A prova ao lado - Travessa da Ermida
Transcrição
A prova ao lado - Travessa da Ermida
ID: 45075173 01-11-2012 Tiragem: 3000 Pág: 68 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 22,91 x 26,39 cm² Âmbito: Lazer Corte: 1 de 4 A prova ao lado TEXTO OSCAR MASCARENHAS FOTOS MIGUEL SILVA S e três homens ali caminharem lado a lado, dois deles estarão a roçar-se pelas paredes. Automóvel que tente entrar já não deverá sair. Tão estreita é a Travessa do Marta Pinto. Começa mesmo ao lado da Adega de Belém e no fim cheira à canela da Antiga Fábrica dos Pastéis, emblema do bairro. Se os convivas daquela noite não se apresentassem despreocupados e prazenteiros, conversando em voz alta na rua enquanto esperavam para entrar, dir-se-ia que, na escuridão, seriam temíveis conspiradores tramando um golpe. Aliás, duzentos e cinquenta anos antes, por ali perto foram chacinados os Távoras, o duque de Aveiro e respectivos criados – pelo que a apertada travessa cumpre o cenário. Apesar da sua estreitura, couberam muitos nomes nesta travessa da freguesia de Santa Maria de Belém. Começou por ser Travessa da Mercearia, por ali estar a Mercearia de Cima, instituída pela rainha D. Catarina, viúva de D. João III. Passou a Travessa da Horta e também foi conhecida como a Travessa do Padre José da Silva. Após edificação da Ermida de Nossa Senhora da Conceição, começou a ser identificada como a Travessa da Ermida. Posteriormente, entre 1858 a 1899 recebeu o nome de Mata Pintos, alcunha de um tal João da Costa, que ali morava, e finalmente fixou-se como Travessa do Marta Pinto, provavelmente por lá ter vivido um músico chamado Valentim Marta Pinto. A ser verdade, estaremos em presença de uma patusca «descorruptela», de Mata Pintos para Marta Pinto… Travessa da Ermida é, no entanto, o nome por que é mais conhecida e ali se implantou o Projecto de arte moderna, joalharia, gastronomia e vinhos de que damos conta noutras páginas desta edição. Naquela noite, confluíram o Projecto, a Casa Havaneza, jornalistas e alguns eméritos apreciadores de charuto. De flûte de espumante 3D rosé de Filipa Pato na mão, debicando canapés de patê de farinheira e pimentos padrón, os convidados tiveram a oportunidade de observar a arte de torcedora da cubana Cristina Sanit, sendo, no final, prendados, cada qual com un puro hecho a mano. Esta gentileza haveria de ter efeitos no desvio de rota daquele encontro. Já sentados, em mesa corrida a ocupar toda a dimensão daquela sala de jantar, provou-se mozzarela com gelado de manjericão, onde um polvilho de trufa teve o efeito explosivo de abrir o apetite. (Isso e a relativa demora na «abertura das hostilidades».) O típico perfume de líchias do branco alsaciano Gewürztraminer, mas produzido nas encos- tas do Douro pela Quinta do Cidrô, acompanhou a entrada, uns gostaram, outros não. Por mim, fiz uma “descoberta” de que vos darei conta no fim. O bacalhau com broa, prato forte da noite, não recebeu aclamações nem exultações – comeu-se. Melhores encómios colheu o tinto Vertente 2009, da Quinta de Nápoles, no Douro, de vinhas com cerca de vinte anos do Vale do Ledo e vinhas velhas próximas do Pinhão. Complexo e robusto, está pronto a beber, mas pareceu-me que muito ganhará se envelhecer. Esperemos por ele, se a ânsia não for demasiada. A sobremesa de pudim do Abade de Priscos vinha coroada com uma formidável gentileza do advogado madeirense Adelino Sousa: um Madeira Boal – de 1964! A minha falta de erudição vínica começou a latejar: tremi de vergonha por não saber dizer, nem para mim próprio, nenhuma das palavras que envolvem de amor e espanto uma tal bebida de deuses. Só pude lançar olhares de agradecimento ao ofertante e dizer para comigo: «Deve ser muito boa pessoa». E é o que direi sempre de quem me oferecer um pingo de Boal, que nem precisa de ter a veterania de 48 anos! O meio-doce do Madeira Boal recomenda-o para acompanhar tabaco de cachimbo ou de charutos, que chegaram naquele mo- ID: 45075173 01-11-2012 Tiragem: 3000 Pág: 69 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 22,74 x 26,04 cm² Âmbito: Lazer Corte: 2 de 4 Cenas, de uma noite de fumo, em Belém, com desfruto do Punch Descobridores, harmonizar com um Madeira Boal 1964 mento, Punch Descobridores, a juntarem-se ao que já havíamos recolhido das mãos de Cristina. Mas eu não fui capaz de rebaixar o meu Madeira Boal 1964 à condição de acólito, seja do que for. Da mesa fiz altar e fui erguendo o cálice, com devoção, à divindade que se candidatasse, desde que me deixasse a sós com aquelas gotas que se me iam fugindo para dentro. Só depois me entreguei ao charuto. Depois de uma breve explicação de Pedro Rocha, da Casa Havaneza, que fez distribuir o charuto que deveria ali ser provado, fiquei com alguma bagagem de conhecimentos de terminologia charuteira: os cepos e as vitolas. A vitola de salida é a marca comercial, a etiqueta da caixa: tínhamos à nossa frente um Descobridor da fábrica Punch. As vitolas de galera são os tamanhos dos cepos – comprimento e calibre – e que variam imenso, a ponto de existirem mais de cem, em Cuba: de comprimento, os cepos oscilam entre os 10 centímetros e os 23,5; o calibre é dado por múltiplos de sessenta e quatro avos de polegada (2,54 centímetros), variando de 23 (9,1mm) até 57 (22,6mm). Intermináveis, as vitolas de galera: desde o fininho e longo Delicado (192mm, calibre 36) ao poderoso Cañonazo (150mm, calibre 52), desfilam Almuerzos, Cadetes, Británicas, Coronas, Edmundos, Panetelas… Nesta revista não podia deixar de fazer referência aos Epicures (110mm, calibre 35) que saem das fábricas Belinda e H. Upmann. O Descobridor que nos foi proporcionado é um Robusto (124mm, calibre 50). Quando Pedro Rocha deu liberdade de gosto para se preferir, num charuto, o seu primeiro, segundo ou terceiro terço, tronitruou a voz de João Eduardo Figueiredo, na ponta da mesa: «O terceiro terço é a glória de um charuto!» Era altura de me abeirar dos verdadeiros conhecedores que se acantonaram naquela extrema: lá estava o Eduardo Miragaia, compenetrado e grave; ali, deleitado, puxava fumaças, o meu amigo de longa data, João Costa Ferreira, sábio em tudo o que se mete a estudar: cavalos, arroz, história, vinhos, charutos; curioso e ignorante como eu, o Rogério Vidigal – éramos meninos entre doutores. Dizia a Ficha de Degustação que os avaliadores deveriam pronunciar-se sobre as Características Físicas do charuto – aspecto da capa, a construção e a cabeça do charuto – bem como as Características Organolépticas – tiro (fluência do fumo puxado), aroma e sabor – e ainda a combustibilidade, fortaleza e qualidade geral. Azar! Aqueles apreciadores não estavam a saborear o Punch, mas o puro feito por Cristina. A prova saiu ao lado… Ao contrário do que acontece com os provadores de vinho, não se saboreia mais do que uma qualidade de charuto de cada vez. Só os ouvi falar dos charutos trabalhados pela torcedora cubana, que foram muito elogiados pela qualidade e aroma das folhas escolhidas para a mistura, com elevada apreciação geral, apenas ensombrada pelo facto de não terem passado pela prensa, que lhes retiraria o toque um pouco mole nos dedos e uniformizar-lhe-ia o calibre. Quanto aos charutos Punch, não me deram as moradas dos provadores para os ir ver fumar recatada e regaladamente, pelo que não posso partilhar com os leitores as alegrias que os meus mestres terão sentido. De minha parte, e com muito atrevimento, apenas posso dizer o que para alguns soará a blasfémia: jamais misturarei o sabor de um Madeira Boal 1964 com o de um excelente charuto. Os dois têm o direito a permanecer na nossa boca até se transformar em memória. Mas já digo que não a uma «descoberta» que fiz: vai muito bem um cálice de Gewürztraminer frio com um charuto feito por uma cubana à nossa vista. O puro esbate o excessivo aroma floral do vinho – e este refresca a boca, muito em especial quando se chega ao último terço, «a glória do charuto». ID: 45075173 01-11-2012 68 Tiragem: 3000 Pág: 4 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 18,54 x 4,90 cm² Âmbito: Lazer Corte: 3 de 4 Veio uma enroladora de Cuba, o Projecto Travessa da Ermida organizou o necessário para uma noite aberta na gastronomia, com passagem para uma prova do Punch Descobridores. O avaliado devia casar-se com um Madeira Boal 1964, à sobremesa, trazido especialmente para o efeito. Foi bom, sim, senhores… ID: 45075173 01-11-2012 Tiragem: 3000 Pág: 1 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 7,04 x 8,21 cm² Âmbito: Lazer Corte: 4 de 4 FUMOS EM BELÉM, DE BARCO NO TEJO E AS NOVIDADES ID: 45075190 01-11-2012 Tiragem: 3000 Pág: 70 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 22,50 x 26,45 cm² Âmbito: Lazer Corte: 1 de 2 C ristina não quis jantar à mesa dos convivas. A dúvida sobre se o decidira por timidez ou desinteresse, ficou resolvida: a meio do convívio, apareceu, vinda da cozinha, onde havia jantado, e, discretamente, com uma sofisticada e minúscula máquina fotográfica e digital, captou um instantâneo, para mais tarde recordar e contar. Poucas falas, um pouco metida consigo própria, o rosto foi-se iluminando à medida que recebia elogios. Sentada diante de uma bancada de madeira que poderia servir de mesa de computador ou de uma antiga apanhadora de malhas, Cristina Sanit, de 49 anos, lança-se à tarefa de enrolar um charuto: torcer, diz ela, a sua profissão é torcedora, em Havana, sua cidade natal, na fábrica Cohiba, desde 1992. É filha de torcedores, toda a família vive em torno da indústria dos puros, não se queixa do que ganha, chega-lhe para viver. Fumou e gostou, mas uma traiçoeira asma há muito que lhe torceu as voltas e a interdita do prazer de saborear charutos, como o destino neorrealista do pedreiro que constrói casas e não tem uma. À sua frente, a torcedora tem diversas folhas de diferentes espécies que trouxe de Cuba, para a realização de uma série de demonstrações planeada para o mês de Outubro pela Casa Havaneza, promotora, com o apoio do Projecto Travessa da Ermida, do jantar de convívio e prova de charutos daquela noite. No mínimo cinco folhas de tabaco são necessárias para fazer um puro. Depois, consoante a «fortaleza» que se lhe queira dar, pode aumentar-se o número de folhas da O prazer que as mãos torceram tripa, que mais bem se deveria chamar o corpo do charuto. A tripa tem no mínimo três folhas, escolhidas para garantirem a «combustão», o «aroma» e a «fortaleza». Cristina escolhe três folhas de cores e espessuras diferentes, tira-lhes a nervura central e ali se percebe porque é de torcedora a sua profissão. As três folhas não são enroladas uma na outra: cada uma é torcida sobre si própria e justaposta com as outras duas (ou mais) que hão-de constituir a tripa. Cristina aperta-as umas contra as outras, obriga-as a amigarem-se e só depois as vai enrolar na capa, uma folha de tabaco mais suave e aveludada, cortada em paralelogramo e rodada de um vértice agudo ao outro. Uma gota de água tirada de um copinho pela ponta do indicador chega para colar a si própria a folha da capa. Uma das extremidades do charuto vai a uma guilhotina ali à mão. Com a lâmina curva com que trabalha, apara ligeiramente o lado guilhotinado. Volta a enrolar, desta vez com um cilindro metálico a acompanhar o movimento sobre a bancada. Vai avançar a última protagonista, a sobrecapa, uma folha com a textura da pele de uma crioula jovem. Antes de envolver o puro, Cristina corta, da folha de sobrecapa, uma tira em forma de quarto crescente que vai guardar para fazer o fecho do charuto no lado onde o fumador puxará as fumaças. Enrolada meticulosamente a sobrecapa, parte do pedaço em forma de crescente vai fechar o charuto. Num pedacinho que sobrou, Cristina prensa com um tubo metálico e, sobre o círculo que cortou, passa o dedo molhado e coloca o charuto na vertical, puxa a folha para cima como se despisse a base e lá em baixo o charuto ficou vedado. ID: 45075190 01-11-2012 Tiragem: 3000 Pág: 71 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 23,03 x 26,22 cm² Âmbito: Lazer Corte: 2 de 2 PARA A CONVERSA ENTRE FUMAÇAS Fumar um charuto pode ser um prazer individual e solitário, mas dizem os grandes praticantes desta arte que muito se ganha em deleite se for feito entre amigos à conversa. Cada qual lança, por entre as perfumadas nuvens de fumo, a sua opinião, um comentário, um pedaço de conversa desprendida. Pode falar-se de charutos ou de todas as outras coisas da vida. Mas se a conversa for sobre os puros e o prazer de os fumar, é possível que faltem as palavras inspiradas. Aqui fica uma breve cábula de ditos espirituosos que podem ajudar a dar requinte ao diálogo. Bebo muito. Quase não durmo e fumo um charuto atrás do outro. É por isto que estou 200 por cento em boas condições físicas e mentais. Winston Churchill, político e escritor inglês, Prémio Nobel de Literatura de 1953, 1874-1965. Devemos tratar o charuto como uma amante: pô-lo de parte antes que fiquemos fartos dele. Benjamin Disraeli, escritor e político britânico, 1804-1881. Felicidade? Um bom charuto, uma boa refeição, uma boa mulher – ou uma mulher malvada; depende de com quanta felicidade conseguimos lidar. George Burns, ator, comediante e escritor, 1896-1996. Fiz uma regra de nunca fumar mais do que um charuto de cada vez. Mark Twain (Samuel Langhorne Clemens), escritor e humorista norte-americano, 1835-1910. Fumo mesmo na cama. Imaginem o que é fumar um charuto na cama, lendo um livro. Ao lado da cama, há uma mesinha de charutos com um cinzeiro especial para charutos e a nossa mulher está a ler um livro sobre como salvar o ambiente. Raúl Juliá, actor porto-riquenho, 1940-1994. Há homens, aqui e ali, para quem toda a vida é como a hora depois do jantar com um charuto, calma, agradável, vazia, talvez avivada por alguma fábula de briga – antes de o final ser contado – mesmo que se dê o caso de ter um final. Joseph Conrad, escritor polaco-britânico, 1857-1924. O tabaco é a planta que transforma pensamentos em sonhos. Victor Hugo, escritor e poeta francês, 1802-1885. Não me peçam para descrever os encantos do devaneio ou êxtase contemplativo em que o fumo de um charuto nos mergulha. Jules (Leonard Sylvain Julien) Sandeau, escritor francês, 1811-1883. Se tivesse ali o instrumento, o charuto iria, ainda inacabado numa das extremidades, pousar junto de outros numa cama de madeira, à sua medida com outra igual por cima, para ser prensado. Ali seria mantido pelo menos meia hora. Cristina não trouxe prensa, pelo que passa ao momento final. A outra ponta do charuto é guilhotinada. El puro está listo. O charuto está pronto. Demorou cinco minutos a torcer. Do sabor dirão os entendidos. Da construção fala este leigo: ficou mole. O charuto é quase uma extensão do meu rosto. Este é um dos meus vícios, é vício confessável, exibido. Um bom charuto é um prazer quotidiano, mágica fumaça consoladora. Luís Câmara Cascudo, folclorista brasileiro, 1898-1986. O nosso país tem bastantes charutos bons a cinco cêntimos, mas o problema é que eles taxam quinze cêntimos por cada um. Will Rogers, comediante norte-americano, 1879-1935. Se nos esquecermos de uma deixa, tudo o que há a fazer é enfiar um charuto na boca e puxar umas fumaças até que nos lembremos do que nos tínhamos esquecido. Groucho Marx, comediante norte-americano, 1890-1977. Tenho 95 anos de idade e há 90 que não dispenso um puro charuto cubano. Compay Segundo (Maximino Repilado Muñoz), músico cubano, 1907-2003. ID: 45075807 01-11-2012 Tiragem: 3000 Pág: 72 País: Portugal Cores: Preto e Branco Period.: Bimestral Área: 23,01 x 27,87 cm² Âmbito: Lazer Corte: 1 de 5 Um dia, um epicurista e amante da cultura comprou uma ermida que, imagine-se, servia para fazer e acumular colchões… Não deu muitas voltas até a adaptar a local de exposições, sem lhe mexer nos lados arquitectónico e eclesiástico. A história continua com uma joalharia e uma enoteca que lhe dão graça e proveito. Ermida, enoteca e joalharia Oásis numa travessa de Belém 72 ID: 45075807 01-11-2012 Tiragem: 3000 Pág: 73 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 21,02 x 26,22 cm² Âmbito: Lazer Corte: 2 de 5 TEXTO CARVALHO SANTOS FOTOS JOÃO F. VILHENA E duardo Fernandes é um médico conceituado e, nessa qualidade, ponto final, não quer ir mais longe. Gosta de arte e de ver Lisboa na rua, e de lhe juntar componentes lúdicas e epicuristas. Assim, foi construindo um projecto, entre nós, inovador. Uma ermida (N.ª Sr.ª da Conceição) na base da pirâmide, mas completamente transformada em salão de exposições; um bar-restaurante (Enoteca de Belém); e uma preciosa oficina de joalharia. Enquanto percorremos (e desfrutamos) os três espaços e conversamos com os protagonistas, sempre visível, nada impositiva, a figura do autor do projecto tripartido, Eduardo Fernandes. Aqui e ali deixa uma dica, só tarde percebemos que comanda uma verdadeira equipa e que o Projecto Travessa da Ermida (www.travessadaermida.com) é uma realidade recente, mas actuante nas suas frentes viradas para o advir. Tudo em pequeno numa travessinha de 20 metros, «Travessa do Marta Pinto, a que nos julgamos com direito a mudar o nome em honra da ermida», admite o mentor. Este projecto de dinamização cultural «sustenta-se», acentua Eduardo Fernandes, deixando para trás das costas as dificuldades financeiras que se apresentam «numa programação que conta uma plêiade de nomes respeitados da arte contemporânea e também com artistas emergentes a quem reconhecemos valor». Enoteca e joalharia são componentes comerciais, sem deixar de ser lu uga garess ig gua u lm l en nte t lúdicos. lúd údic di os. lugares igualmente O gestor do Projecto da Travessa da Ermida faz fé na equipa de que dispõe, diz mesmo que todo o trabalho é conjunto. Habilitada em programação e gestão cultural a que junta formação em turismo e hotelaria, Fábia Fernandes opera com saber e bom gosto, passam por ela os passos que é necessário dar (e articular) na trave mestra – o expositor da ermida. «Os alicerces de uma casa não se vêem, mas estão lá; senão a casa vem abaixo», com isto quer Eduardo Fernandes significar que nada teria conseguido sem um grupo de amigos que «valorizam o projecto». Refere-se a Alexandra Corte-Real na joalharia, à coordenadora Fábia Fernandes e na enoteca aos chefes Ângelo Santos e Nélson Guerreiro, aos quais se junta o jovem cozinheiro Ricardo Gonçalves. Pelo caminho ora seguido deveríamos ter começado, mas eles estavam em reunião, só tarde abordamos formalmente Eduardo Fernandes. «Como tudo se foi combinando? Um pouco por acaso. A ermida pertencia a um fabricante de colchões, gostei tanto que a quis para mim! E não foi barata nada, ele sabia o que tinha e fez-se valer…». O comprador sabia para que a queria, daí que… «em vez de colchões, agora tem exposições». PRATA QUE BRILHA NAS MÃOS DE ALEXANDRA Não nos lembramos de esperar tanto num balcão de joalharia. Não era o caso de a artífice, Alexandra Corte-Real, se demorar no acabamento de qualquer peça e, longe disso, caso de falta de atenção dela. O caso é que joalheira e repórter da fotografia estavam mesmo atarefados na minúcia de anéis, brincos, peça por peça, mais e menos luz, ela a limpar na prata, o que quase em rigor não tinha sujidades, o João Vilhena a procurar ângulos e conjuntos a condizer. De modo que fomos perguntando, que peça era aquela, que peça era a outra… Na focagem estava um talismã, com sete animais - corvo, raposa, gato, borboleta, águia-real, dragão, morcego… Depois o galo da paixão, galo de Barcelos todo em corações. Brincos da colecção Linhas Paralelas desenhada por Eduardo Nery. Ou fossem «anéis irreverentes», botões de punho que têm associada uma mensagem que pode ser mostrada, «não apenas dita». São peças, diz a joalheira de autor, que nunca as tem em stock, «saem muito, mas não é qualquer homem que os usa». Já o leitor induziu que nos íamos inteirando da acção dos dois e que nos iam cedendo algum do seu tempo de trabalho, que era exaustivo. Licenciada em matemática em duas faculdades, Alexandra acabou por voltar aos gostos da infância, quando em criança, «desmontava e recriava as pulseiras, colares e anéis da mãe». Deu-se então à vocação de cursar a escola de joalheiros Contacto ID: 45075807 01-11-2012 Tiragem: 3000 Pág: 74 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 23,03 x 26,87 cm² Âmbito: Lazer Corte: 3 de 5 A joalheira Alexandra Corte-Real no trabalho Directo, passou a ser técnica e designer. Aí adquiriu conhecimentos e ferramentas para o percurso que a levou a exposições, por Lisboa, no Funchal, em Serralves, em Silves, em Manchester… Portanto, em várias mostras nacionais e internacionais. E hoje, trave mestra do Projecto Travessa da Ermida. A operadora de joalharia trabalha preferencialmente em prata, sem desprezo pelas gemas. Muitas vezes parte de trabalhos de artistas plásticos. «Gosto, sobretudo, de trabalhar em funções versáteis, por exemplo, um anel que possa ser usado como pendente.» VER PARA CRER Devemos notar que a ermida daquela travessa data de 1707 e que a sua valorização começou em 2008. Eduardo Fernandes casou com Alexandra, a joalharia era o gosto dela e, depois da formação em matemática, cursou esta especialidade. Foi conveniente encontrar espaços próximos, todos na mesma travessa, assim se ergueu também a Enoteca de Belém. Aquando da nossa visita, estava ainda patente, em segunda edição, a exposição do artista plástico André Graça Gomes, que integrara o Projecto Vicente, Rever para Crer. A coordenadora Fábia Fernandes, ajuda-nos a perceber melhor o espaço expositivo, de entrada gratuita, arte contemporânea com intervenção de designers na fachada e na própria rua. «É a âncora de todo o projecto de dinamização cultural que se auto sustenta na junção com as unidades comerciais». Estamos, finalmente, portas adentro da casa que há 300 anos foi dedicada a uma santa. Olhamos: Chão despido, uma pia baptismal, um púlpito, um arco, azulejos da época. A arte estava nas paredes, quadros e desenhos gráficos, sempre preto-e-branco. Frases filosofais são boa companhia e estão difundidas em profusão. Escolhemos uma, por actual: «Agora o som do leste já me acode, fazendo-se sentir; eis-me decidido lá onde muito pranto me sacode.» Convidamos Fábia à opção dela e cita: «És sol que para vista perturbada e de assim contentar-me quando solve, duvidar e saber tanto me agrada…» Outra exposição se seguirá à que honra o padroeiro de Lisboa, se pudermos lá estaremos para «ver e crer». E aprecia os materiais alternativos – titânio anodizado, pela sua resistência e leveza, que permitem maiores dimensões, e assim, «ganham em diferenciação de expressões». Madeiras nobres, como pau-violeta, pau-rosa, ébano ou buxo entram nas suas composições e tem feito trabalhos com renda de ID: 45075807 01-11-2012 bilros e bordados da Madeira, deste modo, a valorizar «aspectos tradicionais em conjugação com a modernidade». Do seu agrado, para obter cor, a anodização do titânio, e as texturas com fundição em osso de choco (do peixe) com revenidos e reticulares. Ferramentas de trabalho… «Isso é um mundo. Posso falar do laminador, que dá à chapa a espessura pretendida, das fresas, Tiragem: 3000 Pág: 75 País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 21,50 x 26,68 cm² Âmbito: Lazer Corte: 4 de 5 Nacional e Alfrocheiro, e pediram a Rui Reguinga para ser o seu enólogo. Antes de nos servirem um pouco daquele Casa da Carvalha, que não está à venda em nenhum sítio comercial, já Eduardo Fernandes lhe elogiava o seu «perfume fantástico». Um vinho que harmonizou bem com o tártaro de salmão (alcaparras, tomate, ovas, algas vermelhas e calda de limão cara- PATO MUDO NO MURO DO JARDIM BOTÂNICO TROPICAL Nelson Guerreiro, Ângelo Santos e Ricardo Gonçalves, o trio maravilha da Enoteca limas, engenhos de furar, dos discos de acabamento. E do motor de polir, dos embutidores e embutideiras, dos banhos de aço. E acabo com o inestimável maçarico.» Ainda jovem, Alexandra Corte-Real é joalheira de autor desde 2002, está no projecto há dois anos. NA ENOTECA UM VINHO RÚSTICO DO DÃO Finalmente na Enoteca, o ponto de encontro. Nélson Guerreiro é o mais aberto numa primeira impressão. «Está a ver todos estes vinhos em exposição? Todos a 20 euros a garrafa, a quatro o copo». Estão distantes, não é fácil ver os rótulos. Dá-nos uns binóculos, «é a nossa primeira oferta ao cliente». Esta para nós foi novidade, olhar os vinhos com a ajuda de lentes… Entraram bem, Ângelo Santos ri com gosto. Logo Nélson assume a paixão deles pelo vinho. «Não temos vinhas e queríamos criar um vinho nosso». Numa qualquer parceria descobriram a Casa da Carvalha, no Dão, em São Martinho da Cortiça, produtor Tomaz Andrade Rocha. Prossegue: «Um vinho rústico com toda a plêiade de identidade do Dão.» Escolheram as uvas, Touriga melizada) e também se deu bem com o pudim Abade de Priscos (valorizado pelo crocante de caramelo e redução de vinho do Porto). O jovem cozinheiro Ricardo Gonçalves é a última aquisição da equipa. Depois de ter trabalhado, entre outros, nos restaurantes Bica do Sapato e Vírgula, está a gostar do ambiente e a satisfazer a clientela com os seus pratos, «baseados nos sabores do tradicional com apresentação moderna». «Estamos abertos para jantar depois da uma da tarde», agora é a vez de colher uma frase do experiente chefe de sala Ângelo Santos. Quando pensamos que Nélson era a alma da casa, ele próprio nos tira do engano. «Posso dizer-lhe que ele (Ângelo) é o Messi e o Cristiano da cozinha portuguesa, tudo o que aprendi foi com ele». Ângelo está por gosto naquele espaço onde reina uma certa intimidade. «Temos 16 lugares e não queremos mais!». Aparentemente não gostou da confidência do colega, em especial quando este falou do seu passado, no Gambrinus e ao lado de Augusto Gemelli. Em três anos a Enoteca de Belém já conquistou prémios internacionais. «Valem o que valem», mas são a prova de que não passamos despercebidos», remata Nélson Guerreiro. O painel de azulejos chamado Pato Mudo, instalado no muro do Jardim BotânicoTropical, mesmo no topo da Travessa do Marta Pinto, surgiu de uma intenção do Projecto da Ermida: produzir uma peça artística na sequência do objectivo de promoção cultural, artística e gastronómica que enforma o todo. É como que uma via de contacto entre a história de Belém e de Lisboa, mas também de acesso a novas vivências, como espaço de animação de encontros e passagens. Para este efeito foi convidado o Estúdio Pedrita que apresentou esta proposta que envolve ambos os espaços e os liga entre si. A obra pública Pato Mudo é uma iniciativa inédita em Portugal que alia a tradição do azulejo ao design nacional contemporâneo. No mesmo âmbito, a oficina de joalharia Alexandra Corte-Real expõe e comercializa originais peças entre o tradicional e a modernidade. E a Enoteca de Belém é local de encontro de pessoas e sabores que apostam na experimentação, onde se pretende divulgar a cultura vinícola e gastronómica nacional. A Ermida é o núcleo de actividades culturais propriamente ditas. Em quatro anos, somou cerca de 30 exposições, incluindo a de André Graça Gomes, Vicente, curadoria Mário Caeiro, em segunda edição. Em simultâneo com Cauting Seeds foi lançado o livro Duas Praças, Um Jardim, de Gabriela Albergaria. Ainda no ano corrente, Bella Silva e Bennoit van Innis protagonizaram a apresentação de Norte-Sul; e esteve patente a escultura-instalação, de Gonçalo Barreiro, Woodpecker. Em 2011 registaram-se três eventos – Almack’s, produção de catálogo de Ana Fonseca; e as exposições de desenho, fotografia e produção de catálogo de Vasco Araújo (Família) e de escultura, desenho e fotografia, de Ângela Ferreira, (Paradys). Acontecimento importante na vivência deste projecto, a intervenção na fachada da Ermida (Primavera), com Andorinhas Rafael Bordalo Pinheiro, já que a produção de 300 postais alusivos destas andorinhas viajaram até à Feira de Turismo de Madrid e poisaram nas montras de Natal dos Restauradores (2009). Não menos significativa foi a exposição de jóias de autor de Alexandra Corte–Real. Três delas expostas no Museu de Serralves e mais tarde transformadas em móveis nas oficinas da FRESS, para ulterior exposição no Museu de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo, já em 2010. ID: 45075807 01-11-2012 68 Tiragem: 3000 Pág: País: Portugal Cores: Cor Period.: Bimestral Área: 18,66 x 4,66 cm² Âmbito: Lazer Corte: 5 de 5 Veio uma enroladora de Cuba, o Projecto Travessa da Ermida organizou o necessário para uma noite aberta na gastronomia, com passagem para uma prova do Punch Descobridores. O avaliado devia casar-se com um Madeira Boal 1964, à sobremesa, trazido especialmente para o efeito. Foi bom, sim, senhores…