uidados Paliativ s - Associação Brasileira de Cuidados Paliativos

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uidados Paliativ s - Associação Brasileira de Cuidados Paliativos
2009
Cuidados Paliativos
uidados Paliativ s
Revista Brasileira de Cuidados Paliativos 2009; 2 (3)
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uidados Paliativ s
• Retidão, integridade e cuidado:
como viver frente à morte
• Narrativas em cuidados
paliativos – um instrumento
para lidar com a dor, o
sofrimento e a morte
• Cuidados paliativos na
emergência
• Prurido associado ao
uso de opióides
• O cuidador informal e o ordálio
do paciente com câncer
avançado de cabeça e pescoço
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Cuidados Paliativos
SUMÁRIO - CONTENTS
Revista Brasileira de Cuidados Paliativos 2009; 2 (3)
ISSN 1984-087X
REVISTA BRASILEIRA DE CUIDADOS PALIATIVOS
BRAZILIAN JOURNAL OF PALLIATIVE CARE
ARTIGOS/RESEARCHS/REPORTS
05
Retidão, Integridade e Cuidado: Como Viver
Frente à Morte
Upright, Whole and Careful: How to Live in the
Face of Death
William S. Breitbart
16
Narrativas em Cuidados Paliativos – um
instrumento para lidar com a dor, o sofrimento
e a morte
Maria Auxiliadora Craice de Benedetto,
Pablo González Blasco, Marcelo Levites
e Thaís Raquel Pinheiro
21
Cuidados Paliativos na Emergência
Palliative Care at the Emergency Room
Paulina Basch
28
Prurido associado ao uso de opióides
Samantha C. S. da Silva e Ricardo
Caponero
31
O cuidador informal e o ordálio do paciente com
câncer avançado de cabeça e pescoço
Marcos Brasilino de Carvalho
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Revista Brasileira de Cuidados Paliativos
Cuidados Paliativos
REVISTA BRASILEIRA DE CUIDADOS PALIATIVOS
BRAZILIAN PALLIATIVE CARE JOURNAL
É uma publicação científica dirigida a médicos e profissionais de
saúde, que atuam na área de dor e cuidados paliativos em doenças
crônico-evolutivas.
Tal publicação visa divulgar artigos científicos nacionais e
internacionais, promovendo a troca de conhecimento científico entre
os profissionais.
Editora Chefe
Ana Georgia Cavalcanti
de Melo
Editor Científico
Ricardo Caponero
Conselho Editorial
Ana Georgia Cavalcanti
de Melo
Ricardo Caponero
Wiliam Breitbart
Assessoria Editorial
Luciano Ricardo Rodrigues
Produção Editorial e Arte
Grecco Comunicação Total
Rua Luigi Galvani, 200/
11 andar 04575020
São Paulo/SP
Tradução e revisão
Juliana Ribeiro de Melo
Periodicidade:
Trimestral
Tiragem:
10.000 exemplares
Envio de artigos:
revistabrasileira@
cuidadospaliativos.com.br
Conselho Científico
Eduardo Bruera
Professor de Medicina
F. T. McGraw Chair em
Tratamento de Câncer
Chefe do Departmento de Cuidados
Paliativos e Reabilitação em Medicina
M. D. Anderson Cancer CenterUniversidade do Texas, EUA
William S. Breitbart, Professor de Psiquiatria
Faculdade de Medicina Weill
da Universidade de Cornell
Chefe do Serviço de Psiquiatria
do Departamento de Psiquiatria
e Ciências Comportamentais
Responsável pelo Serviço de
Psiquiatria, Dor e Cuidados Paliativos
Departamento de Neurologia
do Memorial Sloan-Kettering
Cancer Center, NYC, EUA
Cibele Andrucioli
Mattos Pimenta
Doutora em Enfermagem
Professora Titular da Escola
de Enfermagem da Universidade
de São Paulo
José Marcio Neves Jorge
Professor Associado da Disciplina
de Cirurgia do Aparelho Digestivo
Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo
Leo Pessini
Professor Doutor em Bioética
e Teologia Moral
Superintendente União Social
Camiliana
Vice-Reitor do Centro Universitário
São Camilo
Auro Del Giglio
Prof Livre- docente
Doutor em Medicina - Hematologia,
FMUSP
Prof. Titular de Oncologia
Universidade do ABC-SP
Coordenador Oncologia Hospital
Israelita Albert Einstein-SP
Especialização em Medical
Oncology and Medical Hematology.
University Of Texas M D Anderson
Cancer Center, UTMDACC, EUA
Especialização . Baylor College Of
Medicine, BAYLOR, EUA
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aspectos, sua relevância e revisão bibliográfica sobre o tema.
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é uma publicação da YPÊ Editora e Publicações Ltda
Alameda Lorena 1470
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Brasil
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Retidão, Integridade e Cuidado: Como Viver Frente à Morte
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Cuidados Paliativos
Retidão, Integridade e Cuidado:
Como Viver Frente à Morte
Upright, Whole and Careful:
How to Live in the Face of Death
William Breitbart M.D.
Chefe do Serviço de Psiquiatria e Psiquiatra Responsável,
Departamento de Psiquiatria e Ciências Comportamentais
Psiquiatra Responsável, Serviço de Dor e Cuidados Paliativos,
Departamento de Neurologia do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center
Professor de Psiquiatria,
Faculdade de Medicina Weill, Cornell University
Introdução
Eu sou médico, certificado em Clínica Médica
e Psiquiatria Geral, mas também em uma especialidade da Psiquiatria, a Medicina Psicossomática,
mais especificamente no ramo da Psico-oncologia.
A Psico-oncologia é uma nova área, desenvolvida nos
últimos 25-30 anos, que foca no cuidado psicossocial de pacientes de câncer e suas famílias.
Eu sou médico e a minha missão é cuidar de
pacientes com câncer e suas famílias, muitas vezes
em detrimento aos cuidados pela minha própria
família. Portanto, não foi de se admirar quando eu
recebi uma ligação, alguns meses atrás, em uma
manhã de sábado de um final de semana em que
eu não tinha plantão ou supervisão de estagiários.
Eu segui imediatamente ao hospital para ajudar um
paciente em crise. Eu não sabia que estava prestes a
ter uma experiência “transformadora”.
O Caso
da Transformação
A ligação não era de um médico ou de uma enfermeira do hospital, mas sim de uma das minhas
vizinhas, que mora embaixo de mim no mesmo
prédio no Upper East Side de Manhattan. A melhor
amiga dela era paciente do hospital do Memorial
Sloan-Kettering Cancer Center, e estava em sofrimento psicológico extremo. Ela não me ligou para
pedir que fosse ver a sua amiga no hospital, mas
sim para me perguntar como ela poderia confortar
e ajudar a amiga em seu atual estado de desespero.
Depois de saber alguns detalhes do dilema de sua
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amiga, rapidamente eu me ofereci para ir vê-la no
hospital; não apenas como um ato de gentileza, mas
também por um senso de responsabilidade como
Chefe do Serviço Psiquiátrico do hospital.
Segue um breve resumo dos detalhes do caso,
anteriores ao meu encontro com a paciente:
Uma mulher de 45 anos, mãe de três filhos
de 8,9 e 11 anos. Passou os últimos 20 anos de sua
vida trabalhando para se tornar uma jornalista e repórter política de sucesso, no jornal mais conhecido
do mundo. Uma mulher de realizações, conquistas,
e vontade. Uma mulher amada e que ama também.
Apesar de morar em Washington D.C, perto dos
políticos sobre quem ela fala em suas reportagens,
quando soube do diagnóstico de câncer, ela rapidamente fez uso de seus contatos importantes para
receber o seu tratamento de câncer no Memorial
Sloan–Kettering Cancer Center em Nova York, com
os “melhores” oncologistas e cirurgiões do país.
Inicialmente, o momento mais marcante de sua experiência com o câncer, foi o diagnóstico incorreto.
Acreditava-se que ela tinha câncer de ovário, e, apesar do choque e do medo, ela se adaptou à notícia e
se ateve à esperança de um possível desdobramento
positivo. Mas o diagnóstico estava errado, e o prognóstico mudou drasticamente e de repente, para
pior. Em uma identificação intraoperatória ficou
claro que não se tratava de câncer de ovário, mas sim
de um caso raro de câncer de cólon com metástase
(Síndrome de Meigs), que havia se espalhado para os
ovários e a pelve. Dessa vez o prognóstico era duro.
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Cuidados Paliativos
A mudança nas expectativas foi dramática; outro
tratamento, outra trajetória, outras perspectivas
quanto ao tempo de sobrevivência. Da possível
cura ou sobrevivência a longo prazo à preparação
para a morte. O medo da morte tomou conta dela.
Uma profunda tristeza pela vida encurtada, pelas
crianças que ainda não tinham sido totalmente
criadas, pela perda de todos aqueles que ela ama,
e pela vida que ela estava vivendo de maneira tão
plena. Ela estava desesperada e passando por um
sofrimento terrível. Precisando de alguém que a
desse orientação e conforto.
Eu recebi uma ligação da melhor amiga dessa
paciente, que percebeu a importância de ajudar a
atenuar o medo da morte de sua amiga, mas não tinha ideia de como ajudar. Que palavras de conforto
eu poderia usar, que caminho tomar em suas orientações. “Como eu ajudo a minha amiga a superar o
medo da morte?” foi a pergunta que ela me fez. Foi
uma pergunta familiar; uma pergunta com a qual
eu tenho me deparado por duas décadas em minha
carreira clínica e acadêmica. No meu caminho para o
hospital, na expectativa do meu encontro com essa
paciente, eu tive uma noção relativamente clara do
que eu acreditava ser útil em nosso encontro. O meu
senso de clareza sobre abordagens efetivas à pacientes com câncer avançado em estado de desespero
e perturbação diante da morte veio de: milhares
de experiências clínicas com pacientes em estado
terminal; uma série de pesquisas clínicas sobre o
desespero e o desejo de morrer perto dos momentos
finais da vida, que o meu grupo conduziu na última
década; um despertar para a importância da psicoterapia existencial, e a experiência do nosso grupo na
condução de estudos de intervenção de uma nova
psicoterapia que eu desenvolvi, a chamada Psicoterapia Centrada no Significado (Meaning-Centered
Psychotherapy); e a minha redescoberta da filosofia
existencial e das importantes lições passadas por
textos antigos e sagrados. Na jornada até o leito
dessa paciente, eu relembrei a jornada que percorri
nas últimas décadas, o que me levou à noção de
que eu era a pessoa certa para essa paciente nesse
dia, e que as minhas ideias sobre uma abordagem
psicoterapêutica ao problema de enfrentar a morte
poderiam, possivelmente, ser úteis a ela e a pacientes
como ela.
Preocupações Existenciais Enfrentadas por
Seres Humanos, Especialmente Por Aqueles Com
Doença Clínica
Através das obras de Viktor Frankl (1959/1992),
Irvin Yalom (1980) e outros, eu passei a conceituali-
zar, e então incorporar as preocupações existenciais
universais enfrentadas por todos os seres humanos
à minha abordagem terapêutica com pacientes de
câncer. Como seres humanos (homo sapiens sapiens
com sabedoria e capazes de pensamentos mais profundos), nós, em oposição a outros seres, tendemos
a nos preocupar com três questões básicas: 1) De
onde eu vim? 2) Por que estou aqui? 3) Para onde
vou? (ex: o que há depois da morte)?
São essas as principais questões que envolvem a
experiência religiosa ou espiritual. Carl Sagan (2006)
diria que a base espiritual humana é a busca pelo
entendimento de nosso lugar no vasto mistério do
universo. Na verdade, essa pode ser também, em
sua essência, uma busca religiosa. A palavra “religião” vem do latim religio, cujas raízes são re (de
novo) e ligare (ligar), essencialmente ela se refere
a um esforço de reconectar ou religar. A tentativa
dos seres humanos de ligar essas questões de onde
viemos, por que estamos aqui, e para onde vamos, é
essencialmente uma tarefa “religiosa”. A busca pela
transcendência ou conexão com algo maior é também, em sua forma mais básica e simples, um esforço
“religioso” (mesmo que seja teísta ou ateísta).
A noção de “Simetria” também é levantada
por essas três questões básicas, principalmente no
sentido de que as questões “para onde vamos” (o
que há depois da morte), e “de onde viemos” são,
na verdade, similares, se não representam o mesmo lugar (ou estado, ou não-estado, ou nada). Esse
conceito de “Simetria” atribuído inicialmente ao filósofo grego Epicuro, sugere que nós voltamos para
o mesmo lugar de onde viemos. Para os indivíduos
cujo sistema religioso de fé envolve os conceitos de
uma alma imortal e vida após a morte, são fornecidas respostas confortantes a essas perguntas. Para
os que não acreditam nesse sistema, o conceito de
Simetria pode também ser confortante e abrandar
alguns dos medos associados à ideia de ser relegado
ao “esquecimento” após a morte. Epicuro não acreditava na imortalidade da alma após a morte, e sim
que depois da morte não havia nada; nada a temer,
nada de dor, punição, ou julgamento. No entanto,
ele acreditava na Simetria, que o lugar para onde
vamos é similar ao de onde viemos, sugerindo que
a experiência da morte se assemelha à experiência
“pré-nascimento”. Para muitos dos meus pacientes
que têm medo da morte (especialmente da não-existência, da obliteração), existe certo conforto no fato
de a experiência pré-nascimento não ter sido angustiante ou torturante, e de a experiência pós-morte
poder ser tão inofensiva quanto. Recentemente, eu
investiguei a etimologia da palavra “obliteração”
frequententemente usada para descrever o estado
em que entramos após a morte. Ela tem diversas
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conotações negativas, entre elas “aniquilação” e
“inexistência”. No entanto, eu encontrei uma variação mais reconfortante do sentido de “obliteração”
relacionada ao conceito de esquecer e perdoar,
como uma anistia. Eu passei a tentar pensar em
“obliteração” como uma situação em que todos são
perdoados e nada é lembrado; um estado de paz,
sem passado, sem futuro, só o presente.
Yalom (1980) e outros pensadores existencialistas descreveram quatro (ver Tabela 1) preocupações
existenciais humanas principais: Morte, Liberdade,
Isolamento e Ausência de Significado.
A Inevitabilidade da Morte é um temor constante que se encontra logo abaixo da superfície de
todos os seres humanos. A ansiedade causada pela
morte se manifesta quando as nossas tentativas
de nos adaptarmos, ou de minimizar ou negar a
morte falham, especialmente em momentos de
perda, de morte de pessoas próximas, ou quando
somos confrontados com limitações da vida, como
quando recebemos o diagnóstico de uma doença
que ameaça a vida, como o câncer. O pesadelo já foi
definido como um sonho falho em que a ansiedade
provocada pela morte se manifesta.
A liberdade, ou o fato de termos liberdade para
fazer o que bem entendermos de nossas vidas, de
sermos autores de nossas próprias vidas, é outra
fonte de preocupação existencial. O conceito de
liberdade existencial sugere uma falta de estrutura
externa, imposta ao curso e ao formato de nossas vidas (talvez com exceção de predisposições genéticas
com as quais nascemos como altura, sexo, inteligência, doenças, etc.), e uma falta de base assustadora
resultante da ideia de que somos os principais
responsáveis por nossas vidas. Os conceitos de Responsabilidade, Arbítrio, e Culpa Existencial derivam
dessa liberdade plena. A necessidade de responder
pela vida ou “responsabilidade”, torna-se fundamental quando tomamos consciência de nossa liberdade
existencial. É através do exercício de nosso livre
arbítrio que criamos a vida que escolhemos viver, a
pessoa que queremos ser. A culpa existencial surge
quando somos desviados ou impedidos de exercer
o arbítrio e a responsabilidade de fazer uso de nosso
próprio potencial.
O isolamento, ou solidão suprema é uma
preocupação existencial de grande importância,
principalmente quando pensamos em nossa morte.
O isolamento existencial não se refere à solidão intra
ou interpessoal, ou ao isolamento social, mas sim à
noção de que teremos que enfrentar os principais
desafios de nossa existência sozinhos (ex: nascimento, morte). Com sorte, teremos a companhia daqueles que nos amam, mas no fim, eles não poderão
seguir a jornada até o final conosco. O isolamento
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existencial é abrandado pelos nossos esforços como
seres humanos de amar e sermos amados, de nos
transcendermos, de nos conectarmos com o que é
superior a nós.
Os seres humanos reagem à questão existencial
da ausência de significado através do arbítrio, da
busca, e da criação de significado, para que possam
suportar a vida. Na falta de um significado evidente
atribuído à vida, nós buscamos significado em um
mundo incerto. Essa busca por significado cria o
nosso senso de valores; quando há um porquê, há
um como. Frankl (1959/1992), cujo trabalho de
grande influência na busca pelo significado será
citada posteriormente, acreditava que são três os
problemas existenciais inevitáveis na vida (a “tríade
trágica”): sofrimento, morte, e culpa (culpa existencial que nunca acompanha nosso potencial).
A Importância do Significado
nos Cuidados ao Final da Vida
O meu grupo de pesquisas conduziu uma
série de estudos para investigar a importância do
significado e do bem-estar nos cuidados da fase
terminal (Breitbart, et al 2000; Nelson, et al, 2002;
McClain, Rosenfeld, & Breitbart (2003). Demonstramos que o bem-estar espiritual, e, em particular,
o significado, tem um papel fundamental, como
agente atenuador, na proteção contra a depressão,
a desesperança e o desejo de antecipar a morte em
pacientes terminais de câncer. Além disso, constatamos que o desequilíbrio do bem-estar espiritual
tem uma ligação significativa com o desespero no
final da vida (definido por desesperança, desejo de
antecipar a morte, e tendências suicidas), mesmo
depois da verificação da influência da depressão.
Em seguida, ao dividirmos o bem-estar espiritual em
dois componentes, um medindo a noção de significado e o outro, a espiritualidade ligada à fé religiosa,
constatamos que a falta de significado foi mais fortemente associada ao desespero ao final da vida (ex.
a habilidade em manter uma noção de significado
foi associada a níveis mais baixos de desesperança,
desejo de antecipar a morte, e tendências suicidas).
Essas descobertas são significativas diante do que
sabemos sobre as consequências da depressão e da
desesperança em pacientes com câncer. A depressão
e a desesperança são associadas a taxas significativamente mais altas de suicídio, tendência suicida,
desejo de antecipar a morte, e interesse no suicídio
com assistência do médico (Breitbart & Rosenfeld
1999, Breitbart et al 2000). Nossas descobertas (Breitbart, et al 2000) demonstram que a desesperança
é um indicador independente e sinérgico do desejo
da morte, e que a influência que ela exerce no desejo
de morte é tão poderosa (e independente) quanto
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a da depressão. Tais dados, (que demonstram que a
perda de significado e a desesperança, independentemente da depressão, levam ao desespero ao final
da vida) são um forte indicativo de que intervenções
não-farmacológicas e psicoterapêuticas precisam
ser desenvolvidas para ajudar pacientes com desesperança e que não veem mais sentido no final
da vida. Foi então que começamos a desenvolver
uma série de intervenções, aplicando os conceitos
de Viktor Frankl sobre a importância do significado
para a existência humana.
A importância do bem-estar espiritual e o papel
do “significado”, principalmente na moderação da
depressão, da desesperança e do desejo da morte em
pacientes terminais de câncer e AIDS demonstrada
pelo nosso grupo de pesquisa, nos levou a enxergar
além do tratamento da depressão com antidepressivos nessa população, e a focar em novos esforços
para desenvolver intervenções não-farmacológicas
(psicoterapia), que possam abordar questões como
desesperança, perda de significado e bem-estar espiritual em pacientes com câncer avançado no curso
final da vida. Esse esforço levou a uma investigação e
análise do trabalho de Viktor Frankl, e seus conceitos
de logoterapia ou psicoterapia baseada no sentido
(Frankl 1959, 1992). Apesar de a logoterapia de
Frankl não ter sido desenvolvida para o tratamento
de pacientes com câncer ou doenças graves, os seus
conceitos de significado e espiritualidade têm claramente, em nossa opinião, aplicações no trabalho
psicoterápico com pacientes de câncer avançado,
já que muitos deles procuram orientação e ajuda
para lidar com questões de como manter o sentido
da vida, a esperança, entender o câncer e a morte
iminente no contexto de suas vidas. A principal
contribuição de Frankl para a psicologia humana
foi a conscientização do componente espiritual da
experiência humana, e da importância do sentido da
vida (ou a vontade de encontrá-lo) como um instinto
ou força propulsora da psicologia humana. Dentre
os conceitos básicos de Frankl estão: 1) Sentido da
vida – a vida tem um sentido e nunca deixa de tê-lo
até o seu último minuto; o sentido pode sofrer alterações nesse contexto, mas nunca deixa de existir;
2) A vontade de encontrar um sentido – o desejo
de encontrar um sentido para existência humana é
um instinto elementar e uma motivação básica do
comportamento humano; 3) Livre-arbítrio – nós
temos a liberdade de encontrar um sentido para a
existência e de escolher a atitude que tomaremos
diante do sofrimento; 4) As três principais fontes de
sentido na vida resultam da criatividade (trabalho,
realizações, dedicação a causas), experiência (arte,
natureza, amor, relacionamentos, papéis), e atitude
– a atitude que tomamos diante do sofrimento e das
questões existenciais; 5) O sentido existe dentro de
um contexto histórico – portanto o legado (passado,
presente e futuro) é um elemento-chave para manter, ou acentuar o sentido da vida.
A nova intervenção que nós desenvolvemos e
chamamos “Psicoterapia Centrada no Significado”
é baseada nos conceitos descritos acima, e nos
princípios da Logoterapia de Frankl, e foi concebida
para ajudar pacientes com câncer avançado a manter, ou acentuar a noção de sentido, paz, e propósito
em suas vidas, mesmo quando se aproximam de
seu final (Greenstein e Breitbart, 2000; Breitbart
2002; Breitbart et.al., 2004). Inicialmente, nós
conduzimos um experimento piloto randomizado,
através de uma intervenção de oito semanas (sessões semanais de 1h30) de Psicoterapia em Grupo
Centrada no Significado (MGCP). As sessões foram
baseadas nos conceitos de sentido elucidados por
Viktor Frankl, com a utilização de um manual de
tratamento altamente desenvolvido que incorpora
uma mistura de didáticas, discussões e exercícios
experimentais, que giram em torno de temas
específicos relacionados ao sentido da vida e ao
câncer avançado. Nossas descobertas (Breitbart,
et al, under review a) sugerem que a Psicoterapia
em Grupo Centrada no Significado é uma intervenção altamente eficiente, que aumenta a noção
de significado, bem-estar espiritual e esperança, ao
mesmo tempo que diminui o desespero ao final da
vida. No entanto, ficou bastante evidente para nós
durante o teste clínico que, que o formato grupal
para intervenções psicoterápicas em pacientes
com câncer avançado, próximos ao final da vida,
apresenta muitos desafios e limitações. A rigidez
de horário necessária para conduzir sessões grupais
com pacientes não-internados nessa população
resultou em altas taxas de ausência e de baixas.
Nós começamos a considerar o fato de que um
formato breve, flexível e individual de Psicoterapia
Centrada no Significado poderia ter vantagens sobre
um formato grupal em uma população de pacientes
com câncer avançado. Nós então modificamos a
intervenção original e desenvolvemos um formato
individual (Psicoterapia Individual Centrada no
Significado – IMCP), que também recebeu um
manual. Nós conduzimos um grande experimento
piloto controlado e randomizado de IMCP com uma
amostra de 104 pacientes com câncer avançado. Esse
estudo demonstrou a viabilidade, a praticidade,
aplicabilidade, aceitação e eficiência da intervenção
IMCP, além dos efeitos poderosos do tratamento em
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Psicoterapia Centrada no
Significado em Pacientes com
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Retidão, Integridade e Cuidado: Como Viver Frente à Morte
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formato individual, que foram ainda maiores do que
os demonstrados em nosso estudo de intervenção
grupal (Breitbart, et al., under review, b).
A Psicoterapia Individual Centrada no Significado consiste em uma intervenção de sete sessões (sessões de 1 hora por semana) que utiliza uma mistura
de didáticas, discussões e exercícios experimentais,
que giram em torno de temas específicos relacionados ao sentido da vida e ao câncer avançado. Os
temas das sessões são idênticos àqueles da Psicoterapia em Grupo Centrada no Significado, dentre
eles: Sessão 1 – Conceitos e Fontes de Significado;
Sessão 2 – Câncer e Significado; Sessão 3 – Fontes
Históricas de Significado: Legado (passado, presente
e futuro); Sessão 4 – Fontes Atitudinais de Significado: Deparando-se com Limitações da Vida; Sessão
5 – Fontes Criativas de Significado: Criatividade e
Responsabilidade; Sessão 6 – Fontes Experienciais
de Significado: Conectando-se com a Vida através da
Beleza, do Amor, e do Humor; Sessão 7 – Conclusão:
Reflexão e Esperanças para o Futuro.
Como cada sessão foca em questões relacionadas ao sentido e ao propósito da vida diante de um
câncer avançado e de um prognóstico limitado,
elementos de apoio e a expressão de emoções são
inevitáveis. No entanto, estes são limitados pelo foco
em exercícios experimentais, didáticas e discussões
relacionadas aos temas que focam no significado.
Além do Significado:
Integrando Conceitos de
Arbítrio, Significado e Cuidados
Eu adquiri bastante conhecimento terapêutico
no cuidado de pacientes com câncer em fase terminal, através do meu trabalho de desenvolvimento e
condução de testes clínicos com intervenções psicoterápicas centradas no significado, estruturadas
e registradas em manual. No entanto, permaneceu
comigo uma noção de que ainda havia muito mais a
ser estudado, e muito conhecimento a ser adquirido
para que fosse possível trabalhar de maneira mais
efetiva com pacientes que lidam com a morte. Ainda
havia muito a ser aprendido, e mais transformações
eram necessárias em mim, e em minha abordagem
com os pacientes. Então, comecei a voltar a minha
atenção aos trabalhos de filósofos existencialistas,
e a uma série de textos sagrados, que pudessem me
levar mais a fundo nessa jornada.
Nós que trabalhamos com medicina paliativa
muitas vezes ignoramos os ensinamentos dos grandes livros e textos sagrados de nossas civilizações, o
que nos prejudica muito. A sabedoria está em obras
diversas como a Morte de Ivan Illich de Tolstói, O
Livro de Jó, ou Ser e Tempo de Martin Heidegger. São
cada vez mais comuns nas áreas de cuidados paliaR e v i s t a
B r a s i l e i r a
d e
tivos e psico-oncologia, programas de treinamento
que apresentam as obras aos estudantes, como uma
forma de disseminar conhecimento sobre como
cuidar de seres humanos. Ler e discutir A Morte de
Ivan Illich tornou-se uma maneira bastante popular de passar ensinamentos a nossos colegas mais
jovens sobre o processo da morte e o potencial de
redenção e crescimento que temos, mesmo nos
últimos momentos antes da morte. O Livro de Jó,
no entanto, não é associado a uma fonte de ensinamentos que podem ser aplicados a intervenções
clínicas na medicina paliativa por muitos de nós
da área de cuidados paliativos. Acredito que isso
aconteça por diversas razões: a) O livro de Jó é visto
como um texto puramente religioso com poucas
aplicações práticas; b) Talvez os ensinamentos do
Livro de Jó sejam misteriosos, não muito claros,
e sujeitos a interpretações diferentes, por muitas
vezes divergentes; c) Apesar de não ser uma razão
determinante, acredito também que muitos de
nós não teve o cuidado de realmente ler o Livro de
Jó, só sabemos o que ouvimos de outros sobre os
ensinamentos que ele nos traz. A verdade é que nos
últimos 23 anos venho trabalhando no cuidado de
pacientes terminais, e já fiz centenas, senão milhares,
de referências a Jó em discussões sobre o sofrimento,
e ainda assim, eu nunca realmente tinha me permitido tirar um tempo para ler o texto, eu mesmo, de
maneira completa, com a mente aberta.
Ler o Livro de Jó não é uma tarefa fácil. Existem
muitas versões, com diversos tamanhos e narrativas.
Também não faltam controvérsias sobre qual é a
versão exata, e comentários sobre as interpretações
dos ensinamentos desse poema épico. Grandes
pensadores, de Spinoza a Carl Jung, reagiram à
história de Jó com diferentes pensamentos, compreensões e conclusões, no que diz respeito ao que
ela revela sobre o relacionamento entre homem e
Deus. A maioria dos debates focou na questão da
coexistência de Deus com o diabo; e em se Deus
é um Deus “pessoal”, envolvido nas questões dos
seres humanos, que pune quem peca, recompensa
aqueles que merecem, atende às preces, ou se é um
Deus “natural” incognoscível, misterioso, cujas
ações não podem ser compreendidas pelos seres
humanos. Essas são questões fundamentalmente
religiosas, mas que, no entanto, aparecem no cenário
dos cuidados paliativos com bastante freqüência.
“Por que isso aconteceu comigo?”, “O que eu fiz para
merecer isso?”. Nós ouvimos essas perguntas com
frequência, como clínicos de cuidados paliativos.
Apesar de essas serem questões em sua maioria
religiosas, relacionadas à relação dos indivíduos
com Deus, elas são também, essencialmente, preocupações existenciais. Frequentemente, os pacientes
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Revista Brasileira de Cuidados Paliativos
Cuidados Paliativos
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buscam em nós clínicos um conforto, consolo, e até
mesmo respostas.
Recentemente, eu me propus a ler o Livro de
Jó. Optei por lê-lo traduzido, com introdução de
Stephen Mitchell (1992). Stephen Mitchel é um
poeta e tradutor de textos sagrados nascido no
Brooklin, cujo trabalho eu já conhecia e apreciava.
Gosto, em particular, de suas traduções da poesia
de Rainer Maria Rilke, e dos Salmos. Mitchel oferece
não apenas uma tradução moderna e acessível, mas
também um contexto histórico e referências que
enriquecem a experiência da leitura. Definitivamente, esse foi o meu caso durante a leitura de sua
tradução do Livro de Jó. Eu aprendi, por exemplo,
que nós não sabemos realmente quem é o autor do
Livro de Jó, quando e como ele/ela escreveu a obra,
e nem para que público. Um dos maiores paradoxos
dessa grande obra de arte judaica é que o herói é
Gentio, como provavelmente o autor também foi.
Algumas autoridades estimam que esse poema
épico, que trata do problema do sofrimento de
inocentes, tenha sido escrito entre os séculos XVII
e X a.C. Apesar da incerteza sobre a origem judaica
do autor e do herói de seu poema, a história de Jó
é o grande tema judaico da era pós-Holocausto, o
tema da vítima inocente. Alguns desses elementos
com certeza me chamaram atenção, eu, como filho
de sobreviventes do Holocausto.
De fato, há uma grande quantidade de temas
existenciais e espirituais com os quais podemos nos
envolver ao ler o Livro de Jó. Eu, como clínico que
cuida daqueles que sofrem durante o processo de
morte, foquei realmente em dois temas, devido à sua
relevância para o meu trabalho. Primeiramente, me
chamou a atenção a conexão entre a experiência de
sofrimento de Jó e a experiência de muitos pacientes
que atendemos. Quando Jó é acometido pela doença
em sua pele e ossos, a descrição da sua experiência
me lembrou a experiência de um paciente que eu
atendi com leucemia, que tinha recebido um transplante de medula óssea, e que sofria da doença do
enxerto contra hospedeiro. Jó sentiu a sua medula
óssea explodir de dor, sua pele estava rachada e
flácida, e ele gritava de desespero, até mesmo
implorando para que a morte acabasse com o seu
sofrimento. “Foi exatamente por isso que eu passei,
eu rezava para morrer, para que o meu sofrimento
pudesse acabar” foi o que o meu paciente contou,
quando discutíamos a experiência de Jó. Eu fiquei
impressionado com a precisão da sua descrição de
sofrimento. Em seguida, eu fiquei admirado com a
repetição da questão de ser “Reto” e “Íntegro”, que
me chamou a atenção como um conceito clínico e
psicoterápico no atendimento àqueles que sofrem
frente à morte.
Os termos “Reto” e “Íntegro” aparecem logo no
Prólogo do poema, quando Deus diz para o acusador
(Satanás). “Você viu o meu servo Jó? Não há ninguém
como ele na Terra: um homem reto e íntegro, que
teme a Deus e evita o mal.” Nesse momento, os
termos “reto” e “íntegro” são usados provavelmente
para descrever Jó como um homem que se desvia do
mal, um homem íntegro, bom e devoto, que teme
a Deus. No decorrer da história de Jó, os conceitos
de “Retidão” e “Integridade” aparecem diversas
vezes, com significado e sabedoria ainda mais ricos
e mais fortes.
O próximo encontro com os conceitos de “Retidão” e “Integridade” vem logo depois que Jó fica sabendo que perdeu toda a sua riqueza material, e que
todos os seus filhos foram mortos. Jó se levanta, rasga
a sua túnica, raspa a cabeça, e se deita com o rosto na
poeira, jogando terra em sua cabeça. E então ele diz:
“Nu saí do ventre de minha mãe, e nu voltarei pra lá.
O Senhor me deu, e o Senhor me tirou; bendito seja
o nome do Senhor.” Algumas pessoas podem focar
na aceitação da palavra de Deus por Jó, no entanto,
o que me chamou a atenção foram os atos iniciais
de Jó ao 1) Jogar-se ao chão, vindo de sua “retidão”,
literalmente se entregando à poeira de onde ele veio
(o húmus da humanidade); 2) Rasgar suas roupas,
um simbolismo da desintegração ou ruptura da
“integridade”, que era a sua identidade antes de
perder tudo que ditava o sentido de sua vida. Nesse
momento, as ações de Jó também podem ser relacionadas ao ato judaico Teshuva, ou arrependimento
por um pecado cometido contra Deus. É interessante
observar, que o termo Teshuva também significa
“retornar”, o que sugere que as ações de Jó tinham
o objetivo de levar Deus a restaurar o seu estado de
“Retidão” e “Integridade” através do arrependimento. De fato, no final do Livro de Jó, Deus devolve toda
a riqueza de Jó, e o dá um número ainda maior de
filhos e netos, restaurando a sua identidade e seu
relacionamento com o transcendente. Ele retoma
o seu estado de “Retidão” e “Integridade”
Eu fiquei muito interessado em saber como esses
conceitos de “Retidão” e “Integridade” poderiam
beneficiar o meu trabalho clínico com pacientes
terminais. Eu vejo o conceito ser “Reto” e “Íntegro”
como uma manifestação de “Arbítrio”. Quando
alguém é “Reto”, é capaz de exercer seu arbítrio no
mundo. Exercer o arbítrio, ou o livre-arbítrio, no caso
de um paciente com doença terminal pode significar
ter a “coragem de continuar a viver frente à morte”.
Ter a coragem de ainda ter desejos e vontades na
vida, apesar de sua finitude. Reavaliar as prioridades
diante de um prognóstico limitado e decidir focar
em certas prioridades (ex: passar mais tempo com
a família, não fazer quimioterapia paliativa e focar
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Retidão, Integridade e Cuidado: Como Viver Frente à Morte
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na dor e no controle de sintomas, fazer um testamento, ou continuar trabalhando até quando for
possível). Quando os pacientes são forçados a ficar
na cama por fadiga, ou dor incontrolável (Não Retos), sendo destituídos da capacidade de exercer seu
livre-arbítrio, há um sofrimento evidente. O conceito
de permanecer “Reto” pelo maior tempo possível
frente ao processo terminal é, na minha opinião, um
conceito importante em termos de planejamento de
tratamento e objetivo no cuidado ao outro.
O conceito de “Integridade” passou a ser para
mim, a habilidade de um paciente de enfrentar uma
doença com risco de morte “mantendo-se conectado
a tudo que tem significado, valor e propósito em
sua vida”, até mesmo durante o processo terminal.
Manter-se conectado aos entes queridos e resistir
ao “isolamento” que vem daqueles que querem
“proteger” uns aos outros de medos e preocupações;
relacionar-se e dividir esses medos e preocupações;
e estar mais próximo é vital nesse momento. Ser
“Íntegro” representa um esforço de “preservar a
identidade” pelo maior tempo possível, apesar das
perdas reais ou futuras, e da destruição causada pela
doença progressiva.
Recentemente, durante o tratamento de um
senhor que estava lutando contra um mieloma
avançado, nós discutimos os conceitos de “Retidão”
e “Integridade” envolvidos nesse processo terminal,
em nossas sessões de psicoterapia. Os conceitos
chamaram bastante a sua atenção, e eu senti que
eles estavam totalmente ligados aos seus anseios de
como encontrar uma “maneira de viver, enquanto
estava morrendo.” “Retidão” e “Integridade” pareceram ser conceitos úteis, apesar de eu sentir que
algo estava faltando. Se eu usasse os conceitos de
“Retidão” e “Integridade” como duas pernas de um
banco, o banco pareceria um pouco instável, nãofinalizado. Parecia que faltava mais um princípio
básico, mais uma perna do banco para torná-lo
estável, completo, realmente útil. Foi quando eu
descobri o “Cuidado”.
Ser
cuidadoso
Martin Heidegger foi um filósofo existencialista alemão, um tanto polêmico, cuja obra mais
conhecida é intitulada Ser e Tempo (Heidegger e
Stambaugh, 1996). Heidegger se aprofundou em
nosso conhecimento sobre a natureza (ou experiência) de “ser”, a “intencionalidade de ser” (o valor da
consciência), a temporalidade de nossa existência,
e outras questões existenciais importantes como
“responsabilidade” e “angústia”. Heidegger também
descreve o que ele chama de “Estrutura do Cuidado”
do “ser” (Dasein), e “ser no mundo” é essencialmente
“Cuidado”. Os conceitos de “Cuidado” e “estrutura
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de cuidado” de Heidegger são reconhecidamente
complexos. No entanto, eu passei a entender o
“Cuidado” como um conceito duplo. Por um lado,
“Cuidado” se refere ao nosso engajamento no mundo como seres ativos com as pessoas, causas e ideais
com que nos importamos. Por outro lado, “Cuidado”
também se refere ao “autocuidado”. O autocuidado
é a compreensão de que precisamos nos preservar
(tomando conta de nós mesmos), para que possamos ser capazes de cuidar dos outros e do mundo.
Em nosso Grupo de Psicoterapia Centrada no Significado, nós conduzimos um exercício experimental
sobre “Responsabilidade” em uma de nossas sessões.
Durante o exercício pedimos que os membros do
grupo respondam à seguinte questão de estímulo
“Você é responsável por quem e pelo que?”. Como
co-facilitador dessas sessões, me surpreendi diversas vezes com as respostas dos pacientes terminais
de câncer participantes do grupo. Na maioria das
vezes, os pacientes respondem “Primeiramente,
sou responsável por mim mesmo. Se eu não cuidar
de mim, não posso ser responsável por mais nada
nem ninguém.” Por diversas vezes, eu fui surpreendido por essa resposta, já que a minha lista de
respostas nunca incluiu “cuidar de mim mesmo”.
Eu aprendi que não se tratava de egoísmo, mas sim
de uma importante lição de que vida que aqueles
com boa saúde frequentemente ignoram, mas que
doenças graves, como o câncer, nos relembram de
maneira intensa.
A caminho do hospital para encontrar a paciente que estava em desespero, eu fiquei pensando
nos conceitos de “Retidão” e “Integridade”, mas
também em como incorporar essa terceira noção
de “Cuidado” (incluindo a importância de cuidar
de si mesmo). As palavras vieram para mim como
uma Epifania. “Cuidadoso”. “Cheio de Cuidados”.
“Com Cuidado”. Eu sorri para mim mesmo diante
da possibilidade de poder dar a seguinte resposta
a uma questão bastante profunda; “Doutor, como
eu posso viver frente à morte?” A resposta, “Com
bastante Cuidado”. Quando o táxi encostou na
entrada principal do hospital, eu senti que eu talvez
tivesse construído um banco estável de três pernas
“Retidão, Integridade, e Cuidado”. Eu estava prestes
a conferir se essa abordagem (veja tabela 2) abriria
um caminho, e ofereceria uma opção ao desespero,
para a paciente que me aguardava no 10o andar
do hospital.
No
leito da paciente
Um breve resumo do meu encontro com a
paciente:
Ela sorriu quando eu entrei no quarto, apesar
do desespero, talvez porque previu que eu pudesse
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Cuidados Paliativos
ajudar a aliviar a perturbação pela qual ela estava
passando de maneira tão intensa. “Você é exatamente
como eu imaginei que um psiquiatra deveria ser!”
ela disse alto. O marido dela tinha saído, e achamos
melhor encontrar um quarto mais privativo e sossegado para conversar, do que conversar ao lado de sua
cama no quarto que ela divida com outro paciente.
“Eu estou angustiada!”. O stress era evidente em seu
rosto, quando ela começou a chorar. Ela descreveu
os eventos das últimas três semanas. Primeiramente,
o diagnóstico de câncer no ovário, em seguida, um
processo de levantamento de informações, na busca
dos melhores médicos, e a adaptação à alteração
em sua trajetória de vida e às tarefas que vinham a
seguir. Tudo isso acreditando em um prognóstico
favorável, e que a vida seria retomada em algum
momento. Então, a notícia pós-cirurgia, apenas dois
dias antes, de que se tratava de um câncer de cólon
com metástase. Com isso, veio uma nova série de
informações para entender e processar, e um novo
prognóstico para incorporar. Rapidamente, eu deixei
claro que essa angústia que ela estava sentindo era
perfeitamente normal. Após qualquer diagnóstico de
câncer, o indivíduo precisa passar por um processo de
“assimilação” e “adaptação”; ouvir a notícia, digeri-la,
acreditar que é realmente ele que tem esse câncer, e
em seguida, adaptar-se a essa nova realidade através
de uma superação cognitiva, emocional, ativa, e
focada no significado. Eu expliquei que ela tinha
acabado de passar por um processo de assimilação
e adaptação, e que de repente, tinha sido forçada a
passar por esse processo novamente, em outra situação. Ela tinha sido bem-sucedida da primeira vez, e
eu acreditava que ela seria mais uma vez. E, de fato,
eu mostrei que ela já tinha começado esse processo.
Então veio uma torrente de emoções: medo da morte,
raiva do diagnóstico errado, raiva da injustiça de ter
a sua vida abreviada, uma tristeza profunda diante
da perda da vida como ela a conhecia, de deixar
seus filhos e seu marido; tudo insuportavelmente
triste. Inicialmente ela falou de seu medo da morte
e da ansiedade esmagadora que ele produzia. Em
seguida, ficou claro através do meu questionamento
que o medo não era a sua única reação emocional à
morte. Havia raiva, tristeza, culpa. Nós falamos de
suas crenças religiosas e examinamos o seu medo da
morte. Na verdade, ela encontrava conforto em suas
crenças religiosas, e tinha uma ideia da morte como
uma experiência serena e não necessariamente desagradável. Não era a morte, de fato, que a desafiava.
A impossibilidade que ela via de viver no período
compreendido entre esse momento e a sua morte
era que a dominava e assustava. “Doutor, como posso
viver frente à morte?” Ela fez a pergunta que eu estava
esperando que ela fizesse; a pergunta com a qual eu
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vinha lidando e trabalhando por tanto tempo para
encontrar a resposta. “Com cuidado, com muito cuidado” eu respondi. Em seguida, eu contei a ela sobre
as minhas experiências com pacientes nos últimos 24
anos, e como eu tinha começado a desenvolver o que
eu acreditava ser uma resposta útil a essa pergunta.
Nós conversamos sobre o Livro de Jó, que ela havia lido
quando era mais nova, e sobre as lições que eu havia
aprendido com ele. Eu apresentei uma abordagem
de como viver (ser) frente à morte com “Retidão,
Integridade e Cuidado”. Eu expliquei cada conceito.
“Retidão” significava o seguinte: Ela ainda estava viva,
de pé sobre o chão, não estava morta. Ela precisava ter
a coragem de dar prosseguimento à vida e exercer seu
arbítrio; continuar a ter desejos, vontades, esperanças,
necessidades, viver plenamente pelo maior tempo
possível. “Integridade” significava que ela precisava
se manter conectada a tudo aquilo que dava sentido
à sua vida. Manter-se ligada a seus entes queridos, a
suas filhas, seu marido, e até mesmo ao seu trabalho.
“Cuidado” significava que ela precisava tomar conta
de si mesma. O caminho que estava por vir seria
difícil, com quimioterapia e outros tratamentos. Ela
precisava ser boa com ela mesma, descansar, e dar um
tempo ela. Além disso, ela precisava ter a coragem de,
ainda assim, amar e cuidar das pessoas mais valiosas
para ela, resistir ao impulso de se afastar pensando em
quanto iria doer perdê-los quando a hora chegasse.
Nós percorremos esses três conceitos, falando de
como eles se relacionavam à vida dela. A sua máscara
de desespero começou a desmoronar, e a pessoa por
trás dela começou a ressurgir. Tudo nela parecia mais
calmo. “Essa conversa ajudou muito, obrigada”, ela
disse. Os planos para seus cuidados incluíam voltar
para sua casa em outra cidade em alguns dias. Eu a
indiquei para um colega respeitado perto de sua casa.
Nós nos abraçamos e nos despedimos.
Dois dias depois, eu recebi um cartão manuscrito de sua melhor amiga que tinha me contatado para
pedir ajuda e conselhos naquele primeiro momento.
A mensagem era muito emocionante. “Eu não sei
exatamente o que você falou para a minha querida
amiga no hospital, mas seja o que for, essa conversa
a ajudou profundamente. Ela não está mais desesperada e agora sente que tem um caminho e uma
direção a seguir. Eu gostaria de ter estado lá para
ouvir o que vocês conversaram. Pelo que pareceu,
acho que se eu estivesse lá, também teria aprendido
muito com a discussão. Tudo que eu sei agora, é que
devo reler o Livro de Jó”
Reflexões sobre os Objetivos
dos Cuidados Paliativos
Psicossociais
À medida que a disciplina de Medicina Paliativa
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Retidão, Integridade e Cuidado: Como Viver Frente à Morte
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Cuidados Paliativos
foi se desenvolvendo, tornou-se evidente que os
conceitos envolvendo cuidados paliativos deveriam
ser ampliados, para além do controle da dor e dos
sintomas físicos, incluindo domínios psiquiátricos
psicossociais, existenciais, e espirituais para oferecer
cuidados adequados a pacientes terminais, culminando em uma aceitação pacífica da morte (Breitbart, et al. 1998). Oferecer mecanismos de controle
da dor e dos sintomas continua sendo o objetivo
maior de muitos profissionais da área de cuidados
paliativos. Isso acontece, porque tais sintomas são,
de fato, fontes de sofrimento, e esses profissionais
têm as ferramentas e habilidades necessárias para
administrar os sintomas com eficiência. Muito
progresso já foi feito no diagnóstico e tratamento
de distúrbios psiquiátricos em pacientes terminais,
como delírio, ansiedade e depressão. No entanto,
abordagens clínicas efetivas ao desespero existencial
estão começando a ser desenvolvidas, testadas e
disseminadas aos clínicos apenas agora. Talvez uma
questão útil a ser feita fosse: “Quais deveriam ser os
objetivos clínicos dos cuidados paliativos em seu
sentido mais amplo?”.
Os objetivos gerais da prática da medicina são:
“Prolongar, Proteger e Preservar” a vida. Qual é a relevância desses objetivos para os cuidados paliativos?
Prolongar a vida não é um objetivo clínico típico
dos cuidados paliativos. Paradoxalmente, estudos
recentes indicam que pacientes cuidados em atendimento domiciliar ou casas de repouso vivem mais
que pacientes terminais cuidados em ambientes
médicos usuais (Connor, et al., 2007). Proteger os
pacientes dos danos causados pela doença parece
ser um objetivo razoável dos cuidados paliativos. No
entanto, discussões sobre os prognósticos, ou sobre a
morte, são frequentemente evitadas, para “Proteger”
pacientes de um sofrimento aparente. São raros
os pacientes que podem ser prejudicados por tais
discussões, devido a doenças psiquiátricas ou fragilidade emocional. A grande maioria dos pacientes
é, na verdade, beneficiada ao ter a oportunidade de
discutir as suas preocupações relacionadas à morte,
e lidar com a realidade na qual eles se encontram.
O que significa “Preservar” a vida? Preservar a vida,
como objetivo dos cuidados paliativos, significa fazer o que for possível para que o paciente mantenha
a essência do que ele é, o seu senso de identidade, de
significado e dignidade, durante o último estágio de
sua vida. Esse objetivo pode ser alcançado através do
controle dos sintomas, dos cuidados na essência de
seu significado, do estímulo do contato com entes
queridos, e até mesmo do trabalho e de esforços
criativos, com foco nas questões do encerramento
da vida e de legado. Dessa maneira, o objetivo dos
cuidados paliativos raramente é “Prolongar” a
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d e
vida, muitas vezes é “Proteger” a vida, mas sempre
é “Preservar” a vida. A “Compaixão” é um elemento
importante em todas as interações clínicas dos cuidados paliativos (ver Tabela 3), em particular aquelas
que podem ajudar a Preservar a vida frente à morte.
A compaixão pode ser definida pelas seguintes práticas: Hospitalidade, Presença, Atenção.
A hospitalidade refere-se à natureza e ao teor da
interação médico-paciente. Ela requer que o médico
passe ao paciente a noção de que “temos uma relação, somos ambos seres humanos, enfrentando as
mesmas preocupações existenciais e realidades da
existência humana (ex: mortalidade). Esse conceito
envolve a desconstrução da dinâmica hierárquica
que frequentemente caracteriza a interação médicopaciente, criando o que Martin Buber chamou de
uma interação “Eu-Você”. É importante notar que
hospitalidade é a fonte do termo “hospital”. Presença
se refere ao estado de espírito e ao foco do médico.
Durante a interação médico-paciente, o paciente
recebe nossa atenção total. Ficamos completamente
absorvidos e conectados ao paciente e à sua história, sem nos distrairmos com outras preocupações
pessoais (ex: o capítulo que eu ainda não escrevi
que está atrasado). O título de Médico Responsável
confirma a importância da atenção e da Presença
nos cuidados a pacientes internados. Por fim, Atenção. Quando somos atenciosos, as palavras ditas
pelos pacientes são realmente ouvidas, mas mais
importante, o médico reage de uma maneira que
indica que o paciente foi compreendido. A empatia
é a essência da Atenção.
Os Objetivos da Psicoterapia
nos Cuidados Paliativos
Está havendo uma revolução no que diz respeito
à natureza e à abrangência dos objetivos clínicos de
intervenções psicoterápicas e terapêuticas no cenário
dos cuidados paliativos. A maioria dos psicoterapeutas e clínicos concordaria que, até pouco tempo,
havia dois conceitos básicos universalmente aceitos
como base da intervenção de aconselhamento com
pacientes terminais: Apoio, e Não-Abandono. O
aconselhamento de apoio é, em sua essência, aliar-se
às defesas e estratégias de superação dos pacientes,
apoiando-as ou reforçando-as. Dessa maneira, o paciente que está morrendo, e usando a negação como
estratégia para superar a proximidade da morte,
receberia apoio do terapeuta nessa sua escolha. Todos
nós nos pegamos nos aliando a esperanças, mesmo
irrealistas, externadas por pacientes e suas famílias no
processo terminal. No entanto, clínicos experientes
também criam possibilidades para que os pacientes
possam discutir a morte e esse processo através de um
questionamento leve. O Não-Abandono, ou Presença,
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Cuidados Paliativos
é o segundo princípio básico do aconselhamento
de doentes terminais. O terapeuta se compromete a
guiar e acompanhar o paciente ao longo do tratamento e do processo terminal. Há uma força na presença
do terapeuta no acompanhamento do paciente nessa
jornada muitas vezes solitária. A pergunta que muitos
de nós nos têm feito nos últimos anos é “Será que podemos realizar algo mais ambicioso na psicoterapia
com pacientes terminais?”.
O objetivo “Mais Ambicioso” da psicoterapia
com pacientes terminais é ajudá-los a atingir um
senso de aceitação da vida vivida e assim, por fim,
de aceitação da morte (ex: ser capaz de enfrentar
a morte com um senso de paz e equanimidade).
Muitos sugerem que esses objetivos não sejam
atingíveis para todos, e talvez inapropriados para
muitos. Eu diria que os esforços que envolvem o
fechamento da vida são atingíveis e essenciais nessa
fase da vida; Reconhecer ou aceitar a morte (ex: a
finitude da vida) são impulsos para transformação;
enfrentar a morte nos força a voltar para a trás e
encarar a vida, a vida que vivemos. Quando examinamos a vida que vivemos e relutamos em aceitála, nos deparamos com muitos desafios e tarefas
diante da morte (ver Tabela 4). Enfrentar a morte
pode aprimorar o processo de busca por um senso
de coerência, significado e encerramento da vida.
Permite que percebamos que o último capítulo de
Tabela 1 Preocupações Existenciais Enfrentadas
por Pacientes com Doenças Graves
Conclusão
Eu sou médico, e a minha missão é cuidar de
pacientes com câncer e suas famílias, muitas vezes
em detrimento aos cuidados pela minha própria
família. Durante o meu processo de busca por um
meio de integrar os conceitos de Livre- Arbítrio,
Significado e Cuidado em uma abordagem que
tornasse melhor a experiência angustiante pela
qual os pacientes que têm que enfrentar a morte
passam, eu tive uma experiência transformadora
que me levou a valorizar a importância de cuidar de
mim e da minha família, e ao mesmo tempo ainda
“Estar no Mundo”. As lições passadas por aqueles
que estão morrendo servem para mostrar aos vivos
o valor da vida. Talvez nós morramos, para que
possamos valorizar a importância de viver.
• Cuidado Lembrar de cuidar de si mesmo, de
seus entes queridos, de seu legado.
1. Morte
A inevitabilidade da morte
Ansiedade causada pela morte,
limitações da vida
2. Liberdade A Liberdade de Construir Nossas Vidas Como Desejamos
Falta de base, responsabilidade,
arbítrio, culpa existencial
3. Isolamento Ou Solidão Suprema
Nós nascemos & morremos sozi
nhos, transcendência, amor
• Presença
Dar ao outro atenção total;
Ser totalmente presente para o
outro, transcenden do as nossas
próprias preocupações.
Falta de um Sentido
para a Vida Busca por um sentido, incerteza, valores, por que – como
• Atenção
Ouvir e reagir de uma maneira que
faça com que o paciente saiba que
se fez “entender”; empatia.
4. Ausência
de Significado
Tabela 2: Como viver (Ser) Frente à Morte
R e v i s t a
nossas vidas é a última oportunidade que temos de
aproveitar o nosso potencial ao máximo, de deixar
para trás um legado autêntico, de nos conectarmos
com o que está além, de transcender a vida como a
conhecemos. O objetivo é preservar a ideia de que
ainda há vida a ser vivida, de que ainda há tempo
pela frente, para que o indivíduo possa morrer com
um senso de paz, equanimidade, e aceitação da vida
que viveu. O paradoxo da dinâmica da fase terminal
é que através da aceitação da vida que foi vivida,
vem a aceitação da morte (ver Figura 1).
• Retidão Percepção de que ainda se está vivo
e de pé, não abaixo da terra. Conti
nua-se a ter vontades, desejos, e a
exercer o arbítrio e a coragem.
• Integridade Permanecer conectado a tudo o
que traz significado, valores e pro
pósitos à vida: Relacionar-se e não
Isolar-se.
B r a s i l e i r a
d e
C u i d a d o s
Tabela 3: Objetivos dos Cuidados Paliativos: As
Práticas da Compaixão
• Hospitalidade Criação de um ambiente
de comunidade e comunicação
– reconhecer que compartilhamos
a condição humana e que estamos
conectados.
Tabela 4 Objetivos Existenciais dos Cuidados a
Pacientes Terminais: Crescimento e Realizações no
Processo Terminal
•
•
•
•
•
•
Noção de fechamento da vida
Sensação de um significado coerente para a vida
Deixar um legado
Enfrentar a morte com paz e equanimidade
Aceitação da morte
Aceitação da vida vivida
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Retidão, Integridade e Cuidado: Como Viver Frente à Morte
2009
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Cuidados Paliativos
Figura 1 A Dinâmica da Fase Terminal
Dinâmica
da
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Revista Brasileira de Cuidados Paliativos
Cuidados Paliativos
NARRATIVAS EM CUIDADOS
PALIATIVOS – um instrumento
para lidar com a dor, o
sofrimento e a morte
Maria Auxiliadora Craice
de
Benedetto, MD
Médica de Família e Coordenadora do Departamento de Humanidades da
Sociedade Brasileira de Medicina de Família (SOBRAMFA)
Pablo González Blasco, MD, PhD
Médico de Família e Diretor Científico da SOBRAMFA
Marcelo Levites, MD
Médico de Família e Diretor de Publicações da SOBRAMFA
Thaís Raquel Pinheiro, MD
Médica de Família e Diretora de Divulgação e Relações Públicas da SOBRAMFA
Enviar correspondência para:
Maria Auxiliadora Craice De Benedetto
Rua Sílvia, 56, Bela Vista, São Paulo, SP, Brasil
CEP: 01331-010
Fones/FAX: 11-3253 7251; 11-3285 3126
[email protected]
ABSTRACT: Working as family physicians in an academic Palliative Care (PC) ambulatory showed us that the first encounters with terminal
patients are usually frightening for medical students and juniors doctors. They demonstrated a great difficulty to deal with themes as pain,
suffering, dying and death. Certainly, this is a consequence of the predominant model of practice and teaching of medicine, in which the emphasis is given to specialization, technology and scientific evidences and the patient is seen in a fragmented way. In order to prepare properly
our trainees in such context, we provided orientation that went beyond the technical aspects. The students and residents were encouraged to
spend time on reflection. The reading of literary works and scientific papers that introduce themes and various points of view concerned PC
made part of their preparation. They are also introduced to the principles of Narrative Medicine, a method we have found to be of great value
in PC. And so, many lessons were apprehended by all members of the team.
RESUMO: A atuação em um ambulatório didático de Cuidados Paliativos (CP) demonstrou-nos que as primeiras consultas com pacientes
terminais são geralmente assustadoras para estudantes de medicina e jovens médicos. Eles mostraram uma grande dificuldade em lidar com
temas como dor, sofrimento e morte. Certamente isso se deve ao nosso modelo predominante de ensino e prática da medicina, no qual a ênfase
é dada à especialização, tecnologia e às evidências científicas e o paciente é visto de forma fragmentada. Com o objetivo de prepará-los adequadamente em tal contexto, nossos estagiários receberam orientação que foi além dos aspectos técnicos. Eles foram especialmente encorajados a
despender tempo com reflexão. A leitura de obras literárias e artigos científicos que introduzam a temas e a vários pontos de vista relacionados
aos CP fez parte de sua preparação. Eles também foram introduzidos aos princípios da Medicina através de Narrativas (Narrative Medicine),
uma metodologia que se mostrou de grande valia em CP. Assim, muitas lições foram aprendidas por todos os membros da equipe.
Introdução
R e v i s t a
Como médicos da Sociedade Brasileira de
Medicina de Família (SOBRAMFA) temos tido
a oportunidade de atuar em cenários didáticos
destinados ao ensino e à prática de Cuidados
Paliativos (CP). Essa atividade tem nos ensi-
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Cuidados Paliativos
nado importantes lições. Muitas dessas lições
são decorrentes das incontáveis narrativas que
emergem em CP, as quais representam histórias
que vão muito além da nossa velha e conhecida
história da doença atual (HDA). Várias pessoas
usualmente estão envolvidas em tais narrativas
– pacientes, médicos, familiares, residentes,
estudantes de Medicina e demais profissionais
da área de saúde. Cada uma dessas pessoas as
vivencia de acordo com suas próprias perspectivas e interpretações. Comumente, uma mesma
situação ou circunstância adquire diferentes
significados para os diferentes indivíduos que a
vivenciam e relatam em uma narrativa. Mesmo
quando a morte é a única conclusão possível para
uma história, esta pode ser escrita de diversas
maneiras. Isto quer dizer que apesar de o final de
uma história em CP ser inevitável, nós podemos
mudar o seu curso. O teor das mudanças decorre
da qualidade das relações médico-paciente e
médico-familiares. Considerar o paciente o principal personagem é o que, certamente, promove
toda a diferença. E a grande lição apreendida
tem sido: “quando aparentemente não há nada
a fazer, ainda podemos ouvir”. (1)
Os primeiros contatos com pacientes terminais são geralmente assustadores para jovens
médicos e estudantes de medicina. Os seguintes
comentários ilustram seus sentimentos e apreensões no início de seu estágio em Cuidados
Paliativos:
“Penso que serei inútil aqui, já que não há
nada mesmo a fazer.”
“Durante a graduação nos ensinaram a lidar
apenas com o sucesso e a aplicar evidências
científicas e tecnológicas para resolver questões
médicas. Assuntos referentes à dor, ao sofrimento e à morte são praticamente ignorados, como
se não representassem elementos importantes
na prática médica diária.”
“Na escola médica, tive poucos contatos com a
morte e quando isso se deu foi em circunstâncias
quase artificiais, em que médicos que eu julgava
mais experientes comandaram a cena. Mas tudo
era feito com aquela mesma impassibilidade que
nos tinham tentado transmitir como sendo a
única atitude adequada em tais situações. Sentimentos pessoais não eram admitidos e eu sentia
que alguma coisa estava faltando.”
“Entro em pânico somente em pensar que
terei de atender pacientes terminais. Penso que
não saberei como me comportar.”
“Não sei o que fazer se o paciente me perguntar: ‘eu vou morrer?’; ‘quando vou morrer,
doutor?’. ”
R e v i s t a
B r a s i l e i r a
d e
Cremos que tal comportamento seja uma decorrência do modelo predominante de ensino e
prática da medicina em nosso meio. Atualmente
a medicina é dominada por evidências científicas, avanços tecnológicos e especialização,
um mundo em que o paciente é visto de forma
fragmentada. (2) É certo que o atual modelo
oferece inúmeras vantagens para o tratamento
de determinadas condições e foi responsável
pela abolição de grande parte do sofrimento
advindo de enfermidades e traumatismos. Entretanto, médicos e pacientes não estão totalmente
satisfeitos, pois sentem que algo está faltando.
Alguns comentários ouvidos nos “corredores”
ilustram o seu pensamento. É comum pacientes
fazerem afirmações como essa: “Minha consulta durou poucos minutos e o médico foi logo
se apressando em pedir exames e prescrever
medicamentos, sem ao mesmo ter me olhado
e ouvido adequadamente. Gostaria que ele me
tivesse demonstrado maior atenção. Ele sequer
olhou para mim.” Do outro lado do espectro,
recentemente ouvi um colega queixar-se: “Estou
perdendo a paixão pela prática da medicina. Não
há espaço para o humanismo no atual modelo.
Penso que a medicina deveria ser abordada como
ciência e arte, uma disciplina em que os aspectos
humanos deveriam ser tão apreciados quanto os
científicos e tecnológicos.”
Considerando-se esse contexto e a dificuldade inicial demonstrada por residentes e estudantes de medicina em lidar com as situações
relacionadas a pacientes fora de possibilidades
terapêuticas, ficou evidente que para se vencer
esse desafio seria necessário uma boa preparação e encorajamento para se despender tempo
com reflexão. Assim, em nossos ambulatórios
didáticos de Cuidados Paliativos, além de
receberem o ensinamento para o controle de
principais sintomas, residentes e estudantes
têm sido orientados à leitura e discussão de
obras literárias e artigos científicos que propiciem um contato com temas que comumente
consideram difíceis, tais como dor, sofrimento,
morte, frustração, insegurança, sensação de
incapacidade e assim por diante. Além disso,
são introduzidos aos princípios da metodologia
denominada Medicina através de Narrativas
(Narrative Medicine), a qual demonstrou-se ser
de grande valia em Cuidados Paliativos.
Narrativas como i
nstrumento terapêutico
Uma orientação fundamental tem sido insistentemente repetida aos nossos estagiários
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Revista Brasileira de Cuidados Paliativos
Cuidados Paliativos
R e v i s t a
antes das consultas em Cuidados Paliativos: “não
importa quais sejam seus próprios sentimentos,
olhem nos olhos de seus pacientes e simplesmente os ouçam, demonstrando atenção e interesse
ao que quer que tenham necessidade de dizer,
mesmo que os temas expostos aparentemente
nada tenham a ver com suas histórias clínicas.”
Esta é a pedra angular da Medicina através de
Narrativas, metodologia que vem sendo construída nas últimas décadas graças à contribuição
de vários autores.
Alguns antropólogos referem-se aos indivíduos como contadores de histórias, pois o ato
de contá-las está fortemente arraigado ao seu
âmago. Através das histórias, nossos ancestrais
criaram metáforas na tentativa de explicar o incompreensível e misterioso. As histórias mantêm
viva a memória dos seres humanos, atribuindo
sentido e significado a cada ato da vida. Sendo
transmitidas de geração à geração, têm construído a identidade dos povos através dos séculos.
Segundo Higino Marin Pedreño, a definição de
ser humano é: bípede com mãos que conta histórias. Estas permitem que o caos se transforme
em ordem. Através delas o ser humano, além
de recordar, pode re-escrever sua vida. (3) Na
atualidade, muitos autores médicos também
consideram os pacientes como contadores de
histórias. (4) Dessa forma, as narrativas que
emergem do contato médico-paciente têm sido
consideradas por seu potencial terapêutico e
didático no ensino e prática da medicina.
Michel Balint, na década de 50, revolucionou
o método clínico enfatizando a necessidade da
prática de uma medicina centrada na pessoa e
não na doença. Estimulou o uso das narrativas
como um instrumento terapêutico capaz de
auxiliar médicos generalistas a lidar com os
transtornos emocionais dos pacientes e com suas
próprias questões emocionais nascidas em decorrência do relacionamento médico- paciente.
(5) Rita Charon criou o termo Narrative Medicine
e afirma que: “a boa prática da medicina requer
competência em narrativa, o que significa a capacidade para reconhecer, assimilar, interpretar
e atuar de acordo com as histórias e dificuldades
dos pacientes. Competência em narrativa permite aos médicos alcançar os pacientes e atuar junto
a eles na enfermidade, reconhecer sua própria
jornada pessoal através da medicina, reconhecer
suas obrigações junto a outros profissionais de
saúde e introduzir a um discurso sobre saúde.”
A leitura e discussão acerca de obras literárias e
a escrita reflexiva complementam o método e
auxiliam a clarificar situações difíceis. (6)
Ouvir as histórias dos pacientes, mesmo
aquelas que aparentemente nada têm a ver com
suas histórias clínicas tem por si só um efeito
paliativo ou terapêutico. (7) Permitir que os
pacientes expressem seus sentimentos e dores
também. (8) As narrativas dos pacientes mostram quais são suas reais necessidades.
As narrativas dos pacientes são muito mais
do que simples histórias em que os fatos são
contados de forma linear. Nelas, os sentimentos
que existem por trás dos fatos são muito mais
importantes que os próprios fatos. As narrativas implicam em interpretação. Portanto, uma
mesma história é contada e ouvida de forma
diferente por diferentes pessoas. (9)
Ao serem ouvidos com compaixão e empatia
os pacientes terminais sentem que não mais
estão sozinhos. Assim, suas histórias de caos – as
típicas que emergem em Cuidados Paliativos
– são transformadas em histórias de busca, nas
quais a enfermidade se transforma em ensinamento a todos envolvidos com a situação – os
próprios pacientes, familiares e profissionais de
saúde. Histórias de busca são histórias de transcendência. Quando encontram um testemunho
atencioso de seus sofrimentos, os pacientes em
CP têm a oportunidade de organizar o caos que se
instalou em suas vidas em decorrência da doença
incurável e, assim, encontrar um significado que
lhes permita aceitar a vida incondicionalmente.
O sofrimento não deixa de existir, mas torna-se
mais suportável. Dessa forma, muitas vezes, os
pacientes conseguem fluir com maior suavidade de uma fase de revolta ou depressão, por
exemplo, para uma condição de aceitação. (4)
Esta é a abordagem em narrativas do professor
de sociologia médica da Universidade de Calgary, Canadá, Arthur Frank, a qual tem inspirado
os participantes de nossas atividades em CP
e motivado a criação de muitas narrativas, as
quais têm sido contadas, escritas, recontadas e
reescritas por estudantes, pacientes, familiares,
residentes e médicos. Os sentimentos, interpretações e pontos de vista de cada participante de
uma história influenciam a forma como esta é
apresentada. Quando profissionais de saúde
ouvem seus pacientes com compaixão e empatia,
eles participam da criação de um novo roteiro
em que a presença de elementos de superação
e transcendência demonstra que o curso da
história foi mudado.
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Avançando
na prática
A história de João (nome fictício), a qual é
apresentada em seguida, foi muito marcante
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NARRATIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS – um instrumento para lidar com a dor, o sofrimento e a morte
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Cuidados Paliativos
para o grupo de residentes que o acompanhou
em nosso ambulatório de CP. Ilustra a jornada
de um paciente a partir de uma história de caos
a uma história de busca, a qual se evidenciou nitidamente após algumas consultas. Tal transformação somente foi possível porque o paciente,
ao ser ouvido e sentir-se compreendido, pôde
perceber que ele não tinha necessidade de caminhar sozinho. Ele conseguiu, enfim, falar sobre
sentimentos, dúvidas e medos, não apenas com
a equipe mas também com sua esposa.
Nossos residentes confessaram que, antes de
terem participado da história de João, não acreditavam que pudessem auxiliar os pacientes em sua
jornada do sofrimento rumo à transcendência.
Após a leitura dos artigos recomendados inicialmente, especialmente o de Arthur Frank, um
deles comentou: “talvez essa seja uma concepção
um tanto teórica, apenas uma visão romântica
de alguns autores. Não vejo como possa ser de
utilidade nestas situações vividas no dia-a-dia.”
No entanto, com o decorrer do tempo, após participarem da história de João e de tantas outras que
enriqueceram sua prática clínica e estimularam
a reflexão, eles mudaram seus pontos de vista. E
compreenderam uma importante lição: quando
não há aparentemente nada a fazer, ainda se
pode ouvir. Esse aprendizado ficou totalmente
evidente na história de João, a qual é relatada em
seguida de acordo com a ótica dos residentes:
“João chegou em uma cadeira de rodas empurrada por sua esposa, Maria (nome também
fictício). Estava muito magro, pálido e abatido.
Sua esposa também apresentava uma aparência de desânimo estampada em seu rosto, mas
começou a falar porque seu marido se mantinha em silêncio. Ela nos entregou uma carta
de encaminhamento informando que João era
portador de um câncer avançado de esôfago,
encontrava-se fora de possibilidades terapêutica
e necessitava de Cuidados Paliativos. Ele estava
sendo alimentado por uma sonda nasoenteral.
Fitando-nos com um ar de cumplicidade e talvez
com alguma esperança em receber ajuda, Maria
nos relatou que seu marido não conseguia comer ou dormir. Apenas ficava tossindo o tempo
todo. Quando conseguia balbuciar algo, era para
queixar-se de dor. Todo seu corpo doía e ainda
salivava continuamente.
O que poderíamos fazer, nós, meros residentes de primeiro ano? Tivemos vontade de sair
correndo. Fomos acometidos por uma profunda
sensação de incapacidade. Estávamos diante de
uma verdadeira história de caos. Mas alguém
havia nos dito: “quando não há aparentemente
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d e
nada a fazer, ainda se pode ouvir.” Ouvir Maria
e tentar compreender o significado oculto do
discurso sem palavras de João seria um bom
começo. Assim, após respirar profundamente,
começamos a fazer isso. Maria nos contou sobre
suas vidas e relacionamento com João. Estava
muito cansada pois ainda tinha de cuidar de sua
mãe, portadora de doença de Alzheimer. Estava
fazendo o seu melhor, pois João havia sido um
excelente companheiro. Já estavam juntos há
oito anos. João havia dado apoio à Maria em uma
difícil fase de sua vida. Desde então tinham usufruído uma boa vida juntos. Gostariam de ter tido
filhos, mas Maria havia sido submetida a uma
esterilização cirúrgica no primeiro casamento e
tinha quarenta anos quando se casaram.
Percebendo que, finalmente, alguém estava
demonstrando interesse por ele, João murmurou
algumas palavras durante o exame físico, para
fazer as perguntas cuja resposta certamente já
conhecia – ‘quando vou conseguir falar normalmente?’; ‘se eu conseguir engordar, poderei ser
operado para a retirada do tumor?’.
Quando conversamos com Maria, na ausência de João, ela nos disse que nenhum médico
havia lhe falado claramente que ele não tinha
chances de cura, mas ela tinha certeza de que ele
havia percebido isso por si mesmo. Ainda assim,
algumas vezes, ele ousava ter esperanças.
Nosso paciente foi dispensado com uma
prescrição de medicamentos para o controle dos
principais sintomas e suas dúvidas do momento
foram esclarecidas até o ponto permitido por
seu grau de compreensão e preparo emocional
evidenciado na ocasião. Quando partiram,
pudemos perceber uma expressão de alívio nas
faces de ambos.
Na segunda consulta, João chegou andando,
bem vestido e com uma aparência bem melhor.
Os medicamentos prescritos para o controle da
anorexia, caquexia, fadiga, dores, tosse e depressão haviam surtido algum efeito. Em decorrência
desses aparentes bons resultados, ele voltou a ter
esperanças de que pudesse ser submetido a um
tratamento curativo. Mas naquele momento não
seria justo enganá-lo e nós lhe afirmamos que
não poderíamos afirmar por quanto tempo ele se
manteria entre nós. Um única coisa poderíamos
garantir: mesmo que a cura fosse impossível, nós
estaríamos sempre ao seu lado para ajudá-lo a
sentir-se o melhor possível.
Na terceira consulta, a situação clínica era a
mesma. Mas tivemos novidades. Maria afirmou
estar grávida. Tinha certeza disso, apesar da esterilização anterior realizada há vinte anos atrás
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2009
Revista Brasileira de Cuidados Paliativos
Cuidados Paliativos
e de o ginecologista ter afirmado que ela deveria
estar apresentando sintomas do climatério e um
provável mioma uterino. Não havia ainda feito
os testes para diagnóstico, mas mantinha uma
calma certeza acerca da gestação, a qual proporcionava grande alegria ao marido.
Outras consultas ocorreram antes que Maria
tivesse a chance de confirmar ou não sua gravidez
e João permanecia estável, melhor do que podíamos prever. Pudemos perceber que uma semente
de espiritualidade se desenvolvia nele, pois nos
falava com entusiasmo acerca de um programa
religioso de rádio, afirmando que as palavras do
padre que o conduzia estavam lhe dando grande
serenidade e aceitação.
A cada consulta, o vínculo entre residentes, médicos, paciente e familiar se estreitava.
Sentíamos que estávamos realmente fazendo
a diferença. João e Maria se apresentavam bem
diferentes em comparação à primeira vez em que
os vimos. Isto porque estávamos simplesmente
ouvindo-os. Esta era a coisa mais importante que
estávamos fazendo. João nos falou muito sobre
seu passado, seus sentimentos e suas necessidades. Certamente havia sido uma pessoa alegre
e divertida.
Então, quatro meses após o primeiro encontro, Maria compareceu no dia agendado para a
consulta, sozinha. Ela estava chorando quando
nos disse: “Doutores, ele se foi. Tive de levá-lo
ao hospital pois estava tendo dificuldades para
respirar.. Após quatro dias de internação, ele
morreu. Então estava em paz. Mas antes disso,
minha gravidez foi confirmada. Dessa forma,
João partiu com a certeza de que uma parte dele
ficaria comigo para sempre. Na manhã em que
morreu, estava ouvindo o programa de rádio do
padre que ele tanto apreciou no período final de
sua vida. Após o programa, ele me olhou com
carinho e disse que me amava. Então, tirou com
suavidade a sonda nasoenteral, dizendo que
não teria mais necessidade dela. Pediu-me para
agradecer a todos vocês que o ajudaram ao longo
desses dias difíceis, disse adeus e afirmou que,
mesmo estando do ‘outro lado’ iria tomar conta
de mim e de nosso filho.”
Referências
bibliográficas
Muitas outras histórias similares a de João
têm aflorado em nossos cenários de ensino
e prática de CP. Fica fácil compreender que
após tão profundas experiências estudantes e
profissionais criam sua próprias histórias de
caos e necessitam transcendê-las em histórias
de busca. Assim, após a discussão de aspectos
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B r a s i l e i r a
P a l i a t i v o s
Conclusão
R e v i s t a
técnicos relacionados à prática clínica, as nossas atividades em CP são usualmente fechadas
com uma sessão de escrita reflexiva. (10) Nesta,
os participantes têm a oportunidade de compartilhar experiências, sentimentos e dores, o
que permite a clarificação de situações difíceis.
Muitas vezes, textos literários que refletem a
realidade ali vivida são utilizados para ilustrar
temas emergentes na prática. Lições de vida são
compartilhadas e dessa forma se transformam
em um sólido aprendizado que passa a ser aplicável em situações similares e também em outros
cenários de prática.
A abordagem narrativa aplicada em CP tem
demonstrado ser um excelente instrumento
didático e terapêutico para estudantes, profissionais, pacientes e familiares. A Medicina
através de Narrativas enriquece a prática clínica
e é totalmente alinhada aos preceitos ensinados
em Medicina de Família e CP. As narrativas permitem que os aspectos sutis do ser humano, os
quais não são levados em conta pela abordagem
puramente técnica, sejam também contemplados. Permitem uma integração harmoniosa
dos vários elementos envolvidos na prática da
medicina: médicos, pacientes, evidências científicas, prática centrada no paciente, tecnologia,
etc.. E assim, fazendo o papel desse elemento
integrador, as narrativas promovem a prática da
Medicina de forma compreensiva e eficiente, ou
seja, como Ciência e Arte. (11)
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CUIDADOS PALIATIVOS
NA EMERGÊNCIA
Palliative Care at
the Emergency Room
Paulina Basch - Especialista em Clínica Médica pela Irmandade da Santa
Casa de Misericórdia de São Paulo -ISCMSP, Cuidados Paliativos pela Oxford
University em associação com Pallium Latinoamerica
Assistente da ISCMSP e membro da Equipe de Tratamento de Dor e Cuidados
Paliativos do Hospital Israelita Albert Einstein
Resumo: Os pacientes em situação de cuidados paliativos no Brasil ainda são pouco acompanhados por equipes específicas para isso.
Diante dessa realidade, surge a necessidade da abordagem de pacientes terminais e sem possibilidades terapêuticas curativas nos prontosocorros. O médico deve estar preparado para lidar com essas situações no serviço de emergência e saber proporcionar alívio adequado
dos sintomas e sofrimento, que podem incluir dor, fadiga, náusea, dispnéia, constipação, suboclusão intestinal e outros, além de realizar
uma abordagem inicial adequada ao paciente e familiares.
Abstract: Seriously ill and dying patients are rarely evaluated and assisted by specific palliative care teams in Brazil. In these settings,
there is an amount of patients that are evaluated in the emergency room, and physicians must deal with supportive therapies to manage
pain, suffering, nausea, fatigue, dyspnea ,anxiety, constipation, and provide an adequate initial approach for the patient and his family,
addressing anxiety and psychosocial issues properly.
Palavras-chave: Cuidados Paliativos, controle de sintomas, pronto-socorro, alívio do sofrimento, dor, dispnéia, sedação paliativa.
Key words: Palliative Care, symptom control, emergency room, suffering control, pain, dyspnea, palliative sedation.
Introdução
Cuidados Paliativos são os cuidados oferecidos
a pacientes cujas doenças apresentam escassas
possibilidades de tratamento curativo, como neoplasias metastáticas, doenças crônicas em fase final
(DPOC, ICC, Demências avançadas, Hepatopatias
terminais), mas que, apesar da impossibilidade de
tratamento curativo, podem receber uma imensa
gama de cuidados, visando o controle de sintomas,
cuidados com a família e abordagem da terminalidade. Isso engloba o conceito de “Dor Total”, que
é definido como a abordagem das dores: física,
emocional, financeira, social e espiritual.
Como a grande maioria dos pacientes que
enfrentam esse processo não é ainda acompanhada por uma equipe multiprofissional capacitada
para isso, o número de pacientes e familiares que
buscam os serviços de Emergência para controle
de sintomas corresponde a cerca de 15% dos atenR e v i s t a
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dimentos prestados na sua totalidade. O médico
emergencista deve, portanto, estar preparado
para lidar com essas difíceis situações e saber
proporcionar alívio da dor e de outros sintomas
que causem sofrimento.
Neste artigo de revisão abordaremos as
principais situações vividas em um pronto socorro com pacientes com as patologias acima,
que podem apresentar: dor, dispnéia, náuseas
e vômitos, obstipação, alterações neurológicas,
fraturas patológicas, sangramentos, distúrbio
metabólicos, desidratação, debilidade intensa
e estado agônico terminal, e como controlar os
sintomas e aliviar o sofrimento.
Abordagem
inicial
Em cada caso é necessária uma apurada anamnese e exame físico, possibilitando o diagnóstico
correto para orientação do tratamento.
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É necessário lembrar que em Cuidados Paliativos a unidade de cuidado é o paciente e a família, e
uma relação médico-paciente deve ser bem estabelecida, mesmo que em poucos minutos. A conversa
sobre o prognóstico reservado e a possibilidade de
morte deve ocorrer, mesmo que o assunto esteja
sendo abordado pela primeira vez, como vemos
tantas vezes. O médico deve saber ouvir o paciente e
a família, com contato visual e proximidade corporal adequados para o acolhimento. Deve também
estar preparado para reações naturais que possam
ocorrer, como negação, revolta e tristeza, sabendo
que estas não lhe são direcionadas, mas reações
humanas naturais frente a notícias difíceis, como
a de morte próxima.
As vias de administração de medicamentos
também têm sua particularidade, priorizando-se
a via oral (VO), seguida da subcutânea (SC), que é
menos dolorosa, mais fácil de ser instalada e mais
cômoda para o paciente que a via endovenosa
(EV). Esta seria a terceira opção, sendo a última
opção a via intramuscular (IM), por causar dor e
desconforto, sensações que queremos evitar. As vias
transdérmica (TD) e retal (VR) também podem ser
utilizadas, se houver possibilidade e necessidade.
As medicações que podem ser administradas
por via SC são: morfina, fentanil, midazolam,
tramadol, haloperidol, metoclorpramida, dimenidrato, escopolamina, dexametasona, ranitidina,
furosemida, clodronato, calcitonina, levomepromazina, diclofenaco, soro fisiológico e solução
glicofisiológica.
pela escada
para cada indivíduo
com atenção aos detalhes
Primeiro
degrau: dor leve
No primeiro degrau devem ser introduzidos analgésicos comuns como a dipirona, o
paracetamol.
Doses: Dipirona – 500mg a 2g, VO ou EV
de 6/6h
Paracetamol – 500mg a 1g, VO de 6/6h
Segundo
degrau: dor moderada
Manter analgésicos comuns, associando opióides fracos , como o tramadol e a codeína.
Doses: Codeína – 7,5 a 30mg, VO de 6/6h
Tramadol: 50 a 100mg, VO, SC ou EV, de 6/6h
Terceiro
degrau: dor intensa
É necessário o uso de opióides fortes, como
morfina, metadona, oxicodona ou fentanil. Abordaremos mais o uso da morfina, que pode ser facilmente prescrita em um Serviço de Emergência, já
que outros opióides podem não estar disponíveis
e seu manejo é um pouco mais complexo.
“Existe um consenso internacional sobre a
morfina como opióide de eleição para o manejo
da dor por câncer. Seu uso apropriado não somente dá resultados efetivos, como também é bastante
seguro.” ( Twycross, 1993).
analgesia deve ser
preconizada:
-
pela boca (VO)
-
pelo relógio (de horário)
Doses: Morfina 10mg VO 4/4h com dose de
resgate de 5mg se necessário. Aumentar a dose
conforme a utilização dos resgates.
Morfina 2mg SC ou EV 4/4h, com resgates
de 1mg se necessário. Pode-se realizar um bolus
inicial de 5mg. Aumentar a dose conforme a utilização de resgates e controle da dor.
A dor é o próprio modulador da dose de morfina, o que torna a possibilidade de intoxicação
remota, já que é realizada uma titulação conforme
a melhora da dor, individualizada, reavaliando-se
o paciente com freqüência.
A dose de morfina VO é três vezes a dose de
morfina EV ou SC, devendo-se atentar a esse
fato para realização de equivalência e mudança
de via.
Os principais efeitos adversos são: sedação,
náusea, constipação, prurido, retenção urinária,
mioclonias, hiperalgesia e depressão respiratória se em altas doses. Deve-se ter cuidado na
administração em pacientes com insuficiência
renal. Em caso de intoxicação, deve-se reduzir
a dose, hidratar o paciente, controlar náuseas
e outros sintomas ou em último caso trocar de
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Dor
A dor é uma experiência sensorial e emocional
desprazerosa, associada a dano atual ou potencial
de tecidos. É um fenômeno somatopsíquico,
de natureza multidimensional. Enfocaremos o
tratamento da dor aguda do ponto de vista farmacológico no capítulo.
A caracterização da dor é de fundamental
importância para seu tratamento, devendo-se
considerar: localização, intensidade, qualidade,
fatores de melhora ou piora, temporalidade,
irradiação.
A OMS estabelece uma “escada” da dor, pela
qual 90% das dores podem ser controladas. Utiliza-se a escala numérica da dor, considerando-se: 1
a 3: dor leve; 4 a 6: dor moderada; 7 a 9: dor intensa
e 10: dor insuportável.
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opióide. Não abordaremos a troca de opióide
neste artigo.
É necessário prevenir alguns efeitos de antemão, como a obstipação. Ao prescrever opióides,
se não houver contraindicações, prescrever um
laxativo associado(senna, bisacodil, lactulose,
etc...).
Medicações
adjuvantes
São medicações que devem ser utilizadas para
controle da dor em qualquer intensidade de dor,
pois são complementares e auxiliam no mecanismo específico em cada caso, nos diferentes
tipos de dor.
Náusea
e Vômitos
Entre 40 e 70% dos pacientes com câncer
avançado apresentam náuseas e vômitos, não
havendo, entretanto, diretrizes absolutamente
definidas para seu controle. O importante é realizar o diagnóstico correto de sua causa, para que o
tratamento antiemético adequado seja instalado
de acordo com sua fisiopatologia.
Causas
comuns de náuseas e
vômitos em pacientes com câncer
avançado:
- Transtornos gastrointestinais: estase gástrica,
suboclusão intestinal
- Irritação faríngea: candidíase, dificuldade de
expectoração
- Drogas: opióides, antibióticos, AINE, digoxina
- Metabólicas: hipercalcemia, insuficiência
renal/uremia
- Tóxicas: radio e quimioterapia, infecções, sínd.
Paraneoplásicas
- Metástases cerebrais
- Inerente à doença: síndrome da anorexia-caquexia
- Fatores psicossomáticos: medo, ansiedade
Tratamento
Inicialmente deve-se “corrigir o corrigível”,
com suspensão de drogas emetogênicas ou redução de dose. Identifica-se então a causa provável
e principal dos sintomas para introduzir o tratamento farmacológico adequado:
Fármaco
Grupo
Dose inicial
Dose máxima
Indicações
Efeitos adversos
Gabapentina
Anticonvulsivante
300mg
3600mg
Dor neuropática
Sonolência, náusea
edema MMII
Amitriptilina
Antidepressivo
tricíclico
25mg
150mg
Dor neuropática
Efeitos anticolinérgicos:boca seca,
retenção urinária,
constipação
Carbamazepina
Anticonvulsivante
100mg
1600mg
Dor neuropática
Retenção hídrica,
hiponatremia, sonolência, tontura
Dexametasona
Corticoesteróide
4mg
20mg
Compressão tumoral
Hipernatremia,
hiperglicemia
Sertralina
Antidepressivo ISRS
50mg
100mg
Dor neuropática/
componente depressivo
Náusea, vômitos,
redução do apetite
inicialmente
Clonazepam
Benzodiazepínico
0,5mg
4mg
Dor com componente de ansiedade
Hipotensão postural, sonolência
excessiva
Diclofenaco
AINH
50mg
150mg
Dor com componen- Insuficiência renal,
te inflamatório
dispepsia, sangramentos
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a) Em casos de gastrite, estase gástrica ou obstrução intestinal funcional: pró-cinético como a
metoclorpramida na dose de 10mg VO ou SC
6/6h, ou 40 a 100mg SC em 24h, em infusão
contínua.
b) Náusea por hipercalcemia, insuficiência renal
ou altas doses de opióides: antiemético de
ação principal na área postrema, sendo o
haloperidol a medicação de escolha, na dose
de 1 a 3mg SC em dose única noturna ou 5mg
SC em 24h em infusão contínua.
c) Náuseas e vômitos por provável suboclusão
intestinal: dexametasona 4 a 20mg/dia, VO,
SC ou EV; escopolamina 20mg SC 6/6h; dimenidrato 50 a 100mg VO ou EV 6/6h.
d) Náuseas e vômitos por quimioterapia (QT),
distensão intestinal, dano da mucosa por
radioterapia (RT) e nos casos de insuficiência
renal com alteração plaquetária: ondansentron 4mg EV 8/8h, por até 5 dias após a QT.
e) Falha terapêutica com outros antieméticos:
associação de dexametasona, outro antiemético, ou introdução de levomepromazina com
dose inicial de 6,25mg SC 12/12h. Tem amplo
espectro de ação antiemética, em pelo menos
4 dos receptores envolvidos. Pode causar
sedação.
OBS: não se deve prescrever uma droga pró-cinética
(metoclorpramida – Plasil) associada com um
anticolinérgico (escopolamina – Buscopam).
A via final comum de ação dos pró-cinéticos é
colinérgica, o que bloqueia seu efeito.
A hipercalcemia ocorre em 10 a 20% de todas
as doenças malignas, chegando a 50% no câncer de
mama e mieloma múltiplo. É comum nos cânceres
de pulmão, cabeça e pescoço, rim, colo de útero e
em metástases ósseas. Geralmente ocorre em etapas avançadas da doença, com sobrevida de 20%
em um ano. Os sintomas variam de intensidade,
e incluem fadiga, anorexia, torpor, constipação,
delirium, náuseas e vômitos, sonolência e coma.
Para orientar o manejo da hipercalcemia em
pacientes sem possibilidade terapêutica curativa,
devemos pensar: “há uma justificativa para corrigir uma complicação potencialmente fatal em
um paciente moribundo?” Se o paciente estiver
consciente e participativo, com qualidade de vida
prévia aceitável (do ponto de vista do paciente),
perspectiva de tratamento paliativo prolongado
ou alguma pendência de outra ordem a ser resolvida, há justificativa para tal.
O tratamento é baseado na hidratação com
SF0,9%, diuréticos de alça e bisfosfonados como
o palmidronato, na dose de 30 a 90mg EV, com
infusão de 20mg/h e concentração máxima de
60mg por 250ml de solução. Deve ser repetido
em uma semana, e mantido por 3 a 4 semanas
seguintes. A calcitonina tem efeito rápido e normaliza a calcemia em 2 horas. A dose preconizada
é de 100UI em 24h, SC, com efeito por aproximadamente 3 dias.
Desidratação
intestinal
É causa comum de procura ao Pronto Socorro,
sendo freqüente em Cuidados Paliativos pelo uso
de medicações, imobilidade prolongada, distúrbios metabólicos, desidratação e tumorações que
podem causar oclusões e suboclusões.
O manejo da suboclusão intestinal em CP é
realizado de forma conservadora, com corticóides
como a dexametasona de 4 a 20mg/dia SC, VO ou
EV, escopolamina 20mg SC 6/6h. A intervenção
cirúrgica é rara, devendo-se respeitar a autonomia
do paciente e família para tal.
Em casos de fecaloma, pode-se realizar tanto a
quebra seguida de enema quanto um enema com
óleo mineral inicialmente.
Algumas drogas laxativas que podem ser prescritas são Senna, lactulose, docusato, óleo mineral,
bisacodil. Seu uso diário diminui a possibilidade
de constipação e suboclusão intestinal, já que a
maioria dos pacientes em questão usa opióides
diariamente.
A desidratação terminal é definida como a
alteração produzida pela depleção de sódio e água
que ocorre nos últimos dias de vida do paciente,
por desinteresse ou impossibilidade na ingestão.
Acredita-se que a desidratação não origine mal
estar nem sofrimento no paciente terminal; pelo
contrário, pode ter benefícios pelo aumento de
endorfinas endógenas circulantes por seu efeito
analgésico e anestésico. Há sim desconforto na
sensação de sede e boca seca ocasionada por medicamentos (opiáceos, anticolinérgicos, tricíclicos),
que pode ser resolvida facilmente com administração de gelo picado em pequenos goles.
A desidratação pode contribuir para agitação, delirium, aumento de efeitos adversos
de opióides, constipação e alterações da pele.
Contudo, a reidratação em pacientes terminais
pode aumentar a quantidade de secreções faríngeas e pulmonares, produzindo estertores, tosse,
dispnéia, aumento do risco de edema agudo de
pulmão, edema de membros e ascite, aumento das
secreções gástricas e digestivas, podendo causar
náusea e vômitos.
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Constipação
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Hipercalcemia
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Deve, portanto, ser pesado seu risco-benefício
dependendo do caso. A via prioritária para administração de fluídos é a via oral, podendo-se trazer
conforto e alívio da sensação de sede e boca seca
com uma medida bastante simples: pequenos
goles de gelo picado, água gelada com limão
espremido e cuidados com os lábios.
A passagem de sonda nasogástrica ou nasoenteral não é defendida hoje em dia para garantir a
hidratação de pacientes terminais, sendo considerada uma medida agressiva, desconfortável e que
não garante benefícios. Seu uso deve ser restrito a
pacientes com disfagia, fístulas e obstruções altas
que impeçam a alimentação natural.
A hidratação EV deve ser utilizada apenas
nos casos em que esteja indicada uma reposição
hídrica rápida, sem evidência de que aumente a
qualidade de vida do paciente terminal.
A hipodermóclise ou hidratação SC pode
ser realizada, sendo bem tolerada e com poucos
efeitos adversos secundários. Podem ser infundidos até 1500ml de solução salina fisiológica
ou glicofisiológica, em infusão contínua de 20
a 120ml/h.
Hemorragia
A hemorragia é uma complicação comum
dos pacientes terminais, e causa muita ansiedade
para o paciente e família. Os principais locais de
sangramento são:
- aorta em tumores broncogênicos
- artéria carótida em tumores de cabeça e pescoço, com aumento do risco se houve cirurgia
ou RT prévios
- sangramento de úlceras malignas por rotura
arterial
- hematêmese, melena e sangramento vaginal
maciços
O tratamento depende da gravidade da hemorragia e do prognóstico do paciente (grau de
morbidade). A transfusão sanguínea pode ser
considerada, bem como adrenalizações e compressões de sangramento em local visível. Em
tumores de cabeça e pescoço, deve-se acomodar o
paciente se possível com toalhas ou panos de cor
escura, evitando ansiedades maiores.
Em caso de morte iminente, havendo consenso entre paciente, família e equipe médica,
deve-se considerar a sedação paliativa (será
abordada a seguir).
Síndrome
da veia cava superior
É a compressão extrínseca ou invasão da parede do vaso ou mesmo a própria trombose da veia
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cava superior, geralmente causada por neoplasias
avançadas de pulmão (75% dos casos) e linfomas
(15 a 20% dos casos).
Ocorre edema cervicofacial, turgência jugular,
cefaléia e dispnéia.
O tratamento deve ser realizado com Radioterapia e corticoterapia em altas doses (dexametasona 20mg ou metilprednisolona 60 a
80mg/dia), ou QT em neoplasia pulmonar de
pequenas células. Em caso de doença muito avançada, utilizar apenas a corticoterapia associada
a diuréticos de alça.
Compressão Medular
A compressão medular é uma urgência oncológica e neurológica, cujos diagnóstico e tratamento precoces podem evitar dano neurológico
grave e irreversível.
É caracterizada inicialmente por dor, evoluindo para alterações motoras e déficit de
sensibilidade até paralisia e incontinência de
esfíncteres como conseqüência do dano neurológico completo.
A história clínica, exame físico e exame de imagem (RNM) da coluna são imprescindíveis para o
correto diagnóstico e instituição do tratamento.
Este deve ser iniciado com dexametasona de 4 a 20
mg/dia, com manutenção de 4 a 8mg EV ou SC de
6/6h, além de analgesia com opióides conforme a
escada de analgesia.
A RT de urgência deve ser realizada, pois
descomprime o tecido nervoso pela regressão
tumoral, reduz o déficit neurológico e controla a
dor. A cirurgia deve ser indicada apenas em casos
de RT prévia, progressão da lesão em curso de RT,
não confirmação histológica com piora clínica e
instabilidade mecânica. A RT, QT ou hormonioterapia adjuvantes após a cirurgia estão indicadas.
Dispnéia
A dispnéia grave é um dos principais sintomas
que apresenta o paciente com câncer avançado em
etapa terminal, principalmente na última semana
de vida. É multifatorial, podendo ser atribuída a
neoplasia pulmonar, metástases pulmonares, derrame pleural, linfangite carcinomatosa, ascite de
grande volume, infecções e congestão pulmonar.
É acompanhada por intensa angústia e sensação
de morte iminente, sensações estas compartilhadas com os familiares.
Dependendo da causa pode ser aliviada por
uma paracentese ou toracocentese no caso de derrame pleural; se o derrame pleural neoplásico não
responde mais a repetidas toracocenteses, outra
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estratégia terapêutica deve ser pensada.
Em caso de hipersecreção de vias aéreas com
roncos difusos à ausculta por acúmulo de secreções em vias aéreas altas (sororoca), pode-se introduzir um anticolínérgico como a escopolamina,
na dose de 20mg SC de 6/6h, com aporte hídrico
se possível apenas VO. A família deve ser orientada
que esses ruídos são por acúmulo de secreção, e
não algo que esteja causando grande sofrimento
ao doente.
A utilização de morfina e midazolam no controle da dispnéia mostrou-se superior a longo prazo em relação ao aporte de oxigênio com máscara,
que apresenta alto grau de intolerância.
A dose de morfina para controle da dispnéia
é variável, podendo-se iniciar com 2 a 4mg SC de
4/4h. Se após 1 hora não houver resposta, pode-se
realizar uma dose de resgate com metade da dose
infundida anteriormente, reavaliando sempre até
controle do sintoma. Após a obtenção da dose
terapêutica, mantê-la de 4/4h, reavaliando-se
com relação à possibilidade de efeitos adversos.
Pode-se realizar também infusão contínua com
20 a 40mg SC em 24h ou conforme controle
terapêutico.
A associação com midazolam em doses baixas
em casos de crise de dispnéia ou ataque de pânico
respiratório é benéfica, iniciando-se com 5mg
SC, podendo ser repetida em algumas horas se
necessário (no mínimo 1 hora para aumento de
dose e nova dose se controle adequado).
A orientação ao paciente e família sobre as
medicações utilizadas é imprescindível, explicando-se a intenção do controle da dispnéia, não
de sedação.
Sedação Paliativa
É a administração de fármacos que reduzem
o nível de consciência, com o consentimento do
paciente ou responsável, com o objetivo de aliviar
sintomas refratários e intoleráveis em pacientes
com doença avançada e terminal.
Há vários tipos de sedação utilizados, podendo ser classificados em:
- intermitente: propicia momentos de consciência
- contínua: mantém o paciente sedado até a
morte
- superficial: mantém a consciência
- profunda: mantém o paciente inconsciente
Para realizar a sedação, é necessário que todas
as causas de sofrimento tenham sido tratadas, e,
em casos de delirium potencialmente reversíveis,
optar por sedação intermitente. Para sedação conR e v i s t a
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tínua é necessário certificar-se de que a doença é
irreversível e há iminência de morte.
Como reconhecer um paciente na iminência
de morte?
Geralmente são pacientes que apresentam-se
extremamente debilitados, com sonolência, desorientação, caquexia, pouca ou nenhuma ingesta
oral de alimentos ou fluídos.
É necessário deixar claro que a sedação paliativa difere absolutamente da eutanásia, uma vez
que esta é uma ação médica realizada com intenção de provocar a morte, e a sedação paliativa
um recurso final em etapa final de doença, com a
intenção de aliviar um sofrimento refratário.
A família deve ser orientada e concordar com
o procedimento, e para isso a intenção deve ser
exposta com sinceridade. A abordagem familiar
em relação à morte próxima deve ser realizada,
incentivadas expressões de sentimentos, sejam
eles de tristeza, amor, culpa ou apenas de despedida. Ao perceber que o paciente terá uma
morte não dolorosa e sem sofrimento aparente
nas próximas horas ou dias, na maioria das vezes
a família concorda com o procedimento e agradece pelo grande alívio proporcionado, apesar
da tristeza sentida.
As medicações utilizadas na sedação paliativa
compreendem hoje em dia os benzodiazepínicos
como o midazolam, e a levomepromazina, um
antiemético com forte poder sedativo. A dose de
midazolam preconizada é de 1 a 6mg/h, SC em
infusão contínua, com dose inicial de 10mg SC em
bolus. É necessário reavaliar após 30 minutos para
controle da infusão, evitando depressão respiratória significativa ou inconsciência dependendo da
intenção da sedação. A dose de levomepromazina
é de 12,5 25mg/24h SC em infusão contínua. A antiga M1 composta por clorpromazina (amplictil),
prometazina (fenergan) e petidina (dolantina)
não é mais utilizada, pela baixa efetividade de
controle de sintomas, devendo ser evitada.
A sedação com midazolam tem a vantagem
de poder ser revertida pela meia-vida curta da
droga, podendo-se inclusive programar horários
de suspensão da infusão para retomada da consciência. No caso de insuficiência renal a medida
não costuma ser efetiva.
Conclusão
O número de pacientes efetivamente acompanhados por uma equipe multiprofissional de
Cuidados Paliativos ainda é escasso, comparando-se com os atendimentos prestados a doentes
terminais nos serviços de emergência. Portanto, é
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necessário que o médico do pronto socorro tenha
noções de como propiciar alívio do sofrimento,
controle de sintomas e uma possível morte
digna aos pacientes. O final da vida não deve
ser negligenciado em termos de importância,
pois muito há a se fazer para propiciar uma boa
morte. Que lhe seja dada a devida honra, mesmo
no pronto socorro onde se atende emergências
de pacientes com uma vida pela frente. A Humanidade agradece.
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Prurido associado
ao uso de opióides
Samantha C. S.
da
Silva - Oncologista do Instituto de Cãncer de São Paulo
Ricardo Caponero - Oncologista Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein,
Hospital Brigadeiro e Hospital Edmundo Vasconcelos - SP
Resumo: O prurido é um sintoma muito comum que pode estar associado a uma determinada condição dermatológica ou uma doença
sistêmica. A causa pode ser multifatorial ou devido a um único distúrbio subjacente. O tratamento é muitas vezes ineficaz e, como tal, o
prurido pode ser bastante debilitante em alguns pacientes.
Embora o prurido induzido por opióides possa ser severo e, em alguns casos, mais debilitantes do que a dor que requer analgesia, ele não é
uma contra-indicação para o tratamento com opióides. Mudança de opióides, o via de administração ou o uso de naloxona ou ondansetrona
parecem ser as formas mais adequadas de manejo.
Abstract: Pruritus is a very common symptom that may be associated with a specific dermatologic condition or a systemic disease. The cause
can be multifactorial or due to a single underlying disorder. Treatment is often ineffective, and as such, pruritus may be quite debilitating
in some patients.
Although opioid induced pruritus may be severe, and in some cases, more debilitating than the pain requiring analgesia, it is not a contraindication for further opioid treatment. Change of opioid, site of administration or the use of naloxone or ondansetron appear to be the
most suitable forms of management.
Introdução
A experiência prática mostra que o prurido
é uma reação adversa bastante comum em pacientes que recebem opióides, particularmente
por via endovenosa e intra-espinal. Entretanto, é muito provável que esse seja um evento
sub-reportado por ser considerado de menor
gravidade tanto por profissionais de saúde
como pelos próprios pacientes. Usualmente
localizado na face, pescoço e tórax superior,
pode ser generalizado.1,2 Os dados publicados
mostram uma incidência de prurido que varia
em função da via de administração dos opióides. A freqüência de relatos de prurido é de 13%
para os pacientes que recebem opióides por via
endovenosa,3 de 20% a 80% para a via intratecal
e de 20% a 93% para a via epidural.4
Fisiopatologia
O mecanismo pelos quais os opióides causam prurido não está bem estabelecido. Muitas
substâncias induzem prurido por causar uma
liberação de histamina pelos mastócitos na
pele. Embora os opióides causem a liberação
de histamina nos mastócitos sistemicamente,
esse não parece ser o mecanismo subjacente
R e v i s t a
B r a s i l e i r a
d e
C u i d a d o s
ao efeito que ocorre cerca de três horas após a
administração espinal ou epidural. O prurido
também ocorre com o fentanil, o qual não causa a liberação de histamina dos mastócitos.2
A causa mais provável parece ser via um
efeito central direto. Prurido decorrente da
administração intratecal de opióide é provavelmente causado pela migração cefálica
da droga através do líquido cefalorraquidiano que interage com o núcleo trigeminal
localizado na medula superficial. O núcleo
trigeminal descende pela medula cervical
e conecta-se com a substância gelatinosa
do corno dornal.5,6 A interação do opióide com a substância gelatinosa parece ser
responsável pelo reflexo da “coceira”. Essa
hipótese é respaldada pelo fato da substância
gelatinosa ser uma área na medula espinal
que é o sítio primário de ação dos opióides
administrados por via intra-espinal e pelos
antagonistas opióides como a naloxona revertem esse efeito.
Tratamento
Todos os dados a respeito do uso de antihistamínicos indicam que eles não são partiP a l i a t i v o s
2 0 0 9 ;
2
( 3 )
Prurido associado ao uso de opióides
2009
29
Cuidados Paliativos
cularmente efetivos.7,8,9 A mudança para um
opióide com menos propriedades de liberação
de histamina (por exemplo: hidromorfona,
oximorfona ou fentanil) ocasionalmente produz alívio, mas não resolve o prurido de forma
considerável. A substituição da buprenorfina
epidural (agonista parcial) em combinação
com bupivacaína, para alívio de prurido severo e incontrolável, foi efetiva em um único
relato de caso.10
Naltrexona
Em adultos, uma dose de 6 mg de naltrexona, por via oral, diminui a coceira causada pelo
uso de morfina epidural, sem afetar de forma
significativa a analgesia. Entretanto, doses de
9 mg estão associadas com uma duração mais
curta do efeito analgésico. 10
Metilnaltrexona
A metilnaltrexona é o resultado da adição
de um grupo metil a naltrexona, diminuindo
sua afinidade lipídica e limitando sua passagem pela barreira hemato-encefálica, o que faz
dela um antagonista opióide periférico, sem
comprometer o controle da dor pelo sistema
nervoso central.
Utilizada no tratamento da obstipação
induzida por opióides, foi utilizada na dose
de 19,2 mg/Kg, por via oral, em um estudo com
10 pacientes, sendo demonstrada uma redução
significativa do prurido.11
Naloxona
Naloxona é uma forma segura e custo-efetiva de tratamento. Em um estudo pediátrico
com 30 pacientes e 2 - 5 mcg/kg/hr de infusão
contínua, 63% dos pacientes tiveram resolução completa do prurido e 37% tiveram alívio
parcial. Em 23% dos casos, naloxona diminuiu
a duração do efeito analgésico e aumento da
dose do opióide foi necessária.3
Propofol
O propofol tem sido utilizado em adultos
em doses sub-hipnóticas, ou seja, 10 mg em
bolo ou 0,3 mcg/Kg/min por infusão endovenosa. Acredita-se que sua ação se dê pela
inibição de vias espinais dorsais e ventrais.
De forma geral a taxa de sucesso no alívio
do prurido tem sido relatada como sendo
de até 80% no período de 3 a 6 horas após
a administração de morfina epidural, com
a vantagem adicional de reduzir a dor pósoperatória.4
R e v i s t a
B r a s i l e i r a
d e
Ondansetrona
A ondansetrona, um antagonista dos receptores 5-HT3, tem sido utilizada para tratar o
prurido em pacientes com doenças colestáticas
onde os níveis de opióides endógenos estão elevados. Há numerosos relatos de caso de sucesso
com seu uso no tratamento do prurido induzido por opióides. Em quatro pacientes onde
a administração peri-operatória de opióides
causou prurido importante, a administração
de 4mg de ondansetrona por via endovenosa,
resolveu totalmente a coceira, em poucos
minutos, em três destes pacientes, ao mesmo
tempo que permitiu um alívio significativo no
outro paciente.10
Outro estudo demonstrou que doses repetidas de ondansetrona reduzem em 33% a
incidência de prurido após a administração
de morfina subaracnóidea.12
Uma revisão de 15 estudos randomizados,
duplo-cego com 1337 pacientes selecionados
mostrou que os antagonistas 5-HT3 reduziram
de forma significativa o prurido induzido por
opióide [odds ratio (OR) 0.44 (95% intervalo
de confiança, 95% CI, 0.29-0.68), p= 0.0002]
quando comparados com placebo.13
Mirtazapina
Mirtazapina é um novo antidepressivo que
bloqueia seletivamente os receptors 5-HT2
e 5-HT3. Um estudo randomizado com 110
pacientes mostrou que o uso profilático de
mirtazapina diminuiu a incidência de prurido
após o uso de morfina intratecal comparado
com o uso de placebo (75% vs 52%, respectivamente; P=0.0245).14
Gabapentina
O uso de gabapentina como profilaxia de
prurido induzido por anestesia espinhal foi
avaliado em um estudo randomizado com 86
pacientes em programação de cirurgia ortopédica. O grupo que usou a pré-medicação
apresentou menor incidência de prurido (77.5
vs 47.5, P= 0.01).15
Conclusão
Prurido induzido por opióide é muitas
vezes severo e mais debilitante que a dor.
Entretanto, esse efeito colateral não é considerado contraindicação ao uso dessa classe
de analgésicos. Mudança do tipo de opióide,
mudança do sítio de administração e o uso de
naloxona ou ondansetrona são formas adequadas de tratamento. O uso de mirtazapina
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2
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2009
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Cuidados Paliativos
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B r a s i l e i r a
P a l i a t i v o s
e gabapentina parece promissor, mas o real
benefício dessas duas drogas no manejo do
prurido induzido por opióide necessita ser
confirmado por outros estudos.
Referências Bibliográficas:
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Cuidados Paliativos
O cuidador informal e o
ordálio do paciente com câncer
avançado de cabeça e pescoço
Marcos Brasilino
de
Carvalho
Cirurgião de cabeça e pescoço
Chefe do Serviço de Oncologia
Grupo de Cuidados Paliativos
Hospital Heliópolis- São Paulo
O câncer de cabeça e pescoço continua
tendo destaque nas estimativas de doenças em
todo o mundo, mas assume um papel mais dramático nos países em desenvolvimento. Pela
dificuldade de acesso aos serviços de saúde, por
falta de informação do paciente, de seus médicos ou dentistas, o predomínio de tumores
em fases avançadas em que são diagnosticados
fazem os resultados do tratamento bastante
desapontadores. A partir do diagnóstico de
carcinoma epidermóide em estádio avançado
inicia-se o ordálio do paciente e de seus familiares do qual já se conhece antecipadamente o
desfecho. Serão reféns de uma condição da qual
a possibilidade de resgate é muito pequena
ainda que paguem todos os custos material,
social, físico e emocional exigidos.
Os tumores de cabeça e pescoço, originando-se preponderantemente do epitélio de revestimento das vias aerodigestivas superiores,
comprometem precocemente a qualidade de
vida por envolverem duas funções vitais estratégicas: a respiração e a alimentação. Considerando que são quase todos tabagistas e etilistas
crônicos, o tumor irá agravar co-morbidades já
presentes anteriormente ao diagnóstico, principalmente as pneumopatias e a desnutrição. A
insuficiência respiratória acabará por justificar
a realização de uma traqueostomia e a presença
de lesões ulceradas na cavidade oral ou faringe
obrigará a passagem de uma sonda nasoenteral
ou a indicação de gastrostomia para garantir
o aporte adequado de alimentos e retardar a
instalação de um quadro de caquexia.
A seqüência de dias piores aguarda o paciente e seu cuidador. O primeiro carrega a culpa de não ter dado ouvidos às recomendações
de que parasse de fumar ou beber e de não ter
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B r a s i l e i r a
d e
procurado por um médico logo que começaram os sintomas. O cuidador suporta o temor
de que aconteça algo que ele não saiba o que
seja e como agir além do silêncio que ecoa da
pergunta: _ por que comigo? Por que comigo?
A dor e pavor da morte noturna afastam o sono
e o paciente convive com cochilos durante o
dia. O cuidador também não dorme porque o
paciente está acordado e com dor. O paciente
não se alimenta porque uma ferida fixou-lhe
a língua, ou oblitera a garganta, ou porque a
comida vaza-lhe pelo pescoço; e o paciente não
se alimenta porque não é justo gozar de um
prazer que não pode ser compartilhado.
O paciente não sabe o que será do dia de
amanhã e o cuidador também não. E eles estão
sós, não ficou ninguém a quem perguntar. Os
outros familiares e amigos não mais aparecem. Até os médicos disseram que tudo o que
podia ser feito já foi feito e agora não resta
mais nada.
Esta é uma sinopse de uma história antiga
que se repete ao longo dos anos com o mesmo enredo, mesmas personagens, mudando
apenas os atores e variando muito pouco o
cenário.
O especialista em cirurgia de cabeça e
pescoço escolheu um jeito difícil de ganhar
a vida e deve merecer um olhar de carinhosa
admiração. Ele não desvia o olhar e não prende a respiração onde muito poucos valentes e
vaidosos nem se aventuram a imaginar. Vejo às
vezes, emocionado, moços e moças tão jovens,
de coração aberto enfrentando sozinhos situações críticas de sofrimento sem que tenham
recebido nenhum alerta, nenhum preparo
psicológico ou técnico e sem ter com quem
compartilhar dúvidas e sentimentos. Sem
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R e v i s t a
querer, entraram acompanhados pela porta
certa, mas acabaram no baile da solidão onde
dançam sem pares, pacientes, cuidadores e
médicos.
O especialista deve ser especialista em todas
as fases das doenças. É fácil ser especialista de
câncer em estádios iniciais. Entretanto, para
que ele não seja obrigado a fugir quando o
tratamento curativo não for mais possível, os
serviços formadores devem estar seguros que
seus egressos estejam equipados com os recursos que um paciente incurável espera que eles
possam dar. Estes recursos, paradoxalmente
são muito singelos e de domínio quase ime-
diato de quem se propõe a oferecer cuidados
paliativos quando não houver mais opções de
tratamento curativo. E ter disposição interior
(não é necessária nenhuma habilidade especial) para cuidar paliativamente é um exercício
que dignifica o ser humano que presta e o que
recebe, sendo certamente um teste inquestionável para todas as vocações. O paciente
apenas quer que o médico tenha algum tempo
para ouvi-lo e dar alívio e solução no que for
possível. Nesta fase da doença, nenhum paciente ou cuidador fará ao médico perguntas
ou exigências difíceis ou constrangedoras: eles
deixaram de acreditar em milagres.
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Cuidados Paliativos
ONICIT* (cloridrato de palonosetrona). INDICAÇÕES: prevenção de náuseas e vômitos na fase aguda
associados a ciclos iniciais e de repetição contra o câncer sob quimioterapia moderada e altamente emetogênica,
e na fase tardia sob quimioterapia moderadamente emetogênica. CONTRA-INDICAÇÕES: hipersensibilidade
à droga ou a qualquer um dos componentes. PRECAUÇÕES E ADVERTÊNCIAS: hipersensibilidade se prévia
reação a outros antagonistas seletivos do receptor 5-HT3. Cautela se houver presença ou risco de prolongamento
de intervalos de condução cardíaca, particularmente QTc (hipocalemia ou hipomagnesemia, uso de diuréticos
com risco de anormalidades eletrolíticas, síndrome QT congênita, uso de antiarrítmicos ou outros medicamentos
resultando em prolongamento de QT e terapia com alta dose cumulativa de antraciclina). Gravidez e lactação:
não há estudos adequados e bem-controlados em gestantes, portanto, avaliar risco/benefício. Avaliar risco/
benefício em lactantes considerando potencial de tumorigenicidade em estudos de carcinogenicidade em ratos.
INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS: baixo potencial. REAÇÕES ADVERSAS: Reações semelhantes em
freqüência e gravidade à ondansetrona e à dolasetrona. Reações não-freqüentes: Cardiovasculares: taquicardia
não-sustentada, bradicardia, hipotensão, hipertensão, isquemia miocárdica, extra-sístoles, taquicardia sinusal,
arritmia sinusal, extra-sístoles supraventriculares e prolongamento de QT. Dermatológicas: dermatite alérgica,
erupções cutâneas. Audição e Visão: cinetose, tinido, irritação ocular e ambliopia. Sistema Gastrintestinal:
diarréia, dispepsia, dor abdominal, boca seca, soluços e flatulência, constipação. Gerais: fraqueza; fadiga,
febre, calorões, síndrome gripal. Fígado: aumentos transitórios assintomáticos de AST e/ou ALT e bilirrubina.
Metabólicas: hipercalemia, flutuações eletrolíticas, hiperglicemia, acidose metabólica, glicosúria, diminuição do
apetite, anorexia. Músculo-esqueléticas: artralgia. Sistema Nervoso: tonturas, sonolência, insônia, hipersonia,
parestesia, cefaléia. Psiquiátricas: ansiedade, euforia. Sistema Urinário: retenção urinária. Vasculares:
descoloração venosa, distensão venosa. POSOLOGIA: Adultos: 0,25 mg, dose única, 30 minutos antes da
quimioterapia (lavar acesso venoso antes e após a dose). Não é recomendado repetir a dose dentro de sete
dias. Não é necessário ajustar a dose em pacientes geriátricos ou com alteração de função renal ou hepática.
MS 1.6614.0007. VENDA SOB PRESCRIÇÃO MÉDICA. AO PERSISTIREM OS SINTOMAS, O MÉDICO
DEVERÁ SER CONSULTADO. Recorra à bula do produto para maiores informações. Distribuição exclusiva
à classe médica. Distribuição exclusiva à classe médica. (MB-ONI1-3)
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Cuidados Paliativos
Contra-indicado em pacientes com hipersensibilidade à fentanila ou aos adesivos do
sistema terapêutico.
Interações Medicamentosas: Depressores do SNC e bebidas alcoólicas.
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Durogesic® D-TRANS® (fentanil transdérmico) – Forma farmacêutica e apresentações: Embalagens com 5 adesivos de 2,1 mg, 4,2 mg, 8,4 mg ou 16,8 mg de fentanila,
correspondentes, respectivamente, à liberação de 12*, 25, 50 e 100 mcg/hora de fentanila por via transdérmica. (*Observação: a dose real de fentanila liberada nesta apresentação
é de 12,5 mcg/h. A opção por informar a liberação de fentanila/hora deste adesivo como 12 mcg/h [e não 12,5 mcg/h] tem como objetivo evitar erros no ajuste da dose [um
incremento equivocado de 125 mcg/h ao invés de 12,5 mcg/h]. Esta conduta será adotada também na rotulagem do medicamento.). Uso adulto e pediátrico. Indicações e
posologia: Dor crônica e dor de difícil manejo que necessite de analgesia com opióides, que não pode ser tratada com combinações de paracetamol-opióides, analgésicos nãoesteróides ou com opióides de curta duração. A dose deve ser individualizada, de acordo com a condição do paciente e o uso prévio de opióides. O adesivo de Durogesic®
D-TRANS® deve ser aplicado em pele não-irritada e não-irradiada: uma superfície plana do dorso, dos braços ou nas costas, e substituído a cada 72 horas. Em crianças, o local
preferido é a parte superior das costas. A área seca e sem pêlos (cortados e não raspados) deve ser limpa apenas com água. Em pacientes virgens de opióides, a dose mais baixa
de Durogesic® D-TRANS® deve ser usada como dose inicial e não deve exceder 25 mcg/h. Posteriormente, a dose deve ser aumentada ou diminuída se necessário, em
incrementos de 12 mcg/h ou 25 mcg/h, dependendo da resposta e da necessidade de analgesia adicional. Em pacientes que já usam opióides, deve-se converter a dose prévia
de analgésicos necessária em 24 h à dose oral equianalgésica de morfina (tabela detalhada de conversão disponível na bula integral). Durogesic® D-TRANS® deve ser administrado
apenas em pacientes pediátricos tolerantes a opióides que já estejam recebendo o equivalente a pelo menos 45 mg de morfina oral ao dia. Após a aplicação da dose inicial, o
tratamento analgésico anterior deve ser descontinuado gradativamente, até que o efeito analgésico eficaz com Durogesic® D-TRANS® seja obtido. Em razão do aumento gradual
da concentração plasmática de fentanila, a avaliação do efeito analgésico de Durogesic® D-TRANS® só é possível após 24 h de uso do adesivo, e o ajuste de dose, após 3 dias.
O adesivo de 12 mcg/h que equivale a cerca de 45 mg de morfina oral/dia é particularmente útil para a titulação em doses menores. A titulação deve ser feita com aumentos de
12 mcg/h ou 25 mcg/h de Durogesic® D-TRANS® – 45 mg/dia de morfina oral equivalem a aproximadamente 12 mcg/h de Durogesic® D-TRANS® e 90 mg/dia de morfina oral
equivalem aproximadamente a 25 mcg/h de Durogesic® D-TRANS®. Para doses superiores a 100 mcg/h, pode ser usado mais de um adesivo. Os pacientes podem necessitar
doses suplementares periódicas de um analgésico de curta duração para dores “intercorrentes”. Quando a dose de Durogesic® for superior a 300mcg/h, alguns pacientes podem
necessitar métodos adicionais ou alternativos de administração de opióides. Contra-indicações: doses excedendo 25 mcg/h para iniciar a terapia opióide, já que é necessário
individualizar a dose pela titulação para alcançar os efeitos analgésicos desejados. Hipersensibilidade à fentanila ou aos adesivos do sistema terapêutico. Dor branda, intermitente,
aguda ou pós-operatória. Não deve ser utilizado em crianças com menos de 2 anos de idade. Precauções e advertências: Não é possível assegurar a intercambialidade do
adesivo de Durogesic® D-TRANS® para outros tipos de adesivos para cada paciente. Portanto, os pacientes não devem trocar o adesivo de Durogesic® D-TRANS® para outro tipo
de adesivo sem orientação médica específi ca.Os adesivos de Durogesic® D-TRANS® não devem ser cortados. Caso o adesivo descole logo após a aplicação, descarte-o e aplique
novo adesivo em local diferente. Se o adesivo descolar após certo tempo de uso, mas antes de 3 dias (72 horas de uso), descarte-o adequadamente (dobre duas vezes o adesivo
usado com a face adesiva para dentro e descarte-o em segurança) e aplique novo adesivo em local diferente do anterior. Informe seu médico sobre o descolamento e não
substitua por novo adesivo até 3 dias (72 horas) após a troca. Pacientes com reações adversas graves devem ser monitorizados durante 24 horas após a remoção do adesivo,
pois as concentrações séricas de fentanila baixam progressivamente e caem a aproximadamente 50% cerca de 17 h (entre 13-22 h) mais tarde. Durogesic® D-TRANS® deve ser
mantido fora do alcance das crianças antes e após o uso. Cautela em casos de: Hipoventilação, Doença Pulmonar Crônica, Doenças Cardíacas, Hepáticas e Renais, Aumento da
pressão intracraniana, Febre. Evitar calor direto no local de aplicação do adesivo. Gravidez e lactação: Não existem dados adequados com o uso de Durogesic® D-TRANS® em
gestantes. O risco potencial para seres humanos é desconhecido. A síndrome de abstinência em neonatos foi relatada em neonatos de mães com uso crônico de Durogesic®
fentanil transdérmico durante a gravidez. Durogesic® D-TRANS® não deve ser usado durante a gravidez exceto se claramente necessário. Não é recomendado seu uso durante
o parto, pois a fentanila atravessa a placenta. A fentanila é excretada no leite humano e pode causar sedação/hipoventilação no neonato. Portanto, Durogesic® D-TRANS® não é
recomendado para uso em lactantes. Durogesic® D-TRANS® pode prejudicar a habilidade mental e/ou física necessária para a execução de tarefas potencialmente perigosas
como dirigir um carro ou operar máquinas. Tolerância e dependência física e psicológica podem aparecer após administração repetida de opióides. Toxicomania iatrogênica pósadministração de opióides é rara. Poderá ocorrer abuso com fentanil de maneira similar a outros agonistas opióides. O abuso ou o uso incorreto intencional de Durogesic® fentanil
transdérmico pode resultar em superdose e/ou morte. Pacientes com alto risco de abuso aos opióides podem ainda ser adequadamente tratados com formulações de liberação
modificada de opiódes, entretanto estes pacientes necessitarão ser monitorados quanto aos sinais de uso incorreto, abuso e adição. Pacientes idosos devem ser cuidadosamente
observados quanto aos sinais de toxicidade da fentanila e a dose deve ser reduzida se necessário. Pacientes com disfunção hepática e renal devem ser observados cuidadosamente
quanto aos sinais de toxicidade da fentanila e a dose deve ser reduzida, se necessário. Interações medicamentosas: O uso concomitante de outros depressores do SNC,
incluindo opióides, sedativos, hipnóticos, anestésicos gerais, fenotiazinas, tranquilizantes, relaxantes musculares, anti-histamínicos sedativos e bebidas alcoólicas, pode produzir
efeitos depressores aditivos. A fentanila, um fármaco de alta depuração, é rápida e extensivamente metabolizada, principalmente pelo CYP3A4. O uso concomitante de fentanila
transdérmica com inibidores potentes do CYP3A4, tais como o ritonavir, pode resultar em aumento das concentrações plasmáticas de fentanila, que poderia elevar ou prolongar
tanto os efeitos terapêuticos como os adversos, e pode causar uma depressão respiratória séria. Quando uma terapêutica combinada for necessária, a dose de um ou de ambos
os agentes deve ser reduzida em no mínimo 50% (anticolinérgicos ou outros medicamentos com atividade anticolinérgica, antidiarréicos e antiperistálticos, anti-hipertensivos,
diuréticos ou medicamentos produtores de hipotensão, inibidores da MAO, bloqueadores neuromusculares). Reações adversas: hipoventilação, náusea, vômitos, constipação,
o,
sonolência, dor de cabeça, tontura, prurido, sudorese, confusão, lentidão de batimentos cardíacos, alucinações, euforia, distúrbios urinários e vermelhidão no local de aplicação.
o.
Eventos adversos muito comuns relatados em estudos clínicos em crianças foram febre, vômito e náusea. Superdose: A manifestação da superdose mais grave é a hipoventilação.
o.
Manejo da hipoventilação: remoção do adesivo de Durogesic® D-TRANS® e estímulo físico/verbal do paciente. Pode seguir-se pela administração de um antagonista opióidee
específico como a naloxona. Observar intervalo entre doses endovenosas do antagonista: possibilidade de re-narcotização; a administração repetida ou em infusão contínua da
naloxona pode ser necessária. Se o estado clínico do paciente exigir pode ser necessário intubação orotraqueal com respiração assistida ou controlada e administração de
oxigênio. Observar temperatura corporal e equilíbrio hidroeletrolítico. Se ocorrer hipotensão grave ou prolongada, a possibilidade de hipovolemia deve ser considerada. Venda
sob prescrição controlada em receituário especial (formulário A), com retenção da receita. A persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado. Janssen-Cilag
Farmacêutica. Reg. MS -1.1236.0027. Informações adicionais para prescrição: vide bula completa. INFOC 0800.7013017 - www.janssencilag.com.br. Cód: 500002312.
Material destinado exclusivamente à classe médica.
R e v i s t a
B r a s i l e i r a
d e
C u i d a d o s
P a l i a t i v o s
2 0 0 9 ;
2
( 3 )
NOVA FORMA FARMACÊUTICA
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NAS DORES INTENSAS.1-3
Agora, Durogesic® D-Trans® tem novo adesivo e nova apresentação: 12 mcg/hora.
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