A prova ao lado - Travessa da Ermida

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A prova ao lado - Travessa da Ermida
ID: 45075173
01-11-2012
Tiragem: 3000
Pág: 68
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 22,91 x 26,39 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 1 de 4
A prova ao lado
TEXTO OSCAR MASCARENHAS FOTOS MIGUEL SILVA
S
e três homens ali caminharem lado a
lado, dois deles estarão a roçar-se pelas
paredes. Automóvel que tente entrar já
não deverá sair. Tão estreita é a Travessa
do Marta Pinto. Começa mesmo ao lado
da Adega de Belém e no fim cheira à canela
da Antiga Fábrica dos Pastéis, emblema do
bairro.
Se os convivas daquela noite não se apresentassem despreocupados e prazenteiros,
conversando em voz alta na rua enquanto
esperavam para entrar, dir-se-ia que, na escuridão, seriam temíveis conspiradores
tramando um golpe. Aliás, duzentos e cinquenta anos antes, por ali perto foram chacinados os Távoras, o duque de Aveiro e
respectivos criados – pelo que a apertada travessa cumpre o cenário.
Apesar da sua estreitura, couberam muitos
nomes nesta travessa da freguesia de Santa
Maria de Belém. Começou por ser Travessa
da Mercearia, por ali estar a Mercearia de
Cima, instituída pela rainha D. Catarina,
viúva de D. João III. Passou a Travessa da
Horta e também foi conhecida como a
Travessa do Padre José da Silva. Após edificação da Ermida de Nossa Senhora da
Conceição, começou a ser identificada como
a Travessa da Ermida. Posteriormente, entre
1858 a 1899 recebeu o nome de Mata Pintos,
alcunha de um tal João da Costa, que ali morava, e finalmente fixou-se como Travessa
do Marta Pinto, provavelmente por lá ter vivido um músico chamado Valentim Marta
Pinto. A ser verdade, estaremos em presença
de uma patusca «descorruptela», de Mata
Pintos para Marta Pinto…
Travessa da Ermida é, no entanto, o nome
por que é mais conhecida e ali se implantou
o Projecto de arte moderna, joalharia, gastronomia e vinhos de que damos conta noutras
páginas desta edição. Naquela noite, confluíram o Projecto, a Casa Havaneza, jornalistas
e alguns eméritos apreciadores de charuto.
De flûte de espumante 3D rosé de Filipa
Pato na mão, debicando canapés de patê de
farinheira e pimentos padrón, os convidados
tiveram a oportunidade de observar a arte de
torcedora da cubana Cristina Sanit, sendo,
no final, prendados, cada qual com un puro
hecho a mano. Esta gentileza haveria de ter
efeitos no desvio de rota daquele encontro.
Já sentados, em mesa corrida a ocupar
toda a dimensão daquela sala de jantar, provou-se mozzarela com gelado de manjericão,
onde um polvilho de trufa teve o efeito explosivo de abrir o apetite. (Isso e a relativa
demora na «abertura das hostilidades».) O
típico perfume de líchias do branco alsaciano
Gewürztraminer, mas produzido nas encos-
tas do Douro pela Quinta do Cidrô, acompanhou a entrada, uns gostaram, outros não.
Por mim, fiz uma “descoberta” de que vos
darei conta no fim.
O bacalhau com broa, prato forte da noite,
não recebeu aclamações nem exultações
– comeu-se. Melhores encómios colheu o
tinto Vertente 2009, da Quinta de Nápoles,
no Douro, de vinhas com cerca de vinte anos
do Vale do Ledo e vinhas velhas próximas do
Pinhão. Complexo e robusto, está pronto a
beber, mas pareceu-me que muito ganhará
se envelhecer. Esperemos por ele, se a ânsia
não for demasiada.
A sobremesa de pudim do Abade de Priscos
vinha coroada com uma formidável gentileza
do advogado madeirense Adelino Sousa: um
Madeira Boal – de 1964! A minha falta de erudição vínica começou a latejar: tremi de vergonha por não saber dizer, nem para mim
próprio, nenhuma das palavras que envolvem
de amor e espanto uma tal bebida de deuses.
Só pude lançar olhares de agradecimento
ao ofertante e dizer para comigo: «Deve ser
muito boa pessoa». E é o que direi sempre
de quem me oferecer um pingo de Boal, que
nem precisa de ter a veterania de 48 anos!
O meio-doce do Madeira Boal recomenda-o para acompanhar tabaco de cachimbo ou
de charutos, que chegaram naquele mo-
ID: 45075173
01-11-2012
Tiragem: 3000
Pág: 69
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 22,74 x 26,04 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 2 de 4
Cenas, de uma noite de fumo, em Belém, com desfruto do Punch Descobridores, harmonizar com um Madeira Boal 1964
mento, Punch Descobridores, a juntarem-se ao que já havíamos recolhido das mãos
de Cristina. Mas eu não fui capaz de rebaixar o meu Madeira Boal 1964 à condição de
acólito, seja do que for. Da mesa fiz altar e fui
erguendo o cálice, com devoção, à divindade
que se candidatasse, desde que me deixasse a
sós com aquelas gotas que se me iam fugindo
para dentro.
Só depois me entreguei ao charuto. Depois
de uma breve explicação de Pedro Rocha, da
Casa Havaneza, que fez distribuir o charuto
que deveria ali ser provado, fiquei com alguma bagagem de conhecimentos de terminologia charuteira: os cepos e as vitolas.
A vitola de salida é a marca comercial, a etiqueta da caixa: tínhamos à nossa frente um
Descobridor da fábrica Punch. As vitolas de
galera são os tamanhos dos cepos – comprimento e calibre – e que variam imenso, a
ponto de existirem mais de cem, em Cuba:
de comprimento, os cepos oscilam entre os
10 centímetros e os 23,5; o calibre é dado
por múltiplos de sessenta e quatro avos de
polegada (2,54 centímetros), variando de 23
(9,1mm) até 57 (22,6mm).
Intermináveis, as vitolas de galera: desde
o fininho e longo Delicado (192mm, calibre
36) ao poderoso Cañonazo (150mm, calibre
52), desfilam Almuerzos, Cadetes, Británicas,
Coronas, Edmundos, Panetelas… Nesta revista não podia deixar de fazer referência aos
Epicures (110mm, calibre 35) que saem das
fábricas Belinda e H. Upmann.
O Descobridor que nos foi proporcionado
é um Robusto (124mm, calibre 50). Quando
Pedro Rocha deu liberdade de gosto para se
preferir, num charuto, o seu primeiro, segundo ou terceiro terço, tronitruou a voz de
João Eduardo Figueiredo, na ponta da mesa:
«O terceiro terço é a glória de um charuto!»
Era altura de me abeirar dos verdadeiros conhecedores que se acantonaram naquela
extrema: lá estava o Eduardo Miragaia, compenetrado e grave; ali, deleitado, puxava fumaças, o meu amigo de longa data, João
Costa Ferreira, sábio em tudo o que se mete a
estudar: cavalos, arroz, história, vinhos, charutos; curioso e ignorante como eu, o Rogério
Vidigal – éramos meninos entre doutores.
Dizia a Ficha de Degustação que os avaliadores deveriam pronunciar-se sobre as
Características Físicas do charuto – aspecto
da capa, a construção e a cabeça do charuto –
bem como as Características Organolépticas
– tiro (fluência do fumo puxado), aroma e
sabor – e ainda a combustibilidade, fortaleza
e qualidade geral.
Azar! Aqueles apreciadores não estavam
a saborear o Punch, mas o puro feito por
Cristina. A prova saiu ao lado… Ao contrário do que acontece com os provadores
de vinho, não se saboreia mais do que uma
qualidade de charuto de cada vez. Só os ouvi
falar dos charutos trabalhados pela torcedora
cubana, que foram muito elogiados pela qualidade e aroma das folhas escolhidas para a
mistura, com elevada apreciação geral, apenas ensombrada pelo facto de não terem passado pela prensa, que lhes retiraria o toque
um pouco mole nos dedos e uniformizar-lhe-ia o calibre.
Quanto aos charutos Punch, não me
deram as moradas dos provadores para os
ir ver fumar recatada e regaladamente, pelo
que não posso partilhar com os leitores as
alegrias que os meus mestres terão sentido.
De minha parte, e com muito atrevimento,
apenas posso dizer o que para alguns soará a
blasfémia: jamais misturarei o sabor de um
Madeira Boal 1964 com o de um excelente
charuto. Os dois têm o direito a permanecer na nossa boca até se transformar em
memória. Mas já digo que não a uma «descoberta» que fiz: vai muito bem um cálice de
Gewürztraminer frio com um charuto feito
por uma cubana à nossa vista. O puro esbate
o excessivo aroma floral do vinho – e este refresca a boca, muito em especial quando se
chega ao último terço, «a glória do charuto».
ID: 45075173
01-11-2012
68
Tiragem: 3000
Pág: 4
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 18,54 x 4,90 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 3 de 4
Veio uma enroladora de Cuba, o Projecto Travessa da Ermida
organizou o necessário para uma noite aberta na gastronomia, com
passagem para uma prova do Punch Descobridores. O avaliado
devia casar-se com um Madeira Boal 1964, à sobremesa, trazido
especialmente para o efeito. Foi bom, sim, senhores…
ID: 45075173
01-11-2012
Tiragem: 3000
Pág: 1
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 7,04 x 8,21 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 4 de 4
FUMOS EM BELÉM,
DE BARCO NO TEJO
E AS NOVIDADES
ID: 45075190
01-11-2012
Tiragem: 3000
Pág: 70
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 22,50 x 26,45 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 1 de 2
C
ristina não quis jantar à mesa dos convivas. A dúvida sobre se o decidira por timidez ou desinteresse, ficou resolvida: a meio
do convívio, apareceu, vinda da cozinha,
onde havia jantado, e, discretamente, com
uma sofisticada e minúscula máquina fotográfica e digital, captou um instantâneo, para
mais tarde recordar e contar. Poucas falas, um
pouco metida consigo própria, o rosto foi-se
iluminando à medida que recebia elogios.
Sentada diante de uma bancada de madeira que poderia servir de mesa de computador ou de uma antiga apanhadora de
malhas, Cristina Sanit, de 49 anos, lança-se à
tarefa de enrolar um charuto: torcer, diz ela,
a sua profissão é torcedora, em Havana, sua
cidade natal, na fábrica Cohiba, desde 1992.
É filha de torcedores, toda a família vive em
torno da indústria dos puros, não se queixa
do que ganha, chega-lhe para viver. Fumou
e gostou, mas uma traiçoeira asma há muito
que lhe torceu as voltas e a interdita do prazer
de saborear charutos, como o destino neorrealista do pedreiro que constrói casas e não
tem uma.
À sua frente, a torcedora tem diversas folhas de diferentes espécies que trouxe de
Cuba, para a realização de uma série de
demonstrações planeada para o mês de
Outubro pela Casa Havaneza, promotora,
com o apoio do Projecto Travessa da Ermida,
do jantar de convívio e prova de charutos daquela noite.
No mínimo cinco folhas de tabaco são necessárias para fazer um puro. Depois, consoante a «fortaleza» que se lhe queira dar,
pode aumentar-se o número de folhas da
O prazer que as mãos torceram
tripa, que mais bem se deveria chamar o
corpo do charuto. A tripa tem no mínimo três
folhas, escolhidas para garantirem a «combustão», o «aroma» e a «fortaleza».
Cristina escolhe três folhas de cores e espessuras diferentes, tira-lhes a nervura central e ali se percebe porque é de torcedora a
sua profissão. As três folhas não são enroladas
uma na outra: cada uma é torcida sobre si própria e justaposta com as outras duas (ou mais)
que hão-de constituir a tripa. Cristina aperta-as umas contra as outras, obriga-as a amigarem-se e só depois as vai enrolar na capa, uma
folha de tabaco mais suave e aveludada, cortada em paralelogramo e rodada de um vértice agudo ao outro. Uma gota de água tirada
de um copinho pela ponta do indicador chega
para colar a si própria a folha da capa.
Uma das extremidades do charuto vai
a uma guilhotina ali à mão. Com a lâmina
curva com que trabalha, apara ligeiramente o
lado guilhotinado. Volta a enrolar, desta vez
com um cilindro metálico a acompanhar o
movimento sobre a bancada. Vai avançar a
última protagonista, a sobrecapa, uma folha
com a textura da pele de uma crioula jovem.
Antes de envolver o puro, Cristina corta, da
folha de sobrecapa, uma tira em forma de
quarto crescente que vai guardar para fazer
o fecho do charuto no lado onde o fumador
puxará as fumaças.
Enrolada meticulosamente a sobrecapa,
parte do pedaço em forma de crescente vai
fechar o charuto. Num pedacinho que sobrou, Cristina prensa com um tubo metálico
e, sobre o círculo que cortou, passa o dedo
molhado e coloca o charuto na vertical, puxa
a folha para cima como se despisse a base e lá
em baixo o charuto ficou vedado.
ID: 45075190
01-11-2012
Tiragem: 3000
Pág: 71
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 23,03 x 26,22 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 2 de 2
PARA A CONVERSA ENTRE FUMAÇAS
Fumar um charuto pode ser um prazer individual e solitário, mas dizem os grandes
praticantes desta arte que muito se ganha em deleite se for feito entre amigos à
conversa. Cada qual lança, por entre as perfumadas nuvens de fumo, a sua opinião,
um comentário, um pedaço de conversa desprendida.
Pode falar-se de charutos ou de todas as outras coisas da vida. Mas se a conversa
for sobre os puros e o prazer de os fumar, é possível que faltem as palavras inspiradas.
Aqui fica uma breve cábula de ditos espirituosos que podem ajudar
a dar requinte ao diálogo.
Bebo muito. Quase não durmo e fumo um charuto atrás do outro. É por isto que estou
200 por cento em boas condições físicas e mentais.
Winston Churchill, político e escritor inglês, Prémio Nobel de Literatura
de 1953, 1874-1965.
Devemos tratar o charuto como uma amante: pô-lo de parte antes que fiquemos
fartos dele.
Benjamin Disraeli, escritor e político britânico, 1804-1881.
Felicidade? Um bom charuto, uma boa refeição, uma boa mulher – ou uma mulher
malvada; depende de com quanta felicidade conseguimos lidar.
George Burns, ator, comediante e escritor, 1896-1996.
Fiz uma regra de nunca fumar mais do que um charuto de cada vez.
Mark Twain (Samuel Langhorne Clemens), escritor e humorista
norte-americano, 1835-1910.
Fumo mesmo na cama. Imaginem o que é fumar um charuto na cama, lendo um livro.
Ao lado da cama, há uma mesinha de charutos com um cinzeiro especial para charutos
e a nossa mulher está a ler um livro sobre como salvar o ambiente.
Raúl Juliá, actor porto-riquenho, 1940-1994.
Há homens, aqui e ali, para quem toda a vida é como a hora depois do jantar com um
charuto, calma, agradável, vazia, talvez avivada por alguma fábula de briga – antes
de o final ser contado – mesmo que se dê o caso de ter um final.
Joseph Conrad, escritor polaco-britânico, 1857-1924.
O tabaco é a planta que transforma pensamentos em sonhos.
Victor Hugo, escritor e poeta francês, 1802-1885.
Não me peçam para descrever os encantos do devaneio ou êxtase contemplativo em
que o fumo de um charuto nos mergulha.
Jules (Leonard Sylvain Julien) Sandeau, escritor francês, 1811-1883.
Se tivesse ali o instrumento, o charuto iria,
ainda inacabado numa das extremidades,
pousar junto de outros numa cama de madeira, à sua medida com outra igual por cima,
para ser prensado. Ali seria mantido pelo
menos meia hora.
Cristina não trouxe prensa, pelo que
passa ao momento final. A outra ponta do
charuto é guilhotinada. El puro está listo.
O charuto está pronto. Demorou cinco
minutos a torcer. Do sabor dirão os entendidos. Da construção fala este leigo: ficou
mole.
O charuto é quase uma extensão do meu rosto. Este é um dos meus vícios, é vício
confessável, exibido. Um bom charuto é um prazer quotidiano, mágica fumaça
consoladora.
Luís Câmara Cascudo, folclorista brasileiro, 1898-1986.
O nosso país tem bastantes charutos bons a cinco cêntimos, mas o problema é que eles
taxam quinze cêntimos por cada um.
Will Rogers, comediante norte-americano, 1879-1935.
Se nos esquecermos de uma deixa, tudo o que há a fazer é enfiar um charuto na boca
e puxar umas fumaças até que nos lembremos do que nos tínhamos esquecido.
Groucho Marx, comediante norte-americano, 1890-1977.
Tenho 95 anos de idade e há 90 que não dispenso um puro charuto cubano.
Compay Segundo (Maximino Repilado Muñoz), músico cubano, 1907-2003.
ID: 45075807
01-11-2012
Tiragem: 3000
Pág: 72
País: Portugal
Cores: Preto e Branco
Period.: Bimestral
Área: 23,01 x 27,87 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 1 de 5
Um dia, um epicurista e amante da cultura
comprou uma ermida que, imagine-se,
servia para fazer e acumular colchões…
Não deu muitas voltas até a adaptar a local
de exposições, sem lhe mexer nos lados
arquitectónico e eclesiástico. A história
continua com uma joalharia e uma enoteca
que lhe dão graça e proveito.
Ermida, enoteca e joalharia
Oásis numa travessa
de Belém
72
ID: 45075807
01-11-2012
Tiragem: 3000
Pág: 73
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 21,02 x 26,22 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 2 de 5
TEXTO CARVALHO SANTOS
FOTOS JOÃO F. VILHENA
E
duardo Fernandes é um médico conceituado e, nessa qualidade, ponto final,
não quer ir mais longe. Gosta de arte e de ver
Lisboa na rua, e de lhe juntar componentes
lúdicas e epicuristas. Assim, foi construindo
um projecto, entre nós, inovador. Uma ermida (N.ª Sr.ª da Conceição) na base da pirâmide, mas completamente transformada
em salão de exposições; um bar-restaurante
(Enoteca de Belém); e uma preciosa oficina de
joalharia.
Enquanto percorremos (e desfrutamos) os
três espaços e conversamos com os protagonistas, sempre visível, nada impositiva, a figura do autor do projecto tripartido, Eduardo
Fernandes. Aqui e ali deixa uma dica, só tarde
percebemos que comanda uma verdadeira
equipa e que o Projecto Travessa da Ermida
(www.travessadaermida.com) é uma realidade recente, mas actuante nas suas frentes viradas para o advir. Tudo em pequeno
numa travessinha de 20 metros, «Travessa
do Marta Pinto, a que nos julgamos com direito a mudar o nome em honra da ermida»,
admite o mentor.
Este projecto de dinamização cultural
«sustenta-se», acentua Eduardo Fernandes,
deixando para trás das costas as dificuldades
financeiras que se apresentam «numa programação que conta uma plêiade de nomes
respeitados da arte contemporânea e também com artistas emergentes a quem reconhecemos valor». Enoteca e joalharia são
componentes comerciais, sem deixar de ser
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di os.
lugares
igualmente
O gestor do Projecto da Travessa da
Ermida faz fé na equipa de que dispõe, diz
mesmo que todo o trabalho é conjunto.
Habilitada em programação e gestão cultural a que junta formação em turismo e hotelaria, Fábia Fernandes opera com saber e bom
gosto, passam por ela os passos que é necessário dar (e articular) na trave mestra – o expositor da ermida.
«Os alicerces de uma casa não se vêem,
mas estão lá; senão a casa vem abaixo», com
isto quer Eduardo Fernandes significar que
nada teria conseguido sem um grupo de amigos que «valorizam o projecto». Refere-se a
Alexandra Corte-Real na joalharia, à coordenadora Fábia Fernandes e na enoteca aos
chefes Ângelo Santos e Nélson Guerreiro, aos
quais se junta o jovem cozinheiro Ricardo
Gonçalves.
Pelo caminho ora seguido deveríamos ter
começado, mas eles estavam em reunião,
só tarde abordamos formalmente Eduardo
Fernandes. «Como tudo se foi combinando?
Um pouco por acaso. A ermida pertencia a
um fabricante de colchões, gostei tanto que
a quis para mim! E não foi barata nada, ele
sabia o que tinha e fez-se valer…». O comprador sabia para que a queria, daí que… «em vez
de colchões, agora tem exposições».
PRATA QUE BRILHA
NAS MÃOS DE ALEXANDRA
Não nos lembramos de esperar tanto num
balcão de joalharia. Não era o caso de a artífice, Alexandra Corte-Real, se demorar no
acabamento de qualquer peça e, longe disso,
caso de falta de atenção dela.
O caso é que joalheira e repórter da fotografia estavam mesmo atarefados na minúcia de anéis, brincos, peça por peça, mais e
menos luz, ela a limpar na prata, o que quase
em rigor não tinha sujidades, o João Vilhena a
procurar ângulos e conjuntos a condizer. De
modo que fomos perguntando, que peça era
aquela, que peça era a outra…
Na focagem estava um talismã, com sete animais - corvo, raposa, gato, borboleta, águia-real,
dragão, morcego… Depois o galo da paixão,
galo de Barcelos todo em corações. Brincos
da colecção Linhas Paralelas desenhada por
Eduardo Nery. Ou fossem «anéis irreverentes», botões de punho que têm associada uma
mensagem que pode ser mostrada, «não apenas dita». São peças, diz a joalheira de autor,
que nunca as tem em stock, «saem muito, mas
não é qualquer homem que os usa».
Já o leitor induziu que nos íamos inteirando da acção dos dois e que nos iam cedendo algum do seu tempo de trabalho, que
era exaustivo.
Licenciada em matemática em duas faculdades, Alexandra acabou por voltar aos
gostos da infância, quando em criança,
«desmontava e recriava as pulseiras, colares e anéis da mãe». Deu-se então à vocação de cursar a escola de joalheiros Contacto
ID: 45075807
01-11-2012
Tiragem: 3000
Pág: 74
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 23,03 x 26,87 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 3 de 5
A joalheira Alexandra Corte-Real no trabalho
Directo, passou a ser técnica e designer. Aí
adquiriu conhecimentos e ferramentas para
o percurso que a levou a exposições, por
Lisboa, no Funchal, em Serralves, em Silves,
em Manchester… Portanto, em várias mostras nacionais e internacionais. E hoje, trave
mestra do Projecto Travessa da Ermida.
A operadora de joalharia trabalha preferencialmente em prata, sem desprezo pelas
gemas. Muitas vezes parte de trabalhos de
artistas plásticos. «Gosto, sobretudo, de
trabalhar em funções versáteis, por exemplo, um anel que possa ser usado como
pendente.»
VER PARA CRER
Devemos notar que a ermida daquela travessa data de 1707 e que a sua valorização
começou em 2008. Eduardo Fernandes casou com Alexandra, a joalharia era o gosto
dela e, depois da formação em matemática, cursou esta especialidade. Foi conveniente
encontrar espaços próximos, todos na mesma travessa, assim se ergueu também
a Enoteca de Belém.
Aquando da nossa visita, estava ainda patente, em segunda edição, a exposição do
artista plástico André Graça Gomes, que integrara o Projecto Vicente, Rever para Crer.
A coordenadora Fábia Fernandes, ajuda-nos a perceber melhor o espaço expositivo, de
entrada gratuita, arte contemporânea com intervenção de designers na fachada
e na própria rua. «É a âncora de todo o projecto de dinamização cultural que se auto
sustenta na junção com as unidades comerciais».
Estamos, finalmente, portas adentro da casa que há 300 anos foi dedicada a uma santa.
Olhamos: Chão despido, uma pia baptismal, um púlpito, um arco, azulejos da época.
A arte estava nas paredes, quadros e desenhos gráficos, sempre preto-e-branco.
Frases filosofais são boa companhia e estão difundidas em profusão. Escolhemos uma,
por actual: «Agora o som do leste já me acode, fazendo-se sentir; eis-me decidido lá
onde muito pranto me sacode.» Convidamos Fábia à opção dela e cita: «És sol que para
vista perturbada e de assim contentar-me quando solve, duvidar e saber tanto me
agrada…» Outra exposição se seguirá à que honra o padroeiro de Lisboa, se pudermos
lá estaremos para «ver e crer».
E aprecia os materiais alternativos – titânio anodizado, pela sua resistência e leveza,
que permitem maiores dimensões, e assim,
«ganham em diferenciação de expressões».
Madeiras nobres, como pau-violeta, pau-rosa, ébano ou buxo entram nas suas composições e tem feito trabalhos com renda de
ID: 45075807
01-11-2012
bilros e bordados da Madeira, deste modo,
a valorizar «aspectos tradicionais em conjugação com a modernidade». Do seu agrado,
para obter cor, a anodização do titânio, e as
texturas com fundição em osso de choco (do
peixe) com revenidos e reticulares.
Ferramentas de trabalho… «Isso é um
mundo. Posso falar do laminador, que dá
à chapa a espessura pretendida, das fresas,
Tiragem: 3000
Pág: 75
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 21,50 x 26,68 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 4 de 5
Nacional e Alfrocheiro, e pediram a Rui
Reguinga para ser o seu enólogo.
Antes de nos servirem um pouco daquele Casa da Carvalha, que não está à venda
em nenhum sítio comercial, já Eduardo
Fernandes lhe elogiava o seu «perfume fantástico». Um vinho que harmonizou bem
com o tártaro de salmão (alcaparras, tomate,
ovas, algas vermelhas e calda de limão cara-
PATO MUDO NO MURO
DO JARDIM BOTÂNICO TROPICAL
Nelson Guerreiro, Ângelo Santos e Ricardo Gonçalves, o trio maravilha da Enoteca
limas, engenhos de furar, dos discos de acabamento. E do motor de polir, dos embutidores
e embutideiras, dos banhos de aço. E acabo
com o inestimável maçarico.»
Ainda jovem, Alexandra Corte-Real é joalheira de autor desde 2002, está no projecto
há dois anos.
NA ENOTECA UM VINHO
RÚSTICO DO DÃO
Finalmente na Enoteca, o ponto de encontro. Nélson Guerreiro é o mais aberto numa
primeira impressão. «Está a ver todos estes vinhos em exposição? Todos a 20 euros a garrafa,
a quatro o copo». Estão distantes, não é fácil ver
os rótulos. Dá-nos uns binóculos, «é a nossa primeira oferta ao cliente». Esta para nós foi novidade, olhar os vinhos com a ajuda de lentes…
Entraram bem, Ângelo Santos ri com
gosto. Logo Nélson assume a paixão deles
pelo vinho. «Não temos vinhas e queríamos
criar um vinho nosso». Numa qualquer parceria descobriram a Casa da Carvalha, no
Dão, em São Martinho da Cortiça, produtor Tomaz Andrade Rocha. Prossegue: «Um
vinho rústico com toda a plêiade de identidade do Dão.» Escolheram as uvas, Touriga
melizada) e também se deu bem com o pudim
Abade de Priscos (valorizado pelo crocante de
caramelo e redução de vinho do Porto).
O jovem cozinheiro Ricardo Gonçalves é a
última aquisição da equipa. Depois de ter trabalhado, entre outros, nos restaurantes Bica
do Sapato e Vírgula, está a gostar do ambiente
e a satisfazer a clientela com os seus pratos,
«baseados nos sabores do tradicional com
apresentação moderna».
«Estamos abertos para jantar depois da
uma da tarde», agora é a vez de colher uma
frase do experiente chefe de sala Ângelo
Santos. Quando pensamos que Nélson era a
alma da casa, ele próprio nos tira do engano.
«Posso dizer-lhe que ele (Ângelo) é o Messi
e o Cristiano da cozinha portuguesa, tudo
o que aprendi foi com ele». Ângelo está por
gosto naquele espaço onde reina uma certa
intimidade. «Temos 16 lugares e não queremos mais!». Aparentemente não gostou da
confidência do colega, em especial quando
este falou do seu passado, no Gambrinus e ao
lado de Augusto Gemelli.
Em três anos a Enoteca de Belém já conquistou prémios internacionais. «Valem o que
valem», mas são a prova de que não passamos
despercebidos», remata Nélson Guerreiro.
O painel de azulejos chamado Pato Mudo,
instalado no muro do Jardim
BotânicoTropical, mesmo no topo da
Travessa do Marta Pinto, surgiu de uma
intenção do Projecto da Ermida: produzir
uma peça artística na sequência do objectivo
de promoção cultural, artística e
gastronómica que enforma o todo.
É como que uma via de contacto entre a
história de Belém e de Lisboa, mas também
de acesso a novas vivências, como espaço
de animação de encontros e passagens.
Para este efeito foi convidado o Estúdio
Pedrita que apresentou esta proposta que
envolve ambos os espaços e os liga entre
si. A obra pública Pato Mudo é uma
iniciativa inédita em Portugal que alia a
tradição do azulejo ao design nacional
contemporâneo.
No mesmo âmbito, a oficina de joalharia
Alexandra Corte-Real expõe e comercializa
originais peças entre o tradicional e a
modernidade. E a Enoteca de Belém é local
de encontro de pessoas e sabores que
apostam na experimentação, onde se
pretende divulgar a cultura vinícola
e gastronómica nacional.
A Ermida é o núcleo de actividades culturais
propriamente ditas. Em quatro anos, somou
cerca de 30 exposições, incluindo a de André
Graça Gomes, Vicente, curadoria Mário
Caeiro, em segunda edição.
Em simultâneo com Cauting Seeds foi
lançado o livro Duas Praças, Um Jardim,
de Gabriela Albergaria. Ainda no ano corrente,
Bella Silva e Bennoit van Innis protagonizaram
a apresentação de Norte-Sul; e esteve patente
a escultura-instalação, de Gonçalo Barreiro,
Woodpecker.
Em 2011 registaram-se três eventos –
Almack’s, produção de catálogo de Ana
Fonseca; e as exposições de desenho,
fotografia e produção de catálogo de Vasco
Araújo (Família) e de escultura, desenho e
fotografia, de Ângela Ferreira, (Paradys).
Acontecimento importante na vivência
deste projecto, a intervenção na fachada
da Ermida (Primavera), com Andorinhas Rafael Bordalo Pinheiro, já que a produção
de 300 postais alusivos destas andorinhas
viajaram até à Feira de Turismo de Madrid
e poisaram nas montras de Natal dos
Restauradores (2009).
Não menos significativa foi a exposição
de jóias de autor de Alexandra Corte–Real.
Três delas expostas no Museu de Serralves
e mais tarde transformadas em móveis nas
oficinas da FRESS, para ulterior exposição
no Museu de Artes Decorativas
da Fundação Ricardo Espírito Santo,
já em 2010.
ID: 45075807
01-11-2012
68
Tiragem: 3000
Pág:
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Bimestral
Área: 18,66 x 4,66 cm²
Âmbito: Lazer
Corte: 5 de 5
Veio uma enroladora de Cuba, o Projecto Travessa da Ermida
organizou o necessário para uma noite aberta na gastronomia, com
passagem para uma prova do Punch Descobridores. O avaliado
devia casar-se com um Madeira Boal 1964, à sobremesa, trazido
especialmente para o efeito. Foi bom, sim, senhores…

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