desvendando aspectos de cães portugueses primitivos

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desvendando aspectos de cães portugueses primitivos
Antologia Canina
DESVENDANDO ASPECTOS DE CÃES PORTUGUESES PRIMITIVOS
Depois da 1ª. Grande Guerra, muitas das nossas antigas raças caninas foram objecto de grande abandono.
Algumas delas são até desconhecidas dos canicultores mais jovens. O Dr. Armando Correia Duarte Melo,
investigador credenciado, desvenda-nos na publicação «Gazeta das Aldeias» de 1921 alguns aspectos sobre
cães portugueses primitivos.
Sendo tão antiga a fama dos cães ibéricos, como se justifica a decadência actual? Os nossos vizinhos
espanhóis mais aferrados ao torrão natal, já reagiram contra estes sintomas de decadência, e ainda salvaram
alguma coisa do património antigo.
Muitas e variadas causas contribuiram para o abastardamento das nossas raças caninas.
O desastre de D. Sebastião e a consequente ruina das principais casas nobres provocou o primeiro golpe
nos luxuosos estados de caça, que tão grande incremento tinham tomado nos dois séculos anteriores.
Vila Viçosa constituiu o núcleo de resistência, que imprimiu algum vigor às montarias dos séculos XVII e
XVIII.
Mas 1834 deu-Ihes o último golpe.
SABUESO (CABEÇA)
A estas causas político-sociais devemos acrescentar as causas gerais que provocaram a decadência de
toda a nossa pecuária.
...
Antes de passar a outro assunto parece-me justo prestar a devida homenagem aos fundadores da extinta
revista «A CAÇA» e do «Livro genealógico dos cães peninsulares», que infelizmente julgo ter sido abandonado.
…
Quem pretender estudar os primitivos cães portugueses não pode deixar de consultar três livros muito
importantes.
Em meados do século XIV, pouco depois da batalha do Salado, no período que vai de 1343 a 1350, foi
escrito, sob a direcção de Afonso XI de Castela, um livro verdadeiramente precioso. Tanto o original como muitos
dos seus numerosos traslados se encontram ainda hoje devidamente conservados em várias bibliotecas
espanholas. Existem edições deste excelente manuscrito. A primeira, feita no final do século XVI, tem o seguinte
título: «LlBRO DE LA MONTERIA, que mandó escrebir el muy alto e muy poderoso Rey D. Alfonso de Castilla y de
Leon» acrescentado por Gonçalo Argote de Molina, Sevilha, 1582.
Tem esta edição vários defeitos, que provêm das incorrecções e interpolações que lhe fez o bem
intencionado Argote.
…
Felizmente no final do século XIX foi publicado em Madrid uma outra edição muito melhor sob todos os
pontos de vista.
…
No final do mesmo século XIV, em 1385, foi escrito em França o «LIVRO DE CHASSE» pelo Conde Gaston
de Foix, também conhecido por Gaston Phebus.
Considero muito importante a leitura deste manuscrito, não só pelas indicações relativas aos primitivos cães
da península, mas ainda para verificar se a obra do Príncipe de Boa Memória, é tão original comparada com o
manuscrito francês, como já verifiquei na comparação com a obra castelhana.
No princípio do século XV e provàvelmente no periodo decorrido de 1415 a 1433 segundo a opinião do
Sr.Esteves Pereira, foi composto por D. João I um, sob todos os títulos excelente, «LlVRO DE MONTARIA». Não há
notícias do manuscrito original desta obra.
Foi sobre este manuscrito que o Sr. Francisco Maria Esteves Pereira preparou a Edição da Academia das
Ciências, que em 1918 saiu dos prelos da Imprensa da Universidade de Coimbra.
Além do notável valor intrinseco da obra é particularmente interessante esta edição pela erudita introdução,
com que foi enriquecida pelo Sr. Esteves Pereira.
VARIEDADES EXTINTAS
I – SABUJOS
Eram usados na montaria do onagro, urso, veado, touro e porco bravo, para descobrir, levantar e perseguir
a caça, tal como ainda hoje o fazem os nossos «podengos grandes», os franceses «cães da Gasconha», os
ingleses «fox-hound», etc.
Os sabujos eram auxiliados no fim da corrida por outros cães destinados especialmente a agarrar, apresar
ou filhar a caça, de onde veio a chamarem-Ihe cães de presa, cães de filhar e finalmente cães de fila.
Eram os «Alãos» os indispensáveis auxiliares dos sabujos.
No LIVRO DE MONTARIA são os sabujos classificados em três grupos: sabujos de trela, sabujos de correr
e sabujos de busca.
Os primeiros eram destinados especialmente a acompanhar os monteiros de pé encarregados de descobrir
o rasto e a cama dos porcos, trabalho este algumas vezes feito de véspera e o que então se chamava «emprazar».
SABUESO (ESPANHOL)
Os sabujos de correr eram usados como o grosso da matilha nas modernas «equipagens» francesas.
Finalmente os sabujos de buscar constituiam uma reserva especial para procurar o verdadeiro rasto,
quando o porco conseguia despistar os cães de correr.
De modo que, exceptuando a parte final, a montaria do século XV tinha muitos pontos de semelhança com
o modo como ainda hoje se faz em França, a caça do porco ou veado «au chien courrant».
São estes sabujos, talvez, os mais antigos dos cães portugueses, com pergaminhos autênticos nos velhos
monumentos da nossa história.
…
O tipo desses cães portugueses era diferente do seu congénere espanhol – Sabuesos - mas o que é
matéria assente é que dos sabujos da peninsula ibérica derivaram vários tipos de cães, que se espalharam pela
Europa, e que a partir do século XVIII são denominados de um modo geral «epagneul» pelos franceses e «spaniel»
pelos ingleses.
THE OLD SPANlSH POlNTER (1802)
Não devemos, porém, confundir este «epagneul» do século XVIII, animais de pêlo comprido, com o
«epagneul» ou «chien d'oisel» do século XIV, descrito pelo conde de Foix, e que era um animal de pêlo curto,
embora a cauda apresentasse na extremidade uns pêlos rijos e mais compridos em forma de espiga, como diziam
os antigos.
Foi com estes cães ibéricos que os franceses reconstituiram o seu «epagneul de Pont-Andremen» e outras
raças análogas; à mesma origem vieram os ingleses procurar elementos para formarem os vários tipos da raça
«setter» e também o «Cocker-Spaniel» e mais cães análogos.
Em Espanha são muito frequentes os sabujos em vários tipos diferentes.
E em Portugal ? Há talvez vinte anos, (1901) julgo ter visto eu próprio, os restos do sabujo português.
Nesses tempos muitos dos caçadores, que se dedicavam à caça das aves aquáticas, possuiam uns cães
esplêndidos pelo faro e pela facilidade com que se lançavam à água em busca da caça ferida, e que pelo aspecto
geral do corpo lembravam um pouco um «Setter» inglês abastardado. Eram porém mais baixos, menos esbeltos, de
cabeça mais grosseira, de cor «branco-sujo», algumas vezes com malhas pretas ou castanhas.
ALANO (ESPANHOL)
II - ALÃOS DE PORTUGAL
Eu julgo que o primitivo alão de porcos era um cão musculado e corpulento, capaz de apresar um urso, não
tão elegante mas muito semelhante ao Dogue Alemão, partindo até da hipótese que os Dogues Dinarmarqueses
tiveram o seu berço na Europa Latina e muito especialmente na peninsula ibérica.
Já em épocas anteriores eram tão afamados os cães portugueses que D. Fernando enviava ao Rei de
Granada, a pedido deste, seis alãos e seis sabujos, como se vê na crónica de Fernão Lopes.
Entre nós é uma raça desaparecida; em Espanha ainda existem - Alanos - nas «recovas» destinadas à caça
grossa.
Lebreus, Dogues, Mastins e Filas da Terceira
Nos séculos XIV e XV eram os alãos, com os seus variados tipos, os únicos cães de fila empregados na
montaria. Mas já no século XVI ou pelo menos no começo do século XVII, apareceram várias raças de cães de fila,
cuja origem não é hoje fácil averiguar, mas eu julgo, na falta de melhor hipótese, tenham resultado da diferenciação
dos diversos tipos de alãos.
Procurarei dar uma leve indicacão dessas raças, recorrendo aos livros dá época.
Infelizmente desapareceu um original português, que Diogo Barbosa Machado cita na sua Biblioteca
Lusitana: «Tratado de curiosidades da caça da montaria», escrito em 1694 por António Rodrigues Pimenta, natural
de Aldegalega do Ribatejo. O manuscrito original conservou-se durante muito tempo no Arquivo da Casa de
Bragança, não havendo hoje notícias do seu paradeiro.
Na falta do trabalho português, vi-me obrigado a recorrer a um livro castelhano publicado em 1644: «ARTE
BALESTERIA Y MONTERIA» por Afonso Martinez d'Espinar, que os estudiosos podem consultar na Biblioteca
Nacional de Lisboa.
O capítulo XXI desta interessantíssima obra contém a descrição de todas as raças de cães então
conhecidas na península ibérica.
Começa pelos «lebreus» que eram cães análogos ao alão ligeiro do século XIV, talvez até um pouco mais
aligeirado e que nada tinha com o galgo de correr lebreus, que também é estudado em outro pano deste mesmo
capítulo.
«Los mayores perros son los lebreles; ceban-Ios en los venados, javalies y ossos; Ia hechura del cuerpo del
lebrel ha de ser muy delgado, grandes ojos, Ia cabeza larga, senceno y de mucha ligereza.»
Eram nestas épocas os lebreus destinados à montaria.
«EI talle del alano ha-de ser mucho mas cargado, que el lebrel, el horizo rouco, Ia frête ancha, y levantada,
los ojos hundidos, y sangrientos, el mirar espantoso, el cuello corto, y ancho; son estos de tan grande fortaleza que
rindem un animal tan valiente y feroz, como es un toro y de tãto mayor cuerpo que el, y a este peso otro qualquier
animal».
«Los dogos tienem estas mismas (refere-se aos alanos) sinales, sinto que son mas cortes y membrudos,
tienem Ia cola mas corta y con mas pelo.»
Estes cães eram pesados, grandes, geralmente de pelagem leonada e tinham muita força, eram utilizados
na defesa de propriedades e para lutas contra feras.
A quarta raça descrita pelo caçador de Castela é o dos «mastins», mas não consegui apurar se existe
algum parentesco entre estes animais do século XVII e os cães que actualmente chamamos mastins:
«As otros perros, que Ilamamonos mastines, que son tan grandes de cuerpo como los dichos (lebreus);
crianlos para guarda deI ganado, tienem gran cuello, y fuertes pechos de medio cuerpo atraz; son cencenos, tienem
mucha fuerza y ligereza, son muy valientes, pues en los desiertos montes seguem los lobos, defendiendo no
Ileguem al ganado, y mano a mano polian con ellos, y los matam en que se conoce su mucha valentia, pues rinden
tan fieros animales, y para este efecto son de grandissima utilidad y provecho a los ganaderos, que se no fuera por
ellos, no se pudiera conservar el ganado.»
Seria interessante agora averiguar se existe algum parentesco entre estes mastins do século XVII e XVIII e
os actuais rafeiros.
Infelizmente não tenho ainda elementos que permitam aclarar este assunto.
…
Filas da Terceira
Não me repugna aceitar a hipótese de os Filas da Terceira serem descendentes de um dos muitos variados
tipos dos alãos, mas julgo melhor opinião a daqueles que entendem que o trabalho do gado bravo era noutros
tempos auxiliado tanto em Portugal como em Espanha por uns cães de tipo «mastim», e que estes mastins foram
os ascendentes dos Filas da Terceira.
In Jornal “O Mundo Canino” – Agosto de 1971

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