiador possa lhe permitir utilizar para fabricar seu mel, na falta das flores usuais. Então, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com as formas do campo e com as ervas daninhas. Com eclipses de lua e coleiras de atrelar cavalos. Com pareceres de peritos geólogos sobre pedras e analises de espadas de metal feita pelos químicos. Em uma palavra, com tudo o que, sendo do homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as formas de ser do homem. (FEBVRE apud LE GOFF, 1984, p. 4-5) É possível fazer um paralelo com a importância que os instrumentos científicos históricos começaram a ganhar dentro da História da Ciência nos anos 70. Durante o início do século XX, tais instrumentos eram tidos como “curiosidade”, ou como objetos de arte decorativa, em uma abordagem próxima a dos antiquários, ou eram estudados de forma extremamente técnica, isolandoos do contexto que foram produzidos e utilizados. A maioria dos estudos não buscava analisar seu papel na História da Ciência, e pouca importância era dada aos instrumentos utilizados em laboratório ou no ensino de ciências, acabava se tornando um acervo abandonado nos porões das instituições. Os estudiosos da A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ... | 427 História das Ciências se concentravam nas ideias e teorias científicas, que tinham uma posição predominante com relação à bancada do laboratório, considerada secundária. Uma mudança de perspectiva foi possível graças a uma nova visão dentro da História da Ciência, originada nas décadas de 70 e 80, identificada como Estudos Sociais da Ciência, de cunho mais sociológico, que voltou atenção para temáticas até então negligenciadas, como o papel das práticas de laboratório e dos instrumentos na produção do conhecimento e das teorias científicas. (BRENNI, 2007, p. 162-164) Inspirado pelo questionamento da importância do objeto material dentro da História de modo geral, nos anos 30 e da História da Ciência nos anos 70, é pertinente questionar a falta de reconhecimento dos equipamentos técnicos de produção de imagem, que também são relegados para segundo plano com relação às fotografias e filmes, e demonstrar sua e importância para a cultura material e seu papel ativo na História da Fotografia e do Cinema. A agência das coisas: o equipamento técnico como sujeito ativo A Teoria Ator-Rede é uma corrente de estudos que surgiu entre os anos 70 e 80, dentro dos Estudos Sociais da Ciência. Essa Teoria confronta a sociologia tradicional, defendendo o papel ativo de elementos não humanos nas interações sociais. O autor John Law (2007, p. 2-4) afirma que o que consideramos como “social”, por exemplo, a sociedade, as organizações, as instituições, não é formado apenas por pessoas, e sim por componentes heterogêneos, humanos e não humanos, que justapostos formariam uma rede, em que esses elementos se relacionariam e se influenciariam. Ou seja, objetos, máquinas, dinheiro, energia, animais, coisas, ferramentas não são apenas portadores de significado e projeções simbólicas, mas também atores dentro da rede de conexões sociais. Bruno Latour afirma que […] qualquer coisa que modifique uma situação fazendo diferença é um ator ou, caso ainda não tenha figuração, um actante. Portanto, nossas perguntas em relação a um agente são simplesmente estas: ele faz diferença no curso da ação de outro agente ou não? Haverá alguma prova mediante a qual possamos detectar essa diferença? (LATOUR, 2012, p. 108) 428 | Paula Davies Rezende Dificilmente, as interações entre seres humanos não envolvem objetos e, dificilmente, acontecem apenas entre humanos ou apenas entre objetos, sendo muito mais provável que essas interações “ziguezagueiem” entre ambas. (LATOUR, 2012, p. 113) Dentro dessa perspectiva, pode-se encaixar os equipamentos produtores de imagens técnicas. Entre o olhar do operador da câmera, por exemplo, e a materialização da imagem fotográfica, a câmera ocupa papel fundamental. Não seria absurdo afirmar que, por exemplo, a câmera fotográfica media a relação do fotógrafo com o mundo abstrato das ideias. Além dessa, temos projetores, moviolas, lentes, monitores, entre outros, que, se não criam as imagens, as manipulam, as projetam, interferem diretamente na sua criação e posterior existência. Seria mais fácil tomar alguns desses aparelhos como simples intermediários, meros transportadores de significados, incapazes de transformação (LATOUR, 2012, p. 65). Mas não é tão simples assim. Uma lente acoplada numa câmera modifica a visão que o operador tem. Ela pode, por exemplo, aproximar ou afastar o sujeito operador da câmera ao objeto a ser enquadrado, distorcer o campo de visão, influenciar no tipo e qualidade de imagem que será registrada. Softwares de manipulação de imagens podem literalmente criar novos contextos e novas situações que não existiam na imagem capturada originalmente. Se for considerada a interação entres os equipamentos: o tipo de lente, de iluminação (inúmeras variedades de lâmpadas ou luz natural), de superfície sensível (tipos de negativos, sensores digitais), são inúmeras combinações e diferentes resultados que não necessariamente estão dentro do controle do elemento humano da equação. Desta forma, esses equipamentos técnicos não são apenas simbólicos. Eles são sujeitos ativos na produção dessas imagens técnicas. Os mediadores, por seu turno, não podem ser contados como apenas um, eles podem valer por um, por nenhuma, por várias ou uma infinidade. O que entra neles nunca define exatamente o que sai; sua especificidade precisa ser levada em conta todas as vezes. Os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam. […] Um mediador, apesar de sua aparência simples, pode se revelar complexo e arrastarnos em muitas direções que modificarão os relatos contraditórios atribuídos a seu papel. (LATOUR, 2012, p. 65) A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ... | 429 É uma troca constante entre o operador e o equipamento, que resulta na imagem propriamente dita. Não existe submissão. É uma relação horizontal, permeada por mais ou menos teimosia e personalidade, dependendo dos atores envolvidos. O filósofo Vilém Flusser, em seu livro “Filosofia da Caixa Preta” (1985), descreve a câmera fotográfica praticamente como uma persona com vontade própria, abordando de forma incisiva a complexidade da relação entre o fotógrafo e o aparelho fotográfico. No caso das imagens tradicionais, é fácil verificar que se trata de símbolos: há um agente humano (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu significado. Este agente humano elabora símbolos “em sua cabeça”, transfereos para a mão munida de pincel, e de lá, para a superfície da imagem. A codificação se processa “na cabeça” do agente humano, e quem se propõe a decifrar a imagem deve saber o que se passou em tal “cabeça”. No caso das imagens técnicas, a situação é menos evidente. Por certo, há também um fator que se interpõe (entre elas e seu significado): um aparelho e um agente humano que o manipula (fotógrafo, cinegrafista). Mas tal complexo “aparelho-operador” parece não interromper o elo entre a imagem e seu significado. Pelo contrário, parece ser canal que liga imagem e significado. (FLUSSER, 1985, p. 10-11) Flusser trata ambos, humano e não humano, como atores que executam ações intimamente conectadas e interdependentes, e que juntos constroem o que será traduzido e significado na produção da imagem, seja ela estática (fotografia) ou em movimento (cinema). As possibilidades fotográficas são praticamente inesgotáveis. Tudo o que é fotografável pode ser fotografado. A imaginação do aparelho é praticamente infinita. A imaginação do fotógrafo, por maior que seja, está inscrita nessa enorme imaginação do aparelho. Aqui está, precisamente, o desafio. Há regiões na imaginação do aparelho que são relativamente bem exploradas. Em tais regiões, é sempre possível fazer novas fotografias: porém, embora novas, são redundantes. Outras regiões são quase inexploradas. O fotógrafo nelas navega, regiões nunca dantes navegadas, para produzir imagens jamais vistas. Imagens “informativas”. O fotógrafo caça, a fim de descobrir visões até então jamais percebidas. E quer descobri-las no interior do aparelho. (FLUSSER, 1985, p. 19) 430 | Paula Davies Rezende O processo versus o produto final É sabido que, sem máquinas fotográficas, câmeras cinematográficas e outros equipamentos produtores e viabilizadores, não existiriam nem fotografias e nem filmes. E mesmo assim muito mais esforços são direcionados ao estudo e salvaguarda do produto final do que desses equipamentos técnicos imprescindíveis para existência das imagens em questão. Aparentemente, esses equipamentos são esquecidos, assim como resto do processo e dos elementos heterogêneos que, juntos, criaram o resultado final. Bruno Latour trabalha essa questão do “apagamento do processo” nas práticas do laboratório, com relação à construção do conhecimento científico. Ele afirma que “uma vez que se dispõe do produto final – a inscrição –, rapidamente é esquecido o conjunto das etapas intermediárias que tornaram possível sua produção” (LATOUR, 1997, p. 60). O que o autor considera como produto final seria o artigo publicado em revista, o paper. Neste trabalho, o que está se considerando como produto final é a fotografia, o filme, mas a lógica é a mesma. Remanescem o artigo, a foto, o filme e seus autores/criadores, mas o processo e os outros atores envolvidos nele desaparecem. Uma vez que os artigos estão escritos e que o resultado essencial deu origem a um novo inscritor, nada melhor do que esquecer que a produção do artigo depende de fatores materiais. A bancada é relegada a segundo plano, chega-se a negligenciar a existência dos laboratórios. Esta é a hora das “ideias”, das “teorias” e das “razões”. Parece que os inscritores são mais valorizados quanto mais suave tornam a transição do trabalho manual às ideias. O ambiente material tem, portanto, uma dupla característica: ele é o que torna possível o fenômeno e é dele que se deve facilmente esquecer. Sem ele, não se poderia dizer que um objeto do laboratório existe. E, no entanto, ele só é mencionado muito raramente. (LATOUR, 1997, p. 67) O autor John Law defende que “Sempre que uma rede age como um único bloco, então ela desaparece, sendo substituída pela própria ação e pelo autor, aparentemente único desta ação” (LAW, 1989, p. 5). Ou seja, a complexidade do processo acaba ficando oculta e é substituída por uma pontualização: uma foto foi tirada. Um filme foi feito. O processo não engloba apenas as câmeras, lentes e negativos, mas também coisas mais simples, insumos ordinários do dia a dia, que se não faltam ou deixam A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ... | 431 de funcionar, sequer são lembradas que em algum momento foram extremamente necessárias: água, energia elétrica, produtos químicos, computadores. Atrás da simplificação do processo, encontra-se uma complexidade frequentemente ignorada (LAW, 1989, p. 10). É essa justaposição, essa combinação e complexidade de atores que permitem a criação e a existência do produto final. Não que este produto final não seja importante, ou representativo. Mas eles são parte do trabalho, não mais que uma fração das atividades ocorridas nestas redes (LAW, 1989, p. 26). Apesar do produto final ser o que é lembrado, valorizado e preservado, ele não existiria sem o processo, e não deveria ser tratado como único merecedor de estudos e reconhecimento. Considerações finais Apesar do grande potencial de estudos, o objeto técnico ainda é subvalorizado, se comparado com obras de arte, objetos de culto e relíquias. Isso implica numa relativa escassez de estudos para compreender o papel dos artefatos técnicos na nossa cultura, assim como de esforços para preservá-los. Gilbert Simondon (1980, p. 1) afirma que a falta de reconhecimento da importância dos objetos técnicos seria um problema cultural. O conceito de Cultura, segundo o autor, seria uma faca de dois gumes. Por um lado, ela reconhece certos objetos, garantindo a eles um lugar cativo no mundo dos significados (como, por exemplo, objetos de cunho estético). Por outro, a Cultura bane outros objetos, especificamente os de cunho técnico, apesar de sua capacidade de materializar de forma única informações, e os deixando no mundo não estruturado das coisas que não acumulam significados, e valem apenas por seu caráter utilitário. É preciso compreender que o objeto técnico também faz parte da cultura. A relação entre o ser humano e a máquina, no caso do cinema e da fotografia, pode resultar em arte. Este tipo de equipamento se aprimorou tecnicamente e participou ativamente da História da Fotografia e do Cinema brasileiro, sendo rica fonte de informações sobre o assunto. Nestes casos o desenvolvimento da técnica é indissociável das transformações da linguagem. As diferentes abordagens dos objetos técnicos fotográficos e cinematográficos apresentadas aqui sugerem tirar o foco da fotografia e do cinema como arte e entretenimento para pensá-lo como técnica, criando um outro tipo de relação com o pesquisador. É importante lembrar que o sentido não é uma característica intrínseca dos objetos, ele é atribuído pela sociedade, daí a importância do estudo em contexto 432 | Paula Davies Rezende desse acervo. Analisá-los fora da realidade que os criou limitaria o entendimento de seus verdadeiros significados e incorreria facilmente em anacronismo. É preciso estudá-los, compreendê-los, contextualizá-los em relação à época que foram produzidos, ao seu uso, aos seus utilizadores, pois são testemunhos materiais e atores em um processo de criação. Os filmes e fotografias não surgiram de geração espontânea, nem apenas da criatividade de seus autores. Para criálos, os equipamentos em questão foram imprescindíveis. O reconhecimento do equipamento técnico de fotografia e cinema como sujeito ativo na produção de fotografias e filmes, além de artefato portador de significado na nossa sociedade, legitima a necessidade de preservação e os esforços em avaliar a adequação dos instrumentos existentes que permitam atingir esse propósito, e, sendo necessário, a reflexão e criação de metodologias específicas para garantir a preservação desse tipo de acervo. Referências bibliográfica BASALLA, George. The Evolution of Technology. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1989. 248 p. BRENNI, Paolo. Trinta anos de atividades: instrumentos científicos de interesse histórico. In: ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de. (Org.) Caminho para as estrelas: reflexões em um museu. Rio de Janeiro: MAST, 2007, p. 162-179. COUZINET, Viviane. Le document : leçon d’histoire, leçon de méthode. Communication et langages, n. 140, 2004. p. 19-29. Disponível em: <http:// www.persee.fr/web/revues/home/ prescript/article/colan_03361500_2004_num_140_1_3264>. FLEMING, E. McClung. Artifact Study: a proposed model. In: SCHLERETH, Thomas J. (org). Material Culture Studies in America. Walnut Creek, California: Altamira Press, 1999. p. 162-173. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985. 92 p. GRANATO, Marcus; SANTOS, Claudia Penha dos; FURTADO, Janaina Lacerda. Objetos de ciência e tecnologia como fonte documental para a história das ciências: resultados parciais. In: Anais eletrônicos do VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação. ANCIB: Salvador, 2007. A preservação de equipamentos de fotografia e cinema: ... | 433 LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012. 400 p. ; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. 310 p. LAW, John. Notas sobre a teoria do ator-rede: ordenamento, estratégia, e heterogeneidade. Trad., Fernando Manso. 2007. Disponível em: <http:// www.necso.ufrj.br/Trads/Notas%20sobre%20a%20teoria%20AtorRede.htm>. Acesso em 22 de junho de 2014. . O laboratório e suas redes. In: CALLON, Michel. La science et sés reseau. Tradução de Ana Lúcia Villasboas, revisão de Ivan da Costa Marques. Paris: La Découverte, 1989. Disponível em: <http://www.necso.ufrj.br/Trads/ O%20laboratorio%20e%20suas%20redes.rtf>. Acesso em 22 de junho de 2014. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: Memória-História, Enciclopédia Einaudi, v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984. POMlAN, Krzstof. Colecção. In: Memória-História, Enciclopédia Einaudi, v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. SCHLERETH, Thomas J. (org). Material Culture Studies in America. Walnut Creek, California: Altamira Press, 1999. SIMONDON, Gilbert. On the mode of existence of technical objects. Ontario: University of Ontario, 1980. | 435 A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno na arquitetura e no design e sua relação com as filosofias da existência LEONARDO GOMES SETTE GONÇALVES* RODRIGO CRISTIANO QUEIROZ** Resumo: A pesquisa exposta neste artigo busca identificar alguns aspectos e conceitos fundamentais que contribuíram para estruturar a formação das filosofias da existência (desde Kierkgaard até Sartre) e relacioná-los com a construção do pensamento moderno na Arquitetura e no Design (desde Ruskin até Le Corbusier) com o objetivo de ampliar o entendimento deste período histórico bem como dos seus reflexos na produção e no ensino da Arquitetura Moderna no Brasil, a partir da segunda metade do século XX. Palavras-chave: Modernismo. Existencialismo. Arquitetura. Design. Filosofia. ** Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo atualmente está inscrito no Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo PGEHA-USP, onde desenvolve uma dissertação homônima a este artigo para obtenção do Título de Mestre sob orientação do Prof. Dr. Rodrigo Cristiano Queiroz. ** Professor do Departamento de Projeto da FAUUSP, orientador credenciado no Programa de Pós-Graduação da FAUUSP e no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHAUSP). Arquiteto e Urbanista (Mackenzie, 1998), Mestre História da Arte (ECAUUSP, 2003) e Doutor em Projeto de Arquitetura (FAUUSP, 2007). Curador de exposições de arquitetura, sendo as principais “Coleção Niemeyer” (MACUSP, 2007), “Brasília: un utopia come true” (Trienal de Milão, 2010) e “Le Corbusier América do Sul, 1929” (Centro Universitário Maria Antônia, 2012). Suas pesquisas abordam as relações entre artes visuais e arquitetura moderna. 436 | Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz The Death of God in Architecture: The principles of modern thought in architecture and design and its relation to the philosophies of existence. Abstract: The research proposed in this article seeks to identify some aspects and fundamental concepts that helped to structure the growing philosophies of existence (from Kierkegaard to Sartre) and relate them to the construction of modern thought in Architecture and Design (from Ruskin to Le Corbusier) with the aim of expanding the understanding of this historical period as well as their reflections in the production and teaching of Modern Architecture in Brazil for the second half of the twentieth century. Key words: Modernism. Existentialism. Architecture. Design. Philosophy. Apresentação O artigo que aqui se apresenta é parte integrante de uma pesquisa/dissertação atualmente em desenvolvimento e que pretende expor os conceitos presentes nas filosofias da existência que podem ser relacionados com as transformações sofridas nas estruturas do pensamento arquitetônico no período de formação do movimento moderno na Arquitetura e no Design. Este pensamento, que se evidencia através dos manifestos e dos inúmeros escritos da época, será identificado com o objetivo de apontar os componentes ideológicos e filosóficos que os aproximam. Ao final do processo, espera-se, contudo, que as análises produzidas possam contribuir para ampliar o entendimento do movimento moderno da arquitetura, bem como o desdobramento destes conceitos na produção e no ensino da Arquitetura Moderna no Brasil. Como estrutura de desenvolvimento deste artigo, optou-se por submeter a análise do movimento moderno na arquitetura à estrutura e à formação do pensamento existencial, ou seja, através da construção desta filosofia se buscará tecer o paralelo com o pensamento arquitetônico do mesmo período. A análise das filosofias da existência começa com o teólogo e filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard e se estende neste estudo através de algumas obras de Fiodor Dostoiévski, Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre. O conteúdo a ser analisado no âmbito da arquitetura está dividido em três partes: o início com John Ruskin (e a inclusão de Henry David Thoreau); o desenvolvimento com as vanguardas – Arts & Crafts, Art Nouveau e o Deutscher Werkbund; e a terceira parte com a síntese formal A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ... | 437 da arquitetura moderna através de Mies Van Der Rohe e Le Corbusier. Esta pesquisa pretende, no âmbito do presente artigo, produzir análises pontuais referentes aos dois primeiros períodos (formação e desenvolvimento) especificados acima, tentando expor através deles alguns resultados preliminares do método que se pretende utilizar para a subsequente dissertação. O Existencialismo, o Socialismo e a Função Social do Homem e das Artes. As ideias socialistas não começam com Marx; muitas décadas antes deste pensamento se formalizar a insatisfação do homem com o agravamento das injustiças sociais, com a redução da qualidade de vida nas cidades e com a piora das condições de trabalho irão conduzir ao que Hobsbawm1 nomeou de dupla revolução. Entre 1789 e 1848, os problemas sociais na Europa criaram uma espécie de paradoxo dentro do indivíduo: a ideia de progresso e de evolução da sociedade em contraposição ao esvaziamento do sentido da vida e do trabalho em face aos abusos cometidos em detrimento deste mesmo progresso – uma crise moral2 se apodera deste homem. Robert Owen (1771-1858) é um exemplo neste contexto; filho de artesãos, ele chegou a se tornar diretor de importantes indústrias na Escócia e também coproprietário de uma outra. Ao longo de sua carreira, implantou uma série de melhorias nas condições de trabalho e se tornou famoso ao fundar uma colônia socialista/anarquista em 1825, nos EUA, chamada New Harmony. Owen é um exemplo de indivíduo do começo do século que, incapaz de conviver e colaborar com as injustiças, muda sua concepção de progresso a partir de uma moralidade que se impõe aos seus atos. Muitos outros, porém, não conseguiram, a exemplo de Owen, mudar seu destino dentro da sociedade; a estes homens aprisionados em um sistema que não viam sentido e que – alheio a sua vontade – se impõe a sua moral e os obrigam a viver em contradição – restava conviver com o sentimento que o filósofo e teólogo dinamarquês Kierkegaard 1. Eric J. Hobsbawm, Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. (Hobsbawm & Garschagen, 2003) 2. É esta crise moral que, segundo o que se pretende demonstrar neste artigo, está na origem da formação do pensamento arquitetônico moderno e também na origem das filosofias da existência. 438 | Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz (1813-1855) chamaria, em 1844, de angústia.3 Kierkegaard condenava a crença excessiva na ciência; para ele a evolução da humanidade segundo um sistema dialético (Hegel) obscurecia o significado da existência. Ambas, ciência (filosofia) e religião, não forneciam respostas ou direcionamentos para uma conduta ética e para um modo de agir livre de contradições. O problema fundamental e insolúvel para ele – e para os existencialistas – é o da moralidade. Por ser cristão Kierkegaard, não abandona Cristo como modelo e medida para as ações humanas, porém ele acreditava que as contradições e os paradoxos da igreja e da religião, bem como a necessidade da igreja em aliar fé e razão, produziam um abismo entre o humano e o divino: Se a fé não pressupõe senão acreditar em alguma coisa sem prova, então isto é muito necessário para o pensamento existencial, para o qual não existem fatos externos ou valores que ditem nossa ação, embora sejamos confrontados, porém, com a necessidade de agir e escolher.4 Kierkgaard condenava a submissão do homem ao sistema ortodoxo e doutrinário da igreja, cuja atuação para ele consistia em impor uma verdade através de uma lógica subjetiva: “A crença na tradição cristã requer que a sociedade dance na ponta do paradoxo de que Deus, através de Cristo, caminhou entre os homens”.5 Para Kierkgaard, o homem estava moralmente isolado e o produto deste isolamento era o temor, o desespero e a angústia. Este isolamento moral é equivalente ao isolamento social vivido pelo escritor americano e contemporâneo de Kierkgaard, Henry David Thoreau (1817-1862).6 Thoreau era amigo de Ralph Waldo Emerson (1803-1882); ambos estudaram em Harvard e fundaram em 1835 o Clube Transcendentalista de Concord (Massachusetts, EUA). Emerson acreditava na purificação do homem através da busca introspectiva do seu eu espiritual. Esta busca transcendental conduziria o homem a uma consciência sabia e intuitiva do mundo. 3. O Conceito de Angústia – 1844 juntamente com outros escritos do mesmo autor é constantemente atribuído como conceito inaugural para as filosofias da existência. 4. Ibid. p.17 5. Kierkegaard e a Religião, pp.15-19. Em: (REYNOLDS, 2013) 6. Poeta e filósofo americano – escreveu O Tratado da Desobediência Civil em 1848 A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ... | 439 Então, vamos todos olhar para o mundo com nossos próprios olhos. Será a resposta para a infinita pergunta de nosso intelecto – O que é a verdade? O que é bom? –. Construí vosso próprio mundo. Vossa mente adotará enormes proporções quando se desabrochar. Uma revolução nas coisas irá determinar o fluxo dos espíritos […] Nós andaremos com nossas próprias pernas; trabalharemos com nossas próprias mãos; falaremos com nossas próprias mentes... Uma nação de homens finalmente existirá, porque cada um de nós inspira a Alma Divina. (EMERSON, 1849) Emerson desejava, assim como Kant, libertar o homem do dogmatismo da igreja e das incoerências da sociedade. Thoreau decide empreender o projeto transcendental de Emerson, e para isto decide viver sozinho entre 1845 e 1847 em um terreno pertencente a Emerson situado às margens do lago Walden em Concord. Esta experiência ficou registrada em seu livro Walden e foi publicada em 1854. Thoreau talvez tenha sido – sem saber – um pioneiro ao antever alguns princípios fundamentais da arquitetura moderna e do design do século seguinte. Thoreau, em seu projeto de construção do mundo com as próprias mãos, é levado a construir sua casa e irá fazer dela a materialização de suas críticas ao modo de vida e aos valores da sociedade da época. A casa consistia em um único cômodo de 3,0 por 4,5 metros com uma porta de entrada, duas janelas, uma lareira e um porão para armazenamento de comida. Do lado de fora, havia um pequeno depósito para lenha localizado próximo ao corpo da lareira. Cada item da construção foi criteriosamente escolhido por Thoreau segundo sua utilidade, bem como a quantidade e os custos dos materiais; em seu livro ele chegou a registrar a quantidade de pregos que foram utilizados na construção. Ele constantemente recusava presentes daqueles que o visitavam afirmando já possuir tudo que precisava. Todos os atrativos de uma casa se concentravam num só aposento; era ao mesmo tempo cozinha, quarto, sala e despensa; e seja qual for a satisfação proporcionada por uma casa ao adulto ou à criança, ao patrão ou ao criado, eu sentiaas todas.[…] Às vezes sonho com uma casa maior, mais habitada, erguida numa idade de ouro com materiais resistentes, sem ornamentos do gênero bolo de noiva e que também consistira de uma peça única, um imenso, rústico, substancial e primitivo salão, sem forro nem reboco, de vigas e caibros aparentes sustentando uma espécie de céu inferior sobre a cabeça da pessoa – útil para impedir a entrada da chuva e da neve; em que as estacas e travessas mestras fiquem de fora para receber vossas homenagens quando, ao transpordes a soleira, haveis reverenciado o Saturno derrotado de uma dinastia mais antiga; […] uma casa na qual penetrareis 440 | Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz ao abrir a porta que dá para fora, acabando-se aí a cerimônia; onde o viajante cansado possa tomar banho, comer, conversar e dormir sem mais andanças; um abrigo como o que gostaríeis de achar numa noite de tempestade, contendo tudo o que é essencial numa casa, e nada que demande trabalho; onde possais ver todos os seus tesouros de um só relance, e onde cada coisa penda do gancho ao alcance da mão de qualquer um; a um só tempo cozinha, despensa, sala de visitas, quarto, depósito e sótão; onde possais ver coisas tão necessárias como um barril ou uma escada de mão, coisa tão útil como um armário e possas ouvir a panela a ferver, e apresentar cumprimentos ao fogo que cozinha o vosso jantar e ao forno que assa o vosso pão e onde a mobília e os utensílios indispensáveis constituem os principais ornamentos, […] Uma casa cujo interior é tão aberto e manifesto como um ninho de pássaro e na qual não podeis entrar pela porta da frente nem sair pelos fundos sem ver algum de seus moradores; em que ser hóspede é ser presenteado com a liberdade da casa, e não cuidadosamente excluído de sete oitavos dela, segregado numa cela particular, dizendo-vos o anfitrião que fiqueis à vontade – em absoluta reclusão. […] Sinto que tenho estado entre quatro paredes de muita gente, que por direito poderia ter-me posto na rua, mas não sinto que tenha estado em muitas casas de pessoas. (Thoreau, Cabral, & Henriques, 1999) pp.268-269. Figura 1 – Fotografia da casa construída por Thoreau em 1845. Figura 2 – Vista do lago Walden a partir da casa. Thoreau foi obrigado a interromper seu isolamento em 1846, quando foi preso por deixar de pagar impostos. No dia seguinte foi solto por um amigo que pagou-os por ele7. Ele então decide escrever o Tradado da Desobediência Civil, 7. Thoreau não concordou com o pagamento e preferia permanecer preso a ter que pagá-los; o princípio desta negação está na oposição de Thoreau à guerra dos EUA contra o México. Thoreau suspendeu o pagamento dos seus impostos por acreditar não ser obrigado a financiar uma guerra que acreditava ser cruel e desnecessária. A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ... | 441 onde tenta engajar a população a suspender o pagamento de impostos como forma de oposição ao governo; este projeto de resistência pacífica influenciou Tolstói, Gandhi e Martin Luther King. Embora este texto somente tenha sido publicado em 1854, Thoreau escreve-o em 1848, mesmo ano em que ocorreram profundas transformações sociais em toda Europa. A partir deste ano os movimentos de reivindicação popular que eram heterogêneos e desarticulados ganham corpo – se organizam. O Manifesto do Partido Comunista, redigido por Marx (18181883) e Engels (1820-1895), foi publicado neste mesmo ano justamente com o propósito de organizar e unir os povos oprimidos contra os opressores. Marx acreditava que a ciência estava confinada em um campo teórico e reflexivo que, segundo o autor, não contribuía para uma evolução da sociedade na mesma medida em que o pensamento evoluiu. Para ele, “os filósofos não romperam com a noção hegeliana de que é o espírito humano, e não a atividade humana, o sujeito da história” (CHATELET, 1992). Marx defendia que a filosofia deveria ter um papel objetivo, verdadeiro e transformador, e convoca a participação ativa do homem em seu ambicioso projeto de reforma da sociedade, da economia e dos meios de produção. Este movimento político encontra os primeiros reflexos no pensamento arquitetônico através do escritor e desenhista inglês John Ruskin (1819-1900). Ruskin também era poeta, crítico social, crítico de arte e arquitetura; gozava de fama e respeito e exercia enorme influência na sociedade inglesa da época, principalmente na alta burguesia, devido à grande eloquência com que falava e escrevia sobre diversos assuntos; sua genialidade porém residia em aliar, no arcabouço de suas críticas, os problemas das artes e os problemas sociais. Para ele, a evolução cultural da sociedade inglesa (a qual ele considerava materialista e ignorante) dependia de um enobrecimento dos meios de produção. Toda economia, seja ela a de um estado, de um lar ou de um indivíduo, pode ser definida como a arte de gerenciar o trabalho. (…) O trabalho do ser humano, bem empregado, é sempre amplamente suficiente para supri-lo durante toda sua vida, com todas as coisas de que tem necessidade, e não somente com estas, mas também com outros objetos agradáveis de luxo e, mais ainda, para dar-lhe grandes períodos de descanso saudável e lazer aproveitável. Do mesmo modo o trabalho de uma nação, bem empregado, é amplamente suficiente para suprir uma boa alimentação e uma habitação confortável para toda sua população, e não somente estas, mas também uma boa educação e objetos de luxo, tesouros artísticos,… se a nação ou o indivíduo forem indolentes, os resultados são sofrimento e escassez, na proporção exata da indolência ou da improvidência, da recusa ao trabalho ou a seu mau emprego. (RUSKIN, 2004, p.26) 442 | Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz Ruskin estava tão convencido da necessidade de valorizar o “trabalho do ser humano” que, em 1854, idealizou e fundou o Working Men’s College de Londres; uma faculdade popular criada com movimento Socialista Cristão para fornecer ensino superior aos trabalhadores da indústria; Ruskin foi professor do curso de ensino artístico de 1854 a 1862. Acreditava que para produzir arte era necessário produzir artistas.8 Por isto, ao longo de sua vida, ele ensinou, criticou, pesquisou e escreveu inúmeros livros sobre arte, arquitetura e conservação e deu apoio a artistas que considerava importantes e os quais chamou de “modernos”. Em 1848, será fundada a Irmandade Pré-Rafaelita por alguns pintores desta geração. William Morris (1834-1896) será, dentre os discípulos de Ruskin, um modelo de artista da segunda metade do século XIX que, sob a égide das ideias reformistas, irá conduzir as questões das artes e do design ao encontro dos ideais políticos e sociais de uma maneira até então sem precedentes. Morris foi membro da Irmandade Pré-Rafaelita e levara adiante o projeto de Ruskin de unir arte e trabalho; no entanto Morris não pretende transformar o artesão em artista; ele deseja transformar o artista em artesão, ou melhor, em um artista-artesão. É com este objetivo que ele irá fundar, em 1861, a empresa Morris, Marshall, Faulkner & Co. (1861–1875), posteriormente sucedida pela Morris & Co (1875– 1940). Morris será um socialista atuante politicamente; ele receberá posteriormente o rótulo de medievalista, por defender e acreditar na natureza do trabalho das antigas corporações de ofício: Por uma estranha cegueira ou por um erro da atual civilização, o trabalho de todos os homens – que deveria ser prazeroso e útil – tornou-se um fardo que, se pudessem, iriam sacudir (…) Na minha opinião isto significa o seguinte: a civilização moderna em sua pressa pelo acúmulo de bens – muito desigualmente divididos – suprimiu inteiramente o acesso a arte. Esta por sua vez é mantida nas mãos de uns poucos que, podemos dizer com justiça, precisam dela menos e não mais que os trabalhadores. (…) Nada deverá ser produzido pelo homem, 8. Charles Baudelaire irá desempenhar um papel equivalente ao de Ruskin na França. Seu apoio aos artistas romantiscos foi fundamental para a difusão do estilo nos salões de Paris. Baudelaire também é poeta, escritor e crítico de arte, sendo um dos responsáveis pelo movimento simbolista. Este movimento irá se unir ao movimento Arts & Crafts inglês dando origem, segundo alguns historiadores, ao Art Nouveau. (BAUDELAIRE, 2006) A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ... | 443 através do seu esforço, que seja produto de um trabalho degradante, ou que se destine ao proveito dos usurpadores. (MORRIS, 1884) O discurso acima pertence a um conjunto de textos – alguns extraídos de conferências proferidas por Morris – e mostram claramente o caráter social e político do seu pensamento. Este é o pensamento fundante da arquitetura moderna – a busca da afirmação de um novo modelo produtivo que altere profundamente os rumos do desenvolvimento econômico e social na Europa, e que no entanto, afirme através de um novo estilo, de uma nova linguagem, a gênese do ideal revolucionário do homem na construção de um novo mundo. A transformação da linguagem arquitetônica portanto se dá em função desta nova moralidade que se impõe aos atos dos homens em busca de um ideal de progresso verdadeiro e revolucionário. A Morte de Deus na Filosofia Uma síntese da linguagem surge a partir da segunda metade do século XIX como afirmação deste novo sistema de valores; este novo homem, ao combater os valores da sociedade burguesa tentará imprimir sua concepção moral de mundo no seu trabalho através da abolição dos antigos modelos. Este homem deve se expressar com uma linguagem própria, nova – tão nova e revolucionária como seus pensamentos e seu ideal de mundo. Fundar uma nova linguagem se tornou o objetivo e o cárcere destes homens; eles estarão confinados neste espaço vazio onde um conteúdo gigantesco de novas ideais e novos valores pairam sobre suas cabeças, porém não existem meios para expressá-los. Era preciso inventá-los para completar seu projeto de mundo. Baudelaire (1821-1867) e Dostoiévski (18211881) serão alguns dos primeiros a fazê-lo na literatura e na poesia. As Flores do Mal, de Baudelaire (1857) foi censurada e banida do mercado sob acusação de insulto aos bons costumes. Já Dostoiévski em Memórias do Subsolo escrito em 1864, irá exercer forte influência em outro importante filósofo do fim do século, Nietzsche (1844-1900). As nossas vontades são, na maior parte, equívocos devidos a uma concepção errada sobre nossas vantagens. Se queremos às vezes um absurdo completo, é porque vemos nesse absurdo, devido à nossa estupidez, o caminho mais fácil para atingir alguma vantagem previamente suposta. Bem, mas quando tudo isto estiver explicado, calculado sobre uma folha de papel (o que é muito possível, porquanto é de fato ignóbil, e não tem sentido admitir de antemão, que o homem não 444 | Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz descubra jamais outras leis da natureza), então naturalmente não existirão mais os chamados desejos. De fato, se a vontade se combinar um dia com a razão, passaremos a raciocinar em vez de desejar, justamente porque não podemos, por exemplo, conservando o uso da razão, querer algo desprovido de sentido e, deste modo, ir conscientemente contra a razão e desejar aquilo que é nocivo a nós próprios... Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com a razão e com todo o coçar-se. […] Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer, ...enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo. (DOSTOIÉVSKI, 2001) Nietzsche refere-se constantemente a Dostoiévski em suas notas. Em 1887, afirmou que o autor é o “único psicólogo com quem tenho algo a aprender”.9 O filósofo alemão produz uma importante contribuição para o existencialismo. Para ele a moral religiosa10 é uma forma de dominação e foi imposta pelo uso da força sobre os povos, culturas e religiões – a moralidade é um problema porque “serve para fins imorais” (Nietzsche, 1999) e por isso deve ser combatida. Para Nietzsche, era necessário forjar uma maneira de encorajar o indivíduo a exercer sua plena liberdade e criatividade mesmo que para que isto fosse necessário sofrer com as incertezas. Em A gaia ciência (1887), o autor repete a declaração de Feuberbach que Deus está morto,11 porém com a finalidade de reafirmar que a moralidade é um problema a ser enfrentado pelo homem, e não algo pré-definido por Deus. Estas definições levam Nietzsche a se opor a qualquer padrão moral absoluto, o que exerceu forte influência em Jean Paul Sartre (1905-1980). No 9. F. Nietzsche em 1887. Fonte da web: http://www.fyodordostoevsky.com/ quotes.php em 16.01.2014 às 10h15. 10. Para o filósofo a moralidade no homem se manifesta como uma forma de ressentimento (ressentiment) que gera rancor e desgosto pela vida. Em Sobre a genealogia da moral (1887) o autor defende que o combate à moral dos opressores é uma forma de resistência à dominação religiosa e cultural. Em O nascimento da Tragédia (1872) constrói a figura o Übermensh (super-homem) como um modelo que não sucumbiria à moralidade dominadora. 11. Ludwig Feuerbach, Das Wesen des Christenthum (1841). A Essência do Cristianismo. Vozes, Petrópolis, RJ, 2009. A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ... | 445 presente artigo a aproximação da filosofia existencialista com o pensamento arquitetônico, dar-se-á através dos conceitos formulados por Nietzsche e Sartre. Estes dois filósofos, a pesar das semelhanças entre os seus pensamentos, chegarão a conclusões opostas sobre os reflexos destes conceitos na vida dos homens. Nietzsche acaba por isolar o indivíduo; ele irá defender de forma enfática sua liberdade e sua supremacia sobre os valores da sociedade; o homem em Nietzsche torna-se seu Deus, e é através deste exercício de liberdade e individualidade que o filósofo pretende libertar o espírito humano de qualquer forma de dominação elevando sua existência gloriosa à celebração produtiva de sua genialidade e superioridade – ao Dandi de Baudelaire. Já o existencialismo humanista em Sartre reinsere este homem – pleno de si – na sociedade e reformula sua filosofia ao encontro das ideias marxistas aproximando – como bem quis Marx – sua filosofia de um papel objetivo, verdadeiro e transformador. Para Sartre este homem que surge pleno no mundo – este Übermensh – deve ser responsável e atuante no sentido de elevar a sociedade – a humanidade – ao status que ele conquistou para si. Sartre atribui ao indivíduo a responsabilidade e o dever de transformar o mundo a partir do exercício pleno desta liberdade que conquistou para si; Portanto ao analisar a formação do pensamento arquitetônico a partir do existencialismo, esta divisão da filosofia será observada da seguinte forma: Nietzsche e a influência do seu pensamento em Henry van de Velde (1863-1957) e posteriormente em Mies van der Rohe (1886-1969); e o existencialismo humanista de Sartre e suas semelhanças12 com o pensamento de Herman Muthesius (1861-1927) e posteriormente Le Corbusier (1887-1965). Ao final desta pesquisa pretende-se aproximar os desdobramentos deste pensamento na produção e no ensino da arquitetura no Brasil a partir de Artigas (1915-1985) e a sua “função social do arquiteto”. A Morte de Deus na Arquitetura A aproximação entre a filosofia de Nietzsche e o pensamento arquitetônico talvez tenha se dado de forma mais direta através de do arquiteto, designer e pintor 12. Não será utilizado o termo influência, pois Sartre irá formular sua filosofia somente três décadas depois. O existencialismo humanista de Sartre é tratado aqui como um possível diagnóstico para os eventos que se sucederam nas primeiras décadas do século XX e transformaram tanto a linguagem quanto o pensamento arquitetônico. 446 | Figura 3 - Ecce Homo – primeira edição, 1908. Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz Figura 4 – Caricatura de Karl Arnold, 1914. belga Henry van de Velde. Velde irá em 1903 projetar o interior de algumas salas da Nietzsche Arquiv em Weimar, local concebido e administrado pela irmã do filósofo para abrigar e divulgar sua obra. É também de Velde o design da primeira edição de Ecce Homo, publicado em 1908 (fig.3). Velde é considerado um dos fundadores do Art Nouveau na Bélgica e faz parte da primeira geração das vanguardas arquitetônicas sob forte influência de Ruskin e Morris – de quem herdará a crença no papel do Design como introdutor de uma transformação nos meios de produção. Velde irá buscar uma forma de aproximar a criação artística da produção industrial e irá fazer parte do grupo Deutscher Werkbund – uma associação entre designers e indústrias que teria como objetivo promover a produção de objetos industrializados de alta qualidade e fabricados de maneira adequada, isto é, elevando a qualidade de vida dos trabalhadores e fundando um novo modelo de sociedade/comunidade industrial. Em 1914, um famoso debate entre Velde e Muthesius no sétimo congresso do Werkbund em Colônia explicita o status do pensamento arquitetônico e do design no ano que culminará na Primeira Guerra Mundial. Karl Arnold ilustrou este debate para um jornal alemão (fig.4): No primeiro campo de sua charge, aparece representada a figura de Velde e a sua cadeira individual; no segundo campo, Muthesius aparece ao lado de sua cadeira tipo; e, no terceiro campo, Arnold ilustra um artesão anônimo com a sua cadeira para sentar. Sob este olhar carregado de ironia, surge a constatação de que os designers – com o intuito de erguer o design à esfera política como elemento introdutor de uma ampla transformação cultural e de uma ordenação dos modelos de produção – poderiam estar se distanciando do seu objetivo primordial que é simplesmente produzir objetos para a apropriação humana. O A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ... | 447 artesão anônimo representa este status apolítico e de certa forma objetivo do design. Nos dois primeiros campos, Arnold representa o designer em roupas pretas – eles prevalecem no campo visual por sobre sua criação; já no terceiro campo, o artesão é representado em branco, sem contraste com o fundo – quase pertencente a ele – e, no entanto, a cadeira recebe o preenchimento preto e chama para si o domínio do quadro. Arnold simboliza, através disso, esta característica dos atuais designers em unir a sua imagem/identidade à sua criação, enquanto o artesão tradicional encontra-se oculto – anônimo – atrás de sua cadeira para sentar. Este último não é um homem por trás da cadeira, e sim uma técnica; um método, um ofício herdado por gerações de artesãos anônimos que – assim como ele – simplesmente aprenderam a escolher e a moldar a matéria prima, transformála em algo; um conhecimento adquirido através de centenas, ou talvez milhares de tentativas e erros até que algumas certezas foram conquistadas e transmitidas como um segredo valioso, de geração para geração, que iria garantir trabalho e sustento para seus herdeiros. Outro detalhe importante foi como Arnold dispõe os três campos em sua charge. O desenhista coloca Muthesius entre Velde e o velho artesão – talvez esta disposição sirva para exemplificar a proximidade e o caráter das proposições de cada um – Muthesius ao centro. Portanto, é representado como uma transição entre a oposição criada entre Velde e o artesão. É possível observar que o primeiro se agiganta em relação aos demais, seguido por Muthesius um pouco menor e o artesão mais baixo – o mesmo acontece com as cadeiras; a cadeira de Velde é mais alta e a do artesão a mais baixa. Seria Velde e sua cadeira efetivamente mais altos que os demais ou Arnold queria transmitir algo com isto? A leitura que se extrai aqui é a da individualidade. O pensamento de Velde se aproxima ao de Nietzsche – ele acredita na individualidade e na grandiosidade do homem. Para Velde, tanto o homem como a sua criação – seus atos – devem carregar este brilhantismo e esta genialidade. A cadeira de Velde é única, concebida pela genialidade humana e produzida pelas máquinas que este homem criou. Esta cadeira deverá ser um ícone da perfeição e da supremacia do homem e da sua cultura; será valiosa – servirá a um único homem para o qual foi concebida como uma peça de vestuário, ou melhor, como uma obra de arte. Esta é máxima contraposição ao antigo modelo industrial que produzia grandes quantidades com péssima qualidade e baixo valor comercial. Já Muthesius, dentro da aproximação que se pretende aqui realizar, está ideologicamente próximo de Sartre. Muthesius sustenta que sua cadeira deve ser igualmente excepcional enquanto criação artística – enquanto obra de arte e produto da genialidade 448 | Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz humana. Porém, a cadeira de Muthesius não é única nem será produzida por um único homem. O projeto por trás de sua cadeira é o projeto humanístico de Sartre; ele pretende não elevar somente o indivíduo à existência plena e autêntica – Muthesius assim como Sartre pretende erguer toda a sociedade – ou a humanidade – a este patamar. Este é um projeto de sociedade, um projeto de coletividade; da busca e do engajamento do homem em transmitir sua genialidade para a concepção de uma nova sociedade, igualmente rica erguida sobre o triunfo e o domínio do homem sobre a natureza e aos meios de produção. A cadeira de Muthesius não deverá ser produzida por um único homem – ela é o símbolo da genialidade e da criatividade humana e deverá ser produzida por vários homens; ou seja, ela é a síntese de um progresso coletivo e carrega com ela a genialidade da humanidade e seu domínio sobre os meios de produção. Ela será uma cadeira tipo, produzida em série, para que todos os homens sejam igualmente contemplados com o esplendor da atividade humana. Serão baratas, porém o valor pago por elas garantirá uma vida digna e plena a quem as produziu – é por isto que Muthesius também projetará a cidade industrial – para garantir a elevação do status deste novo operário, que ao contrário do antigo sistema industrial, terá acesso às riquezas que produz, como Morris um dia sonhou. Portanto, Muthesius está mais próximo do antigo artesão, porque ambos – operários e artesãos – estão ocultos sobre sua criação. Porém, esta será motivo de orgulho para estes novos operários bem como o eram para os antigos artesãos. Em ambos se encontram algo perdido com a revolução industrial – a dignidade do trabalho e a possibilidade de viver de forma igualmente digna através dele. A Função Social do Design e da Arquitetura Esta aproximação que este artigo pretende revelar entre a formação do pensamento moderno na arquitetura e no design com o surgimento das filosofias da existência busca evidenciar o surgimento de algo que se tornou, na atualidade, parte integrante da condução destas disciplinas. A função social da arquitetura e do design aproxima estas disciplinas da filosofia existencialista à medida em que transformou o ato de projetar em ato político e humanista. Será a partir da primeira guerra mundial que esta ideia irá se desenvolver e atingir sua plenitude nos discursos dos homens irão que reconstruir a Europa devastada pela guerra. Será esta próxima geração que irá levar a arquitetura para a maior síntese de sua história; a arquitetura moderna irá se formar juntamente com as vanguardas A Morte de Deus na Arquitetura: A formação do pensamento moderno ... | 449 artísticas – cubismo, purismo, neoplasticismo. Porém, as ideias e os conceitos que levaram a consolidação do projeto moderno já estavam sendo forjadas pelos homens do século XIX. Este artigo pretende evidenciar parte deste caminho. No âmbito da dissertação de mestrado, que se encontra em desenvolvimento, pretende-se abranger e aprofundar estes conceitos como forma de atribuir a cada etapa da construção do pensamento moderno sua devida importância. Referências bibliográficas BANHAM, R. Teoria e projeto na primeira era da máquina. Perspectiva. Retrieved, 2003. BAUDELAIRE, C. A invençao da modernidade. Relogio D’agua, 2006. BENEVOLO, L., & GOLDBERGER, A. M. História da arquitetura moderna. Perspectiva, 2009 CHATELET, F. Uma história da razão. Jorge Zahar Editor Ltda., 1992. DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. 34. Ed., 2001. EMERSON, R. W. Nature. J. Munroe, 1849. HOBSBAWM, E. J., & GARSCHAGEN, D. M. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. Forense-Universitaria, 2003. KIERKEGAARD, S. A., & VALLS, A. L. M. O conceito de angústia: Uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Vozes, 2010. MARX, K., & ENGELS, F. A ideologia alemã. Martins Fontes, 2007 MORRIS, W. Art And Socialism. 1884. Retrieved From Http://Www.Marxists.Org/ Archive/Morris/Works/1884/As/As.Htm NERDINGER, W., DURTH, W., & MÜNCHEN, A. Deutscher Werkbund 100 Anos De Arquitetura E Design Na Alemanha. Prestel, 2007. Retrieved From Www.Werkbund.Org.Br/Temas/Padrao/Imagens/ Catalogowerkbund_Final_27.02.Pdf NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Nova Cultural, 1999. PEVSNER, N. Os pioneiros do desenho moderno: de William Morris a Walter Gropius. Martins Fontes, 1995. 450 | Leonardo G. S. Gonçalves e Rodrigo C. Queiroz REYNOLDS, J. Existencialismo. Vozes, 2013. RUSKIN, J. A Economia Política Da Arte. Record, 2004. SARTRE, J. P., & FERREIRA, V. O existencialismo é um humanismo. Bertrand Editora, 2004. THOREAU, H. D., CABRAL, A., & HENRIQUES, J. Walden ou a vida nos bosques. Antigona, 1999. THOREAU, H. D., & KARAM, S. A desobediência civil. L&Pm Editores, 1997. | 451 O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA* OSVALDO FONTES FILHO** Resumo: O aplat é “profundidade magra”, paradoxal espacialidade que evita o narrativo na pintura de Francis Bacon, segundo a leitura de Deleuze, em Logique de la sensation (1981). Contudo, uma leitura do conceito de figural mostra ainda que, em sua indiscernibilidade, o aplat possui características próprias da figura pré-linguística, como a entende Lyotard em Discours, figure (1971): destituição do figurado e do figurativo, planaridade não abstrata, fundo nada profundo de uma fulgurância caosmica na imagem. Este artigo objetiva fornecer alguns subsídios para uma análise figural do aplat. Ao assim fazê-lo, por um lado aponta para a fecundidade crítica de uma Teoria da Arte afeita a uma psicanálise das formas; por outro lado, alerta para um revisionismo teórico-metodológico capaz de resgatar o sensível artístico da contabilização dos sentidos do tipo estruturalista. Palavras-chave: Deleuze. Lyotard. Figural. Aplat. Indiscernibilidade. The aplat as a figural: a background indiscernibility between Deleuze and Lyotard Abstract: The aplat is a “slim deepness”, paradoxical spatiality that avoids the narrative in Francis Bacon’s painting, according to the Deleuze reading in Logique de la sensation. However, read the concept of figural shows us yet the ** Graduado em Letras, mestrando em História da Arte no Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). ** Mestre e Doutor pelo Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, com pósdoutorado pelo Ibilce-Unesp. Professor de Filosofia da Arte e Estética no Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) 452 | Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho aplat in your indiscernibility have own characteristics of pre-linguistic figure, as Lyotard understands in Discours, figure: destitution of figured and figurative, non-abstract plainness, not profound background of a caosmic fulgurance in the image. This paper objectifies to furnish some subsidies to a figural analysis of aplat. To do so, on the one hand, points to the critical fecundity of an Art Theory accustomed to a psychoanalysis of forms; on the other hand, it warns to an theorical-methodological revisionism able to rescue the artistic sensible from the contabilization of senses in a structuralistic way. Keywords: Deleuze. Lyotard. Figural. Aplat. Indiscernibility. Sabe-se como o gesto lyotardiano em Discours, figure, ao resgatar o sensível dos “agenciamentos ‘linguagéticos’ dos sistemas de representação clássicos” (HUCHET, 1998, p.19), configura verdadeira virada epistemológica em Teoria da Arte na direção do corpus freudiano. Ele aponta, de fato, para um sensível artístico atravessado de “potencialidades expressivas e patológicas”, eventos de figurabilidade (acidentes, latências, dilaceramentos) infensos a qualquer contabilização de sentidos. O figural ali surge como a contrapartida precisa da linguagem enquanto significação convencional, declarativa, textual. Sendo trabalho do desejo, o figural indicia o movimento mesmo de todo sistema linguístico ou iconográfico, seu inevitável elã de alteridade ao integrar elementos externos, inassimiláveis (cf. LYOTARD, 1971, p.12). Lyotard mostra como o figural vem habitar o discurso como um modo de desfigurá-lo a partir de seu próprio interior. Ao assim fazê-lo, ele aponta para uma crítica filosófica dos pré-conceitos gnosiológicos da filosofia da arte e do sensível. O que abaixo se segue constitui um esboço de estimativa da eficácia crítica de uma análise figural, desenvolvida em chave filosófica, em torno do motivo do aplat, superfície de indiscernibilidade cromática em um pensamento plástico sobejamente refratário ao narrativo. * Para Deleuze, o aplat é efeito daqueles atos físicos da pintura de Francis Bacon – marcas aleatórias, varredura da massa pictural, escansão das superfícies – que introduzem no mundo visual da figuração a variedade caótica dos fatos e sentidos. Faz parte, pois, do esforço em reintroduzir o inexprimível no interior mesmo do fato bruto e da sensação que este destila: o figural. O termo é de O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard | 453 Lyotard. Ele nada conta; apresenta-se, antes, como acontecimento da linguagem, seu devir. Para Lyotard, o aplat é uma das figuras de deslegitimação do monopólio narrativo. Nesse sentido, é textura deslocada do saber contemporâneo e representa sua paranoia ou seu estado esquizo, inconcebível pelo e para os idiomas descritivos e prescritivos próprios às figuralidades correntes da arte e da linguagem. Em ambos, pergunte-se: o aplat estaria próximo do nível de generalização filosófica do conceito de figural no que este tem de indiscernibilidade? Onde começa e onde termina, afinal, um aplat? Como se constrói? Quais os limites de sua apreensão fenomenológica? Deleuze refere-se ao aplat como última instância do “universo-cosmos” que se abre da “casa” – esta armadura ou carapaça (contorno?) que guarda a Figura enquanto “carne”. O aplat não é carne porque não é armadura, jogo de planos ou “porções de planos”. É, antes, universo-cosmos, “o único grande plano, o vazio colorido, o infinito monocromo” que possibilita as passagens e os devires (DELEUZE, 1992, p. 159). Sabe-se como a geofilosofia deleuziana atravessa termos próprios de um estudo dos territórios (universo, cosmo, casa). Mas quando se trata da cor, é sua modulação que é dita transformar o Fundo (universo-cosmos) em aplat, ou seja, em “achatado”, naquela ausência de relevo que Deleuze qualifica como “profundidade magra” (DELEUZE, 1991, p. 135) – atenção háptica à presença mais que à representação. Na pintura de Bacon, a diferença entre Fundo e Figura não seria de profundidade, mas de nível, de intensidade cromática. Entre eles, o contorno fulgura, concede a permuta dos tons e matizes. Seja como for, a metáfora geográfica fornece relevo linguagético ao que Eric Alliez (1995, p. 59-63) chama a “ontologia vitalista do sensível”: o aplat como “vida não orgânica” é natureza bruta (pedra, água, deserto), enquanto a casa abriga a vida animal, a carne do corpo sem órgãos. Ambas atestam a indivisão fundamental entre arte e vida, entre arte e devir animal. Atestam, ainda, que a arte não é lugar das reterritorializações, mas dimensão dos assignificantes. É nesse particular ambientalismo pictórico que a conceituação desterritorializante de aplat pode ocupar sistematicamente o resto do quadro (cf. DELEUZE, 2007, p. 15). A Figura e o Contorno tomam parte no que Deleuze define como “sistema território-casa” (1992, p. 162), que isola e reúne, mas também permite aberturas para forças oriundas do fora. Um dos efeitos disso é o que passa por ser intenção maior de Bacon: fazer surgir “zonas de indiscernibilidade, de 454 | Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho indecidibilidade” entre o homem e o animal. O aplat, parte da composição com “função espacializante”, é terra selvagem a ser explorada, é lugar de eleição e de perdição da Figura. Como zona de indeterminabilidade, o aplat não é área indiferenciada que se presta apenas a evidenciar por contraste a Figura. É extensão cromática, não por detrás, mas ao lado, em uma proximidade plana, planaridade sem relevo, paisagem de superfície cujos elementos são contrastados, nunca dualidade simples do tipo fundo-forma. (cf. LENAIN, 2002, p.197). O aplat não é, pois, mero suporte, mas uma estruturação de espaço para a Figura; dir-se-ia mesmo, em termos deleuzianos, tratar-se de um plano de hecceidades ao qual a Figura (essa contrafação do figurativo) se conecta para poder se exprimir como fato. Entende-se: o que assim se conecta não conta uma história de ligação. O fato permanece em sua movimentação, fundamentalmente um devir, entre o aprisionamento pelo aplat e os espasmos de sua liberação, jamais uma aventura com narrativa linear. O aplat é armadilha para a Figura, assim como seu termo de liberação – pela boca (no Estudo do Retrato do Papa Inocêncio X de Velasquez), no lavabo ou na privada (no Tríptico de 1973, nos Três personagens num quarto), etc. Não por acaso, Lyotard refere o figural como um “para além” do discurso, fora de suas repetições do mesmo. Razão porque a arte supõe “uma manifestação espacial que o espaço linguístico não pode incorporar sem ser agitado, uma exterioridade que não pode interiorizar como significação” (LYOTARD, 2011, p. 7). Haveria um vínculo entre a deformação na Figura, proporcionada pela ação das forças cósmicas, que adentram o território através das aberturas deixadas para o aplat, e a “agitação” que Lyotard denuncia no espaço linguístico quando tenta incorporar a manifestação espacial da arte. Mas, pergunte-se, poderia a Filosofia falar à Pintura a partir de uma zona de indiscernibilidade comum a ambas? A indagação impõe-se. Para Deleuze, Bacon é, em pintura, a evidência de uma “livre figura da diferença” (FONTES FILHO, 2007, p.10). O aplat seria uma variação deleuziana para o que Bacon nos apresenta na forma de variedade pictórica. Quando o discurso filosófico faz referência ao discurso pictórico, ele corre então o risco de o “fora da linguagem” destruir sua reflexão ou fazê-la vagar a esmo num espaço diferencial. Pergunte-se, pois: até que ponto é possível textualmente referir-se a este aplat cuja relação com o figural torna-o inapreensível pela textualidade? Sabe-se que Bacon presta-se a explicitar para Deleuze como a arte trabalha a fim de desfazer o mundo da figuração ou da doxa, de abrir o espaço e ali O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard | 455 descortinar um vazio. Uma vez instalado, este deserto (o “Saara” figural de que fala o pintor) mostra-se veraz enquanto acesso ao sensível incondicionado, ao sensível puro (cf. RANCIÈRE, 2000, p. 505-516). Na obra do artista, a verdade está do lado de um vazio – “o acontecimento aqui: o de abrir buracos para deixar escoar o abismo através das figuras, até uma capacidade de captar forças mudas como a Duração, a Intensidade” (FONTES FILHO, 2007, p.14). O discurso plástico é uma histeria, um fazer-se enquanto se destrói ou enquanto destrói a figuração – o figural situa-se do lado do desvio, da falha, da lacuna, da rasgadura, para reter o termo proposto por Didi-Huberman (2013). A pintura de Bacon seria da ordem de um processo de varredura/rasgadura do espaço das significâncias. Os elementos pictóricos que Deleuze ali denota teatralizam o trabalho de forças de desfiguração (pressão, dilatação, contração, achatamento, estiramento): o aplat configura o caos em potência; como toda figura da potência, ela atrai para si toda figura. O figural é, pois, uma potência tropológica que se exerce, em operações de varredura ótica, na suspensão de sentidos ali onde o olho tropeça, se detém em sua organização soberana – sobre um plano de histeria das figuras somente frequentável por uma mão independente. São seus recursos marcas “irracionais, involuntárias, acidentais, livres, ao acaso [...], traços assignificantes, [...] de sensações confusas” (DELEUZE, 2007, p.103). Como processo de desfiguração do plano dos sentidos, a pintura de Bacon presta-se em Deleuze quase como confirmação plástica do figural lyotardiano no que este tem de radical inflexão crítica. O aplat funcionaria ali, não como “forma de fundo”, mas como o discurso de desintegração de toda figura, seu aformal congênito. Ora, Lyotard retira de Frege a distinção entre o sentido (Sinn) e a referência (Bedeutung) e, posteriormente, aciona a Bedeutung freudiana a fim de tratar do modo como a linguagem perturba toda cisão original (cf. LYOTARD, 2011, p. 103 e 128). É por essa perturbação que se instala o desejo na linguagem, como aceitação da “angústia de deixar aberto o vazio onde [o desejo] poderá repercutir suas figuras” (LYOTARD, 1971, p.383). O figural não é senão a matriz trans-formadora das formas e imagens na linguagem, o modo mais vistoso de suas de-formações. E o aplat seria como que a confirmação pictural de que a figura não é tanto um visível quanto um desejo figural – desejo de errância nos diferentes objetos (LYOTARD, 1973, p.235), demonstração que “o sensível está num intervalo insuprimível para com o sentido” (LYOTARD, 1971, 41). Percebe-se então que, ao romper com a discursividade, o aplat é ato de estiramento, espaço desconstruído (de desnaturação das leis da linguagem e da 456 | Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho percepção; das “boas formas” da ideologia, diria Lyotard), “extensão aberta pela retração do sentido” (LYOTARD, 1973, 65). Expansão, pois, do elemento sensível para seu exercício caótico. Se as sensações são seres que excedem o vivido e existem na ausência do homem (cf. DELEUZE, 1992, p. 144-145), a abertura para o caos que se configura no aplat é como uma passagem de acesso direto à sensação: potência maior do efêmero. O imediato é sensação, sentido outro que atinge diretamente o sistema nervoso; o mediato é efeito do símbólico, do figurativo. Eis, segundo Deleuze, a clara distinção do discurso de Bacon em seu espaço pictórico: “figural, a pintura de Bacon é da sensação, não dos efeitos da sensação” (KOSSOVITCH, 2003, p.166). A sensação navega entre espaços, no interstício entre o território e o universo. Ao resistir à territorialização, o aplat trava uma guerra de forças a favor do isolamento da Figura e contra seu retorno ao sentido comum. A proximidade absoluta entre “a grande superfície plana”, que é fundo, e a Figura, que é frente, intensifica a guerra de forças, dado que o aplat reivindica não estar atrás, mas ao lado. Estes estão em contato (no sentido háptico), mas na independência dos termos. Cada um requer o seu espaço e seu modo de suscitar sensações. Nota-se como a distinção deleuziana aplat/Figura é tributária do modo como Lyotard preconiza os termos “espaço textual” e “espaço figural”. Entre texto e figura viceja uma “fenda ontológica”, que os separa na mutualidade, duas organizações específicas do espaço.(cf. LYOTARD, 2011, p. 205). Em Bacon, seria no ato de isolar que a Figura romperia com o figurativo, o ilustrativo e o narrativo. Porém, como afirma Lyotard (2011, p. 205), “o figurativo é meramente uma instância do figural”, implicando apenas em derivar o objeto pictórico do seu modelo “real” por um processo ininterrupto de interpretação, de tradução. A Figura baconiana seria, verdadeiramente, esta instância do figural que busca fugir de seu polo figurativo evitando “contatos” que a reproduzam em narrativa. Razão porque o aplat é convocado para ocupar o “resto” do quadro. Ele afasta qualquer outra figura da Figura, afasta principalmente os clichês que porventura insistiriam em ocupar lugar, abrindo o vazio necessário à “construção da casa”. Ele é também e principalmente, a dimensão ampla e caótica, espaço específico ontologicamente diverso do gráfico e do textual. Lyotard trata o figural como um impossível de ser significado; ele é, de fato, o que permanece inapreensível ao longo de Discours, figure. Tal é o intento, aliás, do livro: numa crítica fenomenológica do discurso e da teoria, proceder a uma inicial “defesa do olho” (LYOTARD, 1971, p.11) e, em seguida, conceber a figura O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard | 457 em termos de libido. Intento, pois, de trazer ao discurso o que lhe resiste, e superar a profundidade ainda insuficiente do estruturalismo e da fenomenologia em face do potencial crítico da figura. Lyotard deseja escavar mais fundo, até um ponto em que se desfaça a distinção entre imagem e texto, ponto em que a vontade de saber e o desejo de verdade ainda não se desligaram. Deseja aceder, portanto, a um nível pré-linguístico, onde passar do discurso à figura sem deixar o foro da linguagem, mesmo porque “a figura está dentro e fora” (LYOTARD, 1971, p.13). Um dos recursos, para trazer ao discurso o que se subtrai à representação, “o que se deixa adivinhar em sua própria esquiva” (LYOTARD, 1973, p.58), é remediar o estruturalismo e sua “linguagem por toda parte” (LYOTARD, 1971, p.14). A psicanálise a isso se presta como modo de se transferir da linguagem enquanto mediação para as forças que a deformam. Ali, Lyotard recupera o evento de cisão da unidade matricial, a fim de dar conta do momento em que a linguagem implode como discurso da alteridade. O ponto crítico é o desejo: ao separar-se da mãe-objeto, o Eu-sujeito depara-se com a dependência material e afetiva desse Outro, que nasce ao mesmo tempo como objeto de desejo e objeto sobre o qual se fala. O dizer a respeito desse objeto esconde o não dizer da ligação com a mãe mantida pelo desejo, origem de todo processo de significação. A figura seria produzida no momento em que o não dito eleva-se ao discursivo, como fratura imposta por uma “espessura”, ou melhor, como uma “diferença constitutiva”, uma “mobilidade imóvel”, não a ser lida, mas a ser vista (LYOTARD, 1971, p. 9). A figura acontece no discurso com a força de um acontecimento de visualidade que o transgride, que o fratura. Seu espaço é, paradoxalmente, determinado pelo vazio, pelo nada que separa duas frases, condição de sua apresentação e evanescência (cf. LYOTARD, 2000, p.56). Razão porque o figural é força de cisão. Como tal, opera no apagamento da distinção clássica entre texto e imagem, letra e linha. “A letra é uma linha fechada, invariante; a linha é a abertura da letra que se encontra fechada, alhures ou do outro lado. Abra a letra, e você terá imagem, cena, magia. Feche a imagem, e você terá emblema, símbolo, e letra” (LYOTARD, 1971, p.268). Assim, o figural não é mero chiasmo entre texto e figura: “é uma força que transgride os intervalos constitutivos do discurso assim como as perspectivas que compõem a imagem” (RODOWICK, 2001, p.2). Se o figural define um regime semiótico onde se deslegitima a distinção ontológica entre o linguístico e o visível (as representações plásticas e seus referentes), ele se presta a uma “crítica genealógica da estética” (RODOWICK, 2001, p. 2), rumo a uma “propriedade quase visual do falar” (LYOTARD, 1971, 458 | Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho p.32), com a consequente abertura de novas vias epistemológicas para além das totalizações dialético-metafísicas. É, pois, como “espaço intensivo do desejo” que o aplat se amolda à “negatividade intencional” (LYOTARD, 1971, p.121) da língua aventada pelo discurso lyotardiano. Ao isolar a Figura, Bacon estaria retornando à mãe-objeto primordial, unindo-se uma vez mais com ela, tornando-se um só com o desejo. Abertura de um vazio pleno do Outro ou preenchimento total do Eu. O que passa em tal sensação, e seu correlato na forma pictórica, é o colorido sólido, invariável. Se a Figura não tem nada a narrar, é porque a zona de indiscernibilidade, o aplat, é universo-cosmos exterior à mãe, caos da Natureza ou plenitude do deserto. Espaço latente do desejo, desejo em potência, que aguarda a cisão da Figura com a mãe para se instalar como veículo de propagação da linguagem e do desejo. Assim, quando na linguagem emerge o não dito, por via de uma fratura ou fenda, é o aplat que se levanta, comparecendo como “caos livre e intempestuoso”, fissura na linha de firmamento das convenções e opiniões de modo a “restituir [...] a incomunicável novidade que se tinha deixado de saber ver”. (DELEUZE, 1992, p. 178). Deleuze entende propor uma pragmática filosófica que enderece a seus objetos perguntas do tipo: que modo de existência isso implica? Que possibilidades de vida aí se abrem ou se fecham? Sabe-se como na filosofia deleuziana nada suscita um problema de significação e de interpretação, nem mesmo os conceitos como signos filosóficos. Nada há a interpretar, mas tudo a experimentar; tudo deverá fazer sentido (ou não) unicamente por sua fecundidade do ponto de vista das nossas experimentações. Reiteradas vezes Deleuze exorta a que se experimente, que se estimem os efeitos. “Os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades que nos convêm ou não, que passam ou não passam.” (DELEUZE, 1998, p. 10). Para que passem, cumpre “apagar, limpar, laminar, ou até mesmo rasgar para fazer passar uma corrente de ar vinda do caos que nos traz a visão” (DELEUZE, 1992, p.178). Singular protocolo, que se cumpre exemplarmente nos aplats de Bacon – lugar de todas as variações rítmico-cromáticas – tanto quanto nos conceitos capazes de fissurar as “belas interioridades orgânicas”, de abrir buracos “no muro das significações dominantes” (DELEUZE, 1998, p. 58). Em ambos, no conceito e na forma, haveria a mesma intenção de compor por “catástrofe”, por “conflagração” (DELEUZE, 1992, p.177), por variações alotrópicas. Razão porque nos retratos baconianos o filete de tinta – policromia sobre grande superfície plana – “perde o aspecto O aplat como figural: uma indiscernibilidade de fundo, entre Deleuze e Lyotard | 459 figurativo, de um trágico demasiadamente fácil [...], para adquirir uma série de valores dinâmicos figurais” (DELEUZE, 2007, p. 150). O rosto se desorganiza em cabeça, plano maior de matização. Em análise recente, Philippe Dubois fala do figural como uma exclusão, o que resta da imagem quando subtraídos o figurado e o figurativo. Seria intenção de Bacon com suas Figuras produzir um ato de imagem e deixá-la agir por si mesma. O aplat seria, pois, um figural por abrir o espaço dos desejos na fase pré-linguística do discurso: se não há separação da unidade Eu-mãe, o espaço é meramente complementar, é o que resta, um vazio sem clichês. Lugar de potência da Figura, sem deixar de ser um detalhe de fulgurância. Como potência, o figural é incontrolável – “a potência é propriamente incomensurável” –, opondo uma “terrível dimensão nietzschiana” à concepção hegeliana do poder (DUBOIS, 2012, p.105). Razão porque o aplat, aqui, foi tomado como o lugar de evenemencialização por excelência nas filosofias de Deleuze e Lyotard. Nele, a diferença apresenta-se como a essência do visível, um evento de visão que entra em tensão com a uniformidade da cor chapada, em contiguidade sem encaixe combinatório, portanto sem representatividade e sem narratividade, de figura a figura, de texto a texto. Evento, pois, que alegoriza (ou seja, transforma em alteridade) o momento anterior à deflagração da linguagem ordenada, a indiferença recíproca de suas partes, como exemplarmente exposto pelos polípticos baconianos (cf. KOSSOVITCH, 2003, 161). Retorno, quiçá, à alvorada da arte, quando o elemento háptico do espaço egípcio era dominante? Ou mergulho no fundo de indiscernibilidade, fantasmagoria do desejo figural, tarefa que Lyotard reserva ao que ele qualifica como uma “anti-arte” (LYOTARD, 1973, p.235)? Referências bibliográficas ALLIEZ, Eric. A assinatura do mundo: o que é a filosofia de Deleuze e Guattari? Trad. Maria Helena Rouanet e Bluma Villar. São Paulo: Ed. 34, 1995. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?. Trad. Margarida Barahona e António Guerreiro. Lisboa: Presença, 1992. . Francis Bacon: lógica da sensação. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. . Qu’est-ce que la philosophie? Paris : Minuit, 1991. 460 | Cristiano A. de Oliveira e Osvaldo Fontes Filho . Diálogos. São Paulo : Editora Escuta, 1998. . La Peinture et la question des concepts, curso ministrado na Universidade de Paris 8, em 15 de maio de 1981.. Disponível em <http://www2.univparis8.fr/deleuze . Acesso em 15 julho 2014. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. Questão colocada aos fins de uma história da arte. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013. DUBOIS, Philippe. Plasticidade e cinema: a questão do figural. In: HUCHET, Stéphane (org.). Fragmentos de uma teoria da arte. São Paulo: Edusp, 2012. FONTES FILHO, Osvaldo. Francis Bacon sob o olhar de Gilles Deleuze: a imagem como intensidade. Viso : Cadernos de Estética Aplicada, v. 3, 2007, p. 1-17. HUCHET, Stéphane. Passos e caminhos de uma teoria da arte. In: DIDIHUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Trad, Paulo Neves. São Paulo, Editora 34,1998, p.7-23. KOSSOVITCH, Léon. Gilles Deleuze, Francis Bacon.. REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 160-168, março/maio, 2003. LENAIN, Thierry. Esthétique et philosophie de l’art: Repères historiques et thématiques, Bruxelles :De Boeck, 2002. LYOTARD, Jean-François. Discours, figure. Paris: Klincksieck, 1971. . Peregrinações lei, forma, acontecimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. . Dérive à partir de Marx et Freud. Paris : UGE, 1973. RANCIÈRE, Jacques. Existe uma estética deleuziana? In: ALLIEZ, Eric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000. RODOWICK, D.N. Reading the Figural, or Philosophy after the New Media. New York: Duke University Press, 2001. | 461 O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura1 MARIA FERNANDA ANDRADE SAIANI VEGRO* Resumo: A proposta de uma pesquisa fenomenológica desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo com abordagem qualitativa para a compreensão do desenho arquitetônico se fundamentou ancorada na fenomenologia da linguagem de Merleau-Ponty que se caracteriza fundamentalmente em estabelecer relações constantes entre sujeito, objeto e mundo anulando individualidades fechadas em si mesmas. A questão da alteridade para o arquiteto e sua identidade imprime seu estilo, ou seja, sua forma de habitar e tratar o mundo. Torna-se necessário a construção de um desenho arquitetônico que estabeleça um acordo entre o sensível e o inteligível, pois o ato de desenhar para o arquiteto deve presumir a técnica, a história, a construção, o trabalho, levar em conta a cultura, economia, política, as questões sociais; e não abrir mão da partilha do sensível, ou seja, a construção de relações intersubjetivas entre os sujeitos implicados na materialização da arquitetura e assim favorecer um desenho aberto, democrático que subverta a ordem da realidade dada. Palavras chave: Fenomenologia. Arquitetura. Desenho. Sensível. Inteligível. 1. O presente artigo constitui-se um pequeno fragmento da dissertação de mestrado apresentada ao Programa Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo no ano de 2014, denominada “O Desenho Arquitetônico: fenomenologia e linguagem em Joan Villà”, sob a orientação da profa. Dra. Carmen Sylvia Guimarães Aranha. * Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte. Linha de Pesquisa: Metodologia e Epistemologia da Arte. Universidade de São Paulo. 462 | Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro ABSTRACT: The proposal of a phenomenological research program developed at Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo with a qualitative approach to understanding the architectural design was based anchored in the phenomenology of MerleauPonty language which is characterized primarily in establishing constant relations between subject, object and world abolishing closed individualities. The question of otherness for the architect regarding his/her identity enhances the way of dwelling and embracing the world. It is necessary to build an architectural design that establishes an agreement between the sensible and the intelligible, therefore the act of drawing for the architect must presume technique, history, construction, work, consideration towards culture , economy, politics as well as social issues; and mainly not giving up the sharing of sensibility, the construction of interpersonal relations between the subjects involved in the materialization of architecture and thus promoting an open, democratic design which subverts the order of the given reality Keywords: Phenomenology. Architecture. Design. Sensible. Intelligible. Na arquitetura, a percepção tridimensional do espaço é o meio de condução através do qual o sujeito criador representa sua intenção graficamente no projeto. O projeto de arquitetura utiliza-se da linguagem do desenho de forma prospectiva e propositiva. Para o arquiteto, a questão do desenho, seja em escala micro do edifício, seja em escala macro para a cidade e paisagem, cumpre papel preponderante como ferramenta de comunicação, presente na relação educador/ educando, arquiteto/cliente, arquiteto/comunidade, arquiteto/canteiro. O ato de desenhar estabelece uma ponte entre a imaginação e o real, procura-se através dos traços, um conhecimento do lugar de intervenção da arquitetura, uma exploração da geografia, topografia, história e ao mesmo tempo uma transformação da realidade hipotética. Inicia-se de maneira subjetiva, estreitamente ligada à percepção do arquiteto e, gradativamente, atinge a objetividade que não exclui os aspectos sensíveis do projeto caracterizados pelo seu potencial comunicativo e força expressiva. De acordo com Perrone, os desenhos arquitetônicos2 podem ser classificados como representativos ou sugestivos e descritivos ou operativos (PERRONE, 2. Para Perrone, “os [desenhos] de representação[...] implicam exatamente nos momentos em que o desenho deve atuar como signo, tornando patente a arquitetura a O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura | 463 1993, pp. 25-26). Como meio transmissor de mensagem, o desenho comporta dois níveis interpretativos: o primeiro, o sugestivo, representa a arquitetura (croquis, desenhos de apresentação, para vendas, tratados, desenhos fantásticos, etc.) e se apresenta de modo mais flexível, pois parte do ideário do emissor para um meio cultural comum dos receptores; o segundo, o operacional, descreve e permite a execução da arquitetura no canteiro, são desenhos normatizados e codificados apresentados de forma clara e objetiva. Como instrumento da gênese de sentido para a arquitetura o desenho, segundo o autor, atua segundo dois objetivos específicos: 1. [...] na representação da arquitetura, indicando uma visão, uma interpretação e sugerindo a leitura do significado das obras ou das proposições arquitetônicas nela contidas; 2. [...] na descrição da arquitetura operacionalizando a sua constituição material, indicando as tarefas executivas, codificando os procedimentos que permitam o perfeito entendimento da obra arquitetônica em relação à sua exequibilidade (PERRONE, 1993, p. 58). Nos desenhos de representação, a escolha do modo de representação é mais livre, a expressão evidencia-se no traço do autor, imprime certo estilo, influência de dada cultura visual, da postura, da intenção e do modo como o arquiteto habita o mundo. Desenhar imagens mentais do espaço compreende um acordo entre o sensível e o inteligível, exercício constante de adaptação de uma ideia às necessidades humanas, ação contínua de produção de linguagem que confere ao arquiteto uma postura investigativa no terreno da criação. Tal experiência fecunda representa a eleição de um ponto de vista inserido numa totalidade de possibilidades inesgotáveis que comporta o mundo. Todavia, em arquitetura, o meio de representação que é o desenho, segundo Gregotti, é “a única relação corpórea remanescente que o arquiteto efetua com a fisicidade da matéria que deve formar: é a sua última ‘manualidade’ e ele deve defendê-la obstinadamente (GREGOTTI, 2010, p. 25). Para Gregotti, constitui-se o primeiro operar da arquitetura, o modo que se refere [...] Os desenhos de descrição/operação envolvem os momentos em que a representação[...] objetiva signar os elementos de sua materialização [...] desenhos que envolvem operações construtivas” PERRONE, Rafael A. C. O desenho como signo da arquitetura. Tese (doutorado). São Paulo: FAU USP,1993, p. 43. 464 | Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro como o arquiteto acessa o mundo da vida, que pressupõe o encontro de uma necessidade, configura sua ação de modificação da tradição arquitetônica e sobretudo cria uma nova hipótese3 para a arquitetura. Porém, para o autor, a história representa um ponto central na questão da criação do “novo”, pois, é necessário tocá-la para fundar nova linguagem e compreender o momento atual através da imersão nos seus processos de transformação. Merleau-ponty chama a atenção para o emprego dos meios instituídos pela cultura e do exercício da invenção como “deformação coerente”, ou seja, destituir o instituído de seu equilíbrio fundamental através de uma “nova expressão que os recolhe como falta ou excesso do que deseja exprimir” (CHAUI, 2002, p. 190). O filósofo estabelece uma distinção importante da história: a história dos acontecimentos, sucessão empírica do tempo, esquecimento da memória e a história do advento, “promessa dos acontecimentos”, forma “nobre” de memória, pois, o que foi feito, dito ou pensado dá a fazer, dá a dizer e dá pensar” (ibidem, p. 192) e encontra o artista ou pensador em seu “trabalho, quando num só gesto, agarram tradição e instituem uma outra que será agarrada pelos pósteros” (ibidem, p. 192). De acordo com Chaui, a “única regra de ação para o artista, o escritor, o filósofo, e o político não é que sua ação seja eficaz, mas que seja fecunda, matriz e matricial” (ibidem, p. 194). Aqui, também incluímos a figura do arquiteto na sua práxis diária, sua aptidão natural de transferir para a linguagem do desenho um conjunto de valores que estabelecem uma relação direta com a história e sua postura de interrogar e interpretar o mundo. Torna-se importante menos afirmar uma raiz romântica para este cenário, mas incluir a construção de uma visão crítica, a abertura do “novo” para sujeito mesmo, uma investigação afirma Gregotti, que “propõe-se como confronto possível entre a história do ambiente físico e a própria história do homem” (GREGOTTI, 2010, p.146). A visibilidade do desenho arquitetônico, constitui-se no modo de ordenar a complexidade de um determinado problema e agrega a escolha do arquiteto na seleção dos aspectos múltiplos que envolvem esse problema, expressos de forma gráfica. 3. A criação de uma “nova” hipótese, para Gregotti, implica num “conjunto de novas possibilidades de uso da arquitetura. [...] hipótese de uma nova fruição da essência da arquitetura [...] um modo de comunicar aos outros (e também a nós mesmos) uma certa condição geral do homem sobre a terra, de seu pensar e querer certas coisas, negar e refutar outras e daquele modo especial de fazer circular as ideias, utilizando-as” (GREGOTTI, 2010, p.177). O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura | 465 Existe no desenho do arquiteto diferentemente do desenho artístico, uma ordem exterior de imposições, seja pelo programa, pelo terreno ou de diversas esferas como econômica, política, social, portanto, essa atividade também se aproxima da arte4 quando revela um potencial expressivo. A priori, desenhar não se constitui a representação de um sentimento imediato, muito menos evoca um “milagre da expressão”, mas aponta para um recolhimento no mundo de sentidos por parte do arquiteto confrontados com o arcabouço de suas experiências a nível individual e coletivo, que possibilitam o florescimento de sua imaginação. Nessas amplas capacidades, o desenho arquitetônico colabora decisivamente para a gênese do sentido na arquitetura, pois, “como signo que é, torna-se um duplo que habita a obra realizada e realiza a obra a habitar, mesmo quando se trata de um habitar apenas imaginável” (ibidem, p. 64). Joaquim Guedes, no prefácio do livro Eupalinos ou o arquiteto de Paul Valéry, elabora uma crítica ao ensino de arquitetura. As instituições acadêmicas, segundo o autor, estimulam exercícios imaginativos sem nenhum comprometimento com a realidade, Exercícios que excluem o aprendizado da paisagem e dos fatores econômicos e sociais, e maltratam as técnicas, em sua natureza e em seu papel enquanto cultura, tais aspectos ameaçariam a liberdade criadora. [...] – sem conhecimentos (os alunos) suficientes da arte de construir, perdem-se em desenhos exploratórios do nada, erráticos e supersticiosos: dará certo? Terei sucesso? Há que aprender a imaginar o objeto ao mesmo tempo inventar sua construção (GUEDES, 1996, p. 12). O autor alude para uma forma de exercício de criatividade vazio, sem qualquer vínculo com a especificidade do material e alheado de método; volta- 4. Distinta da técnica do raciocínio científico e do discurso lógico a criação artística para o arquiteto Vittorio Gregotti não deve ser considerada irracional “Se por racionalidade entendemos o que tem um significado e um objetivo” o problema consiste em compreender essa racionalidade alargada, pois, “o exercício da invenção é central porque parte da percepção e da memória em direção ao que ainda não é, mas este exercício não é casual ou gratuita violação do já constituído, mas sim busca contínua de uma ordem nova e diversa, instituição de uma nova possibilidade, de uma nova experiência do mundo acionada materialmente” (GREGOTTI, 2010, p.29). 466 | Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro se, então, para as perguntas essenciais da arquitetura: Onde? Por quê? Para quem? Para quê? Quais as dimensões? O quê? Como? Perguntas vagamente insinuadas nas escolas de arquitetura, mas que “não são determinantes da cultura da forma” (ibidem, p. 12). Concluímos que para o exercício da criatividade, deflagrada através do desenho arquitetônico, impõe-se a abertura preliminar de uma trilha, movimento duplo que recolhe dados sedimentados do passado e os lança no porvir, movimento que desvela o arquiteto no seu trabalho como uma resposta ao que o passado reclama. O exercício do desenho não “é milagre, magia, criação absoluta em uma solidão agressiva” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 95), mas pertence a ordem do advento, ou seja, não dos desenhos já concluídos dispostos na forma de acervo, fechados em si mesmos, mas dos desenhos que inauguram um sentido. Porém, a ordem do advento é derivada da ordem dos eventos, revela esse duplo movimento “esforços que se soldam um no outro porque são esforços de expressão” (ibidem, p.115). Assim, Merleau-Ponty procura esclarecer a importância do passado, pois os primeiros desenhos da caverna evocavam um porvir: “eles nos falam e nós respondemos a eles por metamorfoses em que eles colaboram conosco” (ibidem, p.101). Devido à complexidade do desenho arquitetônico, torna-se importante escapar da concepção da forma “em si” que enfraquece sua potência expressiva. O desenho reflete os múltiplos aspectos da sociedade, coloca em evidência a função social do arquiteto e é no modo de sua produção que pode ser observado historicamente. O desenho moderno introduz uma nova relação de produção da arquitetura, a criação passa a ser centralizada nas mãos de um único artista ou de um pequeno grupo restrito de decisão e os desenhos de uso operacional no canteiro, apontam para um trabalho cada vez mais fragmentado nos escritórios de arquitetura, muitas vezes perdendo-se a noção da obra como um todo e estabelecendo um diálogo truncado entre as diferentes partes do processo construtivo da obra arquitetônica. O desenho arquitetônico no decorrer da história, constitui-se um indicador da forma como a sociedade se organiza e dos valores culturais nela contidos. Segundo Perrone, os elementos de expressão gráfica alteram-se “em função das relações sociais contidas no processo de produção da arquitetura: o papel do arquiteto, a situação das artes, a destinação da obra, as técnicas de desenho e de sua reprodução, relações entre canteiro e projeto, etc.” (PERRONE, 1993, p.68 -69). Tais questões, apontam para a reflexão entre autonomia e heteronomia da arqui- O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura | 467 tetura. Há relações determinantes do desenho que sujeitam sua forma a um horizonte exterior à disciplina de arquitetura, como por exemplo, economia, política, aspectos sociais, portanto, há concomitantemente, um horizonte interno que revela seu caráter específico, onde a expressão, criação, relações intersubjetivas adquirem relevo. Portanto, verifica-se muitas vezes um desequilíbrio entre esses dois aspectos ou mesmo a completa anulação ou subsunção de um único horizonte a uma lógica totalmente alheada da questão do sentido para a arquitetura. A tarefa que se impõe ao arquiteto é recolher sentidos esparsos no mundo, pois não há criação ex nihilo. Essa abertura inicial, da ideia para o arquiteto, constitui-se em seus primeiros traços, expressão, configurada por meio da linguagem do desenho na forma de croquis “um apelo a um devir de conhecimento individual e interindividual” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 98). A história do advento não é uma interpretação da história como partes extra partes, mas campo, onde as partes unem-se espontaneamente numa constelação e costuradas no tecido do mundo, transformam-se em sistema significante. Jameson chama a atenção para o desaparecimento do sentido da história, pois a sociedade gradativamente perdeu a capacidade de conservar o passado e vive na atualidade imersa num presente perpétuo responsável por um ofuscamento das tradições que formações sociais anteriores preservaram. Atribui o autor a causa do esquecimento do passado, mesmo recente, aos meios de comunicação, à “função informativa dos meios seria, desse modo, a de ajudar a esquecer, a de servir de verdadeiro instrumento e agente de nossa amnésia histórica” (JAMESON, 1985, p.26). Um desenho arquitetônico que reproduz sempre o “mesmo”, independente do lugar, do terreno, da tradição de uma cultura, das agruras do canteiro, dos sujeitos implicados, das necessidades emergentes, comandado pela lógica do capital global não corresponde à inexorável história da “morte” para a arquitetura? A completa perda da sua memória “nobre”, a conquista de um “modelo” acabado? No contexto da ditadura militar brasileira, ocorreram os principais debates sobre o desenho arquitetônico. Por um lado, Artigas defende a autonomia da disciplina, na sua palestra inaugural na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1967; resgata a ideia do desenho como desígnio, desejo humano que confere ao arquiteto o estatuto de artista, porém, sua preocupação enfatiza o âmbito da estética, desenho como ato poético. Imbuído do espírito moderno na sua prática, Artigas propõe uma reconciliação entre arte e técnica, portanto, não abre mão de sua postura política ao defender 468 | Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro o uso dos materiais locais como tijolo, madeira, telha de cerâmica.5 Por outro lado, as discussões sobre o desenho arquitetônico, iniciadas na década de 60 pelo arquiteto Sérgio Ferro, determinam sua função na realização da forma/mercadoria de caráter autoritário, impositivo, que oculta o processo de trabalho alienante, fragmentado, dessa forma, evidenciando hierarquias e se constituindo como ferramenta para reprodução do capital. Segundo Sérgio Ferro: As condições de incompreensão e alheamento, provocadas no interior do campo de trabalho, e que implicam consequentemente o desenho exaustivo que o comanda, são as condições necessárias para a produção de mais-valia. O desenho é assim nuclear para a produção do produto que é imediatamente mercadoria. O desenho do produto acabado, enquanto tal, só afeta – e relativamente – as etapas de circulação e consumo [...] no nível do canteiro, o desenho é o molde onde o trabalho idiotizado (na expressão de A. Gorz) é cristalizado (FERRO, 1979, p. 14). Tal quadro configura a separação entre o saber intelectual do arquiteto e o fazer do trabalhador da construção, marca a transição das corporações da Idade Média para a entrada na modernidade, nesse momento, “é rompida a unidade entre desenho e canteiro, na passagem da cooperação simples das corporações de ofício para a manufatura comandada por uma força heterônoma” (ARANTES, 2002, p. 101). O desenho arquitetônico é direcionado na produção capitalista para a extração da mais-valia, configura-se heterônomo. Segundo Otávio Zarvos, “o incorporador em 90% dos casos, está olhando para tendências de mercado e não para a arquitetura” (ZARVOS, 2011, p.67). Diana Tatiana Borgonovi desenvolveu uma pesquisa de campo que contou com uma série de entrevistas em escritórios de arquitetura com produção significativa no mercado imobiliário para a compreensão do processo de produção do desenho na contemporaneidade. A autora verificou a condição da lógica comercial como pré-condição à elaboração dos projetos arquitetônicos. O agente externo ao processo de produção do desenho com maior poder de decisão são as incorporadoras e construtoras que realizam pesquisas de mercado responsáveis 5. Com a Segunda Guerra Mundial, como retrata Pedro Arantes, “a carestia do cimento e do aço importados, as promessas da arquitetura moderna serviram novamente a propósitos contrários: produtos de luxo consumido por poucos milionários com fim de ostentação” (ARANTES, 2002, p.15). O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura | 469 pela imposição de premissas ao projeto. Diana constatou que “muitas vezes os aspectos comerciais se sobrepõem à qualidade arquitetônica, de modo que a participação do projeto de arquitetura no contexto do empreendimento fica relativamente esvaziada” (DIANA, 2002, p.137). Agambem cita Guy Debord e sua obra A sociedade do espetáculo para afirmar o triunfo, na contemporaneidade, do espetáculo. Na sua obra de 1967, Guy Debord realiza uma crítica ao fetiche da mercadoria, a saber, esta afasta tudo o que era diretamente vivido e o substitui por imagens. Segundo Agambem, o espetáculo não representa somente as imagens ou sua veiculação nos meios de comunicação de massa, mas “ele é ‘uma relação social entre pessoas, mediada através das imagens’, a expropriação e a alienação da própria sociabilidade humana” (AGAMBEM, 2013, p.71). Diante deste quadro, o autor pergunta de que modo o pensamento atual pode se apropriar dos pressupostos da obra de Debord? Sua resposta conclusiva define a linguagem como o espetáculo na contemporaneidade, desse modo, no âmbito do capitalismo global, essa análise de cunho marxista aponta para: a expropriação da atividade produtiva, mas também e sobretudo para a alienação da própria linguagem, da própria natureza linguística e comunicativa do homem, daquele Logus no qual um fragmento de Heráclito identifica o Comum. A forma extrema dessa expropriação do Comum é o espetáculo, isto é, a política em que vivemos (ibidem, p.72). Vimos, diante desta exposição de Agamben, a presença de um quadro que determina uma linguagem totalmente distanciada da identidade do sujeito e da possibilidade fértil da sociabilidade humana. A perspectiva que o sujeito escolhe do mundo, sua posicionalidade, integra o indivíduo com suas habilidades específicas à dinâmica do modo de produção, configura-se como uma construção social. Essa visão recortada do mundo proporciona o material que se articula no imaginário e na consciência dos seres humanos, desse modo, a estreiteza ou amplitude dessa visão variam “de acordo com as construções espaço-temporais e as nossas opções no mundo que habitamos” (HARVEY, 2009, p.310). Porém, há a necessidade de se ir além da visão prosaica do mundo, postular alternativas que apontem para uma experiência do pensamento. De acordo com Harvey, o arquiteto rebelde mergulhado no mundo heterogêneo precisa ser capaz de enfrentar as condições dos desenvolvimentos 470 | Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro geográficos desiguais, articular um pensamento complexo e avançar rumo a compreensões mais compartilhadas, segundo o autor: [...] sabemos muito sobre o que separa as pessoas, mas nosso saber sobre o que temos em comum nem de longe se aproxima daquele. O arquiteto rebelde tem um papel a desempenhar tanto na definição dos pontos em comum como nos registro das diferenças. [...] sem tradução tornam-se impossíveis formas coletivas de ação. Desaparece todo o potencial para uma política alternativa (ibidem, p.321). O papel social recomendado ao arquiteto rebelde por Harvey diz respeito ao indivíduo que escapa da visão estreita de mundo e procura integrar diferentes construções e representações discursivas do mundo, ação que requer sua habilidade na tradução. Aqui, a ação do arquiteto demiurgo, totalmente refratária, é negada a favor de maior permeabilidade do profissional para a construção de relações intersubjetivas, que apontem para um desenho arquitetônico democrático, fruto de sua práxis e experiência no mundo da vida. O arquiteto inicia seus pensamentos nas relações que estabelece com o mundo, percepção e linguagem constituem um movimento duplo, pois os dados sensíveis dependem da linguagem para se fixarem e a linguagem para tornar-se falante, criadora exige a camada originária da experiência. O desenho democrático estabelece uma partilha do sensível, a saber, nossa “relação fundamental com o mundo é a da intercorporeidade, fundadora da intersubjetividade e fundada por ela numa troca e num cruzamento intermináveis: os outros não são coisas nem partes da paisagem, são nossos semelhantes” (CHAUI, 2002, p.274). Assim, compreende-se que a liberdade, na filosofia merleau-pontiana seja “o poder para transcender a situação de fato, que não escolhemos, dando-lhe um sentido novo” (ibidem, p.274). O arquiteto situado no mundo escolhe sua perspectiva, porém, sua liberdade nunca é absoluta, pois essa fatia do mundo para a qual se volta possui ambiguidades, complexidade, contradições, tensões, assim como, seu ser e é nessa via de mão dupla que se transcende a situação dada, a passagem da gênese fática para a gênese do sentido.6 6. Assim “como El Greco, que transforma seu astigmatismo em pintura, Válery e Cézanne, sua melancolia em obra poética e pictórica, Proust, sua neurastenia em literatura, Marx, sua contradição de advogado pequeno-burguês em traidor de sua classe e revolucionário. Em lugar de uma explicação mecanicista que explica a obra pela vida e O desenho e o nascimento da ideia para a arquitetura | 471 De acordo com Merleau-Ponty, a criação do “novo” ultrapassa a relação significante/significado literal, ou melhor, não esgota essa relação, comporta um rearranjo dos signos, numa ordem completamente nova, entretanto, a inventividade não inclui o sujeito como ponto de partida, mas uma “fala” cuja experiência sensível depende de outrem e do mundo e traz à tona, estruturas invisíveis, presentes já no mundo, sentidos latentes, tornando-os acessíveis para a comunidade de sujeitos. Habitar esse mundo é possibilitarmos uma conjunção com a vida, mas resta saber com que postura o arquiteto deve propor maneiras de habitá-lo, qual linguagem deve o arquiteto utilizar nos seu desenho? O nascimento da ideia para a arquitetura. Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2013. ARANTES, Pedro, F. Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002. CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de MerleauPonty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DIANA, Tatiana B. O desenho do projeto de arquitetura e sua produção atual. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo,2012, (dissertação). FERRO, Sérgio. O Canteiro e o Desenho. São Paulo: Projeto, 1979 GREGOTTI, Vittório. O Território da Arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 2010. GUEDES, Joaquim in VALÉRY, Paul. Eupalinos ou o arquiteto. São Paulo: Editora 34, 1996. de uma explicação intelectualista que explica a vida pela obra, Merleau-Ponty fala de uma obra ‘que exige esta vida’”, ou seja, uma experiência de promiscuidade com o mundo que ao mesmo tempo exige uma distância para seu engajamento e pode configurar-se transformadora da ordem da realidade dada. Chauí, Marilena.Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.274. 472 | Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro HARVEY, David. Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2009. JAMENSON, Frederic. Pós-modernidade e sociedade de consumo. in Novos Estudos CEBRAP nº 12, São Paulo: Junho 1985. MERLEAU-PONTY, Maurice. La prose du monde. Paris: Tel Gallimard,1995. . L’institution. La passivité. Notes de cours au Collège de France (1954 1955), Paris: Belin, 2003. PERRONE, Rafael A. C. O desenho como signo da arquitetura, V.2. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1993, (Tese). | 473 O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração1 GABRIELA BORGES ABRAÇOS* LISBETH REBOLLO GONÇALVES** Resumo: Este artigo lança uma reflexão sobre o engajamento de Mário Pedrosa com o movimento abstrato e busca verificar sua aproximação às teses da gestalt. Situa o envolvimento de Pedrosa em relação à arte Moderna e sua atuação em prol da divulgação do abstracionismo no cenário artístico brasileiro. Objetiva, também, compreender a razão da aproximação do crítico à psicologia da forma e verifica o seu interesse por esta formulação teórica. Palavras-chave: Crítica de Arte. Gestalt. Percepção. Abstração. El ojo y la forma: Pedrosa, gestalt y la Abstracción Resumen En este artículo se expone una reflexión con respecto al compromiso de Mário Pedrosa con la abstracción y su enfoque de la teoría de la Gestalt. Se sitúa la participación de Pedrosa en relación con arte moderno y su acción en favor de la 1. Este artigo tem sua origem na discussão levantada por minha dissertação de mestrado, “Aproximações entre Mário Pedrosa e Gestalt: Crítica e Estética da Forma” orientada pela Profa. Dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves, no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. A dissertação Investiga e relaciona o interesse de Mário Pedrosa pelos pressupostos da estética abstrata e pela Psicologia da Forma. ** Mestre em Estética e História da Arte pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. ** Professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. 474 | Gabriela B. Abraços e Lisbeth R. Gonçalves divulgación de la abstracción en el panorama artístico brasileño. También tiene como objetivo entender el enfoque crítico de la psicología de la forma, y propone la compreensión del interés del crítico por esta formulación teórica. Palabras-clave: Crítica de Arte. Gestalt. Percepción. Abstracción. Apresentação O crítico de arte Mário Pedrosa foi um importante teórico da arte brasileira que abraçou a causa da arte enquanto trajetória de vida, estimulando artistas a novas pesquisas e experimentações estéticas. Situa-se como um crítico de destaque na constituição da História da arte brasileira, que até a atualidade figura nas bibliografias de referência. Destacou-se como um intelectual engajado que encontrou na arte, um campo para a reeducação das sensibilidades estéticas e para o exercício da criatividade. Nesta trajetória, localizamos a atuação do crítico em um momento importante da arte moderna ocidental: a emergência e divulgação de novas premissas estéticas que revolucionaram as maneiras de ver a obra e de interpretá-la. Neste sentido, tanto o seu interesse pela gestalt, quanto o empenho no contato com artistas, serão elementos relevantes para a divulgação do abstracionismo no cenário brasileiro, como também para a constituição de uma teoria crítica madura para as diversas vertentes da arte moderna. Mário Pedrosa e a abstração As transformações estéticas do século XX abriram caminho para o alargamento de compreensão de estilo e dos modos da composição artística. As distintas linguagens desenvolvidas como investigações estéticas formaram o arcabouço da arte moderna e abarcaram diferentes expressões e formas de conhecer e interpretar o real. No campo de uma constituição teórica da História da arte, situamos um aspecto da reflexão crítica de Mário Pedrosa em relação à Arte Moderna e, sobretudo, pela estética abstrata, da qual Pedrosa fora importante teórico e incentivador. Mário Pedrosa foi um grande patrocinador da arte moderna no Brasil, tanto em discursos críticos como com ações diretas de valoração dos artistas e estímulos à atualização das linguagens estéticas. Pedrosa apoiou a arte social dos anos 1930 de Portinari e de Segall e a causa da Arte Moderna promovida pelos agentes do O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração | 475 círculo paulista da semana de 1922. No entanto, não se manteve preso a esta estética que formava parte do gosto do público brasileiro e se envolveu com a divulgação do abstracionismo, como uma atualização necessária às realizações e discussões estéticas no país. Este panorama - arte figurativa, abstração – no entanto, verteu-se numa celeuma, entre os que defendiam uma estética social e os simpatizantes da chamada Nova Arte. Lidar com outras linguagens ou experimentações era envolver-se em uma grande ousadia, e dividia as opiniões dos intelectuais que constituíam o substrato crítico da Arte brasileira. Sobre esta discussão, Otília Arantes esclarece-nos: Mário Pedrosa pôs em pé de guerra a plateia (do auditório do Ministério da Educação num debate sobre “arte abstrata ou arte com temática social”) ao defender [...] a causa da abstração. [...] Inutilmente procurou mostrar aos presentes que a nova arte estava elaborando símbolos de uma linguagem plástica inédita, destinada a nos arrancar da atonia perceptiva quotidiana, na esperança de encurtar a distância que nos separa dos horizontes longínquos da utopia. (ARANTES, 1991,p. XIV)2 Com estas convicções, Mário Pedrosa assumiu a causa da arte abstrata e advogava em seu favor como crítico e como espectador. Tal postura valeu-lhe a alcunha de “novidadeiro”, por alguns de seus pares da crítica de arte, por considerarem tal estética como uma nova moda. A trajetória crítica de Pedrosa, no entanto, evidencia-nos que sua preocupação e interesse pela abstração, não se pronunciava como mera simpatia por novas tendências, mas atendia a uma dinâmica teórica mais profunda. O crítico imergiu em pesquisas sobre teóricos da arte abstrata, a fim de compreender-lhe os pressupostos norteadores e percorreu um denso caminho de investigações científicas a fim de compreender os mecanismos perceptivos da linguagem sígnica da arte não figurativa, que sublimavam a compreensão de cores e formas sem a interferência da significação narrativa. 2. ARANTES, Otília. Mário Pedrosa: Itinerário Crítico. Scritta Editorial. São Paulo, 1991. 476 | Gabriela B. Abraços e Lisbeth R. Gonçalves Figura 1 - Wassily Kandinsky, Composição IV, 1911. Fonte: DÜCHTING, Hajo. Kandinsky 1866-1944- A Revolução da Pintura. Cingapura: Taschen/ Paisagem, 2007. Mário Pedrosa e a psicologia da forma Pedrosa foi um crítico que buscava uma contínua atualização de seus estudos. Suas preocupações, no entanto, se estendiam a diversas áreas do conhecimento como história, psicologia, física, matemática, sociologia, política, economia, filosofia e artes. Tais estudos lhe permitiram a aquisição de uma bagagem interdisciplinar e a perspectiva de um humanista, que tinha a capacidade de averiguar uma questão por diferentes vértices. Tal gama de conhecimentos agregavam ao discurso crítico de Pedrosa, seriedade, erudição e densa formulação teórica, que nunca eram arrolados com superficialidade. O contato de Pedrosa com os estudos gestálticos iniciou-se ainda na juventude, quando esteve na Alemanha, em 1929, a serviço do Partido Comunista. Cursou Estética, Sociologia e Psicologia da forma na Universidade de Berlim, e pode conhecer de perto o teor dos estudos que se colocavam na comunidade acadêmica. Ao retornar ao Brasil, o interesse de Pedrosa parece ter sido orientado pela causa política3 e pela divulgação da arte moderna dos primeiros momentos. Já na década seguinte, podemos notar um retorno de Pedrosa ao tema da psicologia da forma, já com um interesse mais intenso e profundo. Percebemos estas preocupações condensadas na tese que preparou para o concurso à cátedra de História da Arte na Faculdade Nacional de Arquitetura, onde Pedrosa concorreu com o trabalho, “Da Natureza afetiva da Forma na Obra de Arte”, estabelecendo uma análise gestáltica aplicada à arte. Sua tese trazia uma 3. Década de 1930 no Brasil fora marcada por intensa atividade e repressão política. Assinalamos a Revolução de 1930 e os subsequentes anos de ditadura Varguista. Neste contexto, como membro do partido comunista e logo depois articulador do partido trotskista, Mário Pedrosa foi preso, fichado pelo DEOPS e exila-se nos EUA. O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração | 477 proposição tão pioneira e inovadora que não alcançou diálogo na academia e o crítico não fora aprovado para a cátedra. Ao lado desta circunstância, no entanto, apresenta-se um trabalho de rebuscada constituição teórica que se vale de pressupostos da psicologia da forma para compreender o fenômeno artístico. Nota-se um profundo interesse do crítico pela compreensão dos mecanismos da percepção, pois somente poderia compreender a arte produzida, após compreender o homem que a produziu. O objetivo deste estudo era, de fato, compreender como se constitui a percepção humana, para então entender como este processo se aplica à percepção e significação do objeto de arte. Ao analisar o funcionamento das leis da teoria da percepção visual, pode-se compreender melhor como o olho humano percebe e estabelece sentido à forma. No entanto, constata-se que este tema não figurou no vocabulário de Pedrosa, somente como um interesse gratuito ou curiosidade individual. Havia nesta empreitada um interesse estético que fornecesse instrumental teórico para as análises e elucubrações críticas a respeito da obra de arte a fim de atribuir à ciência estética um caráter objetivo com instrumentais da ciência experimental. Gestalt e Crítica de Arte Ao acompanharmos os textos críticos de Mário Pedrosa de fins de anos 1940 e anos 50, notam-se expressões e ideias caras à psicologia da forma, empregadas pelo crítico para a descrição e compreensão do fenômeno artístico. Tal teoria constituirá um suporte metodológico para a construção consistente das análises críticas. Seu objetivo é escapar de uma crítica subjetiva e impressionista e analisar e valorizar a obra de arte por suas qualidades formais constituintes, a fim de dialogar com a forma e daí estabelecer suas significações. A Gestalt agrega conhecimentos da psicologia, ao investigar como o aparato mental registra e absorve as informações que capta. Neste sentido, a obra de arte não é compreendida como um objeto único no espaço, mas em relação ao seu entorno e situação de apreensão. A psicologia da forma revela-nos ainda o quadro de arte, como um espaço de tensões, com forças dinâmicas que se sobrepõem até o momento onde o olho encontra o equilíbrio da constituição de sentido. Estas tensões podem estar manifestas na disposição das formas, das cores, ou da relação entre elas e no modo como o conjunto chega aos olhos do espectador. 478 | Gabriela B. Abraços e Lisbeth R. Gonçalves Neste sentido, a Psicologia da forma evidencia-nos que cada elemento do quadro colabora para sua constituição e, por conseguinte, influencia na relação de sentido que o espectador criará no instante da observação. A mínima modificação na composição altera todo o equilíbrio dinâmico da obra, que se transforma em outra composição diferente, uma vez que por suas relações internas, será compreendida de modo distinta. Figura 2 - Alexander Calder, Mobile on two planes, 1962, Aluminum sheet and son painted steel, National Museum of Modern Art – Georges Pompidou Center, Paris. Fonte: http://theredlist.com/wiki-2-351861-1411-1428-1430-1437-view-abstract1-profile-calder-alexander-2.html As próprias leis de organização visual criam condições de ordenação dos elementos visualizados a fim de equilibrar a estrutura perceptiva. Uma vez que o caos nos é impossível, a visão vai pouco a pouco sendo guiada pelos elementos que constituem o objeto, e assim o aparato cognitivo atribui uma relação de sentido e de significação. A Abstração e a Gestalt Ao acompanhar a trajetória crítica de Mário Pedrosa pela abstração, compreendemos em que medida a psicologia da forma, foi-lhe um substrato teórico importante. Ao lançar a análise sobre a obra de arte, as teses da psicologia da forma eram-lhe um subsídio eficiente para a constituição de um discurso coerente e lógico, que ao mesmo tempo desenvolvesse uma descrição objetiva, mas que se colocasse em diálogo com a sensibilidade. Por se tratar de uma linguagem não figurativa, de uma apreensão enredada por signos e cores, seja em uma vertente lírica ou geométrica, a abstração estabelecia uma difícil relação com seu espectador que se sentia esvaziado de sentido, tendo em vista a busca da narrativa mimética ao que sempre estivera acostumado pela tradição clássica ocidental. No entanto, ao aproximar-se das verificações das leis da teoria da forma, nota-se uma instrumentalização de recursos para O olho e a forma: Pedrosa, gestalt e a abstração | 479 observar e analisar uma obra abstrata, agora não mais avaliada por sua alusão figurativa, mas pelas relações dinâmicas e afetivas entre cores e formas. Neste sentido, a gestalt é uma teoria, que esteve em voga nos anos de 1930 e que ofereceu aportes teóricos às primeiras experimentações abstratas dos grupos de Kandinsky e Paul Klee. Por esta influência, seria a mesma teoria que nos possibilitaria uma conexão visual com as experiências estéticas dos abstratos de orientação construtiva dos anos seguintes. Sem a compreensão dos pressupostos gestálticos, pouco se pode compreender da estética abstrata, que figura como uma arte vazia ou puramente expressionista como impulso emocional, sem diálogo com a compreensão racional. Considerações Finais Mário Pedrosa foi um importante crítico que se empenhou pela divulgação do abstracionismo entre os intelectuais do campo artístico brasileiro. Nesta empreitada, preparou-se teoricamente para constituir suas análises críticas com sólidas conceituações e recursos científicos e assim, atribuir à estética abstrata uma densidade teórica consistente, racional e ao mesmo tempo aberta à criação sensível. O envolvimento do crítico com abstração correspondia a uma expectativa de alargamento da sensibilidade estética que desse vazão à criatividade e à reflexão. A teoria da forma, neste contexto, seria ao espectador um instrumento para entrar em contato com as outras possibilidades de apreciação estética, não mais organizada pela representação mimética, mas pelas relações perceptivas estruturais entre cores e formas. Referências bibliográficas ARANTES, Otília. Mário Pedrosa: Itinerário Crítico. Scritta Editorial. São Paulo, 1991. DÜCHTING, Hajo. Kandinsky 1866-1944- A Revolução da Pintura. Cingapura: Taschen/ Paisagem, 2007. FRACCAROLI, Caetano. A percepção da forma e sua relação com o fenômeno 480 | Gabriela B. Abraços e Lisbeth R. Gonçalves artístico: O problema visto através da Gestalt. Aula nº 30-Plástica III, Setor de publicações, FAU-USP, 1952. GOMES FILHO, João. Gestalt do Objeto: sistema de leitura visual da forma. 9. Ed. SP: Escrituras Editora, 2009. LOPES, Almerinda da Silva. Arte Abstrata no Brasil. Belo Horizonte: C/Arte, 2010. PALLAMIN, Vera. Princípios da Gestalt na organização da forma: abordagem bidimensional. São Paulo, 1985. 166f. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. PEDROSA, Mário. Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte. In: Forma e Percepção Estética: Textos escolhidos II- Otília Arantes (org.)- São Paulo: EDUSP, 1996. PEDROSA, Mário. Fundamentos da Arte Abstrata. In: Forma e Percepção Estética: Textos escolhidos II (org. Otília Arantes). São Paulo, EDUSP, 1996. | 481 Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo1 RENATA DIAS FERRARETTO MOURA ROCCO* Resumo: O presente artigo é fruto da pesquisa de doutorado apenas iniciada pela autora sob orientação da Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães (MAC USP). Seu objetivo é discutir o impacto da IV Quadrienal de Roma na produção de Danilo di Prete por meio de sua participação na mostra. No Brasil, o artista é geralmente conhecido por sua produção e participação em exposições em território nacional, no entanto, a ressonância de sua vivência no ambiente cultural italiano, onde morou até 1946, quando veio ao Brasil, deve ser ainda mais bem estudada. Sendo assim, este artigo se propõe a refletir sobre o contexto italiano e qual bagagem carregou e apresentou no Brasil nos anos conseguintes à sua chegada. Palavras-chave: Danilo di Prete, Quadrienal de Roma, I Bienal de São Paulo, arte moderna italiana. 1. Agradeço a ajuda de Giuliana Di Prete Campari, filha do artista, com as informações cedidas que contribuíram com a elaboração deste artigo. * Mestre em História da Arte pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. Doutoranda pelo mesmo programa, orientação Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães (MAC USP). Linha de pesquisa: Teoria e Crítica de Arte 482 | Renata Dias Ferraretto Moura Rocco Danilo di Prete: between IV Rome Quadrennial and São Paulo Biennial Abstract: This artwork is the result of the PhD research recently began under the orientation of Dr. Ana Gonçalves Magalhães (MAC USP). Its main goal is to discuss the IV Rome Quadrennial impact on Danilo di Prete’s production through his participation in the exhibition. In Brazil, the artist is generally known by his production and exhibitions in Brazilian territory, however, the impact of his experiences in the Italian cultural environment, where he lived until 1946, when moved to Brazil, must be better studied. Thus, the objective of this article is to reflect about the Italian context and which of its cultural traces Danilo has carried to Brazil and depicted on his artworks on the following years. Keywords: Danilo di Prete, Rome Quadrennial, 1st São Paulo Biennial, Italian modern art. Em 30 de janeiro de 1972, o artista italiano radicado no Brasil Danilo Di Prete (PISA, 1911 – São Paulo, 1985) comenta retrospectivamente sua carreira em entrevista a Luis Ernesto Machado, declarando (KAWALL, 1972, p. 28): Não quero ficar famoso nem me tornar milionário. Quero, apenas, pesquisar muito e pintar sempre. Morar na minha casinha, com a mulher e a filha, guiar meu fusca... Perdi 10 anos na vida como soldado do exército italiano. Cheguei ao Brasil em setembro de 1946, e já dei duro aqui. Pintei prédios, expus 30 telas mas ninguém comprou, passei fome, fui cartazista em agências de propaganda. Aí vieram muitos prêmios, ganhei o prêmio de melhor pintor na I Bienal, outros prêmios importantes ainda em outras três Bienais... Mas, nada disso importa. O que me interessa é fazer uma obra pesquisada, adulta, independente, de ressonância nos grandes centros de arte, deixar um nome limpo na arte. Dinheiro, vendas, prêmios, “fofocas”, rodinhas, nada disso me interessa. Este breve trecho nos permite desenvolver diversas reflexões acerca da produção deste artista e de sua relação com o ambiente artístico italiano e o brasileiro. Primeiramente, é fundamental reconstituir o cenário artístico vivido por Di Prete na Itália, o qual trouxe consigo ao Brasil quando aqui chega no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, em 1946. Como se sabe, Mussolini havia caído em 1943 e, com ele, o fascismo italiano que havia perdurado por mais de Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo | 483 vinte anos, sob o qual, pelo menos até 1938, os artistas tiveram uma significativa liberdade de criação (diferentemente do que ocorreu sob o stalinismo e o nazismo). As duas primeiras edições da Quadrienal de Roma (1931 e 1935) são testemunhos bem vivos dessa abertura artística, quando foi possível assistir às mais diversificadas manifestações num ambiente altamente frutífero e animado por alguns dirigentes do regime.2 Danilo, que vinha expondo desde o início dos anos 1930, certamente teve contato com essas vertentes artísticas pulsantes, dentre as quais destacam-se: o programa do Novecento Italiano promovido pela crítica de arte Margherita Sarfatti (iniciado em 1925 e terminado no início dos anos 1930), a pintura aerofuturista alavancada pelos esforços de Filippo Tommaso Marinetti (anos 1920-1930), o realismo mágico (anos 1920-1930) e as primeiras experiências abstratas em torno da Galleria Il Milione, nos anos 1930, além do conhecido espírito do “Retorno à Ordem” promovido por escritores, poetas, filósofos e diversos artistas como Gino Severini, Carlo Carrà e Giorgio de Chirico por meio de suas obras e escritos, nos quais pregavam um resgate a uma arte de caráter figurativo e nacionalista cujos alicerces seriam os ensinamentos dos primitivos italianos e dos grandes mestres do Renascimento.3 Em 1938, no entanto, com a promulgação das leis raciais na Itália, essa abertura artística encolhe significativamente e a terceira edição da Quadrienal de Roma, em 1939, tornase um dos palcos deste debate. Nesse cenário, vale lembrar a acirrada disputa entre os prêmios Bérgamo e Cremona,4 que defendiam extremos artísticos: o pri- 2. Sobre as edições da Quadrienal de Roma veja-se: SALARIS, Claudia. La Quadriennale: Storia della rassegna d’arte italiana dagli anni Trenta a oggi. Itália: Marsilio Editori, 2008. 3. É fundamental dizer que esse contexto do “Retorno à Ordem” não ocorre somente na Itália, mas também na França – como atestam os escritos e pinturas de Charles-Édouard Jeanneret, Amédée Ozenfant – e que não é o único a ser sentido. Pelo contrário, na própria França no entreguerras, ocorre também o surgimento do Surrealismo, entre outras manifestações. A historiografia da arte tem se ocupado significativamente deste contexto artístico recentemente como comprovam algumas mostras e seus respectivos catálogos de exibição. A título de exemplo, cita-se: CAT. EXP. Chaos & Classicism: Art in France, Italy, and Germany, 1918-1936. Estados Unidos: Guggenheim Museum Publications, 2010. 4. Informações extraídas da conferência proferida pelo Prof. Dr. Paolo Rusconi, da Università degli Studi di Milano, no MAC USP entre 16 e 19 de abril de 2013, no Curso Internacional “Anos 1930 na Itália: as artes figurativas, as revistas e as exposições durante o Fascismo”. 484 | Renata Dias Ferraretto Moura Rocco meiro, uma liberdade maior de criação; enquanto o segundo, uma arte que fosse o próprio espelho dos ideais do regime e da exaltação da figura do Duce. No prêmio Bérgamo, desvela-se uma espécie de recuperação das vanguardas artísticas do início do século XX, sobretudo, do impressionismo, algo que ganharia mais corpo com o final da Segunda Guerra efetivamente. A IV Quadrienal de Roma, em 1943, foi emblemática neste sentido, pois lá se evidencia a mudança radical de percurso de alguns artistas que haviam trabalhado de acordo com o mencionado ambiente do “Retorno à Ordem” e que, no início dos anos 1940, fazem um resgate das poéticas vanguardistas. Nesta edição da quadrienal, a última que ocorre sob os auspícios do fascismo e com direção de Cipriano Effisio Oppo, nota-se uma preparação e execução diferentemente das três anteriores, já que parte do aporte desta mostra foi destinada às despesas com a guerra, além do Duce não ter participado de sua abertura, diferentemente das edições anteriores. Vale ressaltar que para Mussolini, a Quadrienal de Roma tinha tido, até então, um valor estritamente político (MORELLI, 2000, p. 02), ou seja, devia servir para aumentar o prestígio do fascismo na Itália e no exterior, e Oppo, nesse sentido, tinha grande liberdade de ação, incentivando as mais diversas produções. Ele, que também era pintor, tinha como premissa que a arte fascista seria aquela feita ao longo de toda a era fascista (OPPO, 1927, p. 44). Na quarta edição da quadrienal, embora não houvesse salas individuais, havia a Sala dos Futuristas Italianos organizada por Marinetti, com os aeropintores de guerra, aeropintores cósmicos e abstratos e os futuristas, e a mostra individual de Enrico Prampolini (CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte nazionale, 1943, p.72). O vencedor o prêmio de 1º de pintura, Gianni Vagnetti, apresenta obras que demonstram essa recuperação das vanguardas e, na linguagem plástica empregada em sua pintura La Pellegrina, nota-se claramente um acento mais francês (CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte nazionale, 1943, figura II), assim como em outras apresentadas por artistas como Rolando Monti, Ennio Pozzio e Guido Casciaro. A exposição é bastante antecipadora dos percursos artísticos que se configurariam no ambiente italiano do pós-guerra, o que significa renunciar e, até mesmo, desclassificar os movimentos mais característicos do entreguerras, reposicionando como superiores aqueles movimentos vanguardistas dos primeiros anos do século XX. Ora, ao vivenciar este ambiente ativamente, seja por meio da exposição no prêmio Cremona – quando, inclusive, uma obra sua foi prêmio aquisição – quanto na IV Quadrienal Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo | 485 de Roma,5 na qual expôs La barca – Viareggio – a única obra aceita pela Quadrienal dentre as três que submeteu6 –, Di Prete estava totalmente a par do que acontecia no ambiente italiano e em vivo diálogo com ele. Na sala em que expôs, a de número 39, estavam presentes mais outros 18 artistas de tendências diversas entre si, tais como Arturo Checchi, Rolando Monti7 e Cesare Breveglieri8 (CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte nazionale, 1943, pp. 109-111). No que tange os anos posteriores à mostra, seria possível ainda supor que Di Prete tivesse tido algum contato com as ideias do grupo do Fronte Nuovo delle Arti fundado, em 1946, e encabeçado por Birolli, Gutuso, Morlotti, entre outros, os quais haviam assinado o “Manifesto del Neo Cubismo”. Tendo discutido as últimas manifestações artísticas vistas pelo jovem Danilo antes de vir ao Brasil, torna-se absolutamente compreensível o porquê do uso de um tipo de linguagem herdeira do cubismo francês em suas telas, tal como a premiada Limões (1951, MAC USP). Danilo havia começado sua carreira artística como autodidata e os temas que trabalhava eram aqueles das naturezasmortas, marinhas e retratos. Evidentemente, suas obras não poderiam deixar de ser figurativas quando o artista chegara ao país, afinal ele ainda estava em linha com o ambiente italiano, que estava fazendo o resgate das vanguardas e o cubismo ocupava um papel de destaque nesse sentido. Um exemplo claro disso é a declaração de Severini, em 1942, quando afirma que o cubismo é uma nova situação da arte e que na história das artes ele havia sido tão importante como foi a invenção da perspectiva, mas com objetivos absolutamente diversos (ROCCO, 2013, pp. 133-134). Essa associação de um cubismo revisitado, reinterpretado à luz de um estilo tipicamente italiano empregado por Danilo na tela Limões, causa celeuma na I Bienal de São Paulo, quando o artista conquista o prêmio de primeiro lugar de pintura nacional. As controvérsias desta premiação são grandes 5. Agradeço a Assunta Porciani, responsável pelo Arquivo da Biblioteca da Quadriennale di Roma, por ter gentilmente cedido informações e colaborado com este artigo. 6. As outras duas foram Paese (Croazia) e Darsena (Viareggio). 7. Cf. CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte nazionale, vê-se que Monti expôs uma obra – A Cartomante – que apresentava justamente uma linguagem artística que remontava às vanguardas do início do século XX, conforme comentado anteriormente. 8. Este artista, inclusive, havia tido uma boa recepção na II Quadrienal de Roma junto aos demais artistas “primitivos”. 486 | Renata Dias Ferraretto Moura Rocco e resistem até hoje. Há críticos que não entendem simplesmente a premiação de um estrangeiro em tal categoria. Há outros que não aceitam o critério de escolha do processo tendo em vista os artistas brasileiros já consagrados, e mais merecedores do prêmio, em suas opiniões. Há ainda outros que questionam o nome de Danilo em sentido maior, que põem em xeque a premiação, sugerindo que ela tivesse ocorrido apenas como uma forma de compensação dada ao artista por Ciccillo, que quis lhe agradecer pela ideia de trazer a bienal para o Brasil, algo até então, existente somente em Veneza. É Pedrosa quem deixaria isso nas entrelinhas em um artigo publicado no Jornal do Brasil em 1960 (PEDROSA, 1960): ... e lhe grangeou (sic) [o esquema de cores trazido por Danilo da Itália], com o seu limão verde transparente, o primeiro prêmio, por descuido, da primeira Bienal paulista. Como nenhum membro entendido da Comissão escolhedora quis aceitar a responsabilidade por sua inclusão, diz-se a bôca pequena, que a principal razão da escolha foi a merecida amizade que lhe vota o nosso caro Cicillo. José Geraldo Vieira viria a resumir, de forma contundente, o cenário, ao falar sobre o artista em 1967, em decorrência de sua sala especial na Bienal de São Paulo (VIEIRA, 1967): Mas lhe sucedeu aqui em São Paulo, em 1951, uma surpresa ao mesmo tempo benéfica e nefasta; pois tendo sido uma glória lhe criou complexos: na I Bienal, aceito no nosso continente como estrangeiro já residindo no Brasil desde mais de dois anos, o júri internacional lhe conferiu o Grande Prêmio de Pintura Brasileira. O jubilo atônito se transformou em mal estar. A intimista tela Limões causa, portanto, essa convulsão no cenário artístico brasileiro e torna-se nossa conhecida de sua produção. Entretanto, vale lembrar que o artista, mais maduro, viria a desenvolver obras abstratas no decênio seguinte, mais em linha com o que o cenário brasileiro adotara como uma expressão mais moderna, seguindo, posteriormente com criações cinéticas. Além de Limões, o MAC USP possui outras três suas: Marinha (Via Reggio), 1946, Natureza-Morta, 1949, e Formas no Espaço, 1953. Com exceção à última, as outras duas são também figurativas e remontam claramente à sua Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo | 487 experiência no circuito artístico italiano, onde se percebe o ressurgimento do cubismo, sobretudo, aquele sintético, bem como a adoção de um vocabulário valorizador de suas paisagens, como a marinha. Alguns artistas italianos vinham trabalhando com a ideia da paisagem como algo sublime, e a marinha fazendo parte disso, ao longo dos anos do entreguerras. O grupo Strapaese é um exemplo disso, a paisagem rural é idealizada e mesmo ideologizada por seu grupo de artistas, dos quais faziam parte Ardengo Soffici e Ottone Rosai. A produção de Carrà a partir dos anos 1920, que depois do futurismo, da pintura metafísica, retoma os ensinamentos de Giotto e Paolo Ucello, certamente deve ter impactado em alguma medida Di Prete. Basta pensarmos em obras de Carrà como Campanni sul Mare (Galleria Civica d´Arte Moderna e Contemporanea de Turim) em comparação com a marinha do MAC USP para termos a justa medida desta relação. Ainda sobre a estreia artística de Danilo no Brasil, muito imbuída dos preceitos italianos, é válido recuperarmos os dizeres em retrospectiva de Pedrosa por ocasião de sua mostra em 1985, no Espaço Cultural Chap Chap (PEDROSA, 1985): Quando Di Prete, há mais de dez anos, conquistou [...] o prêmio da 1ª Bienal de melhor pintor brasileiro, [...] era, com efeito, ainda ´estrangeiro´, não de nacionalidade [...], mas de pintura [...]. Seu ´passaporte´ para a pintura brasileira, ou a pintura feita, nascida no Brasil, foi um neocubismo de nítida inspiração italiana, isto é, mais próximo dos esquemas colorísticos vibrantes do futurismo que das severidades térreas do cubismo francês. [...] A luz clara que trouxe da Itália pode se ter adensado, aqui, como nuvens baixas roçando os rochedos; sua matéria, a espátula, e não mais o pincel, pode ter perdido, no suceder da experiência pictórica, o direto contato perceptivo com as coisas ao alcance da mão ou da visão focal; suas cores, seus verdes, azuis podem ter perdido a transparência luminosa; a imaginação se deslocalizada para universalizar-se. Como resultante de tudo isso, sua matéria deixou de ser matéria, à maneira renascentista, para ser textura, que se ergue em fermento, em relevos orográficos, em energia – sinal dos tempos. Voltando ainda a esse tipo de produção à italiana de Danilo que temos em nossos museus, é possível mencionar duas, das três obras, presentes no MAM SP: Cogumelos, 1945, e Cabinas na praia de Viareggio, 1946. Ambas ainda carregam fortemente a sobriedade dos castanhos e ocres, não há luminosidade 488 | Renata Dias Ferraretto Moura Rocco ou leveza. Os temas, como já dito, são aqueles trabalhados longa data no ambiente italiano com considerável sucesso. Não é demais lembrar que apenas um ano após a premiação de Danilo na I Bienal de São Paulo, a delegação brasileira procura enviar para XXVI Bienal de Veneza, em 1952, obras de artistas que espelhassem “as diversas tendências da atual pintura brasileira”, numa seleção em que havia sido reservado um espaço àqueles pintores ingênuos, apesar de muitos artistas estarem se voltando ao abstracionismo, como declara Sérgio Milliet no catálogo (MILLIET, 1952, pp. 190193). Entre os artistas estão Alfredo Volpi (com o maior número de telas), Antonio Bandeira, Heitor dos Prazeres, Maria Leontina e Di Prete, o qual está representado com quatro naturezas-mortas, uma de 1951 e as demais de 1952. Ou seja, temos novamente uma escolha de suas criações verdadeiramente em linha com esse tema tradicional da pintura, o qual tinha estado muito em voga no ambiente italiano anteriormente, e que independentemente das controvérsias que gerou por ocasião da premiação, é reforçado neste segundo momento.9 Resta dizer que Danilo apresenta na I Bienal São Paulo certa produção artística que encontrou alguma aprovação, tenha ela tido ou não a influência de alguma rede de relacionamentos. Esta lacuna está sendo mais bem investigada. De todo modo, este tipo de ocorrência no cenário brasileiro não é inédito, basta que nos lembremos da vinda de modernos artistas italianos ou de descendentes para cá, onde apresentaram criações em consonância com o ambiente italiano tais como Hugo Adami, Paulo Rossi Osir, Vittorio Gobbis, Fulvio Pennacchi, Ernesto de Fiori, e o enorme suporte dado a alguns deles por críticos da envergadura de Mário de Andrade e Sérgio Milliet.10 Danilo fez parte deste complexo de relações ativamente, tanto no âmbito dos debates que sua produção artística gerou, quanto das controvérsias que circundam sua real participação na criação da I Bienal de São Paulo. 9. Ainda no texto para o catálogo, Milliet explica que os artistas premiados na Bienal de São Paulo tinham de ser apresentados na Bienal de Veneza. 10. Ao falarmos da criação da Bienal de São Paulo, é necessário termos em mente o contexto da criação do antigo MAM SP e da relação Brasil-Itália na constituição do primeiro acervo italiano para o museu. Sobre esse assunto recomenda-se a leitura de: MAGALHÃES, Ana Gonçalves. “Realismo, classicismo e vanguarda: Pintura italiana do entreguerras”. In: CAT. EXP. Realismo, Classicismo e Vanguarda: Pintura Italiana do Entreguerras. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2013, pp. 7-23. Danilo di Prete: entre a IV Quadrienal de Roma e a I Bienal de São Paulo | 489 Referências bibliográficas CAT. EXP. IV Quadriennale d’arte nazionale. Roma: Casa editrice Mediterranea, 1943. KAWALL, Luiz Ernesto Machado. “Entrevista com Danilo Di Prete”, Artes Reportagem, São Paulo, v. 1, 1972. MAGALHÃES, Ana Gonçalves. “Realismo, classicismo e vanguarda: Pintura italiana do entreguerras”. In: CAT. EXP. Realismo, Classicismo e Vanguarda: Pintura Italiana do Entreguerras. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2013, pp. 7-23. MILLIET, Sérgio. “Brasile”. In: CAT. EXP. XXVI Biennale di Venezia. Veneza: Alfieri Editore, 1952. MORELLI, Francesa Romana. Cipriano Efisio Oppo. Un Legislatore per l´arte: scritti di critica e di politica dell´arte: 1915-1943. Roma: Edizione De Luca, 2000. OPPO, Cipriano E. “Arte Fascista / Arte Italiana”, Critica Fascista, Roma, 1º fevereiro, 1927. PEDROSA, Mário. “Ainda o envio a Veneza”, In: Jornal do Brasil, 04.05.1960. ROCCO, Renata Dias Ferraretto Moura. Para além do futurismo: poéticas de Gino Severini no Acervo do MAC USP. Dissertação Mestrado, orientada pela Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães, Universidade de São Paulo, 2013. VIEIRA, José Geraldo. “A Sala Danilo di Prete na Bienal”. In: Folha Ilustrada, 1951. WEBSITE: ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. PEDROSA, Mário. “Danilo Di Prete”, In: DANILO Di Prete. Apresentação de Jean Cassou, Geraldo Ferraz, Maria Eugenia Franco e. Textos de José Geraldo Vieira e Mário Pedrosa. São Paulo: Espaço Cultural Chap Chap, 1985. Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=danilo+di+prete&oq=danilo+ di+p&aqs=chrome.3.69i57j69i60l2j69i59l2j0.3988j0j8&sourceid=chrome &espv=210&es_sm=93&ie=UTF-8. Consultado em 10.01.2014. | 491 Índice de Autores Adriana Bomeny Freire Alecsandra Matias de Oliveira Aila Regina da Silva Ana Gonçalves Magalhães Ana Paula Cattai Pismel Andréia Paulina Costa Araceli Barros da Silva Jellmayer Bedtche Arthur Hunold Lara Artur Matuck Carmen S. G. Aranha Cauê Alves Cristiano Alexandria de Oliveira Dilma de Melo Silva Donny Correia Dúnia Roquetti Saroute Edson Leite Eliane Dias de Castro Elizabeth A. M. Kajiya Eunice Maria da Silva Fernanda Albuquerque de Almeida Gabriela Borges Abraços Gisele Barbosa Ribeiro Graziela Naclério Forte Guilherme Weffort Rodolfo Heloisa de Sá Nobriga Hugo Segawa Isa Márcia Bandeira de Brito Isabela Umbuzeiro Valent Janaina Barros Silva Viana João Augusto Frayze-Pereira 367 77 267 41 107 245 287 267 387 11, 77 57 447 149 397 215 67, 357, 367, 397 173 343 387 377 469 189 315 121 277 15 159 173 257 299 492 | José Paiani Spaniol Juliana Froehlich Katia Canton Leonardo Gomes Sette Gonçalves Lisbeth Rebollo Gonçalves Marcelo Mendes Chaves Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro Maria Lucia Bighetti Fioravanti Massimo Canevacci Maurício Pinto Adinolfi Osvaldo Fontes Filho Paula Davies Rezende Percival Tirapeli Regilene Sarzi Ribeiro Regina A. Tirello Renata Dias Ferraretto Moura Rocco Richard de Oliveira Rodrigo Cristiano Queiroz Rodrigo Queiroz Rosana Garcete Miranda Fernandes de Almeida Ruy Sardinha Lopes Silfarlem Junior de Oliveira Silvia Miranda Meira Simone Rocha de Abreu Tiago Machado de Jesus 235 129 87 431 287, 469 201 457 325 23 235 447 419 325 409 343 477 299 431 101 357 245 189 141 149 225 | 493 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP – Créditos Reitor: Marco Antonio Zago Vice-Reitor: Vahan Agopyan Pró-Reitor de Graduação: Antonio Carlos Hernandes Pró-Reitora de Pós-Graduação: Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco Pró-Reitor de Pesquisa: José Eduardo Krieger Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária: Maria Arminda do Nascimento Arruda Secretário Geral: Ignacio Maria Poveda Velasco MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA – MAC USP CONSELHO DELIBERATIVO Ana Magalhães; Carmen S. G. Aranha; Cristina Freire; Eduardo Morettin; Eugênia Vilhena; Georgia Kyriakakis; Hugo Segawa; Helouise Costa; Katia Canton; Vera Filinto DIRETORIA Diretor: Hugo Segawa Vice-diretora: Katia Canton Secretárias: Ana Lucia Siqueira; Mônica Nave DIVISÃO DE PESQUISA EM ARTE - TEORIA E CRÍTICA Chefia: Helouise Costa Suplente de Chefia: Ana Magalhães Secretárias: Andréa Pacheco; Sara Vieira Valbon Docentes e Pesquisa: Cristina Freire; Helouise Costa; Ana Magalhães DIVISÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA DE ACERVO Chefia: Paulo Roberto A. Barbosa Suplente de Chefia: Rejane Elias Secretária: Maria Aparecida Bernardo Documentação: Cristina Cabral; Fernando Piola; Marília Bovo Lopes; Michelle Alencar 494 | Arquivo: Silvana Karpinscki Conservação e Restauro - Papel: Rejane Elias; Renata Casatti Especialista em Pesquisa de Apoio em Museu: Silvia M. Meira Apoio: Aparecida Lima Caetano Conservação e Restauro - Pintura e Escultura: Ariane Lavezzo; Márcia Barbosa Apoio: Rozinete Silva Técnicos de Museu: Fábio Ramos; Mauro Silveira DIVISÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA DE EDUCAÇÃO E ARTE Chefia: Evandro C. Nicolau Suplente de Chefia: Andrea A. Amaral Silva e Biella Secretárias: Carla Augusto; Miriã Martins Educadores: Andrea A. Amaral Silva e Biella; Evandro C. Nicolau; Maria Angela S. Francoio; Renata Sant’Anna; Sylvio Coutinho Docentes e Pesquisa: Carmen S. G. Aranha; Katia Canton SERV. DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO LOURIVAL GOMES MACHADO Chefia: Lauci B.Quintana Documentação Bibliográfica: Anderson Tobita; Josenalda Teles; Vera Filinto ASSISTÊNCIA TÉCNICA ADMINISTRATIVA Chefia: Nilta Miglioli Secretária: Regina Pavão; Sueli Dias Apoio: Júlio J. Agostinho Contabilidade: Francisco I. Ribeiro Filho; Silvio Corado; Eugênia Vilhena Almoxarifado e Patrimônio: Lucio Benedito da Silva; Marcos Gomes Compras: Nair Araújo; Waldireny F. Medeiros Pessoal: Marcelo Ludovici; Nilza Araújo Protocolo, Expediente e Arquivo: Cira Pedra; Maria dos Remédios do Nascimento; Maria Sales; Simone Gomes Tesouraria: Rosineide de Assis Copa: Regina de Lima Frosino | 495 Loja: Liduína do Carmo Apoio: Luciana de Deus Manutenção: André Tomaz; Luiz Antonio Ayres; Ricardo Caetano Transportes: José Eduardo da Silva; Anderson Stevanin Vigilância Chefia: Marcos de Oliveira Vigias: Acácio da Cruz; Affonso Pinheiro; Alcides da Silva; Antoniel da Silva; Antonio C. de Almeida; Antonio Dias; Antonio Marques; Carlos da Silva; Clóvis Bomfim; Custódia Teixeira; Edson Martins; Elza Alves; Emílio Menezes; Geraldo Ferreira; José de Campos; Laércio Barbosa; Luis C. de Oliveira; Luiz A. Macedo; Marcos Prado; Marcos Aurélio de Montagner; Raimundo de Souza; Renato Ferreira; Renato Firmino; Vicente Pereira; Vitor Paulino IMPRENSA E DIVULGAÇÃO Jornalista: Sergio Miranda Equipe: Beatriz Berto; Carla Carmo SEÇÃO TÉCNICA DE INFORMÁTICA Chefia: Teodoro Mendes Neto Equipe: Roseli Guimarães; Marilda Giafarov Audiovisual: Maurício da Silva SERVIÇO ACADÊMICO Analista Acadêmico: Águida F. V. Mantegna Técnico Acadêmico: Paulo C. L. Marquezini Técnico Acadêmico (PGEHA): Joana D´Arc Ramos S. Figueiredo PROJETOS ESPECIAIS E PRODUÇÃO DE EXPOSIÇÕES Chefia: Ana Maria Farinha Produtoras Executivas: Alecsandra M. Oliveira; Beatriz Cavalcanti; Claudia Assir Editora de Arte, Projeto Gráfico e Expográfico: Elaine Maziero Editoria Eletrônica: Roseli Guimarães 496 | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERUNIDADES EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE – PGEHA USP ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES – EACH USP Diretora: Maria Cristina Motta de Toledo Vice-Diretora: Neli Aparecida de Mello Théry ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES – ECA USP Diretora: Margarida Maria Krohling Kunsch Vice-Diretor: Eduardo Henrique Soares Monteiro FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO – FAU USP Diretor: Marcelo de Andrade Romero Vice-Diretora: Maria Cristina da Silva Leme FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS – FFLCH USP Diretor: Sérgio França Adorno de Abreu Vice-Diretor: João Roberto Gomes de Faria MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA – MAC USP Diretor: Hugo Segawa Vice-Diretora: Katia Canton COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO – PGEHA USP Membros Docentes: Carmen S. G. Aranha, Denise Dias de Barros, Helouise Lima Costa, Lisbeth Rebollo Gonçalves, Artur Matuck Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte Rua da Praça do Relógio, 160 – Anexo – Sala 01 CEP 05508-050 – Cidade Universitária – São Paulo / SP Tel.: (11) 3091.3327 [email protected] – www.usp.br/pgeha