Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque, de

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Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque, de
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VISÕES ÚTEIS:
“Visíveis na
Estrada
Através da
Orla do
Bosque”
de Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina
Martins e Pedro Carreira
Prefácio de Luiz Francisco Rebello
Prefácio
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Luiz Francisco Rebello
No bosque há uma ave, o seu canto detém-vos e faz-vos corar.
Há um relógio que não toca.
Há uma lixeira com um ninho de bichos brancos.
Há uma catedral que desce e um lago que sobe.
Há um carrinho abandonado nas moitas, ou descendo a vereda em correria,
engalanado.
Há uma troupe de cómicos, com os seus fatos, visíveis na estrada através da
orla do bosque.
Há enfim, quando tens fome e sede, alguém que te enxota.
Jean-Arthur Rimbaud
Iluminações, Infância III
Versão de Mário Cesariny
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Introdução
“Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque” foi o projecto em três fases
que ocupou toda a actividade da companhia de teatro Visões Úteis no ano de
2001. Planeado dois anos antes, sofreu diversas alterações, mas ganhou forma,
nome e temática definitivos no princípio do ano 2000.
No ano em que o Porto 2001– Capital Europeia da Cultura se subordinava ao
tema “Pontes”, os temas de abordagem que guiaram este projecto desde o início
debruçavam-se sobre o sentido das fronteiras: fronteiras com os outros
(indivíduos ou povos) e fronteiras interiores. Eram ainda temas a Europa
enquanto espaço de união de diferentes identidades, a ideia de viagem enquanto
meio de, pelo contacto com os outros, nos conhecermos melhor, e o momento
específico da História em que nos encontramos.
O pressuposto deste projecto anual era o de que poderíamos levantar uma série
de temas que nos interessavam, aflorando-os através de estudos específicos (que
resultariam num primeiro espectáculo), e em seguida viajar com eles ao encontro
de personalidades e entidades europeias artisticamente interessantes. A viagem e o
confronto de ideias permitiriam que os temas se reperspectivassem na nossa
mente, se interligassem de novas maneiras, ganhassem relevância ou se
desvalorizassem. O resultado final, um novo espectáculo teatral que reflectisse
todo o processo, era uma incógnita. Tudo estava em aberto, passível de sofrer as
influências dos nossos convidados, dos seus países, de dez mil quilómetros de
estrada…
Numa primeira fase apresentámos no Porto o espectáculo “Estudos” (estreado
em Abril na Galeria “Maus Hábitos”) que teve ponto de partida nestes temas e
que, através de um trabalho de investigação, nos levou ainda a conceitos como as
ideias de Herói enquanto aquele que ultrapassa fronteiras para o bem comum e de
Peste enquanto aquilo que nos leva à separação, à criação de fronteiras entre
indivíduos e entre grupos de indivíduos.
Numa segunda fase (Maio/Junho) partimos pelas estradas Europeias durante
quatro semanas e ao longo de cerca de dez mil quilómetros, contactando e
trabalhando com artistas, intelectuais e entidades culturais ligados a uma ideia de
Visões Uteis
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Europa e de cultura Europeia contemporânea. Pessoas que, pela sua vida ou pelo
seu trabalho, pelas suas escolhas pessoais e profissionais, nos pareceram ser bons
parceiros no debate que queríamos promover.
Finalmente, numa terceira fase apresentámos no Porto, em Outubro, no Teatro
do Campo Alegre, uma síntese destes contactos e das influências que sofremos
em viagem, num espectáculo a que chamámos simplesmente… “Orla do
Bosque”.
Ao longo de todo o projecto abrimos ao público o processo criativo,
fornecendo material de leitura aos espectadores de “Estudos”, criando na internet
um “diário de bordo” ao longo da viagem, fazendo uma síntese aquando da
apresentação de “Orla do Bosque”. Mas a necessidade de abranger toda esta
experiência num livro ainda se impunha.
Para além das conversas com os nossos convidados, queremos agora partilhar a
evolução do projecto como um todo, dar ao público (ao de teatro e a outros
públicos) a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento das nossas ideias e a
mudança de perspectiva sobre os temas-base que se operou com a viagem.
Queremos também partilhar o nosso processo de criação teatral, mostrando
como uma série de estímulos diversificados (de notícias a músicas, de filmes a
livros, de entrevistas a imprevistos) se podem transformar em material cénico e
dramatúrgico.
Queremos com este livro partilhar uma viagem que, mais do que física, foi uma
verdadeira viagem das ideias e uma reflexão sobre um processo criativo global, ou
seja, sobre um conjunto de experiências que habitualmente fica nos “bastidores”
da criação artística. E assim expor a nossa forma de fazer teatro.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Parte I
Visões Uteis
Raízes
No início deste projecto Daniel Libeskind era apenas o nome de um arquitecto.
esse judeu radicado em Berlim. Libeskind acredita que a arquitectura é uma arte
cultural, isto é, que pertence mais ao mundo da cultura e da arte que ao da
tecnologia e da resolução de problemas. Por isso traz para os seus trabalhos
arquitectónicos ideias que não são exactamente arquitectónicas. Por isso se
interessa por tudo que o rodeia, por música, literatura, dança, História, som,
acústica. E é pela enorme influência que recebe dessas áreas que o seu trabalho se
distingue do da maior parte dos arquitectos.
Partindo de uma sólida base filosófica e histórica, Libeskind tenta trazer para
cada um dos seus projectos uma ideia nova e diferente. Em Osnabrück, na Casa
Museu dedicada ao pintor Felix Nussbaum, deixou-se levar pelo que ele chama de
dança da História, dança do conhecimento de nós próprios e dança da biografia.
Todo o edifício, lutando contra a condição de não-pessoa a que a estatística da
História tende a reduzir cada vida, segue minuciosamente a biografia do pintor,
chegando ao ponto de se reduzir a largura do espaço expositivo para melhor
captar a relação que, em determinada altura e por força de viver num minúsculo
apartamento, o pintor tinha com a sua obra. Em Manchester, no Imperial War
Museum, Libeskind parte da ideia de o conflito ir muito além da História do
século XX– citando Winston Churchil, quando diz que uma certeza que podemos
reter para o futuro é a da continuidade do conflito– para desenhar um edifício
que não é mais do que um globo terrestre fragmentado, cujas peças se voltam a
tentar reunir mas sem a exactidão anterior, numa terrível visão que pressupõe que
a estabilidade do mundo depende da guerra e do conflito. Em Berlim, no Museu
Judeu, Libeskind encara o teste espiritual de dar a conhecer a importância dos
judeus na História da Alemanha, de tornar visível o invisível, assumindo uma
ideia de espaço puro e por vezes sem possibilidades expositivas, em busca de um
sentido para a arquitectura num mundo como o nosso, um mundo em que se
acredita que desenhar uma máquina de lavar roupa pode ser arte. Mas ele não
acredita nisso. E é com essa consciência que o arquitecto continua a perseguir
ideias, a elaborar conceitos, a viajar entre a falha tectónica que inspirou o Denver
Visões Uteis
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Ao longo do ano de 2001 fomos descobrindo uma crescente afinidade com
Capítulo 1
Art Museum e o filme dos Irmãos Marx que dá sentido ao seu primeiro projecto
para um centro comercial.
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Afinal é Daniel Libeskind que diz que ao desenhar um edifício não se deve
olhar para baixo, para ele, deve olhar-se para o céu, para os pássaros, e ver como
eles voam. Porque está tudo lá, de forma clara, mesmo que não se perceba muito
de pássaros…
No Visões Úteis também somos um pouco assim, sempre a olhar para o céu,
na busca daquilo que nos garantem estar na terra. Por isso, e nos últimos anos, o
teatro tem sido um ponto de chegada mas raramente um ponto de partida.
Acreditamos cada vez mais na força criativa de uma ideia, mas não uma
qualquer boa ideia. Apenas aquela que insidiosamente se vai afirmando no
quotidiano, ao longo de meses, sem que consigamos perceber o seu sentido mas
habituando-nos a viver com ela, até ao momento em que esse sentido surge, até
ao momento em que a urgência nos toca, permitindo que a ideia não seja mais um
beco sem saída– ainda que todas as ideias só por serem ideias possam um dia ter
saída para algum lado ou, também só por serem ideias, não precisem de sair para
lado nenhum porque já saíram– como são quase todas as nossas ideias, e tenha a
felicidade, dela e nossa, de gerar um espectáculo.
E as nossas ideias, temos de o reconhecer, não surgem com muita frequência
do teatro, mas mais de outras artes como a literatura, a música, a arquitectura, as
artes plásticas e cada vez mais de outras áreas como a História, o ensaio, a
imprensa, a publicidade, as novas tecnologias de comunicação, o urbanismo, a
economia, a política, a filosofia, a ciência, a religião e, claro, o nosso quotidiano e
o das pessoas que connosco o partilham. Por isso é que nada nos ocorre perante
tantos textos dramáticos que hoje se escrevem, muitos deles a que reconhecemos
grande qualidade, e logo começamos a sentir uma estranha sensação de desejo e
certeza quando confrontados com um discurso de Yitzhak Rabin, o plano de
requalificação urbana da baixa do Porto, uma entrevista de Belmiro de Azevedo
ou a crise das agências funerárias nos Estados Unidos da América.
Esta situação não nos impede, contudo, de constantemente questionar a escrita
dramática, procurando assim as razões que nos levam a este afastamento e
tentando, através dessa reflexão, compreender os motivos para este
distanciamento entre os que fazem teatro apenas escrevendo e aqueles que, quer
escrevam quer não, terão sempre de o fazer com o corpo.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Raízes
De facto parece ser normal afirmar a longa crise que o drama atravessou ao
longo do século XX, reinventando-se a si próprio constantemente para responder
a novos factores como a figura do encenador, a invenção do cinema ou a
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insatisfação com a mera possibilidade de contar histórias. Assim, a escrita
dramática no início do século XXI não tem porque se sentir manietada por uma
qualquer estrutura dramática obrigatória, porque esta estrutura, pura e
simplesmente, não existe. Os autores são agora completamente livres para
descobrirem a sua forma dramática individual, aquela que melhor expresse o seu
modo de ver o mundo, aquela que melhor sirva o que sentem e o que dizem.
Neste processo o teatral acabou por se libertar do dramático, já que, se há quem
continue a escrever o que se pode chamar de peças de teatro, há também quem
escreva directamente para cena, ou seja, para um determinado espectáculo num
determinado sítio.
Naturalmente este movimento, que parece ser mais ou menos generalizado em
toda a Europa Ocidental, segue a velocidades diferentes, de país para país,
consoante o volume da produção dramática, a evolução da crítica e dos estudos
teatrais, a abertura ao estrangeiro e, claro, o impacto social do teatro. Por tudo
isto Portugal parece estar algo atrasado neste percurso, sendo interessante
observar que só agora se abandonam entre nós, como referências de
contemporaneidade, certos autores do pós-guerra que noutros países já há muito
são considerados como clássicos.
Para além disso o boom de “novas dramaturgias” e “novos dramaturgos”, que
certas instituições querem fazer acreditar que existe em Portugal, não passa de
uma ficção que, quando muito, servirá para garantir mais cobertura mediática a
uma actividade tão carenciada de exposição. De facto a maior parte dos “novos
dramaturgos” portugueses escreve decalcando uma forma do passado,
normalmente a predilecta do “Conhecido-Professor-De-Novas-Dramaturgias”
com quem frequentaram o último seminário. A maior parte deles parece até
desconhecer que uma peça de teatro, mais do que escrita, é construída, pelo que
não basta alinhavar uma boa história e formatá-la com didascálias, falas de
personagem e, porque não, alguns pormenores de encenação.
Ainda assim, no Visões Úteis, continuamos a acreditar nas possibilidades da
forma dramática, continuamos encantados com esses escritores/construtores de
peças que são capazes de encontrar novas formas que permitem produzir um
novo sentido, que lançam uma nova luz sobre os temas de que importa falar. E
Visões Uteis
Capítulo 1
aqui assumimos uma postura menos flexível, porque na verdade há temas que não
nos interessam, independentemente do brilhantismo das formas; deixamos o
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nosso sentido aplauso mas não vamos por aí.
Acreditamos então que, sempre que sobre a mesa não esteja material escrito
que reflicta plenamente os nossos desejos e inquietações, o que tem acontecido
com muita frequência, teremos de aceitar o encargo de escrever directamente para
o espectáculo. Mas mais do que isso assumimos o imenso prazer de escrever
directamente para cena, ao longo de processos de escrita que se iniciam muito
antes dos ensaios propriamente ditos e se prolongam quase até à estreia. Só assim
temos encontrado, ao longo dos últimos tempos, uma identificação plena, se não
com o objecto criado, pelo menos com o processo criativo.
E nesse processo de escrita directamente cénica vamos sendo conduzidos pela
força da ideia que motivou o projecto, e é nessa viagem de ideias– viagem que ora
dominamos e ora nos escapa– que vamos descobrindo os sentidos e limites do
espectáculo a construir.
É precisamente a força motriz dessa ideia que afasta radicalmente este tipo de
metodologia de trabalho daqueles processos criativos que o mainstream português
ainda designa de “colectivos”– referindo-se talvez a determinadas experiências
ocorridas na década de setenta e nomeadamente após a revolução de Abril.
Na actual metodologia de trabalho do Visões Úteis existe uma direcção–
partilhada, é certo, mas ainda assim uma direcção– que, espectáculo a espectáculo,
parte numa busca rigorosa do vector que mais sentido dê a uma ideia, sempre
aproveitando ao máximo as capacidades individuais de todos os criadores– não só
de cada um dos directores artísticos mas de cada um dos cúmplices que cada vez
mais o tempo vai gerando– mas sempre num respeito “dogmático” dessa mesma
ideia.
Antonioni disse uma vez que a ideia de “O grito” surgiu quando olhava uma
parede branca. Segundo Angelopoulos mentia. As ideias vivem num quarto
escuro, uma espécie de hangar ou sala de espera. Até ao momento que escolhem
para sair. O que importa é estarmos acordados. As paredes brancas são
completamente inocentes.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Viagem
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É a crença que a arte só faz sentido se estiver atenta às diversas áreas do
conhecimento que a rodeiam que tem orientado o nosso percurso artístico.
“Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque” surge assim no seguimento
natural de um trabalho onde o teatro nasce de estímulos e conceitos muito
diversificados.
A ideia de viagem foi o ponto de partida deste projecto. Sofreu reformulações,
mudanças nos seus objectivos e no itinerário, mas permaneceu sempre como
ideia central, como real desafio ao método de trabalho do Visões Úteis.
Inicialmente propusemo-nos levar para a estrada um processo criativo, isto é,
realizar uma viagem durante a qual a companhia ensaiasse um espectáculo.
Perguntávamo-nos se chegaríamos ao destino com um objecto artístico diferente
por submetermos a nossa abordagem habitual de uma peça ao movimento, à
experiência de viagem, de convivência num veículo, de alteração constante das
referências geográficas, sociais, linguísticas, etc.
Equacionámos depois a hipótese de incluir convidados a visitar nesta viagem,
alguém que, no início do percurso, nos fornecesse uma ideia ou texto como
material artístico a explorar e alguém que, no destino final, nos ajudasse a
transformar essa ideia ou texto (entretanto enriquecido pelo percurso) num
objecto cénico.
Com a definição do conceito de “fronteira” como tema privilegiado para um
projecto que queríamos que ultrapassasse a simples encenação de um texto escrito
(e que agendámos para 2001) tanto o contexto geográfico como o papel que
pensáramos que a viagem poderia ter no processo criativo foram alterados.
Resolvemos viajar na Europa e resolvemos não levar para a estrada uma
metodologia de trabalho, antes fazer da estrada, da deslocação, do atravessar de
fronteiras, uma nova e desconhecida etapa do nosso processo criativo.
Deixámos o itinerário em aberto, sujeito a ir sendo definido à medida que
confirmávamos os encontros com personalidades e entidades que gostaríamos de
visitar para debater os temas deste projecto– Fronteira, Europa, o Outro, o Herói.
Mas acabámos também por reflectir sobre o modo como a viagem estava ou não
Visões Uteis
Capítulo 2
presente na vida e trabalho destes convidados. E, aos poucos, a própria viagem
tornou-se tema.
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Falámos de porque é que ela se tornara uma ideia tão insistente, falámos da
viagem enquanto mera deslocação e da viagem enquanto experiência de vida, de
viagem interior versus viagem exterior, falámos de viagens sem rumo e de
regressos a casa, e da ameaça de morte que os meios de comunicação e a world
wide web parecem ter lançado sobre a viagem física.
Finalmente, decidimos não falar mais dela. Decidimos que a viagem não seria
tema da primeira etapa deste projecto, o espectáculo “Estudos”, porque iria
acontecer como segunda etapa.
Mas a ideia de que um grupo de pessoas, em plena mudança de milénio, se quer
meter numa carrinha e percorrer uns tantos milhares de quilómetros para
encontrar outras pessoas e assim apreender e aprender qualquer coisa de novo,
ganhar uma nova visão do mundo em que vive e de si mesmo, parece ser hoje
coisa de doidos. A avaliar pelas reacções que continuamente obtínhamos a este
projecto, pelo menos.
A ideia predominante parecia ser a de que o encontro virtual, a troca de
correspondência, o correio electrónico, o telefone, eram meios suficientes para
obter a informação, os dados que poderíamos pretender. E se a primeira
explicação que muitos encontravam para a nossa insistência na viagem física era a
nossa vontade de fazer férias a pretexto de trabalho, o argumento parecia cair por
terra ao equacionarem a maçada de passar um mês numa carrinha com outras seis
pessoas, longe da família, com horários rigorosos a cumprir todos os dias, com
encontros inadiáveis de dois em dois ou três em três dias, à distância de muitas
centenas de quilómetros entre eles, sempre a re-elaborar as questões para um
convidado à luz do que dissera o último ou das primeiras impressões que
tivéramos no seu país, sempre a colocar on-line a informação, as reflexões diárias,
as imagens…
E mesmo os nossos convidados, que aparentemente aceitavam o convite
entendendo as nossas motivações, não conseguiam afastar uma certa estranheza
ao ver-nos realmente ali, afastados há semanas do país natal e com alguns
milhares de quilómetros de estrada no corpo e na cara. Não raras vezes essa
estranheza escapava por entre a simpatia dos cumprimentos iniciais de um
encontro:
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Viagem
JOSEPH DANAN–
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TODOS–
Vocês deslocam-se como, de avião?
Não, não, de carro. Um minibus…
JOSEPH DANAN–
Têm um carro para todos? Simpático… muito bem… mas é muito
caminho, não?… a Grécia, por exemplo… quer dizer, não é assim
tão longe…
CARLOS COSTA–
Quando chegarmos a Portugal teremos feito mais ou menos dez mil
quilómetros.
JOSEPH DANAN–
É pequena, a Europa. Mas de facto é melhor que ir de avião, dá para
ter a medida certa das coisas.
Voltava a ser necessário colocar a ideia de viagem na mesa para discussão, levála connosco como tema de reflexão para os nossos convidados, principalmente
para aqueles que fizeram dela parte essencial da sua vida e trabalho. Porque de
facto o valor da viagem, a especificidade da experiência da deslocação e do
atravessar de locais, parece ter sido enterrado por esta mentalidade que
progressivamente substitui o encontro físico pela transmissão pragmática e “em
tempo real” da informação. Uma mentalidade que subtilmente se vai enraizando e
“colonizando” até os mais atentos, como reconheceria pouco mais tarde o
próprio Joseph Danan:
CARLOS COSTA–
Falando dessa necessidade de teatro como contacto físico, nós pensamos
que há uma questão semelhante no que concerne à viagem. Neste
projecto todos nos perguntaram “Porquê ir lá? Porque não ler os
textos, ver os filmes? Porquê viajar, é caro, é cansativo… podiam
mandar um e-mail, porquê estar lá?”.
JOSEPH DANAN–
A vossa escolha pareceu-me evidente. É engraçado porque há de facto
este contacto puramente virtual– o e-mail é um instrumento incrível
porque pode mesmo substituir o contacto físico (vemos todos esses
anúncios de relações virtuais). Podemos ter por e-mail uma conversa
que tem praticamente a mesma densidade que uma comunicação em
presença (vocês fazem-me uma pergunta, eu respondo, e passa-se tudo
naquele instante) e que me permite pesar as palavras, como não
acontece por telefone que, de resto, passado dez minutos já é cansativo.
A questão pode pôr-se ao nível da comunicação via internet e ao nível
da viagem virtual. No avião, por exemplo, temos uma viagem semivirtual. Há pouco, quando vos perguntei como vieram, esperava que
me dissessem “de carro”, mas pensei que era uma estupidez colocar a
Visões Uteis
Capítulo 2
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questão dessa forma porque pensei “Quem é que ainda faz isso, hoje
em dia? Toda a gente apanha um avião.”
Fiz também uma viagem, turística, com um amigo de Paris a Atenas
e pelas ilhas gregas de carro. Descemos pela costa da Jugoslávia (foi
antes da guerra) e foi magnífico– existe deslocação, vemos a paisagem
a mudar, as pessoas a mudar, de repente, ao fim de trezentos
quilómetros, já não é o mesmo sítio, o habitat não é o mesmo, há outra
língua… no avião não damos conta de nada.
Em Paris podemos agora apanhar o comboio e chegar ao coração de
Londres sem nunca ter visto o mar. Fiz isso uma vez e foi muito
estranho. Claro que fazemos isto para ganhar tempo, mas é muito
bom podermos ter o tempo da deslocação geográfica, física, e, sobretudo,
o tempo do reencontro, que é formidável. Temos que estar atentos,
porque há de facto uma mentalidade generalizada– quando vocês me
escreveram, a vossa viagem pareceu-me estranha, pensei mesmo
“porque é que não me escrevem, simplesmente?”. Embora no fundo
perceba bem os vossos motivos, essa foi a minha primeira reacção. É
porque existe uma ideia generalizada a este respeito.
Claro que têm razão em fazer isto; é toda uma outra percepção,
quando chegamos a outro país.
Não deixa de ser curioso que a viagem, durante séculos tomada como meio de
expansão das mentalidades e dos conhecimentos, como fase final de uma
educação que se queria o mais completa possível, seja hoje vista apenas como
oportunidade de lazer ou deslocação forçada que se deseja rápida, quase
imperceptível.
Procurámos assim, no nosso percurso, apoiar a necessidade imperiosa de
deslocação que sentíamos com o exemplo de outros artistas que a entendessem e
a levassem a cabo. E não foi difícil encontrar outras “vítimas” desta aparente
excentricidade:
THEO ANGELOPOULOS–
Fronteira, viagem… sabem, o povo grego foi um povo que esteve
sempre em viagem. O primeiro texto escrito na civilização ocidental é o
de Homero, a primeira grande viagem. E penso que isso está na
natureza dos gregos e que é por isso que há gregos em todo o mundo.
Há outros povos que são povos viajantes. Mas para nós creio que há
sempre uma viagem feita e uma viagem sonhada. As mudanças
históricas forçaram este povo a viajar e ir para a América, para a
África, Canadá, Austrália… é incrível, eu encontro gregos em todo o
lado.
Há um lado de aventura, mas também…. penso que começou no
tempo em que no Mediterrâneo existiam alguns velhos povos, os gregos,
os egípcios, os israelistas, etc… Havia comércio, havia trocas
comerciais e acho que partir tornou-se uma característica do carácter
deste povo.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Viagem
Predispusemo-nos assim à viagem que é choque com realidades desconhecidas
e que nos são estranhas. Quisemos conhecer pessoas e opiniões diferentes, mas
vendo, ouvindo e saboreando o seu canto desta Europa de todos.
Mas quisemos também submeter o “eu” e o “nós” à experiência da viagem, isto
é, não só aprender pela comparação do que é nosso com o que é dos “outros”,
Visões Uteis
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Sabem, até aos dezoito anos fiz só algumas pequenas viagens… não
muitas. Nasci em Atenas, sou um homem do asfalto e da poluição,
para mim as viagens não me interessavam muito. Não conhecia nada.
Mas quando fiz o serviço militar estive numa pequena unidade que
tinha de viajar por muitos sítios. Trabalhei naquilo a que aqui se
chama “Selecção”, um pré-exame para ver em que especialidade
deveriam ser colocados os jovens que iam à recruta, consoante as
capacidades e conhecimentos. O nosso trabalho era fazer testes e depois
corrigir, dar-lhes notas.
Essa viagem com a minha unidade foi a primeira vez que vi o interior
do meu país. Não passara muito tempo da guerra civil, que tinha
destruído o país. Havia uma pobreza, uma miséria… Foi a primeira
vez que senti que a Grécia não era a Grécia de Atenas, a Grécia das
pessoas que viviam, ainda assim, muito bem, mas havia sim uma
grande parte da população que vivia na miséria.
Depois fui para Paris, passei lá uns anos, esqueci tudo, só pensava em
cinema, trabalhei na cinemateca, rasgava bilhetes para poder ver os
filmes, via tudo, do primeiro ao último… tinha uma tal “gula” que
via filmes mesmo sem legendas. Quando voltei à Grécia havia outra
cultura, dei de caras com uma mudança. Fiquei cá algum tempo,
trabalhei um pouco no cinema… o primeiro filme que me propuseram
era com um grupo de música pop, um pouco à imagem dos Beatles,
onde tocava o Vangelis. Foram convidados para fazer uma tournée
na América e disseram “Vamos fazer um filme”. Para mim era um
exercício antes de mais. Tive que abandonar esse filme porque o
produtor americano mudou de ideias, já não queria o grupo lá…
Comecei então uma curta-metragem, ainda sobre o meio do showbusiness.
E pela primeira vez as coisas voltaram-me à cabeça, as imagens que vi
durante o serviço militar, tudo voltou… então fiz outra viagem, ao
Norte. E reencontrei a miséria. Tinha sido ainda mais agravada.
Uma grande parte das pessoas tinha saído da Grécia, para não serem
presas… e fiz o meu primeiro filme.
Penso que estas primeiras viagens, na altura em que fui soldado e na
altura em que filmei o primeiro filme, foram muito, muito importantes.
É por isso que não lhes toco. Compreendi melhor a Grécia, encontrei a
tragédia grega na vida quotidiana, e desde então sigo essa via.
Mas a ideia da viagem fica, e a necessidade da viagem fica. Cada vez
que tenho de começar um filme, faço uma viagem. Uma viagem ao
calhas. Num carro, com um amigo fotógrafo que conduz e fotografa…
como diria Bresson “au hasard, Balthazar”.
Capítulo 2
mas também deixar o próprio movimento e a constante mudança da paisagem
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libertar a mente para questionar aquilo que assumimos como “nosso”.
Numa conferência submetida ao tema “A Viagem das Ideias” (a que assistimos
na Fundação de Serralves alguns meses antes de iniciarmos o nosso percurso),
Maria Filomena Molder falava da viagem na concepção de Plotino, uma viagem
que visa a perda da identidade do Homem para uma descoberta de uma “fonte
primeira”, e referia-se ainda ao conceito de “samsara” na cultura hindu, em que a
necessidade de escapar ao que já é conhecido torna o acto de partir mais
importante do que o destino da viagem.
Sem grandes pretensões filosóficas, encarámos esta viagem como procura,
potencial viagem interior inscrita na deslocação que a viagem física proporciona.
Predispusemo-nos a mudar.
THEO ANGELOPOULOS–
Há pessoas que procuram abdicando da sua vida. Penso num
fotógrafo que foi ter com os taliban e foi morto… o que é que ele
procurava nos taliban? Com certeza não era só uma fotografia, para
lhe pagarem! Ninguém arrisca a vida por uma fotografia, havia mais
qualquer coisa. E há pessoas que pensam que continuam à procura,
mas que na realidade já abandonaram a busca.
Há pessoas que não têm o luxo de poder viajar, porque a sua situação
não lhes permite, e têm que fazer viagens interiores, contínuas. Se estão
conscientes de que temos de procurar outras coisas para além do pão
quotidiano.
Esta história chamada “cinema” é uma viagem. E penso que depende
de cada um fazer uma viagem que seja uma procura de qualquer coisa
ou uma viagem pura e simples, profissional. Penso que alguns tiveram
a coragem ou o privilégio de não ser profissional, e assim mantiveram
um pouco a pequena chama da necessidade de viagem e da procura de
qualquer coisa que ultrapassa a vida quotidiana, que ultrapassa
mesmo o conforto oferecido. Como dizia um homem de negócios, “O
dinheiro é a coisa mais fácil de se fazer. As outras coisas é que são
difíceis”. E as pessoas só são felizes quando esta pequena chama
continua a existir, e a ser mantida a arder.
Em casos muito, muito privilegiados, essa pequena chama e a vida são
uma única coisa. Noutros casos não, mas, de qualquer modo, há uma
razão para viver. Eu penso que tenho o privilégio de ter uma chama
viva… mesmo fazendo filmes melancólicos e pessimistas!
E partimos também com a noção que a viagem não se esgota na estrada. Esta
noção de viagem interior, de procura incessante dessa chama que ultrapassa a
necessidade do pão quotidiano, é para nós o que deve motivar a arte.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Viagem
Mesmo antes de partir, a curiosidade em relação ao regresso era grande.
Tínhamos ideia de que, mais do que encontrar outros, poderíamos dar de caras
connosco no meio da estrada. A ideia de que todos estes quilómetros poderiam
início.
CARLOS COSTA–
THEO ANGELOPOULOS–
Porquê viajar e ir procurar lá fora qualquer coisa que talvez
pudéssemos encontrar em casa?
Atenção, nós não somos todos iguais… aquilo que digo para mim não
se aplica a toda a gente. Posso falar da minha viagem e das minhas
necessidades… Há caminhos diferentes, mas ainda assim trata-se de
viagem. No exterior ou no interior. Uma viagem para o exterior pode
ser também uma viagem para o interior.
(…)
CARLOS COSTA–
TONINO GUERRA–
CARLOS COSTA–
TONINO GUERRA–
Mas achas que a viagem é um dado importante para compreender tudo
isso? Afinal tu viajaste muito…
Muito importante. É uma coisa fundamental.
Um amigo teu que tenha nascido em Santarcangelo mas não tenha
viajado não terá a mesma forma de pensar que tu tens. E será que se
sente tanto parte do rio Marecchia como tu te sentes, sem nunca o ter
abandonado?
Isso não sei. Eu não sei o que os outros sentem. Tu fazes uma
comparação entre quem viaja e quem não viaja mas se calhar a
diferença estará mais no facto de eu ter estudado e de fazer arte. Por
exemplo, eu vejo uma coisa que a todos parece feia mas eu acho-a bela.
Não é uma questão de ter viajado ou não. Quando eu ouço a chuva, o
barulho da chuva, encontro uma beleza inacreditável, sinto-me
acompanhado. São tantos os elementos. Quando uma pessoa é velha,
quando sente a velhice às costas, mais do que dos homens, sente-se
próximo dos animais, das plantas. Por isso é preciso compreender o
momento e a idade. De qualquer forma viajar é uma coisa muito
importante.
Arriscámos a hipótese de, no final do caminho, percebermos que estava tudo
aqui ao lado. Podíamos chegar à conclusão que todas as grandes verdades e
experiências que encontrássemos “lá fora”, eram as mesmas que nos esperavam
Visões Uteis
23
servir apenas para melhor nos trazer de volta a casa estava presente desde o
Capítulo 2
“cá dentro” se nos predispuséssemos a ser viajados. Ou como naquela música dos
24
Beatles, “A Luz Interior” (The Inner Light), que Gregory Motton nos mostrou:
“Sem sair da minha porta
Posso conhecer todas as coisas da Terra
Sem olhar pela minha janela
Podia conhecer os caminhos do Céu
Quanto mais longe viajamos
Menos conhecemos
Menos conhecemos realmente
Sem sair da minha porta
Podes conhecer todas as coisas da Terra
Sem olhar pela minha janela
Podias conhecer os caminhos do Céu
Quanto mais longe viajamos
Menos conhecemos
Menos conhecemos na realidade
Chega sem viajar
Vê tudo sem olhar
Faz tudo sem fazer”
Mas só poderíamos sabê-lo no fim da viagem.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Europa
25
No início do projecto discutíamos se o motor deste nosso trabalho era a ideia
de Europa ou a de Fronteira. Sem nunca fechar completamente a questão,
concordámos que a Fronteira– e aquilo que a atravessa– era o centro de todo o
projecto. Mas nunca esquecendo que a nossa necessidade de falar de Fronteira
está intrinsecamente ligada ao facto de sermos europeus e de sentirmos
necessidade de pensar a Europa; a Europa como o espaço que por excelência se
definiu ao longo dos séculos pela sucessiva divisão em dois e pelo estabelecer de
fronteiras. Não deixa de ser paradoxal que hoje a Europa esteja a tentar definir-se
precisamente pela abolição de fronteiras. O paradoxo aumenta se levarmos em
conta que a esta abolição de fronteiras poderá corresponder não só um reafirmar
das identidades específicas que constituem a Europa (logo, a constituição de
novas fronteiras) como um reforçar das suas fronteiras externas (pensamos agora,
mais do que nunca, no que separa a Europa dos outros). Trata-se, afinal, do
eterno conflito entre a necessidade de impormos fronteiras e a necessidade de
lidarmos com o que existe para lá delas. Um conflito que não pode deixar de
atormentar e encher de culpa o Europeu, filho de um continente que se divide
entre a mais obstinada defesa dos Direitos do Homem e uma memória manchada
pelos piores crimes da História da Humanidade.
Na primeira fase do projecto– o espectáculo “Estudos”– a ideia de Europa
serviu essencialmente como motor de outros temas. Mas na segunda fase– a
viagem– voltou naturalmente a estar muito presente.
Na Grécia, berço da civilização ocidental e ponto de encontro entre as culturas
ocidental e oriental, o realizador Theo Angelopoulos falou-nos como ninguém da
Europa, pondo particular ênfase na dificuldade em ultrapassar as fronteiras
históricas internas.
THEO ANGELOPOULOS–
Dizemos sempre que a cultura europeia é a soma da cultura grecoromana com o cristianismo. A Grécia de hoje, em relação a essa
cultura do passado, não tem nada a ver. Um motorista de táxi pode
dizer-vos coisas da Antiguidade, muito contente e orgulhoso, mas não
conhece nada. Deve ser a mesma coisa hoje com os italianos e, por
exemplo, Júlio César. Ou com os poetas da língua latina. Mas os
Visões Uteis
Capítulo 3
26
italianos, vocês também, a Espanha, tiveram o Renascimento. A
Grécia teve o azar de, nesse período, estar sob a ocupação otomana.
Os intelectuais que estavam em Constantinopla partiram para leste,
grande parte foi para Itália, para França, muitos para a Rússia.
Toda a Grécia estava ocupada, mesmo as comunidades gregas fora
daquilo que é hoje a Grécia (na Ásia Menor, por exemplo) estavam
subjugadas, até a língua era impedida.
Havia uma islamização forçada. Quatro séculos! Na Sérvia, na
Bulgária e na Albânia foram cinco séculos. Não havia Renascimento,
não havia nada! Quando esses países se tornaram de novo livres, foi
preciso re-inventar tudo. Ou seja, houve um gap civilizacional. E que
ficou caro à progressão destes países, e aos países vizinhos, todos os
Balcãs.
É por isso que os Balcãs são uma região tão especial. Porque é que há
tantas guerras que começam aí? Há velhas hostilidades que perduram
há séculos e que já não passam. Porque é que os eslavos, croatas e
sérvios, têm uma tal hostilidade?– são ambos eslavos! Porque os
croatas estiveram com os alemães na Segunda Guerra Mundial e os
sérvios com os Aliados. Os croatas massacraram quase oitocentos mil
sérvios e os sérvios fizeram o mesmo quando puderam. Matamos,
somos mortos, etc.: é um círculo vicioso, nunca vai acabar!
E agora juntou-se ainda a questão muçulmana. Na Bósnia fala-se de
muçulmanos, como se se tratasse de uma etnia. Muçulmano não é uma
etnia, é uma religião. Isso foi uma invenção do Tito para dividir todos
e assim poder reinar. Os bósnios são eslavos! Não são muçulmanos,
turcos, etc… são eslavos.
No século II o patriarca de Constantinopla apanhou o herege Bogomil
(era a época das heresias) que partiu com os seus fiéis e se instalou na
Bulgária. Encontrou ali uma pequena clientela, mas o patriarca
desejava já a sua morte– na altura os hereges aqui eram assassinados.
Então ele partiu da Bulgária e foi para a Bósnia, que estava na época
sob o Império Austro-Húngaro, ou, pelo menos, ainda não eram os
otomanos. Quando os otomanos chegaram, ocuparam-nos (notem que
os turcos chegaram até Viena, só aí é que pararam) e ficaram muito
tempo. Os fiéis de Bogomil, que eram mal vistos pelos outros eslavos
ortodoxos, começaram a aceitar passar, lenta mas progressivamente,
para o islamismo . E é curioso porque até hoje eles são muçulmanos,
mas têm um ritual que é ortodoxo. Vem da época do cristianismo.
Assim, estas pessoas eslavas fizeram-se muçulmanas. E vejam a
situação que temos hoje… e isso nunca mais vai acabar.
CARLOS COSTA–
Mas quando falamos desta hostilidade não será que ela está presente
também quando fala da civilização otomana como um vazio
civilizacional?
THEO ANGELOPOULOS–
O que aconteceu foi bem estudado, mas não devemos confundir
sentimentos sobre algo do passado. Tudo o que foi mal feito foi mal
feito. Mas agora é o presente, e o futuro.
Eu tenho amigos turcos e eles partilham desta ideia. Vejo em relação
a mim próprio, deram-me um grande prémio do cinema em Istambul.
Quando entrei na sala, as pessoas levantaram-se, aplaudiram,
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Europa
Já em França, última etapa da nossa viagem, o dramaturgo Joseph Danan pôs a
questão colonialista no centro da definição do que é a Europa hoje. E estas
conversas ao longo da estrada, ainda que não contivessem dados novos ou
contraditórios em relação à nossa primeira reflexão, levaram-nos a sintetizar
numa nova perspectiva a ideia de Europa enquanto matriz deste projecto.
“E se no fim de tanto debate, tanta procura, tanta reflexão em torno das fronteiras, da
Europa e do outro, a questão fosse apenas esta: algumas antigas potências
colonizadoras têm medo– medo da vingança dos colonizados que agora justamente
reclamam a sua compensação e medo do seu próprio poder autodestrutivo. Medo de
estarem sós face à “ameaça” do resto do Mundo e medo de estarem juntas após se terem
degladiado durante séculos.
A velha senhora Europa sorri com optimismo e simpatia enquanto cruza os braços
para parecer firme. Mas talvez esteja só a proteger o tronco da inevitável tempestade que
se adivinha. Pode dizer-se dela o que se diz de qualquer homem: enquanto não fizer as
pazes com o seu passado não terá serenidade para encarar o futuro.”
Notas de Viagem/Paris, 3 de Junho, Ana Vitorino
Visões Uteis
27
algumas pegavam-me na mão e diziam “Amamo-lo, amamo-lo!”.
Pessoas jovens, na rua, paravam… Não tem qualquer sentido, a
hostilidade. Pertence ao passado. Agora é seguir em frente!
O problema na Turquia é ser ainda dirigida por militares, se não
fosse isso seria muito mais fácil entrar na Comunidade Europeia e
ultrapassar os seus problemas. É por isso que há lá um movimento de
esquerda que talvez seja o maior da Europa. Fazem greve de fome…
Há muitos jovens que querem ultrapassar uma História que pesa
sobre eles. Mas não sei porque é que o exército ainda está no poder, os
governos vêm e vão e eles estão lá atrás. Há eleições, mas se eles não
estiverem de acordo…
Mas creio, e espero, que a nova geração seja muito mais livre. Vejo
grupos de estudantes que vão à Turquia e encontram-se com jovens de
lá, sentem-se bem… não há nada a separá-los, nada!
É sempre a culpa dos sistemas e estruturas velhos, que pensam “O
que é que a Turquia pode ganhar?”. Acho que a Grécia aprendeu a
lição– não totalmente, mas ainda assim…
Tivemos aqui umas catástrofes com tremores de terra. Alguns gregos
tiveram que ir para lá, as pessoas foram muito amistosas… e porque
não seriam? Coisas que seriam naturais parecem ser extraordinárias!
É por isso que defendo o atravessar de fronteiras, não apenas
geográficas mas também fronteiras históricas. A Alemanha e a
França ainda não ultrapassaram a fronteira, ainda não esqueceram a
guerra. Como me dizia um amigo alemão “Nós temos ainda medo do
alemão médio”. Há coisas que ficam, e é aí que está a fronteira.
28
Fronteira
A Europa é por excelência um paradigma de fronteira. Vivemos numa autêntica
manta de retalhos de culturas e línguas diferentes que estão unidas por uma
identidade solidificada num passado histórico de conquistas, guerras, impérios e
uniões.
As nossas ideias sobre Fronteira mudaram muito ao longo de 2001. A fronteira,
por um lado, é a linha que nos separa do outro, sendo o outro um país, uma
nação, uma pessoa, um medo ou nós mesmos. Por outro lado, a fronteira pode
ser o que define uma cultura ou um indivíduo garantindo-lhe a independência ou
sobrevivência. A fronteira não é assim simplesmente uma barreira física entre dois
países mas algo que nos separa do outro para o bem e para o mal. E foi na
questão de quem é o outro e de como é que se lida com o outro que nos
concentrámos a partir de certo ponto do nosso trabalho.
Ao pensar nas formas de superar fronteiras falámos de viagem enquanto
percurso que nos leva a conhecer o outro e, pelo caminho, a nós próprios e
falámos de Herói enquanto o homem que supera os seus limites e que, por isso,
inspira os outros.
Encontrámos dois tipos essenciais de heróis num sentido clássico: os que
foram motivados pela busca de um bem pessoal (como Hércules) e os que foram
motivados pela busca de um bem comum (como Jesus Cristo ou Prometeu). E
perguntámo-nos: Hoje em dia, ainda há espaço para heróis?
Hoje os modelos de Herói são outros. O Herói já não é aquele que se
predispõe a partir, a viajar, mas aquele que se dispõe a ser “viajado” pelos outros,
ou seja, o que permite que os outros percorram a sua vida até à intimidade quer
através dos olhos indiscretos da televisão quer através de um folhetim de jornal.
Na realidade nada o distingue do nosso vizinho do lado. E assim todos podemos
ser heróis sem causa.
Também fizemos a pergunta: E se houvesse por aí um herói? O que fazíamos
com ele?
Talvez o puséssemos a apresentar um concurso de televisão ou a participar
num Reality Show… Ou se calhar logo se publicariam fotografias que o
comprometessem, trazendo para as primeiras páginas os pormenores sórdidos do
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Fronteira
seu passado, e se não os houvesse inventavam-se… Mas também podia ser
diferente: podíamos fazer paradas, condecorá-lo, erigir uma estátua, dar-lhe uma
pensão vitalícia ou um cargo de cônsul num país de clima agradável, e esperar
29
pelo próximo herói.
Durante a viagem os nossos convidados partilharam a nossa ideia de que os
heróis estão fora de moda:
CATARINA MARTINS–
CARLOS COSTA–
PEDRO CARREIRA–
Mas as pessoas estão a escrever sobre heróis?
É que, pelo menos em Portugal, os heróis são os concorrentes do “Big
Brother”… e estão a tomar o lugar dos verdadeiros heróis… toda a
gente os ouve mas de facto não têm nada para dizer.
Se calhar é porque as pessoas precisam de heróis mas hoje em dia é
mais fácil ir comprá-los.
RAMIN GRAY–
Isso soa muito bem!… Se calhar têm razão: já não há heróis… foram
todos comprados pelas televisões e transformados em celebridades…
Nas peças já não há heróis… Ia parecer antiquado não ia?!
CARLOS COSTA–
Temo-nos perguntado onde estão (se é que existem) os heróis na
dramaturgia contemporânea. Neste momento toda a gente escreve sobre
pessoas “normais”, não só no teatro mas na televisão. Vemos no “Big
Brother” que o centro das atenções são pessoas sem qualquer qualidade
especial… onde estão os heróis? Passaram de moda?
JOSEPH DANAN–
Não vejo que o Herói alguma vez regresse. Hoje assistimos à confusão
entre personagem e pessoa comum, vemos no exemplo da televisão. É
muito claro.
De vez em quando há autores que trabalham sobre figuras míticas,
mas é muito mais frequente essa personagem comum.
Penso que o herói como modelo está verdadeiramente acabado.
(…)
CATARINA MARTINS–
JOSEPH DANAN–
No herói clássico o conflito é claro, há duas forças muito claras. E
quando se complica o conflito, no teatro de hoje, já não se pode ter
Herói.
É verdade que o verdadeiro Herói é aquele do teatro grego. Mas o que
é curioso, ainda assim, é que o cinema parece ter retomado essa função.
Acho que há verdadeiros heróis no cinema, talvez um pouco menos
hoje, mas vejamos o western… funciona um pouco como uma
tragédia grega, com o mesmo tipo de conflito. Esta semana apareceram
no “Le Monde” uma série de artigos de Bernard Henry-Levy sobre as
Visões Uteis
Capítulo 4
30
guerras actuais, nomeadamente a guerra em Angola, e ele diz que são
guerras sem razão. Há conflito mas já não se sabe porquê… são
sangrentas e muito mais aterradoras do que as guerras clássicas, em
que pelo menos sabíamos porque é que nos estávamos a bater. Nas
guerras clássicas podia haver heróis. É o que vemos nos filmes de
guerra americanos, cada um do seu lado, etc… A partir do momento
em que não sabemos mais o que estamos a defender, o conflito torna-se
violento mas obscuro. Acho que há muito disto no teatro
contemporâneo– e depois ainda há os micro-conflitos do quotidiano…
Ao pensar em como vivemos com o que está para lá da fronteira tropeçámos
ainda em mais uma criada para lidar com o outro: o conceito de “politicamente
correcto” que nos permite ter a sensação de que fazemos o bem e ajudamos, sem
que realmente mudemos aquilo que nos envergonha. Mas na verdade
continuamos a ser seres divididos. Criámos o “politicamente correcto” para nos
sentirmos bem? Ou para não termos de lidar com o nosso oposto. Ou terá sido
para expiar essa culpa– muito europeia– que nasce muitas vezes da vergonha que
sentimos do nosso passado colonial?
O que o “politicamente correcto” faz, na realidade, é criar uma barreira de
silêncio e hipocrisia pelo medo de comunicar uma opinião. Já não sabemos o que
pensa o nosso opositor porque se escuda por detrás de uma capa de “tolerância”.
Já não temos coragem para exprimir a nossa opinião sobre determinados assuntos
porque podemos ser mal interpretados. Não podemos dizer “criados” mas sim
“auxiliares de economia doméstica”. Não podemos dizer “pretos” mas sim
“negros”. Mas claro que em inglês só se pode dizer “black” e nunca “nigger”.
Nunca pode dizer “aleijado”. E assim, um dia, seremos incapazes de comunicar
ou esboçar um pensamento. Claro que entretanto continuamos a comprar quotas
de lixo ao terceiro mundo e tecidos feitos por crianças indianas…
Criamos novas fronteiras onde elas não são necessárias e abolimos fronteiras
sem nos apercebermos que estamos a invadir o espaço do outro. De uma maneira
ou de outra parece que estamos constantemente a errar… e a culpa nasce de novo
como que para realimentar ódios e incompreensões.
Um herói não tem medo de ser incorrecto para com o outro. Um herói
atravessa fronteiras porque tem de o fazer, porque precisa de o fazer. Um herói
não pode fingir que se importa. Um herói tem mesmo de se importar senão a sua
empresa não tem sentido. Um herói preocupa-se com o outro mas não se
preocupa se o outro o está a ver na televisão. Se calhar por isso é que já não há
muitos.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Estudos
31
Ao longo da nossa discussão sobre os conceitos de Fronteira, Herói, Outro e
Europa fomos reunindo material tão diverso como entrevistas, artigos de jornais,
textos dramáticos e não dramáticos e discutindo ideias dispersas como o conceito
de herói viajado em oposição ao herói clássico, a hipocrisia, o “politicamente
correcto”, a linguagem televisiva, o concurso de TV, o frente a frente, o debate, a
repulsa pelo outro, o medo do outro, a violência e… enfim, a culpa– tema este
que esteve sempre presente desde as primeiras discussões sobre a Europa e o
mundo Ocidental e que aparentemente nos perseguiu, não de forma inocente, até
este ponto. Do confronto com este material surgiu o espectáculo “Estudos”.
FONTES E TEMAS
O Estudo nº1/O Pilar de Fogo surgiu de uma recolha de discursos de
Yitzhak Rabin em ocasiões de tratados de paz e aquando da cerimónia de entrega
do Prémio Nobel da Paz. A dificuldade de entender o outro e o esforço– inglório
até ver– de com ele conviver motivou esta pesquisa sobre o conflito, sobre as
razões da impossibilidade de compreender o nosso mais próximo e sobre a raíz
dessa dificuldade que está, afinal, dentro de cada um de nós.
“Vimos de uma terra angustiada e desgostosa. Vimos de um povo, de uma casa, de
uma família, que não conheceu um único ano ou um único mês no qual mães não
chorassem pelos seus filhos. Vimos para tentar pôr fim às hostilidades, para que as
nossas crianças e as crianças das nossas crianças já não experimentem o doloroso preço
da guerra, da violência e do terror.
Senhoras e Senhores.:
Em tempos fui um jovem, agora completamente crescido em anos. E de todas as
memórias armazenadas em todos estes anos de vida, aquilo que mais recordarei até ao
meu último dia são os silêncios: o pesado silêncio do momento seguinte e o terrível
silêncio do momento anterior.
(…)
Nesse momento de grande tensão mesmo antes do dedo premir o gatilho, mesmo antes do
rastilho começar a arder; na terrível calma do momento, ainda há tempo para
Visões Uteis
Capítulo 5
questionar, questionarmo-nos sozinhos: Será mesmo imperativo agir? Não haverá outra
escolha? Nenhum outro caminho?”
32
Estudo nº 1/O Pilar de Fogo
“O estrangeiro” de Albert Camus foi um dos gatilhos do tema o Outro que
nos levou a perguntar quem são “eles” para nós. Resposta que fomos
encontrando em improvisações e obtendo de amigos através de correio
electrónico. A lista reunida foi imensa abarcando quase todos os “eles” que se
podem imaginar. Tantos que de repente eles somos nós! Era o esqueleto do
Estudo nº 2/Eles e o Outro.
CONFERENCISTA–
TRADUTORA–
CONFERENCISTA–
TRADUTORA–
CONFERENCISTA–
TRADUTORA–
CONFERENCISTA–
Eles são os professores que escrevem e dizem disparates aos alunos que
deviam formar, que se queixam sistematicamente das agruras da
profissão e, ainda assim, ficam nos quadros da escola ano após ano,
que esgotam os artigos 102 porque lhes apetece ir à República
Dominicana em meados de Novembro.
Tourists.
Eles são os jornalistas que redigem palavras com erros ortográficos
crassos, que fazem a contracção das proposições quando estas
antecedem uma oração infinitiva, que fazem do casamento de dois
imbecis notícia nacional e repetem nos noticiários de um dia inteiro que
o Bangladesh é uma ilha.
Bangladesh is not an island.
Eles são os broncos que se queixam do sol e se queixam da chuva e
para quem todos os anos há uma calamidade, num ano choveu e não
estávamos à espera, no outro esteve normal e nós estávamos preparados
para a calamidade; os que retalharam a terra aos bocadinhos com as
heranças, que ficam chocados porque a laranja espanhola é mais
barata e pensam que bonito e saudável é a maçã com bicho; os tipos
que se espantam porque chove no Inverno e porque Portugal tem um
clima temperado; aqueles que não se modernizaram, que morrem no
mar porque não têm GPS na traineira, porque com esse dinheiro
preferem ir para Badajoz nas férias; são os gajos que estão nas obras
sem protecção nos ouvidos e sem capacete e se fodem e depois vão viver
da minha Segurança Social.
People from Spain.
Eles são os gravatinhas; os tipos que sobem na empresa a dar nas
vistas à frente do patrão; os que tiraram cursos de Economia e Gestão,
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Estudos
TRADUTORA–
CONFERENCISTA–
TRADUTORA–
CONFERENCISTA–
TRADUTORA–
Interior decorators.
Eles são os funcionários públicos que vivem dos nossos impostos, os
tipos que têm prazer em enrolar, em empatar, que sabem que podem
não trabalhar e ainda assim não ser despedidos; são verde-amarelados;
são os que estão ali para foder tudo; os excedentários; são os tipos que
dizem “Não trouxe o papel?” e “Ah, tem que cá vir outra vez!”; são
gordos e têm o cu pesado; aqueles que deixam no computador a marca
de gordura da “sandes” que comeram.
The green fat people.
Eles são as crianças que pensam que podem fazer barulho quando
lhes apetece; os que destroem a paz; aqueles que comem pacotes de
batatas fritas e os deitam ao chão; eles são o futuro.
Pikachu.
Estudo nº2/Eles e o Outro
Da discussão sobre o Herói reunimos textos sobre Prometeu, enquanto herói
clássico, e textos como “Dansen” de Bertolt Brecht ou “A minha apologia” de
Woody Allen. A ideia de confrontar um herói com um empresário enquanto
representante de uma sociedade sem lugar para heróis surgiu, no entanto, graças a
uma entrevista de Belmiro de Azevedo à revista Visão. Desse confronto nasceu o
Estudo nº3/Vou Comprar um Cavalo e Desandar.
EMPRESÁRIA–
HERÓI–
Não me diga que é uma pessoa normalíssima. Você foi de uma
tenacidade, coragem física e resistência para lá de todos os limites. Eu
nem consigo imaginar o sofrimento a que esteve sujeito. Completamente
isolado, preso naquele sítio horrível, em condições sub-humanas, calor,
as ameaças… Como é que aguentou? O que é que sentiu… ali
sozinho?
Eu acho que já se falou demasiado sobre tudo isto. As pessoas sabem
o que aconteceu e acho que é completamente desnecessário entrar em
pormenores que… não interessa. Não tem sentido.
Visões Uteis
33
cursos específicos tipo “Gestão de tábuas de madeira castanho-claro
com verniz brilhante” e pensam que podem extrapolar daí para
qualquer outra coisa; os gajos que apresentam projectos, que fazem
apresentações, usam powerpoint e lazerpoint; os tipos de sucesso que
trabalham muito para poderem depois ir uma semana para a neve.
Capítulo 5
EMPRESÁRIA–
34
HERÓI–
Sim, mas tem consciência que é o facto de as pessoas reconhecerem o
seu sofrimento que lhe dá o poder que tem agora?
Eu… poder?
EMPRESÁRIA–
Sim, o poder do exemplo, de ser uma referência, alguém que os outros
seguem. Neste momento as pessoas são capazes de se atirar a um poço
atrás de si. Você tem muito poder.
HERÓI–
Pois… Não sei se é bem assim. Eu não chamaria a isso poder. Eu
acho que as pessoas pensam pela sua cabeça. Poder é o que vocês têm.
Pessoas como você, com dinheiro… que têm o poder económico.
EMPRESÁRIA–
HERÓI–
Eu tenho muito claro para mim que a mais-valia material que nós
formamos desde o dia do nascimento até ao dia da morte é um fatinho
e um par de sapatos. Não tenho quaisquer ilusões a esse respeito, e a
verdade é que nem tenho chance de gastar um décimo da minha
fortuna. Não é verdade que eu seja uma mulher poderosa. Nem sei
porque é que se diz isso. Ninguém pode dar um só exemplo de
arrogância da minha parte. Uso o dinheiro com uma grande
responsabilidade social. Sou uma grande arrecadadora de IVA e sou,
até pode parecer pretensão dizê-lo mas sou, uma cidadã exemplar.
Não tenho nem nunca tive a pretensão de ser uma representante das
outras pessoas. Aliás, nunca estive filiada em nenhum partido, nem
nunca estive de forma alguma envolvida na vida política. Esse será
porventura o seu futuro. A acreditar no que se tem dito… Tem lido os
jornais, ultimamente?
Só por alto…
Estudo nº3/Vou Comprar um Cavalo e Desandar
Faltava-nos dar um outro lado: o do medo irracional do outro. O outro
enquanto portador de algo que nos pode destruir e que por isso nos força a atacar
primeiro. A ideia do Estudo nº4/Peste surgiu de dois estímulos diferentes.
Por um lado na altura falava-se muito da famosa Febre Aftosa, da BSE e da
Gripe das Galinhas. Era inevitável o medo da contaminação por uma doença que
atravessa fronteiras apesar dos nossos esforços– na memória ficam as imagens de
passageiros de avião a terem que passar os sapatos por um tapete com
desinfectante. De repente havia algo de invisível que se podia aproximar e abalar
o nosso mundo bem construído.
Por outro lado fomos seduzidos pelos relatos sobre a Peste Negra de 1347 que
nos davam esse lado de terror e medo irracional do outro, a que se juntou algo de
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Estudos
muito precioso: pela pena do frade irlandês John Clyn tínhamos um relato de
desespero e esperança de quem precisa de acreditar que alguém sobreviverá para
contar. Para que nada seja em vão.
35
“E eu descrevi estes acontecimentos impressionantes do que se passou no meu tempo. E
receando que sejam esquecidos e se desvaneçam da memória das gerações vindouras, eu,
entre os mortos, esperando que a morte chegue, escrevi tudo quanto escutei e verifiquei. E
para que os escritos não desapareçam com o escriba e o trabalho falhe assim o seu
propósito, adicionei pergaminho para, acaso haja alguém para o ler no futuro, algum
filho de Adão que sobreviva à pestilência continue o trabalho por mim começado.”
Estudo nº4/Peste
LINGUAGEM E ESPAÇO CÉNICO
Apresentámos quatro Estudos em quatro salas diferentes de uma galeria de
arte. A uni-los estava sempre a noção de fronteira entre indivíduos. De Estudo
para Estudo o público tinha que percorrer um corredor semelhante a uma estrada
com as respectivas faixas rodoviárias, que lembravam que o Outro pode ser um
obstáculo a contornar e que certas regras têm de ser seguidas para evitar conflitos.
Eram também uma referência à viagem que iríamos fazer a seguir. No fim do
espectáculo uma sessão formal de cumprimentos ao público, a substituir os
tradicionais aplausos, permitia reconstruir fronteiras através da hipocrisia de um
sorriso e aperto-de-mão enquanto se diz uma frase oca de sentido pela repetição:
“Obrigado por ter vindo”.
De diferentes formas todos os Estudos falavam de fronteiras entre nós e os
outros. E que ferramenta temos nós para ultrapassar essas fronteiras: a linguagem.
Que deve ser adequada a cada situação. O discurso, a entrevista, a troca de ideias,
a conferência, são formas muito utilizadas hoje em dia para comunicar de uma
forma asséptica, sem riscos de verdadeiro confronto com o outro e
preferencialmente com uma qualquer mesa a separar-nos. A mesa, que surge entre
os dois lados em confronto, deveria ser uma ponte para o diálogo mas
paradoxalmente comporta-se como uma verdadeira fronteira. Nos Estudos existe
essa barreira de segurança: No Estudo nº1 um púlpito que separa o antigo
soldado do seu antigo inimigo; no Estudo nº2 uma mesa de conferência que serve
Visões Uteis
Capítulo 5
como porto de abrigo e separador entre classes; no Estudo nº3 uma frágil
mesinha de vidro que separa a empresária do herói. No Estudo nº4 não havia
36
uma fronteira física tão clara. Neste caso estava presente a ideia de contaminação
para lá de todas as fronteiras, bem patente no cheiro a vinagre que envolvia o
espaço.
Quisemos, por um lado, usar estas linguagens do quotidiano e dos média para
nos aproximarmos do público e, por outro lado, subvertê-las. Ou seja, no
discurso do Estudo nº 1 o homem/combatente que veio fazer a paz, enquanto
debita palavras de esperança, traz nos olhos e nos gestos recordações de feridas
fundas que nunca sararão– talvez só o tempo o possa fazer, mas nunca se deu
tempo ao tempo– e uma enorme descrença em si mesmo e nos seus inimigos. Há
uma grande incapacidade para lidar com o Outro. Na conferência do Estudo nº2
a conferencista vai-se envolvendo com os “eles” que vai enumerando e a tensão
entre ela e a outra personagem, a má tradutora simultânea, vai aumentando até
um ponto insuportável e, subitamente, o pior “eles” está na sala, à nossa frente, e
a culpa floresce na cabeça de quem maltratou o outro e na cabeça de quem viu e
nada fez. No Estudo nº3 quisemos confrontar duas personagens– um herói e um
representante da nossa sociedade empresarial pragmática e liberal– em amena
conversa no estilo televisivo hoje muito na moda. O choque foi inevitável. Estas
personagens nunca poderiam conviver porque não podem estar no mesmo
“programa”– os valores em que acreditam são incompatíveis com a situação e
acabamos por ter um empresário que vai abafando silêncios com banalidades
escabrosas sobre a sua actividade e um herói que não encaixa ali, que é aquilo a
que chamámos um mau performer, um péssimo gestor de imagem. No Estudo nº4
optámos por uma instalação sonora e visual em que a sensação agoniante
provocada pelos relatos sobre a peste negra convivia com a imagem caseira de
uma mulher a passar a ferro intermináveis pilhas de roupa, numa espécie de
trabalho de Sísifo em ambiente azedo.
Os Estudos eram isso mesmo: mais do que um espectáculo, um ponto de
situação deste projecto que culminaria com um outro espectáculo e que pelo meio
teria uma viagem onde tudo se reformularia, onde tudo ganharia novos sentidos e
onde muita coisa iria certamente surgir.
Para já nós estávamos de um lado e “eles” do outro. Pelo meio uma mesa a
separ-nos. Na mesa uma garrafa de água meio cheia para evitar que alguém se
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Estudos
engasgue. Se mudarmos a perspectiva temos que nós estamos de um lado (o
outro) e eles do outro. Na mesa continua a garrafa, agora meio vazia, para evitar
que alguém se engasgue.
37
Depois dos Estudos seguimos em viagem.
Visões Uteis
Parte II
Visões Uteis
Na Estrada
TRINTA DIAS DE VIAGEM:
Partida a 6 de Maio, chegada a 5 de Junho.
41
SETE PESSOAS NUMA CARRINHA:
Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina Martins e Pedro Carreira– directores
artísticos e actores do Visões Úteis;
Ágata Marques Fino– responsável de produção do Visões Úteis;
João Martins– músico e webdesigner, colaborador regular do Visões Úteis;
Nuno Casimiro– escritor, responsável pelas crónicas de viagem a publicar na
imprensa portuguesa.
A PROPOSTA:
Partir em viagem pela Europa para contactar, ao longo de mais de dez mil
quilómetros de estrada e mar, com pessoas ligadas ao teatro, ao cinema, à
literatura, à arquitectura, à política e à programação cultural– pessoas que pelo seu
trabalho e pela sua vida influenciaram a nossa ideia de Europa, a nossa ideia de
Fronteira e de Outro.
6 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A BARCELONA/ESPANHA
Encontro no Porto perto de uma entrada da Via de Cintura Interna às seis
horas da manhã. Surpreendentemente a carrinha tem espaço de sobra para as
bagagens. O último jornal português que leremos nesse mês dá-nos a notícia da
morte do actor Paulo Claro. Não está calor, nem frio, nem trânsito.
“A paisagem passa depressa, em contínuo zapping. Durante muito tempo parece sermos
os únicos na estrada.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Chegamos a Barcelona a horas de jantar, dar uma voltinha nas ramblas e ir
dormir.
Visões Uteis
Capítulo 6
42
42
7 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A MILÃO/ITÁLIA
“Estrada e mais estrada e um acidente com um camião que nos obriga perder hora e
meia para percorrer sete quilómetros.
Pelo fim da tarde começam os Alpes, a serra esventrada, um formigueiro de camiões e
uma fronteira com polícia. Fardada e armada. Perguntam-nos onde vamos e o que
fazemos. Mandam-nos seguir imediatamente. (…) Pela janela entram os túneis e o
Mediterrâneo, polvilhado com os iates das revistas do jet set.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Chegamos a Milão já noite dentro. Cabeça em água depois de um dia dividido
por três países e três línguas diferentes. A hospitalidade italiana salva-nos e temos
um guia de ocasião para nos ajudar a encontrar o hotel.
8 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: UMBERTO ECO
UMBERTO ECO– Escritor, ensaísta, linguista, professor de estética.
O encontro com Umberto Eco não estava confirmado. Resolvemos arriscar
porque o percurso passaria obrigatoriamente perto de Milão. De manhã saímos
do hotel para o meio da campanha eleitoral italiana. Telefonamos de uma cabine
pública para o escritório de Umberto Eco. Dizem-nos que não está no país.
Primeiro desaire.
No passeio pelo centro de Milão e da campanha paramos na Rua de Dante.
Chama-nos a atenção uma acção do Partido Radical.
“Serão loucos ou pessoas que acreditam?
Ou se calhar os loucos são pessoas que acreditam?
Em Milão alguém em cima de um palanque falava para o vazio numa rua cheia de
pessoas. Só nós, estrangeiros, parámos para ouvir. Era política, eram eleições, era um
discurso liberal, tudo era radical e quase esquizofrénico. Afinal estava a ser transmitido
para a internet (aquele lugar onde todos pensam que se viaja muito mas onde poucos
reparam na paisagem). Havia algo de heróico naquela atitude de discursar
persistentemente ao Sol com uma garrafa de água aos pés. Depois de um vinha logo
outro orador. Estavam em jejum segundo fomos informados. Mas isso já não me
interessou, isso era a parte da banalidade, era a parte que chamava a atenção dos
média… Para mim era o fim do herói.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
Mais à frente um outro local, um outro posto de partido político com cartazes,
esferográficas, isqueiros, autocolantes e muita banalidade para oferecer. Provavelmente
de um partido talhado para vencer.
Nesta nossa Europa o poder é realmente uniforme e isso é assustador.
É fácil ser vencedor.”
Notas de Viagem/Milão, 8 de Maio, Pedro Carreira
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Conhecemos Micaela, uma militante do Partido Radical, que fala inglês. Diznos que Emma Bonino estará lá nessa tarde e que poderemos falar com ela.
EMMA BONINO– política italiana candidata do Partido Radical por Milão.
Nesse momento em greve de fome para contestar a forma desigual como os
média italianos tratam os candidatos. Conhecida dos portugueses por ter sido
Comissária das Pescas da União Europeia.
Armámo-nos de câmara e minidisc e vamos esperá-la. Chega pelas cinco da
tarde super energética. Fala com os jornalistas e no fim ainda arranja cinco
minutos para responder às nossas perguntas. Primeira vitória. Entrevistamo-la em
Italiano.
Depois seguimos para Parma, onde jantamos com os nossos próximos
convidados, os membros da Cooperativa Edison.
“Recebem-nos como velhos amigos, com pizza e vinho.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
9 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: COOPERATIVA EDISON
COOPERATIVA EDISON– Cooperativa cultural que realiza eventos com
repercussão em toda a Europa. Trabalha principalmente na área do cinema.
Conhecemo-los em 1997 quando participámos numa mostra de teatro em Parma.
E nunca perdemos contacto.
Dormimos até tarde, depois visitamos as instalações da Edison. Longe do
centro, rodeadas de árvores e passarinhos a cantar, com escritórios, salas para
master classes de música, biblioteca de cinema, videoteca e até um pequenino cine-
Visões Uteis
Capítulo 6
teatro. Nas paredes os cartazes das últimas acções que desenvolveram:Um filme
de Emir Kusturica, um encontro com Günter Grass, uma exposição de Peter
44
Greenaway. Depois de várias tentativas conseguimos ligação à internet para
descarregar o correio (esta será uma dura batalha durante toda a viagem). E à
44
tarde vemos em sessão exclusiva o último filme de Kusturica "Super 8 Stories",
de que a Edison foi co-produtora.
Ao fim da tarde entrevistamos Andrea Gambetta (fundador da Edison e que é,
entre outras coisas, produtor da No Smoking Orchestra e Comissário das
comemorações do centenário de Verdi). Conversamos em italiano, com o inglês a
servir de muleta ocasional.
A noite foi de despedida, com um jantar caseiro na companhia destes nossos
anjos da guarda que nos deram a provar sabores tradicionais de várias zonas de
Itália.
“PARMA
(em Italiano, Cativo significa mau)
Serei cativo pela partida
celebrando os novos rostos
da palavra com dois beijos.
Como um homem.”
Polaroids, Nuno Casimiro
10 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: TONINO GUERRA
TONINO GUERRA– Escritor italiano nascido em Santarcangelo di Romagna em
1920. Conta com uma vasta obra narrativa e poética, mas tornou-se conhecido
pela colaboração com importantes realizadores cinematográficos na co-autoria de
argumentos: Fellini (Amarcord, Ginger e Fred, O Navio), Antonioni (O Deserto
Vermelho, Blow-up, Para Além das Nuvens), Angelopoulos (O Passo Suspenso
da Cegonha, O Olhar de Ulisses, A Eternidade e um Dia), Tarkovsky (Nostalgia),
Vittorio de Sica, Francesco Rossi, etc. Em 2000 o Visões Úteis criou o
espectáculo “Schiu!” a partir do seu “Livro das Igrejas Abandonadas”.
A caminho de Penabilli, terra de Tonino Guerra, paramos em Santarcangelo.
Numa praça ampla há livros de Tonino Guerra em exposição numa banca. Está
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
sol e o ar é leve. Ouvem-se vozes de crianças numa sala de aulas. João Martins,
munido de minidisc, fica debaixo da janela da escola a tentar apanhar os sons.
Os sons da Orla, João Martins
Chegamos a Pennabilli pela hora de almoço. Toda a gente percebe que vamos
falar com Tonino Guerra e aparece logo um guia de ocasião. Dispensamos o guia
e com isso quase nos perdemos. A paisagem é belíssima. Tonino Guerra esperanos à porta de casa.
“Tonino recebe-nos num alpendre sobre os montes, embrulhado no silêncio da
montanha. Ali, o tempo corre devagar, talvez não chegue sequer a passar. Tonino tem
olhos de menino e mãos de pedra. Fala como se escrevesse.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
“Tonino fala-nos de Tito Balestra, um amigo há muito desaparecido. De repente
lembra-se de um poema que Tito dedicou ao seu grande amor. Ela chamava-se Ana e o
seu nome abre a primeira estrofe. Os olhos de Tonino Guerra cruzam a mesa na
direcção da nossa Ana e as palavras correm como se tivessem sido escritas só para ela.
Quero olhar para a Ana, quero ter a certeza que ela está a devolver o olhar, mas não
consigo tirar os olhos dele, pergunto-me se será uma coincidência ou se ele fixou o seu
nome, imagino que devíamos ter duas câmaras, não, três. De repente já acabou e foi
como se nunca tivesse acontecido.”
Notas de viagem/Pennabilli, 10 de Maio, Carlos Costa
Esta é mais uma entrevista em italiano, mas desta vez a muleta é o francês.
Depois de uma hora e conversa ininterrupta Tonino Guerra diz que não devemos
perder mais tempo a falar com ele e traça-nos o mapa das nossas visitas até à
noite. Nós seguimos as suas palavras; visitamos o jardim do pensamento logo
acima da sua casa, depois rumamos para San Leo (terra que inspirou Dante e
onde morreu Cagliostro), e finalmente jantamos “as melhores pizzas da região”
num restaurante familiar de Pietra Cuta.
Dormimos no hotel do Lago Verde embalados pelo som das relas.
Visões Uteis
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“Pretende-se (…) constituir um arquivo que permita, a posteriori, a análise,
manipulação e composição musicais, com base nas riquezas do contraste óbvio e da
surpreendente semelhança.
Um dos motes era a ideia de Lopes Graça segundo a qual um coro de crianças tinha
maior potencial para o que é diferente por não ter os ouvidos “viciados” numa cultura
musical específica.”
Capítulo 6
11 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A ROMA
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Acordamos no meio do verde a perder de vista. Paradoxalmente conseguimos a
melhor ligação à internet desde o princípio da viagem.
Ao sair do hotel cruzamo-nos com um grande grupo de crianças a brincar à
beira do lago. Provavelmente é uma visita de uma escola primária. João Martins
mune-se de microfone à procura do registo da língua quando ainda criança.
Depois Carlos Costa segue-o de vídeo em punho. Para as crianças é a loucura
total. Cantam, fazem jogos, dizem lenga-lengas, o que gostam e detestam…
rodeiam a câmara até a sufocarem. No fim não nos querem deixar ir embora, mas
depois de os convencermos que já não há mais “filme” na câmara, tornam às
correrias à beira do lago.
“O dia é de peregrinação, pelas igrejas e os locais da obra de Tonino. A viagem torna-se
uma busca pela Literatura encantada”
Crónicas de Viagem, Nuno Casimiro
Voltamos a Pennabilli. No centro um cartaz anuncia uma feira com um quadro
do Tonino Guerra. Nas casas estão os seus meridianos, numa das poucas lojas os
seus livros, quadros e poemas. Compramos poemas de Tonino em forma de
prendas. Depois seguimos ao encontro das “igrejas abandonadas” e encontramos
a igreja de Casteldeci e a placa com os nomes dos soldados que morreram nas
Grandes Guerra. É a “grande rosa”, o monumento que “recorda as feridas e
todas as guerras”.
O almoço é já a caminho de Roma. A paisagem é bela, mas cheia de curvas. Já
na auto-estrada apanhamos uma fila enorme. Saltamos à corda para desentorpecer
as pernas. Em Roma a hospitalidade italiana oferece-nos um novo guia de
ocasião. O cansaço começa a fazer-se notar.
12 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: LUCA NICOLAJ
LUCA NICOLAJ– Encenador que na altura desenvolvia um projecto sobre “a
ferida do herói”. Projectámos desenvolver com ele trabalho de actor sobre esta
cumplicidade.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
“Mal nos conhecemos. Une-nos um amigo comum e o Herói como tema de trabalho.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Decidimos ir a pé até ao Vaticano, onde fica a nossa sala de ensaios das
próximas duas tardes. É uma caminhada de duas horas. Vemos Roma em passo
o lado. Encontramo-nos com Luca Nicolaj num semáforo.
A sala de ensaios é um teatrinho no edifício da catequese dos Carmelitas. O
padre Alberto dá-nos a chave e acende-nos a luz. Depois ficamos sozinhos.
Trabalhamos toda a tarde falando uma mistura de Italiano, Espanhol e Português.
“Durante dois dias, trocámos experiências e ideias sobre o palco. Ao jantar, o
incontornável receio de mais cinco anos de Berlusconi. Luca não arrisca resultados, as
ruas cobertas de cartazes de todas as cores não apontam direcções.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
13 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: LUCA NICOLAJ
De manhã damos a volta obrigatória às pedras da capital do Império. Há calor e
turistas a mais. Compramos postais e desesperamos com as dificuldades de
ligação à internet. Nas lojas de telecomunicações têm medo que queiramos fazer
alguma fraude terrível com o nosso computador portátil.
À tarde continuamos a improvisar sobre o palco com Luca Nicolaj. Há um
grande prazer em seguir as propostas de um estranho com quem estabelecemos
uma cumplicidade imediata, mais do que pelo diálogo, pela forma de trabalha.
“Avançámos à procura do H do herói, a cicatriz que pode fazê-lo mover. As limitações,
a vergonha, a virtude, o olhar dos outros, heróis improvisados num pequenino auditório
sob uma espécie de centro paroquial a dois passos da Basílica de S. Pedro.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Ao fim do dia acompanhamos Luca Nicolaj às mesas de voto. São numa escola,
igualzinha aos nossos liceus. Está imensa gente e alguma confusão– nunca se viu
tanta gente para votar. Ficámos com esperança que fosse um bom sinal; uma
grande mobilização contra Berlusconi. Despedimo-nos de Luca ainda antes de se
saberem quaisquer resultados.
Visões Uteis
47
acelerado e almoçamos panini no caminho. Está calor e os turistas estão por todo
Capítulo 6
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De volta ao hotel seguimos os resultados pela televisão. Berlusconi vence.
14 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: EMBARCAR EM BARI/ITÁLIA, COM DESTINO A
PATRAS/GRÉCIA
“Despertámos cedo para a partida de Roma. A rua onde estacionámos a carrinha três
dias antes está transformada numa feira. Meia dúzia de bancas de roupa, bugigangas,
guarda-chuvas, cassetes piratas e objectos que tais alinhados ao longo dos passeios,
estendendo-se sobre o asfalto. Entre Português e Italiano tentámos retirar o veículo do
meio da confusão. Em dois minutos, somos envolvidos pelo mercado e a carrinha parece
o prolongamento das bancas de roupa. Uma das vendedoras insiste em não mover a sua
banca nem um milímetro e desata numa torrente de eloquente calão italiano. Tentámos
explicar à senhora que o barco para Patras parte de Bari ao fim da tarde. Ainda
assim, parece que nada a moverá. Contudo, talvez por se aperceber das dificuldades que
o nosso monstro de metal pode trazer ao negócio, acaba por ceder e por entre calças de
ganga e muita ginástica de volante, lá conseguimos sair da confusão.
Um suspiro de alívio até Bari.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
“Os miúdos na rua que jogam à bola falam uma língua que não sou capaz de
reconhecer, olham de lado e têm agressividade em todos os seus movimentos.
No porto há uma família grande com imensa bagagem. Não são com certeza turistas.
Já no barco há quem coma, meio escondido, de tupperwares e latas, e aparentemente
não tenha onde guardar a bagagem. Há mulheres com lenços na cabeça que lembram
notícias de países distantes.
No barco há dois lados e eu sinto que estamos do "outro lado", aquele que gosto de
achar que não é o nosso.
Agora a ideia de que os Balcãs são mesmo aqui ao lado já não é teórica. São mesmo.”
Notas de viagem/Bari, 14 de Maio, Catarina Martins
Em Bari está sol e o Adriático é azul puro. O barco é um hotel com quartos
minúsculos. Trocamos liras por dracmas porque ali já é Grécia. Acertamos
agulhas no convés a respirar o ar frio da noite e do mar. Dormimos embalados
pelas ondas.
15 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A ATENAS
“Chegámos a Patras por volta do meio dia e a primeira impressão é a de entrarmos
num compêndio de Física, com fórmulas por todo lado mas, ao mesmo tempo, uma certa
familiaridade nos rostos, nas ruas, na condução completamente desregrada.
No trajecto para Atenas, a montanha e o mar entram-nos pelos olhos sem pedir licença
mas a cidade é estranha, parda. Parece um imenso subúrbio de construções ilegais, um
amontoado de patos bravos imersos numa neblina de poluição, vigiado do alto pela
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
Acrópole. Não há espaço para respirar. Não se pode passear a pé. A cidade engole-nos
e há um certo gozo nisso.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
O hotel é confortável e a tarde está quente. Ficamos no átrio a decidir a forma
explicar o projecto, partilhar notas de viagem pessoais e notícias do percurso.
Nuno Casimiro além de crónicas de viagem, partilhará as suas “polaroids”–
pequenos poemas ilustrados com fotografias. Será tudo organizado por datas e
locais– é um diário de viagem a várias mãos.
16 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: THEO ANGELOPOULOS
THEO ANGELOPOULOS– Realizador de cinema grego, nascido em Atenas em
1935, que se tem debruçado sobre os temas da viagem, da busca e da memória, e
tem percorrido a Europa filmando-a. Iniciou a sua actividade em 1964 como
crítico cinematográfico, estreando-se na realização em 1968. Da sua importante
obra destaca-se a trilogia sobre fronteiras constituída pelos filmes “O Passo
Suspenso da Cegonha”, “O Olhar de Ulisses” e “A Eternidade e um Dia” (este
último valendo-lhe a Palma de Ouro de Cannes em 1998).
Aproveitamos a manhã para pôr a casa em ordem: lavar roupa, passar notas a
computador, descarregar o correio electrónico, etc. Para a tarde está marcada a
entrevista com Theo Angelopoulos. O seu escritório é no centro de Atenas.
Somos recebidos por Eleni, a sua assistente, e percebemos que foi graças à sua
insistência que Angelopoulos arranjou tempo para nos receber. Ele parte em
viagem nessa mesma noite. Mas à conversa connosco parece que tem todo o
tempo do mundo. Falamos em francês durante mais de duas horas.
“Angelopoulos está sentado do outro lado da secretária. A persiana está meio corrida e
a janela meio aberta. Ele fala. De repente surge um camião do lixo perfeitamente
enquadrado com a janela. É um gigante que solta fumo pela cabeça, em grande esforço.
O barulho é ensurdecedor. Sinto a penumbra do escritório e já não ouço o que
Angelopoulos diz. Ainda assim sei que fala das fronteiras que temos de atravessar até
chegar a casa. Sei que fala das oliveiras e do desejo de regressar. Não ouço uma só
palavra e sei que estamos juntos.”
Notas de viagem/Atenas, 16 de Maio, Carlos Costa
Visões Uteis
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de um site sobre esta viagem que poremos online logo que possível. Decidimos
Capítulo 6
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“E o tempo passa sem nos apercebermos. A noite está quase instalada sobre Atenas
quando saímos do escritório do realizador.
Com o fim do dia, a cidade torna-se outra. Apetece passear.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Tentamos ir ver um espectáculo de dança guiados por um jornal e pelas
indicações de Eleni e Angelopoulos. Perdemo-nos e chegamos tarde demais. Já
em Roma tínhamos falhado um espectáculo de teatro de um amigo de Luca
Nicolaj. É difícil chegar às pequenas salas de espectáculos sem guia. Entretanto
reparamos que em Atenas está em cena um texto de Sarah Kane. Como estava
também em Lisboa quando saímos de Portugal.
17 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: DESCANSO
Um dia livre em Atenas que é dia de greve geral. Não há transportes públicos e
está muito calor. Entregamo-nos às esplanadas. Almoçamos uma salada grega e
um gelado. Eleni promete-nos uma visita guiada, mas adia-a para a noite.
“Eleni, a secretária de Angelopoulos, leva-nos até ao monte Likavitos. Vista dali,
Atenas é um mar de luzes sem fim, tão calmo como o Egeu. Lá do alto, ninguém diria
que, poucas horas antes, vários milhares de pessoas paralisaram a capital com uma
greve geral contra o aumento da idade da reforma.
A Acrópole, essa, paira circunspecta sobre a cidade.
Os desatinos dos homens não lhe pertencem.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Despedimo-nos de Eleni com promessas de reencontro.
18 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A VÉRIA/THOMAS LIOLIOS
THOMAS LIOLIOS– programador do festival internacional de teatro de Véria
que conhecemos num encontro de programadores culturais no Porto e que se
mostrou bastante interessado neste projecto.
Sair de Atenas é uma tarefa complicada. Não falamos grego nem dominamos o
alfabeto. As indicações são tão fiáveis como as portuguesas. Uma hora de
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
desespero para finalmente rumarmos para Véria, no norte da Grécia. Está calor e
as estradas não são brilhantes. Está a ser construída uma auto-estrada e há obras
um pouco por todo o lado. A meio da tarde fazemos um pequeno desvio para
comer. Aproveitamos para dar um mergulho no azul do mar Egeu e lanchamos
num restaurante de praia a única ementa disponível: pão com queijo feta e tomate
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e seven up.
Chegamos a Veria ao fim da tarde e Thomas Liolios está à nossa espera.
Oferece-nos um jantar recheado das maravilhas gastronómicas gregas e conversa
entusiasticamente da sua e nossa casa e História. Entendemo-nos em Inglês mas
aprendemos o alfabeto grego. Quando olhamos para o relógio percebemos que
estamos sentados há quatro horas. A cassete de vídeo acabou há muito, e nem
sequer tínhamos um minidisc connosco. É mesmo assim; não se planeiam as
conversas. Entretanto sabemos que Thomas Liolios deixou de ser programador
do festival. É irrelevante.
19 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: VISITA À REGIÃO DE VÉRIA
Thomas Liolios veio ter connosco logo de manhã. Vem connosco na carrinha e
leva-nos num passeio incrível pelos lugares da História. E ainda consegue tempo
para nos levar a uma escola de música e nos apresentar Costas e Eva Bravakis que
nos presenteiam com a sua música. Em Véria tudo é fantástico: a hospitalidade, a
gastronomia, a paisagem.
“No monte onde as musas repousam, a solidão das papoilas abriga uma Afrodite de
bruma. O pai de Alexandre, o Grande, construiu ali um palácio, vigiado pelo mar e
pelo Monte Olimpo. Dizem que Hércules também se passeava por lá. Talvez por isso,
na Escola de Aristóteles no monte das ninfas, há uma gruta escavada na encosta para
albergar os amores divinos. A entrada é um quadrado do tamanho de um deus e
nenhum homem por lá pernoita.
A Filosofia nasce na água do ribeiro que corre à nossa frente.
Não é possível racionalizar esta paisagem. E a guerra é já ali ao lado, contra a
Turquia, na Macedónia e na Albânia.
No cruzamento dos montes, dos impérios e dos exércitos, fica Véria, pequena cidade
com setenta e duas igrejas para sessenta mil habitantes.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Visões Uteis
Capítulo 6
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20 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: EMBARCAR EM IGOUMENITSA/GRÉCIA COM DESTINO A
BARI/ITÁLIA
Seguindo as indicações de Thomas Liolios vamos assistir a parte de uma missa
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ortodoxa logo de manhã. João Martins é o primeiro a chegar. Põe-se à porta
disfarçando o microfone ainda a igreja está vazia. São sete horas da manhã.
Quando os primeiros fieis a chegar duas senhoras tentam dar-lhe esmola. É tão
difícil explicar o que faz à porta que ganha coragem para gravar mesmo dentro da
igreja. Os mais velhos parecem dividir a igreja em dois: mulheres de um lado e
homens do outro. Mas para os mais novos não há divisão. Surpreende-nos o
canto das orações e o tilintar das moedas para velas.
Às dez horas abandonamos a missa. Espera-nos um pequeno-almoço em casa
do casal Liolios onde até o pão e a manteiga são caseiros. Os anfitriões perfeitos
não nos deixam seguir sem bolo e latas de pêssego (em Véria produz-se o pêssego
que comemos em lata por toda a Europa).
“Fica a sensação de que a Grécia nasceu no Oriente e se esconde no Ocidente. Pela sua
língua, pelo seu alfabeto, pelas pessoas, pela sua História transversal a muitas culturas
e fronteiras, porque é realmente o berço da nossa civilização, porque viaja e porque
acaba sempre por regressar a casa.”
Notas de viagem/Véria, 20 de Maio, Pedro Carreira
“De Véria a Igoumenitsa, a vontade de conhecermos a fronteira albanesa, uma porta
dos fundos da Europa, leva-nos à montanha agreste e deserta. O deslumbramento e a
falta de indicações conduzem-nos a estradas cada vez mais secundárias, esburacadas,
pejadas de pedras e troncos, destroços de alguma tempestade. Finalmente, o alcatrão
desaparece por completo, bem como qualquer vestígio de civilização. Aparentemente,
saímos do mapa.
À volta, só há montanhas e um pedaço de bosta de vaca indiciando alguma presença
humana. Ao longe, um riacho e o barulho de um motor cada vez mais próximo até se
transformar num conjunto de motards que imediatamente se oferecem para nos ajudar.
Afinal, ainda estamos no mapa grego e a pista de todo o terreno durará apenas(!) mais
uma hora de viagem com algumas paragens para não atropelar uma ou outra pequena
tartaruga tentando atravessar a estrada.
Com alguma felicidade voltámos ao alcatrão e conseguimos embarcar a tempo para a
curta viagem até Bari.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
21 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A VERONA
Acordamos no barco, quase a chegar a Itália. Espera-nos um dia de autoestrada. Chegamos a Verona a tempo de jantarmos uma pizza. Foram oito horas
continuam a ser cumpridas e tornam suportável o insuportável: parar de duas em
duas horas para trocar de condutor (Ágata, Carlos e Pedro), fumar (não se fuma
na carrinha) e ir à casa de banho. O co-piloto é responsável pelo mapa e pela
música.
22 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A MUNIQUE/ALEMANHA
De manhã uma breve visita ao centro de Verona para alguns, enquanto João
Martins põe online a página sobre a viagem. Depois do almoço voltamos à estrada.
Entre a Itália e a Alemanha só saímos da auto-estrada para ir lanchar a Innsbruck
na Áustria. No cimo dos montes há neve. Cá em baixo não paramos de trocar de
moeda, enquanto guardamos os trocos que servirão de recordação na era Euro.
“Há medida que os Alpes ficam mais perto desaparecem as oliveiras e somos rodeados
por pinheiros que parecem saídos de postais de Natal. As casas têm muito pouco de
real, parece que saíram de um filme antigo e longínquo. Os homens têm maxilares
quadrados, típicos de qualquer mau dos nossos contos de infância (e não será esse o
sinal maior de que a História e as histórias são escritas só por quem ganhou a guerra?
O mau das ilustrações é sem sombra de dúvida austríaco.) A comida tem sabores,
cheiros e cores que não nos podem abrir o apetite. Quando saímos do Mediterrâneo
saímos de casa.”
Notas de viagem/Munique, 22 de Maio, Catarina Martins
23 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: LENI RIEFENSTHAL
LENI RIEFENSTHAL– Realizadora de cinema e antropóloga. Polémica pela sua
ligação ao regime Nazi enquanto cineasta. Quer pelo trabalho, quer pela sua longa
vida, é uma testemunha privilegiada do que é a Europa.
Sabemos desde a noite anterior que o estado de saúde da realizadora, já com
quase cem anos, a obriga a cancelar o encontro. Ainda assim a sua
Visões Uteis
53
de carrinha e o cansaço já é grande. Por agora as regras estabelecidas à partida
Capítulo 6
indisponibilidade é pretexto para uma discussão acerca da responsabilidade dos
artistas perante a História. Aproveitamos ainda para alinhavar o texto que
54
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apresentaremos à Comissão de Cultura do Parlamento Europeu em Bruxelas.
“À noite, assistimos à final da Liga dos Campeões por um pequeno televisor na
esplanada de um café. Durante o jogo, é impossível perceber o resultado na apatia dos
espectadores. Terminado o desafio, com a vitória do Bayern local, a populaça dispersa
rapidamente e começam finalmente a ouvir-se as comemorações na rua, com carros
buzinando por entre alguns cachecóis e bandeiras.
Sensivelmente o mesmo que em Portugal mas com mais BMW do que Renault Clio.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
24 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A BERLIM
“Chegámos a Berlim num feriado alemão, calmo e solarengo. Entre gruas e estaleiros, a
nova e imponente cúpula do Reichstag e mais longe, o novo centro da cidade, a
Potsdamer Platz, transformado em centro comercial, com dinheiro da Sony e da
Mercedes Benz, com assinatura de arquitecto, muito brilho e pouca alma. Seguindo o
trilho do muro, vê-se a réplica do Check Point Charlie. O original está no museu e nas
lojas ao lado, depósito dos fetichismos dos turistas. Até ao vazio da Alexander Platz,
fica a ideia de que alguém apagou um desenho antigo e procura agora pintar sobre uma
folha demasiado rasurada para esconder o original.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Aproveitamos o contexto arquitectónico para falar da obra de Daniel
Libeskind, o nosso próximo convidado. Jantamos comida tailandesa na Alexander
Platz. Depois voltamos de eléctrico para o hotel.
“BERLIM
Entre a Potsdamer e a Alexander
está o Equador.
E gigantescas pegadas de aranha
cuspindo
violentos silêncios.”
Polaroids, Nuno Casimiro
25 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: DANIEL LIBESKIND
DANIEL LIBESKIND– Arquitecto judeu de origem polaca actualmente a viver
em Berlim, autor de projectos polémicos como o do Museu Judeu em Berlim ou a
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
extensão do Victoria and Albert Museum em Londres. Evoluiu de um processo
de investigação teórica na área da arquitectura para uma prática plena de
referências políticas, históricas, filosóficas e culturais.
Sabemos há já dois dias que um imprevisto impede Daniel Libeskind de estar
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connosco, mas que ainda assim nos esperam no atelier dele.
De manhã visitamos o Museu Judeu de Berlim– só por fora porque está
fechado para a montagem da sua primeira exposição. Fascinou-nos o museu e os
baloiços logo ao lado.
À tarde somos recebidos no atelier de Daniel Libeskind por Nina Libeskind,
sua mulher e gestora do atelier. Faziam trinta e dois anos de casados e ela
preparava-se para ir ter com ele a Paris. Falou-nos de Berlim, da arquitectura, das
ideias que regem o trabalho do marido. E confirmou-nos que Daniel Libeskind
estará em Aachen daí a três dias, o que nos permite encontrá-lo.
Ao fim da tarde voltamos à estrada. Vamos dormir a Bielefeld, ainda na
Alemanha mas já a meio caminho de Antuérpia. É uma terra pequena com um ar
simpático. Um rapaz de mota mostrou-nos o caminho até ao hotel e depois veio
curioso saber o que levaria um grupo de portugueses a estas paragens. Já no Hotel
temos direito a mergulho na piscina (pequena mas coberta e aquecida) e jantamos
tão bem que nem parece que ainda estamos na Alemanha. Além disso o hotel
permite uma óptima ligação à internet; a noite é para enviar comunicados para a
imprensa, actualizar página e descarregar correio.
26 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: ANTUÉRPIA/BÉLGICA
“De Berlim a Antuérpia, atravessando a planura da Holanda, a única fronteira visível
é o que resta do posto fronteiriço que dividia as Alemanhas.
Antuérpia surge suja como cidade depois de uma feira.”
Crónicas de Viagem, Nuno Casimiro
Jantamos numa esplanada em Antuérpia. Mais uma vez tivemos problemas para
levantar dinheiro nos multibancos. O único cartão que funciona paga todos os
jantares. Na ementa há espargos. É decididamente época deles. Desde Berlim que
tropeçamos nas mil e uma formas de cozinhar e comer espargos.
Visões Uteis
Capítulo 6
27 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: SARA DE ROO (ACTRIZ DOS STAN)
56
56
STAN– Grupo de teatro cujo trabalho reflecte não só um constante pensar da
Europa como a particular situação de confronto e confluência de culturas em que
vivem quotidianamente. Conhecêmo-los por ocasião de um workshop que deram
no Centro Cultural de Belém em Lisboa.
“Não me sinto bem em Antuérpia. De algum modo tenho a sensação de que vim parar
ao lado negro do "melting pot"– não consigo identificar diferentes modos de vida e
pensamento num mesmo espaço, apenas uma amargura em toda a gente.
Há uma rudeza pouco saudável no ar e nos rostos. Há mesmo alguma "indiferença" no
aspecto da cidade.
Vejo estas características até em Sara de Roo, apesar de nos receber com croissants e
café, apesar de falar de bom grado, de se rir…
Num Domingo de manhã, na zona árida do porto, com metade da companhia ausente
em França, o grande espaço de trabalho dos STAN parece-me uma expressão directa
da própria cidade. As portas estão abertas, somos recebidos como deve ser, mas é difícil
abrir a segunda porta mais discreta que leva ao entusiasmo, à urgência do encontro.
Felizmente com Sara conseguimos abri-la. Com Antuérpia não.”
Notas de viagem/Antuérpia, 27 de Maio, Ana Vitorino
Conversamos com Sara de Roo em Inglês. Depois do encontro abdicamos de ir
ver as exposições do Ano da Moda para ir procurar uma lavandaria. Tentamos
trocar moedas para as máquinas num restaurante português. À noite acabamos o
texto que leremos daí a dois dias à Comissão para a Cultura do Parlamento
Europeu. Não foi fácil, mas ficou feito.
“COMUNICADO DO VISÕES ÚTEIS À COMISSÃO PARA A CULTURA,
JUVENTUDE, DESPORTO E MEDIA DO PARLAMENTO EUROPEU:
O Visões Úteis é uma companhia de teatro sediada na cidade do Porto e que conta
com seis anos de actividade profissional. Produzimos já 18 espectáculos de autores muito
diversos ou partindo de textos originais criados pela companhia.
Mas porque desde sempre privilegiámos a multidisciplinaridade e as potencialidades
sociais que caracterizam o teatro, a nossa actividade não se tem restringido à produção e
apresentação de peças na cidade em que vivemos. Levamos o nosso trabalho ao maior
número possível de localidades portuguesas (desde a capital a aldeias isoladas pela
interioridade), apresentamos espectáculos em estabelecimentos prisionais, trabalhamos
com crianças e adolescentes de populações com acesso limitado a bens culturais, editamos
as obras que levamos à cena e que não se encontram disponíveis em língua portuguesa e
organizamos encontros de criadores de diversas áreas artísticas.
Apesar do tempo, dinheiro e empenho que todo este trabalho requer, continuaremos
sempre a acreditar que o teatro é muito mais do que a encenação de um bom texto. No
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
ano de 2001 a actividade do Visões Úteis está maioritariamente centrada no projecto a
que chamámos "Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque".
No seu cerne está a noção de Fronteira, que numa primeira reflexão considerámos ser a
linha que nos põe face ao Outro, que nos define por separação em relação a esse outro
que reconhecemos como diferente de nós, quer seja um outro homem, um outro povo ou
uma outra parte de nós que rejeitamos.
A partir destas ideias planeámos um projecto em três fases:
• Na primeira, apresentámos ao público do Porto em Abril passado um espectáculo que
reunia exercícios específicos em redor de cada um destes temas, e que por isso chamámos
de "Estudos".
• Na segunda fase, aquela em que nos encontramos agora, partimos em viagem pela
Europa para contactarmos, ao longo de mais de dez mil quilómetros de estrada e mar,
com pessoas ligadas ao teatro, ao cinema, à literatura, à arquitectura, à política e à
programação cultural– pessoas que pelo seu trabalho e pela sua vida influenciaram a
nossa ideia de Europa, a nossa ideia de Fronteira e de Outro.
• Numa última fase, já de volta à cidade do Porto, partiremos para a concepção de um
novo espectáculo onde as ideias que nos fizeram viajar serão pensadas à luz destes
encontros e de todos estes quilómetros.
No início deste projecto, com o espectáculo "Estudos", falámos de Fronteiras, do Outro
e do Herói utilizando as linguagens que acreditamos estarem a impor-se no nosso tempo
e na nossa Europa: a linguagem do discurso político (das palavras pensadas para não
abrir hostilidades ou acordar velhas feridas), a linguagem da conferência (da informação
organizada) e a linguagem do contrato (do compromisso, do acordo benéfico para ambas
as partes).
Em suma, uma linguagem politicamente correcta, mediaticamente interessante, o dito
"diálogo" hoje amplamente apregoado, que tantas vezes esconde uma real incapacidade
para comunicar com o outro, para reconhecer as diferenças e mesmo, quando necessário,
para criar inimigos. Uma linguagem que se desenvolve à mesa, quer se esteja sentado em
seu redor em reunião, quer se esteja, como aqui e agora, ocupando um dos seus lados
opostos.
Esta mesa de comunicações será talvez, e por paradoxal que pareça, a grande fronteira
dos nossos tempos, por subtilmente dividir conquanto pareça aproximar.
É fácil perceber que hoje o valor do encontro físico, da experiência do lugar do outro, da
troca de ideias em lugar e tempo real, ou seja, o valor da viagem que tem o poder de
reperspectivar o nosso mundo é extremamente subestimado.
A prová-lo está a constante questão que nos colocam : "Mas porque é que é preciso lá
irem?".
A prová-lo está a descrença do Ministério da Cultura português, que decidiu não
Visões Uteis
57
Partimos assim de uma reflexão que é intrínseca à própria noção de Europa, o
continente que ao longo da História se foi definindo pela constituição de fronteiras e que
hoje, paradoxalmente, parece querer definir-se precisamente pela sua abolição.
Reflectimos ainda sobre dois importantes meios de superação de fronteiras, porventura
ameaçados: a viagem, física, intelectual ou emocional, hoje redimensionada pela
afirmação desse espaço navegável e aparentemente livre de fronteiras que é a internet, e o
herói, o homem capaz de chegar aos outros e uni-los, capaz do sacrifício pelos outros,
hoje questionado pela facilidade com que os média expõem as contradições e fragilidades
de quem querem e pela facilidade com que criam pseudo-heróis vazios de ideais, heróis
que já não viajam, deixam-se viajar pelos olhos de todos.
58
58
Capítulo 6
atribuir este ano, ao contrário dos cinco anteriores, o subsídio estatal à nossa actividade
por considerar este projecto (e passamos a citar) "bastante inconsistente", "duvidoso" e
onde "não é possível identificar qualquer carácter inovador".
A prová-lo está também a falta de incentivos financeiros e logísticos da parte das mais
diversas instituições para projectos que, não apresentando parceiros comunitários unidos
numa relação de produção, visam proporcionar os encontros de que nascem as reais
empatias, humanas e artísticas.
De certo modo sentimos que vivemos e trabalhamos num país que caminha para o
estatuto de produtor de eventos culturais e numa Europa de projectos comunitários que
surgem para resolver necessidades individuais e não para permitir a partilha artística.
Neste quadro que ameaça constituir-se como realidade futura o Visões Úteis e esta
viagem parecem não ter lugar.
Ainda assim viajamos.
E nesta viagem, que ainda não concluímos e que a cada dia prova inequivocamente a
sua relevância, apercebemo-nos de novas fronteiras e da inexistência de outras que
considerávamos antigas. Repensamo-nos enquanto indivíduos, enquanto portugueses e
enquanto membros desta união europeia.
Sentimos, por exemplo, na pele o peso da Mediterraneidade, quando percebemos que em
Atenas estamos em casa e em Berlim nos sentimos estrangeiros, apesar de não
entendermos uma palavra de Grego e até esboçarmos algum Alemão. Percebemos que a
questão dos exilados (de Leste, dos Balcãs, do Norte de África) que hoje vai ganhando
peso em Portugal é uma das grandes questões de toda a Europa, a questão das suas
fronteiras externas com o mundo, fronteiras que se cerram à medida que as outras, as
internas, se diluem.
Partilhamos com os nossos convidados a crença na necessidade de manter a diferença que
não é necessariamente má ou divisora, é a diferença que nos dá identidade, que nos dá
algo a que possamos chamar casa. Mas reconhecemos também nestes convidados (como
em nós próprios) a extrema dificuldade de enfrentar a fronteira, mais subtil e mais
profunda, que nos separa daqueles que se encontram mais perto– como o persistente
sentimento de divisão entre os berlinenses de Leste e os de Oeste, a separação entre
Flamengos e Valões na Bélgica, a incontornável desconfiança do povo grego pelos
refugiados albaneses que amistosamente alberga ou a nossa inexplicável incapacidade de
encontrar para esta viagem um único convidado espanhol.
E por fim esbarramos nessa terrível fronteira que é a da indiferença, do
desconhecimento: a linha que separa os que hoje estão aqui a debater estes temas dos
milhões para quem nada disto tem qualquer relevância.”
28 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: DANIEL LIBESKIND
De manhã foi preciso mudar o óleo à carrinha. De tarde rumámos para Aachen
para assistir a uma conferência de Daniel Libeskind.
A conferência é sobre o marketing das cidades e o palco é um Banco.
Respiramos de alívio quando Daniel Libeskind anuncia que vai falar em Inglês.
Usa a palavra “dramático” mais de uma vez para referir grandiosidade, impressão
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
forte, e “inventivo” como forma de estar no mundo. No final, encontra ainda
algum tempo para nos conhecer e disponibiliza-se para futuros contactos.
A Bélgica é mesmo o centro da Europa. A conferência foi a cento e cinquenta
quilómetros de Antuérpia, numa terra alemã, e para lá chegarmos atravessámos
quarenta quilómetros de Holanda.
pejado de adolescentes portugueses.
29 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: VASCO GRAÇA MOURA E PARLAMENTO
EUROPEU/BRUXELAS
VASCO GRAÇA MOURA– Eurodeputado, poeta e escritor português.
Entre Antuérpia e Bruxelas as estradas são muito concorridas. Já em Bruxelas
avançamos a passo de caracol por entre obras e mais obras. (Quase nos sentimos
em casa: obras e restaurantes portugueses). Já na zona das Instituições Europeias
é difícil encontrar o Parlamento. Ninguém parece saber muito bem o que é cada
um daqueles edifícios.
“O templo da estatística e das decisões macro-económicas é um edifício feio e mal
decorado. O encanto da nova Babel quebra-se assim que se passa a porta de entrada.
Parece uma gigantesca repartição pública, espaço para burocracia e não para a
comunhão dos povos.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Convidámos Vasco Graça Moura a encontrar-se connosco depois de o termos
ouvido falar sobre a ideia de viagem na conferência “A Viagem das Ideias”.
Respondeu-nos com um outro convite: que apresentássemos este projecto à
Comissão para a Cultura do Parlamento Europeu de que é vice-presidente.
Antes da apresentação convida-nos para almoçar. A conversa é informal, mas
gira em torno dos temas deste projecto; a identidade nacional, os poderes e
contra-poderes que vão desenhando a União Europeia e o “politicamente
correcto”. Tanto a conversa como o vinho são portugueses. Sabe bem. Depois
seguimos para o anfiteatro onde funciona a Comissão. Somos os penúltimos da
ordem de trabalhos. Ana Mascarenhas, secretária de Vasco Graça Moura, diz-nos
como começar: “Senhor Presidente, Senhoras Deputadas, Senhores Deputados,
Visões Uteis
59
Voltamos a Antuérpia para dormir. Antes jantamos pizza num restaurante
Capítulo 6
Excelentíssimas Senhoras, Excelentíssimos Senhores”. A apresentação é em
60
60
Português. Há onze canais áudio para outras tantas traduções simultâneas.
“Depois de tantos meses, e inclusive um espectáculo, a trabalhar alegremente o
"politicamente correcto" enquanto conceito e linguagem teatral, fomos meter-nos mesmo
na boca do dito lobo. Agora, como nos disseram no fim, podem dizer que apresentaram
o vosso projecto ao Parlamento Europeu. Pois podemos. É certo que poucos pareciam
interessados em ouvir. Mas podemos dizer que fizemos, o que nos nossos tempos é mais
importante do que o fazer propriamente dito.”
Notas de viagem/Bruxelas, 29 de Maio, Carlos Costa
30 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: EMBARCAR EM CALAIS/FRANÇA COM DESTINO A
DOVER/INGLATERRA E SEGUIR PARA LONDRES
“Da Alemanha à Bélgica em auto-estrada passámos a Holanda sem sequer a ver. Em
Berlim tínhamos dito a Nina Libeskind que iríamos assistir a uma conferência do
marido em Aachen, na Alemanha mas na fronteira com a Holanda, porque íamos
estar mesmo ali ao lado: na Bélgica. E foi o que fizemos. Depois, de Bruxelas para
Londres, fomos apanhar o barco a França, a Calais. Tudo viagens curtas, as mais
longas do tipo Porto/Lisboa. Não há evolução, desenvolvimento, tecnologia, subsídio ou
seja o que for que possa apagar esta verdade geográfica e absoluta: há centro e há
periferia. Nós vivemos na periferia.”
Notas de viagem/No centro da Europa, 30 de Maio, Catarina Martins
Acordamos bastante cedo e chegamos a Calais antes da hora. Passeamos ao
longo do mar debaixo de uma luz tão branca que torna tudo irreal. O barco tem
pouca gente. Chegamos a Inglaterra e começa a aventura de guiar em contra-mão.
“Londres recebeu-nos com Sol. Nem sombra da chuva e do nevoeiro com que a pintam
nos filmes. Pelo contrário, um Sol radioso puxou-nos para a passeata junto ao
Tamisa.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
31 DE MAIO
OBJECTIVO DO DIA: GREGORY MOTTON
GREGORY MOTTON– Dramaturgo Inglês, de ascendência irlandesa, nascido
em Luton no início dos anos 60. Escreveu já cerca de quinze peças de teatro e viu
as suas obras serem levadas à cena tanto na Inglaterra como no estrangeiro
(França, Suécia, Portugal). Para além de escritor afirmou-se como tradutor das
obras de Strindberg. O Visões Úteis levou à cena três das suas peças.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
Trabalhámos juntos em Londres aquando da nossa produção de “Recado aos
Corações Despedaçados”.
Durante o dia fazemos folga uns dos outros e decidimos percursos de acordo
com a agenda cultural da “Time Out”. O encontro com Gregory Motton está
seu amigo Ramin Gray.
“Gregory Motton está para este projecto como, no dizer de Vasco Graça Moura, a
Inglaterra está para a União Europeia. Às vezes parece que diz “não” só para ser do
contra. Mas foi esse o papel que sabíamos que ele teria. Foi por isso que o convidámos–
para nos dizer com uma velha canção dos Beatles que se pode conhecer o mundo sem
sair de casa; para arrasar numa frase com todas as belas intenções de harmonia que a
Europa proclama; para nos dizer que se calhar não faz sentido fazer teatro, se levarmos
em conta que as pessoas não querem teatro (“pois não?”, sorri ele provocador).”
Notas de viagem/Londres, 31 de Maio, Ana Vitorino
1 DE JUNHO
OBJECTIVO DO DIA: RAMIN GRAY
RAMIN GRAY– Fez a sua estreia na encenação em 1993, com a peça “A
Message for the Broken Hearted” de Gregory Motton. Actualmente trabalha no
Departamento Internacional do Royal Court Theatre, desenvolvendo diversas
iniciativas de intercâmbio teatral que levam a Londres dramaturgos de diferentes
nacionalidades e estabelecem cooperações entre encenadores ingleses e
companhias de diversos países. Conhecemo-nos por intermédio de Gregory
Motton.
O encontro com Ramin Gray decorre no Royal Court Theatre, onde estão em
cena duas peças de Sarah Kane. A sala principal estava dividida em duas de forma
admirável. Mas o que mais nos seduziu é o terraço com vista sobre Londres. A
entrevista rapidamente se transforma em conversa cúmplice.
Jantamos bem e barato perto do Royal Court Theatre, seguindo as indicações
de Ramin Gray. Depois temos novo encontro com Gregory Motton para
continuar a conversa, num pub irlandês perto de sua casa.
Visões Uteis
61
marcado para as sete da tarde na sua casa. Nesta conversa está também presente o
Capítulo 6
2 DE JUNHO
OBJECTIVO DO DIA: EMBARCAR EM DOVER/INGLATERRA COM DESTINO A
CALAIS/FRANÇA E SEGUIR PARA PARIS
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“A despedida de Londres reserva-nos uma chuva mesquinha e um barco apinhado de
crianças barulhentas até Calais.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
O percurso até Paris é por auto-estrada com sol. Na estação de serviço onde
almoçamos, polícias exigem o pagamento imediato da multa por excesso de
velocidade a um casal inglês. Já em Paris, jantamos pizza.
3 DE JUNHO
OBJECTIVO DO DIA: JOSEPH DANAN
JOSEPH DANAN– Dramaturgo e encenador francês, professor na Universidade
Paris-3 (curso de Estudos Teatrais), colaborador frequente de diversas
publicações teatrais francesas e, como autor e dramaturgista, da companhia
Théâtre des Deux Rives (Rouen). Conhecêmo-lo no Porto, no seminário
“Viagem pela Dramaturgia Contemporânea”.
De manhã, no hotel, o pequeno-almoço é servido por uma portuguesa e uma
moçambicana. É tempo para pôr textos em dia e cheirar as margens do Sena.
Almoçamos baguettes sentados na relva de um parque universitário. Joseph Danan
recebe-nos em sua casa. Do outro lado da rua está mais uma vez em cena Sarah
Kane.
O encontro com Joseph Danan começa em tom de entrevista que rapidamente
se transforma numa conversa que sintetiza todos os temas tratados ao longo da
viagem.
“Com o fim da tarde, descobrimos a cidade das luzes num pôr do Sol incendiando o
Sena e num encontro acidental com um companheiro perdido nos tempos da faculdade.
O mundo é realmente muito pequeno. E redondo.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Na Estrada
4 DE JUNHO
OBJECTIVO DO DIA: SAN SEBASTIAN/ESPANHA
Quando saímos de Paris ainda temos a esperança de nos cruzarmos no
caminho com Emir Kusturica, que anda em tournée pela Europa. Soubemos que
Edison tira-nos as esperanças.
EMIR KUSTURICA– Realizador de cinema jugoslavo, residente em França e que
se define como órfão de pátria. É fascinado pelos ciganos nómadas, tendo-se
também debruçado sobre a Fronteira e o desagregar da Europa Balcânica.
A viagem é feita com muito calor. Comemos gelados nas estações de serviço do
caminho. Em San Sebastian passeamos a pé antes de dormir.
“A viagem está a acabar. Agora só faltam aqueles últimos quinhentos quilómetros em
que nada se passa. Em breve estaremos em casa a arrumar as roupas e os livros que
levámos e não lemos e a passar as últimas notas no computador. Agora, depois de
muita gente e muitos sítios, penso que é mais fácil ver o lado mais escuro nas pessoas, o
seu lado de conflito, o seu lado de cegueira e egoísmo, o seu lado que se contradiz, o seu
lado que está farto, o seu lado político, o seu lado que não conhece o vizinho, o seu lado
que tem medo… quando no fundo estamos todos a tentar safarmo-nos o melhor que
podemos até à fronteira e a tentar ter os papéis em ordem para entregar ao guarda. Ou
se calhar não…”
Notas de viagem/San Sebastian, 4 de Junho, Pedro Carreira
5 DE JUNHO
OBJECTIVO DO DIA: CHEGAR A CASA
“Em casa desfaço a mala enquanto ouço canções de Véria num CD que Costas, o
músico amigo de Thomas Liolios, compôs. Essa música grega abre inúmeras portas no
meu edifício mental de Europa.
Vejo Tonino Guerra ralhando com um cão atrevido na sua varanda sobre o vale
verdejante; vejo Theo Angelopoulos que trabalha no seu escritório sem se dar conta que
a luz do dia já se foi, e Eleni, a sua assistente, na sala ao lado aguardando
pacientemente o seu chamamento; vejo Luca Nicolaj percorrendo as ruas de Roma no
seu passo sereno; os amigos da Edison desabafando entre si a desilusão pela vitória de
Berlusconi; o casal Libeskind trabalhando entusiasmado no seu estúdio, construindo
maquetas enquanto lá fora Berlim tenta pôr-se de pé; Sara de Roo bebendo o seu chá,
entre uns telefonemas para os STAN e o ensaio da próxima produção; vejo o
burburinho incessante desse animal complexo que é o Parlamento Europeu, cheio de
pequenas células ocupadas; vejo Gregory Motton na sua sala de estar e Ramin Gray
que lhe entra pela casa dentro com a confiança dos velhos amigos; vejo Joseph Danan no
seu recém-habitado apartamento, simples e acolhedor, tanto um como o outro.
Visões Uteis
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talvez fosse possível encontrá-lo em Valência, mas um telefonema da Cooperativa
Capítulo 6
E por fim é a própria voz de Thomas Liolios que canta e me transporta a Véria,
àquele dia em que, na escola de Aristóteles, ele fez a pergunta que agora se torna
premente: “Estar aqui… deu-vos alguma ideia para um espectáculo?”.
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Notas de viagem/Porto, 5 de Junho, Ana Vitorino
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Parte III
Visões Uteis
A Casa
Ao longo da viagem as conversas com os convidados foram como uma
lanterna que iluminou preocupações presentes desde o inicio do projecto,
autonomizando-o e dando sentido a vários conceitos.
redescobrimo-la debaixo de um alpendre. Era uma tarde cheia de sol e pássaros e
Tonino Guerra falava-nos de comida. E lentamente, por entre receitas de molho,
as suas palavras foram iluminando a necessidade que todos nós temos de
pertencer, de ser de algum lado, de regressar. A necessidade de raízes.
TONINO GUERRA–
Eu digo que ninguém no mundo cozinha tão bem como a minha mãe.
E cada pessoa diz o mesmo “Ninguém faz como fazia a minha mãe”,
e é verdade porque nós comemos a infância. Se uma pessoa come a
mesma coisa desde a infância e durante toda a vida adquire um
hábito, se provar a mesma comida feita por outra pessoa, poderá
quando muito dizer “Está bom mas não tão bom como o da minha
mãe”.
(…)
A Itália estava portanto dividida em duas zonas, o norte e o sul. No
norte era a minha casa e na minha casa comia-se sempre sopa, mas eu
do que gostava mesmo era de comer como no sul, o esparguete e tudo
isso. Depois, quando estava em Roma, e sempre que vinha a casa,
dizia à minha mãe que comia esparguete todos os dias– o que não era
verdade– porque no norte só se comia esparguete à sexta-feira, e tinha
de ser com peixe, porque se tratava da vigília, uma celebração religiosa,
e era muito bom esse esparguete das sextas-feiras. E então eu dizia
“Todos os dias” e a minha mãe admirava-se “Mas todos os dias
como?”, “Macarrão, esparguete, lá come-se assim todos os dias e
ninguém faz sopas ou estufados”. A minha mãe olhou para mim e
disse muito baixinho “És tão inteligente e contudo não percebes nada!
Não vês que essas pessoas que fazem esparguete, como primeiro prato,
têm forçosamente de fazer um segundo prato, e que fazer dois pratos
significa pelo menos uma hora e meia na cozinha. Eu trabalho,
percebes, e quando ponho a carne a cozer ou a estufar com as batatas e
os legumes faço logo os dois pratos num só. Percebes agora?” E só
então é que eu percebi. Outra teoria: Em Itália, como na Rússia, há
mil maneiras fazer esparguete, mil, ouviram, e cada uma das catorze
repúblicas italianas o queria fazer à sua maneira, de forma saborosa
mas à sua maneira. Na Sicília fazem-no com peixe-espada, é
fantástico, e há mais mil maneiras de o fazer… vocês em Portugal
preferem o esparguete ou o macarrão…? Por exemplo há uma espécie
Visões Uteis
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Esta ideia de casa, que nos acompanhou desde que partimos em viagem,
Capítulo 7
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de esparguete, na Calábria, pelo qual sou capaz de morrer; fazem-no
em casa, as mulheres, com aquelas agulhas compridas de fazer malha,
mas também se faz industrialmente, o que importa é o buraco. E os
Calabreses diziam-me “Mas percebes para que é o buraco?”. “Sei lá,
ainda é um buraco grande…” E eles respondiam “É no buraco que
vai o molho, percebes, assim o molho não vai só por fora, vai também
por dentro.” Assim há tantos povos, tantos dialectos, tantas gentes.
Por exemplo aqui na Romanha sempre acreditámos ter um carácter
especial, algo como o de Mussolini, porque ele era de cá, um carácter
forte, generoso, justo e defensor dos mais fracos…
(…)
Eu escrevi uma poesia mas copiando a letra– e maldito seja por ter
perdido aquilo– era um postal enviado pela irmã do meu pai quando
ambos se aproximavam dos noventa anos. Estava escrito em dialecto,
porque ela nunca perdeu a língua natal, e vinha da América do Sul,
do Brasil. Eles nunca mais se encontraram e o postal dizia isto:
Eduardo, chegámos ao fundo– o que já é uma frase cheia de força, que
em dialecto é ainda mais bela, apelando à ideia do fim da vida– sabes
qual é o dia? Lembras-te? Aos treze anos, eu e tu, fomos vender
peixe, e quando chegámos ao rio, e a ponte tinha sido levada pela
água, e nós tivemos de voltar para casa com aquele peixe todo, e o
peixe ficou a apodrecer lá em casa. Eduardo, aquele fedor é o perfume
da minha vida.
Ou seja, aquilo era o que de mais belo tinha. Meu Deus, aquele fedor,
o perfume da minha vida… percebem…? Portanto, é um cansaço
depois de toda esta coisa, esta diferença entre quem está cá e quem está
lá. Contudo, isto não deve destruir os grandes sentimentos pois esses
não se comem à mesa; querer bem aos outros, ajudá-los, ser generoso,
não ser mau, não roubar, ou seja as coisas fundamentais, e para lá
disso não concebo barreiras entre as pessoas, sejam elas de raça, ou
outras.
CARLOS COSTA–
TONINO GUERRA–
Trabalhaste com Tarkovsky que era Russo mas era…
.. Universal! Ele era muito cristão– na Rússia fomos vizinhos, ele
morava na casa ao lado da minha esposa– e quando nós o convidámos
para fazer um filme em Itália– e o filme chama-se “Nostalgia”
porque quando fazíamos longos passeios eu senti a sua nostalgia pelos
grandes espaços da Rússia, porque lá, quando se vai ao campo, vê-se
quilómetros e quilómetros, até perder de vista, e os olhos habituam-se a
essa grandiosidade; já aqui logo nos surge um muro medieval–
belíssimo, é certo– e depois do muro há outra coisa qualquer, ou seja
estamos muito próximos das coisas. Eu nunca mais me esquecerei,
quando, antes de construírem todos esses prédios, ia até ao mar, de
bicicleta, com um outro poeta, era como se não houvesse tristeza nos
olhos, talvez algum medo, era tudo tão belo, não havia ninguém.
Agora, com todos esses prédios, tolheram a grandiosidade do mar, que
era um elemento importante para compreender, por comparação, a
grandeza das coisas: se queríamos saber quão grande era uma coisa
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Casa
Ana
comprei um cavalo
e o chicote também
para o fazer estalar
mas um sonho ainda mais belo
comprei uma cama grande
onde tudo é vidro
que nos protege do vento e da chuva
e há uma almofada
onde podemos pousar a cabeça
Ana, olha para mim
tenho os olhos castanhos
É lindo. Pensou numa sua qualidade e acabou desta maneira;
primeiro falou no cavalo, no quarto e depois diz “olha para mim,
tenho os olhos castanhos”…
(…)
São muitas as coisas que passam a fazer parte de nós:
Tarkovsky, por exemplo, adorava loucamente a comida Italiana. Eu
trouxe-o a comer esparguete nos melhores sítios, em Santarcangelo
come-se divinamente, tagliatelle, e finalmente perguntei-lhe “Então
André, estás cá há dois anos, o que é que gostaste mais?”
“Esparguete”, respondeu ele, “Sabes, tudo aquilo que me fizeste
provar come-se duas ou três vezes e é muito bom. Já o esparguete é
normal mas preciso, por isso o escolho”. Entretanto chega um seu
amigo russo que o convida, nessa noite, para uma sopa tradicional
russa; e vi nos seus olhos o desejo de partilhar dessa sopa, o brilho forte
de uma recordação de infância.
(…)
Visões Uteis
69
podíamos sempre ir ao mar para comparar. E Meu Deus era algo
de… ele era um grande poeta, chamava-se Tito Balestra e morreu
bastante jovem, era meu amigo. No outro dia fui à sua terra natal,
apresentar um livro meu, e cá para mim éramos mesmo muito amigos,
e eu disse-lhes “Sabeis que o vosso poeta morto escreveu os mais belos
versos de amor que eu jamais li?” E ele nunca falava de mulheres, era
um rapaz forte assim para o gorducho, e era como se não gostasse de
mulheres. Depois fomos para Roma, eu fazia uma coisa e ele fazia
outra, e quando às vezes nos encontrávamos eu elogiava algumas
mulheres mas ele nada, não fazia nenhum comentário. E um dia ficou
noivo– e nessa altura já pensávamos que não gostava nem de mulheres
nem de homens– e passado um mês casou-se. E esta mulher morreu
aqui há um mês, enquanto ele morreu há vários anos, com cancro… e
a poesia de que falava chama-se “Ana” e é assim :
Capítulo 7
Uma vez o Fellini pediu-me uma poesia para o filme Amarcord.
O título é “Amarcord”, que quer dizer recordo-me em Romanholo:
70
70
Eu sei eu sei eu sei
que um homem aos cinquenta anos tem sempre as mãos limpas
e eu lavo as minhas duas ou três vezes ao dia
mas é só quando me vejo com as mãos sujas
que me recordo de quando era um rapaz
(…)
E o que é que me dizem de Ronnie Biggs, que fez o assalto milionário
ao comboio-correio nos anos sessenta e agora, depois de dezenas de
anos em liberdade, quis voltar a casa, mesmo tendo que ir para a
cadeia.
E de facto os jornais da véspera dão grande destaque a Ronnie Biggs que em
1963 foi um dos protagonistas do famoso assalto ao comboio-correio; preso e
condenado a 30 anos de cadeia acaba por fugir e refugiar-se, após uma longa
viagem e uma cirurgia plástica, no Brasil, onde viveu desde então, em grande
estilo e explorando comercialmente a sua imagem, e aproveitando o facto das
autoridades brasileiras não concederem a sua extradição.
O “Corriere Delle Sera” descreve um Ronnie Biggs velho, cansado e que não se
preocupa minimamente com a sua detenção, levada a cabo pela Scotland Yard em
pleno aeroporto. “O meu último desejo”, diz Biggs, “é entrar como súbdito inglês
num pub e pedir uma cerveja”. Agora com setente e um anos arrisca-se a cumprir
os vinte e oito anos em falta da sua pena.
Fellini e Marcelo Mastroiani acabariam, pelas constantes referências, por ser
pontos de contacto nos discursos de Tonino Guerra e Theo Angelopoulos. Em
Atenas seríamos também confrontados pela força dessa necessidade de regressar
a casa. Uma ideia que assumia agora um contorno ainda mais interior e espiritual:
THEO ANGELOPOULOS–
ANA VITORINO–
Num dos meus filmes Mastroiani diz “Atravessámos a fronteira e
ainda estamos aqui. Quantas fronteiras temos de atravessar para
chegar a casa?”. A casa é o momento em que nos sentimos em
equilíbrio connosco e com o mundo. “Home”… mas é qualquer coisa
de interior, não tem nada a ver com a “casa”, é uma casa interior. É
uma casa que eu não encontro.
Porquê?
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Casa
THEO ANGELOPOULOS–
ANA VITORINO–
Não sei…
Mas se é uma casa interior, porque é que temos uma tal necessidade de
partir, de fazer viagens para procurar qualquer coisa… não é possível
ficar e procurar nos pequenos encontros quotidianos…?
Esta pergunta talvez reflectisse já uma inquietação que nos acompanhava na
vezes ouvimos ao longo da estrada (“Right now I am A-Roaming”):
“Quando chegar a casa
Vou limpar o apartamento
Quando chegar a casa
Vou expulsar aquele rato
Quando chegar a casa
Vou pôr tudo em ordem
Mas neste momento, neste momento
Ando a vaguear por aí
Quando chegar a casa
Vou fazer aquele telefonema
Quando chegar a casa
Vou discutir o problema
Quando chegar a casa
Vou esclarecer tudo
Mas neste momento, neste momento
Ando a vaguear por aí
Quando chegar a casa
Vou deixar de beber
Quando chegar a casa
Vou começar a comer
Quando chegar a casa
Vou livrar-me das drogas
Mas neste momento, neste momento
Ando a vaguear por aí
Quando chegar a casa
Vou telefonar à minha mãe
Quando chegar a casa
Vou preparar-lhe um jantar
Quando chegar a casa
Vou convidar os meus irmãos
Mas neste momento, neste momento
Ando a vaguear por aí
Quando chegar a casa
Vou ver o meu filhote
Quando chegar a casa
Visões Uteis
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viagem, e que Nick Cave & The Bad Seeds cantava numa das músicas que mais
72
72
Capítulo 7
Vou comprar-lhe um brinquedo
Quando chegar a casa
Ele vai saltar de contente
Mas neste momento, neste momento
Ando a vaguear por aí
Quando chegar a casa
Vou desfazer as minhas malas
Quando chegar a casa
Vou lavar estes trapos sujos
Quando chegar a casa
Vou fazê-las outra vez
E vou de novo, vou voltar
Voltar a vaguear por aí”
THEO ANGELOPOULOS–
ANA VITORINO–
THEO ANGELOPOULOS–
NUNO CASIMIRO–
THEO ANGELOPOULOS–
Sim, mas a viagem é… para mim, o que é a minha casa? É quando
estou ao lado do meu director de fotografia, no carro, ele conduz– eu
não sei conduzir– a janela está aberta e a paisagem passa– é esta a
minha única casa. É só aí que eu me sinto em equilíbrio. E à espera
de qualquer coisa.
Porque o lado do escritório tem algo de estático, de fechado. Eu tenho
necessidade de me fechar, mas só depois de reunido tudo o que é
necessário para passar ao papel, antes não. E escrevo para ver
qualquer coisa sair de novo. O que é a casa, então? É esse equilíbrio
que nunca ninguém encontra. É por isso que procuramos, que
perguntamos, que viajamos, que temos vontade de ir lá para fora.
E acha que não a encontramos nunca?
É como se perguntasse “Como é que nasceu o mundo?”….
Mas sabe o que procura?
Procuro esse estado de equilíbrio. Por outro lado, tenho impressão,
aqui lembro-me de Albert Camus, que somos todos exilados, mas
num exílio interior, como se houvesse um reino– o título de Camus é
“O Exílio e o Reino”– que é essa casa, esse equilíbrio, e o exílio. Há
uma necessidade de retorno, que nunca acontece.
“Quantas fronteiras temos de atravessar para chegar a casa?”. Sempre
a casa, sempre o reino perdido… O reino é uma miragem… como no
deserto. Nós vêmo-lo num sítio e ele está noutro… e procuramo-lo por
todo o lado!
E esta ideia de viagem interior, esta ideia de regresso a casa, iria perseguir-nos
durante todo o percurso, até Joseph Danan, o último dos convidados, em Paris:
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Casa
Dizemos muitas vezes que viajamos para ir ter com os outros mas
também viajamos para ir ter connosco. E nesta viagem, quando
estivemos na Grécia eu não percebia uma palavra, não percebia mesmo
o alfabeto, e estava em casa. Na Alemanha eu percebo um pouco a
língua mas sou definitivamente um estrangeiro. Não é apenas a
língua…
JOSEPH DANAN–
É o quê? A cultura…
CARLOS COSTA–
É o Sul, a mediterraneidade…
JOSEPH DANAN–
Mas Portugal não é mediterrâneo…
CATARINA MARTINS–
73
CARLOS COSTA–
Mas a cultura é.
CARLOS COSTA–
Falámos das oliveiras… acho que a nossa casa são as oliveiras.
Portugal, o sul de Espanha, o sul de França, de Itália, a Grécia…a
língua é importante mas há algo mais…
JOSEPH DANAN–
Sou muito sensível a isso porque nasci na Argélia, nasci também nessa
cultura das oliveiras, do céu azul, do calor… há esse lado climatérico
que é primordial. É verdade que me sinto bem em Portugal, na
Espanha, na Itália… e na Grécia também, têm razão— mas estudei
um pouco de Grego no liceu e reconheço algumas palavras e nomes.
Nunca tive tanto a sensação de ser estrangeiro como quando estive na
Checoslováquia, não tem nada a ver com a cultura mediterrânea e é
outra língua, na Alemanha também não me sinto em casa… na
Inglaterra não gosto da comida…
Estive também na Tunísia e senti-me bem, penso que há uma
intersecção mediterrânea, entre as culturas europeias mediterrâneas e as
culturas árabes ou africanas mediterrâneas.
De regresso ao Porto transparecia, nas notas de viagem, uma satisfação por
chegar a casa…
“Que estranho é esse caminho para casa que já não é viagem com percalços e
descobertas, mais parece um longo obstáculo, um preço a pagar pelo descanso que o lar
lá ao fundo promete.
Que estranha é a alegria de ver a placa que marca um dos inícios do nosso país, e a
vontade de cumprimentar efusivamente o dono da primeira estação de serviço portuguesa
onde paramos. A vontade de comprar jornais, tabaco, comida, beber café, só porque são
“dos nossos”.”
Notas de viagem/Porto, 5 de Junho, Ana Vitorino
Visões Uteis
Capítulo 7
… e todo este projecto acabaria por concluir, no final do espectáculo “Orla do
ORADOR–
74
74
Bosque”, com um regresso a casa, uma tentativa de regresso ao reino perdido:
Partir e procurar o equilíbrio no movimento. Absorver o que fica para
lá do corpo, o oásis no meio do deserto: a nossa casa, o espaço em que
conseguimos o nosso equilíbrio. O nosso reino.
Procurar esse espaço na poesia do instante, na irrealidade do
movimento. Ter saudades do futuro.
Aceitar essa incessante busca.
Recusar a inevitável perversão do nosso espaço pelas mãos sujas que o
apertam.
Partir em busca desse reino que talvez nunca chegue.
OPTIMISTA–
Eduardo: Chegámos ao fundo./Sabes qual é o dia?/Lembras-te
quando/ aos treze anos/ eu e tu/ fomos vender peixe/ e que
chegámos ao rio/ e a ponte tinha sido levada pela água/ e nós
voltámos para casa com o peixe todo/e o peixe apodreceu em nossa
casa?/ Eduardo/ aquele fedor é o perfume da minha vida.
MISS COOL–
Vocês não imaginam o que é o pelau. Pelau é a receita secreta da
minha tia. Quando ela fazia, a família juntava-se toda e eu e os meus
primos tínhamos uma mesa só para nós. Sentávamo-nos impacientes à
espera da comida e quando aquela papa vermelha com pedaços chegava
sentíamo-nos como adultos a comer comida de gente crescida, comida
picante.
FIGHT–
Ana/comprei um cavalo/e os arreios também/ para o fazer
correr/Mas/outro sonho maior/ comprei uma cama grande/onde
tudo é vidro/ e vemos o vento e a chuva/ e tem a almofada/ onde
podemos deitar as nossas cabeças/ Ana/ olha para mim/ tenho os
olhos castanhos.
MISS COOL–
O pelau leva frango desfiado, amendoim e provavelmente muito
picante. É macio, escorrega bem na boca e de vez em quando o frango
cola-se aos dentes. Às vezes, a meio da sobremesa, ainda se descobrem
fios de frango que ficaram no meio dos dentes.
OPTIMISTA–
Eduardo: aquele fedor é o perfume da minha vida.
MISS COOL–
Eu ainda consigo sentir esses fios de frango…
FIGHT–
Ana: olha para mim, tenho os olhos castanhos.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Língua
Se a ideia de casa estava presente desde o início da nossa viagem– perguntámonos à partida como é que este percurso afectaria a nossa visão da casa e da nossa
identidade– a noção de que a língua é um caminho para esse “reino de equilíbrio”
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que procuramos só viria a surgir no encontro com Theo Angelopoulos.
Quando partimos ao encontro do realizador grego levávamos na mente o seu
último trabalho “A Eternidade e Um Dia”. Aí contava-se a história de um poeta
grego do século XIX que tinha sido criado em Itália mas que um dia, ao saber que
o seu povo pegara em armas para se bater contra o domínio otomano, resolveu
voltar à Grécia para cantar a revolução. Ao chegar à sua ilha natal, o poeta
descobriu que não falava a sua língua-mãe e assim começou a percorrer os
bairros, os campos e aldeias de pescadores anotando as palavras que ouvia e
pagando cada uma que não conhecesse.
Nesse mesmo filme as noções de exílio e de língua estavam já claramente
presentes nas reflexões da personagem principal, um homem cheio de
arrependimento no limiar da morte:
“Por que vivi a minha vida exilado?
Porque é que apenas me senti regressar nas raras vezes que me foi dado falar a minha
língua?
A minha própria língua…
Quando ainda conseguia recordar palavras perdidas ou extrair do silêncio palavras
esquecidas.
Porque é que só então ouvia o eco dos meus passos percorrendo a casa?
Porquê?”
Este exilado descobria, finalmente, três palavras antigas que definiriam a vida
de um homem: “pequena flor”, “estrangeiro” e “muito tarde”. E seria ao falar
destas palavras “esquecidas” que Angelopoulos levantaria a questão central da
perda de riqueza e diversidade das línguas, espelho inequívoco da perda de
identidade e de imaginação:
Visões Uteis
Capítulo 8
CATARINA MARTINS–
76
76
THEO ANGELOPOULOS–
Aquela palavra do filme… xénitis…
Sim, quer dizer “estrangeiro”. São palavras que não são muito
usadas, pertencem à nossa língua mas são palavras esquecidas. Por
isso é que me interessavam.
Sabem que as línguas hoje tornam-se cada vez mais cerradas, falamos
com menos palavras que antes… em todas as línguas. Se tivermos
dificuldade, às vezes, colocamos uma palavra em inglês. Daí o
“franglais”– há mesmo um dicionário de “franglais”.
Lembro-me da minha avó, que era totalmente analfabeta, e que tinha
uma riqueza de língua incrível! Ela usava as palavras com finesse,
nunca repetia uma palavra para coisas diferentes. Tinha dez palavras
para pacote. E agora temos só uma. A alva, o crepúsculo, na língua
grega antiga tem cinco nomes, dependendo da hora. Hoje, só tem um.
Nesta história das palavras esquecidas eu volto sempre à famosa
fórmula de Heidegger que dizia que a nossa única identidade é a
língua da nossa mãe. Recentemente estive a ler um grande poeta que
vos aconselho, um judeu romeno, mas judeu de Europa central,
portanto a sua língua materna era o Alemão. A sua família esteve
nos campos de concentração nazis, foi exterminada, e ainda assim a
sua língua continuou a ser o Alemão. Ele viveu em França e suicidouse muito novo no Sena. Sempre reconheceu que a língua alemã era a
sua identidade. O que é que ele era? Judeu, romeno, alemão,
francês… era o quê?
Já em Itália, Tonino Guerra tinha dado um vívido exemplo do poder da língua
natal:
TONINO GUERRA–
A mãe da minha mulher já morreu, era russa, e era um pouco metida
consigo mesma; um dia disseram-lhe que em Itália se podia sintonizar
uma estação russa, e a partir daí ela ficava de rádio colado ao ouvido,
a escutar, não importava o quê, a escutar a língua russa. Porque a
língua natal continua a ser um dos perfumes mais fortes, pois mesmo
que fales outras línguas nunca chegas à profundidade da tua língua
natal.
E para o poeta italiano a questão acentuava-se ao levarmos em conta, dentro da
língua italiana, o seu dialecto natal:
CATARINA MARTINS–
TONINO GUERRA–
O Romanholo. Porque escreve em Romanholo?
Porque sou romanholo. Eu comecei a escrever quando estava
prisioneiro na Alemanha, e comigo estavam apenas camponeses
romanholos que só falavam Romanholo… mas é uma língua, meus
amigos. Vocês sabem em que língua é que Dante escreveu a “Divina
Comédia”? A língua então era o Latim mas ele escreveu no dialecto
florentino. Estes dialectos derivam todos do Latim. E porque escrevo
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Língua
em Romanholo? Porque o Romanholo era a língua que toda a gente
falava. Os arranha-céus de Nova Iorque foram construídos por
emigrantes italianos que falavam os seus dialectos– Romanholo,
Napolitano, Calabrês…
CARLOS COSTA–
TONINO GUERRA–
Mas tu, quando escreves, pensas em Romanholo?
O ar é aquela coisa leve
que te gira à volta da cabeça
e que se torna mais clara quando ris
Em dialecto utilizo a palavra ròba para dizer coisa. Compreendem
que emprego agora uma palavra tremenda, é um começo completamente
diferente, é uma palavra feia que o povo utiliza para descrever o que
quer que seja: “O que é isto?” “É uma ròba de madeira” ou “uma
ròba de pedra” ou “uma ròba disto ou daquilo”. Portanto tenho de
usar ròba.
E mais: em Italiano digo L`aria é una cosa legera e em dialecto
digo “ L`aria è una ròba lizira”. E em lizira, ouvem zira, zira, como
se houvesse um mosquito lá dentro. E esta é a diferença fundamental.
O dialecto tem a grande força dos sons.
O exemplo inverso, da língua que não faz sentido se desligada da alma e
História de um povo, viria de Thomas Liolios ao referir-se à República que ele
recusa chamar de “Macedónia”:
CARLOS COSTA–
THOMAS LIOLIOS–
CATARINA MARTINS–
THOMAS LIOLIOS–
A denominação daquela zona como Macedónia vem do tempo de
Tito…?
Sim, foi Tito quem decidiu. Antes dele nunca ninguém se tinha
lembrado de lhe chamar Macedónia . E claro, foi ele a desenhar a
Bósnia-Herzegovina e toda a Jugoslávia. Um homem muito
inteligente.
Dividir para reinar.
Exactamente. E então muitos comunistas gregos da Macedónia
disseram “Muito bem, nós somos macedónios e gregos, e estas duas
coisas são diferentes.” Isto é muito estúpido. Amanhã iremos visitar o
Palácio de Alexandre, o Grande, e encontraremos muitas esculturas
em mármore, milhares delas, e todas com inscrições de nome gregos,
todas elas em língua grega. É que não existe uma língua macedónia,
eram todos Gregos e a Macedónia apenas uma parte da Grécia. A
Visões Uteis
77
Claro. É uma língua que me corre no sangue. Dou-te um exemplo.
Tarkovsky fez versões de muitos poemas meus, entre os quais “O ar”;
vou dizer-vos em Italiano:
Capítulo 8
78
língua que eles falam, em Skopje, é uma língua artificial, uma
mistura de Eslavo, Albanês e palavras gregas que foi construída na
Universidade de Skopje durante os anos cinquenta. É uma construção
completamente artificial.
Ao longo de toda a viagem estivemos atentos à diversidade linguística europeia,
acreditando que ela interessaria como instrumento de trabalho. Abandonámos a
78
nossa língua para nos dedicarmos às dos nossos convidados, analisámos
expressões idiomáticas, gravámos emissões televisivas e radiofónicas… Mas
quando Theo Angelopoulos deu nome a essa ameaça à pluralidade e
complexidade das línguas, reconhecêmo-la imediatamente. Ela viajava connosco
desde que tínhamos saído de Portugal:
THEO ANGELOPOULOS–
ANA VITORINO–
THEO ANGELOPOULOS–
O meu irmão casou com uma holandesa e falavam francês um com o
outro, conheceram-se em Genebra. Quando ele a trouxe a casa, a
nossa mãe disse: “Mas que queres tu com essa mulher? Ela nem sabe
falar a nossa língua!”. Se não conhecia a nossa língua, não sabia
nada…
Mas é esse o futuro, o cruzamento de nacionalidades…
Ah, mas eu acho que o futuro é… toda a gente vai falar Inglês.
O Inglês Internacional. A língua que provavelmente mais utilizámos nesta
viagem, que se alterava ligeiramente a cada fronteira atravessada mas permanecia
“língua de todos e de ninguém”. O Inglês Continental, como lhe chamou Sara de
Roo. Os STAN, a sua companhia de teatro, utilizam-na frequentemente como
língua franca e a sua opinião não podia estar mais distante do pessimismo de
Angelopoulos:
CATARINA MARTINS–
SARA DE ROO–
CARLOS COSTA–
SARA DE ROO–
E como é trabalhar noutra língua?
É estranho. De certo modo…
Em que língua pensas, habitualmente?
Em Flamengo. E falamos Flamengo em todo o lado e a toda a hora,
toda a Antuérpia e Flandres. Representar noutra língua é algo que às
vezes… eu prefiro a representar na minha língua. Por exemplo, o
Inglês tem esta fantástica vantagem de não haver diferença entre you e
you, “tu” e “vous”. É incrível. Em flamengo temos “tu” e “vous” e
também uma forma ainda mais familiar de “tu”, ou seja, temos três
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Língua
JOÃO MARTINS–
O que é engraçado é que este conceito do Inglês Internacional existe de
facto, enquanto não existe um Francês Internacional ou um Alemão
Internacional.
CATARINA MARTINS–
Este Inglês Internacional vai variando de país para país, com novas
palavras construídas a partir da língua de cada um. Eu gosto muito
do som.
SARA DE ROO–
O som varia de país para país; reconhece-se a gramática portuguesa
quando é falado por um português e a gramática flamenga quando é
falado por um flamengo.
Língua criativa ou redutora? Se era verdade que a encontrávamos por todo o
lado, verdade era também que a ameaça de uma língua inglesa única parecia estar
longe da mente do cidadão europeu comum (como aquele gerente do hotel de
Roma, que perguntava desconfiado a um dos elementos da nossa equipa: “Se não
fala Italiano e não percebe Italiano, como é que fez tantas chamadas locais?
Estava a falar com quem?”).
Arma de comunicação ou de massificação?
Entre estas duas visões opostas do Inglês Internacional que se espalha pela
Europa encontrámos a opinião mais moderada de Joseph Danan:
JOSEPH DANAN–
Há ainda a questão da língua, que é complicada. Também em relação
a isso há vinte anos atrás eu diria “Brevemente apenas falaremos
americano” e não estamos nesse ponto, não devemos exagerar. O
empobrecimento da língua é real, mas também não completamente.
Vejo nos meus alunos, por exemplo, uma certa pobreza, uma certa
dificuldade em escrever bem o Francês. Mas ao mesmo tempo constato
que há muitos estudantes com um gosto muito forte pela escrita, e os
Visões Uteis
79
escolhas. E as duas maneiras de usar “tu”, a mais familiar e a mais
oficial, têm uma grande consequência em toda a linguagem, porque se
usarmos a forma mais familiar usamos uma linguagem mais familiar
e comum, se usarmos a forma mais oficial (que é a utilizada na
televisão) a linguagem é mais limpa. E se representarmos em Inglês,
nada disso existe!
Por outro lado, há muita coisa que se desconhece quando se representa
em Inglês. Penso que esta escolha de formas também existe em Inglês
mas nós não as conhecemos. Isso é muito europeu, a língua que
utilizamos é Inglês Continental, uma língua que na realidade não
existe. Não é aquele britânico emproado nem é americano, é uma
linguagem comum, mainstream, que toda a gente compreende, com
poucas palavras difíceis e erros regulares de gramática. Mas toda a
gente a conhece e fala, ninguém tem medo de fazer erros, percebe-se e
comunica-se, porque é que não haveríamos de a utilizar?
Capítulo 8
80
80
ateliers de escrita têm um sucesso enorme. Se me dissessem isto há
vinte anos atrás eu ficava surpreendido, pois pensava que as pessoas
deixariam de escrever, saberiam apenas fazer imagem televisiva. E
não é verdade, há uma resistência da escrita, uma resistência das
línguas, mesmo se existem palavras inglesas que entram no Francês (e
são muitas) não devemos exagerar, o Francês continua a não parecerse de todo com o Inglês. É natural que as línguas evoluam, não é
catastrófico.
Não tenho a impressão de estarmos no caminho de uma língua única
europeia, que seria o Inglês. Mas é uma visão talvez a curto prazo,
talvez dentro de dois séculos aconteça outra coisa. Mas mesmo em
relação à hegemonia americana, não estamos no caminho que
prevíamos há vinte anos. Há uma resistência europeia, muito maior do
que imaginávamos. Mesmo se o poder americano seja uma realidade
que me revolta, como a muita gente, não o nego.
JOÃO MARTINS–
Mas não acha que essa visão não catastrófica da mistura de culturas
tem a ver com a força da cultura francesa, uma força que
Angelopoulos não sente na cultura grega e que, talvez, nós não
sintamos na cultura portuguesa? Por exemplo, no plano da língua,
talvez os franceses e os alemães não vejam que acabaremos todos a
falar Inglês porque o Francês e o Alemão são línguas poderosas na
Europa (e são dois países poderosos economicamente). Mas em
Portugal e na Grécia vemos que, se dentro de vinte anos não falarmos
Inglês, seremos excluídos.
JOSEPH DANAN–
Compreendo. É verdade que a questão da língua é fundamental na
ideia que abordámos há pouco de uma cultura europeia comum a longo
prazo. Isso seria verdade para tudo o que se passa pela televisão ou
pela internet, mas a escrita ou o teatro fazem-se numa língua própria,
de cada país. Para alguém de Berlim ver um espectáculo em Lisboa
seria necessário que conhecesse a língua, há sempre essa barreira.
Aquilo que faz com que eu me sinta estrangeiro nalgum lugar é
fundamentalmente a língua. Quando vou a um país onde percebo um
pouco a língua, ou me falam Francês (como em Portugal), sinto logo
uma familiaridade, enquanto que na Alemanha ou noutros países da
Europa Central como a Checoslováquia, estou totalmente no
estrangeiro, não percebo uma palavra.
Talvez um dia cheguemos a essa língua comum, que provavelmente
seria o Inglês, não sei… mas demorará tempo, isso não se faz dentro
de um século, parece-me.
Mas percebo bem o vosso ponto de vista. Eu sou, por exemplo, muito
sensível ao facto de em Portugal muitas pessoas me falarem em
Francês e me compreenderem. Sinto-me um pouco culpado pois acho
que deveria fazer um esforço para falar Português, até porque percebo
bem o Espanhol e o Italiano e quando vejo Português escrito até
percebo um pouco, mas não percebo a língua falada.
CATARINA MARTINS–
Isso acontece com todas as línguas latinas, nós percebemo-las mas eles
não nos percebem.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Língua
Há um certo fechamento da vossa língua que a torna hermética para
nós. Mas a verdade é que de repente fico um pouco, para minha
vergonha, na posição do americano que chega à Europa e não precisa
de falar Alemão ou Espanhol ou Francês, porque toda a gente fala
Inglês. É uma posição terrível!
ANA VITORINO–
Temos um pouco a impressão de que a resistência, pelo menos na
Europa Central, ao poder da língua americana é o Francês.
Angelopoulos falou-nos em Francês, Tonino Guerra também… tenho
a impressão que é também um statement porque, por exemplo, nós
percebemos Italiano e Tonino disse-nos logo ao início “Eu vou falar
em Francês”. Penso que a grande resistência aos produtos culturais
americanos na Europa vem sobretudo da França.
JOSEPH DANAN–
Eu apercebo-me que em Portugal pessoas da minha geração dominam
bem o Francês, enquanto que a vossa geração já é muito mais marcada
pelo Inglês. Quando penso nisso sinto uma certa nostalgia, há vinte ou
trinta anos toda a gente falava Francês em Portugal, sinto isso como
uma ferida no meu amor-próprio. O Francês está a caminho de ser
vencido pelo Inglês. O risco actual não é, de facto, que o Português seja
substituído pelo Inglês, mas é muito claro que o Francês vai ser
substituído pelo Inglês, que terá a posição dominante como segunda
língua, em todo o lado. Vamos aos liceus e já não encontramos
qualquer resistência, o Inglês é a segunda língua obrigatória e toda a
gente o fala. Nos países do norte isso já acontece há muito tempo, na
Holanda, por exemplo. E vai acontecendo nos países latinos que
tinham até agora Francês como segunda língua.
Será que há um verdadeiro risco de isso chegar ao ponto de ameaçar a
primeira língua? Creio verdadeiramente que não, excepto, talvez,
dentro de um século ou dois e através de vias que hoje não conseguimos
perceber. É claro que é importante não sermos ingénuos, porque o
factor económico está sempre em primeiro lugar… mesmo que a
Europa se constitua como potência económica que faz face aos Estados
Unidos, temos sempre a Inglaterra, que é uma ponte linguística com os
Estados Unidos. E se houver uma língua dominante na Europa, há
todas as probabilidades que seja o Inglês.
(…)
JOÃO MARTINS–
Mas voltando ao que eu dizia sobre a língua, nós temos noção de que,
para além de adoptarmos o Inglês como segunda língua, temos que
adoptar uma terceira língua e talvez mesmo uma quarta. Suponho que
para os franceses e para os alemães baste adoptar uma segunda língua.
É um problema dos países periféricos, uma segunda língua não é
suficiente. E há outra coisa interessante: poderíamos pensar que, sendo
o Inglês a arma da globalização, os ingleses estariam contentes com a
situação, mas Motton disse-nos que o Inglês está a perder muito com
isto, porque o Inglês que globaliza é um Inglês mais simples.
Visões Uteis
81
JOSEPH DANAN–
Capítulo 8
É o Inglês Económico…
ANA VITORINO–
Ele diz mesmo que o Inglês devia ter um estatuto de língua étnica,
porque está verdadeiramente ameaçado hoje.
JOSEPH DANAN–
Interessante, não teria pensado nisso… Penso que o verdadeiro
combate é um combate em cada país pela pluralidade das línguas.
Não se deve pensar o problema da comunicação na Europa apenas do
ponto de vista da língua única, que era aliás o objectivo do Esperanto,
que era fabricado e nunca funcionou… mas talvez cheguemos a um
Inglês-Esperanto.
82
82
JOSEPH DANAN–
E a sua conclusão recaía nas potencialidades da arte e na responsabilidade dos
criadores:
JOSEPH DANAN–
É enorme o que está em causa, era preciso que, no mínimo, cada país
pudesse resistir ao factor económico e defender esse plurilinguismo. Aí
a Europa teria um sentido, se em cada país as pessoas dominassem
três, quatro línguas, seria formidável e é possível mas são necessários os
meios ao nível da educação. Normalmente a educação em cada país
deveria ter essa força e essa capacidade de resistir ao factor económico,
mas não é assim, a economia entra também aí e vão sempre dizer-nos
que é preciso que toda a gente fale Inglês porque é o futuro, é o
comércio, é a industria, é a ciência, etc.
Como pessoas da cultura temos aí um papel a desempenhar– quem
pode defender pelo menos a língua são as pessoas do teatro e os
escritores.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Queda dos Impérios
No berço da civilização, por entre o pó e o barulho da cosmopolita Atenas que
vira as costas à Acrópole que a vigia, a ideia de morte anunciada do nosso modo
de vida tornava-se quase palpável nas palavras de Theo Angelopoulos:
83
THEO ANGELOPOULOS–
Como é que Atenas, uma potência que dominava todo o mundo
antigo, teve uma tal queda depois? Isso começou pela arrogância face
aos outros, como fazem hoje os americanos, tentando pôr todos na
ordem, à lei da bala. Um desses exercícios militares fracassou. E
assim começou a decadência de Atenas. E tenho esperança que isso
aconteça também aos Estados Unidos. Que a lição histórica lhes
toque. É a mesma situação: um país (na altura foi uma cidade) que
domina todos os outros, e que tudo impõe com uma força
extraordinária.
Todos os impérios sobem e caem: o Império Grego, o Bizantino, o
Otomano, e o Americano também cairá.
Foi assim introduzido um novo tema na conversa com os convidados ao longo
da viagem: o da “Queda dos Impérios”. E os exemplos da sua inevitabilidade
sucediam-se. Com Thomas Liolios a fazer-nos olhar para a nossa História:
THOMAS LIOLIOS–
Lembro-me de uma estranha sensação, quando estive em Portugal e vi
todos aqueles edifícios imponentes; era como se edifícios tão grandes não
pudessem caber num país tão pequeno, mas na realidade vocês nunca
construíram para o país, mas sempre para o mundo.
Ou Daniel Libeskind a pensar as cidades:
DANIEL LIBESKIND–
Será que alguém, olhando lá de cima do Fórum Romano, poderia
imaginar que toda aquela arquitectura seria um dia apenas uma
ruína, um vestígio do passado? E da mesma maneira que falo de
Roma poderia falar de todos os magníficos castelos que podemos
visitar. E podemos imaginar alguém a olhar do cimo de um arranhacéus de Nova Iorque ou Tóquio e a tomar como certo que aquela é
uma realidade eterna, mas não é, porque depende da competição das
cidades.
A insustentabilidade do modo de vida ocidental, que é o nosso, já tinha sido
assunto de reflexão aquando da criação dos “Estudos”. E no material que nos
Visões Uteis
Capítulo 9
serviu de apoio abundavam os anúncios da decadência, o que naturalmente teve
84
84
eco no próprio espectáculo.
“Europa: (…) Os prognósticos mais correntes anunciam, no entanto, um declínio
irreversível do Velho Continente.
Civilização: As civilizações dissolver-se-ão, a pouco e pouco, num gigantesco puzzle de
valores. Como no final do Império Romano, é provável que se assista à lenta revolta das
regiões periféricas contra o centro, ou, por outras palavras, de todos contra o Ocidente.
No entanto, é talvez mais provável ainda que se oponham entre si as civilizações que se
assemelham, dado que possuem desejos miméticos.”
Dicionário do Século XXI, Jacques Atalli
“Vós, novos, governais há pouco, e julgais habitar uma cidade inacessível à dor. Mas
não vi eu já, num abrir e fechar de olhos, caírem dois tiranos? Mais vergonhosamente e
com maior rapidez hei-de ver cair o terceiro, que agora governa.”
Prometeu Agrilhoado, Ésquilo
“Que os grandes e humildes, através do nosso exemplo, vejam a que estado serão
inexoravelmente reduzidos, qualquer que seja a sua condição, idade ou sexo. Então
porque estamos nós, seres miseráveis, inchados de orgulho? Somos pó e ao pó voltaremos,
cadáveres putrefactos, pasto de vermes…”
Epitáfio de uma vítima da peste negra inserido no Estudo nº4
Foram sem dúvida a terminologia usada por Angelopoulos e o discurso de
Libeskind sobre as cidades que nos fizeram reflectir de forma mais sistematizada
e nos deram imagens mais certeiras sobre “A Queda dos Impérios”. Imagens
essas que viríamos a utilizar no espectáculo “Orla do Bosque”:
ORADOR–
Um imperador romano contempla o Coliseu acabado de estrear. Nesse
momento, aquela construção é para ele eterna. Nunca imaginará as
ruínas onde hoje se passeiam os turistas.
É compreensível essa incapacidade de conceber a ruína do que vê: para
o Imperador, o Império representa a perfeição, tal como ele a conhece e
concebe.
Para ele, o Coliseu jamais cairá.
(…)
Talvez por crescerem sobre as ruínas do anterior dominador, os vários
impérios crescem na convicção de que o patamar da perfeição absoluta é
este que desenham. E que o progresso está para sempre encerrado nas
definições seguras de quem logrou destituir o anterior amo.
E de amo em amo, construímos a História.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Queda dos Impérios
Para todos, o declínio começa com essa atitude arrogante, com esse
momento em que o conforto do poder retirou as incertezas ao futuro:
quando já se está tão seguro de que o fim não existe, a necessidade de
ousar, de repensar, de ver o avesso morre.
(…)
(…)
Todos os impérios caíram.
Todos os impérios caem quando se tornam arrogantes.
Também a arrogante torre do Conselho de Administração cairá.
Como caíram os Bárbaros, os Otomanos, os Mouros, os Ming, os
Portugueses.
Visões Uteis
85
Hoje como então, quando o Presidente do Conselho de Administração
de uma qualquer multinacional espreita a cidade do escritório
instalado no último andar de um arranha-céus em Wall Street, não
imagina que o brilho espelhado da construção se afundará com o
tempo.
Também para ele é inconcebível a inevitabilidade da ruína.
86
A Comunidade
Thomas Liolios recebeu-nos em Véria, recebeu-nos em sua casa, recebeu-nos
com a sua família e os seus amigos. E cedo percebemos que a sua casa não se
86
resumia àquele pequeno apartamento no centro. A sua casa era a cidade de Véria
e a região da Macedónia. A sua casa era a Grécia e toda uma cultura e um passado
de que se sente filho. Com orgulho fala-nos de Alexandre, o Grande e mostra-nos
pomares de pessegueiros até perder de vista, guia-nos pelos segredos da cidade e,
devagarinho, vai desvendando a felicidade sentida por fazer parte de uma
comunidade que ainda acredita que existe:
THOMAS LIOLIOS–
É importante compreender que na Grécia as pessoas começaram por
construir aldeias, isto é, comunidades de indivíduos que assim se
protegiam uns aos outros, adquirindo uma segurança que não teriam
isoladamente. A aldeia destinava-se a “viver”. Só depois se irão
construir cidades; as cidades destinam-se a “viver bem”. E quando os
gregos se lançam na colonização da costa do Mediterrâneo e do Mar
Negro– reparem, sempre junto ao mar– vão construir cidades; mas
para construir uma cidade existem regras: a primeira regra é levar
para a cidade nova o fogo que ardia na praça central da cidade natal,
levando assim consigo o centro espiritual. Tratava-se de um pequeno
prato onde ardia o fogo. A segunda regra é a de criar uma nova lei
para governar a nova cidade; não bastava importar as leis das cidades
da Grécia, era preciso criar uma lei nova para uma cidade nova. A
terceira regra era a arte, utilizar a arte na fundação da nova cidade.
(…)
Apesar de não se falar nisso, há imensas comunidades gregas
espalhadas por África. Mesmo em Angola, depois de vocês saírem, as
comunidades gregas continuaram por lá. Há algum tempo estive na
Roménia– a minha mãe morava lá– e reparei na má opinião
generalizada em relação aos judeus. Perguntei então o que fazia a
comunidade judaica na Roménia e responderam-me que se dedicava ao
comércio e à banca; perguntei então o que fazia a comunidade grega na
Roménia e responderam-me a mesma coisa, comércio e banca. Fiquei
surpreendido pois não conseguia explicar a diferente atitude perante
situações aparentemente idênticas. Explicaram-me então que os judeus
se fecham sobre si próprios não devolvendo à comunidade local o bem
estar que dela retiram. Já os gregos vivem com a comunidade local, em
conjunto, casando, tendo filhos, investindo, construindo escolas e outros
equipamentos. Cultura diferente, atitude diferente, integração diferente.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Comunidade
Na verdade foram as palavras de Thomas Liolios que nos fizeram recordar o
que Theo Angelopoulos nos tinha já dito, dias antes, em Atenas:
THEO ANGELOPOULOS–
Finalmente seria Nina Libeskind, de forma mais fria e pragmática, e a propósito
de Berlim, a relacionar a desagregação das comunidades com a arquitectura e as
políticas urbanísticas:
NINA LIBESKIND–
CATARINA MARTINS–
NINA LIBESKIND–
CATARINA MARTINS–
Não se pode construir o centro de uma cidade para falhar. Eles já
injectaram milhões de Marcos ali porque tem de ser um sucesso! E
espero que tenham sorte porque ninguém quer ter um buraco negro no
meio da cidade. Por isso comercialmente ainda têm muitos problemas
para vender e alugar espaços, ninguém quer ir para lá.
Não vive lá ninguém?
Há lá alguns apartamentos mas ninguém vive lá. Ninguém quer lá
viver.
Realmente chegámos lá e estava tudo vazio. Íamos ao centro da cidade
e não havia lá nada.
(…)
NINA LIBESKIND–
Acho muito triste que tivessem tido essa atitude e acho que as pessoas
se começam a aperceber que aquilo que fizeram… quer dizer,
Potsdamerplatz é suposto ser uma zona comercial e de entretenimento
mas se não fosse o casino não havia lá mesmo nada. As pessoas só lá
vão pelo casino. Estão a ver o centro de uma cidade que não é
verdadeiramente um espaço público onde as pessoas possam estar e se
sintam numa grande cidade. É uma pena. Não passa de um centro
comercial muito feio. O melhor é o edifício Sony que é apenas
medianamente interessante.
(…)
Na Potsdamerplatz tínhamos ideias em cima de ideias, não pensámos
em construção. Éramos bastante novos nisto! Na Alexanderplatz, se
Visões Uteis
87
Eu lembro-me que, quando era jovem, as pessoas cantavam e
dançavam nas casas, mesmo durante a ocupação alemã. Isso
desapareceu! Nas aldeias havia festas, não a festa geral da aldeia,
muito típica, mas festas por si só. Os casamentos, os baptizados, etc.,
eram festas. Por isso havia sempre um centro na aldeia, uma praça
pública. Era a Ágora, as pessoas reuniam-se ali para falar, para
dançar, para cantar… agora, não. As praças estão vazias. Está tudo
mudado em todo o lado.
Capítulo 10
88
88
tivessem seguido a nossa lógica para esse local, que era pegar no que já
existia e ficar com isso dizendo “Fiquem com isso, podem não gostar,
pode ser feio mas é a vossa História e parte da vossa memória e é
economicamente viável e diz muito às pessoas que viviam em Berlim
Leste…” e se tivessem transformado a praça a partir desta ideia, acho
que veríamos agora um local onde se passava alguma coisa, mas agora
ainda está mais empobrecida do que há oito anos atrás. E isso porque
não tiveram outra ideia senão arrasá-la e colocar lá estas torres
ridículas. Não digo que a única ideia boa fosse a do Daniel mas era a
lógica a seguir: construir infra-estruturas e edifícios que fossem
adicionar algo ao invés de apagar simplesmente a História. E acho
que agora veríamos que a cidade se tinha desenvolvido de uma forma
mais fluida. Agora a Alexanderplatz e a Potsdamerplatz estão…
mortas.
PEDRO CARREIRA–
Acha que eles entraram em pânico quando o muro caiu?
NINA LIBESKIND–
Acho que não entraram em pânico… Para ser justa acho que
ninguém tinha ideia de quanto isto ia custar. Por muitos cálculos que
fizessem… ninguém fazia ideia. Juntar o sistema de Metro, juntar as
telecomunicações… era inacreditável! Eu segui tudo com especial
interesse, porque estive na política, e logo depois do muro cair um
amigo meu que era ministro veio cá, visitou Berlim– ele falava
Alemão e eu não– e contou-me que era inacreditável o que tinha de ser
feito! Por exemplo, em Marzan havia uns blocos de apartamentos com
cento e cinquenta mil pessoas … e apenas um supermercado! Não
havia telefones. Apenas seis carros… Era incrível! Depois todos
quiseram comprar um carro– o que é compreensível. Montar os
telefones… o sistema de educação… Para ser justa ninguém podia ter
imaginado. Eu diria que se devia ter construído uma “rede de
segurança”, fazer as coisas de uma forma mais gradual mas não é
assim que o mundo funciona… quer dizer, se– e isto é uma história
verdadeira– se se puder pegar numa fábrica de mobiliário perto de
Dessau que tem dois mil e quinhentos trabalhadores e pô-la a
funcionar com vinte e cinco pessoas… então para quê continuar a
pagar a duas mil quatrocentas e setenta e cinco pessoas? As coisas não
funcionam assim. E o desemprego é enorme. Eu vi hoje na BBC que
na Polónia, que é um exemplo de sucesso, a taxa de desemprego subiu
de 16,5% para 18,5% este ano… e é um caso de sucesso! Aqui se
forem até Dessau, Magdeburg, Halle… acreditem que é assustador.
Não têm dinheiro para arranjar nada, já ninguém se importa, não há
empregos… e continuam a tentar mas é muito, muito duro voltar a
juntar tudo. Não estou a ser pessimista… Berlim Oriental está
espectacular comparada com esses sítios. Mas é muito duro.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Comunidade
Regressámos ao Porto, em ano de grandes obras, motivadas pela capital
Europeia da Cultura. E por todo lado víamos uma ideia de cidade que não
partilhávamos. Perdida a escala humana, desapareciam os jardins e os arquitectos
cobriam tudo de granito. Desaparecia a praça enquanto espaço de pessoas que se
encontram.
Na nossa cidade a ideia de comunidade estava em clara agonia, o que
naturalmente se iria reflectir no espectáculo “Orla do Bosque”:
89
ORADOR–
As cidades sofrem hoje uma crise de identidade; causa e efeito das
assimetrias sociais, da cultura da exclusão social, com guetos para ricos
e pobres, com regras e escolas próprias.
As cidades transformaram-se em locais de trabalho, inundadas de
carros durante o dia e autênticos desertos de betão depois das oito.
Atirou-se o lar para subúrbios gigantescos, com zonas bem
demarcadas para bairros sociais, apartamentos para a classe média e
condomínios fechados para os mais abastados.
Vigora a lógica do condomínio fechado, do vídeo-porteiro e do jardim
de pedra para escamotear a urbe de cimento.
Fechou-se a vida em apartamentos exíguos e desconfortáveis.
Apagou-se o espaço público do léxico urbano. Entregámo-lo a
governantes para que o decorem e preservem sem mácula.
Esterilizou-se a praça com pedra inerte, por onde a vida passa mas
não se instala. Limitou-se a comunicação ao colorido do grafitti.
Contribuímos para a caridade em terras longínquas, mas somos
incapazes de ir a uma reunião de condóminos ou pensar o que fazer do
nosso lixo.
O ruído que nos cerca é o de uma multidão de monólogos.
O homem que se ergue das lajes e expõe a voz ao Sol, fá-lo consciente
da memória, recusa a certeza do futuro, assume a dívida para com o
outro.
A voz que desligou o televisor acredita na ruptura. É ridícula.
E assume-o .
(…)
FIGHT–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
Vá, limpa-te (estende-lhe um lenço).
Obrigado.
O que é que te aconteceu?
Eu ia para casa. A meio da tarde. O caminho que eu faço todos os
dias. No meio do bairro (o Fight estende-lhe outro lenço). Obrigado.
Eles são uns miúdos… devem viver ali perto. É incompreensível…
assim de repente…”isto é um assalto” e eu “um assalto como?” e
Visões Uteis
Capítulo 10
eles… TUNGA (gesto de porrada com as mãos)… murros, pontapés. É
incompreensível. Coitados!
90
90
FIGHT–
Coitados!?
OPTIMISTA–
Sim, coitados.
MENTIRA–
Sim, coitados!
OPTIMISTA–
São só uns miúdos… deviam estar na escola e andam para aí a
assaltar pessoas a meio da tarde (recebe o pacote de açúcar que o Fight
lhe estende).
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
FIGHT–
OPTIMISTA–
É incompreensível.
E a culpa é nossa (engole o açúcar).
Toda nossa.
Nós é que não somos capazes de criar espaços para que estas coisas
não aconteçam. Um espaço para o desporto… natação…
Uma piscina Olímpica!
… atletismo…
Uma pista de tartan!
… sei lá… arte, cultura, computadores…
Um centro multimédia!
É incompreensível.
Vá! Levanta-te! Estás inteiro? Vai, vai para casa, toma um duche.
Acho que sim (levanta-se e anda um bocadinho na direcção de onde veio.
Depois volta-se e aponta para o lugar da agressão). Eles bateram-me com
muita força.
Os três olham uns para os outros.
MENTIRA–
Pronto, eu vou contigo.
Saem juntos. Fight fica sozinho.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Memória
Em Berlim visitámos fugazmente as praças novas que nasceram depois da
queda do Muro. Reparámos que estavam vazias de gente e cheias de edifícios
imponentes e espelhados. No atelier do arquitecto Daniel Libeskind, Nina
esforço para unir a cidade foi até ver inglório porque não se soube dar voz à sua
memória. Disse que não se pode nem deve apagar a História de uma cidade.
Falou-nos da importância de preservar a memória e a História das comunidades e
da sociedade, para que não se perca a identidade e seja mais fácil construir o
futuro. Este tem sido, aliás, um dos pilares que sustentam os projectos de Daniel
Libeskind: construir novos edifícios bem assentes na memória do local, com
raízes profundas na filosofia e na História da comunidade a que se destinam. Dias
mais tarde, na conferência em Aachen, Daniel libeskind realçava o facto do seu
projecto do Museu Judeu de Berlim estar inscrito no seu destino a partir do
momento em que decidiu vir para a Alemanha. Não por uma questão de nostalgia
mas pelo acto fundamental de comunicar a importância dos judeus na História da
Alemanha. Era preciso um edifício que comunicasse com um público novo, que
não sabe nada sobre aqueles acontecimentos, e ele fê-lo.
Nina Libeskind falou-nos do impacto que este abafar da memória tem na vida
das pessoas:
NINA LIBESKIND–
Acho que é preciso que as pessoas vivam com a sua História e
aprendam a lidar com ela de uma forma aberta e íntegra. E isso não é
fazer de “Juiz Judeu”, é exactamente o contrário: significa lidar com a
História de uma forma filosófica e o mais humana que conseguirmos.
(…) Todo o judeu que vem a esta cidade e vê uma pessoa mais velha
faz as contas: seria das SS ou da Wehrmacht… por isso torna-se
mais fácil à medida que o tempo vai passando…. mas é preciso
ultrapassar isso.
(…)
Aquilo que eles fizeram na Potsdamerplatz acho que foi uma
oportunidade perdida, acho-a extremamente feia e nunca vou lá. Não
tenho interesse nenhum em lá ir e não é por o Daniel e eu sermos
ideólogos mas… quer dizer a minha filha que tem doze anos vai lá ao
cinema e mais nada. Na Alexanderplatz não se passa nada porque
Visões Uteis
91
Libeskind falou-nos de como Berlim continua a ser uma cidade dividida. O
Capítulo 11
92
mais uma vez fizeram tábua rasa, o que acho que é uma ideia
estúpida, ineficaz e completamente insensível para a História daquele
lugar. E, claro, eu e o Daniel tomámos uma posição bastante distante
acerca do modo como a cidade se poderia ter desenvolvido– e é uma
oportunidade perdida– mas não podemos desesperar.
(…)
Acha que esta “nova” Berlim, que é a capital da Alemanha e de certa
forma a capital da Europa, e esta estratégia, vai afectar de alguma
forma o modo como a Europa vê a sua História e a sua identidade?
NINA LIBESKIND–
Bem, é difícil saber. Neste momento esta geração de alemães está
extremamente cuidadosa acerca do seu papel na Europa. A
Chancelaria, que é um edifício monstruoso, é incrível– o Albert Speer
não poderia ter feito um edifício tão mau como este– verdade, é
inacreditável! E esse edifício é assustador! E todos os edifícios antigos
dos nazis: o ministério do interior, o ministério das finanças… todos
eles foram perfeitamente reconstruídos. Não era o que eu nem o Daniel
faríamos com a História, nem o que pensamos que é a História, mas é
o que eles estão a fazer. Irá isso ter algum impacto na forma como as
pessoas se vêem a elas próprias? Certamente que sim!
92
JOÃO MARTINS–
(…)
Claro que ninguém quer a sua cidade separada por um muro para
sempre! Mas apagá-lo!? E agora tentar reconstrui-lo é absurdo! Claro
que deviam ter deixado alguns bocados, é uma parte importante da
História da cidade. As crianças querem vê-lo! Temos de lhes ensinar o
que foi e o que significou. O primeiro sítio onde os turistas americanos
vão é o Checkpoint Charlie. E foi demolido e tiveram que o
reconstruir no ano passado porque todos o queriam ver. Por isso não é
um problema de dificuldade mas sim de como é que se ajuda as pessoas
a lembrar e se lhes dá algum optimismo. O que aconteceu aqui foi
puro imperialismo, pelo menos com os berlinenses ocidentais: apaga-se
o muro, apaga-se Berlim Oriental, nada dessa História importa para
nada. O que mais interessa ao Daniel é isso mesmo: como mostrar a
História, como preservar a História, como interessar as pessoas pela
História, como manter a memória viva, como construir a memória.
São coisas que não interessam à maior parte dos arquitectos mas que
a ele interessam genuinamente. E é algo que se tem perdido nesta
cidade e ela tem mais História do que a maior parte das cidades…
(…)
JOÃO MARTINS–
Onde é que acha que está agora a fronteira física? Para onde é que se
moveu? Se é que está nalgum sítio…
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Memória
NINA LIBESKIND–
Eu diria que está seis polegadas debaixo do chão e seis polegadas
acima do chão. Acho que é aí que está. É aquilo que não se vê mas
onde tropeçamos na nossa memória. E é aí que ainda existe.
Alguns textos que tínhamos lido no início deste projecto adquiriam assim, à luz
destas conversas e da experiência dos Libeskind, um novo sentido:
A Sociedade de Irmãos, Robert Bly
“Eu não sei o que o futuro nos reserva. Não sei se a Europa vai evoluir bem ou mal.
Nunca estive optimista, se se entender por isso a certeza de que tudo vai acabar bem.
Nem pessimista. O futuro está em aberto. Há indicadores em todas as direcções. É
sempre necessário trabalhar para encorajar a esperança.”
Vaclav Havel, Jornal Público, 2001
Ao longo da viagem outros convidados expressaram também uma preocupação
por essa perda de memória, esse atropelar da História a que se tem assistido– o
caso de Berlim é aliás apenas um exemplo mais imediato pela proximidade no
tempo. Thomas Liolios falou-nos da importância da memória no despoletar da
questão macedónia, e Theo Angelopoulos coloca a memória no centro do seu
pensamento sobre o mundo.
THOMAS LIOLIOS–
Se se quer construir um estado não se pode assentar os alicerces numa
mentira, ou pelo menos em algo que não é claro. As pessoas que lá
vivem não dizem, naturalmente, que vivem na Macedónia Grega, nem
podiam dizer. E não se trata de um problema de raça ou sangue, aqui
não existem essas coisas, é estúpido pensar nisso. Mas eles são eslavos,
chegaram aqui depois do século XVI, vivem numa zona que se
chamava Macedónia– a Macedónia englobava toda esta zona, aliás
era aqui a capital, e uma zona mais acima, até ao sul de Skopje–,
mas não pode basear um Estado numa mentira porque a História
está sempre mais à frente à nossa espera.
(…)
Visões Uteis
93
“Para milhões de homens e mulheres irmãos de hoje, o ambiente mental comum consiste
numa espécie de ingratidão generalizada. (…)
Deparei pela primeira vez com a ingratidão da cultura de irmãos quando era estudante
universitário em 1947. Os meus professores deitaram abaixo a minha auto-estima
recordando-me, com razão, que eu nada sabia. Por outro lado, porém, fiquei satisfeito
por saber que, enquanto moderno, era superior a todos os meus antepassados (e aos
vossos).”
Capítulo 11
94
94
THEO ANGELOPOULOS–
As pessoas nascem para viver em liberdade, para terem livre escolha.
O mundo é feito de pessoas que tentam racionalizá-lo. O problema das
comunidades actuais é serem sociedades que não sonham. Não está
apenas ausente a perspectiva histórica que daria a ideia do Socialismo
de há um século atrás, mas também estão ausentes os sonhos. Sonhar
qualquer coisa, mesmo que seja uma utopia, põe o mundo em
movimento. É com pequenas e grandes utopias que se faz o mundo. O
paraíso do Cristianismo é uma utopia… algo que está para lá da
vida, que não se vê. E é assim com todos os “ismos”.
(…)
Porque é que a minha mãe aos noventa e quatro anos via televisão
para ver notícias? Como é que isso lhe podia interessar? Mas ela
olhava e comentava. Somos curiosos pelo que vem aí e pelo que veio
antes. Por isso é que a História do passado é uma necessidade
natural.
Neste momento há uma grande polémica em França criada por
pessoas que dizem que a História não existe, só existe o hoje, o
amanhã, o depois. O que é que nos interessa o que aconteceu ontem?
Isto não tem cabimento porque o que se passou ontem condiciona o
presente. Como compreender o presente sem o passado… não é um
tipo de nostalgia, o passado é um estudo do presente.
(…)
ANA VITORINO–
THEO ANGELOPOULOS–
Mas não há um pouco o paradoxo destes homens que estão sempre a
examinar o passado da Humanidade ou mesmo do seu próprio país,
mas que têm quase uma repulsa de examinar o seu próprio passado?
Depende de como vemos o passado… por exemplo, se falarmos de
filmes ou de livros que falam de um período do passado, quem os filma
ou escreve fá-lo com o olhar de hoje, a não ser que faça uma obra
absolutamente histórica, de modo científico. Seja um filme que decorra
no passado, seja um que decorra nos dias de hoje, o que é importante é
o sentimento que dele emana, o “feeling”. A actualidade não depende
do cenário, depende dos sentimentos e das situações.
Um filme que fala do passado não existe se não falar do presente
através do passado. Há uma questão curiosa que é a própria noção de
tempo. Há diversas filosofias em torno da noção de tempo. Para os
asiáticos, por exemplo, não existem estas três dimensões
Passado/Presente/Futuro. O passado é presente e o futuro também.
Creio que foi Santo Agostinho quem disse que o rio que olhamos
agora é presente e futuro e passado, porque no espaço mínimo de…
milésimos de segundos… é já… outra coisa.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Memória
Os nossos convidados tiveram sem dúvida o condão de dar corpo a certos
conceitos e certas questões que estavam na origem deste projecto. Quando Nina
e Daniel Libeskind nos falaram da sua ida para a Alemanha e da sua visão para
uma arquitectura que integre o indivíduo e a memória colectiva do local, quando
Thomas Liolios nos falou sobre o medo e o perigo de construir algo sobre uma
mentira, ou quando Theo Angelopoulos nos falou sobre a noção de tempo,
começámos a perguntar até onde é que este alheamento da nossa História nos
95
poderá levar.
ORADOR–
A sociedade perdeu o passado.
Pomos quanto somos no mínimo que fazemos mas não herdámos nada
de ninguém. Mantemos a suspeição imbecil em relação às ideias,
religiões e artes do passado.
A verdade porém, é que cada ser humano está endividado para com os
demais, para com as suas raízes mais profundas, para com a
Natureza.
Mas a máquina do alheamento é perigosa.
Cada um de nós individualmente recusa-se a aceitar fazer parte de
qualquer massa que seja pois, no íntimo, todos possuímos uma
maquineta de desprendimento que nos permite reagir com ironia e
espírito crítico de cada vez que participamos num congresso, num
mega-concerto ou nalgum acontecimento desportivo de vulto.
Essa cassete diz-nos que não pertencemos a massa alguma e que cada
um de nós é genuinamente individual.
Visões Uteis
96
O Pior Outro
É na nossa incapacidade de lidar com a memória que os desencontros entre
iguais se geram. O outro face ao qual nos encontramos e a quem queremos a todo
96
o custo virar as costas é quase sempre gerado numa qualquer página da História
que não conseguimos virar. Mas ao longo da viagem foi-se tornando claro que há
um Outro ainda pior– o vizinho. Nada é tão simultaneamente forte e
incompreensível como o que nos separa do vizinho do lado.
Na Bélgica dividida entre Flamengos e Valões, à conversa com Sara de Roo dos
STAN, começámos a perceber o padrão do Pior Outro.
NUNO CASIMIRO–
Eu gostava de perguntar se Bruxelas é de facto um outro país dentro
da Bélgica… uma terra de ninguém, uma terra de todos, uma terra
europeia.
SARA DE ROO–
É muito difícil. Para começar é a única cidade da Bélgica, cidade a
sério. E é lá que tudo se junta, deixando de pertencer a cada um, e é
isso que faz de Bruxelas uma cidade estupenda. Mas apesar de ser
como que a capital da Europa, para o nosso pequenino país é um
problema, ninguém sabe o que fazer com ela. Por outro lado pode
dizer-se que é Bruxelas que mantém o país unido, tal como a família
real no Reino Unido. Porque para nós o sul do país, a parte
francófona, é completamente estrangeiro. É mais fácil sermos
convidados para representar em Portugal do que no sul da Bélgica.
Nós nunca representámos no sul da Bélgica.
CARLOS COSTA–
SARA DE ROO–
Porquê?
É uma questão política. A Flandres é mais rica do que a Valónia.
Nós dividimos melhor o nosso dinheiro e além disso os valões têm uma
pesada herança industrial que agora têm de reconverter. São duas
culturas diferentes, duas Histórias diferentes, e há o proteccionismo
próprio de quem se sente ameaçado pelo outro. No sul dizem-nos:
“Não venham cá, vocês já têm muito dinheiro e nós não vamos dar-vos
mais, fiquem aí, e ainda por cima estão a conquistar Bruxelas, vão
embora”. E nós pensamos ao contrário: “Andaram séculos a
colonizar-nos, não nos deixavam falar a nossa língua, agora deixem-se
estar onde estão”. E é claro que assim não se vai a lado nenhum– e o
problema é mais complicado do que isto– vejam que há uma zona, à
volta de Bruxelas, onde a lei regula minuciosamente o uso de cada
língua.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
O Pior Outro
NUNO CASIMIRO–
SARA DE ROO–
SARA DE ROO–
CARLOS COSTA–
SARA DE ROO–
CARLOS COSTA–
SARA DE ROO–
Eu acho que é um luxo um país ter duas culturas tão diferentes. Os
meus pais sãos flamengos convictos, são de uma geração diferente, em
que os ricos e importantes falavam Francês, em que se formavam dois
grupos no recreio, e esta é a História deles. Eu não penso que a minha
geração sinta a necessidade de se defender, eu pelo menos não sinto, não
sinto essa necessidade de definir fronteiras. Eu frequentei a escola na
minha língua, pude falar Flamengo em todo o lado, fui respeitada na
minha língua e cultura, o que quer dizer que me posso abrir à cultura
dos outros e às outras pessoas, sejam elas de Portugal ou do sul do meu
país. E acho que é uma fantástica combinação de culturas, é a
combinação entre o mundo Germânico e o mundo Romano num só
país, e ao que parece não conseguimos ver essa vantagem, ou melhor
consegue-se mas… politicamente é muito difícil… há uma
diferença…se calhar o melhor era separarmo-nos completamente para
depois nos podermos ver com novos olhos: “Temos vizinhos, que bom,
entrem por favor!” Enquanto que agora vivemos no mesmo país e nem
sequer nos damos uns com os outros.
E as companhias do sul da Bélgica actuam no norte?
Não as conheço… estou a brincar… quer dizer… será que estou
mesmo… conheço uma… conheço uma porque trabalhou com uma
companhia flamenga que eu conheço… realmente é um desastre, uma
catástrofe!
São só cem quilómetros…
Quando fizemos “O Inimigo do Povo” decidimos apresentá-lo em
Bruxelas, o que até era perigoso pois podia ser mal entendido. As
apresentações seriam num teatro flamengo, porque Bruxelas é uma
cidade dividida, não geograficamente mas mentalmente, há duas
comunidades, dois povos vivendo juntos de uma forma separada, os
franceses não se relacionam com os flamengos. Ainda assim há alguns
teatros que tentam uma programação mista… de qualquer forma a
verdade é que fizemos “O inimigo do Povo” em Francês num teatro
flamengo e na plateia só havia flamengos; porque as pessoas que falam
Francês nunca iriam a um teatro flamengo, são dois mundos. Mas há
teatros que tentam mudar isso, como aquele onde costumamos ir,
fazendo programações mistas e com legendas.
Nos STAN são todos flamengos?
Claro…
Visões Uteis
97
CARLOS COSTA–
Eu tenho a sensação que noutros estados que integram nações
diferentes– na Espanha, por exemplo– as pessoas têm sempre a
sensação de haver um denominador comum, algo que as une. Mas na
Bélgica ainda não percebi se é assim ou se anda toda a gente a fingir
que há algo comum quando não há.
Capítulo 12
CARLOS COSTA–
SARA DE ROO–
É certo que quem vive em Bruxelas tem um afecto maior pela cultura
romana, está mais habituado a falar Francês, muda de língua com
grande facilidade, é mesmo bilingue, e isso é algo de muito especial.
CARLOS COSTA–
Mas achas que as preocupações de uma companhia de teatro de Liège
serão muito diferentes das de uma companhia daqui de Antuérpia?
SARA DE ROO–
Acho que não, quem faz teatro faz basicamente sempre a mesma
coisa, em qualquer parte do mundo. Ainda assim acho que a tradição
do teatro francês– e falo desta por a conhecer melhor do que a do sul
do meu país– sofre um bocado com “a declamação”– e isso é um
grande obstáculo quando se trabalha um texto– e na Flandres temos
um tradição diferente, de importantes criadores, que inspirou toda uma
geração de fazedores de teatro. E é isso que faz a História desta ilha
que é a nossa língua, é um bocadinho a História da nossa pequena
comunidade. Mas a verdade é que não sei o suficiente sobre a História
da outra comunidade.
98
98
Claro…
CARLOS COSTA–
Ao fim e ao cabo é como se fosse natural saber menos dos outros por
serem outros, mas depois saber ainda menos por serem, de todos os
outros, os mais próximos. É estranho…
“É sempre assim. A grande fronteira é sempre com o nosso vizinho e falamos sempre
dela, entre vírgulas, como se não existisse.”
Notas de viagem/Antuérpia, 27 de Maio, Carlos Costa
A conversa com Sara de Roo fez-nos regressar inevitavelmente às palavras de
Thomas Liolios:
THOMAS LIOLIOS–
Os albaneses têm uma cultura diferente, não é melhor ou pior mas é
diferente, têm valores diferentes, e quando nos juntamos temos
problemas. Vou tentar exemplificar isto. Quando as fronteiras se
abriram milhares de albaneses começaram a entrar, milhares durante
vários dias, e nós abrimos as nossas casas, demos comida, roupa,
trabalho. E, de repente, eles começaram a roubar, a tirar coisas,
quando queriam alguma coisa, pura e simplesmente, pegavam nela.
Para mim isto é roubar, para a cultura deles não, trata-se de outra
coisa porque eles têm outra escala de valores. Como povo eles são-nos
muito próximos, costumamos dizer que gregos e albaneses são primos,
irmãos não, mas primos sim. São pessoas muito espertas, aprendem a
falar Grego com facilidade, em poucos dias, são uma gente orgulhosa,
bons trabalhadores, mas têm esta diferente maneira de pensar que nos
levanta muitos problemas.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
O Pior Outro
Foi na Grécia que mais falámos sobre as crises latentes com os vizinhos. Seja a
crise com a Macedónia, explicada por Thomas Liolios, seja a fortíssima imagem
da fronteira com a Turquia de que nos falou Theo Angelopoulos e que inspirou o
seu filme “O Passo Suspenso da Cegonha”.
THEO ANGELOPOULOS–
Em Berlim encontrámos o exemplo mais emblemático de convivência com o
Pior Outro”. Os Libeskind, casal judeu que decidiu ir viver para Berlim, são um
exemplo invulgar do que é lidar quotidianamente com esta barreira.
NINA LIBESKIND–
Mas a nossa decisão de virmos para aqui foi um choque enorme para
todos: o bebé tinha dez semanas, os nossos filhos tinham dez e doze
anos de idade. E tivemos de lidar com o facto de grande parte da nossa
família se recusar a vir a este país, e ainda recusa. Mas uma das lições
mais importantes que aprendi foi o que isto significou para mim, vir
para aqui. Primeiro que tudo aprende-se imenso acerca de nós próprios
quando se vem para um país novo, não sabes falar a língua, não
percebes onde fica a paragem de autocarro. Mas acima de tudo foi o ser
judia nesta cidade e estar com o bebé no carrinho e todos os velhotes
alemães quererem pegar nele ao colo e fazer uma festinha… lidar com
isso. E as nossas famílias… eu tenho um irmão que na altura era
embaixador canadiano das Nações Unidas e que ficou à frente da
UNICEF e nós encontrávamo-nos em Maastricht e noutras
fronteiras mas nunca na Alemanha. Agora já vem. (…) Claro que é
mais fácil viver aqui agora do que há doze anos atrás por que a velha
geração está a morrer e é mais fácil quando vemos todas as pessoas na
rua e respiramos melhor.
(…)
Desculpem-me por falar em
Inglês mas só utilizo o Alemão em casa, nunca em público.
DANIEL LIBESKIND (na abertura da conferência em Aachen) –
Visões Uteis
99
Andámos um pouco nessa ponte e o coronel mostrou-me (como no
filme) três linhas: uma linha azul, que era o fim da Grécia, uma
linha branca, a linha neutra, e a linha vermelha, que era o começo da
Turquia. Ele pôs o pé na linha branca. O soldado que estava em
frente ficou inquieto e avançou com a metralhadora. O coronel disseme: “Se dou mais um passo estou no outro lado, onde morro”.
Capítulo 12
No espectáculo “Estudos” já nos tínhamos debruçado sobre as terríveis marcas
100
100
da História e sobre a dificuldade do perdão.
“Senhoras e Senhores:
Do alto desta tribuna, olho em volta e vejo apenas um deserto. Quase não há vida aqui.
Não há água, não há um poço, nem uma nascente, apenas campos minados.
Assim foram as nossas relações nos últimos anos: um deserto. Nem um monte verde,
nem árvores, nem sequer uma única flor.
Chega uma hora em que é necessário ser forte e tomar decisões corajosas, vencer os
campos minados, a seca, a esterilidade entre os nossos dois povos.
Nós estamos destinados a viver juntos no mesmo solo, na mesma terra. (…) Temos que
perdoar a angústia que causámos uns aos outros, limpar os campos minados que nos
dividiram durante tantos anos e substituí-los por campos de abundância.
Do alto desta tribuna, olho em volta e vejo-vos: à nossa geração e à próxima. Nós
somos aqueles que vão transformar este lugar estéril num oásis fértil.
Queremos abrir um novo capítulo no triste livro das nossas vidas conjuntas, um capítulo
de reconhecimento e respeito mútuo, de boa vizinhança, de compreensão.”
Estudo nº1
Durante a viagem tropeçámos em inúmeros exemplos de má vizinhança, fruto
das contradições de quem não sabe viver com o seu passado. Seja o passado
colonialista, seja o dos conflitos que se perdem na História relativos à afirmação
das diferentes nacionalidades, e que parecem ser a causa última de pequenos
ódios de estimação.
Em França o fosso que separa os franceses dos imigrantes árabes tem marcado
a agenda política.
JOSEPH DANAN–
Se levarmos em conta a grande parte da população, o medo real é dos
imigrantes… mas também aqui é preciso ser prudente, não é toda a
gente e estamos a falar de um recuo em relação ao que existia antes.
Vimos como a extrema-direita ganhou terreno e agora recuou… o
medo do imigrado acalmou um pouco agora, mas a verdade é que pode
rapidamente voltar.
Talvez os dois pólos do medo do outro em França (penso que o da
Alemanha já foi superado) sejam estes hoje: Estados Unidos de um
lado e imigração do outro (sobretudo magrebina). A Europa
constituiu-se como agregado de potências colonizadoras e através da
negação de populações que não eram europeias. Isso é algo que está
abafado mas que continua activo, e que reencontramos nesse medo do
imigrado.
A violência que explode nestes subúrbios, com jovens magrebinos e
africanos, é o resultado dessa repressão. Tudo o que é reprimido pode
voltar a explodir-nos na cara.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
O Pior Outro
E os ingleses continuam a alimentar o seu “ódio de estimação” pelos Franceses,
como se percebe à conversa com Ramin Gray.
RAMIN GRAY–
NUNO CASIMIRO–
ANA VITORINO–
No conteúdo ou na forma?
Principalmente na forma… Há mesmo uma grande diferença de
forma entre as peças francesas e as outras. Os franceses não sabem
escrever peças… porque estão constantemente a fugir do real… querem
escrever poesia… são muito frios.
Sempre os franceses….
RAMIN GRAY (rindo)– Eles
têm um verdadeiro problema… e ainda por cima gastam
mais dinheiro a apoiar arte do que qualquer outro país… e no
entanto não têm nada para mostrar… pelo menos eu acho que não…
é uma pena.
(…)
Eu dirigi uma peça em França e na altura pensei: “Vou ser directo
com eles e dizer-lhes para apenas “fazerem” a peça.” Eu pensei que
seria um alívio para eles e que iriam ficar contentes por não terem de
ouvir o encenador falar durante dois dias… E então começámos e eles
ficaram muito confusos, odiaram e perderam a confiança em mim
porque não falei com eles aquelas tretas de “Para mim a peça é isto e
isto e blá, blá…”. Foi um desastre… Passadas três semanas tive de
falar com eles de uma forma “intelectual” e ficaram a olhar e a acenar
com a cabeça.
Acabámos por reconhecer que encontramos em nós mesmos, que não tivemos
um único convidado espanhol neste projecto, este virar de costas aos vizinhos.
CATARINA MARTINS–
SARA DE ROO–
CATARINA MARTINS–
Esta viagem não trata apenas de fronteiras mas também da
confrontação com outros criadores e da possibilidade de os entender e de
permitir que eles nos entendam a nós, e dessa forma abandonar uma
ideia, muito forte em Portugal, de que somos especiais por sermos
poucos; não é verdade, somos muitos…
Isso acontece em todos os países…
Mas em Portugal é pior porque só há o oceano e a Espanha!
Visões Uteis
101
RAMIN GRAY–
Consegue perceber-se a diferença entre uma peça alemã e francesa
muito facilmente… ou italiana… têm identidades muito fortes.
Capítulo 12
SARA DE ROO–
É um título bonito: “O oceano e a Espanha”…
102
O Pior Outro– que afinal é quem está aqui mesmo ao lado– provoca uma
comichão sob a pele, uma reacção química aparentemente incontrolável, que já
tinha sido assunto do espectáculo “Estudos” e que durante a viagem encontrámos
algo caricatamente num artigo de jornal. É uma reportagem publicada pelo “La
102
Repubblica” sobre um condomínio da periferia de Milão, uma grande construção
dos anos sessenta onde habitam quatrocentas famílias, cerca de mil e duzentas
pessoas. A reportagem descreve uma assembleia de condóminos onde, por entre
tumultos, demissões e apelos patrióticos, se tenta, sem grande sucesso, discutir os
problemas comuns. Um cardiologista de Roma aconselha todos aqueles que
sofram de problemas cardíacos a evitarem a tensão de uma assembleia de
condóminos; afirma que é muito frequente que o coração não resista a estas
reuniões. O problema é de tal forma específico que até já o baptizou: Angina
Condominialis.
E foi sob esta forma que acabámos por espelhar o Pior Outro no espectáculo
“Orla do Bosque”.
Fight faz ginástica com pesos, com uma máscara relaxante nos olhos.
FIGHT–
A minha casa está quase perfeita.
Algumas pessoas podem dizer que eu… exagero… mas pouco me
importa. Aquilo que eu consegui está perto da realização total do ser
humano. (…) É claro que… há um problema. Um problema grande.
Um problema com que eu não contava e que estraga tudo. Ratos.
Tenho um problema de ratos.
Tenho ratos a passearem sobre a minha cabeça, pelas escadas acima e
abaixo, na garagem, no jardim da frente. Não consigo deixar de os
ouvir… sobretudo à noite, quando a ratazana mor chega e se deixa
cair na cama e ouvem-se aqueles… queetch! (imita o som da cama a
ranger quando os vizinhos fazem sexo). Apanho muitas vezes os
ratinhos pequeninos escondidos nas escadas– quando os vejo eles
saltam e fogem aos gritinhos… e o cheiro que vem lá de cima!!! O
cheiro baço e acre da ninhada que se junta ao Domingo, a comerem
que nem uns alarves, a acordarem-me com os guinchos horríveis que
saem dos seus… (com desprezo) gravadores com Dolby Surround!
Surround??? (grita) Vocês sabem lá o que é Surround!!!!!
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
O Politicamente Correcto
Em Bruxelas, na sede Parlamento Europeu, à conversa com Vasco Graça
Moura voltámos a tema do “Politicamente Correcto”, sobre o qual o tínhamos
ouvido falar meses antes na conferência “A Viagem das Ideias”. Tentámos
exacerbada de constante atenção às palavras que usamos e gestos que fazemos.
Vasco Graça Moura contou, a este propósito, a historia verídica de uma criança
que, depois de se ter magoado, recusou tratar a ferida com um spray desinfectante
por este poder fazer mal à camada de Ozono. Esta era no fundo uma outra faceta
do Politicamente Correcto: já não se trata só do medo de sermos julgados pelos
outros e do medo de aviltar alguma fronteira visível ou invisível, mas sim da
deturpação do pensamento, levando ao extremo aquilo que até poderia ser um
bom princípio, mas que assim se torna absurdo. Se antes tínhamos medo de agir
mal, tendo opiniões “incorrectas”, agora quase que já nem somos capazes de
pensar…
Durante a viagem íamos ouvindo uma canção dos Monthy Python, “I”m so
worried”, que reflecte exactamente esta preocupação que, passando para o
domínio do irracional, nos impede de agir tanto sobre o que achamos bem como
sobre o que achamos mal:
“Estou tão preocupado com o que se passa hoje
No Médio Oriente, sabes.
E estou tão preocupado com o sistema de entrega de bagagens
Que eles têm em Heathrow
Estou tão preocupado com as modas de hoje
Acho que não fazem bem aos pés
E estou tão preocupado com os programas de TV
Que às vezes eles querem repetir
Estou tão preocupado com o que se passa hoje, sabes
E estou tão preocupado com o sistema de entrega de bagagens
Que eles têm em Heathrow
Estou tão preocupado com a minha queda de cabelo
E o estado do mundo hoje
Estou tão preocupado por ter tantas dúvidas
Acerca de tudo
Visões Uteis
103
perceber as limitações à livre expressão e acção provocadas pela necessidade
104
104
Capítulo 13
Estou tão preocupado com a tecnologia moderna
E estou tão preocupado com todas as coisas que eles deitam no mar
Estou tão preocupado, estou tão preocupado
Preocupado, preocupado, preocupado…
Estou tão preocupado com tudo o que pode correr mal
Estou tão preocupado em saber se as pessoas gostam desta canção
Estou tão preocupado com o próximo verso
Não é dos mais felizes
Estou tão preocupado sem saber se devo continuar
Ou se não será melhor parar
Estou tão preocupado em saber se devia ter parado
E estou tão preocupado porque este é o tipo de coisas que eu devia saber
E estou tão preocupado com o sistema de entrega de bagagens
Que eles têm em Heathrow
Estou tão preocupado em saber se devia mesmo ter parado
Estou tão preocupado por andar aqui com estes rodeios
E estou tão preocupado com o sistema de entrega de bagagens
Que eles têm em Heathrow”
No espectáculo “Orla do Bosque” tentámos mostrar o absurdo a que de facto
estamos sujeitos quando somos dominados por essa incapacidade de traçar o
limite entre uma boa causa ou bom princípio e algo em que acreditamos apenas
porque está na moda, sem verdadeiramente compreendermos do que se trata.
ORADOR–
Acreditamos em valores em que não confiamos. Contemplamos as
nossas crenças com cepticismo.
Comovemo-nos tanto diante das tragédias do Médio Oriente e dos
vários Kosovos do globo como ao vermos as imagens do beijo
apaixonado do casal do ano.
Preocupamo-nos com a nova economia, os peixinhos do mar e a
camada do Ozono ao mesmo tempo que desesperamos com a queda de
cabelo, as cores para a próxima estação e o sistema de auriculares do
Alfa Pendular.
Acompanhamos de perto as tragédias dos clandestinos nas mãos de
máfias internacionais e os desaires amorosos de imbecis vedetas de
TV.
(…)
A Mentira dança na praça.
ORADOR–
Somos todos juízes e somos todos culpados, uns perante os outros.
Todos cristos à nossa reles maneira, crucificados um a um. Sempre sem
saber.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
O Politicamente Correcto
Miss Cool entra e observa-a. Começa a entrar na dança e tenta aproximarse. Subitamente a Mentira cai ao chão.
MENTIRA (agarrando-se à perna) – Aiiiiiii!
MISS COOL (aproxima-se assustada) – O
MENTIRA–
que foi? Aleijaste-te? Estás bem?
Que estupidez! Ia a andar e tropecei e… AUUU!!! (mostra a perna à
MISS COOL–
105
Miss Cool)
Que horror! Estás a sangrar! Espera, espera, já sei o que vou fazer!
Miss Cool afasta-se. Volta com um spray desinfectante. Debruça-se sobre
a Mentira para lhe aplicar o spray.
MENTIRA (afastando-se subitamente)– AAAAAAAAAAAIIIIIIIIIII!!!!!!!
O que é que estás a fazer??
MISS COOL–
Eu? Estava a …
MENTIRA (gritando)– Tu
és louca? Tu sabes o que isso é?
MISS COOL (rindo)– Claro,
isto… oh, não é laca nem nada do género! Isto é
mesmo para pôr nas feridas! Pensaste que eu me tinha enganado?
Não! Isto é um…
MENTIRA–
MISS COOL–
É um spray! É o que é! Um spray! Tu não pensas, não tens
consciência?
Tenho, mas o que é que tem…?
MENTIRA (exaltada)– ASSASSINA!
Tu não sabes que é por causa dessa
porcaria dos sprays que a atmosfera está a ser destruída? São pessoas
como tu que põem o ambiente em perigo! Tu não sabes o mal que isso
faz? Sabes de que tamanho está o buraco da camada do Ozono?
TRÊS VEZES o tamanho da Amazónia, percebes?! Por causa
desses sprays! Ao pé de mim tu não usas essa porcaria!
Mentira levanta-se e começa a afastar-se coxeando.
MISS COOL–
MENTIRA–
Mas… tu estás a sangrar…
E depois? Qual é o problema? É sangue, é, olha… (besunta a cara
com o sangue da ferida), olha, pronto, sangue por todo o lado! Prefiro
sangrar hoje um bocadinho do que daqui a uns anos os meus netos não
poderem respirar e morrerem queimados! Percebes? Deita essa porcaria
fora! Vamos, deita fora!
Visões Uteis
Capítulo 13
Miss Cool deixa cair o spray.
106
MENTIRA–
106
MISS COOL–
MENTIRA–
MISS COOL–
MENTIRA–
MISS COOL–
MENTIRA–
MISS COOL–
Isso! Viste, o que fizeste foi muito importante. Tu podes ajudar a
salvar este planeta, não percebes?
Eu… eu admiro-te muito! Tu és mesmo muito corajosa.
Oh, não sou nada… agora chego a casa, trato disto… não custa
nada…
Não, tu és muito corajosa! São pessoas como tu que estão a salvar este
mundo!
Como NÓS! Não te esqueças disso! Tu podes fazer a diferença.
Oh, achas?… não sei…
Claro. Vais prometer-me que chegas a casa e deitas os sprays todos
fora, está bem?
Está bem. Força!…adeus. Cura-te!
Mentira afasta-se a coxear e sai.
Optimista entra e atravessa a praça com um hamburguer e um pacote de
batatas fritas na mão. Miss Cool vê-o e fica chocada.
MISS COOL (grita)– AH!
Optimista pára abruptamente. Miss Cool aproxima-se dele a tremer de
indignação.
MISS COOL–
O que é que tu estás a fazer?
OPTIMISTA–
Estou.. a comer.
MISS COOL–
Ah! A comer? A comer?? Cospe isso! Cospe imediatamente!
Optimista cospe a comida que ainda tinha na boca.
MISS COOL–
Tu não estás a comer! Isso não é comida! Tu estás maluco? Sabes o
que é isso?
OPTIMISTA–
… sim, é um hambúrguer e umas batatas… eu não tive tempo para
almoçar e…
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
O Politicamente Correcto
Isso NÃO SÃO batatas! Isso é uma… mistura química qualquer
que eles fazem! E… e isso não é carne! Eles não usam vaquinhas
nem… não são animais, são uma espécie de… que crescem todos…
argh! (pega na comida e pousa-a no chão, longe dele)
OPTIMISTA–
Não me digas que acreditas nessas histórias!
MISS COOL–
Como é que tu és capaz? Tu não tens consciência?
OPTIMISTA–
Oh, pá, eu estava com fome e não tive tempo, estava ocupado com a
campanha do pepino e… eu nem costumo lá ir…
MISS COOL–
ASSASSINO!
OPTIMISTA–
O quê?!
MISS COOL–
São pessoas como tu que dão cabo deste… do mundo! Tu não sabes
que esses tipos dão cabo das florestas todas? Tu sabes de que tamanho
está a camada do Ozono? Sabes? Está… TRÊS VEZES do
tamanho do… está assim, mesmo grande, estás a ver? Imensa! Por
causa de pessoas como tu!
OPTIMISTA–
Mas eu só lá fui desta vez! Não tive tempo… eu nunca lá vou!
MISS COOL–
Só uma vez, só uma vez! É quanto basta! Sabes quantas pessoas já
lá foram a dizer que só lá vão uma vez? Milhares!!
OPTIMISTA (grita)– Mas
MISS COOL–
que disparate! Eu não tenho culpa se…
Pronto, calma. Senta-te e acalma-te. (ajuda-o a sentar-se no banquinho
deitado no chão) Pronto. Agora vomita.
Fight entra. Fica a ver a cena, depois dirige-se à comida no chão.
OPTIMISTA–
O quê??!!
MISS COOL–
Sim, vomita. É o mínimo que podes fazer depois de ter ido lá!
OPTIMISTA–
Mas eu não consigo…
MISS COOL–
Mete os dedos à boca! Nem isso és capaz de fazer?
OPTIMISTA–
Pronto, eu tento… (tenta vomitar)
MISS COOL–
Não eras capaz de ficar um dia sem almoçar? O que é que te custava?
Há pessoas que fazem sacrifícios tão grandes por este mundo!
Visões Uteis
107
MISS COOL–
OPTIMISTA–
Estou a ficar mal disposto!
MISS COOL–
E os teus filhos? Em que planeta é que vão viver?
OPTIMISTA (enjoado)– Não
consigo…
MISS COOL–
Há pessoas que sangram, percebes? Sangram e vão para casa todas…
(imita o coxear da Mentira)… e tu nem és capaz de… nunca pensei…
OPTIMISTA–
De que é que tu estás a falar?
MISS COOL–
Eu preferia passar fome a comer aquela… (aponta para o sítio onde
108
108
Capítulo 13
deitou fora a comida. Fight está parado a seguir a conversa e a comer as
batatas fritas) AAAAAAHHHHH!!!! É escusado, é escusado!
Assim não dá! ASSASSINOS!!!!
Miss Cool vai saindo.
MISS COOL–
Fica sabendo que estou fora da campanha do pepino. Agora vou
dedicar-me à campanha a favor de… à campanha do buraco do
Ozono.
OPTIMISTA–
Não podes fazer isso, não podes mudar de um dia para o outro! O
pepino é mais importante!
MISS COOL–
O mundo é muito mais importante! Sem mundo não havia pepino!
Miss Cool sai.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Mentira
Há um mal estar com o mundo que nos persegue constantemente e nos faz
mover. Sabemos que está tudo muito errado. Vamos perdendo a casa, a língua e a
História, criamos inimigos onde devíamos ver aliados, as palavras que dizemos e
as batalhas que lutamos perdem sentido todos os dias. Sabemos que tudo isto são
faces de uma mesma moeda. Só não sabemos é que nome dar a essa moeda e é
por isso muito mais complicado falar dela; denunciá-la. E eis que Gregory
Motton, sentado no sofá da sua sala, diz o óbvio e mais simples, como só sabe
dizer quem tem uma lucidez e capacidade de análise fora do vulgar: é a Mentira. E
tudo começa a fazer sentido. A Mentira é imediatamente adoptada na escrita e nas
conversas.
“Motton revela-se o autor politicamente empenhado que nos tinham apresentado.
Alguém que sofre violentamente com o estado das coisas, com a mesquinhez do cidadão
comum, “de esquerda, de direita ou galinha, de acordo com a moda” e fala da grande
mentira que o capitalismo impõe, da substituição da religião pelo consumismo, dos
heróis pelas celebridades.”
Crónicas de viagem, Nuno Casimiro
CATARINA MARTINS–
Motton chama-lhe a “tirania da Mentira”. Havia a tirania da
brutalidade, hoje é esta.
ANA VITORINO–
Ficou mais difícil, porque a brutalidade é facilmente identificável, é
fácil dizer aos outros “estou a ser agredido, ajuda-me”. Hoje não
sabemos o que combatemos…
JOSEPH DANAN–
Já não há ideais revolucionários…
ANA VITORINO–
Tornaram-se anedotas, as pessoas são antiquadas se falam disso, de
ideais, de heróis… não é cool. Essa ideia muito americana de ser
cool.
CATARINA MARTINS–
Motton diz que se uma pessoa hoje tentar ser revolucionária, o sistema
vai chamá-la de fascista ou perversa. Revolucionária não, porque isso
agora é uma palavra do sistema. Todos são revolucionários…
Visões Uteis
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ideia de comunidade, a memória vai-se apagando sem que aprendamos com a
Capítulo 14
110
110
NUNO CASIMIRO–
É um pouco como quando vemos hoje todas estas t-shirts com o Che
Guevara!
JOSEPH DANAN–
Sim, é muito chocante!
CARLOS COSTA–
Penso que é um pouco o problema de Motton, não pode escrever
usando palavras de que o sistema se apropriou…
Olhando para trás tornou-se claro que a Mentira tinha ocupado grande parte
das nossas reflexões desde o espectáculo “Estudos”, em cujo programa dizíamos,
a propósito do Estudo n.º3 :
“Eles estão por todo o lado e baralharam com tal perversidade, ou pelo menos egoísmo,
as ideias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que se torna cada vez mais difícil
reconhecer onde está o bem e onde está o mal; e fizeram-no com tal mestria que às vezes
trememos de pavor ao descobrir que até estamos a concordar com eles. Eles que fazem o
que é certo pelos motivos errados pelo que não fazem o certo mas o errado. Pavor porque
o mal existe e estamos tão adormecidos pelo seu brilho, pela sua cor, que o confundimos
com o bem. Estamos tão preocupados em respeitar as conquistas de Abril ou da
Revolução Francesa, que perdemos o discernimento e a capacidade de definir aquilo que
claramente está mal e que por isso deve ser combatido, sem falinhas mansas, sem panos
quentes, o que está mal muda-se. Temos que ter inimigos. Sem eles não temos amigos.”
Já na viagem Emma Bonino nos tinha falado da necessidade de clarificar
posições.
EMMA BONINO–
O problema é que há uma diferença entre, por um lado, o compromisso
e o diálogo e, por outro lado, o comprometimento. Eu considero-me
uma pessoa dialogante, uma pessoa com quem se pode chegar a um
acordo, mas há certos níveis de compromisso, o tal comprometimento,
para os quais não estou disponível. Podemos envolver-nos na ajuda
humanitária mas temos sempre a obrigação de distinguir entre agressor
e agredido. Timor Leste é um caso clássico, ajuda-se naturalmente toda
a gente, mas a verdade é que houve um agressor e um agredido, e é
preciso compreender isso ainda que ambos devam ser ajudados. Um
soldado ferido merece ajuda humanitária mas é preciso distinguir quem
esteve do lado de Milosevic e quem não esteve, e é esta falta de clareza
na política internacional que a mim não me agrada.
A indefinição de posições é conseguida e é simultaneamente fruto da
deturpação da linguagem que esvazia de sentido as palavras. Um jogo perigoso
que já estava presente nos no espectáculo “Estudos”; lembramos as palavras de
Belmiro de Azevedo na entrevista à revista Visão…
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Mentira
“Sempre fui um rebelde e tive muito respeito pelos que vivem mal. Sou muito
empreendedor e a minha filosofia é tirar o máximo do sistema capitalista, que é o que
gera mais riqueza e dá mais liberdade às pessoas, até para serem criativas, e dividir ao
máximo essa riqueza, pagando os melhores salários possíveis ao maior número possível
de pessoas. Não gosto dessa ideia de solidariedade, no sentido de dar, para resolver um
problema imediato. Gosto de criar emprego, para dignificar a pessoa humana.”
EMPRESÁRIA–
111
… que nós não resistimos a pôr em cena:
Eu compreendo… Eu também sempre fui uma rebelde e há um certo
tipo de jogos e conveniências com os quais não seria capaz de
compactuar. Eu sou uma pessoa de acção, sou muito empreendedora e
a minha filosofia é tirar o máximo do sistema capitalista, que é o que
gera mais riqueza, que dá mais liberdade às pessoas e que mais
dignifica a pessoa humana. E eu sempre tive muito respeito pelos que
vivem mal. Eu sou, em suma, uma liberal com preocupações sociais.
Neste discurso é claramente visível uma outra face da Mentira: a crença
inabalável de que caminhamos no “bom sentido”. Crença essa que a realidade
devia desmentir.
THEO ANGELOPOULOS–
O círculo vicioso de miséria continua, a criminalidade é a consequência
directa, a prostituição, a droga… tudo.
Mas é gente pobre… e a pobreza é algo que eu respeito. A pobreza
desta gente que…. não foi só o Socialismo que criou pobres. Foi o
Cristianismo, foram todos os ismos… Mas são pessoas que têm
necessidades, e mesmo que aumentem a criminalidade, etc., etc., elas
são vítimas das mudanças operadas no mundo de hoje.
Vejam que a história dos Balcãs não termina! Depois da Bósnia foi o
Kosovo e agora é a ex-Macedónia. Continua… E vocês sabem melhor
que eu o que se passa em África…
Então, num mundo que muda aparentemente para melhor, mas que
no fundo não muda (porque eu não sei o quanto a vida das pessoas de
facto melhorou com as conquistas tecnológicas)… sim, há uma parte
de pessoas na Europa que hoje vive melhor, mas há uma parte que
não.
Há um claro esvaziamento de sentido nas acções e nas palavras que habitam o
nosso quotidiano. E este esvaziamento deixa-nos sem referências. Ridiculariza a
luta e cria falsos heróis.
Visões Uteis
112
Capítulo 14
“Talvez não existam hoje heróis por não haver quem se predisponha à ferida, essa
ferida de que fala Luca Nicolaj como sendo o destino do Herói, aquilo que o faz sofrer
(ou mesmo morrer) mas que simultaneamente faz dele um ser extraordinário ao dar-lhe
um sentir da Humanidade e a oportunidade do sacrifício.
Hoje os "grandes" actos fazem-se empunhando uma caneta ou premindo um botão.
Hoje os que se fazem de heróis expõem a sua humanidade como uma ferida que fingem
partilhar corajosamente com os outros.”
112
Notas de viagem/Roma, 13 de Maio, Ana Vitorino
“Silvio Berlusconi enviou uma bonita revista a todos os italianos para que o possam
conhecer melhor. Um dos textos por si assinados é dedicado ao seu pai; de forma simples
e tocante recorda os Domingos passados em família, fala da missa, do almoço preparado
pela mãe, da ida ao futebol com o pai e da capacidade de sonhar. Qualquer um de nós
se reconhece inevitavelmente naquelas palavras, pelo que forçosamente será tentado a
olhar Berlusconi com a bondade reservada aos que nos são queridos.
Esta forma de estar na política enoja-me profundamente. Domingos de mão dada com a
família todos nós temos. Eles nada acrescentam à nossa capacidade de fazer algo de
relevante pela Pólis, isto é, não nos distinguem em nada de ninguém. E ainda assim eles
há que insistem em atirar-nos à cara com as fotografias amarelecidas da infância, na
esperança que as lágrimas nos turvem a visão e nos impeçam de ver o vazio das suas
propostas. Nos impeçam de compreender que eles não têm nada para nos dar e que
apenas procuram a melhor maneira de tirar o que precisam.”
Notas de viagem/Parma, 9 de Maio, Carlos Costa
“O Everest já não é o que era. Há muita gente no cume. Foi o que eu vi, muita gente.
O problema é que tudo se comercializou muito e agora se tiveres 40.000 USD, dois ou
três sherpas pegam em ti e levam-te lá cima. As pessoas não têm vergonha nenhuma e
põe Oxigénio desde os 6.200 metros. Subir com Oxigénio pelo trilho normal do Everest
não devia ser importante. Este ano subiram ao Everest 170 pessoas e só sete é que
fomos sem oxigénio. (…) Hoje em dia o Everest é subido por um sherpa de 16 anos,
um alpinista cego, um torto, quis subir um sem pernas… E ainda assim há gente que
“quebra” porque se cansa e tem que acampar a 8.500 metros. Sobem pessoas que, na
melhor das hipóteses, o máximo que subiram foi o Monte Branco e que daí saltaram
imediatamente para o Everest. (…) Este ano bateram-se todos os recordes de cume,
mas havia corda fixa desde o acampamento base até mesmo ao cume.”
Entrevista do alpinista espanhol Oiarzabal ao jornal “A Marca”
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Mentira
No espectáculo “Orla do Bosque” a Mentira e a sua denúncia foram,
naturalmente, temas centrais:
ORADOR–
(…)
Precisamos de mais concentração para comer uma refeição do que para
ver televisão e, quando a vemos, ficamos passivos e tensos, sem
qualquer capacidade de concentração. A televisão debita um
amontoado disforme de lixo criteriosamente produzido. Serve à la carte
o mais abjecto material sexual obsessivo, descrições coloridas de
brutalidades e atrocidades várias, análises técnicas e profusamente
documentadas das mais sangrentas experiências e vivências, numa
avalanche de informação que atordoa a mente. Serve-nos o mundo em
função de shares, patrocinadores e directores de marketing.
Simultaneamente, mostra-nos o nosso cantinho cor de rosa embrulhado
no pacífico romantismo das revistas do Jet7.
Leva-nos a crer que um dia estaremos nós no ecrãn, milionários,
lendas de cinema e estrelas de rock. Mas é mentira.
Lentamente, vamo-nos apercebendo disso.
Vamo-nos apercebendo que o céu azul é um cartão pintado pelo
publicitário, o mago encarregue de nos fazer desejar aquele carro, com
aquelas roupas.
A publicidade é a máquina do desejo. Leva-nos a ter empregos que
detestamos para comprarmos as merdas de que não precisamos.
As coisas que possuímos acabam por nos possuir.
Nós não somos o dinheiro que temos. Nós não somos o carro que
guiamos. Nós não somos o conteúdo da nossa carteira.
Talvez aqui termine o reino da publicidade, na realização do seu
maior fantasma: não servir para mais nada, apenas para a promoção
de si própria.
Visões Uteis
113
Hoje vivemos no pior e mais violento de todos os regimes: vivemos no
reino da Mentira. Ela está em todo lado e em todo o tempo. Tão
assustadora e poderosa como os reinados de barbárie e terror que a
História conserva.
Está no marasmo geral que reveste as opiniões assépticas, o
politicamente correcto que alicerça o diálogo.
A Mentira distribui quatrocentos canais temáticos para que cada um
tenha a sua televisão e se sinta especial dentro da família espartilhada
pelas divisões da casa. Feliz como num anúncio de detergentes.
A Mentira escorre na verborreia serena dos opinion makers,
construtores da realidade dos seus botões.
Promove a solidão imensa da fuga ao confronto consigo próprio, com os
outros, com o passado.
Somos todos originais por usarmos todos as mesmas sapatilhas, as que
se anunciam como sendo especiais.
Capítulo 14
(…)
114
MENTIRA–
OPTIMISTA (sem olhar para ela)–
MENTIRA–
114
Não funcionou?
OPTIMISTA–
Não.
O que é que correu mal?
Não sei… eles não me ouviram ou não perceberam!
MENTIRA (puxando de um bloco e de uma caneta)–
Mas porquê? As pessoas não
estavam preparadas?
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
Não, acho que não é isso… elas estão preparadasEntão foi o seu discurso que foi desadequado? Não soube mobilizar as
pessoas! Ou elas simplesmente não se interessam? É isso que está a
dizer?
Não, não é isso, elas interessam-seEntão o que está a dizer? O que é que conseguiu dizer a estas
pessoas? Que mensagem passou?
A mensagem foi…
Nenhuma, não é? Não houve qualquer comunicação. Só violência!
Não, aqui não houve violência…
Esta questão tem alguma coisa a ver com esta comunidade? Quantas
pessoas tem de facto este movimento? Sabe? Não sabe? Ou não quer
dizer? Sabe e não quer dizer? Quer dizer mas não sabe? Ou não sabe
e não quer dizer?
Eu acho que…
A verdade é que hoje não conseguiu mobilizar ninguém, certo? Não
houve nenhuma acção popular de protesto!
OPTIMISTA (resignado)–
Não…
(…)
A Mentira dança “La Mentira”, de Manu Chao, na praça, sujando o que
Optimista foi varrendo.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Mentira
115
“Mentira lo que dice
Mentira lo que da
Mentira lo que hace
Mentira lo que va
Mentira la mentira
Mentira la verdad
Mentira lo que cuece bajo la obscuridad
Mentira el amor
Mentira el sabor
Mentira la que manda
Mentira comanda
Mentira la tristeza
Cuando empieza
Mentira no se va
Mentira, mentira
La mentira
Mentira no se borra
Mentira no se olvida
Mentira, la mentira
Mentira cuando llega
Mentira nunca se va
Mentira la mentira
Mentira la verdad
Todo es mentira en este mundo
Todo es mentira la verdad
Todo es mentira yo lo me digo
Todo es mentira porque será?”
(…)
ORADOR–
A mentira adoptou o rebelde e o radical como conceitos prêt-à-porter,
esvaziando-os de sentido, transformando-os em arquétipos inócuos, em
caricaturas.
Escoou as palavras que a podiam magoar.
Visões Uteis
116
O Local
Em Londres, numa varanda do Royal Court, falámos com Ramin Gray acerca
do que é fazer e escrever teatro em diferentes partes do globo. Quais as
116
diferenças, quais as semelhanças mas também o que é que se escreve e representa.
Ramin Gray era a pessoa ideal para esta discussão, não só porque faz parte de um
painel que recebe e lê peças de todo o mundo enviadas para o Royal Court, mas
também porque já tínhamos trabalhado juntos, na altura em que encenámos uma
peça de Gregory Motton, e sabíamos que tinha uma posição crítica acerca da
exportação do modo inglês de fazer teatro. No meio da conversa surgiu a ideia de
Local por oposição a uma universalidade que parece estar na moda e que, muitas
vezes, pouco ou nada tem a ver com uma necessidade real dos artistas.
RAMIN GRAY–
TODOS–
RAMIN GRAY–
O problema de ser local é que ninguém o quer ser. Toda a gente quer
ser internacional… E isso leva-nos ao início desta conversa, não é?
Falámos de fronteiras… E nós gostamos de fronteiras, não gostamos?
Sim…
E gostamos de “local” e “particular” e “específico”, não é verdade?
(…)
É obvio que se formos a um país como a Índia ou o Uganda ou a
Palestina… é totalmente diferente. Quer dizer, não existe nenhum
ponto em comum porque as tradições de escrita teatral nesses locais são
muito diferentes. A cultura é muito diferente. É o mesmo que conhcer
um indiano e um ugandês… nunca os confundirias. Já na Europa e
na América as coisas são diferentes… podemos ler uma peça
espanhola e uma grega e já não ver a diferença. Principalmente porque
muitos escritores utilizam o modo de escrever inglês como modelo–
porque se produzem muitas peças em Inglaterra– e às vezes são versões
do modo como se julga que os escritores ingleses escrevem. Se acham
que escritores como a Sarah Kane ou o Mark Ravenhill estão a
escrever coisas violentas e chocantes… eles vão escrever peças violentas e
chocantes com sexo explícito. E às vezes torna-se difícil saber se é uma
imitação grega de uma peça inglesa ou uma imitação espanhola de
uma peça inglesa…
CARLOS COSTA–
Mas achas que eles fazem realmente isso ou fazem-no porque têm a
mesma idade da Sarah Kane e partilham os mesmos problemas?
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
O Local
RAMIN GRAY–
RAMIN GRAY–
CATARINA MARTINS–
RAMIN GRAY–
Eles dizem isso de si mesmos?
Os críticos é que dizem isso. Dizem que eles escrevem segundo o
modelo britânico dos “novos brutalistas”! Estão a ver? Há um
movimento internacional que teve início em Londres e podemos ver essa
influência de uma forma muito clara.
E o que é que tu achas disso?
Acho que é triste. Acho que as pessoas deviam ter a sua escrita
própria e local. Local é uma palavra brilhante e não pode desaparecer
do teatro. Aparecerem coisas simultâneas é óptimo e interessante, mas
tem de ser por acaso e não um objectivo em si ou uma celebração.
Dias mais tarde, já em Paris, confrontámos Joseph Danan com esta ideia da
necessidade de ser “local” para assim atingir uma universalidade, lembrando as
palavras de Gregory Motton que garantia que se descrevesse a sua mãe ao
pormenor estaria a descrever todas as mães do mundo:
JOSEPH DANAN–
Se queremos ser universais, temos grandes probabilidades de nunca
conseguirmos, porque é uma abstracção. Mas se falarmos daquilo que
conhecemos bem, do local… isto serve não só para o plano social mas
também para o plano do íntimo: se falarmos de nós mesmos, temos
todas as hipóteses de atingir uma universalidade que nem sequer
procurávamos ou premeditámos. Para falar de si ou do mundo, o
escritor descarta-se de tudo o que é anedótico, pitoresco; o escritor tem
uma intuição e sabe que há coisas que não são interessantes e talvez
seja isso que faz a diferença.
Visões Uteis
117
CATARINA MARTINS–
Bem, alguns dos escritores dizem coisas como: Adoro o “Shopping and
Fucking” do Mark Ravenhill e o “Closer” do Patrick Marber ou o
“Blasted” da Sarah Kane… Eles conhecem essas peças! Por isso não
é como se de repente começassem a escrever assim. Na Índia não
escrevem peças assim… porque não as conhecem, não as leram. E
também porque as condições sociais na Índia são muito diferentes das
inglesas. E depois há escritores como o Jon Fosse, que para mim é um
escritor contemporâneo muito importante, que não tem nada a ver com
a tradição teatral britânica, e que escreve sobre aquilo que sabe e se
passa em Bergen na Noruega. É muito específico e muito local. É
como um queijo raro que só existe num sítio… todos o descobriram e
acham especial. E ele faz algo diferente da cena britânica.
Eu trabalho no departamento internacional e tivemos uma ligação
importante com um grupo alemão que tinha um pequeno teatro em
Berlim onde fizemos muitas leituras das nossas peças, e agora há uma
nova geração de escritores alemães que fazem aquilo a que se chama
“peças de esperma e de sangue”.
Capítulo 15
Esta discussão sobre o Local não se resumiu ao papel da arte. Foi antes o
118
despoletar de uma reflexão sobre esta caminhada para a perda de identidade do
indivíduo e das comunidades a que se assiste hoje em dia à força de uma
globalização que, em vez de criar novos espaços, novas ideias e novas liberdades,
118
dissolve tudo num mesmo caldeirão de descaracterização que leva à indiferença
pelo outro e ao desinteresse pela comunidade. É tudo tão “internacional” e
“acessível” e “fácil de adaptar à nossa realidade” que essa realidade deixa de ser a
nossa para passar a não ser de ninguém, como ilustrámos no espectáculo “Orla
do Bosque”:
MENTIRA (guardando o bloco e a caneta)–
OPTIMISTA (virando-se para ela)–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
MENTIRA–
OPTIMISTA–
E agora qual é o próximo passo?
Vou… falar com as pessoas…
Como?
Indo a casa delas se for preciso.
Bater de porta em porta? Mas isso nunca mais acaba! Há meios mais
rápidos, mais abrangentes e mais eficazes, sabias?
Mais rápidos? Como?
Mails. Uma cadeia de mails.
Correio electrónico? Se calhar… não, não, isto é um problema local,
quem é que quer saber disto fora daqui?
Local? Nada é local. Tu tens de sair dos limites desta terrinha
pequena e onde ninguém te compreende. Tens de arranjar interlocutores
a sério. Mete o pepino na net.
Achas?
Claro! Num instante chegas a milhares de pessoas em todo o mundo.
Aqui não te ouvem, tudo bem. É preciso uma certa distância para
compreender o problema; as pessoas daqui estão demasiado próximas,
conhecem-te há anos, não te vão ligar nenhuma. Amanhã há um tipo
em Los Angeles, outro na China e outro na Austrália, todos
preocupados com o pepino. É tão fácil!
Se calhar tens razão… basta escrever… uma cadeia de mails!
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
O Local
MENTIRA–
Claro! Não precisas de sujar tudo, nem dar cabo da roupa… fazes
tudo do escritório. É barato e chega a todo o lado! Vais ver, as
pessoas envolvem-se em qualquer treta que venha por mail!
É isso. É uma bela ideia. Acho que vou
começar a tratar disso. Só preciso de escrever a mensagem… se calhar
até podia escrever em inglês…
OPTIMISTA (já a falar consigo próprio)–
119
Visões Uteis
120
A Uniformização
No início deste projecto tínhamos falado de Fronteira como a marca de uma
diferença que assusta, que ameaça e nos põe em causa. Quando iniciámos esta
120
viagem preparámo-nos para encontrar o “lado bom” da fronteira. Partíramos à
procura das diferenças que nos reforçariam a nossa ideia de identidade e o
sentimento de sermos portugueses antes de sermos europeus, nesta grande casa
que se quer cada vez mais comum.
Em Inglaterra, quase no final da viagem, Gregory Motton dava o nome de
Mentira a esse inimigo invisível da criatividade e da individualidade, mas ia ainda
mais longe: acusava os interesses económicos de tentarem apagar as diferenças
para assim vender mais. Tornar Londres igual a Berlim, igual a Lisboa, igual a
Nova Iorque. Ter os mesmos produtos em todas as lojas e as mesmas lojas em
todos os sítios. Dar destaque à criança exigente e infantilizar o adulto. Ditar a
moda, que tanto pode ordenar que sejamos punks, desportistas ou… galinhas,
porque não? Nivelar idades, gostos e nacionalidades. Para assim nos transformar
em melhores consumidores.
E era inquestionável que encontrávamos os mesmos franchisings, os mesmos
outdoors, as mesmas afirmações de “Sê tu próprio– usa o que todos os outros
usam!” por todo este bocado de Europa que atravessámos.
Gregory Motton expressava assim uma revolta que encontrámos em “Fight
Club”, a obra de Chuck Palahniuk que transforma a consciência do jovem adulto
consumista e narcisista dos nossos dias num alter ego simultaneamente assustador
e sedutor, acutilante na sua exposição da Mentira:
TYLER DURDEN–
Sabes o que é um édredon? É um cobertor. Não passa de um
cobertor. Sabes porque é que pessoas como tu e eu sabem o que é um
édredon? É alguma coisa de essencial para a nossa sobrevivência,
enquanto caçadores-recolectores? Não. Então que raio somos nós?
Consumidores. Somos produtos derivados da obsessão de um estilo de
vida. Assassínio, crime, pobreza– nada disso me importa. O que me
importa são revistas de personalidades, televisões de quinhentos canais
e ter o nome de um gajo qualquer escrito nas cuecas. Rogaine. Viagra.
Olestra.
(…)
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Uniformização
Eu proponho nunca nos sentirmos completos. Eu proponho pararmos
de ser perfeitos. Proponho que evoluamos. E o que tiver de ser, será.
A uniformização não fora tema espectáculo “Estudos”. Mas na construção do
Estudo n.º3, o fantasma de uma globalização económica que ignora os mais
básicos valores humanos e a acção uniformizante dos média marcavam já
EMPRESÁRIA–
HERÓI–
EMPRESÁRIA–
121
presença no discurso da personagem da empresária:
Eu não podia concordar mais consigo. Nada me revolta mais que a
incapacidade de certas pessoas, algumas até com grandes
responsabilidades, de olhar à volta. E é por isso que defendo que a
verdadeira resolução dos problemas passa por uma visão de conjunto
que permita um desenvolvimento sustentado. Mais, salta à vista que
hoje, com a globalização, não é possível agir sem essa visão de
conjunto. A verdade é que a globalização faz aumentar a riqueza de
tal modo que os países pobres já podiam estar bastante melhor. E o
desenvolvimento desses países é também do interesse dos países ricos
que precisam deles como mercado e os deviam ajudar. Claro que há
outros problemas: os países pobres não são solidários entre si, não
ajudam, há imensa corrupção… e nem sequer sabem ser manhosos.
(pausa) Por exemplo, a nossa área de influência estende-se hoje aos
quatro cantos do mundo. Já operamos em três continentes e estamos a
tomar medidas para chegar à Ásia, o grande continente do futuro…
Ásia?
Sim, a Ásia. Dentro de cinquenta anos a Ásia deve ter cerca de
metade da população mundial. É um imenso mercado.
Silêncio. Mal estar.
EMPRESÁRIA–
Eu sei que as pessoas ainda têm uma certa dificuldade em aderir a
este tipo de discurso. Em perceber o que está realmente em causa. Se
bem que mais tarde ou mais cedo, as pessoas acabarão por
compreender. Aliás, é inevitável.
(…)
HERÓI–
Tudo isto me incomoda porque eu sei que há pessoas verdadeiramente
excepcionais a quem ninguém liga nenhuma, que ninguém conhece.
São essas pessoas que deviam estar agora a ter atenção. Eu conheço
um homem que nasceu numa aldeia perdida no meio do deserto, depois
foi para fora, fez a sua vida, e anos mais tarde voltou para tentar
salvar a aldeia. E sabe porquê? Porque há uma duna gigante que está
a avançar na direcção da aldeia e que a vai devorar. Vai desaparecer
Visões Uteis
Capítulo 16
122
122
tudo, é como se nunca tivesse existido. E ele está lá a tentar sozinho
parar aquela duna. A plantar palmeiras que segurem as areias. Ou
seja, pessoas que diariamente…
EMPRESÁRIA–
Onde?
HERÓI–
Como?
EMPRESÁRIA–
HERÓI–
EMPRESÁRIA–
HERÓI–
EMPRESÁRIO–
Onde é que disse que fica essa aldeia?
No Norte de África. Mas quem diz este…
E como é que se chama?
O homem?…
Não, a aldeia. Mas o homem também. (estende-lhe papel e caneta)
Escreva aí o nome das duas coisas.
Herói pega no papel e na caneta.
EMPRESÁRIA–
Escreva, escreva…
Herói escreve.
Eu trato disto. Este homem vai ser ajudado, já
a partir de amanhã. Nós vamos tratar disto. Nós já temos muitos
meios no Norte de África. Pomos lá as palmeiras que forem precisas
num instante. Aliás, o deserto tem imensas potencialidades de
investimento que muitas vezes são descuradas. E quem diz palmeiras
diz tamareiras, não é?… Ou outras árvores de fruto que se possam
organizar em pomares. Isso depois vê-se no terreno. O que interessa é
resolver o problema, não é? Parar a duna! E de uma coisa pode ter a
certeza: o seu nome vai ficar para sempre ligado a isto.
EMPRESÁRIA (tirando-lhe o papel) –
Descobriríamos em viagem que os nossos convidados não eram alheios ao
avanço dos tentáculos deste “polvo” do poder económico e à sua acção
niveladora. Em Itália, na Grécia e na Bélgica íamos recolhendo os indícios da sua
preocupação, ao mesmo tempo que, um pouco por todo o mundo, milhares de
pessoas se preparavam para se manifestar em Génova contra a globalização.
CARLOS COSTA–
THEO ANGELOPOULOS–
Acha que o futuro vai ser o fim de tudo o que é diferente?
Eu acho que vai ser a uniformização. Acho que é isso que sentem os
jovens que reagem em Seattle contra a globalização, é o medo da
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Uniformização
uniformização! A tentativa de fazer clones geneticamente, por
exemplo, é outro pesadelo.
Mas é sempre difícil encontrar um equilíbrio entre esse medo da
uniformização e a necessidade de ligar as pessoas, encontrar caminhos
comuns…
THEO ANGELOPOULOS–
Mas eu penso que a diferença das civilizações, na Europa, é uma
riqueza! É uma riqueza para o continente. Se não a tivermos, é uma
parte da riqueza da civilização europeia que se terá perdido.
(…)
NUNO CASIMIRO–
SARA DE ROO–
A rua com todas as lojas de roupa, que vem da estação de comboios, é
igual a uma que temos no Porto.
É igual a uma que há em todo o mundo
(…)
ANDREA GAMBETTA (COOPERATIVA EDISON)– Esse
é um problema complicado, que se liga
às enormes possibilidades que os media têm e à grande
responsabilidade que tem quem os usa. Este grande potencial que têm
cai, finalmente e na maioria das vezes, na massificação. Ou seja, ele
não tende a levar propostas concretas a um nível mais elevado, mas a
um “achatamento”. Isto é uma coisa muito perigosa.
Devo dizer também que está a mudar lentamente a formação das
pessoas. Por exemplo, uma criança que antes brincava com as outras,
jogava à bola, etc., convivia desde logo com um conjunto de regras de
grupo a que estava obrigada e debatia-se com a necessidade de
relacionamento com os outros. Um rapaz que hoje, porque os pais não
têm tempo, é posto à frente de um televisor a ver desenhos animados ou
joga com o game-boy, não terá estas coisas. E quando finalmente for
obrigado a relacionar-se com os outros, isso será mais difícil.
Penso que a consciência deve levar-nos a fazer escolhas, e é isso que
distingue o homem do animal, a capacidade de escolher, mas sei que é
difícil. Quero dizer, eu não tenho filhos mas não deve ser fácil; a partir
do momento em que todos os outros têm game-boys, o teu filho fica a
ser o diferente porque é o único que não tem, é uma outra
“guetização”.
Depois é uma questão de, ao atingir um mínimo de maturidade,
oferecer-lhe estímulos diversos… esta foi uma das coisas que me
levaram a trabalhar de um certo modo, eu ensinava computação
gráfica numa altura em que ainda havia pouco disso e se tivesse
dedicado a minha vida a isso hoje seria ainda mais rico. Mas não era
o que mais me interessava, interessava-me partilhar com outros um
Visões Uteis
123
CARLOS COSTA–
Capítulo 16
124
124
projecto que mais tarde, felizmente, veio a dar resultados positivos.
Também se perdem grandes batalhas.
O colapso da ideologia está ligado a uma série de pontos de referência
que eram importantes e que agora… agora estão na moda valores
ainda mais simples: um carro grande, roupa bonita, os sítios que se
frequenta… e que definem se estamos in ou out.
É lógico que é uma espiral perigosa, até porque não é um problema
europeu mas um problema planetário. O facto de 90% da energia ser
utilizada num quinto do planeta… é difícil partilhar esta riqueza
entre todos, há gente rica porque há outra gente pobre… mas dizer
estas coisas não está muito na moda hoje em dia.
Um pouco por todo o lado parecia existir a consciência de que um estilo de
vida vazio de valores e pleno de mensagens publicitárias contraditórias se
impunha pela força dos interesses económicos. Mas quão longe estamos de
cairmos nas malhas dessa manipulação comercial? Até que ponto já nos deixámos
arrastar para uma existência estressada que nos apaga os sonhos, o desejo, a
intimidade?
Enquanto fazíamos a nossa viagem, circulava por correio electrónico uma lista
de “Sintomas de viver no ano 2001” e, entre eles, lia-se:
“Nunca jogaste solitário com cartas verdadeiras
Tens uma lista de 15 números (de casa, do escritório, de telemóvel, do bip) para ligar a
toda a família composta por 3 ou 4 elementos
Falas várias vezes com uma pessoa de Londres, Paris ou Nova Iorque, mas este mês
ainda só disseste ao teu vizinho “olá” e “adeus”
A maioria das anedotas de que te tens rido ultimamente chegaram-te por e-mail
É noite quando entras e sais do trabalho, mesmo durante o Verão
O buffet das reuniões (bolachas e café) faz parte da tua dieta equilibrada
“Férias” é um termo que conheces bem porque é aquilo que sempre adias para o ano
seguinte
Enquanto foste lendo esta lista ias admitindo que sim e ainda estás a sorrir
Estás a pensar em reenviar esta lista para todos os teus amigos ou conhecidos.”
Percebemos que a nossa opção de fazer arte hoje se ligava também, como no
caso de Andrea Gambetta, à recusa desse mundo materialista onde se formam
melhores consumidores e, consequentemente, piores cidadãos. Mas percebemos
também que “falar destas coisas não está na moda”; só não tínhamos a certeza se
isso se devia a uma recusa actual de qualquer tipo de radicalismos ou, mais uma
vez, à acção insidiosa da Mentira, que é quem, a cada momento, dita o que está na
moda.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Uniformização
JOSEPH DANAN–
Mais uma vez era interessante ver como, para um mesmo tema de debate, uma
preocupação comum, as reacções variavam tanto entre os convidados. As nossas
notas acabariam por reflectir estas diferentes posturas face aos eventuais perigos
da homogeneização.
“Não deixa de ser interessante comparar as perspectivas destes dois gregos acerca do
tempo em que vivemos.
Para Theo Angelopoulos, imerso na sua Atenas barulhenta e poluída na qual diz
sentir-se um estrangeiro, dividindo o seu tempo entre a Grécia que filma e o estrangeiro
que o solicita, para este homem melancólico que diz não ter casa, a Europa (como,
aliás, o resto do mundo) está num caminho descendente, numa “fase de trevas”, onde o
capitalismo exibe a sua arrogância, onde o lado utópico, sonhador, lúdico dos homens
vai sendo substituído pela busca do conforto fácil e as diferenças entre pessoas e
populações vão-se esbatendo e dando lugar a uma massa mais ou menos homogénea.
Visões Uteis
125
Penso que não devemos ser pessimistas. Eu também, há vinte anos,
diria o mesmo sobre a americanização do mundo, mas isso tem a ver
também com as minhas reservas em relação à ideia de Europa. O que
é a Europa? Não será, também, um pouco a América? É uma
cultura ocidental muito marcada pelos Estados Unidos!
Hoje eu não seria assim tão radical como Angelopoulos. Claro que há
alguma verdade no que ele diz, há uma grande parte de
uniformização. Encontrei em Munique, em algumas cidades de
Espanha e Itália, ruas que se assemelham, lojas iguais… o poder
económico é tal que em todo o lado encontramos nas lojas os mesmos
produtos. Em Dezembro estive em Évora e comprei uma prenda para
a filha de um amigo, fiquei muito contente e depois descobri que era
italiana! Fui a Portugal comprar uma prenda italiana para levar
para Paris! É difícil encontrar algo verdadeiramente português.
Mas, apesar desta uniformização evidente, cada país mantém
paralelamente uma cultura própria. Veja-se a culinária, a
arquitectura… é verdade que há uma tendência para a uniformização
da arquitectura, por exemplo. Há o risco de estarmos apenas a
preservar a cultura do passado, claro. A arquitectura é a do século
anterior, a culinária é uma tradição que se mantém, melhor ou pior,
apesar da McDonald”s… talvez. Temos que preservar, mas é um
pouco desesperante pensar que, na verdade, só estamos a fazer museus,
protecção do passado.
Se calhar cabe-nos a nós, enquanto artistas– isto é interessante, talvez
seja, no fim de contas, o sentido profundo do vosso projecto– estar ao
mesmo tempo abertos para a cultura dos outros países, estar atentos ao
que se faz lá fora, e atentos às nossas singularidades… mas não sei.
À medida que vos falo dou-me conta de como esta uniformização está
em marcha. Este é o paradoxo: temos vontade de nos abrir aos outros,
mas o risco é que, no fim, tudo fique parecido. Mas se for assim,
porque não? Se chegarmos a um ponto em que cada país guarda o seu
passado e tenhamos uma cultura europeia, se esse for o movimento da
História, porque seria isso assim tão mau?
126
126
Capítulo 16
Para Thomas Liolios, vivendo na calma da verdejante Véria mas vizinho próximo dos
conflitos balcânicos, preservando as tradições da região grega da Macedónia e convivendo
com a nova República da Macedónia cujo nome se recusa a reconhecer, tentando através
de uma programação cultural variada seduzir os jovens adultos a fixarem-se na sua
terra natal, para ele este é um bom tempo, uma oportunidade única de paz e debate
para a construção de uma Europa harmoniosa e rica de diversidade, uma época
privilegiada para preparar uma nova consciência de humanidade e de vida conjunta.
A verdade está no meio?
Vivemos num tempo de fio de navalha, num tempo de fronteira?”
Notas de viagem/Veria, 18 de Maio, Ana Vitorino
“Com um pé no Oriente que lhe fala de comunidade e um pé no Ocidente que defende o
indivíduo, Thomas fala de relação como a chave para tudo. Acredita que este é um
momento chave, o período em que tudo pode acontecer, e podemos caminhar para uma
vida conjunta com as fronteiras nos sítios certos– aquelas que dizem que todos são
especiais mas não nos separam. Quando ele fala, a uniformização é um monstro com
cara de império decadente, quase a ser substituído por uma pauta de música bizantina
onde se marcam as relações entre as notas e não há lugar para valores absolutos quando
se está só.”
Notas de viagem/Veria, 18 de Maio, Catarina Martins
“O Gregory não tem muita vontade de sair de casa, de deixar a família, de estar com
muitas pessoas, de ver televisão… e tem todas as razões para isso. Ele não é radical,
nem muito louco e muito menos anda a celebrar esta treta de mundo que nos impingem
nos Big Brothers e séries de TV. Ele tem medo… e tem razões para isso. Ele não sabe
para quem escreve ou até se alguém se importa. Diz que ainda é capaz de haver alguns
heróis por aí, estão é escondidos. Na sua última peça aparece uma personagem que é
Deus. O Deus do Gregory não tem nada de herói… tem medo, está cansado e receia
que os Homens o compreendam mal. Satã faz o trabalho sujo por ele e ambiciona
morrer.
O Diabo que nos carregue.”
Notas de viagem/Londres, 31 de Maio, Pedro Carreira
“Danan pergunta-se se o imperialismo americano já não o assusta como assustava,
porque nos últimos vinte anos percebeu que as diversas culturas europeias resistem, ou
porque já foi ele próprio tão colonizado que já lê o mundo com olhos de outros. Pareceme é que é impossível responder-lhe. E o optimismo com que parece lidar com tudo isto
atrai-me, mas assusta-me.”
Notas de viagem/Paris, 3 de Junho, Catarina Martins
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Uniformização
Este espectro variado de reacções seria importante para a definição das
personagens do nosso espectáculo final. Mas as diferentes expressões desta
uniformização apareceriam claramente identificadas em “Orla do Bosque”:
ORADOR–
(…)
A colonização acontece quando se quebram os símbolos e os elos que
definem uma cultura. Eis a situação em que nos encontramos. Somos
a primeira civilização na história da humanidade que se colonizou a si
própria.
Não temos um âmago que possamos amar.
Chegámos ao ponto em que é um acto de resistência ter uma família,
educar filhos, fazer opções, desligar o televisor.
Neste espectáculo, a imagem mais clara da abolição da diferença nasceria de
uma imagem de Gregory Motton, numa cena em que essa força que o autor
britânico baptizou de Mentira prova a capacidade humana de anular o desejo e a
dignidade na busca de uma aceitação fabricada.
Circundando a árvore, Miss Cool aproxima-se do centro da praça e pára. A
sua figura é monstruosa; tem colocados uns enormes óculos escuros,
dezenas de pulseiras chocalham-lhe nos pulsos, o cabelo está coberto de
molinhas coloridas, uns chumaços desproporcionais distorcem a figura do
seu tronco. Alheia ao seu aspecto ridículo, ela ensaia umas posturas
sensuais. A Mentira entra e pára ao fundo a observá-la. Lentamente
transforma a sua postura numa pose de galinha. Aproxima-se de Miss Cool
com passos galináceos e pára ao lado dela. Miss Cool fica a olhá-la com
estranheza.
MENTIRA–
MISS COOL–
MENTIRA–
Então, está tudo bem? Estás… esquisita.
EU estou esquisita??
O que é isso que tens vestido? Porque é que estás nessa figura? Já
ninguém anda assim!
Visões Uteis
127
A nossa capacidade de distinguir sabores anula-se pelo consumo
massivo da pasta homogénea que nos servem em diferentes cores mas
sempre com o mesmo aroma.
E é sempre bom sair, viajar para longe, mergulhar no exotismo das
paisagens. Ter a certeza que o postal mostra as ruas típicas sem
pedintes e que o hotel serve o mesmo whisky que há lá em casa. E no
fim, trazer aqueles sabonetes pequeninos. Para que todos saibam que
estivemos ali…
Capítulo 16
Ninguém? Mas ainda ontem… quer dizer, eu pensava
que agora… como é que as pessoas agora andam então?
MISS COOL (assustada)–
128
MENTIRA–
128
MISS COOL–
MENTIRA–
As pessoas agora já não vão em modas. As pessoas agora afirmam a
sua individualidade para pertencerem a uma comunidade. Já ninguém
vai atrás do que eles dizem!
Eles!?
Sim, eles, esta sociedade que te castra! Tens que dizer não, tens que te
afirmar!
MISS COOL (começando a imitar o andar, precisa de tirar as pulseiras)–
Estou a
perceber!
MENTIRA–
MISS COOL–
MENTIRA–
MISS COOL–
MENTIRA–
MISS COOL–
MENTIRA–
MISS COOL–
MENTIRA–
Recusa este mundo fácil. Descobre o teu estilo, sem pressões. O pescoço
assim. Procura lá no fundo quem és! Diz “Fui eu que escolhi”!
Foste tu que escolheste!
Não, foste TU, foste TU que escolheste!
Fui eu que escolhi! (retira os óculos)
Fui eu que escolhi! O queixo para cima. Sente o que estás a dizer!
Estou a sentir!
Mais alto.
Estou a sentir! Estou a sentir a galinha que há em mim!
Isso, afirma-te, ao princípio dói um bocadinho, descobre-te a ti
própria. É a tua individualidade que interessa.
MISS COOL–
A minha individualidade! (vai tirando do seu corpo os outros objectos
que a enfeitam) Que fixe, quer dizer que anda toda a gente assim
agora?
MENTIRA–
Não é toda a gente, é a comunidade de pessoas que se preocupam. Isto
não é mais uma moda, é uma revolução dos comportamentos!
MISS COOL–
Sim!
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A Uniformização
MENTIRA–
MISS COOL–
MENTIRA–
MENTIRA–
MISS COOL–
Este é o meu movimento natural! Meu e só meu!
Isso! Afirma-te! Tu vestes o que és, escolhes o que vestes, és o que
escolhes, escolhes o que és!
129
MISS COOL–
Isto não se pode imitar, tem de vir de dentro. Isso, descobre o TEU
movimento. Experimenta este passo. Mas não me imites! Eu não
estou aqui para mostrar nada, só aponto possibilidades.
Eu visto o que sou! São as minha penas! As minhas penas!
Lindo. O novo mundo espera-te.
O novo mundo espera-me! Isto não é uma moda, é uma revolução nos
comportamentos.
Miss Cool começa a afastar-se no seu novo passo de galinha.
MENTIRA–
Isso, vai, vai e toma o teu lugar no novo mundo.
Visões Uteis
Parte IV
Visões Uteis
Criadores
Em Munique tínhamos encontro marcado com Leni Riefensthal. Infelizmente
problemas de saúde terão impedido a cineasta, quase com cem anos, de
comparecer.
Nas suas memórias Leni Riefensthal afirma, com aparente sinceridade, a
surpresa e terror sentidos quando, durante o seu primeiro interrogatório pelas
prostradas, que jaziam sobre catres e olhavam para a câmara desamparadas e com
olhos imensos. E outras fotografias em que se podiam ver montanhas de
cadáveres e esqueletos”.
Durante vários anos tinha sido próxima, íntima mesmo, do regime de Hitler,
tinha visto os seus amigos judeus fugirem para o estrangeiro para evitar a reclusão
em campos oficialmente destinados a prisioneiros políticos e espiões, tinha
mesmo travado conhecimento com responsáveis por esses campos, indagando
acerca do tratamento reservado aos prisioneiros, e ainda assim afirma
convictamente que não sabia de nada. Esteve sempre ali ao lado e apesar de olhar
afirma que nunca conseguiu ver. A cineasta que foi capaz de revolucionar a
linguagem cinematográfica não foi capaz, ao contrário de outros artistas seus
contemporâneos, de ver, ou pelo menos entrever, o que se passava na sua cidade,
no seu país, no seu tempo.
Já em Londres, Gregory Motton confessava-nos estar a rescrever uma das suas
obras. Trata-se de “Gato e Rato (Carneiros)”, uma feroz crítica social que o
Visões Úteis levou à cena há alguns anos. Motton afirmava a sua desilusão com o
efeito produzido pelo seu trabalho junto do público. Dizia que a sua escrita,
apesar da qualidade literária que ele próprio reconhece, já não atinge as pessoas,
pois estas não percebem onde ele quer chegar. Lamentava-se por os espectadores
continuamente se divertirem mas não compreenderem. “Gato e Rato
(Carneiros)” parece ter sido um exemplo limite pois Motton teve plateias cheias,
com as pessoas que ele tentava ridicularizar; e estas, pensando que o ridículo
deveria cobrir outros que não elas, riam-se do princípio ao fim do espectáculo,
nunca percebendo que era delas que o autor falava. Desesperado, Motton tentava
agora rescrever aquele texto de uma forma mais directa, de uma forma que possa
ser compreendida pelo espectador, porque acredita que se não for capaz de
Visões Uteis
133
forças aliadas, foi confrontada com “umas fotografias horríveis. Figuras
Capítulo 17
comunicar não será capaz de fazer arte. Porque a arte tem de ser um gesto de
mudança, e se não o for não merece ser arte. Porque Motton quer agir sobre o
134
mundo já hoje, quer agir sobre a sua época, não quer esperar um século ou dois.
Gregory Motton é um artista e acha por isso que não pode esperar. A sua obra
talvez pudesse, ele não.
Pensamos que estas duas vidas na arte– Riefensthal e Motton– sintetizam uma
encruzilhada fundamental para os criadores do nosso tempo, e provavelmente de
134
todos os tempos, pelo que importa optar e definir um caminho.
No Visões Úteis temos, desde sempre, apostado no desenvolvimento de
formas que permitam ir ao encontro de soluções estéticas. Soluções estéticas que
nos permitam continuar a trilhar o caminho da contemporaneidade, porque
sabemos que quando isso deixar de acontecer– quando deixarmos de ser do
nosso tempo– morreremos enquanto projecto artístico. E depois dessa morte
pode continuar a existir espectáculo, negócio, animação cultural e até integridade,
mas a verdade é que já não há arte.
Ainda assim temos a profunda convicção– e a convicção é algo
substancialmente mais forte que a mera consciência– de que o nosso trabalho terá
se orientar por uma clara definição ética que, inevitavelmente, acabará por
modelar conteúdos.
Acreditamos que o artista não se pode desligar do seu tempo. Temos por isso
de integrar no nosso trabalho um determinado estádio de desenvolvimento–
económico, social, filosófico e civilizacional– que caracteriza a época que
vivemos. Temos de assumir a História não só pela valorização do que passou–
enquanto determinante do que se passa– mas pela nossa condição de agentes da
mesma– enquanto determinantes do que se vai passar.
Acreditamos que o artista não se pode desligar da Pólis. Temos por isso de
privilegiar simultaneamente a nossa singularidade e a nossa abertura ao mundo.
Porque uma não existe verdadeiramente sem a outra. Só definindo rigorosamente
a nossa identidade– aquilo que somos com os que nos são mais próximos–
seremos capazes de ter algo para partilhar com o mundo, algo que o mundo
queira, e precise, realmente partilhar. Só olhando para lá dos limites apertados do
nosso quotidiano– aquilo que pensamos ser– seremos capazes de perceber
verdadeiramente quem somos e porque somos.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Criadores
Teremos de ser únicos para podermos aspirar a ser universais. Por isso
recusamos a criação de belos espectáculos que tanto pudessem ter sido criados
por nós como por artistas de Nova Iorque ou Tóquio. Pelo contrário, ficaríamos
imensamente felizes se conseguíssemos criar um espectáculo tão nosso que
pudesse comover um espectador de Nova Iorque ou Tóquio.
Acreditamos que o compromisso assumido com o tempo e a Pólis exige uma
recusa de qualquer tipo de comprometimento com o poder. A arte trata de abrir
possibilidades, o poder trata de definir caminhos. São dois momentos necessários
135
que afastam, respectivamente, a ignorância/barbárie e a
inércia/desresponsabilização. Necessários mas conflituantes pelo que não pode
haver comprometimento. Porque só assim o artista poderá reivindicar novamente
o papel que outrora lhe coube e agora parece estar confiado a políticos,
banqueiros, engenheiros, investidores e programadores– o papel que só pode ser
assumido por quem tiver a credibilidade reservada àqueles que pensam o tempo e
a Pólis. Só em liberdade a arte será capaz de produzir, através do sonho e da
interacção humana, uma verdadeira mudança espiritual.
Afinal sempre era verdade que não viajávamos apenas para ir ter com os outros.
Tínhamos percebido, e iríamos dizê-lo no espectáculo “Orla do Bosque”, que
viajávamos para ir ter connosco:
ORADOR–
A arte é um acto de resistência, que devia celebrar a vida. Mas hoje
não há nada para celebrar. Celebrar é fazer parte da Mentira.
E ainda assim temos de fazer arte. Não é brilhante, é o mundo que
temos.
O Optimista varre os grãos de milho espalhados pela cena, criando um
trilho. Miss Cool vê o trilho de milho, avança para ele e começa a apanhar
os grãos um a um. Optimista vê-a, larga a vassoura e põe-se a apanhar
também. Fight vê-os, larga os sapatos e fica sentado a comentar a cena.
FIGHT–
Dois grãos de milho que ficaram para trás. Perdidos para sempre.
Miss Cool e Optimista olham-se e continuam a apanhar os grãos.
FIGHT–
Os olhos dele derramaram searas… não, searas não…. /Os olhos
dele verteram lágrimas amarelas… azuis como grãos de milho.
Não… /Os olhos dele verteram lágrimas azuis como grãos de mar.
Marco e Inês.
Miss Cool e Optimista começam a apanhar os grãos mais depressa. E de
vez em quando trocam olhares.
Visões Uteis
Capítulo 17
FIGHT–
Por este andar nem amanhã… /Por este rastejar nem amanhã
136
Miss Cool tenta medir com a perna a distância que a separa do Optimista.
Optimista sorri do gesto dela. Continuam a apanhar grãos e a trocar
olhares.
FIGHT–
Ri-te, ri-te que amanhã chorarás!/Sorri-te!…/ Sorrite: doença
infecciosa do foro auditivo com sintomas de riso descontrolado e desejo
súbito… Súbito…/Súbito: Mamífero de climas tropicais.
136
Miss Cool e Optimista arfam sorrisos enquanto apanham grãos,
continuando a trocar olhares.
FIGHT–
Pôncio/ Arfar/ Ao/ Respirar/ Ao/ Inspirar/ Ao/ Expirar/ E/
Engolir ar/ Sem/ Sofregar/ Ou/ Suspirar/ Mas/ Murmurar
Miss Cool começa a suspirar como se dissesse “Está quase”. Continuam a
apanhar grãos e a trocar olhares.
FIGHT–
Está quase/ dizia ela enquanto suspirava de uma mão e deitava tudo
a perder pela outra/ Schiu!– disse ele enquanto…/ Reticências/
André.
Fight assobia “Somewhere over the rainbow” e a sua atenção passa dos
outros dois para a árvore por cima de si.
ORADOR–
Se cada um de nós tiver um dólar e os trocarmos, cada um de nós
ficará com um dólar. Se cada um de nós tiver uma ideia e as
trocarmos, cada um de nós fica com duas ideias.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
Orla do Bosque
“E por fim é a própria voz de Thomas Liolios que canta e me transporta a Véria,
àquele dia em que, na escola de Aristóteles, ele fez a pergunta que agora se torna
premente: “Estar aqui… deu-vos alguma ideia para um espectáculo?”.”
Notas de viagem/Porto, 5 de Maio, Ana Vitorino
sons, conversas, sabores, um mundo de estímulos, algumas respostas e muitas
perguntas.
Olhamos para trás e parece que “Estudos”, o espectáculo que constituiu a
primeira fase deste projecto, está a anos de distância. É agora muito claro que os
temas iniciais, que aflorámos nesse espectáculo e levámos posteriormente para a
estrada, sofreram um terrível abanão. Alguns caíram, outros empalideceram,
alguns afirmaram-se de um modo novo e gritante.
Quando partimos, levámos connosco a hipótese de que o espectáculo final
deste projecto poderia afastar-se em muito dos pressupostos iniciais, resultando
radicalmente diferente de “Estudos” em forma e em conteúdo. E de facto a
viagem cumpriu a função que prevíamos, definindo prioridades temáticas,
esbatendo algumas ideias enquanto reforçava (ou descobria no nosso interior)
outras, ou seja, tornando muito claro não só de que é que o Visões Úteis
pretendia falar nesse momento, mas também como e para quem é que o Visões
Úteis queria falar.
Trouxemos desta viagem palavras novas, que não comprámos aos aldeões
como o poeta que perdera a língua natal, mas que nos foram oferecidas limpas de
enganos. “Casa”, “Língua”, “Comunidade”, “Mentira”, “Memória”. É como se as
tivéssemos pronunciado mal durante anos. Percebemos então que uma questão
premente para o nosso espectáculo seria a necessidade de recuperar a noção de
comunidade, memória e casa como armas para combater a estupidificação que a
Mentira hoje semeia quase imparavelmente. A desertificação do espaço público
como espelho do imenso individualismo actual, o “ser local” (esse conceito
“piroso”) como base de muito daquilo que nos define, a perda de dignidade e
especificidade no caminho de nos tornarmos “melhores consumidores”,
constituíram-se como temas prioritários.
Visões Uteis
137
Estamos em casa. Na bagagem, cerca de dez mil quilómetros de paisagens,
Capítulo 18
Para trás ficavam outros temas como o do Herói (cuja desaparição entendemos
como exemplo, suficientemente ilustrado em “Estudos”, da perda de ideia de
138
comunidade e da acção da Mentira), o da Viagem (que foi em todo este processo
mais um instrumento do que um tema) ou da Europa (que se restringiu ao papel
de paradoxo dos temas abordados e como contexto das nossas preocupações e da
nossa viagem). A própria noção de Fronteira alterou-se significativamente:
tivemos consciência que seria mais importante agora falar daquilo que cria
138
fronteiras benéficas, ou seja, da necessidade de procurarmos uma especificidade
que nos define como comunidade para escaparmos à uniformização de
sentimentos, desejos e identidades que se esconde sob a capa da apregoada
globalização.
E se a questão da língua seria tema que não nos sentíamos ainda inclinados a
tratar, a linguagem que o espectáculo assumiria foi uma preocupação central. A
viagem deu-nos também essa noção da importância de, de vez em quando,
sermos directos e chamarmos “os bois pelos nomes”, pelo perigo que a arte corre
de ser lida erroneamente ou então desprezada como “elitista”. Se não acreditamos
em nivelar por baixo ou simplificar para servir uma preguiça mental que se vai
instalando, considerámos que “Orla do Bosque” deveria passar muito claramente
as suas principais mensagens e assim criámos a figura do Orador e optámos por
uma linguagem realista, facilmente identificável pelas suas expressões e pela sua
construção simplista.
Também pela primeira vez definimos claramente um público claramente alvo
do espectáculo. Queríamos falar à nossa geração, às pessoas com mais de vinte e
cinco e menos de trinta e cinco anos, os chamados “filhos do meio da História,
não temos nenhuma Grande Guerra nem nenhuma Grande Depressão” (“Fight
Club”, Chuck Palahniuk). Sentimo-nos entalados entre duas épocas, uma época
de luta por valores partilhados e uma época de total ausência de luta ou valores,
novos de mais para preservarmos o “espírito de Abril” e velhos de mais para nos
convencerem a entrar no mundo “cool” que os empresários fabricaram e a
publicidade veicula.
Chegámos então àquele momento que anunciávamos há quase um ano: no fim,
regressamos ao Porto e construímos um espectáculo em que os temas iniciais que
nos fizeram partir são reequacionados à luz da experiência da viagem e dos
contributos dos convidados.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A ideia é lógica e fácil de entender. A realização prática parece tão inimaginável
como o fim do Universo.
E, no entanto, os últimos anos de trabalho dramatúrgico em espectáculos que
partiram de conceitos, de ideias de espaço, de poemas, de imensas coisas que não
eram texto teatral estruturado, ensinaram-nos a não desesperar, a colocar todo o
material na mesa e a lançar mãos ao trabalho. Sabemos que daí a três meses
estaremos a estrear “Orla do Bosque” e que, nessa noite, já não conseguiremos
recordar o dia em que nos sentámos à mesa e nos sentimos incapazes de imaginar
139
este espectáculo.
Então… por onde começar?
Impunha-se uma revisão de todo o material filmado em viagem. As conversas
foram abundantes em temas e também em pormenores que escapam aos ouvidos
mais atentos quando horas e horas de estrada se acumulam. Muitas vezes,
também, não houve o tempo necessário de, entre um encontro e outro, debater
tudo o que tinha sido transmitido.
E, para além dos encontros, havia ainda todo o material “não oficial”, horas de
filmagem da viagem propriamente dita, efectuadas pelos membros da equipa sem
ordem, duração ou tema predefinidos.
O visionamento deste material permitiu, assim, relembrar assuntos, conceitos
específicos, ordenar ideias e apontar situações e palavras-chave que organizassem
a segunda etapa do trabalho: o período de improvisações.
O espectro dos temas abordados nestas improvisações foi, de início, muito
alargado. Dezenas de pensamentos ou apenas expressões afloradas em viagem
serviram de estímulo: “Se isso estivesse na moda, comportávamo-nos como
galinhas”, “Tentas tudo para estar in, mas eles continuam a manter-te out”, “Vais
tentar fazer um gesto de sacrifício pelo bem da comunidade”, “Vais deixar o lugar
onde sempre viveste. Sussurra as memórias que queres guardar para um buraco
no centro da praça”, “Eles são diferentes, vivem entre nós mas… temos de ser
compreensivos.”, “Começas a tratar mal alguém porque sim.”, “Tenta organizar a
tua vida, fazendo o que as revistas aconselham.”.
O material gerado pelas improvisações começou então a ser apontado,
seleccionado e desenvolvido em cenas. Para chegar à sua forma final, cada cena
foi improvisada vez após vez em moldes cada vez mais restritos, sendo rescrita de
cada vez.
Visões Uteis
Capítulo 18
Assim, as cenas começaram a ser encadeadas e os elementos estruturais do
140
espectáculo a ser definidos.
O ESPAÇO
140
Na operacionalização do espaço cénico levámos em conta um novo tema de
reflexão fornecido pela viagem: a desertificação do espaço público como espelho
de uma perda de noção de comunidade.
A imagem da Potsdamer Platz que visitáramos em Berlim foi uma forte
motivação. Pensámos em tudo o que nos dissera Nina Libeskind em relação a
esse centro citadino construído à revelia da herança do passado e da vida efectiva
dos seus habitantes, e assim ameaçado já de abandono. Pensámos também
naquela chama que os gregos levavam da sua terra natal para fundarem novas
cidades, como nos contara Thomas Liolios. E também no papel da Ágora,
relembrado por Angelopoulos, local central de reunião, discussão e celebração das
comunidades.
A ideia da praça deserta de vida, mero local de passagem, foi assim a primeira
imagem. Mas queríamos que contivesse também a ideia de memória abandonada,
de potencialidade de redescoberta de algo fundamental para os indivíduos e para a
comunidade. Dotámos, por isso, esta praça de uma árvore despida de folhas ou
frutos, um mero cadáver de árvore, de aparência pouco orgânica, quase metálica.
As suas raízes estão parcialmente à vista e à volta delas vemos folhas secas. De
três dos seus ramos pendem três baloiços de madeira e corda, que as personagens
utilizarão na quase totalidade do espectáculo como meros bancos ou pontos de
apoio.
Dos ramos da árvore pendem ainda dezenas de pequenas bolas transparentes,
como bolhas de sabão. São recipientes de memórias, pequenas imagens dos
passados individuais, nomes, pessoas, sabores, todos selados nestas esferas que
parecem flutuar sob a árvore. Serão também ignorados durante quase todo o
espectáculo.
A árvore moribunda das memórias, que marca o centro daquilo que poderia ter
sido uma Ágora, é deslocada para a esquerda de cena, sendo o caminho que as
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
personagens atravessam incessantemente, cena a cena, o centro da acção e dos
encontros entre elas.
Os limites deste espaço de acção são marcados por uma superfície de casca de
pinheiro onde se distribuem as cadeiras dos espectadores, que se encontram deste
modo inseridos no espaço cénico, distribuídos em dois grupos que o caminho das
personagens separa.
141
AS PERSONAGENS
É nesta praça que se irão confrontar duas forças opostas, representadas pelas
personagens do Orador e da Mentira.
A criação da figura do Orador correspondeu àquela necessidade que sentimos
de ter uma voz que muito directamente expressasse os próprios temas do
espectáculo e as nossas opiniões sobre eles. O Orador é, assim, a própria voz do
Visões Úteis no espectáculo e um representante da função de denúncia que o
artista pode ter na sua sociedade e no seu tempo.
Inspirada na figura dos membros do Partido Radical italiano, que encontrámos
em Milão em pleno “Parola Non Stop”, esta é a única personagem que não sai do
espaço cénico, tendo nele um “cantinho” especial: está instalado no cimo de um
capitel (destroço de uma qualquer construção antiga) e tem à sua frente um tripé
com um microfone. Fala quase ininterruptamente. O seu discurso não é, no
entanto, audível na totalidade– o orador é “silenciado” para que se oiçam as
cenas, às vezes é mesmo interrompido pela voz de uma personagem. A sua acção
é independente do desenrolar do espectáculo e a sua voz e presença não é visível
para as personagens, à excepção daquela que entre elas representa a sua antítese, a
Mentira.
A Mentira é aqui a personificação desse conceito a que Gregory Motton deu
nome. Ela não é ninguém e assume um espectro variado de rostos, estilos e
posturas. Adapta o seu discurso a cada situação e a cada vítima: ela é o cérebro
por trás do reality show, a imagem de perfeição veiculada pelas revistas, o político
que seduz com a sua emotividade fingida, o jornalista que deturpa a informação
em nome do sensacionalismo. Ela aconselha, provoca, manipula, corrompe.
Visões Uteis
Capítulo 18
Impinge clichés, valores ocos e meias verdades, é um espelho que nos devolve
uma imagem distorcida e sempre diferente, até deixarmos de saber quem somos.
142
Move-se por este espaço como se também o habitasse e relaciona-se com as
outras personagens como se fosse uma delas. E todos estão demasiado ocupados
com os seus próprios egos para perceberem que ela muda de cara a cada
momento, que ela não existe por si mas sim para os enfraquecer.
Estas vítimas cegas da Mentira são os três habitantes “reais” do espaço de
142
acção.
A estas três personagens foram dados os nomes de “Optimista”, “Fight” e
“Miss Cool”. Estes são nomes apenas gerados para organização de um guião de
cenas, visto que nenhuma personagem se identifica ou é tratada pelo nome. Mas
as designações correspondem àquilo que estas personagens representam no
espectáculo: três modos distintos de reagir e viver neste império da Mentira.
O Optimista e o Fight representarão duas atitudes quase radicalmente opostas:
o primeiro, como o nome indica, com uma postura positiva perante as
adversidades e os grandes problemas, é um crente na capacidade de luta e
transformação social, um homem que tenta desesperadamente agarrar-se a ideais
e causas justas, mesmo se à custa de não lidar com a sua própria solidão; o
segundo (cujo nome foi inspirado no filme “Fight Club” de David Fincher,
baseado na obra homónima de Chuck Palahniuk) é um inteligente materialista,
sarcástico perante tudo e todos, crítico da sua própria opção de vida mas incapaz
de a transformar.
Miss Cool é a preferencial vítima da acção da Mentira; ela encerra em si toda a
ingenuidade de uma geração que se deixa lentamente convencer pelas mensagens
publicitárias, por valores distorcidos e politicamente correctos, por ideias feitas e
metas inalcançáveis. O seu objectivo: ser aceite, agarrar o momento.
Infelizmente estas personagens não têm acesso ao discurso do Orador e
limitam-se a sofrer e a reagir desadequada e inutilmente às acções subversivas da
Mentira. E é este ataque, esta espiral destrutiva, que desenhará a acção da peça.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
A ESTRUTURA
No início de “Orla do Bosque” encontramos a praça, outrora Ágora, vazia. Aos
poucos ela enche-se de vozes gravadas e depois de personagens que entram
silenciosamente, uma a uma. O Orador toma o seu lugar ao microfone. Os outros
juntam-se ao centro, assumindo os seus postos numa brincadeira de crianças. O
jogo começa. Começa o discurso do Orador. E começa a acção da Mentira que
actividade a quatro que não tem outro propósito que não o da diversão. É quase
um resquício de infância, de comunidade, aquilo que observamos. A partir daí o
mal está feito; o jogo é subitamente interrompido pelo clímax de uma raiva cega
que cresceu, sem se saber como, no seio do grupo. As personagens estão
condenadas a separar-se e a atravessar em solidão o caminho de enganos que a
Mentira traçará para elas.
Este caminho é feito de situações que a Mentira prepara ou provoca,
manipulando cada personagem (falando a linguagem que melhor seduzirá cada
uma), conseguindo progressivamente isolá-las, distanciá-las umas das outras e
retirar-lhes as referências, baralhar-lhes os valores e as crenças. Fabricando
miragens de objectivos cada vez mais difíceis de atingir, a Mentira vai expondo e
humilhando as personagens num crescendo de ridículo que culmina finalmente
num reality show onde “o público votará aquele que de entre vós for o menos
divertido, e essa pessoa será imediatamente abatida”. As personagens deixam-se
enredar num jogo paradoxal entre a morte provável e a necessidade de mostrarem
uma ininterrupta vivacidade: cantando e dançando pela sobrevivência, utilizandose mutuamente como escudos, atingem o grau zero da dignidade e da
humanidade.
São interrompidas pela voz gravada de Tonino Guerra que grita “Basta!” e são
subitamente confrontadas com o absurdo a que se deixaram chegar pela pergunta
do Orador: “Se morresses agora, o que é que pensavas da tua vida?”.
No meio da devastação emocional que resta, os olhos das personagens caem
pela primeira vez sobre os estranhos frutos que pendem da árvore, as “bolhas” de
memórias. Levadas pela curiosidade, as vítimas da Mentira colhem e abrem todas
as bolhas, de onde se vão soltando pedaços de memória que elas têm dificuldade
em identificar mas gradualmente vão recuperando– nomes, imagens, sabores de
Visões Uteis
143
está já infiltrada no grupo, sabotando o jogo, criando a impossibilidade desta
Capítulo 18
infância, emoções sepultadas, brincadeiras de criança. As memórias viciam e
despoletam reacções espontâneas. As personagens regressam lentamente à
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genuinidade inicial. O Orador observa pela primeira vez a cena; parece, afinal,
haver esperança para aquelas pessoas. Decide desligar o microfone e sentar-se,
recuperando do desgaste provocado pelo seu longo discurso.
A Mentira observa também a cena e compreende que toda a sua acção está
ameaçada por aquele recuperar de memórias que parece estar a trazer de volta a
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humanidade às personagens. Decide assim jogar a sua última cartada: assumindo
o lugar do Orador ao microfone, “partilha” uma memória tocante, habilmente
fabricada para lhe dar esse aspecto tão humano de drama de telenovela (de facto
baseada no texto “íntimo” que Silvio Berlusconi escreveu sobre o seu pai para a
sua campanha eleitoral). A hipocrisia atinge o seu expoente máximo.
O Orador toma finalmente a acção nas suas mãos e dispara sobre a Mentira. A
Mentira vacila; pela primeira vez alguém tenta enfrentá-la e isso fá-la perder o
controle durante uns segundos e sair do seu papel. É o suficiente para a hipocrisia
ficar exposta. A Mentira não morre, mas sofre a sua primeira ferida e deve
repensar a sua estratégia.
O Orador afirma assim o papel do próprio artista que, através do seu trabalho,
das suas reflexões e palavras, se não pode eliminar esta ameaça pode ao menos
ajudar a denunciá-la.
A Mentira fecha os olhos e finge-se morta. O artista sabe que é uma calma
temporária. Por isso mantém-se alerta, de arma em punho.
As personagens podem voltar às suas memórias… a última delas, presente
desde o início, é a de andar de baloiço. Deixamo-las ali, a redescobrir essa
brincadeira inútil e repetitiva, a rir sem razão aparente.
No fim, muito fica por dizer. O material “descartado”, as ideias que deixámos
cair, os conceitos ou formas que não conseguimos ainda desenvolver. Mas esta
viagem não cabe num espectáculo. Muitas das suas sementes estão ainda por
germinar.
É material guardado num hangar à espera daquele dia em que nos deparamos
com uma parede branca para então, aparentemente sem razão, sair e tornar-se
teatro.
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
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Visões Uteis
Índice
Prefácio............................................................................................................................. 5
Introdução ....................................................................................................................... 9
Parte I
Capítulo 1 | Raízes .................................................................................................13
Capítulo 2 | Viagem ...............................................................................................17
Capítulo 4 | Fronteira ............................................................................................28
Capítulo 5 | Estudos ..............................................................................................31
Parte II
Capítulo 6 | Na Estrada.........................................................................................41
Parte III
Capítulo 7 | A Casa ...............................................................................................67
Capítulo 8 | A Língua ...........................................................................................75
Capítulo 9 | A Queda dos Impérios...................................................................83
Capítulo 10 | A Comunidade.................................................................................86
Capítulo 11 | A Memória .......................................................................................91
Capítulo 12 | O Pior Outro ...................................................................................96
Capítulo 13 | O Politicamente Correcto............................................................103
Capítulo 14 | A Mentira........................................................................................109
Capítulo 15 | O Local ...........................................................................................116
Capítulo 16 | A Uniformização...........................................................................120
Parte IV
Capítulo 17 | Criadores.........................................................................................133
Capítulo 18 | Orla do Bosque .............................................................................137
Anexos
| “Estudos” .......................................................................................150
Anexos
| “Orla do Bosque” .........................................................................151
Visões Uteis
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Capítulo 3 | Europa ...............................................................................................25
Anexos
Visões Uteis
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“Estudos”
18ª produção do Visões Úteis
Integrada nos Teatros do Outro da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura
Estreou a 19 de Abril de 2001 no espaço Maus Hábitos no Porto.
Concepção, dramaturgia e direcção: Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina
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Martins e Pedro Carreira
Banda sonora original, sonoplastia e operação de som: João Martins
Colaboração na cenografia: Paulo Soares
Figurinos: Sofia Matos Soares
Design gráfico: Vitor Azevedo/DeC
Interpretação: Alzira Matos; Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina Martins e
Pedro Carreira
Voz Off: Diogo Dória
Produção executiva: Ágata Marques Fino
Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque
“Orla do Bosque”
19ª produção do Visões Úteis
Co-produção com o Teatro Nacional São João e Auditório Nacional Carlos
Alberto no âmbito do PONTI e integrada na Porto 2001 – Capital Europeia da
Cultura.
Estreou a 6 de Outubro de 2001 no Teatro do Campo Alegre no Porto.
Martins e Pedro Carreira
Texto: Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina Martins, Nuno Casimiro e Pedro
Carreira
Cenografia, figurinos e adereços: Paulo Soares
Banda sonora original e sonoplastia: João Martins
Música adicional: Manu Chao, Jorge Palma, Costas Bravakis e Michael Palin
Desenho de luz: José Carlos Coelho
Construção e montagem cenográfica: José Maria Calisto, Albano Martins, José
Patacão, Alexandre Mota
Assistência de iluminação: Natércia Lopes
Design gráfico: Vitor Azevedo/DEC
Operação de luz: Natércia Lopes/António Pedro Soares
Operação de som: João Martins
Interpretação: Ana Azevedo, Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina Martins e
Pedro Carreira
Produção executiva: Ágata Marques Fino
Visões Uteis
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Concepção, dramaturgia e direcção: Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina
Visões Úteis
Companhia de teatro profissional fundada no Porto em 1994. Até 2002 produziu 21
espectáculos de teatro e um audio walk.
Entre 1994 e 1999 o seu trabalho foi dirigido pela necessidade de aprendizagem e
absorção das mais diversas influências ao nível da encenação e da escrita. Nesse período
trabalhou quase sempre com encenadores convidados (Paulo Lisboa, Paulo Castro, Carlos
Curto, João Paulo Seara Cardoso, António Feio, Diogo Dória e José Wallenstein) e fizeram
parte do seu repertório um vasto leque de autores predominantemente do séc. XX (Genet,
José Gomes Ferreira, Dostoievski, Boris Vian, Ionesco, Dacia Maraini, Gregory Motton,
Martin McDonagh, Beckett, Kafka, Al Berto).
A partir de 1999 iniciou-se um novo ciclo de trabalho, orientado pela necessidade de
pesquisa e laboratório tanto a nível formal como de conteúdo. Desde então têm
predominado os trabalhos dirigidos pelos responsáveis artísticos da companhia e a criação
dramatúrgica ganhou especial relevo (seja na criação de textos originais, seja na abordagem
a autores como Kafka, Tonino Guerra, Tchekov, Pirandello, Motton ou Bohumil Hrabal,
seja no constante esforço de edição dos textos produzidos).
Desde a sua fundação que a actividade do Visões Úteis se desdobra ainda em diversos
projectos paralelos à criação, apresentação e itinerância de espectáculos de teatro; esta
diversidade traduz a necessidade de confronto com outras áreas artísticas— seja através da
organização de encontros de criadores ou da produção de exposições e concertos— e com
públicos normalmente distantes da produção artística— apresentação de espectáculos em
estabelecimentos prisionais ou em pequenas localidades do interior, trabalho com crianças
e jovens de áreas carenciadas. A mais recente vertente desta diversificação é o
enquadramento dos novos processos digitais de criação, organização e difusão de
conteúdos.
Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina Martins e Pedro Carreira são os directores
artísticos do Visões Úteis. Nasceram entre 1969 e 1973 na Guarda, no Porto e em Setúbal.
Frequentaram a Universidade de Coimbra onde estudaram em áreas tão diversas como o
Direito, a Física e a Psicologia. Mais tarde prosseguiram estudos em História e Literatura.
Conheceram-se em 1992 no teatro universitário em Coimbra (CITAC) e em 1994
fundaram o Visões Úteis no Porto. No Visões Úteis dirigem, escrevem e interpretam.
“Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque” é o nome do projecto que a
companhia de teatro Visões Úteis desenvolveu ao longo do ano de 2001. Entre
duas produções teatrais, e partindo de uma reflexão em torno do conceito de
Fronteira e da Europa como paradoxo desse conceito, a companhia viajou
durante um mês pelas estradas europeias ao encontro de personalidades e
entidades culturalmente relevantes– do poeta e argumentista Tonino Guerra ao
arquitecto Daniel Libeskind, do realizador Theo Angelopoulos ao dramaturgo
Gregory Motton, entre muitos outros.
Este livro, mais do que um registo desses encontros e mais do que um itinerário
físico, traça uma viagem de ideias e descobre pontos de contacto nas reflexões de
uma diversidade de artistas e intelectuais do nosso continente.

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