Anais - 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB

Transcrição

Anais - 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB
Anais do Encontro de Leitura e
Literatura da UNEB (ELLUNEB)
Anais do Encontro de Leitura e
Literatura da UNEB (ELLUNEB)
Elizabeth Gonzaga de Lima (ORG.)
Caio Vinicius de Souza Brito
Juan Muller Fernadez
Ricardo Horacio Piera Chacón
Roberto Rodrigues Campos
Reitor da Universidade do Estado da Bahia
José Bites de Carvalho
Diretor do Departamento de Ciências Humanas
Prof. Flávio Dias Santos Correia
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem
Prof. Gilberto Nazareno Telles Sobral
Presidente da Comissão Organizadora do V ELLUNEB
Profa. Verbena Maria Rocha Cordeiro
Presidente da Comissão Científica do V ELLUNEB
Profa. Elizabeth Gonzaga de Lima
Projeto Gráfico da Capa
Roberto Rodrigues Campos
Caio Vinicius de Souza Brito
Formatação
Roberto Rodrigues Campos
Caio Vinicius de Souza Brito
Endereço para Correspondência
UNEB
Departamento de Ciências Humanas
Rua Silveira Martins, nº. 2555, Prédio da Pós-Graduação
Cabula, 41195-001, Salvador BA
Fone (71) 3117-2442
E-mail: [email protected]
[email protected]
Encontro de Leitura e literatura da UNEB (5.: 2015: Salvador, BA)
Anais do 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB: Leitura e Literatura: do
centro às margens, entre vozes, livros e redes. Salvador, 09, 10, 11 e 12 de
novembro de 2015 / Organizado por Elizabeth Gonzaga de Lima et al .
Salvador: 2015.
1076 p.
ISSN: 2357-9021
Leitura - Congressos. 2. Literatura - Congressos. 3.Linguagem. Universidade
do Estado da Bahia.
Acesse nosso site: www.elluneb.uneb.br
Comissão Organizadora
COMISSÃO DOCENTE
Ana Maria Lisboa de Mello (PUCRS)
Elizabeth Gonzaga de Lima (UNEB)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB)
Luciana Sacramento Moreno Gonçalves (UNEB)
Lynn Rosalina Gama Alves (UNEB)
Márcia Rios da Silva (UNEB)
Maria do Socorro Silva Carvalho (UNEB)
Maria Zélia Versiani Machado (CEALE / UFMG)
Marly Amarilha (UFRN)
Sayonara Amaral de Oliveira (UNEB)
Verbena Maria Rocha Cordeiro (UNEB)
SECRETARIA EXECUTIVA
Caio Vinicius de Souza Brito (UNEB/UNIJORGE)
Juan Muller Fernandez (UNEB/PPGEL)
Maximiano Martins de Leireles (UNEB/PPGEDuC)
Milena Guimarães Andrade Tanure (UNEB/PPGEL)
Ricardo Horacio Piera Chacón (UFBA)
Rita de Cássia Lima de Jesus (UNEB/CONFHIC)
Rita de Cássia Oliveira Carneiro (UNEB/PPEDuC)
Roberto Rodrigues Campos (UNEB/UNIJORGE)
Sara Menezes Reis de Azevedo (UNEB)
Comitê Científico
Elizabeth Gonzaga de Lima - PRESIDENTE
Adelino Pereira dos Santos (UNEB)
Carlos Augusto Magalhaes (UNEB)
Edil Silva Costa (UNEB)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB)
Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios (UNEB)
José Henrique de Freitas Santos (UFBA)
Kênia Maria de Almeida Pereira (UFU)
Lícia Maria Freire Beltrão (UFBA)
Luciana Sacramento Moreno Gonçalves (UNEB)
Lynn Rosalina Gama Alves (UNEB)
Mairim Linck Piva (FURG)
Márcia Rios da Silva (UNEB)
Maria Anória de Jesus Oliveira (UNEB)
Maria Antônia Ramos Coutinho (UNEB)
Maria Helena da Rocha Besnosik (UEFS)
Maria do Socorro Silva Carvalho (UNEB)
Maria Zélia Versiani Machado (UFMG)
Obdália Santana Ferraz Silva (UNEB)
Paula Perin Vicentini (USP)
Rita Aparecida Coelho dos Santos (UNEB)
Sayonara Amaral De Oliveira (UNEB)
Silvio Roberto dos Santos Oliveira (UNEB)
Tânia Maria Hetkowski (UNEB)
Tânia Regina Dantas (UNEB)
Vera Teixeira de Aguiar (PUCRS)
Apresentação
O Encontro de Leitura e Literatura da UNEB
A Universidade do Estado da Bahia-UNEB, por meio dos Programas de PósGraduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) e em Educação e Contemporaneidade
(PPGEduc), promove, no período de 9 a 12 de novembro de 2015, na cidade de Salvador,
Bahia, o 5º ELLUNEB, em continuidade aos debates iniciados nas edições anteriores, 2005,
2007, 2010 e 2013 e às ações que integram e articulam os cursos de graduação e pósgraduação, no sentido de fortalecer as relações entre ensino, pesquisa e extensão nos campos
da leitura, literatura e educação.
O 5º ELLUNEB, tendo como destaque o tema “Leitura, e literatura do centro às
margens: entre vozes, livros e redes”, além de refletir o atual contexto plural, desafiador e
instigante, reafirma seu compromisso de trazer ao cenário acadêmico temáticas que
convoquem o debate, a troca de experiência e a reflexão sobre a importância dos múltiplos
caminhos da leitura e da literatura dentro de outros cenários e enredos nos quais o leitor
possa construir outro entendimento de sua formação pessoal e profissional. Ter um olhar
mais crítico e perspicaz sobre os usos que a sociedade, em geral, e a escola, em particular,
fazem da leitura e da literatura, contribui não só para rever a prática de cada um, como
também ressignificar o lugar dos mediadores culturais de leitura. Desse modo, sua realização
ganha sentido e relevância, ao dar visibilidade e concretude à leitura, se pensada como
elemento formativo de identidades complexas e plurais. No rastro das muitas produções e
estudos acadêmicos, eventos nacionais e internacionais, campanhas e anos consagrados à
leitura e à literatura, o ELLUNEB, alinhado aos eixos das linhas de pesquisa Leitura,
Literatura e Identidades do PPGEL e Formação do Educador do PPGEDUC e aos programas
de Mestrados Profissionais MPEJA, GESTEC e o PROFLETRAS do DCH V da UNEB - estes
com estudos nesse campo e uma articulação mais direta com a educação básica -,
potencializa o espaço de debate no campo da leitura, da literatura e da formação do leitor. O
evento conta ainda com o apoio dos seguintes órgãos e instituições: CAPES, CNPQ, PróReitoria de Extensão da UNEB (PROEX), Fundação Pedro Calmon (Secretaria de Cultura do
Estado da Bahia), Centro de Alfabetização Leitura e Escrita (CEALE) da UFMG e Instituto
Anísio Teixeira (IAT).
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A proposta da realização do evento vislumbra, sem dúvida, a constituição de um
espaço de intercâmbios e entradas de novas abordagens teóricas que se entrecruzam e se
desdobram em atividades de pesquisa, ensino e extensão. Esse Encontro configura-se ainda
numa oportunidade ímpar de os professores dos referidos programas de pós-graduação da
UNEB estabelecerem redes institucionais a partir dessa temática, fazerem circular suas
produções acadêmicas e percorrerem diferentes linguagens para dar corpo e densidade
teórica à pluralidade de temas propostos para as Conferências, Mesas-Redondas, encontros
com escritores e atividades culturais envolvendo professores, crianças e jovens. Vale
mencionar que desde a sua segunda edição, instituiu-se o Concurso Paulo Freire para relatos
de experiências inovadoras de professores da Educação Básica e outro Concurso em que se
premiam produções literárias. A cada ELLUNEB, esta premiação homenageia um escritor e
uma forma literária, em 2015, será o poeta Manoel de Barros e nesta edição, será a poesia
verbo-visual na web. Além de possibilitar e estimular as produções de novos talentos, estes
concursos recobrem-se de significado particular para aqueles que ainda não tiveram seus
trabalhos publicados, divulgados e mesmo reconhecidos. Tal iniciativa permitirá incluir e
abrigar parceiros com raras oportunidades de dialogar com diferentes vozes e pontos de
vista. Neste ano, em particular, de celebração de seus 10 anos, o ELLUNEB fará uma
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homenagem à Mãe Stella de Oxóssi, a Iyalorixá, do Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais
importantes terreiros da capital baiana, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), situado no Cabula, mesmo bairro que sedia o campus central da
UNEB.
Importante liderança negra feminina, Mãe Stella é escritora e, atualmente, ocupa a
cadeira 33 na Academia Baiana de Letras, cujo patrono é o poeta Castro Alves. Sua militância
abarca questões religiosas, sociais e culturais. Educadora, fundou no terreiro uma escola e o
Museu Ohun Lailai, além de uma biblioteca itinerante, com livros sobre diversas religiões,
em um ônibus que fica no terreiro, mas também circula por diversos bairros populares de
Salvador e intenciona atrair, crianças e adolescentes para o mundo da leitura.
A força desse Encontro está, enfim, em aproximar e agregar professores e alunos de
todos os níveis de ensino, do setor público e privado num espaço em que o centro, a
margem, as vozes, os livros e as redes encontram-se para constituir leitores, suscitar debates,
buscas e inquietações, permitindo ainda que a produção acadêmica e literário-artística
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
circule de forma democrática e significativa. E, acima de tudo, o evento pretende propiciar o
entendimento de que todos nós somos leitores e que o mundo que nos rodeia pode ser
entendido por meio do aprendizado extraído de nossas leituras e, assim, poderemos
transformar nossa realidade e ampliar igualmente as experiências.
Salvador, dezembro de 2015.
Elizabeth Gonzaga de Lima
Presidente do Comitê Científico
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Eixo I
Leitura e Literatura nas
Redes
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UMA TRAVESSIA MACHADIANA ENTRE LIVROS, PERSONAGENS E LEITORES
Antonia Claudia de Andrade Cordeiro
Faculdade Maria Milza - FAMAM
[email protected]
RESUMO
Este trabalho discute o livro como um tema da prosa machadiana tomando como base o
seguinte corpus: os romances Helena (1976) e Quincas Borba (1891) e o conto Casa Velha
(1885). Para tanto, selecionou-se três categorias para se refletir sobre o livro como a mídia
mais prestigiosa do século XIX: livro como veneração, distração e mercadoria. Para tanto,
fundamentou-se nos trabalhos de Roger Chartier (1994), Robert Darnton (2010), Fischer
(2006), Umberto Eco (2011), Silviano Santiago (1982), Marisa Lajolo e Regina Zilberman
(2002) e John Gledson (2003). Nesta discussão, a imagem do livro encontra-se atrelada às
classes sociais que detinham os privilégios da cultura letrada no contexto do Brasil
oitocentista. A apropriação de livros como bens culturais aparece representada nesses textos
ficcionais de Machado de Assis que se inserem no contexto do século XIX, seja pelo tempo
cronológico ou pelo tempo da narrativa, os quais oferecem uma imagem do livro como um
objeto de distinção para os personagens que detêm a sua posse. No romance Helena (1876),
por exemplo, os livros figuravam no interior de um lar burguês, sob a posse do Conselheiro
Vale, quem ocupava um lugar de distinção na sociedade e na residência do padre Melchior,
um representante do clero. No conto Casa Velha (1885), cujo enredo se desenrola em torno
de uma biblioteca particular, mais uma vez a posse de um conjunto de livros, algo que não
era comum no contexto histórico em que se insere, é justificada pela posição social do
proprietário. É nesse contexto que o livro adquire o status de objeto sagrado, cuja
importância simbólica é acentuada pela reverência prestada por determinadas personagens.
O livro assume essa condição ao se tornar motivo de adoração dos leitores. No que diz
respeito ao romance Quincas Borba (1891), o objeto livro também está associado a uma classe
social em ascensão, porém, o sentido é outro em relação ao que se observou em Helena e
Casa Velha, pois o personagem principal não mantém com os livros uma relação de
encantamento, apenas reconhece o seu poder simbólico no seio social em que vive. Neste
caso, o livro é apresentado como um objeto material que, em razão do valor de mercado,
figura como parte de uma herança, mostrando assim que a condição de mercadoria por ora
prevalece sobre o seu status cultural. Nesse romance, pode-se contemplar também a leitura
como forma de passatempo. É no contexto dessa narrativa que o livro é tratado como um
meio de entretenimento, considerando a prática de leitura desenvolvida pelo personagem
principal. O que se verifica, então, é que diferentemente de Helena e Casa Velha, em Quincas
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Borba, destaca-se o livro como forma de entretenimento, deixando, portanto, de ser tão
venerado. Isso implica reconhecer uma mudança na percepção de Machado de Assis no que
diz respeito à relação dos leitores com os objetos impressos e também uma modificação da
imagem pública do livro, que não estaria atrelado apenas à ideia de suporte do saber e da
cultura, mas também à de um importante meio de entretenimento.
PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; Prosa; Livro; Leitor.
No ensaio sobre a ficção brasileira modernista, em “Vale quanto pesa”, Silviano
Santiago (1982) trata do consumo de livros no Brasil na segunda metade do século XX, em
especial de livros de ficção, chamando atenção para a sua circulação limitada, com edições de
três mil exemplares para um país de 110 milhões de habitantes. Além disso, observa que o
livro é um objeto caro e “impróprio para circular num país de analfabetos e semianalfabetos”. Enfatiza também que há um público de ficção “reduzidíssimo, ao mesmo
tempo sofisticado e conservador, petulante e cosmopolita”, circunscrito à classe média
“privilegiada por todos os milagres brasileiros desde os anos 30, tanto os econômicos e
sociais quanto os culturais.” Após traçar esse panorama, o crítico chega à conclusão de que
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“O livro é, pois, objeto de classe no Brasil e, incorporado a uma rica biblioteca particular e
individual, é signo certo de status social” (SANTIAGO, 1982, p. 28).
Essa imagem do livro atrelada às classes sociais que detinham os privilégios da
cultura letrada não é exclusiva do século XX, pois desde o século anterior poder-se-ia
contemplar essa distinção na apropriação de livros como bens culturais. Alguns textos
ficcionais de Machado de Assis que se inserem no contexto do século XIX, seja pelo tempo
cronológico ou pelo tempo da narrativa, oferecem essa imagem do livro como um objeto de
distinção para os personagens que detêm a sua posse.
No romance Helena (1876), por exemplo, os livros figuravam no interior do lar
burguês, nas mãos do Conselheiro Vale, que “[...] ocupava elevado lugar na sociedade, pelas
relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de família” (ASSIS, 2006, v. 1, p. 273) e na
residência do padre Melchior, representante do clero. Com a morte do conselheiro, a posse
dos livros e dos demais bens da casa é transferida para o seu único filho, Estácio, que passa a
ser o mantenedor da estrutura familiar em torno da “vontade senhorial”, como designou
Sidney Chalhoub (2003). Cabe destacar que, entre os bens que herdara, os livros mereciam
uma atenção especial de Estácio, pois eram mantidos na casa como bens de muito apreço:
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Durante dous dias não saiu ele de casa. Tendo recebido alguns livros
novos, gastou parte do tempo em os folhear, ler alguma página,
colocá-los nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos
anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliófilo. (ASSIS, 2006, v.
1, p. 304-305)
Estácio queria estar sempre rodeado dos familiares e de seus livros, não gostava de se
ausentar da residência, de onde se sentia “senhor”. Vê-se essa característica do personagem
na passagem em que Estácio viajou a Cantagalo com a família de Eugênia, sua noiva, não
sem muita insistência dela. Estando fora da Corte, ele escreve uma carta a Helena, sua
suposta irmã, contando sobre a solidão e a tristeza que o afligiam naqueles dias: “Quando
esta carta te chegar às mãos, estarei morto, morto de saudades de minha tia e de ti. Nasci
para os meus, para a minha casa, os meus livros, os meus hábitos de todos os dias.” (ASSIS,
2006, v. 1, p. 332). Dentre os costumes de Estácio, cabe destacar o de ler diariamente:
Pelas cinco horas da manhã, Estácio acordou e ergueu-se. A manhã
estava fresca; quase toda a família dormia. Estácio desceu; o único
escravo que achou levantado preparou-lhe uma xícara de café. Não
tendo ainda chegado os jornais, bebeu-a sem a leitura de costume.
(ASSIS, 2006, v. 1, p. 352).
Ainda na referida carta, Estácio solicita à Helena:
Manda-me, entretanto, alguns livros. No meu quarto só achei um
Manual de Medicina Prática. Manda-me alguma cousa que me faça
lembrar o Andaraí. Tira da estante oito ou dez volumes, à tua escolha.
(ASSIS, 2006, v.1, p. 333).
Como diz Jorge Luís Borges (2011), o livro não é uma extensão do corpo, como o
telefone que é a extensão da voz, mas, sua singularidade estaria no fato de ser uma extensão
da memória e da imaginação. Assim, pode-se associar essa singularidade do livro com o que
vivencia Estácio, pois, de acordo com sua visão, os livros serviriam de auxílio para que ele se
ambientasse em um lugar estranho, pois o fariam lembrar “dos seus” e representariam um
refúgio diante da saudade do lar.
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Outro personagem que possuía livros em sua residência era o padre Melchior. Tratase de um homem solitário, recluso e que passa a maior parte do seu tempo lendo “[...] amava
sobretudo estar separado dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia
ou meditava, esquecido ou estranho a todas as cousas do seu século” (ASSIS, 2006, v. 1, p.
345). Na descrição da casa do padre, por exemplo, Machado destaca a presença material do
livro, em seus antigos formatos in-fólio, do latim folium (folha), dobrada uma vez, e in quarto
(formando quatro quadrados), dobrada duas vezes:
A sala de visitas era ao mesmo tempo gabinete de estudo e de
trabalho. Simples era a mobília, nenhuns adornos, uma estante de
jacarandá, com livros grossos in-quarto e in-fólio; uma secretária,
duas cadeiras de repouso e pouco mais. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 345).
A casa do padre, cuja simplicidade é realçada pelo escritor, parece ascender
dessa condição pela aura de conhecimento que lhe é atribuída, tanto na figura do
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padre que lê e se instrui, quanto na descrição de um espaço no qual os livros parecem
preencher a carência material.
Em relação aos dois personagens, Estácio e Melchior, pode-se dizer que, além
de possuírem um status social que lhes garantia a posse de livros, singularizam-se em
relação aos demais por manterem uma relação de intimidade com esse objeto de
grande valor cultural.
No conto Casa Velha (1885), cujo enredo se desenrola em torno de uma biblioteca
particular, mais uma vez a posse de um conjunto de livros, algo que não era comum no
contexto histórico em que se insere, é justificada pela posição social de seu proprietário: “[...]
porque o dono da casa, falecido desde muitos anos, havia sido ministro de Estado” (ASSIS,
2006, v. 2, p. 999).
A Casa Velha que dá título ao conto é descrita como uma edificação sólida e vasta.
Segundo John Gledson (2003), trata-se de uma aristocrática casa nos arredores do Rio,
tomando por base a descrição que lhe é atribuída, com sua imponente solidez e sua
autossuficiência. Tanto a casa quanto a biblioteca são apresentadas no conto como espaços
suntuosos e ambas exalando “um cheiro de vida clássica” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.001).
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É nesse contexto que o livro adquire o status de objeto sagrado, cuja importância
simbólica é acentuada pela reverência prestada por determinadas pessoas que habitam a
casa. Dentre elas, cabe destacar a personagem D. Antônia, herdeira da Casa Velha e da
biblioteca do marido, que mantinha o condicionamento patriarcal da casa. Em relação aos
livros deixados pelo marido, guardava-os como objetos muito valiosos “[...] mas é que livros
e papéis estão lá em grande respeito. Não se mexe em nada que foi do marido, por uma
espécie de veneração, que a boa senhora conserva e sempre conservará” (ASSIS, 2006, v. 2, p.
999).
Essa forma de tratar os livros eleva-os à condição de objeto-fetiche, pois, de acordo
com Marco Antônio de Almeida (2001), o livro assume essa condição ao se tornar motivo de
adoração dos leitores. Percebe-se que a biblioteca assume igual posição representativa em
relação à casa, configura-se como lugar de recolhimento, extremamente solene e pouco
habitado, “peça que raramente se abria” aos membros da família. Ela é apresentada como
um espaço de grandes dimensões e bastante segura, com um aspecto antiquário, tomando
por base, neste caso, o fato de conter muitos livros no formato in-fólio:
Era uma vasta sala, dando para a chácara, por meio de seis janelas de
grade de ferro, abertas de um só lado. Todo o lado oposto estava
forrado de estantes, pejadas de livros. Estes eram, pela maior parte,
antigos, e muitos in-fólio; livros de história, de política, de teologia,
alguns de letras e filosofia, não raros em latim e italiano. (ASSIS, 2006,
v. 2, p. 1.003).
O fato de a biblioteca se manter fechada parece ser justificado pela morte do exministro, pois, como disse D. Antônia, ninguém “[...] mexe em nada que foi do marido”
(ASSIS, 2006, v. 2, p. 999). É como se a morte do dono marcasse também a morte da biblioteca
como espaço em que se lê e se instrui. É também pela ausência definitiva do proprietário que
a aura desse espaço se eleva, tornando-se ainda mais sublime e, por isso mesmo, intocável.
Contudo, na narrativa, com o surgimento de um novo personagem leitor, o
padre que pede a permissão de D. Antônia para frequentar a biblioteca, de onde
buscaria material para escrever uma obra política sobre a história do reinado de D.
Pedro I, esse espaço passa a ser não apenas habitado, mas enche-se de vida na
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medida em que chega a ser o palco privilegiado de revelações e desenlaces
familiares.
Uma das pessoas que conviviam na Casa Velha e que não tinha acesso à biblioteca era
Cláudia, também conhecida por Lalau, uma agregada que fora criada por D. Antônia após
ter ficado órfã. Embora D. Antônia a tenha educado, fazendo com que soubesse ler e
escrever, não lhe concedia permissão para frequentar a biblioteca, possivelmente por ser uma
pessoa agregada à família, cuja condição socioeconômica não lhe dava o direito de partilhar
de determinados espaços e objetos da casa.
No entanto, com o avivamento da biblioteca, em virtude da presença do padre, Lalau
procura se aproximar desse espaço, mostrando-se deslumbrada com um lugar até então
desconhecido. Quando a agregada entrou na biblioteca, parecia estar entrando pela primeira
vez, pois deixou logo tudo para contemplar aquele ambiente. Nesse momento, ela também se
assusta com o tamanho dos livros: “Achou-os grande demais; admirava como havia quem
tivesse a paciência de os ler. E depois alguns eram tão velhos!” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.012). É
interessante notar que o tamanho dos livros é associado a um tempo bem diferente do que
vive a personagem, pois ela os designa “tão velhos”, como se vindos de uma época na qual o
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tempo de leitura exigiria vagar e paciência.
No que diz respeito ao tamanho dos livros, a personagem admite, de certa forma, que
não teria paciência de lê-los, referindo-se apenas ao seu aspecto físico. Isso implica
reconhecer uma relação entre a materialidade do livro e o ato de leitura. Considera Roger
Chartier que os formatos do livro interferem nos gestos de leitura:
Com efeito, cada forma, cada suporte, cada estrutura da transmissão
e da recepção da escrita afeta profundamente os seus possíveis usos e
interpretações. [...] A cada vez a constatação é idêntica: a significação,
ou melhor, as significações, histórica e socialmente diferenciadas de
um texto, qualquer que ele seja, não podem separar-se das
modalidades materiais que o dão a ler aos seus leitores. (CHARTIER,
1994, p. 105).
É válido dizer também que, assim como outros objetos, os livros envelhecem. E nesse
processo de envelhecimento não se desvencilham das marcas de seu tempo. É por isso que se
pode afirmar que a materialidade do livro representa um tipo de memória. Segundo
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Umberto Eco (2011, p.20): “À memória que o livro transmite, por assim dizer, de propósito,
acrescenta-se a memória da qual emana, enquanto coisa física, o perfume da história de que
ele está impregnado”.
Considerando o tempo da narrativa, tomando como marco o ano de 1839 em que o
padre decide escrever a obra política, e sabendo que desde o século anterior os livros
passaram a ser impressos nos formatos in-oitavo e duodécimo, como atesta Fischer (2006) em
História da leitura, é possível inferir que a personagem se encontra distante da memória de
livro que estava sendo evocada, do formato in-fólio, preferindo simplesmente designá-los
“velhos”, talvez pelo desgaste dos exemplares ou por aspectos congêneres.
Além de Lalau, Félix e D. Antônia passam a frequentar assiduamente a biblioteca,
local onde o padre se encontrava diariamente, e é para quem se dirigem em busca de
conselhos e intervenções para a solução de seus problemas. D. Antônia quer impedir o amor
de Félix por Lalau, pois não aceita que seu filho se case com alguém abaixo de sua condição
social, e busca o padre para que ele o dissuada da ideia de se casar com a agregada. Lalau e
Félix se amam, mas não têm o consentimento da matriarca, por isso, recorrem ao padre para
convencê-la do casamento.
Em meio a esse conflito, cujo cenário principal é a biblioteca, o padre desvia-se um
pouco do seu intento inicial, o de buscar material de pesquisa para a sua história, e passa a se
envolver cada vez mais com o conflito familiar. Ao penetrar a intimidade da casa, pelas
portas da biblioteca, o padre tem acesso à memória familiar, uma vez que as marcas deixadas
por aquele que leu revelam fissuras do passado e se presentificam nesse novo leitor. Mas,
como diz Umberto Eco, ao tratar de um visitante medíocre que, ao ver sua biblioteca, faz-lhe
a pergunta: “Já leu todos?”:
O que o desgraçado não sabe é que a biblioteca não é somente o lugar
da sua memória, onde você conserva o que leu, mas o lugar da
memória universal, onde um dia, no momento fatal, será possível
encontrar aqueles outros que leram antes de você. (ECO, 2011, p.49).
Adotando essa formulação de Umberto Eco (2011), pode-se dizer que o padre
encontra-se com o ex-ministro, dono da biblioteca e também único leitor que tinha pleno
acesso aos livros, posição que nem a morte lhe furta, pois a viúva se refere à biblioteca do
marido em um estado sempre presente. Esse encontro virtual é marcado pela seguinte
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
interpelação do padre ao ex-ministro: “– Estás morto. Gozaste e descansas; mas eis aqui os
frutos podres da incontinência; e são teus próprios filhos que vão tragá-los” (ASSIS, 2006, v.
2, p. 1.033). É interessante observar que o narrador se dirige ao finado em discurso direto, o
que possibilita analisar essa passagem como um diálogo, ou seja, “um encontro”.
Até esse episódio, pelo que lhe informou D. Antônia, o padre pensava que era Lalau a
filha do relacionamento extraconjugal do pai de Félix, motivo que a excluía definitivamente
da possibilidade de se casar com este, uma vez que seriam irmãos por parte de pai. O padre
continua seu trabalho na biblioteca e, ao folhear um livro em busca de uma nota que acabara
de fazer, descobre um bilhete escrito pelo ex-ministro para a mãe de Lalau, no qual há
menção a uma criança que foi fruto da infidelidade conjugal, mas que já se encontrava
morta. Com a certeza do óbito da criança, o padre pensa que a situação estaria resolvida, mas
o que ele ainda não sabia era que D. Antônia tinha inventado a possível consanguinidade
entre Félix e Lalau para afastá-los, sem jamais cogitar da traição do marido.
É curioso notar que é na própria biblioteca que D. Antônia recebe a notícia de que
fora traída: “[...] e foi na sala dos livros, enquanto Félix estava fora, que lhe contei o que
acabava de saber” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.041). D. Antônia, que criou a história de uma
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possível infidelidade do marido, foi surpreendida pelo padre com a confirmação de que fora
de fato enganada. Esse episódio se configura como uma quebra da aura, profanando o que
até então estava incólume, a integridade do defunto e, por conseguinte, a da biblioteca.
Quanto à reação de D. Antônia, o narrador a descreve da seguinte forma:
A razão é que o golpe recebido fora profundo. Vivera na fé do amor
conjugal; adorava a memória do marido, como se pode fazer a uma
santa de devoção íntima. Tinha dele as maiores provas de constante
fidelidade. Viúva, mãe de um homem, vivia da felicidade extinta e
sobrevivente, respeitando morto o mesmo homem que amara vivo. E
vai agora uma circunstância fortuita mostrar-lhe que, inventando,
acertara por outro modo, e que o que ela considerava puro na terra
trouxera em si uma impureza. (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.041).
Vê-se que o segredo da família se mantinha guardado nos livros, sem que isso lhe
afetasse, mas o avivamento da biblioteca na figura do novo leitor, o padre, fez com que os
livros “falassem”, ou seja, mostrassem as trilhas deixadas pelo seu antigo leitor. No conto,
parece que Machado de Assis não só escolhe a biblioteca como palco privilegiado para o
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
enredo, mas, propositadamente, esconde “o segredo” da família nos livros para que um
leitor fosse o responsável pela revelação. De acordo com Jean Marie Goulemot (2011), existe a
crença em um segredo que toda biblioteca dissimula, segredo este que não cessa de se
esquivar, lembrando o caso célebre do romance O nome da rosa, de Umberto Eco, no qual o
livro da comédia de Aristóteles não deveria ser aberto para que seu conteúdo jamais fosse
revelado.
Mas, por uma espécie de ironia, o padre, narrador dessa história, parece escutar as
vozes dos livros, que se descrevem como pacificadores, totalmente isentos dos conflitos da
casa.
Os livros, arranjados nas estantes, olhavam para mim, e talvez
comentavam a minha agitação com palavras de remoque, dizendo
uns aos outros que eles eram a paz e a vida, e que eu padecia agora as
consequências de os haver deixado, para entrar no conflito das
cousas. (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.033).
27
É possível dizer, portanto, que Machado de Assis faz uso da metáfora da biblioteca
como um entrecruzamento de vozes entre os livros. Essa mesma metáfora é fornecida por
Jean Marie Goulemot (2011), lembrando Anatole France, em La chemise (A camisa), que evoca
a biblioteca como um barulhento concerto ensurdecedor de vozes vindo dos livros:
Eles [os livros] discutem sobre tudo: Deus, a natureza, o homem, o
tempo, o número, o espaço, o conhecido e o desconhecido, o bem e o
mal, eles examinam tudo, contestam tudo, afirmam tudo, negam
tudo. (apud GOULEMOT, 2011, p. 213).
Tanto em Helena como em Casa Velha, embora o livro não ocupe a posição central na
história narrada, ele ajuda a compor o cenário, configura-se como um objeto que ocupa um
lugar especial no contexto da casa. Trata-se de um objeto que, a partir da sua relação com os
personagens, vai-se destacando como um bem simbólico no contexto da primeira metade do
século XIX. Se considerarmos a época em que se passam ambas as narrativas, poder-se-ia até
afirmar que a referência ao livro é documental, pois demonstra como se tratava de um objeto
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
que, cada vez mais, fazia parte dos lares de uma classe média que começava a se consolidar
nos centros urbanos do Brasil pós-joanino. Como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman
(2002), é apenas no século XIX que se originam as primeiras formas de um público leitor,
embora ralo e inconsistente inicialmente.
No que diz respeito ao romance Quincas Borba, o objeto livro também está associado a
uma classe social em ascensão, porém, o sentido é outro em relação ao que se observou em
Helena e Casa Velha, pois o personagem principal não mantém com os livros uma relação de
encantamento, apenas reconhece o seu poder simbólico no seio social em que vive. Neste
caso, o livro é apresentado como um objeto material que, em razão do valor de mercado,
figura como parte de uma herança, mostrando assim que a condição de mercadoria por ora
prevalece sobre o seu status cultural. É o que se pode perceber através da trajetória de
Rubião, personagem principal, que enriquece com a herança deixada por Quincas Borba:
28
Quando o testamento foi aberto, Rubião quase caiu para trás.
Adivinhais por quê. Era nomeado herdeiro universal do testador.
Não cinco, nem dez, nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro,
especificados os bens, casas na Corte, uma em Barbacena, escravos,
apólices, ações do banco do Brasil e de outras instituições, jóias,
dinheiro amoedado, livros, — tudo finalmente passava às mãos do
Rubião, sem desvios, sem deixas [sic] a nenhuma pessoa, nem
esmolas, nem dívidas. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 654).
É importante frisar nessa passagem outro aspecto associado à valoração dos livros,
itens que poderiam compor o rol dos bens listados em uma herança. De acordo com Robert
Darnton (2010), os diversos usos que as pessoas fazem dos livros, tais como: seu uso em
juramentos, troca de presentes, concessão de prêmios e doação de heranças fornecem
indícios de seu significado para diferentes sociedades. Ao comparar o livro com outros
materiais impressos, tais como folhetos, gazetas e cartas manuscritas, André Belo (2002) diz
que os livros eram merecedores de inventário, ao passo que esses outros objetos escritos, por
serem mais frágeis, eram considerados de pouco valor econômico para vender e, por isso,
não eram registrados, chamando a atenção para o fato de que, entre os séculos XV e XVII, as
publicações não se resumiam ao livro impresso, circunstância que deveria ser levada em
consideração em pesquisas sobre a leitura.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Na narrativa, Rubião pensa, de início, em obter lucro com a venda dos livros
herdados, o que já demonstra sua relação fugaz com os livros:
Herdeiro de tudo, nem uma colherinha menos. E quanto seria tudo?
Ia ele pensando. Casas, apólices, ações, escravos, roupa, louça, alguns
quadros, que ele teria na Corte, porque era homem de muito gosto,
tratava das cousas de arte com grande saber. E livros? Devia ter
muitos livros, citava muitos deles. Mas em quanto andaria tudo? Cem
contos? Talvez duzentos. Era possível; Trezentos mesmo não havia
que admirar. Trezentos contos! Trezentos! (ASSIS, 2006, v. 1, p. 654).
No entanto, em sua necessidade de, cada vez mais, impressionar as opiniões dos seus
convivas, sobretudo de Sofia, mulher pela qual se apaixona ainda que fosse esposa do seu
amigo Palha, muda de ideia, desiste de vender os livros e resolve mantê-los em sua casa, por
motivos tão somente de ostentação. Com a instalação definitiva na Corte, ele passa a dialogar
com os bens simbólicos da classe burguesa, entre eles: bronzes, quadros, bandejas de prata,
cálices, charutos importados e livros; além de adquirir alguns hábitos, tais como: assinar
jornais (mesmo sem os ler) e ir ao teatro (mesmo sem gostar):
Rubião protegia largamente as letras. Livros que lhe eram dedicados,
entravam para o prelo com a garantia de duzentos e trezentos
exemplares. Tinha diplomas e diplomas de sociedades literárias,
coreográficas, pias, e era juntamente sócio de uma Congregação
Católica e de um Grêmio Protestante, não se tendo lembrado de um
quando lhe falaram do outro; o que fazia era pagar regularmente as
mensalidades de ambos. Assinava jornais sem os ler. Um dia, ao
pagar o semestre de um, que lhe haviam mandado, é que soube, pelo
cobrador, que era do partido do governo; mandou o cobrador ao
diabo. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 760).
Ressalta-se, a partir da passagem acima, a artificialidade com que a personagem
principal se relaciona com os livros, principalmente na condição de leitor. É interessante que,
apesar de ter sido professor, Rubião não se interessa pelos livros a título de devoção como,
pelo menos, fazem alguns personagens de Helena e de Casa Velha. Rubião lê fortuitamente e,
29
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
quando o faz, desiste por qualquer trivialidade; ele é um típico leitor de folhetins, e sua
leitura se constitui mais como uma maneira de se entreter.
É importante frisar que o tipo de leitura representado em Rubião, como uma espécie
de distração, está atrelado ao que se convencionou chamar de literatura de entretenimento,
ou aquela destinada à cultura de massa. A partir da leitura que faz de Umberto Eco (2004)
sobre a cultura de massa e de seus “níveis” de elaboração, José Paulo Paes (1990) traça um
panorama da literatura de entretenimento, desde o seu surgimento até a sua consagração,
partindo de um contexto mais amplo até se chegar ao Brasil. O autor brasileiro afirma que o
surgimento dessa literatura em nível mundial se deu em fins do século XVIII, e sua
consolidação definitiva ocorreu durante o século XIX:
Fosse a princípio através do folhetim semanal ou do conto
esparsamente publicado na imprensa, fosse mais tarde sob a forma
permanente do livro, o certo é que os vários gêneros da literatura de
entretenimento tiveram, na segunda metade do século XIX, uma
legião de autores e uma vasta produção, avidamente consumida por
um público cada dia maior. (PAES, 1990, p. 31).
30
Ainda segundo o autor, foi esse gênero o responsável pelo surgimento paulatino de
novos leitores em diversos países, inclusive, no Brasil, vindos do proletariado urbano e do
campesinato, os quais contavam também com os avanços da instrução pública.
A partir das observações de José Paulo Paes (1990), pode-se dizer que o tratamento do
livro como um meio de entretenimento começou a surgiu no contexto da segunda metade do
século XIX brasileiro, o que pode ser contemplado em Quincas Borba, romance publicado em
1891, cujas ações se passam no contexto brasileiro das décadas de 60 e 70 daquele século,
considerando sobretudo a prática de leitura desenvolvida por Rubião.
Nessa mesma linha, Alessandra El Far (2006), ao tratar das estratégias de alguns
livreiros no contexto brasileiro do final do século XIX, os quais apostaram nos mais variados
gêneros da literatura e também em livros baratos, de leitura fácil e atraente, diz que esses
comerciantes contribuíram tanto para diversificar o mercado livreiro quanto para ampliar o
público consumidor de livros, para além das camadas abastadas e ilustradas da sociedade.
Dessa forma, os setores menos favorecidos economicamente passariam a ter acesso a esse
objeto impresso e, ao mesmo tempo, ter-se-ia aflorado um público cujo tratamento destinado
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
ao livro passaria pelo passatempo e pela diversão. E era assim que Rubião se comportava
como leitor:
Ultimamente, ocupava-se muito em ler; lia romances, mas só os
históricos de Dumas pai, ou os contemporâneos de Feuillet, estes com
dificuldade, por não conhecer bem a língua original. Dos primeiros
sobravam traduções. Arriscava-se a algum mais, se lhe achava o
principal dos outros, uma sociedade fidalga e régia. Aquelas cenas da
Corte de França, inventadas pelo maravilhoso Dumas, e os seus
nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de
Feuillet, metidos em estufas ricas, todos eles com palavras mui
compostas, polidas, altivas e graciosas, faziam-lhe passar o tempo às
carreiras. Quase sempre, acabava com o livro caído e os olhos no ar,
pensando. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 712).
A leitura como forma de passatempo também aparece no conto “Missa do Galo”,
publicado em 1899, cujo enredo se dá entre os anos de 1861 e 1862. O narrador, o jovem
Nogueira, lê para fazer passar o tempo, enquanto espera à chegada da meia-noite, horário
combinado com o vizinho de irem assistir à Missa do Galo:
Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio
do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e
à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei
ainda uma vez ao cavalo magro de D’ Artagnan e fui-me às
aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas.
Os minutos voavam, ao contrário do que costumavam fazer, quando
são de espera [...]. (ASSIS, 2006, v. 2, p. 606).
Como se pode observar, a preferência de Rubião e de Nogueira pelos romancesfolhetins, como os de Alexandre Dumas, representa o gosto de uma grande camada de
leitores brasileiros do período. Levando em consideração que ambos os personagens se
encontram no Rio de Janeiro, pode-se associar essa inclinação aos romances-folhetins
franceses ao gosto do leitor carioca que, segundo Needell (1993), era francófilo, volúvel
conforme a moda e fetichista.
Pode-se inferir também que Machado de Assis, por meio de seus personagens, alude
à massificação do livro como uma mercadoria de consumo para o escasso público leitor do
século XIX. Além disso, demonstra conhecimento de que os escritores teriam que submeter
31
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
as suas obras às leis de mercado, o que implica também ter que escrever algo que agradasse
ao público, como acontecia com as publicações em folhetins lidas por Rubião e por Nogueira.
O escritor conseguia, dessa forma, discutir o processo de mudança que os livros estavam
sofrendo com o advento da postura de transformá-los em objetos de mercado, os quais não
perdiam o caráter de fetiche também.
O que se verifica, então, é que diferentemente de Helena e Casa Velha, em Quincas
Borba, destaca-se o livro como forma de entretenimento, deixando, portanto, de ser tão
venerado. Os personagens destacados também indicam uma importante distinção em sua
relação com os livros: Estácio e o padre Melchior buscam conhecimento nos livros e os veem
como parte de suas vidas. Quanto às personagens D. Antônia e Lalau, não há indícios de que
sejam leitoras dos conteúdos dos livros, mas a primeira mantém a biblioteca em sua casa
como um verdadeiro santuário, e ambas prestam uma espécie de culto aos livros. Já para
Rubião, os livros servem para entretê-lo ou fazer passar o tempo.
Isso implica reconhecer uma mudança na percepção de Machado de Assis no que diz
respeito à relação dos leitores com os objetos impressos e também uma modificação da
imagem pública do livro, que não estaria atrelado apenas à ideia de suporte do saber e da
32
cultura, mas também à de um importante meio de entretenimento.
Referências Bibliográficas
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Joana Angélica d’Ávila. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
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na virada do século. Tradução de Celso Nogueira. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. In: ______. Vale quanto pesa: ensaios sobre
questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 25-40.
33
NAS ENTRELINHAS DO FACEBOOK: LEITURA MULTIMODAL DOS
GÊNEROS DIGITAIS
Clériston Jesus da Cruz
Graduando (UNEB/PIBID)
clé[email protected]
Denise Silva Bitencourt
Graduanda (UNEB/PIBID)
[email protected]
Ilza Carla Reis de Oliveira
Docente (UNEB)
[email protected]
RESUMO
Este trabalho surge com a proposta de analisar os textos imagéticos, com linguagem
verbal e não verbal, compartilhados no Grupo PIBID/UNEB (Campus XXII) - PIBID
XXII - presente na rede social Facebook, mediante os estudos dos Gêneros Textuais, no
que concerne basicamente à Multimodalidade. A multimodalidade é um traço
constitutivo dos gêneros textuais, visto que, desde o discurso oral até a composição
escrita, estes apossam-se dos mais diversos recursos semióticos para que os textos
possam ser facilmente entendidos pelos sentidos. Assim, o objetivo motivador desse
artigo é perceber como a concatenação dos diversos recursos semióticos, nas
postagens compartilhadas pelos integrantes do referido grupo, auxiliam para a
construção de sentidos dos textos multimodais, da mesma maneira que contribuem
para o trabalho do professor em sala de aula, pois os avanços tecnológicos
modificaram as relações socais, por conseguinte, essas modificações impactaram
inevitavelmente o nicho educacional. Dessa maneira, este artigo sustenta-se com base
nos estudos acerca dos gêneros textuais, com maior enfoque no que se refere aos
textos multimodais. Ademais, o trabalho é motivado pelo Subprojeto do PIBID
(Conhecimento, criação e reflexão sobre práticas de leitura e escrita nas escolas
euclidenses: dos formatos tradicionais aos novos suportes), bem como pelo Projeto
de Extensão (Multiletramentos: O Trabalho com Leitura e Escrita por meio de
Projetos de Práticas de Letramentos locais envolvendo as TICs), uma vez que
ambos os projetos possuem como tema norteador a leitura e procuram refletir sobre
suas práticas. Como metodologia para a presente pesquisa, adotou-se o método
qualitativo, cunhado à coleta de dados de caráter etnográfico, no qual a participação
e observação do pesquisador é necessária, visto que para ter acesso ao material para
análise se fez necessário ser parte integrante da rede Facebook. Para percorrer o trajeto
de análise textual, volveu-se à Linguística Sistêmico-Funcional, de Halliday, e a
Semiótica Social, bem como à teoria da multimodalidade, de Kress & Van Leeuwen a
partir da percepção de Dionísio & Vasconcelos (2013, 2014). Ainda sobre
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Multimodalidades, reportou-se a Rojo & Moura (2012), Serafim ([s.d]), Marques
(2009). Em relação ao objeto de pesquisa, lançou-se mão de Kirkpatrick (2011) que faz
todo um estudo acerca do fenômeno mundial Facebook. Quanto ao Gênero Digital,
buscou-se como aporte teórico os estudos de Mascurchi (2010).
PALAVRAS-CHAVE: Facebook; Leitura; Multimodalidade; PIBID.
1
APRESENTAÇÃO
Em um alojamento de estudantes em Cambridge, Massachusetts, um garoto
de 19 anos, une-se a três colegas com ideias inovadoras. A priori, não previam a
dimensão de suas conjecturas, todavia, em um ambiente vulgarmente desorganizado
surgiria um suporte que revolucionaria suas vidas. De desenhos rabiscados em um
quadro-branco, Mark Zuckerberg conquistou o mundo. As fórmulas e símbolos
traçados pelo quarteto tornar-se-iam o que hoje conhecemos como Facebook
(KIRKPATRICK, 2011).
De acordo com Kirkpatrick (2011), inicialmente, a ferramenta era utilizada
somente pelos alunos de Harvard, posteriormente, devido o grande sucesso obtido,
expandiu-se involuntariamente em escala mundial. Desse modo, o Facebook ganhou
uma gama de funcionalidades, que se distanciou de sua concepção primária: a
criação de uma web site para atender as necessidades que os universitários tinham de
conhecer os perfis dos alunos matriculados.
Dessa maneira, este artigo sustenta-se com base nos estudos acerca dos
gêneros textuais, com maior efetividade no que se refere aos textos Multimodais, pois
essa espécie de texto utiliza-se de recursos que unificam as linguagens verbais, nãoverbais, gestuais, do mesmo modo que elementos pictóricos e tipográficos.
Em suma, este trabalho surge com a proposta de analisar os textos postulados
no grupo PIBID XXII presente na rede social Facebook, mediante os estudos dos
Gêneros Textuais, no que concerne basicamente a Multimodalidade. Assim, o
objetivo motivador é perceber como a concatenação dos diversos recursos semióticos,
nas postagens compartilhadas pelos integrantes do referido grupo, auxiliam para a
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
construção de sentidos dos textos multimodais, bem como auxiliam no ensino e na
leitura dos numerosos gêneros textuais.
Para percorrer o trajeto de análise textual, volveu-se à Linguística SistêmicoFuncional, de Halliday, e a Semiótica Social, bem como à teoria da multimodalidade,
de Kress & Van Leeuwen a partir da percepção de Dionísio & Vasconcelos (2013,
2014). Ainda sobre Multimodalidades, reportou-se a Rojo & Moura (2012), Serafim
(s/d). Atinente ao objeto de pesquisa, lançou-se mão de Kirkpatrick (2011). Quanto
ao Gênero Digital, buscou-se como aporte teórico os estudos de Mascurchi (2005) e
para a metodologia da coleta de dados da pesquisa, André (1995).
O Grupo é uma das muitas ferramentas disponibilizadas pelo Facebook.
Segundo a descrição disponível na própria página da rede social, “Os grupos tornam
mais fácil compartilhar com amigos, familiares e companheiros de equipe”. Dessa
maneira, a ferramenta Grupo oferece aos membros a possibilidade de interagir
dialogicamente, tendo como base os elementos que nele são distribuídos. Isto posto,
o grupo PIBID XXII constitui-se em um suporte que contribui para a ampliação das
36
discussões estabelecidas nas reuniões, em benefício do aprendizado individual,
crítico e reflexivo.
Partindo desse pressuposto, o objeto da pesquisa serão as postagens
compartilhadas no Grupo referente ao PIBID/UNEB, Campus XX – Euclides da
Cunha. Nele participam 59 pessoas, entre elas: Bolsistas de Iniciação à Docência,
Bolsistas de Supervisão e Coordenadores de Área. O Subprojeto Conhecimento,
criação e reflexão sobre práticas de leitura e escrita nas escolas euclidenses: dos
formatos tradicionais aos novos suportes “[..] foi pensado no sentido de desenvolver
a leitura, a escrita, garimpar informações diversas na área das diversas linguagens e
debater as práticas de leitura e escrita entre os envolvidos, oportunizando aos
participantes tecer redes a partir dos saberes individuais em prol da melhoria
particular, criativa e crítica...” (OLIVEIRA, 2014).
Como metodologia para a presente pesquisa, adotou-se o método qualitativo,
cunhado à coleta de dados de caráter etnográfico, no qual a participação e
observação do pesquisador é necessária, visto que para ter acesso ao material para
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
análise se fez necessário ser parte integrante da rede Facebook. Nesse seguimento,
Marli Eliza D. A. de André proporciona o seguinte esclarecimento:
Em que medida se pode dizer que um trabalho pode ser
caracterizado como do tipo etnográfico em educação? Em primeiro
lugar quando ele faz uso das técnicas que tradicionalmente são
associadas à etnografia, ou seja, a observação participante, a
entrevista intensiva e a análise de documentos.
A observação é chamada de participante porque parte do princípio
de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a
situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado. As entrevistas
têm a finalidade de aprofundar as questões e esclarecer os problemas
observados. Os documentos são usados no sentido de contextualizar
o fenômeno, explicitar suas vinculações mais profundas e completar
as informações coletadas através de outras fontes (1995, p. 25).
Portanto, assentamo-nos também nas informações de Marcuschi, que diz:
“move-nos a convicção de que uma etnografia da Internet é de grande relevância
para entender os hábitos sociais e lingüísticos das novas ‘tribos’ da imensa rede
mundial, que vêm se avolumando e diversificando a cada dia.” (2005, p.14)
Ao passo que este artigo é motivado pelo Subprojeto do PIBID, também é
necessário destacar a relevância do curso de extensão Multiletramentos: O Trabalho
com Leitura e Escrita por meio de Projetos de Práticas de Letramentos locais
envolvendo as TICs, cuja finalidade é discutir e “ampliar as habilidades de leitura e
escrita e exercitar os conhecimentos linguísticos (oralidade, convenções da escrita,
gêneros textuais etc.)”, concernente aos multiletramentos, uma vez que ambos os
projetos possuem como tema norteador a leitura e procuram refletir sobre suas
práticas. O referido curso é coordenado e ministrado pela professora Ilza Carla Reis,
no campus XXII da UNEB, onde atualmente é professora substituta.
2
DOIS
LADOS
DA
MESMA
MOEDA:
MULTIMODALIDADES
E
MULTILETRAMENTOS
Os neologismos são criados quando emergem novos fatos, novas ideias, novas
maneiras de compreender os fenômenos (SOARES, 2009, p. 16). Em vista disso, por
volta da década de 80, irrompe um novo termo, denominado Letramento. Um dos
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
primeiros aparecimentos atribui-se à Kato (1986), no livro intitulado No mundo da
escrita: uma perspectiva psicolinguística. Posteriormente, o trabalho desenvolvido
por Tfouni (1988), acentua o vocábulo ao diferenciá-lo de alfabetização. Soares (2009,
p.15), considera a possibilidade de ser este “o momento em que letramento ganha o
estatuto de termo técnico no léxico dos campos da Educação e das Ciências
Linguísticas”. De maneira oposta à alfabetização, “letramento envolve muito mais do
que ler e escrever”, pois “é o uso dessas habilidades para atender às exigências
sociais” (SOARES, 2009, p. 74).
Entretanto, à medida que ocorrem as mudanças sociais, surgem-se outras
necessidades. Por consequência, em 1996, afirma-se, pela primeira vez, a premência
de uma pedagogia dos multiletramentos. Logo, o termo multiletramento foi
introduzido por pesquisadores integrantes do Grupo de Nova Londres, ao
salientarem “a necessidade de a escola tomar a seu cargo (...) os novos letramentos
emergentes na sociedade contemporânea, devido às novas TICs” (ROJO, 2012, p. 1112). Outrossim, o grupo evidenciara o fato de as novas ferramentas de acesso à
38
comunicação
acarretarem
novos
letramentos,
de
caráter
multimodal
ou
multissemiótico. Destarte, Rojo reitera que “para abranger esses dois “multi” — a
multiculturalidade característica das sociedades globalizadas e a multimodalidade
dos textos por meio dos quais a multiculturalidade se comunica e informa, o grupo
cunhou um termo ou conceito novo: multiletramentos” (ROJO, 2012, p. 13).
Concernente aos estudos modais, Gunter Kress – integrante do GNL, Theo van
Leeuwen e Robert Hodge – são considerados pioneiros, visto que propuseram o
desenvolvimento das principais noções da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF),
proposta por Michael Halliday. O posicionamento teórico de Halliday, acerca da LSF,
assinalou a instância em
compreender e descrever a linguagem em funcionamento como um
sistema de comunicação humana e não como um conjunto de regras
gerais, desvinculadas de seu contexto de uso. Para essa corrente teórica, a
língua organiza-se em torno de duas possibilidades alternativas: a cadeia
(o sintagma) e a escolha (o paradigma)... Vale ressaltar que o termo
sistêmico refere-se às redes de sistemas de linguagem (...). Já o termo
funcional refere-se às funções de linguagem, que usamos para produzir.
(CUNHA E SOUZA, 2011, p. 24-25)
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Considerando as postulações desenvolvidas pela LSF – três funções da
linguagem: ideacional, interpessoais e textuais, bem como a compreensão de texto
como “signo” – Kress e van Leeuwen propagaram, inicialmente, a Gramática de
Design Visual (GDV). Ao referir-se às palavras de Street, Dionísio (2014, p. 44)
destaca que o autor considerou a GDV “como sendo o primeiro momento dos
estudos sobre multimodalidade, pois a GDV traz ideias essenciais para o tratamento
da imagem na construção de sentido dos textos”.
Nesse emaranhado de conjecturas, acentua-se a Semiótica Social, que
compreende a comunicação como, intrinsecamente, multimodal (DIONISIO, 2014,
44). Em consequência, a multimodalidade surgiu como uma resposta à mudança
social e ao cenário da semiótica (idem).
A Lingüística Sistêmico-funcional e a Semiótica Social se cruzam
permitindo nos dizer que o ponto de partida de enfoques multimodais em
análises textuais está em estender-se a interpretação da linguagem e de
seus significados para uma vasta gama de modos comunicacionais e
representacionais
utilizados
numa
determinada
cultura.
A
multimodalidade assume que todos os modos semióticos foram moldados
através de seus usos cultural, histórico e ideológico para realizar funções
sociais. (PIMENTA, s/d, p. 4)
Palavras, imagens, elementos pictóricos, musicais, sonoros, gestuais, tabelas,
gráficos, redes sociais etc, são comumente utilizados em nossa sociedade, sem a
menor percepção de que estes se configuram como textos multimodais. A
multimodalidade é um traço constitutivo dos gêneros textuais, visto que, desde o
discurso oral até a composição escrita, estes apossam-se dos mais diversos recursos
semióticos para que os textos possam ser facilmente entendidos pelos sentidos.
Dessarte,
a
multimodalidade
prevê
sujeitos
que
escolhem
e
combinam
individualmente os recursos semióticos disponíveis com a finalidade de aperfeiçoar o
sentido dos textos e a sua capacidade de interação.
39
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Em vista disso, no livro Múltiplas Linguagens para o Ensino Médio, Dionísio
e Vasconcelos (2013, p. 21) traz à luz concepções de Van Leeuwen (2004: 285) sobre
Recursos Semióticos.
De acordo com os glossários existentes nos livros Introducing Social
Semiotics e The Routledge Handbook of Multimodal Analysis, a
definição de recurso semiótico que prevalece é a estabelecida por Van
Leeuwen: “Ações, materiais ou artefatos que nós usamos com
propósitos comunicativos, quer produzidos fisiologicamente - por
exemplo, com nosso aparato vocal, os músculos que usamos para
criar expressões faciais e gestos – ou tecnologicamente, por exemplo,
com lápis a tinta, ou computador e software - junto com os meios nos
quais cada um desses recursos podem ser organizados. Recursos
semióticos têm um sentido potencial, baseado nos usos passados e
numa série de possibilidades baseadas no usos possíveis [...].
A união entre multimodalidades e multiletramentos consiste no fato de que, se
os gêneros se materializam na forma de representação multimodal, na conjunção de
diversos recursos que se integram na construção do sentido, o conceito de letramento
também precisa ir além do meramente alfabético. Requer uma mudança também na
40
forma de ler os textos. Para compreender as multissemioses dos textos devemos
possuir múltiplas maneiras de ler. Os textos multimodais, que juntam os mais
variados elementos gráficos, constituem-se em uma dificuldade de compreensão
para quem somente decodifica (DIONÍSIO e VASCONCELOS, 2014, p. 43-44).
3
DO QUADRO-BRANCO À TELA: RECURSOS SEMIÓTICOS NO TEXTO
Com fundamento nas discussões traçadas até o momento, partir-se-á para as
análises das postagens retiradas do grupo PIBID XXII. Assim, será avaliado em
primazia como as três representações semióticas - imagem, palavra e tipografiaauxiliam a construção do sentido. Vale ressaltar que os textos foram selecionados
tendo em vista a amplitude de discursos construídos pelos integrantes do grupo em
meio à leitura dos textos multimodais.
No texto 1, representado pela figura compartilhada por Andréa Mascarenhas,
coordenadora do subprojeto PIBID no já referido campus, percebe-se que os recursos
semióticos vigentes assessoram a fabricação do sentido no texto multimodal. Desse
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
modo, a “utilização de recursos semióticos diversos pode auxiliar os leitores a
estabelecerem conexões não previstas na organização textual dos gêneros das
questões, guiando-os na busca pela compreensão. ” (MORAES, 2014, p. 80). Isto
posto, serão apresentadas análises feitas segundo a observação textual, com
especificidade nos objetos multimodais e nas semioses (múltiplas linguagens).
41
Figura 1:<https://www.facebook.com/groups/pibideuclides/>
Numa análise da primeira imagem percebe-se que a escrita em caixa alta (letra
bastão) demostra a intenção do autor em transmitir a mensagem com facilidade e
para um grupo inespecífico, pois a letra de características impressas é conhecida por
diversos sujeitos. O alinhamento à esquerda possibilita a compreensão de um texto
pautado na informalidade, visto que o texto formatado em justaposição é comumente
utilizado para produções formais (artigos acadêmicos, reportagens etc.), desvelando,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
por conseguinte, uma informação de amplo acesso, independentemente de seu perfil
social e cultural.
A partir da observação das cores, os diferentes tons de cinza destacam a
imparcialidade referente ao gênero - masculino e/ou feminino - uma vez que
culturalmente se convencionou atribuir cores específicas para retratar ambos os sexos
(azul para homens e rosa para mulheres). Esse pressuposto se corrobora na afirmação
de Barros (2012, p. 86): “[...] as cores atraem os homens e são, por eles, consideradas
quentes ou frias, leves ou pesadas, calmantes ou excitantes, alegres ou tristes, vivas
ou mortas, festivas ou de luto”.
O emprego da ferramenta gráfica Negrito, nas expressões “30 Reais, 20 Reais,
50 Reais”, remete-nos à incisiva temática do capitalismo, porquanto foi a partir deste
mote que se suscitou comentários díspares no grupo PIBID XXII.
42
A.M. Vamos ao debate! Por trás dessa 'matemática' estão postas
questões seríssimas e nunca tão atuais como agora! Abraços
[...]
A.O. Acho que trata-se de uma concepção familiar, ao menos no
meu modo de entender a questão, meu círculo familiar, por
exemplo sempre esteve estruturado no pilar da coletividade,
partindo desse pressuposto o que é de um é do outro e vice e versa,
assim pouco importa se o dinheiro é proveniente do trabalho da
mulher ou do homem, há uma colaboração mútua entre eles, a
famosa comunhão de bens.
A.O. Entretanto, a leitura acima é minha, pode ser que a real
intenção seja trazer a tona a discussão da mulher independente,
moderna, que inverteu os padrões sociais e agora sustenta seu
parceiro, ou ao menos ganha mais que ele, contra discurso
feminista ao chamado machismo.
[...]
E.A. Pelo que vejo e avalio sobre a questão, inferindo algumas
vivências, o texto trás um cenário onde a mulher detem a primazia,
a palavra final na hora do uso do dinheiro. dizer que a mulher tem
50 seria dizer que ela tem domínio sobre o dinheiro do marido
(bolso). A palavra dela que irá decidir o destino final deste.
[...]
A.O. Podemos ler, entre outras coisas: relações de dependência
desproporcional; camuflagem de um falso poder feminino;
desvalorização das funções domésticas, quando realizadas por
mulheres; descrédito na capacidade feminina de gerir as finanças
do lar...
I.C.R Ótimas leituras! E também percebo uma falsa impressão de
supremacia da mulher. Não estaria subentendido nesse "o homem
tem 30 reais e a mulher tem 20 reais" a ainda presente desigualdade
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
nos salários entre homens e mulheres que ocupam as mesmas
funções? Talvez a mensagem não traga esse contexto, mas logo
veio-me isso à mente!
A.M. Sim, I.C.R, querida, muito bem e pertinente sua colocação. Na
maior parte das vezes que escutamos/lemos essa 'pseudo' piada,
ficamos quase sempre presos na teia da brincadeira e quase
passamos batidos em relação aos tantos abismos que esse tipo de
discurso pode esconder de modo tão eficiente e ao mesmo tempo
tão cruel! É o velho e ainda atual retrato da mulher vista pelo
prisma social patriarcal.
Com base em Koch e Elias (2011), constata-se nas ponderações supracitadas,
uma concepção de leitura como um exercício fundamentado na interação autor-textoleitor, levando em consideração os conhecimentos do leitor, bem como seu lugar
social e vivências. Partindo desse pressuposto, é válido destacar que valorizar o leitor
e seus conhecimentos díspares “implica aceitar uma pluralidade de leituras e de
sentidos em relação a um mesmo texto” (KOCH, 2011, p. 21). Não obstante, os
comentários
apresentados,
paradoxalmente,
possuem
divergências
e
concomitantemente semelhanças, pois no traçar do debate os integrantes do grupo
ancoravam-se nos dizeres anteriores, com o intuito de arquitetar sua opinião
singular.
Na figura 2, capa do Jornal Extra, datado de 8 de julho de 2015, também
compartilhado pela professora doutora Andréa Mascarenhas, apresenta-se um fato
que fomentou diversas querelas. A morte de um assaltante amarrado em poste e
espancado até a morte por pedestres em São Luís (MA) movimentou a redação do
Jornal Extra a produzir uma capa, intitulada Do Tronco ao Poste, que despertou nos
leitores a memória de cenas ocorridas há 200 anos. O historiador Luiz Antônio Simas
(09/07/15), em entrevista ao Jornal Extra online, analisa as reações inflamadas à capa
impressa do EXTRA:
“Não basta acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra”. A
imagem do jovem negro amarrado a um poste mostra que, 127 anos
depois da abolição da escravatura, a sociedade brasileira ainda
reproduz as cenas que o abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910)
lutava para extirpar do país (MONTEAGUDO, 2015, s/p).
43
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
44
Figura 1: Fonte: <https://www.facebook.com/groups/pibideuclides/>.
No texto multimodal em análise se destaca os tons branco e preto, os quais
representam luto, discriminação, tristeza, angústia e morte. Desse modo, Barros,
acerca de ambas as cores reverbera
o branco é associado à pureza, à limpeza, à inocência, ao
desprendimento; é a cor da morte no Oriente; está relacionado, ao
mesmo tempo, com a existência, o excesso (de luz, de presença de
todas as cores) e com a falta, a ausência (de cor);
o preto é, também, ora relacionando com a noção de ausência, de
falta (de luz), ora com a de excesso, de saturação (de pigmento), como
é próprio do nome; daí ter os sentidos de sobriedade, dignidade,
mistério, fantasia, sofisticação, elegância e, ao mesmo tempo, os de
silêncio, morte, luto, penitência, terror; as pessoas que preferem o
preto são, em geral, tanto os rebeldes sociais, os marginais, quanto as
pessoas de poder, autoridade, tradição e responsabilidade (2012, p.
87-88).
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A escolha da imagem em preto e branco, na qual o negro se encontra preso no
pelourinho (instrumento de punição utilizado nas cidades brasileiras para punir os
infratores, consideravelmente os negros) é conhecida pelo receptor, uma vez que é
extremamente difundida nos livros didáticos, especificamente em História. Assim,
propicia de imediato uma interação entre enunciador e enunciatário, ativando os
conhecimentos prévios destes.
As letras em bastão utilizadas em ‘DO TRONCO AO POSTE’ chamam a
atenção do leitor para comunicar, de forma evidente, o conteúdo que será exposto à
reflexão pelo texto da reportagem. Ademais, o enunciador colocou primeiramente os
termos ‘DO TRONCO’, para posteriormente apresentar a imagem correspondente, e
assim sucessivamente, concedendo uma facilidade de compreensão por parte
daquele que chega ao texto.
A comparação entre as imagens, presentes na capa da revista, foram
elementos fundamentais para possibilitar a rememoração dos eventos históricos que
envolveram os afrodescendentes. Nesse ponto, percebe-se a presença de um dos
cinco fatores pragmáticos responsáveis para que a textualidade se estabeleça,
apontados por Beaugrande, Dressler e por Costa Val: a Intertextualidade. A respeito
disso observa-se que
Na produção e interpretação de um texto, os interlocutores se valem
de crenças e conhecimentos que fazem parte da história e da cultura
de sua sociedade, conhecimentos e crenças que lhes vieram sob a
forma de textos – falados e escritos – na família, na escola, na igreja,
no trabalho, no jornal, no rádio, na TV, na literatura, etc. Cada texto,
como diz Bakhtin, é como um elo na grande corrente de produções
verbais que circulam numa sociedade. Cada texto retoma textos
anteriores, reafirmando uns e contestando outros e, utilizando sua
‘matéria prima’, se inclui nessa “cadeia verbal”, pedindo resposta e se
propondo como ‘matéria prima’ para outros textos futuros. Ou seja, a
intertextualidade é fundamental, indispensável, na constituição de
qualquer texto (COSTA VAL, 2004, p. 04).
É válido ressaltar a presença da Situacionabilidade - fator pragmático de
textualidade - no que concerne ao contexto, uma vez que foi o ocorrido representado
pela última imagem que suscitou a discussão. Assim sendo, “o contexto pode,
realmente, definir o sentido do discurso e, normalmente, orienta também tanto a
45
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
produção quanto a recepção”, como afirma Costa Val (2004, p. 5). Por fim, a imagem,
em sua publicação na rede virtual, ainda acompanha uma pequena introdução (200
anos e a reflexão: evoluímos ou regredimos?) que convida o internauta a refletir antes
mesmo de adentrar no conteúdo proporcionado pelo texto multimodal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os avanços tecnológicos modificaram as relações socais, por conseguinte,
essas modificações impactaram inevitavelmente o nicho educacional. À vista disso,
os professores são colocados diante de uma nova perspectiva de multiletramento,
pois as inovações tecnológicas desencadearam novos gêneros discursivos,
ressignificando o ato de ler.
Sabe-se que, durante muito tempo, os livros constituídos por muitas figuras e
pouquíssimas palavras, foram destinados excepcionalmente às crianças, por serem
considerados ‘mais fáceis’. Em contrapartida, aos adultos eram atribuídos os livros
46
caracterizados pela supremacia do texto-verbal, em que as figuras se tornavam
esporádicas (DIONÍSIO, 2014, p. 13-14). Entretanto, essa postura tradicional não
subsiste nas hodiernas relações sociais, nas quais aumentam-se as possibilidades de
organização textual, prevalecendo o “visuoverbal”.
A estrutura social, caraterizada pela heterogeneidade e hibridismo, requer
uma combinação de diversos modos de representação de sentidos para compor
textos. Com as análises das imagens percebe-se que as redes sociais, em especial o
Facebook, oportunizam a inter-relação entre texto escrito, imagens e outros elementos
gráficos. Assim, constata-se que os textos compostos pela aglutinação de variados
recursos geradores de significados, isto é, recursos semióticos, contribuem para a
efetivação de textos multimodais e, por conseguinte, uma prática de letramento que
põe o leitor em contato com diferentes estruturas textuais.
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47
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48
VASCONCELOS, Leila Janot de. DIONISIO, Angela Paiva. Multimodalidade,
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Clecio Bunzen e Márcia Mendonça (Orgs.). - São Paulo : Parábola Editorial, 2013, p.
43-68.
A LEITURA PARA ALÉM DA DECODIFICAÇÃO DE PALAVRAS: UMA
EXPERIÊNCIA FORMATIVA PROPORCIONADA PELO PIBID
Fabrício Oliveira da Silva
UNEB – Universidade do Estado da Bahia
[email protected]
RESUMO
Este artigo discute a prática de leitura instituída em uma turma do Ensino
Fundamental, da Escola Municipal São Pedro, localizada no município de Irecê-Ba, a
partir das experiências formativas vivenciadas no Programa Institucional de bolsa de
Iniciação à Docência – PIBID. Tem como objetivo refletir sobre as contribuições que o
PIBID favorece ao processo de leitura em se tratando de crianças do Ensino
Fundamental. Nesse sentido, procura a partir das experiências vivenciadas no
âmbito do programa apresentar uma experiência do trabalho desenvolvido na
referida turma. Enfoca as contribuições do programa para a formação do pedagogo,
evidenciando a escola como lócus de formação e de lugar em que as observações
constituem elementos essenciais para o bom desenvolvimento de práticas de ensino
de leitura e de escrita. Relaciona tal experiência ao fortalecimento da formação
docente que através da prática do dia-a-dia proporciona o deleite das múltiplas
vivências de um docente, aproximando a teoria discutida na universidade à prática
cotidiana da escola. Nesta direção, a formação docente é potencializada pela
condição de inserção do licenciando na complexidade da realidade escolar,
considerando diferentes tempos de organização do trabalho educativo realizado pela
escola. O PIBID é tecido em sua organização estrutural, por meio da qual apresento o
subprojeto desenvolvido no âmbito do colegiado de pedagogia da UNEB, no DCHTCampus XVI no município de Irecê. A análise ancora-se no desenvolvimento das
atividades de leitura a partir de uma visão clássica de alfabetização, tendo como
referência Ferreiro (2011) e Jolibert (1994). Explicita como se constitui o PIBID
enquanto projeto de iniciação à docência, tomando como embasamento teórico as
diretrizes do próprio programa. Nessa perspectiva, este trabalho se desenvolveu por
meio das experiências proporcionadas pelo acompanhamento às aulas, conversas
estabelecidas com a professora e supervisora do projeto, atividades de leitura e
escrita, aproximação com os alunos, reuniões com o coordenador de área, bem como
leituras desenvolvidas a partir da realidade da escola. Visa refletir a prática de leitura
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
não somente como decodificação de palavras, fundamentando tal perspectiva em
Martins (2007) à sombra da discussão para reforçar a leitura como prática de mundo,
de interpretação de objetos, imagens, senas e situações que cercam o cotidiano de
cada um. Em outras palavras, a concepção de leitura que é desenvolvida neste artigo
ancora-se na ideia de que o sujeito é agente do processo de produção de sentidos e
produz a leitura numa perspectiva dialógica, em que o leitor é também produtor de
significados para aquilo que lê. Logo, ler não significa apenas decodificar os signos
linguísticos.
PALAVRAS- CHAVE: PIBID, Leitura, Formação docente, Alfabetização
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo divide-se em três sessões. A primeira intitulada tecendo o
PIBID discorre sobre como se dá a organização do programa em sua esfera maior.
Ressalta a configuração do PIBID no âmbito da Universidade do Estado da Bahia,
analisando a implementação das ações do PIBID no âmbito do DCHT – Campus XVI
– Irecê, que teve início ano de 2012.
Na segunda sessão nomeada de o impacto do PIBID na prática da leitura,
50
estabelece-se um dialogo com os autores Ferreiro (2011), Jolibert (1994) e Martins
(2007) para promover embasamento teórico sobre as vivências de observações das
bolsistas, estudantes de licenciatura em pedagogia. Neste panorama aborda-se o
lúdico no processo de alfabetização das crianças como elemento favorecedor do
despertar das mesmas para o universo da leitura.
A terceira e última sessão recebe o nome de fortalecimento da formação
docente. Trata das contribuições do PIBID para a formação dos estudantes tendo em
vista que as bolsistas servem como disseminadores das práticas proporcionadas pelo
programa, pois as mesmas se inserem na escola desde os primeiros semestres do
curso, relacionando a teoria com a prática docente de sala de aula, além de contribuir
diretamente para a promoção de discussões sobre as inovações pedagógicas com os
supervisores, professores regentes da escola básica, em uma dialética constante em
que as leituras vão sendo realizadas como forma de atualização de conhecimentos.
Ademais, o artigo, ancora-se nas concepções teóricas de Freire (1996) e Paiva (2010),
focalizando o lugar dos processos de formação do professor.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
2. TECENDO O PIBID
Programa Institucional de bolsa de Iniciação a Docência (PIBID) é organizado
pelo o Ministério da Educação, sendo o mesmo financiado pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
A UNEB possui cerca de 33 mil alunos que fazem curso de licenciatura,
muitos oriundos das camadas populares e que fizeram o ensino fundamental e
médio em escolas públicas. Evidencia-se uma grande parcela eminente do processo
de cotas, pois a UNEB é pioneira nesta política de ação afirmativa. Neste sentido é
que nasce o PIBID no cenário desta universidade, com vistas a potencializar os
processos de formação dos estudantes que fazem licenciatura.
Surge o PIBID na UNEB em 2009 com o intuito de integrar o estudante de
licenciatura em seu universo de trabalho, diminuir os índices de evasão, despertar
nos alunos um interesse e um envolvimento maior com a docência, propiciar uma
correlação entre a teoria e prática desde os primeiros semestres, fornecer subsídios de
formação de conhecimento quanto à realidade das escolas e ao mesmo tempo
aprovisionar uma formação continuada aos professores da escola básica com o
desígnio de melhorar os indicadores da escola pública e assim estreitar os laços entre
Universidade e Escola Básica. Neste contexto, o projeto institucional coaduna-se com
as orientações propostas pelo MEC. São os objetivos proposto no edital interno do
PIBID:
a) inserir os estudantes dos cursos de Licenciatura da UNEB na
cultura organizacional das escolas da Educação Básica do Estado da
Bahia; b) valorizar o magistério, incentivando os estudantes que
optam pela carreira docente; c) promover a melhoria da qualidade da
Educação Básica do Estado da Bahia; d) promover a articulação
integrada da educação superior com a educação básica; e) elevar a
qualidade das ações acadêmicas voltadas à formação inicial de
professores nos cursos de licenciaturas da UNEB; f) estimular a
integração da educação superior com a educação básica no ensino
fundamental e médio, de modo a estabelecer projetos de cooperação
que elevem a qualidade do ensino nas escolas da rede pública; g)
fomentar experiências metodológicas e práticas docentes de caráter
inovador, que utilizem recursos de tecnologia da informação e da
comunicação, e que se orientem para a superação de problemas
identificados no processo ensino-aprendizagem; h) valorizar o espaço
51
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
da escola pública como campo de experiência para a construção do
conhecimento na formação de professores para a educação básica; e
i) proporcionar aos futuros professores participação em ações,
experiências metodológicas e práticas docentes inovadoras,
articuladas com a realidade local da escola. (Edital PIDID UNEB,
2011, p.1)
O PIBID funciona na UNEB considerando os subprojetos que estão
espalhados em 18 campi, somando 669 bolsistas de Iniciação a Docência
(Licenciandos), 79 bolsistas de supervisão (professores da Educação Básica) em 26
escolas públicas parceiras (estaduais e municipais).
O coordenador de área é um professor efetivo da universidade, o qual tem
um projeto de pesquisa-ação relacionado ao curso e aprovado pela equipe da CAPES.
Constitui no âmbito do subprojeto como a pessoa responsável por coordenar,
estruturar as ações dos supervisores e dos bolsistas de iniciação a docência (ID). Os
supervisores são professores concursados da rede pública de ensino com pelo menos
dois anos de experiência na instituição. Integram-se ao projeto na perspectiva de
52
abrirem as portas das suas salas para receberem os bolsistas de ID e instrumentalizálos mostrando a realidade da escola em suas diversas formas e anseios. Portanto, esta
ação está também entendida como um momento em que o supervisor busca da
Universidade ações ressignificadoras da sua práxis escolar.
Já o bolsista ID tem por obrigação cumprir a carga horária, de pelo menos, 30
horas mensais na escola, desenvolvendo observação participante, orientado e
acompanhado pelo supervisor. Em uma esfera geral todos os três seguimentos
produzem e entregam relatórios a cada quatro meses, evidenciando as impressões e
análises oriundas de cada ação desenvolvida ao longo do quadrimestre. Isto por que
a CAPES acompanha o trabalho que está sendo desenvolvido em cada instância além
de conferir fielmente as frequências de ambas às partes.
Eminentemente o supervisor e o bolsista ID precisam passar por um processo
seletivo o qual vai deste a entrega da documentação solicitada pelo edital com,
escritura de uma carta de caráter elucidativo dos reais interesses para inserção no
programa. Há ainda a realização de uma entrevista, por meio da qual os candidatos
precisam esclarecer a sua disponibilidade e mostrar interesse em atuar efetivamente
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
nas ações que serão implementadas no subprojeto. Já a seleção para coordenador de
área está condicionada à escrita do subprojeto e sua submissão à pró-reitoria de
graduação da Univerisadade.
O funcionamento do PIBID em Irecê campus XVI no curso de Licenciatura
Plena em Pedagogia está estruturado com a participação de um universo de 24
bolsistas de iniciação à docência, de um coordenador de área, e de três supervisores,
desenvolvendo as ações em três escolas Municipais parceiras. São elas: Escola
Municipal Duque de Caxias, Escola Municipal Marcionilio Rosa e Escola Municipal
São Pedro. Por ser um subprojeto desenvolvido no curso de Pedagogia, as escolas são
da esfera municipal, exatamente pela possibilidade de desenvolvimento das ações
nas séries iniciais do ensino fundamental.
A divisão se dá de uma forma em que há um supervisor para cada escola
recebendo oito bolsistas para trabalharem subprojetos em diferentes perspectivas
condizentes com a realidade que em cada espaço educativo se evidencia. Cada
supervisor recebe dois bolsistas de ID por dia para realizar suas atividades,
totalizando quatro dias da semana. Em um dia específico da semana, nas três
instituições parceiras, há um encontro com todos os agentes para a discussão das
ações pedagógicas que serão desenvolvidas em cada contexto da realidade escolar.
Nesta perspectiva busca-se favorecer uma análise documental, dialogar/sugerir no
planejamento semanal do professor e contribuir com a potencialização do trabalho
desenvolvido pelo mesmo. Esse encontro acontece duas vezes por mês e são
semelhantes aos encontros com o coordenador de área, que semanalmente faz o
alinhamento das ações norteadoras do subprojeto, esclarece a organização e o
funcionamento e promove avaliações de cada ação desenvolvida.
A observação participante por semana é de quatro horas e as reuniões com
supervisor ou coordenador são de duas horas. Há ainda duas horas semanais
dedicadas a estudos bibliográficos que sejam relevantes e fundantes com a essência
do projeto, o qual tem por essência desenvolver estratégias para a promoção de
habilidades de escrita e de leitura em cada escola. Cumprem-se, portanto, um total
de trinta e duas horas semanais, que são efetivamente exigidas pelo programa.
53
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Em cada escola há uma perspectiva de se entender e estudar o processo de
desenvolvimento de leitura e de escrita. Partindo da realidade da Escola Municipal
São Pedro, as bolsistas puderam relacionar diretrizes do subprojeto tendo em vista os
estudos do processo de alfabetização com as ações previstas num projeto interno da
unidade, intulado “Leitura na perspectiva de alfabetização”. Trata-se de um projeto
voltado para o encanto e o fascínio pela leitura através do lúdico e da poesia nas
séries iniciais com o objetivo de refletir sobre o impacto que a parceria PIBID/ escola
causa no processo de leitura e alfabetização estreitando assim o mundo da leitura e o
universo da infância.
3. IMPACTO DO PIBID NA PRÁTICA DE LEITURA
De início a primeira impressão ao adentrar numa turma de 1º ano, da Escola
Municipal São Pedro, é a de que seria impossível o desenvolvimento do trabalho de
uma professora de alfabetização, considerando que as turmas apresentam em torno
de trinta alunos. É muito complicado o acompanhamento individual, pois enquanto
54
uma criança é observada, as demais não ficam quietas.
Ademais, as bolsistas de iniciação depararam-se com crianças que
preocupam quanto aos modos de trabalhar e conviver em grupo. Encontraram
crianças que provêm de uma realidade preocupante. Em sua maioria revelam-se
como pessoas agressivas e não respeitam colegas e professores. Vivem em um
universo de extrema permissividade ou falta de limites fora da escola. Quando estão
nela não aceitam ouvir um não, não obedecem à professora e ainda perturbam as
outras crianças e o desenvolvimento das atividades pedagógicas da aula.
É ainda muito angustiador, em uma situação como essa, para uma professora
trabalhar com práticas de leitura, seja atividade escrita, leitura compartilhada ou
momento da leitura. É uma tarefa quase que impossível a de conseguir observar
individualmente cada criança, pois é notável em uma única turma alunos com
realidades bem diferentes. Enquanto se têm crianças com o nível de leitura bem
desenvolvido, outras ainda nem conseguem reconhecer todas as letras do alfabeto.
Numa atmosfera em que a pouca habilidade das crianças com a escrita, bem como a
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
agitação e inquietação delas, fica difícil prosseguir com as atividades de leitura e
desenvolver a contento um trabalho de qualidade.
Com o tempo e com muito diálogo com os estudantes, a situação vai se
revertendo e a professora cultiva o respeito dos alunos que internalizam certas regras
para um bom convívio em grupo. Há de se ressaltar que com a chegada das bolsistas
do PIBID, a professora vai tendo condições de fazer atendimentos individualizados,
pois enquanto o faz, as bolsistas vão encaminhando atividades com o restante da
classe, que passa também a desenvolver carisma e respeito pelas licenciandas.
Percebe-se a relevância de se poder dar um suporte ao trabalho docente ao observar
as crianças na perspectiva de se compreender o envolvimento de cada uma na
execução de tarefas. Mas de fato a percepção das bolsitas, por estarem em outra
dinâmica da realidade escolar, faz fluir um diálogo com a professora, com vistas a
produção de diretrizes norteadoras das atividades de leitura para garantir melhor
êxito no processo, uma vez que se percebe o caminho que a criança está trilhando
para fazer suas tarefas.
As bolsistas se configuram, principalmente em atividades de leitura, como
facilitadoras nesse processo, pois enquanto divididos em grupos para atividades
diferentes, de acordo com o nível de aprendizagem, é mais fácil perceber as
dificuldades de cada criança. É o caso das divisões para a realização de jogos que
necessitam do uso da leitura entre as crianças. Geralmente são divididas em grupos
supervisionados por uma bolsista, em que são escolhidos jogos que estimulem e
requeiram a prática de leitura.
É importante ressaltar que mesmo aquelas crianças que não conseguem ler
ou até mesmo reconhecer certas letras desenvolvem com êxito jogos que envolvem
técnicas de alfabetização. Isso é possível dadas as ilustrações contidas nas cartas dos
jogos, por meio das quais interpretam a lógica do jogo. Essa dinâmica remete a
Martins (2007) quando a autora evidencia que a leitura não se restringe ao
decodificar de palavras, mas está inserida em um universo maior, por meio do qual
lemos as imagens, os objetos ao nosso redor, uma sena ou uma simples situação. E é
isso o que acontece com estas crianças que ainda não leem e não decodificam
55
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
palavras, elas tornam o imagético um instrumento útil à interpretação para a
realização da atividade a elas exposta no momento.
Outra atividade de leitura que deu e está dando muito certo é criação
específica da dimensão espacial e temporal do momento de leitura. Antes este
momento acontecia na sala onde cada criança deveria dispor de algum livro para ler,
ainda que só lessem as imagens. Ou aindar, visava apenas focar no observar, para
tentar suscitar, a partir de outro tipo de interpretação, que é o caso das ilustrações,
imaginar o conteúdo, a história do livro. Porém tínhamos uma situação em que
poucos se interessavam em manusear os livros para compreender sua estrutura.
Ademais
dessa
dificuldade,
muitas
crianças
se
encontravam
dispersas
e
atrapalhavam com a bagunça que faziam, comprometendo o interesse dos poucos
que desejavam participar de atividades de leitura.
No decorrer da aula e com as atividades desenvolvidas, as bolsitas foram
percebendo e conhecendo melhor cada possibilidade e realidade de leitura e escrita
das crianças, por meio de identificação de níveis de leitura. Assim o objetivo era o de
56
compreender se estas se encontram no nível pré-silábico, silábico, silábico-alfabetico
ou alfabético. E para desenvolver bem essa tarefa, fizeram uma imersão teórica na
obre de Ferreiro (2011), que tece as hipóteses dos níveis de leitura, fazendo
identificações d3e cada classificação dos níveis. Partindo desse pressuposto de
conhecer cada um desses níveis, as licenciandas puderam reconhecê-los nas
produções das crianças e assim intervir de maneira mais eficiente para auxiliar a
transição de cada criança entre as etapas..
Contudo, para uma prática de leitura eficaz em que se desenvolva nas
crianças o hábito de ler é preciso, como fala Jolibert (1994), criar um ambiente
estimulante, que as crianças vivam em um meio propicio à prática de leitura,
encontrem livros a sua disposição, participem de momentos de leitura, uma
atividade desenvolvida sob essa ótica proporciona o prazer ao ler e torna esta
atividade mais significativa. E foi nessa ótica que o momento de leitura foi criado,
tendo como elemento motivador o interesse de cada criança pelo livro/texto que em
vez de lhe ser apresentado, era objeto de sua escolha no ambiente de leiturização.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
4. FORTALECIMENTO DA FORMAÇÃO DOCENTE
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência tem trazido
muitas contribuições para a trajetória acadêmica das bolsistas envolvidas,
principalmente para o fortalecimento da formação docente, instigando a busca por
novos conhecimentos.
Uma das grandes vantagens de compor a rede de bolsistas do PIBID é a de
estar diretamente ligado com a realidade a ser enfrentada futuramente, quando se
tornara professoras de fato, pois o programa insere desde muito cedo as licenciandas
nas escolas, fortalecendo assim a compreensão das estudantes para com o que ocorre
no universo escolar. A realidade da escola, com toda a sua complexidade se
apresenta como lócus primordial do processo de formação. É o compreender a escola
para nela atuar com competência e conhecimento de causa. É desse lugar que
buscamos analisar a metáfora que se popularizou no âmbito do PIBID: conhecer o
chão da escola.
Ao observar a prática, as atitudes, os métodos e a linguagem utilizada pela
professora supervisora, estão as licenciandas aprendendo como lidar com a docência,
pois o que se tem pela frente é um exemplo do qual se pode separar os atos
desnecessários que não trouxeram nenhum benefício ao aluno dos atos eficazes, que
deram certo e contribuíram para a aprendizagem dos estudantes e futuramente no
exercício do nosso ofício poder continuar produzindo novas formas e estratégias
daquilo que na escola se faz e que dá certo.
Com isso o PIBID está a colocar o estudante frente à sua futura profissão
levando-o a experiência de conhecer as atividades a serem desenvolvidas, os
obstáculos a serem ultrapassados e os caminhos a serem seguidos, contribuindo
assim para o esclarecimento dos altos e baixos da docência e evitando uma posterior
decepção, coisa que na maioria dos casos só são descoberta ao final do curso de
licenciatura, quando geralmente a escola é conhecida pelos estágios.
Através do PIBID podemos conhecer a escola no seu interior, as discussões
pedagógicas, o conselho de classe, o trabalho da gestão e coordenação pedagógica.
Tudo isso passa a ser objeto de análise e de compreensão, permitindo que o processo
formativo seja ancorado pela realidade escolar e por toda a sua complexidade e
57
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
dinâmica. Pelo programa, as licenciandas puderam participar também da jornada
pedagógica 2013 e compreender como se dá a escolha de métodos e ações a serem
desenvolvidas nas escolas em um ano letivo, podemos também conhecer como
funciona uma rede escolar e quais as políticas que a regem.
Infelizmente o programa não abrange a todos os estudantes das
universidades. O ingresso a este ainda é restrito a um número limitado de vagas, que
não chega a 20% do quantitativo de estudantes matriculados num curso de
licenciatura. Logo apenas alguns conseguem realizar as entrevistas e atender aos
critérios de documentações e vagas. Entretanto, sabe-se já que o ideal seria que todos
os licenciandos pudessem participar já que este programa traz contribuições
indispensáveis ao processo de formação docente.
A prática da professora supervisora na Escola Municipal São Pedro ainda
nos traz enorme contribuição por que ao observar tal prática está o licenciando
aprendendo a trabalhar os conteúdos de forma que a criança se identifique com
assuntos estudados, pois os livros didáticos existentes nas escolas públicas trazem
58
alguns exemplos que podem confundir a criança, ou seja, os alunos por estarem
inseridos em um território eminentemente rural, às vezes se perdem com assuntos
que são voltados para a realidade urbana, geralmente do sul do país. Quando a
supervisora está aplicando alguma atividade fica bastante visível que ela usa
exemplos de coisas do conhecimento das crianças, exemplo, que são internos ao
território de Irecê e isso é muito importante para a aprendizagem dos alunos desta
localidade, que se reconhecem diante do assunto abordado pela professora. É
importante também para as bolsistas que ao observá-la estão aprendendo a
universalizar/localizar o assunto para torná-lo mais acessível aos seus futuros
alunos, mesmo sabendo que no exercício da profissão um dos maiores recursos ainda
será o livro didático. Freire (1996) defende que o professor deve levar em conta os
conhecimentos prévios dos alunos e a sua realidade cotidiana.
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais
amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que
os educandos, sobretudo os da classe populares, chegam á ela saberes
socialmente construídos na pratica comunitária, mas também, como
há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos
conteúdos. (FREIRE, 1996, p.30).
Portanto, como grande lição, para as bolsitas, das experiências tecidas no
âmbito de práticas de leitura na escola, fica a concepção de que o professor não deve
se embasar apenas no livro didático, mas relacionar os assuntos contidos nos livros
com a realidade do aluno ou utilizar outros tipos de livros que trazem literaturas
atraentes aos estudantes. Como faz a professora supervisora, que traz interessantes e
curiosas historinhas de autores que escrevem para o público infantil. Alguns
inclusive da própria região como Paiva (2010), por exemplo, que em suas histórias
relata sobre brincadeira com lama e outras típicas das crianças nordestinas.
Conheci uma menina levada/Que brincava de lama na chuva
Ficava toda enlameada/Dobrava a esquina, fazia a curva/
E ia brincar com a molecada. (PAIVA, 2010, p.18).
Este contato com os livros faz com que a criança desperte seu interesse pela
leitura, motivada a fazê-la a partir dos aspectos de ser também produtor de sentidos.
A criança não busca ler o que está posto mecanicamente, mas assume uma posição de
criação de sentidos, realizando inferências e criações próprias, idealizadas pela sua
imaginação e motivação. Ao se observar essa prática da professora de colocar livros
de leituras diversas ao alcance dos alunos, estão (alunos, professora e bolsistas)
aprendendo conjuntamente e fortalecendo o nosso processo de formação.
A referida escola localiza-se em Irecê, território agrário onde a maioria dos
habitantes se mantém com o trabalho rural. O serviço que os alunos desta escola
conhecem com apropriação certamente será o da roça. Podem até conhecer a
engenharia, medicina, advocacia, mas provavelmente não terão segurança para falar
do assunto, no entanto se forem questionadas com relação ao trabalho agrícola
podem até dar aula sobre. Isso se dá devido ao contato que os alunos têm com tal
serviço, ou seja, ao falar de atividades da roça estão falando de algo seu que é visto e
vivido cotidianamente. Quando esses exemplos são trazidos para a sala de aula o
aluno aprende com mais facilidade, pois já têm noção sobre o que está sendo
discutido.
59
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Nesse aspecto o PIBID foi incentivo até para elaboração de projetos de
pesquisa e dentre eles um sobre educação do campo justamente porque houve a
percepção de que nas escolas localizadas nos meios rurais não há um currículo que
contempla a educação contextualizada.
Diante do exposto podemos dizer que o PIBID traz inúmeros benefícios para
os graduandos que dele participam, promovendo as atividades que são de grande
importância para a formação do indivíduo. Por isso se faz tão necessário na
universidade, assim como também na vida acadêmica de qualquer estudante.
Estando imersos na sala de aula, aprendemos que não precisamos nos prender ao
livro didático, mas ter flexibilidade para inserir assuntos locais, relacionados aos
globais que despertem e chamem a atenção dos alunos. Compreende-se também que
há diferentes formas de se trabalhar a leitura com as crianças. Sabe-se ainda que a
escola não funciona a ermo, mas que há toda uma política que lhe dá sustentação.
Eminentemente o programa funciona como disseminador de conhecimentos
adquiridos, uma vez que os bolsistas em seu universo acadêmico se colocam
60
enquanto sujeitos participantes das vivências escolares e que por isso desenvolvem
uma compreensão das dinâmicas da escola, que dão sentido ao fazer pedagógico,
objeto de seus estudos no curso de Pedagogia. Neste sentido, a participação no PIBID
permite aos bolsistas a falarem de suas experiências vividas na Educação Básica,
compartilhando assim toda sua experiência adquirida na escola com os colegas que
não fazem parte desta vivência. Ora esta fala é solicitada pelo professor de uma
disciplina da faculdade, ora ela vem espontânea no decorrer de uma conversa.
Propagando e contribuindo para implementação e formação da massa universitária
através de relatos de vivências.
Para um estudante de licenciatura se tornar um bom professor ele necessita
tanto dos conhecimentos teóricos vistos na academia quanto do treino da prática
docente, formando assim uma práxis em que a teoria está vinculada à prática.
Devido ao modelo de formação tratar as coisas isoladamente, tende-se a dissociar
teoria de prática, em que na verdade por trás de uma boa prática sempre existe uma
teoria que muitas vezes foge do nosso conhecimento. Por isso o PIBID torna-se
eficientemente formador de professores completos, exatamente por proporcionar
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
participação em experiências práticas, que faz ressignificar, ou não, toda uma teoria
de aprendizagem aprendida noa anos das licenciatura na universidade..
Além de contribuir para a formação continuada do professor supervisor, que
tem a oportunidade de está atualizando os seus conhecimentos acadêmicos em uma
parceria com os bolsistas de ID traçando uma relação dialética entre ambos, o
programa aproxima a realidade formativa vista no Ensino Superior com as
dimensões reais da Educação Básica. Sem utopias, sem devaneios, e sem ideologias.
O foco é o tempo real da escola em suas condições normais de temperatura e de
pressão.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreendemos que a parceria PIBID/ escola se configura de suma
importância, não somente para a formação docente, possibilitando aproximar a
prática da realidade das estudantes universitárias, como também um ótimo e
eficiente diálogo entre universidade e comunidade escolar. Assim universidade e
escola básica necessitam estreitar vínculos a fim de que se possa conhecer a realidade
educacional presente na comunidade na qual a universidade está inserida e que nela
se consiga intervir a fim de ser obter bons resultados, como o favorecimento de
melhorias nos indicadores de aprendizagem de leitura e escrita das crianças.
Ao estreitar os vínculos entre esses dois polos, universidade e escola, será
possível assim como ocorre no decorrer das atividades proporcionadas pelo PIBID
um compartilhamento de saberes, em que se leva as experiências do dia-a-dia da
escola para a sala da universidade, promovendo discussões acadêmicas com base nas
dimensões locais e reais da comunidade. Há também de se ressaltar que há uma
grande contribuição e potencialização do papel da universidade, no que tange a
formar profissionais docentes com competência técnica e saber pedagógico oriundos
das teorias, mas que não se desvinculam das realidades práticas do ofício de ser
professor.
Com essa compreensão, também consideramos ser resultado das conversas e
de todo esse trabalho prático a motivação para a produção acadêmica. É necessário
61
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
darmos um retorno e compartilhar com colegas engajados na mesma área as
experiências vivenciadas nesse projeto de iniciação à docência. O PIBID enquanto
projeto de iniciação à docência possibilita aos estudantes dos cursos de licenciaturas
adentrarem no universo da escola e conhecer a realidade da mesma, sua prática
docente, intervenções pedagógicas esclarecendo e tornado concreto o que é discutido
e estudado na academia.
Ainda nesse processo proporciona à reflexão, instigando o pensamento a
refletir sobre a prática docente instituída na escola, fazendo com que as bolsistas
percebam-se, ou não, inseridas e motivadas a continuar nesse processo, licenciandose professoras de séries iniciais. Nesse caso constituiu como fortalecedor da formação
docente que encantou as bolsistas e enraizou a certeza do querer fazer parte da
docência.
É uma parceria que causa efeitos positivos no universo da sala de aula
observada pelas bolsistas e também na formação dessas graduandas. É positivo na
medida em que ajuda e facilita o trabalho de leitura realizado com as crianças
62
levando estas a aproveitarem melhor esse momento, e no processo de formação haja
vista que as universitárias adentram mais cedo na escola fazendo conhecer e
vivenciar esta realidade. Tanto as licenciandas, como os estudantes da escola básica
passam a realizar um processo de leitura que vai além da decodificação de palavras.
Lê-se as experiências, as imagens, o texto, o cotidiano, a docência, a escola, enfim, lêse a vida.
As observações, reuniões com a supervisora e com o coordenador de área do
projeto
possibilitaram
e
continuam
possibilitando
um
enriquecimento
de
conhecimento sobre os processos de leitura nas séries iniciais do ensino fundamental,
promovendo ações e estudos que objetivam o conhecimento de correntes teóricas e
práticas de uma leitura na perspectiva dialógica, em que a criança é também
produtora de sentidos. Através dessas vivências podemos afirmar que o início da
experiência docente se firmou em um terreno propício e motivador à continuidade
desse trabalho que se constitui na figura do professor.
Percebemos os reflexos desse projeto na vida acadêmica das licenciandas ao
perceber em aula e em meio às discussões como foram compreendendo a docência na
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
escola, sua complexidade e dinâmica. O foco na leitura e nos processos como as
crianças a desenvolvem permitiu perceber a importância que há para o professor se
aproximar das experiências das crianças, como forma de conhecer sua motivação e
interesse pela leitura. A pesar de este ser um projeto para poucos universitários é
através desses exemplos que as bolsitas puderam conseguir levar outros a conhecer
suas experiências enquanto bolsistas do PIBID. E indiretamente fazer pessoas alheias
ao projeto entender como este funciona.
Assim é de grande importância o PIBID para a prática de leitura do 1º ano,
da Escola Municipal São Pedro, que através das bolsistas desenvolve um trabalho de
alfabetização juntamente com a professora da referida turma a fim de formar nas
crianças o hábito de ler. Ainda é notório o papel desse projeto na vida e formação
acadêmica que fortalece o desejo de querer estar engajada na área educacional.
REFERÊNCIAS
FERREIRO, Emilia. Reflexões Sobre Alfabetização. 26ª Ed. Cortez. São Paulo, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a pratica educativa. 33ª Ed.
Paz e Terra. São Paulo, 1996.
JOLIBERT, Josette. Formando Crianças Leitoras. Artes Médicas. Porto Alegre, 1994.
MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 74ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007.
PAIVA, Núbia Pereira. Era uma vez uma poesia. Coleção Ciranda. Irecê- BA, 2010.
http://www.uneb.br/pibid/files/2010/09/edital_prograd_pibid_uneb_n.065_02.08.
2012.pdf
(acessado
em
12/08/2013)
63
FERNANDO BONASSI E OS MODOS DE SE LER LITERATURA NA
CONTEMPORANEIDADE
Fernanda Santos de Oliveira
Universidade do Estado da Bahia
[email protected]
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar os modos de leitura e as demandas do
texto literário, ao estabelecer uma relação entre leitura e literatura na
contemporaneidade, enfatizando as implicações das mídias nas novas configurações
do texto literário. Para tanto, partindo da análise da narrativa minimalista de
Fernando Bonassi, escritor contemporâneo, serão discutidos os novos moldes do
processo criativo e seus efeitos no fazer literário da era pós-moderna, marcada pela
fragmentação e superficialidade. Dessa forma, serão discutidos o método de
composição do autor e a maneira como as questões estéticas são problematizadas na
obra, de forma a questionar os padrões tradicionais de leitura e de literatura. A
escolha pela narrativa de Fernando Bonassi se justifica pela aproximação da mesma
com a atual linguagem cotidiana, formatada num instigante trabalho de exercício
poético. Fundamentam este trabalho reflexões sobre as relações entre cultura, leitura
e literatura pautadas nas concepções de Márcia Abreu, Néstor Canclini e HansRobert Jauss, além dos suportes teóricos da literatura contemporânea desenvolvidos
por Beatriz Resende, Karl Erik Schollhammer e Regina Dalcastagnè. Este trabalho,
portanto, incitará a discussão a respeito do lugar da leitura e da literatura na
contemporaneidade. O estudo da ficção contemporânea se justifica pela importância
de se refletir sobre as potencialidades das formas de representação de uma realidade
múltipla e diversificada, intercedida pela mídia. É no contexto de uma cultura
globalizante que se insere a atual vertente da literatura brasileira, envolta por uma
atmosfera híbrida marcada pelo descentramento. Ao entrelaçar o cotidiano, a poesia
e a mídia, Fernando Bonassi provoca um olhar desafiador e questionador sobre a
realidade, de tal forma que redimensiona a relação do leitor com o texto. Sua
narrativa minimalista, por sua vez, assumindo novas modulações estéticas, rearticula
o fazer literário, apontando para a possibilidade de ampliação do universo textual e
para uma maior interatividade com o leitor. Ao criar uma estética diferenciada para a
representação da subjetividade humana, o escritor atende às demandas de um
contexto que exige uma nova postura diante do processo criativo e do ato de ler.
Nesse sentido, por meio de uma linguagem inovadora, a arte literária permite que o
leitor exerça o seu papel de forma interativa. No interstício, portanto, entre a leitura e
a literatura o fazer artístico revisa paradigmas, desconstrói a institucionalização da
linguagem e reorganiza as relações autor-texto-leitor.
PALAVRAS-CHAVE: Fernando Bonassi;leitura;literatura;contemporaneidade.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
1
APRESENTAÇÃO
A discussão sobre a leitura e a literatura na contemporaneidade é
imprescindível ao considerar as novas modulações estabelecidas entre o autor, o
leitor e o texto. Nesse contexto imerso por novas plataformas de escrita, a escrita
torna-se urgente, assim como o leitor e o texto aproximam-se cada vez mais.
Numa sociedade de multimídias ou metamídias, requer uma revisão dos
conceitos tradicionais de leitura e literatura de forma que sejam atualizados às
demandas da contemporaneidade. Para tal entendimento, a Teoria da Recepção
auxilia ao abordar sobre a influência da mídia partindo do pressuposto da interação
entre texto e leitor.
Com o advento da internet, o processo de leitura virtualizou-se e tornou a
comunicação veloz. Nesse contexto de simultaneidade, rapidez e instantaneidade, a
escrita torna-se urgente como conseqüência de uma contemporaneidade midiática.
Pluralidade e diversidade são as marcas que conduzem o processo de leitura e de
escritura.
Nesse ínterim, evidencia-se como a leitura e o fazer literário estão imbricados
com a cultura de forma que são constantemente reconfigurados para se constituírem
em práticas mais adequadas ao tempo e espaço contemporâneos.
A escrita literária, hoje, é tomada por uma atmosfera da brevidade e
fugacidade. Nesse sentido, a narrativa contística contemporânea vem assumindo
uma formatação cada vez mais curta e ao assumir essa demanda da urgência, acaba
por provocar mudanças na atividade de leitura. O fazer literário, portanto,
transforma a relação entre o texto e o leitor.
E o texto literário, por sua vez, cada vez mais se aproxima do universo da web,
com sua estrutura fragmentada. Logo, as plataformas midiáticas implicam mudanças
nos modos da escritura literária, como também nos modos de ler. Por conseguinte,
há uma desterritorialização da leitura e da literatura provocada pela ruptura com as
delimitações impostas por qualquer tipo de categorização.
65
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
2
AS IMPLICAÇÕES DO CONTEMPORÂNEO NA ESCRITA DE BONASSI
Quais são as implicações das mídias atuais na configuração do estilo do
escritor contemporâneo? A intimididade das novas gerações com o texto eletrônico
contribui para a mudança no próprio fazer literário? Leitura e literatura
movimentam-se em torno dos efeitos midiáticos da contemporaneidade.
Neste rumo ao novo, os modos de ler e do fazer literário são atualizados. As
noções de escrita e de leitura no decurso histórico, portanto, não são excludentes,
mas são ampliadas configurando novos modos de apreensão de uma realidade
66
múltipla e híbrida.
A forma híbrida do texto literário contemporâneo relaciona-se com as
transformações midiáticas evidenciando como a literatura constitui um espaço de
representação
sócio-cultural.
A
literatura
contemporânea
abriga
narrativas
fragmentadas e marcadas por um sentido de urgência.
A estrutura da narrativa contística assume um contorno característico das
novas plataformas de escrita. Assim como a comunicação cotidiana é marcada pela
rapidez e brevidade, a literatura se apropria de tais elementos e se reconfigura em
um novo formato.
Considerando os novos recursos tecnológicos, a performance de leitura tornase mais interativa. E a literatura impressa, por sua vez, vem assumindo remodelações
para se ajustar ao atual contexto. Abriu-se espaço para novas experiências de leitura.
Os padrões de categorização dos textos literários são alargados à medida que
os autores extrapolam as fronteiras do processo criativo. A narrativa minimalista de
Fernando Bonassi é exemplo da remodulação da literatura contemporânea.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A leitura dos minicontos aproxima-se dos modos de ler do cinema, por
exemplo, ao se inserir no universo híbrido e exigir do leitor uma postura interativa e
flexível. É uma escrita tomada pelo efêmero, pela velocidade e pelo simultâneo,
características da temporalidade atual.
É, pois, nesse contexto que a ambiência da leitura volta-se para o não-lugar.
Assim como a narrativa contemporânea é breve, as novas plataformas de divulgação
da obra também aproximam o leitor do texto. E, assim, o lugar de leitura é
indefinido. Lê-se em qualquer momento e em qualquer lugar.
Em meio ao fluxo intenso de informações, o miniconto acaba por representar a
necessidade de comunicação rápida da sociedade atual. Logo, um novo modo de ler
e um novo modo de escrita se impõe na contemporaneidade.
Ao analisar o miniconto “SÓ”, de Fernando Bonassi, observa-se como se
estrutura sua narrativa minimalista:
SÓ
Se eu soubesse o que procuro com esse controle remoto... (BONASSI,
2001, p. 30).
Primeiramente, o conto se apresenta numa estrutura breve muito próxima das
formas de comunicação das mídias atuais. Além disso, faz alusão ao controle remoto
trazendo à tona a própria tematização da relação entre o homem e a televisão. O
sentar em frente ao aparelho televisivo é um dos comportamentos da
contemporaneidade, além da mudança de canais de forma compulsiva que
representa a necessidade do homem de buscar por programas que atendam aos seus
gostos. É uma relação um tanto conflituosa que se estabelece entre a televisão que
como meio de comunicação de massa contribui para a homogeneização dos gostos e
por outro lado, o homem que utiliza o controle remoto na busca incessante por algo
que satisfaça suas necessidades.
No miniconto, abaixo, se vê como a tematização das mídias contemporâneas é
novamente problematizada:
Era como se o ruído do despertador rachasse o seu crânio. Não
acreditou que conseguisse levantar da cama. Quase se afogou na
67
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
água do chuveiro. Já na hora em que a mulher lhe serviu suco, não
acreditou que pudesse engolir. Desceu as escadas e os degraus
pareciam desdobrar-se neles mesmos, infinitos, como numa
perseguição de filme. O tráfego até o trabalho nada menos que
intransponível. O calor: insuportável. Trabalhou violentamente o
resto da vida (BONASSI, 1996, p. 31).
A linguagem objetiva e ao mesmo tempo adjetivada expressa a sensibilidade
do escritor ao descrever o relato do cotidiano das grandes metrópoles. É o rachar do
crânio, o afogar na água do chuveiro, o engolir o suco, a infinitude dos degraus, o
tráfego intransponível, o calor insuportável e o trabalho violento que representam a
brutalidade do presente. As frases curtas e adjetivadas atingem o leitor de forma
imediata e fazem do diálogo com a linguagem jornalística a reconfiguração de um
novo estilo. É a literatura se mesclando com a mídia jornalística e demonstrando sua
potencialidade híbrida.
A linguagem jornalística permeia a narrativa literária, como se pode observar
no seguinte miniconto:
68
Dirige direto. Saiu de São Paulo no meio da tarde de sexta, domingo
mal amanheceu e Cuiabá já ficou pra trás há muito tempo. Voa sobre
os buracos da BR 262. Só pára pra comer, uma vez por dia – e pra ir
ao banheiro, sempre que em vontade. Não pensa em descansar. Vai
em frente, ver até onde agüenta (BONASSI, 1996, p. 73).
Ao tempo em que se aproxima do relato jornalístico, o miniconto por meio da
força literária provoca o leitor a refletir sobre a realidade de São Paulo. Da descrição
do trajeto entre São Paulo e Cuiabá, o leitor é levado para dentro do texto de forma a
fazê-lo repensar sobre a correria cotidiana na qual o homem “não pensa em
descansar”.
O miniconto seguinte desmistifica a realidade imposta pelos meios de
comunicação:
A primeira vez que eu vi um cadáver no asfalto: “As ruas são
perigosas, garoto. As pessoas amanhecem mortas assim-assim. E o
trânsito fica uma bosta e a gente fica enjoado.” A primeira vez eu vi
um cadáver no asfalto: muitos furinhos de tiros, uma caveira
simbólica sobre a carcaça murchante e menos sangue que nos filmes,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
ventava. E eu fiquei muito impressionado que as velas não
apagassem e os jornais não voassem (BONASSI, 1996, p. 187).
Ao apresentar um novo ponto de vista do narrador-personagem a respeito do
momento em que se deparou com um cadáver, a realidade retratada nos filmes se
apresenta sob uma perspectiva diferente. Assim, é perceptível como as mídias são
tematizadas nos minicontos de Bonassi de forma a provocar no leitor um
questionamento da forma como a realidade é posta por tais veículos. No miniconto a
seguir, Bonassi novamente se reporta ao discurso televisivo de forma provocadora:
AS VOZES DA TELEVISÃO. Ele deveria ter tomado as providências.
Elas falaram com ele que iam acabar chegando. Um dia após o outro
fazendo caretas diabólicas entre os comerciais e os filmes... Agora elas
estão bem ali, atrás da porta. Todas elas. Querem estuprar a sua filha,
deitada na sua cama, dormindo. Ele devia ter imaginado, ter
desligado o aparelho – antes que elas saíssem do tubo e se
instalassem no corredor. Elas disseram. O suor pinga do seu corpo
para a lâmina. Esmurram a porta – o ruído reverbera dentro da sua
cabeça, como um piano desafinado. Elas vão entrar no
quarto/estuprar a sua filha dormindo na sua cama. Ah não! Antes
que isso possa acontecer ele a mata com cinco facadas. (BONASSI,
1996, p. 47)
E, ao tematizar em seus minicontos a retratação da realidade pelas mídias,
Bonassi vai além e apresenta uma forma contística que se aproxima dos veículos de
comunicação. É o caso da narrativa a seguir:
Escuro. 4 X 6. Num canto: colchão, travesseiro, cobertor e lençol
revirados. Westclox.A TV sobre a própria caixa de papelão reforçada
com isopor. O corpo diagonal. Decúbito do ventre. Cortina de tafetá.
Carpete cinza melado de sangue e gosma. Itacarpet & Nylon.
Ferimento cutâneo revela lesão produzida por instrumento
pérfurocortante atingindo as vísceras maciças. Hemorragia. Contusão
do abdome – fratura de bacia. Porrete. Língua macerada (ao que tudo
indica) pela própria vítima. Dentada. Um faz a foto, outro mexe na
bolsa. (Bonassi, 1986, p. 29)
Ao apresentar termos específicos da linguagem cinematográfica, Bonassi
reconfigura a escrita literária e desenvolve uma forma própria para o conto. É o
cinema, a TV, os filmes e os jornais que entremeam sua narrativa minimalista e cria
um estilo próprio para tematizar o cotidiano da contemporaneidade.
69
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Os minicontos com sua economia de palavras representam a velocidade da
sociedade atual impregnada pela influência da internet no cotidiano. É visível que a
fragmentação e a superficialidade engendrados pelos novos meios midiáticos
interferem na configuração de novas práticas de leitura e escrita. No miniconto
seguinte, a estrutura frásica de Bonassi evidencia a configuração de uma escrita
econômica que se aproxima da estrutura de um roteiro cinematográfico:
O SENHOR ENTRA PELO LADO ESQUERDO do galpão. Deixa o
tíquete com um segurança. Não tem como errar: só deixam o senhor dá a
volta inteira no refeitório, por um corredorzinho: de um lado a parede de
azulejo até o teto, de outro a cerquinha de metal cromado. Mesmo que o
senhor não queira, o senhor vai indo. Pressa. Muita gente pra comer e
pouco tempo pra servir. Fila única. Na boca da cozinha só um instante:
garfo-faca-colher-guardanapo-pão-arroz-feijão-carne-salada-gelatina.
Mal o senhor vê e a sua bandeja está feita. Se o senhor esquece de
estender a bandeja em alguma hora, fica sem. Não tem conversa. Logo já
tem o de trás cutucando as suas costas com a bandeja dele. Assim
mesmo. O senhor veja: ele nunca pegava o garfo. Dizia que ele sempre
esquecia. Não sei. Nunca pegava o garfo e por isso ficava olhando a
minha comida. Esperava eu acabar pra usar o meu. O senhor veja: nesse
dia aquele olhar caído na minha comida foi me fazendo um mal.
Primeiro um bolo no estômago, depois a coisa subindo. Não sei. Subindo
pelo estômago, pelo peito, pelo ombro, indo pro braço, depois pra mão.
Não chegava a ser um formigamento. Era como se aquele garfo na minha
mão fosse virando assim uma unha, uma unha de metal bem comprida...
Então, depois, era como se virasse uma garra, uma garra de bicho... O
senhor veja: na hora que eu ergui a minha garra de bicho, tudo ficou
preto e eu não vi mais nada. (BONASSI, 1996, p. 33-4)
70
A escrita literária de Fernando Bonassi é estruturada de forma a se aproximar
da dinâmica da comunicação contemporânea. O estilo do autor é tomado por uma
brevidade próxima das formas de comunicação atuais, como a leitura de mensagens
eletrônicas, de outdoors de propagandas, dentre outras. Seu fazer literário representa
a economia de palavras de uma sociedade marcada pela velocidade. São as palavras
e a brevidade do cotidiano emergindo no processo criativo do fazer literário.
2.1
O
(NÃO)
LUGAR
CONTEMPORANEIDADE
DA
LEITURA
E
DA
LITERATURA
NA
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A leitura e a literatura, na perspectiva contemporânea, ocupam um lugar
flutuante na medida em que estão imbricadas com um contexto múltiplo e
conturbado. As relações entre cultura, leitura e literatura são reorganizadas com o
advento das novas plataformas tecnológicas que determinam uma forma de
interação cada vez mais breve e híbrida. Conforme Canclini:
As fusões multimídia e as concentrações de empresas na produção de
cultura correspondem, no consumo cultural, à integração de rádio,
televisão, música, notícias, livros, revistas e Internet. Devido à
convergência digital desses meios, são reorganizados os modos de
acesso aos bens culturais e às formas de comunicação. Parece mais
fácil aceitar o processo socioeconômico das fusões do que
reconsiderar o que vinha sendo sustentando nos estudos sobre
educação e leitura, nas políticas educacionais, culturais e de
comunicação. (CANCLINI, 2008, p. 33)
A escrita contemporânea reflete uma grande urgência. E a literatura se
posiciona como um instrumento capaz de interagir com a instabilidade temporal e
espacial ao tempo em que se faz imediata:
A escola ensina posições corretas para ler livros, a mídia, como
colocar-nos para sermos espectadores ou seduzirmos, e o corpo
parece inexistir quando se fala em conectar-se com as redes virtuais
invisíveis. No entanto, os comportamentos corporais são o cenário
onde a literatura, a música e a comunicação digital tornam-se enfim
visíveis. (CANCLINI, 2008, p. 42)
A literatura imediata tem por objetivo impor sua presença em meio a um
universo dominado pelas multimídias. Por meio de uma estrutura curta e
fragmentada, a literatura intensifica sua visibilidade ao buscar seduzir o leitor.
Além disso, conta com o hibridismo com outras linguagens rumo a uma
eficiência estética.
A turbulência midiática, portanto, exige um novo olhar sobre os modos de
leitura e escrita literária. Márcia Abreu ressalta que “a avaliação estética e o gosto
literário variam conforme a época, o grupo social, a formação cultural, fazendo que
71
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
diferentes pessoas apreciem de modo distinto os romances, as poesias, as peças
teatrais, os filmes” (ABREU, 2006, p. 59). Jauss observa que:
O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da
práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências
vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas,
expandir o espaço limitado do comportamento social, rumo a novos
desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para
a experiência futura. (JAUSS, 1994, p. 52)
Schollammer ressalta que “a preferência pelos minicontos e outras formas
mínimas de escrita que se valem do instantâneo e da visualização repentina, num
tipo de revelação cuja realidade tenha um impacto de presença maior”
(SCHOLLAMMER, 2011, p. 93). E, assim, o fazer literário utiliza o espaço urbano
como
peça
fundamental
nas
construções
narrativas
proporcionando
a
problematização das contradições da atualidade:
72
a força da globalização dos bens simbólicos e da circulação da mídia
vem acarretando, como previsto desde o início, uma homogeneização
do gosto, das expectativas, do consumo, representada pela
americanização que se espalha por onde as redes midiáticas do
“Império” se estendem. Neste sentido, a força da globalização
atingiria o imaginário e as práticas culturais, em flagrante conflito
com a diversidade e o pluralismo. (RESENDE, 2008, p. 19)
Resende destaca que a presentificação “parece também se revelar por aspectos
formais, o que tem tudo a ver com a importância que vem adquirindo o conto curto”
(RESENDE, 2008, p. 28). Ao desenvolver um estilo enxuto e objetivo, Bonassi se
apropria da linguagem midiática, reconfigurando-a, e desnuda o universo das
grandes cidades o qual a maioria dos leitores se encontra imersa:
E isso se faz ainda mais complexo quando o autor resolve acelerar a
movimentação de suas personagens, sabotando alguns elementos da
narrativa tradicional, como o encadeamento espaço-temporal. Então,
para acompanhar seus protagonistas não basta segui-los nas ruas, é
preciso correr atrás deles pelos engarrafamentos da cidade, alcançar
as autoestradas, tomar trens, aviões, navios, persegui-los por
continentes e tempos diferentes, esbarrando, muitas vezes, no sem-
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
sentido de seu percurso, reflexo do sem-sentido de sua existência.
(DALCASTAGNÈ, 2012, p. 116)
Acompanhando, pois, a turbulência da contemporaneidade a literatura
assume uma forma que possibilita o contato mais rápido com o leitor interativo. Ao
se apropriar da linguagem midiática, portanto, a literatura proporciona uma releitura
do cotidiano e manifesta o sentido de urgência que domina a sociedade.
A realidade múltipla e diversificada, intercedida pela mídia, é representada
na literatura de Bonassi, seja na tematização, seja através da forma. E, assim, a
cultura globalizante se insere na atual vertente da literatura brasileira, envolta por
uma atmosfera híbrida marcada pelo descentramento e pelo fragmentário.
A narrativa minimalista, por sua vez, assumindo novas modulações estéticas,
rearticula o fazer literário, apontando para a possibilidade de ampliação do universo
textual e para uma maior interatividade com o leitor. O formato da literatura de
Bonassi se ajusta, portanto, ao espaço e tempo contemporâneos que se mostram cada
vez mais curtos. A força de sua literatura reside, pois, no imediatismo
contemporâneo.
Bonassi apresenta um recorte da contemporaneidade em sua ficção. Numa
perspectiva que torna sua narrativa capaz de apreender seu entorno e reconfigurá-lo
a partir de um presente agitado. E, assim, circunscreve sua escrita na urgência e
imediatismo da temporalidade atual.
A presentificação evidencia-se na eficiência do seu fazer literário que é
imbricado com os traços midiáticos. É a ficção que, por sua vez, instiga uma leitura
provocadora e questionadora da linguagem dos meios de comunicação e impõe um
novo olhar para o universo da escrita.
Nesse contexto, as formas curtas dos minicontos conquistam espaço ao utilizar
linguagem e estilo que se mesclam com as formas de comunicação do presente. Logo,
insere-se nesse espaço dominado pela fragmentação, pelo hibridismo e brevidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
73
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Ao analisar os minicontos de Fernando Bonassi percebe-se como os novos
modos de leitura e escrita promovem mudanças no próprio fazer literário que cada
vez mais é influenciado pelos novos suportes do computador e da internet. Tal
estudo aponta para o fato de que a relação entre o autor e a palavra na
contemporaneidade é entremeada pela fragmentação e brevidade.
As fronteiras do fazer literário são flexibilizadas ajustando-se ao contexto
contemporâneo dominado pela expansão de uma linguagem da urgência. Assim,
emergem-se um modo de leitura urgente e uma escrita urgente. É a era dos meios de
comunicação e do texto eletrônico determinando novas práticas.
Logo, justifica-se a importância de se refletir sobre o domínio da internet e sua
forma de inscrição no universo da leitura e da escrita. É preciso compreender como
os novos suportes interferem nos modos de veiculação dos textos e como
determinam mudanças nas relações entre o autor, a escrita e o leitor.
É uma nova concepção das práticas de leitura que se instaura na
contemporaneidade influenciando no estilo do autor. Assim, os minicontos de
74
Fernando Bonassi na medida em que apresentam uma estrutura breve e fragmentada
se aproximam da forma de manejo dos textos eletrônicos. A urgência sobre as formas
midiáticas
incursiona-se,
paralelamente,
no
fazer
literário
de
escritores
contemporâneos ao abusar das formas breves e adotar uma linguagem curta e
fragmentária. É o novo suporte de leitura e escrita transfigurando o fazer literário,
adaptando-se às demandas impostas pelo mundo virtual.
Referências Bibliográficas
ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP,
2006.
BONASSI, Fernando. 100 histórias colhidas na rua. São Paulo: Scritta, 1996.
————. O amor em chamas (Pânico, horror & morte). São Paulo: Estação
Liberdade, 1989.
________. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. In: MORICONI, Ítalo
(org.). Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. São Paulo: Objetiva, 2001.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
CANCLINI, Néstor García. Leitores, espectadores e internautas. Tradução Ana
Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território
contestado. Vinhedo: Editora Horizonte. 2012.
JAUSS, H. Robert. A História da literatura como provocação à teoria literária. São
Paulo: Ática, 1994.
RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século
XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008.
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
75
MILTON HATOUM: UM AUTOR CONTEMPORÂNEO NA LITERATURA
BRASILEIRA
Mariana Rocha Santos Costa
Instituto Federal da Bahia – IFBA
[email protected]
RESUMO
A Literatura e seus mecanismos de escrita têm sido alvo de um turbilhão de
questionamentos ao longo dos últimos tempos. O status da figura do autor, a função
dessa arte escrita, o papel do leitor contemporâneo e os limites do mercado editorial
são apenas alguns dos temas dessas discussões acaloradas. O presente trabalho tem
como objetivo central discutir algumas questões concernentes à autoria na
contemporaneidade, deslocando as noções de morte do autor e função-autor,
postuladas por Roland Barthes e Michel Foucault, ao afirmar que há uma
revivificação da voz e da figura autoral no século XXI. Com base nos ‘círcuitos
contemporâneos do literário, propostos por Ítalo Moriconi, busca-se compreender os
espaços pelos quais transita o escritor e as várias facetas que ele pode assumir para
conquistar os leitores contemporâneos. Como exemplo desse autor do início do
século XXI que se faz presente nos circuitos mercadológicos, sem, contudo, se deixar
corromper pelos vendilhões de uma Literatura semi-letrada, está o escritor
amazonense Milton Hatoum. Preocupado com uma escrita de qualidade, ele é o
escritor de três romances premiados e consagrados pela crítica, – Relato de um Certo
Oriente (1989), Dois Irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005); uma novela – Órfãos do
Eldorado (2008); um livro de contos – A Cidade Ilhada (2009); um livro de crônicas –
Um solitário à espreita (2013), além de diversas outras crônicas, poesias e ensaios.
Sua obra já foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze países. Além disso,
ele é atualmente colunista de um jornal. Consagrado escritor brasileiro da Literatura
hodierna, Hatoum é utilizado como modelo de um escritor preocupado com a
qualidade e a estética do texto literário, ainda assim comprometido com a divulgação
da sua obra nos circuitos mercadológicos literários. Esse texto ainda prima por
analisar de que forma esse autor da contemporaneidade brasileira, que foge do
conceito hermético de ‘regionalista’, se configura nos círculos literários e cria uma
imagem de si que não prejudique as possibilidades múltiplas de leitura que a
linguagem pode oferecer a um leitor atento. A partir dessas discussões, conclui-se
que o autor contemporâneo precisa se inventar para transitar pelos espaços
midiáticos, pois a subjetividade inerente ao sujeito faz com que ele desempenhe
funções sociais específicas a depender de cada contexto, uma vez que a sua presença
extradiegética é, para o leitor, uma grande inovação da contemporaneidade no
sentido de produção de significações textuais. Assim, Milton Hatoum se apresenta
como um autor acessível para o seu leitor, seja ele convencional ou não. Preocupado
em ser respeitado em todos os círculos nos quais transita, ele já obtém notoriedade e
é considerado um dos maiores nomes da Literatura nos dias de hoje. Mantendo-se
firme em seus preceitos estético-literários, ele se atualiza e se conecta. Ele é, também
por isso, benquisto pelo público e pelos pares.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
PALAVRAS-CHAVE: Autor. Contemporaneidade. Milton Hatoum.
A constante transformação pela qual passa a Literatura e seus conceitos
atraem uma babel de posicionamentos da crítica e dos estudiosos da área. Todavia,
tal desencontro de ideias é pertinentemente compreensível, dadas as transformações
significativas e bruscas pelas quais o mundo tem passado nessa era volátil que
apelidamos de contemporaneidade.
Para Agamben (2009), o homem verdadeiramente contemporâneo não é aquele que se
adapta à sua era, pelo contrário, é aquele que não se integra plenamente a ela e nem se
adéqua às suas pretensões; assim, por estar fora da realidade contemporânea vigente, ele
consegue perceber com mais clareza o seu tempo. Faz-se necessária certa distância a fim de
se compreender os entraves e dialética do mundo circundante; por isso, o homem
contemporâneo está dissociado da cronologia temporal, ele é, em certo sentido, anacrônico.
No que tange à Literatura, Agamben diz que: “O poeta, enquanto contemporâneo, é
essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que
deve suturar a quebra” (2009, p.61). Assim, o escritor é capaz de fixar seu olhar no tempo
para nele perceber não as luzes do século, mas o seu escuro, uma vez que essa luminosidade
cega, e o escuro traz certas nuances que passam sem que sejam percebidas pela maioria dos
homens comuns. Em uma belíssima metáfora que explica a contemporaneidade, Agamben
(2009) associa-a às galáxias, onde aquelas luzes no céu que ora são vistas, são luzes há muito
emanadas. As novas projeções luminosas, as atuais e contemporâneas, estão sendo
projetadas para que sejam vistas apenas daqui a alguns anos. É nesse escuro que está o
verdadeiro cerne da contemporaneidade, que nem todos conseguem perceber.
Para compreender a contemporaneidade, há ainda que se fazer uma relação entre o
presente e a História, pois cada tempo tem a sua produção social, cultural e política, sendo
necessário atar as produções atuais ao passado, numa concepção linear, mas teleológica, uma
vez que tudo retorna para o ponto de partida. Portanto, ser contemporâneo é também uma
questão de coragem. Pois, segundo o autor, esse conceito, finalmente, se encaixa na figura
daquele que:
dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocálo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história,
77
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
de ‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma
de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual não se pode responder (2009,
p.72).
Felizmente, apesar dessa quantidade de interrogações que está impregnada no
campo da Letras, o que tem havido são mutações, e não uma extinção dos
parâmetros necessários para o fazer literário. Assim, nessa atmosfera de
reconfigurações conceituais, há um aspecto que merece um olhar ainda mais delicado
e cuidadoso: o papel que exerce o autor enquanto persona existente fora dos limites
das páginas em que insere o produto do seu trabalho intelectual e a forma como ele
se projeta no século XXI.
Pensando a autoria em termos históricos, Michel Foucault (2002) nos apresenta
uma linha cronológica acerca desse papel ao longo das eras. Segundo ele, na
Antiguidade, a obra literária não era marcada como produto específico de um autor,
pois a autenticidade do texto era atestada por sua incansável repetição ao longo dos
anos. O contador de histórias tinha o direito de apropriar-se dela ao seu bel prazer,
78
com o intuito de melhorá-la. Apenas em fins da Idade Média os textos literários
passaram a ser obrigatoriamente reconhecidos por sua assinatura; quando eles se
transformaram em ferramentas de propagação de ideias urgiu a necessidade de saber
a quem punir por tal conduta considerada infame: precisava-se de um nome. Em
seguida, coadunando com esse espírito de fixação referenciada de autoria, nos
séculos XVIII e XIX a noção de copyright fez com que o capitalismo insuflasse a
necessidade de recompensa financeira pelo trabalho intelectual. Por tudo isso,
conclui-se que a noção de autor – tal qual a concebemos ainda hoje – é uma criação
da sociedade moderna.
Em meados do século XX, Roland Barthes (2004) reflete acerca dessa figura tão
contraditória e comenta que, embora gozando então de inúmeros privilégios, esse
personagem tendia ao desaparecimento. Barthes criticava o pensamento corrente, o
qual consistia na centralização da figura autoral pelos críticos, com o intuito de
explicar determinada obra. Para ele, a voz do autor num texto serviria apenas para
limitá-lo, encapsulando-o em significados herméticos, quando na verdade o texto
deveria possibilitar inúmeras relações de significados. Na concepção por ele
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
condenada, o autor se manifestaria como aquele que está para além do seu texto,
anterior a ele e, na mesma medida, responsável por sua escrita: autor e livro não se
situariam na mesma linha de tempo, pois ele precederia a obra, alimentando-a – o
autor seria o deus do seu texto.
Mas, evoca Barthes como solução para esse engano, o scriptor moderno –
figura por ele proposta – suplanta o autor, enterrando-o. Para este, a obra acontece
concomitante à sua performação: escritor e obra se fazem juntos. No momento em
que a escrita começa, o autor é condenado à própria morte, pois um texto não é
escrito linearmente, com significado unívoco, ele é um compósito de citações e ideais
de outros que não o escritor. Por isso, o seu gesto de escrita nunca é original: o
escritor apenas mistura as palavras, contrapondo-as ou apoiando-se nelas para
construir novas ideias, as quais chamará de suas. Logo, para Barthes (2004), “a escrita
é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-ebranco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pelo corpo
que escreve”.
Com a morte do autor e a ascensão do leitor, este último assume, então, um
lugar de fulcral importância, segundo as concepções barthesianas. Uma vez que o
escritor não possui sentimentos, paixões ou opiniões e apenas repete, mesmo que
inconscientemente, as palavras que já foram ditas, a linguagem adquire posição de
honra nessa perspectiva do processo de escrita: o corpo que escreve é o do escritor, e
este não existe de fato fora do texto. Portanto, se atribuir um autor para determinado
texto significa explicá-lo e, sobretudo, fechá-lo, é na figura do leitor, o qual deve
encontrar seu horizonte de expectativas dentro da obra lida, que a escrita deverá
reencontrar o seu devir; mas para que esse leitor onipotente possa nascer, o autor já
deve estar morto.
Com a postulação da morte do autor, elege-se a linguagem como a fonte
primeva dos estudos textos: é a partir dela e para ela que uma obra deve ser
apreendida. Esse desaparecimento da figura autoral, todavia, deixa lacunas que,
sozinho, o mecanismo da linguagem não consegue preencher plenamente. Em
virtude dessa falta que resulta da supressão do autor, Foucault (2002) propõe a
função-autor, não enquanto explicação da origem do texto literário, mas como um
79
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
dispositivo de coesão e compreensão dos discursos, sendo possível, sob a égide de
certo nome do autor, categorizar, classificar e validar os textos literários,
direcionando a forma como eles devem ser lidos dentro de determinado grupo social.
Embora morto e enterrado nos círculos literários devido à preleção fúnebre de
Barthes, mas com seu espectro fantasmagórico foucaultiano rondando os estudos do
texto, o que se tem visto nessa era de transição secular é um retorno, uma
revivificação desse autor. Há, desde o início do século XXI, um avivamento da
presença autoral na literatura. Esse resgate, entretanto, não é uma retomada daquela
velha prática dos críticos, que primavam pela descoberta da origem e explicação
cartesiana da obra. O autor do século XXI retorna como o responsável pela autoria do
texto, mas não com autoridade despótica sobre ele. Antes, ele ressurge enquanto um
personagem do espaço público midiático, afinal, acreditar na morte de alguém que se
mostra presente o tempo todo – em jornais, revistas, televisão, congressos, palestras e
sites da internet... – é uma postura um tanto complicada para os leitores
contemporâneos.
80
Tomando por base esses pressupostos, percebe-se que pensar a Literatura
Brasileira Contemporânea no que tange à autoria e produção literária pode parecer
uma tarefa problemática; contudo, ela é abordada de forma bastante otimista pelo
professor Ítalo Moriconi (2005) ao apresentar as novas e novíssimas gerações
brasileiras de 90 e 00, formadas por escritores entusiastas e agressivos no exercício de
encontrar o seu lugar no mercado, ocupando espaços de visibilidade. Ainda assim,
diz ele, essa agressividade imputada aos novos escritores é considerada uma atitude
democrática, e não excludente, como propunham as mentalidades de gerações
anteriores, firmadas em valores cindidos ideológica e culturalmente em época de
guerra fria.
Moriconi (2005), em seu artigo Circuitos Contemporâneos do Literário, faz uma
abordagem dos circuitos literários de produção no Brasil no período contemporâneo,
categorizando-os em três diferentes instâncias, todas marcadas pelo mercado como
suporte de circulação: mercadológico, acadêmico e da vida literária. No primeiro
circuito, a obra se mostra relacionada a outras esferas da cultura, como cinema,
televisão e outras artes, preocupando-se sempre com o seu diálogo com o público
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
consumidor. Nesse círculo, ser bem sucedido implica compreender e seguir as
tendências socioculturais e políticas do momento. No circuito acadêmico, a
preocupação do autor está centrada na crítica e na recepção das universidades, os
quais pregam valores clássicos da Literatura numa exigência que tangencia a escrita
do cânone. Aqui, o grande público é um alvo irrelevante. Finalmente, o autor destaca
uma novidade positiva no atual cenário brasileiro: o circuito da vida literária, um
movimento de renovação da literatura no Brasil, cujo valor de referência se manifesta
nas relações dialógicas entre os próprios autores contemporâneos. Esses espaços de
troca de experiências e ideias, contudo, já não são mais “a livraria, a redação de
jornal, nem o bar, a praia, a universidade. (...) o espaço de circulação dos textos, de
diálogo e interação auto-reflexionante se deu mesmo nos sites e revistas literários na
internet” (MORICONI, 2005, p.10). Nesses espaços virtuais fornecidos pelas novas
tecnologias de informação é que brotará um número considerável de autores na
contemporaneidade.
Essa nova vida literária com a qual os autores da nova geração brasileira se
identificaram se faz num âmbito de fluidez muito grande, pois os meios virtuais
dispõem de uma plasticidade capaz de moldar a literatura e seus insubstituíveis
constituintes – leitor e autor – à sua própria maneira. Se o autor teve que se
remodelar para atender aos reclames de uma sociedade mais dinâmica, com o leitor
não seria diferente. A mídia digital e os meios de comunicação de massa põem em
xeque toda a conjuntura pré-estabelecida da tradição literária, trazendo em seu bojo
muitas inovações que se incorporaram à Literatura, incluindo-se o diálogo
intersemiótico entre o texto e as imagens, sons e movimentos. O leitor
contemporâneo tem ao seu alcance uma gama de possibilidades de leitura que lhe é
fornecida pela rapidez de informações que são despejadas das mais variadas formas
em seu cotidiano. Não lhe basta mais ler o livro, o leitor requer uma atmosfera em
que o texto seja devassado das maneiras mais variadas possíveis. O leitor da
contemporaneidade tem se tornado cada vez mais exigente.
Nessa era do computador e da rápida disseminação das informações, as quais
acabam por se tornar facilmente descartáveis, as concepções que os teóricos e críticos
tinham do fazer literário não poderiam sair incólumes. Sobre tal temática, Philippe
81
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Lejeune (2008) diz que, no século XXI, a aura de mistério que outrora envolvia o
leitor e o autor não existe mais. O leitor de antes não conhecia o autor de um texto e
tinha, na verdade, dificuldades até em reconhecê-lo através de retratos, os quais eram
raros mesmo nas edições dos livros. Hoje, esse espaço vazio que era preenchido com
a imaginação do leitor se esvai, pois ele está em contato constante com a imagem
especular do escritor, às vezes numa apresentação anterior mesmo ao contato com a
obra em si, seja nas fotos tão comuns nos encartes dos livros, nas revistas
especializadas, ou ainda com sua voz e gestos exibidos na televisão: a imagem do
autor se tornou corriqueira nos dias de hoje.
A projeção de si que é feita no mercado pelo autor subverte ainda alguns
modelos antigos dessa relação leitor/autor. Outrora, o interesse pela figura autoral se
dava a partir do conhecimento e interesse que se tinha pela obra: alguém lia um livro
e se interessava pela pessoa capaz de tê-lo produzido, buscando a partir daí dados
biográficos, imagens, outras obras etc. Na contemporaneidade, todavia, não é assim
que o processo se dá. O autor se torna uma figura ativa – e atrativa – no mercado
82
editorial: seu desempenho nos meios de comunicação é o elemento propulsor para
alavancar a venda de seus livros; assim, o leitor conhece a figura do autor de
antemão, devido ao largo apelo que ela tem nos círculos midiáticos, e, a partir daí,
essa figura tem a função de excitar a curiosidade desse leitor para a obra: a
performance que o autor adota é o impulso para conduzir novos leitores para seu
trabalho.
Tal apagamento dessa aura de mistério em que o autor se encontrava
envolvido é fruto, entre outras coisas, de um desejo insaciável de projeção do ‘eu’
que se mostrou possível a partir das metamorfoses vertiginosas que as redes digitais
e os meios de comunicação futurísticos propiciaram a seus usuários. A política de
espetacularização de si e devassamento da vida íntima transformaram o indivíduo
resultante dessa era em alguém ávido por se mostrar e, em contrapartida, conhecer o
outro que também se mostra em sua pretensa vida real. O leitor do século XXI é
bastante diferenciado dos leitores de outrora: ele é alguém que se projeta nos espaços
públicos virtuais e, como consequência disso, espera um autor que também se
apresente nessas novas mídias.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Paula Sibilia diz que, vivenciado essa contemporaneidade, as ‘personalidades’
do século XXI também são convocadas a se deixarem ler nesses espaços. Essa
publicização do que antes era aceito como privado exige que tais personas criem para
si – e para outros – estratégias de visibilidade midiática. Essa dita sociabilidade
líquida faz surgir “um tipo de eu mais epidérmico e flexível, que se exibe na
superfície da pele e das telas” (2008, p.23). Assim, o leitor não quer mais criar uma
imagem meramente verossímil do seu autor, ele quer conhecê-lo, devassá-lo,
compreendê-lo e, ainda mais incisivamente, o leitor deseja que o seu autor lhe
apresente a sua obra, personificando-a. Bruno Lima Oliveira, em seu artigo O retorno
do autor na Literatura Contemporânea expõe essa problemática de forma contundente
ao dizer que
as facilidades tecnológicas de nosso tempo parecem indicar um fenômeno
curioso que repercute na literatura. A possibilidade de apreensão do real de
forma imediata refletiria no leitor um vilipêndio pela ficção, como se esta o
‘passasse para trás’ e o subtraísse da realidade, agora prontamente acessível
(2009, p.2).
O autor que se subtrai a essa nova realidade, fica aquém das flutuações que o
mundo atual impõe. A ele não cabe mais o papel de ser um corpo que escreve e,
depois desse processo, lega sua obra para ávidos leitores. Revivificado, o autor
aglutina para si novas tarefas: a ele compete não apenas criar, mas tornar essa criação
o mais próxima possível do real; e o que dará um novo tom a essa realidade será a
sua própria projeção na mídia: blogs, entrevistas, palestras e conferências. Dessa
forma, ali, frente àquele ser supostamente onipotente, o leitor almejará corrigir todas
as lacunas que supunha encontrar na obra. Esse talvez seja o momento crítico desse
novo lugar em que colocaram o autor: nesse pedestal, sua voz detém um peso muito
maior do que supostamente deveria; então, cabe a ele construir um ethos, um modo
de operação de discursos, a fim de que a sua fala não destrua a possibilidade plural
de significações que o texto já conquistou. Para ser bem sucedido nos circuitos
literários, o autor contemporâneo deve figurar na mídia e no mercado editorial, e
para isso, ele tem que se inventar.
Proliferar a máxima que defende o retorno do autor, sem, contudo, encontrar
dispositivos que possam auxiliar na compreensão de quem ele é, se mostra um tanto
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
problemático. Quando se diz que um autor retorna, vários são os questionamentos
que povoam os estudos do texto, pois urge a necessidade de saber quem é esse autor
que volta. Além disso, se ele volta reinventado, deve-se tomar muito cuidado com a
forma de interpretar seus discursos polifônicos. Logo, harmonizar a imagem de autor
exterior à narrativa e sua ficção dentro dos limites (não) impostos pela cultura
contemporânea é o maior desafio para o autor de século XXI.
Ao estudar o papel do intelectual e do escritor no mundo contemporâneo, Edward
Said (2007), empreende um estudo acerca do status do Humanismo e da Crítica nessa
sociedade vigente. De fato, o autor leva em consideração as mudanças na própria base desse
conceito, e propõe um estudo não do humanismo como um todo, mas sim como uma prática
crítica dos intelectuais num mundo beligerante. Essa proposta se faz interessante no mundo
contemporâneo, pois abarca o pensamento humanista como uma prática útil para os
intelectuais “que desejam saber o que estão fazendo, com o que estão comprometidos como
eruditos, e que também desejam conectar esses princípios ao mundo em que vivem como
cidadãos” (SAID, 2007, p.16).
Said
84
(2007)
demonstra
grande
preocupação
com
o
humanismo
na
vida
contemporânea e prima por demonstrá-lo como uma atividade crítica, uma postura frente a
um mundo que clama por uma práxis profícua na construção de cidadania, desconstruindo
assim o imaginário do termo enquanto um legado patrimonial; nessa perspectiva, os fatos
históricos contemporâneos devem servir de reflexão para a base desse humanismo novo.
De fato, houve uma grande alteração no mundo desde a Segunda Guerra Mundial e a
Guerra Fria. Esses eventos funestos alteraram drasticamente a sociedade e sua forma de
encarar os eventos circundantes. Coadunando com essas mudanças, a globalização e a
disseminação rápida de informações – através de meios de comunicação de massa e ligados à
rede digital – colaboraram para transformar a sociedade de um modo ainda mais incisivo,
onde se mistura o que pertence à esfera pública e ao domínio privado. A internet limita os
poderes da censura e proibição instituídos pelos governos e dá mais autonomia aos cidadãos
contemporâneos. Mesmo sendo controversa essa realidade, há que se encarar esse mundo
novo de frente, ao invés de meramente perpetuar antigos valores e concepções.
Na tentativa de abrir o cânone literário para novas abordagens culturais que
ultrapassassem os limites dos clássicos ocidentais, Said (2007) vem mostrar como essa
abordagem reducionista se torna vazia e quebradiça num contexto contemporâneo
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
permeado pela pluriculturalidade. Segundo ele, toda cultura está ainda passando por um
processo de autodefinição, por isso, ele incorpora um humanismo avesso ao cânone –
quando esse termo refere-se ao que execra tudo o que esteja fora do tradicionalismo
exclusivista de uma cultura elitista e se esquece de outras culturas e tradições. Humanismo
não é apenas uma consolidação daquilo já foi sentido e experimentado, mas antes uma crítica
ao que vem sendo desenvolvido a fim de evitar uma massificação arbitrária. Essa nostalgia
dos tempos passados equivaleria a um pensamento anacrônico; humanismo é – nesse mundo
democrático – crítica, revelação, descoberta: e não retraimento ou exclusão. Na esteira desse
pensamento, ele aponta direcionamentos mais epistemológicos, como o elo histórico entre
humanismo e crítica, em que se pode comprovar como toda ação pautada em grandes feitos
humanísticos teve um componente de aceitação do novo. O tradicional, canônico não deve
ser oposto às inovações contemporâneas.
No século XXI, o tradicional e o novo sempre se encontram – nem tudo o que já foi
deve ser descartado, e nem tudo o que virá pode ser dispensado: é aqui que o cânone se abre,
não para perder a sua unicidade, mas compreendendo que sem uma concepção histórica,
social e econômica, é um trabalho de Sísifo manter-se voltado apenas para o passado, sem
abraçar as novas concepções literárias. Assim, é necessário que haja certa reflexão e ação,
extinguindo o pessimismo que tende a se instalar num mundo povoado de insatisfações dos
radicais, que relutam em aceitar o novo, e dos reacionários, que se impacientam por soluções
imediatas para a aceitação de suas verdades.
Tomando por base esses pressupostos humanistas encabeçados por Said (2007),
reaparece o questionamento do papel dos escritores e intelectuais nessa nova conjuntura. Em
suas palavras:
A importância de escritores e intelectuais é eminentemente, até
esmagadoramente clara, em parte porque muitas pessoas ainda sentem a
necessidade de ver o escritor-intelectual como alguém que deve ser escutado
como guia no presente confuso e, ao mesmo tempo, também como líder de
uma facção, tendência ou grupo disputando mais poder e influência (SAID,
2007, p.112).
O conceito mais primário de escritor seria o de alguém a quem se atribui certa aura de
criatividade e uma capacidade quase sacrossanta de ser original. Mas, essa perspectiva tem
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
mudado bastante nos últimos anos e o escritor vem assumindo gradativamente papéis que
antes eram reservados apenas aos intelectuais e críticos. Entre essas novas atribuições, cabe
ao escritor contemporâneo papéis que o inserem na sociedade, como ser o porta voz da
verdade para o poder, testemunhar a perseguição e sofrimento de um grupo e apresentar-se
como figura dissidente nos conflitos com as autoridades. Logo, o escritor contemporâneo não
pode permanecer aquém da problemática social que está representando: ele será a voz que
denuncia e os olhos que se abrem para o povo.
Nessa medida, o escritor-intelectual do século XXI é também o responsável por
impedir o desaparecimento do passado, apresentando sempre narrativas alternativas que se
desvinculem da memória oficial preocupada em estabelecer uma identidade nacional
missionária. Nesse sentido, essa nova literatura deve fornecer perspectivas históricas
diferenciadas a fim de ajudar na construção de um panorama histórico mais verossímil e
acessível. Ao cumprir esse papel, ele estará também colaborando para que a Literatura firmese como campo de coexistência ou definindo algumas esferas que dificilmente serão
conciliáveis. O lugar desse escritor contemporâneo ainda está em construção, é provisório,
mas passa pelo:
86
domínio de uma arte exigente, resistente, intransigente, na qual,
lamentavelmente, ninguém pode se refugiar, nem buscar soluções. Mas
apenas nesse exílio precário é possível compreender de fato a dificuldade do
que não pode ser compreendido, e continuar a seguir em frente mesmo
assim (SAID, 2007, p.132).
1 MILTON HATOUM E AUTORIA NA CONTEMPORANEIDADE
Embora essa nova geração fervilhe de escritores nascidos no bojo da
tecnologia da rede, alguns ainda há que, sem se afastar delas, florescem da palavra
escrita com suor e sangue, mas não se excluem das novas mídias para propalar o
fruto de seu trabalho. Como exemplo desse autor do início do século XXI que se faz
presente nos circuitos mercadológicos, sem, contudo, se deixar corromper pelos
vendilhões de uma Literatura semi-letrada, está o escritor amazonense Milton
Hatoum. Preocupado com uma escrita de mais humanista, nos termo de Said, ele é o
escritor de quatro narrativas de ficção premiados e consagrados pela crítica, – Relato
de um Certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Eldorado (2008), além de um livro de contos – A Cidade Ilhada (2009), e outro de
crônicas – Um solitário à espreita (2013), além de outras crônicas, poesias e ensaios. Sua
obra já foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze países. Além disso, ele
é atualmente colunista de um jornal.
Reconhecido como um dos grandes nomes que despontaram no Brasil durante
essa transição de séculos, Hatoum é leitor de romances canônicos e, por isso, um
autor que se inspira neles; suas narrativas se mostram sob forte influência de
escritores como Flaubert, Guimarães Rosa e Machado de Assis. Herdeiro do romance
moderno, ele se preocupa antes com a forma, com a estética enquanto força motriz na
produção do seu texto, sem, entretanto desconhecer o lugar social da literatura
enquanto modo indireto de conhecer o mundo, si próprio e o Outro. Apesar dessa
aproximação com a esfera canônica da criação literária, ele não se retrai na solidão do
circuito acadêmico, deixando-se ser entrevisto nos espaços de diálogo entre os pares
e com o público.
Milton Hatoum é um escritor bastante diferenciado dessa nova geração de
escritores atuais – os quais, em sua maioria, se formaram nos âmbitos virtuais, em
blogs e redes sociais. Ele desempenha um papel mais tradicional e clássico do
escritor, sendo o defensor de uma Literatura que se escreve com a paciência do
rascunho, escrita e reescrita, tendo ficado mais de dez anos sem publicar qualquer
romance entre seu primeiro romance e o seguinte. Ainda assim, Milton Hatoum não
se exime da função autoral que a contemporaneidade demanda, pois ele é uma figura
presente nos espaços de visibilidade pública, sendo um escritor que consegue viver
do ofício de escrever.
Filho de imigrantes libaneses, Hatoum nasceu na cidade de Manaus e ali
ambienta no Norte do país as suas narrativas, além de alguns contos. Refutando
veementemente o título de ‘regionalista’ que muitos insistem em lhe atribuir, sua
escrita trata de assuntos universais, que dialogam com o ser humano em sua
essência. Uma figura facilmente reconhecível nos ambientes acadêmicos, o exprofessor de Literatura não se esquiva de dar o seu quinhão de contribuição para os
interessados em compreender os processos de sua criação literária. Para isso, detém
um sítio eletrônico com informações acerca de si, sua publicação e publicações sobre
87
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
a sua obra, o qual dispõe, inclusive, de fotos e informações de contatos das editoras
que a publicam no Brasil e em terras estrangeiras. Além disso, ele participa de
congressos, feiras e conferências literárias para debater a literatura, sua obra ou
mesmo o seu processo de criação. Vídeos e entrevistas do autor são também
facilmente encontrados disponíveis na internet, denotando que a figura autoral de
Milton Hatoum não se projeta como um mistério para qualquer interessado em
conhecê-la com mais acuidade.
O autor contemporâneo precisa se inventar para transitar pelos espaços
midiáticos, pois a subjetividade inerente ao sujeito faz com que ele desempenhe
funções sociais específicas a depender do contexto. “Os escritores mentem muito”,
diria o próprio Milton Hatoum, afirmando não acreditar nos autores que propalam a
ideia de que simplesmente escrevem, sem um roteiro específico prévio. Todavia, essa
sua assertiva traz implicações muito complexas, afinal, quando um escritor ‘diz’, a
forma que aquele dito deve ser interpretado é bastante relativa. “À qual verdade
discursiva, portanto, devemos associar o autor contemporâneo? À de seus romances?
88
À de sua fala em um periódico acadêmico? À de um bate-papo informal em um
programa de variedades?” (LIMA, 2009, p.4). Quiçá, todas essas instâncias devam ser
levadas em consideração, mas nenhuma delas creditada como verdade absoluta.
Milton Hatoum é um escritor que transita pela realidade para falar da sua própria
ficção. Ou ainda, ele é um escritor que emerge de um mundo ficcional criado pelas
suas próprias verdades. Seja como for, ele desempenha a sua função de escritor –
suas palavras devem ser sempre analisadas com certa cautela – ou mesmo
descuidadas, a depender do leitor.
A presença extradiegética do autor é, para o leitor, uma grande inovação da
contemporaneidade no sentido de produção de significações textuais. O autor de
hoje produz vários paratextos acerca da sua própria obra, como palestras,
entrevistas, notas explicativas etc. Em um mundo onde as mudanças ocorrem com
uma rapidez tamanha que muitas vezes são sequer percebidas para ceder espaço a
outras novidades, tal produção se torna bastante significativa, já que pesquisas e
análises sobre a obra podem ser também desenvolvidas a partir dessa pluralidade de
outros gêneros textuais produzidos pelo próprio escritor fora das páginas da sua
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
escrita formal. Não que isso seja condição sine qua non para a compreensão da obra,
pois, como já mencionado, sabe-se que, depois de escrito, um texto não pertence mais
a quem o escreveu, sendo o próprio autor, ao comentá-la, apenas mais um leitor dela.
Porém, para o leitor cauteloso e interessado em desvendar as significações múltiplas
que a linguagem permite, ouvir a percepção de quem escreveu o texto pode ser um
exercício bastante produtivo.
Para Hatoum, literatura se faz a partir de uma tradição de escrita e da
experiência do próprio autor, tudo isso permeado, em primeira instância, pela
linguagem. Sua escrita paciente ensina que a pressa não é uma boa amiga do
romancista: ele deve costurar suas ideias com tempo, aliando-se à arte de cortar os
excessos e reescrever em busca de uma estética saudável. Ampla produção e
publicação não são, necessariamente, para ele, a marca de um bom escritor: sem o afã
de produzir demasiadamente, ele se especializa em escrever com esmero.
A fortuna crítica de Milton Hatoum é, de certa forma, inacessível em sua
amplitude, pois a cada dia novos artigos, resenhas, dissertações e teses estão sendo
publicadas no âmbito acadêmico. Notícias, tweets, entrevistas, vídeos e páginas de
grupo nas redes sociais são desenvolvidos diuturnamente no âmbito dos meios de
comunicação. Sua produção literária ainda está em expansão, já que ele está
escrevendo um novo romance que deverá ser brevemente publicado, o qual gerará
uma nova onda de textos acerca de sua história e da relação que o autor mantém com
ela, entre outras fabulações. Além disso, suas narrativas Relato de um Certo Oriente,
Dois Irmãos e Órfãos do Eldorado já obtiveram direitos de imagem e estão em processo
de adaptação para a televisão e o cinema, advento que o autor considera bastante
favorável. Dessa forma, ele presenteia o leitor conectado aos novos moldes virtuais
que a literatura abrange, alegando ainda confiar no profissionalismo daqueles que
estão a cargo desse trabalho – pacificando, com sua aprovação, os temores do leitor
mais arraigado aos moldes tradicionais, de que tal transfiguração de gênero possa
prejudicar a qualidade da sua obra.
Assim, Milton Hatoum se apresenta como um autor acessível para o seu leitor,
seja ele convencional ou não. Preocupado em ser respeitado em todos os círculos nos
quais transita, ele já obtém notoriedade e é considerado um dos maiores nomes da
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Literatura nos dias de hoje, sem para isso, precisar se corromper aos ditames de um
capitalismo devorador ou da volatilização dos meios virtuais de comunicação.
Mantendo-se firme em seus preceitos estético-literários, ele se atualiza e se conecta.
Ele é, também por isso, benquisto pelo público e pelos pares.
Milton Hatoum é uma figura exponencial nesse fazer literário com qualidade
estética digna do cânone, mas com projeção mundial e espaço cativo no mercado
editorial, pois sua atuação nos campos de visibilidade dá ao público a sensação de
estar diante de um ícone literário mais acessível, uma vez que ele prefigura a
contemporaneidade conforme postulada por Agamben (2009).
Assim como o autor, seus narradores passam pela problemática de enfrentar a
transição dos séculos. Nos romances Cinzas do Norte (2005) , Dois Irmãos (2000) e
Órfãos do Eldorado (2008) todos os narradores enfrentam a difícil travessia temporal
para analisarem suas vidas.
2 CONSIDERAÇÕES
90
Questionar a qualidade literária que circula nos tempos hodiernos é uma tolice
infundada. A facilidade de divulgação que os meios não-impressos possibilitam para a
produção em massa são uma via de mão dupla, pois, ao mesmo tempo, auxiliam para que a
boa Literatura produzida possa ser disseminada. A internet e os meios digitais favorecem a
convivência do leitor com o autor, criando espaços de diálogo e interação bastante favoráveis
para a revitalização de um pensar literário mais democrático. Nesse processo dialógico,
lucram o leitor, pela riqueza de experiências que absorve, e o próprio escritor, pela
possibilidade de fazer sua obra conhecida, lida e comentada – obtendo ainda a aprovação e a
consagração do público no seu próprio recorte diacrônico.
Milton Hatoum é uma figura
exponencial nesse fazer literário com qualidade estética digna do cânone, mas com projeção
mundial e espaço cativo no mercado editorial, pois sua atuação nos campos visibilidade dá
ao público a sensação de estar diante de um ícone literário mais acessível.
Referências Bibliográficas
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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Gragoatá, Niterói, n. 20, 1º sem. 2006.
SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. Tradução de Rosaura Eichenberg. São
Paulo: Cia das Letras, 2007.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2008.
91
A Sociologia e a Arte:
Repensando o nacionalismo e a diversidade cultual no ensino médio.
Oyama dos Santos Lopes
UNEB (Universidade Estadual da Bahia) EMITEC (Ensino Médio com Intermediação
Tecnológica).
[email protected]
RESUMO
Neste artigo encontra-se um relato de como aconteceu na prática à aula interdisciplinar
intitulada: A cultura brasileira nos festejos juninos e na copa do mundo de 2014, as
atividades foram desenvolvidas pelas disciplinas Sociologia e Arte, na primeira série do
Ensino Médio com Intermediação Tecnológica – EMITec. O estudo de como esses eventos
interfere para a mudança nas relações sociais do brasileiro e na formação cultural deste povo
foi motivo de intensa interatividade durante as aulas, com isso as professoras das duas
disciplinas se apropriaram de recursos pedagógicos diversos como vídeos, imagens,
reportagens jornalísticas, textos comerciais e músicas para desenvolver a aprendizagem dos
alunos de uma forma lúdica. Na aula foram desenvolvidos conceitos como nacionalismo e
diversidade cultural, temas relevantes no ensino da Sociologia. Reconhecendo a importância
de partilhar esta experiência com todos aqueles que valorizam o processo ensino
aprendizagem, resolvemos descrever todas as etapas que fizeram parte das aulas de
Sociologia e Arte. As aulas do EMITEC são ministradas a distância pelo sistema IPTV, com a
utilização de recursos tecnológicos como satélites, aparelhos de TV, computadores, Webcam
e internet. Durante as aulas acontecem diversos momentos de interatividade entre os alunos
e entre professores e alunos. Os professores mediadores foram imprescindíveis para o
sucesso das atividades e das aulas. As professoras bem como os mediadores (professores de
base) foram norteando o debate e estimulando o educando a interagir com professores e
colegas, através de levantamentos de ideias dos alunos conectados através do chat. As
metodologias que se mostram eficientes no ensino presencial muitas vezes são também as
mais adequadas ao ensino a distância. O que muda, basicamente, não é a metodologia de
ensino, mas a forma de comunicação. Isso implica afirmar que o simples uso de tecnologias
avançadas não garante um ensino de qualidade, segundo as mais modernas concepções de
ensino. As estratégias de ensino devem incorporar as novas formas de comunicação e,
também, incorporar o potencial de informação da Internet. Já que o mundo vive uma nova
era, e as evoluções tecnológicas trouxeram também mudanças na vida cotidiana. A nova
metodologia experimentada por nós professores do ensino médio, com características de
educação a distância ao mesmo tempo em que percebe-se também características do ensino
presencial tem nos estimulado a criar e produzir sempre aulas que envolvam o aluno tanto
em aspectos que visem o profissional como o emocional. Esta é uma modalidade de ensino
que tem estimulado o aperfeiçoamento do professor pesquisador. As estratégias, as
metodologias utilizadas e as formas de avaliações proposta pelas disciplinas serão aqui
socializadas de forma detalhada.
Palavra Chave: Sociologia, arte, educação a distancia.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Introdução:
O presente artigo é o resultado de uma atividade didática desenvolvida pelas
professoras de Sociologia Oyama dos Santos Lopes e de Arte Elci Paim do Programa Ensino
Médio com Intermediação Tecnológica (EMITec) à aula interdisciplinar intitulada: A cultura
brasileira nos festejos juninos e na copa do mundo de 2014.
O programa EMITec foi lançado em 2011, como um dos projetos estruturantes da
Secretária de Educação do Estado da Bahia e surgiu como uma alternativa pedagógica que
visa atender, em sua maior parte, educandos das localidades mais longínquas do Estado da
Bahia e que sofre com a carência de docentes habilitados em diferentes componentes
curriculares como exemplo das disciplinas de Física, Química, Sociologia e Filosofia, diante
desses desafios, a Educação com a Intermediação Tecnológica pode ser a solução eficaz para
suprir os percalços que inviabilizam uma educação de qualidade nessas localidades além de
assegurar a jovens e adultos que moram em localidades distantes da zona rural o acesso, a
permanência e a conclusão do ensino médio, o EMITec tem como objetivos possibilitar dar
continuidade aos estudos em outro nível de ensino e atenuar as desigualdades socioculturais
no Estado.
As aulas ocorrem ao vivo, através de uma solução tecnológica desenvolvida
especialmente para o programa, que inclui possibilidades de videoconferência e acesso
simultâneo à comunicação interativa entre os alunos e professores, via satélite VSAT assim, a
estratégia adotada pelo EMITec garante a democratização do acesso e da conclusão dos
estudos do Ensino Médio a milhares de jovens que vivem em localidades carentes do Estado
da Bahia, além da perspectiva de transpor a barreira da distância o programa permite
também inclusão digital a todos esses estudantes.
As aulas do EMITec são ministradas a distância pelo sistema IPTV, com a utilização
de recursos tecnológicos como satélites, aparelhos de TV, computadores, Webcam e internet.
Durante as aulas acontecem diversos momentos de interatividade entre os alunos e entre
professores e alunos. Do ponto de vista das estratégias didáticas o EMITec vem durante
todos esses anos utilizando recursos que já são aconselhados por diversos autores, como
exemplo de Santos (2008) que defende a utilização de inúmeras possibilidades do uso
93
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
positivo de recursos tecnológicos na educação sempre contextualizando o que acontece no
mundo com os acontecimentos regionais e locais.
Atualmente as TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação) veem causando
uma ultra mega rápida expansão de novas formas de comunicação, com isso o computador e o
celular com acesso a internet são os principais elementos para toda essa evolução. A nova
sociedade, decorrente de toda esta revolução tecnológica e seus desdobramentos na
produção e na área da informação, apresenta características possíveis de assegurar à
educação e, consequentemente, ao educando uma autonomia até aí nunca alcançada
(BRASIL, 1998).
A modalidade de Educação a Distância (EAD) “[...] se reveste de
imensa
potencialidade não como solução para todos os problemas, mas cumprindo papel relevante
como modalidade de educação do futuro.” (OLIVEIRA, 2008, p. 35). Neste sentido, o Ensino
Médio com Intermediação Tecnológica (EMITEec) não encontra barreiras de espaço, e
executa o seu papel desafiador não de educação para o futuro, mas como uma educação para
os dias de hoje.
94
Moran (2011) afirma que o modelo de Educação a Distância, no qual professores e
alunos estão separados por espaço e tempo é
favorável para o processo de ensino
aprendizagem. O autor ainda realça que na Educação a Distância embora os alunos e
professores estejam separados física, espacial e temporalmente, a aprendizagem sempre
acontece porque viabiliza através dos recursos tecnológicos, particularmente os relacionados
a comunicação, o encontro docentes e discente e assim o saber pode ser buscado, construídos
e sedimentado.
A Educação a Distância (EAD) é a modalidade de ensino que permite que o aprendiz
não esteja fisicamente presente em uma ambiente formal de ensino e aprendizagem, tendo
um tutor para realizar a mediação dos trabalhos pedagógicos (SANTOS,2011). No entanto, os
estudantes do Programa Ensino Médio com Intermediação Tecnológica (EMITec) utilizam
esse ambiente formal para participar das aulas em tempo real, apesar do professor vídeo
conferencista ocupar outro espaço físico, os estúdios de transmissão das teleaulas, os
estudantes do referido programa frequentam a unidade escolar em horários diários que são
comuns ao currículo da rede estadual de ensino da Bahia, além de possuírem um professor
mediador que realiza a intermediação das atividades que são desenvolvidas.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Os processos de ensino aprendizagem devem ser dinâmicos e multi-direcionais
gerando a necessidade de criação de mecanismos diferentes dos tradicionalmente utilizados
no ensino presencial. Estes usos de estratégias tradicionais, por vezes, provocam uma série
de problemas de aprendizagem muito graves, na medida em que os alunos se desmotivam
ao serem obrigados a frequentarem aulas não motivadoras, diante disso, o professor
necessita criar estratégias que estimulem os alunos, elaborando aulas mais dinâmicas e
interessantes para a educação básica, no caso do EMITEC, ensino médio, em que quase
sempre é composto por uma clientela composta por adolescentes que já fazem o uso das
Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) em outros campos da vida social. Os
profissionais que atuam nesse programa todos os dias encontram o desafio de produzirem
aulas dinâmicas e instigantes para serem aplicadas em sala com o auxilio dos recursos
tecnológicos e é uma dessas experiências exitosas que irei aqui detalhar.
A aula aqui citada foi desenvolvida por professoras videoconferencistas de
Sociologia e Arte. Assim, este artigo tem como objetivo geral descrever o desenvolvimento
dessa
teleaula, envolvendo saberes de um outro componente curricular que forma o
currículo do ensino médio. Este momento aconteceu durante o período de 3 aulas seguidas
em tempo real e algumas das atividades propostas foram concluídas em outros momentos
sem a presença do professor especialista.
O estudo de como as festas juninas e a Copa do Mundo interfere para a mudança nas
relações sociais do brasileiro e na formação cultural deste povo, foi motivo de intensa
interatividade durante a teleaula com essa temática, por esse motivo essa foi a aula escolhida
para ser socializada esse artigo. Utilizou-se a metodologia de relato de experiência e pesquisa
bibliográfica, com aporte teórico de Linhares (2001), Gidens 2005 entre outros para descrever
as estratégias utilizadas durante a teleaula de forma pormenorizadas, ao tempo que
fundamenta as estratégias apresentadas, relatando um pouco sobre o papel da Sociologia
como disciplina na matriz curricular do ensino médio.
Descrição e Fundamentação da Estratégia
A Sociologia esteve ausente dos currículos do Ensino Médio Brasileiro durante trinta
anos e o seu retorno foi gradativo a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
nº 9394/ 1996(BRASIL, 1996) e posteriormente tornou-se obrigatória a inclusão da Sociologia
95
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
como disciplina nas três séries do Ensino Médio diante disso os professores encaram o
desafio da reapresentação da Sociologia.
Assim sendo, objetiva-se rapidamente apresentar uma proposta curricular da
disciplina de Sociologia, desenvolvida no Programa Ensino Média com Intermediação
Tecnológica, com oferta do curso de ensino médio regular, utilizando a metodologia de
mediação tecnológica para localidades da zona rural de difícil acesso e que não possuem
unidades escolares com oferta para esse nível de educação.
Para um melhor entendimento do currículo de Sociologia específico para o ensino
médio, faz-se necessário compreender o que é própria Sociologia. Diante da diversidade de
formulações e definições para tal disciplina, muitas vezes ela não é um conjunto de
conhecimentos prontos, um sistema acabado, fechado em si mesmo. É antes de tudo um
modo de se colocar diante da realidade, procurando refletir sobre os acontecimentos a partir
de certas posições teóricas. Essa reflexão permite, para além da pura aparência dos
fenômenos sociais, é ir além e buscar as raízes e sua contextualização em um horizonte
amplo que abrange valores sociais, históricos, culturais, políticos e econômicos.
96
Nessa perspectiva entende-se por currículos não como conteúdos prontos para serem
repassados para estudantes, mas como construção e seleção de conhecimentos e práticas
sempre expostos a novas dinâmicas, sociais, políticas, culturais e intelectuais dos contextos
em quem estão inseridos. Em concordância com as teorizações mais recentes sobre currículo
admite-se, ainda, a perspectiva que trata o currículo como instrumento de poder, de modo
que, o ato de selecionar um tipo de conhecimento, conferindo-lhe privilégio em relação a
outros, representa um modo de exercer o poder.
As teleaulas desenvolvidas com intermediação tecnológicas são planejadas e
organizadas visualizando as interações necessárias entre os envolvidos no processo de
ensino e de aprendizagem. Durante o planejamento e a elaboração destas aulas são utilizados
diversos recursos pedagógicos como músicas, charges, imagens, fotografias, vídeos
relacionados a temática trabalhada, tudo isso com o objetivo de proporcionar o
enriquecimento do ensino da Sociologia, contextualizar e promover a interatividade, tão
necessária para a metodologia adotadas pelo Programa EMITec.
Nas aulas com intermediação tecnológicas a interatividade é utilizada para estimular
o pensar dos estudantes provocando, assim, a sua participação e interação com colegas,
mediadores e professores videoconferenciastas e assistentes. Esse momento torna-se um
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
espaço reservado para o posicionamento dos estudantes, sendo um grande diferencial para
as aulas de Sociologia a distância. O uso de vídeos, imagens, reportagens jornalísticas, textos
comerciais e músicas tem servido de estímulo para a participação efetiva dos estudantes do
EMITec. Todas as salas virtuais fazem questão de expressar a sua opinião, bem como
contribuir com as suas participações.
Segundo Silva (2005), esta interatividade pode ser entendida como a possibilidade do
receptor transformar as mensagens e, não simplesmente recebê-las passivamente. Trata-se de
ter aí uma coautoria da mensagem tanto do emissor como do receptor, É uma construção em
conjunto. Desta forma, a interatividade consegue dinamizar a educação a distância tornado-a
prazerosa, instigante e possível de desenvolver uma aprendizagem significativa, com
qualidade e de forma responsável facilitando os deslocamentos tão necessários ao
conhecimento.
A Sociologia é por natureza interdisciplinar, já que necessita compreender diversos
aspectos da vida social do homem e nesse sentido a Arte e a Sociologia estão sempre
presentes nas ações da população e na vida dos educandos, entre outros saberes
disciplinares. Foi com o intuito de descrever esta experiência e a relação estreita com outra
área do conhecimento que será aqui relatada a estratégia da aula de Sociologia com a
parceria da disciplina de Arte para estimular e a construção de conhecimento dos estudantes.
Estratégia: Práticas Interdisciplinares no Ensino da Sociologia e Artes.
Esta aula foi desenvolvida durante o período em que acontecia a Copa do Mundo no
Brasil em 2014, com estudantes do 1º ano do Ensino Médio. O tema da aula foi: A Cultura
Brasileira nos festejos juninos e na Copa do Mundo, tendo como objetivo geral, analisar a
importância dos festejos juninos e da copa do mundo na formação cultural do povo
brasileiro e como objetivos estratégicos: proporcionar uma reflexão sobre o momento em que
a paixão do brasileiro pelo futebol faz aflorar o sentimento nacionalista da população
brasileira; repensar sobre a diversidade cultural do Brasil e do Nordeste. Com esse escopo
foram pensadas as aulas interdisciplinares de Sociologia e de Artes.
Para a efetivação da proposta, fez-se necessário a apropriação de recursos
pedagógicos diversos como vídeos, textos comerciais, imagens, reportagens jornalísticas
97
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
relacionados a temática e que possibilitasse a aprendizagem dos estudantes de uma forma
lúdica. Para fins didáticos dividiu-se esta aula em seis etapas.
Etapa 1 – Momento de Reflexão e de Interatividade
A partir do tema proposto os estudantes foram levados a refletirem sobre os
seguintes questionamentos:

Culturalmente o que muda durante e após a Copa do Mundo no
Brasil e os festejos juninos?

Por que não nos preocupamos em ser patriotas fora do mundial?

De que forma a copa do mundo influencia no cotidiano do povo
Brasileiro?
Esteticamente
como
podemos
perceber
essas
influências?
98
Durante o momento de interatividade as professoras videoconferencistas foram
analisando as respostas dos estudantes e fazendo as intervenções necessárias, contribuindo
com os conhecimentos científicos e fazendo a ponte com o conhecimento do senso comum,
proporcionando uma melhor compreensão da temática trabalhada.
ETAPA 2- Atividade em Equipe
Após a etapa de reflexão e interatividade, os estudantes foram orientados a se
organizarem em equipes para a realização de uma pesquisa com base no seguinte
procedimento:
Dividir a sala em duas equipes e solicitar que cada equipe pesquise letras de
músicas de forrós.
1ª Equipe: pesquisar letras de “forrós” tradicionais. Ex: Luís Gonzaga, Trio
Nordestino, Dominguinhos, Flávio José, etc.
2ª Equipe: pesquisar letras de “forrós” da atualidade
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
ETAPA 3- Escolha e Levantamento de Questões
Após a realização da pesquisa foi solicitada que as equipes identificassem em
cada letra das músicas escolhidas aspectos que mostrassem as seguintes informações:
 Homenagem a cultura Nordestina;
 Problemas sociais encontrados nas músicas;
 Tratamento dado as mulheres.
ETAPA 4 – Análise das Músicas
Nesta etapa foram propostas brincadeiras relacionadas aos festejos juninos e exibidas
músicas juninas, comercias da copa além de reportagens jornalísticas em que mostravam um
pouco da cultura nordestina. Ao final da aula as professoras videoconferencistas provocaram
o alunado levantando alguns questionamentos:
 Por que a música junina deixa as pessoas tão alegres?
 O que melhor caracteriza os festejos juninos e as comemorações da copa
na sua comunidade?
99
 A copa do mundo no Brasil está interferindo nas comemorações
juninas? Por que?
Ao final da análise e respostas dos estudantes foi proposta uma dinâmica
denominada de “bilhetinho da sorte”, brincadeira muito comum durante os festejos juninos
no
Nordeste,
em
que
os
estudantes
escolhem
um
número
e
as
professoras
videoconferencistas clicavam no slide e surgia e mensagem.
ETAPA 5- Exibição do Vídeo Oficial da Copa do Mundo no Brasil- 2014
Após realizar a análise proposta na etapa 4, foi recomendado aos alunos que
assistissem ao vídeo oficial da “ Copa do Mundo no Brasil 2014”. Em seguida, orientou-se
que os estudantes respondessem aos seguintes questionamentos, com a finalidade de serem
postados pelos professores mediadores no chat:

Qual mensagem o filme nos transmite?

Quais elementos da cultura brasileira foram identificados no filme?
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.

Você consegue se identificar no vídeo? Em qual momento?
ETAPA 6- Construção de SLOGAN
Após o vídeo e respostas aos questionamentos solicitou-se que a classe fosse dividida
em 5 equipes. Cada equipe produziria um slogam ou frase de efeito que corresponde a frases
de fácil memorização usada em contexto político, religioso ou comercial como uma
expressão repetitiva de uma ideia ou propósito. Os slogans como o tema “Copa do Mundo ou
Seleção Brasileira” deveriam ser afixados no mural da escola e também serem divulgados
pelos professores mediadores no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA).
ETAPA 6- Avaliação da Atividade:
Como proposta avaliativa formal da construção e apropriação de conhecimentos nas
disciplinas de Arte e Sociologia, as turmas em equipes, sob a orientação do professor
mediador deveriam utilizar a atividade desenvolvidas na etapa 2 e de posse das letras das
músicas cada equipe deveria elaborar uma produção escrita, e postar nos blogs das turmas
100
para socializar com as outras comunidades. Para a produção escrita foi sugerida a elaboração
de: acróstico, paródia, cordel ou poema, contendo elementos encontrados na pesquisa.
Considerações Finais
As metodologias que se mostram presentes no ensino presencial nem sempre são
as mais adequadas para o ensino a distância. As estratégias de ensino de ensino devem
incorporar as novas formas de comunicação e, também, incorporar o potencial de
informações da Internet. Utiliza-se da intermediação tecnológicas para desenvolver aulas à
distância em tempo real requer uma nova postura dos professores no processo ensino
aprendizagem. Isso implica afirmar que o simples uso de tecnologias avançadas não garante
um ensino de qualidade, segundo as mais modernas concepções de ensino.
Silva
(2001,
p.37) se expressa a respeito da educação contemporânea e as novas tecnologias dizendo que:
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
“[...] o impacto das transformações de nosso tempo obriga a sociedade, e mais especificamente os
educadores, a repensarem a escola, a repensarem a sua temporalidade [...]”. E ainda acrescenta que:
“Vale dizer que precisamos estar atentos para a urgência do tempo e reconhecer
que a expansão das vias do saber não obedece mais a lógica vetorial. É necessário
pensarmos a educação como um caleidoscópio, e perceber as múltiplas possibilidades
que ela pode nos apresentar, os diversos olhares que ela impõe, sem, contudo,
submetê-la à tirania do efêmero” (SILVA, 2001, p.37).
A nova metodologia experimentada pelos professores do ensino médio, com
características de educação a distância ao mesmo tempo em que
percebe-se também
características do ensino presencial tem motivado estes profissionais a criarem e produzirem
sempre aulas que envolvem e mobilizem os alunos, além de motivar o professor para a
pesquisa.
Por tudo que consideramos anteriormente, podemos dizer que a educação a
distância é uma modalidade de ensinar e aprender altamente democrática, pois iguala as
oportunidades de acesso ao saber, ao conhecer e fomenta a educação permanente. Portas se
abrem para muitos, cria-se a possibilidade do aprendizado sem fronteiras e em diversos
níveis para um grande número de interessados, independente do espaço e tempo.
REFERÊNCIAIS
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______. Lei nº9349/96 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Dispõe sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996.
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Curriculares Nacionais: ensino fundamental: apresentação. Brasília, 1998.
101
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
CLARK, R.E. Media are “Mere Vehicles”: The Opeing Argument, em Richard Clark,
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DIMENSTEIN: Gilberto e outros. Dez lições de Sociologias para um Brasil cidadão. Vol.
Único. São Paulo. FTD, 2008.
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Fontes, 2005.
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de Janeiro: Zahar, 1997.
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, J.M. O que é educação a distância (*). Disponível em
<http//www.eca.usp.br/prof/moran/dist.htm> Acesso em 20 novembro de 20015.
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OLIVEIRA, E.G. ; Educação a Distância na transição paradigmática. Coleção Magistério:
formação e trabalho pedagógico. Ed.3, São Paulo: Papirus; 2008.
ORTIZ Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 2001.
SANTOS, Letícia Machado (org). Estratégia de Ensino e aprendizagem em EAD: tendências
e práticas atuais, v.2, Salvador: Fast Designer, 2011.
SILVA, Mozart Linhares da. A urgência do tempo: novas tecnologias e educação
contemporânea. In: ____ (org.) Novas Tecnologias: educação e sociedade na era da
informática. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 11-38.
TOMAZI, Nelson Dácio. Iniciação à sociologia. São Paulo: Atual, 1993.
LEITURA, MÍDIA E LITERATURA
O exemplo do blog como um dispositivo para o ensino de literatura
Silvane Santos Souza – mestrando do Pós-Crítica/UNEB – [email protected]
Eliane Bispo de Almeida Souza – mestranda do Pós-Crítica/UNEB [email protected]
RESUMO
Este artigo discute sobre a importância do uso das TIC nas aulas de Literatura, mais
especificamente as midiáticas, trazendo a concepção de blog, como um dispositivo
capaz de despertar o prazer dos alunos em ler e analisar textos literários, bem como
estabelecer uma relação de parceria e construção em rede, a partir da cooperação e
colaboração. Procurando despertar o interesse dos discentes pelas obras literárias,
enfatiza a importância do blog literário que possibilita o prazer em ler e socializar as
ideias, uma vez que a leitura linear não corresponde mais a única forma de
conhecimento sobre determinadas obras e contextos. Assim, traz uma reflexão sobre
a empregabilidade do blog como um dispositivo capaz de agregar e subsidiar o
ensino de literatura, em que a leitura passa ser vista como uma prática multilinear,
capaz de promover rupturas nas conjunturas tradicionais da leitura linear. Além
disso, o contexto atual requer além da manipulação, o processo de interação. Hoje
temos o que podemos denominar de espaço de interação ou cibercultura, o qual
propicia o desenvolvimento do letramento digital, onde se dão as relações entre o
campo midiático e o literário. O foco principal do presente artigo está na capacidade
de promover reflexões que impulsionem novo pensar sobre o fazer pedagógico
construído com mais envolvimento entre campo docente e atuação discente. Vale
destacar que na construção de um blog literário é mister agregar associação de
manifestações literárias das últimas décadas, uma linguagem clara, com formatos
midiáticos e envolventes. Neste pensar, também se propõe abordar a linguagem
midiática como um dispositivo literário, situando-a não como uma linguagem
subliterária. Outro ponto discutido é a abordagem da expressão do verbal literário a
partir do suporte midiático, destacando-se as manifestações construídas com o uso
da hipermídia ou do hipertexto. A linguagem literária verbal ganha um sentido mais
amplo com os processos midiáticos, uma vez que cada conexão possibilita a
apresentação de expressões que, muitas vezes, não foram capazes de serem
demonstradas, como é o caso das performances utilizadas no momento da leitura, a
qual passa a incorporar fruição com participação física e da encenação. Por fim,
discute que a linguagem do cânone não se restringe ao conhecimento construído nos
moldes do tradicionalismo dos textos escritos. Dentro da concepção da arte literária,
a mídia, a exemplo do blog, também consegue conectar e estruturar produções
dentro de uma concepção canônica e atual. Como aporte teórico para construção
destas ideias, foram utilizados autores como Rojo (2002), Gomes (2010), Goodson
(2007), além de Ângela Kleiman(2005), Magda Soares(2004) e outros.
PALAVRAS-CHAVE: Blog; Literatura; Leitura; Processos midiáticos.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
1 APRESENTAÇÃO
No contexto atual em que a educação encontra-se inserida, surgem muitas
inquietações sobre o domínio das Tecnologias Educacionais. Muitos professores de
Literatura não estão se sentindo preparados para a manipulação adequada dos
recursos tecnológicos, principalmente, os midiáticos. Neste pensar, faz-se necessário
realizar um processo reflexivo sobre as competências essenciais que o professor de
Língua Portuguesa e Literatura precisa desenvolver para tornar-se capaz de se sentir
efetivamente um educador letrado, digitalmente, e proporcionar aos seus educandos
práticas significativas de leitura de diversos gêneros textuais.
Como a era cibernética requer além da manipulação, o processo de interação,
hoje temos o que podemos denominar de espaço de interação ou cibercultura, o qual
propicia o desenvolvimento do letramento digital, pois vivemos em uma sociedade
104
colaborativa em que a maior parte do conhecimento é construído em rede.
Aproveitando essas inovações tecnológicas, o professor deve incentivar seus alunos a
serem leitores ao utilizar as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) nas
aulas de literatura. Um exemplo de uma ferramenta que contribui para o
desenvolvimento e aprimoramento da leitura e escrita é o blog. Ele pode ser usado
nas aulas de Literatura para divulgar textos literários e servir de incentivo para
ampliar a leitura dos alunos. Segundo Roxane Rojo (2002, p. 2), “ler envolve diversos
procedimentos e capacidades (perceptuais, práxicas, cognitivas, afetivas, sociais,
discursivas, lingüísticas)”. O blog literário permitirá desenvolver todas essas
capacidades proporcionadas pela leitura de textos literários de uma forma prazerosa.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) sinalizam a necessidade de o
professor fazer uso dos recursos tecnológicos. Porém, muitos ainda não se sentem
preparados para esta situação, o que torna mais necessária a introdução dos recursos
midiáticos nos contextos educacionais, principalmente, no que tange ao domínio das
competências e habilidades que levam ao desenvolvimento do letramento digital,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
levando o aluno a desenvolver e aprimorar habilidades de leitura e interpretação de
textos.
Este artigo objetiva discutir sobre o uso das TIC nas aulas de Literatura,
despertando o prazer dos alunos em ler e analisar textos literários. Procurando
despertar o interesse dos alunos pelas obras literárias, enfatiza a importância do blog
literário como ferramenta que possibilita o prazer em ler e socializar as ideias.
2 O ENSINO DE LITERATURA E AS TICS
Um dos principias desafios a ser enfrentado pelos educadores no ensino de
literatura permeado pelas TIC é a reflexão sobre o currículo de literatura, Goodson
(2007) aponta que, “no novo futuro social, devemos esperar que o currículo
prescritivo se comprometa com as missões, paixões, e propósitos que as pessoas
articulam em suas vidas” (GOODSON, 2007, p. 251). Com isso, fica explícito que o
ensino de literatura precisa transcender para além das escrituras registradas nos
grandes clássicos. Ele também salienta que:
Grande parte da literatura sobre aprendizagem falha na abordagem
dessa questão crucial do interesse, por isso a aprendizagem é vista
como uma tarefa formal que não se relaciona com as necessidades e
interesses dos alunos, uma vez que muito do planejamento curricular
se baseia nas definições prescritivas sobre o que se deve aprender,
sem nenhuma compreensão da situação de vida dos alunos. Como
resultado, um grande número de planejamentos curriculares fracassa,
porque o aluno simplesmente não se sente atraído ou engajado.
(GOODSON, 2007, p. 250)
Assim, devemos pensar no planejamento do currículo tendo em vista as
definições prescritivas que levem em consideração as situações vivenciadas pelos
alunos. Hoje, mais do que nunca, a necessidade de comunicação faz com que as
novas tecnologias sejam renovadas constantemente, ultrapassando as barreiras
naturais. Com isso, a possibilidade de utilização na educação torna-se cada vez mais
urgente. Segundo Gomes (2010), “com a revolução digital, ampliam-se as
possibilidades de uso da palavra escrita e os objetos de leitura diversificam-se numa
escala inédita” (GOMES, 2010, p. 2).
105
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O educando precisa desenvolver habilidades de expressão oral e escrita. Com
o uso das TIC, essas habilidades serão mais prazerosas e interessantes. Gomes (2010)
salienta também que “a necessidade de a escola responder às novas demandas de
leitura provenientes dessas mídias é outro fator de reconfiguração do lugar da
literatura no ensino da língua” (GOMES, 2010, p.2). Mas, para que o ensino de
literatura se concretize como prática de formação e reflexão sobre as situações
vivenciadas, antes de tudo, devemos pensar as práticas de leitura literária como uma
concepção ideológica.
Vale salientar que o conceito de tecnologia é cabível ao ser concebida como o
“processo criativo, através do qual o ser humano encontra respostas para os
problemas do seu contexto, superando-os.” (Lima Jr. 2005). Este processo é
transformador, capaz de produzir, de forma criativa, e reproduzir aquilo que
denominamos de conhecimento.
Os professores sentem dificuldade em formar leitores críticos, pois deparam106
se com a falta de interesse dos alunos em ler, principalmente textos que fazem parte
de gêneros longos como os romances. Com o uso das TIC nas aulas de Língua
Portuguesa, os educandos serão despertados a terem gosto pela leitura,
desenvolvendo habilidades que lhe ajudarão a se expressar melhor por meio da
oralidade e da escrita, tornando-se assim um cidadão letrado digitalmente.
Quando afirmamos que a tecnologia e a educação são dependentes, queremos
salientar que a expressão da oralidade e da escrita têm influência nas práticas
pedagógicas centradas no discurso oral. Segundo Pinheiro-Mariz e Silva (2012, p. 2),
os processos que estabelecem uma relação entre a educação e as tendências
tecnológicas ocorreram “pelo fato de que nos dias de hoje não se pode pensar em
educação sem a sua relação direta com os recursos oferecidos pelas tecnologias atuais
[...] e essa é uma realidade que abraça a maioria das crianças”. As autoras deixam
claro que, por mais que os professores tentem não utilizar os recursos tecnológicos,
estes já fazem parte das manifestações do conhecimento.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
3 O BLOG COMO DISPOSITIVO PARA O ENSINO DE LITERATURA
Um exemplo claro de processo tecnológico a serviço da educação são os blogs,
mecanismos eficazes para formação do homem, na perspectiva do letramento, pois,
permite a emissão de opinião sobre o que lê, além de fazer uso da leitura e da própria
escrita como prática social, em prol de um bem comum que é a aprendizagem de
todos. Na mídia interativa, o conhecimento é construído e reconstruído
constantemente. Isso permite um processo de emancipação e a negação da
estagnação, sendo esta última concepção muito comum quando nos deparamos com
professores que não estão propícios à inovação, e isso acarreta em muitas situações
de insucesso que faz com que a escola não seja um ambiente acolhedor, o qual os
alunos inicialmente procuram.
Ao fazer uso das mídias na sala de aula, o professor de Literatura pode criar,
junto com seus alunos, um blog para socializar os conteúdos construídos durante as
aulas e divulgar os textos literários analisados. Essa ferramenta, que terá a interação
de todos, permitirá a socialização de conhecimento e incentivo de leitura de textos
diversos, inclusive os imagéticos. Assim, o professor poderá explorar a
multimodalidade de textos durante as suas aulas.
A informação e a comunicação sempre foram elementos de grande
importância para as sociedades, principalmente no processo de construção e
disseminação da cultura, pois, desde os tempos mais remotos, a humanidade
buscava trocar informações, as quais eram essenciais para localização, registro de
território e, principalmente, para o processo de comunicação. No entanto, durante
muito tempo, se imbricou a concepção das classes dos dominantes.
Muitas das práticas e das representações [...] não se deixam explicar
senão por referência ao campo do poder. [...] o campo do poder é o
espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em
comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes
nos diferentes campos (econômico ou cultural especialmente). [...] Ele
é o lugar de lutas entre detentores de poderes. (BOURDIEU, 2010, p.
244)
Ao incorporar o processo de representação nas propostas escolares, estaremos
também contribuindo para a formação do sujeito-leitor, que se torna mais
107
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
dinamizadora com a utilização dos dispositivos tecnológicos. O qual deve ser
colocado como mediador entre a prática docente e a aprendizagem, uma vez que,
penetrando no domínio curricular onde as representações são, antes de tudo, a
possibilidade de cristalização de modelos considerados saudáveis e viáveis para uma
sociedade aparentemente bem estruturada, resulta na possibilidade de formulação
de uma nova forma de pensar sobre o mundo.
Neste pensar, Moita Lopes (2006, p. 27) diz que uma Linguística Aplicada
transdisciplinar ou indisciplinar precisa contemplar “questões de ética e poder”, o
que configura a necessidade de um trabalho de realização e não de sofrimento para
todos os envolvidos no processo que é histórico e cultural. Conforme os autores
Azevedo Neto e Sousa (2006), a informação deve ser considerada como o principal
elemento na agregação de valor aos mais variados produtos e serviços nos diversos
campos do saber e da produção. Com isso, pode se afirmar que o conhecimento é
fruto da obtenção da informação, e quando fazemos uso deste conhecimento,
estamos de fato exercendo o processo de letramento, pois conseguimos direcionar
108
para as práticas sociais, uma das mais importantes ferramentas utilizadas na
aquisição do conhecimento que são a leitura e a escrita.
A escola, dentro da perspectiva de alfabetizar letrando, deve vincular ao
currículo os princípios da linguística Aplicada como forma de agregar pressupostos,
pois ela é vista como uma área nômade e mestiça, uma vez que ela ousa pensar de
forma diferente para além de paradigmas consagrados.
Já segundo Barreto (1994), quando a informação é assimilada de forma
adequada, ocorre uma modificação no acumulado de informações do indivíduo,
trazendo benefícios ao seu desenvolvimento e ao desenvolvimento da sociedade em
que vive. O que ocorre de fato é o processo da passagem de uma situação de menor
equilíbrio para uma de maior equilíbrio. Na construção coletiva de um blog, sempre
ocorre a transição de opiniões que levam sempre ao desequilíbrio e assim, cada um
busca nos alternativas para construir o equilíbrio.
Lévy (2000), afirma que novas maneiras de pensar e de conviver estão sendo
formadas no mundo das telecomunicações e da comunicação. A aquisição e
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
aprimoramento da capacidade de escrita, leitura, interpretação, visão, audição,
criação, ensino e aprendizagem são capturados por uma informática cada vez mais
avançada, o que acaba corroborando para aulas de Literatura mais interativas,
despertando o gosto dos alunos pela arte literária.
Com o advento da internet, a leitura e a escrita deixam de ser realizadas
apenas de forma linear. Nessa nova estrutura, os textos são conectados de acordo
com o grau de aproximação, surgindo assim uma concepção crítica que permite a
construção de competências cognitivas capazes de promoverem mobilizações e
potencializam a aquisição da aprendizagem a partir do uso dos recursos tecnológicos
disponíveis. Dessa forma, as aulas de literatura passam a ter um teor inovador,
instigando os alunos a conhecerem as obras literárias
Cavalcante (2008) diz que novas tecnologias digitais correspondem à aplicação
de conhecimento científico ou técnico como também métodos e materiais criados
para a solução de uma dada dificuldade. Assim, fica claro o conceito de tecnologia e
sua diferença da simples comunicação, bem como sua diferença da informação,
sendo a primeira ambiente de veiculação e a segunda forma de determinar, processar
e reproduzir informações. Sendo estas últimas importantes para que a aprendizagem
aconteça. Segundo Kesnki (1996): “a aprendizagem pode se dar com o envolvimento
integral do indivíduo, a partir de desafios, da exploração de possibilidades, do
assumir de responsabilidades, do criar e do refletir juntos” (KENSKI,1996).
Ao
utilizar o blog, o professor de literatura poderá desenvolver todas essas competências
sinalizadas por Kenski. O aluno passa a ser o protagonista do processo educativo ao
pesquisar e socializar o conhecimento.
No processo de construção da aprendizagem, surgem novas possibilidades de
interação. Um exemplo de ambiente de interação e construção do conhecimento em
rede é o blog, em particular o blog literário. Segundo Paiva (2008), o termo blog foi
criado em 1997 por Jorn Barger, com a intenção de se fazer uma lista de Links
interessantes e divulgá-la. Com isso, seria possível uma maior disseminação das
ideias, como também, a transmissão de descobertas recentes, o que há muito tempo
não ocorrera. Desta forma, o blog pode ser entendido como um meio de transmissão
109
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
de informação e comunicação, possibilitando agilidade, maior abrangência e
socialização das ideias levantadas e exploradas em um determinado contexto.
No processo de ensino e aprendizagem das obras literárias, para que sejam
realizadas ações prazerosas, podemos utilizar diversas fontes de interação. Moacir
Gadotti (2002) salienta que, pelo avanço das novas linguagens tecnológicas, onde
nem tudo pode ser utilizado, e que elas precisam ser selecionadas, avaliadas,
compiladas e processadas para que se transformem em conhecimento válido,
relevante e necessário para o crescimento do homem como ser humano em um
mundo alto sustentável. Não basta disponibilizamos dos recursos apenas para uso de
forma exacerbada e incontrolável, é preciso cuidado no que se é disponibilizado,
principalmente, quando se trata de formação de personalidade.
Na atualidade, para se efetivar a construção da cidadania, faz-se necessário
repensar os processos de construção de conhecimento, buscando-se, para isso,
processos educacionais que ancorem uma educação de qualidade. Para concretização
110
de tais ideais, devem ser priorizados a reflexão, o pensamento crítico, além da
abertura para discussões e realização de ações mais significativas. O blog literário é
uma ferramenta que o professor de literatura tem para superar os desafios da
desmotivação dos alunos para ler as obras literárias, sobretudo os clássicos.
Como sujeitos e comunidades, é imprescindível que se busquem a
transformação dos contextos sociais com vistas à emancipação e construção de
saberes. Assim, a escola precisa, antes de tudo, ser um espaço de construção e
disseminação da cultura do saber, possibilitando, de acordo com Corrêa (2002, p.
221), do “acesso igualitário ao espaço público como condição de existência e
sobrevivência dos homens enquanto integrantes de uma comunidade política,
deixando clara a necessidade de superação das chamadas medidas compensatórias,
mas que as ações concretizadas sejam frutos das discussões coletivas.” Portanto, a
tecnologia, em especial, a dos ciberespaços, deve contribuir para fazer com que as
aulas de Literatura se tornem mais dinâmicas, além de influenciar no
desenvolvimento das demais disciplinas.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Algumas das possibilidades existentes e que podem ser aproveitadas no
ambiente escolar como instrumentos facilitadores do aprendizado são resultantes das
ferramentas essenciais e indispensáveis na era da comunicação, também chamadas
de novas tecnologias, que ganham espaço efetivo nas salas de aula. Como exemplo,
podemos destacar os Computadores ligados à internet, software de criação de sites,
televisão a cabo, sistema de rádio e jogos eletrônicos. A metodologia respaldada na
transdisciplinaridade é capaz de articular textos com outros formatos que vão além
do literário, e tal combinação de imagens, sons, silêncios, unidos às lembranças
armazenadas na memória, propiciam o surgimento de novas aprendizagens.
Na contemporaneidade, principalmente diante das mudanças ocorridas na
sociedade, com o acesso aos meios tecnológicos antes restritos a maioria da
sociedade, pode-se salientar que o blog e seus aplicativos devem ser vistos como
veículos de disseminação do mundo digital, o qual depende de outros meios para
sua consolidação.
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje é cada vez mais comum o uso das novas tecnologias de informação e de
comunicação, as quais são usadas na comunicação social. Elas estão cada vez mais
interativas, em que os usuários se comunicam em tempo real, além de agregarem
recursos que lhes permitem criar novas alternativas e aberturas. Os programas de
multimídia, como o vídeo interativo, os chats, os fóruns são considerados alguns dos
mecanismos construídos nos blogs que conseguem promover o intercambio entre os
indivíduos e o conhecimento. Por meio desses programas, os educandos podem
ressignificar as obras literárias, construindo videoclips, socializando vídeos com
dramatizações das obras lidas, expondo imagens, realizando enquetes e,
principalmente, interagindo com outros colegas sobre o texto literário analisado.
O fazer pedagógico corresponde ao processo de condução de situações
educativas que direcionem o educando ao desenvolvimento de potencialidades. Para
isso, de acordo com o posicionamento de Stuart Hall (1996) em relação à teorização
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
pós-colonial, foi preciso desenvolver um modo de pensar que tem como objetivo
atravessar/violar limites ou tentar “pensar nos limites” ou “para além dos limites”,
que levem a resolução de situações-problemas da prática social.
Através do uso do blog literário como mecanismo que promove a interação
entre os educandos e o conhecimento produzido é possível não só apresentar novas
perspectivas de construção e apreciação de produções, como também realizar
conexões entre quem produz e quem pensa sobre aquele tipo de produção. Com isso,
a produção do conhecimento direciona-se para a criação de hipertextos, o qual pode
ser considerado como um tipo de produção que consiste nos tópicos e nas suas
ligações. Os tópicos podem ser parágrafos, frases, expressões ou simples palavras, as
ligações correspondem as conexões que podem ser agregadas ao texto, como é o caso
dos links, que levam ao aprofundamento de expressões. Com aulas interativas assim,
o professor de literatura oportunizará aos alunos a leitura de diversas obras literárias
de uma maneira mais simples e instigadora.
112
A investigação sobre a aprendizagem construída por intermédios dos recursos
tecnologicamente midiáticos nos remete a necessidade de qualificação dos
educadores, sobretudo os de Língua Portuguesa e Literatura, bem como para a
abertura dos currículos escolares de forma a promover a formação plena do
indivíduo, contribuindo para que este faça o uso social da leitura e da escrita como
mecanismos das práticas sociais. Para isso, um dos meios mais eficaz é o uso das
tecnologias, em especial o blog literário que agrega perspectivas interativas, além de
permitir a coletividade e colaboração entre os indivíduos ao socializar a leitura das
obras literárias estudadas. Para esta proposta metodológica a intertextualidade é hoje
um dos dispositivos que conecta narrativas como romance, novela de televisão,
roteiro de um filme, letra e música de uma canção.
Porém, diante de tais ideias positivas, também salientamos a necessidade da
formação adequada do professor de Literatura para auxiliar no processo, bem como
o que a escola está fazendo para garantir o direito da aprendizagem ao aluno.
Para tal desafio, nada melhor do que o uso do blog literário nos processos de
aquisição, utilização e discussão da leitura e da escrita como prática social.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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114
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
115
Eixo II
Literatura, Experiência e
Memória
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
116
A TELA, O ESPELHO, O POEMA:
Um estudo do autorretrato na poesia
Almi Costa dos Santos Junior
Graduando do curso de Letras Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), campus X
[email protected]
Gabriela Fernandes
Professora do curso de Letras Língua Portuguesa e Literaturas na Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), campus X
[email protected]
RESUMO
O presente trabalho parte de um estudo que pretende compreender o autorretrato
enquanto possibilidade de temática e de técnica para a produção poética. Nas artes
plásticas o autorretrato é uma técnica que permite ao artista reproduzir a sua própria
imagem da maneira que se vê refletido no espelho ou sua própria imagem registrada
em uma foto. Diante da tela e podendo observar a si mesmo de alguma maneira, o
pintor escolhe as cores e as formas que irão compor a obra, decidindo que partes de
si estarão naquele espaço. Pensando nisso, acredita-se que este estudo se faz
importante para a compreensão de que o poeta também faz uso desta técnica,
inicialmente difundida através das artes plásticas por artistas como Albrecht Dürer e
Leonardo Da Vinci, e posteriormente muito utilizada por pintores como Egon
Schiele, Frida Kahlo e Vincent Van Gogh. Pintores como Rembrandt, autor de vários
autorretratos, viram nesta técnica a possibilidade de aprimoramento artístico, além
de autoconhecimento. Além das mudanças físicas naturais e visualmente
perceptíveis, os autorretratos são capazes de sugerir diversas leituras sobre o seu
autor. Tal como a expressão ut pictura poesis (como a pintura, é a poesia), atribuída a
Horácio, ou a expressão muta poesis, eloquens pictura (a pintura é uma poesia muda, a
poesia é uma pintura falante), atribuída por Plutarco ao poeta grego Simônides de
Céos, é válido pensar que a poesia e a pintura existem em grau de igualdade, como
artes irmãs. Ou seja, assim como na pintura, é possível que na poesia o autor se
autorretrate, utilizando o poema como espaço limitado dessa reprodução. Desta
forma, busca-se utilizar os pressupostos teórico-metodológicos dos estudos interartes
na condução de delimitações importantes, na tentativa de se aproximar de um
conceito de autorretrato poético. Quanto a este ponto, busca-se embasamento teórico
em Rosa Maria Martelo. Com principal objetivo de identificar o autorretrato na
poesia, pretende-se compreender os motivos pelos quais se defende neste trabalho a
ideia de que o poeta se autorretrata em alguns de seus poemas. Para isso serão feitas
análises com poemas de Mia Couto, Manoel de Barros e Cecília Meireles, tendo por
base as análises feitas quadros dos autores citados anteriormente. As análises, tantos
dos quadros quanto dos poemas servem para que se compreenda o autorretrato além
de sua função de registro momentâneo de seu criador, pensando que existem outras
leituras possíveis, mais íntimas. Da mesma forma, discute-se a escolha do termo
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
autorretrato, comparando artes plásticas e poesia, em sentido de aproximar as duas
artes.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia; Autorretrato; Interartes.
POESIA E PINTURA
Os estudos entre literatura e pintura não são novos, o que não reduz a sua
capacidade produtiva. É preciso dizer que este trabalho não compara obras
especificamente, mas as duas artes, no sentido mais amplo. Aprofundando ainda
mais e deixando os caminhos mais visíveis, o que se pretende é estudar um conceito
que se relaciona com essas duas artes, fora todas as relações possíveis já amplamente
discutidas na academia.
O que é considerada como a primeira relação feita entre poesia e pintura tem
origem no poeta grego Simônides de Céos (556 – 468 a. C.) em uma citação feita por
Plutarco (ca. 46 – 120 d. C) em De Gloria Atheniensium III. A expressão muta poesis,
118
eloquens pictura a ele remetida traz a ideia de que a pintura é uma poesia silenciosa e
a poesia é uma pintura falante. (MELLO, 2010, p. 222) Simônides põe as duas artes
em relação de igualdade. O mesmo faz Horácio com a expressão conhecida por ut
pictura poesis, cuja tradução remete a “como a pintura, é a poesia”.
Assim, pretende-se compreender o conceito de autorretrato mantendo o
diálogo que existe entre poesia e pintura, pensando-se que é possível perceber a
poesia na pintura, bem como enxergar as imagens que a poesia evoca – lembrando
que as duas se olham através do mesmo espelho.
O AUTORRETRATO
A partir do Renascimento e de artistas como Albrecht Dürer (1493) e Leonardo
Da Vinci (1515), pintores e desenhistas reconheceram a possibilidade de retratarem a
si mesmos. O autorretrato é a forma que o artista encontra para pintar-se longe de
suas vaidades ou carregado delas. Ao criar um retrato de si mesmo o pintor abre
possibilidades de se mostrar, se esconder ou se deixar ser interpretado, sugerindo
leituras e não as proporcionando. (CLARK, 2007, p. 200)
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O autorretrato pode ser uma forma de aprimoramento das próprias técnicas,
funcionando também enquanto temática. Rembrandt (1606), considerado o mais
importante pintor holandês, principalmente por seus inúmeros autorretratos,
conseguiu construir através de suas obras uma biografia capaz de mostrar as
diversas mudanças físicas que lhe ocorreram com o tempo.
119
Auto-retrato (1629) e Auto-retrato (1669), Rembrandt
A pintura feita em 1629 retrata Rembrandt aos seus 23 anos e de 1669 aos 63
anos, feita no ano de sua morte. As obras mostram as marcas que o tempo deixou no
rosto do pintor, mas ainda permitem leituras a respeito da busca do artista pelo
autoconhecimento. Outra característica particular, já observável no quadro de 1629, é
como a luz se configura nestas obras (e em diversas outras do pintor); como se
houvesse uma única fonte de ou uma mais intensa de um dos lados e uma mais fraca
do outro, técnica que inspirou um efeito na fotografia e leva o nome do pintor,
conhecido por Luz Rembrandt1.
Técnica utilizada em estúdios fotográficos, conseguida através de um refletor e uma fonte de luz ou
duas. Uma luz mais potente é posicionada em um ponto mais alto e uma menos potente, mais abaixo,
do outro lado, formando um contraste de luz e sombra. É efeito é formado por um triângulo de luzes
que se forma abaixo da linha dos olhos da pessoa retratada.
1
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Talvez nem o pintor saiba se é capaz de se representar fielmente, sem o
estranhamento natural, como pode acontecer ao pintar outras naturezas, como expõe Clark
(2007):
O fato de o próprio pintor estar sentado na frente de um espelho tende a
provocar um movimento dialético de vaivém sem exigir um esforço
desnecessário por parte do dialetista; o espelho naturaliza o movimento, por
assim dizer, fazendo parecer que ele se dá no espaço, entre um self que está
aqui onde estou e outro que está lá no espelho; não passa de óbvio artifício
especioso fazê-los estranhos um ao outro. (p. 197)
Talvez ocorra que, pelo fato do autorretrato ser feito enquanto o pintor
observa o seu reflexo no espelho ou à sua imagem captada em uma fotografia, a
tendência seja reproduzir o que ele vê: características físicas, a pose escolhida, a luz
naquele momento.
Novaes (2007) diz que “O auto-retrato é um instantâneo do momento em que
o sujeito se encontra, mas não por muito tempo”, e isso talvez dialogue com a prática
incessante do autorretrato para Rembrandt. Mas olhando para o autorretrato feito
120
por Leonardo da Vinci em 1512, em que o artista se retrata muito mais velho do que
estaria no momento em que fez o desenho, talvez seja possível ver o autorretrato
além do papel definido de instantâneo do momento e que exista muito mais a conhecer
do que o retrato externo.
Retrato de um homem em giz vermelho (cerca de 1512 a 1515), Leonardo da Vinci
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Alguns estudiosos acreditam que da Vinci tenha se retratado em idade mais
avançada propositalmente para se parecer com o Platão retratado no quadro Scuola di
Atene (Escola de Atenas) feito pelo pintor Rafael Sanzio (1483) entre 1509 e 1510. O
autorretrato possui características bem presentes nos desenhos de da Vinci, o
perfeccionismo anatômico, o rebuscamento aos detalhes (fios de cabelo e barba,
rugas) e a preocupação com sombreamentos bem posicionados, mesmo num
autorretrato que a certo ponto se assemelha a uma espécie de esboço. Com isso,
pode-se compreender o autorretrato além do seu objetivo de instantâneo do
momento, podendo sugerir leituras ainda mais íntimas do artista.
Ao longo dos anos vários artistas utilizaram o autorretrato como forma de
explorar suas técnicas e de criar uma identidade. O pintor Vincent Van Gogh (1853)
desenvolveu técnicas bastante singulares e pessoais na pintura, retratando as pessoas
a sua volta, os lugares onde viveu, paisagens, imagens de sua memória e a sua
própria imagem, em diversos momentos de sua vida. Tendo uma vida marcada por
conflitos, pela solidão e pelo não reconhecimento de sua arte, Van Gogh talvez tenha
deixado em seus autorretratos mais do que simplesmente a reprodução de sua
imagem refletida no espelho.
Auto-retrato (1887) e Auto-retrato com chapéu de feltro (1887), Vincent Van Gogh
121
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
No mesmo ano, o pintor fez dois autorretratos que trazem características
similares, mas técnicas diferentes. No primeiro (à esquerda) existe maior fidelidade
com sua imagem, luz bem posicionada, provocando brilhos e sombras nos cabelos e
na barba, tons da pele também bem escolhidos, sem deixar perder qualquer ponto;
no entanto, essa preocupação foca-se no rosto, as roupas e o fundo são compostos de
traços e pontos que, em determinadas partes se movimentam, noutras parecem
estáticas, em cores contrastantes (azul e amarelo; laranja, azul e verde). No segundo
(à direita) parece que a preocupação e a suavidade diminuem, o quadro é todo feito
em traços, cuja espessura aumenta de acordo com que se afastam do rosto que
centraliza, e existe um movimento específico para cada ponto do quadro: no rosto e
no chapéu, nas roupas e no fundo; o fundo possui uma fluidez que contorna a
imagem do pintor, nos remetendo ao mito de Narciso que olha (e se apaixona) por
sua imagem na água. O olhar fixo, a face imóvel sem sorriso, a sobrancelha um pouco
franzida, como se um quadro olhasse para o outro, como um espelho. Além de
pensar na inquietude do pintor em relação às técnicas utilizadas no momento da
122
pintura, se pode pensar como seus quadros são reflexos de sua vida.
Egon Schiele (1890), também é considerado um dos mais conhecidos pintores a
utilizar o autorretrato, dono de um traço muito significativo e pessoal.
Auto-retrato com as mãos no peito (1910) e Auto-retrato com a cabeça baixa (1912), Egon Schiele
Os autorretratos acima mostram duas possibilidades diferentes, em um
intervalo cronológico relativamente curto. De um lado o Schiele autorretratado em
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
cores suaves (vários tons de amarelo) e traços sutis que formam o cabelo e os que
contornam o rosto e as mãos. Do outro, o artista de olhar profundo, as cores
sobrepostas, escuras (quase não se vê o uso de branco, mas tons de trigo e creme e
uso excessivo de preto e castanho), num ritmo que parece perdido, é possível ver as
marcas do pincel e camadas de tinta em alto-relevo. São cores tão próximas que a
certo ponto a imagem parece se fundir, dissolver, como se a qualquer momento ela
fosse se tornar uma mancha. O exagero nas formas anatômicas é uma característica
peculiar do pintor. Ele se apropria da liberdade artística – tanto em relação à
superfície, quanto ao seu âmago interpretativo, sugerindo leituras sobre si que talvez
não pudessem ser expostas de outra forma.
Alguns artistas decidem se autorretratar de modo a não se reproduzirem do
ponto de vista da realidade, mas reinventam-se. Um exemplo desta temática é o
quadro Autorretrato blando con bacon frito (Autorretrato mole com bacon frito) do
pintor espanhol Salvador Dali (1904).
123
Fotografia de Salvador Dali e Autorretrato blando con bacon frito (1941)
Conhecido por suas pinturas surrealistas, Dali faz um autorretrato utilizando
sua principal técnica, criando algo bem diferente do que se espera de um
autorretrato. A imagem mostra o retrato do pintor totalmente adverso da realidade: o
rosto desforme, como se derretesse, sustentando por muletas, traços inspirados no
surrealismo. Um leitor que nunca tenha visto a imagem de Dali talvez não seja capaz
de reconhecer. Mas um leitor que possui essa informação pode captar as pistas
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
deixadas no quadro e reconheça que se trata de um retrato próprio, como o bigode,
característica marcante do pintor. No quadro é possível notar o uso dominante do
dourado, muito utilizado em suas obras, além do amarelado e do castanho. Existe
ainda muito contraste, muitas sombras e pouco brilho. Ele não se retrata exatamente
como está no reflexo do espelho ou impresso na fotografia, mas o faz a partir do
estilo pelo qual ficou mais conhecido, através da plasticidade que lhe é peculiar, não
apenas dando ao seu quadro aspectos surrealistas, mas sendo o próprio surrealismo,
como ele mesmo afirmara.
ENTRE A TELA E O POEMA
Já fui eu esse de paletó
Sei estar andando com o pé no chão
Posso ser alguém que passa a dó
Eu já fui vulto na escuridão
Quase que alguém morre do coração
Já fui eu que entrei na contramão
Ah, sei lá eu
124
Se o cara que vem lá, será eu?
Mas sei imaginar
Eu me enxergo no lugar
5 a seco – Sei lá eu
Tal como o pintor que, ao se pintar, manipula as cores e as formas que irão
fazer parte da composição do quadro, o poeta conduz as palavras que irão retratá-lo
no poema. A imagem no poema pode ser totalmente oposta à refletida no espelho,
mas diante dele, em palavras, está o seu reflexo. É possível que nem o próprio poeta
saiba como e porque chegou àquela imagem, mas é provável que se reconheça
retratado nela, assim como diz Rosa Maria Martelo, é o autor que se retrata que “háde ficar parecido com o seu auto-retrato e não o inverso”. (2004, p.14).
A pintora mexicana Frida Kahlo (1907) produziu vários autorretratos durante
a sua carreira, em situações diversas.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
La columna rota (1944) e El venado herido (1946), Frida Kahlo
Através deles, a pintora pôde ilustrar as dores que sentia por conta do
acidente sofrido aos 18 anos, das operações realizadas para reconstruir o seu corpo e
das doenças contraídas durante sua vida.
Na obra La columna rota (1944) existem pontos que trazem a dor: as lágrimas
no rosto, vários pregos pelo corpo, além da visualização interna de uma coluna (que
lembra uma coluna grega) quebrada, exatamente no lugar de sua medula espinhal.
Em El venado herido (1946) a pintura retrata quase todo seu corpo quase todo
animalizado, assumindo características de um veado; flechas perfuram seu peito, seu
pescoço e cinco flechas se enfileiram por sua medula espinhal. Frida Kahlo se
submeteu a mais de trinta cirurgias e delas sete foram de coluna. É válido observar
que, no(s) autorretrato(s) o autor não se parece com algo, ele é. Em determinado
ponto, ela assume formas de construção danificada, em outra, formas de um animal
ferido.
Da mesma forma o poeta nem sempre se retrata do mesmo ponto, já que está
em constante movimento e o poema materializa apenas uma parte deste ir-se,
cabendo ao leitor tentar descobrir em que medida no poema está o poeta que se
autobiografa e o poeta que se autorretrata, como observa Rosa Maria Martelo:
o texto tudo fará para dificultar esta distinção, sugerindo ao leitor que é
precisamente o sujeito biográfico que é descrito na obra, quando, na
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
verdade, o leitor apenas poderá conhecer um autor textual que se autoretrata enquanto sujeito biográfico. (MARTELO, 2004, p. 14)
A condução do poema, como um todo, acaba por se tornar escolha, dever ou
responsabilidade do poeta. Ao se autorretratar, o poeta deve reconhecer que parte de
si pode ficar à mostra, como pode deixar de ser mostrada. E a depender de que forma
ele o faz, talvez nem o leitor e nem ele mesmo sejam capazes de identificá-lo.
Mia Couto (1955), poeta e escritor moçambicano, é dono de uma linguagem
imagética, carregada de uma mistura entre espiritualidade e materialidade (talvez,
devido à sua formação de biólogo). No poema Identidade, entre imagens de seu lugar
de origem, ele se une, se vê e é também tudo aquilo que o cerca:
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
126
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Os primeiros dois versos trazem a necessidade do poeta em ser “outro” para
que enfim seja ele mesmo. Octavio Paz chama isso de outridade (ou alteridade), algo
que:
Não está dentro, no nosso interior, nem atrás, como algo que surge de
repente no limo do passado, mas está, por assim dizer, adiante: é algo (ou
melhor: alguém) que nos chama a ser nós mesmos. E esse alguém é nosso
próprio ser. (PAZ, 2012, p. 186)
Mia Couto dá imagens que no fim serão a sua própria imagem; ora é “grão de
rocha”, ora é o próprio “vento” que desgasta a rocha; ora é “pólen”; ora é “areia” que
sustenta “o sexo das árvores”; elementos muito ligados ao ambiente africano, além
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
das metáforas próprias de seu povo: a árvore, como origem, com raízes fincadas, mas
cujos galhos crescem para fora. Aqui, ele é a própria terra que sustenta as árvores,
sua origem não é uma só.
O poeta só reconhece sua própria existência a partir da existência de outro e
talvez o espelho proporcione esse momento de encontro; aqui, sou um, no espelho,
sou outro. O poeta Manoel de Barros (1916) também acredita ser mais de um, como
ele escreve em Os dois: “Eu sou dois seres [...] O primeiro está aqui de unha, roupa,
chapéu e vaidade. / O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.”
(BARROS, 2013, p. 405); tanto um, quanto outro possui “vaidades”, embora o
primeiro seja feito de elementos materiais (“unha”, “roupa”, “chapéu”) e o segundo
seja feito de seus principais produtos enquanto poeta (“letras”, “sílabas” e “frases”).
Mia Couto e Manoel de Barros fazem um movimento que, para Octavio Paz, é
inevitável, quando observa a necessidade do homem em ser outro, sugerindo que
seu ser sempre o leva para além de si (PAZ, 2012, p. 187), como Manoel de Barros em
Retrato do artista enquanto coisa, farto de cumprir sua função de homem-social (Não
aguento ser apenas um sujeito que abre / portas, que puxa válvulas, que olha o
relógio, / que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, / que aponta o lápis,
que vê a uva etc. etc.), declara: “Perdoai / Mas eu preciso ser Outros.” (BARROS,
2013, p. 347-348)
Se na pintura, ao se autorretratar, o artista busca nas cores e nas formas uma
maneira de tornar visível a sua própria imagem, na poesia o poeta se habilita das
palavras e das metáforas para formar a si mesmo. Em Retrato, a poetisa Cecília
Meireles (1901) dá ao leitor pistas de como é a sua imagem, sugerindo ao mesmo
tempo como era a sua imagem no passado, numa espécie de reflexão diante do
espelho:
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
127
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
A ideia do passado aparece nos verbos no pretérito imperfeito (“tinha”) e
perfeito (“dei”, “ficou”), mas se dispõe antes e depois do verbo em tempo presente
(“mostra”), o que indica justamente a pessoa de agora, lembrando-se da pessoa de
antes. A esperança da poetisa é de que sua face esteja presa em algum espelho; o
tempo lhe deu características que a tornam estranha a si mesma, além de trazerem
cargas negativas (“rosto triste”, “magro”, “olhos tão vazios”, “lábio amargo”; “mãos
sem força”, “paradas”, “frias” e “mortas”). O seu rosto ainda aparece como uma
máscara alheia ao ser, algo que ela possui e não aquilo que é (“Eu não tinha esse
rosto de hoje”). O “eu” transita por corpos nos quais ele possa habitar, buscando por
trás dos disfarces de alguma máscara, o ser capaz de construir a sua imagem.
Os títulos dos poemas mostrados até aqui já sugerem a noção que se pretende
128
estabelecer neste trabalho: a relação entre poesia e pintura ou imagem e poesia, a
ideia da outridade e reconhecimento do poeta nas imagens do poema. Para o
primeiro ponto, observamos o título do poema de Cecília Meireles, Retrato. Ainda, o
segundo poema de Manoel de Barros citado não possui título especificado em
palavras, é sinalizado em uma sequência pelo número 11, forma como o poeta
organizou os poemas do livro Retrato do artista quando coisa2. Para a noção de
outridade (alteridade), a necessidade do poeta em ser outro, o poema Os dois,
também de Manoel de Barros. E, pra retomar a ideia do poeta que espera ver a sua
própria imagem nas imagens construídas no poema, o título escolhido por Mia
Couto para o poema aqui citado, Identidade.
Analogia ao livro de James Joyce, Um retrato do artista quando jovem, que por sua vez tem relação
(mesmo que não intencional) com o autorretrato de Jacques-Louis David, Retrato do artista (1794).
2
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Seria precipitado fazer considerações finais de um artigo que é, na verdade,
parte de um processo ainda maior. A linha de análise utilizada para investigar a
recorrência do autorretrato na poesia de Mia Couto, Manoel de Barros e Cecília
Meireles é a mesma que pretendo utilizar em meu trabalho de monografia de
conclusão de curso.
Reconheço que ainda há muito a estudar para chegar, no mínimo perto, do
que se espera de um conceito sobre o autorretrato poético. Aliado aos estudos
interartes, as pesquisas sobre poesia e a leitura de poetas que escrevem voltando-se
para a temática do “eu”, está a constante escrita e reescrita.
Tal como Rembrandt, a prática incessante pode servir de aprimoramento e de
registro biográfico, mas espero que sirva, acima de tudo, de um contínuo processo de
autoconhecimento e autodescobrimento.
REFERÊNCIAS
CLARK, T. J. Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. São
Paulo: Cosac Naify, 2007.
MARTELO, Rosa Maria. Em parte incerta: estudos da poesia portuguesa moderna e
contemporânea. Porto: Campo das Letras, 2004.
NOVAES, Joana de Vilhena. “Auto-retrato falado”: construções e desconstruções de
si. In Latin American Journal of Fundamental Psychopathology Online, v.4 n.2, São
Paulo,
nov.
2007.
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S167703582007000200002&script=sci_arttext > Acesso em: 11/09/2015.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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EXPERIMENTO DE LEITURA NA ESCOLA: UM OLHAR PARA A LITERATURA
FEMININA
Amanda Silva Cardoso (UESB)
[email protected]
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo (UESB)
[email protected]
Adriana Maria de Abreu Barbosa (UESB)
[email protected]
RESUMO
Este artigo tem como objetivo socializar os resultados de uma intervenção
pedagógica de leitura realizada em uma sala de terceiro ano do fundamental I. As
atividades de leitura foram desenvolvidas em um colégio da rede municipal de
ensino, situado na cidade de Jequié/Bahia, constituindo-se como uma ação de
mediação realizada pela bolsista voluntária do Projeto de pesquisa “Escritoras
Brasileiras na Escola” (FAPESP/UESB). Tendo em vista que o nível de leitura dos
alunos é uma preocupação constante dos profissionais que atuam na educação, faz-se
necessário que essa prática de leitura seja desenvolvida de maneira adequada e
prazerosa, útil e enriquecedora ao universo escolar e à realidade social do
aluno. Utilizamos como procedimento metodológico o estudo dos textos: “Ofélia, a
ovelha” e “Moça tecelã”, da escritora Marina Colassanti, cujo principal foco é
garantir reflexão sobre os contos de fadas tradicionais e o conto “Moça tecelã” e tecer
comentário sobre as obras dando ênfase à temática feminina e questões de gênero.
Palavras-chaves: Leitura; Literatura; Autoria feminina.
INTRODUÇÃO
Quando eu era criança, durante muito tempo pensei que
os livros nascessem como as árvores, como os pássaros.
Quando descobri que existiam autores, pensei: também
quero fazer um livro. (LISPECTOR, escritora brasileira
1920 – 1977).
De acordo com BARBOSA (2011), os estudos de gênero buscam a visibilidade
para as autoras femininas, que muitas vezes não são trabalhadas em sala de
aula. Considerando que a dinâmica pedagógica no contexto escolar requer
do profissional docente a realização das mais diversas atividades para que um
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
conteúdo seja explorado é que nos propomos realizar esse trabalho diferenciado na
perspectiva de mediar o processo de aprendizagem com relação à temática de
gênero. Para atingir nosso objetivo priorizamos a utilização de recursos pedagógicos
diferenciados e lúdicos. ORLANDI (2000) defende o uso da ludicidade, e afirma que
esta facilita a produção de sentido na aprendizagem. De acordo com SOARES (2009)
a escolha das leituras deve ser feita tomando como critério básico a possibilidade de
que a leitura precisa ser feita de maneira prazerosa, sedutora, que tenha o poder de
levar a descoberta do prazer de ler. Nesta leitura “o novo” deve se fazer presente,
pois a leitura traz novas descobertas, provocando o fascínio por um universo
encantado da literatura Infantil e Juvenil.
Este trabalho procurar mostrar parte do projeto “Memória das escritoras
brasileiras na escola” realizado na UESB campus de Jequié o qual leva para as escolas
públicas obras das escritoras brasileiras, a saber: Zélia Gattai, Marina Colassanti, Ana
Maria Machado, Adriana Falcão e Silvia Orthof. Todas essas escritoras têm uma
literatura voltada para as discussões feministas, mostrando as varias faces da mulher
132
presente na sociedade.
Colassanti escreve brilhantemente histórias para crianças, seus textos são
lúdicos e realistas, tocando em conteúdos delicados que devem chegar às crianças em
desenvolvimento intelectual. Na obra “Moça tecelã”, Colassanti conta a história de
uma jovem que um dia se percebeu sozinha e então resolveu casar-se, mais após o
casamento viu que seu marido só tinha interesse no luxo que ela podia proporcionar
e isso a fez infeliz, então a moça tecelã se arrepende e desmancha tudo que foi
construído, inclusive o casamento. No fragmento a seguir é possível perceber a dura
rotina da personagem: “Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido,
enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo
o que fazia” (COLASSANTI, 2004, p.7). No fragmento é possível perceber como a
moça tecelã era explorada pelo companheiro. Sabemos que essa história é muito
parecida com a realidade de muitas mulheres brasileiras, mulheres que dedicam uma
vida ao seu companheiro e, no entanto, são infelizes, sem ter o carinho e a atenção
devida dentro de uma relação conjugal.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A partir dessa e de outras reflexões sobre a produção dessa escritora, a
pesquisa foi desenvolvida no Ginásio Municipal Dr. Celi de Freitas, na cidade de
Jequié, Bahia. A pesquisa realizada entre o segundo semestre de 2014 e primeiro
semestre de 2015, nesse período também realizamos sessões de estudos sobre teóricas
femininas, para embasamento das atividades de campo. Trabalhamos com
estudantes do 3º ano no turno matutino em 2014, e no turno vespertino em 2015,
turmas distintas.
As oficinas de leitura foram realizadas nestas turmas, pois
percebemos que ambas precisavam trabalhar com a temática feminina em suas
leituras de sala de aula, pois as profissionais de educação nem sempre proporcionam
aos seus alunos essas discussões.
A FORMAÇÃO DO LEITOR
Os profissionais da educação sabem que o caminho para a aprendizagem e
alargamento de fronteira intelectual parte da leitura que o estudante tem acesso
durante a sua vida escolar. A literatura tem grande parcela de responsabilidade no
desenvolvimento intelectual do aluno e na sua formação política e social. Palo e
Oliveira afirmam que “a literatura infantil surge como uma forma literária menor,
atrelada à função utilitário-pedagógica do que literatura” (PALO E OLIVEIRA, 2006,
p.9). Sabemos que a literatura vai muito alem do utilitário-pedagógico, pois dela
parte a as reflexões, e discussões sobre inesgotáveis temáticas sociais, através do real
e do imaginário.
No processo de formação do leitor, é de suma importância que os estudantes
tenham acesso fácil aos livros na escola e também no ambiente familiar.
ZILBERMAN (2003) afirma que: “Preservar as relações entre a literatura e a escola,
ou o uso do livro em sala de aula, decorre de ambas compartilharem um aspecto em
comum: a natureza formativa” (ZILBERMAN, 2003, p. 25). Para proceder à literatura
em sala de aula, o professor precisa levar em consideração os pontos de contato entre
o leitor e o seu cotidiano, para que a literatura seja significativa e proveitosa no
processo formativo. O leitor precisa ver na leitura referências de seu cotidiano, pois
dessa forma é possível torná-la mais prazerosa e significativa em suas reflexões.
133
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Em sala de aula é importante o professor dar prioridade a textos literários completos,
pois fragmentos nem sempre atraem a atenção do estudante ou mostram as
possibilidades interpretativas do texto, mesmo quando o mediador tem o intuito de
abordar aspectos gramaticais do texto, “A experiência de leitura, portanto, não
consiste simplesmente em decifrar o código de um texto e muito menos em lhe
atribuir um único sentido” (YUNES, 2003, p. 34). Portanto priorizar a leitura integral
em sala de aula ou em espaços educativos, incentiva o gosto pela leitura e ajuda o
estudante compreender melhor o conteúdo a ser explorado. No projeto “Memórias
das Escritoras Brasileiras”, foi priorizado esse estilo de leitura, e quando não era
possível concluir a obra em 2horas aula, deixava-se a conclusão para a aula seguinte,
isso aguçava a curiosidade dos estudantes, fazendo-os perceber como o ato de ler é
bom e proveitoso, não necessariamente sendo maçante, como os jovens costumam
reclamar.
Durante todas as etapas do Projeto Memórias das Escritoras Brasileiras na
Escola nos preocupamos em levar leituras que estivessem de acordo com as
134
necessidades das turmas e que tocasse nas questões do feminino de uma maneira
agradável e de simples entendimento.
Desde os primeiros passos, a literatura feminina esteve associada às
temáticas do cotidiano, da identidade e do doméstico sob uma estética
intimista e confessional. E justamente por isso fora considerada menor: por
tratar de trivialidades, amenidades e assuntos menos sérios, numa época em
que o mundo privado era estigmatizado e, junto com ele, sua protagonista: a
mulher. (BARBOSA, 2011. P.76)
Ainda vivemos em uma sociedade que se refere à literatura feminina e
discussões feministas como assunto menor, mais trabalhamos com os estudantes a
visão realista dessas obras e a importância de não se ignorar as temáticas feministas
nos contextos atuais.
A LITERATURA FEMININA EM SALA DE AULA
A escritora possui um jeito próprio de abordar temáticas diferenciadas e se
destaca quando os temas são amor e família. Marina Colasanti escreve desde a
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
infância, quando morava em solo Italiano e foi ganhadora de vários prêmios como:
Prêmio Jabuti de Poesia por Rota de Colisão (1993). As obras infantis da escritora,
sempre trazem uma reflexão feminina, muito pertinente para que as crianças
aprendam desde pequenas a importância de se respeitar as mulheres e os seres
humanos em geral.
Para estudar a autora com alunos de uma escola pública do interior da Bahia,
escolhemos as obras: “Ofélia, a ovelha” e “Moça tecelã”. Essas obras têm uma
sensibilidade muito grande, a primeira trata da aceitação física da mulher e sua
necessidade de mudança, e a segunda obra trata dos desejos e decepções de um
casamento vivido por uma mulher independente. São obras bem ilustradas de
linguagem essencialmente fácil que promove o entendimento do aluno e o gosto pela
leitura. Em tempos de tantas mutilações femininas na busca da eterna juventude
achamos oportuno ler “Ofélia, a ovelha”, fábula que reflete as inquietudes femininas
e suas descobertas através da experiência de assumir uma nova identidade, que
buscava a aceitação pessoal:
135
Ele não podia saber, como sabia Ofélia, que aquela ovelha não era a mesma
que havia partidos. Continuava talvez um pouquinho sem graça, uma pouco
sujinha como todas as outras. Mais tinha andado sozinho pelo mundo. E
agora, embora ovelha entre ovelha, era única, diferente de todas as outras.
(COLASSANTI, 2003, p.16)
O texto literário de autoria feminina é então uma transnominação da saga das
mulheres, também como uma ferramenta de alerta e denúncia onde há uma voz por
detrás das letras. As mais difíceis batalhas já foram travadas e as mulheres, de uma
forma geral, vivem a “completa” independência conquistada, especialmente
percebida pelo texto literário em si. Essa realidade é encontrada nas obras da
escritora Marina Colassanti.
“Ofélia, a Ovelha”, é na verdade uma fábula, na qual a personagem principal é a
ovelhinha Ofélia que um belo dia estava matando a sede no riacho e observou sua
aparência no reflexo da água, viu que seus pelos estavam encardidos e os cachos
amarelados, e pensou que precisava mudar o aspecto. Ofélia então decidiu ir à feira e
lá encontrou uma pele de raposa, achou muito bonita e decidiu apanhar para usar.
Uma coisa a ovelhinha não pensou, com a nova pele ela estaria assumindo uma nova
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
identidade. Por conta da nova identidade, Ofélia correu muitos perigos e quase
morreu, pois foi confundida com uma raposa e os fazendeiros da região tentaram
matá-la. Após uma longa caminhada, Ofélia sentiu saudade do rebanho e do pastor.
Prosseguiu a caminhada e sentiu sua pele escorregar do corpo. A ovelhinha
reencontrou o seu antigo rebanho, mais ela já não era igual às outras, pois tinha
andado pelo mundo sozinha adquirindo experiências diferentes em lugares
diferentes.
A segunda obra trabalhada foi “Moça tecelã” da escritora Marina Colasanti.
Essa obra, conta a história de uma jovem que gostava do tear, tecia belos tecidos
durante o dia. Em um belo dia após refletir a vida, percebeu que necessitava de um
companheiro, então continuou a tecer seus tapetes e de repente bateram na porta, ela
nem precisou abrir, pois o moço foi entrando em sua vida. A moça começou a pensar
como seriam os filhos que teria com o rapaz, mais este se pensou em ter filhos, logo
esqueceu.
O marido conheceu o poder do tear, e logo foi fazendo exigências com: casa
136
maior, palácio, cavalos... E a moça tecia dia e noite os caprichos do marido. E pensou
como seria bom estar sozinha novamente. E quando anoiteceu a moça sentou ao tear,
enquanto o marido dormia começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as
carruagens, o palácio e por último o seu marido, e se viu novamente na vida simples
e tranquila em que vivia. A moça tecelã usou de sua autonomia, para decidir o que
era melhor para sua vida, percebeu que permanecer casada não a estava fazendo
feliz.
Nas duas obras, percebemos que a mulher é o personagem principal, é o ser
pensante, que tem sentimento apesar dos relances de fragilidade é o ser forte em
busca de mudanças. As duas personagens retratam muito bem a figura da mulher do
século XXI: determinada, forte, ousada e idealista. Essas leituras devem fazer parte
da rotina das crianças, pois irá fortalecer o combate ao machismo que ainda ronda a
cabeça de homens e mulheres. As escritoras brasileiras já enfrentaram bastante
preconceito e não tinham sua literatura reconhecida e não eram aceitas em espaços
públicos, antes frequentados por homens.
Essas primeiras escritoras sentiram bem a exclusão da mulher do espaço
público, quando começaram a receber a censura da critica literária
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
(essenciamete exercida pelo homem) e o crivo da sociedade da época.
Percebe-se que as escritoras resolvem apontar sua limitação, em seus
prefácios, informando mesmo que nem podem competir com os escritores
por terem pouca instrução, porque se dedicam ao fazer literário entre seus
afazeres domésticos e outros contratempos. (ALVES, 1999.p.108)
No inicio do século XX as mulheres brasileiras ainda eram vistas como
essencialmente responsáveis pelo funcionamento domestico e não tinham sua
literatura respeitada e reconhecida perante a sociedade, pois os críticos literários
eram do sexo masculino e estavam vestidos com as capas do preconceito e máximo.
Uma experiência de leitura: PERFIL DOS LEITORES
Os estudantes que participaram das oficinas com obras da escritora Marina
Colasanti, estudam no Ginásio Municipal Dr. Celi de Freitas. Em 2014, trabalhamos
com uma turma no segundo semestre, eles estavam cursando o 3º ano do Ensino
fundamental I. Os estudantes estavam na faixa etária de 07 a 08 anos. A maioria já
estava alfabetizada e tinha um nível de discussão muito bom. Receberam a contação
de história com muito entusiasmo, era uma turma que tinha a verdadeira “sede” pela
leitura.
Em 2015, trabalhamos com outra turma de 3º ano do Ensino Fundamental I, no
período da tarde, com estudantes na faixa etária de 07 a 08 anos. A turma tem sofrido
com os problemas enfrentados pela educação nacional. Falta biblioteca, laboratórios
de ciência e de informática em grande parte das escolas da rede pública da educação
básica. Existe um atraso na alfabetização das crianças, ausência de recursos didáticos
que é diferente entre as regiões, e isso dificulta o aprendizado. A violência urbana
também interfere no aprendizado das crianças. Portanto alguns alunos ainda não
dominam a leitura e a escrita, estão em processo de alfabetização, mas gostam
bastante de ouvir a contação de história e na medida do possível produzem textos
escritos.
Percebemos que os estudantes interagem muito bem nas discussões, sobre a
temática de gênero, e não demonstraram surpresa ou rejeição às temáticas propostas
137
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
nas obras estudadas. Consideramos uma troca de conhecimento enriquecedora, tanto
para a pesquisadora, quanto para os estudantes.
Uma experiência de leitura: PRODUÇÕES DOS LEITORES
Na primeira oficina, intitulada “A aparência da Ovelha Ofélia”, 2014,
trabalhamos com a obra “Ofélia, a ovelha”. Após a leitura e comentários sobre o
texto, os alunos ilustraram e escrevam a importância do ser humano se valorizar e
não ficar preso a aspecto físico, pois isto pode afetar a capacidade de ser feliz. Após
as orientações os alunos produzirem imagens, que serviram para montagem de dois
cartazes com as seguintes produções:
Fig.1
Fig.2
138
Nos dois cartazes aparecem produções realizadas pelos alunos durante as
oficinas de leitura. Na figura 1 e 2, eles recontam a fábula com ilustrações, mostrando
que todos somos iguais com as nossas diferenças, pois em um vídeo que assistiram
antes da leitura da fábula contava que havia uma ovelha que era negra e que sofria
preconceito quando estava com sua lã grande e se destacava das demais e quando
era tosada ficava com a mesma aparência das demais, mais havia uma diferença a
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
ovelha negra amava a sua aparência e com o passar do tempo as suas amigas
queriam ser como ela: bonita, lãs brilhantes e bem pateadas e com a estima em alta.
Na oficina intitulada: “A Moça Tecelã: um olhar feminino”,2015, trabalhamos
com a obra “Moça tecelã” e depois de realizada a contação de história, discussão e
brincadeiras, solicitamos que os estudantes escrevessem um novo final para a o conto
“A Moça Tecelã” e ilustrassem o texto. A seguir, apresentamos os resultados da
proposta.
Texto 1
139
A moça tecelã
“No final a moça tecelã se transformou em uma princesa, ela fez um castelo bem
bonito de cores: rosa, roxo, amarelo, branco e vermelho. Depois ela casou-se e teve
três filhos e ai virou uma rainha”. (Karine)
Texto 2
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
“A moça tecelã terminou com o marido, por
que achava ele egoísta. Ela não era feliz, então
encontrou um homem que queria ser feliz com
ela, e depois de dois anos este homem a pediu
em casamento. A moça tecelã desmaiou de
alegria e felicidade e elas viverão felizes”.
(Carolina)
Texto 3
140
“A moça tecelã ficou com o marido e teve muitos filhos, depois teve que fazer uma
viagem, deixou as filhas com o marido. Ela nunca mais volta, o marido ficou muito
triste. A moça tecelã não quis mais voltar para casa, pois quis ser muito rica. O
marido construiu um castelo com os filhos e viverão felizes para sempre”. (Tatiana)
Texto 4
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
“Eles podiam viajar, e se não querem ter filho também podem ser felizes para
sempre” (Emilly)
No texto 1 observamos que o novo final dado a história foi baseado nos contos
de fadas antigos, onde a mocinha casa-se com o mocinho e vive feliz para sempre.
Ela também ilustra uma família tradicional com pai, mãe e filhos. Sabemos que as
novas famílias fogem a esse padrão social, muitas crianças hoje não são criadas pelo
pai e sim um padrasto, novo companheiro ou companheira da mãe. Muitos avôs
também assumem o papel de pai e mãe das crianças do século XXI, entretanto essas
famílias não apareceram na produção dos alunos.
No texto 2 outra estudante descreve que o marido era egoísta e por isso a Moça
Tecelã deveria romper com esse marido e casar-se com outra que a fizesse feliz. Esta
analise já foge aos modelos tradicionais da sociedade, pois a estudante propõe um
novo casamento para que a personagem fosse feliz e tivesse os filhos que tanto
sonhou. A ilustração foi uma casa simples, relembrando a primeira casa da Moça
Tecelã. Já no texto 3 o final dado pela aluna é levemente tradicional e no seu fim
rompe com as tradições familiares. A personagem casa e tem filhos, porem decide ir
embora em busca de um enriquecimento e decide não voltar. Este texto reflete uma
realidade de Muitas mulheres de hoje que ficam divididas entre se doar para família
ou seguir carreira profissional em busca de sua independência financeira. No texto 4
e último a estudante Emilly continua com uma proposta um pouco fora dos padrões
tradicionais, a aluna sugere que os personagem se casem, porem que não tenham
filhos, rompendo com os ensinamentos cristãos,que propõe que todo casal deve
gerar filhos para dar continuidade a sua descendência, portanto a estudante propõe
um casamento com expectativas diferentes, mais que busca no final a felicidade.
Com os novos finais para o Conto “Moça Tecelã”, foi notória a boa influencia
que a literatura feminina causou nas estudantes. De acordo com BARBOSA, “É,
portanto, essa vertente dos estudos literários sinaliza o papel da literatura como
espaço de representações de identidade de gênero é, sobretudo, de resistência, luta e
renovação social”. (BARBOSA, 2011. P.95). A literatura sempre vai contribuir com a
renovação social, através dos estudos de gênero muitas barreiras e preconceitos serão
vencidos, portanto cabe aos profissionais da educação, escolher uma literatura que
141
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
contribua para o sujeito seja critico e reflexivo, não só com as temáticas de gênero,
mais todas as discussões e reflexões necessárias para termos uma sociedade mais
respeitosa e igualitária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados obtidos foram bastante significativos, dentre os quais a
participação efetiva dos alunos em sala de aula que compartilharam das discussões
de maneira segura, encarando com naturalidade os temas propostos e demonstrando
familiaridade com as questões de gênero, como relatou a professora da classe, que
acompanhou todas as atividades.
Consideramos que os experimentos de leitura dentro do Projeto das Escritoras
Brasileiras foram muito relevantes, percebemos que a literatura de autoria feminina
traz discussões e reflexões essenciais para os estudantes. Penso que os profissionais
de educação não devem negar essas possibilidades de leituras aos seus alunos.
142
Percebemos que ainda existe um machismo, mais as mulheres tem superado e
mostrado o seu potencia na sociedade brasileira. Um tema que vejo muito importante
para discussões futuras é a quentão do novo conceito de família, na sociedade atual é
cada vez mais difícil pensar no modelo tradicional de família, isso é percebido pelos
estudantes que já convivem com as novas formações familiares, quando o pai é
padrasto ou quando a criança tem duas referências femininas como mãe ou duas
referencias masculinas como pai que são realidades das novas formações das famílias
contemporâneas.
REFERÊNCIAS
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143
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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BIBLIOTECA ESCOLAR:
espaço e tempo para o letramento literário
Ana Claudia Costa de Aquino Teixeira
ProfLetras/UEFS
[email protected]
Flavia Aninger de Barros Rocha
Orientadora/ProfLetras/UEFS
[email protected]
RESUMO
O tema da leitura e dos letramentos tem suscitado discussões em âmbito nacional
devido ao desempenho não satisfatório dos estudantes em indicadores nacionais e
internacionais. Buscando compreender essa realidade numa turma de 5º Ano de uma
escola municipal de Feira de Santana, observações preliminares apontam que os
índices de reprovação dizem respeito ao baixo desempenho da compreensão leitora.
Nessa perspectiva, o presente estudo, Biblioteca Escolar: espaço e tempo para o letramento
literário, desenvolvido como projeto de trabalho final de curso no ProfLetras/Uefs,
procura responder ao seguinte problema de pesquisa: Como o espaço da biblioteca
escolar pode favorecer o letramento literário? A escola, concebida como espaço
diverso e dinâmico, comporta multifaces para a aprendizagem. Sendo pensada e
estruturada para favorecer a aprendizagem, não pode priorizar a sala de aula como
espaço único para as práticas de letramento. Contribuir para a construção de
conhecimentos que auxiliarão na formação de indivíduos que se posicionem
criticamente frente às demandas crescentes que se impõem à sociedade moderna,
exige por parte de todos os envolvidos no processo educacional um olhar para a
escola como sendo uma luneta sempre direcionada ao mundo. Nesta escola, cada
indivíduo precisa se conhecer e se reconhecer como parte da história que se constrói
todos os dias, dentro e fora de seus muros. Portanto, é necessário que este indivíduo
se reconheça em todos os ambientes que formam a escola. Podemos,
metaforicamente, perceber a biblioteca escolar como um organismo vivo e, portanto,
um espaço que não pode parar de crescer. Nessa perspectiva, qual corpo não sente os
efeitos de um órgão parado ou parcialmente em funcionamento? Para o último
estado, o corpo fará um esforço extra para cumprir suas funções vitais e para o
primeiro estado, sofrerá danos talvez irreversíveis. Nesse sentido, o presente trabalho
apresenta uma proposta de pesquisa-ação que objetiva dar visibilidade e
funcionalidade ao espaço da biblioteca escolar numa escola municipal de Feira de
Santana, no que se refere ao letramento que se faz por meio da literatura infantojuvenil, capaz de desencadear um movimento de descoberta do sujeito leitor.
Fundamentada em Yunes (2002; 2009), Kleiman (2005), Solé (1998), Cosson (2014),
Silva (1999) entre outros, a pesquisa - utilizando-se de estratégias de abordagem
qualitativa, recorre às técnicas de observação direta e questionário para a coleta de
dados - objetiva refletir e descrever as práticas de leitura no espaço da biblioteca
escolar, propondo atividades, organizadas em sequência didática, que favoreçam o
contato com textos literários para a ampliação da compreensão leitora.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
PALAVRAS-CHAVE: Biblioteca escolar; Leitura; Letramento; Literatura.
APRESENTAÇÃO
Por ser múltipla e diversa, a leitura é um território vasto para ser explorado.
Por meio dela os sujeitos interagem na comunidade em que vivem. No presente
trabalho, exploraremos a leitura da literatura infanto-juvenil, suas possibilidades e
contribuições para fortalecer o letramento de meninos e meninas de 5º Ano do
Ensino Fundamental I, inseridos numa escola municipal do município de Feira de
Santana. Este trabalho visa ainda reconhecer a importância da literatura no ensino de
língua materna, objetivando encontrar novos caminhos para um uso significativo do
espaço da biblioteca escolar.
Dar visibilidade à biblioteca da escola como espaço de letramento impõe aos
envolvidos no processo de aprendizagem ressignificar os espaços que compõe uma
unidade escolar. A sala de aula não é o único espaço de aprendizagens, e a biblioteca
juntamente com os outros ambientes da escola, é mais um espaço potencial para
146
incrementar as múltiplas possibilidades de aquisição de novos saberes através dos
múltiplos letramentos.
As atuais discussões em torno da competência leitora apontam para uma
retomada de posicionamento no que diz respeito às práticas de ensino. Discute-se de
quem é a responsabilidade pela formação do leitor competente; há o debate sobre
como se deve ensinar a ler e, ainda, o porquê do fracasso do ensino de leitura em
larga escala.
Discutir as práticas de ensino implica também discutir o processo de
alfabetização que, visto como processo contínuo, não abarca apenas a leitura do
código, mas também a relação que essa decodificação tem com a leitura do mundo, o
que chamamos de letramento. É necessário discutir a demanda de que o usuário da
língua deve assumir uma postura ativa em relação ao seu próprio processo de
aprender, checando no cotidiano as várias possibilidades das aprendizagens
conquistadas. Pensar o letramento como um direito ao acesso dos bens culturais
presentes na sociedade é papel de todo e qualquer educador. Nessa perspectiva, o
letramento se torna condição fundamental para meninos e meninas em busca de
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
desbravar o mundo ao redor. Sem este, são meros replicadores de aulas, espaço e
tempo em que suas vozes são mantidas em segundo plano, abrindo caminho não
apenas o fracasso escolar, mas para seus potenciais talentos.
Nesse sentido, fortalecer o letramento deve ser uma busca constante no espaço
escolar. Pesquisar, aplicar e checar estratégias nessa direção mobiliza os educadores
para um processo dinâmico do ensinar e aprender, na busca por ações significativas
que viabilizem a aquisição de novos conhecimentos e competências.
Sendo assim, este projeto se configura em uma pesquisa-ação com o objetivo
principal de intervir num ambiente escolar, buscando conhecer e conferir práticas
leitoras e também propor atividades envolvendo leitura de literatura na biblioteca
escolar com a finalidade de favorecer o letramento e, ainda, analisar os efeitos dessa
ação.
2
LEITURA(S) E LETRAMENTO(S)
Quantas leituras cabem no mundo? Tantas quantas os nossos sentidos nos
possibilitem. Lemos o céu e lemos a terra; lemos os gestos e o infinito; lemos com os
olhos e com o nariz; lemos silêncios e ausências. Ler com os sentidos nos possibilita
avançar na leitura dos sinais convencionados pela sociedade moderna, porque a
leitura vai muito além de decifrar a escrita que a produziu, ler é ver e sentir. Sendo
uma habilidade tão própria da vivência humana, a leitura deve ser ampliada a fim de
possibilitar ao indivíduo o sentimento de pertencer ao mundo letrado, mas também a
condição de se perceber como construtor das histórias que compõem a História.
Em geral, ao falarmos de leitura direcionamos o nosso discurso e a nossa
atenção aos índices de aprovação e reprovação dos exames nacionais (Inaf, Prova
Brasil) e internacionais (PISA) que sinalizam para os nossos graves problemas. Mas é
importante lembrar que ler é uma atitude de interpretação do mundo que nasce com
o indivíduo e que vai muito além de decifrar códigos convencionados para reger
uma sociedade. É por meio do ato de ler que concebemos o mundo, o recriamos, e
dele tomamos posse para outras leituras ao longo da vida. Ler na escola é uma das
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
muitas leituras que realizamos no cotidiano porque ler está sempre além do papel, é
ver, sentir, ouvir e estabelecer novas relações e interpretações.
O desafio de unir a leitura escolar à leitura de mundo tem sido tema de muitas
discussões, como as importantes contribuições de Yunes (2002; 2009) e Antunes
(2009). Apesar dos avanços nas discussões e estudos, a distância entre teoria e prática
continua sendo sentida no cotidiano das agências formais de ensino.
Desde o início da década de 80, o ensino de Língua Portuguesa na
escola tem sido o centro da discussão acerca da necessidade de
melhorar a qualidade da educação no País. No ensino fundamental, o
eixo da discussão, no que se refere ao fracasso escolar, tem sido a
questão da leitura e da escrita. Sabe-se que os índices brasileiros de
repetência nas séries iniciais — inaceitáveis mesmo em países muito
mais pobres — estão diretamente ligados à dificuldade que a escola
tem de ensinar a ler e a escrever (BRASIL, 1998, p. 19).
Essa dificuldade da escola brasileira, como confirmam os PCNs (1998), no
trecho acima, resulta em uma falha no seu papel primordial que é de favorecer que
148
meninos e meninas em idade adequada se apropriem de habilidades que os
emancipem, os tornando autônomos em suas comunidades por meio do uso
adequado às práticas cotidianas da linguagem. Por isso, pensar as estratégias de
ensino para melhor viabilizar a leitura no espaço escolar e fora dela é uma urgência
da qual não podemos nos eximir.
As práticas de ensino são concebidas para promover o imbricar das leituras –
leitura de mundo + leitura formal –, mas podem não cumprir ou cumprir
parcialmente seu papel e, são passíveis de ajustes. Em primeiro lugar, pensadas de
forma paralelas e não cruzadas às muitas realidades do cotidiano escolar, as práticas
de ensino se tornam apenas ecos, nos quais o discurso do professor em nada aponta,
muitas vezes, para as vivências dos estudantes. A falha também se realiza por não
posicionar o aluno/protagonista como foco das aprendizagens escolares, deixando
de convidá-lo a colaborar na construção, participação e ampliação de seus saberes.
Assim, não há espaço para a palavra da criança e, a ela, resta repetir o discurso
valorizado do professor, postura escolar tão combatida por Freire (2011, p.43):
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
[...] a alfabetização como ato de conhecimento, como ato criador e
como ato político é um esforço de leitura do mundo e da palavra [...]
na nova caminhada que começa até os oprimidos, se desfaça de todas
as marcas autoritárias e comece, na verdade, a acreditar nas massas
populares. Já não apenas fale a elas, mas as ouça, para poder falar
com elas.
Se compararmos o ingresso escolar a uma viagem, teremos que admitir que
ninguém viaja sem uma bagagem. Há quem leve pouca, outros que levem muita e
tantos que não levam bagagem visível, mas a levam no coração. Ao chegar no espaço
escolar, viagem necessária nas sociedades letradas, todos trazem uma bagagem,
adequadas ou não ao novo destino, são bagagens de vida, contextos culturais e
individuais, limitações e potencialidades. É dever da escola conhecer, valorizar,
analisar cada bagagem e também apresentar os atrativos para essa viagem chamada
escola. A escola pode muito no que diz respeito à ampliação da visão de mundo dos
estudantes. É ela que, por meio da leitura e da escrita, tenta ocupar com resultados
questionáveis, ao longo do tempo, a posição de porto seguro para a construção das
sociedades. É importante lembrar que, há muitos estudantes que passaram pelo
espaço escolar – lugar onde os mistérios da leitura e da escrita deveriam ser
desvendados – que ainda se perguntam se a viagem valeu a pena. A esse respeito,
Yunes (2002, p.15) nos provoca a refletir:
Como a leitura, este portal extraordinário para um mundo novo,
sendo a princípio tão sedutor, pode se transformar no pesadelo de
muitos, vida a fora? E não é esta a única consequência trágica da
relação com a escrita: o bloqueio à leitura vai se delinear como
obstáculo mais sério a toda a aprendizagem qualificada [...].
No espaço escolar, dois mundos são apresentados aos novos viajantes, o oral e
o escrito e estes nunca se contrapõem, mas se complementam e dialogam para a
produção e fruição de novos discursos. Fragmentá-los provoca muitas vezes
consequências lastimáveis porque viajar não se torna tão interessante quando
somente o outro diz do seu mundo. Todos dizem dos seus lugares, porque todos têm
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
o que ensinar, têm o que trocar e querem descobrir. “Ninguém ignora tudo.
Ninguém sabe tudo.” (Freire, 2011, p.39).
Nessa direção, o contar histórias, ou o uso do texto literário no cotidiano
escolar promove, além do cruzamento dos discursos oral e escrito, a receptividade ou
abertura para outros mundos, outras vivências. É no contato e nas trocas de
experiências geradas pelo encontro com o texto literário que os estudantes, com o
auxílio do mediador/educador, vão ampliando a bagagem cultural, gerando novas
habilidades em se expressar e se comunicar com autonomia. Yunes (2009, p.13)
explica este processo:
Saber falar o que se quer dizer e de forma que outros o entendam, é
exercício importante para dominar o discurso que se começa a
esboçar no uso que cada um faz da língua, na intenção de se
expressar e se comunicar com os outros. Seu contraponto é ouvir,
saber escutar, concentrar a atenção na palavra do outro, esperar para
poder falar, "arrumar as ideias" pouco a pouco, dominando o impulso
de falar concomitantemente, de causar mais ruído do que
comunicação.
150
Portanto, para além do ler e do escrever, a escola deve promover momentos de
interação nos quais seja possível a todos exercitar o direito de dizer sobre suas
experiências e, com isso, empregar a atitude de saber ouvir, cumprindo a meta de
ampliar o letramento tão necessário no cotidiano das sociedades modernas.
Às práticas que priorizam metas para além da leitura pela leitura e que
capacitam o indivíduo para agir no mundo e reagir a ele, denominamos letramento
apesar de que “a palavra ‘letramento’ não está ainda dicionarizada” (Kleiman, 2006).
Além disso, é importante compreender que, nessa perspectiva, o letramento se inicia antes
mesmo de as crianças serem alfabetizadas. Dele lançamos mão para a compreensão de
uma sociedade que passa continuamente por uma evolução nas formas de dizer o
mundo. Mas o que é e como se faz o letramento? Segundo Kleiman (2006, p. 19),
Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas
sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia,
em contextos específicos, para objetivos específicos. As práticas
específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os
sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou
não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas
um tipo de prática [...].
Ainda com base nos estudos de Kleiman (2006), letramento não é um método
de ensino como muitas vezes é concebido. O letramento é uma condição de se
perceber no mundo, de pensar e agir sobre ele através das várias leituras que se
realiza, seja a leitura dos discursos (textos orais) ou de textos propriamente ditos.
Nas sociedades regidas pela escrita, os níveis de letramento são evidenciados pelo
uso que cada indivíduo faz da língua. Fazemos o letramento enquanto vivemos e
participamos de práticas sociais diárias (eventos de letramento escolares e não
escolares): ler placas, fazer contas no supermercado, vender produtos, mediar
situações, ler na biblioteca da escola. O letramento é uma ampliação da alfabetização,
pois envolve compreender não somente o código, mas também, o seu sentido nas
situações de uso. Por isso, as práticas de ensino devem colaborar para que os
estudantes tenham êxito em seu desempenho do fazer diário em variadas demandas
a que estão expostos.
3
O TEXTO LITERÁRIO: CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO
LEITOR NAS SÉRIES INICIAIS
Uma criança, um texto, livros. Folheia, visualiza, brinca de ler. Os textos e suas
magias. Seus encantos nos levam para muitas e tantas outras formas de leitura. Ler
imagens, ler palavras; refletir, indagar, criar, recriar. Eis o papel primordial da
leitura: permitir a reflexão, suscitar a imaginação, analisar as construções da língua e
perceber as infinitas possibilidades da linguagem.
Dentre as muitas leituras, a leitura de literatura nos aguça a apreciar a vida
“por trás do espelho”. É a literatura que nos permite uma contra-leitura do real e as
inúmeras possibilidades de ler uma mesma realidade. Mas de qual literatura estamos
nós aqui a nos pronunciar?
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O termo literatura pode nos remeter aos escritos que tratam de áreas
profissionais específicas como literatura médica ou jurídica. Neste trabalho, a
literatura (ou o texto literário) em pauta diz respeito àquela que se relaciona direta e
exclusivamente com a arte da palavra.
De acordo com Proença Filho (1986), o que difere o texto literário do texto não
literário é o fato deste último se caracterizar pela transparência, por objetivar
diretamente a informação. O texto literário é uma criação artística e sua principal
característica é “a marca da opacidade: abre-se a um tipo específico de descodificação
ligado à capacidade e ao universo cultural do receptor” (PROENÇA FILHO, 1986, p.
8).
A linguagem específica da literatura é o seu principal aspecto de distinção
entre outros textos (mas é importante sinalizar que há a possibilidade de se encontrar
traços literários em textos não literários: um discurso de paraninfo de uma turma de
formandos elaborado em forma de cordel (Oliveira, 2010) pode ser tomado como um
exemplo dessa ocorrência), pela linguagem a literatura almeja alcançar aspectos
152
estéticos e criar o universo imaginário e ficcional.
Sendo assim o que realmente marca um texto tornando-o literário? A
literariedade – conjunto de características específicas (linguísticas, semióticas,
sociológicas que permitem considerar um texto como literário) – considerada como
“um desvio em relação às ocorrências mais ordinárias da linguagem” (Souza, 2003, p.
47).
Os PCNs (Brasil, 1997) sinalizam que “a literatura não é cópia do real, nem
puro exercício de linguagem, tampouco a mera fantasia que se asilou dos sentidos do
mundo e da história dos homens” (Brasil, 1997, p.37), ela se relaciona com a realidade
de forma indireta. O real é apreendido pelo imaginário e assim escapa da elaboração
convencional.
Essas considerações marcam a literatura infantil, pois faz acordar a
imaginação por meio de uma linguagem que visa aproximar-se do universo da
criança. Mas é importante considerar que a literatura para crianças, nos moldes em
que hoje se apresenta, nem sempre foi assim. Até o século XVII a criação literária não
era destinada à infância até porque a infância não era uma etapa relevante para a
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
sociedade da época. Somente com o surgimento da Burguesia a infância passa a ser
valorizada.
“A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas
igualmente meio de controle do desenvolvimento intelectual da criança e
manipulação de suas emoções (ZILBERMAN, 2003, 15)”.
A criança vista como um ser “vazio”, era concebida nesse momento como
indivíduo que precisa ser moldado às exigências do contexto social marcado pela
ideia de perpetuação das propriedades da família. Cria-se então a Pedagogia e esta,
por sua vez, inicia um mercado próprio do livro infantil e juvenil com o projeto de
levar a cabo os desejos da burguesia. A ascensão da escola faz surgir um gênero
literário com o objetivo maior de trazer ordem ao novo modelo de família, portanto
produzido para transmitir valores morais e influenciar de forma decisiva as
condutas. Não há motivação para ensinar a literatura, ela é apenas um pretexto.
As primeiras produções que iniciam uma ruptura com a proposta burguesa
diz respeito aos escritos de Charles Perrault no século XVII e os irmãos Grimm, no
início do século XIX. As narrativas são marcadas por atributos extraordinários como
herói, o mágico e o ser encantado, iniciando assim um novo tempo para a literatura
infantil e seu público alvo. Por deslocar a temática de cunho real, trazendo o
fantástico para o texto destinado à infância, a literatura infantil foi condenada ao
desprestígio (Zilberman, 2003) exatamente por não atender as “prerrogativas
pedagógicas” da época e tentar falsificar a realidade.
Perseguir o objetivo da literatura infantil foi a missão de muitos escritores e,
aqui no Brasil, Monteiro Lobato foi um dos que inaugurou essa caminhada dando
vida a uma boneca de pano e a um sabugo de milho, personagens que conviveram
por muito tempo no imaginário das crianças, dos jovens e dos adultos. E pergunto: O
que fazemos com uma boneca e um sabugo de milho? Uma das possíveis respostas
pode ser brincar e, não mentiríamos se chegássemos à conclusão de que um dos
objetivos da literatura infantil é brincar com o livro e seu texto.
Ler um livro deve(ria) ter os mesmos objetivos do brincar: manipular,
experimentar, repetir quantas vezes quiser. Por esta razão o livro de literatura
infantil deve fazer parte da “pequena bagagem” das crianças (Não se enganem, dos
adultos também!) e reconhecida como item de primeira necessidade.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Os letramentos, como entendidos anteriormente, são a base da vida humana
em coletividade, sejam aqueles construídos nas relações sociais diárias ou
construídos no espaço escolar. Portanto, entendido como construção social, o
letramento é plural pois, são muitos e específicos. Dentre os muitos letramentos a
que estamos expostos, o letramento literário talvez seja o que nos acompanha desde
muito cedo: nas contações de histórias na hora de dormir, nos causos, nas cantorias e
em tantas outras manifestações literárias, nas poesias cantadas e encenadas.
No espaço escolar, a leitura de literatura, antes apreendida pelo ouvir, toma
forma nas páginas, nas imagens, nas palavras escritas na materialidade do texto. Por
meio também do livro, o letramento literário é construído, abrindo portas para o
fortalecimento da leitura e, consequentemente, da escrita.
O texto literário, ricamente polissêmico, além de favorecer o desenvolvimento
da subjetividade e da discussão das experiências humanas, pode produzir momentos
de aprendizagem significativos, pois toca em diversas áreas do conhecimento.
O letramento literário [...] possui uma configuração especial. Pela
própria condição de existência da escrita literária [...] o processo de
letramento que se faz via textos literários compreende não apenas
uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e
sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. Daí sua
importância na escola, ou melhor, sua importância em qualquer
processo de letramento, seja aquele oferecido pela escola, seja aquele
que se encontra difuso na sociedade (COSSON, 2014, p. 12).
154
Inicialmente podemos conceber o letramento literário como uma das variadas
práticas sociais da escrita que se configura na literatura. Assim, a sua conceituação
está diretamente relacionada à leitura efetiva de textos literários tanto no espaço
escolar como fora dele. Sendo uma prática social, a escola tem responsabilidade de
vivenciá-lo a fim de não somente apresentar o texto literário mas, também,
incorporá-lo às práticas escolares
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BIBLIOTECA ESCOLAR: ESPAÇO E TEMPO PARA O LETRAMENTO
LITERÁRIO
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Entendemos que a escola, através de práticas de dinamização da biblioteca,
pode mobilizar vivências de leitura que impulsionem uma cultura de leitura, uma
cultura que traz à luz leitores e autores de um novo mundo, fortalecendo a
identidade leitora e construindo uma rede de aprendizagens significativas para os
sujeitos.
Para a escola desenvolver um trabalho pedagógico que tenha, no
limite, tal finalidade, julgamos indispensável que o professor lance
mão de novos instrumentos de ensino em acréscimo à exposição oral
e ao livro didático adotado. E, entre, eles, a biblioteca escolar pode
ocupar um lugar destacado, não como depósito do saber acumulado,
mas sobretudo como agência disseminadora desse saber e promotora
da leitura (SILVA, 1999. p. 20).
Mas qual é o lugar da biblioteca escolar? Para Silva (1999), a biblioteca escolar
pode ser comparada à Bela Adormecida. Fechada em si mesma. Contemplada,
através das frestas ou dos vidros das janelas, como sendo um artefato de museu,
inerte mas (ainda que alguns ignorem) detentora de parte da História. Quem poderá
despertá-la do seu sono profundo? A quem recairá a incumbência de beijá-la e trazer
de volta o seu encanto? Que seja uma Sherazade, para lhe dar as devidas honras de
princesa, herdeira de muitos tesouros.
Quase invisível e muitas vezes marginalizada no espaço escolar, a biblioteca é
um potencial no que se refere ao ensino/aprendizagem, pois viabiliza a circulação
do conhecimento científico, a divulgação de informações e a ampliação de práticas
de leitura com fins a consolidação dos múltiplos letramentos. É um espaço de trocas
e de descobertas, portanto, conceber a biblioteca como espaço de silêncio vai de
encontro às práticas reais de produção do conhecimento que ocorrem nas interações
sociais que se instauram no compartilhamento de ideias.
Distante de cumprir suas reais funções, a biblioteca não faz parte da realidade
da maioria das escolas (Silva, 1999), mas alimenta o imaginário das crianças que
julgam encontrar ali as mais belas histórias de mocinhos e princesas e os grossos e
pesados livros de pesquisa para fortalecer seus vínculos com os estudos e estabelecer
novos círculos de amigos leitores, ouvindo e se fazendo ouvir nas muitas trocas
sobre leituras realizadas.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Dar voz a estes sujeitos situados no espaço escolar, além de confirmar o direito
de falar e de se fazer ouvir, lança as potenciais sementes a germinar numa sociedade
tão carente em dar sentidos à palavra recepcionada através da leitura de literatura. A
biblioteca escolar, além de espaço para o letramento informacional, digital e tantos
outros, é o lugar onde o tempo pode e deve ser tecido em função do pensar e falar
sobre a literatura.
Para promover a ampliação da compreensão leitora no cotidiano escolar
propomos atividades organizadas em sequência didática entendendo tratar-se de
uma organização que visa a progressão de conhecimentos sobre determinado objeto
de aprendizagem, aqui leitura de crônicas literárias, até que se alcance um saber
fazer. Segundo Dolz (2004 p. 51), a sequência didática é:
[...] uma sequência de módulos de ensino, organizados
conjuntamente para melhorar uma determinada prática de
linguagem. As sequências didáticas instauram uma primeira relação
entre um projeto de apropriação de uma prática de linguagem e os
instrumentos que facilitam essa apropriação.
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Sendo assim, lança mão de saberes construídos pelos autores Baldi (2009),
Cosson (2014) e Solé (1998). É no espaço da biblioteca escolar que se pretende, com o
auxílio das propostas de estratégias de compreensão leitora elaboradas por Solé
(1998) compreendidas como pré-leitura (previsões sobre o texto), leitura (leitura
compartilhada/independente do texto) e pós-leitura (resumo/avaliação do texto
lido), intervir de modo que as atividades da SD sejam aplicadas, observadas,
adequadas à realidade e às necessidades da turma e avaliadas percebendo os
desdobramentos de cada ação proposta. Nesse sentido, Baldi (2009, pp. 17-18) aponta
caminhos para a dinamização da biblioteca:
Acreditamos que a biblioteca de uma escola deve ser um lugar
especialmente cultuado por toda sua comunidade. [...] Cada
biblioteca terá sua própria organização, mas é importante que, em
todas elas, se queremos que a criança se aproxime dos livros e da
leitura e deles desfrute ao máximo, o acesso seja sistemático,
dinâmico e planejado com coerência e preocupação pedagógica.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Os encontros na biblioteca escolar ampliam as possibilidades de tocar o texto
literário e ser tocado por ele. Nesses encontros, há a possibilidade de ampliação da
visão de mundo e a compreensão da releitura do cotidiano. O momento é de que a
professora/o professor seja um guia de leitura, permitindo que cada menina e
menino encontrem seus próprios caminhos de ler, construindo vínculos com o texto
literário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda em andamento, o projeto aqui apresentado busca criar momentos para
o ensino de leitura de textos literários na biblioteca escolar que deve ser ampliado a
cada série/ano. Necessário se faz tomar a leitura como objeto de ensino e, para isso,
deve ser pensada como prática a ser conquistada por todos que adentram o espaço
escolar.
Acreditando no potencial do texto literário, que agrega em si o real, o
imaginário e o mágico, eleger espaços e pensar o tempo para a leitura se torna
urgente não como forma apenas de instrumentalizar o indivíduo para as demandas
sociais, mas também possibilitar o cruzamento de histórias de vida, ajudando a
ressignificar a realidade ao redor.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
159
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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ENTRE O PROFESSOR E A PRÁTICA PEDAGÓGICA DE LEITURA
LITERÁRIA:
a voz do leitor no ensino de literatura
Aparecida de Fátima Brasileiro Teixeira
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
[email protected]
RESUMO
A leitura literária transita pelo espaço pedagógico, entre corredores barulhentos,
“silenciosas” bibliotecas e salas de aula imersas de leitores. Dessa forma, este texto
pretende expor a voz do leitor após a realização de uma prática metodológica de
leitura literária no Ensino Médio de um colégio da rede pública do estado da Bahia.
Como metodologia da pesquisa foi utilizada uma abordagem etnográfica, tendo
como instrumentos de coletas de dados observação das aulas e questionário fechado
com os alunos. A base teórica da pesquisa tem como referência Cosson (2011, 2014),
Zilberman (2003), Pennac (1993), Geraldi (1997), dentre outros. O que se percebe é
que a voz do leitor acerca do que ele pensa sobre a leitura e suas práticas
pedagógicas, não é ouvida no espaço de sala de aula. As leituras são propostas, as
atividades desenvolvidas, mas não há um espaço para o leitor se posicionar sobre a
metodologia de leitura desenvolvida. Há momentos para responder aos
questionamentos das atividades, mas não há situações para o leitor expor suas
inquietações. Com isso o professor cria uma imagem do leitor, assim como uma
imagem da leitura realizada e a voz do leitor é silenciada no processo avaliativo da
leitura literária.
PALAVRAS-CHAVE: leitura literária; leitor; mediação docente
1. APRESENTAÇÃO
A discussão que se segue traz uma reflexão sobre a prática pedagógica de
leitura literária no Ensino Médio. Esse ensino perfaz um trajeto que foca
prioritariamente a sistematização dos conteúdos direcionadores para a historiografia
literária. A não leitura de uma obra literária deixa lacunas preenchidas por
movimentos literários, pelo uso excessivo do livro didático, considerando-o como um
dos principais eventos de letramentos utilizado na sala de aula.
Dentre as atividades realizadas na sala de aula, tendo uma obra literária como
foco, não se efetiva uma atuação docente que prime por uma proposta de interação e
valorização da formação do leitor literário. Portanto, a primazia será dada, neste
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texto, ao leitor e a sua responsividade (Bakthin,1997), a sua contrapalavra seja de
aceitação, seja de rejeição, de crítica, de acordo com a prática pedagógica de leitura.
Destarte, o objetivo central deste texto é apresentar a voz dos alunos/leitores sobre a
leitura de uma obra literária e qual o posicionamento desses leitores sobre a
metodologia utilizada.
Os estudos de Cosson (2011, 2014), Zilberman (2003), Pennac (1993), Geraldi
(1997), Bakhtin(1997) contribuem para relacionar o que ocorre na prática de sala de
aula e nas discussões presentes no campo epistemológico. O que se percebe é que a
prática de leitura não é vista com o vigor que lhe deveria ser dado. As inferências do
que se leu não são possíveis de serem construídas por um leitor que buscou
estratégias para simular o lido. É preciso que se valorize na sala de aula a voz do
leitor e que se construa uma discussão da leitura literária com a mediação do
professor, do leitor e da sua compreensão responsiva nos discursivos esboçados. A
análise e interpretação da prática vivenciada no espaço docente demonstrarão um
olhar para a leitura na sala de aula.
162
2. A LEITURA LITERÁRIA E A MEDIAÇÃO DOCENTE NA SALA DE AULA
A leitura literária está além da sala de aula, sendo que, na escola, os docentes
do Ensino Médio focam as suas escolhas na grande literatura canônica e
desconsideram a leitura em outros espaços. A literatura, como afirma Cosson, é o:
uso da palavra para criar mundos ou um sentimento de mundo
correspondendo a um uso específico da palavra, valem as
transformações em novas manifestações, como cinema, a canção
popular e as HQs, e os novos usos, como dados pelos jovens que se
apossam da literatura para outros fins. (COSSON, 2014, p. 23)
Embora essa tessitura não seja vislumbrada na sala de aula, o que se percebe
são marcas da sistematização, da escolarização nas leituras propostas. Com uma
variedade de configurações, a leitura permanece enquadrada no livro didático,
dissecada em fichas de leitura, indagada em questionários retirados da internet. São
questionamentos direcionados para averiguar, medir, avaliar, retratar o viés do leitor
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do Ensino Médio, para demonstrar que a leitura foi feita e que foi possível conectar a
historiografia literária estudada no ensino de literatura.
Nesse sentido, tratando do lugar da leitura literária na escola, Zilberman
(2003, p. 265) apresenta a seguinte assertiva: “a leitura de fragmentos de textos
literários presentes no livro didático não forma o leitor do livro, que é onde
materialmente se apresenta a literatura”. Como enfatiza Cosson (2014, p 12, grifo
nosso), “a situação do ensino de literatura na escola não deixa dúvida para o que se
pode esperar da formação do leitor literário ou mais precisamente da ausência de
formação do leitor literário”.
Muitas vezes a literatura mantém presença priorizando leituras curtas, como a
poesia, o conto, a crônica, e no término da unidade didática, o livro aparece para
complementar o conteúdo trabalhado, para culminar uma escola literária. A leitura
do livro no espaço pedagógico, a depender do conceito de leitura de cada docente,
distancia tanto o leitor/aluno quanto o leitor/professor que não prioriza esse ato de
ler no seu dia a dia. Será que podemos esperar o tempo em que, como bem intensifica
Zilberman “a literatura está em parte alguma”?
Diante das diversas práticas pedagógicas, a mediação do professor é
fundamental para direcionar a protagonização da leitura literária no ensino de
literatura. O que é lido? Que escolhas serão feitas? Para quem as escolhas serão
feitas? Quem é o leitor? Que outras leituras fazem parte do seu dia a dia? Qual o
objetivo da leitura realizada? Quais as estratégias que serão utilizadas para mediar a
comunicação entre os elementos da leitura: autor, texto, leitor e contexto (COSSON,
2014, P. 37)? Essas indagações são pertinentes no processo de intervenção docente e
contribuem no desenvolvimento de práticas que valorizem o leitor literário. É
necessário que o professor interaja com a leitura que permeia os entrelugares do
espaço docente. Isso se contrapõe à intensa manutenção do cânone inserido no
espaço acadêmico, nos livros didáticos, nas revistas literárias, impondo a sua
padronização, presente na interpretação textual, nas citações de obras literárias, nos
fragmentos ilustrativos, nas releituras, em outras linguagens. Assim é montada a
tessitura, a trama em que a literatura está submersa no espaço pedagógico.
163
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A leitura no âmbito escolar pode abranger os seguintes momentos, a depender
do docente, da sua formação como leitor. Primeiramente a escolha feita pelo
professor/leitor, ou por alguns pré-requisitos ou conhecimentos prévios, por
indicações de colegas (professores), livros didáticos, catálogos de editoras. Essa
escolha norteará o planejamento e dará ao docente base para dialogar com o livro
escolhido. Na sequência, o aluno/leitor é a outra peça a ser encaixada nos
emaranhados dessa tessitura. É o momento de degustar a leitura escolhida por
outrem, a leitura que poderá abrir margens para dialogar com um conteúdo
sistemático. Após o ato de ler, após o tempo dedicado às palavras literárias, a prática
metodológica é desenvolvida e, no decorrer desse processo, a atuação do leitor se
manifesta, mesmo que o livro não tenha sido lido. Por fim, o professor se posiciona
frente às atitudes dos “leitores” e lhes atribui uma apreciação do que foi exposto.
3. O LEITOR E A SUA CONTRAPALAVRA
164
O leitor entra em cena. Qual o seu posicionamento diante das práticas de
leitura literária? Como leitor, a sua atitude deveria ser, de acordo com o significado
do termo - o sujeito atuante ou que escolhe o livro a ser lido (no espaço extraescolar
ou escolar) ou atua de acordo com a indicação de outrem. Ao escolher, o leitor utiliza
diversas estratégias correspondentes ao seu contexto social, às suas idiossincrasias. A
escolha pode ocorrer, através de elementos diversos, desde a capa e/ou título do
livro, exposições sucintas na orelha do livro, comentários de outros leitores. Em
contraparte, há, no processo de escolarização, “imposições” que buscam a tão
desejada formação do leitor através da seleção de livros lidos por unidades e que
precisam ter um produto da leitura para provar que ela foi realizada (resumos,
avaliações, produções escritas e artísticas).
O que é imposto, na escola, não garante a realização do ato de ler, no processo
de aprendizagem, e gera uma busca para burlar as práticas pedagógicas para
conquistar a tão desejada nota. Mesmo propondo leituras, os professores “sabem” da
possível negatividade desse ato. A prática pedagógica de leitura garante que o livro
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
foi lido, ou melhor, foi indicado (coordenação pedagógica, professores) desde a
organização do programa da disciplina até a realização da atividade, embora o que
ocorra, nesse processo, não garanta a realização da leitura.
Cada aluno, a depender da sua atitude diante da atividade, irá articular
algumas estratégias para desenvolvê-la, desde a leitura do livro, a leitura de
fragmentos, a leitura de resumos, a apreciação de filmes, considerando-os como
substitutos do ato de ler. Para demonstrar a realização dessa ação, o leitor utilizará
estratégias de simulação da leitura para atuar defronte do professor para “provar” a
leitura realizada (resolução da atividade escrita, atividades que são realizadas com
base nos leitores, nos resumos de internet, nas pesquisas rápidas de fragmentos, de
palavras chaves) e conseguir realizar a avaliação desejada. O leitor se articula para
dar a resposta, independentemente se ela condiz ou não com a leitura do livro.
Esse quadro demonstrativo de identificação da compreensão do leitor e das
inúmeras possibilidades de sentidos da prática docente consiste em uma atitude
prenhe de respostas, caracterizada em uma situação de compreensão responsiva
ativa. Ao indicar esse dialogismo, pode-se perceber, em momentos divergentes, a
inserção do ouvinte em tempos díspares de uma enunciação viva. Para Bakhtin
(1997), “a compreensão passiva das significações do discurso ouvido é apenas o
elemento abstrato de um fato real que é o todo constituído pela compreensão
responsiva ativa” (p. 290). Mesmo que a resposta não seja pronunciada no ato
comunicativo de leitura, ela pode ser realizada por meio de atitudes, no espaço
escolar, como resoluções de atividades escolares, como reflexões, por exemplo, no ato
do pronunciamento ou em um tempo/espaço que não seja o escolar. Então, Bakhtin
reitera:
O locutor postula esta compreensão responsiva ativa: o que ele
espera, não é uma compreensão passiva que, por assim dizer, apenas
duplicaria seu pensamento no espírito do outro, o que espera é uma
resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma
execução, etc. A variedade dos gêneros do discurso pressupõe a
variedade dos escopos intencionais daquele que fala ou escreve. O
desejo de tornar seu discurso inteligível é apenas um elemento
abstrato da intenção discursiva em seu todo. (BAKHTIN, 1997, p. 291)
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O sujeito leitor discursivo, em uma visão da compreensão responsiva, será
responsável por seu posicionamento, com isso, figura como apto a interagir e
corresponde também como protagonista real da comunicação. Se ele pergunta,
afirma ou ratifica, há intenção de uma manifestação do ouvinte/leitor. Essa
responsividade iminente comunga com pontos cruciais do convívio social, em que
não podemos negar sujeitos dialógicos repletos de dizeres a se revelarem em
situações necessárias à produção de vozes. Portanto, os enunciados são orientados
para uma réplica e intrínseco a essa resposta há um interlocutor presumido,
promovendo uma articulação de várias vozes sociais.
No sentido da discussão, ao associar a responsividade à leitura de literatura,
não se configura apenas reconhecer formas linguísticas ou estilos literários,
tampouco apreender o que/por que o autor quer dizer. Nessa visão de leitura, são
respostas que repetem o já dito pelo outro (autor), sugerindo uma suposta voz que se
enuncia nas propostas educacionais. Por conseguinte, Jurado reforça que, para que a
interação se evidencie nas vertentes discursivas-enunciativas:
são convergentes o caráter sócio-histórico da linguagem, a noção
geral de que o texto só existe enquanto enunciado na interação
verbal, nas relações sociais. Ou seja, a leitura é um ato social, um
evento; e o texto só adquire sentido na interação. (JURADO, 2003, p.
166
70)
Em conformidade com o já dito até então, Faraco (2009, p. 66) expressa que,
nas relações dialógicas, é preciso que o conjunto de materiais linguísticos, na esfera
do discurso:
tenha fixado a posição de um sujeito social, (...) isto é, fazer réplicas
ao dito, confrontar posições, à palavra do outro, confirmá-la ou
rejeitá-la, buscar-lhe um sentido profundo, ampliá-la. Em suma,
estabelecer com a palavra de outrem relações de sentido de
determinada espécie, isto é, relações que geram significação
responsivamente a partir do encontro de posições avaliativas.
(FARACO, 2009, p. 66)
Na sala de aula e em proposições de leitura, o sujeito está em evidência para se
posicionar frente ao ato linguístico e ser respondente, diante das atividades
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planejadas. Essa atuação discursiva e as vozes que se enunciam no ensino de
literatura, especificamente em uma prática de leitura, nortearam esta pesquisa.
4. A VOZ DO LEITOR LITERÁRIO NO ENSINO DE LITERATURA
Esta pesquisa foi realizada em uma escola pública situada no alto sertão
baiano, no município de Guanambi - BA. Foram observadas duas turmas de Ensino
Médio, 2º A e 2º B, especificamente as aulas de literatura. O foco da pesquisa
direcionou-se para leitura literária na sala de aula e como se dá a compreensão
responsiva do leitor. A pesquisa foi qualitativa, seguindo uma abordagem
etnográfica, e utilizou dos seguintes instrumentos de coleta de dados: observação das
aulas, registro de campo, questionário semiestruturado com os alunos.
Para a observação das aulas foram necessárias seis semanas, em cada turma
cinco aulas foram utilizadas para desenvolver a pesquisa. No decorrer da
observação, era de conhecimento do pesquisador que o livro O Xangô de Baker Street,
de Jô Soares, fora escolhido para ser trabalhado na unidade. Nesse ínterim, o
professor trouxe a leitura do box informativo (CEREJA; MAGALHÃES, p.330, 2010)
sobre o livro proposto e uma aluna (2º A) fez uma solicitação: que a professora
passasse o filme para apreciação. Em um dos momentos da aula, a professora
comentou rapidamente o que contém cada parte do livro. Em contrapartida, era
visível que outros livros (Ladrões de raios, Fazendo meu filme) estavam sendo lidos
pelos alunos no decorrer da aula e nos corredores da escola, sendo que não havia
uma interferência, nem interação do professor durante este processo.
Após o desenvolvimento da atividade Dominó Literário, foi realizado um
questionário semiestruturado com 33 alunos das duas turmas pesquisadas. A escolha
dos alunos foi aleatória e não houve critérios para decidir quem participaria da
pesquisa. Os resultados foram analisados e convertidos em gráficos no editor de
planilhas Microsoft Excel para melhor visualização das respostas. Apesar de outras
questões terem sido feitas aos alunos, para esta pesquisa foram selecionadas as que
faziam referência à atividade supracitada.
167
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Abaixo seguem os gráficos nomeados de acordo com as perguntas do
questionário:
Percebe-se, no gráfico 1, que, mesmo o livro tendo sido proposto para
realização de uma atividade avaliativa, um número significativo de alunos não o leu.
Várias questões interferiram nessa negatividade do ato de ler e a justificativa
apresentada por alguns dos alunos reforça o ocorrido no gráfico 2:
Gráfico 1: Leitura do livro proposto pelo professor
Fonte: Produção do próprio autor
168
A resposta dos alunos aborda diversas questões referentes à leitura do livro
indicado em sala de aula. Caminhos foram traçados pelo leitor para desviar-se do
contato com olivro, para driblar esse processo. Um dos principais fatos apresentados
para justificar a não realização da leitura (GRÁFICO 2) foi a apreciação do filme
anteriormente a leitura do livro, considerando que o este pode ser substituído. Vale
salientar que os alunos desconsideraram a estrutura composicional de cada gênero
discursivo (livro e filme), negando os diversos locutores que estão imersos no
processo de produção autoral. É mister que o espaço pedagógico demonstre as
variadas facetas de um gênero discursivo, expondo as idiossincrasias de cada um.
Um gênero não supre o outro, são leituras diversas que mobilizam competências e
promovem habilidades a depender dos objetivos pedagógicos de cada docente.
Gráfico 2: Justificativa da (não)leitura do livro
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Fonte: Produção do próprio autor
Outro fato apresentado pelos leitores consiste nos trabalhos escolares, vistos,
na fala dos alunos, como algo que ocupou o tempo que poderia ser dedicado à
leitura. A leitura feita na escola perfaz o caminho da escolarização e traz consigo
traços que não priorizam o leitor literário nem o processo de formação desse leitor.
Nesse sentido, o que se encontra na sala de aula são artimanhas para a não realização
169
da leitura.
A escolarização da leitura literária é uma expressão refletida por Rildo
Cosson (2011), ao afirmar que, se o texto literário ocupa o espaço educacional, é
inevitável considerá-lo como escolarizado. Com isso faz-se necessário distinguir a
escolarização da literatura, a depender das práticas de leitura utilizadas na sala de
aula, como demonstrado por Soares:
(A escolarização) adequada seria aquela escolarização que conduzisse
eficazmente às práticas de leitura literária que ocorrem no contexto
social e às atitudes e valores próprios do ideal de leitor que se quer
formar; inadequada é aquela escolarização que deturpa, falsifica,
distorce a literatura, afastando, e não aproximando, o aluno das
práticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou
aversão ao livro e ao ler. (SOARES, 1999, p. 47):
Reflexão necessária para perceber como mudam os papéis dos envolvidos a
função dada ao texto literário quando este está no espaço de escolarização, a
mediação docente e a atuação dos alunos/leitores. Portanto, no espaço extraescolar, o
leitor procura encontrar os seus desejos, inquietações respondidas, curiosidades.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Outro aspecto observado na análise dos questionários, exposto no gráfico 2,
foi o tempo para a leitura, o número significativo de trabalhos escolares, o
desinteresse. Essa perspectiva traz atribuições que negam uma prioridade para o que
foi indicado para ser lido. O que está oculto nessas práticas pode ser vislumbrado
como uma mediação inadequada ou uma desvalorização de aspectos estéticos
literários, tendo como foco o cumprimento da realização da leitura.
Alguns alunos consideraram o livro ruim, outros informaram que “Todos
falaram que era chato” (ALUNO1). A mediação literária é fundamental para capturar
o leitor, mesmo que não seja feita pelo docente, o colega ao lado pode contribuir. A
voz do outro interfere de forma expressiva nesse momento, embora cada mediador
possua contribuições diferenciadas. O poder da palavra aqui referendado é
evidenciado quando vem de um dos seus pares. Na maioria das vezes estes
conseguem muito mais do que a mediação do docente.
Os alunos que informaram que a leitura foi realizada (GRÁFICO 1) - um
número pequeno - mencionou que a leitura foi necessária, precisava realizar a leitura
170
e uma aluna disse que “Gosta das obras do escritor”. (ALUNO 2),
A posição dos leitores perante a leitura, em contrapartida, esboçou um
contrassenso nas respostas dos alunos, visto que eles não apreciaram a totalidade da
leitura do livro. Alguns que informaram ter gostado do livro, expuseram, na
justificativa da questão, que: “Li o livro pela metade para fazer a avaliação” (ALUNO
3), “Estava no meio da leitura e decidi assistir ao filme” (ALUNO 4). Esse fato
demonstra que boa parte dos entrevistados desistiu da leitura do livro após
assistirem ao filme, considerando que o filme foi utilizado para o desenvolvimento
da atividade, um gênero substituto do outro.
Outros afirmaram, ainda, não terem gostado do livro sem mesmo o terem lido.
Há no leitor uma visão de que a literatura proposta pela escola só traz “livros
tediosos” (ALUNO 5). Como considerar que algo não me agrada sendo que o
desconheço? Abaixo, no gráfico, segue o posicionamento dos alunos/leitores:
Gráfico 3: Consideraram o livro interessante
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Fonte: Produção do próprio autor
Após o intervalo de leitura feito no espaço exterior às aulas de literatura, foi
realizada a prática pedagógica com o objetivo de verificar se houve ou não a
realização da atividade.
Para a atividade do livro foi realizado um Dominó Literário, tendo como base
imagens - retiradas do indexador de imagens do google - e palavras centrais de cada
capítulo. Essa atividade foi realizada no final da unidade e foi perceptível que muitos
alunos não leram o livro (o que nos mostram os gráficos acima) e que se
preocupavam unicamente com o valor atribuído à atividade. Antes da realização
dessa metodologia, a professora comentou o título do livro, o autor, personagens e
concluiu expondo os valores da ficha de avaliação.
Percebe-se, nessa prática docente, um foco no avaliar, medir a leitura
realizada. Muitas discussões poderiam ter sido feitas antes da realização da
atividade. Essas reflexões incentivariam a leitura do livro e poderia ter sido
articulada uma interação com os livros lidos no espaço externo à escolarização. Na
voz dos alunos fica clara a valorização de uma prática pedagógica diferenciada,
mesmo que o livro não tenha agradado a todos. Eles perceberam que a realização do
Dominó Literário evidenciou “a necessidade de interagir com a turma” (ALUNOS 6 e
7); outro aluno expressa no seu registro a importância dessas práticas, sendo que em
uma prática interessante “lembramos da história de uma forma diferente” (ALUNO
8) e “entendemos o contexto histórico da história” (ALUNO 9); o aluno 9 enfatiza que
a ludicidade contribui com o processo de aprendizagem “sendo uma forma mais
‘divertida’ de entender o que se passa”.
171
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Em contrapartida aos dizeres mencionados, a aluna 2 aborda uma das
discussões constantes sobre a formação do leitor literário na escola e a
obrigatoriedade da leitura, que “nos obriga a demonstrar se lemos o livro ou não, já
que exige riqueza em detalhes”. Fica notório que a elaboração da atividade, ao
solicitar de forma detalhada aspectos do livro, impõe ao leitor uma reposta.
Dessa forma, há necessidade de demonstrarmos a alguém o produto de
nossa leitura? A indagação é respondida por outra, feita por Pennac:
Leitura, ato de comunicação? Mais uma bela piada dos comentaristas!
Aquilo que lemos, calamos. O prazer do livro lido, guardamos, quase
sempre, no segredo de nosso ciúme. Seja porque não vemos nisso
assunto para discussão, seja porque, antes de podermos dizer alguma
coisa, precisamos deixar o tempo fazer seu delicioso trabalho de
destilação. E este silêncio é a garantia de nossa intimidade. O livro foi
lido, mas estamos nele, ainda. (...) Lemos e calamos. Calamos porque
lemos. Seria engraçado ver alguém emboscado nos esperando na
virada de nossa leitura para nos perguntar: “Entãããão? É bom? Você
entendeu? Relatório!” (PENNAC, 1993, p. 82):
172
As palavras de Pennac demonstram o valor atribuído às respostas de leitura,
sendo que o processo de escolarização necessita destas para promover a
aprendizagem, a interação, o diálogo.
Geraldi discute essa obrigatoriedade dos textos utilizados nas escolas:
Tornam textos, que se elegem para as aulas, em leitura obrigatória,
cujos temas valem por si e cujas estratégias de construção são
também válidas em si. Reificam-se os textos. E, contraditoriamente,
“repartindo-os” pela escolarização, sacralizam-nos. (GERALDI,
1997, p. 169)
A mediação da atividade contou com a participação ativa e detalhada da
docente e de colegas que leram o livro e participaram, expondo posicionamentos e
reflexões no decorrer da interação. O gráfico 4 apresenta a voz dos leitores sobre a
contribuição dessa atividade para incentivar a leitura do livro. Como uma atividade
avaliativa com o intuito de concluir uma unidade escolar, ficou evidente a
negatividade de interesse dos alunos em ler o livro em um momento extraescolar.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Gráfico 4: Satisfação dos alunos sobre a atividade realizada
Fonte: Produção do próprio autor
Muitos alunos informaram que não leram o livro, porque há escolhas mais
interessantes e que fazem parte do seu estilo, outros disseram que o fato de terem
assistido ao filme fez com que eles tivessem conhecimento de todos os
acontecimentos do livro.
Os alunos que afirmaram que pretendem ler o livro após a exposição de
colegas e professores, informaram: “achei muito interessante a história” (ALUNO
11), “gostei do enredo da história”. Esse fato demonstra que alguns aspectos da
mediação inquietaram no leitor a descoberta de fatos do enredo da construção
literária.
Gráfico 5: Leitura do livro após a realização da atividade
Fonte: Produção do próprio autor
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Pensar as práticas pedagógicas de leitura literária vai além da formação do
leitor literário como uma das principais competências desejadas pelo público
docente. Como formar o leitor de literatura através da leitura de cânones impostos
por uma padronização curricular? Talvez esta não seja uma pergunta feita nos
espaços escolares. Há uma preocupação com a formação do leitor, mas o que diz o
leitor sobre o que é lido e sobre as atividades desenvolvidas não são questões a serem
respondidas. Na escola os discursos dos outros não são priorizados no que se refere
às práticas de leitura, sendo que eles trazem caminhos, inquietações e promovem no
docente reflexões oportunas que podem construir, conjuntamente, aluno/leitor e
professor/leitor, a teia da interação e do diálogo acerca do ato de ler ou até do direito
ao ato de não ler.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa trouxe considerações oportunas para refletir sobre o ensino de
174
literatura e, principalmente, a leitura literária, observando que não adianta impor
leituras, a avaliação não determinará o ato de ler. Vale salientar que uma mediação
de qualidade oportunizará, pelo menos, inicialmente, a construção sinfônica do
grupo de leitores na sala de aula. Quando o tom da melodia for proferido, o leitor
saberá qual é o seu momento, qual é o seu espaço e qual é o personagem que o
capturará na trama da narrativa. Ensinar a leitura literária é uma prática distante no
Ensino Médio, visto que o ensino de literatura se enquadra na historiografia literária
como foco e da leitura como um mito desejável de ser realizado, mas distante de
práticas condizentes ao ato de ler.
Entre o educador e as metodologias é fundamental que seja priorizado
aquele que centra a prática docente - o leitor, mesmo que esse negue a categoria de
leitor literário. A valorização deste “eu” do leitor promoverá a construção de
coletividades de vozes e norteará diálogos discursivos capazes de transbordar
responsividades.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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PENNAC, Daniel. Como um romance. Tradução de Leny Werneck. Rio de Janeiro:
Rocco, 1993.
SOARES, Magda. A escolarização da leitura infantil e juvenil. In: BRANDÃO,
Heliana Maria Brina; EVANGELISTA, Aracy Alves Martinse; MACHADO, Maria
Zélia Versiani. (Orgs.). A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e
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ZILBERMAN, Regina. Letramento literário: não ao texto, sim ao livro. In: PAIVA,
Aparecida et all. (orgs.) Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – o
jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica, Ceale, 2003.
ANEXO
Questionário sobre a leitura do livro
1. Você leu o livro indicado pela professora? Por quê?
2. Caso você não tenha lido o livro, pretende lê-lo diante da exposição feita pela
professora e por alguns colegas, no momento da avaliação?
175
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
3. Que meio você utilizou para fazer a leitura do livro (celular, computador, livro
impresso, outros)?
4. Como você considerou a atividade realizada na aula de literatura sobre livro lido
atualmente?
5. Você considerou o livro interessante? O que ficou evidente no momento da leitura?
Você considera que a escolha do professor foi pertinente?
6. Para os alunos que não leram o livro, a atividade realizada pela professora
incentivou a leitura? Por quê?
176
A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTOJUVENIL COMO DISCIPLINA
PARA O CURSO DE LETRAS VERNÁCULAS
Arigésica Andrade Moura
Mestranda em Educação
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS
[email protected]
Eixo Temático 2: Literatura, Experiência e Memória
Pesquisas denotam que nos últimos anos, a inclusão da Literatura Infantojuvenil
como disciplina nos currículos de cursos de formação de professores vem sendo alvo
de debates no meio acadêmico. Nos cursos de Letras Vernáculas, conforme
levantamento de dados realizado, há uma oscilação no que se refere à inserção da
literatura infantojuvenil como disciplina. Esta, ora surge no currículo como
componente obrigatório, ora de forma secundária, inserida em outra disciplina ou
como optativa. Apesar de oscilar nos currículos de diversas instituições de ensino
superior, esse gênero marca forte presença na sala de aula. Em vista disso, acredita-se
que à medida que tais instituições deixam de incluir a Literatura infantojuvenil como
disciplina nessas licenciaturas, geram uma lacuna na formação desses profissionais,
pois, em tese, faltaria a esses profissionais embasamento teórico-metodológico neste
ramo do conhecimento. Concebendo o curso de Letras Vernáculas como espaço de
formação inicial do professor de Língua Portuguesa, supõe-se que se o graduando
tiver acesso as discussões em torno da Literatura infantojuvenil, a um referencial
teórico sobre esse gênero, possivelmente sua prática pedagógica terá maior
embasamento teórico e por isso teria uma melhor preparação para seu exercício
profissional. Visto que, em sala de aula, enquanto professor mediador será necessário
que detenha mínimo conhecimento acerca de questões relacionadas à teoria literária.
A atuação do professor, em se tratando de mediação de leitura, é o ponto-chave para
a tessitura desses primeiros diálogos entre a criança e literatura infantojuvenil. A
mediação perpassa pela seleção dos livros, organização do ambiente, escolha do
modo de contar. Abarca ainda as discussões sobre o texto, os espaços de escuta, as
produções. Ao professor, enquanto mediador, cabe estimular a interação entre o
leitor e a obra e é nesse processo dinâmico que vai se formando o leitor. É válido
destacar ainda que tão importante quanto obter conhecimento teórico, é ter uma
vivência de leitura. O estudante de Letras precisa ser e se perceber leitor literário.
Diante disso, este artigo pretende discutir a importância da Literatura infantojuvenil
como disciplina para o curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB). O presente trabalho busca ainda destacar a relação entre leitura,
literatura e práticas culturais de leitura, apontando-as como elementos singulares na
constituição do professor-leitor. Para tanto, tem por base autores como Amarilha
(1997), Candido (1995), Faria (2006), Lajolo (1993), Zilberman (1987; 2014), além das
pesquisas de Araújo (2015), Castilhos (2013), Cerqueira (2007) e Oliveira (2015) entre
outros.
PALAVRAS-CHAVE: Leitura; Literatura infantojuvenil; Formação de professores.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
1 APRESENTAÇÃO
Este trabalho é oriundo da pesquisa de Mestrado que está sendo desenvolvida
no Programa de Pós-Graduação em Educação da UEFS, acerca das implicações da
disciplina Literatura infantojuvenil na prática de licenciados em Letras, pela
Universidade do Estado da Bahia.
Ao observar o currículo de cursos de formação de professores, de modo mais
específico, os currículos de Letras Vernáculas de universidades estaduais da Bahia,
notou-se que a presença da disciplina Literatura Infantojuvenil, oscila nas matrizes
curriculares. Há momentos em que surge de maneira secundária, como disciplina
agregada à outra, ora aparece como optativa, sendo disponibilizada quando há oferta
de vagas.
Ao discutir literatura, literalidade e os livros para crianças e jovens, Maria
Alice Faria (2010, p.11) confirma essa perspectiva ao argumentar que “em função da
exclusão pela academia da literatura infantojuvenil, do campo da literatura
178
considerada “verdadeira”, o estudo da produção para crianças e jovens não consta,
na maioria das vezes, dos currículos em cursos de formação de professores”.
Seguindo na contramão, as discussões em torno do gênero, da formação do
leitor, do professor mediador de leituras tem se intensificado nos últimos anos. A
presença marcante da literatura infantojuvenil nas salas de aula da educação básica
também desperta a atenção e leva a pensar sobre a formação do professor.
Com base nisso, acredita-se ser fundamental que a licenciatura oportunize
momentos de vivência com o texto literário, bem como um embasamento teóricometodológico acerca desse gênero, a fim de que a prática pedagógica do licenciado
possua maior respaldo.
Partindo, pois, desses pressupostos, este artigo, pretende discutir a
importância da literatura infantojuvenil como disciplina para o curso de Letras
Vernáculas. Pretende ainda, tecer algumas considerações acerca da relação entre
leitura, literatura e práticas culturais de leitura, apontando-as como elementos
singulares na constituição do professor-leitor. Para tanto foi utilizado como aporte
teórico autores como Zilberman (1987; 2014), Candido (1995), Faria (2006), Lajolo
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
(1993), Mortatti (2014) entre outros, além de pesquisas recentes sobre essa temática
como as de Cerqueira (2007), Castilhos (2013), Oliveira (2015) e Araújo (2015).
2 A DISCIPLINA LITERATURA INFANTOJUVENIL NO CURRÍCULO
Entende-se a literatura como um fenômeno da linguagem que reflete o
contexto social, cultural no qual está inserida, mas também se compreende que esta é
arte que utiliza a palavra de forma polivalente, de maneira a prender o leitor,
estabelecendo com ele um diálogo, transportando-o para uma realidade paralela.
Assim, o leitor é, em certa medida, coautor, porque completa continuamente a obra
com seus sentidos (MOISÉS, 2003).
Vista dessa maneira, a literatura tem um papel significativo a cumprir na
sociedade, ser agente formador de uma nova mentalidade. Tal posicionamento é
confirmado por Coelho (2000, p.15): “A literatura, em especial a infantil, tem uma
tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em transformação: a de servir como
agente de formação, seja no espontâneo convívio leitor/livro, seja no diálogo
leitor/texto estimulado pela escola”.
A literatura contribui para o desenvolvimento cognitivo, psicológico,
emocional, linguístico do sujeito, porque sua matéria-prima é a linguagem. Esta arte
também supre a necessidade inata do ser humano de simbolismo. Uma narrativa, por
exemplo, traduz simbolicamente a realidade do leitor e incorpora esse universo
afetivo-emocional na história, contribuindo assim para a formação desse sujeito.
Partindo dessa perspectiva, coaduna-se com Candido (1995), quando afirma
que todos têm direito à literatura. Assim como se tem o direito ao lazer, à moradia,
ao trabalho, à crença, tem-se o direito à arte, à literatura. No entanto, nem sempre o
contexto socioeconômico possibilita aos indivíduos à vivência literária.
Nesse sentido, pensando acerca dos cursos de formação de professores, de
modo mais específico, da licenciatura em estudo, Letras Vernáculas, algumas
indagações são suscitadas: Como está sendo contemplado o saber literário no curso
de
Letras?
Existe
uma articulação
equilibrada entre
leituras literárias e
179
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
fundamentação teórica? Como o curso tem preparado esses professores que, em tese,
formarão leitores?
Tais questionamentos são salutares porque se acredita que é importante para a
formação do graduando ter contato com discussões teóricas em torno da literatura
infantojuvenil, mas também ter momentos de vivência literária, a fim de que
posteriormente possa desenvolver uma prática pedagógica com embasamento.
Afinal, ele será um mediador de leituras, caberá a esse profissional selecionar, indicar
obras literárias. Oliveira (2010) corrobora tal posicionamento:
Há alguns fatores primordiais a serem considerados quando nos
referimos às mediações do professor para formar leitores. Por certo,
os mais importantes são a história de leitura e a qualificação
profissional, situações que interferem no desempenho do professor.
(...) É necessário repensar a formação inicial e continuada, de modo
que o processo de formação docente, seja construído e reconstruído
em favor de uma nova postura pedagógica que inclua, com
consistência, a leitura do texto literário nas diversas modalidades de
ensino (2010, p. 50).
180
A presença da literatura infantojuvenil enquanto disciplina no currículo de
Letras pode contribuir para um redimensionamento do olhar do estudante acerca da
compreensão de práticas de leitura, de sua própria percepção sobre ser leitor.
Em vista disso, com base no levantamento de dados realizado, notou-se que a
Universidade do Estado da Bahia (UNEB) traz um diferencial na matriz curricular do
curso de Letras Vernáculas, em detrimento das demais universidades estaduais,
porque inclui no currículo o estudo da literatura infantojuvenil, através de uma
disciplina específica, anteriormente denominada Literatura Infantojuvenil (Tema
Especial I), com carga horária de 75 horas, e atualmente designada O estético e o
lúdico na literatura infantojuvenil, com carga horária de 60 horas.
Observando a alteração de nomes das disciplinas já é possível notar uma
mudança no olhar sobre o estudo da literatura infantojuvenil na licenciatura.
Conforme a ementa, este componente curricular “estuda o estético e o lúdico na
literatura infantojuvenil, analisando a relação entre o imaginário e a realidade.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Discute os conceitos, a história e as condições de produção e recepção do texto, tanto
da linguagem oral, quanto da linguagem escrita.” (UNEB, 2009, p. 146)
A ementa, norteadora do trabalho docente, sinaliza a alteração no modo de se
perceber a literatura infantojuvenil no currículo de Letras. No entanto, vale destacar
que é fundamental que haja reciprocidade dos discentes, para que o aprendizado se
realize e possa ter implicações significativas na prática pedagógica desses futuros
professores. Tão importante quanto isto, é que haja uma vivência literária por parte
dos estudantes. História de leitura e qualificação profissional estão inter-relacionadas
e ambas se refletem na práxis do professor.
3 ENTRELAÇANDO DISCUSSÕES
Com base no que foi exposto, serão brevemente apresentadas três histórias de
leitura realizadas para a pesquisa que compõe a Dissertação, bem como a análise
inicial dessa coleta de dados, como uma forma de melhor elucidar a importância da
Literatura Infantojuvenil como disciplina para o curso de Letras Vernáculas.
Como percurso metodológico optou-se pelo método qualitativo, sendo
instrumentos de coleta de dados a Pesquisa Bibliográfica, Documental e a Entrevista
semiestruturada. O lócus escolhido foi o campus XXII, da Universidade do Estado da
Bahia, situado na cidade de Euclides da Cunha.
Os sujeitos da pesquisa são seis estudantes egressos do referido campus,
professores das séries finais do ensino fundamental. Entretanto, como a pesquisa
encontra-se em andamento, serão brevemente apresentados aqui apenas os relatos de
três entrevistados. Buscando preservar suas identidades, os nomes que os
representam são fictícios.
Ana (35) e Lívia (36) são naturais do município de Tucano e lecionam há dez
anos na rede pública de Quijingue, cidade do interior da Bahia, situada a 333
quilômetros da capital, Salvador. Ambas têm em comum a alfabetização tardia –
foram alfabetizadas apenas aos dez anos de idade.
Ana nasceu no Povoado Casa Nova pertencente a Tucano, Bahia, e até os dez
anos, a única referência de leitura que se recorda é de uma tia que lia as cartas que
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
chegavam para sua mãe. Posteriormente, na escola, as atividades que envolviam
leitura estavam sempre associadas ao livro didático, às datas comemorativas, mas
não lembra de um trabalho que buscasse desenvolver o gosto pela leitura.
O encontro significativo com o texto literário ocorreu somente no Ensino
Médio. Nesse momento houve o incentivo à leitura e atividades que suscitavam o
interesse dos alunos pelo universo literário.
Após concluir o Ensino Médio, embora desejasse cursar Geografia, iniciou os
estudos em Letras Vernáculas pela facilidade de acesso. Foi aprovada no concurso
municipal de Quijingue no mesmo ano de aprovação do vestibular. Em 2004 concluiu
a graduação e atualmente está realizando sua segunda especialização.
Ao estudar o componente curricular O estético e o lúdico na literatura
infantojuvenil, Ana relata que a docente buscou aliar teoria e prática, oportunizar a
vivência literária. Com isso, a disciplina contribuiu para o melhor entendimento do
texto literário, para a construção de um novo olhar sobre a literatura infantojuvenil,
como pode se observar em sua fala:
182
Veja só, hoje a gente tem que ter um olhar direcionado, tentar ajudar
o aluno a perceber isso e vamos supor, eu vou trabalhar com o conto
tradicional, esse conto tradicional e uma outra versão. E como é essa
outra versão? Ter esse olhar, a partir de algo, de uma situação tentar
ver de outra forma, ter esse olhar crítico. Eu acho que é nesse sentido
de reflexão mesmo, de o aluno perceber que em alguns momentos
pode inferir, que através daquela leitura ele pode opinar, dizer “eu
acho”, “eu não concordo com esse autor”, “ele poderia ter feito de tal
maneira”. Eu acho que ela (a disciplina) ajudou nesse sentido, desse
olhar crítico, de análise, de observação.
Ao articular teoria e prática, a professora da disciplina cooperou
significativamente para a aprendizagem dos alunos e isto se refletiu na prática
pedagógica destes. A obra literária Ludi vai à praia, de Luciana Sandroni, trabalhada
em O estético e o lúdico na literatura infantojuvenil, foi posteriormente foco central
de um projeto pedagógico que Ana desenvolveu na escola em que atua.
O estudo do livro A bolsa amarela, de Lígia Bojunga, foi inspiração para a
execução de um miniprojeto de leitura. Sabendo que um dos objetivos do curso é
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
preparar para o exercício profissional, nota-se a relevância deste componente
curricular para o curso.
A história de leitura de Lívia também confirma essa perspectiva. Lívia é
oriunda do Povoado Pedra Grande, da cidade de Tucano. Ao contrário de Ana, a
entrevistada teve um contato marcante com narrativas orais no seio de sua família. O
avô materno, o pai e a irmã costumavam contar histórias. Havia, inclusive, reunião
de familiares à noite para ouvir narrativas como Cancão de Fogo.
Na escola houve também papel significativo de uma professora e de uma
estagiária em sua formação leitora na alfabetização, relatou que, posteriormente, o
contato com textos literários e com conhecimentos sobre esse gênero se deu de forma
mais sistematizada no Ensino Médio.
Anos depois de concluir a educação básica, ingressou no curso de Letras, foi
aprovada no concurso municipal de Quijingue e no momento faz uma especialização
em Psicopedagogia Institucional e Clínica.
Analisando as falas de Lívia, nota-se que os encontros de com o texto literário
ficaram guardados em sua memória afetiva sempre atrelados à fruição, porque “ler,
de certa forma, é reencontrar as crenças e, portanto, as sensações da infância. A
leitura que outrora ofereceu para nosso imaginário um universo sem fim, ressuscita
esse passado cada vez que, nostálgicos, lemos uma história.” (JOUVE, 2002, p. 17)
Esse aspecto se reflete em sua relação com o texto literário, tanto enquanto leitora,
quanto em seu trabalho em sala de aula associada à fruição, como é possível perceber
nestas palavras:
Tem até um livro, Os miseráveis, que, meu Deus, me conquistou de
uma forma que eu já li umas seis vezes, mas eu vou ler de novo,
porque eu vou trabalhar com os meninos e vou reler e é como se eu
não tivesse lido ainda, porque a cada leitura você encontra coisas
novas, então vai redescobrindo. É um clássico que eu amei.
A literatura supre a necessidade inata do ser humano de simbolismo. Como é
possível notar em sua fala. Percebe-se inclusive o poder de subjetivação que essa arte
exerce sobre seu receptor. Isso faz pensar que a literatura contribui para que o leitor
elabore seus problemas, seus conflitos e evolua. Ao atuar no subconsciente e no
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
inconsciente organizando o caos interior do homem, confirma no ser humano sua
humanidade, como defende Antônio Cândido (1995, p. 176) em seu artigo O Direito
à Literatura:
[...] há “conflito entre a ideia convencional de uma literatura que
eleva edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força
indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade
nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica,
portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o
mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. (grifos do
autor)
Ao ser questionada sobre o trabalho desenvolvido na disciplina O estético e o
lúdico na literatura infantojuvenil, relata que Bettelheim, com seu livro A psicanálise
dos contos de fadas, foi um teórico que lhe marcou. A ideia de desconstrução de
estereótipos, de valores presentes nos contos de fadas como a fada sempre boa e a
bruxa má perpassou a disciplina, trouxe um novo olhar sobre o texto literário e isto
foi levado para sua sala de aula, como expressa nesta fala:
184
Pesquisadora: A disciplina favoreceu a você uma nova postura
pedagógica?
Lívia: Sim e também pela questão de você ver o livro e você não ler só
por ler. Você lê e como é que se diz, de você repetir o que o autor
disse, você vai além, você vai ter uma nova visão, um outro olhar ali
daquela história. Uma outra intenção também. Não é só ler pra
mostrar que a Chapeuzinho Vermelho ela era a menininha indefesa
ali, mas que também ela podia ter provocado, o que ela podia ter
provocado, Os três porquinhos também. Ela (a professora) trabalhou
também com essa história. Será que o lobo queria realmente devorálos? Ou houve uma provocação maior por parte dos porquinhos?
Então, nos ajudou a recontar essas histórias aos nossos alunos.
Ao buscar a desconstrução desses estereótipos, a disciplina contribui para o
desenvolvimento de uma nova postura diante da obra literária. Houve uma
ressignificação do leitor, porque passou a se perceber sujeito ativo, capaz de fazer
inferências, de atribuir sentidos, de posicionar-se criticamente perante o texto, de
problematizá-lo. E essa ressignificação extrapola os muros da universidade, quando
o licenciado se sente instigado a compartilhar essas descobertas, anseia desenvolver
em seus alunos esse novo encontro com o texto literário.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A mudança do olhar sobre o texto também é marcante no relato de Mariana.
Natural de Tucano, teve uma infância e adolescência perpassadas por brincadeiras
típicas da fase. Sua escolarização se iniciou já em casa. Embora sua mãe tivesse
apenas até a 3ª série do Ensino Fundamental (atual 4º ano), conseguiu iniciar o
processo de alfabetização da filha. Por isso, quando Mariana ingressou na escola, já
detinha certo conhecimento em detrimento dos demais colegas.
A literatura aparece em sua vida por meio de seu avô que contava histórias da
tradição oral e a deixavam fascinada, como expressa nesta fala: “Meu avô sim que
gostava de contar histórias e sabia muitas histórias. Eu lembro que aquilo ia me
cativando. Ele ia contando e eu parava assim (fez expressão de contemplação)...o
mundo podia acabar e eu ouvia.”
Essa sensação de encantamento marca sua relação com a literatura, de modo
que os contatos posteriores com a leitura literária na escola serviram para reforçar
esse sentimento. Na licenciatura destaca que houve um redimensionamento de seu
olhar sobre o texto, principalmente com a disciplina O estético e o lúdico na literatura
infantojuvenil e isso foi levado para sua prática pedagógica, como revela nesta fala:
a relação que eu tenho com a leitura é essa, eu procuro explorar
mesmo, coisa que antes da faculdade eu não tinha essa percepção (...)
O texto é além, hoje eu extrapolo as ideias do texto com os alunos (...)
Se não fosse a faculdade eu não teria essa visão, estaria trabalhando o
texto só por trabalhar (...) principalmente nas aulas da professora
Sandra, do Estético e o Lúdico, a gente percebia isso, que o texto vai
muito mais além.
Assim como Ana e Lívia, Mariana desenvolve trabalhos de fomento à leitura
em sala de aula, há um anseio por proporcionar encontros significativos com a leitura
literária. A mesma cita como exemplo sua experiência durante a disciplina O estético
e o lúdico na literatura infantojuvenil com o livro de Lígia Bojunga, A bolsa Amarela.
No curso foi solicitada a leitura e análise da obra, mas ao encontrar-se com o texto,
sentiu a necessidade de também de levá-lo para a sala de aula.
Nota-se com isso que Mariana, assim como Ana e Lívia, buscou durante o
curso realizar essa articulação entre teoria e prática. “Tentei trazer tudo que a
faculdade me proporcionou pra sala de aula, adaptando ou dando nova roupagem,
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
mas tudo trazia pra o meu aluno e aí sentia a necessidade de trabalhar a leitura, e
isso me deu oportunidade de trabalhar outros livros com os alunos”.
Observando, pois as histórias de vida dessas professoras é possível notar a
relação existente entre leitura, literatura e práticas culturais de leitura. Sua história
leitora e sua qualificação profissional se inter-relacionam e se refletem numa prática
pedagógica que busca despertar o encantamento, a fruição, o encontro significativo
com a leitura literária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo o que foi exposto, nos cursos de Letras Vernáculas a literatura
infantojuvenil, enquanto disciplina, oscila no currículo de algumas instituições
estaduais de ensino superior da Bahia. Ora aparece na matriz curricular como
componente obrigatório, ora de forma secundária, inserida em outra disciplina ou
ainda como optativa.
186
Apesar disso, o gênero é presença marcante na sala de aula. Em vista disso,
entende-se que à medida que essas instituições deixam de incluir a Literatura
infantojuvenil como disciplina nessas licenciaturas gera uma lacuna na formação
desses profissionais, pois, em tese, faltaria a esses profissionais embasamentos teórico
e metodológico neste ramo do conhecimento.
A presença da literatura infantojuvenil enquanto disciplina no currículo de
Letras pode contribuir para um redimensionamento do olhar do estudante acerca da
compreensão de práticas de leitura, de sua própria percepção sobre ser leitor, como
foi expresso nos relatos dos sujeitos entrevistados.
Às vezes o anseio que move a prática dessas professoras se expressa num
sentimento de falta, como na história de leitura de Ana. O fato de não ter tido acesso
desde a infância à literatura infantojuvenil, concretiza-se em sua busca constante por
uma trabalho pautado no fomento à leitura. Outras vezes, o que move esta prática é a
memória afetiva que relaciona a literatura infantojuvenil à momentos singulares,
perpassados pelo deslumbramento, pela fruição, vivenciados na infância, no
aconchego da família. Em todos os casos, no entanto, é inegável que a disciplina
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
oportunizou uma vivência com o texto literário infantojuvenil, possibilitou a
articulação entre teoria e prática, denotando com isso sua relevância para o curso de
Letras Vernáculas.
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JOUVE, Vincent. A leitura. Trad. Brigitte Hervot. São Paulo: Ed. Unesp, 2002.
MOISÉS, Massaud. Conceito de Literatura. In: ______. A criação literária-poesia. São
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PAIVA, Aparecida; MACIEL, Francisca; COSSON, Rildo (Coord.). Literatura: ensino
fundamental. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010,
p. 41-54 (Coleção Extrapolando o Ensino).
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA. Departamento de Ciências Humanas e
Tecnologias – DCHT – Campus XXII. Colegiado de Letras. Projeto do Curso de
Licenciatura Plena em Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas
para fins de reconhecimento. Euclides da Cunha, 2009.
187
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
188
JORNAIS BAIANOS E REMINISCÊNCIAS:
LEITURAS SOBRE A DITADURA MILITAR
Brígida Prazeres dos Santos
Bolsista - IC –FAPESB – UFBA
[email protected]
Eliana Correia Brandão Gonçalves
UFBA
[email protected]
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre as memórias da censura às obras
artísticas historiadas em jornais baianos, que apresentam os registros de momentos
vividos pelos sujeitos na ditadura militar e o movimento repressivo que marca esse
regime ditatorial, em especial considerando o fato de que a censura tentou bloquear a
circulação de ideias tidas como perigosas para a sociedade armada. A pesquisa, que
se desenvolve a partir da leitura e da análise de registros dos regimes ditatoriais em
jornais baianos, tem por objetivo ressaltar a importância dos textos localizados e que
apresentam vestígios da repressão e da censura. A reflexão ocorre a partir da
consulta aos jornais baianos, em especial A Tarde e Jornal da Bahia, constantes no
acervo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada nos Barris, com o fim de
considerar a leitura dos relatos sobre a violência e sobre a vigilância, que não foram
silenciados durante esse período histórico. Para tanto, foram necessários alguns
aportes teóricos referentes às questões sobre acervos documentais, memória, regimes
ditatoriais e censura, entre os quais Le Goff (1996), Soares (1988), Brettas (2010) e
Araújo (2015). Os jornais viabilizaram o resgate dos arquivos e das memórias, mesmo
com a censura, cumprindo seu papel de dispositivo de manipulação ideológica
referente aos interesses da sociedade armada. Este fato fica claro nesta pesquisa, já
que alguns jornais investigados estão em circulação até hoje, como os que foram
objeto da pesquisa, enquanto outros não suportaram a pressão da época visto que a
censura não teve o mesmo efeito sobre os diferentes tipos de jornais e revistas,
comprometendo alguns relativamente pouco e condenando outros ao fechamento. É
preciso lembrar que, muitas vezes, o mecanismo de repressão do governo nem
precisava chegar a anular a publicação de uma matéria pronta, pois os próprios
editores e jornalistas sabiam que tipo de notícia poderia inflamar os ânimos dos
representantes do regime. Nesse contexto, em alguns casos, antes da notícia ser
divulgada, era comum que os censores enviassem bilhetes ou fizessem ligações,
determinando às notícias que não iriam para as páginas de jornal, já em outras
situações, a visita de um censor empreendia um controle ainda maior. Por fim, vale
ressaltar que, apesar da imprensa ter sido alvo da censura durante a ditadura
instaurada pelo golpe civil-militar de 1964, seu papel enquanto testemunho, isto é,
tudo aquilo que pode evocar o passado histórico, continuou sendo de grande valia
para o resgate e a leitura de parte da história de silenciamento e de repressão dos
sujeitos na ditadura militar.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
PALAVRAS-CHAVE: leitura; jornais; memória; regime ditatorial; violência.
1 APRESENTAÇÃO
Este artigo consiste em dar notícias sobre a pesquisa com o mapeamento dos
vestígios de memórias da ditadura militar presentes nos jornais baianos, durante as
décadas de 60-70, que tem sido desenvolvida desde 2014, com o auxílio de bolsa de
IC da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB, no curso de
Letras da Universidade Federal da Bahia - UFBA.
A pesquisa está vinculada ao projeto intitulado Arquivos culturais e
construção do léxico: a vigilância nos regimes ditatoriais, coordenado pela Profa.
Dra. Eliana Brandão (UFBA) que tem, entre outros, o objetivo de ler e reavaliar fontes
testemunhais, históricas ou ficcionais, presentes em jornais brasileiros, que divulgam
relatos sobre a memória da violência e da vigilância, durante a vigência da ditadura
militar, entre as décadas de 60 – 80 (1964-1985).
190
A censura implementada na ditadura tentou impedir a circulação de vários
conceitos considerados subversivos nos jornais. Dessa forma, é necessário resgatar e
analisar os relatos da censura dos regimes ditatoriais presentes em jornais baianos,
pois os textos da imprensa são considerados como testemunhos das memórias da
violência e do silenciamento.
A leitura e a reflexão sobre os registros ocorrem a partir da consulta aos
jornais baianos, em especial A Tarde e Jornal da Bahia, constantes no acervo da
Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada nos Barris, com o fim de considerar
a leitura dos relatos, sobre a violência e sobre a vigilância, que não foram silenciados
durante esse período histórico. Até o presente momento na pesquisa, foram
analisados 14 textos localizados nos referidos jornais, que se configuram como fontes
de contestação e resistência, devido à tentativa de registrar tais ocorrências, mesmo
estando sob vigilância e sofrendo a censura de forma a não poder publicar certas
matérias que fossem tidas como afronta ao governo.
Para facilitar a seleção e organização dos dados coletados na pesquisa em
jornais baianos, os textos localizados foram organizados em fichas catalográficas,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
permitindo assim reflexões e debates acerca da importância das fontes documentais
como documento de fatos históricos distanciados do nosso tempo, mas que se
refletem na constituição política, social e cultural de nosso país.
2 DITADURA E CENSURA
Com a catalogação e análise de registros de memórias de regimes ditatoriais
em jornais baianos, a pesquisa ressalta a importância dos textos registrados em
jornais baianos que apresentam vestígios da censura e repressão vividas no período
ditatorial das décadas de sessenta e setenta, visto que a censura tentou impedir a
circulação de várias ideias consideradas subversivas para a sociedade armada. Os
jornais foram investigados por tratarem de documentos, isto é tesouros da memória
que arquivam vestígios desse momento sombrio de nossa sociedade, momento de
violência em suas variadas faces, e momentos de silenciamentos de vozes.
Foi necessário compreender a importância dos arquivos como um documento
de memórias não vividas e para isto foi indispensável um referencial sobre a
memória dos regimes ditatoriais nos jornais baianos, a partir do aporte teórico de
Luca (2008), Berg (2002), Gonçalves (2015), Santos (2012), Le Goff (1996), Brettas
(2010) e Milanesi (1986).
O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o
governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar
brasileira (1964-1985). Vigorou por dez anos, ou seja, até dezembro de 1978 e
produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento
mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir
arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.
191
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Figura 1 - Há 44 anos militares decretaram o AI-5
Fonte – SICA (2012, p. 1)
Para Berg (2002) a repressão foi causada por um regime militar que ditava
regras de forma violenta, este regime foi marcado pela tortura, pela arbitrariedade
policial, elevando assim os poderes do presidente em detrimento dos direitos civis,
dentre eles o direito à expressão. Para os regimes autoritários, nos quais foi
importante um controle ideológico ao lado da repressão, os instrumentos necessários
192
para este momento foram dois em especial: a propaganda e a censura.
Considerando a afirmação de LUCA (2008, p. 129), “não há como deixar de
lado a censura. Em vários momentos, a imprensa foi silenciada, ainda que por vezes
sua própria voz tenha colaborado para criar as condições que levaram ao
amordaçamento”. Percebe-se que a censura teve um papel histórico decisivo, pois foi
um aparelho de manipulação ideológica alusiva aos interesses da sociedade armada,
contudo, os jornais viabilizaram partes do resgate dos arquivos, resquícios das
memórias de vozes emudecidas pelo regime ditatorial.
Berg (2002, p. 17) ainda afirma que “a censura teve um papel determinante,
pois, foi um dispositivo de manipulação ideológica referente aos interesses da
sociedade armada, em especial o papel da censura, foi o de expor o discurso do
regime”. Para a autora a censura poderia ser vista através de três níveis: censura
preventiva, que era prévia normalmente, percebida nas páginas de roteiros e nos
vazios de jornais; censura coercitiva, tinha a função de reprimir invadindo teatros,
espancando, ameaçando e prendendo os artistas; e por fim a censura punitiva, que
no mínimo exilava e no máximo matava (BERG, 2002, p. 36).
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Percebe-se que a censura teve um papel histórico decisivo, pois foi um
aparelho de manipulação ideológica alusiva aos interesses da sociedade armada,
contudo, os jornais viabilizaram partes do resgate dos arquivos, resquícios das
memórias de vozes emudecidas pelo regime ditatorial. Esses jornais resgatam parte
dos tesouros da reminiscência de um tempo pretérito, mesmo estando sob vigilância,
tendo que, por muitas vezes, “preencher” suas páginas com os espaços em branco ou
ocupado por receitas causando assim uma oposição ao governo.
Figura 2 – Censura, nunca mais!
193
Fonte – Imprensa Livre (2011, p. 1)
Os jornais são tidos como testemunho dos momentos de violência e de censura
do militarismo, em especial por conseguirem registrar vestígios dessas ocorrências
mesmo estando sob a vigilância. Com a censura, muitos jornais não podiam publicar
matérias que fossem tidas como afronta ao governo. Assim, para Gonçalves (2015, p.
569)
As fontes documentais ganham olhares e espaços, no sentido de
promover a divulgação de fatos que até então estavam apagados.
Nessa reavaliação, o arquivo ganha o seu lugar de destaque, nos
debates linguísticos e culturais, passando a compor fundos
específicos, com documentos de arquivos públicos e privados.
Assim, para se estudar a censura, é necessário conhecer a sua trajetória, para
avaliar se houve continuidade ou descontinuidade nos métodos sensórios. E, para
repensar essa questão é preciso investigar os fundamentos teóricos e os valores
impostos e incorporados pelos militares, tidos como os detentores do poder, pois “os
militares no poder comportaram-se como se estivessem realmente em uma guerra, na
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
qual é preciso não só identificar para si o inimigo, mas torná-lo visível perante a
Nação e transformá-lo em inimigo desta.” (BERG, 2002, p. 36)
3 LEITURA, BIBLIOTECA E ACERVO DE JORNAIS
Segundo Brettas (2010, p. 101), a biblioteca pública é uma instituição social e
cultural e por esse motivo uma ordem social dominante influencia ou determina a
trajetória dessa instituição, principalmente no que diz respeito à constituição do
acervo e ao controle e acesso à informação nele contida. Desse modo, a função de
uma biblioteca, entre outras, é guardar um acervo cuja informação registre parte da
memória escrita de um grupo social e o modo como é organizada e consultada pode
influenciar uma coletividade, em sua maneira de se identificar e de se comportar
diante de outros grupos sociais (identidades) e na formação de suas idéias
(ideologias).
Uma
194
biblioteca
pública
é
um
centro
de
informações
atuando
permanentemente, atendendo à demanda da população, estimulando o processo
contínuo de descobrimento e produção de novas documentos, “organizando a
informação para que todo ser humano possa usufruí-la”. (MILANESI, 1986, p. 15)
E é exatamente esse fato que chama atenção com a pesquisa com acervos de
jornais, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada no centro da cidade, no
bairro dos Barris. Esta biblioteca pública oferece um mundo de informações e
conhecimento para todos, devolvendo, ao mesmo tempo, ao povo baiano, sua
memória através de um enorme acervo e um banco de dados relativamente
atualizado, visto que “o documento é tudo aquilo que pode evocar o passado” (LE
GOFF, 1990, p. 536)
Basicamente a pesquisa com jornais tem sido desenvolvida no Setor de
Notícias da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, no qual são abrangidos jornais e
revistas.
Figura 3 - Biblioteca Pública do Estado da Bahia recebe Encontro de Escritores
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Fonte – AUGUSTO (2014, p. 1)
Na pesquisa, estão sendo selecionadas e organizadas matérias de jornais
baianos publicados na década de setenta, particularmente A Tarde e Jornal da Bahia,
que apresentem textos que registrem contestação e resistência no contexto cultural,
teatral, literário etc.
Segundo Le Goff (1990), memória significa lembrança, recordação, e o homem
necessita recordar, lembrar, rememorar, pois deseja que algo permaneça. A memória
é responsável pela articulação dos grupos sociais com o tempo, uma vez que, mais
que guardiã do passado, ela permite a relação deste com o presente e o planejamento
do futuro. Ao avaliar o passado, o homem ou o grupo social pode verificar quais os
equívocos que atrapalharam a sua trajetória, para não cometê-las novamente. Pode
também verificar os acertos e as coisas boas realizadas, e perpetuá-las. O passado, no
entanto, é construído e reconstruído a todo o momento e a memória não é estática e o
seu processo “faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura
desses vestígios” (LE GOFF, 1990, p. 424).
Parte dos registros da produção cultural e literária, elaborados durante a
vigência de regimes ditatoriais, encontra-se disperso e esquecido em jornais baianos
de ampla circulação. Assim, é importante a busca dessas fontes documentais no
sentido de selecionar, organizar e descrever esses textos, localizados em arquivos
públicos, que relatam as memórias de um período de censura, por meio da vigilância
a vários segmentos artísticos e sociais, pois de acordo com Gonçalves (2015, p. 557):
195
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Os textos escritos sob a vigência da censura enfocam uma realidade
diferente, marcada pela disciplina, submissão e interdição, construída
a partir de uma mistura de memórias da repressão, mas, ao mesmo
tempo, ideais de liberdade e desejo de poder. [A ditadura militar no
Brasil foi] (...) uma época que afetou a concepção ideológica, social,
linguística e artística da nossa sociedade. Assim, questões atinentes à
guerra, à política, às prisões, entre outras, podem ser interpretadas à
luz das referências ao contexto histórico, social, cultural e geográfico
da época, mas também elas poderão ser vistas à luz dos signos
utilizados na época e dos conteúdos significativos que eles vinculam.
É possível, dessa forma, conceber uma realidade organizada pelos
signos. Assim, nenhum discurso é decisivo, mas temporário, pois ele
reflete o momento vivenciado daquela realidade, até mesmo porque
linguagem é ação que se concretiza na prática do discurso.
Os jornais registraram parte da atuação da censura que tentava impedir a
circulação de produções consideradas subversivas ou parcialmente subversivas.
Assim, “não há como deixar de lado a censura. Em vários momentos, a imprensa foi
silenciada, ainda que por vezes sua própria voz tenha colaborado para criar as
condições que levaram ao amordaçamento”. (LUCA, 2008, p. 129) Para tanto, é
196
imprescindível resgatar e sopesar os relatos destes resquícios de memória da censura
dos regimes ditatoriais presentes em jornais baianos.
Figura 4 - DITADURA MILITAR: A GRANDE IMPRENSA NÃO AFRONTOU
Fonte – ANJOS (2014, p. 1)
Para tanto, é imprescindível resgatar os relatos da censura dos regimes
ditatoriais presentes em jornais baianos, pois os textos da imprensa são considerados
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
como
testemunhos
das
reminiscências
da
violência
e
do
silenciamento.
(GONÇALVES, 2015) Assim,
O papel desempenhado por jornais e revistas em regimes autoritários
como o Estado Novo e a ditadura militar, seja na condição difusor de
propaganda política favorável ao regime ou espaço que abrigou
formas sutis de contestação, resistência e mesmo projetos
alternativos, tem encontrado eco nas preocupações contemporâneas,
inspiradas na renovação da abordagem do político. (LUCA, 2008,
p.129)
Segundo Santos (2002, p. 21) os jornais são testemunhos/monumentos, isto é,
memórias que representam o movimento de repressão e censura do período
ditatorial e que tinham sobretudo o intuito de impedir a circulação de ideias ditas
perigosas ou subversivas.
4 RESULTADOS DA PESQUISA COM A LEITURA DE JORNAIS BAIANOS
197
A partir da seleção e organização dos dados coletados nos jornais, entre 20142015, com os jornais A Tarde e Jornal da Bahia, constantes no acervo público da
Biblioteca Central do Estado da Bahia, foi composto um catálogo informatizado,
permitindo assim reflexões acerca da importância das fontes documentais.
Entretanto, por se tratar de uma época de censura, muitos jornais foram examinados,
porém sem êxito quanto ao achado às informações relevantes para a pesquisa.
Alguns números dos jornais de 1968 e 1969, não foram disponibilizados para
leitura no acervo da Biblioteca Central do Estado da Bahia, devido a não existirem ou
por estarem em um estado degradado e por isso sem ter a possibilidade de consulta
por parte dos leitores. Foram os casos dos exemplares do jornal A Tarde, do mês de
dezembro de 68 e dos meses de janeiro e fevereiro de 69. O Jornal da Bahia
apresentou uma condição de conservação melhor do que a do jornal A Tarde, no
entanto observou-se que o referido jornal foi menos ousado e não registrou, no
período analisado, tantas matérias que servissem para a leitura da vigilância e da
violência no âmbito artístico e cultural.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Assim, foram consultados 824 jornais e destes 14 textos foram selecionados
nas seções dos jornais, todos de A Tarde. Para sistematizar a pesquisa, foram
elaboradas fichas catalográficas para organizar os textos encontrados na pesquisa e
constituir catálogo com os vestígios dessas memórias. Os registros foram
organizados da seguinte forma:
1. No topo da ficha, encontra-se a referência completa do jornal (jornal, seção, coluna,
data, ano, número da edição, pagina e acervo onde foi localizada a matéria); 2. Na
linha abaixo, em colunas separadas: título da matéria; assunto; seção; e outras
informações (registra se a matéria traz texto e imagem, se foi assinada, isto é,
creditada a alguém etc.);
3. Na sequência, nas linhas que se seguem, separadamente: imagem digitalizada (facsímile) do texto selecionado; descrição do jornal; resumo da matéria; e transcrição da
matéria.
Segue exemplo:
Figura 5 – Exemplo de Ficha - Catálogo
198
REFERENCIA: A Tarde. Política e políticos, segunda coluna. Bahia, Salvador, sexta-feira, 08 de março de 1968,
nº 18586, p.3. Acervo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia.
TÍTULO
Livro
do
escritor
apreendido em Ilhéus.
baiano
foi
ASSUNTO
SEÇÃO
OUTRAS INFORMAÇÕES
RELEVANTES
Produção
literária
censurada “Raio X
de uma Cidade” de
Creso Coimbra
Política e
políticos
Texto escrito acompanhado de
imagem e sem créditos
autorais.
IMAGEM DIGITALIZADA
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
199
DESCRIÇÃO DO JORNAL
Recorte de Jornal. Ao centro, título da matéria, “Raio X de um cidade”, constante na seção Política e políticos.
Texto em duas colunas, contendo 20 linhas na primeira e 17 na segunda coluna, constando ao todo um total de
37linhas.
RESUMO DA MATÉRIA
O livro “Raio X de uma cidade”, de autoria de Creso Coimbra, lançado em Itabuna, Salvador e Ilhéus, foi
apreendido pelo subdelegado de polícia federal de Ilhéus, sob a alegação de ser imoral, pois continha palavras
pornográficas.
A apreensão ocorreu na segunda-feira, num depósito pertencente ao encarregado pela distribuição do livro,
em Ilhéus. Cem volumes foram apreendidos pelos prepostos da subdelegacia de polícia federal, os quais não
deram recibo da apreensão. Os policiais mantiveram clima de apreensão no seio da população, ameaçando
com prisão a quem vendesse ou comprasse o livro.
TRANSCRIÇÃO DA MATÉRIA
Livro de escritor baiano foi apreendido em Ilhéus
O livro ” Raio X de uma cidade” de autoria de Creso Coimbra, lançado, recentemente em Itabuna, Salvador e Ilhéus, foi
apreendido pelo subdelegado de Polícia Federal de Ilhéus sob
a alegação de que é amoral pois contém palavras pornográficas.
A apreensão ocorreu na sedências contra a arbitrariedagunda-feira, num depósito perde praticada pelos policiais.
tencente ao encarregado pela
Falando à reportagem de A
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
distribuição do livro em Ilhéus.
Cem volumes foram apreendidos pelos prepostos da subdelegacia de Polícia Federal os
quais não deram recibo da
apreensão. Os policiais mantêm um clima de apreensão no
seio da população, ameaçando
com prisão a quem vender ou
comprar o livro.
O escritor Creso Coimbra
Esteve, ontem, na Justiça Federal pedindo imediatas provides de autógrafos em Salvador.
TARDE, Creso Coimbra disse
que se o uso de palavra de
baixo calão em obras literárias
fôsse motivo de apreensão, os
escritores Jorge Amado, Erico
Veríssimo e Nelson Rodrigues,
jamais poderiam ter dado ao
público as magnificas obras
que ultimamente têm deleitado
a milhões de brasileiros cultos.
Reagindo contra a apreensão
ilegal, Creso Coimbra fará
dentro de breves dias uma tar-
Esses arquivos analisados são de grande importância para se fazer uma
releitura de fatos históricos e culturais, pois a violência muitas vezes é entendida
como agressão física apenas, mas ao analisar os textos de jornais produzidos na
ditadura militar fica muito nítida as várias faces da violência, por meio do
silenciamento. Como exemplo, foi localizada uma seção em branco de um número de
um jornal; e uma receita, registrada, de forma desordenada, em uma sessão não
apropriada para esse tipo de registro. Além disso, foram localizadas notícias de livros
200
de escritores apreendidos, de cantores exilados, de estudantes presos em sala de aula,
de manifestações em praça pública de pessoas, enfim de peças apreendidas e
proibidas de serem exibidas em todo território brasileiro e do impedimento da livre
expressão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa com jornais baianos tem apresentado resultados importantes para
a leitura dos textos produzidos nos regimes ditatoriais. Por se tratar de uma pesquisa
com registros de décadas pretéritas, a conservação dos jornais é também uma
questão a se preocupar, pois os mesmos estão, em sua maioria, em situação precária
já que se encontram rasgados, algumas folhas estão soltas e, em muitos casos, sem a
folha de capa e ̸ou cortados da dobra para baixo, causando a perda de informações.
Em suma, os jornais apresentam algumas imagens desgastadas, devido ao
tempo, causando uma captura fotográfica sem tanta qualidade. Esse fato pode
acontecer por não haver um acompanhamento por parte dos responsáveis pelo
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
acervo quanto ao modo de utilização correta dos jornais antigos que rasgam com
facilidade. Uma possível solução para driblar as perdas de jornais presentes em
acervos públicos é a digitalização destes jornais antes que se percam por completo e
seja impossibilitada a sua leitura por parte dos leitores.
Figura 6 – Exemplo da conservação precária de jornais baianos - Jornal A Tarde,
maio de 1968
Fonte: Acervo da Biblioteca Central do Estado da Bahia - Barris
201
Por fim, considerando que os acervos são centros de informação, por definição
será um instrumento de desordem, contudo possuem múltiplos discursos que se
desdobram ao infinito, propondo alguns caminhos que deixam a pesquisadora com a
possibilidade de avaliar esses contextos e desenvolver suas leituras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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VINTAGE
da memória à literatura
Cláudio do Carmo
Universidade do Estado da Bahia/UNEB;
[email protected]
RESUMO
Esta comunicação se assenta na investigação que busca na arquitetura da memória e suas
relações no âmbito da literatura um ponto de congruência. Para tanto, procede-se a uma
revisão do passado e suas fulgurações no âmbito das representações. Daí supor, que a
memória constitui uma reconstrução em termos atuais deste passado e que, por sua vez, se
ancora e se abastece na atual crise do presentismo (CANDEAU, 2014). O vintage, expresso
no deslocamento da experiência vivida, que passa a ser apropriada por gerações que não a
viveram é o mote para a experiência narrativa, especialmente contemporânea. Neste sentido,
o romance “Fim” de Fernanda Torres, cuja temática sugere a ideia de geração é propícia a
este apontamento ao mapear as possibilidades teóricas que dão sustento à memória e buscar
nas relações sedimentadas no âmbito do constructo literário, seja na forma textual, seja no
conteúdo subjacente aos textos literários o sentido para o entendimento da literatura como
prática cultural e social. Nesse sentido, a geografia do texto literário caracterizada pelo lugar
de interseção entre espaços empíricos constituídos e aqueles imaginados, constitui o entrelugar que produz relatos e representações das mais constantes, emergindo e fazendo emergir
daí uma memória de contornos imprecisos a memória e suas formulações literárias, estejam
elas nos textos, nos autores, na estética dos livros, na vida cultural. Em seguida, mapeado as
teorias que dão sustento à memória, busca-se estabelecer as relações sedimentadas no âmbito
do constructo literário, seja na forma textual, seja no conteúdo subjacente aos textos
literários. Nesse sentido, a geografia do texto literário caracterizada pelo lugar de interseção
entre espaços empíricos constituídos e aqueles imaginados, constitui o entre-lugar que
produz relatos e representações das mais constantes, emergindo e fazendo emergir daí uma
memória de contornos imprecisos A literatura, assim, é entendida como registro de campo,
na concepção tomada a Pierre Bourdieu, cujo sentido se estabelece a partir de um
pertencimento e propicia que a prática literária, como cultura, interfira na construção,
refutando a crença numa reflexão passiva e mesmo determinista. O vintage é apropriado por
gerações que não o viveram e esta é a tônica de sua especificidade, pois assenta-se numa
aplicação carregada de ressignificação, cuja estética inadequada legitima seu pertencimento
ao ser retomada por tempos contemporâneos. Tal estética, vintage, é sentida em narrativas as
quais buscam retomar um repertório que se esmera nas argumentações consolidadas, ao
referir-se a enredos que dialogam com o tempo contextual, mas que não precisamente ao
contexto contemporâneo e sim ao passado, como se o tempo vivido estivesse sendo
retomado e recuperado ( sem erros) na atualidade.
PALAVRAS-CHAVE: vintage; memória; Fim; literatura contemporânea.
Um passado que não existe. Contraditória, a memória não é o passado, é uma
reconstrução do passado, que mantém uma infidelidade ao que aconteceu. Em outras
palavras, a memória atualiza o passado sem se comprometer em transformar este
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
passado em verdade. Neste sentido a capacidade de apreensão deste passado é que
faz com que esta memória seja mais ou menos relevante. Vale lembrar que a
memória não é um conteúdo em si, algo concreto que se possa pegar, mas antes uma
estratégia, um meio, um dispositivo, ou poderíamos assinalar uma força invisível
que aciona certos mecanismos de atuação na realidade. Embora Michel Foucault
nunca tenha definido propriamente o termo dispositivo, este encontra-se disperso em
sua obra, sobretudo a partir dos anos setenta, conforme assinala AGAMBEM (2010,
p. 29):
É um conjunto heterogêneo, linguístico e não linguístico, que inclui virtualmente
qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de
polícia, proposição filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se
estabelece entre esses elementos.
Esta estratégia, dispositivo, é fundamental na compreensão do alcance da memória,
enquanto capacidade de se manifestar e objetivar materialmente qualquer
possibilidade, inclusive de interferência na realidade. “O dispositivo tem sempre
uma estratégia concreta e se inscreve sempre numa relação de poder, como tal,
204
resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber.” (op. cit. 2010,
p.29.) Fica claro, pois que a manifestação tem a real necessidade de materialização e é
o que acontece com a memória que dotada desta capacidade, pode ser, com efeito,
expressa no patrimônio, no texto literário, nas relações sociais e ou pessoais, enfim,
na linguagem. Outrossim, esse dispositivo revelado pela memória guarda em si uma
relação de poder que interfere decisivamente nas representações daí decorrentes.
Não há dúvida sobre certo consenso que posta a memória como uma atualização
constante e permanente do passado, e se é assim, podemos sublinhar que o passado
estará sempre atuando concomitante ao presente e modificando-o. reside aí, nesta
ligação inexorável entre passado e presente o sentido significativo da memória.
Se as memórias representam sobretudo heranças, ou seja, relações diretas que se dão
através do tempo, é natural que tais relações se mostrem modificadas por uma série
de interferências que acabam por constituir a base mesma de qualquer tipo de
memória. De outro modo, as memórias se diferem pelo nível de interferência em suas
constituições, embora, como anota POLLAK (1992, p.202), “Se destacamos essa
característica flutuante, mutável, da memória, tanto individual quanto coletiva,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
devemos lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos
relativamente invariantes, imutáveis.” Desta maneira, o afastamento temporal ou
espacial da memória original, nos leva a ambiguidade de ter algo que em nada se
parece com memória e ao mesmo tempo conserva traços que sublinham uma
estrutura memorialística.
Pode parecer estranha a afirmação, se estamos falando de memória, e estamos, que
embora a memória se abasteça do passado e seu principal repertório gire em torno
deste passado, é cabível a suposição da inexistência do passado. Se é assim, o acesso
a suas fulgurações se dá no âmbito das representações. Daí supor, que a memória
constitui uma reconstrução em termos atuais deste passado e que, por sua vez, se
ancora e se abastece na atual crise do presentismo (CANDEAU, 2014).
A categoria memória, então, é submetida a uma série de percalços que a atualizam,
dentre estas ganha forma uma expressão estética intitulada vintage. O termo não é
novo e tem sua origem, francesa, expressa na ideia de deslocamento da experiência
vivida, que é empurrada para um tempo posterior, embora permaneça com
elementos fundamentais de um tempo remoto, numa espécie de transtorno da
memória que ascendeu principalmente nas últimas duas décadas.
O vintage é apropriado por gerações que não o viveram e esta é a tônica de sua
especificidade, pois assenta-se numa aplicação carregada de ressignificação, cuja
estética inadequada legitima seu pertencimento ao ser retomada por tempos
contemporâneos. Tal estética, vintage, é sentida em narrativas as quais buscam
retomar um repertório que se esmera nas argumentações consolidadas, ao referir-se a
enredos que dialogam com o tempo contextual, mas que não precisamente ao
contexto contemporâneo e sim ao passado, como se o tempo vivido estivesse sendo
retomado e recuperado ( sem erros) na atualidade. Nesse sentido, a geografia do
texto literário caracterizada pelo lugar de interseção entre espaços empíricos
constituídos e aqueles imaginados, constitui o entre-lugar que produz relatos e
representações das mais constantes, emergindo e fazendo emergir daí uma memória
de contornos imprecisos, já que se situa num passado que inexiste e somente tem
alcance imaginário.
O passado
que se faz ausente, ao mesmo tempo que é
205
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
representado e recuperado a partir do presente, interfere no corpo agindo nas
disposições que ele produziu. Pierre Bourdieu (2001, p.184), completa:
O habitus, produto de uma aquisição histórica, é o que permite a
apropriação do legado histórico. Assim como a letra só deixa de ser
letra morta pelo ato de leitura que supõe uma aptidão adquirida para
ler e decifrar, a história objetivada (nos instrumentos, monumentos,
obras, técnicas etc.) somente consegue converter-se em história
atuada e atuante quando é assumida por agentes que, por conta de
seus investimentos anteriores, se mostrarão inclinados a se interessar
por ela e dotados das aptidões necessárias para reativá-las.
Uma vez adquirida, a história, ela estará, por força do hábito presentificada nas ações
continuamente. Esta aquiescência, envolve variados sentidos e formas de
experiência, tais como a bagagem intelectual, o conhecimento e múltiplos aspectos da
vida social e comportamento. Aprendemos pelo corpo e é através dele que as
injunções sociais regulares se apresentam, através de ritos que tendem a inscrever os
sexos nos corpos. A própria distinção entre masculino e feminino, é uma das mais
notórias atividades do corpo que age de maneira a marcar explicitamente, em que
206
pese o tautologismo, as categorizações sociais. Assim, o corpo, materializa a memória
e constitui dos mais celebrados constituintes políticos, asseverando a qualificação da
memória como política, através de uma protomemória que na palavra de Candau,
(2014, p.23 ) é “uma memória de baixo nível que não pode ser destacada da atividade
em curso e de suas circunstâncias, pois constitui os saberes e as experiências mais
resistentes e mais bem compartilhadas pelos membros de uma sociedade.”
O vintage, como uma expressão estética relacionada ao tempo, atua politizado
também, já que constitui uma metáfora da memória, e como sabemos, as expressões
políticas estão carregadas do argumento memorialístico, como mnemotécnicas
atuando no pano de fundo e estruturante dos acontecimentos.
As relações entre política e literatura de maneira mais explícita são antigas e
necessariamente remetem a memória como condição de liame entre as duas
categorias. Modernamente, data do século XIX o estreitamento dessa relação,
sobretudo com o caso Dreyfus na França e o célebre manifesto “ j’acuse” de Emile
Zola
Em linhas gerais, o manifesto de Zola, representou não só a indignação, mas
também a inserção do escritor no campo político. Como se sabe a memória é um
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
conceito que envolve muitos desdobramentos, se configurando, inclusive em
verdadeiras teorias da memória, no sentido de explicá-la. O que nos leva a concluir
que existem memórias, que embora oriundas de um tronco comum, seja por uma
leitura mitológica, social, psicológica, filosófica, entre outras, podem assumir
diferenças fundamentais que aparentam uma distância profunda de possível origem,
causando um mascaramento inclusive na sua própria condição. De outro modo, o
mascaramento da memória faz com que esta se desassemelhe, podendo assumir
condições outras várias, sendo a mais notória destas condições o esquecimento, além
de uma não-memória. Assim, podemos falar em teorias da memória, que abarcam
um vasto campo que vai desde uma episteme filosófica até ao mais antigo
conhecimento sobre memória, passando por tratativas de cunho espiritual ou
religioso, destacando o mito como forma arcaica e original. No entanto, em tempos
mais recentes a memória se ampliou em concepções que buscam explicar o mundo e
os acontecimentos, desdobrando-se naturalmente numa visão de aspecto mais
pedagógico, as mnemotécnicas, bem como com o advento das novas tecnologias a
memória se explica por fenômenos mecânicos de caráter neurológicos e sistêmicos.
Outrossim, é mister relacionar o alcance da memória ao campo cultural, que suscita
uma série de interpretações e dá-lhe uma condição de relevância ao destacar algo que
parecia restrito a campos tão distintos como exóticos. A cultura como prática política
se manifesta mais evidente nas formas de relação pessoal, mas o alcance da memória
influi, lê e explica as expressões culturais, já que sua existência é agudamente
percebida. Com efeito, os conhecimentos sobre memória ampliam e refundam uma
espécie de historicidade na qual o vintage é um sintoma mais evidente, quando
questiona os parâmetros e mesmo a projeção da memória.
Na origem, a memória em descrição mitológica, se confunde com Mnomósine que
seria sua personificação e tem o significado primevo de lembrar-se. Fora amante de
Zeus, dando origem as nove musas, concebidas a partir do pedido dos deuses, que
derrotados os Titãs, argumentam da necessidade de cantar condignamente a grande
vitória. Assim, após esposar Mnemósine durante nove noites consecutivas, concebe
as nove musas que tem variadas funções relacionadas à lembrança. Tal narrativa
mitológica é a base para entendermos como a atuação do tempo interfere e produz o
207
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
relato literário. A criação literária se fundamenta na memória e é através dela que o
tempo age, sendo capaz de justapor, fundir e relacionar memórias e tempos diversos.
A anotação do poeta Hesíodo dá bem a dimensão da função exercida pelas musas
como metáfora da memória na ação do tempo:
São as Musas que acompanham os reis e ditam-lhes palavras de
persuasão, capazes de serenar as querelas e restabelecer a paz entre os
homens. Do mesmo modo, acrescenta o poeta de Ascra, é suficiente
que um cantor, um servidor das Musas celebre as façanhas dos homens
do passado ou os deuses felizes, para que se esqueçam as inquietações
e ninguém mais se lembre de seus sofrimentos. (BRANDÃO, 1986,
p.203)
Nota-se que o mito fundador da memória continua a formular os conceitos e
definições que a envolvem. Sua vinculação às artes, a faculdade quase sobrenatural
208
de lembrar e criar mundos elegíveis e perfeitos, a atração que exerce sobre os
homens. A memória, então, partindo desta concepção mitológica que permanece
como uma herança a fundamentar todo o conceito percorrido em plena
modernidade, chega à contemporaneidade suscitando abordagens por vezes
contraditórias, mas que a colocam como um dos aspectos primordiais da cultura
contemporânea.
A ideia de geração é fundamental no estabelecimento da noção do vintage e sua
consequente aplicação literária. A geração como se sabe, pressupõe a sucessão de
épocas ligadas pelo tempo e materializadas em algum tipo de valor, seja este afetivo,
ou assentados em heranças visíveis como comportamento, indumentária e a
transmissão de experiências coletivas, desta maneira pode-se assegurar a geração
como matriz narrativa do vintage, já que a predisposição dos tempos é essencial para
caracterizar o repertório daí vinculado.
Vou me deter em alguns apontamentos relativos ao texto narrativo que servirá como
base para vislumbrarmos a ocorrência da memória e seu desdobramento geracional
entendido como vintage. Note-se que o texto contemporâneo é adequado a esse
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
apontamento pois configura uma atualização da memória e incorpora os tempos de
uma maneira eficaz. A propósito, o entendimento de contemporâneo é essencial para
uma completa compreensão, já que a atuação da memória como um dispositivo que
aciona o tempo em sobreposições é crucial neste processo. AGAMBEM (2014, p.5859) sugere que:
É verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide
perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões
e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso,
exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo,
ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender seu
tempo.
O estudo parte da narrativa “Fim” de Fernanda Torres, cuja temática sugere a ideia
de geração e a precisão fronteiriça entre memória e identidade. Tal obra parece
traduzir realidades em que a competência discursiva a transforma não somente em
representação urbana como lugar de vivência ficcional, ou seja, espaço de encenação
real ficcionalizado, mas também como lugar imaginado que se faz real a partir da
ficção, na medida em que “interpela” este mesmo real. Uma literatura de condição
estética vintage, por ser o território do encontro, do entre-lugar de tempos e espaços,
vale dizer, há um encontro entre as teorias que informam a memória e suas
formulações literárias, estejam elas nos textos, nos autores, na estética dos livros, na
vida cultural.
Vamos encontrar esse entendimento em narrativas literárias contemporâneas, que
sugerem um rompimento entre gerações, como é o caso do romance intitulado “Fim”
de Fernanda Torres, publicado em 2013, cuja temática sugere a ideia de geração e a
precisão fronteiriça entre memória e identidade. Tal obra parece traduzir realidades
em que a competência discursiva a transforma não somente em representação urbana
como lugar de vivência ficcional, ou seja, espaço de encenação real ficcionalizado,
mas também como lugar imaginado que se faz real a partir da ficção, na medida em
que “interpela” este mesmo real.
Uma literatura de condição estética
contemporânea, cujo teatro da memória se movimenta em um território de encontro,
do entre-lugar de tempos e espaços.
209
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O livro é despretensioso. Longe de ser uma obra-prima, tem a contradição
assegurada no fato da autora Fernanda Torres, ser atriz originariamente de sucesso e
ter a primeira incursão no campo literário. A contradição se estabelece porque a um
só tempo representa um capital não desprezível na aceitação da obra, mas também
um fator de desconfiança pela origem apartada das letras. No entanto, é justamente
esta marca fronteiriça ou contraditória que pode nos interessar na medida em que
sinaliza uma das constantes da literatura contemporânea. Não esperemos uma obra
fundamental para a vida do leitor, nenhum romance de fundação, mas incrivelmente
nossa expectativa e percepção, ainda assentados no paradigma moderno, recaem
sobre um modo de ver e sentir que não entusiasma. Temos, então, uma narrativa
que traz as marcas constantes da estética contemporânea. E neste sentido a autora
deixa bem claro que é e está contando uma história, não temos mais aquela pretensa
ilusão de realidade moderna, muito pelo contrário, o texto se ironiza o tempo todo,
parecendo buscar uma inverossímil convicção que no fundo soa como vida da gente.
O aspecto político já se desenha nesta dicção da autora, ao deixar à mostra um rastro
210
da vivência que flerta frequentemente com o ficcional.
O romance trata da história de cinco amigos: Álvaro, Sílvio; Ribeiro; Neto e Ciro, que
relatam através de um narrador em 3ª pessoa, na maioria das vezes, já que este
narrador se move através de pontos de vista múltiplos, suas trajetórias,
entrecruzadas por um pano de fundo do Rio de Janeiro dos anos cinquenta,
chegando aos dias atuais. O trabalho da memória está todo aí, numa perspectiva de
trazer o passado à tona como um acerto de contas com o presente. E este acerto se dá
a partir de uma trama que se sucede relatando as efetivas agruras dos personagens,
tecendo uma espécie de cartografia afetiva da memória. Percebe-se que ao longo da
narrativa são citados e situados vários acontecimentos que se explicam e dão sentido
por que estão no Rio de Janeiro, numa clara alusão ao espaço narrativo e ao tempo da
ação como componentes literários.
As dez e meia desceu do taxi na avenida Francisco Bicalho, em frente
ao Instituto Médico Legal. O prédio exalava podridão. O cheiro ardia
nas ventas, penetrando nos poros mesmo com as narinas tapadas. O
bafo pútrido de fora piorou do lado de dentro. Não podia ter
escolhido um dia mais fresco? Irene se dirigiu à recepção, pegou a
senha e sentou-se para aguardar na cadeira de plástico. O assento
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
rachado beliscou a coxa obrigando-a a manter a perna sob vigília.
(TORRES, 2013, p.30-31)
De maneira um tanto sutil, os tempos se confundem numa mesma cena, fazendo
emergir um novo modelo que mistura elementos do passado e do presente. É
ilustrativo atentar para o espaço: “Instituto Médico legal na avenida Francisco
Bicalho”, e evidenciar que tal lugar, sabido sobretudo pelos cariocas, é uma
construção nova, especialmente feita para abrigar o novo Instituto Médico Legal e
que esta construção neste lugar existe há cerca de cinco anos, pois antes era
localizado na rua dos Inválidos, no Centro do Rio de Janeiro. Ou seja, o tempo da
narração nos remete a estes últimos anos. No entanto, a narração mistura elementos
da memória de um Instituto Médico Legal que não existe mais, que era o antigo
endereço, com cadeiras de plástico, assento rachado e, principalmente, o forte cheiro
“que exalava podridão”. Esta descrição corresponde ao prédio velho e não à nova
construção, mas para efeitos da narrativa misturou-se o tempo, numa autêntica
operação de fusão das memórias. Deste modo, as atitudes, os relacionamentos,
enfim, o comportamento e modo de ser, dos personagens se adequam a um
estereótipo carioca. Ora, a narrativa então se vale destas marcas cartográficas para se
constituir, como as que identificamos em: “ O consultório do Matos fica num edifício
comercial aqui de Copacabana lotado de médicos senis.” (op.cit, 2013, p.27). Ao que
parece não poderíamos ler esta história sem os componentes geográficos e locais que
a compõe, pois expressaria uma outra história. Assim, temos o registro indiscutível
da memória ao lidar com a narrativa, que salienta um aspecto contumaz da
contemporaneidade a relação tempo-espaço.
Tal relação, tempo-espaço, é frequentemente sublinhada ao longo da narrativa, como
se a memória só estivesse ali como adorno, como referencial vazio, não como um
dado nostálgico e permanente. Deste modo a narrativa se move entre memória e
lugares, mas sem dar o peso que outrora procuramos. Não há culpa naquilo que foi
vivido, não se quer recuperar nada:
Irene recebeu com frieza a notícia da morte do homem com quem
vivera quinze anos de sua juventude. A filha telefonou aflita de
Uberaba, estava no aeroporto, o pai jazia numa geladeira no IML, Ela
havia deixado as crianças com o marido e não conseguiria fazer a
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
conexão em São Paulo, passar na delegacia e ainda tratar com a
funerária a tempo de sepultá-lo à tarde“ (op.cit, 2013, p.30) .
A cena descrita demonstra bem o sentido de uma ausência de coerência histórica,
desvelando um liame temporal que está sendo fundido. Assim como podemos notar
também na fala peremptória do personagem Álvaro ao morrer, logo no primeiro
capítulo dedicado a ele, que faz uma reflexão sobre a vida e as possibilidades da
ocorrência de morte, quando busca apreender o tempo vivido e a sua consequência
no presente.
A morte não existe. Nem o budista reencarnacionista acha que vai
voltar igual ao que foi. Vou estar na planta, na baba da lagarta que
devora a planta, na mosca que lambe a baba da lagarta que devora a
planta. Estarei por ali. Foi de bom tamanho, eu estava cansado. A
indiferença daqui me cai bem (...) .Desintegro no ar sobre
Copacabana. Uma vez, li que a morte era o momento mais
significativo da vida, e é mesmo. A minha foi boa, está sendo, não por
muito mais” (op. cit. 2013, p.29).
Essa constatação do personagem, com a consciência da morte vindo à superfície
deixa bem claro que não há nada a lamentar. Foi a vida, fim. Irene, uma das
212
personagens que desempenham um papel relevante na trama, pois é esposa de
Álvaro, tem na relação necessária com os amigos deste uma constante também em
sua vida, já que vive as memórias de Álvaro de maneira orgânica; uma memória por
tabela, na concepção de POLLAK (1992, p.205).
São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas
que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas,
é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não (...) É
perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorre um fenômeno de projeção ou de
identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar
numa memória quase que herdada.
A memória por tabela se situa no mesmo campo semântico do vintage, ou seja, uma
memória de segunda ordem, herdada, em que o tempo passado se confunde e é
apropriado pelo presente. Irene então se move também nesta perspectiva externando
uma ruptura sentimental e a um só tempo vivenciando uma memória por adesão.
Com isto, a ficção literária contemporânea, qual o caso de “Fim”, se assenta na
perspectiva da reconfiguração do tempo, da qual a noção de vintage é uma das
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
vertentes, desdobrando-se ainda na política cotidiana, predominantemente do corpo
ou ainda étnica e social. Deste modo, o romance contemporâneo aponta para a
mudança de paradigma ao traduzir sintomas e revelar memórias que parecem não
querer ser lidos como memórias, bem como lugares que não representam lugares.
REFERÊNCIAS
AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2010.
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. v. 1, Petrópolis, Vozes, 1986.
CANDAU. Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014.
POLLAK, Michael . Memória e identidade social. Rio de Janeiro: Estudos Históricos,
vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212
TORRES, Fernanda. Fim, São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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HISTÓRIA DE LEITURA DE PROFESSORES E SUAS IMPLICAÇÕES NAS
AULAS DE LITERATURA NO ENSINO MEDIO
Cleide Selma Alecrim Pereira (UNEB/PPGEduc)
[email protected]
RESUMO
Este artigo intitulado “Histórias de leitura de professores e suas implicações nas aulas de
literatura no Ensino faz parte de minha pesquisa de Mestrado sobre histórias de
leitura de professores egressos do curso de Letras vernáculas, da infância à fase
adulta, na condição de docentes do Ensino Médio. O objetivo é investigar como se
constituíram estas histórias de leitura na vida e profissão desses professores e quais
as implicações na atividade docente no ensino médio para a formação do leitor. A
pesquisa fundamenta-se na ideia de que a leitura literária é um direito do ser
humano e que a formação leitora dos professores contribui para fazer deste um
mediador de leitura que estimula nos alunos o hábito e gosto pela leitura literária. De
natureza qualitativa, o trabalho utiliza-se da abordagem autobiográfica na
perspectiva de Ferraroti (2010) e Souza (2006, 2008), dentre outros, como método de
investigação e para isto faz uso da entrevista narrativa para a coleta dos achados da
pesquisa. A base teórica desse trabalho é constituída por autores que abordam a
Sociologia da leitura e as suas práticas culturais, dentre e fora da escola, tais como
Chartier (2011), Lafarge e Sagré, (2010); Abreu (2006). Para a concepção de literatura
e do ensino da Literatura, elege-se, Cândido (1995), Todorov (2010) Paulino
(2008,2004), Cosson (2014) e Lajolo (2001). E para a discussão sobre a formação
docente ampara-se em Nóvoa (1989-1995 e 2010), Tardif (2012,2014) e Antunes (2011).
PALAVRAS-CHAVE: Histórias de leitura; Ensino de literatura; Formação de
professor do Ensino médio; Pesquisa autobiográfica.
1. APRESENTAÇÃO
Desenvolvido no contexto do Mestrado em Educação e Contemporaneidade
da UNEB, este estudo, ainda incompleto, propõe investigar as histórias de leitura de
professores egressos do curso de Letras Vernáculas do Campus XXII da UNEB.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O interesse na presente pesquisa surge a partir da necessidade de analisar a
relação entre as histórias de leitura desses docentes desde à infância até a fase adulta
e a relação com as aulas de literatura no ensino médio, ministradas por eles no
contexto de uma escola pública em Euclides da Cunha, Bahia. A partir da
interpretação da formação leitora e das práticas educativas dos professores e
tomando como material de análise as entrevistas narrativas concedidas por eles,
objetivo investigar a contribuição das suas histórias de leitura para a formação de
leitores no ensino médio.
Diante disso, o problema deste estudo parte das seguintes questões: Qual a
relação entre as histórias de leitura de professores egressos do curso de Letras e o
ensino de Literatura no ensino médio? Como as práticas de leitura literária de
professores contribuem para a formação de leitores na escola básica? A relevância
desta pesquisa que tem como base de análise as narrativas dos docentes, parte da
compreensão da grande contribuição destas, tanto para os processos formativos dos
professores envolvidos, quanto para a valorização das suas experiências, por
216
entender que a trajetória de leitura dos docentes contribui para torná-los
profissionais mais preparados e seguros ao ensinar literatura e transformarem suas
práticas educativas e a formação do leitor na escola básica.
Assim, frente a esta realidade, há de se preocupar com a forma como os
professores constroem ou podem construir propostas para as práticas e acessos à
leitura literária na escola básica, especialmente no ensino médio. Também faz parte
deste estudo verificar se a formação universitária do professor e os saberes advindos
da sua história de vida e de leitura, têm lhes ajudado na busca por metodologias,
estratégias e práticas inovadoras de incentivo ao gosto e hábito da leitura literária,
sem terem de apenas obrigá-la aos alunos, mas ensinando maneiras de ler e de gostar
de ler a estes jovens, de forma a transformarem o ambiente da sala de aula em local
adequado a ação estimuladora do ato de ler.
Aponta Bresson (2011, p 35) que a aprendizagem da leitura requer ensino,
mesmo em sociedades alfabetizadas como a nossa. Para ele, “o ensino da leitura é o
meio de transformar os valores e os hábitos dos grupos sociais que são os seus
hábitos”. Portanto, não ensinar nas aulas de Língua Portuguesa a leitura literária
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
como uma arte estética é retirar dos alunos um bem cultural e social de extremo
significado para suas vidas. Conforme Abreu, (2006, p 82), a literatura pode ajudar a
“escapar das armadilhas da alienação e à padronização do mundo”, assim como
pode “manter a consciência das injustiças e da necessidade de combatê-las”.
Portanto, se não é a família o espaço em que esses valores são transmitidos a muitos
dos alunos, é na escola onde se pode iniciar a gostar de ler, através do incentivo dos
professores leitores, especialmente professores de literatura.
Como resultado deste estudo, busco contribuir de alguma maneira para
repensarmos as inquietações relacionadas à formação do professor, especialmente do
profissional de Letras, mediador da leitura literária e, consequentemente, da forma
como tem levado para a sala de aula o incentivo à leitura das obras literárias,
contribuindo para a formação do gosto pela leitura.
2. PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS
Esta pesquisa qualitativa, de abordagem autobiográfica, parte das histórias
de leitura de seis docentes, (cujos nomes aqui são fictícios), que atuam numa escola
pública no ensino médio em Euclides da Cunha, Bahia e foram colhidas através de
entrevistas narrativas com gravador de áudio.
Ao se pensar sobre os processos de formação docente, escolho a abordagem
autobiográfica como método para esta investigação por encontrar em Nóvoa (1988,
p.116) uma razão para melhor entender as histórias de vida na perspectiva deste
método, que, segundo ele, “integra-se no movimento atual que procura repensar as
questões da formação”, acentuando a ideia de que ninguém forma ninguém e que a
formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida.
A importância da utilização do método autobiográfico, na pesquisa com
educadores, é que ele tem uma “dimensão formativa e autoformativa”, concebida
como
uma
tomada
de
“consciência
de
si
e
de
suas
aprendizagens
experienciais”.(SOUZA,2006, p, 138).Neste tipo de pesquisa, os sujeitos-professores
têm a oportunidade de, ao mesmo tempo, rememorar fatos e acontecimentos de sua
vida pessoal e profissional como também refletir sobre ações, decisões tomadas,
217
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
percursos trilhados, pessoas envolvidas nesse percurso de tantas e diferentes
situações experienciais e formativas.
Portanto, a abordagem (auto)biográfica permite por diferentes vias – diários,
biografias, memoriais, entrevistas narrativas, dentre outros, potencializar o “processo
de conhecimento que se constrói ao longo da vida e que se materializa nas
experiências e aprendizagens constitutivas de identidades e subjetividades”
(SOUZA, 2008, p. 88).Nessa linha de pensamento, as ideias de Ferrarotti (2010)
corroboram enormemente com os estudos nesse campo:
Uma narrativa biográfica não é um “relatório de acontecimentos”, mas
uma ação social pelo qual um indivíduo retotaliza sinteticamente a sua
vida (a biografia).[...] Não há mais verdade biográfica numa narrativa
oral espontânea do que num diário, numa autobiografia ou num livro
de memórias. E só alcançaremos essa verdade biográfica se
sublinharmos a verdade interacional que a narrativa encerra.
(FERRAROTTI, 2010, p.46)
Esta metodologia guarda, portanto, uma dupla dimensão, de um lado
proporciona ao sujeito pesquisado refletir sobre seus percursos formativos e
218
autoformativos e de outro abre ao pesquisador a oportunidade de conduzi-lo com
sutileza a identificar e compreender as tensões que o constituíram como pessoa e
profissional.
Diante disto, as entrevistas narrativas irão permitir, sem dúvida, definir as
categorias que revelam as representações dos professores acerca de sua formação
leitora, particularmente no campo da literatura, em diferentes tempos e espaços
socioculturais. Sabe-se que as memórias das primeiras leituras na família e na escola
marcam o sujeito, o qual se constitui também a partir de outras experiências vividas
em tempos e espaços diversos que vão formando sua personalidade, preferências,
identidade e o constituindo como profissional. Há de se pensar também com Lacerda
(2003, p.27) que “a memória reconstrói lembranças de lugares, de pessoas e práticas
sociais”, que se constituem em traços de nossa identidade cultural, pessoal e
profissional.
Antunes (2011), na linhagem de Novoa (1992) e Huberman (1989), diz que as
memórias dos professores sobre seus mestres, suas lembranças da escola, da forma
como foram ensinados, influencia na sua maneira de desenvolver o processo de
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
ensino-aprendizagem em sala de aula, ou seja, na forma de tornar-se professor.
Procurei entender as trajetórias pessoais e profissionais dos sujeitos através das
entrevistas autobiográficas as quais visibilizaram as histórias de leitura e de
formação docente, que muito revelaram sobre sua maneira de lidar com os processos
de ensino aprendizagem nas aulas de literatura.
Para isto parto de dois eixos temáticos centrais, sendo o primeiro as Histórias
de leitura dos professores desde a infância até a fase adulta, ou seja, a constituição leitora
deles; o outro eixo é sobre as aulas de literatura no ensino médio por estes mesmos professores
egressos do curso de Letras da UNEB. Para o primeiro tema, investiguei o papel da
família, da escola e da universidade na formação leitora, e no segundo tema, as
estratégias de ensino de leitura literária, as metodologias, obras adotadas, formas de
avaliações, suportes de leitura e as concepções de leitor pelos professores.
3. HISTÓRIAS DE LEITURA E OS ESPAÇOS DE FORMAÇÃO DO
PROFESSOR- LEITOR
219
Todos nós, independentemente de gostarmos ou não de ler, do poder
aquisitivo ou da escolaridade, temos a nossa história de leitura. Orlandi em Discurso e
leitura afirma (1999, p 41/43) que “ todo leitor tem sua história de leitura, assim como
“toda leitura tem sua história”. Os variados perfis de leitores e leituras surgem desde
quando se constituiu a história dos sujeitos leitores. E leitor somos todos nessa
sociedade globalizada, informatizada e cercada de possibilidades de leitura em
sentido amplo, tanto a leitura verbal quanto a não-verbal. No entanto, busco analisar
a história do leitor de obras literárias, representados aqui na figura do professorleitor, já que relaciono as histórias de leitura destes com o seu fazer pedagógico nas
aulas de literatura/leitura literária no ensino médio.
A maneira como nos foi apresentada, na família e na escola, a leitura e os
objetos de leitura a ela associados como livros, textos, cadernos, lápis, desenhos,
gravuras, inscrições marcam de forma particularizada a cada um de nós, a cada
família, a cada sujeito que pode diferentemente ressignificá-los ao longo de sua
própria história de vida.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Para os professores, sujeitos dessa pesquisa, particularmente, suas histórias de
leitura não se findaram com a conclusão da escola básica ou mesmo do curso de
Letras na Universidade, ao contrário, elas estão sempre ampliando e refletem
diretamente em sua atuação em sala de aula, em suas escolhas e seleção de materiais,
em sua concepção de aluno- leitor e de leitura ao longo de seu trajetória profissional,
a depender de como seu percurso de leitura se consolidou e dos modelos de leitor e
de leitura que se fizeram presentes na vida de cada um.
Chaves (2006, p 166) nos diz que “ diferentemente de outros profissionais, o
professor interage intensamente com seu campo de atuação profissional desde
quando estudante”. Mais do que isso, muito antes de serem estudantes, também, a
sua história de leitura na família, seus primeiros contatos contribuíram para formar o
ser –professor, especialmente o professor mediador de leitura literária. As posturas
dos professores, sujeitos desta pesquisa, no dia a dia da aula, assim como as suas
concepções de avaliação, de como ensinar, de como intermediar a aula, “podem
encontrar suas origens nas histórias de escolarização, mais do que nos cursos de
220
licenciatura” (op. cit. p 166), isto é, de quando começaram a se relacionar com a
escola, as aprendizagens leitora neste espaço, assim como a relação com seus
professores. Também, a forma como os professores agem frente à leitura pode estar
respaldado nos seus antigos modelos de leitores que os inspiram na sua prática.
Há uma compreensão nas pesquisas acadêmicas que as histórias de vida e
de formação dos professores não podem ser dissociadas de sua prática em sala de
aula, daí a importância, aqui, de se pesquisar como os professores foram iniciados na
família e na escola na atividade leitora e como ao longo de sua história de vida e de
formação essa leitura significou a sua trajetória pessoal e profissional. Quando os
professores refletem, rememoram sobre sua formação, eles ressignificam suas ações
pedagógicas, suas escolhas as quais passam a ter um caráter formativo. Para Chaves,
2006, p 162) “ a história de vida pessoal é indissociável da história de vida
profissional dos professores, entendendo ambas as dimensões como elementos
constitutivos das práticas, condutas, opções e posturas assumidas”.
3.1.
O LUGAR DA FAMÍLIA NA FORMAÇÃO LEITORA
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Diferente do que muitos pensam, que a escola é a responsável pela iniciação
leitora das crianças, estudos e pesquisas têm demostrado que a família ainda é a
grande responsável pela iniciação leitora dos pequenos, principalmente a figura da
mãe
Os professores, sujeitos desta pesquisa, ao falarem de suas leituras na
infância ou adolescência confirmam que é na família que nascem os primeiros
estímulos e incentivo à leitura.
Eu lembro que minha mãe me deu o livro do Menino Maluquinho- eu tenho
até hoje em casa-, pintei todo o livro, que era em preto e branco, eu não sabia
ler, pintava todo e o livro tá guardado ainda em casa [...]ela desencaixotava
os livros e a gente ia olhar com aquele cuidado que tinha que levar pros
outros[...] minha mãe foi minha primeira alfabetizadora.[...] A gente tinha
bastantes livros em casa e guardamos alguns de recordação[...] A gente
ajudava a mexer por curiosidade mesmo, ver, era novo, tirar do pacote, era
uma sensação absurda e ai a gente foi criando gosto, minha irmã primeiro,
depois eu fui incentivada por ela, mantivemos o ritmo, incentivando o meu, o
filho dela também...ainda mantenho o hábito da leitura. (Professora Cristal )
221
Assim como a professora Cristal, a professora Bárbara também recorda o
quanto a família esteve presente nessa formação do hábito leitor.
Eu venho de uma família que sempre me incentivou a questão da leitura,
embora nós não tivéssemos condição de comprar livros, minha tia tinha uma
condição maior, ela comprava os livros, então contava bastante histórias pra
gente. Desde cedo, três, quatro anos, quando fui para escolinha, para
educação infantil, na escola eu tive mais contato com a leitura, porém
também a gente não tinha condição de comprar livros, então ela sempre
comprava e lia para gente ou emprestava gibis. (Professora Bárbara)
Para Hébrard, apud Horellou e Segré (2010, p 81-82), “ a criança aprende a ler
ao impregnar-se precocemente dos diferentes tipos de escrito que lhe são lidos pelos
adultos que a cercam”. Assim de forma natural, a criança vai familiarizando-se com
os livros, os diversos gêneros textuais, naturalizando a relação dela com os objetos
livros. E assim completam os autores que “ as histórias em quadrinhos continuam
sendo as leituras preferidas das crianças que tem dificuldades com o escrito”.
A professora Lírio, mesmo já sendo alfabetizada, já mocinha curiosa por
revistas proibidas, atribui a sua descoberta pela literatura, pelo prazer de ler, a seu
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
primo, a partir do momento em que ele a inicia nessas leituras literárias. É para ele
que ela guarda as melhores recordações de alguém que foi importante na sua
iniciação pelo gosto e desejo de ler.
Eu sempre fui encantada por ler. Eu lembro que na época a gente não era
muito aconselhada, as mocinhas a lerem essas revistas. E eu pegava as
revistas e lia, então todo livro me fascinava. Mas eu acredito que assim, a
minha formação leitora mesmo, foi graças a um primo... chamado Ivo, ele
morava em São Paulo e depois ele veio pra cá...e ele tinha uma biblioteca, que
era um tanto ambulante, ele trouxe de São Paulo pra cá esses livros todos, e
ai eu lembro que tinha um armariozinho de madeira cheio de livros, e eu li
todos os livros dele, eu li a coleção de José de Alencar inteira, eu li todos os
romances na época, ai depois eu fui lendo outros, eu lembro que eram os
Irmãos Corsos que contavam a história de dois irmãos gêmeos, bem
fantástico. E a partir daí eu nunca mais parei de ler.
Em suas memórias, Lirio guarda autores, conteúdos, móveis de guardar
livros, coleções que leu e nunca mais as esqueceu. A escolha do que ler, como e
quando ler, se for isenta de pressão e obrigação deixa marcas positivas nos leitores,
222
especialmente nos adolescentes e crianças que nem o tempo as apaga.
As histórias de leitura dos professores são marcadas por poucos livros em
casa ou completa ausência deles, poucos recursos financeiros na família,
analfabetismo de familiares e sensibilidade de outros de iniciar a criança no universo
fabulosos da literatura.
Os professores Sol, Catarina e Vitoriano não tiveram a sorte que muitas
crianças têm/tiveram de terem mães, pais ou parentes que as incentivam nas
primeiras leituras. Sol e Vitoriano vieram de origem de pais sem livro e sem leitura.
A mãe de Catarina, mesmo sendo leitora, como ela afirma, talvez por desinteresse,
desconhecimento, ou mesmo por achar que leitura é para quem já sabe ler como os
grandes, não a estimulava à leitura, não a cobrava que lesse, pelo menos é o que
recorda em suas memórias. Assim, ela expressa: “Não tenho ninguém que me espelhou
na formação leitora. Que eu já tenha pensado nisso não. ”. Esse “ninguém”, entendemos
como um membro familiar, papel que teria ficado para a escola, mas que,
infelizmente, esta também deixou a desejar na sua função de estimuladora do hábito
e gosto pela leitura. Catarina continua a afirmar que tanto na infância quanto na
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
adolescência não foi incentivada nem pela escola nem pela família, mesmo com a
mãe alfabetizada e leitora. E assim, relembra:
...eu tive uma carência muito grande, não por meus pais serem tão afastados
da leitura, são pessoas alfabetizadas, são pessoas mais ou menos esclarecidas,
mas eu não tinha essa cobrança da leitura e nem na escola também eu
percebo que a gente não tinha essa cobrança de ler, do incentivo. Minha
mãe, ela sempre lia... mas eu não tive isso...
Tanto a professora Sol, quanto os professores Catarina e Vitoriano vieram de
famílias que não foram modelos de leitura em sua formação, mesmo que por motivos
diferenciados, como pobreza, analfabetismo, desinteresse ou ignorância dos pais, o
fato é que nenhum membro familiar está presente nas suas memórias de leitura, na
sua iniciação a este universo. “Para a sociologia das práticas culturais, a leitura é a
arte de fazer que se herda mais do que se aprende” (HÉBRARD,2011, p 37), daí a
importância primorosa da família nessa herança do capital cultural proporcionado
pela leitura. São as lembranças de Sol da primeira decifração, decodificação da língua
ou da leitura como ela afirma, lembranças estas que inclui o livro didático em casa,
mas não o livro de historinha, ficando o vazio por não ter tido alguém na família que
cobrasse dela as leituras literárias, que a estimulasse a isto.
3.2 .
O
LUGAR
DA
ESCOLA
NA
FORMAÇÃO
LEITORA
DOS
PROFESSORES
Em relação ao espaço escolar, as lembranças dos professores dos mestres
que os estimularam a ler, não foram tão significativas e empolgantes como foram de
suas leituras no ambiente familiar. Conforme a fala da professora Sol sobre suas
lembranças da leitura na época da escola, ela diz: “Livro mesmo não. Se eu li, foi algum
texto”. Mais à frente ela afirma que não se lembra de professores que a incentivaram
à leitura literária na adolescência, que a busca partiu dela mesma:
“Eu mesma que fui procurando assim... Estava inquieta, angustiada.
Procurei esses livros de autoajuda. Depois veio, na oitava séries mais ou
menos, tinha os livros didáticos eu tinha contato, que tinha os textos e
poemas, eu já começava a me entusiasmar com esses poemas e livros”.
(Professora Sol)
223
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Essa professora, cujos pais eram analfabetos, não tem memória de leitura na
infância, seja na família, seja na escola. Segundo ela, a busca pela leitura foi um
caminhar solitária, estimulada pela necessidade de entender ou solucionar seus
conflitos de adolescente
Assim também, a professora Catarina lembra que ela não teve o incentivo à
leitura nem na família nem na escola: “...mas eu não tive isso, tanto é que as minhas
dificuldades que tive e tenho hoje, elas são reflexos das minhas séries iniciais”. Mais à frente
ela traz lembranças de suas leituras no Ensino Médio, porém as memórias de leituras
vêm sempre associadas as leituras que são pedidas pelos professores para fins
avaliativos; não foi uma busca espontânea da aluna, por puro gosto de ler, mas uma
leitura para um fim especifico, utilitário, que é passar nos vestibulares e alcançar uma
universidade, então ela diz:
224
Ai já vem aquela cobrança também na questão das aulas de literatura, de
língua portuguesa, aquela cobrança que é feita quando você está pensado em
fazer o exame vestibular, esses exames nacionais o ENEM ... leituras,
machadianas, essas obras que eu, como aluna, e meus alunos, hoje, eu
percebo que não gostam.... Por causa da leitura da época, leitura obrigatória.
(Catarina)
Os autores Horellou e Segré (2010, p 80e 81) nos trazem que “ a iniciação à
leitura é um longo processo que pressupõe, antes da iniciação escolar, o contato
precoce da criança pequena com o mundo do escrito”. Complementam também que
“é necessário que o texto escrito esteja inserido no universo familiar da criança desde
a mais terna idade”. Portanto, quando a criança chega à escola com um déficit de
leitura advindo de seu ambiente familiar, a dificuldade de acompanhar as normas
escolares e códigos escrito é bem maior para ela, mas isto não significa que os
professores não possam e não devam apresentar a criança a literatura, o universo da
ficção e tornar esse aluno um leitor em potencial.
Antunes (2011, p 26), ao dialogar com Nóvoa (1992), afirma que: “Muitas das
lembranças da forma como o docente era tratado, enquanto ainda era aluno do EF
(Ensino Fundamental) na maioria das vezes, influenciarão na maneira como ele
tratará seus alunos”, ou seja, para a autora a escola dos antigos mestres influenciará
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
esse aluno, quando ele for exercer a sua função docente. Assim complementa: “ Esses
aspectos irão auxiliar no conhecimento e nas características das etapas profissionais,
vivenciadas ao longo da carreira docente” (p. 26)
O professor Vitoriano, que na infância foi alfabetizado na zona rural, onde
não havia livros em casa, já que os pais eram analfabetos, passou pela educação
infantil sem memória de leitora literária, assim como a professora Sol. Ele lembra que
somente no Ensino Médio é que foi apresentado à literatura, ao livro literário
propriamente: “Cheguei até a segunda série do ensino médio sem nenhuma indicação de
livros, sem nenhum professor solicitar nenhuma leitura de nenhuma obra literária ou de
qualquer outra ordem”. Suas memórias de leitura na escola básica vão de uma fase de
ausência da leitura literária, antes do ensino medio, para uma fase de apresentação e
descoberta desse universo no ensino médio: “Na segunda série do ensino médio, o
primeiro livro que li por indicação de uma professora de literatura e a partir desse momento,
que foi As Pupilas do Senhor Reitor, foi despertado o prazer e o gosto pela leitura”, até uma
fase de ampliação e encantamento pela literatura, do aluno que se deixou ser levado
pela magia das palavras como arte, estética, plurissignificação como é a literatura
Há também nas memórias da leitura escolar, as boas lembrança da mãe no
papel da professora, da família como continuadora e estimuladora da leitura no
contexto da escola, ou seja, família e escola como instituições iniciadoras na formação
leitora da criança. E assim diz a professora Cristal “A gente estudou no início numa sala
multiseriada....e minha mãe foi minha primeira alfabetizadora e ai depois a gente começou a
estudar aqui na cidade”
Horellou, e Segré (2010, p 122) sentencia que às vezes “ a descoberta da
leitura se faz ao longo de um avanço escolar, ao sabor de uma relação calorosa
estabelecida com um professor”. E quando esse professor faz parte da família
consanguínea e afetiva, como a mãe da professora Cristal, com certeza estas
lembranças são muito agradáveis e duradoras, pois associa família e escola numa
relação de afeto.
3.3 . O LUGAR DA GRADUAÇÃO NA FORMAÇÃO LEITORA
225
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O curso de Letras, através de sua proposta curricular, não dá conta sozinho de
preparar os futuros professores para a mediação da leitura literária na escola básica
com propostas mais inovadora e antenadas com as pesquisas atuais sobre leitura. Em
virtude disso, a investigação das histórias de leitura destes sujeitos ampliou-se para
outros lugares de leitura em sua formação como a infância, a escola básica, a
universidade e a formação profissional e continuada
Mas o que dizem os professores em suas narrativas sobre o curso de Letras,
as aulas de literatura e a sua formação para ensinarem literatura na escola básica?
Nas suas falas sobressai a ideia que o currículo de Letras parte do princípio que os
alunos que chegam já têm um repertório de leitura amplo, estão preparados para a
discussão das obras literárias. Todavia, segundo eles, o curso volta-se mais para o
estudo da teoria, da crítica literária e esta postura não é bem aceita por alguns dos
professores, sujeitos dessa pesquisa. Desta forma, a professora Lírio se posiciona da
seguinte maneira sobre a forma como começam a estudar literatura no curso de
Letras:
226
[...] na graduação em si mesmo a gente estuda muito mais os críticos, os
teóricos do que a própria obra. A leitura mesmo em si dos textos literários
acaba sendo algo ou por sua motivação, por interesse. Você não começa a
trabalhar, pelo menos nós não começamos a trabalhar na universidade através
da obra literária; você começa da crítica literária, das escolas literárias. (Profa
Lírio)
Os professores Catarina e Cristal informam que no currículo de Letras da
UNEB há muita teoria na área dos estudos literários e a prática voltada para este
campo não existe, ou seja, eles não aprendem como ensinar literatura no sentido de
mediação, incentivo, estimulo ao hábito e gosto pela leitura. Ainda o fazem como
seus professores faziam no passado: para fins avaliativos, controlar se o aluno leu
mesmo ou não. Mas para Bárbara, que já era professora antes da graduação assim se
expressa sobre o curso “ amadureci bastante minha prática em sala de aula, foi uma
contribuição enorme porque a universidade amplia a sua visão da sala de aula, sua visão de
mundo, amplia a questão da prática”. Portanto, para ela, uma teoria necessária, que
ajudou a amadurecê-la para o exercício da docência, pois a professora já lecionava
antes do curso de Letras.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Para Vitoriano, a leitura na universidade foi ampliada e amadurecida: “novos
saberes literários, novos autores nos sãos apresentados[..] a leitura literária é vista de uma
forma mais complexa, mais detalhada, que se debruça sobre a própria obra”. Na
universidade, segundo Vitoriano, ele leu a obra completa de Machado de Assis em
razão da monografia de final de curso, isto mostra que este professor se comportou
como um leitor voraz de literatura. O que se percebe é que a história de leitura do
professor Vitoriano é formada tanto por obras indicadas e avaliadas por seus
professores no ensino médio e Universidade quanto também por autores e obras que
ele buscou sozinho como leitor maduro. As indicações e cobranças dos docentes não
o desestimularam a ser leitor, ao contrário, foi por conta das indicações de um
professor, que Vitoriano descobriu a literatura como prazer.
A professora Bárbara traz em sua fala a contribuição das aulas de literatura
na graduação: A universidade traz a você uma maturidade literária muito grande: na
universidade você tem a possibilidade de estudar a literatura e não história como acontece no
ensino médio, o estudo das escolas literárias. ” Contudo se o curso de formação de
professores não ajuda muito na prática, no dia a dia, os estudos contínuos pelo grupo
de professores da área contribuem para a mudança de posturas, para o aprendizado
com os pares, com os mais experientes. Assim, a professora Catarina revela a
importância do dia a dia no contexto escolar aprendendo com os erros e acertos: “A
teoria é válida? É...., mas eu acho que a prática no eu dia a dia, acho que ela é mais
importante...com os erros. Aprendendo mais na prática. Você praticar…no dia a dia, você
errando, você acertando...você conversa com o colega”. Assim, a formação continuada, no
espaço escolar, pelos professores poderá possibilitar a leitura e a reflexão constante
sobre o fazer pedagógico, especialmente sobre formas metodológicas e criativas de
como estimular a leitura literária no contexto escolar no ensino médio.
Embora haja queixas dos professores sobre a falta de relação entre teoria e
prática no curso de Letras Vernáculas e embora também estudos confirmarem que os
professores repetem as práticas dos seus professores quando desenvolvem o
processo de ensino aprendizagem, Antunes (op. cit, p. 27) adverte que “ a
criatividade, a espontaneidade, a curiosidade e a pesquisa, aliados à prática docente
227
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
são contribuições fundamentais para a aquisição de uma nova competência
profissional”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreendemos que a prática docente não pode restringir-se a modelos de
ensino na escola e na graduação, já que este modelo tem deixado a desejar no sentido
de contribuir com o ensino da leitura literária para além dos muros da escola básica.
A formação teórica e metodológica sólida dos professores e atualização constante,
assim como a discussão sobre autonomia docente, reflexão e criticidade constantes
sobre a prática podem contribuir em muito para uma postura de não aceitação
passiva de currículos e conteúdo no contexto da escola.
Assim o professor pode ousar mais no ensino da leitura, preocupando-se
menos com notas e avaliações e mais com a formação integral do aluno, planejando
aulas prazerosas de leitura literária, que possam contribuir para a formação do
228
hábito leitor. A habilidade do professor, aliado à sua formação teórica e
metodológica vai ser um facilitador para conquistarem esses alunos que já estão com
um pé fora da escola, nos anos finais do Ensino médio.
Contudo, Giardinelli (2010, p. 73) aborda que: “ Se o docente não lê, se não
está preparado para desfrutar a leitura, não saberá transmitir eficazmente nenhuma
estratégia, por melhor que seja...jamais poderá transmitir o prazer de ler aos seus
alunos”.
Não resta dúvida, todavia, que para ser um professor leitor é preciso
tempo e condições financeiras, aquietar-se no seu canto para embeber-se, inebriar-se
de leitura e, a partir desta, levar a sua contribuição, as experiências e sugestões de
leitura do que leu e gostou, para proporcionar ao aluno uma curiosidade e vontade
de adentrar também no universo do livro, do encantamento ou do oficio que é a arte
de ler.
Ao docente não cabe somente cobrar e exigir do aluno; mas é importante que
possa falar de livros de que gostou, falar de livros com encanto, daqueles que lhe
proporcionaram momentos de leitura e descontração inesquecíveis, discutindo com
eles sobre a importância da literatura na vida dos indivíduos.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Assim, ao melhorar a sua prática em sala de aula no que se refere ao ensino da
literatura, evitando obrigá-la e escolarizá-la, apenas para fins avaliativos, os
professores contribuem para a formação de um público leitor que continua a ler por
gosto. Desta forma, estes professores farão muito mais por estes alunos do que
fizeram seus professores do passado, os quais não marcaram as memórias de seus
alunos, e farão muito mais do que o curso de Letras os ensinou, ou a família os
ajudou, pois, cada profissional tem uma trajetória de vida individualizada,
particularizada, mesmo passado pelos mesmos cursos, mesmas escolas, mesmas
oportunidades, os resultados não serão iguais, necessariamente.
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229
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Tempos narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS:
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230
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formação. In. EGGERT, Edla, et al (Org.) Trajetórias e processos de ensinar e
aprender: didática e formação de professores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
.
DOS REGISTROS DAS MEMÓRIAS À FORMAÇÃO DO LEITOR:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE E DE PRÁTICAS LEITORAS A
PARTIR DO ESTUDO DAS MEMÓRIAS DE LEITURA DA
COMUNIDADE ACADÊMICA DA UESB/JEQUIÉ3
Elaine Teixeira Novaes (Secretaria Municipal de Educação de Jequié) / [email protected]
Elane Nardotto(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia - Campus Jequie/
[email protected]
Maria Afonsina Ferreira Matos (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB)
[email protected]
Resumo:
Este trabalho objetiva apresentar dados referentes à primeira etapa do projeto de pesquisa
Dos registros das memórias à formação do leitor: uma proposta de análise e de práticas leitoras a partir
do estudo das memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB/Jequié. Para tanto, partiu da
orientação do método biográfico (LEVI, 2006; ROSENTHAL, 2006), do conceito de memória
(PÊCHEUX, 2007; ROUSSO, 2006) e das discussões de leitura propostas por Geraldi (1999),
Lajolo (2002) e Zilberman (1991). Constatou-se, na análise das memórias de leitura,
elementos que “indiciam” questões relacionadas com a formação de professores que atuam
na Educação Básica, permitindo assim, a sinalização de novos traçados para uma didática
que renove o trabalho com leitura em sala de aula.
Palavras-chave- formação do leitor- memórias- pedagogia da leitura
Contextualização da pesquisa
O projeto de pesquisa4 Dos registros das memórias à formação do leitor: uma
proposta de análise e de práticas leitoras a partir do estudo das memórias de leitura da
comunidade acadêmica da UESB/Jequié faz parte da linha de pesquisa Memórias de leitura
que, por sua vez, faz parte constitutiva do Centro de Estudos da Leitura (CEL)/UESB
3
4
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/Campus Jequié.
Projeto de pesquisa financiado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
(Campus Jequié). Destaque-se que o CEL5 iniciou suas atividades a partir das
experiências do Estação da Leitura (ESTALE) que desde 1991 desenvolve trabalhos de
pesquisa e extensão do Laboratório de Memória (LM) do Departamento de Ciências
Humanas e Letras (DCHL) da UESB.
Convém mencionar que o interesse em desenvolver este projeto de pesquisa
deve-se ao fato de que estudos (ZILBERMAN, 1991; LAJOLO, 2002) acenam à
necessidade de configurar pesquisas sobre práticas formadoras de leitores. E com o
intuito de colaborar nesse campo de investigação, apresentamos, nesta primeira fase
da pesquisa, aspectos relativos à formação do leitor da comunidade acadêmica da
UESB como forma de problematizar a seguinte questão: quais elementos extraídos das
memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB/Jequié constituem-se em subsídios
para a elaboração de práticas efetivas e eficazes na formação do leitor?
Para a nossa análise, separamos no conjunto da produção de que dispomos
(cerca de 400 memórias de leitura)6, 97 textos os quais foram produzidos no ano de
232
2004 em disciplinas do Curso de Letras da UESB. A análise desses textos nos
permitiu a constituição de indicadores capazes de contribuir no processo de
formação do leitor e, sobretudo, extrair subsídios para, posteriormente, elaborar
práticas efetivas e eficazes em tal formação, levando em conta que o objetivo geral
deste projeto enseja refletir sobre o processo de formação do leitor, a partir da análise
das histórias de leitura da comunidade acadêmica do Campus da UESB/Jequié, com
o intento de elaborar um novo constructo teórico no campo da Pedagogia da leitura,
para intervenções em escolas públicas do município de Jequié-BA e microrregião.
Desse modo, nesta primeira fase, seguimos o percurso dos seguintes objetivos
específicos: analisar as memórias de leitura da comunidade acadêmica do Campus
da UESB/Jequié; extrair, das memórias coletadas, elementos capazes de permitir a
organização de novos traçados para uma didática que renove o trabalho com a
leitura em sala de aula; constituir um banco de dados com os elementos extraídos
dessas memórias.
5
6
www.celeitura.com
Banco de dados do Centro de Estudos da Leitura (CEL).
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
DA ESCOLHA TEÓRICO-METODOLÓGICA
Uma vez anunciada a natureza do objeto de investigação, optamos por uma
abordagem metodológica a qual pudesse alcançar o objetivo deste trabalho. Para
isso, fizemos a escolha do método biográfico uma vez que por meio das memórias
produzidas pelos alunos da UESB, tem-se subsídios para interpretar o fenômeno
estudado. Estamos partindo do pressuposto de que quando os indivíduos falam de
suas experiências, utilizam a memória autobiográfica, que pode ser compreendida não
como reprodução de eventos passados, mas como reconstruções congruentes à
compreensão atual. Nesse contexto, o presente é explicado tendo como referência o
passado reconstruído; e ambos são utilizados para gerar expectativas sobre o futuro.
Além disso, o método biográfico envolve o uso e a coleta de documentos da
história de vida e de narrativas, não se constituindo em uma construção subjetiva dos
indivíduos, nem produto de modelos sociais prefigurados objetivos e sim pela vida de
experiência do mundo, numa inter-relação do mundo e do eu (ROSENTHAL, 2006).
Desse modo, o foco desse método reside nas experiências de vida que alteram ou
formam o significado de si mesmos e que tem como pressuposto básico a
importância da interpretação e da compreensão como a chave que forma a vida
social. Sobre a interpretação, Levi (2006) ao abordar a biografia e hermenêutica, afirma
que o material biográfico torna-se intrinsecamente discursivo, mas não se consegue
traduzir a totalidade de significados e o “[...] que se torna significativo é o próprio ato
interpretativo, isto é, o processo de transformação do texto, de atribuição de um
significado a um ato biográfico que pode adquirir uma infinidade de outros
significados” (LEVI, 2006, p. 178).
Atrelado à idéia do método biográfico, temos o conceito de memória
compreendido como memória coletiva, haja vista que os eventos de leitura
memorizados são reconstruídos a partir de dados e de noções comuns aos diferentes
membros da comunidade social. Pêcheux (2007, p. 50) afirma que, entre outros, o
papel da memória deve “ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista
233
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
da “memória individual”, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da
memória social inscrita em práticas [...]”. Desse modo, nos textos tomados para
análise, as memórias de leitura foram analisadas como uma “[...] reconstrução psíquica
e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado
que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num
contexto familiar, social, nacional” (ROUSSO, 2006, p.94).
Nessa perspectiva, acreditamos que as memórias de leitura da comunidade
acadêmica da UESB trazem a inscrição de práticas discursivas sobre os modos de
apropriação da formação do leitor na esfera social: seja na família, seja em
instituições de ensino. Tem-se, com isso, subsídios para discutir as condições
socioculturais da leitura atreladas às práticas de formação leitora nos espaços formais
de educação e/ou fora deles.
No que diz respeito à leitura, impõem-se, também, a necessidade de definir a
forma como esta é concebida, já que a perspectiva teórica que assumimos em relação
234
à leitura trará importantes implicações no que diz respeito ao leitor e, por
conseguinte, ao trabalho com a leitura. Nesse sentido, tomamos a concepção de
leitura defendida por Geraldi (1997). O autor defende que o trabalho de leitura incide
sobre dois sentidos: a compreensão responsiva do leitor integrada as estratégias do dizer
do autor. Assim, não há uma “fonte” exclusiva de onde emanam os sentidos
possibilitados pela leitura e sim um encontro entre leitor e autor tendo o texto como
lugar dessa interlocução.
Além desses autores, elencamos as discussões de cunho sócio-político de
Zilberman (1991) e Lajolo (2002) pelo fato de suas ideias privilegiarem aspectos
políticos, sociais e ideológicos que permeiam o processo de formação do leitor no
espaço escolar.
ANÁLISE PRELIMINAR PARA ELABORAÇÃO DE PRÁTICAS FORMADORAS DE
LEITORES NO ESPAÇO ESCOLAR
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Conforme mencionamos, separamos 97 memórias de leitura como corpus de
análise deste estudo. Iniciamos a nossa análise com a leitura dos textos de modo que,
neste momento inicial, não fizéssemos “recortes” e sim, uma leitura integral do que
estava posto nas memórias dos pesquisados, numa tentativa de seguir a orientação
de Rosenthal (2006), a qual sinaliza que a reconstrução da história de vida exige uma
atitude analítica diante do texto, na qual cada parte seja integrada ao todo.
Em seguida, estabelecemos, na segunda leitura, indicadores configurados na
Tabela abaixo, para que pudéssemos apreender melhor o nosso objeto de análise,
levando em consideração a questão fundadora desta primeira fase da pesquisa: quais
elementos extraídos das memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB/Jequié
constituem-se em subsídios para a elaboração de práticas efetivas e eficazes na formação do
leitor? Com isso, tem-se a Tabela 1:
Tabela 1 – Demonstrativo da recorrência de motivação no processo de formação do
leitor
235
Ausê
ncia
de
motivação
no processo
de formação
do leitor no
espaço
escolar
Prese
nça
de
motivação
no processo
de formação
do leitor no
espaço
escolar
Prese
nça
de
motivação
no processo
de formação
do leitor no
convívio
familiar
Ausê
ncia
de
motivação
no processo
de formação
do leitor no
convívio
familiar
Alus
ão à relação
de prazer ou
“desprazer”
com
a
leitura
Alus
ão para que
o processo
de formação
de leitores
se constitua
no
espaço
escolar
43
ocorrências
36
ocorrências
70
ocorrências
19
ocorrências
39
ocorrências
39
ocorrências
Inicialmente, estamos compreendendo ocorrência como o número de vezes em
que percebemos situações sobre a motivação no processo de formação do leitor nas
esferas familiar e escolar. Os indicadores (ausência de motivação no processo de formação
do leitor no espaço escolar; presença de motivação no processo de formação do leitor no espaço
escolar; presença de motivação no processo de formação do leitor no convívio familiar;
ausência de motivação no processo de formação do leitor no convívio escolar; alusão à relação
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
de prazer ou “desprazer” com a leitura; alusão para que o processo de formação de leitores se
constitua no espaço escolar) da Tabela 1 é o ponto de partida para a constituição da
nossa análise que, por sua vez, subsidia o objetivo do projeto de pesquisa que, a
partir da análise das histórias de leitura da comunidade acadêmica do Campus da
UESB/Jequié, enseja elaborar um novo constructo teórico no campo da Pedagogia da
leitura, para intervenções em escolas públicas de Jequié e microrregião.
Observamos que o número de ocorrências (43) do indicador ausência de
motivação no processo de formação do leitor no espaço escolar já justifica a elaboração de
um trabalho nas escolas públicas de Jequié e microrregião. Isso vem ao encontro do
número de ocorrências (39) do indicador alusão para que o processo de formação de
leitores se constitua no espaço escolar. Nesta, verificamos que há um interesse por parte
dos pesquisados (estudantes de Letras/professores da Educação Básica) em
estabelecer intervenções na formação leitora dos alunos para que, de certa forma,
minimizem o que constatamos no indicador ausência de motivação no processo de
formação do leitor no convívio familiar (19 ocorrências), o que implica uma alusão à
236
relação de prazer ou “desprazer” com a leitura, pois formação leitora encontra-se
intimamente relacionada com o despertar da paixão pela leitura. E sobre isso, nós
chamamos a atenção do indicador presença de motivação no processo de formação do leitor
no convívio familiar (70 ocorrências), a qual evidencia a importância do convívio com
os livros e com a “contação de histórias” de forma prazerosa, no espaço familiar,
como parte constitutiva da trajetória leitora. Nesse contexto, verificamos também, a
intervenção do espaço escolar como presença de motivação no processo de formação do
leitor (36 ocorrências), o que mostra a excelência deste lugar como primeiro passo
para muitos alunos rumo ao mundo da leitura.
Levemos em conta que, ao escolhermos a configuração da Tabela 1 por
número de ocorrências, encontramos num único texto a presentificação de todos os
indicadores, o que implica a escolha desse texto para analisarmos o processo de
formação do leitor. Abaixo segue a transcrição do texto escolhido:
Minha história com a leitura começou um pouco tarde, pois
morava na zona rural e o único contato com o material escrito era
através dos jornais velhos que meus irmãos traziam da feira
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
embrulhados com sabão, carne, etc [...]. Como não havia ninguém que
soubesse ler, me contentava, apenas com as figuras. Minha irmã ou, às
vezes, minha mãe eram as pessoas que me contavam algumas histórias
(principalmente de caçadores e lobisomem) nas noites de céu estrelado
para que não dormíssemos tão cedo, já que não tínhamos também,
acesso à energia elétrica. E, finalmente, aos sete anos de idade, já
morando na cidade com o propósito de estudar, tive meus primeiros
contatos com os livros, mas não suportava os livros que não havia
figura (principalmente os dicionários, riscava todas as suas páginas). O
primeiro material impresso que possuí (e gostava porque era repleto
de letras) foi uma cartilha que a pedido da professora minha mãe
mandou comprar em uma outra cidade, pois não havia e não há
livrarias nem biblioteca na cidade onde moro. Assim foi a minha
infância inteira, quase sem nenhum contato com livros ou até mesmo
com revistas e gibis [...]. Mas meu primeiro livro foi “Chapeuzinho
Vermelho” que encontrei no lixo da escola e, o segundo, foi um
presente de uma tia evangélica que me deu uma bíblia e um livrinho
com cânticos da igreja. Foi nessa época que resolvi ser evangélico [...].
Finalmente, no segundo grau, li um livro de Jorge Amado “A morte e a
morte de Quincas Berro D’água” que me emprestaram e depois não
devolvi pois marquei o livro inteiro para não esquecer de algumas
falas dos personagens que me chamava a atenção. A leitura do livro foi
uma exigência da professora e escolhi este livro porque era de poucas
páginas e as letras eram graúdas. Mas foi só durante a leitura do livro
que pude perceber todo o fascínio da leitura na vida de uma pessoa
[...]. Passado este episódio só me reencontrei com um livro no último
ano de ensino médio, também a pedido de uma professora (por sinal
foi por causa dela que escolhi o curso de Letras). Foi nesse último ano
que participei do único evento proposto pela escola com o objetivo de
mostrar a importância da leitura, pois até então todos os eventos da
escola que eu havia estudado eram as gincanas que tinha como tarefa
recolher livros, alimentos e só [...]. Na minha família ninguém gosta de
ler, exceto minha irmã que foi criada por minha avó em outra cidade e
por sinal foi a única dos irmãos que conseguiu cursar uma faculdade.
Ela sempre me incentivou nos estudos, mas não na leitura. Por meus
pais não serem letrados, a leitura nunca foi assunto nas nossas
conversas. [...] Resumidamente, não sou um bom leitor, ou melhor, não
tenho esse bom hábito de ler. Na verdade, não incorporei ainda. [...] ao
fazer este relatório de leitura pude refletir sobre o meu papel como
futuro incentivador de leitores que é o professor de Língua Portuguesa.
A partir dessa reflexão, constatei que seria melhor trocar de curso
[Curso de Letras], do que não ter o poder de mudar a relação de
centenas de alunos que talvez não tenha um incentivador por perto
para que essa triste trajetória não se repita.
237
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O fato de trazermos um único texto para a análise de todos os indicadores
configurados na Tabela 1, pode parecer contraditório haja vista tais indicações constituíremse oposições entre si. No entanto, a memória de leitura selecionada materializou momentos
diferentes na trajetória de formação leitora e, ao mesmo tempo, constatamos que as ideias
postas pelo autor também trazem informações diametralmente opostas sobre a sua formação
leitora, o que evidencia questões como
Com que tipo de textos nos defrontamos quando usamos, como
fonte de dados de nossa pesquisa, autobiografias escritas ou
transcrições obtidas a partir de relatos de histórias de vida? Será que
consideramos esse material como fonte que oferece uma visão
deficiente daquilo que aconteceu? Será que começamos com a suspeita
de que esse material apresenta uma distorção do que foram fatos
objetivos, tratando então de “tapar” buracos para encontrar o mundo
real por trás das palavras? (ROSENTHAL, 2006, p. 193).
De acordo com a autora, tais questões são suscitadas pelo fato de ocorrer uma
indagação se a autobiografia constitui-se como uma fonte boa ou má. Inferimos que, para além
238
de tais questões, consideramos a autobiografia como artefato simbólico, o qual pode trazer
experiências de um “eu” na sua inter-relação com o “mundo”, o que para nós pode ser
concebido como uma memória coletiva.
Com isso, constatamos que, de um modo geral, não ocorreu na história de
leitura do pesquisado um incentivo para que ele se constituísse como leitor, salvo em
momentos esporádicos como por exemplo, a tia evangélica que deu de presente a ele
uma bíblia e um livro de cânticos. Chamamos a atenção para esse episódio, visto que,
a partir daí, ele se tornou evangélico também, o que pode ter sido resultado das
leituras dos textos religiosos ou do próprio incentivo da tia. Não desconsideraremos
que a irmã e a mãe foram na sua trajetória leitora contadoras de histórias, embora ele
afirmasse em outro momento, que a irmã incentivava-o nos estudos, mas não na
leitura. Por outro lado, ele se refere aos pais como não letrados e que a leitura nunca
tinha sido assunto nas conversas de família. Acrescentamos que no final da memória
de leitura, o pesquisado finaliza com as seguintes palavras: [...] Resumidamente, não sou
um bom leitor, ou melhor, não tenho esse bom hábito de ler. Na verdade, não incorporei ainda.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Se levarmos em conta que o processo de hominização na perspectiva teórica de
Vigotski (2001) e Bakhtin (2003), trata-se de uma atividade essencialmente social, pois
o homem se forma e relaciona-se com os seus pares por meio da troca ou influência
mútua, compreendemos tais palavras do pesquisado. No processo de sua
constituição, ele não foi submetido na infância e na adolescência a todo o momento
em situações de práticas leitoras, o que talvez explique a sua autoavaliação de que
não é um bom leitor, ou melhor, não incorporou ainda o hábito de ler.
Em seguida, afirma:
[...] ao fazer este relatório de leitura pude refletir sobre o meu
papel como futuro incentivador de leitores que é o professor de
Língua Portuguesa. A partir dessa reflexão, constatei que seria
melhor trocar de curso [Curso de Letras], do que não ter o poder de
mudar a relação de centenas de alunos que talvez não tenha um
incentivador por perto para que essa triste trajetória não se repita.
Verificamos no trecho acima, uma tomada de consciência da trajetória leitora do
pesquisado quando relata, já adulto, sobre o seu papel de incentivador de leitores,
possivelmente seus futuros alunos, já que se tornará professor de Língua Portuguesa. Nesse
caso, Zilberman (1991) e Lajolo (2002) asseveram que a responsabilidade pelo incentivo à
leitura fica a cargo do professor de Língua Portuguesa. No entanto, as questões que giram
em torno da leitura, literatura e ensino deveria ser responsabilidade de todos os professores
da escola. Isso porque a leitura é, por sua própria natureza, um campo transdisciplinar,
sendo, portanto, fator de desenvolvimento individual em qualquer área de atuação na qual o
cidadão invista seus esforços, o que pode ser abordado em qualquer disciplina escolar.
Além disso, constatamos que, ao se considerar como futuro incentivador de leitores, há,
a nosso ver, questões relacionadas à formação docente. Vimos na Tabela 1, especificamente
no indicador ausência de motivação no processo de formação do leitor no espaço escolar, que das 97
memórias categorizadas, 43 ocorrências referem-se a tal ausência, podendo ser “cruzada” com
o indicador alusão para que o processo de formação de leitores se constitua no espaço escolar que, por
sua vez, materializou 39 ocorrências. Se por um lado, nas memórias de leitura dos pesquisados
há uma “denúncia” do modo como as práticas de incentivo à leitura ocorreram no espaço
escolar. Por outro, há uma preocupação para que ocorra uma formação leitora no referido
239
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
espaço. Desse modo, não desconsideraremos que o professor como aquele que lida
diretamente com os alunos, pode ser um fomentador de uma prática leitora na sua sala de
aula. Mas, chamamos a atenção que, além de estratégias internas no espaço escolar, a
formação de leitores diz respeito à política de popularização do livro e da leitura que é de
responsabilidade do poder público, na medida em que é este que, numa sociedade que se
deseja democrática, representa a maior parte das pessoas de uma nação (ZILBERMAN,
1991).
À guisa de considerações finais, retomemos a questão fundadora desta primeira fase
da pesquisa: quais elementos extraídos das memórias de leitura da comunidade acadêmica da
UESB/Jequié constituem-se em subsídios para a elaboração de práticas efetivas e eficazes na formação
do leitor? Com a análise, constatamos elementos que “indiciam” práticas de formação de
professores que atuam na Educação Básica, conforme explicitado por nós. Ademais, tais
elementos são capazes de permitir a organização de novos traçados para uma didática que
renove o trabalho com leitura em sala de aula. Desse modo, a segunda fase desta pesquisa
enseja fomentar a formação de leitores no espaço escolar, visto que foram considerados os
240
elementos recorrentes nas memórias que respondem à questão de pesquisa, passíveis de
serem transformados em propostas didáticas.
Com isso, acreditamos que as ações didáticas têm por finalidade a formação do
cidadão/leitor enquanto sujeito do pensar e do agir no campo complexo das relações sociais,
que se materializará por meio de intervenções, as quais se colocam em questão a interlocução
no ensino-aprendizagem da leitura, aproximando-se das recentes discussões que tratam o
leitor como produtor de sentidos, ou seja, leitor que, numa atitude responsiva, dialoga com o
autor por meio do texto (GERALDI, 1997). Como refletir sobre o processo de formação do
leitor, a partir das memórias de leitura, tem o intento de elaborar um novo constructo teórico no
campo da pedagogia da leitura para aplicá-lo em escolas públicas de Jequié e microrregião,
verificamos que há uma demanda para pesquisa/intervenção posterior que, possivelmente,
ampliarão as nossas discussões preliminares, mesmo porque concordamos com Bakhtin,
quando diz que
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
[...] todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou
menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter
violado o eterno silêncio do universo [...] todo enunciado [...] tem, por
assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu
início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados
responsivos de outros [...] o falante termina o seu enunciado para
passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente
responsiva (BAKHTIN, 2003, p. 274-275).
REFERENCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,
Janaína. Usos e abusos da história Oral. Marieta de Moraes Ferreira. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2006.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 ed. São Paulo:
Ática, 2002.
PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. Tradução José Horta Nunes. Campinas, SP:
Pontes, 2007.
ROSENTHAL, Gabriele. A estrutura e a gestald das autobiografias e suas
consequências metodológicas. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína.
Usos e abusos da história Oral. Marieta de Moraes Ferreira. Rio de Janeiro: Editora
da Fundação Getúlio Vargas, 2006.
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de
Moraes e AMADO, Janaína. Usos e abusos da história Oral. Marieta de Moraes
Ferreira. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2006.
VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. 2 ed. São Paulo: Contexto,
1991.
241
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
242
QUEBRANDO O SILÊNCIO COM A LEITURA DO VOCABULÁRIO DE
TORTURAS E TORTURADOS DE MÁRCIO MOREIRA ALVES
Elifrance de Oliveira Marins
Bolsista - IC – CNPQ – UFBA
[email protected]
Eliana Correia Brandão Gonçalves
UFBA
[email protected]
RESUMO
O trabalho tem por objetivo refletir sobre a leitura do vocabulário presente no livro
Torturas e Torturados de Márcio Moreira Alves que explicita as relações de violência
e de vigilância registradas nessa fonte e produzida em um regime ditatorial. Alves
foi um jornalista e político brasileiro que lançou Torturas e torturados, em 1966, no
intuito de denunciar e documentar fatos e registros de torturas ocorridos no período
militar no Brasil, de forma bem detalhada, sem esconder nada e sempre concluindo
os relatos com observações pessoais ou depoimentos fidedignos, a fim de sensibilizar
a consciência da sociedade. O livro foi proibido e recolhido pelo Governo Federal e
também usado como argumento para a tentativa de impugnação da candidatura de
Alves a deputado federal. Naquele período, a censura interditou o livro do escritor,
não só pelo mesmo ser denunciativo, mas porque a censura impedia a expressão dos
fatos pelos sujeitos, a utilização de espaços, a tomada de posturas, bem como
cerceava as rememorações. Posteriormente, a obra foi liberada pela justiça, em julho
de 1967, ano em que saiu sua segunda edição. Assim, é preciso ressaltar que o livro
trata de fatos e de pessoas retratadas por um observador e não por uma vítima, pois
é fato que a tortura foi uma forma de violência utilizada pelos militares para silenciar
os sujeitos, intimidá-los e, por esse motivo, faz-se necessária à leitura dos itens
lexicais do vocabulário que compõe essas relações, visto que essas unidades lexicais
podem ser lidas e refletidas na produção do escritor. Dessa forma a proposta é
refletir sobre a pesquisa com a leitura dos dados lexicais constantes nesse livro, visto
que, segundo Gonçalves (2014), diante de um regime em que há a impossibilidade de
falar e escrever com liberdade de expressão, o resgate dos testemunhos é também o
resgate dos ecos das vozes desses sujeitos, que tiveram suas histórias e memórias
silenciadas. Portanto, a leitura da violência nos regimes ditatoriais é decorrente das
questões de silenciamento e do não dito, posto que a censura reflete a proibição e a
liberdade de expressão, fazendo-se necessária a seleção e o uso de unidades lexicais
que representam as marcas de uma memória silenciada. Por fim, a análise da
dimensão dos aspectos léxico-semânticos, verificados no testemunho documental,
apresenta modos de explicação de fenômenos que podem ser verificados em textos
produzidos na ditadura militar, demonstrando que o léxico de uma língua é
carregado de marcas importantes em relação aos aspectos políticos, sociais, históricos
e culturais.
PALAVRAS-CHAVE: Leitura; léxico; tortura; violência; ditadura militar.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
1 APRESENTAÇÃO
Este trabalho está voltado para a leitura e debate acerca do vocabulário
presente no livro Tortura e torturados, como uma fonte documental que testemunha
fatos linguísticos e culturais, que se refletem na constituição histórica de nosso povo.
O estudo tem sido desenvolvido no curso de Letras da Universidade Federal da
Bahia - UFBA, com o auxílio de bolsa de IC do Conselho Nacional de Pesquisa CNPQ, que atualmente é chamado de Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico.
A pesquisa também está vinculada ao projeto intitulado Arquivos culturais e
construção do léxico: a vigilância nos regimes ditatoriais, coordenado pela Profa.
Dra. Eliana Brandão (UFBA) que tem, entre outros, o objetivo de ler e reavaliar fontes
testemunhais, históricas ou ficcionais, com a finalidade de analisar e interpretar as
unidades lexicais que representam acontecimentos vinculados à violência e à
vigilância e que evidenciam a construção de espaços semântico-lexicais na
244
composição dos discursos produzidos durante a vigência de regimes ditatoriais.
O estudo do léxico apresenta uma estreita relação com o mundo e sua história,
valores, crenças, hábitos, leis e costumes de uma determinada época. O
conhecimento do léxico permite um complexo estudo da realidade e da forma como
cada sujeito de sua época organiza o mundo que nos rodeia e designa dessa forma
diferentes esferas sociais, linguísticas e culturais.
Os textos de Vilela (1994), Berg (2002), Orlandi (2007), Gonçalves (2015),
Santos (2012), Biderman( 2001), Ilari (2002), ARAUJO (2013), Abbade (2015), Alvez
(1966), Soares (2015) e Maués (2015)
trouxeram informações esclarecedoras e
discursivas para a temática da pesquisa, não apenas por refletir o que foi a ditadura,
mas porque também revelam como e porque os acontecimentos do período militar
do Brasil ainda se relacionam com a atual sociedade brasileira, isto é, os textos não
relatam somente o silenciamento do não dito na época da ditadura, mas também,
refletem como e porque se davam esse silenciamento.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
2 A DITADURA MILITAR E A LEITURA DO LIVRO DE ALVES
A ditadura militar no Brasil foi um duro período conduzido por militares.
Nesse espaço de tempo o Brasil foi destacado por vários atos constitucionais que
colocava em prática a censura, a tortura em cima de todos que eram contra o regime,
perseguição política, a falta total de democracia, ou seja, uma época totalmente
marcada por um passado rigoroso e por uma violência traumática. Durante todo esse
período muitos brasileiros reagiram e lutaram contra a ditadura de variadas formas.
Muitos estudantes, artistas e intelectuais da época se manifestaram contra a ditadura.
De acordo com Araújo (2013, p. 27), Silva (2013, p.27) e Santos (2013, p. 27), uma forte
repressão se abatera sobre as lideranças sindicais e políticas ligadas principalmente
aos partidos trabalhistas e comunistas que haviam liderado as lutas políticas antes
mesmo de 64. Os grupos de luta se juntavam para apoiar a liberdade democrática,
para levantarem cartazes contra as prisões arbitrárias, a tortura, à censura, pela
liberdade de organização, revelação e manifestação política.
Figura 1 – Imagem do povo que vai às ruas e exigi o fim da
Implantação do Socialismo no Brasil (19/03/1964)
Fonte - O GLOBO, 2014.
Os acontecimentos do período da ditadura militar no Brasil (1964-1985) ainda
estão vivos e próximos, mas não suficientemente claros. As informações oficiais sobre
o regime militar possuem várias lacunas; muitas vítimas e desaparecidos políticos
ainda aguardam que suas histórias sejam esclarecidas e lembradas. Araújo (2013, p.
245
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
28), Silva (2013, p.28) e Santos (2013, p. 28). Dessa forma, a identificação de “lugares
de memória” relacionados a esse período tão marcante do nosso tempo torna-se
fundamental como fonte de conhecimento, estudo e ensino.
Diante de um regime em que há a impossibilidade de falar e escrever com
liberdade de expressão, o resgate dos testemunhos é também o resgate dos ecos das
vozes desses sujeitos que tiveram suas histórias e memórias silenciadas pelos
regimes ditatoriais. (GONÇALVES, 2015)
Os relatos de tortura nas instituições totais, como presídios, hospitais
psiquiátricos, faculdades, teatros etc. mostram como a prática não apenas era
tolerada, mas naturalizada como forma de controle e punição de corpos deformados
de cidadania e direitos. A discussão da tortura não se debruça apenas na lembrança
de um passado, mas ainda se revela como prática persistente no cotidiano brasileiro,
retocada pelas condições do tempo presente. (VANNUCHI, 2010, p.8)
A tortura é comum no Brasil desde sempre e para Soares (2010), essa prática é
uma herança maldita trazida pelos portugueses “educados” nos métodos da dita
246
sagrada Inquisição que permanece até hoje. Os indígenas, os hereges, os negros
escravos, os pobres em geral, todos foram vítimas de violência e abuso e para punir,
dar exemplos ou mesmo arrancar informações, era usado o meio de tortura, do
sofrimento. (SOARES, 2010, 21)
Torturar é um ato desumano, porque quem tortura trata as vítimas como seres
indignos, ou até mesmo como seres que merecem passar por tal ato de violência, logo
assim é incontestável que o passado da ditadura militar deixou o país mergulhado
em trevas, a sociedade vivia com pavor e medo, calados, sem direito de exprimir seus
pensamentos e ideias, sem coragem de denunciar atos repugnantes que muitas vezes
assistiam, mas não denunciavam para que tais atos não virassem contra elas mesmas
e fossem dessa maneira as próximas vitimas de repressão. (SOARES, 2010, 23)
Portanto, conhecer a verdade e ter acesso à história é um direito de todos.
Ofertar conhecimento histórico de acontecimentos que marcaram nosso passado
repressivo e que ainda condicionam nosso presente é certamente um ato político.
Pois se trata de lembrar não apenas para que haja justiça com as vítimas, mas
também para que toda a sociedade se envolva na consolidação da nossa cultura
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
democrática. Araújo (2013, p. 28), Silva (2013, p.28) e Santos (2013, p. 28). Denunciar
atos passados que nunca sequer foram conhecidos, é dar passos firmes para
fortalecer um modelo de sociedade cada vez mais ativa e exigente com respeito aos
direitos humanos.
Consoante Maué (2011, p.51), em 1964 surgiram às primeiras denúncias de
torturas, que deram origem, em 1966, ao primeiro livro de denúncia desses fatos:
Torturas e torturados de Alves. No ano de lançamento, o livro foi recolhido e
proibido pelo governo federal e ainda foi usado contra a negação da candidatura do
jornalista e autor como deputado federal. Apesar disso, em 1967, de acordo com
Maués (2011), a obra foi liberada pela justiça em sua segunda edição.
Figura 2 – Márcio Moreira Alves
247
Fonte – O GLOBO, 2009
O livro reúne investigações detalhadas, depoimentos, trechos de reportagens, e
documentos que denunciavam o uso da tortura já nos primeiros meses da ditadura,
durante o governo do general Castelo Branco. Segundo a revista Veja (2009), Alves
morreu aos 72 anos, no dia 03 de abril de 2009, depois de cinco meses internado no
Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, devido a um acidente vascular cerebral.
Figura 3 – Capa do livro - Torturas e Torturados
Fonte – LIVRARIA TRAÇA ONLINE (2015)
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O exemplar de Alves é bastante trágico e sombrio, pois retrata fatos narrados e
exprimem verdades que comprovam a condenação da violência presente numa
sociedade aterrorizada pelos governantes militares do Brasil. O livro não trata de
ideias ou conceitos políticos, trata de pessoas que sofreram e morreram durante a
luta e opressão do autoritarismo. É um livro que não só mostra a inumanidade, mas
também apresenta o terrorismo como arma política mais poderosa do estado. Numa
época em que a polícia usava métodos violentos para amedrontar as pessoas e onde a
tortura começou a fazer parte do cotidiano de todos na sociedade, a agressividade
passou a não ser mais surpresa na sociedade, posto que, a tortura passou a ser usada
em longa escala contra muitos presos políticos e reprimir dessa forma qualquer
opinião, pensamento ou ideia que fosse contra o governo. (LIMA, 1996, p.1; 2)
Foi por conta da coragem de Alves, de criar uma obra denunciativa,
investigativa e histórica baseada em testemunhos ricos e reais de pessoas que
vivenciaram um dos períodos mais temidos do Brasil, que o vigente trabalho tem por
objetivo estudar, selecionar e analisar os itens lexicais de violência e vigilância
248
presentes nesse texto e mostrar dessa forma que a temática não interessa apenas a
nossa própria história, como também interessa a história do mundo moderno.
3 O VOCABULÁRIO DE TORTURA E TORTURADOS
É o léxico que permite o saber partilhado que existe na consciência de cada
falante de uma língua, ou seja, é através dele que se caracteriza a primeira via de
acesso a falas e textos, quer sejam eles tecnológicos, científicos, jornalísticos, políticos,
religiosos, entre outros. Portanto, para Biderman (2001, p. 13), “o léxico de uma
língua natural constitui uma forma de registrar o conhecimento do universo”. É por
isso que o estudo do léxico se apresenta em três ramos de aprendizagem, a
lexicografia, ou seja, a elaboração de dicionários, a lexicologia, os estudos teóricos
que embasam a aplicação cientifica do léxico e, por fim, a terminologia, que se
especializa no estudo dos termos, a palavra especializada e os conceitos próprios de
diferentes áreas de especialidade.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Assim, o processo de nomeação dos seres e objetos terrestres gera o chamado
léxico das línguas naturais, pois o homem se apropria do símbolo real para criar o
símbolo linguístico, ou seja, as palavras. Desse modo, surgem as identificações
linguísticas através de sistemas classificatórios que o próprio indivíduo criou,
gerando conceitos e vocabulários distintos e variados. No entanto, a formação do
vocabulário vai depender da taxonomia, dos modelos de categorização e elaborações
especificas de cada cultura e nação. Portanto, cada civilização carrega uma herança
linguística, já que ao longo da sua história vai se constituindo um parâmetro da
realidade sócio-cognitiva com a criação dos signos lexicais. (BIDERMAN, 2001, p. 13)
À medida que as civilizações cresciam, o conhecimento da realidade crescia
junto
também,
gerando
dessa
forma
criações
técnicas
e
cientificas,
e
consequentemente ampliando o vocabulário de acordo com as novas noções e
invenções da época. Dessa maneira, conforme Biderman (2001, p. 15), no mundo
contemporâneo, sobretudo, está ocorrendo um crescimento geométrico do léxico
português e das línguas modernas de modo geral, em virtude do gigantesco
progresso técnico e cientifico da rapidez das mudanças sociais provocadas pela
frequência e intensidade das comunicações e da progressiva integração das culturas e
povos. Para Vilela (1994, p.14) o léxico é o elemento mais transformador da língua,
pois é nele que se reflete toda a mudança.
A ciência da lexicologia tem por objetivo de estudo a análise da palavra, a
categoria lexical e a estrutura do item lexical. Mesmo com tamanha grandeza
vocabular, a categorização do léxico e a lexicologia é uma área pouco estudada, mas
a pesar disso, o estudo do léxico não deixa de ser importante e necessário para
desvendar inúmeros mistérios de nossa história social e linguística, mistério estes
que são e podem ser descobertos pelo estudo e análise do léxico existente nessas
línguas em momentos específicos da história de cada povo. Biderman (2001, p.16). E
é baseado nessa linha de estudo teórico do léxico, que este trabalho visa explorar o
estudo do vocabulário presentes no livro Torturas e Torturados de Alves, que relata as
relações de violência e vigilância registradas nessa fonte escrita e produzida no
período do regime ditatorial no Brasil.
249
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Apesar do seu pequeno universo de estudo, cada palavra segundo Biderman
(2001, p.16) faz parte de uma vastíssima estrutura que deve ser considerada segundo
duas coordenadas básicas, a estrutura paradigmática e a estrutura sintagmática. É
dentro dessas duas estruturas que se percebe uma infinidade de significações
linguísticas, já que a lexicologia é paralela à semântica que por sua vez, se apropria
do processo e dimensão dos significados linguísticos. Para isso, tenta-se organizar tal
dimensão da lexicologia e dos seus conceitos, numa extensa e significativa obra que
conhecemos como dicionário.
É através da ciência da lexicografia, ou melhor, dos dicionários, que iniciaram
listas de palavras explicativas no intuito de auxiliar os leitores de textos bíblicos e
textos de antiguidade clássica do período latino medieval. Foi através da lexicografia
que a descrição lexical foi realizada e é através dela que vem despertando grande
interesse entre os linguistas.
Acrescenta-se que nos dicionários estão registrados os signos lexicais
referentes a conceitos formados por diversas culturas de uma época, tendo funções
250
normativas e informativas, portanto, a elaboração dos dicionários deve estar
organizada com entradas lexicais ou termos de uma língua referente ao universo
extralinguístico, nomenclaturas do dicionário e sua macroestrutura. O verbete tem
como eixo básico a definição da palavra em maiúsculas e ilustração contextual do
mesmo vocábulo ou através de abonações por contextos da língua oral, escrita. O
verbete também deve obter informações sociolinguísticas do uso da palavra e estar
associado ao lema por meio de redes semântico- lexicais.
O dicionário é um recurso muito simples e prático para fazer entender
palavras que nem sempre compreendemos.
O dicionário de língua faz uma descrição do vocabulário da língua
em questão, buscando registar e definir os signos lexicais que referem
os conceitos elaborados e cristalizados na cultura. Por outro lado, o
dicionário é um objeto cultural de suma importância nas sociedades
contemporâneas, sendo uma das mais relevantes instituições da
civilização. (BIDERMAN, 2001, p. 16)
A vista disso, fora ou dentro da educação acadêmica, um dicionário pode
prestar muitos e variados serviços ao leitor; cada um deles associado a um
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
determinado aspecto da descrição lexicográfica, ou seja, do conjunto de explicações
que ele fornece sobre cada uma das palavras registradas.
Para Abbade (2013, p.718), a pesar dos primeiros estudos das palavras terem
sido realizados para organizá-las alfabeticamente nos chamados dicionários, os
vocabulários não são lidos apenas por lexicográficos, mas também por outros
leitores.
A proposta é estudar o léxico constante no livro Torturas e Torturados de
Alves, que faz referência ao emprego de torturas ocorridas após o Golpe Militar de
1964. É inegável que a tortura foi uma forma de violência utilizada pelos militares
para silenciar os sujeitos, intimidá-los e por esse motivo faz-se necessário estudar o
vocabulário, isto é, o subconjunto que se encontra em uso efetivo por um
determinado grupo. O vocábulo conforme Abbade (2015, p.717) é a realização da
palavra no enunciado do discurso. Portanto, o estudo do vocabulário na obra de
Alves compõe relações de violência e de vigilância, por meio da tortura, que estão
registradas nas produções escritas produzidas no período do governo militar. Assim,
Vale ressaltar que a análise de fenômenos linguísticos por meio da
escolha dos itens lexicais, presentes nos discursos dos textos escritos,
que representam acontecimentos vinculados à violência da censura, à
opressão e à morte, possibilita o resgate dos arquivos e das memórias
daqueles que, diante de tais acontecimentos, viram suas vozes
silenciadas, vetadas suas palavras e seus ditos – devido ao contexto
político dos regimes ditatoriais – que denunciam as atrocidades que
vitimaram esses sujeitos. Desse modo, parte-se da reflexão de alguns
itens lexicais que revelam a censura, parcial ou total, e, também
aqueles divulgadores e portadores de denúncia diante de um quadro
político e militar de veto, de opressão e de indignação.
(GONÇALVES, 2015, p. 545)
Segundo Gonçalves (2015), a violência nos regimes ditatoriais é decorrente das
questões de silenciamento e do não dito, visto que a censura reflete a proibição e a
impossibilidade da liberdade de expressão, fazendo-se necessário a seleção e o uso
de unidades lexicais que representam as marcas de uma memória silenciada.
Portanto, é de interesse da pesquisa demonstrar como o léxico de uma língua está
coberto de manifestações importantes em relação aos variados aspectos sociais,
históricos, diplomáticos e étnicos.
251
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Muitos textos da eram modificados através de outras palavras e insinuavam
novos sentidos. Segundo Orlandi (2007, p.107), a censura é a interdição da inscrição
do sujeito em formações discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos
porque se impedia o sujeito de ocupar certos lugares, certas posições, ou seja, dá a
entender que a oposição à lexia é, também, uma oposição ao indivíduo enunciador, a
sua expressão, suas afeições, suas rememorações e ao seu grupo de fala.
O dicionário é um recurso muito simples e prático para fazer entender
palavras que nem sempre compreendemos do que se trata:
O dicionário de língua faz uma descrição do vocabulário da língua
em questão, buscando registrar e definir os signos lexicais que se
referem aos conceitos elaborados e cristalizados na cultura. Por outro
lado, o dicionário é um objeto cultural de suma importância nas
sociedades contemporâneas, sendo uma das mais relevantes
instituições da civilização. (BIDERMAN, 2001, p. 16)
Sendo assim, a partir da seleção, descrição e análise dos itens lexicais, por
meio de consultas a obras lexicográficas, os dados foram organizados na ficha252
catálogo da seguinte maneira:
1. Na parte superior é apresentada a referência completa do livro de Alves
(1966);
2. Em seguida, logo abaixo, apresentam-se em quatro colunas: a unidade
lexical; a transcrição dos verbetes dos três dicionários consultados, nos quais se
registram as unidades lexicais analisadas; abonação, que apresenta o contexto, no
qual o item lexical está inserido; e a observação, na qual se registram informações
complementares sobre o item lexical.
Figura 4 – Exemplo de Ficha – Catálogo
REFERÊNCIA:
ALVES, Márcio Moreira Alves. Tortura e torturados. 2 ed. composto e impresso nas oficinas da Empresa Jornalística PN,
S.A.
Rua
Luiz
de
Camões,
74
Rio
–
GB:
Rio
de
Janeiro,
1966.
Disponível
em:
http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/marcio_alves_torturas_e_torturados.pdf. Acesso: 26 de outubro de
2015.
UNIDADE
DICIONÁRIOS
ABONAÇÃO
OBSERVAÇÃO
LEXICAL
HOUAISS (2011)
FERREIRA (1986)
CUNHA (1996)
[Agredir]
Agredir v. (1818)
1t.d
praticar
agressão
contra
Agredir. [Do lat.
Agrgredere.] v.t.d. 1.
Atacar,
assaltar
Agredir
vb.
‘atacar, brigar,
assaltar,’ / 1871,
A idéia de que
torturas
estivessem
O item lexical
inserido no texto
de Alves está na
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
(alguém ou algo);
atacar,
assaltar.
2t.d
dirigir
ofensas
ou
injúrias a; insultar
<agrediu-o com
palavras
ásperas>3 pron.
trocar
agressão;
agredir
reciprocamente.
acometer. 2. Injuriar,
insultar:
embriagado,
agredia,
inconveniente,
os
passantes. 3. Bater
em;
surrar;
espancar.
agredir
1858/
do lat. Agredi.
[Dor]
Dor/ô/ s.f. (sXIII)
med
sensação
penosa,
desagradável,
produzida
pela
excitação
de
terminações
nervosas sensíveis
a esses estímulos,
e classificada de
acordo com o seu
lugar,
tipo,
intensidade,
periodicidade,
difusão e caráter.
Dor(ô)
[Do
lat.
dolore.] s.f.1. Med.
Sensação
desagradável,
variável
em
intensidade e em
extensão
de
localização,
produzida
pela
estimulação
de
terminações
nervosas.
Dor
sm.
Sofrimento
físico ou moral,
mágoa, aflição’
/ XVI, door XIII,
dolor XIV/ Do
lat. dolor- oris.
[Choque]
Choque
s.
m
(1694)
1 Estímulo súbito
Choque
[do
fr.
Choc] S. M. 1.
Embate, encontro de
Choque
sm.
‘encontro
de
dois corpos em
sendo
empregadas em
larga
escala
contra os presos
políticos era de
tal
forma
infame, agredia
tão brutalmente
a
formação
moral
dos
brasileiros que,
embora
a
considerasse
impossível, não
a examinamos,
a época, com a
atenção
necessária.
(ALVES, 1966,
p. 31).
Os carcereiros
queriam saber
onde estavam
os planos da
revolução que
haviam
recebido
de
Moscou e onde
haviam
escondido
as
metralhadoras.
Lorenzetti
foi
levado
para
outra sala e
Dorremi
lembra-se
apenas de seus
gritos
lancinantes.
Presume
que
era dor dos
elétricos
que
dava voz ao
torturado.
(ALVES, 1966,
p. 36)
Os carcereiros
queriam saber
onde estavam
forma flexional
do
verbo
transitivo direto
agredir
encontrado nas
formas
flexionadas nos
dicionários
de
Houaiss (2009),
Cunha (1986) e
Ferreira (1999).
O
contexto
apresentado
relata a história
dos
jovens
estudantes
Dorremi
e
Lorenzetti,
rapazes que na
época possuíam
20 anos de idade.
Eles
haviam
253
sido
sequestrados por
três
homens
armados
e
depois de serem
torturados foram
abandonados na
estrada.
A
dor
no
contexto
apresentado
remete a gritos
de
socorros,
clamor.
E
segundo
o
próprio
dicionário
de
Ferreira (1999),
dor não remete
apenas a dores
físicas
como
também
pode
ser descrita em
momentos
de
pesares e aflição,
ou seja, como
sentimento,
como protesto.
O
contexto
apresentado
relata a história
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
dos nervos, com
contração
dos
músculos,
causado por uma
descarga elétrica
no homem ou
num animal.
dois
corpos
em
movimento ou de
um
corpo
em
movimento e um em
repouso. 2. Embate,
encontrão.
3.
Reconto violento de
forças militares 4.
Carro de choque.
movimento ou
de um corpo em
movimento
e
um
em
repouso’. Do fr.
Choc, dev. de
choquer e , este,
do med. Neerl..
schokken, ou do
ing. To shock. .
[Esmurrar]
Esmurrar v(1713)
1. T.d. dar murros
em. 2 t..d fig.
Infligir
maus
tratos;
golpear,
maltratar, 3. T.d
tornar
embotado(instru
mento cortante)
ETM. Es- + murro
+ -ar SIN/VAR
esmurrar.
Esmurrar. [De es - +
murro + -ar] V. t. d.
Dar murros em:
indignado com a
proposta, esmurrou
a mesa; “ conheço
muito patife que não
sai de junto do altar,
a esmurrar os peitos
e engolir hóstias.”
Esmurrar->
murro
[Metralhadora]
Metralhadora s.f.
(1881) arma de
fogo automático
que dispara um
grande número de
projéteis em curto
espaço de tempo
Etim. fem. substv.
do
adj
metralhador,
calcado
no
fr. mitrailleuse
(1867)
'id.',
de mitrailler 'metr
alhar'; vermetralhhomon.
metralhadora /ô/
(f
metralhador
/ô/ [adj.s.m.])
Murro sm (1665)
pancada
forte
desferida com a
mão
fechada;
Metralhadora
(ô).
[fem. Substantivado
do
adj.
Metralhador] S. F
Arma
de
fogo
automática, que em
pouco
tempo
dispara numerosos
projetis análogos aos
dos fuzis.
Metralhadora
s.f ‘balas de
ferro, pedaços
de ferro, cacos
etc., com que se
carregam
projetis
ocos’
1973
Do
fr.
mitraille//
metralhadora
1881//
metralhar XIX.
Os carcereiros
queriam saber
onde estavam
os planos da
revolução que
haviam
recebido
de
Moscou e onde
haviam
escondido
as
metralhadoras.
(ALVES, 1966,
p. ?)
Murro s.m. pancada
com mão fechada . [
soco e bras.,N.E]
bogue.
Aum:
Murro
sm.’
Pancada com a
mão
fechada’
XVIII.
De
Cerca de oito ou
nove da manhã
seguinte, depois
de
um
254
[Murro]
os planos da
revolução que
haviam
recebido
de
Moscou e onde
haviam
escondido
as
metralhadoras.
Lorenzetti
foi
levado
para
outra sala e
Dorremi
lembra-se
apenas de seus
gritos
lancinantes.
Presume
que
era dor dos
choques
elétricos
que
dava voz ao
torturado.
(ALVES, 1966,
p. 36)
Presume
que
era dor dos
choques
elétricos
que
dava voz ao
torturado. Com
ele, limitara-se a
fazer a roleta
Russa
e
esmurrarem seu
estômago.
(ALVES, 1966, p
36)
dos
jovens
estudantes
Dorremi
e
Lorenzetti,
rapazes que na
época possuíam
20 anos de idade.
Eles
haviam
sido
sequestrados por
três
homens
armados
e
depois de serem
torturados foram
abandonados na
estrada.
O
contexto
apresentado
relata a história
de
Dorremi
oliveira,
rapaz
que na época
tinha 20 anos e
havia
sido
sequestrado por
três
homens
armados.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
soco, morraça.
Dar m. em faca de
ponta. Fraseologia
2.insistir em fazer
algo que será
infrutífero,
que
não
tem
possibilidade de
se concretizar;
orig. obsc.
Sinônímia
e
variantes
bogue, macaca.
murraça.
origem obscura.
melancólico
episódio
de
masturbação
vivido com um
dos carcereiros
que
era
pederasta,
Dorremi teve de
assinar
um
papel
em
branco,
onde
seria escrita sua
“confissão”.
Relutou
por
duas vezes em
fazê-lo mas foi
rapidamente
convencido por
murros e golpes
de telefone.
(ALVES, 1966,
p.36)
A organização de fichas catálogos descritivos, principalmente aqueles
relativos ao estudo do vocabulário de textos produzidos durante a vigência de
regimes ditatoriais, permiti que o leitor tenha um acesso mais direto às etapas
metodológicas da pesquisa, possibilitando dessa forma o desenvolvimento de
reflexões e debates acerca da importância da leitura de fontes documentais como
testemunho de fatos linguísticos, históricos e culturais, que se refletem na
constituição semântico-lexical e histórica de nossa língua (GONÇALVES, 2015).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo, foram apresentadas leituras sobre a construção lexical
presentes no livro “Torturas e torturados” de Marcio Moreira Alves, que explicita as
relações de violência e vigilância registradas nessa fonte escrita e produzida em
regime ditatorial, sobretudo, no andamento governamental do general Castelo
Branco. Foi observado que a tortura foi uma forma de violência utilizada pelos
militares para silenciar as vítimas de opressão, intimidá-los e, por esse motivo, faz-se
necessário estudar do vocabulário que compõe as relações de violência e de
vigilância, por meio do sofrimento humano.
255
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Assim, a leitura da tortura não se debruça apenas na lembrança de um
passado, mas ainda se revela como prática persistente no cotidiano brasileiro,
retocada pelas condições do tempo presente e, com um contato mais direto com os
fatos registrados no texto, pode-se ler que a obra é um testemunho de que toda a
forma de tortura precisa ser repudiada.
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257
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
258
FUXICOS BIOGRÁFICOS
Experiências vividas e narradas de alfabetizadoras do sertão
Fabiane Santana Oliveira
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
[email protected]
Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
[email protected]
RESUMO
Fuxicos são artesanatos muito presentes no sertão, os quais, nas palavras de Araújo
(2013), representam uma composição originária como teia formada por retalhos de
tecidos entrelaçados com sua estamparia multicor. Fuxicos são como metáforas de
narrativas (auto)biográficas que permitem revelar a tessitura das histórias dos
sujeitos e as subjetividades que lhes constituem. Partindo desta conceitualização,
buscamos, neste artigo, tecer reflexões sobre o desenvolvimento do processo de
investigação-formação intitulado Fuxicos Biográficos: experiências vividas e narradas de
alfabetizadoras do sertão; uma atividade inspirada nos ateliês biográficos de projeto de
Delory-Momberger (2006), procedimento que, por meio de atividades de exploração,
atos de escritura de si, leitura e compreensão do outro, permite aos sujeitos a
inscrição de suas histórias de vida e formação, numa dinâmica que inter-relaciona o
passado, o presente e o futuro. Os Fuxicos Biográficos foram desenvolvidos com o
intuito de apreender as narrativas de professoras alfabetizadoras que atuam em
turmas de 1º ano, no município de Tucano, no sertão da Bahia. Trata-se de um
trabalho de natureza qualitativa, no qual, ganham destaque as discussões teóricopráticas que abrangem o método (auto)biográfico, em suas interfaces de pesquisa e
de formação. Para tanto, utilizamos como instrumentos de construção e análise de
informações a observação participante, diário de campo, levantamento documental
(planejamento, avaliação e textos literários). Ressaltamos que os Fuxicos Biográficos se
configuraram como um valiosíssimo procedimento de investigação-formação que
resultou na escrita de narrativas (auto)biográficas, mais especificamente, os
memoriais de formação, ou seja, a apresentação de um segmento de vida, no qual o
sujeito esteve implicado em sua formação profissional, reconstruindo suas
experiências. A escrita do memorial de formação partiu da realização de atividades
provocadoras que permitiram, a cada professora alfabetizadora, rememorar suas
trajetórias e suas práticas; atividades de exploração desenvolvidas em grande grupo
e em subgrupos, com suportes diversos que possibilitaram-lhes reescrever seus
percursos, evocando tempos, espaços, eventos e sujeitos que foram significativos,
partindo de eixos orientadores previamente definidos, a saber: a entrada e a trajetória
formativa na profissão, experiências formativas para alfabetização, as práticas alfabetizadoras
e o ser professora alfabetizadora do sertão. No decorrer de cada encontro formativo
procuramos utilizar práticas que favorecessem a expressão oral e escrita dos sentidos
que os sujeitos em formação dão às suas aprendizagens, sendo este procedimento,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
antes de tudo, uma prática de interação e comunicação, que prima pelo diálogo entre
todos os participantes. Este trabalho procura evidenciar, portanto, o modo como os
Fuxicos Biográficos permitiram que os sujeitos envolvidos em sua realização
retomassem e reconstruíssem, por meio da memória, as vivências e experiências
ocorridas em seus processos formativos e em suas atuações profissionais, envolvendo
as singularidades do contexto sertanejo, além de abordar os próprios sentidos que os
sujeitos participantes atribuem às aprendizagens construídas ao longo deste processo
formativo.
PALAVRAS-CHAVE: Experiência; Narrativas; Professoras Alfabetizadoras; Sertão.
INTRODUÇÃO
Fuxico é um artesanato muito presente no sertão, composto da união de
pequenas trouxas de tecido, as quais, entretecidas, constituem flores coloridas, uma
“composição originária como teia formada por retalhos de tecidos entrelaçados com
sua estamparia multicor” (ARAÚJO, 2013), que se configura, neste trabalho, como
260
uma metáfora que revela a tessitura das narrativas de alfabetizadoras do sertão, a
partilha e o entrelaçamento entre elas.
Partindo disso, intitulamos o procedimento de investigação-formação
utilizado com o intuito de apreender narrativas de alfabetizadoras - memoriais de
formação- como Fuxicos Biográficos: experiências vividas e narradas de alfabetizadoras do
sertão, uma atividade inspirada nos ateliês biográficos de projeto de DeloryMomberger (2006) que, segundo esta, configura-se como um espaço de inscrição da
história de vida do sujeito numa dinâmica que inter-relaciona o passado, o presente e
o futuro, fazendo emergir um projeto pessoal. Trata-se de um procedimento que, por
meio de exploração, socialização, atos de escritura de si e compreensão do outro,
permite aos sujeitos, além da inscrição de suas histórias de vida e formação,
extraírem um “projeto de si profissional” (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 364).
O trabalho com os Fuxicos configura-se como um desdobramento da pesquisa
intitulada PROFESSORAS ALFABETIZADORAS DO SERTÃO BAIANO: trajetórias de
formação-profissão, vinculada às ações do Grupo de Pesquisa Docência, Narrativas e
Diversidades – DIVERSO, o qual está inserido na linha de pesquisa 2: Educação,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Práxis Pedagógica e Formação do Educador do Programa de Pós-Graduação em
Educação e Contemporaneidade
da Universidade de Estado da Bahia –
PPGEduC/UNEB.
O artigo está desenvolvido em três seções, sendo a primeira destinada à uma
breve explanação sobre as potencialidades da (auto)biografia nos processos de
investigação-formação. Na segunda seção tecemos uma apresentação e reflexão sobre
a experiência formativa das alfabetizadoras nos Fuxicos Biográficos, e na terceira e
última discorremos sobre as implicações dos Fuxicos Biográficos no processo
formativo das alfabetizadoras do sertão, partindo dos sentidos atribuídos pelas
próprias alfabetizadoras, expressos em seus registros avaliativos. Concluímos o texto
com uma reflexão geral sobre o desenvolvimento do trabalho e os resultados obtidos.
1. POTENCIALIDADES
DA
(AUTO)BIOGRAFIA
NOS
PROCESSOS
DE
INVESTIGAÇÃO-FORMAÇÃO
De acordo com a pesquisadora Passeggi (2008, p. 27), “auto-bio-grafar é aparar
a si mesmo com as próprias mãos”, é uma maneira que a vida de cada sujeito tem de
beneficiar-se de um (re)nascimento, pela mediação da escrita. Trata-se, segundo esta,
de um processo que envolve três elementos: a identidade dos sujeitos, isto é, a
consciência de si mesmo, representada pelo termo autos; a vida simplesmente vivida
– bios; e a escrita – grafia, que simboliza o meio desse novo nascimento do eu.
Entendida na relação entre esses elementos, a (auto)biografia tem sido
amplamente utilizada no âmbito das pesquisas em educação, como uma abordagem
metodológica cujos princípios revelam uma maneira de ampliar o conhecimento
sobre a pessoa em formação, sugerindo que os sujeitos inscrevam-se no movimento
singular de busca pelo “conhecimento de si” (SOUZA, 2006), por intermédio de
registros narrativos, sejam eles orais e/ou escritos.
Este método surgiu como um novo paradigma científico que pretendia
atribuir à subjetividade valor de conhecimento, cujos fundamentos partem da
tomada de consciência sociopolítica por meio da pessoa, tendo como materiais de
pesquisa o sujeito-objeto e a interação pessoal, método, portanto, de domínio do
261
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
qualitativo, alheio a todo esquema de verificação de hipóteses previamente
estabelecidas, cujas raízes estão na tradição hermenêutica que é “o resultado de uma
reflexão pessoal, ou seja, a passagem de uma consciência imediata que é a das
sensações, das vivências e das experiências, a uma consciência refletida” (FINGER,
2010, p. 125).
Assim, nos movimentos de investigação-formação que têm como base a
(auto)biografia, parte-se do princípio de que os sujeitos aprendem a partir de sua
própria história; estes sujeitos são ativos, compreendidos como atores/autores que
constroem o próprio conhecimento. Através do rememorar experiências vividas e
narrá-las, os sujeitos se (re)apropriam de sua própria história e refletem sobre a
mesma, podendo ser levados a produzir novos conhecimentos e posicionamentos
diante de suas relações pessoais e profissionais. Como afirma Delory-Momberger
(2014, p.91), nesses processos, “os sujeitos investem nos espaços de aprendizagem, e
a sua conscientização permite definir novas relações com o saber e com a formação”.
Compreendemos que os processos formativos ocorrem quando, aliados ao
262
rememorar, narrar/escrever, o sujeito empenha-se na atividade de reflexão tanto
sobre sua trajetória, quanto sobre as trajetórias de outros sujeitos envolvidos no
mesmo processo. Num trabalho (auto)biográfico de produção e socialização de
narrativas, desenvolvemos ações partilhadas que, conforme
Delory-Momberger
(2014), permitem compreender o outro e compreender a si mesmo através do outro,
provocando efeitos transformadores.
2. A EXPERIÊNCIA FORMATIVA DE ALFABETIZADORAS DO SERTÃO NOS
FUXICOS BIOGRÁFICOS
Fuxicos Biográficos configuram-se como um procedimento investigativo por
permitir ao pesquisador compreender como, através da memória, os sujeitos
reconstroem e refletem sobre suas experiências, atribuindo-lhes sentido - no caso
específico da pesquisa no qual este dispositivo foi efetivado, permitindo
compreender as trajetórias de formação-profissão e as práticas pedagógicas de
professoras alfabetizadoras no município de Tucano, sertão da Bahia. Apresenta-se,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
ainda, como formativo por ser uma construção própria do sujeito que tem a
possibilidade de produzir uma “mudança qualitativa, pessoal e profissional,
engendrada por uma relação reflexiva com sua história” (DELORY-MOMBERGER,
2014, p. 96).
A experiência formativa deu-se após mapeamento docente do ciclo da
alfabetização no município de Tucano-BA, quando obtivemos um quadro de 110
professores alfabetizadores que atuam, em 2015, em turmas de 1º, 2º e 3º anos, além
de turmas multisseriadas que envolvem este segmento. Realizamos um recorte desse
quadro e, por intermédio da Secretaria Municipal de Educação, enviamos convites a
24 professoras alfabetizadoras que atuam em turmas de 1º ano do Ensino
Fundamental para participar de um encontro de socialização da proposta de
investigação-formação e para efetivação das inscrições.
O encontro de socialização/inscrição foi um momento importante para a
compreensão do trabalho, os objetivos e dispositivos a serem efetivados ao longo dos
Fuxicos, sendo, imprescindível, neste momento inicial que, apresentássemos,
brevemente, a essência do método (auto)biográfico e da fonte biográfica que seria
produzida: os memoriais de formação.
Partimos, então, de leituras literárias, com textos poéticos que traziam noções
(auto)biográficas, aspectos da memória e da escrita de si, a exemplo dos textos:
Infância, de Carlos Drummond de Andrade (1999); Retrato, de Cecília Meireles (2001);
Auto-retrato, de Manuel Bandeira (1996); Auto-retrato falado, de Manoel de Barros
(1993); Grande Desejo, de Adélia Prado (1999); e Minha Culpa, de Florbela Espanca
(2002), entre outros textos e autores que, em sua poesia, trazem elementos desse
universo da escrita de si ou de um eu-poético que reflete sobre a própria existência.
Neste encontro, foi posto um quadro de inscrição com 12 vagas, com o intuito
de que se inscrevessem alfabetizadoras que atuassem em diversas localidades do
município de Tucano, construindo um conjunto favorável à condução das atividades,
maior envolvimento e trocas intersubjetivas entre elas.
Os Fuxicos Biográficos foram realizados em seis encontros com a participação
efetiva de nove das doze alfabetizadoras inscritas; duas professoras optaram por não
dar continuidade ao trabalho, e uma professora, após ter sofrido acidente que trouxe-
263
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
lhe dificuldades de locomoção, desenvolveu a maior parte das atividades em casa,
produzindo sua narrativa, porém, sem participar dos momentos essenciais de
socialização.
O primeiro encontro dos Fuxicos Biográficos foi destinado à sensibilização do
grupo sobre a importância deste procedimento de investigação-formação e a firmar o
compromisso de participação na pesquisa Professoras Alfabetizadoras do Sertão Baiano:
trajetórias de formação-profissão.
Partindo
de
uma
conversa
inicial
sobre
o
contexto
da
pesquisa
(auto)biográfica, no qual o trabalho se insere, retomamos a proposta de trabalho, os
objetivos
e
dispositivos
a
serem
efetivados,
construindo
um
contrato
didático/biográfico com as participantes. Elaborado democraticamente entre a
pesquisadora/formadora e as alfabetizadoras, com vistas a garantir a participação
efetiva, responsável e integral destas em todos os momentos, o contrato serviu para
fixar as regras de funcionamento dos Fuxicos, enunciar a sua intenção
“autoformadora” (Pineau, 2010) e oficializar a relação consigo e com o grupo de
264
trabalho.
Os Fuxicos Biográficos foram apresentados na perspectiva da “autoformação”
delineada por Pineau (2010), com o entendimento de que, neste movimento de
investigação-formação estão implicadas as ações do outro (heteroformação) e do
meio vivido (ecoformação), de modo que houvesse a compreensão de como sua
realização proporcionaria a apropriação do poder de formação pelas alfabetizadoras
que, ao tomar este poder nas mãos, tornam-se tanto sujeito quanto objeto de
formação para si mesmo e para o outro.
Na perspectiva apresentada por Pineau (2010), autoformar-se consiste na
dinâmica de diferenciar-se dos outros sujeitos/objetos, refletir-se, emancipar-se e
autonomizar-se, tendo a consciência histórica de como as ações do outro e do meio
são significativas para a formação de si próprio, através das relações estabelecidas.
A leitura literária ganhou espaço de destaque, mais uma vez, em nosso
primeiro encontro, tanto a partir de um trecho do texto poético retirado do livro Dias
e noites de amor e de guerra, de Eduardo Galeano (2014), quanto da leitura da narrativa
Foram muitos, os professores, de Bartolomeu Campos de Queiroz (1997). A literatura foi
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
apresentada como estratégia de mobilização para que as alfabetizadoras se sentissem
impulsionadas a empreenderem-se no movimento de escrita de suas próprias
narrativas.
Os Fuxicos Biográficos permitiram que os sujeitos envolvidos em sua realização
retomassem e reconstruíssem, por meio da memória, suas vivências e experiências
ocorridas no processo formativo e na atuação profissional envolvendo as
singularidades do contexto sertanejo. Para isso, os quatro encontros seguintes,
partiram de eixos orientadores das narrativas, sendo eles: 1 - a entrada e a trajetória
formativa na profissão; 2- experiências formativas para alfabetização; 3 - as práticas
alfabetizadoras; 4 – ser professora alfabetizadora do sertão.
Estes quatro encontros tiveram como principais objetivos: rememorar
experiências que foram/são significativas no processo de formação-profissão das
alfabetizadoras;
narrar
experiências,
trajetórias
e
percursos
da
vida
que
impulsionaram para a escolha da docência e para o trabalho com a alfabetização,
narrar sobre as práticas alfabetizadoras, bem como sobre a alfabetização e docência
no contexto do sertão.
265
As histórias escritas a cada encontro foram socializadas por meio de contação
e da leitura integral dos textos, possibilitando espaços em que as outras professoras
pudessem realizar intervenções nas narrativas individuais de suas colegas,
estimulando o movimento de reescrita do texto.
O sexto e último encontro foi destinado à socialização dos memoriais de
formação, no coletivo, e à realização da avaliação desse movimento investigativoformativo. Momento de síntese e reflexão, no qual as alfabetizadoras puderam fazer
um balanço do que foi formador ou não no procedimento desenvolvido, revelando as
percepções e sentidos atribuídos por cada professora em relação à participação nos
Fuxicos Biográficos.
Durante
todos
os
encontros
foram
realizadas,
portanto,
atividades
provocadoras que visavam levar ao movimento de escrita do memorial de formação
e de sua socialização, atividades de exploração desenvolvidas em grande grupo e em
subgrupos, com suportes diversos que permitiam às participantes reescrever seus
percursos, evocando tempos, espaços, eventos e sujeitos que foram significativos.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
3. IMPLICAÇÕES
DOS
FUXICOS
BIOGRÁFICOS
NO
PROCESSO
FORMATIVO DE ALFABETIZADORAS DO SERTÃO
A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim
mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo. (GALEANO,
2014, p.10)
Ao longo dos Fuxicos Biográficos, as alfabetizadoras investiram na
rememoração e reflexão sobre suas trajetórias formativas e profissionais e, assim
como é destacado nos versos de Galeano (2012), trouxeram, em suas narrativas, o
“que merecia ser salvo”: espaços, tempos, acontecimentos e sujeitos marcantes; a
compreensão e a interpretação de como e o quê representam/representaram em suas
histórias.
Segundo Delory-Momberger (2014, p.54) a narrativa (auto)biográfica instala
uma hermenêutica da “história de vida”, ou seja, “um sistema de interpretação e de
construção que situa, une e faz significar os acontecimentos da vida como elementos
266
organizados no interior de um todo”. Dessa forma, compreendemos que, ao narrar
suas histórias, as alfabetizadoras abordaram não a vida em si, mas a compreensão e o
significado que atribuíram ao vivido, o qual adquiriu o status de experiência à
medida que se empenharam num trabalho reflexivo sobre o que se passou e, diante
do que foi observado, percebido e sentido, conseguiram extrair algo de significativo e
formador para sua vida.
A narrativa assumiu, neste trabalho, um espaço de rememoração, organização,
estruturação e interpretação das situações do vivido e das experiências que ficaram.
O ato de narrar pode ser compreendido como a ação de dar sentido às experiências;
nas palavras de Larossa (2002, p.21), dar sentido a “o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca”.
As alfabetizadoras trouxeram, também, os sentidos e significados que
atribuíram às experiências que tiveram nesse processo de investigação-formação.
Apresentamos, aqui, trechos das avaliações das alfabetizadoras: Bela, Esther e
Sophia, sobre o desenvolvimento dos Fuxicos Biográficos, de modo a compartilhar
parte desses sentidos e significados.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Quando questionadas sobre como percebiam a relação entre a proposta inicial
da investigação-formação e sua efetiva realização, as professoras demonstraram-se
surpreendidas diante da dimensão do trabalho. Estavam acostumadas com modelos
de formações aplicacionistas e normativos que focavam, meramente, na relação com
o trabalho pedagógico, estudos teóricos sobre “como ensinar” e o que seus alunos
“devem aprender”. O olhar e o narrar sobre si mesma, representou uma inovação em
seus processos de formação continuada, como pode ser observado no trecho:
No início imaginei que fosse uma formação no sentido de receber
orientações do trabalho pedagógico relacionado à alfabetização, bem
como fazer estudo de alguns pesquisadores com embasamentos
teóricos. Após sua realização percebi que além do diálogo, trocas de
experiências com as outras colegas participantes, é um mergulho
profundo nas vivências/experiências dos outros, no sentido de
conhecer o trabalho pedagógico praticado na sala de aula. (Sophia,
alfabetizadora do sertão, 2015).
Sophia demonstra compreensão sobre a riqueza do trabalho a partir da
narrativa de suas experiências, percebendo-se, não mais como sujeito passivo, mas
como sujeito autor de sua própria formação, uma formação compartilhada,
concretizada na relação com o outro. Para esta professora, a formação permitiu um
novo olhar sobre o ser e o fazer profissional, no sentido de conhecer, de uma nova
maneira, o trabalho da sala de aula, sentimento compartilhado por Bela, segundo a
qual “a pesquisa-formação contribuiu para minha formação pessoal como professora,
além de ampliar minha visão para a alfabetização”.
A professora Esther afirmou que “previa um simples registro sobre a trajetória
e socialização desses. Não esperava mexer em muitos retalhos da minha história de
vida”, revelando que teve suas expectativas superadas, diante do que lhe foi
proposto e efetivado.
Questionadas se a experiência formativa trouxe-lhes implicações pessoais e
profissionais, as professoras afirmaram de forma positiva, como exemplificam os
trechos:
Foi uma oportunidade para pensar nas escolhas que fazemos na vida
e o poder dessas escolhas nos traçados da nossa história. Momentos
267
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
que me possibilitaram repensar nos espaços e sujeitos nessas
andanças no município e o que esses espaços e sujeitos construíram
em mim como profissional e como pessoa. (Esther, alfabetizadora do
sertão, 2015).
No âmbito pessoal me possibilitou visitar memórias que estavam
guardadas em meu passado, me trazendo pessoas e momentos
importantes em minha vida. No profissional lembrou minha
trajetória pra chegar até aqui, me fez perceber o quanto é importante
estar participando de formações, mas também me fez ver que eu sou
capaz de fazer bem o que me proponho a fazer, pois faço com
responsabilidade e dedicação. (Sophia, alfabetizadora do sertão,
2015).
Percebemos que as implicações pessoais e profissionais decorrentes dessa
formação aparecem de maneira indissociadas, e que, entre as mais significativas, está
a reafirmação do ser professora alfabetizadora e da escolha pela docência, reforçadas
pelas memórias das trajetórias pelas quais passaram e dos sujeitos que tiveram
participação importante nesta construção.
As alfabetizadoras elencaram, em suas fichas de avaliação, pontos positivos e
268
negativos em relação ao desenvolvimento dos Fuxicos Biográficos, tendo prevalecido
entre os positivos aspectos voltados para a partilha de experiências entre as
“fuxiqueiras”, como se autodenominavam; a rememoração e a reflexão sobre suas
trajetórias formativas e profissionais, conforme apresentam abaixo:
Revisitar nossa memória para reviver as experiências e trajetórias
profissionais/pessoais; fortalecimento do desejo de ser professora
alfabetizadora ao retomar a minha história profissional; valorização
do trajeto profissional/pessoal; trocas de experiências e aberturas
entre as “fuxiqueiras”; Biografar essa trajetória. (Esther,
alfabetizadora do sertão, 2015).
Partilhar experiências; encontrar colegas alfabetizadoras; rememorar
momentos e pessoas que fizeram parte de minha história; refletir
sobre o processo formativo vivenciado; refletir sobre a prática
pedagógica. (Sophia, alfabetizadora do sertão, 2015).
Vale destacar que, assim como a professora Esther apresenta em sua avaliação,
os Fuxicos Biográficos se configuraram como um espaço de valorização profissional e
pessoal. Sendo levadas a refletir sobre suas trajetórias, as professoras se reafirmaram
na profissão e resinificaram suas práticas.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Entre os aspectos negativos prevaleceu o fator tempo, considerado
insuficiente, pelas “fuxiqueiras” para o desenvolvimento da formação e, ainda, a
carga horária de trabalho que possibilitou que os encontros fossem realizados, em
sua maioria, aos sábados.
Para a professora Bela, o ponto negativo foi a restrição da formação a um
pequeno número de alfabetizadoras, avaliando que esta experiência formativa
deveria ser expandida para outros profissionais: “A professora-formadora abordou
os eixos de forma clara . Além disso, os encontros foram cercados de boa energia e
descontração. Gostaria que mais professoras do primeiro ano tivessem se
disponibilizado para aprender junto conosco”.
Partilhando de ideias semelhantes, a professora Esther sugeriu: “Enviar à
SEMEC um relatório final do sucesso e contribuições para os professores
alfabetizadores que participaram da formação”. Indicando, com esta sugestão a
“possibilidade de expansão da formação para outros profissionais da rede
municipal”.
De modo geral, as professoras revelam sentimentos positivos em relação ao
desenvolvimento e suas participações nos Fuxicos Biográficos, fazendo-nos perceber
o quão valioso é o investimento nesses processos investigativos e formativos que
devolvem ao professor o poder de sua própria formação, e atribuem às narrativas
(auto)biográficas valor e conhecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da rememoração do passado podemos compartilhar
experiências e momentos prazerosos, rever erros, absorver conselhos
e traçar o futuro. Na troca de experiência percebemos que as
adversidades por vezes se assemelham entre colegas. (Bela,
alfabetizadora do sertão, 2015).
É assim que a professora Bela conclui sua avaliação sobre o processo de
investigação-formação vivido, trazendo os elementos que lhes foram significativos,
269
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
com ênfase ao papel da memória na (re)apropriação de sua história, ao
compartilhamento de suas experiências tecidas nos Fuxicos/narrativas e o
entrelaçamento de sua própria história com as histórias de cada alfabetizadora, ao
revelar que, embora sejam experiências singulares, em muito elas se aproximam, “se
assemelham”, diante do sentimento de pertencimento a um mesmo fenômeno
(docência/alfabetização) e a um mesmo lugar (sertão).
Os Fuxicos foram desenvolvidos através de práticas que favoreceram a
expressão oral e escrita dos sentidos que as alfabetizadoras do sertão dão às suas
aprendizagens. Movimento que teve como base a (auto)biografia, ou seja, o trabalho
voltado para a narrativa de si, materializado na produção dos memoriais de
formação, além do trabalho de escuta/leitura e compreensão da narrativa do outro,
denominado por Delory-Momberger (2014) de “heterobiografia”, representando,
antes de tudo, uma prática de interação e comunicação, que primou pelo diálogo
entre todas as participantes, instaurando a formação na relação com o outro.
Fuxicos Biográficos instauraram-se na perspectiva formativa por permitir às
270
alfabetizadoras intensos momentos de reflexão e reinterpretação de suas trajetórias
de formação-profissão, rever seus percursos e suas práticas, reconhecendo-se como
profissionais com limites e possibilidades, compreendendo a narrativa como esse
meio de (re)nascimento e de transformação de si, que permitiu, no presente,
rememorar e ressignificar o passado e, nas palavras da professora Bela, “traçar o
futuro”.
REFERÊNCIAS
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SOUZA, E. C. de. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de
professores. Rio de Janeiro: DP&A; Salvador, BA: UNEB, 2006.
271
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
272
HERDAR, EXPERIENCIAR, NARRAR:
Percursos singular-plural.
Fulvia de Aquino Rocha
GRAFHO-UNEB; Professora da Educação Básica
[email protected]
RESUMO
O presente artigo é fruto das discussões e elaborações desenvolvidas no seio da
disciplina: abordagem (auto) biográfica e formação de professores-leitores,
componente curricular do Programa de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade, da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB),
ministrada pelas professoras Verbena Rocha e Jane Adriana Rios, no ano de 2011. O
componente curricular em questão teve como eixo estruturante a discussão das
perspectivas teórico-metodológicas da abordagem (auto) biográfica, as histórias de
leitura e suas implicações para a formação e autoformação de professores-leitores.
Nesse texto, em meio às referências estudadas, evidencio a experiência de leitura de
Sanches Neto (2004), narrativa na qual busquei compreender os elementos que
contribuíram em sua constituição leitora, e entrelaço sua narrativa às narrativas de
professoras alfabetizadoras, colaboradoras de minha pesquisa de mestrado,
intitulada “histórias de vida de professoras alfabetizadoras: espaços de vidaformação” (2013). A pesquisa se propôs investigar como se tornaram professoras a
partir de suas histórias de vida, e ao mergulhar em suas narrativas, ficaram explícitas
memórias escolares e referências familiares que demonstraram a relação que
estabeleceram com a leitura, com o livro, bem como sua ausência e a repercussão
dessa relação na (auto)formação. Longe de seguir uma ordem cronológica, linear,
mas tendo garantida a temporalidade, fator importante nas narrativas como ressalta
Bertaux (2010), as crônicas de Sanches delineiam por meio dos acontecimentos e das
decisões que toma, seus encontros com o livro. Fica evidente como as histórias de
leitura estão implicadas nas histórias de vida, e como a narração da própria vida
expressa a interioridade e afirmação de si mesmo. As narrativas das professoras
evidenciam: o acesso fácil aos livros, por ter mãe professora, o que a leva ter maior
prazer na presença dos livros do que em contato com brinquedos; a presença da irmã
que sempre tinha livro às mãos e desperta o desejo de também tê-los; a valorização
do livro enquanto objeto; as condições financeiras difíceis e a percepção do esforço da
mãe em conseguir os livros, que precisavam ser apagados para serem utilizados
novamente; a consciência da responsabilidade e necessidade de se trabalhar na
constituição leitora das crianças na escola, tendo em vista o pouco incentivo à leitura
que vivenciam fora dela e desvalorização do próprio livro, reflexo da própria história
dos familiares. Assim sendo, compreendo que as histórias pessoais e coletivas de
leitura, sejam elas tecidas a partir de percursos singulares e/ou plurais de formação
na relação com seus pares, proporciona uma constituição leitora única para cada
sujeito, porque singulares somos todos nós.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
PALAVRAS-CHAVE: literatura; narrativas docentes; histórias de vida; constituição
leitora.
NARRAR PARA CONTEXTUALIZAR...
A pesquisa Histórias de Vida de Professoras Alfabetizadoras: espaços de
Vida/Formação teve sua origem nas experiências vividas em meu estágio curricular,
que fizeram nascer o desejo de investigar a formação de professores. Desejava
compreender quais os elementos contidos na formação que, de fato, influenciavam a
forma de o professor ser professor, ou de como ele se via enquanto professor, e
ainda, como isso refletiria em sua prática. Após contatos iniciais com leituras sobre a
abordagem (auto)biográfica veio a compreensão de que seu lastro teóricometodológico-epistemológico possibilitaria adentrar o espaço das discussões sobre
formação com olhares lançados sob outras perspectivas para além dos modelos de
formação encapsulados em disciplinas, que transcendem os espaços tradicionais de
274
formação, rumo a processos que valorizam o conhecimento de si. Compreendendo,
portanto “que a formação implica em estarmos, a partir da nossa existência
implicada, nos aproximando, nos disponibilizando, interpretativa e sensivelmente,
diante de outras existências em formação” (MACEDO, 2010).
Portanto, é o ato de pesquisar que me impulsiona a adentrar um programa de
pós-graduação e consequentemente, aprofundar os conhecimentos necessários a
realização da mesma. O Tópico Especial abordagem (Auto)biográfica, formação de
professores-leitores, ministrado em 2011 pelas Professoras Verbena Cordeiro e Jane
Adriana Rios, no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade,
da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB), veio contribuir nesse
sentido, uma vez que tinha entre seus objetivos discutir as perspectivas teóricometodológicas da abordagem (Auto)biográfica, as histórias de leitura e suas
implicações para a formação e autoformação de professores-leitores. Bem como,
entender, a partir de histórias de leitura, as relações entre práticas culturais de leitura
e processos de (auto)formação.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Como requisito final do componente curricular, foi pedido um texto/artigo
sobre uma ficção memorialística, no qual deveriam estar articuladas questões
epistemológicas e metodológicas discutidas na disciplina. É aqui que me encontro
com a obra “Herdando uma biblioteca” de Sanches Neto (2004), a partir da qual
escrevi o trabalho final.
No ano seguinte, 2012 realizei o trabalho de campo de minha pesquisa. Os
métodos utilizados para adentrar as histórias de vida das professoras, através de
suas narrativas coletivas e individuais foram: os ateliês-biográficos (DELORYMOMBERGER, 2006) – os quais a partir da consideração do relato como construção
da experiência do sujeito e da história de vida como espaço de formação, articulam as
temporalidades (presente, passado e futuro), garantindo a dimensão coletiva da
formação docente, fundamental à construção da profissionalidade. E as entrevistas
narrativas (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002) – momento no qual as pessoas
lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram
possíveis explicações para elas e jogam com a cadeia de acontecimentos que
constroem a vida individual e social.
Posterior a esse momento, se inicia um movimento não menos complexo que é
o de compreensão das narrativas. Quando é necessário mergulhar e se encharcar com
o que as colaboradoras disseram acerca de tudo, buscar os entrelaçamentos, as
singularidades e pluralidades em meio às histórias e memórias. Foi nesse percurso e
na construção dos quadros de análise que, em contato com as narrativas das
professoras, rememorei trechos da leitura de Sanches Neto, e nutri o desejo de
escrever um texto no qual buscaria articular aspectos singulares-plurais das
narrativas desses autores, que comigo compartilharam memórias.
Trabalhar com as narrativas não significa, simplesmente, ouvir o que se tem a
dizer, mas provocar/promover a reflexão do sujeito sobre seus próprios percursos, o
que gera a conscientização sobre seu próprio ser e fazer.
Quando conta sua história, o sujeito narra o seu percurso de vida e
passa a retomar alguns sentidos dados ao longo dessa trajetória, mas
não só isso, passa também a redefini-los, reorienta-los e,
principalmente a construir novos sentidos para essa história. A
narrativa [...] permite uma tomada reflexiva, identificando fatos que
275
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
foram constitutivos da própria formação. [...] E a quem ouve (ou lê)
permite perceber que sua história entrecruza-se de alguma forma (ou
em algum sentido/lugar) com aquela narrada (e/ou com outras)
(MORAES, 2001, p. 183).
Estando o espaço aberto para as relações entre literatura, leitura e pesquisas
(auto)biográficas na constituição do professor-leitor, a partir das histórias de vida e
de leitura, que marcam os diferentes percursos de formação e autoformação docente,
lanço-me, enfim, a realizar os entrecruzamentos possíveis.
HERDAR E EXPERIENCIAR: ASPECTOS SINGULARES-PLURAIS.
Embora minha pesquisa não tenha objetivado investigar as histórias de leitura
das professoras alfabetizadoras, suas narrativas de formação deram a possibilidade
de compreender as influências e experiências vividas na perspectiva da constituição
276
leitora. Assim sendo, evoco ao diálogo autores que tiverem essa constituição como
objeto de estudo.
Foram seis as professoras que colaboraram com minha pesquisa. Nesse texto
evoco excertos das narrativas de quatro dessas professoras. São elas MulheresProfessoras da rede municipal de ensino de Salvador, que buscaram em suas
memórias afetivas nomes de mulheres para ser o pseudônimo pelo qual desejaram
ser identificadas na pesquisa. Como nos lembra Cordeiro e Souza (2010, p. 224),
“arriscar-se a uma leitura mais aguçada das intricadas relações que perpassam os
múltiplos caminhos de formação de leitores é algo complexo e instigante”, arrisco-me
aqui a percorrer essa trajetória.
Ao narrarem sobre o início da escolarização, as professoras se reportaram a
sua infância e evocaram referências familiares que as atravessaram e demarcaram o
lugar da escola em suas trajetórias. Dominicé (2010, p. 89) ressalta que “[...] as
relações familiares influenciam de forma importante as opções tomadas no curso
escolar ou a construção da escolha da profissão”, o que no conjunto das narrativas
ficou evidente. A maioria das professoras tiveram influência das mães e irmãs na
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
escolha profissional (aspecto plural), com motivos e incentivos distintos (aspecto
singular).
A escolha por ser chamada de Maria foi uma homenagem para quem, de
forma especial, lhe possibilitou escrever outra história e mostrou-lhe que ter fé na
vida, mesmo diante das dores e alegrias, valia a pena – Maria é o nome de uma
mulher, professora aposentada, que aos 70 anos se tornou, por opção, sua mãe
adotiva.
Minha mãe era professora aposentada, já tinha 70 anos quando me
tomou para criar, e o contato com o conhecimento, com os livros,
para mim foi tudo muito fácil, era muito natural. Como ela era
professora, tinha muitos livros em casa, eu fui alfabetizada muito
cedo. Ela era católica, rezava Santo Antônio e eu com 4 anos ficava lá
na frente com aqueles ritos, aquelas orações, ladainhas, e o pessoal
pensava que eu tinha decorado, e eu estava lendo o responsório. Eu
tinha muito prazer em ler, em ter esse contato mesmo, porque eu
sempre ganhava mais livro do que brinquedos, muito embora eu
tivesse brinquedos que eu gostaria de ter, mas assim, tinha muito
mais prazer em ler. (Excerto da Entrevista Narrativa, 2012).
Na narrativa da professora Maria o prazer na/pela leitura é reflexo da
influência do contexto, da cultura familiar, que possibilita o fácil acesso às leituras.
Na história de Sanches são narradas diversas estratégias necessárias para que tivesse
acesso à leitura e para se herdar uma biblioteca, diante da ausência do incentivo
presente na vida de Maria.
Miguel Sanches Neto, professor universitário, crítico literário e escritor, em
seu livro “Herdando uma biblioteca” mescla ficção e memória através de crônicas
que conjugam aspectos reveladores de sua vida e trabalho e, sobretudo, de como ele
se constituiu leitor. De família humilde, pai analfabeto e padrasto comerciante - que
estabelecia uma relação meramente monetária com o papel e para quem a leitura era
uma forma disfarçada de vadiagem, livro não era artigo comum no lugar onde
passou sua infância, bem como não fazia parte do horizonte cultural da família.
Das muitas orfandades que sofri, uma das mais fortes foi não ter
herdado uma biblioteca familiar. [...] Eis aqui um escritor de pais sem
livros e sem leitura, que não encontrou vizinho, professor ou
bibliotecário para adotá-lo e que frequentou bibliotecas e livrarias
277
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
com o mesmo sentimento de desamparo das crianças brasileiras que
vivem na rua. (SANCHES, 2004, p. 34)
O amor aos livros o levou a buscar na “infração da lei” uma maneira de
possuí-los e suprir sua necessidade de leitura. Arrancar folhas para ter a foto de um
autor querido, roubar livros após ter conquistado a confiança da bibliotecária, foram
alguns esforços na busca de diminuir a distância de seus objetos de desejo.
[...] O amor aos livros e um sentimento de exclusão me levaram a esse
crime, que depois defini como saudável ato de revolta contra a
sociedade em que vivia. [...] Roubar livros que nos solicitam
amorosamente é uma forma de herdar à força uma biblioteca que nos
foi negada (Ibdem, p. 19, 20).
Na pesquisa realizada por Moraes (2001) outras estratégias emergem nas
narrativas das professoras como forma de fazer circular o texto escrito: o
empréstimo, a encomenda, a troca, a xerox (diante da dificuldade financeira, apesar
de ter sido citado que essa estratégia nem sempre satisfazia os leitores). Certamente,
diante da necessidade e desejo de cada um, muitas e criativas táticas são
278
desenvolvidas para se chegar até o livro, a leitura.
As influências familiares são explicitadas na narrativa da professora Morena,
ela que se inspirou no amor de mãe para a escolha do nome (homenagem à meninamulher de sua vida, sua filha), traz outra experiência com os livros, a qual Sanches
igualmente vivenciou: o apagamento de seus registros e/ou dos registros de outros
para que sua própria marca pudesse ser realizada.
Minha mãe sempre teve preocupação em relação à educação, por não
ter condições financeiras ela sempre achou que o estudo, a educação é
que ia fazer a diferença em nossa vida, na vida dos filhos. Meu pai
não se preocupava com essa coisa de estudo, mas minha mãe sim,
então ela sempre foi muito cuidadosa com o fardamento, se
empenhava para conseguir livros pra gente. Por não ter condições,
não poder comprar os livros, ela se interessada e comprava de
segunda mão, ou eram doados e a gente apagava. Eu me lembro que
a primeira coisa que ela comprava era borracha, muitas borrachas
(risos) porque tinha que apagar os livros! Eu tinha uma tristeza
(alonga a palavra tristeza) por conta disso porque escrever em livro
novo é muito bom, mas tudo bem, eu via o interesse dela. (Excerto da
Entrevista Narrativa, 2012).
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Os primeiros livros que “passaram” pelas mãos de Sanches foram os escolares,
e não depositava neles sentimento de pertença, uma vez que ao final de cada ano,
tinha que apagar as lições e deixar os livros “limpos” para quem viesse a usá-los.
[...] Livros, para nós, eram instrumentos sagrados de aprendizagem,
território em que o prazer não podia se manifestar, nem nas linhas
ingênuas de um menino querendo soletrar as belezas do sexo oposto.
E eles não nos pertenciam. [...] Fim de ano, para mim, era jogar fora
meu esforço de aprendizagem, como se tudo não tivesse valor, como
se fosse algo descartável. Talvez por isso eu tenha adquirido um
preconceito e um hábito: ser contra o saber provisório da escola. [...]
O livro não era espaço em que podia ficar impressa minha marca de
possuidor. E a escola acabou figurando, para mim, como lugar vazio
e desimportante. Tudo que ela nos transmitia virava pozinho de
borracha, sujo de grafite, no fim do ano. (SANCHES, 2004, p. 10,
11,12).
A professora Luíza, que escolheu esse nome por gostar e pela beleza que ele a
transmite, também teve influência familiar na sua constituição leitora e aprendeu no
seio dessa instituição a valorizar e respeitar o objeto livro.
279
Quando minha irmã retornava para casa, eu a observava sempre
lendo, escrevendo, anotando livros e me recordo que meus pais
tinham vários guardados na estante, quando eles não estavam por
perto eu os pegava e escrevia neles. Aprendi a valorizá-los no
momento em que minha mãe e meu pai diziam: “livro não se risca”,
“não rasgue os livros” e tomando-os de minhas mãos guardava-os
outra vez. (Excerto da Entrevista Narrativa – 2012)
De instrumentos sagrados de aprendizagem, território onde o prazer não
podia se manifestar, os livros ocupam para Sanches o lugar de objeto de desejo. Ele
nos mostra como matamos suas possibilidades quando não o lemos:
Enquanto não passar pelos olhos do leitor [...] O livro não chega a ser
propriamente livro. É apenas papel impresso [...] Uma ferramenta
desprovida de sua principal função, a de interferir na constituição do
humano. [...] Olho os livros velhos em minha estante, encadernações
estragadas e penso que eles podem ser chamados de livros, pois
seguem em mim (SANCHES, 2004, p. 80, 81).
Apesar de sua sede por livros clássicos, não defende que esse seja o caminho
ideal na constituição de um leitor, mas que o critério de escolha de uma leitura seja
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
um imperativo interior, que torna urgente ler um clássico hoje, um romance amanhã.
“E só lemos plenamente com o que somos, jamais apenas com o que adquirimos,
embora a bagagem ajude na decodificação do texto”.
Tardelli (2001) e Moraes (2001) desenvolveram pesquisas com a preocupação
de desmistificar o discurso sobre a crise da leitura sustentado em um modelo que
defende uma prática única de leitura, um “leitor ideal”, o que desqualifica e/ou
exclui outras possibilidades de leitura para além dos cânones. Ao buscar o que
revelavam as narrativas sobre as histórias de vida e leitura de professores,
perceberam a pluralidade de leitura desses sujeitos, a partir da interação com pessoas
e objetos distintos. Isso revela a necessidade de a escola rever seu papel enquanto
instituição formadora de leitores, deixando de validar apenas uma única forma dessa
prática.
Sobre as práticas desenvolvidas na escola, Sanches traz forte conteúdo crítico,
quando acentua que a biblioteca foi o primeiro espaço livre que frequentou, pois nela
elegia suas leituras, o que o fazia se sentir dono de suas próprias escolhas e o
280
certificava de que nela se formou leitor. O autor define a escola como lugar
paralisante, onde somente as informações capazes de manter a imobilidade social
dos sujeitos são difundidas, capazes de conformá-los a se manterem como submissos
na cadeia produtiva. “Nessa escola gastei minha infância [...] Fui um desses pardais
que sonhavam com alturas e não com migalhas caídas no chão. E o lugar onde pude
exercer este projeto foi a biblioteca pública. Nela, não havia conteúdos predefinidos,
nem o desejo de me moldar” (SANCHES, 2004, p.17).
A narrativa da professora Ione revela sua crítica à ausência do incentivo e
valorização do livro e da leitura por parte das famílias na realidade da qual a escola
onde atua faz parte, o que aumenta a responsabilidade da escola em despertar o
interesse pela leitura. Foi o encanto da primeira professora, que se dedicava a
aprendizagem de seus alunos e aos quais dirigia muita atenção, o motivo para
escolher como pseudônimo o nome Ione, sua “pró” da alfabetização: “os primeiros
professores marcam muito, professor de alfabetização marca muito, professora Ione
marcou muito”.
Os meninos daqui às vezes chegam no grupo 4 e não sabem nem
manusear um livro, então nossa preocupação da alfabetização e do
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
letramento para a alfabetização ser algo funcional na vida do sujeito
[...] Os meninos não vivem essa preocupação que a gente tem, o gosto
pela leitura, de incentivar a leitura, o livro em casa às vezes é o que
eu uso para acender o fogo, para me abanar, não são todas as famílias
porque tem algumas que são bem comprometidas com a
aprendizagem do aluno, mas a maioria, o livro é qualquer coisa,
serve pra qualquer coisa, menos para eu sentar, estudar, conhecer
historia, ou então é aquele livro que é pra fazer dever, é aquilo
apresentado como obrigação”. (Excerto da Entrevista Narrativa,
2012).
Enquanto as histórias de vida das professoras revelam a relação de valorização
dos livros e da leitura nos contextos em que viveram, no seio de suas famílias, na
realidade em que atuam não conseguem perceber o mesmo tratamento dispensado e
necessitam imprimir esforços extras para que as crianças criem uma relação de
intimidade com o livro e com a leitura.
O trabalho de Tardelli (2001) demonstra que a escola é citada somente após a
família, enquanto aquela instituição incentivadora da leitura. A pesquisa
desenvolvida por Kramer e Souza (1990), apresenta a figura da professora tanto
como provocadora e incentivadora da leitura, quanto como àquela que pressiona e
cerceia a mesma. Denuncia, na direção de Sanches, que a escola acaba exercendo um
papel crucial na formação do não-leitor, no momento em que os livros se tornam
obrigatórios, únicos, seguidos de guias de interpretação; quando se didatiza o ato da
leitura e da escrita; quando se utiliza critérios pedagógicos na seleção dos livros.
Sem dúvidas, tanto o que revelam as narrativas das professoras, quanto os
sentimentos de Sanches, quanto os resultados dos trabalhos dos autores citados, são
legítimos.
Retratam a realidade brasileira de nossas escolas; de uma política nacional
preocupada em avaliações; a necessidade de incentivos à formação continuada de
professores, bem como da reestruturação dos currículos da formação inicial; da
necessidade de que nossa atenção se volte para que leitores desejamos que nossas
crianças, jovens e adultos se tornem.
Segundo Nóvoa (1999, p.17), a partir do momento em que à escola concebida
como local privilegiado de estratificação social, “os professores passam a ocupar um
lugar-charneira nos percursos de ascensão social, personificando as esperanças de
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
mobilidade de diversas camadas da população: agentes culturais, os professores são
também, inevitavelmente, agentes políticos”.
Na pesquisa que desenvolvi, bem como nas pesquisas acessadas, demonstram
que no movimento de trazer à consciência o que até então lhes era imperceptível, a
saber, a influência de suas trajetórias de vida na forma como são, ou que um dia
foram professoras, e até mesmo, o próprio conjunto de influências que lhes constitui,
reelaboram experiências e demarcam a complexidade da vida.
No mesmo sentido, veem aberta diante de si a possibilidade de ressignificar
seus percursos, de potencializar suas práticas, de se implicarem, por ser ainda tempo,
para a reconstrução de suas identidades e para fortalecerem a docência enquanto
devir. Um devir de possibilidades para a formação docente, discente, para a
instituição escola.
Fica evidente como a abordagem (auto)biográfica, o trabalho com as
narrativas, os estudos da história cultural - que comporta os gestos e vozes de leitores
já consolidadas, mas também uma infinidade de outras práticas de leitura, podem se
282
articular e contribuir numa dimensão formadora, que
avança de práticas e
concepções simplistas sobre a constituição de leitores.
LIVROS, GOSTOS, MEMÓRIAS...
Longe de seguir uma ordem cronológica, linear, mas tendo garantida a
temporalidade, fator importante nas narrativas como ressalta Bertaux (2010), as
crônicas de Sanches delineiam por meio dos acontecimentos e das decisões que toma,
seus encontros com o livro. Fica evidente como as histórias de leitura estão
implicadas nas histórias de vida, e como a narração da própria vida expressa a
interioridade e afirmação de si mesmo.
Como foi sendo delineado no texto, um leitor se constitui pelas diversas
experiências que constituem suas histórias de vida, e pelos processos singulares de
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
formação e autoformação pelos quais passa. A leitura, sendo plural em práticas e
sentidos, propicia representações concretas e simbólicas diferentes nos leitores.
E assim se fazem os leitores, com muitas e particulares histórias de
leitura que se articulam, numa relação dialética, entre o saber da
experiência, o conhecimento e a vida. É um saber singular, subjetivo e
particular ao indivíduo ou ao coletivo com todos os desafios que cada
experiência comporta. Isto porque a transformação do acontecimento
em experiência vincula-se ao sentido e ao contexto que cada sujeito
vivencia (CORDEIRO; SOUZA, 2010, p. 229).
E assim nos constituímos leitores: no seio de uma família culta ou humilde; na
busca solitária por uma cultura letrada; na troca, no empréstimo, nas visitas às
bibliotecas, também herdadas ou formadas pela compra de livros... Mas acima de
tudo, pelo desejo de ler despertado e cultivado em algum momento de nossa
existência.
Portanto, precisamos compreender que as histórias pessoais e coletivas de
leitura revelam sentidos diferentes, por serem construídas a partir de diferentes e
singulares percursos de formação. Por essa constatação é que Cordeiro e Souza (2010,
p. 224) afirmam a necessidade de compreendermos as histórias de leitura “entre a
subjetividade e o lugar social de cada indivíduo, com seus diferentes ritmos, formas
de ler, tempos e espaços de leitura os mais inusitados”.
Herdar bibliotecas, livros; experienciar leituras, gostos; narrar histórias,
memórias... Cada um caminha por caminhos singulares e plurais na concretização
desses verbos!
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NÓVOA, António (org.). Profissão Professor. 2 ed. Porto: Porto Editora, 1999.
O ARCO RETESADO DE UMA CAÇADORA ERRANTE: ÁGUA VIVA E A
ESCRITA REPETIDA DE CLARICE LISPECTOR
Gilson Antunes da Silva
IFBAIANO/CAPES
[email protected]
RESUMO
Analiso a escrita de Água viva: ficção (1973), de Clarice Lispector, texto
caleidoscópico, “sinfonia que se metamorfoseia continuamente”, objeto fluido e
reiterado em que a autora põe em evidência o próprio processo da escrita que se dá
entre rupturas, retomadas e digressões. Escrita que se retoma, fios que se tecem e se
destecem num gesto continuado, o livro porta em si a transgressão da representação
do mundo, dos padrões da linguagem e dos gêneros literários. Denominado
simplesmente de ficção, Água viva não mais ostenta aquelas marcas tradicionais do
gênero novela ou romance. Sua história é o próprio ato de escrever, mesclada, em
certos momentos, por fatos do cotidiano inseridos para protelar um gozo que se
derrama lentamente ao longo de todo o processo. Nesse jogo especular em que a
escrita vê a si mesma, há um sujeito que cria e é criado, preso numa teia que o
alimenta e o aprisiona ao mesmo tempo nas tessituras de um desejo imorredouro. A
autora, consciente do fazer artístico, reflete no livro sobre esse processo, ciente da
dimensão impotente da linguagem, vazio sem o qual a vida se torna intolerável. Meu
objetivo aqui é analisar a imagem da caça associada à figura mitológica de Diana,
como metáfora da própria escrita. Diana, a caçadora, deusa romana assimilada a
Ártemis, avessa ao amor e ao convívio dos homens, conservou-se virgem, preferindo
a caça a qualquer outra atividade. Ela é a selvagem deusa da natureza, cognominada
senhora das feras. Ártemis é aquela caçadora que costuma massacrar os animais que
simbolizam a doçura e o amor, salvo quando são jovens e puros. Embora vigem,
Diana é ainda a deusa dos partos e reina sobre o mundo presidindo o nascimento e o
desenvolvimento dos seres. No seu trabalho de caça, é acompanhada por feras que
simbolizam os instintos inseparáveis do ser humano. Tal qual a deusa irmã de Apolo,
a narradora do livro em pauta, dispara o arco sobre o mundo da linguagem em busca
dos signos capazes de dizer a realidade. Entretanto, o objeto a ser capturado resvala
sempre, escapa às setas da palavra, cavando um rastro de repetição e,
consequentemente, colocando a voz que narra numa batalha ad infinitum. Esse gesto
repetido, por sua vez, não aparece na narrativa como suplício ou fracasso, mas, por
outro lado, surge como condição mesma do fazer artístico e como possibilidade
alegre de permanecer no ato. À esta narradora incansável, interessa mais o ato em si,
o trabalho contínuo de captura, a errância sobre o alvo. Trata-se, portanto, de um
texto de natureza bibliográfica, que tem no trabalho analítico-comparativo seu
procedimento principal.
PALAVRAS-CHAVE: Escrita; Caça errante; Diana; Água viva; Clarice Lispector.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
1 INTRODUÇÃO
[...] tu que me trazes uma lembrança machucada de coisas
vividas que, ai de mim, sempre se repetem, mesmo sob
formas outras diferentes (Clarice Lispector, Água viva, p.
52).
Água viva, texto-mosaico de Clarice Lispector, surge como tentativa de captar
um sentido que resvala continuamente, confrontando a voz que narra com sua
impotência perante os signos, lançando-a no mundo paradoxal da linguagem.
Imagem de embate e agonia (no sentido grego do termo), o processo de escrita nesse
texto, além de evidenciar o próprio conflito do fazer artístico, mostra a fixação da
narradora ao próprio ato, numa postura narcísica de quem, movida por um Eros
obsessivo, enovela-se nesse gozo mortífero.
Clarice Lispector produziu três versões distintas desse livro, o que em agosto
de 1973 foi publicado com o nome de Água viva. Segundo Olga Borelli (1981), apesar
286
de dar a impressão de ser um texto corrido, feito num jorro só, foi, no entanto, de
penosa elaboração. A autora passou três anos anotando palavras e frases, sem
conseguir estruturá-lo. Por sugestão de Álvaro Pacheco, editor da Artenova, Clarice
começa a escrever esses textos, juntando anotações feitas há muitos anos, alguns
trechos publicados em sua coluna no Jornal do Brasil. Segundo a sua biógrafa Teresa
Montero Ferreira (1999), em julho de 1971, a escritora concluiu Atrás do pensamento:
monólogo com a vida. Nesse mesmo mês, recebeu a visita do professor Alexandrino
Severino, a quem confiou os originais do novo livro para que fosse traduzido para o
inglês. Em 1972, Clarice interrompeu Atrás do pensamento: monólogo com a vida, que
passou a chamar Objeto gritante, alegando que não estava atingindo o que queria.
Decide que não iria publicá-lo até que o aprimorasse mais. “[...] Esse livro, Água viva,
eu passei três anos sem coragem de publicar achando que era ruim, porque não tinha
história, porque não tinha trama” (LISPECTOR, 2005, p. 147). Nesse trabalho, Olga
Borelli passa a auxiliar a amiga, datilografando seus textos e ajuntando as anotações
dispersas. Quando terminava a estruturação de cada capítulo, dava para Clarice
fazer as modificações necessárias. De acordo com Teresa Ferreira (1999), a segunda
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
versão do livro Objeto gritante sofreu profundas alterações: as passagens pessoais e
alguns fragmentos publicados nas crônicas do Jornal do Brasil foram suprimidos.
Das 151 páginas originais somente as primeiras 50 e as últimas três tinham algo em
comum. Tentando reduzir ao máximo os aspectos autobiográficos da obra, Clarice
substitui a profissão da narradora, passando de escritora à pintora que se enveredava
no ato de escrever.
Antes de publicar esse livro, a autora sente-se em dúvida e encaminha o
material para a apreciação de alguns amigos: Nélida Piñon, Fauzi Arap, José Américo
Motta Pessanha e, por fim, Alberto Dines. Quando foi enviado para esse último, o
livro já tinha outro título: Água viva. Este, por sua vez, escreve a Clarice em
20/07/1973, contando de sua satisfação em relação à leitura do livro. Elogia-o,
considera-o um texto acabado, livro-carta, sinfonia que se metamorfoseia
continuamente. “Acho que você escreveu uma sinfonia. É o mesmo uso do tema
principal desdobrando-se, escorrendo até se transformar em novos temas que, por
sua vez, vão variando, etc, etc” (LISPECTOR, 2002, p. 285).
O processo de construção de Água viva faz-se por meio do trabalho de corte e
recorte de textos anteriores. Clarice utiliza-se de outros textos já escritos, juntando
fragmentos e compondo dolorosamente esse livro despedaçado. Quando percebeu
que o material estava ficando muito grande, decide reduzi-lo, eliminando algumas
páginas, principalmente aquelas que acenavam para o campo biográfico. Entretanto,
mesmo depois dessa censura autobiográfica, outros textos, principalmente as
crônicas do Jornal do Brasil, permanecem diluídos ao longo do livro. Para Edgar
Cézar Nolasco (1997), Água viva se constitui especificamente a partir das relações
entre textos em que um texto menor (um fragmento) relaciona-se com outro texto
menor (outro fragmento), encaminhando-se todos esses fragmentos para a
construção da escritura do livro que não se quer escrita concluída. Nessa poética do
fragmento, na prática escritural dessa obra, a autora faz frequentemente uma
apropriação disfarçada, levando um texto/fragmento de um lugar para outro;
reescreve-o, reorganiza-o, desloca-o.
Em Água viva: ficção (1973), Clarice Lispector põe em evidência a dilaceração
do próprio processo da escrita que se constitui num movimento insistente,
287
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
fragmentário e repetitivo, perfazendo um ciclo em contínuos desdobramentos. Nesse
jogo cambiante, o agente dessa atividade tenta plasmar um desejo sempre deslocado,
uma pulsão escorregadia. Nessa batalha de Jacó com o Anjo, a narradora nem vence
nem é vencida, mas continua no combate, onde vida e morte se abeiram e se
revezam. Aqui elegemos como elemento para discussão a metáfora da caça como
busca, no seio da linguagem, pelos elementos de representação. Para tanto,
utilizamos a imagem de Diana, lexema que surge na obra como indicativo desse
trabalho árduo de procura por um material que possibilite o repouso e a satisfação,
ainda que momentâneos.
2 CAÇAR, ROLAR PEDRAS E APANHAR A MAÇÃ: ESCRITA E REPETIÇÃO
EM ÁGUA VIVA
A narradora de Água viva, imagem do escritor em sua peleja, autorepresenta288
se como sujeito que se arvora a tocar um ideal por meio da linguagem. Nessa “luta
com a vibração última”, o Ideal não se deixa ver, apenas oferece sombras de sentido,
espectros de uma possibilidade. “Há muita coisa a dizer que não sei como dizer.
Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o
que se consegue dizer e o que é proibido” (LISPECTOR, 1998a, p. 29). Há entre o
desejo e o objeto, entre o sujeito e o Ideal uma defasagem capaz de manter o
indivíduo na existência. A obra clariciana de modo geral resulta nessa luta mítica,
tensão contínua e contumaz com a palavra. “[...] a coisa é muito mais do que
consegui dizer, então na verdade eu fiz muito: eu aludi!” (LISPECTOR, 1998b p. 177).
Essa contenda, “é uma tarefa trágica por excelência, que é também de preencher o
vazio de Deus, aclamar sua gloriosa insubordinação com o pecado da arte e entre o
fascínio e a suspeita perante o signo” (GUIMARÃES, 2012, p. 148). Há em Lispector
a consciência do empobrecimento da palavra, ainda que esta seja a única via de
representação. “Mas ao mesmo tempo essa condição linguageira, esta finitude
humana, se muitas vezes ela faz a infelicidade do filósofo, ela constitui entretanto um
trunfo para o artista: sua fraqueza é a sua força, seu fracasso será sua glória”
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
(PRADO JUNIOR, 1989, p. 26). A tragédia em Clarice resultaria desse saber-se
incapaz perante as coisas, mesmo quando se tem a linguagem ao alcance. Diante
disso, resta o trabalho laborioso de Tântalo, o que acaba num exercício
metalinguístico, em que a autora se alimenta “com minha própria placenta”
(LISPECTOR, 1998a, p. 43) ou ainda “Eu não tenho do que me nutrir: eu como a mim
mesmo” (LISPECTOR, 1999, p. 109).
Desse trabalho insistente com a linguagem a partir da ciência de uma ferida
que lhe faz mancar, Clarice Lispector produz uma escrita do desassossego. Ao
mesmo tempo em que tem consciência dessa condição, a autora vinga-se dessa falta e
materializa a perda, transformada agora em texto. Há uma espécie de
aproveitamento desse estado, quando, da fraqueza, a autora retira a força que
sustenta seu próprio labor.
Ao mesmo tempo em que há em Água viva a busca por um sentido no seio da
linguagem, sentido esse sempre rasurado, há também um desejo obsessivo em tocar
o real, em transpor as barreiras do simbólico e deixar a coisa exposta em si mesma,
desprovida dos sentidos maquiados pelo
matiz civilizacional. Há ainda,
paradoxalmente, à medida que o sujeito se aproxima desse real, uma vontade de
caos, de desordem dos sentidos, demarcados pela narradora logo nas primeiras
linhas da narrativa. “Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso. Quero a
profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente.
A grande potência da potencialidade. [...] Quero a experiência de uma falta de
construção” (LISPECTOR, 1998a, p. 31). Os significantes “inconcluso”, “desordem” e
“potencialidade” atados entre si na mesma cadeia de significado entram na trama do
próprio desejo ou, mais precisamente, no jogo da própria pulsão de morte, princípio
disjuntivo que direciona o sujeito para uma busca sempre repetida, mas, por sua vez,
lugar de gozo, zona de satisfação.
Há ainda, nesse mesmo excerto, um sujeito enunciador que se mostra firme
em sua decisão, através da reiteração do verbo querer no tempo presente e
enfatizado mais uma vez pelo dêitico “aqui”. Desse modo, a voz enunciativa delimita
claramente sua perspectiva em relação ao percurso inconcluso/desejante que se
estabelece em Água viva. Embora esse querer reiterado pareça perder, aos olhos do
289
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
leitor desatento, um pouco dessa vitalidade durante uma maiêusis em construção
(construção do sujeito narrador, do texto e do próprio leitor, este representado na
figura do tu interlocutor), ele perdura ad infinitum, quando a narrativa termina não
finalizando, mas se propaga num eterno devir, evidenciando o contínuo querer de
uma fonte que jamais se esgota, pulsação perene. O desejo aqui deseja o desejo,
almeja o movimento, busca por um signo que não o completa, que sempre se desfaz
para, logo em seguida, fazer-se semblante novamente. “Erige dentro de ti o
monumento do Desejo Insatisfeito. E assim as coisas nunca morrerão, antes que tu
mesmo morras. Porque eu te digo, antes mais triste que lançar pedras é arrastar
cadáveres” (LISPECTOR, 2005, p. 20). Lançar pedras, atirar flechas e apanhar a maçã
no escuro são significantes usados no universo ficcional clariciano que funcionam
como metáforas de uma escrita errante. Tais significantes se aproximam – pela sua
insistência – da ordem do desejo e da pulsão.
A epígrafe usada no livro, citação do pintor francês Michel Seuphor já ilustra o
que será uma das grandes questões da obra:
290
Tinha que existir uma pintura totalmente livre de dependência da figura – o
objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma
história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos
incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço
se torna existência (LISPECTOR, 1998a, p. 07)
A metáfora da escrita como pintura muito recorrente ao longo da narrativa confirma
o desejo de fazer vir à tona pela escrita aquilo que não se pode ter, deixar emergir o
resto, aquilo que sucumbiu a toda significação, o que escapou ao campo do
simbólico, e que, desse modo, ficou fora do campo da linguagem, da representação.
“Quero apossar-me do é da coisa” (LISPECTOR, 1998a, p. 10). Ou ainda, como ela (a
narradora) explicita logo nas primeiras linhas de sua narrativa: “[...] – mas agora
quero o plasma – quero me alimentar diretamente da placenta” (LISPECTOR, 1998a,
p. 09). A narradora quer resgatar o rebotalho através de uma escrita sem sentido,
escrita alógica que se identifica com o it/id. “[...] quero a coisa mais primeira porque
é fonte de geração [...] ambiciono beber água na nascente da fonte [...]” (LISPECTOR,
1998a, p. 19). Nesse fragmento, vários significantes reforçam o desejo de real, no
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
sentido lacaniano do termo: “primeira”, “geração”, “fonte” (reiterado), “água” e
“nascente” que remetem para um ponto inicial, anterior à linguagem, aquilo que fica
atrás do pensamento, como a personagem indica ao longo de sua escrita. Nesse
sentido, seguindo as reflexões de Plínio Prado Junior (1989), podemos dizer que a
escrita clariciana inscreve uma ausência, faz alusão a algo que se evola, atesta “que
há um resto”, deixando à mostra um distanciamento entre ser e linguagem, entre real
e representação.
O abismo que se configura entre o anterior à linguagem e o plano simbólico é
representado em Água viva como experiência dolorosa, uma vez que, lidar com a
frustração nem sempre é tarefa fácil para o ego, muito embora haja um gozo que
sustente essa prática (no plano do inconsciente). Às vezes, a narradora parece querer
abandonar a escrita, diante dessa falência da linguagem: “Renuncio a ter um
significado” (LISPECTOR, 1998a, p. 30); em outras, aceita sua danação, seu suplício:
“[...] sou Diana a Caçadora de ouro e só encontro ossadas. ” (LISPECTOR, 1998a, p.
30), reconhecendo-se como impotente frente ao real. Sem paliativos, a voz que narra
opta por dizer o que é possível, usando o recurso que lhe é cabível, que está e estará a
seu dispor: as palavras em sua opacidade, em sua ilusão referencial.
Enquanto tentativa de plasmar a falta, de saldar a hiância produzida pelo Pai,
pela Lei, a escritura configurada em Água viva caminha para a repetição e
consequentemente para o gozo do ato, afirmação dionisíaca da experiência em meio
às ossadas recolhidas nessa caça infinda. Aqui mais uma vez o texto clariciano faz
ecoar vozes advindas de outros textos, os rumores de Diana, a Sagitária do arco de
ouro.
Diana, a Caçadora, deusa romana assimilada a Ártemis, avessa ao amor e ao
convívio dos homens, conservou-se virgem, preferindo a caça a qualquer outra
atividade. Ela é a selvagem deusa da natureza, conforme Chevalier e Gheerbrant
(2006). Cognominada senhora das feras, é a caçadora que costuma massacrar os
animais que simbolizam a doçura e o amor, salvo quando são jovens e puros. Embora
virgem, Ártemis é a deusa dos partos e reina sobre o mundo humano presidindo o
nascimento e o desenvolvimento dos seres. Em outros momentos, associam-na a uma
deusa lunar, vagando como a Lua e brincando nas montanhas. “Como Apolo tende a
291
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
se tornar o Sol, sua irmã é o astro das noites” (BACHÉS, 2005, p. 97). É acompanhada
por feras em suas caminhadas que simbolizam os instintos, inseparáveis do ser
humano.
Diante desses símbolos associados à deusa Diana, podem-se ler na narrativa
de Lispector alguns desses traços. O primeiro dele é o da caça acima destacada. A
narradora é a que perambula pela floresta dos signos em busca de alimento para sua
escrita, munida com seus instrumentos de guerra à procura de elementos para sua
composição que não se fecha. Ela é Diana “fracassada” em sua procura, perdida no
bosque onde os animais são escassos, apanhando apenas ossadas, restos de uma caça
farta, sinais de uma abundância agora não mais possível. Tal como a deusa, a voz
central do texto encontra sinais, simulacros de uma coisa à deriva nesse encontro
faltoso, nessa captura frustrada. Se Diana, “a de arco-de-ouro do Longe-vibrador
irmã fragueira” (HOMERO, 2008, p. 705), recusa os restos e prefere continuar sua
empreitada à busca de animais dóceis e frescos, a personagem-narradora de Água
viva, ao contrário, prefere alimentar-se dessa sobra, opta por arriscar-se nessa floresta
292
de símbolos vagantes e vacilantes, na certeza de que a caça ideal jamais será
capturada: “[...] Insetos, sapos, piolhos, moscas, pulgas e percevejos – tudo nascido
de uma corrupta germinação malsã de larvas. E minha fome se alimenta desses seres
putrefatos em decomposição” (LISPECTOR, 1998a, p. 49). Entretanto, semelhante à
filha de Zeus, ela também aposta na procura, insiste na empreitada, fazendo disso
uma situação de prazer, mesmo quando os animais almejados já estão sob o reino da
decomposição: “[...] Na minha viagem aos mistérios ouço a planta carnívora que
lamenta tempos imemoriais: e tenho pesadelos obscenos sob ventos doentios. Estou
encantada, seduzida, arrebatada por vozes furtivas” (LISPECTOR, 1998a, p. 49).
Iconograficamente, Diana é representada com vestes curtas, pregueadas, com
os joelhos descobertos, à maneira das jovens espartanas. É seguida por uma matilha
de cães mais velozes que o vento, e das ninfas suas companheiras. De forma
semelhante a seu irmão Apolo, carrega o arco e a aljava cheia de setas temíveis e
certeiras. Arqueira como Apolo, a deusa usa das mesmas armas para combater ou
castigar (Brandão, 1991). Essa imagem da deusa guerreira e caçadora aparece na
narrativa clariciana sob duas formas: metonimicamente, quando se faz referência aos
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
instrumentos de guerra e, metaforicamente, quando se faz menção ao Sagitário.
Vejamos como se processam essas remissões.
No decorrer do texto, a narradora faz menções aos instrumentos de guerra, os
mesmos associados à deusa romana em sua descrição iconográfica. “O que saberás
de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo” (LISPECTOR, 1998a, p. 17), [...]
“o que importa é o dardo” (LISPECTOR, 1998a, p. 17); ou ainda quando identifica
palavras com dardo como nesse já citado fragmento: “Uso palavras soltas que são em
si mesmas um dardo livre: ” (LISPECTOR, 1998a, p. 27). Nessas remissões,
construímos a imagem de uma caçadora no reino das palavras, não tão certeira como
a deusa romana. À narradora clariciana interessa mais o ato em si, o trabalho de
captura, a errância sobre o alvo. Para ela, o arco está sempre retesado, prestes a
disparar sobre um animal que sempre resvala por entre as florestas densas e
penumbrosas.
Há esta tensão como a de um arco prestes a disparar a flecha. Lembro-me do
signo Sagitário: metade homem e metade animal. A parte humana em
rigidez clássica segura o arco e a flecha. O arco pode disparar a qualquer
momento e atingir o alvo. Sei que vou atingir o alvo (LISPECTOR, 1998a, p.
53).
Este trecho anuncia a segunda remissão à imagem iconográfica da deusa:
Sagitário com o arco em punho. Nesse sentido, ela é símbolo do movimento, dos
instintos nômades, da independência e dos rápidos reflexos (Chevalier e Gheerbrant,
2006). É, em Água viva, o deslizar contínuo da escrita, texto em pulsação que caminha
em direções várias. “Não sei sequer o que vou te escrever na frase seguinte. A
verdade última a gente nunca diz” (LISPECTOR, 1998a, p. 64). Enquanto a flecha
usada por Diana simboliza o controle sobre a caça, a utilizada pela narradora
clariciana serve para mantê-la viva. Atingir o alvo implica risco de morte, tocar o
Absoluto, voltar à Coisa. Repetir aqui implica viver, manter-se no percurso.
Outro traço que se pode encontrar representado em Água viva é aquele que
associa Diana à fecundidade, aquele que a relaciona com a deusa que protege os
partos e preside o nascimento e o desenvolvimento dos seres. Segundo Juanito
Brandão (1991), a essa deusa, em Bráuron, eram-lhe consagradas as vestes das que
faleciam ao dar a luz. Com o epíteto de “a que alimenta, a que educa”, Diana
293
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
acompanhava as meninas em sua fase de crescimento. As noivas, às vésperas de seu
casamento, ofereciam-lhe uma mecha de cabelo e uma peça do enxoval, para
implorar-lhe proteção e fertilidade. Na narrativa de Lispector, a narradora está em
vias de parto da escrita: “[...] Antes rompo o saco de água. Depois corto o cordão
umbilical. E você está vivo por conta própria” (LISPECTOR, 1998a, p. 41). Ou ainda:
“[...] Não estou coisificando nada: estou tendo o verdadeiro parto do it. Sinto-me
tonta como quem vai nascer” (LISPECTOR, 1998a, p. 41). O livro é também a
representação dessa maiêusis lenta e gozosa cujo produto é aquilo que é presenteado
ao leitor: uma água viva cintilante e escorregadia. A obra pode ser lida como imagem
de um grande cordão umbilical que ata narradora e texto, numa forma espiralar sem
que a primeira consiga se desvencilhar desse laço narcísico que a aprisiona e a
alimenta; aranha que tece continuamente uma teia da qual se torna a própria vítima.
Ligado a esse mesmo aspecto, Diana é ainda a deusa lunar, irmã de Apolo.
Segundo Brandão (1991), Diana estava associada à Hécate e a Selene, personificação
antiga da Lua, cujo culto à filha de Leto suplantou inteiramente. Desde muito cedo
294
Ártemis (Diana) foi identificada com a Lua, devido ao caráter ambivalente desse
satélite. A Lua-Ártemis surge na mitologia com um tríplice desdobramento, o que se
pode chamar de deusa triforme. Inicialmente a Lua era representada por Selene, mas,
dada a índole pouco determinada de Selene e as diversas fases da Lua, foi a DeusaLua desdobrada em Selene (que corresponderia mais ou menos à Lua Cheia);
Ártemis (Quarto-Crescente); e Hécate (Quarto Minguante e Lua Nova). Cada qual
age de acordo com as circunstâncias, favorável ou desfavoravelmente. Percorrendo
as várias fases, manifestam as qualidades inerentes a cada uma delas. No QuartoCrescente e Lua Cheia, normalmente é boa, dadivosa e propícia; no Quarto
Minguante e Lua Nova, é cruel, destruidora e malévola. Como símbolo da Lua, a
narradora de livro em questão é aquela que repete, que não cessa de dizer, não
termina sua história porque ela não se fecha, tensionada por um ciclo infinito. Antes
de mais nada, ela é o símbolo da transformação, da metamorfose e do devir. É a que
conhece o nascimento e a morte constantemente no seu ato de narrar, nessa tarefa de
paradoxos, de tensão e de aleluias, como fica claro no trecho a seguir:
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Terei que morrer de novo para de novo nascer? Aceito.
Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em
‘ele’ ou ‘ela’. Por enquanto o que me sustenta é o ‘aquilo’ que é um ‘it’. Criar
de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão
completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de
parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o
âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante. Vida de matéria elementar
(LISPECTOR, 1998a, p. 54).
É nesse tecer e destecer que a narrativa se constrói e ao mesmo tempo, o
sujeito da escrita vai se criando, em meio à dor e alegria. O sujeito que se constitui
nesse processo é periclitante, declinante, lua em várias fases a se mover infinitamente
no espaço tracejado do texto. Nessas fases, a narradora também revela traços de
personalidade diferentes: ora é suave e sutil, ora é diabólica e violenta, conforme esta
declaração: “[...] meu demônio é assassino e não teme o castigo: mas o crime é mais
importante que o castigo. Eu me vivifico toda no meu instinto feliz de destruição”
(LISPECTOR, 1998a, p. 75).
Segundo Jean-Louis Backés (2005), na Idade Média o nome de Diana é
frequentemente associado a caçadas selvagens e a cortejos noturnos de feiticeiras,
ditas conduzidas por Herodíades, dama de Abonde ou Diana. Na narrativa de
Clarice, há um aceno ligeiro a essa era, quando a narradora, logo após identificar-se à
Diana, relembra sua infância, que aqui se confunde com a infância da própria
humanidade. Enfeitiçada no ato da escrita, ela é a discípula de Satã a pintá-lo em
seus seios de ouro, Bacante arrebatada em seu furor dionisíaco.
[...] Navego na minha galera que arrosta os ventos de um verão enfeitiçado.
Folhas esmagadas me lembram o chão da infância. A mão verde e os seios
de ouro – é assim que pinto a marca de Satã. Aqueles que nos temem e à
nossa alquimia desnudavam feiticeiras e magos em busca da marca
recôndita que era quase sempre encontrada embora só se soubesse dela pelo
olhar pois esta marca era indescritível e impronunciável mesmo no negrume
de uma Idade Média – Idade Média, és a minha escura subjacência e ao
clarão das fogueiras os marcados dançam em círculos cavalgando galhos e
folhagens que são o símbolo fálico da fertilidade: mesmo nas missas brancas,
usa-se o sangue e este é bebido (LISPECTOR, 1998a, p. 30-1).
A narradora de Lispector é aqui a guardiã da fertilidade, aquela que em
círculos contínuos tenta contornar o real, dando-lhe uma existência fantasmagórica
através da escrita. É ela o oleiro que dá contorno a um vazio, através da criação de
295
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
um vaso, “objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se
chama a Coisa” (LACAN, 1997, p. 153).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há, na ficção de Clarice Lispector, uma procura contínua que movimenta o
enredo e impulsiona as personagens em suas angústias. Joana, Virgínia, Lucrécia,
G.H., Lóri, Macabéa e tantas outras estão em trânsitos permanentes quer seja dentro
de si mesmas, quer seja em torno do real, furo de onde nascem suas demandas. Em
Água viva, a viagem está centrada na busca pela Coisa no próprio fazer artístico.
Metalinguístico, este livro encena a si mesmo, quando nos apresenta uma fiandeira
incansável diante do seu ofício. Neste trabalho de Sísifo, emergem três grandes
metáforas para o fazer artístico: lançar pedras, atirar flechas e apanhar a maçã no
escuro. Tais imagens carregam em si as ideias de insistência, repetição e
continuidade. Para além da busca pela finalização da tarefa, há a hybris do artista, há
296
uma fenda sempre aberta, há o limite da linguagem. Nesse sentido, a personagem
não repousa como o escritor em seu labor, anjo caído que vive a brigar com suas
pulsões. Apesar da angústia diante desse limite, há o grito de aleluia, há o prazer
sisifiano de quem volta feliz com sua pedra, o gozo de quem constrói sua felicidade
nesse ato repetido. Para além de uma poética do ressentimento, há em Clarice
Lispector um gesto afirmativo que concebe a vida como tecido que se faz e desfaz na
luta com a linguagem e com sua fragilidade. Há em Clarice ainda uma poética da
repetição que, a partir dessa condição irrecusável, faz da vida uma caça errante cujo
alvo sempre resvala, mantendo o sujeito na vida, no labor, no gozo.
REFERÊNCIAS
BACHÉS, Jean-Louis. Ártemis. In: BRUNEL, Pierre (Org.) Dicionário de mitos literários.
4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p. 95-9.
BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1981.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
BRANDÃO, Juanito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Vol I AI. Petrópolis: Vozes, 1991.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 20 ed. Rio de janeiro: José
Olympio, 2006.
FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice
Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
GUIMARÃES, Cláudio Dias. Clarice Lispector e Friedrich Nietzsche: um caso de amor
fati. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes. Campinas: Editora da Unicamp,
2008.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editores, 1997.
LISPECTOR, Clarice. Água viva: ficção. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a.
______. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.
______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
______. Correspondências. (Org. Teresa Montero). Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
______. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura: uma leitura
(des)construtora dos processos de criação das escrituras de Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres e Água viva. 1997. 266f. (Mestrado em Letras: Estudos Literários)
Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 1997.
PRADO JÚNIOR, Plínio W. O impronunciável: notas sobre um fracasso sublime.
Remate de males, Campinas, Unicamp, 9, p. 21-9, 1989.
297
TERTÚLIA LITERÁRIA DIALÓGICA E TERTÚLIA DIALÓGICA
CIENTÍFICA:
outros caminhos para a formação leitora
Glauce Maciel Barbosa Pereira
Universidade do Estado da Bahia
[email protected]
José Marcos Pereira
Instituto de Educação Gastão Guimarães
[email protected]
RESUMO
O presente trabalho visa ressaltar a importância de estimular a prática leitora das
obras da Literatura Clássica Universal e a aprendizagem dos conhecimentos
científicos. Esse trabalho está sendo realizado em dois ambientes educacionais
distintos: Universidade do Estado da Bahia - UNEB e a escola da Educação Básica em
Feira de Santana – Instituto de Educação Gastão Guimarães. Na primeira instituição
está sendo aplicada a Tertúlia Literária Dialógica (TLD) e na segunda a Tertúlia
Dialógica Científica (TDC). Essas metodologias de acesso ao conhecimento têm seus
pressupostos alicerçados nas teorias: Ação Comunicativa - Habermans (1980), Teoria
da Dialogicidade - Freire (1960) e da Aprendizagem Dialógica engendrada por Flecha
(1990). Vale ressaltar que por estarem fundamentadas nessas teorias é que se tornam
democráticas, já que o sujeito não precisa ser leitor ativo para interagir com os
demais participantes dessa atividade. A aplicação da Tertúlia Literária Dialógica
estimula os leitores participantes a ampliar seu repertório leitor e a elaborar suas
demandas acadêmicas, tais como: trabalhos de conclusão de curso, atividades
pedagógicas durante os estágios supervisionados e a prática docente nos espaços de
educação. Defende-se que a TLD instrumentaliza os sujeitos envolvidos com a
democratização do saber, com a dessacralização da leitura dos livros da literatura
clássica universal e com a ampliação das vias de acesso a esta, ainda propiciando um
diálogo igualitário entre sujeitos dos mais variados níveis culturais. Já a Tertúlia
Dialógica Científica discute conhecimentos produzidos pelo homem ao longo da sua
existência perseguindo os mesmos princípios da primeira Tertúlia. A metodologia
empregada nesse trabalho foi a pesquisa de campo na perspectiva da abordagem
qualitativa, e teve como instrumento de coleta de dados um questionário aplicado
aos professores das áreas de Língua Portuguesa e Biologia. Os resultados dessa
pesquisa comprovaram que a aplicação dos enfoques educativos Tertúlia Literária
Dialógica e Tertúlia Dialógica Científica nos lócus pesquisados poderão mudar as
práticas de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa e da Biologia, viabilizando
assim a formação de sujeitos leitores mais preparados para solucionar as demandas
da vida. Tanto a TLD como Tertúlia Dialógica Científica poderão ser empregadas nas
atividades leitoras, não apenas nas escolas ou nas universidades, mas nas diferentes
agências de letramento: igrejas, ONGs, associações entre outras. A implementação
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
desses métodos de formação leitora certamente promoverão a inserção de diversos
sujeitos com variados níveis de conhecimento nas muitas rodas de conversação. Essa
pesquisa tem como proposta sugerir uma metodologia de ensino e aprendizagem
numa perspectiva diferenciada que promova a formação do leitor proficiente a partir
da reflexão de textos literários e científicos.
PALAVRAS-CHAVE: conhecimento científico; literatura; leitores.
1 APRESENTAÇÃO
Esse trabalho está pautado nas dificuldades de formação leitora em ambientes
formais de ensino e objetiva discutir a necessidade de ampliação de atividades de
leitura, visando a formação leitora dos alunos e a ampliação do leque de
conhecimentos do público envolvido, bem como implementar o uso da Tertúlia
Literária Dialógica e Tertúlia Dialógica Científica, doravante TLD e TDC
respectivamente, em espaços educacionais distintos. Sendo assim, os pressupostos
metodológicos
que
estão
subsidiando
este
estudo
contemplam
tanto
as
peculiaridades do ensino na Educação Básica, quanto na educação superior.
Na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, a TLD é divulgada e aplicada
através dos cursos de extensão desenvolvidos pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão
em Educação de Pessoas Adultas - NPEEJA – CAMPUS XIII em Itaberaba - Bahia, em
que fazem parte das ações desse núcleo a comunidade acadêmica e comunidade
externa. As atividades do aludido núcleo surgiram a partir das demandas dos alunos
da UNEB e da comunidade externa que reclamavam por metodologias de formação
da competência leitora que se diferenciassem das práticas de leitura realizadas em
sala de aula. Sendo assim, optamos por difundir uma atividade cultural baseada na
Literatura Clássica Universal que estimulasse tanto a competência leitora, assim
como a aprendizagem significativa dos diversos temas relacionados à cultura
universal de maneira cooperativa.
Assim, parte da motivação em realizar essa pesquisa se deu por causa do
desejo em aprofundar estudos sobre os fenômenos sociais, desencadeados a partir da
prática de leitura fundamentada na TLD na Educação Superior. Uma das mudanças
percebidas foi que essa metodologia de estímulo à leitura e prática da oralidade tem
299
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
conquistado os discentes dessa universidade estimulando produções de trabalhos
acadêmicos e de pesquisa sob a luz da TLD.
As ações desenvolvidas pela UNEB contemplam alunos da própria instituição,
alunos e professores da Educação Básica, assim como os de outras IES. Essas
atividades ocorrem quinzenalmente no Campus XIII e, visam, através da TLD,
ampliar o repertório de saberes dos leitores participantes bem como instrumentalizar
educadores para as suas atividades pedagógicas em sala de aula. Vale salientar que
essa atividade didática pode ser aplicada em qualquer agência de promoção do
conhecimento, por isso interessa também a outras pessoas da comunidade que por
sua vez multiplicam-na em seu meio social.
Essa pesquisa tem seus desdobramentos na Educação Básica no Instituto de
Educação Gastão Guimarães, escola situada na cidade de Feira de Santana – Bahia.
Nesse cenário educacional está sendo implantado a TDC
sob a constatação do
professor de Biologia, também autor deste texto, de que seus alunos do 1º (primeiro)
ano do Ensino Médio apresentavam dificuldades na compreensão dos conteúdos
300
trabalhados nessa disciplina, em virtude da falta dos conhecimentos prévios
fundamentais para aquisição de novas informações. A opção pela TDC objetivou,
dessa forma, contribuir para a compreensão e avanço no conteúdo programático da
disciplina mencionada.
As atividades de fomento à leitura, desenvolvidas através do Instituto de
Educação Guimarães, com base na TDC, intentam executar ações de incentivo à
leitura e ampliação do conhecimento científico no 1º (primeiro) ano do Ensino Médio,
uma vez que esse enfoque educativo pode auxiliar na compreensão e avanço dos
conteúdos relacionados ao programa de ensino da disciplina Biologia. Nesse sentido,
a TDC visa discutir e reelaborar conceitos relacionados às ciências ao longo da
existência humana.
Sendo assim, para que efetivamente aconteçam variações significativas nas
modalidades de incentivo à leitura, faz-se mister que as diversas agências de leitura,
sejam elas formais ou não formais, apliquem através do seu ator central na proposta
de construção de conhecimentos - o professor mediador, métodos capazes de
viabilizar a aprendizagem de forma substantiva e cooperativa. Lastreados na
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
realidade dos ambientes educacionais, acima citados, é que se problematiza a eficácia
dos métodos mais usuais, na formação do leitor, aplicados pelos professores. Assim,
defendemos que o uso da TLD e TDC favorece a ampliação do conhecimento e
efetivamente formam leitores proficientes.
Cabe reenfatizar que as Tertúlias Dialógicas apresentam-se como um recurso
didático-metodológico nas práticas leitoras em sala de aula capazes de estimular o
intercâmbio de experiências entre seus participantes além de ampliar o repertório de
conhecimentos literário, científico e de mundo dos que as praticam. Desse modo,
pode-se afirmar que as práticas educacionais que não estejam no contexto de vida
dos educandos pouco contribuem para uma aprendizagem efetiva. Na esteira desse
pensamento corroboramos com a afirmação de que,
torna-se imprescindível, então, o estabelecimento de novos
paradigmas de aquisição dos conhecimentos e de constituição dos
saberes, para que os aprendizes se desprendam dos cursos uniformes
ou rígidos que não correspondem a suas necessidades reais e as
especificidades de seu trajeto de vida (LEVY,1999, p.169).
Nessa perspectiva, é possível sublinhar não somente a importância da
Literatura Clássica Universal, mas provocar um diálogo entre esta e outras
produções clássicas universais a partir de uma estratégia de incentivo ao prazer; de
não só decodificar signos, mas, sobretudo, de inferir sobre o que está sendo decifrado
através de uma dinâmica de leitura que muito se distingue das mais tradicionais.
2 DESENVOLVIMENTO TEÓRICO
A TLD, com base na CONFAPEA7 (1999), lastreia-se na Aprendizagem
Dialógica, e ocorre através das produções clássicas da humanidade; tais como:
literária, de artes e musical. Os princípios da Aprendizagem Dialógica que alicerçam
a TLD são: 1 - Diálogo igualitário; 2 - Inteligência Cultural; 3 - Dimensão
Instrumental da Educação; 4 - Solidariedade; 5 - Criação de sentido; 6 Confederação de Federações e Associações de Participantes em Educação e Cultura Democrática de
Pessoas Adultas da Espanha, por meio do projeto "Mil y Una Tertulias Literarias Dialógicas por Todo
el Mundo", atuando em vários grupos de tertúlias na Espanha, Estados Unidos, Dinamarca, França,
República Checa, Austrália e Brasil.
7
301
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Transformação; 7 - Igualdade de diferenças. Partindo desses pressupostos inferimos
que através das tertúlias,
todo mundo pode sonhar e sentir, dar sentido à nossa existência. A
contribuição de cada um é diferente da do resto e, portanto,
irrecuperável se não temos em conta cada uma delas. Cada pessoa
excluída é uma perda irreparável para todas as demais. Do diálogo
igualitário entre todas é de onde pode ressurgir o sentido que oriente
as novas mudanças sociais para uma vida melhor. (FLECHA, 1997,
p.35).
Por esse veio discursivo, as Tertúlias Dialógicas viabilizam discussões sobre os
clássicos universais e diferentes conhecimentos científicos elaborados ao longo da
existência humana, entre pessoas de idades, gêneros e culturas diferentes. Havendo,
assim, outras tertúlias: Tertúlia Literária Dialógica; Tertúlias Dialógicas Musicais;
Tertúlias Dialógicas de Arte e Tertúlias Dialógicas Científicas. (COMUNIDADES DE
APRENDIZAGEM8, 2013, p.15).
A nossa reflexão contempla a TDL e TDC e diante disso afirmamos que o
desenvolvimento das atividades leitoras com base nos pressupostos metodológicos
302
das
referidas
tertúlias
ocorrem
da
seguinte
forma:
deve
ser
realizado,
preferencialmente, uma vez por semana, em grupo, podendo ocorrer em
aproximadamente duas horas. Elege-se a obra literária a ser discutida, lê-se parte
dessa obra, que pode ser um capítulo ou algumas páginas desse texto, discute-se o
texto e em seguida já se define quais páginas, capítulo ou a obra literária serão lidas
para serem analisadas no próximo encontro; a disposição dos participantes deve ser
em círculo, os próprios membros da tertúlia devem eleger duas pessoas do grupo e
uma assumirá a função de moderador e a outra a de apoio. Essas iniciativas devem
ser anteriormente acordadas entre os participantes (FLECHA, 1997).
As tertúlias estão lastreadas nos princípios do diálogo igualitário que faz com
que seus participantes se sintam à vontade para expressar o que pensam sobre a obra
analisada, pois não estão condicionados a se basearem em nenhuma crítica literária.
Essa forma de discutir os diversos textos estimula as várias conjecturas elaboradas
pelos seus participantes possibilitando assim aprendizagem comunicativa.
“Este caderno é elaborado pelo CREA - Centro de Investigação em Teorias e Práticas de Superação
de Desigualdades da Universidade de Barcelona”.
8
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Nessa perspectiva, as tertúlias de acordo com as suas especificidades
estimulam a análise de diversas temáticas sejam elas relacionadas à literatura clássica
universal, uma obra de arte, uma peça musical, uma situação – problema, à
matemática. Essas atividades em grupo são gratuitas, devendo incluir também quem
ainda não se fez leitor proficiente, ou melhor, quem está se alfabetizando.
A culminância se dá na socialização das memórias da tertúlia. Nesse sentido,
essa prática de estímulo à capacidade leitora busca fomentar o acesso aos vários
conhecimentos, estimular as diversas capacidades de aprendizagem dos sujeitos
envolvidos e possibilitar a livre elaboração de sentido para a leitura, assim a TLD,
é uma atividade cultural educativa desenvolvida a partir da leitura
de livros da literatura clássica universal. A atividade está baseada no
diálogo como gerador de aprendizagem. Na tertúlia literária não se
pretende descobrir nem analisar aquilo que o autor ou autora de uma
determinada obra quer dizer em seus textos, mas, sim, promover
uma reflexão e um diálogo a partir das diferentes e possíveis
interpretações que derivam de um mesmo texto. (MELLO, 2003,
p.449).
Ainda com base em (Mello 2003) a TLD oportuniza a todos os envolvidos,
nessa dinâmica, a leitura das obras da literatura clássica universal que versam sobre
sentimentos e questões existenciais humanas. Privilegiando as obras que
transcendam ao tempo e espaço oportunizando a análise de textos literários de
qualidade como garantia do direito de todo cidadão independente da sua condição
sociocultural. Dessa forma; como reitera Berbel (1998, p.141): “o conhecimento de
suas características não permite confundi-las, mas certamente, torná-las alternativas
inspiradoras de um ensino inovador que ultrapasse a abordagem tradicional”.
Vale salientar que essa atividade de fomento à formação da competência
leitora pode ser aplicada tanto na Educação Básica quanto na Educação Superior,
justificando, assim, o seu entrecruzamento nesse trabalho. A interface se dá, pois o
trabalho que é desenvolvido na Educação Superior contempla profissionais da
Educação Básica. No caso deste estudo, cabe lembrar que o projeto de extensão,
desenvolvido pelo NPEEJA já citado, atende aos professores das escolas da região de
Itaberaba. Na Educação Básica, o profissional pesquisador envolvido nessa pesquisa
aplicará a TDC na sua sala de aula com alunos da Educação Básica.
303
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A prática da Tertúlia Literária Dialógica, surge na escola de Pessoas Adultas la
Verneda de Saint – Martí em Barcelona na Espanha. Tem sua gênese relacionada aos
movimentos sociais ocorridos na Espanha no período de democratização, posterior à
ditadura de Franco. Essa metodologia chegou ao Brasil em 2002. As TLD’s são
difundidas desde então através do (NIASE), Núcleo de Investigação e Ação Social e
Educativa da Universidade Federal de São Carlos (NIASE, 2013).
Face ao exposto, apresenta-se esse método de formação do leitor literário, a
fim de estimular a prática leitora das obras da literatura clássica universal, através de
atividades extensionistas com o objetivo disseminar na comunidade acadêmica os
pressupostos metodológicos da TLD, assim instrumentalizando-os para elaboração
das atividades acadêmicas: tais como: Trabalhos de Conclusão de Cursos, atividades
pedagógicas durante os estágios supervisionados e doravante subsidiando a sua
prática docente nas salas de aula.
Ademais a divulgação da aplicação desse método pedagógico na comunidade
externa, por meio das atividades extensionistas desenvolvidas através do NPEEJA,
304
visa municiar não somente graduandos de diversas IES, mas professores das diversas
áreas do conhecimento com mais um recurso didático que poderá ser empregado nas
várias atividades de leitura formais ou não formais. Vale ressaltar que esse enfoque
educativo é democrático, uma vez que o sujeito não precisa ser alfabetizado
competente para poder interagir com os demais participantes da TLD. De acordo
com Mello (et al., 2004, p. 02) pode-se aplicar a TLD em grupos de pessoas de várias
níveis de alfabetização: “... Atuamos junto a homens e mulheres de uma turma de
EJA e de duas turmas da Universidade da Terceira Idade”.
Os minicursos que ocorrem através das várias ações extensionistas
implementadas e realizadas pelo referido campus da UNEB visam instrumentalizar
sujeitos envolvidos com a democratização do saber que multiplicarão esse método de
prática leitora nos incontáveis cenários sociais desmistificando a leitura dos livros da
literatura clássica universal e dos textos que registram conhecimentos científicos
engendrados há séculos pelos homens. Em conformidade com essa afirmação,
a Tertúlia Literária Dialógica é uma atividade cultural e educativa
desenvolvida a partir da leitura de livros da Literatura Clássica
Universal. É gratuita, aberta a todas as pessoas de diferentes coletivos
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
sociais e culturais, incluindo pessoas recém alfabetizadas. O objetivo
é promover espaços de diálogo igualitário e de transformação
(pessoal e do entorno social mais próximo (MELLO, et al., 2004,p.02).
A TLD visa proporcionar a inserção do sujeito nos múltiplos universos do
conhecimento, além de viabilizar a elaboração de vários sentidos para os textos
literários de acordo com a sua vivência de mundo, considerando que esse princípio é
um direito de todo cidadão. Esse método de acesso ao conhecimento de mundo
através da literatura clássica tem seus pressupostos metodológicos alicerçados nas
teorias da: Ação Comunicativa – que tem como mentor Habermans (1980), Teoria da
Dialogicidade - Freire (1960) e da Aprendizagem Dialógica engendrada por Flecha
(1990).
A TLD tem como pressuposto elementar a Aprendizagem Dialógica que
democratiza e humaniza a literatura promovendo a intersubjetividade na sua
aplicação. Corroborando com essa afirmação registra Flecha (1997, p.50) que: “a
leitura não vem da autoridade do professor ou do currículo, mas sim de sentimentos
humanos muito intensos. Não era para ser individualmente estudada, mas, sim,
coletivamente compartilhada.”
É importante destacar que o intercâmbio de informações sobre o texto literário
discutido favorece a ampliação de conhecimentos pelo sujeito na medida em que as
interpretações vão sendo socializadas, pois podem potencializar as demais, gerando
assim, através dessas interações a ampliação das inferências realizadas, uma vez que
essa atividade de ação cooperativa contribui para o acionamento do processo
cognitivo dos sujeitos envolvidos. Na esteira desse pensamento estão as TDC’s que,
[...] fortalecem o diálogo entre ciência e sociedade, estreitam relações
e reforçam a capacidade dos participantes de questionar, buscar
informações e discutir os grandes mistérios debatidos pela ciência
(COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM, 2013, p.15).
Portanto a TDC objetiva explorar na área das ciências conteúdos/ temas
relacionados à engenharia humana no que tange ao engendramento e sistematização
do saber instituído, a partir do pressuposto de que o conhecimento não é uma
verdade absoluta e que esse deve ser questionado.
3 PERCURSO METODOLÓGICO
305
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Conforme o que foi explicitado anteriormente, essa investigação teve como um
dos propósitos discutir a necessidade de ampliação de atividades de leitura na
Educação Básica e Superior, com vistas a contribuir tanto para a formação leitora,
bem como para ampliar o leque de conhecimentos do público envolvido nos dois
segmentos educacionais. A pesquisa está caracterizada como pesquisa de campo de
abordagem qualitativa. Na mesma linha de pensamento,
a pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se
preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não
pode ser quantificado, ou seja, ela trabalha com o universo de
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que
corresponde a um espaço mais profundo das relações dos processos e
dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis. (MINAYO,1995, p.21-22).
Utilizamos como instrumento de coleta de dados um questionário contendo 15
(quinze) perguntas, referentes à prática de formação leitora utilizada nas salas de
aula.
306
Selecionamos uma amostra de 06 (seis) professores de Língua Portuguesa que
atuam em escolas públicas da cidade de Itaberaba. E 06 (seis) profissionais que atuam
na área da Biologia na cidade de Feira de Santana, totalizando 12 (doze) docentes. Os
sujeitos informantes serão apresentados pela letra S acompanhada da numeração
sequenciada de S1 a S12.
A análise dos dados seguiu a lógica de análise do conteúdo entendida como,
um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter,
por procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição de conteúdo
das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a
inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.
(BARDIN, 2009, p. 44).
Dessa forma, encontramos a relação entre os dados trazidos do campo
empírico e as categorias direcionadas a TLD e TDC.
Os resultados serão apresentados em duas sessões, na primeira, serão
discutidas as questões alusivas à TLD e, na segunda, as questões inerentes à TDC.
3 REVELAÇÕES A PESQUISA
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
3.1 Sobre a TLD
Do
questionário
aplicado
aos
professores,
sujeitos
dessa
pesquisa,
selecionamos 03 (três) questões por considerarmos decisivas para compreender como
se dá o processo de incentivo à leitura em sala de aula.
Dos 06 (seis) sujeitos informantes sobre a categoria TLD, quando questionados
se a conheciam, 04 afirmaram conhecer essa metodologia; os demais afirmaram que
não tiveram oportunidade de conhecê-la. Os atores sociais que já vivenciaram a TLD
informaram9:
é uma técnica de leitura prazerosa, já que o processo acontece de
forma espontânea sem cobrança sem exigências, permitindo ao leitor
descobrir o mundo que o cerca, além de mexer com vários
sentimentos e emoções, pois a Literatura trata da condição humana,
dos valores, dos medos e anseios de cada ser. (S1)
Gosto, principalmente por incentivar a participação individual. (S2).
Sim, [...] aprendi muito e coloquei em prática essa técnica que meus
alunos adoram, pois sempre participam por prazer (S3).
Sim conheci a prática educativa através de oficinas na UNEB, campus
XIII (S4).
Com base nas respostas dadas pelos entrevistados inferimos que a atividade
pode proporcionar um revés no ensino de Língua Portuguesa e Literaturas/ leitura.
Desmistificando a crença de que nem todos possuem a competência intelectual para
opinar, conjecturar, criar novos conceitos sobre determinados temas. Nesse sentido:
“um muro cultural duramente colocado pelos discursos dominantes: que a Literatura
Clássica Universal só pode ser lida por quem teve longa formação acadêmica”
(GIROTTO, 2007, p. 67). Mas para que haja a transposição desse “muro”, entendemos
que o primeiro passo pedagógico tem que ser dado por aquele que viabiliza a
disseminação do conhecimento a ser des(construído) e re(construído) – o professor.
A segunda questão selecionada foi: “o que você pensa sobre as técnicas de
leitura que aplica com os alunos, em sala de aula? Os 06 seis professores
responderam:
Algumas são bem sucedidas e outras precisam ser avaliadas de forma
crítica. (S3).
São proveitosas, mas falta amadurecimento linguístico por parte dos
alunos. (S4).
9
Questionário aplicado aos sujeitos da investigação no dia 12 de agosto de 2015.
307
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Envolvente para os alunos que tem compromisso com a
aprendizagem [...] (S2).
Técnicas são boas, mas é bom deixá-los livres para argumentar o que
eles gostariam como fossem (S1).
As que aplico são relativamente boas e tem dado certo (S5).
Acredito que estou procurando fazer o melhor, para que o processo
de leitura aconteça de forma significativa e que o aluno possa ter
maior interesse por esse mundo mágico que é ler e ter vários olhares e
vários saberes. (S6).
Percebemos que a maioria dos informantes buscam implementar, nas suas
salas de aula, algumas técnicas de promoção da leitura e acreditam que os alunos
envolvidos devem socializar suas inferências sobre os textos como forma de dar
sentido ao que leram, assim como possibilitar que essas atividades de formação
leitora devem ser realizadas através de consenso entre os envolvidos, pois assim
conquistariam efetivamente uma grande maioria dos sujeitos. Dois professores
argumentam que falta maior comprometimento por parte do aluno, sugerindo que o
estímulo à habilidade de compreensão dependa exclusivamente dele, isentando-se
no processo de mediação.
308
A questão que trata sobre as dificuldades encontradas no ensino de Língua
Portuguesa, a última selecionada para este texto, foi sobre a “dificuldade de
compreensão leitora dos textos pelos alunos”. As respostas de 04 (quatro) dos 06
(seis) informantes sugerem a necessidade de revisão da metodologia de leitura que
está empregada em sala de aula. Assim sendo, pensamos que se faz necessária uma
análise sobre a seleção de textos que está sendo explorada, uma vez que estas
escolhas não estão contribuindo para promover a interação do aluno com o
conhecimento de forma crítica dificultando, assim, a formulação de suas inferências
sobre o que está sendo lido.
3.2 Sobre a TDC
Os informantes da Educação Básica, professores de Biologia, investigados
quando perguntados “se conheciam a TDC - Tertúlia Dialógica Científica” todos
afirmaram não conhecer o método.
Sobre a questão: “O que você pensa sobre as técnicas de leitura que aplica com
os alunos, em sala de aula?” 05 (cinco) sujeitos afirmaram:
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
No momento não desenvolvo nenhuma técnica de leitura. (S8).
São insuficientes para o progresso do aluno. (S10).
Não aplico técnica de leitura. (S9).
Poderia ser melhor se tivesse mais interesse dos alunos. (S11).
Acredito que os objetivos, na maioria, das vezes são satisfatórios, já
que os estudantes são estimulados à leitura. (S7).
As respostas em tela sugerem que não são aplicadas, pelo menos pela maioria
dos informantes, atividades de estímulo à formação e/ou exercício da competência
leitora. Essas respostas nos fazem refletir sobre as atribuições de cada educador em
sua respectiva área, sendo assim, o que poderia fazer o professor em suas aulas,
senão criar possibilidades, ou mediações, através da leitura, de compreensão do
conteúdo?
Já em relação aos obstáculos que impedem o ensino e aprendizagem foi
realizada a pergunta: “Você encontra dificuldades no ensino de Biologia? De que
ordem?” Os informantes foram unânimes em afirmar que as maiores dificuldades
referem-se à “compreensão leitora dos textos pelos alunos”.
As respostas registradas nessa questão nos fazem pensar que a dificuldade de
compreensão leitora é um fenômeno complexo tendo em vista que para a efetivação
da aprendizagem se faz necessário que se compreenda o que se lê. Assim, fica
subtendido que o processo de ensino e aprendizagem, nesse cenário, pode estar
comprometido. Se fazendo premente uma reestruturação pedagógica nesse contexto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme as respostas analisadas, podemos compreender que a perspectiva
de implementação da prática de leitura em sala de aula pautada nas Tertúlias
Dialógicas que compreendem a TLD e TDC são apreciadas pelos sujeitos
investigados que a conhecem. Alguns desses sujeitos afirmam que as atividades que
já aplicam na área da leitura não são tão exitosas, reiterando, assim, a nossa hipótese
de que a metodologia Tertúlia Dialógica pode tornar-se uma resposta efetiva para a
ampliação da capacidade leitora dos sujeitos através da aprendizagem dialógica, bem
como para possibilitar a dilatação do seu repertório cultural.
309
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Face ao exposto, sugerimos, então, a aplicação das Tertúlias Dialógicas nos
vários e distintos cenários educacionais do Brasil.
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http://www.niase.ufscar.br/tertulias-dialogicas. Acesso em: 08 oct 2015.
SOB O VÉU DA MEMÓRIA
Literatura sapiencial em “Luces y virtudes sociales”, de Simón Rodríguez
Isabela Cristina Tavares da Silva
Universidade Federal de Pernambuco
[email protected]
RESUMO
Nascido em Caracas no ano de 1771, época em que a ilustração toma a colônia da
América Espanhola, Simón Narciso Rodríguez tenta através de seus escritos e de seu
trabalho docente revogar por uma educação de qualidade, libertadora, preparando
os habitantes da América para a vida em República, que está prestes a surgir. Esse
personagem, integrante do grupo de intelectuais componentes do Projeto e do
Processo de Libertação da América Latina, torna-se conhecido como Maestro del
Libertador (por ter sido professor fundamental na formação de Simón Bolívar)
ou Maestro de las Américas (dadas suas contribuições para as bases da educação social
na América Latina). Dentre suas produções, com ponto norteador a temática da
educação venezuelana pelo olhar daquele que já fora integrante desse sistema como
estudante, destacam-se: Sociedades Americanas e Luces y virtudes sociales. Inserindo essa
investigação no campo dos Estudos Culturais, especificamente no tocante à
Literatura Colonial e Pós-Colonial, objetivamos neste trabalho perceber a função da
memória coletiva para a constituição da obra Luces y virtudes sociales (editada e
publicada pela Biblioteca Ayacucho em 1990), bem como, o modo pelo qual tal
escrito se insere na categoria denominada literatura sapiencial. Por isso, torna-se
indispensável recorrer aos estudos biográficos sobre Simón Rodríguez, em
contraponto com a História da América Latina e da educação na Venezuela, e em
comparação com educadores de visibilidade inseridos no mesmo contexto, como o
Licenciado Miguel José Sanz e Andrés Bello. Do mesmo modo, faz-se necessário
tentar estabelecer os limites da literatura sapiencial, e delinear na obra as marcas ou
fragmentos que indiquem essa classificação. Para tanto, utilizamos como aporte
teórico: os apontamentos biográficos produzidos por González (2006) a respeito de
Simón Rodríguez; indicações de Contreras (2010) e Gúzman (2014) sobre o processo
de ilustração na Venezuela e suas consequências na educação; a definição de
literatura sapiencial elaborada por Caramelo (2004); contribuições acerca da memória
coletiva e sua relação com identidade e literatura de Halbwachs (1990) e Alemán
(2010). Notamos com o desenvolvimento da pesquisa a importância do registro de
Simón Rodríguez para a conservação de uma representação da memória coletiva
relacionada ao período Colonial, ponto esse, denotado pelo próprio autor; também
transparece que essa memória exerce grande influência para a tese central da
produção de Simón Rodríguez: a Instrução Geral (prevendo a educação integral do
sujeito). Com intencionalidade de garantir uma boa estruturação, compreensão e
difusão do texto e da tese, a obra apresenta-se como um conjunto de instruções que
devem ser passadas aos novos habitantes (cidadãos republicanos), permitindo a
inserção no conjunto da literatura sapiencial, denotando seu caráter didático-
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
pedagógico e a mescla com palavras de sabedoria, presentes na tradição cultural de
Língua Espanhola.
PALAVRAS-CHAVE: Simón Rodríguez; memória coletiva; literatura sapiencial;
Libertação da América.
1 APRESENTAÇÃO
Para iniciar uma reflexão sobre o papel da memória coletiva na construção
da obra Luces y virtudes sociales e a maneira pela qual se insere na categoria de
literatura sapiencial, faz-se necessário realizar um breve apanhado biográfico acerca
do legado de Simón Rodríguez, auxiliando a compreensão da formação de tal obra.
Simón Narciso Rodríguez nasceu em Caracas, no ano de 1771, época em que
a atual capital da Venezuela vem sendo tomada pela ilustração advinda dos títulos
de Castilla, ao mesmo tempo em que está dominada pelo quadro de escravidão para
a produção de cacau. Neste contexto, Simón Rodríguez e seu irmão Cayetano,
considerados de personalidade díspares, são educados em parte pelo seu tio José
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Rafael Rodríguez, sacerdote, e em parte pelo sistema de ensino público oferecido em
Caracas.
Ambos, Narciso e Cayetano, bebem da mesma educação, mas tomam rumos
totalmente diferentes: Simón representa a figura do rebelde, revolucionário viajante
do mundo, enquanto Cayetano é o polido católico exemplar que nunca saiu de seu
país. O fator contribuinte para a formação intelectual do jovem Simón Narciso é a
chegada de livros na Colônia, em especial, a entrada clandestina de obras francesas
para os venezuelanos, e para os americanos em geral, fazendo de Simón aquele que
“desembocará no obstante, en la mar de lo innovador ideológico, de lo aglutinador
sociológico, de lo educador puro” (GONZÁLEZ, 2006, p. 10) e em quem “todos los
valores de entonces, universitarios o no, hicieron su ruta erudita por personal
esfuerzo, auto educándose, leyendo” (ibidem).
Da sua experiência na escola pública brota o cerne de sua crítica à educação
precária, de currículo pobre oferecida pela Metrópole à Colônia, impedindo a
ilustração dos homens nessa sociedade, garantindo assim, o poder pela dominação
dos saberes ou do conhecimento advindo das Luzes.
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Em 23 de maio de 1791, Rodríguez é nomeado oficialmente como professor
de educação primária de Caracas. No ano seguinte, começa a trabalhar como
educador de Simón Bolívar (feito pelo qual se torna conhecido como maestro del
Libertador), aplicando durante o processo os princípios de conservação do estado
natural da criança, tratados no relato pedagógico que compõe a obra Emillio, de
Rousseau. A adoção dessa metodologia faz de Bolívar um autodidata, chegando a ser
considerado “el mayor autoilustrado de su tiempo” (GONZÁLEZ, 2006, p. 13).
Como professor, Rodríguez defendeu algumas ideias revolucionárias no
campo da educação, escrevendo vários textos críticos que expressam sua visão diante
de seu tempo, para a construção de outra perspectiva de futuro, perspectiva essa,
associada ao projeto de Libertação da América Latina. Chegou durante sua trajetória
a defender a educação de meninas de todas as classes e raças, projetando, inclusive,
esse propósito junto a Simón Bolívar.
Dentro de sua produção, também se encontram críticas direcionadas
diretamente ao governo em relação à educação fornecida, na maioria das vezes
acrescidas de um plano de mudanças ou sugestões, como nos aponta González (2006,
p. 22): “al acusar sin titubeo y con palabra franca, el maestro, no solo denuncia como
rebelde, sino que parece un anticipador de lo que se hará en América una vez
independiente”.
2 ANÁLISE
No fomento do processo de independência da América Latina, nota-se
fortemente no planejamento revolucionário da educação, a presença do princípio de
igualdade, que preconiza os ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo, em
Simón Rodríguez, como apontado anteriormente, e em seus contemporâneos, a
exemplo o Licenciado Miguel José Sanz.
Nomeado curador ad litem o menino Bolívar, o Licenciado Miguel José Sanz
também estabelece profundas relações com os revolucionários republicanos e critica
arduamente a educação fornecida à população caraquenha, assim como Rodríguez,
baseado nos princípios roussenianos. Sua tese crítica à educação venezuelana está
baseada no ensino rudimentar, e, por conseguinte, no pouco conhecimento do povo
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em relação aos tópicos de geografia, cultura e história, pensando essas matrizes de
ensino como fundamentais para o reconhecimento da identidade do sujeito.
Entre suas ideias para a reestruturação escolar estão: uma escola ativa em
torno de trabalhos técnicos (ofício mecânico e agricultura prática), uma escola aberta
para todos sem discriminações socioeconômicas e raciais. Miguel José Sanz também
destaca que “la falta de cultivo del entendimiento, es lo que hace al hombre
perseverante en aquellos errores que tan perjudiciales le son a su felicidad”
(GUZMÁN, 2014, p. 5).
Em seu Informe sobre la instrucción pública (1794), Simón Rodríguez apresenta
um plano de instruções com reparos necessários na Escola de Primeiras Letras de
Caracas, com linhas semelhantes às do Licenciado, acrescentando a isso o objetivo de
motivar os estudantes para a educação e para o reconhecimento da função do
professor no processo de ensino. Contreras (2010) destaca que tanto Rodríguez
quanto Sanz “están convencidos de que la educación es el instrumento que va a forjar
el ciudadano virtuoso, pieza clave para la felicidad de la república” (p. 315).
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Cézar Gúzman (2014) dá um passo à frente em relação a Contreras, ao
associar a Rodríguez e a Sanz, Andrés Bello e Bolívar, caracterizando-os como
pensadores da educação como uma ferramenta para a liberdade. Assim, define que
as ideias desses homens latino-americanos “se han proyectado más allá del tiempo
finito de sus creadores, como precursores de una educación popular que superará los
prejuicios de las castas, que se fundamentaban en la discriminación racial” (p. 1).
Percebe-se a partir dessas observações, a integração das ideias e esforços para
conseguir a emancipação da América Latina e bem firmar a República na nova
sociedade.
No ano de 1825, Rodríguez é nomeado Diretor do Ensino Público, Ciências
Físicas, Matemática e Artes da República Bolivariana:
“En el Cuzco, esa sede de dos culturas, la inca y la hispana
amestizada, firmó el Libertador los primeros decretos revolucionarios
sobre educación, bajo la influencia de Rodríguez, que era quien iba a
responsabilizarse de todas las transformaciones, de todos los golpes
profundos” (GONZÁLEZ, 2006, p. 73).
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Observa-se ao longo da trajetória de Simón Rodríguez, o caráter pedagógico
de seus escritos, além das críticas e informes produzidos, aparece nas obras Educación
e Luces y virtudes sociales. Esta última, publicada pela Biblioteca Ayacucho na
compilação de textos de Rodríguez intitulada: Sociedades Americanas (1990), mesmo
título da primeira publicação do autor presente na coletânea. Essa edição é resultado
da publicação de Luces y virtudes sociales em duas partes: a Introducción (Concepción,
1834) e Luces y virtudes sociales (Valparaíso, 1840).
Ambas as publicações tomadas como referência pela Biblioteca Ayacucho,
tem data posterior ao processo de independência da América Latina, no entanto, há
indicações de que as referências utilizadas por Rodríguez apresentam uma imagem
do período durante o processo de formação e revoluções que compõem a Libertação
da América, chegando o próprio autor, a afirmá-lo em comentário prévio à obra
Sociedades Americanas: “Mi genio comunicativo me ha hecho leer mis borradores a
muchos – y mis borradores sobre la Instrucción Pública tuvieron principio, a fines del
siglo pasado, en Europa, donde viví enseñando por espacio de muchos años”
(RODRÍGUEZ, 1834 apud. AYACUCHO, 1990, p. 153).
Ao pensarmos todos os aspectos circundantes da produção de Simón
Rodríguez, denotam-se o caráter pedagógico e sua relação para a constituição da
memória coletiva no tocante ao projeto de Libertação da América e no próprio
projeto de educação proposto em Luces y virtudes sociales, ao pensar o ensino para os
latino-americanos da novidade República, como expresso no seguinte fragmento
“Esta obra […] se dirige a los que entran en una sociedad que no conocen, a los que
necesitan formar costumbres de otra especie para vivir mejor bajo un Gobierno
diferente del que tuvieron sus padres” (RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO,
1990, p. 223); articulando a reconfiguração da memória dos sujeitos colonizados a
sujeitos independentes, colaborando na construção da identidade cultural de um
povo propriamente latinoamericano e do ideal de unidade latino-americana,
corroborando assim, para uma nova escrita da história.
Trata-se, portanto, da memória coletiva como uma articulação entre
memória social e memória cultural, como apresenta Maurice Halbwachs (1990, p. 35):
“A memória coletiva [...] envolve as memórias individuais, mas não
se confunde com elas. Ela evolui segundo as suas leis”. Fazendo com
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que um indivíduo seja capaz “ [...] de se comportar simplesmente
como membro de um grupo que contribui para evocar e manter as
lembranças impessoais, na medida em que essas interessam ao
grupo”.
Rodríguez, homem de seu tempo, articula as construções de seu contexto:
sua experiência na escola pública como aluno e professor, a Ilustração e a
efervescência da Libertação da América, permitindo a troca de ideias críticas com
seus contemporâneos (exercício da memória social), utilizando-se de um discurso
popular, baseado na tradição (caso visto mais adiante no tratamento do uso de
aforismos), para deixar marcas presentes na memória do povo latinoamericano: a
herança da educação popular e social, o testemunho do esforço intelectual com a
finalidade de alimentar a Independência da América Latina (exercício da memória
cultural).
Esses pontos contribuem com a tentativa de apagar, em certa medida pela
rememoração, a ferida (fazendo apropriação da afirmação de Paul Ricoeur, na
conferência Memória, história, esquecimento (Budapeste, 2003): “As questões em jogo
316
dizem respeito à memória, já não como simples matriz da história, mas como
reapropriação do passado histórico por uma memória que a história instruiu e
muitas vezes feriu”)
deixada pelos colonizadores, reconstruindo a memória,
remodelando as identidades e a identidade coletiva desse povo para uma nova forma
de sociedade e uma nova visão de mundo, com as quais não estariam habituados. Ou
seja, há um movimento de memória no presente, com base no passado, dotado de
implicações futuras. Como explicita alemán (2010, pp. 173 – 174):
“La identidad se sustenta en la memoria, esto es, se forma y se
construye mediante el recuerdo. Sin la facultad y sin el hecho de
recordar se hace imposible la formación de la identidad. La función
de la memoria aparece vinculada a una de las características que
definen de manera esencial tanto al individuo como a la sociedad: la
dependencia del pasado, la imposibilidad de abdicar del ayer. […] La
memoria nos da conciencia de nosotros mismos. […] Sin memoria, no
hay identidad”.
O processo de articulação da memória coletiva na obra se dá mediante dois
fatores: 1) conteúdo pedagógico, instrutivo; 2) recurso aforístico utilizado como
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norteador da escrita do texto. É através dessas maneiras que Luces y virtudes sociales
se insere no campo da literatura sapiencial que
“[...] testemunha este diálogo permanente com a sociedade, numa
sucessão de perguntas e respostas que parecem, não raras vezes,
libertar-se do tempo, mostrando-se válidas para outras épocas. Tem
uma função social, na medida em que configura um quadro
idealizado de uma sociedade estável e ordeira. Reflete as relações
sociais, mas sugere, igualmente, um projeto de sociedade e uma certa
concepção de poder” (CARAMELO, 2004, p. 355).
Pode-se dizer, contudo, a propósito da literatura sapiencial que a mesma
recorre a um discurso de sabedoria, garantindo a credibilidade necessária para
cumprir sua função instrutiva, já que esse discurso está pautado na tradição
(memória cultural), passado de geração em geração, em maior escala através da
oralidade. Afirma-se, portanto, que a literatura sapiencial é uma forma de oralidade
secundária, por ser aquela que está relacionada a sociedades urbanas em
transformação.
Sendo assim, vale classificar a literatura sapiencial por seu caráter em três
subcategorias: 1) discurso dos anciãos ou palavras de sabedoria; 2) literatura
pedagógica; 3) literatura filosófica. O discurso dos anciãos compreenderia o hall
conhecido como Provérbios e Instruções (CARAMELO, 2004), onde estariam
inseridos os huehuetlatolli, no campo da literatura pré-colombiana ou os Cantares de
Salomão, na tradição bíblica ocidental. A literatura pedagógica daria conta das
escritas de função moralizante, como os casos presentes em O Conde Lucanor, na
literatura espanhola e as fábulas de Esopo e La Fontaine, além dos escritos didáticos
e que versem sobre Educação, como a produção crítica de Paulo Freire. Na literatura
filosófica, como a nomenclatura antecipa, estariam as obras inseridas no campo da
Filosofia.
Considerando essas categorias, é possível afirmar que há uma simbiose entre
as palavras de sabedoria e a literatura pedagógica em Simón Rodríguez,
especificamente, em Luces y virtudes sociales. Rodríguez aponta em sua obra a
presença desse discurso de sabedoria, justificando o uso dos aforismos no seguinte
fragmento: “A los sabios que se debe hablar por sentencias (el que las entienda es
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sabio) y se les debe hablar así, porque para ellos las sentencias son palabras”
(RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO, 1990, p. 205).
A fórmula de sentenças presente em várias partes do texto recorre a seu
caráter popular, permitindo a compreensão dos “poucos ilustrados”, já que o povo é
dotado de sabedoria (advinda das tradição da cultura popular), exemplificada nos
seguintes fragmentos: “hagan bien lo que han de hacer mal sin que se pueda remediar” (
façam bem o que hão de fazer mal sem que se possa remediar); “nadie va a la guerra
sin armas, porque pesan” (ninguém vai à guerra sem armas, porque pesam”; “errar y
padecer hasta que haya quien conozca que la necesidad no consulta voluntades” (errar e
padecer até que haja quem conheça que a necessidade não consulta vontades) ; “no es
querer saber más que todos el desear que todos sepan lo que deben ignorar” (não é querer
saber mais que todos desejar que todos saibam o que devem ignorar) ; “curiosos que
desean aprender para saber son estudiantes” (curiosos que desejam aprender para saber,
são estudantes).
Nota-se nessas sentenças, o caráter das palavras de sabedoria, inscritas no
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caso apresentado, no campo dos provérbios com criações originais de Simón
Rodríguez. Em Consejos de Amigo al Colegio de Latacunga, o maestro advoga pela
originalidade da América Latina de maneira enfática, assim como em outros de seus
escritos, sendo assim, acredita-se que em certa medida, inserir dentro do campo da
tradição suas criações, seja uma das maneiras de fincar a originalidade do latinoamericano pela instância da escrita.
Rodríguez enfatiza na obra a ideia do educar como uma arte, com a
finalidade de trabalhar as virtudes do homem, ou seja, para que através da educação
o homem possa gozar da sua existência [na República]. Reiterando assim, sua visão
de educação com função para a vida e não somente com a ideia de conhecer
determinados saberes escolares, chegando a destacar a pureza com a qual se deve
educar, mantendo a luz e elevando a educação às condições de verdade, princípios
justificados por Rohden, em A educação do homem integral (2007).
Fica clara a defesa da República na obra através dessa afirmação: “El
Gobierno Republicano es protector de las Luces Sociales, porque sus Instituciones
saben que sin las luces no hay virtudes” (RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO,
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1990, p. 199). Sendo assim, a República é a maneira pela qual se chega à educação
verdadeira e, portanto, à liberdade. A mesma sentença também reforça a ideia de
confiança na República, pois é através dela que será garantida a harmonia para a
promoção do bem-estar de todos.
As virtudes do homem republicano estariam baseadas na Instrução Geral,
firmada em quatro pilares: social, corporal, técnico e científico. Esses pilares seriam
responsáveis por ajudar a construir uma sociedade apta a aprender e ensinar em
união, assim como para trabalhar sob as regras de um governo prudente, formando:
uma nação forte disposta a lutar pelos ideais do governo, que passariam a ser seus
próprios ideais; especializada, para que cada um possa desenvolver suas
capacidades, que juntas serão uma unidade; pensadora, uma sociedade consciente
para entender e aplicar os princípios ideológicos da República.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caráter instrutivo/didático de Luces y virtudes sociales, é apresentado por
Simón Rodríguez em forma de conselho, exemplificado pela citação:
“Acostumbrarse, pues, al hombre que ha de vivir en… República, a
buscar desde su infancia, razones y proporciones en lo que puede
medirse exactamente para que por ellas aprenda a descubrir razones
y consecuencias en las providencias y en los procedimientos del
Gobierno, para que sepa aproximarse al infinito moral: para que sus
probabilidades no sean gratuitas, ni sus opiniones infundadas”
(RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO, 1990, pp. 225-226).
Na perspectiva de Rodríguez, o professor é aquele que guia a aprendizagem
do estudante e o apoia, buscando levá-lo à reflexão a partir de suas próprias
vivências e experiências. Sua posição de ator social permite-o advogar pela Instrução
Geral e pela educação social, e mesmo com esse importante papel para a República,
cabe ao professor (pelo cuidado em valorizar suas virtudes) manter sua humildade.
O estudante é movido pela curiosidade, pois a mesma tira o homem da
ociosidade e da escuridão e o carrega em direção as luzes do conhecimento. Com a
perspectiva de autoeducação, o aprendiz é o responsável pelo conteúdo de sua
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aprendizagem e pelo que deseja aprender, assim como, carrega a função de propagar
as luzes adquiridas através da educação à sociedade. As aulas estão estruturadas em
formato de conferência, pois, segundo o Rodríguez, professor e estudante estão em
constante troca de interpretações dos saberes.
Por fim, o autor demonstra a sua consciência em relação ao impacto de sua
formação intelectual na sua memória, e possivelmente, o que suas obras produziriam
na memória coletiva latino-americana, considerando a leitura uma atividade de
compreensão, já que, para ele, ler não é nada mais que articular memórias. Sobre isso,
registra em Luces y virtudes sociales: “cada sentido tiene sus recuerdos: y, juntándose
los de los unos con los de los otros, forman la memoria. Disponerlos, por sus
conexiones, es un arte que los antiguos llamaron mnemónica. Memoria es, pues, un
conjunto de recuerdos” (RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO, 1990, p. 221). Vê-se
aí a importância do ler e do registro literário para recuperar as memórias e mantê-las
vivas.
320
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEMÁN, M.M. Literatura, memoria e identidad. Una aproximación teórica.
Cuadernos de Filología Alemana, 2010, Anexo III. pp. 171 – 179.
AYACUCHO, B. Sociedades Americanas. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1990.
CARAMELO, F. A função social e política da literatura sapiencial no Próximo
Oriente antigo (I). In: SILVA, F. R. (org.). Estudos em homenagem a Luís António de
Oliveira Ramos - vol. I. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004.
pp. 355 – 365.
CONTRERAS, M. N. Ilustración venezolana y paideia colonial: el Lic. Miguel José
Sanz. Presente y pasado. Revista de história, Ano 15, nº 30, p. 301-320, 2010.
GONZÁLEZ, A. R. Simón Rodríguez maestro de América: biografía breve. Caracas:
Ministerio de Comunicación e Información, 2006.
GÚZMAN, C.A. Algunas ideas precursoras de la educación popular venezolana.
Disponible
en:
http://servicio.bc.uc.edu.ve/educacion/revista/a1n2/1-21.pdf.Acesso em: 19 ago. 2014.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.
NOS PASSOS DOS “CAPITÃES DA AREIA”: UMA NARRATIVA DE TÁTICAS
E ASTÚCIAS CONTRA AS ESTRATÉGIAS DE CONTROLE DA ORDEM
ESTABELECIDA
Jadson Santana da Luz
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo a construção de uma análise interpretativa da narrativa de
Capitães da areia, de Jorge Amado, no confronto com o contexto sociojurídico dos anos 1930.
A partir da leitura do romance, o estudo visa discutir as táticas utilizadas pelos personagens
do romance para fazer frente às estratégias de controle e submissão colocadas em jogo pelo
Estado brasileiro para conter, em nome da ordem e da paz social, uma miríade de crianças
em situação de abandono, menores vulneráveis, que tinham as ruas da capital baiana como o
seu único espaço de sobrevivência. Capitães da areia expõe todo esse cenário e se coloca do
lado dos desfavorecidos sociais ao narrar as astúcias e táticas empreendidas contra a
opressão social que os cerca. Os estudos de Michel de Certeau serviram para interpretar o
desenrolar dessa luta.
PALAVRAS-CHAVE: Capitães da areia, leis, contexto sociojurídico, táticas, astúcia,
estratégias.
Livro marcado pelo estigma da incineração, perseguido pela censura do
Estado Novo, Capitães da areia narra situações cotidianas protagonizadas por um
grupo de crianças e adolescentes nas ruas da cidade de Salvador. O romance expõe
os maus tratos duma sociedade opressora a um grupo de crianças vítimas do
abandono, vulneráveis, portanto, às mazelas sociais, e que encontram as ruas da
capital baiana como o seu único espaço de sobrevivência.
Chamados de capitães da areia, e sobrevivendo de pequenos furtos e assaltos,
muitos desses menores, tal como apresenta a narrativa, foram abandonados pelos
pais ou, por circunstâncias diversas, tornaram-se órfãos. Essas crianças têm como
esconderijo um trapiche abandonado, onde buscam guarida nas fugas da polícia e
também onde guardam e dividem o que conseguem com os furtos. Abandonados
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pelo Estado, sem família, apenas encontrando a piedade de um pároco sensível à
situação, os menores se organizam estabelecendo regras de convivência e laços de
solidariedade. Na travessia de um cotidiano adverso, os capitães da areia, liderados
por Pedro Bala, enfrentam a terrível epidemia de varíola, arquitetam invasões à
delegacia de polícia, assaltos às mansões do bairro rico da Graça, vão às festas do
candomblé da mãe Aninha, troçam do modo de vida que leva a elite e criam táticas
para baldar a opressão social sofrida.
Boa parte da obra de Jorge Amado, sem dúvida, pode ser caracterizada pelas
articulações que o escritor estabelece entre cidade, cultura, política e identidade. As
cidades, seja Salvador ou as demais tematizadas pelo escritor, são representadas
como locus onde se imbricam repressão política e cultura popular, cor de pele e luta
de classes, liberdade e abandono, solidariedade e indiferença. Isto é, no universo
romanesco amadiano a cidade se faz perceptível como espaço culturalmente
heterogêneo, no qual o binômio exclusão social e luta por sobrevivência está presente
como linha mestra.
322
O romance Capitães da areia, dividido em três partes e mais um prólogo, não
narra apenas o drama de crianças órfãs, mas também uma complexa rede de
sociabilidades tecidas no cotidiano de uma cidade, cujos verdadeiros “donos” é a
imensa população de pobres que faz das ruas o palco de uma luta renhida pela
liberdade. É um livro sobre uma saga coletiva onde as ruas de Salvador e seus
personagens vêm ganhar protagonismo.
No romance, percebe-se muito bem que a narrativa sobre a cidade está
atrelada ao modo como o texto expõe as vivências e a dinâmica cultural da
população pobre nas vielas sinuosas da “velha urbe”. Embora apresente um espaço
urbano hostil e segregante, o livro revela a relação simbiótica entre a cidade e seus
personagens. A cidade de Salvador, em Capitães da areia, não é apresentada como
simples pano de fundo. Ela é a própria condição de possibilidade da narrativa, pois é
o lugar onde se articulam cultura, política, pobreza, repressão e luta pela
sobrevivência. É neste sentido que o grupo dos capitães da areia está ligado
umbilicalmente ao fluxo urbano caracterizador da cidade. “Vestidos de farrapos,
sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro,
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eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conhecia totalmente, os que
totalmente a amavam, os seus poetas” (AMADO, 2009, p.27).10
Capitães da areia é uma síntese da realidade social brasileira de 1930. Nele
vemos expresso o resultado de séculos de abandono e desprezo das elites e dos
poderes estatais constituídos com os espoliados pelo poder econômico. O amargor de
uma vida precarizada e perseguida é o que se pode ver nas páginas do livro
considerado subversivo pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Portanto, é um livro
que expõe uma imenso problema social, isto é, um drama causado pela exclusão e
pelo esquecimento.
A elite brasileira esteve atenta aos potenciais perigos que poderiam advir do
seio das classes populares. Neste sentido, desde meados do século XIX, buscou
pensar meios de contenção e dispositivos de segurança para captura de indivíduos e
grupos populacionais que não se enquadrassem às regras ditadas pelos quadros
sociais estabelecidos. Com o passar do tempo, o que se viu foi a sofisticação dos
braços de operacionalização do sistema penal, sobretudo durante o longo período em
que Getúlio Vargas esteve no poder. A essas configurações tramadas, escalonadas e
calculadas pelo poder, Michel de Certeau chamou de “estratégia”, que é, nas
palavras do autor,
[...] o cálculo (ou manipulação) das relações de forças que se torna
possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder
(uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica)
pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser
circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as
relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou
os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os
objetivos e objetos da pesquisa etc.). Como na administração de
empresas, toda racionalização "estratégica" procura em primeiro
lugar distinguir de um "ambiente" um "próprio", isto é, o lugar do
poder e do querer próprios. Gesto cartesiano, quem sabe:
circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes
invisíveis do Outro. Gesto da modernidade científica, política ou
militar (1998, p.99).
10
As citações seguintes dessa edição virão acompanhadas apenas da indicação de página.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Na narrativa de Capitães da areia estratégias de repressão ganham referência.
Mas são referenciadas de um modo distinto daquele que costuma trazer o discurso
institucional, que as trata como eficientes meios de reforma moral e reinserção social.
Nesse romance, as estratégias repressivas do sistema de poder são mostradas quase
sempre com suas falhas, suas fissuras, com seus embaraços e em sua ineficiência. É
nas brechas deixadas por esses deslizes, por essas pequenas distrações do poder, que
os “capitães da areia”11 encontram espaço para gestar aquilo que Certeau chamou de
“táticas”. Na definição do autor:
Um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com
uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática
só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente,
sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não
dispõe de base onde capitalizar seus proveitos, preparar suas
expansões e assegurar uma independência em face das
circunstâncias. [...] Ao contrário, pelo fato de seu não lugar, a tática
depende do tempo, vigiando para ‘captar no voo’ possibilidades de
ganho. O que ela ganha, não guarda. Tem constantemente que jogar
com os acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar,
o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas. Ele o
consegue em momentos oportunos onde combina elementos
heterogêneos [...], mas a sua síntese intelectual tem por forma não um
discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a
‘ocasião’ (CERTEAU, 1998, p.46-47) [grifos do autor].
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Jogar com os acontecimentos, tirar proveito das distrações de guardas e
transeuntes, disfarçar-se de mendigo, instalar esconderijo em zonas abandonadas,
valer-se do silêncio nas ruas dos bairros estabelecidos, irromper contra os palacetes e
encenar situações para garantir “níqueis” ou oportunidade de furto, são modos
táticos de baldar a ordem que proliferam em Capitães da areia. Tal como leciona
Certeau:
Essas performances operacionais dependem de saberes muito
antigos. Os gregos as designavam de métis. Mas elas remontam a
tempos muito mais recuados, a imemoriais inteligências com as
astúcias e simulações de plantas e de peixes. Do fundo dos oceanos
até as ruas das megalópoles, as táticas apresentam continuidades e
Nesta texto, em diferentes momentos, os personagens desse romance são referidos como “capitães
da areia”, numa assumida adesão à perspectiva do narrador.
11
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permanências. Em nossas sociedades, elas se multiplicam com o
esfarelamento das estabilidades locais como se, não estando mais
fixadas por uma comunidade circunscrita, saíssem de órbita e se
tornassem errantes (1998, p. 47).
Na luta contra as instituições colocadas na arena pelo Código de Menores de
1927, contra as regras de uma suposta boa moralidade, contra as árduas reprimendas
das práticas penais de tortura e contra as máquinas de guerra instituídas pelo
Governo Vargas, só restavam aos capitães da areia as transgressões possibilitadas
pelas táticas, já que, no fim das contas, eles sabiam demais as leis do reformatório, as
escritas e as que cumpriam. Portanto, os personagens que compõem o romance não
estão inertes aos preconceitos de classe nem às armadilhas montadas contra eles no
tecido social. Em Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios de Salvador,
escrito em 1944, numa referência explícita a Capitães da areia, Jorge Amado revela
alguns modos de contra-atacar desses personagens e também mostra, numa
interlocução com seus leitores, que eles representam sujeitos reais, conhecidos de
longa data.
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Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a gíria de
malandro, os rostos chapados de fome, vos pedirão esmola. Praticam
também pequenos furtos. Há quarenta anos escrevi um romance
sobre eles. Os que conheci naquela época são hoje homens maduros,
malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões
fichados na polícia, mas os Capitães da Areia continuam a existir,
enchendo as ruas, dormindo ao léu. Não são um bando surgido do
acaso, coisa passageira na vida da cidade. É um fenômeno
permanente, nascido da fome que se abate sobre as classes pobres.
[...] Parecem pequenos ratos agressivos, sem medo de coisa alguma,
de choro fácil e falso, de inteligência ativíssima, soltos de língua,
conhecendo todas as misérias do mundo numa época em que as
crianças ricas ainda criam cachos e pensam que os filhos vêm de paris
no bico de uma cegonha. (AMADO, 2012, p.344).
Malandragem, vivacidade, rapidez, atrevimento, o que são, senão potenciais
de força, táticas, contrapoderes, modos de insurreição aptos a suscitar o combate
contra a coação da ordem estabelecida? É mobilizando essas forças, que provêm das
margens, que os capitães da areia vão conflagrar alvoroços, promover revoltas e
instaurar os movimentos de subversão típicos das “táticas”.
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A prática de delitos é uma das táticas privilegiadas pelo narrador de Capitães
da areia no decorrer da história. Trata-se de uma arma de luta, de uma forma de
combater e demarcar uma linha de fronteira entre os princípios morais supostamente
civilizados das elites e o modo de vida que levava o grupo dos capitães da areia.
Neste sentido, o delito em Capitães da areia é colocado como operador de sentido
por meio do qual se estabelece uma constelação de relações sociais. Conforme
Josefina Ludmer, “desde o começo mesmo da literatura, o delito aparece como um
dos instrumentos mais utilizados para definir e fundar uma cultura: para separá-la
da não-cultura e para marcar o que a cultura exclui” (LUDMER, 2002, p. 10).
Ao trazer o delito como instrumento crítico, Jorge Amado articula e apresenta
formas de organização social, construindo a identidade cultural dos “capitães da
areia”. Nessa esteira, Jorge Amado se serve do delito como meio de fazer crítica
cultural, social, política, literária e, por que não, econômica, visto que nos apresenta
vidas de sujeitos que lutam e sobrevivem, a despeito da pobreza que pesa sobre eles.
Em Capitães da areia, o Corredor da Vitória, bairro das elites, é apresentado
326
como cenário de uma das investidas do grupo dos capitães. Trata-se do assalto à casa
do Comendador José Ferreira, apresentado na narrativa como um dos mais
abastados e creditados negociantes da cidade. O fictício Jornal da Tarde, no prólogo
que compõe o romance, narra a cena nos seguintes termos:
ASSALTO
Não tinham passado ainda cinco minutos quando o jardineiro Ramiro
ouviu gritos assustados vindos do interior da residência. Eram gritos
de pessoas terrivelmente assustadas. Armando-se de uma foice o
jardineiro penetrou na casa e mal teve tempo de ver vários moleques
que, como um bando de demônios (na expressão curiosa de Ramiro),
fugiam saltando as janelas, carregados com objetos de valor da sala
de jantar. A empregada que havia gritado estava cuidando da
senhora do comendador, que tivera um ligeiro desmaio em virtude
do susto que passara. O Jardineiro dirigiu-se às pressas para o jardim,
onde teve lugar a
LUTA
Aconteceu que no jardim a linda criança que é Raul Ferreira, de 11
anos, neto do comendador, que se achava de visita aos avós,
conversava com o chefe dos "Capitães da Areia", que é reconhecível
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devido a um talho que tem no rosto. Na sua inocência, Raul ria para o
malvado, que sem dúvida pensava em furtá-lo. O jardineiro se atirou
então em cima do ladrão. Não esperava, porém, pela reação do
moleque, que se revelou um mestre nestas brigas. E o resultado é que,
quando pensava ter seguro o chefe da malta, o jardineiro recebeu
uma punhalada no ombro e logo em seguida outra no braço, sendo
obrigado a largar o criminoso, que fugiu ( p. 10-11).
A extensa citação serve para perceber como as táticas narradas por Jorge
Amado são apresentadas no confronto entre a imponência do suposto clima de
segurança do rico casarão e a pobreza articulada com a destreza dos capitães da
areia. Nesta cena do romance, o saber prático adquirido nos treinos de capoeira com
o amigo Querido-de-Deus valeu a Pedro Bala a esquiva, o certeiro contragolpe e, por
fim, a fuga. Como se vê, a capoeira, uma prática considerada tipo penal até 1937, é
uma das astúcias valorizadas pela narrativa. Talvez uma forma encontrada pelo
autor para, de um lado, denunciar o absurdo da proibição e, de outro, expressar seu
apreço aos amigos capoeiras.
Vale dizer que os empreendimentos das táticas só podem ser pensados em
Capitães da areia, se remetidos ao tecido cultural pelo qual se enredam os
personagens. Na narrativa seus protagonistas são como que um amálgama de
cruzamentos culturais, uma espécie de herdeiros de saberes seculares, da esperteza
aprendida no cotidiano. São desses saberes práticos, saberes imemoriais como quis
Certeau, que sucedem as táticas. Assim, é ao lado dos que forjam as táticas que a
narrativa se inclina para mostrar as vielas, as quermesses, os candomblés, toda uma
cultura popular que à época se encontrava escamoteada, obscurecida e perseguida na
cidade de Salvador. A evidência dessa colocação pode ser observada através do
ocorrido no episódio intitulado “Aventura de Ogum”, em que é creditado aos
capitães, pela ialorixá Don’Aninha , o resgate da imagem de Ogum, que havia sido
levada numa batida policial. Conforme o narrador,
Don’Aninha disse aos meninos com uma voz amarga – Não deixam
os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre
não pode dançar, não pode cantar para seu deus, não pode pedir uma
graça a seu deus – sua voz era amarga, uma voz que não parecia da
mãe-de-santo Don’Aninha. – Não se contentam de matar os pobres a
fome... Agora tiram os santos dos pobres... – e alçava os punhos. [...]
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Quando a deixaram, rodeada das suas filhas-de-santo, que beijavam
sua mão, Pedro Bala prometeu – Deixa estar, mãe Aninha, que
amanhã te trago Ogum (p. 94).
Pouco tempo depois, os “capitães da areia” arquitetam um estratagema. A
ideia era que um deles se infiltrasse na Central de Polícia, onde o Ogum de
Don’Aninha estava apreendido. Pedro Bala toma a frente do intento e, ao forjar um
assalto no bairro do Campo Grande, deixa-se capturar. Já na Central de Polícia, “o
chefe dos capitães” localiza a imagem de Ogum, envolve no seu paletó e aguarda que
o chame para a oitiva. Na oitiva, Pedro Bala inventa para o comissário que é da ilha
de Itaparica, Mar Grande, e que o pai não pode voltar para buscá-lo por conta do
temporal. Como não podia ficar na rua, empreendeu o assalto para que o guarda o
levasse para a delegacia. Tomando como impossível que uma criança daquela idade
estivesse inventando uma história tão cheia de detalhes como a apresentada, o
comissário manda que ponha o menor em liberdade. É quando Pedro Bala pede para
buscar o paletó que havia esquecido. Em seguida, colocou o paletó “debaixo do
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braço, nem parecia trazer a imagem envolvida nele. Atravessaram o corredor
novamente, o guarda o deixou na porta. Pedro tomou para o Largo dos Aflitos,
rodeou o velho quartel, desabou pela Gamboa de Cima” (p. 105).
Não só o grupo de menores abandonados se utiliza das táticas, mas também
aqueles que se solidarizam com a sua situação. O padre José Pedro utiliza-se de sua
autoridade de pequeno pároco para convencer as beatas a adotarem um daqueles
meninos, escreve carta ao Jornal da Tarde em solidariedade aos “capitães da areia”, o
que o leva a ser denunciado ao alto clero, a sofrer a reprimenda do Cônego, e ser
acusado pelo clérigo de favorecer práticas comunistas e de atentar contra as leis da
Igreja e do Estado. Mas, por fim, consegue permanecer como padre e não quebra o
vínculo de amizade com os “capitães da areia”. Por sua vez, a costureira Ricardina
também se coloca contra as agruras pelas quais passam as crianças no Reformatório.
Para isso, escreve carta ao jornal, desculpa-se do mau uso da língua oficial, meio de
se fazer ouvir, denuncia os desmandos do diretor da instituição e desafia o veículo de
imprensa a mandar um representante “para ver como são tratados os filhos dos
pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas sem alma” (p.16). Se
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entendemos, com Foucault, que todo exercício de poder pressupõe um contrapoder,
vemos que há aí uma espécie de micropolítica do cotidiano.
Em relação à justiça, a luta pode tomar várias formas. Em primeiro
lugar, pode-se usar contra ela suas próprias armas, por exemplo,
apresentar queixa contra a polícia. Isso não é evidentemente um ato
de justiça popular; é a justiça burguesa apanhada em uma armadilha.
Em segundo lugar, pode-se fazer guerrilhas contra o poder de justiça
e impedi-lo de se exercer. Por exemplo, escapar da polícia,
ridicularizar o tribunal, ir pedir satisfações a um juiz. Tudo isso é
guerrilha anti-judiciária [...] (FOUCAULT, 1998, p.66).
E Capitães da areia esboça uma espécie de guerrilha antijudiciária. O
atabalhoamento do Juiz de Menores, os vícios e as faltas do Chefe de Polícia, a
displicência do Bedel e do Comissário, são modos de ridicularização, denúncia e
exposição de um sistema judiciário que anda em descompasso com as regras de
eficiência que estabelecem os códigos.
Localiza-se em Capitães de areia, mesmo que precariamente, a figuração de
um saber jurídico que se produz no âmbito das praticas cotidianas. Uma espécie de
direito dos marginalizados. Prolifera na narrativa um sem número de regras de
cordialidade, normas de respeitabilidade, táticas de sobrevivência que tem como foco
a união dos “fracos” contra a investida da opressão social.
Contra as leis do Estado repressor, as leis dos “capitães da areia”. Essa é a
batalha que se observa nas páginas do romance. É em defesa da regra principal do
grupo, a de não furtarem uns aos outros, que o personagem Pedro Bala se vê
obrigado a expulsar um dos meninos. Também em nome das leis dos “capitães da
areia”, Sem Pernas desconsidera a possibilidade de ficar vivendo numa luxuosa casa
da Graça onde o acolheram como “pobre órfão”. Na verdade, uma tática para se
infiltrar na casa e arquitetar um grande roubo. Acerca da lei do grupo, pensava Sem
Pernas que “antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. Os que a
traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo” (p. 126). Por fim, o
personagem Pirulito aborta uma tentativa de furto, “porque ele pensava que trair as
leis (nunca tinham sido escritas, mas existiam na consciência de cada um deles) dos
Capitães da Areia era um pecado também” (p. 111). Durante toda a história contada
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no romance, o narrador refere-se a esse código de ética do grupo de meninos
abandonados.
Mas “as leis dos capitães da areia” não se destinavam apenas à organização
interna entre os menores. Elas também expressavam um senso ético de trato
humanitário. Ao relatar uma caminhada do grupo em direção ao encontro do grupo
rival, chefiado por Ezequiel, menor que havia sido expulso do “trapiche”, o narrador
ressalta que “vão alegres. Levam navalhas e punhais nas calças. Mas só o sacarão se
os outros puxarem. Porque os meninos abandonados também têm uma lei e uma
moral, um sentido de dignidade humana” (p. 189).
Pelo que é possível depreender do texto de Certeau (1998), as táticas também
são meios que os despossuídos encontram para lutar contra as estratégias de
acumulação. Se, de um lado os muros, os esconderijos e os sistemas de vigilância
estão postos para resguardar nas chácaras e nos palacetes montantes de peças de
ouro, do outro, os capitães da areia diagramam ciladas, ardis e truques para
malograr o somítico hábito de acumular das elites. Robinhoodianos por necessidade,
330
os heróis do romance ironizam com os agentes acauteladores do capital da
burguesia. No diálogo, em que planejavam furtar chapéus de feltro na Vitória, um
dos “capitães da areia” responde: “Tu liga pra guarda? Se ainda fosse tira... Guarda é
pra correr picula” (p.33).
O Gato não poderia ficar fora do catálogo de astúcias que Jorge Amado
explora em Capitães da areia. Talvez o cognome do personagem seja uma referência
sarcástica ao uso comum do termo “gatuno”, expressão pejorativa endereçada aos
meninos de rua pelos jornais, nas primeiras décadas do século passado. O certo é
que, no romance, o personagem é um perito em armar “treitas”. Ágil no jogo com o
seu baralho viciado, o moleque arrancava altas somas do desavisado que se
enganasse com a sua aparência infantil.
A primeira cilada armada pelo Gato foi na casa do Sr. Gastão, flautista e
namorado da prostituta Dalva, mulher pela qual o menor se apaixonara. Atendendo
ao pedido feito por Dalva, ir até à casa do músico avisar que ela o esperava, o menino
flagra o tal Gastão bêbado na cama com uma amante. Tanto o flautista quanto a
mulher escarnecem da figura do gato. A mulher perguntava: “quem é esse
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cocadinha?”. O músico respondia: “É um filhote somente. Não faz medo”. Por fim,
convidaram o menor para entrar. Nesse meio tempo, Gato já aproveitava o descuido
do casal embriagado e furtava a bolsa da amante que estava esquecida na cadeira
sobre os vestidos. “Na rua o Gato contou sessenta e oito mil-réis. Jogou a bolsa no pé
da escada, meteu o dinheiro no bolso. E foi para rua de Dalva, assoviando” (p.42). A
principal astúcia que se observa nas ações desse personagem é o proveito que ele
tirava da imagem de criança.
Nas páginas de Capitães da areia há toda uma narrativa que se volta à
exposição de uma religiosidade sincrética. Xangô, Omolu, Ogum, Santo Antônio, a
Santa Virgem da Conceição e a Nossa Senhora das Sete Dores estão relacionados no
romance como uma rede complexa de elementos heterogêneos. Se “João Grande
acreditava era em Xangô, em Omolu, nos deuses dos negros que vieram da África. O
Querido-de-Deus [...] misturava-os com os santos dos brancos que tinham vindo da
Europa”. (p.107). Também o Pirulito, menino que furtava santos, amalgamava uma
inventiva hagiografia de Santo Antônio. Para ele, o santo franciscano era um mártir
brasileiro, um revoltoso justiceiro, que havia sido condenado à forca depois de tentar
salvar o pai do cadafalso. Nas palavras do narrador: “Pirulito contava a história de
Santo Antônio [...] do modo como Professor lia histórias heróicas de marinheiros
corajosos e revoltosos” (p.180). Percebe-se que como o Menocchio , de O queijo e os
vermes, Pirulito reelabora, adultera e se apropria da imagem do santo português
para colocá-la ao lado dos capitães da areia. Assim, o santo reinventado torna-se
mais um guia, uma entidade protetora dos menores abandonados. Certeau esteve
atento a esse tipo de astúcia urdida no seio das classes populares quando analisou
práticas religiosas de comunidades rurais. Para o teórico:
Os "crentes" rurais desfazem assim a fatalidade da ordem
estabelecida. E o fazem utilizando um quadro de referência que,
também ele, vem de um poder externo (a religião imposta pelos
missionários). Reempregam um sistema que, muito longe de lhes ser
próprio, foi construído e propagado por outros, e marcam esse
reemprego por "super-ações", excrescência do miraculoso que as
autoridades civis e religiosas sempre olham com suspeita, e com
razão, de contestar às hierarquias do poder e do saber da sua razão.
Um uso ("popular") da religião modifica-lhe o funcionamento.
(CERTEAU, 1998, p.78)
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Mas não é só em Capitães da areia que o sincretismo religioso está presente. A
fusão entre “santos negros” e “santos brancos” é uma característica da escrita
amadiana. É algo que se pode ver em outros romances do escritor, vestígio da sua
cosmovisão. Ao tratar da procissão de Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes,
Jorge Amado revela o prisma sincrético pelo qual vê a cultura e a religiosidade
baiana.
Na cidade do Salvador da Bahia de Todos-os-Santos, as cores, as
coisas, os sentimentos, os ritos, os deuses são misturados, nossa
verdade é a mistura de raças, de culturas, de crenças, de ritmos, de
alegrias e dores, de lutas de escravos malês, jejes, nagôs, congos e
angolas, para criar a nação brasileira, original e única, civilização e
cultura mestiças, a luminosa face de nosso povo. Na galeota do
Senhor dos Navegantes viaja também Iemanjá. (AMADO, 2012,
p.122).
Arte do furto, jogo de mimeses, lance de truques, são os procedimentos que
utilizam os saltimbancos da narrativa de Capitães da areia. É do uso de um desses
332
ardis que advém o apelido do Professor. Esse personagem, cujo nome de batismo era
João José, passará a ser chamado de Professor a partir do momento em que “num
livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com lenços e níqueis e também porque,
contando aquelas histórias que lia e muitas que inventava, fazia a grande e
misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos” (p.30). Além de
ilusionista e um dos principais mentores dos planos de roubo, era um hábil ladrão de
livros. “Desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa
da Barra, se tornara perito nestes furtos” (p.30). Digno da alcunha, o Professor ainda
se fazia um arguto contador de história. Muitos do grupo levavam jornais até o
trapiche, para que ele procedesse à leitura, já que era o único que lia correntemente.
Esse “pequeno” narrador, tal como expressa a narrativa:
Gostava de saber coisas e era ele quem, muitas noites, contava aos
outros histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens
heroicos e lendários, histórias que faziam aqueles olhos vivos se
espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade,
numa ânsia de aventuras e de heroísmo. [...] o treino diário da leitura
despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único
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que tivesse uma certa consciência do heroico das suas vidas. Aquele
saber, aquela vocação para contar histórias, fizera-o respeitado entre
os Capitães Areia, se bem fosse franzino, magro e triste, o cabelo
moreno caindo sobre os olhos apertados de míope. (p.30)
Ao que parece, esses singulares modos de leitura, que redirecionam e cruzam
cultura popular e cultura letrada, são práticas que datam de muito tempo. Engenhos
interpretativos urdidos no decorrer dos séculos. O já citado livro de Ginzburg revela
isso ao apresentar como, no século XVI, o moleiro Menocchio lia textos “destinados a
grupos intelectuais dos mais refinados” (2006, p.19). O historiador revela a existência
de uma “circularidade cultural”, isto é, “[...] influxo recíproco entre cultura
subalterna e cultura hegemônica, particularmente intenso na primeira metade do
século XVI” (2006, p.15).
Certeau tratou sobre as atividades de leitura cotidianamente realizadas pelos
consumidores, em centros urbanos americanos e europeus, entre os anos de 1974 a
1978. Para o teórico, os leitores não estão entregues à passividade diante das
formalizações impostas pelos “aparelhos escriturísticos da disciplina”. Ao contrário,
“no espaço tecnocraticamente construído, escrito e funcionalizado onde circulam, as
suas trajetórias formam frases imprevisíveis, 'trilhas' em parte elegíveis” (CERTEAU,
1998, p.45).
É da leitura de narrativas de jornais, reelaboradas pelo Professor, que o Volta
Seca enxergava no bando de Lampião os revolucionários donos da caatinga, os
transgressores que lutavam contra a opressão dos coronéis do sertão. Ávido para
saber da notícia que trazia o jornal Diário, o menor entra no Trapiche a procura do
Professor para que este leia o fragmento sobre Lampião.
– Quero que tu leia pra eu ouvir essa notícia de Lampião que o Diário
traz.Tem um retrato.
– Deixa pra amanhã que eu leio.
– Lê hoje, que eu amanhã te ensino a imitar direitinho um canário.
O Professor buscou uma vela, acendeu, começou a ler a notícia do
jornal. Lampião tinha entrado numa vila da Bahia, matara oito
soldados, deflorara moças, saqueara os cofres da Prefeitura. O rosto
sombrio de Volta Seca se iluminou. Sua boca apertada se abriu num
sorriso. E ainda feliz deixou o Professor, que apagava a vela, e foi
para o seu canto. Levava o jornal para cortar o retrato do grupo de
Lampião. Dentro dele ia uma alegria de primavera. (p. 46-47)
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Volta Seca é um dos capitães que mais odiava a polícia. Toda vez que sabia do
assassinato de algum soldado pelo bando de Lampião era tomado por uma imensa
felicidade. O grande ódio decorre da tarde em que soldados o pegaram. Na ocasião
ele tinha 16 anos. Os agentes o torturaram e ele xingava todos, inclusive o delegado.
“Ele não soltou um grito enquanto apanhou. Oito dias depois o puseram na rua, e ele
saiu quase alegre, porque agora tinha uma missão na vida: matar soldados de
polícia” (p. 237). O ódio do personagem estava impresso no seu “rosto sombrio”, nas
marcas que o sistema penal deixara no seu corpo.
Mas não era só ódio que Volta Seca possuía, tinha também um grande talento
em imitar animais os mais vários, sobretudo os do sertão. Essa astúcia foi o que
rendeu ao Nhozinho França, proprietário do velho carrossel instalado em Itapagipe,
o lucro decorrente do largo acesso das crianças atraídas pelo chamariz das imitações
do personagem.
334
Em frente à bilheteria Volta Seca imita vozes de animais e chama o
público. Leva uma cartucheira como se estivesse no sertão. Nhozinho
França achou que isto chamaria a atenção do povo e Volta Seca
parece mesmo um cangaceiro com o chapéu de couro e a cartucheira
atravessada. E imita animais até que se reúnam homens, mulheres e
crianças na sua frente. Então oferece entradas, que as crianças
compram. Vai uma alegria por toda a praça. (p. 66-67)
Imitações, pantomimas, dribles, acrobacias são lances, táticas de combate
usadas contra as estratégias do poder estabelecido. No capítulo “Como um trapezista
de circo”, o Sem-Pernas, mesmo manco, jogava picula com os guardas. “Sem-Pernas
corria de um lado para outro da rua, os guardas avançavam. Ele fez que ia escapulir
por outro lado, driblou um dos guardas, saiu pela ladeira” (p. 242).
Não era apenas a rapidez na elaboração das táticas de escape que tornava
difícil a apreensão dos capitães da areia. Entre o grupo também estava assentada
uma espécie de lei antidelação, um preceito de lealdade estabelecendo que, se
porventura fossem presos, não deveriam revelar a identidade dos demais e menos
ainda o esconderijo no trapiche. É em respeito a esta cláusula ética que Predro Bala se
mantém silencioso na delegacia, mesmo estando submetido à tormentosa tortura. O
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protagonista também se negou a dar informações do grupo ao fictício Jornal da
Tarde, conforme o articulista.
Na Chefia de Polícia quisemos ouvir Pedro Bala. Mas ele nada nos
disse, como tampouco quis declarar às autoridades o lugar onde
dormiam e guardavam seus furtos os "Capitães da Areia". Só
declarou seu nome, disse que era filho de um antigo grevista que foi
morto num meeting na célebre greve das docas de 191..., que não
tinha ninguém no mundo. (p. 193)
Na fuga de Pedro Bala do reformatório, a narrativa expressa a reprovação do
menor em relação a um interno acostumado a entregar os companheiros. Henrique, o
delator, já havia denunciado dois outros companheiros ao bedel responsável por
manter a ordem durante a noite. Na madrugada em que o chefe dos capitães da areia
empreendia a fuga, o mexeriqueiro despertou e, quando ia soltando o alarme, Pedro
Bala o repreendeu:
– Olha, xereta, trata de dormir. Se tu piar, eu te abro a garganta,
palavra de Pedro Bala. E se tu disser alguma coisa depois que eu
sair... Tu já viu falar nos Capitães da Areia?
– Já.
– Pois eles me vinga. (p. 209)
Pela evasão do menor observa-se um conjunto de táticas e astúcias. A cena
começa evidenciando o cenário vigiado do canavial. Os bedéis circulavam pelo
canavial quando Pedro Bala vê o Sem-Pernas sendo “tangido” por um dos vigilantes.
Ele espera um descuido e passa para o menor um bilhete onde pedia que conseguisse
uma corda. No dia seguinte, o chefe dos capitães encontra um punhal e “o rolo de
corda fina e resistente” (p. 208) escondido entre as moitas. Em seguida, “Pedro mete
o rolo de corda debaixo do paletó, abre para o dormitório. Um bedel vem descendo a
escada com um revólver na mão. Pedro se esconde atrás de uma porta” (p. 208). Ao
chegar ao interior dormitório, esconde os objetos sob o colchão e volta para o
canavial. Duas noites depois, o menino lançava a corda que completou com o lençol,
335
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
o nó resistente que deu ele aprendera com o Querido-de-Deus. Após lançar a corda,
Pedro acelera a debandada.
Se deixa escorregar pela corda, salta ao chão. O pulo é grande, mas
ele já salta correndo. Pula a cerca, após evitar os cachorros policiais
que estão soltos. Desaba pela estrada. Tem alguns minutos de
vantagem. O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua
perseguição e soltarem os cachorros também. Pedro Bala prende o
punhal nos dentes, tira a roupa. Assim os cachorros não o conhecerão
pelo faro. E nu, na madrugada fria, inicia a carreira para o sol, para a
liberdade. (p. 209-210)
Com essa disparada de Pedro Bala para a liberdade, a narrativa expõe o modo de uso
das táticas. A espera da ocasião, a rapidez para se valer do momento oportuno, e a
percepção aguçada são os ingredientes necessários para a escapada. O que se viu na
ação do personagem foi a elaboração de táticas constituídas a partir do uso de meios
e instrumentos marginais, isto é, o rolo de corda, o punhal, o bilhete trocado e o
aprendizado do nó. Todos estes artifícios laterais ao cotidiano regrado da casa de
336
custódia.
As pequenas táticas urdidas pelos capitães da areia nas brechas deixadas pelo
Estado repressor são como minúsculas máquinas de guerra que se multiplicam no
decorrer do romance. Essas fagulhas microfísicas, esses diminutos focos de incêndio
são como ínfimos estágios de erosão capazes de causar, em seu conjunto, colapsos
nas engrenagens do poder estabelecido. Era por intermédio dessas pequenas astúcias
cotidianas que os capitães da areia partiram para enfrentar os condicionamentos
impostos pelas armadilhas de opressão social.
Eis a maneira como lutam os “fracos” contra as “estratégias” do Estado. A história de
uma guerrilha empreendida por crianças desprovidas de amparo social é o que se
pode ler em Capitães da areia. Um escrito de combate contra um contexto social e
jurídico insensível à pobreza e à infância abandonada. Uma narrativa escrita com
aqueles que, através de práticas cotidianas transgressoras, enfrentam as autoridades
estabelecidas e trapaceiam as rígidas relações de poder de um arranjo social injusto e
desigual.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
REFERÊNCIAS
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perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
LUDMER, Josefina. O corpo do delito. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
337
NARRATIVA DE APRENDIZAGEM DE UMA LÍNGUA ADICIONAL
Joana Angélica Santos Lima (UNEB\UFMG)
[email protected]
RESUMO
Nesse trabalho, propõe-se identificar e refletir sobre os principais componentes que
constituem o processo de aprendizagem em uma narrativa de aprendizagem da
língua adicional, extraída da coletânea de narrativas que compõem o projeto
coordenado pela Professora Vera Menezes (UFMG), “Aprendendo com Memórias de
Falantes e Aprendizes de Língua Estrangeira” – AMFALE, o qual reúne
pesquisadores que visam investigar aspectos diversos dos processos de aquisição e
de formação de professor de línguas estrangeiras através de narrativas de
aprendizagem.
A narrativa estudada trata-se de um relato minucioso sobre a
trajetória das experiências da sua autora durante o processo de aprendizagem da
língua inglesa como língua adicional. Segundo Paiva (2011), a aquisição da segunda
língua (doravante, ASL) é desenvolvida através de interações dinâmicas e constantes
entre os subsistemas, alternando momentos de estabilidade com momentos de
turbulência. A autora destaca que motivação, identidade, e autonomia são elementos
cruciais para conexões socioculturais bem sucedidas e a consequente evolução do
sistema de ASL e que uma vez interligados, atuam “como um combustível potente
para colocar o sistema em movimento, contribuindo para seu desenvolvimento e
mudança”. A motivação, na perspectiva de Paiva (2011), atua como uma força
dinâmica, que envolve fatores sociais, afetivos e cognitivos, e que se manifesta em
desejos, atitudes, expectativas, interesses, necessidades, valores, prazer e esforços.
Quanto á autonomia, Magno e Silva (2008) explica a autonomia aprendente é uma
capacidade a ser incentivada em variados contextos de aprendizagem da ASL. Essa
capacidade, conforme Benson (2001), é multidimensional, e assume diversas formas
para diferentes indivíduos, e até para o mesmo indivíduo em diferentes e contextos e
épocas. Segundo Gibson (1979), as affrodances, também um forte aliado para o
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
processo do sistema ASL, referem-se ao “relacionamento recíproco entre um
organismo e uma tração particular do seu ambiente”. Esse ambiente de
aprendizagem é repleto de linguagem que promove ao aluno ativo e participante
oportunidades de aprendizagens. Considerando os referidos componentes presentes
na narrativa analisada, foi possível perceber que a motivação para tal processo de
aprendizagem, por parte da autora se deu na infância em meio a situações e
brincadeiras diversas com membros da família e colegas; e, que seu encantamento e a
vontade de aprender cada vez mais, assim como a prática docente de alguns dos seus
professores ao longo do curso escolar o fizeram desenvolver sua “autonomia
aprendente”. Além disso, possibilitou perceber também, que as principais
affrodances que promoveram tal processo foram dentres outros, sala de aula, livros
didáticos, letras de músicas, filmes, a interação com os colegas, etc. Essa análise
configura-se de grande importância para somar e contribuir com as discussões sobre
o processo de ensino-aprendizagem de uma língua adicional, segundo a teoria da
Complexidade.
339
Palavras-chave: Aprendizagem; Lingua Inglesa; Narrativa.
1. INTRODUÇÃO
A aprendizagem de línguas é um processo complexo, dinâmico, que contém
fatores, muitas vezes imprevisíveis, que interagem entre si. Paiva (2008) evidencia
uma série de variações que implicam no processo de aprendizagem: as biológicas, de
inteligência, aptidão, atitude, idade, estilos cognitivos, motivação, personalidades; as
efetivas de contexto onde ocorrem tal processo, dentre outros, chamando atenção
para o fato de que cada pessoa tem suas características individuais.
Esse estudo ocupa-se em analisar, à luz da teoria da complexidade, narrativa
de aprendizagem na língua adicional, ou seja, na língua inglesa com a finalidade de
investigar a trajetória de aprendizagem do aprendente, selecionado através da
escolha aleatória de sua narrativa, a qual faz parte do acervo da coletânia de
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
narrativas do projeto “Aprendendo com Memórias de Falantes e Aprendizes de
Língua Estrangeira” – AMFALE coordenado pela Professora Vera Menezes Paiva
(UFMG). Além disso, finaliza investigar também alguns elementos que delineiam o
processo de aprendizagem, tais como: motivação, autonomia e affrodances, os quais
no sentido de alguns teóricos, aninhados entre si, fazem-se de grande valia para a
eficacia da aquisição de uma segunda (ASL).
Vale ressaltar que esse trabalho se desenvolverá nas seguintes seções: 2)
Aprendizagem da língua adicional, onde se fará uma reflexão sobre o processo de
aquisição de uma segunda língua, em especial a inglesa; 2.1) em que será definido os
conceitos dos elementos que fazem parte do processo de aprendizagem de língua
adicional: motivação, autonomia e affrodances; 3) em que se fará a análise da
narrativa selecionada se atentando para a presença dos referidos elementos; 4)
Considerações finais, em que será feito uma breve reflexão sobre os resultados
obtidos nesse estudo.
340
Espera-se com esse trabalho poder contribuir com a ampliação das discussões
sobre o processo de ensino aprendizagem da língua inglesa, embora o volume do
corpus em análise seja insipiente para garantir grandes reflexões e, consequentemente
contribuições para literatura.
2. APREDNDIZAGEM DA LÍNGUA ADICIONAL
Para muitos teóricos, a aprendizagem é um processo dinâmico e complexo.
Conforme PAIVA (2005) a aprendizagem de uma língua, assim como qualquer outra
aprendizagem é um processo dinâmico não-linear e, portanto, imprevisível.
Pequenas diferenças nas condições de aprendizagem podem resultar resultados
assaz diferentes.
No sentido de Holland (1995), os sistemas complexos se constituem de um
grande número de elementos ativos que se adaptam e mudam seus comportamentos
em decorrência de suas interações. No processo de mudança, os comportamentos
desses sistemas não são proporcionais às suas causas devido à sua não linearidade.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Além de não lineares, esses sistemas são também abertos, tendo em visto o
movimento da informação ao fluir para dentro ou para fora do sistema, em função da
sua característica funcional.
Uma outra característica desses sistemas é a sua dinamicidade, segundo Paiva:
Esses sistemas são também sistemas dinâmicos. De acordo com
Lorenz (2001, p. 8), existem dois tipos de sistemas, os que "variam
deterministicamente ao longo do tempo" e aqueles que "variam de
forma aleatória". Este último parece ser o caso da linguagem e de sua
aquisição. Williams (1997, p.19) aponta que "[A] palavra dinâmica
significa força, energia, movimento, ou mudança" e que "[U]m
sistema dinâmico é tudo que se move, muda, ou evolui no tempo."
Durante esse processo dinâmico, os agentes aprendem uns com os
outros, recebem feedback, ganham experiência e mudam. Tais
sistemas são também chamados de sistemas caóticos, porque, como
explica Holland (1998, p. 45), "(...) pequenas mudanças nas condições
locais podem causar grandes alterações no comportamento global de
longo prazo (...)". Essa característica dos sistemas caóticos é conhecida
como dependência sensível às condições iniciais. (PAIVA, 2011, p. 73)
Ainda sobre esses sistemas, a autora observa que “Lewin (1992, p. 20)
argumenta que [A] maioria dos sistemas complexos exibe [...] atratores, os estados
em que o sistema finalmente se acomoda, dependendo das propriedades do sistema".
Esses atratores, definidos como “caóticos”, configuram-se rotas percorridas pelo
sistema dinâmico, apresentando-se em três tipos: atrator ponto fixo, conhecimento
previamente adquirido por onde perpassam todas as trajetórias de aprendizagem; o
periódico que seria a cognição; o caótico conhecido como atratores estranhos, por se
tratar dos diversos fatores que interferem na aprendizagem (interação, input,
materiais, output, etc.). Esses atratores mudam frequentemente. “Eles mudam, as
possibilidades dinâmicas mudam à medida que o meio ambiente muda” (LEWIN,
1994, p. 93 apud PAIVA, 2005).
Paiva esclarece que a aprendizagem de uma língua adicional exibe habilidades
inerentes para se adaptar a diferentes condições presentes nos ambientes externos e
internos. Considerando a complexidade dessa aprendizagem, atenta-se a duas
posições diferentes sobre a aquisição da linguagem assumindo: (a) a existência de
341
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
estruturas mentais inatas, conforme visão generativista; (b) aquisição da linguagem
por meio da repetição e criação automática de hábitos linguísticos, conforme o
pensamento estruturalista, onde destaca o input, a interação, e o output como
aspectos cruciais para a aquisição por desencadearem conexões neurais e
socioculturais.
Dentre as conexões socioculturais, a autora destaca como “elementos-chave”
para o desenvolvimento da aquisição de uma segunda língua, a motivação, a
identidade e a autonomia, assomando também os affrodances, os quais serão
explicados brevemente, a seguir.
2.1 Elementos da aprendizagem de uma língua adicional
Motivação
A palavra motivação tem sua origem no verbo latino movere,s ignificando
mover, motivo, algo que nos leva a agir. De acordo com Dörnyei (2005), a motivação
342
é compreendida como impulso, força, desejo ou estímulo que varia de indivíduo
para indivíduo e que o conduz à ação, fazendo-o se esforçar e persistir numa tarefa.
Para o autor, a motivação abrange a direção e a intensidade do comportamento. Faz
parte de um processo evolutivo, o qual pode variar, conforme diferentes influencias
externas e internas ao aluno.
As influencias externas dizem respeito ao ambiente de aprendizagem, aos
recursos dos quais dispõem, a interação como os outros, as exigências culturais e a
opinião de pessoas com as quais o aluno convive. A interna, por sua vez, refere-se ao
próprio interesse do aluno em aprender, envolvendo sua curiosidade, habilidades e
atitudes mediante o processo de aprendizagem.
Na perspectiva de Paiva (2011), a motivação funciona como uma força
dinâmica que envolve fatores sociais, afetivos e cognitivos, e, se manifesta em
‘desejos, atitudes, expectativas, interesses, necessidades, valores, prazer e esforços”.
Para ela, varia muito no decorrer do processo de aquisição, não se limitando apenas
ao contexto educacional. Trata-se, pois, de um processo que muda com o tempo,
podendo variar de pessoa para pessoa, de acordo com sua necessidade de aprender.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Essa necessidade de aprender, assomada às atitudes favoráveis em relação à
atividade e o desejo de atingir suas metas estabelecidas levam o aprendiz esforçar-se
na realização de tarefas.
Dörney (2010) orienta que a motivação deve ser tratada a partir de uma visão
dinâmica que possibilite perceber que as características de um indivíduo com relação
à sua motivação podem mudar ao longo do processo, como também ao longo do dia
ou de uma atividade.
Vale notar que a motivação se configura uma condição necessária para a
autonomia, a qual será discutida, a seguir.
A autonomia
A autonomia é um sistema sócio-cognitivo encaixado no sistema da aquisição
da segunda língua, envolvendo estados e processos mentais do indivíduo, como
também dimensões política, social e econômica. Marcado pela sua não linearidade,
esse processo sofre períodos de variabilidade, instabilidade e adaptabilidade.
(PAIVA, 2006).
Paiva e Braga (2008) ainda acrescem que na perspectiva da complexidade, a
autonomia ocupa-se de propriedades e condições emergenciais complexas e que
encontra-se estritamente ligada ao seu ambiente.
Evidencia-se que quando autônomos, os aprendizes podem aproveitar dos
propiciamentos (affrodances) linguísticos em seu ambiente, envolvendo-se em práticas
sociais da linguagem. Assim, para que esses aprendizes possam se adaptar e
conviver bem numa sociedade complexa faz-se necessário implementar um ensino
voltado para a autonomia, não apenas, no do que diz respeito ao ensino de línguas,
mas também em qualquer circunstância.
Identidade
Paiva (2008) diz que a aprendizagem de uma língua é também um processo de
construção de identidade. Apropriando-se das palavras de Norton (2000, p. 5),
343
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
explicita a identidade como “o modo como uma pessoa compreende sua relação com
o mundo, como essa relação é construída ao longo do tempo e do espaço, e como a
pessoa compreende possibilidades para o futuro”. A autora ainda acrescenta que a
identidade não se trata de uma experiência unificada de pertença, mas sim um
conjunto de múltiplos pertencimentos em uma dimensão fractal. Por não tratar desse
processo nessa análise, não se aterá nesse estudo maior aprofundamento sobre o
mesmo.
Affrodances
Além dos processos acima citados por Paiva, deve-se elencar como elemento
importante que envolve a aprendizagem de um língua adicional, o affrodance, termo
criado
por
Gibson
(1986),
intencionando
apresentar
o
mutualismo,
a
complementaridade entre o indivíduo e o ambiente, espaço que significa, para o
agente, aquilo que ele percebe. Segundo ele, affrodances, também um forte aliado para
344
o processo do sistema ASL, referem-se ao “relacionamento recíproco entre um
organismo e uma tração particular do seu ambiente”. Esse ambiente de
aprendizagem é repleto de linguagem que promove ao aluno ativo e participante
oportunidades de aprendizagens.
Para o autor, os affordances são o produto das relações entre estruturas físicas do
ambiente e o intelecto dos seres vivos. Esses affordances do meio são propiciados por
objetos físicos e reais do ambiente e dependem de como são percebidas na
subjetividade/singularidade e compartilhamento social das percepções.
Michaels e Carello (1991) mencionam que o agente e o ambiente se adaptam como
peças de um quebra-cabeça, explicando que tal complementaridade pode ser
visualizada através de conceito ecológico de nicho, entendido por Gibson (1977,
1979) como cenário de caracteres ambientais apropriados aos animais que se ajuntam
adequadamente. (OLIVEIRA e RODRIGUES, 2006, p. 125)
3. A NÁLISE DE NARRATIVA DE APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Orientado pela teoria da complexidade, cuja compreensão de aprendizagem é
de um sistema complexo não linear, investiga-se nesse trabalho, a complexidade dos
sistemas de ASL enfatizando apenas três dos seus componentes, a saber: motivação,
autonomia e affrodances. Por se tratar de um estudo piloto, o mesmo se desenvolveu
mediante análise de apensas uma narrativa de um aprendente da língua inglesa, com
formação e graduação em uma instituição pública, cujo texto integra a coletânia de
narrativas que compõem o projeto coordenado pela Professora Vera Menezes
(UFMG), “Aprendendo com Memórias de Falantes e Aprendizes de Língua
Estrangeira” – AMFALE, o qual reúne pesquisadores que visam investigar aspectos
diversos dos processos de aquisição e de formação de professor de línguas
estrangeiras através de narrativas de aprendizagem.
As narrativas de aprendizagens são consideradas uma grande ferramenta para
as discussões sobre o processo ensino-aprendizagem. Murphey (1999), por exemplo,
argumenta que através da leitura de narrativas dos seus alunos, os professores
aprender como ensinar de forma mais apropriada. Ele explicita que:
345
A história de aprendizagem de cada pessoa é singularmente
construída por eventos, desejos, decisões, estratégias, crenças, ações, e
percepções individuais. A escrita de nossas histórias nos permite
refletir sobre essas forças e nos torna conscientes de nossa parte na
construção de nossa história. Essa consciência meta-cognitiva nos
capacita a ter mais controle sobre o futuro de nossa aprendizagem.
(minha tradução) (Paiva, 2008)
Vale notar, que a seleção da narrativa se deu de forma livre, sendo, portanto, a
primeira encontrada após o acesso ao site do projeto. Em sua narrativa, o informante
faz um relato reflexivo sobre suas experiências de aprendizagem da língua inglesa no
espaço escolar, desde as séries iniciais ao seu acesso ao nível superior. A análise se
desenvolveu mediante uma leitura minuciosa, onde foi possível perceber dentre
outros, os elementos em foco nesse estudo, visto que os mesmo são internconectados
na ASL.
Motivação
A motivação do aprendiz é fator determinante e também fundamental para
garantir o sucesso na aprendizagem de uma língua adicional. Assim, é necessario
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
que o aluno se envolva no processo desenvolvendo as atividades propostas, bem
como mostrando seu interesse nas aulas, etc. De acordo com as falas do informante,
percebeu-se um certo movimento entre a motivação e a desmotivação, visto que ele,
deixa claro que teria sido motivado, primeiramente, pelo contato com os irmãos, as
músicas, filmes, eficiência de alguns professores durante o ensino básico, etc.
Entretanto, deixa entender,
também, que em alguns momentos de sua vida de
estudante, teria se deparado com professores que não conseguiam inovar e nem
avançar nas aulas, trabalhando apenas com o verbo to be: “Em alguns casos, o estudo
do present e perfect do verbo to be era, praticamente o único asssunto dado.”
No sentido de Dornyei, a motivação pode se dar de forma extena ou interna.
Viu-se que os motivadores externos responsáveis pela sua aprendizagem foram as
brincadeiras, o contato com as músicas internacionais que os irmãos mais velhos
gostavam de ouvir, filmes, revistas, acesso à internet, etc. Quanto aos motivadores
internos, foram marcados pela encantamento com a língua desde a infância, o desejo
de aprender a língua, como també o empenho em aprimorar cada vez mais sua
346
parendizagem: “Ficava deslumbrada com as novas aprendizagens e diazia: Quero
aprender a falar inglês.”:
Autonomia
Magno e Silva (2008) explicam que a autonomia aprendente é uma capacidade
a ser incentivada em variados contextos de aprendizagem da ASL. Essa capacidade,
conforme Benson (2001), é multidimensional, e assume diversas formas para
diferentes indivíduos, e até para o mesmo indivíduo em diferentes contextos e
épocas. Ao analisar a narrativa, percebeu-se que o interesse do informante em
estudar a língua inglesa se desenvolveu de forma autônoma, partindo da admiração
pela mesma e também do desejo constante de aprendê-la. A autonomia do aprendiz
promoveu sua busca pelo aprimoramento contínuo dessa língua em diferentes
contextos. Esta contribuiu muito na sua formação, possibilitando-lhe, pois, melhor e
maior desempenho nas situações em que se deparava: compreensão de letras de
músicas, de textos diversos, filmes, etc.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Enfim, ciente da importância de aprimorar minhas habilidades para
poder seguir em frente e poder trilhar com sucesso numa carreira
acadêmica, resolvi me matricular no curso de língua inglesa. Esse
período foi muito significativo, pois aprendi o suficiente para suprir
as necessidades básicas. Sigo tentando aprimorar esse
conhecimento...
Como se pode ver, tais resultados corroboram a ideia de que a autonomia e a
motivação são elementos interligados na aprendizagem, pois o fato de buscar
aprimorar-se a todo momento na língua inglesa, fez-lhe tornar-se um aprendiz mais
seguro e mais autônomo.
Affrodances
Na visão de Gibson, a percepção do affrodance é ecológica e resulta da
interação recíproca entre o agente e o ambiente. Complementando tal visão, Paiva
(2009) evocando Van Lier acrescenta que affrodance diz respeito “a algo com potencial
para a ação e que emerge quando interagimos com o mundo físico e social. As
precondições para que o significado emerja são ação, percepção e interpretação em
ciclo continuo de reforço mútuo”.
A autora acrescenta que contexto de aprendizagem de línguas, os
propiciamentos (affrodances) não são os mesmos para todos os aprendizes, visto que
há contextos que podem favorecer mais oportunidades para a aprendizagem de uma
segunda língua do que outros. E que no Brasil, os affrodences oferecidos no processo
de ensino aprendizagem da língua inglesa são muito mais “ricos” se comparados
com o mandarim, em decorrencia de sua presença significativa em inúmeras
produções culturais que bombardeiam os brasileiros no cinema, na imprensa, no
rádio, na televisão, e na Internet.
A análise da narrativa permitiu perceber que os affrodances evidentes no texto
foram, a priore, as músicas e os filmes, utilizados como input da língua inglesa. A
interação do informante, enquanto agente do processo, com esses afrrodances, fez
emergir outros novos affrodances, tais como revistas, documentários, sites da
internet e redes sociais, etc.
347
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
No contexto atual em que vivemos - um mundo globalizado,
conectado com os quatros lados do mundo - muitas coisas mudaram.
Esse contato “involuntário” que só aumenta cada vez mais, tem sido
mais reforçado pelas redes sociais - grandes responsáveis pelas
interações entre os grupos hoje e tem reforçado muito o processo de
aprendizagem das línguas.
Tendo em vista que os affrodances referem-se ao relacionamento recíproco
entre um organismo e uma tração particular do seu ambiente, foi possível observar
ainda tantos outros na narrativa, como sala de aula, cartazes, livros, professores,
cursos de aprimoramento, panfletos, autdoor, etc. Enfim, as percepções oferecidas
pelo ambiente foram muitos na trajetória de aprendizagem do informante, pois todos
esses elementos proporcionaram
uma relação de complementaridade com o
informante, enquanto agente.
Considerando, sua experiência na escola, o informante não deixa claro a
existência de affrodances suficientes e necessários para sua aprendizagem na sala de
aula, levando a entender que ele preenchia essas lacunas recorrendo a ambientes
348
externos à escola.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo se constitui de uma análise de narrativa de aprendizagem da
língua inglesa como língua adicional. Por se tratar de um estudo piloto desenvolvido
em uma disciplina cursada pela autora do mesmo, não se pôde fazer grandes
inferências em relação ao processo ensino aprendizagem no espaço escolar.
Entretando fica claro, nessa narrativa, a necessidade de se investir mais na formação
do professor de língua estrangeira para que estes possam promover um ensino mais
eficaz e prazeroso para seus alunos, de forma que se tornem aprendizes autonômos e
mais felizes.
No tocante a trajetória do informante, notou-se que ele foi impulsionado tanto
pela motivação externa, quanto interna, marcada pelo seu desejo de aprender a
lingua estudada constantemente. Notou-se ainda que
através da sua auto-
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
organização e determinação, conseguiu obter sucesso na sua aprendizagem. Suas
ações e reações determinaram seu percurso e os resultados alcançados.
Enfim, vale dizer que, aninhados entre si, a autonomia, a motivação e os affordances
muito contribuíram para aprendizagem do informante.
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motivation: Individual differences from a dynamic systems perspective London:
Continuum. In E. Macaro (Ed.), Continuum companion to second language
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falados e escritos: aplicando teorias. Curitiba: Editora CRV, 2011. P. 71-86.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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FATO E FICÇÃO NA OBRA DE DANILO KIŠ:
UMA LEITURA DE UM TÚMULO PARA BORIS DAVIDOVITCH
Luan Queiroz da Silva
Graduando em Letras da UFBA – Bolsista de Iniciação Científica PROPCI/UFBA
([email protected])
Antonio Marcos Pereira
Professor Adjunto IV – Instituto de Letras/UFBA
([email protected])
RESUMO: O espaço (auto) biográfico contemporâneo, tal como nos apresenta
Arfuch (2010) constitui-se em uma zona híbrida, instável, irregular. Uma zona em
que predominam a interdiscursividade entre os gêneros, a transversalidade dos
discursos e uma dificuldade cada vez maior de etiquetar e classificar as produções
que trabalham com a escrita da intimidade. Este novo cenário exige que o leitor
incorpore novas formas de olhar às narrativas, armando-se de procedimentos de
leitura específicos, porém ao mesmo tempo ambíguos, afinal uma obra de ficção
pode conter elementos (auto) biográficos, assim como uma produção (auto)
biográfica pode se construir predominantemente de invenção. Como encarar então
este tipo de texto? Uma destas experimentações cada vez mais crescentes no interior
do espaço (auto) biográfico é uma constante na bibliografia de um escritor iugoslavo
que nas palavras de Sontag (2001), sempre esteve sob ataque e portanto, de modo
forçoso, no ataque: Danilo Kiš. Espectador de períodos tempestuosos da História
Mundial, filho de um país que celebrava a literatura provinciana (e que logo,
opunha-se ao modelo nada conservador de escrita de Kiš), transformado em astro
por seus conterrâneos apenas após a sua morte em 1989, o que se estabelece na
produção deste autor, em especial na obra que analisamos, Um túmulo para Boris
Davidovitch, é uma forte tensão entre fato e ficção. Ou seja, na construção mimética,
Danilo Kiš incorpora às suas narrativas ficcionais, uma série de estratégias
comumente presentes nas narrativas biográficas. Esse procedimento, que também
aparece em Vidas Imaginárias (2011), de Marcel Schwob; História Universal da Infâmia
(1986), de Jorge Luís Borges; e Mortes Imaginárias (2005), de Michel Schneider, insere
Um túmulo para Boris Davidovitch na tradição das genericamente chamadas ficções
biográficas (Premat, 2010). São obras que se estruturam no formato de relatos curtos,
em que a veracidade e o testemunho, típicos da biografia, se mesclam com a
invenção, a especulação e a dúvida da invenção ficcional. Pensando nestas questões,
neste trabalho, lançamos um olhar analítico sobre os sete relatos que compõem Um
túmulo para Boris Davidovitch, de Kiš, buscando compreender como se organizam as
narrativas, como se estabelece essa tensão entre ficção e realidade na obra, e de que
maneira o escritor iugoslavo assume o que Premat (2010) chama de posição de
falsário, ao introduzir nas narrativas como dados autênticos personas e informações
que, na verdade, não encontram referentes no mundo real. Paralelamente, buscamos
conexões entre a obra de Kiš e os outros livros que compõem a tradição na qual ela
está inserida, propondo o estabelecimento de uma genealogia que se configure não
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
pela herança de sangue, típica da crítica comparativista tradicional, e sim, como
propõe Souza (2007), pela aproximação, que se vale tanto de coincidências
ideológicas entre os autores quanto de experiências biográficas comuns, que pode ser
feita pela crítica a partir de liberdades interpretativas, de rede de associações que se
compõem de elementos ficcionais, teóricos e biográficos.
PALAVRAS-CHAVE: Biografia; Ficção; Ficções Biográficas; Leitura Literária; Danilo
Kiš.
INTRODUÇÃO
Durante uma entrevista em 1976 quando perguntado sobre o processo de
criação de suas obras e sobre a maneira como um autor consegue imprimir um estilo
de época em seus livros, Danilo Kiš, em dado momento, fez questão de dizer: não há
como pedir a um escritor para que ele seja um gênio, assim como você não consegue
distinguir um gênio quando vê um; portanto, aqueles escritores que estão além do
seu tempo podem muito bem hoje serem invisiveis, desconhecidos. (KIŠ, 1995, p.
352
174-5)
É interessante perceber como esta afirmação pode valer para entendermos um
pouco a própria trajetória literária de Kiš. Nascido em Subotica – pequeno municipio
localizado na antiga Iugoslávia – Danilo Kiš foi, durante boa parte de sua vida,
rechaçado pela crítica local e pelos seus conterrâneos escritores, sendo reconhecido e
elevado à categoria de grande autor nacional somente após a sua morte, em 1989.
A verdade é que Kiš sempre esteve interessado em explorar diferentes
temáticas a partir de um olhar muito diferenciado e deslocado do apresentado por
outros escritores da Europa Oriental, ainda muito conectados a uma literatura
conservadora, que se compreendia como suficientemente política ao agregar ao seu
discurso um forte teor nacionalista. Como aponta Susan Sontag (2001):
Kiš era de um país pequeno onde os escritores são importantes, para
o bem, ou para o mal, e onde os mais dotados se tornam legisladores
morais e, às vezes, até políticos. [...] A cumplicidade da maioria dos
escritores e artistas sérvios não exilados com o atual triunfo do
Grande Imperialismo Sérvio sugere que as vozes antinacionalistas,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
das quias a de Kiš era a mais destemida e eloquente, sempre foram
minoria. (SONTAG, 2001, p. 126)
Isso, no entanto, não faz com que o projeto literário do escritor se distancie das
questões e das problemáticas típicas da sua terra e de sua época. Pelo contrário: ainda
que tenha encontrado resistência por parte dos seus conterrâneos contemporâneos,
tenha vivido um bom tempo fora da Europa Oriental – tendo lecionado em
universidades na Hungria e na França -, e que tenha sido traduzido para vários
idiomas como o francês e o inglês, ganhando considerável respeito em círculos
literários da Europa Ocidental e da América do Norte, principalmente após a
publicação de Um túmulo para Boris Davidovitch, Kiš jamais se afastou do que Sontag
chama de sentido exarcebado do lugar do escritor e da responsabilidade do escritor
que, literalmente, vinha com o território. (SONTAG, 2001, p.126) Se o trabalho de Kiš
pertence, como nos alerta o biógrafo Mark Thompson, a todas as línguas, seus livros,
assim como os seus restos mortais, pertencem, porém, a um único lugar.
(THOMPSON, 2014)
Lugar este historicamente marcado por guerras, pela opressão, pelo medo,
pela perseguição política e por ideologias perversamente segregacionistas, sendo
todo este caldeirão turbulento uma marca bastante presente no projeto literário de
Kiš. Ao mesmo tempo, há na constituição deste projeto um interesse quase obsessivo
pelo valor da forma e da estrutura da enciclopédia, o que conduz parte de sua ficção
a ser marcada pela organização de elementos fragmentários e aparentemente
dispersos, o que nos leva a conclusão de que “a trajetória ficcional de Danilo Kiš
assume a forma de um arquivo.” (SOARES, 2008, p.1) Uma das obras de Kiš em que
particularmente essas características são bem latentes é justamente a que nos
propomos a analisar: Um túmulo para Boris Davidovitch.
UM TÚMULO PARA BORIS DAVIDOVITCH: FATO E FICÇÃO
Obra que catapultou o sucesso de Danilo Kiš na Europa Ocidental (SONTAG,
2001, p. 128), Um túmulo para Boris Davidovitch compila sete relatos, que apesar de
353
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
diferentes, encontram conexões entre si, como nos revela o sugestivo subtítulo da
edição brasileira do livro, publicada pela Companhia das Letras em 1987: Um túmulo
para Boris Davidovitch – Sete capítulos de uma mesma história.
As conexões entre os sete capítulos se dão não apenas na temática – o cenário
de todas as histórias e as vidas de seus protagonistas é permeado pelo terror, pela
perseguição política, pela opressão e pelo sofrimento – mas também pelo fato de que
um personagem de uma história comumente é citado ou aparece como coadjuvante
em outra: A.L Tcheliustnikov, por exemplo, correspondente de um jornal local,
caracterizado como dono de “botas cor de framboesa, cintilantes” (KIŠ, 1987, p.38), e
que é torturado e preso ao final do capítulo intitulado Os Leões Mecânicos, e sua
amante, Nastasia Fedotievna M, são citados no capítulo seguinte, O Círculo Mágico
das Cartas:
[...] bastava que Korchunidze exprimisse esse desejo com uma
palavra ou mesmo um olhar, para que as botas cor de framboesa do
antigo tchekista Tcheliustnikov resplandecessem nos pés do novo
354
proprietário (Kostik), ou então, graças à amabilidade e à benevolência
do cozinheiro, ex-assassino e gigolô, era fornecida uma ração
generosa à mulher do ex-secretário do Comitê Regional, a branca
Nastasia Fedotievna M, que depois era conduzida a Kostik, pois o
Artista gostava de mulheres bem fornidas, “brancas e redondas, o
que há de melhor em matéria de mulheres russas.” (KIŠ, 1987, p. 63)
Seis dos sete relatos encenam-se durante a dura opressão assumida pelo Estado
stalinista. Presos políticos, homens injustiçados, figuras que se opuseram (ou foram
traídas) pelo governo ganham, então, destaque nestes capítulos. Um capítulo em
especial, Cães e Livros, retorna ao ano de 1330 para falar da opressão da Igreja contra
os judeus durante o período da Inquisição.
Para realizar a organização e a união destas histórias tão díspares, Danilo Kiš
recorre a um procedimento também utilizado pelo escritor iugoslavo em outra obra,
Enciclopédia dos Mortos, o princípio da “lógica das coincidências”. (SOARES, 2008, p.
2) Segundo Soares (2008), torna-se comum na bibliografia de Kiš aglutinar elementos
e vozes distintas a partir do estabelecimento de um princípio analógico. Se em
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Enciclopédia dos Mortos, o que une todos os relatos e ajuda a manter a aparência de
uniformidade temática do livro é a morte, em Um túmulo para Boris Davidovitch, é a
opressão e a perseguição em sua forma mais crua que funcionam como um módulo
organizador de todas as sete histórias que compõem a obra. De uma forma bem clara,
todos os personagens de Um túmulo para Boris Davidovitch encontram-se sufocados,
seja pelas mazelas provocadas pela violência do Estado ou das próprias condições
sociais (como nos capítulos A porca que devora sua ninhada e Os leões mecânicos), seja
pelas mazelas provocadas pela Igreja e pelas condições oriundas da religião (neste
caso, o capítulo Cães e Livros).
Neste ponto, haveria uma similaridade muito forte entre Um túmulo para Boris
Davidovitch e História Universal da Infâmia, de Jorge Luís Borges, obra em que sete
diferentes relatos são construídos tendo como módulo organizador o caráter
“infame” de seus protagonistas. Como veremos depois, esta não é a única
coincidência entre a obra de Kiš e o trabalho de Borges. Em ambos os livros há uma
tensão muito marcada entre fato e ficção, com a presença de procedimentos
tradicionalmente classificados como biográficos mesclando-se a utilização de
diversas “armadilhas” ficcionais. São obras que se configuram como “um catálogo de
infrações: hibridação genérica, metadiscursividade, finais abertos ou conjeturais,
especulação, elipses narrativas.” (PREMAT, 2010, p.4) A especulação que improvisa a
partir de referências factuais, a utilização de dados apócrifos e de fontes não
verificáveis, a insegurança no papel de biógrafo, a inclusão de notas de rodapé,
enfim, todos estes elementos que ajudam a constituir os relatos, estabelecem a tensão
entre fato e ficção, fazendo parte desta obsessão de Kiš pelo documental, que irá
condicionar a sua obra e dar sentido aos múltiplos nós das malhas da memória das
catástrofes que o preocupam. (SOARES, 2008, p. 2)
Na tentativa de atribuir veracidade ao que está sendo contado, o escritor acaba
por assumir o que Premat (2010) chama de posição de falsário, afinal Danilo Kiš
brinca, ao por exemplo, fazer passar por reais, personagens que não encontram
referentes em nosso mundo – temos Oscar Blum, socialista austríaco que teria
conhecido Novski, protagonista do capítulo que dá nome ao livro – e a utilização de
personagens históricos interagindo com personagens ficcionais – temos o político
355
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Édouard Herriot sendo guiado pelas ruas de Kiev pelo ator e mais tarde prisioneiro
do Estado A.L Tcheliustnikov no capítulo Os Leões Mecânicos. A poética de Kiš tende
a forjar um narrador quase sempre incerto, frequentemente adepto da especulação e
da omissão de informações e fontes, como se pode perceber nos seguintes trechos,
presentes no capítulo Um túmulo para Boris Davidovitch:
Depois de uma brecha óbvia em nossas fontes (e que não queremos
impingir ao leitor, para deixar-lhe o prazer enganoso de pensar que
se trata de uma história que, como de hábito, confunde-se, para maior
felicidade do escritor, com o poder de sua imaginação). (KIŠ, 1987, p.
92)
Alguns testemunhos levam-nos a crer que Novski, arrastado por
uma onda de entusiasmo e de amargura, recebeu a notícia do
armistício, apesar de tudo, como um golpe. (KIŠ, 1987, p. 94, grifo
nosso)
356
No primeiro trecho, é possível perceber o tom metalinguístico e levemente
irônico do narrador, ao admitir a falta de informações totalmente confiáveis que
garantam a autenticidade dos supostos fatos. Já no segundo trecho, revela-se que a
partir da análise de alguns testemunhos, chegou-se a conclusão de como o
personagem Novski reagiu à notícia do armistício. Mas de quem seriam esses
testemunhos? Onde eles foram obtidos? Qual o grau de confiabilidade deles? Estas
informações são omitidas.
Também durante várias partes do livro, os adjetivos ‘autêntico’ e ‘confiável’ são
usados para caracterizar os testemunhos, as cartas e demais documentos
supostamente utilizados pelo narrador para a construção dos relatos apresentados,
não nos sendo revelada, porém, a localização das fontes. Dentre estes trechos,
destacamos:
Essa história, nascida na dúvida e na incerteza, só tem o mal (que
alguns chamam de sorte) de ser verdadeira: foi registrada por mãos
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
honestas, segundo testemunhos confiáveis. (KIŠ, 1987, p. 7, grifo
nosso)
Os documentos autênticos, embora pareçam palimpsestos, estão
momentaneamente ausentes aqui. A vida de Gould Verschoyle
confunde-se de certa maneira com o nascimento da jovem república
espanhola. (KIŠ, 1987, p. 24, grifo nosso)
Certamente que a utilização destes procedimentos de construção narrativa
(especulação, omissão de informações, ausência de explicações para determinadas
ações e acontecimentos) pode ser uma consequência da própria escolha do escritor
pelo fragmento, pela espaço mais restrito e comprimido do relato. A própria
linguagem cinematográfica, ágil, recheada de flashes e de atos simultâneos que
aparece em alguns trechos do livro pode ser também, ao ser emulada literariamente,
produzir um efeito dessa natureza, como se pode perceber em:
Vejo Verchoyle deixar Málaga a pé, vestindo um casaco de couro
tomado de um falangista (sob o casaco havia apenas um corpo
magro, nu, e uma cruz de prata presa a um cordão de couro); vejo-o
investir armado com uma baioneta, levado por seu próprio grito
como se o levassem as asas do anjo exterminador; vejo-o berrar para
cobrir os clamores dos anarquistas, cuja bandeira negra drapeja sobre
o vale despojado que cerca Guadalajara, e que estão prontos a morrer
uma morte sublime e insensata [...] (KIŠ, 1987, p. 25)
LIÇÃO DE ANATOMIA E A NECESSIDADE DE UM LIVRO RESPOSTA
Diante da hibridez e da maneira particular com a qual Danilo Kiš construiu sua
obra, uma parte da crítica de seu país não poupou esforços para menosprezar o
trabalho do escritor, caracterizando alguns dos documentos e testemunhos presentes
em Um túmulo para Boris Davidovitch como produto de plágio.
357
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Uma destas vozes que reagiram à publicação do livro de Kiš foi a de Dragan M.
Jeremic – nome desconhecido por nós, mas à época autor de grande destaque no
mundo iugoslavo, não apenas produtor de literatura como também agente poderoso
e influente no campo literário local de então. Jeremic se manifestou em uma longa
carta aberta na qual, entre outras coisa, afirmava que:
En mi opinión, sería mejor que Kiš simplemente confesara que ha
omitido citar las fuentes por diferentes motivos: porque no son
importantes para el objetivo con el que escribió esta prosa, o al menos
que no quiso cargar el texto con notas a pie de página, suponiendo
que los críticos descubrirían por sí mismos qué, de donde, en qué
medida y con qué fin había sido copiado. (KIŠ, 2013, p. 90)
Para Jeremic e outros, a documentação, os testemunhos e alguns dos nomes
citados em Um túmulo para Boris Davidovitch não seriam tão apócrifos assim. Na
verdade, para estes críticos, Danilo Kiš teria buscado essa pluralidade de informações
presentes no livro em leituras de depoimentos de vários autores aos quais não
358
conferiu qualquer crédito. Kiš, portanto, passou a ser caracterizado em alguns
círculos de seu país como um plagiador.
Para rebater seus opositores, Danilo Kiš resolveu defender-se usando a sua
melhor arma: a literatura. Escreveu, então, Lição de Anatomia, livro-resposta, que traz
a opinião do escritor iugoslavo em relação ao que ele chama de “incrível campanha
de difamação que iniciaram contra Um túmulo para Boris Davidovitch.” (KIŠ, 2013, p.
90) Para driblar a opinião de Jeremic, por exemplo, Kiš resolve atacar a inexperiência
e a ausência de legitimidade do crítico, que seria mais conhecido por seu trabalho
como funcionário público do que como especialista literário. Como então, o escritor
poderia considerar como legítima e merecedora a opinião de Jeremic sobre a sua
obra?
En qué medida me he servido de fuentes, qué, de dónde, en qué
medida y con qué fin había sido copiado, sería en cualquier literatura
y en cualquier ambiente literario civilizado, asunto de investigadores
y de la crítica universitaria; no obstante, sobre la cuestión del material
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
literario y cómo se utiliza todavía se hablará en ese libro […] Y para
que él [Jeremic] fuera capaz de encontrar en un libro las llamadas
fuentes, valorara de dónde proceden, y de qué medida y con qué fin
se han copiado, tendría que – en pocas palabras – procurarse algunos
conocimientos elementares sobre literatura, sobre literatura moderna
en particular. (KIŠ, 2013, p. 90)
Kiš também aproveita o espaço do livro para comentar algumas outros temas,
como a força que infelizmente o nacionalismo e as falsas ideologias imprimem na
literatura de seu país, o que impedia que autores mais experimentalistas e menos
conservadores como ele alçassem voos mais altos dentro dos círculos literários de sua
região; as questões familiares e autobiográficas que aparecem em boa parte de suas
obras, principalmente na trilogia chamada Circo Familiar; e principalmente, um
aspecto que muito nos interessa aqui, e que tem haver com a filiação à qual o escritor
iugoslavo está vinculado: o seu elogio a Borges.
Quando fala do escritor argentino em um dos capítulos iniciais de Lição de
Anatomia, Kiš é enfático: “No hay duda, la narración, con más exactitud el arte
narrativo, se divide en el que había antes de Borges y el de después de Borges.” (KIŠ,
2013, p. 52) Não era esta a primeira vez em que Kiš declarava a sua admiração por
Borges. Quando perguntado, por exemplo, sobre sua genealogia, ele frequentemente
respondia que se considerava “um filho de Borges e de Bruno Schulz.” (SONTAG,
2001, p. 129)
E não é dificil perceber as coincidências entre o projeto literário dos dois
autores. Assim como Borges, Danilo Kiš está muito preocupado na valorização do
aspecto enciclopedístico, do fragmento, das informações apócrifas e da atribuição de
autenticidade e veracidade, ainda que dúbias, à narrativa ficcional. Há no projeto
literário de ambos, representado aqui por dois livros, Um túmulo para Boris
Davidovitch e História Universal da Infâmia, uma série de características e marcas que
tornam possível desenhar uma genealogia que incorpore estas duas obras, baseada
no que chamamos genericamente de ficções biográficos e que, segundo a definição de
Premat (2010), apresentam-se como:
359
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
[...] biografias de personagens célebres do passado ou de figuras
inventadas, muitas vezes breves e fragmentadas, que funcionam
como um refúgio ou uma ressurreição do relato (da capacidade de
contar). São, geralmente, biografias de escritores, artistas, criadores,
série infinita de espelhos do autor, espelhos nos quais a identidade se
esboça, se deforma, se aprofunda, se define como um avatar
significativo, embora seja irreal, significativo porque é irreal.
(PREMAT, 2010, p.1)
AS FICÇÕES BIOGRÁFICAS: SCHWOB, BORGES & KIŠ
A dificuldade cada vez maior de classificar determinadas obras como (auto)
biográficas ou não, assim como a intensa aparição na contemporaneidade de obras
que subvertem as características tradicionais da biografia, situando-se em uma zona
instável e heterogênea, muitas vezes colada à discursos anteriomente considerados
como divergentes – ficção e fato; ficção e notícia; biografia e ficção – seria, segundo
360
Arfuch (2010), uma das características da própria definição do espaço biográfico
contemporâneo, entendido como essa confluência de múltiplas formas, gêneros e
horizontes de expectativa. Nesse sentido, o espaço biográfico aparece como um
interessante campo de indagação, no qual diferentes gêneros manifestam seus
contatos em formas variadas de intertextualidade e interdiscursividade. É dentro
desta perspectiva que as experimentações do espaço biográfico, e aí falamos mais
detidamente das ficções biográficas, passam a ser interesse dos pesquisadores e
ganham voz e vez dentro dos estudos críticos e literários.
De maneira geral, e improvisando aqui uma conceituação afinada com os
objetos que estamos examinando, o que chamamos de ficções biográficas pode ser
entendido como um conjunto de textos que se estruturam no formato de relatos
breves, fragmentados, em que há uma clara reversão ao modelo clássico de se
escrever uma vida, tradicionalmente apoiado no que Bourdieu (2006) chama de
ilusão biográfica, ou seja, a tentativa ineficiente de se entender a vida biografa como
uma série de acontecimentos sucessivos, um ir e vir, uma trajetória linear. O que
percebemos nas ficções biográficas é um movimento que corresponde à noção de que
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
a fragmentação pode servir como um mecanismo satisfatório de expressão literária,
ao se integrar a uma organização lógica de escrita da vida, porém não
necessariamente a uma organização cronológica e linear. (BOURDIEU, 2006, p. 184)
São também marcas destes textos certa ficcionalização assumida presente nas
narrativas; a quase sempre ausência de homogeneidade dos personagens escolhidos
para terem suas vidas narradas – seja em relação ao contexto histórico em que
viveram estes personagens, seja em relação a suas condições socieconômicas, por
exemplo.
Dois livros incorporados à esta tradição e que particularmente interessam aqui
por causa de suas conexões com a obra de Kiš são Vidas Imaginárias, de Marcel
Schwob e História Universal da Infâmia, de Jorge Luís Borges.
Comumente considerado como origem hipotética do gênero, Vidas Imaginárias,
de Marcel Schow, publicado em 1896, é a compilação de vinte e dois relatos sobre
figuras reais, invisíveis ou supostamente não interessantes para a História. Schwob
subverte a biografia tradicional ao criar pequenos relatos em que na escrita da vida
biografada confunde-se verdade documental e factual com imaginação e invenção. O
escritor francês recorre a uma série de artificios que já comentamos quando falamos
sobre a análise de Um túmulo para Boris Davidovitch, de Kiš: especulação, falta de
explicação para diversos acontecimentos, incerteza no papel de biográfo, omissão das
fontes. Tudo isso em prol da arte, que para Schwob, “(..) é contrária às ideias
universais, descreve apenas o individual, deseja apenas o único. Não classifica,
desclassifica.” (SCHWOB, 2011, p. 47) Não há a preocupação em escrever biografias
totalmente autênticas, estritamente apoiadas no caráter documental. As vidas
transformadas em escritura por Schwob “em vez de tratarem-se de biografias
referenciais, estruturadas ao redor de um conceito de verdade, se tratam
intencionalmente de vidas imaginárias, situadas ao âmbito da estética.” (PREMAT,
2010, p.3)
Procedimentos parecidos são utilizados por Borges, que assim como Kiš
também recorre a inclusão de notas de rodapé e a invenção de nomes documentos
que aparecem na narrativa como elementos aparentemente autênticos. Ao final de
História Universal da Infâmia, por exemplo, há anexo um índice de fontes em que
361
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
aparece um referência falsa: Die Vernichtung der Rose (port. ‘O Nome da Rosa’),
revelando o jogo criativo do escritor argentino.
Compondo um elo mais recente nessa genealogia, Kiš também é, como vimos,
responsável por enquadrar em uma disputa estética e política os artifícios que
caracterizam esse subgênero. Sua produção, assim, ao mesmo tempo que recupera
procedimentos de seus antecessores, não se limita à emulação do já realizado: conduz
a novas inquietações, e nos convida a examinar mais minuciosamente as implicações
e desafios críticos apresentados pelos gêneros híbridos ou imprecisos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Tradução de Paloma Vidal. – Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
BORGES, Jorge Luís. História Universal da Infâmia. Tradução de José Bento. – Lisboa:
Assírio e Alvim, 1982.
362
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e
AMADO, Janaína. (orgs.). Usos e abusos da história oral. 8 ed. – Rio de Janeiro: FGV,
2006, p. 183-191.
KIŠ, Danilo. Um túmulo para Boris Davidovitch. – São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
__________. Homo Poeticus: essays and interviews. Edited and with an Introduction
by Susan Sontag. – United States: Farrar Straus & Giroux, 1995.
__________. Lección de anatomía. Tradução de Luisa Fernanda Garrido e Timohir
Pistelek. – Barcelona: Acantilado, 2013.
PREMAT, Júlio. Monstruos, infames y criminales. Ficciones biográficas, de Schwob a la
actualidad. – Paris: 2010. 40 p.
SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças e Vidas Imaginárias. Tradução de Dorothée
de Bruchard. Introdução de Marcelo Jacques de Moraes – São Paulo: Hedra, 2011. 162
p.
SOARES, Leonardo Francisco. Um inventário alfabético da morte: A enciclopédia dos
mortos, de Danilo Kiš. São Paulo: Anais da Abralic, 2008.
TRAVESSIAS NO UNIVERSO DA LEITURA ATRAVÉS DA TERTÚLIA
LITERÁRIA
Cecilia de F. Boaventura de Macêdo
Profª rede estadual
e-mail: [email protected]
Luciana de Souza Pereira Cerqueira
Profª rede estadual
e-mail: [email protected]
A Tertúlia Literária é uma proposta de atividade de leitura que reúne pessoas das
mais diversas formações com o intuito de promover um diálogo entre os
participantes de determinado grupo a partir da leitura de um texto. Nosso intuito
com essa prática no grupo de pais dos estudantes é desmistificar a leitura demonstrar que esta pode favorecer àqueles que não possuem formação acadêmica e sua prática como troca de saberes e de experiências vividas. A tertúlia é a proposta
de uma atividade de leitura sem obstáculo social, e tem como base o diálogo com as
diferentes esferas da vida, onde a aprendizagem efetiva-se nos diversos espaços que
o homem convive, na conversa com os amigos, na troca de experiências com os
parentes e colegas. As bases teórico-metodológicas da Tertúlia Literária como
aprendizagem dialógica estão pautadas em Paulo Freire para a área de Educação, e
Habermas para a Sociologia. Nesse sentido todas as falas são respeitadas igualmente,
as diferentes manifestações de linguagem são consideradas a partir da validade dos
argumentos, e não pela imposição de poder de um sobre o outro, oportunizando a
todos indistintamente o diálogo na exposição de suas ideias. O presente projeto
acontece numa escola da rede estadual de Feira de Santana com os pais de estudantes
da escola visando despertar nestes o gosto pela leitura de variados gêneros textuais,
de maneira que os mesmos possam desenvolver um olhar crítico e investigativo
acerca da realidade em que vivem, destinando-se a promover uma aproximação
destes com a leitura de textos considerados simplórios até a leitura dos clássicos da
literatura universal. A concretização da proposta acontece por meio de encontros
quinzenais de leitura entre pais e educadores, cuja leitura seja realizada
antecipadamente pelos membros do grupo e também em conjunto, de forma
compartilhada. Na sequência ocorre a manifestação dialógica das impressões do
texto, destacando os aspectos que mais se evidenciam a partir das experiências de
vida de cada um. A partir das discussões que são suscitadas em razão de cada
leitura feita, os membros têm a oportunidade de expor suas vivências e expectativas
de vida, fazendo com que o grupo se torne mais integrado, favorecendo aos
educadores uma aproximação maior do contexto social, histórico e cultural em que
vivem os estudantes e suas as famílias. A cada encontro, uma nova leitura será
sugerida, a qual deverá ser realizada no ambiente familiar, em conjunto e, com isso, o
hábito de leitura poderá ser despertado também nos demais membros da família,
inclusive nos estudantes.
Palavras-chave: TERTÚLIA; PAIS; DIÁLOGO; APRENDIZAGEM
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1. APRESENTAÇÃO
A leitura é uma atividade que, para além da decodificação, possibilita ao ser humano
a oportunidade de enveredar por caminhos impensados, se autoconhecer, bem como
compreender a sua função no contexto social, histórico e cultural do qual faz parte.
Nesta perspectiva, a Tertúlia Literária, que é uma atividade cultural e educativa, em
que pessoas se reúnem para ler um livro – clássico da literatura nacional ou universal, ou
mesmo um texto mais curto, a exemplo de um conto ou uma crônica – se torna uma
atividade de leitura dialógica propícia para incentivar o hábito da leitura e o
desenvolvimento do senso crítico.
Partindo para a observação do contexto de leitura e aprendizagem de uma escola
pública estadual, o Colégio Estadual Governador Luiz Viana Filho, situada na cidade de
Feira de Santana na Bahia, cujo alunado é, predominantemente, carente e residente em
bairros populares, percebemos que a prática de leitura por parte dos estudantes é precária e
necessita de estímulos que partam da escola e também da família.
Sabemos que muitos fatores levam a essa realidade, mas à escola, cabe a tarefa de
364
buscar estratégias para tentar dirimir as dificuldades e propiciar aos estudantes a
oportunidade de alcançar níveis de aprendizagem mais elevados e satisfatórios. Nesse
sentido, Girotto (2007) considera que a leitura torna-se uma
habilidade social fundamental no atual contexto, tanto para a
formação da capacidade de nele se movimentar, como para a
construção de possibilidade de transformação do contexto e das
interações. Mais especificamente, defende-se a ideia da prática
compartilhada de leitura de literatura e reflexiva enquanto
aprendizagem dialógica. (GIROTTO, 2007. p. 19).clássica universal ou
nacional ser o lugar da prática dialógica
Assim, sentimo-nos instigados a desenvolver este trabalho. Com ele, pretendemos
chegar a um dos cernes do problema, ou seja, a falta de incentivo à leitura no ambiente
familiar, fato que causa consequências negativas com relação ao hábito da leitura para todos
os sujeitos e compromete as demais aprendizagens.
Pensamos num projeto de leitura que fosse significativo para os pais, a leitura
de uma forma competente, onde as particularidades fossem respeitadas, focando a
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
leitura como uma experiência interpessoal e dialógica. Nesse sentido concordamos
que a leitura é um processo pessoal e particular, onde cada indivíduo tem sua
própria experiência diante do texto lhe dando sentido.
Nossa proposta consiste no desenvolvimento de encontros de leitura, denominados
Tertúlia Literária. Estes encontros acontecem quinzenalmente na biblioteca da escola e são
organizados de forma que professores e pais dos estudantes leiam textos de variados gêneros
e, a partir da leitura que deve ser realizada durante o encontro e também antes dele, ou seja,
ainda em casa juntamente com os seus familiares, possa trazer suas contribuições pessoais
expondo suas ideias, suas experiências de vida, suas expectativas, enfim, tudo o que for
pertinente e despertado a partir da leitura do texto.
Para Magnani (1989, p. 102) leitura e literatura são formas de conhecimento,
tornando-se necessário pensá-las do ponto de vista do seu funcionamento sóciohistórico; pois a leitura não é um ato isolado de um indivíduo ante ao escrito de
outro indivíduo. O gosto se forma e a aprendizagem escolar da leitura da literatura
desempenha importante função no desenvolvimento sendo que:
O texto literário propõe uma ação na esfera imaginativa, criando uma
nova relação entre situações reais e situações de pensamento,
ampliando, assim, o campo de significados e auxiliando na formação
dos planos da vida real (MAGNANI, 1989, p. 104)
A formação do gosto não acontece de forma simples– é alguém que participa
ativamente deste processo – que vai romper com o estabelecido, refletir a sua prática,
desmistificar os modelos de leitura estabelecidos; buscar uma nova percepção da
linguagem, e que vão se integrando ao processo em desenvolvimento, pela própria
superação das novas necessidades que vão surgindo na busca da superação de uma
prática, uma vivência de sala de aula e de vida, nesse movimento de interpretações
que é a linguagem como poderosíssimo recurso da expressão e da comunicação.
2. A PRÁTICA DA LEITURA NUMA PERSPECTIVA DIÁLOGICA
365
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O exercício da leitura é uma das principais formas de aquisição de conhecimentos, de
desenvolvimento de valores, de conscientização, uma vez que os sujeitos têm a oportunidade
de enxergar a si mesmo, ao outro e o mundo em que vivem de maneira mais intensa, mais
viva e muito mais reflexiva e crítica. A fruição, no entanto, entre todas as benesses advindas
do hábito de ler, se destaca como sendo a grande e principal função da leitura, pois é através
dela que as pessoas adentram em um universo jamais conhecido.
Todavia, ler parece não representar algo comum na rotina da população brasileira, de
modo que as pesquisas apontam para um número baixíssimo de livros lidos anualmente, por
habitante, e ainda, para um grande déficit no que se refere à proficiência leitora. Tudo isso se
levarmos em conta países importantes social e economicamente, como é o caso do Brasil.
Precisamos mudar esse panorama com práticas de leitura que transformem os indivíduos e
possibilite a igualdade no acesso às informações de forma efetiva.
2.1. A LEITURA NA HISTÓRIA
366
No transcorrer da história, o contato com a leitura sempre pertenceu aos que
detinham o poder. No período medieval, por exemplo, a leitura era privilégio de poucos,
especialmente do Clero. Somente a partir da ascensão da burguesia, em virtude do
atendimento ao mercado de trabalho que então se formava, a leitura começou a se
popularizar, ainda que com um caráter fortemente moralista. Infelizmente, ainda hoje,
sabemos que a leitura não faz parte do cotidiano dos brasileiros, como também conhecemos
as razões que levam a esse lamentável fato.
É oportuno, também, lembrarmos que a leitura funciona como um fator de ascensão
para as classes economicamente desfavorecidas. Já para as classes privilegiadas ela funciona
como uma forma de expressão que envolve prazer, conhecimento e status. E que o estímulo à
leitura deve permear a trilha educativa como forma de desenvolver no indivíduo habilidades
e competências críticas, bem como de torná-lo consciente da sua atuação na sociedade. Mas,
além disso, deve atender a uma necessidade inerente ao homem, de sentir prazer, de
degustar palavras, as quais, potencialmente, têm o poder de preencher lacunas na alma
humana e ainda de transformá-la.
Temos na escola em termos de leitura o texto imposto e não proposto em que
sua mensagem deve ser acatada e nunca contestada pelo leitor. Segundo Zilberman
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
(1984, p. 27) é a leitura que vem trazer a possibilidade de ruptura com a ideologia
dominante para o jovem e a criança que tem a expectativa, e espera através do ensino
tornar-se um sujeito consciente e atuante, gerando assim a sua integração no contexto
socioeconômico e cultural.
Nossas escolas, no entanto, têm atendido muito mal a essa questão, haja vista os
números escabrosos de leitores “fúteis” e de não leitores. Sendo assim, fica explícito, que o
papel dos profissionais da educação não vem sendo cumprido com eficácia no sentido de
desenvolver aptidões ou gosto pela leitura, o que implica em uma sociedade desinformada e
desatenta para questões que a cercam, e que, poderiam ser alteradas se tivéssemos cidadãos
esclarecidos e politicamente ativos.
A prática de uma atividade leitora favorece a formação de leitores competentes, que
consigam penetrar em um texto, desvendando-lhe as ideias subjacentes, chegando até
mesmo a extrapolá-las e posicionar-se criticamente diante das noticias dos vídeos, dos
programas televisivos e os textos que circulam na mídia.
Ser leitor, segundo Cordeiro (2004, p. 100) significa ter tido ao longo da vida,
oportunidades de práticas leitoras, capazes de desenvolver hábitos e gosto pela
leitura, além de condições materiais de acesso aos livros.
Nosso intuito, como professores de língua portuguesa, com a tertúlia literária
é favorecer um processo de perspectiva de vida para além de uma partilha de
opiniões, mas promover às pessoas que estavam ali uma perspectiva de leitura como
criação de sentido na expansão de suas culturas, vinculando literatura e mundo,
parafraseando Freire literatura e leitura de mundo.
E Maciel (2011) reforça nosso pensamento dizendo que
Os círculos de cultura ganham, nesse sentido, uma inesperada e
inovadora dimensão dialógica. O reconhecimento de uma cultura
local ganha forma pelas inúmeras experiências de diálogos entre
pessoas e culturas. Desloca-se o eixo do educacional para o cultural.
O ensinar e o aprender expressa agora valores culturais em uma
espécie de tradição inovadora. Esse deslocamento permitia aos
educando mais do que a leitura da palavra em si mesma, permitia a
leitura do mundo e o reconhecimento de uma cultura própria.
MACIEL (2011, p. 8).
367
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
É o momento da contextualização das culturas presente nesse espaço pela
expressividade da palavra que é dada a cada membro, quando compartilha o lido,
quando relatam suas experiências que o texto suscitou, com caráter transformador,
valorizando o saber popular num diálogo igualitário.
2.2 A TERTÚLIA LITERÁRIA
A tertúlia literária dialógica parte do principio de que a leitura deva ser compreendida
como parte de um processo mais amplo, o letramento - àqueles das camadas populares que não
tiveram acesso, ao menos parcialmente, ao mundo letrado - que é um processo mais
abrangente no processo de apropriação dos usos das diferentes práticas de leitura nas mais
diversas práticas sociais, traz uma dimensão de emancipação ao indivíduo, pois estes que
possuem um saber que não é valorizado pelas classes mais abastadas da sociedade, entre outras
coisas, daria oportunidade a estes últimos. Conforme Freire, possuem um conhecimento que
ultrapassa as fronteiras das letras, o conhecimento da vida, as experiências sofridas pela
368
exclusão.
Para Zilberman (1984, p.26) ler possui um vínculo com a linguagem, pois, o ato
de ler se configura como uma relação privilegiada com o real, já que engloba, tanto
um convívio com a linguagem, como o exercício hermenêutico de interpretação dos
significados, em que, nas vivências do dia-a-dia o leitor vai construindo uma
representação mental do mundo, o leitor intervém de modos diversos com o texto,
interage , preenche lacunas, constrói sentidos.
Na Tertúlia Literária há a partilha da leitura da realidade de cada um, em que
são expostos e respeitados seus depoimentos do que a leitura partilhada pôde lhe
lembrar ou relembrar, ou que a leitura fez-lhe emergir na prática diária. Seus dizeres
das lutas de um povo que foi abortado o direito de estudar em detrimento da
necessidade financeira ser preponderante para sobrevivência. São depoimentos de
suas lutas para além das paredes daquele espaço que acontecem, são dizeres que
remetem às relações histórico-sociais. É essa população que teve excluído os direitos
básicos da existência humana e dos princípios da formação de sujeitos críticos.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Trazemos alguns princípios da aprendizagem dialógica que orienta a
atividade de Tertúlia Literária, conforme Girotto & Mello, estão apoiadas nas
elaborações de Habermas, sobre Ação Comunicativa, e Freire, sobre dialogicidade.
Eles são:
1) Diálogo Igualitário: o que se considera é a função de validade de um
argumento e não a posição de poder das pessoas que estão na interlocução;
assim todos (as) podem aprender igualmente;
2) Inteligência Cultural: todas as pessoas possuem inteligência cultural, a
pessoa tem que ter oportunidades e condições de demonstrá-las em
interações;
nesse
sentido,
as
distinções
acontecem
pelos
suas
diversos
desenvolvimentos ocorridos frente a diferentes entornos; a desigualdade
decorre da valoração que a sociedade faz de uns conhecimentos,
desvalorizando os demais. Cabe romper com esse círculo vicioso e dialogar
com base na inteligência cultural.
369
3) Transformação: as relações entre as pessoas e seus entornos são
transformadas a partir da aprendizagem dialógica. Como afirma Paulo Freire
(2004, p.28): “as pessoas não são seres de adaptação, mas de transformação”...
“Se a educação não pode tudo, sem ela não há transformação”.
4) Dimensão Instrumental: os estudos de Flecha nos permitem entender que a
capacidade de seleção e processamento de informações é o melhor
instrumento cognitivo para se desenvolver na sociedade atual; portanto, a
aprendizagem dialógica e a reflexão permitem a aprendizagem instrumental
de conhecimentos e habilidades necessários para operar transformações e para
agir no mundo.
5) Criação de sentido: o sentido ressurge quando a interação entre as pessoas é
dirigida por elas mesmas, ou seja, a criação de sentido com outras pessoas
onde se estabelece um diálogo horizontal.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
É nesse sentido que este trabalho mostra-se pertinente, haja vista a necessidade de
que sejam tomadas medidas interventivas que visem, sobretudo, oferecer subsídios para a
formação de leitores competentes, que consigam penetrar em um texto, desvendando-lhe as
ideias subjacentes, que desenvolvam a sua criticidade e se tornem ativos na sociedade da
qual fazem parte.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos durante os encontros iniciais das Tertúlias Literárias que os pais em sua predominância mães - timidamente expunham suas falas, e provocamos para
que se coloquem, sempre guiada por um mediador, que não se coloca como detentor
da palavra, mas permite que os participantes coloquem seus argumentos e possibilita
a todos participarem, indiscriminadamente, mediando também para que os que
falam muito possam dar vez aos que pouco falam.
Buscamos, nos encontros, sempre deixar os participantes bem à vontade e
370
recebemos com abraços calorosos, telefonamos antes dos encontros iniciais
reforçando a data e horário e lembramos que podem chamar vizinhos e parentes para
virem também participar. Algumas vezes os filhos - alunos da escola - também
participaram.
Em suas falas, alguns participantes confessaram que “não falavam, muitas
vezes, por achar que não seriam bem aceitos, ou que seria uma bobagem o que
poderiam dizer, ou sem importância”. Fica expressa uma atitude de opressão
subjacente à fala por sentir-se inferior culturalmente, por não sentir-se capacitado
suficientemente a ter o direito de falar.
Isso remete ao item 1, Diálogo igualitário que é a validade do argumento e não
a posição de poder das pessoas que falam. Ou sua inteligência cultural.
Neste sentido, a Tertúlia Literária torna-se um momento e evento em que a
aprendizagem dialógica e a reflexão permitem a aprendizagem instrumental de
conhecimentos diversos. Uma aprendizagem que possibilite, segundo Freire “uma
conscientização do analfabeto, a libertação do oprimido que hospeda o opressor”,
propondo uma nova relação social, trazendo para o espaço escolar a realidade dos
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
alunos pela fala dos pais ou parentes, no desvelamento do texto, na construção do
saber partilhado.
Por isso a tertúlia vai muito mais além do que uma simples roda de leitura, é
uma forma de dizer-se.
REFERENCIAS
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CORDEIRO, Verbena M. R.; SOUZA, Elizeu C. (orgs.) Memoriais, literatura e práticas
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HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa I: Racionalidad de la acción y
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2001.
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’Água, 2001.
FLECHA, Ramon. Compartiendo palabras - El aprendizaje de las personas adultas a través
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MACIEL, Karen de Fátima .O pensamento de Paulo Freire na trajetória da educação
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GIROTTO, Vanessa C. – PPGE / NIASE / UFSCar1 – TERTÚLIA LITERÁRIA
DIALÓGICA ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: APRENDIZAGENS
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PUIGVERT, Lídia; SORDÉ, Tere; SOLER, Marta. La Tertulia: A Dialogic Model of
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371
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1987.
372
AS VEREDAS DO SENSÍVEL NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR-PROFESSOR
Maximiano Martins de Meireles
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
[email protected]
Verbena Maria Rocha Cordeiro
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
[email protected]
RESUMO
O artigo busca interrelacionar inspirações teóricas e fruições estéticas que nos levem às
veredas do Sensível na constituição leitora. O texto emergiu de diálogos iniciais entre
orientando-orientadora no percurso investigativo da construção de uma tese de doutorado que
tem como objeto de estudo o Sensível na formação leitora e docente. A investigação se
localiza entre dois eixos temáticos –leitura e formação – em diálogo com referenciais teóricos
no campo da autobiografia, do saber sensível e da experiência. De nossa perspectiva, a
constituição do leitor-professor se inscreve numa história de vida, em uma trajetória pessoal,
social e cultural: passa por um retorno do sujeito sobre si – o ver – o olhar para si mesmo,
para suas vivências, acontecimentos; o rever – relembrar fatos, contextos, acontecimentos e
situações; e o transver – ver-(se) de outro modo, reinventar-(se), transformar o vivido em
experiência, mudar percepções, concepções e o sentimento de mundo; criar e recriar-se. No
dizer do poeta (Manoel de Barros): O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê – ou seja,
pensar a formação do sujeito como um movimento que perpassa pelo ver (o olhar), o rever
(relembrar) e o transver (imaginar). Interessa-nos pensar a constituição leitora como um
processo que envolve sentidos, lembranças, memórias, acontecimentos e afetos, demarcando
trânsitos e deslocamentos entre o texto lido e o contexto do sujeito, entre a experiência
provocada pelo texto e a própria experiência do leitor-professor. A perspectiva de investigar
como o sensível constitui e afeta o leitor-professor nos remete ao Elogio da Razão Sensível
(MAFFESOLI,1998) no sentido de um paradigma de ciência que agrega a sensibilidade, o
cotidiano, a narrativa, a metáfora e o imaginário. Assim, a leitura se mostra como experiência
da singularidade e da pluralidade, como abertura ao desconhecido, ao acontecimento da
existência, processo nem sempre possível de racionalizar, ou seja, de deixar de fora emoções,
memórias e devaneios. O devaneio, na perspectiva de Bachelard (2009), seria esse gesto de
voar fora do real, de sair da rotineira noção de tempo e realidade, de suspender as certezas e
de se deslocar para outras dimensões afetivas, temporais e imaginárias. Esses movimentos
podem potencializar o aprofundamento da própria existência, no modo como a leitura
repercute na constituição do sujeito e nas ressonâncias que produz na reinvenção de si e da
realidade.
PALAVRAS-CHAVE: Sensível; constituição do sujeito; leitor-professor.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O presente texto busca interrelacionar inspirações teóricas e fruições estéticas
que nos levem às veredas do Sensível na constituição leitora. Assim, decorrendo de
diálogos iniciais entre orientando-orientadora, este trabalho inaugura a escrita-narrativa
de um percurso investigativo: a construção de uma tese de doutorado que tem como
objeto de estudo o Sensível na formação leitora e docente.
Na verdade, a escrita deste texto se configura como vereda de uma travessia
maior: desdobramento de experiências e encontros em diferentes espaços
acadêmicos, profissionais e poéticos da minha existência, nos meus modos de ser:
homem-humano, sujeito-travessia, professor, estudante, pesquisador e leitor.
Leituras e conversas que instigaram minha imaginação. Interrogações. Experiências
que foram deslocando minha existência acadêmica, profissional e pessoal. Pessoas no
meio do caminho: Manoel de Barros (o poeta), professora Cristina D’Ávila, professor
Elizeu Clementino, e, principalmente, professora Verbena Cordeiro12. Gente que me
inspira a "permanecer nos espaços do rio", ou ir: "nessa água, que não pára, de longas
beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro, o rio..." (Guimarães Rosa ).
Nesta travessia rumo ao ingresso no doutorado, outras margens emergiram.
374
Novos percursos: criativos, inventivos e autorais. Percursos que envolveram espaços
vastos, intensos desejos, riscos, silêncios, movimentos desconhecidos, rotas
desafiadoras e misteriosas. Era horizonte-futuro. O rio foi desenhando outros
contornos: não previstos, imaginados. Foi preciso uma abertura a sensibilidade
poética.
A presença do Manoel de Barros – em mim, ou: o encontro com sua poesia se
deu, primeiramente, através das redes sociais, especificamente no facebook, quando
tive contato com trechos de seus poemas, a exemplo da curta metragem Histórias da
unha do dedão do pé do fim do mundo, ou ainda com o documentário Só dez por cento é
mentira: a desbiografia oficial de Manoel de Barros.
A poesia contribuiu para aguçar ainda mais a minha sensibilidade, ou: o sertão leitor sensível. O texto-vídeo Histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo, por
exemplo, é uma curta metragem que faz peraltagens com as palavras e cria situações
que podem parecer absurdas para os adultos, mas não para as crianças. Num diálogo
12
Minha orientadora no Doutorado em Educação – PPGEduc-UNEB - co-autora deste texto.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
lúdico entre textos de Barros e desenhos de Evandro Salles, a animação vai
construindo imagens e sentidos inusitados por meio da brincadeira com as coisas e
com as palavras:
Tem um livro sobre águas e meninos.
Gostei de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos
irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
(...)
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na
peneira
No escrever o menino viu que poderia ser noviça, monge ou mendigo ao
mesmo tempo
O menino aprendeu a usar as palavras
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E começou a fazer peraltagens
(Manoel de Barros, 2013, p. 453).
375
Essas experiências sensíveis de leitura me colocavam em estado de poesia. O
estado poético possibilita um olhar de encantamento na relação com a vida, com o
mundo, ao tempo em que faz desbordar “as in-tensidades e a policromia dos
Sentidos que plasmam o imaginário e que compõem as texturas estéticas da
plasticidade da condição humana” (ARAÚJO, 2008, p. 126).
Em relação ao documentário Só dez por cento é mentira, a (des) biografia oficial de
Manoel de Barros, fui afetado pelo desejo de voar fora da asa (Manoel de Barros, de me
tornar um leitor-pesquisador-escritor ainda mais livre, mais criativo, mais inventivo,
mais autoral. Isto inspirava a possibilidade de romper, a partir de uma imaginação
criadora e de um pensamento sensível, com as formas sisudas na produção de
conhecimento instituídas pela ciência moderna.
Outras experiências formativas também foram importantes nesse sentido.
Assim, em 2014, ainda condição de aluno especial no Doutorado em Educação –
PPGEduc-UNEB, participei das aulas do componente curricular Autobiografia:
abordagem teórica e metodológica e do componente curricular Abordagem
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
(Auto)biográfica e Formação de Professores e Leitores, o que me possibilitou o
contato com o professor Elizeu e professora Verbena. Lembro-me que nessas aulas,
éramos desafiados a voar fora da asa: era preciso um pensamento singular, inventivo e
autoral, nos modos de ser pesquisador e leitor. Neste mesmo ano, participei do
Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade – coordenado pela
professora Cristina D’Ávila – no qual tive contato com a discussão do Sensível em
Maffesoli.
Careço dizer, portanto, que minhas implicações com o referido objeto de
estudo – o sensível na formação leitora e docente – são decorrentes das referidas
experiências: movimentos formativos que ampliaram meu horizonte de investigação
sobre a formação dos estudantes de Letras, mobilizando outras inquietações e
questões de pesquisa, antes centradas na produção das identidades de estudantes de
Letras13. Nesse horizonte de investigação, busquei localizar esta pesquisa entre dois
eixos temáticos – leitura e formação, em diálogo com referenciais teóricos no campo
do Sensível, da (Autobiografia) e da Abordagem Experiencial.
A aproximação com essas abordagens se dá em/por diferentes perspectivas:
376
epistemológica, teórica, metodológica e estilística. O estudo se configura em um
modo de fazer ciência/pesquisa que se permite surpreender com a trajetória que se
mostra, com a vida que é, com um sujeito que (se) diz, próprio de uma razão aberta e
sensível - que não se aparta da experiência (estética e estésica) que constitui o sujeitoprofessor-leitor e suas trajetórias formativas.
A temática do Sensível torna-se relevante à medida que o cenário educacional
emergente passa por um processo de mudanças epistemológicas, teóricas e
metodológicas, cuja transição aponta movimentos de ruptura com os pressupostos
da ciência moderna que coloca a racionalidade técnica e a objetividade em
detrimento da experiência (do) sensível. Nesse contexto de ruptura paradigmática,
valoriza-se um saber sensível que permita um retorno à subjetividade humana, à
sensibilidade, à criatividade, nas múltiplas dimensões que constitui o humano, tendo
em vista romper com uma ciência que se construiu fora do sentido de uma razão
sensível (MAFFESOLI, 1998). Sendo assim,
13
Projeto de Pesquisa apresentado na seleção para aluno regular do PPGEduc 2014.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Para além da lógica racional que marcou a modernidade, a vida social
pode repousar sobre o compartilhamento de um não-lógico que não
faz menos sentido. As numerosas participações afetuais, emocionais,
que pontuam a vida diária, pedem classificação nessa rubrica
(MAFFESOLI, 1998, p. 148).
O ato de pensar é aqui abordado a partir da perspectiva do saber-sensível, no
sentido de ruptura com modelo de saber-razão instituído pela ciência moderna, cujos
pressupostos apartam a mente do corpo, o sujeito do conhecimento, a subjetividade
da objetividade. Nesse movimento de ruptura, entende-se que “produzir sentido,
interpretar a significância, não é uma atividade puramente cognitiva, ou mesmo
intelectual ou cerebral, é o corpo, esse laço de nossas sensibilidades, que significa,
que interpreta” (DUARTE, 2000, p. 136). Do mesmo modo, o pensar não significa
apenas raciocinar, calcular ou argumentar, mas dar sentidos ao que somos, ao que
nos acontece (LARROSA, 2002), plasmando, assim, num dizer redundante, uma
experiência autobiográfica sensível.
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê! Esse trecho extraído de um
poema do Manoel de Barros configura-se como uma metáfora para pensar a
formação do sujeito. Um movimento que perpassa pelo ver (o olhar), o rever
(relembrar) e o transver (imaginar). Ou num outro modo de dizer: a constituição do
professor-leitor se inscreve numa história de vida, em uma trajetória pessoal, social e
cultural, perpassa por um processo do retorno do sujeito sobre si – o ver – o olhar
para si mesmo, para suas vivências, acontecimentos; o rever – relembrar fatos,
contextos e situações; e o transver – ver-(se) de outro modo, reinventar-(se),
transformar o vivido em experiência, mudar percepções, concepções e o sentimento de
mundo, criar e recriar-se.
Interessa pensar a constituição leitora como um processo que envolve
sentidos, lembranças, memórias, acontecimentos e afetos, demarcando trânsitos e
deslocamentos entre o texto lido e o contexto do sujeito, entre a experiência
provocada pelo texto e a própria experiência do leitor-professor. Experiências que se
dão no movimento da vida, da existência humana, nos processos formativos do
leitor-professor.
377
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Neste percurso, algumas perguntas investigativas emergem: Como a
experiência sensível de leitura constitui e afeta o leitor-professor? Como a leitura se
articula a vida e a existência? Como a leitura repercute na constituição do sujeitoleitor-professor e nas ressonâncias que produz na reinvenção de si e da realidade?
Ou ainda outras reflexões: na contemporaneidade, qual o lugar da experiência,
da sensibilidade, da subjetividade, da estesia, do estético, da imaginação criadora, da
metáfora, da invenção, do devaneio? No cenário contemporâneo, marcado pelo
excesso da informação e da opinião, do pragmatismo, da falta de tempo, do excesso
de trabalho, que experiências sensíveis de leitura são possíveis?
O Leitor-professor contemporâneo quando experimenta a fruição da
sensibilidade faz um furo no sujeito da Ciência Moderna, um furo no rigor método
(lógico) em relação ao ato de ler. Quem seria esse sujeito-leitor-professor? Um sujeito
epistêmico, com subjetividade? Um sujeito de sensibilidades? Um sujeito
fragmentado que enuncia vários eus para dizer de si? Um sujeito que inventa para se
conhecer? Limites borrados, porosidade das fronteiras. Não mais na perspectiva de
378
um sujeito que se mostra pleno, verdadeiro, essencializado, completo (CORDEIRO,
2008). Quer dizer: uma autobiografia que não acontece apenas na ordem dos
acontecimentos cronológicos e lineares, até porque a vida vivida não acontece assim.
O sujeito sai da lógica de uma ordem temporal, psicológica, faz rasuras de si
(CORDEIRO, 2008). Deixa um vazio.
Essa mirada epistemológica demarca rupturas: a (escrita da) vida não como
uma narrativa sistemática, conforme o modelo canônico de uma biografia. Isto
estabelece, de algum modo, relações com discussões que foram tecidas na aula da
disciplina “Abordagem (auto)biográfica e formação de professores/leitores14”,
especificamente da noção de biografema proposta por Barthes. Essa perspectiva
ampliou meu horizonte compreensivo sobre a vida/experiência narrada/escrita:
porque não se trata mais de pensar a vida apenas numa concepção majoritária de
biografia – uma escrita sistemática, linear, histórico-cronológica, mas de pensá-la
também desde a perspectiva da pulverização, da dispersão, da fragmentação e da
incompletude do sujeito, ou: vidas que se engendram e tornam a biografia sempre
14
Quando da minha participação como aluno ouvinte, no PPGEduc, UNEB.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
aberta a novos sentidos e significações: o eu é uma invenção constante em seu devir
(FIGUEREIDO, 2013).
A leitura – leia-se a constituição do leitor - para além de um ato racional,
meramente cognitivo, ou de apropriação teórica e conceitual; para além de um modo
de vida contemporâneo – prático e utilitarista - que dá visibilidade a informação. A
perspectiva é ampliar a noção de leitura centrada num processo lógico-formal de
compreensão e interpretação, para dá vazão à instância do simbólico, ao percurso
subjetivo e singular do leitor, pela via do saber, da narrativa, da sensibilidade e do
imaginário. A leitura como experiência sensível 15, como um processo mais humano,
mais encarnado: o existir humano, do ser-estar sujeito no mundo.
Nesse jogo de se enfatizar o caráter problemático e experiencial da leitura,
impõe-se a necessidade de desnaturalizar o saber do senso comum e o paradigma do
processamento da informação que restringe a leitura à decifração e à compreensão do
texto escrito (KASTRUP, s.d).
Conforme ressalta Benjamin (1987), a informação – como sendo uma nova
forma de comunicação – tem mais visibilidade na sociedade atual, o que provocou
uma crise na narrativa:
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto,
somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já
nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras:
quase nada do que nos acontece está a serviço da narrativa, e quase
tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em
evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos
como a Fraude, ou a Águia branca.) O extraordinário e o miraculoso
são narrados com maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação
não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como
quiser, e com isso o episódio atinge uma amplitude que não existe na
informação (BENJAMIN, 1987, p. 23).
Esta perspectiva, embora demarque sua singularidade, não desconsidera as múltiplas dimensões
que constituem o ato de ler: Leitura como decodificação; Leitura como prática social, Leitura como
uma ação política do homem sobre o mundo; Leitura como uma forma de sabedoria; Leitura como um
método; Leitura como actividade voluntária; Leitura como atividade terapêutica (CARLOS, 2009).
15
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A leitura enquanto experiência está para além da noção de leitura enquanto
aquisição de informação ou de acumulação. Está para além da perspectiva de um
exercício cultural ou pedagógico, ou do ócio. Centra-se na subjetividade do leitor: o
leitor está aberto em sua relação com o texto, vai ao encontro do texto, deixa se afetar,
transformar-se. No ato de ler, a vida se inscreve: ou seja, o leitor põe em jogo
processos autobiográficos que contribuem para significar o próprio texto ou mesmo
ressignificar o vivido.
Na leitura como experiência de formação deixamo-nos afectar
(afectos) pela vivência que o texto nos dá através da sua abertura:
trazemos para a nossa vida uma alteridade que nos interpela,
transformando-nos em escritores e leitores na nossa existência;
(re)escrevendo a vida (autobiografando-nos), fazendo obra mediante
fracturas e transgressão dos modelos imobilizantes no interior dos
quais quotidianamente vivemos. Transformando-se pela leitura, os
sujeitos abrem-se à transformação do mundo, à sua própria
configuração estética (CARLOS, p. 150).
380
A leitura seria, nesse contexto, um meio, uma possibilidade formativa para o
sujeito pensar e sentir por si mesmo, de maneira mais singular e autoral; ou ainda
como espaço de formação e transformação das sensibilidades; um encontro consigo
ou com a alteridade que o constitui (LARROSA, 2011).
O sensível na formação leitora pode se caracterizar, nesse contexto, como uma
forma de resistência ao excesso de informação e contra o desperdício da experiência
que constituiu a modernidade. Cabe ressaltar que a leitura enquanto experiência
sensível não se dá em todas as formas e atos de ler, até porque a leitura consiste
numa atividade com várias facetas; é complexa, plural e se desenvolve em várias
direções (MANCINI, 2013). Sendo assim, não configura todo o processo de formação
do leitor, mas é parte constitutiva da subjetividade leitora, potencializadora do
devaneio, do pensamento inventivo.
A perspectiva de investigar como o sensível constitui e afeta o leitor-professor
remete ao Elogio da Razão Sensível (MAFFESOLI,1998) no sentido de um paradigma
de ciência que agrega a sensibilidade, o cotidiano, a narrativa, a metáfora e o
imaginário. Assim, a leitura se mostra como experiência da singularidade e da
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
pluralidade, como abertura ao desconhecido, ao acontecimento da existência
(Larrosa, 2011), processo nem sempre possível de racionalizar, ou seja, de deixar de
fora emoções, memórias e devaneios.
O devaneio, na perspectiva de Bachelard (2009), seria esse gesto de voar fora do
real, de sair da rotineira noção de tempo e realidade, de suspender as certezas e de se
deslocar para outras dimensões afetivas, temporais e imaginárias. Esses movimentos
podem potencializar o aprofundamento da própria existência, no modo como a
leitura repercute na constituição do sujeito e nas ressonâncias que produz na
reinvenção de si e da realidade.
O leitor, numa relação mais livre, mais sensivelmente e subjetivamente
implicado com o texto, pode encontrar possibilidades de voar fora da asa: ou seja, de
escapar ao enclausuramento das fórmulas prontas. Isso seria, no dizer de Maffesoli
(1998, p. 29), um pensamento que permite entrever a emoção, o sofrimento, o cômico,
que é o próprio de uma vida que não se reconhece no esquema, preestabelecido, de
um racionalismo de encomenda (MAFFESOLI, 1998).
A ênfase posta sobre as experiências sensíveis é uma boa maneira de
reconhecer os percursos subjetivos e singulares que integram as histórias de leitoresprofessores, o que pode propiciar descobertas de múltiplos e inesperados caminhos
para a formação pessoal e profissional do leitor-professor (CORDEIRO, 2008).
De tudo, fica o aprendizado mais bonito: a gente carece não apenas de ler o
mundo ou as palavras no sentido de interpretar-compreender, a gente carece
também de desver o mundo, as palavras, para encontrar novas coisas de ver, novas
possibilidades de se dizer. Os deslimites da palavra dão ao leitor um novo jeito de olhar
o mundo, possibilitam um exercício de desautomatizar o olhar, a ação, e transformar
o real a partir de uma imaginação poética: transver o mundo, a realidade, a si
mesmo. Seria uma maneira de sair do enfado, de expulsar o tédio, de ampliar a
realidade? de reinventar a si mesmo e a vida? A gente nem carece de ser poeta para fazer
essas coisas: nas veredas da leitura, o ser-tão sensível.
REFERÊNCIAS
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
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fenômeno do educar. Salvador: EDUFBA, 2008.
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BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2013.
CARLOS, Elter Manuel. Palavramundo: a leitura como experiência de formação.
Dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação, Faculdade do Porto, 2009.
CORDEIRO, Verbena Maria Rocha. De caso com a leitura. Letras de Hoje, Porto
Alegre, v. 43, n. 2, p. 75-78, abr./jun. 2008
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DUARTE JUNIOR, João Francisco. O sentido dos sentidos: e educação (do) sensível.
Curitiba: Criar Edições.
382
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Santa Cruz, v.19, n.2, p.04-27, jul/dez , 2011.
MANCINI, Flávia Griep. O valor simbólico da leitura: cartas auto-biográficas de
leitores professores. Tese de Doutorado, Pelotas, 2013.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
Só dez por cento é mentira: a desbiografia oficial de Manoel de Barros. Direção:
Pedro Cezar. Produção: Pedro Cezar, Kátia Adler, Rafaela Treuffar e Lully Villar.
Roteiro: Pedro Cezar. Depoentes: Bianca Ramoneda e outros: Artezanato Eletrônico,
Vite Produções, Sarapuí Produções Artísticas, 2009.
UMA CIDADE DA MEMÓRIA E AS MEMÓRIAS DE SALVADOR NAS
NARRATIVAS DE CARLOS RIBEIRO
Milena Guimarães Andrade Tanure
PPGEL-UNEB
[email protected]
RESUMO
A presente pesquisa tem como objeto a produção literária de Carlos Ribeiro e
desenvolveu-se a fim de analisar como, a partir de representações do espaço urbano,
o texto literário desse escritor baiano é capaz de engendrar a leitura de memórias
subjetivas e coletivas. Partindo do conceito de memória, as considerações se
desenvolvem no intuito de inventariar esse mapa memorialístico a partir das
lembranças das personagens em uma cidade de Salvador da atualidade ou do
passado. Demarcando um dos espaços da cidade de Salvador que se deixa
representar em suas narrativas, analisamos o centro antigo da cidade. A análise
fundamenta-se em autores, sobretudo, das áreas de antropologia e sociologia que
analisam a categoria de memória. Para a categoria de nostalgia, tem-se a pesquisa de
Marcos Natali. Tem-se, ainda, a historiadora Pesavento, cujas pesquisas voltavam-se,
em especial, para a relação entre história, cidade e tempo. Pesavento coloca em cena
uma natureza significativa dos espaços urbanos que está para além da materialidade
física e, desse modo, estabelece uma clara relação entre história e literatura. Assim, a
análise da obra de Carlos Ribeiro desenvolve-se a partir do entrecruzamento de tais
leituras a fim de evidenciar o modo como a narrativa literária é capaz de revelar a
relação entre memórias urbanas e humanas.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Memória; Carlos Ribeiro; Cidade de Salvador
APRESENTAÇÃO
Carlos Jesus Ribeiro, nascido em Salvador no final da década de 1950, é um
dos expressivos escritores baianos da contemporaneidade que têm a sua narrativa de
vida relacionada com a narrativa da cidade que se faz representar em sua produção
literária. Tal afirmativa se deve, em especial, por um entrelaçamento que é possível
se estabelecer entre a trajetória e caminhos percorridos pelo escritor e as
transformações dos espaços da cidade de Salvador que se deixam ver em suas
narrativas.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Ainda criança, quando morava no Centro Histórico, mais precisamente no
Tabuão, Carlos Ribeiro estudou na Escola Santa Tereza, no bairro Santo Antônio
Além do Carmo. Em seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia (ALB),
Ribeiro (2007) destaca que foi nesse local que empreendeu os seus primeiros passos
no mundo das letras. Posteriormente, aos oito anos de idade, mudou-se com sua
família para o bairro de Itapuã, espaço marcante em suas narrativas e recorrente em
todos os seus livros em que a cidade de Salvador se faz presente. Nesse bairro,
Ribeiro cursou o, à época, ginasial, no Colégio Estadual Lomanto Júnior, instituição
de ensino na qual seu pai era vice-diretor e professor de português e francês.
Novamente no Centro da cidade, nos bairros de Nazaré e na Praça da Piedade,
concluiu o então segundo grau, nos colégios Central e Águia.
Os espaços da cidade de Salvador se fazem expressivos em quase todas as
suas narrativas. Esses nos quais o escritor empreendeu as suas primeiras caminhadas
e vivenciou significativas experiências se revelam ainda mais marcantes em seus
contos e romances. O Centro Histórico em que morou no início dos anos 1960, por
384
exemplo, representa o início de uma trajetória ficcional, conforme afirmou Ribeiro
(2002, p.229) em texto de exposição da série Com a palavra o escritor: “Muito tempo
antes de sequer sonhar em ser um escritor, eu já construía naquele espaço acanhado
do apartamento, no Taboão, a minha obra, que era o meu próprio mundo, um
mundo de horizontes largos e luminosos [...]”. A esse mesmo espaço que é revisitado
e recriado em tantas de suas narrativas, Ribeiro retornou anos depois e a ele custou
crer que naquele local decadente de paredes e pátios sujos coubessem tantas
maravilhas.
Ao relatar essa melancólica lembrança, Ribeiro (2002) faz alusão a uma
passagem do livro Terra dos homens, de Exupery, na qual se retrata o parque em que
se costumava brincar quando criança e se constata a impossibilidade de se voltar
àquele espaço, uma vez que seria preciso não retornar ao parque, mas à própria
infância. É por essa impossibilidade de reviver os espaços e experiências de um
tempo passado, representados em muitas de suas memorialísticas narrativas, que
Ribeiro (2002, p.229) afirma:
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Para falar de mim, preciso voltar àquele mundo maravilhoso que
entretanto se perdeu para sempre (digo esta palavra com reservas,
pois, como Ulrica, personagem de Borges, também penso que
“sempre é uma palavra que não é permitida aos homens”). E, como
não posso reencontrar aquele “tempo perdido”, só me resta, também
agora, assumir essa ficção que teço sobre mim mesmo, procurando
convencer-me – e a vocês – de que ela é real.
Ribeiro (2002) relata que, no meado dos anos 1960, quando sua família se
mudou para o bairro de Itapuã, começou a fazer as primeiras anotações em cadernos
nos quais registrava vivências do dia-a-dia. As fantasias e realidades do mundo dos
homens se faziam representar no papel, assim como as paixões amorosas que vieram
e, de modo ainda embrionário, a realidade política e social do país. Nesse sentido
Ribeiro (2002) afirma que nesse período ainda não tinha conhecimento das
atrocidades oriundas da ditadura militar e acreditava que o Brasil era “um país que
vai para frente”1. Somente anos depois o escritor se deu conta que era ele também
vítima de um massacre silencioso, uma vez que teve de enfrentar, assim como grande
parte de sua geração, um inimigo mais insidioso: a alienação e ignorância impostas
por aquele sistema opressor.
Como formação profissional, aos 17 anos, não pensava em ser escritor, mas
tinha a noção de que o seu futuro se atrelava ao uso da palavra (RIBEIRO, 2002).
Optou por cursar jornalismo na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), tendo concluído a graduação em 1981. Em toda sua narrativa é
possível perceber o modo como o ficcionista é marcado pela sua constituição de
jornalista, sendo por esse motivo que o escritor, amigo e confrade de Academia,
Aleilton Fonseca (2002, p.222-223) afirma:
Através de seus artigos, crônicas e contos publicados em livros,
revistas e jornais, podemos observar que as suas atividades literárias
e jornalísticas se interpenetram, de maneira que podemos sentir a
presença do escritor no texto jornalístico e vice-versa.[...] Mas Carlos
não é simplesmente um jornalista que se tornou escritor. Ao
contrário, parece que a tendência para a literatura que o levou à área
da comunicação.
Ainda sobre a sua formação profissional, é relevante destacar que Carlos
Ribeiro fez mestrado e doutorado, também na UFBA, mas no Instituto de Letras,
voltando-se para a área da Teoria Literária e desenvolvendo os seus trabalhos a
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
partir da análise da lírica e da crítica social na obra do também escritor e jornalista
Rubem Braga.
Um sujeito contemporâneo e suas inquietações se fazem presentes na obra de
Ribeiro, quer sejam nos contos ou nos romances. Por esse motivo Lígia Telles,
ensaísta e professora da UFBA, na orelha do livro O chamado da noite, localiza a
narrativa de Ribeiro em uma dada tradição ficcional:
Carlos Ribeiro dá continuidade à tradição ficcional que situa o
homem no cotidiano, sozinho em meio à multidão, dela extraindo, ao
perambular pelas ruas de sua cidade, a matéria poético-narrativa,
conforme o fizeram Baudelaire e Poe. Na voz que conta minúsculas
aventuras, os heróis das grandes narrativas são substituídos pelos
seres comuns que se movimentam quer pelo espaço exterior da
cidade, quer pelo espaço interior da memória. Personagens
vislumbrados pelo narrador no transitar diário da cidade grande – no
caso, a cidade de Salvador – duram o tempo em que são capturados
pelo olhar; personagens recuperados pela memória do narrador
persistem, a despeito do escoar do tempo; personagens que habitam
seus sonhos atestam um mundo de desejos projetados. Através de
todos eles, delineia-se o perfil de um sujeito, na expressão da sua
subjetividade, razão pela qual as pontas do território narrativo e do
território lírico se tocam (RIBEIRO, 1997).
386
Nesse sentido, é válido sinalizar, ainda, que suas narrativas estão permeadas
de aspectos memorialísticos que perpassam tanto por memórias individuais quanto
coletivas. Cabe pensar, portanto, de que forma se apresenta para o leitor de Carlos
Ribeiro uma escrita da memória que é subjetiva, mas também coletiva, uma vez
sendo uma escrita da memória da cidade de Salvador.
AS MEMÓRIAS DE UMA CIDADE
O espaço da escrita da memória, seja ela autobiográfica ou não, é também o de
criação e, nesse sentido, na publicação Com a palavra o Escritor, Ribeiro, ao afirmar
que o relato sobre a sua constituição como escritor faria com que ele precisasse
percorrer não só os caminhos da memória, mas também os do esquecimento, revela
ter consciência disso.
Ao procurar reconstituir os elementos que compõem a minha
história, no trato com a palavra escrita, selecionando-os,
discriminando-os, reorganizando-os, deparo-me com um território no
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
qual procuro discernir, muitas vezes inutilmente, as fronteiras entre a
realidade e a imaginação. Rememorar, para mim, é, portanto, mais
que qualquer outra coisa, tomar consciência do esquecimento, como
um viajante que só tem consciência de que não conhece determinada
região ao percorrê-la (RIBEIRO, 2002, p.228).
No processo de criação em que o lembrar e o esquecer se relacionam, Ribeiro
(2002) relata como uma de suas primeiras lembranças remete a um dos dias passados
no antigo apartamento em que morou no Taboão, Centro Histórico de Salvador, nos
anos de 1960. Na lembrança, retoma o seu antigo quarto e um dia em que um ruidoso
som o levou à cozinha na qual sua mãe e a tia preparavam ago em um liquidificador.
Ribeiro (2002) revela que, anos depois, sua tia lhe havia dito que naquela época ainda
não havia liquidificador na casa, fato esse que o surpreendeu ao constatar que uma
das suas primeiras e mais marcantes lembranças se relacionava com algo que não
existiu. Como afirmou, espantou-se ao perceber que uma das mais antigas imagens
da sua memória tratava-se de uma ficção, uma invenção. É em razão dessas
constatações que Ribeiro (2002, p.229) diz: “Talvez possa afirmar, com razoável grau
de certeza, que a minha ficção é o resultado da confluência de uma memória infiel
com uma imaginação um tanto excessiva”. A partir dessas considerações podemos
considerar uma escrita da memória um texto ficcional, assim como o texto ficcional é
um escrita de memorialística.
A análise da produção literária do escritor, para além de ater-se ao que há de
real no texto ficcional, evidencia, não apenas memórias particulares do narrador ou
personagem, mas o modo como a produção de Ribeiro se relaciona com a própria
constituição e modificação de Salvador e como as memórias subjetivas se entrelaçam
com a memória da cidade e demais cidadãos que nela constituíram suas lembranças.
Na obra de Carlos Ribeiro é possível identificar uma escrita de si que, pela
representação da cidade – lugar de diversas vivências – também se constitui uma
escrita de memórias coletivas. Os seus contos e romances colocam em cena becos,
casarões e ruas que apresentam uma simbologia diretamente associada às vivências
experimentadas ao longo do curso da história urbana e da vida dos seus cidadãos. É
válido destacar, assim, que o espaço ganha a sua natureza significativa a partir das
situações que são nele vividas.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Pensando a construção do lugar e da subjetividade humana, Duarte (2002, p.
75) afirma:
A construção dos lugares é rica pois não diz respeito às pedras, mas
às suas escolhas, sua organização, sua finalidade e sobre o amálgama
etéreo que as une. Assim como a casa pode ser vista como síntese do
processo de construção de um lugar e sua similaridade com a
construção psicológica de seu construtor, a apropriação de espaços
urbanos, potencialmente constituídos por um número maior de
elementos, e, principalmente vivido coletivamente, faz-se pela
vivência de seus lugares, que são construídos pelo uso.
Tais espaços construídos pelo uso são retomados por Ribeiro e não colocam
em cena locais constitutivos apenas de suas memórias, mas espaços que, de algum
modo, dizem respeito às narrativas memorialísticas de diferentes sujeitos que se
enlaçam por um mesmo eixo central: a representação de espaços significativos em
suas vivências.
A marca da cidade se faz presente em seu texto de diferentes formas. Nesse
sentido, em seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia (ALB), Ribeiro
388
evidencia “que, em essência, permanece o menino que formou sua personalidade
num mundo especial: a cidade de Salvador, Bahia”. (RIBEIRO, 2007, p.3). É essa
cidade que se encontra marcante em suas narrativas. Ainda em tal discurso afirma:
É nesta cidade privilegiada, nesta cidade que amo como se cada uma
das suas curvas, pátios, varandas, colinas, sacadas, praias, dunas,
árvores e esquinas, de alguma maneira misteriosa, fizessem parte de
mim, que me flagro como alguém que subitamente percebe ter vivido
muitas vidas. De cada uma delas pode-se trazer uma imagem: um
quarto minúsculo e infinito, num velho apartamento do Centro
Histórico, iluminado por réstias de luz, num remoto final de tarde, no
qual um menino encontra-se, solitário, entre chuvas de flechas e
répteis pré-históricos vagando entre as mobílias da sala de estar; um
mar noturno, numa das 1001 noites míticas do bairro de Itapuã, de
onde sopra um vento fresco que sacode os coqueirais numa noite
qualquer dos anos 60; dunas alvas, tão remotas e improváveis, nas
quais nós, heróis e príncipes de um reinado sem dono, nos
lançávamos em aventuras mortais por entre túneis de mato e repastos
de cajus e pitangas, mangabas e tamarindos (RIBEIRO 2007, p.3, grifo
nosso).
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Na passagem, é nítida a percepção de como a constituição de si, a cidade e as
memórias se entrelaçam e constituem uma única coisa por meio do ato de narrar. Em
suas narrativas, a cidade antiga subsiste no homem contemporâneo do mesmo modo
como o homem do passado se vê em uma cidade em constantes processos de
modificação que lhe causam certo estranhamento. É por essa razão que Ribeiro revela
sua escrita como meio de retomar esses espaços do passado:
Cada dia fica mais distante aquele paraíso, da infância, aquele paraíso que, de
alguma forma, todos nós buscamos reencontrar, mesmo que, muitas vezes, não nos
demos conta disso. Aí está, pois, a razão de eu escrever: a de encontrar o caminho de
volta à Terra Prometida, ao Éden, à Shangri-La, numa caminhada construída com
símbolos, sonhos, invenção, memória e significados (RIBEIRO, 2002, p.236).
Em Ribeiro, o homem está na cidade assim como a cidade está no homem. Há
que se perceber, contudo, que isso não se dá apenas com aquele que, nas teias
narrativas, conta a si, mas com todos aqueles que, de algum modo, se relacionam
com os mesmos ambientes e, pela narrativa, rememoram espaços e as experiências
neles experimentadas.
Há que se destacar que, ao se representar os espaços físicos, constituem-se
espaços da memória que significam não pela sua própria existência, mas pelas
relações humanas que são nele travadas e as vivências que deixam marcas na própria
cidade e na memória. Nesse sentido, Gomes (1999, p. 24) afirma:
[...] indagar sobre as representações da cidade na cena escrita
construída pela literatura é, basicamente, ler textos que leem a cidade,
considerando não só os aspectos físico-geográficos (a paisagem
urbana), os dados culturais mais específicos, os costumes, os tipos
humanos, mas também a cartografia simbólica, em que se cruzam o
imaginário, a história, a memória da cidade e a cidade da memória.
Como elementos constitutivos do ser e do espaço, as lembranças do passado
são retomadas nos contos de Carlos Ribeiro com um tom nostálgico que é
característico em sua obra. Nessas retomadas memorialísticas, a cidade é apresentada
enquanto local em que foram vividas saudosas experiências, tanto individuais,
quanto coletivas. Nesse sentido, em entrevista concedida em 2008, relata: “Em 1981,
escrevi um livro de contos, Já vai longe o tempo das baleias, que retrata a vida dos
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
moradores no bairro de Itapuã”. Do mesmo modo, em entrevista ao jornal A Tarde,
em 1997, Ribeiro, falando de O chamado da Noite, publicado nesse mesmo ano,
comentou: “O livro enfoca um momento de minha própria geração e, como fui
bastante influenciado pelo cinema, tem muito de imagem, muitas citações de filmes,
muitos cortes que lembram o cinema” e acrescenta:
Os personagens do romance são seres oníricos, personagens fictícios, como
elementos de um sonho. Ao mesmo tempo, acrescento à história diversos elementos
de minha própria vivência, as passeatas universitárias do final da década de 70, a
perseguição política dos anos de ditadura, a alienação de toda uma geração, mas
tudo isso em um tom leve e até humorístico.
Como ele revela, a memória se faz presente em diversos contos do autor em
um jogo entre ficcional e real que vai compondo as suas narrativas. Assim, observase em Ribeiro um olhar sobre a cidade marcado pela nostalgia das vivências
inesquecíveis, sobretudo da infância e juventude vividos no centro histórico de
Salvador e no bairro de Itapuã, que são indispensáveis para se construir
390
simbolicamente os espaços urbanos. Nesse retorno ao passado, por sua vez, tem-se
tanto a mistura entre o menino que já se deixou de ser e os espaços urbanos de
outrora, quanto o sujeito contemporâneo que, recordando espaços da memória,
apresenta ao leitor os tecidos urbanos que constituem suas lembranças.
Tais lembranças, uma vez tratando de práticas e lugares socialmente
compartilhados, não dizem respeito, única e exclusivamente, a memórias
individuais. Percebe-se, ainda, que a representação dessa relação entre a memória
coletiva e as memórias subjetivas recupera características singulares dos espaços
físicos capazes de torná-los significativos ou retratar o quanto significativo são ou
foram.
O CENTRO DE UMA CIDADE DA MEMÓRIA
Representativo de uma imagem de Bahia, o centro antigo, espaço onde surgiu
a cidade de Salvador, passou por diversos processos de modernização que deram
origem à formação social e espacial que hoje se apresenta. Milton Santos (2008), em
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
pesquisa sobre o centro histórico de Salvador, observou, já no final da década de
1950, que, no passado, o cérebro e o coração da cidade encontravam-se nesse espaço.
Ao se fazer a leitura de tal produção de Milton Santos, sobretudo ao localizá-la
cronologicamente, não há que se falar que nesse período o centro antigo já tinha
perdido a sua importância central na cidade. Tal leitura se revela importante, aqui,
para que possamos observar as transformações que já ocorriam, sobretudo a partir da
década de 1940, e que, relacionadas a outros fatores, influenciariam na remodelagem
da cidade.
A princípio, Santos (2008) apresenta um centro que, sobretudo por ser o
espaço em que se constituíam as dinâmicas políticas e econômicas do Estado,
delineou-se como espaço de suma importância para a Bahia. No entanto, ao destacar
as transformações pelas quais o centro antigo vinha passando, Santos (2008, p.20)
apresenta de que forma o crescimento da cidade naquele período “e a expansão de
suas atividades conduziram à modificação da fisionomia do centro, provocando o
aparecimento de grandes edifícios, construídos nos espaços vazios, ou substituindo
velhas casas”.
Ao retratar o surgimento e a evolução desse centro, não há como se escusar de
revelar como, atrelado ao desenvolvimento e à construção de modernos prédios do
bairro do Comércio, tem-se um processo de decadência de estruturas históricas em
nome da modernização. Assim, percebe-se que “[...] forças de transformação e forças
de resistência entram em luta e dão como resultado seja a criação de uma paisagem
inteiramente nova, seja a transformação ou adaptação da paisagem antiga, que,
então, se degrada” (SANTOS, 2008, p.30).
Desse modo, é preciso pensar as transformações do centro antigo a partir da
existência de processos de modernização que dão origem a novas relações com
antigos espaços urbanos. A partir disso, percebe-se como a cidade toma novos
rumos, modernizando novos espaços e deteriorando espaços históricos.
No início da década de 1960, Ribeiro viveu nesse centro, tendo morado no
Pelourinho, estudado no bairro do Carmo e, em anos seguintes, após período em que
morou do bairro de Itapuã, concluiu seus estudos em escolas localizadas no bairro de
Nazaré e na Praça da Piedade. Diante de seu contato com essa antiga centralidade e
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
sua atuação jornalística e literária pela preservação dos espaços naturais e
culturalmente relevantes, Ribeiro tomou para si o dever de resguardar o centro
antigo em sua antiga forma, assim como as práticas sociais que se fizeram marcantes.
Dessa forma, as representações desse espaço revelam vivências inesquecíveis,
sobretudo da infância, que são indispensáveis para se construir simbolicamente os
espaços urbanos.
Nesse momento, analisaremos qual o Centro Histórico que se faz representar
nas narrativas de Carlos Ribeiro. Ao falar da cidade de Salvador na literatura baiana,
Antônio Torres coloca Ribeiro no rol dos contemporâneos ficcionistas que estão
pintando “as novas pulsações da cidade” e que representam “uma Salvador sem
farofa e sem dendê”. No entanto, questionaremos isso ao longo das análises que se
seguem, uma vez sendo possível vislumbrar um constante rememorar que, pela
narrativa, reconstrói o Centro Histórico da cidade da Bahia com seus monumentos,
cinemas, lojas e, sobretudos, práticas sociais.
Em suas representações do centro antigo, Ribeiro lança um olhar sobre a
392
cidade marcado pelo tom nostálgico. No conto “O visitante invisível”, primeiro de
Contos de Sexta-feira (2010), o tom nostálgico se faz emblemático. É perceptível na
narrativa que a visão do eu é formada por uma emotividade que tenta, pela
memória, recuperar as suas vivências da infância, uma reaproximação espaçotemporal com aquilo que foi significante.
No que tange ao uso do termo nostalgia na análise aqui feita, é válido
destacar que Marcos Piason Natali (2006), em sua obra A política da nostalgia: um
estudo das formas do passado, apresenta tal categoria enquanto conceito que passou por
processos de transformações, mas que teve a sua origem relacionada aos estudos
médicos. Ao tratar do modo como os estudos da medicina objetivavam explicar
sensações e características há muito conhecidas, Natali (2006, p. 18) afirma que, em
1688, o médico suíço Johannes Hofes, a fim de descrever a dor que era provocada
pela impossibilidade de se voltar para casa, fez a união das palavras gregas nostos
(voltar para casa) e algos (sofrimento, uma condição dolorosa). Desse modo, percebese que, a partir da necessidade de nomear uma determinada entidade clínica,
inventou-se a palavra nostalgia.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Há que se perceber, ainda, que a nostalgia estava, no princípio, associada a
sensações de dor causadas pela ausência de alguém ou pelo distanciamento de
algum lugar. Natali (2006) destaca, contudo, que, com a gradativa transformação do
conceito, tem-se o sentimento nostálgico atrelado, também, à distância temporal.
Desse modo, a ampliação do conceito foi
[...] fazendo da nostalgia não apenas o sofrimento causado por uma
separação física, seja da terra natal ou de um ente querido, mas
também uma dor provocada pela distância temporal, pela passagem
do tempo. Assim, o transtorno podia ser suscitado pelo falecimento
de um ser querido ou pela transformação irreparável de um lugar
conhecido, e desta forma já não era necessário viajar ou imigrar para
ser acometido pela doença; a transformação de sua vida cotidiana já
era suficiente para provocar nostalgia até naqueles que jamais haviam
deixado sua terra natal. O que o sujeito lamentava, nesses casos, era a
transformação do presente em passado, em meio a um período de
crescente industrialização e urbanização (NATALI, 2006, p. 28)
Ao discorrer sobre o poema Le Cygne, de Baudelaire, Natali (2006, p. 35)
aborda sobre o modo como a voz poética que se enuncia reivindica para si o direito
ao sentimento de nostalgia.
Paris muda! mas nada em minha nostalgia
Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.
(BAUDELAIRE, 1985, p. 327)
Na passagem em destaque, afirma-se a existência de inúmeras novidades
urbanas, no entanto, nenhuma delas é capaz de superar o sentimento nostálgico. No
poema,
A cidade — sua arquitetura, suas ruas, seus bairros — pode ser
transformada, mas a memória do sujeito alega ser mais resistente que
as pedras e não se desintegra com a reacomodação material da
cidade. Morta a velha Paris, o parisiense descobre-se exilado em sua
própria cidade, atormentado por recordações do que já não é, sem
sequer ter deixado o seu lar. (NATALI, 2006, p. 35-36)
Isso se mostra presente na obra de Ribeiro. Na narrativa em análise, é possível
aferir um tom de angústia e um retorno cíclico ao espaço em que se viveu expressivas
experiências. Isso é identificável, por exemplo, a partir da presença do mesmo trecho
393
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
no início e no final da narrativa: “Escuta. Façamos de conta que você possa tornar-se
invisível. E que possa fazer uma viagem no tempo. Você desce, agora, a ladeira do
Pelourinho, vê? É um dia qualquer de 1963” (RIBEIRO, 2012). A repetição nos remete
a um eterno retorno aos espaços que já não mais são como no passado.
Nas primeiras passagens do conto, é possível perceber a existência de um eu
ficcional que, marcado por um sentimento de nostalgia, tenta reconstituir as
vivências deixadas para trás pelas mudanças da vida e os lugares afetivos corroídos
pelas transformações da cidade. A princípio, no início do conto, apresenta-se para o
leitor o espaço a ser desvelado pelo retorno ao passado, o centro antigo da cidade do
Salvador.
394
Escuta. Façamos de conta que você possa tornar-se invisível. E que
possa fazer uma viagem no tempo. Você desce, agora a ladeira do
Pelourinho, vê? É um dia qualquer de 1963. O céu tem uma intensa
luminosidade avermelhada. Uma menina, com um vestido amarelo,
toca acordeom na janela de um sobrado. Um bêbado dorme na
calçada próxima à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Os
casarões são velhos e desbotados. Homens vestem roupas brancas.
Sinos tocam nos ares finos da velha Salvador. Você passa pela banca
de revistas. Desce a Rua Silva Jardim, no Taboão. Chega em frente ao
Plano Inclinado do Pilar. Um homem, com grande bigode grisalho,
bebe grapetti com o filho no bar que fica no andar térreo do edifício
Bola Verde. Ele compra doces e chocolates. É sábado e ninguém,
senão você, carrega um passado que ainda não existe. [...] Talvez por
isso quase se possam ouvir sussurros nas varandas e nas sacadas dos
casarios. (RIBEIRO, 2012, p. 21)
Observa-se, assim, que a voz que se enuncia no conto nos convida a um
passeio por vivências e espaços do passado. Como se percebe, já nas primeiras linhas,
a narrativa determina o centro antigo de Salvador como o espaço em que são
desvelados sentimentos e vivências.
O Pelourinho, bairro antigo e um dos mais emblemáticos do centro histórico, é
apresentado ao longo da narrativa com uma roupagem distinta da que lhe é ofertada
na atualidade. Não nos é evidenciado, assim, o Pelourinho abandonado – não apenas
no sentido de ignorado pelo poder público, mas pelo próprio povo baiano. O espaço
central não se apresenta, ainda, enquanto destinação quase que exclusivamente
voltada aos anseios turísticos.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Observa-se em Carlos Ribeiro, tanto neste conto quanto em outras narrativas,
um constante memorialismo que nos leva a questionar, senão constatar, a existência
de um choque entre o homem contemporâneo e o menino do passado diante da
cidade de hoje que apresenta os resquícios de outra época.
Ao se pensar essa escrita da memória presente no conto, percebe-se que a
retomada do passado, atrelada a uma leitura geral da obra de Carlos Ribeiro, permite
que se aponte tal elemento da narrativa como uma marca crítica e denunciativa. É
possível se afirmar que, retornar aos espaços do passado objetiva contrapor passado
e presente a fim de evidenciar o esvaziamento das funções que eram exercidas por
aquele espaço central. Na atualidade, o que cabe ao centro antigo é ocupar as
narrativas memorialísticas, uma vez que, de modo geral, ele está ausente no
cotidiano do cidadão baiano. Assim, “viajar, portanto, no passado, na tradição, é
transformá-lo, salvando-o do esquecimento, tornando-o produtivo: ramos viçosos”
(GOMES, 1994, p. 45).
No conto de Ribeiro, há uma relação entre as memórias urbanas e subjetivas.
Desse modo, apresenta-se para o leitor uma série de imagens que integram a história
da cidade, como a ladeira do pelourinho, a janela de um sobrado, a Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos, casarões “velhos e desbotados” e o edifício Bola
Verde. Revelam-se, ainda, elementos íntimos que apresentam as feições singulares do
núcleo familiar, como uma antiga geladeira GE, uma mulher que arruma um quarto,
um menino que brinca, livros na estante, “travessas de farofa de ovo com manteiga,
arroz, carne, leite, café e deliciosas fatias de parida” (RIBEIRO, 2012, p. 22). Os
tecidos da memória são responsáveis por entrelaçar a história subjetiva e urbana na
formação de um único corpo narrativo.
Citando a obra de Walter Benjamim, Infância em Berlim, Renato Cordeiro
Gomes (1994) nos apresente importantes relatos que evidenciam o modo pelo qual as
imagens benjaminianas tentam reconstruir a infância por meio dos “labirintos da
recordação”. O mesmo ocorre nas narrativas de Carlos Ribeiro.
Assim como na obra de Benjamin abordada por Gomes (1994), “O visitante
invisível” representa uma tentativa de, através do registro escrito, preservar a
memória da cidade – que, em verdade, está diretamente atrelada às vivências da
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
infância. Gomes (1994, p. 65) nos apresenta uma importante afirmação ao citar a
colocação de Bolle (1984, p. 3-5) sobre a memória e a cidade: “Recuperar o passado
significa: construir o sentido e o presente, tendo como arma de resistência a memória
afetiva, por meio da memória topográfica”. Em Ribeiro (2012), o que se coloca é
exatamente essa tentativa de se recuperar o passado por meio dos espaços que
constituem os tecidos da memória urbana e do personagem-narrador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O encantamento pela cidade se faz representar nas narrativas de Ribeiro a
partir de um processo de recriação de uma cidade e das memórias experimentadas
nesse espaço urbano. Há que se observar, ainda, a representação de um sujeito
contemporâneo que, envolvido pela modernosidade2, se espanta com os vazios
deixados pelas experiências do passado que não mais existem, como a segurança ao
se andar pela cidade e as relações subjetivas íntimas travadas nos múltiplos espaços
396
de convivências que não se restringiam ao fugaz e impessoal tempo vivido nos
shoppings Center. Assim, evidencia-se o homem inserido na contemporaneidade, mas
marcado e atento ao passado e que, em seu perambular pelas ruas, realiza o
inventário do que se perdeu em decorrência dos processos de modernização que se
impuseram à cidade.
Ribeiro possibilita que pensemos, desse modo, o homem em sociedade e as
relações sociais no mundo pós-moderno. Com sua literatura, o escritor toma para a si
a necessidade de combater um mundo reificado, denunciando-o por meio de suas
narrativas repletas de feições memorialísticas. As personagens, de modo geral,
apresentam-se atravessadas pelas transformações impostas pelo tempo, assim como
as modernizações que causaram mudanças irremediáveis aos espaços do passado.
Essas transformações colocam em cena um sujeito marcado pela memória que,
perambulando por espaços da cidade que não mantêm a mesma fisionomia, retoma
vivências experimentadas em um outro tempo. Assim, o tom nostálgico das
narrativas retrata, a partir da representação de Salvador, as perdas acumuladas,
sendo a cidade tanto o cenário dessas perdas como uma das perdas irrecuperáveis.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A pesquisa aqui apresentada, portanto, expõe a ligação entre a vida urbana e a
vida subjetiva no texto de Ribeiro a partir da representação da cidade e de um
homem mergulhado no mundo contemporâneo. Dessa forma, com uma linguagem
densa de poesia e humanidade, nos dizeres de Guido Guerra, a obra de Ribeiro
apresenta denso material da projeção da imagem urbana no texto literário.
É possível avaliar, portanto, que em Ribeiro um sentimento nostálgico se faz
representativo nas narrativas e produz uma imagem de espaços de Salvador que não
se oferecem apenas de modo saudosista ou desencantado, mas como meio de
assegurar a permanência daquilo que não se quer perder.
REFERÊNCIAS
DUARTE, Fábio. Crise das matrizes espaciais: arquitetura, cidades, geopolítica,
tecnocultura. São Paulo: Perspectivas, FAPESP, 2002.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência
urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
397
______. A cidade, a literatura e os estudos culturais: do tema ao problema. Ipotesi (UFJF),
Juiz de Fora, v. 3, p. 19-30, 1999
NATALI, Marcos Piason. A política da nostalgia: um estudo das formas do passado.
São Paulo: Nankin, 2006.
RIBEIRO, Carlos. Já vai longe o tempo das baleias. Fundação Cultural do Estado da
Bahia, 1981.
_____. O chamado da noite. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.
_____. Com a palavra o escritor. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2002.
_____. Lunaris. Salvador: EEP Publicações e Publicidade, 2007.
______Discurso de Carlos Ribeiro na ALB. Salvador, 31 de maio de 2007
Disponível
<<http://www.carlosribeiroescritor.com.br/especial_discurso.htm>>
em:
_____. O visitante noturno: contos. Salvador: SECULT, 2000. FUNCEB, EGBA, 111
p.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
_____. Contos de sexta-feira e duas ou três crônicas. Salvador: Assembleia
Legislativa do Estado da Bahia, 2012.
_____Entrevista a Bela Marchi. Salvador, novembro/2008
Disponível
em:
http://www.carlosribeiroescritor.com.br/novo/fortunacritica/entrevista-a-bela-marchi/
Acesso em 20 ago. 2014
_____Entrevista Cultura: Carlos Ribeiro. Entrevista. Salvador: A Tarde Cultural –
26/4/1996.Disponível em: http://www.carlosribeiroescritor.com.br/novo/fortunacritica/entrevista-cultura-carlos-ribeiro/
Acesso em: 20 ago. 2014
SANTOS, Milton. O centro da cidade do Salvador: estudo de geografia urbana. 2ª
ed. São Paulo: Editora da Universidade da São Paulo; Salvador: Edufba, 2008.
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A LEITURA DE MUNDO E A FORMAÇÃO DE LEITOR QUE FORMA LEITOR
Uma experiência de reflexão sobre a formação do sujeito leitor no curso de
pedagogia
Mônica de Santana Dias
Graduanda do curso de Pedagogia do DEDC I –UNEB
E-mail:[email protected]
Rosemary Lapa de Oliveira
Professora Adjunta do DEDC I - UNEB
E-mail: [email protected]
RESUMO
Este trabalho visa relatar a minha vivência como leitora, tendo em vista que a leitura
vai além dos códigos linguísticos, considerando a “leitura de mundo” um dos
primeiros atos de ler. Esse texto memorialístico é fruto da atividade de uma prática
referendada desenvolvida pela professora Rosemary Lapa de Oliveira, no
Componente Curricular do curso de Pedagogia Referencial Teórico Metodológico de
Língua Portuguesa. Por meio dele, pude refletir sobre minha formação como leitora,
assim como sobre minha futura práxis pedagógica. Diante disso, o presente relato
aborda desde a compreensão da leitura de mundo que ocorre antes da decodificação
dos códigos linguísticos, em um processo de escuta das lendas contadas por meus
familiares no interior da Bahia sobre o homem que se transforma em lobisomem e,
depois, a percepção do que era narrado e os contextos de acontecimento do texto:
tanto o real quanto o virtual. As leituras realizadas entre as lendas e o contexto social
foram essenciais no momento de aprender a ler, pois hoje percebo que considerava a
leitura dos códigos linguísticos um complemento da interpretação que já tinha do
meu contexto. Aprendi a reconhecer as letras com o subsídio da minha mãe, isso
reforça a importância da família no processo de ensino e aprendizagem das crianças,
já com o conhecimento dos códigos linguísticos, nasceu o interesse pelas leituras das
revistas de história em quadrinhos. Logo, ao perceber o meu encantamento pelos
gibis, por ter enredos que faziam parte da minha infância, a minha mãe
disponibilizou-me as coleções dessas revistas, o que possibilitou conhecer
personagens que expressavam os mesmos sentimentos e emoções que eu tinha. Essas
histórias em quadrinhos me estimularam a buscar outras obras literárias como os
romances que fizeram parte da minha adolescência, sendo que nesse período os
acessos aos livros ocorriam por causa da presença das bibliotecas comunitárias
localizadas nos bairros, as quais disponibilizavam aos seus frequentadores o
empréstimo as variadas obras que para mim foi mais um incentivo no processo de
formação como sujeito leitor. Assim, nesse processo de recordação dos meus
momentos de leituras, percorrendo desde a infância até o início do curso de
Pedagogia, pude refletir sobre a relação do ato de ler com a minha futura ação como
pedagoga. Logo, quando adentrei no curso de licenciatura em Pedagogia, tive um
encontro com as ideias defendidas por Paulo Freire que desvenda uma pedagogia
que posiciona o sujeito como autor de sua história, contribuindo para a formação
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
crítica sobre a realidade que o cerca e também com as técnicas de ensino de Célestin
Freinet, cujas propostas são vivenciadas dentro do ambiente escolar, como as aulas
passeios, que são pautadas na convivência dos educandos com a sua comunidade.
PALAVRAS CHAVES: Escrita memorialística; História em quadrinhos; Bibliotecas
comunitárias.
1. APRESENTAÇÃO
Este trabalho visa relatar a minha constituição enquanto leitora, tendo em
vista que a leitura vai além dos códigos linguísticos, considerando a “leitura de
mundo” um dos primeiros atos de ler, concordando com o que diz Freire (2011), pois
“a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, logo a nossa formação enquanto
leitor ocorre antes da leitura dos códigos linguísticos em um complemento ao ato de
ler as palavras.
Esse texto memorialístico foi fruto da atividade em sala de aula proposto
como prática referendada desenvolvida pela professora Rosemary Lapa de Oliveira,
400
no
Componente
Curricular
Referenciais
Teórico-Metodológicos
de
Língua
Portuguesa, do curso de Pedagogia que impulsionou os discentes dessa licenciatura a
relerem o texto de Freire (2011) A importância do ato de ler e, através dele
rememorar sua história desde a infância até a entrada no curso superior em uma
reflexão sobre como se constituíram enquanto leitores e mediações pretendem
desenvolver para auxiliar o processo de constituição de leitor em seus estudantes.
A prática concebida pela professora fez-me retomar memórias de uma infância
que com as tarefas do cotidiano já não tinha tempo para pensar, considerando-se que
nem sempre como educadores temos a possibilidade de repensar em nosso
desenvolvimento de leitor desde a infância para incrementar nossas aulas e foi
justamente durante os momentos que refleti sobre minha história, em especial a de
leitora, que pude pensar em minha prática como futura docente.
Durante as aulas, eu e meus colegas falamos sobre nossas vivências enquanto
leitores tendo como base o capítulo I do livro “A importância do ato de ler” escrito
pelo autor Freire (2011), o qual relata a sua experiência com as leituras ao repensar
em sua constituição enquanto leitor, considerando a interpretação do contexto social
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
uma “leitura de mundo” atitude que as crianças conseguem realizar antes da leitura
de palavras. Já com o domínio dos códigos linguísticos, a interpretação dos fatos do
cotidiano passa a contribuir para ampliação do conhecimento e como em um ciclo
essas leituras das palavras escritas possibilitam a ampliação do conhecimento de
mundo em um processo de enleituramento, segundo destacou Oliveira (2015). Nesse
circuito da leitura, o sujeito quanto mais contatos com variadas formas de textos,
maior será seu conhecimento de mundo, sendo que a medida que for praticando o
ato de ler, ativa os saberes já adquiridos em situações anteriores e com isso
constroem experiências com leitura.
2. MINHA CONSTITUIÇÃO COMO LEITORA
Deste modo, esse relato narra desde a compreensão da leitura de mundo, em
um processo de escuta das lendas contadas por meus familiares no interior da Bahia
até a percepção do que era narrado e os contextos de acontecimento do texto: tanto o
real quanto o virtual. Pois de acordo com Koch (2014) o conhecimento relacionado às
vivências pessoais permite a produção de sentido. Por isso, considero que as leituras
realizadas entre as lendas e o contexto social foram essenciais no momento de
aprender a ler, visto que hoje percebo que considerava a leitura dos códigos
linguísticos um complemento da interpretação que já tinha do meu contexto.
Concordando com Freire (2011, p.11) “a decifração da palavra fluía naturalmente da
‘leitura’ do mundo particular”. Quando esse autor iniciava seu processo de
alfabetização, demostrou que a leitura de mundo contribuiu no desenvolvimento da
aprendizagem dos códigos linguísticos.
Depois desse período, com meus avós no interior da Bahia, viajei para São
Paulo e com o subsídio da minha mãe aprendi a reconhecer as letras. Seguidamente,
comecei a ir para a escola e com a autonomia da leitura despertou-me o interesse em
ler as revistas de histórias em quadrinhos (HQs), as quais, segundo Vergueiro (2010),
são meios de comunicação consumidos em todo o mundo e apreciadas por crianças e
jovens. Logo a minha mãe percebeu o meu encantamento pelos gibis, por conter
enredos que faziam parte da minha infância, e disponibilizou-me as coleções dessas
401
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
revistas, o que me possibilitou conhecer personagens que expressavam os mesmos
sentimentos e emoções que eu tinha em minha infância, valorizando esse período da
minha vida.
De acordo com Ariès (1981), no período medieval, não havia a descoberta da
infância, sendo que as crianças eram visualizadas como um adulto em miniatura, isso
deixa evidente que as peculiaridades das crianças não eram respeitadas. Com a
evolução afetiva no espaço familiar, essas relações promoveram uma ampliação no
conhecimento do que seria a infância, o que contribuiu para criação de objetos e de
literatura direcionadas para as crianças. Portanto, os gibis com sua linguagem
infantil, foram um incentivo ao ato ler e a presença da minha mãe e avós reforçam a
importância da família no processo de minha aprendizagem ainda criança.
Essas leituras das histórias em quadrinhos me estimularam a buscar outras
obras literárias como os romances que fizeram parte da minha adolescência, por que
essa literatura contém informações diversas que direciona o leitor a pesquisar novos
dados a fim de compreender o que foi lido anteriormente nas HQs. Para Vergueiro
402
(2010), a leitura de revistas em quadrinho pode contribuir para formação de leitores,
desenvolvendo hábitos de leitura de outros gêneros. Visto que, ao iniciar a leitura
por texto que consideram agradáveis, como as HQs, as crianças podem sentir mais
interesse por buscar leituras de variados livros e em outras revistas.
Após alguns anos, retornei a Salvador e imediatamente tive contato com as
bibliotecas comunitárias que se localizavam no bairro em que residia, as quais foram
essenciais para o meu desenvolvimento enquanto leitora das obras literárias
brasileiras na adolescência, pois foi à ocasião em que tive boas experiências de leitura
com obras de ficção e os mais belos romances, hábito que adquiri com as leituras das
revistas em quadrinhos na infância que revelam ser de grandes valia nesse período
da minha vida.
Essas bibliotecas comunitárias ficavam tão próximas à minha casa que eu
podia ir andando até cada uma delas. A primeira localizava-se ao lado de uma escola
pública e era administrada por uma igreja e a segunda, a biblioteca Jorge Amado,
ficava localizada no caminho que eu passava para ir à escola. Fui informada da
existência dessas bibliotecas por colegas da sala de aula, logo me inscrevi para
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
receber a carteira de empréstimo para livros e me tornei figura assídua nesses locais.
Diante disso, considero que a mediação dos meus colegas de classe mostrando–me o
caminho para esses espaços de leitura contribuiu para minha constituição enquanto
leitora, pois ampliaram meus conhecimentos sobre a literatura.
Em relação à escolha dos livros, apreciava variados tipos de obras literárias, já
que durante a leitura de histórias em quadrinhos tive acesso a informações diversas,
o que colaborou para torna-me uma leitora flexível e disposta a conhecer outros
autores através de suas obras. Isso para mim foi mais um incentivo no processo de
formação enquanto leitora.
No entanto, na fase em que cursava o primeiro ano do ensino médio, a escola
pouco contribuía para o incentivo à leitura, pois os professores raramente faziam
indicações de livros e a direção da escola não oferecia um local adequado para
promover o acesso aos livros disponíveis. Segundo Oliveira (2011, p.20),
É função da escola letrar os alunos, fazendo-os ter consciência dos
diferentes contextos (situações) e prepará-los; Proporcionando
experiências com a língua em sala de aula, ensinando-os e
propiciando momentos para que eles apropriem-se dos “recursos
comunicativos” necessários, para que eles (alunos) saibam articular a
‘teoria a ‘prática’ e sejam bem sucedidos em seu desempenho em
seja lá qual for à situação (OLIVEIRA,2011, p.20).
Diante disso, percebe-se que a escola deixava de cumprir seu papel de letrar,
ao impossibilitar que os alunos frequentassem a biblioteca, visto que não ofertava um
espaço de leitura, porque os livros que deveriam estar à disposição dos estudantes,
ficavam em um quarto trancado no fundo da escola, distante do acesso dos alunos e
mesmo quando eu e outros poucos alunos iam pedir livros emprestados, não havia
funcionários para receber os estudantes que se encontravam ávidos por ler.
Assim sendo, o meu processo como sujeito leitor ocorreu com muito incentivo
da minha família, colaboradora fundamental, que forneceu as bases, quando na
infância contavam lendas e, depois, com as revistas em quadrinhos concedidas pela
minha mãe. Portanto, percebe-se que a família assume uma posição essencial no
processo de desenvolvimento na aprendizagem e consequentemente na formação
403
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
enquanto leitor. Assim, foram essas situações familiares que mediaram a minha
constituição como leitora tanto do mundo quanto de obras literárias.
Outra contribuição que considero importante em minha experiência de leitora
foi com as bibliotecas comunitárias do bairro em que eu morava, as quais
disponibilizavam os livros para empréstimo, estimulando a leitura e valorizando o
interesse que eu e os meus colegas frequentadores desses espaços tínhamos pelo ato
de ler. Do mesmo modo, fica evidente para mim, a importância de meus colegas de
sala de aula, como mediadores, que me levaram e indicaram o caminho para
encontrar as bibliotecas do bairro.
3. REFLEXÃO SOBRE A MINHA PRÁTICA DOCENTE
Com os resultados obtidos por meio da prática referendada desenvolvida pela
professora Rosemary Lapa de Oliveira, através dessa rememoração do meu processo
como leitora e por meio de leituras das obras de autores como Paulo Freire e Célestin
404
Freinet, enfim consegui analisar como gostaria de atuar como formadora de leitores,
pois acredito que a leitura começa pelo ato de ler o mundo e se desenvolve pelo
enleituramento.
Portanto, em uma reflexão sobre a minha prática docente, pretendo utilizar o
diálogo para construir as aulas, tendo em vista que os alunos já possuem os
conhecimentos prévios adquiridos em suas relações sociais. Diante disso, no processo
de ensino e aprendizagem, estarei aprendendo e ensinando com os educandos em
sala de aula, concordando com o que diz Freire (1987, p.68),
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que,
enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser
educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do
processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de
autoridade” já não valem (FREIRE, 1987, p.68).
Sendo assim, considero que para um ensino aprendizagem por meio de
diálogos, é preciso respeitar os conhecimentos dos discentes, como afirma Freire
(1996), já que eles chegam à sala de aula possuindo saberes e experiências que
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
influenciam a prática docente. Percebe-se, então, a importância da família e da
comunidade na aquisição de saberes por parte dos educandos.
Por isso que ao valorizar as experiências do educando também estamos
estimulando o interesse de estudantes ao ato de ler, pois assim como eu, conhecendo
o bairro que residia, tive acesso aos livros por meio das bibliotecas comunitárias, as
quais possibilitaram a minha constituição enquanto leitora, almejo estimular que os
estudantes conheçam sua comunidade, a fim de que encontrem espaços de cultura e
de educação, como bibliotecas e teatros, contribuindo para constituição de sujeitos
leitores críticos.
Segundo Imbernón (2012), Freinet utilizava a aula passeio para promover o
diálogo e o incentivo à escrita e à expressão oral. Por isso, pretendo utilizar a técnica
de aulas passeio da pedagogia de Freinet, assim como a impressa na escola a fim de
estimular o interesse das crianças a escreverem de forma livre suas situações do
cotidiano. Segundo Maury (1993, p.34) “a impressa na escola trouxe para o campo da
prática diária a expressão livre e a prática criadora de nossos alunos” e, assim, por
meio de impressos que circulem no ambiente, incentivar que os educandos
exponham suas ideias e vivências.
Dessa maneira, conhecendo as técnicas de ensino, como aula passeio e a
impressa na escola, desenvolvida por Freinet que despertava o interesse dos
educandos para leitura e escrita, tomando como base essa prática, buscarei valorizar
o contexto social dos educandos assim como suas experiências em uma atividade que
vai além das didáticas escolares, concordando com Maury (1993, p.34) quando diz
que:
A criança que sente um objetivo em seu trabalho, e que pode
dedicar-se por inteiro a uma atividade não mais escolar, mas social e
humana, esta criança sente que nela se libera uma poderosa
necessidade de agir, de buscar, de criar (MAURY, 1993, p.34).
Com essa expectativa de dar valor ao contexto social do aluno, almejo fazer
uma integração entre a comunidade e a escola e, com isso, conduzir meus alunos a
encontrarem espaços de aprendizagens que são disponibilizados em seus bairros.
Assim como promover a autonomia dos educandos, seguindo as ideias defendidas
por Freire (1996) em uma pedagogia da autonomia em que o professor deve respeitar
405
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
a autonomia, dignidade e a identidade do educando e cooperar para o
desenvolvimento de sujeitos críticos que assumam uma posição de nãosilenciamento, o que segundo Oliveira (2015) ocorre por meio “da tomada de
consciência e da criticidade”.
Nessa busca por incentivar a leitura, a autonomia e a reflexão dos discentes, o
professor precisa investir em sua própria formação enquanto docente. Esse
investimento, cujo objetivo é conduzir o educando a ultrapassar a “curiosidade
ingênua”, direcionando-os por meio do rigor metódico, o qual exige a pesquisa
científica, como salienta Freire (1996), com intuito de ir além do senso comum,
reunindo a prática e a teoria no ensino.
Sendo assim, o professor precisar ser um pesquisador, um sujeito curioso e
que siga o rigor metódico conforme afirma Freire (1996) e com isso influenciar seus
educandos a pesquisarem, relacionando os conhecimentos adquiridos em sala com
suas vivências pessoais a fim de ampliar seus saberes. Essa maneira de ensinar
transpõe o ensino verticalizado em que professor é detentor do conhecimento e
406
direciona para uma pedagogia em que são respeitados os saberes dos educandos
assim como o conhecimento do docente, pois “não há docência sem discência” como
declara Freire (1996), logo esse formato de ensino acontece de maneira horizontal,
pois existe a reciprocidade de ambas partes em um processo de construção da
aprendizagem.
Diante disso, busco, enquanto estudante, essa vivência através da pesquisa
para que quando graduada possa ser em sala uma professora e pesquisadora, unindo
teoria científica a prática e contribuindo para formação de leitores críticos.
Para isso, como estudante, procuro investir em minha formação enquanto
leitora, dedicando-me à pesquisa científica como uma maneira de ampliar meus
saberes sobre o incentivo à leitura em sala de aula. E foi por meio dessa procura que
no período da rememoração na prática referendada pensei no tema sobre as revistas
de histórias em quadrinhos, tendo em vista que é um recurso que ainda não é
amplamente utilizado pelos professores nos anos iniciais.
Essa ferramenta pedagógica que são as HQs que por divulgações
preconceituosas, como salienta Vergueiro (2010), ainda são pouco utilizadas em sala
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
de aula por serem consideradas somente um entretenimento para as crianças e não
algo que beneficie a aprendizagem e o estímulo à leitura. No entanto, nos momentos
de recordações sobre a minha constituição como leitora, pude perceber como as HQs
fizeram parte do meu processo de desenvolvimento enquanto leitora e por isso
considero esse gênero textual uma fonte de informações que amplia o repertório de
saberes dos alunos e incentiva a leitura de outras obras além de aumentar as
possibilidades
de
intervenções
pedagógicas
dos
professores
no
ensino
aprendizagem.
Dessa forma, com intuito de ampliar as discussões sobre o uso pedagógico das
HQs em sala de aula além de mostrar a utilização assim como o valor pedagógico
desse gênero textual no ensino aprendizagem das crianças, inscrevi-me para fazer
parte do projeto leitura na escola – a constituição do sujeito leitor desenvolvido pela
professora Rosemary Lapa de Oliveira no programa de iniciação científica
promovido pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Nessa investigação, busco
descrever como as revistas de histórias em quadrinhos podem contribuir para o
incentivo a constituição de sujeitos leitores.
Assim sendo, por meio da pesquisa científica, procuro preparar-me à
docência, investido em minha formação como leitora para que possa incentivar a
novos leitores em sua constituição no ato de ler.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, nesse processo de recordação dos meus momentos de leitura,
percorrendo desde a infância até o início do curso de Pedagogia, pude refletir sobre a
relação do ato de ler com a minha futura ação como pedagoga. Considerando que,
desde quando adentrei no curso de licenciatura tive encontros com as ideias
defendidas por Paulo Freire, que desvenda uma pedagogia que posiciona o sujeito
como autor de sua história, contribuindo para a formação crítica sobre a realidade
que o cerca e também com as técnicas de ensino de Célestin Freinet, cujas propostas
são vivenciadas dentro do ambiente escolar atual e que são pautadas na convivência
dos educandos com a sua comunidade.
407
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Como maneira de preparar-me para atuação como docente, participo de
eventos cientifico direcionados ao ensino e investido na pesquisa científica, a fim de
ser uma professora que, conhecendo a teoria, possa expandir minha prática docente
com intuito de beneficiar os educandos em sua formação enquanto leitores e em toda
a aprendizagem.
Por conseguinte, como resultado dessa reflexão conclui que como docente
espero que por meio de minha ação pedagógica colabore para que os educandos
possam encontrar estímulo para constituírem-se sujeitos leitores de livros e do
mundo.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2ª
edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
IMBERNÓN, Francisco. Pedagogia Freinet. Penso Editora, 2012.
408
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
______________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______________. A importância do ato de ler. Em três artigos que se completam. 51
ed. São Paulo: Cortez, 2011.
KOCH, Ingedore Villaça, ELIAS, Vanda Maria. Ler e Compreender os sentidos do
texto. São Paulo: Contexto, 2014.
MAURY, Liliane. Freinet e a Pedagogia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
OLIVEIRA, Rosemary Lapa. A Pedagogia da Rebeldia e o Enleituramento: a
constituição do sujeito leitor. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2015.
OLIVEIRA, Juliana Cristina Nunes de. Variações linguísticas em sala de aula,2011.
Disponível em< http://www.fals.com.br/revela12/artigo3_revelaX.pdf> Acesso em
:18 de outubro de 2015.
VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino In: RAMA, Angela.;
VERGUEIRO, Waldomiro. (Org.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de
aula. São Paulo: Contexto, 2010.
LITERATURA, IDENTIDADE E CULTURA: um olhar para as práticas literárias
em classes multisseriadas de escolas rurais
Nanci Rodrigues Orrico; Universidade do Estado da Bahia,
[email protected]
Elizeu Clementino de Souza; Universidade do Estado da Bahia,
[email protected]
Heleny Andrade Nunes; Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
[email protected]
RESUMO
Vinculado ao projeto “Multisseriação e trabalho docente: diferenças, cotidiano escolar e
ritos de passagem”, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa (Auto)Biografia, Formação e
História Oral (GRAFHO/UNEB), o texto configura-se como entrada de uma
pesquisa de mestrado que vem sendo desenvolvida no Programa de Pós-graduação
em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC/UNEB), que investiga memórias e
práticas de leitura de professores de classes multisseriadas do município de
Amargosa/BA. O texto tem como objetivo discutir questões relacionadas à
construção das identidades das crianças estudantes de escolas rurais, relacionando-as
com as práticas pedagógicas, especialmente, no que se refere às diversas literaturas
que perpassam o cotidiano escolar. Reconhecendo como inegável a relação entre
literatura e formação identitária, busca-se refletir sobre a maneira como os textos
literários têm sido trabalhados na escola, incluindo as diferentes literaturas e
atividades de leituras propostas pelos livros didático/literários e projetos
desenvolvidos no cotidiano das escolas. Neste contexto, aborda-se a importância da
literatura como essencial para o desenvolvimento social, emocional e cognitivo
infantil, discutindo padrões de ética/estética presentes nos livros e materiais
literários analisados, de forma a propor um debate em torno das práticas leitoras que
acontecem nos ambientes escolares, especialmente daqueles localizados nas áreas
rurais. Espera-se, ainda, refletir sobre como os professores das classes multisseriadas,
que trabalham muitas vezes concomitantemente com alunos de Educação Infantil e
dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, reinventam o seu cotidiano, aproximando
os materiais que recebem da sua realidade e contexto social. Entrelaçando temáticas
como identidade, ruralidades, literatura e multisseriação, o texto ancora-se
teoricamente em autores como Hall (2003), Bakthin (2003), Souza (2012), Rios (2011),
Kleimann (2007), Soares (2005), Freire (2005), Cordeiro (2006), Colomer (2007), Certau
(1994) e outros. O estudo nasce da constatação de que a presença do sujeito do campo
nas diversas literaturas que circulam nas escolas evidencia uma visão da cultura
rural estereotipada ou ausente, reforçando marcas preconceituosas que existem na
sociedade sobre as pessoas que trabalham e habitam nas áreas campesinas
brasileiras. Entendemos como imprescindíveis que elementos da ruralidade e da
diversidade cultural brasileira estejam presentes nas práticas literárias escolares, pois
eles contribuem para a visibilidade de outro imaginário cultural, baseado no
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
princípio da diversidade e da pluralidade, essenciais para a concepção da identidade
da criança. O texto destaca a necessidade de investimento para a construção de
materiais pedagógicos que valorizem a singularidade rural como forma de romper o
silêncio contra a discriminação que ainda persiste nos livros literários, negando o
outro em sua diversidade.
PALAVRAS-CHAVE: leitura, literatura, identidade, cultura, multisseriação.
INTRODUÇÃO
Com o objetivo de promover um debate sobre questões que circulam no
entorno da interseção entre literatura, identidade e cultura, este artigo emerge das
reflexões suscitadas no âmbito do projeto “Multisseriação e trabalho docente: diferenças,
cotidiano escolar e ritos de passagem” (GRAPHO/UNEB) e ainda das ações de uma
pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação e
Contemporaneidade (PPGEduC/UNEB).
As ideias aqui apresentadas refletem um movimento teórico-reflexivo em
410
defesa das potencialidades da abordagem (auto)biográfica e da relevância da leitura,
em especial a literária, para a formação integral do ser humano. Essas questões,
fundamentam e evidenciam uma preocupação com a construção identitária de
crianças e jovens alunos de escolas rurais ao constatar que as práticas de leitura
desenvolvidas nas classes multisseriadas têm sido pautadas em livros literários e
materiais pedagógicos cuja visão da cultura rural apresenta-se de forma
estereotipada ou ausente, reforçando marcas preconceituosas que existem na
sociedade sobre as pessoas que trabalham e habitam nas áreas campesinas
brasileiras.
Como forma de apreender questões relacionadas ao espaço escolar das escolas
rurais, entendendo a dinâmica de organização do trabalho com a literatura nestes
locais, espera-se problematizar as vias pelas quais os textos literários têm chegado às
classes multisseriadas, se por livro literário, didático, projeto ou outras formas de
acesso. Nesta perspectiva é intenção nossa, neste artigo, propor um olhar também
para as diferentes literaturas e atividades de leituras que perpassam o contexto
escolar pesquisado, reconhecendo a importância da literatura como essencial para o
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
desenvolvimento social, emocional e cognitivo infantil e discutindo padrões de
ética/estética presentes nos livros e materiais literários analisados.
Dessa forma, ancorado nos estudos de autores como Hall (2003), Bakthin
(2003), Souza (2012), Rios (2011), Kleimann (2007), Soares (2005), Freire (2005),
Cordeiro (2006), Colomer (2007), Certau (1994) e outros, intenciona-se apresentar
nesse texto uma discussão sobre literatura e identidade cultural, de forma a
visualizar as práticas leitoras que acontecem nos ambientes escolares, especialmente
aquelas localizadas nas áreas rurais.
Dentre as questões que nos mobilizam enquanto pesquisadores no
desenvolvimento deste estudo, interessa-nos, principalmente, o mapeamento de
como os professores de classes multisseriadas, que trabalham muitas vezes
concomitantemente com alunos de Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental, apreendem estas questões e reinventam o seu cotidiano, aproximando
os materiais que recebem da sua realidade, do contexto social e (re)criam novas
formas de se pensar a literatura em suas classes.
Por fim, concordando com as palavras de Cordeiro, quando afirma que: “É
pela e na literatura que escritor e leitor realizam sonhos, alimentam fantasias, desejos
e utopias, prefigurados em seus enredos, personagens e cenários, catalizadores das
polaridades e ambigüidades humanas [...]” (2006, p. 68), apostamos nos estudos que
possam contribuir para o ensino da literatura de forma vinculada com as raízes
identitárias dos sujeitos, rompendo, dessa forma, com o ensino pautado na lógica
urbanocêntrica, que insiste em se manter nas escolas rurais, desenraizando os
sujeitos da suas marcas culturais e negando-lhes a representatividade das suas
singularidades nas práticas educativas.
IDENTIDADE, RURALIDADES, LITERATURA E MULTISSERIAÇÃO: uma
tessitura de múltiplos retalhos
“Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo [...]
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. “
(Fernando Pessoa, 1990, p. 8)
411
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A escolha da epígrafe nos possibilita pensar em identidade, remetendo-nos à
reflexão e ao questionamento: Sim, mas o que resultamos de tudo? De tudo o que
vivemos, ouvimos e lemos? Como se constrói a nossa identidade? Essas indagações
têm ganhado força na contemporaneidade, promovidas, principalmente, pelas
discussões em torno do que tem se chamado de “crise de identidade” ou do
pertencimento. (HALL, 2003)
Apreendemos dos estudos de Bauman (2005) o quanto a identidade se revela
como construção e inconclusão, sendo esta um processo que não cessa de acontecer e
vai se revelando nos encontros com o outro e na ressignificação dos nossos próprios
referenciais, diante de tudo o que vivemos e convivemos. Segundo Faria e Souza
(2011, p. 1): “A essência da identidade constrói-se em referência aos vínculos que
conectam as pessoas umas às outras [...]”. Da mesma perspectiva que Bauman, mas
interessado na identidade cultural, Stuart Hall (2003) demonstra preocupação com a
descentração do sujeito moderno e apresenta o conceito que denomina de
"identidades culturais" como aspectos de nossas identidades que surgem de nosso
412
"pertencimento" a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo,
nacionais.
Mas, pensar em construção de identidade de crianças e jovens exige um
refletir sobre tudo aquilo que têm sido a elas apresentados, sejam através dos filmes e
programas que assistem, das histórias que ouvem e leem, dos brinquedos que têm e
desejam e de uma série de outros objetos e referências. Entendendo que a construção
da identidade do indivíduo inicia-se na sua infância e prossegue por toda a vida,
sofrendo influência do meio e de todos os referenciais com os quais ele irá se deparar
ao longo de sua trajetória, chega-se a uma situação que tem sido fonte de
preocupação. Na contemporaneidade, a maioria das crianças e jovens brasileiros
moradores de áreas rurais não têm desenvolvido um sentimento de pertencimento à
sua raça, à sua comunidade, às suas raízes culturais, negando e desvalorizando sua
descendência cultural.
Entendendo que as práticas escolares têm tido um enorme peso no
desenvolvimento dessa constituição identitária, é nosso objetivo problematizar
alguns elementos da relação identidade cultural e ruralidades que têm emergido no
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
desenvolvimento da pesquisa de dissertação supracitada, cujo objeto de estudo gira
em torno das memórias e práticas de leitura de professores de classes multisseriadas
de escolas rurais. Observa-se, ao analisarmos principalmente os materiais didáticos e
livros literários utilizados no trabalho cotidiano no contexto das classes
multisseriadas, que o aluno proveniente da zona rural tem tido sua identidade
muitas vezes invisibilizada e suas ruralidades - que são as especificidades, o
cotidiano e as vivências do rural (SOUZA, 2011, 2012; RIOS, 2011), não têm sido
valorizadas. Sua identidade rural muitas vezes acaba sendo suplantada para criação
de uma mais adequada à escola, já que a maneira como os alunos da roça são
percebidos nos materiais pedagógicos, é de negação às suas maneiras de ser, viver e
apreender o rural.
Ao analisarmos a presença do sujeito da roça na literatura infanto-juvenil que
circula nas escolas evidencia-se que a visão desta cultura tem sido ou ausente nos
livros adotados ou percebida de forma marginalizadora e esteriotipada, reforçando
as marcas preconceituosas que existem na sociedade brasileira sobre os sujeitos que
vivem, trabalham e/ou estudam em áreas rurais. Bourdieu (1999), ao discutir sobre
as sociedades contemporâneas e as relações sociais que mantêm os diferentes grupos
sociais, tendo o sistema de ensino como instituição que permite a reprodução da
cultura dominante, afirma o quanto a escola tem sido espaço da perpetuação das
desigualdades sociais. Essa máxima é confirmada quando se observa que o material
literário utilizado pelo professor de classe multisseriada muitas vezes não reconhece
e contempla a diversidade cultural brasileira, atendendo quase sempre às ideologias
hegemônicas, que usam o livro como um veiculo da indústria cultural a favor da
imagem do indivíduo branco e urbano como única referência positiva.
O que se constata é que a escola, inclusive às localizadas em áreas rurais, ao
ignorar a diversidade sócio-cultural existente na nossa sociedade, acaba selecionando
e privilegiando as manifestações e os valores culturais das classes hegemônicas,
explicitando aos seus alunos que eles precisarão dominar outro aparato cultural e
concepção de mundo que não é o seu. A ação pedagógica, nesses casos, tende à
reprodução cultural e social, pois os filhos das classes trabalhadoras rurais têm, na
escola, um espaço de ruptura no que se refere aos valores e saberes de sua prática, já
413
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
que os materiais didático-literários mostram, de forma implícita ou não, o quanto
eles são desprezados, ignorados e desconstruídos na sua inserção cultural, ou seja,
mostra que eles necessitam apreender novos padrões ou modelos de cultura para
serem inseridos na sociedade.
Ao pensar na leitura em escolas rurais, ratifica-se que a concepção de leitura
defendida neste artigo é de que ela só acontece quando há compreensão, interação.
Essa visão busca ancoragem na concepção bakhtiniana de linguagem, que permite
pensar a prática educativa e o ensino e a aprendizagem da leitura numa perspectiva
de dialogismo, em que as relações travadas com o texto superam a mera decifração e
oralização de sinais gráficos e somente se institui quando o leitor estabelece uma
relação com o texto e com autor, em uma atitude responsiva que o torna capaz de ler
e de dialogar, de se posicionar diante do que leu. Sendo assim, constata-se o quanto a
leitura na perspectiva de que ela se institui somente na relação interlocutiva e
dialógica (Bakhtin, 2003), entre autor e leitor tem sido um desafio para os alunos de
classes multisseriadas, já que se torna difícil “dialogar” com um texto que não te
414
representa social e culturalmente.
Sabemos que é inegável que elementos da diversidade cultural brasileira
precisam estar presentes na literatura, pois eles contribuem para a visibilidade de
outro imaginário cultural, baseado no princípio da diversidade e da pluralidade, das
ruralidades, das africanidades e toda a nossa multiculturalidade, o que se torna
essencial para a concepção da identidade do povo brasileiro e da criança/jovem
morador de área rural. Dessa forma, evidenciando nossa preocupação com o leitor
que está se formando nas classes multisseriadas das escolas rurais e com o quanto
essa leitura tem sido desvinculada das raízes identitárias dos sujeitos, busca-se, a
partir de então, a socialização de atividades propostas por professores, colaboradores
da pesquisa de mestrado, que atuam em classes multisseriadas. Fica evidente o
quanto eles entendem a importância que a leitura assume na construção de propostas
que rompam com a lógica urbanocêntrica e que sejam representativas das
singularidades de quem vive e trabalha em áreas rurais.
Como a abordagem adotada na pesquisa é a (auto)biográfica, o estudo tem
permitido aprender os relatos dos professores e:
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
[...] entendê-las em seu tríplice aspecto: tanto como fenômeno (o ato
de narrar-se), quanto como método de investigação e, ainda, como
processo de autoformação e de intervenção na construção identitária
de professores e de formadores, expressas em diferentes modos de
narração e discursos da memória. (SOUZA, 2008, p. 37)
Sendo assim, observa-se as experiências literárias construídas pelos
colaboradores como um movimento que revela inconformidade diante das questões
expostas e busca de alternativas através da (re)invenção do cotidiano escolar
(CERTAU, 1994). As atividades (re)construídas evidenciam a necessidade de fugir
dos estereótipos e o desejo de construir, em suas classes, uma identidade positiva
acerca das ruralidades que representam os sujeitos que ali estão.
(RE)INVENTANDO
A LITERATURA
NO
COTIDIANO
DAS
ESCOLAS
RURAIS: em busca da singularidade negada
Segundo Certeau, a leitura é uma atividade de “[...] produção silenciosa [que]
introduz, portanto, uma ‘arte’ que não é passividade [...]” (1994, p. 50), Nessa
perspectiva, observa-se, pelos relatos dos professores colaboradores da pesquisa, que
as atividades de leitura realizadas nas escolas rurais parceiras, buscam desenvolver a
participação, a não passividade dos alunos para alcançar as competências leitoras
definidas pela Secretaria de Educação e demais órgãos normativos da educação
brasileira.
Contudo, é preciso relatar também a necessidade de superar a negação da
singularidade do sujeito da roça, já que esta não aparece nem no livro didático nem
nos demais livros literários e textos dos projetos que os professores recebem para
trabalhar. Em todos esses materiais não se visualiza uma relação entre os textos
literários e a vida cotidiana do aluno campesino. Neste sentido, o livro didático passa
a ser meramente um recurso, utilizado pelos docentes quando há possibilidade de
que a atividade seja adaptada. É o caso da experiência que narra um dos “artesãos
intelectuais” (MILLS, 2009), como chamo os professores que exercem o “ofício” da
docência e da intelectualidade em contexto de multisseriação. Nesse caso, a classe
multisseriada reúne alunos de Educação Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental.
415
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A experiência relatada pelo professor colaborador da pesquisa evidencia um
olhar sensível e atento para as oportunidades de construção de práticas pedagógicas
nas quais seja possível o entrelaçamento entre o ensino de Língua Portuguesa e a
identidade cultural dos alunos. Nesta perspectiva, a partir de uma atividade presente
no livro didático com o qual trabalha, no qual se propõe a leitura da biografia de
Patativa do Assaré como forma de estudar esta modalidade textual, o professor cria
uma sequência didática ampliando a proposta do livro e traz vídeos e textos sobre o
escritor, iniciando um trabalho sobre a cultura do artista e ainda sobre a literatura de
cordel, como mostram as imagens cedidas pelo docente.
Imagem 1– Biografia de Patativa do Assaré. Imagem 2 – Vídeo e textos de Patativa do Assaré.
416
Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 1 – junho de 2015
Observa-se a busca em superar o distanciamento dos livros didáticos e
literários e projetos de leituras propostos pela Secretaria de Educação na ampliação
do trabalho com um texto que tem relação mais próxima dos alunos. Dessa forma,
nota-se a literatura no cotidiano das escolas sendo reinventada em busca de ações
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
que aproxime os textos do contexto no qual os alunos estão inseridos, em busca de
situações que possam de fato promover um diálogo com os leitores, propiciando
identificação cultural e prazer pela leitura. Na continuidade da sequência, os alunos
estudam as características do gênero textual literatura de cordel, além de realizar
leituras e debater sobre o assunto. Também começam a produzir seus textos de
literatura de cordel e apresentam para a comunidade escolar.
Imagem 3– Texto sobre literatura de cordel.
Imagem 4 – Textos produzidos pelos alunos.
417
Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 1 – junho de 2015.
A reflexão que a atividade supracitada suscita leva-nos a pensar sobre as
possibilidades positivas deste trabalho para a identidade dos alunos e também para a
dos docentes, que se reconstrói e toma outros sentidos à medida que professores e
alunos se reconhecem no espaço em que estão inseridos e assumem essa identidade
sem negação e subordinação. Neste processo, no qual o professor vai buscando a
superação das deficiências e ausências do material didático com atividades de leitura
que façam sentido para o aluno morador de área rural, ele luta contra um poder que
é exercido nas relações sociais e que está em todas as partes, mas na escola emerge,
muitas vezes, como uma força de modo a negar ou sucumbir as raízes identitárias
dos sujeitos que ali estão. Como aponta Foucault (1979, p. 88): “Parece-me que se
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
deve compreender o poder, primeiro, como uma multiplicidade de correlações de
forças imediatas”.
E esse poder que se encontra presente nas relações de forças no âmbito das
escolas rurais também é superado quando outro “artesão intelectual” pensa em uma
atividade de valorização das gerações mais velhas e convida a comunidade e avós
dos alunos a participar de uma dramatização de um livro literário intitulado” A
colcha de retalhos (2010)”, de Conceil Côrrea da Silva e Nye Ribeiro Silva, livro de
propriedade do docente, que narra uma história entre um neto e sua avó sobre o
valor de se preservar e cuidar do que e de quem gostamos, oportunizando uma
discussão sobre memória e as nossas histórias. Além disso, estimula as relações
intergeracionais, promovendo um diálogo com os mais velhos e estabelecendo uma
relação de troca de informações e valorização da comunidade nas atividades
escolares, o que fortalece as relações entre família, comunidade e escola. As fotos,
também cedidas pelo docente, retratam esse momento.
Imagem 5– Livro utilizado na atividade narrada.
418
Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 2 – setembro de 2015.
Imagens 6 e 7– Dramatização e apresentação de cartazes confeccionados sobre a história lida para as
famílias.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 2 – setembro de 2015.
Imagem 8– Apresentação de jogral feita pelos alunos sobre a família e a importância dos laços
familiares.
419
Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 2– setembro de 2015.
Observa-se que o empoderamento que nasce da leitura, em atividades como
estas quando desenvolvidas na escola, apresentam-se como extremamente eficazes
no sentido de atuar como um dispositivo capaz de sustentar os sonhos dos alunos
campesinos, por se verem na própria história como protagonistas e não apenas como
figurantes.
Também conseguem dialogar com o texto, já que a dialogicidade necessária
para que a leitura de fato aconteça não pode ser dissociada da vida cotidiana. Por
isso, a escolha das atividades, e dos diferentes gêneros textuais, precisa ter conexão
com o contexto social dos interlocutores. Nesse caso, a relação entre autor/leitor
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
acontece porque o aluno sabe de onde se fala e para quem e o porquê se fala. É nesse
sentido que Bakhtin (2003) afirma que:
O papel dos outros, para quem se constrói o enunciado, é
excepcionalmente grande, como já sabemos. Já dissemos que esses
outros, para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna
um pensamento real (e deste modo também para mim mesmo), não
são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação
discursiva. Desde o início o falante aguarda a resposta deles, espera
uma ativa compreensão responsiva. É como se todo o enunciado se
construísse ao encontro dessa resposta. (BAKHTIN, 1992, p. 301).
Outro fato importante a ser considerado é que as situações didáticas
apresentadas retratam elementos da vida cotidiana dos alunos e das relações
estabelecidas na comunidade e nas famílias que ali residem, propiciando a relação
texto - leitor e a conscientização positiva do vocabulário utilizado culturalmente
entre os povos da comunidade campesina. Dessa forma, ocorre domínio
interpretativo da palavra escrita, de tal modo que fornece elementos pós releituras
420
capazes de fortalecer o engajamento com produções escritas e outras leituras,
inclusive a de mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse texto insere-se numa discussão pouco tematizada nas produções
acadêmicas - a das práticas literárias pensadas e protagonizadas por professores de
classes multisseriadas de escolas rurais. Em notas (in)conclusivas, ressaltamos neste
artigo a necessidade de que mais estudos e relatos de experiências sobre questões
aqui levantadas ocorram, na tentativa de rompermos silêncios e práticas pedagógicas
ancoradas em processos de formação de leitores apenas decodificadores de palavras.
Segundo Kleimann (2007) o professor que oportuniza apenas atividades nas
quais a concepção de leitura, implícita ou não, seja a do ato de ler como mera
decodificação de palavras, forma seus alunos nessa perspectiva e não consegue
promover a fruição estética nem modificar a visão de mundo deles. Nesta
perspectiva, as reflexões aqui problematizadas e as experiências relatadas
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
evidenciam a potencialidade do trabalho no qual os alunos e professores são
protagonistas e se identificam social e culturalmente com os textos trabalhados.
Acreditamos que o desenvolvimento de propostas didático-pedagógicas que
entrelacem leitura literária e identidade cultural pode contribuir para que os
estudantes da roça se sintam mais valorizados, fortalecidos e conscientes das suas
marcas identitárias, além de que, atividades como as socializadas, favorecerem a
configuração de um “novo” rural, que fuja dos estereótipos do campo como local de
atraso, ajudando consequentemente na construção de uma “nova” escola, com
professores que tenham como principal desafio perceber e valorizar a vida neste
espaço, à medida que o mundo, o lugar, nossas experiências e nossas histórias estão
dentro de nós e formam a teia da nossa vida, não devendo nunca ser negligenciadas
ou desrespeitadas.
Concluímos que a escola se configura como espaço fundamental para a
construção das identidades dos sujeitos que ali estão e que é necessário repensar as
práticas literárias desenvolvidas nas escolas rurais, a fim de que a educação e a
leitura para os alunos desses espaços possam ser mais significativas e
emancipatórias, de modo que estes possam produzir seus territórios singulares de
identidades, valorizando suas ruralidades e seus modos de ser, existir e aprender.
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ENTRE LIVROS E HISTÓRIAS:
memórias de leituras, formação do leitor e pesquisa (auto)biográfica
Rita de Cássia Oliveira Carneiro
Doutoranda do PPGEduC/ Universidade do Estado da Bahia-UNEB
[email protected]
RESUMO
A ampliação do campo de discussão da pesquisa com história de vida, as narrativas
de si, a biografia e autobiografia tem entrecruzado espaços para investigação de
questões relacionadas também com a literatura e os processos de formação leitora,
aspecto este bastante frutífero, principalmente por proporcionar um outro olhar
sobre algumas concepções construídas pelo senso comum a respeito do conceito de
leitura e leitor. Aliadas à esta questão, as investigações sobre as experiências de
leitura de professores têm contribuído para redefinir o conceito de leitor atribuído a
este sujeito. O presente artigo é resultante das discussões teóricas produzidas no
semestre 2014.2, no âmbito da disciplina Abordagem (Auto)biográfica Formação de
Professores-Leitores, do programa de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia e as contribuições
proporcionadas por estas leituras para a minha formação enquanto pesquisadora. A
proposta da disciplina foi de nos fazer refletir sobre as “perspectivas teóricometodológicas da abordagem (auto)biográfica com ênfase nas histórias de leitura, e
suas implicações na formação”, para levar-nos a compreender a partir de narrativas
de vida e de leitura (biográficas e ficcionais), as relações entre práticas culturais de
leitura e de formação. Neste texto procuro estabelecer relações entre as leituras
realizadas na disciplina, o campo da pesquisa (auto)biográfica e a formação do
professor-leitor, bem como sua contribuição para o estágio de construção atual da
minha pesquisa, memórias de leitura apontadas no relato de uma das professoras, e
minhas próprias memórias de leitura, entendendo a importância do campo da
memória e da pesquisa (auto)biográfica para a compreensão dos percursos e
trajetórias da leitura e da constituição dos leitores nos diversos espaços educativos.
Ao buscar estabelecer uma ponte entre a minha pesquisa e a disciplina, o fiz a partir
do que temos de mais próximo: a pesquisa (auto)biográfica voltada para a
investigação de processos formativos, no caso desta investigação, das professoras
leigas.
Palavras-chave: Memórias; Formação do Leitor; Pesquisa (Auto)biográfica
1- INTRODUÇÃO
O campo da pesquisa em educação no Brasil, principalmente na investigação
sobre os processos de formação docente, ganhou novos contornos a partir da
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
introdução de uma concepção de pesquisa compreendida como pesquisa
(auto)biográfica, marcadamente no final dos anos 1990, alargando-se o escopo dos
trabalhos com este viés nas décadas seguintes. O crescimento de tais investigações
provocou o surgimento de grupos de pesquisas e associações de pesquisadores de
diversas universidades promovendo simpósios, seminários e congressos regionais,
nacionais e internacionais, o que contribuiu para ampliar as discussões e trocas entre
pesquisadores de todo o país e pesquisadores internacionais, que se debruçam sobre
narrativas autobiográficas e história de vida, não apenas na pesquisa em educação,
como também nas diversas temáticas das Ciências Humanas.
A utilização da abordagem (auto)biográfica em nosso país, no âmbito das
pesquisas educacionais que investigam questões relativas à docência, memória,
gênero, e formação tem ampliado as possibilidades de análise do fenômeno
educacional, configurando-se no que alguns autores passaram a denominar de
“movimento biográfico”, em virtude do espraiamento deste tipo de investigação.
Neste viés os trabalhos de Sousa, Catani, Souza e Bueno (1996); Catani, Bueno, Sousa
424
e Souza (2003); Demartini (1988) e Souza (2006) são importantes para nos ajudar a
compreender os caminhos da pesquisa (auto)biográfica e das histórias de vida em
formação.
A ampliação do campo de discussão da pesquisa com história de vida, as
narrativas de si, a biografia e autobiografia tem entrecruzado espaços para
investigação de questões relacionadas também com a literatura e os processos de
formação leitora, aspecto este bastante frutífero, principalmente por proporcionar um
outro olhar sobre algumas concepções construídas pelo senso comum a respeito do
conceito de leitura de leitor. Aliadas à esta questão, as investigações sobre as
experiências de leitura de professores têm contribuído para redefinir o conceito de
leitor atribuído a este sujeito. E neste aspecto Morais (2011, p. 172) nos chama a
atenção para o fato de que
[...] alguns estudos mais recentes, apoiados na história cultural, têm
conseguido alcançar práticas, materiais de leitura, modos de ler que o
“discurso de crise”, tecido de forma contundente nos últimos 20 anos,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
a partir de outros paradigmas de investigação e de interpretação da
realidade brasileira, não conseguiu alcançar.
Ao referir-se ao “discurso de crise” da leitura em nossa sociedade, apontada
por algumas pesquisas, a autora questiona os modelos interpretativos dessas
pesquisas pois estes parecem que não dão conta dos diversos “modos como os
leitores se aproximam, fazem uso e se apropriam de um texto” (idem p. 173). Desse
modo, as narrativas de professores/as que contam sua história de vida, suas
experiências de leitura contribuem para compreendermos seus percursos e formas
como se apropriam do texto e se tornam leitores, desmistificando uma concepção de
leitura e de leitor clássico.
2 - UM NOVO OLHAR SOBRE O MESMO: AS CONTRIBUIÇÕES DA
DISCIPLINA
425
A proposta da disciplina foi de nos fazer refletir sobre “as perspectivas
teórico-metodológicas da abordagem (auto)biográfica com ênfase nas histórias de
leitura, e suas implicações na formação”, para levar-nos a compreender “a partir de
narrativas de vida e de leitura (biográficas e ficcionais), as relações entre práticas
culturais de leitura e de formação”. Como uma questão prática nos fez também
rememorar nossa experiência leitora, ao escrevermos o “Rascunhos de mim”,
narrando as reminiscências dos inicios de nossa relação com a leitura e com os livros.
Embora tenha feito essa disciplina em 2007, durante o mestrado, houve mudanças
significativas, tanto na ementa como nas leituras sugeridas, desse modo discussões
produzidas durante o semestre contribuíram para ampliar e sedimentar minhas
perspectivas sobre esse viés de pesquisa, além de me fazer refletir sobre aspectos
concernentes à minha investigação em andamento.
A leitura do texto de Benjamim “O narrador – considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov” foi importante para nos fazer lembrar o papel da narrativa e daquele
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
que narra com o conhecimento de seu mundo e a profundidade que o torna um
grande conhecedor da vida e dos costumes de seu tempo e comunidade. O texto de
Walter Benjamim (1996, p. 198) é uma leitura importante que demonstra a força e o
poder da palavra do sujeito que sabe contar uma história e como afirma o autor “a
experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os
narradores. E entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se
distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” Ao
trabalharmos com as narrativas em nossas pesquisas é mister compreendermos o
lugar de onde fala o sujeito e a riqueza de suas experiências que deixa transparecer
na narrativa. No caso particular da minha pesquisa, a narrativa da trajetória de
trabalho das professoras leigas e de seu processo formativo em serviço é uma
contribuição importante para a história da educação na Bahia que tem sido devedora
destes sujeitos, visto que pouco tem de vestígios de seu trabalho e contribuição na
historiografia da educação em nosso Estado.
Em Pierre Bourdieu (2006) – A ilusão biográfica – a leitura me serviu de alerta
426
para não esquecer algumas questões importantes para o meu trabalho. Em primeiro
lugar para quem faz pesquisa autobiográfica precisa pensar o sujeito em sua
complexidade, como um ser inacabado, aberto ao devir, que não se revelará em sua
totalidade, mesmo que se diga fazendo isso. Outro ponto é a crítica que o autor faz –
na verdade o cerne de seu ensaio – à impossibilidade de se fazer uma biografia ou
autobiografia justamente pela questão anterior: do sujeito contar-se a si mesmo e
produzir uma história da sua vida. Porém, ao contrário do que afirma o autor neste
ensaio, acredito na pesquisa autobiográfica porque compreendo que as narrativas
que os sujeitos fazem de sua vida não é a história totalizadora, pormenorizada,
cronológica – porque ninguém consegue fazer isso –, mas não é menos verdadeira a
história que os sujeitos constroem a partir do momento em que são instados a
narrarem a si mesmos, construindo essa narrativa pela memória do vivido. E neste
sentido concordo com Sarlo (2007, p. 09) ao afirmar que “o passado é sempre
conflituoso” visto que a memória que temos do vivido ou do que lembramos deste
tempo vivido, se faz no presente, é um passado presentificado.
E deste modo
rememorado, sentido pelo sujeito que não pode reconstitui-lo em sua inteireza, é
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
preciso tomar a lembrança do passado somente como “um advento, uma captura do
presente” (idem). Creio que é nisso que reside também a beleza desses relatos.
Mas há também um aspecto significativo neste texto que é a noção de
trajetória apontada por Bourdieu (2006, p. 189) que a define “como série de posições
sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço
que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”, pois isto
chama a atenção para a necessidade de contextualização dessa trajetória, ou seja a
história (trajetória) individual em relação à história social, a relação espaço-temporal
dos acontecimentos. E o conhecimento da história é importante para entendermos as
relações entre sociedade, os sujeitos e a produção de sua vida. Interessou-me bastante
esta noção, pois vou trabalhar a trajetória de vida-formação das professoras leigas e
deste modo pretendo apropriar-me melhor deste conceito. Em minha pesquisa tenho
lançado mão, além das narrativas orais, de documentos pessoais fornecidos por
algumas professoras tais como cadernos de apontamentos dos cursos de formação,
livros utilizados por elas, e outros documentos ainda por analisar, além da legislação
sobre formação de professores da época, pois relato em si não inviabiliza a utilização
de outras fontes que podem ampliar ou sedimentar essas narrativas.
A leitura do texto de Lacerda(2003), precedido pelo prefácio de Roger Chartier
nos faz adentrar no mundo íntimo, memorialístico e autobiográfico da escrita de
mulheres de meados do século XIX ao início do século XX. Um trabalho de folego
que nos ajuda a pensar sobre as formas como as mulheres se inscrevem e escrevem
suas memórias e autobiografias. O texto de Lilian Lacerda despertou meu olhar para
a questão metodológica para a forma como ela organiza os dados e constrói a
narrativa. Assim também foi a leitura do texto de Coutinho(2014), “Notícias de clã”,
por tratar-se de uma pesquisa que tem como horizonte teórico a noção de biografema
de Roland Barthes, e escrita como um ensaio biográfico. Isto para mim foi bastante
inspirador, pois abre outras possibilidades de escrita para a tese além de que, esses
textos tem como centro a história de mulheres, e este também é o foco da minha tese,
a história de mulheres, professoras leigas.
427
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Com relação ao texto de Figueiredo (2013), sua leitura foi extremamente rica
pois nos remeteu à busca de outros textos que, lidos concomitantemente, ampliou a
compreensão da temática da autobiografia, agora voltada para a literatura e a ficção,
e no rol dessa leitura foram incluídos os textos de M. Foucault, “O que é um autor?”;
e o texto de Roland Barthes, “A morte do autor”. Figueiredo nos leva ao universo da
biografização ficcional, da biografia como gênero literário produzindo uma discussão
da temática com uma extensa referência que sustenta suas argumentações. Deste
texto suscita-me o desejo de aprofundar-me em dois conceitos cunhados por Roland
Barthes que aparecem neste texto: o de “biografema” e o de “punctum”, tal como
aponta Figueiredo (2013, p. 20) estes dizem respeito “não a completude de uma
história, não a foto toda, mas pequenos detalhes, algumas inflexões, que emocionam
numa biografia ou numa foto”, pois acredito que podem ser importantes para o meu
trabalho.
A atividade prática de rememorar nossas experiências com a leitura, as
influencias que tivemos e que nos constituíram leitores e leitoras foi muito
428
interessante pois ao partilhar as leituras dos “Rascunhos de mim” percebi que havia
muitas similaridades entre os relatos. Neles havia sempre alguém que introduzia o
leitor no mundo das palavras, fosse através da contação de histórias, ou de leituras
compartilhadas, havia também os relatos de leituras “proibidas”, contrabandeadas.
Livros tomados de empréstimo de algum familiar ou amigo, ou mesmo de alguma
biblioteca próxima onde morava, também foram relatados nos Rascunhos e ao
ouvirmos os relatos nos sentíamos contemplados de alguma forma pois havia muito
em comum. E é sobre o meu relato que procuro fazer uma aproximação com a minha
pesquisa, a seguir.
3 - SOBRE AS HISTÓRIAS DE LEITURA E SUAS CONEXÕES: O “RASCUNHO
DE MIM” E O MEU OBJETO DE INVESTIGAÇÃO
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O que me aproxima da história de vida das professoras leigas, objeto de minha
pesquisa? Ao escrever sobre minhas memórias de leitura que chamei de “Rascunhos
de mim ou... de como me encantei com as palavras” eu começo marcando justamente
essa aproximação: “Minha relação com as palavras começa com a escola. Sou a
primogênita de uma professora leiga [...]”. Mas não apenas isso, minha mãe foi
também minha primeira professora e como acontecia com quase todas as professoras
leigas que trabalhavam na zona rural, a casa também era a escola, e por esta razão eu
afirmo em meu relato que “eu, literalmente, nasci numa escola.” Além disso, a
relação com o suporte escrito para a leitura é algo que também me aproxima dos
sujeitos da pesquisa. Em suas primeiras narrativas as professoras falam sempre da
dificuldades de acesso aos livros, sendo estes adquiridos especificamente para o
estudo, ou seja eram livros didáticos requeridos para o seu aprendizado escolar. Em
minhas reminiscências eu falo sobre isso também, sobre a falta de livros em casa,
fossem didáticos ou mesmo de literatura – algo raro, para não dizer inexistente
durante minha infância.
O trabalho com as reminiscências nos faz compreender que memória e
esquecimento são uma via de mão dupla, não lembramos tudo o que ficou registrado
na lembrança, que lutamos para manter vivo é o que é significativo para nós, porque
como afirma Bosi (1994, p.39), “A memória é um cabedal infinito do qual só
registramos um fragmento”. E há muita coisa que não me lembro, ou as lembranças
parecem uma imagem desfocada na distância do olhar da memória e o que vem são
fragmentos, instantâneos fotográficos de um decurso do vivido como o punctum de
Roland Barthes, aquele elemento em uma fotografia que nos transporta a outra
dimensão, que nos emociona, nos comove. E este exercício de escrever as lembranças
de minha relação com os livros e com a leitura, me faz compreender mais ainda os
sujeitos da minha pesquisa – as professoras – e suas dificuldades em narrar-se para
um outro, neste caso o pesquisador, porque a memória é também fragmentada, dá
conta de alguns pormenores, daquilo que nos marcou de alguma forma, mas
“esquecemos” outros fragmentos que não desejamos trazer à tona, narramos
biografemas, no sentido barthesiano.
429
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Surge nesse início da pesquisa, despertada pelas discussões realizadas durante
o semestre, mesmo não sendo o foco do meu trabalho, a questão da formação leitora
das professoras leigas – sujeitos da minha investigação – visto que minha história de
vida se conecta de algum modo com elas. O que instou-me a pensar sobre minha
própria experiência com a leitura, sendo eu oriunda também da zona rural e filha de
professora leiga, que não por coincidência é também um dos sujeitos da pesquisa.
Deste modo ao retomar as leituras dos textos e das primeiras entrevistas realizadas
com quatro professoras tentei observar estes aspectos, se apareciam nos
depoimentos.
As primeiras conversas com quatro das seis professoras contatadas até o
momento, fizeram-me refletir sobre como teriam sido suas experiências leitoras e os
suportes dessas leituras De seus relatos iniciais pude depreender que a escassez de
livros era comum à todas. Elas se referiam aos livros didáticos, comprados com
muito sacrifício para estudar, além da cartilha em que foram alfabetizas. A leitura
compartilhada da bíblia e de algumas histórias, geralmente com um fundo moral,
430
foram algumas indicações dessas experiências relatadas por uma das professoras.
Das conversas iniciais gravadas com quarto professoras, apenas uma delas faz
referências aos livros que tinha acesso e aos modos de leituras.
Foi com esta
professora, também, que encontrei vários livros escolares – alguns do seu processo
de escolarização primária – além de cadernos de apontamentos do período dos
cursos de formação e aperfeiçoamento (PAMP). O relato feito pela professora tem um
traço religioso forte, pois suas referências de leituras são de textos religiosos, da
Bíblia ilustrada comprada pelo pai, e que este lia aos domingos pela tarde, no que ela
chamou de “escolinha bíblica”. Além dessa leitura a professora M.A. se referiu a
outros livros de histórias que de alguma forma tinham um fundo moral, que trazia
ilustrações que ela disse recordar-se.
Assim como a professora M.A. minhas primeiras lembranças de histórias são
de ouvir histórias, do meu pai, da minha mãe. A figura do narrador que conta a
história que ouviu de outros narradores se faz presente na minha história de leitura e
na da professora M.A., figura esta que está em vias de extinção como aponta Walter
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Benjamim (1996, p.198) que para ele “Uma das causas desse fenômeno é óbvia, as
ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que
seu valor desapareça de todo.” Há poucos espaços hoje para a contação de histórias
em família, aqueles momentos em que todos se reuniam na cozinha em torno da
mesa ou na sala para ouvir “causos” e histórias.
Embora de alguma maneira, alguns de nós, talvez num gesto de saudosismo
tentemos manter essas práticas familiares, o que resulta muitas vezes uma
concorrência com a televisão, o computador ou o telefone celular, quando fica cada
vez mais difícil uma reunião familiar em torno do pai ou da mãe para ouvir/contar
histórias. É certo, porém, que a figura do contador de histórias ainda não
desapareceu completamente, pois há também uma tendência a profissionalização
desse sujeito narrador em espaços não formais e eventos literários, como acontece na
Feira do Livro promovida pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Na construção deste artigo me propus estabelecer relações entre as leituras
realizadas na disciplina, o campo da pesquisa (auto)biográfica e a formação do
professor-leitor, e seu contributo para o estágio de construção atual da minha
pesquisa, memórias de leitura apontadas no relato de uma das professoras, e minhas
próprias memórias de leitura. Tentei cumprir a promessa feita no resumo deste texto,
ao apresentar uma análise de algumas das leituras realizadas durante o semestre e
que em relação ao meu objeto de estudo estão mais próximas.
Ao buscar estabelecer uma ponte entre a minha pesquisa e a disciplina, o fiz a
partir do que temos de mais próximo: a pesquisa (auto)biográfica voltada para a
investigação de processos formativos, no caso desta investigação, das professoras
leigas. Tendo a disciplina o foco na formação do professor-leitor, busquei a partir do
Rascunho de mim e do relato de um das professoras estabelecer uma ponte com essa
temática. Embora a minha investigação esteja no início e as primeiras conversas com
as quatro professoras não tenham revelado muito desse aspecto da leitura – apenas
431
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
uma delas faz referências às suas leituras e modos de partilha dessas leituras –, a
disciplina faz suscitar as possibilidades desses olhares para as próximas entrevistas
com estes professores e com as que não foram ainda contatadas. Isto não significa a
mudança no foco da pesquisa, mas estar atenta ao surgimento de elementos novos
que podem redimensionar as perspectivas na análise dos dados.
Para além da relação da disciplina com a minha pesquisa em curso, as leituras
e a escrita suscitada à partir daquelas, me fez compreender mais ainda a importância
do sentido das palavras na minha história de vida. Se até os 10 anos de idade os
livros não estiveram presentes materialmente na minha vida, as histórias ouvidas de
meus pais compuseram meu imaginário e alimentaram a minha fome de palavras,
que daí em diante, desde que me lembro, os livros estiveram presentes em minha
vida, e acho que Eliane Brum (2014, p. 12) tem razão: “A morte é um mundo sem
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
SOUZA, Elizeu Clementino de. O conhecimento de si: estágio e narrativas de
formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A: Salvador, BA: UNEB, 2006.
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UMA VOZ PORTUGUESA COMO TESTEMUNHA DA GUERRA COLONIAL
EM ANGOLA: EXPERIÊNCIA, TRAUMA E REPRESENTAÇÃO
Romilton Batista de Oliveira
Universidade Federal da Bahia – UFBA
[email protected]
RESUMO
Este artigo investiga a trilogia autobiográfica e memorialística do escritor português
António Lobo Antunes como um indispensável testemunho da guerra colonial em
Angola. Os romances Os Cus de Judas, Memória de elefante e Conhecimento do
inferno constituem o corpus desta pesquisa. Pretende-se descrever como o
conceituado escritor, baseado em sua própria experiência com a guerra, descreve as
cenas de horror vistas por sua frágil visão humana. Os personagens-narradores dos
romances em análise, principalmente o personagem-narrador do romance Os Cus de
Judas, o médico, que consegue perceber o que antes não percebia. Foi estando longe
de Portugal, nas terras prenhes de África, que o personagem principal adquire uma
nova consciência de vida, ficando transtornado, sem entender o porquê de tanto
sofrimento. Lobo Antunes consegue em seus romances abrir novas portas para o
entendimento do que foi esta terrível guerra. Ele descreve, seduzido por uma
memória, tecida por uma linguagem ferida em seu complexo mundo interior. Ao
tornar-se um sobrevivente, torna-se, também, uma testemunha importante para
narrar a difícil guerra colonial, ocorrida no território angolano. Sua escrita literária,
nesse sentido, é o resultado do trabalho com a memória traumática. O trauma
consegue perfurar a alma de seus sobreviventes, permitindo-lhes um grande
momento de dor e silenciamento. Muitos sobreviventes da guerra, portugueses ou
angolanos, ao retornarem para os seus respectivos lugares de origem, voltavam em
silêncio, e ainda muitos permancem até hoje. No entanto, há ainda muitos que
conseguem dialogar com esse inevitável passado que faz parte do presente, tanto na
vida de portugueses quanto na vida de angolanos. Há importantes nomes de
escritores africanos, como, por exemplo, José Eduardo Agualusa, Mia Couto,
Pepetela, entre outros, que fazem uso da literatura como veículo de comunicação,
capaz de resgatar, recuperar e ressignificar a memória do passado africano no difícil
período histórico, dominado pela colonização portuguesa. Lobo Antunes parte de
um discurso do lado do colonizador, mas seus textos literários são, por excelência,
críticos e necessários para a própria história afro-lusófona. Este artigo é
metodologicamente bibliográfico, dialógico e interdisciplinar. Autores como Bakhtin
(1995), Stuart Hall (2006), Aleida Assmann (2011), Beatriz Sarlo (2007), Márcio
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Seligmann-Silva (2003, 2005), Walter Benjamin (1994), entre outros, são de suma
importância, na construção de um consistente diálogo com o passado construído
sobre os pilares da memória traumática. A literatura de traço testemunhal é um forte
aliado na representação da voz daqueles que conseguem romper com os lacres da
indizibilidade e irrepresentabilidade discursiva. Esta pesquisa prisma por este
caminho e contribui nesta direção, sendo mais um trabalho que caminha pelas teias
da complexa dimensão humana.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Trauma; Representação; Memória; Afro-lusofonia.
APRESENTAÇÃO
Os romances que fazem parte do corpus desta pesquisa direcionam-se
historicamente à Guerra Colonial e ao seu fim, bem como o inevitável fim de um
mundo burguês, marcado por valores tradicionais. Os anti-heróis dos seus romances
são pessoas que exercem profissões liberais, oriundas de “boas famílias”, refletindo a
própria disfuncionalidade familiar do autor. E nesse sentido Os Cus de Judas constitui
436
um bom exemplo, além de vários outros romances escritos por ele, em que os
personagens/narradores cruzam suas vozes nesses dois espaços: Portugal e Angola.
O objetivo deste artigo, que tem como tema Uma voz portuguesa como
testemunha da guerra colonial em Angola: experiência, trauma e representação é
analisar três conceitos importantes entre si, que estão relacionados à descrição do
testemunho da experiência do escritor português António Lobo Antunes, por meio
de seus três primeiros romances publicados nos anos de 1979 e 1980, mencionados
anteriormente. Esses romances fazem parte de sua trilogia autobiográfica que
marcou a vida deste escritor para sempre.
O principal conceito norteador deste trabalho é o trauma, fenômeno que se
inscreve no corpo, em forma de “ferida”. Vários autores darão suporte que são de
relevantes contribuições, em relação a esta questão: a presença do trauma nas obras
literárias de Lobo Antunes. Assim, para o alcance de nossos objetivos, selecionamos
autores de vários campos do conhecimento que dialogam com os estudos literários,
desde o aspecto psicológico ao sociológico, além do filosófico e histórico, com o
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
intuito de realizar um consistente diálogo, acerca do processo mnemônico que se faz
presente nos romances, por meio das vozes de seus respectivos narradorespersonagens.
Apresentamos nesta pesquisa, oriunda da tese em construção do Doutorado
em Cultura e Sociedade, na UFBA, a representação da memória e sua articulação com
a linguagem, citando entre outros teóricos, o filósofo e linguista Mikhail Bakhtin,
que, através de seu conceito de intertextualidade e dialogia, autoriza-nos a usar termos
como “vozes” em nosso trabalho. Faremos uso também de autores que alicerçam
nossas inquietações como João Carlos Tedesco, autor do importante livro Nas
cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração (2004), em que o autor
traz importantes contribuições na relação da memória com outros vários conceitos
que com ela se interage, mostrando que a memória nos ajuda a identificar formas de
pensar no decorrer do tempo, produzindo sujeitos históricos, revigorando símbolos e
reconstruindo a vida pelo veio da narração e da experiência.
Outra importante contribuição vem do livro de Maurice Halbwachs, Memória
coletiva (2006), em que o autor analisa a memória num contexto social e
historicamente situado, centralizando-se mais no espaço do que no próprio tempo.
Fortemente influenciado por Émille Durkheim, elabora dois relevantes conceitos: o
de memória individual e o de memória coletiva, direcionando seus estudos para a
memória coletiva.
O centro de nossa atenção no que diz respeito ao conceito de memória gira em torno de
dois autores, Henri Bergson que se preocupa com o “dentro” da memória e Maurice
Halbwachs que se volta para o “fora” da memória. Cada um, a partir de suas abordagens em
torno da teoria da memória, possui importância decisiva nesta pesquisa, pois toda memória se
ancora nessas duas dimensões temporais e espaciais: o exterior e o interior. “A memória é o
recurso máximo de conformação da escritura, é o princípio mobilizador do ofício da
representação” (PINTO, 1998, p. 22).
Enfim, esses e outros autores são citados aqui para tornar viável um diálogo
interdisciplinar, capaz de direcionar nosso foco em torno da memória traumática que
se faz presente no testemunho do sobrevivente do trauma de guerra: Lobo Antunes.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Nesse sentido, a voz literária loboantuniana é necessária para compreender melhor
os conflitos existentes entre Portugal e Angola, contextualizados por dois segmentos
históricos que foram sendo desfeitos e desconstruídos através dessas guerras – o
colonialismo e o descolonialismo –, guerras ocorridas em várias colônias
portuguesas, que não aceitavam mais ser escravizadas e comandadas pelo regime
ditatorial português. Política e ideologicamente construída, na esteira de um sistema
de pensamento absolutista, centralizador, homogênio e hegemônico.
EXPERIÊNCIA, TRAUMA, CORPO, VOZ, REPRESENTAÇÃO E LITERATURA
Por que colocamos a palavra experiência antes das palavras trauma, corpo,
voz e representação neste título? Porque acreditamos que é por meio dela que os
sujeitos adquirem representações e necessárias condições para falar, de seu
438
respectivo lugar, sobre o que lhes aconteceu. Assim, sem experiência não há
narrativa, nem tampouco representações, testemunhos, memórias. Segundo Beatriz
Sarlo:
A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma
presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem
experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem
liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo
ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no
comum. A representação inscreve a experiência numa temporalidade
que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo
pela passagem do tempo e pelo irrepetívle), mas a de sua lembrança.
(2007, p. 24-25).
A autora traz à tona, com exatidão e clareza, o que esta pesquisa acredita,
como já mencionamos anteriormente. No entanto, Benjamin em seu livro Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (1994),
especificamente em seus capítulos “Experiência e pobreza” e “O narrador.
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, afirmou que “com a guerra mundial
tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra,
observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável” (1994, p. 198). Beatriz sarlo
discorda deste pensamento benjaminiano, acreditando que a experiência enriquece
os sobreviventes. “O sujeito não só tem experiências como pode comunicá-las,
construir seu sentido e, ao fazê-lo, afirmar-se como sujeito” (SARLO, 2007, p. 39).
Os
autores/sobreviventes/personagens/narradores
jamais
conseguiriam
escrever o que os seus olhos viram, senão por meio do imaginário. Sem este
importante recurso que subjetiva a voz humana, não seria possível falar dos traumas
oriundos dessas grandes catástrofes.
A condição dialógica é estabelecida por uma imaginação que,
abandonando o próprio território, explora posições desconhecidas em
que é possível surgir um sentido de experiências desordenadas,
contraditórias e, em especial, resistentes a se render à ideia simples
demais de que elas são conhecidas porque foram suportadas.
(SARLO, 2007, p. 41).
Para João Carlos Tedesco:
O conceito de experiência é complexo: pode estar envolvido na ideia
do que se vive (só em parte consciente), no processo por meio do qual
o sujeito se apropria do vivido e o sintetiza, no exercício controlado,
repetitivo, subjetivamente depurado, na via de acesso ou ter um dote de
sabedoria, no exercício e a aquisição de capacidade de elaboração, no vivido,
particularmente significativo e carregado de expectativas de
competência, [...] Fala-se em experiências como passado presente, no
qual eventos podem ser recordados; incorpora-se algo do passado no
presente, como faculdade de conter os diversos vividos numa
continuidade dotada de sentido. (2004, p. 98-99).
O autor explana com veemência autoridade, descrevendo a experiência como
algo complexo, afirmando com exatidão, que essas experiências vivenciadas no
passado transformam o nosso presente, dando a ele um novo sentido. Desta forma,
entendemos que o ponto de partida para olharmos o passado é o presente. É do
presente que eu nós devemos nos dirigir-mos ao passado. “O passado é sempre
conflituoso. [...] O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da
lembrança, mas um advento, uma captura do presente” (2007, p. 9). Afirma ainda a
autora que o s verdadeiros testemunhos de tais atrocidades (referindo-e a qualquer
catástrofe, e em especial ao Holocausto) não podem vir à tona, não podem falar, e
este silêncio imposto pelo assassinato torna incompleto o testemunho dos
“sobreviventes. A autora comenta ainda que:
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
De modo radical, não se pode representar os ausentes, e dessa
impossibilidade se alimenta o paradoxo do testemunho: quem
sobrevive a um campo de concentração sobrevive para testemunhar e
assume a primera pessoa do que seriam os verdadeiros testemunhos,
os mortos. Um caso-limite, terrível, de prosopopeia. (SARLO, 2007, p
35).
Lobo Antunes é um exemplo de sobrevivente que rompe com os lacres da
impossibilidade de se falar dos escombros da guerra. Ele consegue falar utilizando-se
de uma potência de linguagem que emerge de seu mundo interior, carregado de
imagens que seus olhos presenciaram. Mas é, em seu corpo, que estão presentes as
marcas desta irrepresentabilidade. Sua experiência, enquanto médico e portador de
um domínio linguístico psiquiátrico deu ao autor condições de escrever sobre os
horrores que presenciou na guerra colonial em Angola.
Para Jorge Larrosa Bondía (2002)
440
as palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos
com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma
suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras.
E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”,
como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas sobretudo dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o
sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. (BONDÍA, 2002, p.
21)
Concordamaos plenamente com Bondía, pois é a palavra que domina o
mundo, as pessoas e as relações humanas. Nesse sentido Mikhail Bakhtin, já
afirmava que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da
palavra é absorvida por sua função de signo. [...] A palavra é o modo mais puro e
sensível de relação social” (BAKHTIN, 1995, p. 36). Ainda complementa o autor,
dizendo: “a palavra funciona como elemento essencial que acompanha toda criação
ideológica, seja ela qual for”. (BAKHTIN, 1995, p. 37).
Michel Foucault chama a atenção, de que nem tudo podemos falar falamos,
pois somos interditados por determinadas ideologias em nossos discursos. Em
relação a isso, ele comenta:
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo,
procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também,
é a interdição. Sabe-se bem que não tem o direito de dizer tudo em
qualquer cirscunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância direito
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privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três
tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam,
formando uma grade complexa que não cessa de se modificar. [...]
Por mais que o discurso seja aparentemente bem ouca coisa, as
interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação
com o desejo e com o poder. (FOUCAULT, 2008, p. 9-10)
Foulcault, em seu livro A ordem do discurso (2008), faz menção a três grandes
sistemas de exclusão que atingem o discurso: a palavra proibida, a segregação da
loucura e a vontade de verdade. Mas é no terceiro sistema de exclusão que ele mais
chama a atenção: a vontade de verdade. Conforme Foucault, trazendo agora a ideia
de disciplina, afirma que ele “é um princípio de controle da produção do discurso
Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma
reatualização
permancente
das
regras”
(FOUCAULT,
2008,
p.
36).
E
complementando ainda as ideias em torno do controle dos discursos, o autor faz a
seguinte reflexão:
Desta vez, não se trata de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar
os acasos de sua aparição; trata-se de determinar as condições de seu
funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número
de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles.
Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do
discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início,
qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do
discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente
proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase
abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada
sujeito que fala. (2008, p. 36-37)
O autor é um férreo crítico do sistema dominante que determina o que as
pessoas devem ou não fazer ou pensar. Sendo um pós-estruturalista, por excelência,
suas contribuições são de grande importância para a crítica cultural ou mesmo ao
sistema de pensamento que reproduz em seu seio uma única voz, excluindo tantas
outras de seu espaço discursivo. Foucault (2008) afirma em tom de alerta que
ninguém se deixe enganar diante da ordem do discurso verdadeiro ou do discurso
publicado e livre de qualquer ritual, pois se exercem ainda formas de apropriação de
segredo e de não-permutabilidade. “Todo sistema de educação é uma maneira
política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os
poderes que eles trazem consigo” (Idem, p. 44). Há, por traz de nossas palavras,
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
formações ideológico-discursivas, emanadas de estruturas que estão acima de nós,
bem sedimentadas politicamente, tornando-nos reprodutores de seus discursos.
Agora, o autor oferece-nos o conceito do que vem a ser discurso. Segundo ele:
O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade
nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim
tomar a forma de discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso
pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas,
tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à
interioridade silenciosa da consciência de si. [...] o discurso nada mais
é do que um jogo, de escritura, no primeiro caso, de leitura, no
segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, essa leitura e essa
escritura jamais põem em jogo senão os signos. [...] Deve-se conceber
o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma
prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os
acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua
regularidade. (FOUCAULT, 2008, p. 49-53).
Não é a linguagem que tem a primazia; o único objeto imanente que pode ser
submetido à analise é o discurso: “É no discurso atualizado em frases que a língua se
forma e se configura” (COQUET, 2013, p. 112). Ainda segundo Jean Claude Coquet
442
“o locutor é duplamente centrado, no tempo e no espaço. No tempo, pois “é sempre
no presente que estamos centralizados” [...]; no espaço, pois ele ocupa um centro de
perspectiva no mundo. Mas é um centro móvel, um centro que se desloca ao mesmo
tempo que se renova o presente do discurso. (COQUET, p. 112-113).
A representação está integrada à memória. É por meio da memória que
acumulamos conhecimento e experiência, através das quais formulamos nossos
pensamentos em torno da vida e das coisas que nos cercam. Passado, presente e
futuro se misturam em nossas mentes, pois “aquilo que dirige não são poucas ideias
que ocupam presentemente nossa atenção; são isto, sim, os resíduos deixados por
nossa vida anterior”, como bem enfatizou o autor acima. Percebemso também que
segundo o autor, as representações estão sempre em confronto e são produzidas por
meio do movimento do corpo.
Falamos até este momento da importância da palavra, da linguagem, do
discurso e da representação, pois quando dizemos que o mundo gira em torno da
palavra, queremos dizer que as coisas e as palavras representam os sujeitos que
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
vivem em sociedade. Mas a palavra, o discurso, a representação está relacionada ao
corpo dos sujeitos que enunciam suas vozes, externa ou internamente.
O corpo é um misterioso lugar de inscrição do trauma, um potente lugar de
onde saem os signos que estão aprisionados por ele. Assim, por muito tempo, o
corpo não era visto com bons olhos. O pensamento iluminista que perdurou por
muito tempo em nosso mundo, analisava a realidade a partir da razão, descartando o
corpo do sistema de pensamento que era construído e aceito pelos pensadores e
demais pesquisadores. Filósofos como Merleau-Ponty e Henri Bergson (2010)
colocam em cena o corpo como ponto de partida na construção do conhecimento e da
própria realidade. “Quando a narração se separa do corpo, a experiência se separa de
seu sentido” (SARLO, 2007, p. 27).
Para Bergson, em relação à experiência e ao corpo, o autor afirma que:
Com relação às representações, ele é um instrumento de seleção, e de
seleção apenas. Não poderia engendrar nem ocasionar um estado
intelectual. No que diz respeito à percepção, nosso corpo, pelo lugar
que ocupa a todo instante no universo, marca as partes e os aspectos
da matéria sobre os quais teríamos ação. [...] No que diz respeito à
memória, o papel do corpo não é armazenar as lembranças, mas
simplesmente escolher, para trazê-la à consciência distinta graças à
eficácia real que lhe confere, a lembrança útil, aquela que completará
e esclarecerá a sitação presente em vista da ação final. (2010, p. 209).
Assim, o autor acaba esclarecendo que o corpo é muito importante nos
estudos da memória e da representação. É corpo que seleciona e nos movimenta,
marcando os aspectos da matéria sobre os quais teríamos ação. Informa ainda o
escritor que o papel do corpo, diante da memóra, não é armazenar as lembranças,
mas para escolhê-las, conferindo ao corpo um lugar de suma importância para a
análise e entendimento de nosso foco: o trauma nas obras loboantunianas, o trauma
como “ferida” que está no corpo.
A arte – como Benjamin já notara –, assume agora o papel de
domesticadora dos indivíduos para a vida numa sociedade onde o
choque se tornou parte da ordem do dia [...]. A verdade parece residir
no trauma: no corpo como anteparo dessa ferida; num corpo cadáver
que é visto como uma protoescritura que testemunha o trauma.
Nessa nossa cultura fascinada pelo trauma estabelece-se uma nova
ética e estética da representação (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 43).
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
É, portanto, o corpo, o elemento gerador e selecionador das lembranças que
eles guardam silenciosamente. Lobo Antunes, astutamemnte, consegue dialogar com
o seu corpo e fazê-lo selecionar as principais imagens que a sua frágil visão detecta.
O corpo, sem dúvida, carrega dentro de si a experiência vivida pelos indivíduos que
sobreviveram a catástrofes ou guerras.
O trauma, conceito norteador deste trabalho, consegue perfurar o tempo
vivido dos sobreviventes da guerra, sentimentos que adentram o interior de suas
vítimas, causando-lhes um grande desconforto humano, como se eles perdessem o
seu velho, fixo e seguro sentido das coisas e passassem a viver numa zona de
desconforto e desequilíbrio constante. “Essa terapia do trauma consiste no
aprendizado de uma nova relação com o mundo” (ASSMANN, 2011, p. 314),
possibilitando a inevitável desconstrução da identidade daqueles que passaram pela
experiência com o horror desumano. Segundo Tedesco (2004, p. 93), “a identidade se
faz pouco a pouco, com base na experiência vivida, rememorada, retida
anteriormente. Nesse sentido, a memória é o componente essencial para a identidade
444
do indivíduo e sua integração social”, ou mesmo a desintegração social, em se
tratando da memória traumática.
Em se tratando de guerra, podemos afirmar que ela tem o poder de desfazer,
desmanchar, destruir e desconstruir sentimentos, pensamentos, discursos e
representações culturais. Quem dela faz parte não retorna o mesmo. É ela o material
da origem do trauma.
Lobo Antunes é um grande exemplo desse fenômeno que desloca e descentra
o
homem
de
seus
antigos
valores.
Ao
retornar
da
guerra,
o
autor/personagem/narrador revela que:
O medo de voltar ao meu país comprime-me o esófago, porque
entende, deixei de ter lugar onde fosse, estive longe demais, tempo
demais para tornar a pertencer aqui, a estes outonos de chuvas e de
missas, estes demorados invernos despolidos como lâmpadas
fundidas, esses rostos que reconheço mal sob as rugas desenhadas,
que um caracterizador irónico inventou (ANTUNES, 2007, p. 182).
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Lobo Antunes tem a sua vida abalada, se sente ameaçado pelo passado e
inseguro com o devir, gerando, com isso, um desconforto diante da realidade, uma
crise de identidade, como bem sinaliza Stuart Hall ao afirmar que esta crise
é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as
estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de
referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” [...]
Esta perda de um ‘sentido de si’ estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento
ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento-descentração dos indivíduos
tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma
crise de identidade para o indivíduo. ( 2006, p. 7- 9)
Noutro momento do romance Os cus de Judas, o autor ainda desabafa:
Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e
que intimamente recuso: um soldado melancólico a quem se não
telefona e cujo telefonema ninguém espera, tossindo de tempos a
tempos para se imaginar acompanhado, e que a mulher-a-dias
acabará por encontrar sentado na cadeira de baloiço em camisola
interior, de boca aberta, roçando os dedos roxos no pêlo cor de
novembro da alcatifa. (ANTUNES, 2007, p, 56).
O autor/personagem/narrador está passando por uma crise de identidade e
de representação. A guerra costuma fazer isso em seus sobreviventes, deixando-os à
mercê do caos-interior em que as suas vidas se tranformam.
Podemos averiguar que na citação a seguir, retirada dos romances em análise,
a presença de uma memória interpelada por signos que remetem ao corpo,
demonstrando, desta forma, a inscrição do trauma no corpo, e respectivamente a
retomada de uma dolorida consciência de sujeito que se está envelhecendo, um
sujeito em desconstrução e em crise de representação, um sujeito em estado de
choque:
Em cada manhã, ao espelho, me descubro mais velho: a espuma de
barbear transforma-se num Pai Natal de pijama cujo cabelo
desgrenhado oculta pudicamente as rugas perplexas da testa, e ao
lavar os dentes tenho a sensação de escovar mandíbulas de museu, de
caninos mal ajustados nas gengivas poeirentas. (ANTUNES, 2008, p.
66).
Ainda, noutro momento, podemos encontrar novamente, o trauma inscrito no
corpo através da seguinte citação:
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
[...], encontrei uma mulher numa cama e uma criança num berço
dormindo ambas na mesma crispação desprotegida feita da
fragilidade e abandono, e fiquei parado no quarto com a cabeça cheia
ainda dos ecos da guerra, do som dos tiros e do silêncio indignado
dos mortos, a escutar, sabe como é, os sonos que se entrelaçavam
numa rede complicada de hálitos, um tornozelo da minha mulher
sobrava, pendente, dos lençóis, e eu comecei a afagá-lo de leve até ela
acordar, afastar os cobertores sem nenhuma palavra, e me receber
inteiro na cova morna do colchão. (ANTUNES, 2008, p. 86)
Tornar o indizível visível através da linguagem é quebrar os lacres que não
conseguiam romper com as “amarras” da irrepresentabilidade, é produzir discurso
onde predomina silêncio e dor, produzir palavras no campo onde os signos estão
amarrados a uma incompreensibilidade discursiva, como bem se pode constatar no
romance Conhecimento do inferno, na voz de seu personagem/narrador:
[...] e o seu corpo estendeu-se, tenso, na direção do som, à
maneira de uma corda de arco que o dedo do gemido
arrepiava. Escutava esse som nocturno na manhã do hospital,
carregado das misteriosas ressonâncias e dos impalpáveis ecos
das trevas, essa amêndoa de sombra na luz poeirenta, excessiva,
da manhã, com a mesma expectativa dolorosa, o mesmo
indizível pavor com que sentia aproximarem-se de si as
trovoadas de África, pesadas de uma angústia insuportável
(ANTUNES, 2006, p. 47).
446
Vejamos agora uma citação do romance Memórias de elefante em que podemos
perceber as palavras finais do persoangem/narrador e a sua desilusão diante da trágica
realidade:
Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e
responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda,
chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo
para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de
obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre
uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota
mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir (ANTUNES,
2009, p.157-158).
Assim, podemos dizer que o narrador narra “porque pressente que algo de
fundamental foi esquecido; mas, enquanto não poder eliminar esse esquecimento, só
poderá narrar tomado por forte sentimento de desorientação, de angustiante
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
sensação de ‘desmoronamento do mundo’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 367).
Nesse sentido, vale trazer à tona o pensamento de Montaury, pesquisador das obras
de Lobo Antunes, quando ele afirma que os personagens de suas obras são “seres
perdidos num vasto mundo feito de ausências e de morte, onde a representação e a
mediação transformam a experiência fragmentada e desintegrada em tecido de real”
(1996, p. 303).
O autor/personagem/narrador é conduzido ao seu desfecho final, tornando
claro no que ele se transformou. A experiência com a guerra modificou-lhe para
sempre a sua forma de pensar, agir e estar no mundo. Na última página do romance
Os cus de Judas, podemos constatar, por meio da voz de suas respectivas tias o
resultado da guerra:
As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas decoradas
por filigramas de crochet, serviam o chá em bules [...] – Felizmente que a
tropa há-de torná-lo um homem uma voz fraca, amortecida pela dentadura
postiça, como que chegada de muito longe e muito alto, articulou, a raspar
sílabas de madeira com a espátula de alumínio da língua: – Estás magro.
Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada
a fazer (ANTUNES, 2007, p. 13 e 196).
Assim, podemos entender que Lobo Antunes retorna não como um retornado,
mas como um sobrevivente que tem que dar conta desse novo sujeito em que ele
transformou: um “outro” machucado, ferido e transformado pelas marcas de um
passado que jamais sairá de sua mente, pois, ele foi ferido no corpo e na alma pelo
“fantasma” que acompanha todos os sobreviventes de catástrofes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência é o alicerce necessário para que o evento vivenciado
traumaticamente pelo escritor viesse à tona. Ele utiliza a literatura para narrar a sua
experiência, com o trauma de guerra que, segundo a maioria dos pesquisadores, é
irrepresentável e indizível. Porém, o sobrevivente escritor age como um “lobo voraz”
da linguagem humana e consegue romper com os lacres que aprisionam o trauma no
interior de si mesmo. Nesta pesquisa, apresentamos o trauma como uma “ferida”,
447
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
que se aloja no corpo. O corpo tornou-se, nesse sentido, um potente lugar de
inscrição deste “mal”, que transformou a vida de Lobo Antunes para sempre.
Dialogamos com diversos autores de forma interdisciplinar, por entendermos que o
trauma é um tema analisado por várias áreas do conhecimento humano, desde o
filosófico e histórico ao sociológico e literário. Autores como Seligmann-Silva, Beatriz
Sarlo, Walter Benjamin, Maurice Halbwachs, Henri Bergson, Michel Foucault e Stuart
Hall foram citados para que pudéssemos analisar, de forma mais consistente, o
trauma nos romances de Lobo Antunes. O resultado desta pesquisa está em fase de
conclusão, mas podemos, desde já, antecipar, que todos os romances de Lobo
Antunes são tecidos por signos (linguagem ou discurso) construídos sob o domínio
de uma forte presença traumática.
A literatura torna-se uma constante ameaça para o esquecimento, na medida
em que ela descreve a memória individual/coletiva de um povo, trazendo em suas
páginas a experiência de personagens que sobrevivem à guerra (à morte),
“resgatando” e ressignificando a memória e a história de seu passado. Ela representa,
448
e se apresenta como um importante instrumento de “ressignifiçação” da memória, de
uma memória que é reconstruída por meio das vozes que ecoam de seus silêncios
interiores. Sem memória, o caos se estabeleceria, e depressa o esquecimento varreria
de nosso espaço nossas próprias histórias e memórias.
A literatura loboantuniana autobiográfica representa, nesse sentido, uma voz,
um discurso, uma representação pessoal do escritor vivenciada nos liames do horror
bélico, uma voz importante para se entender melhor a guerra colonial em Angola e
as suas terríveis consequências, tanto para a história de Angola como para a história
de Portugal.
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449
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
450
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES: visões docentes
sobre o processo formativo vivenciado no programa Pró-letramento
Rosana Fernandes Falcão
Universidade Estadual de Feira de Santana
[email protected]
RESUMO
A compreensão de que a leitura deve ser um direito de todos, primeiro direito
básico, para que todos os outros direitos sejam compreendidos, logo para o exercício
da cidadania, denota à escola a urgência em ressignificar o seu papel no trabalho com
essa temática. E ao professor, como principal agente de formação de alunos leitores,
a necessidade de repensar a sua prática educativa, o que perpassa pelo investimento
em um processo formativo contínuo, que apresente a literatura como uma forma de
lidar, compreender, explorar e transformar o mundo, favorecendo a incorporação da
leitura à vida pessoal e profissional, tendo em vista a construção de uma prática
educativa qualificada. Este artigo pretende promover uma reflexão sobre as
implicações da proposta do programa Pró-Letramento, área de linguagem, que
integra a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação
Básica, na formação docente. Trata-se de um recorte da pesquisa intitulada O Próletramento e as suas Implicações na Formação do Professor Leitor, do Programa de PósGraduação em Educação, da Universidade Estadual de Feira de Santana, a qual,
ainda na fase de análise dos dados coletados, aponta, importantes reflexões dos
sujeitos envolvidos sobre as implicações do curso para a constituição docente. Nessa
perspectiva, esta escrita tem o desejo de socializar alguns resultados que emergiram
do processo, no qual a sustentação teórico-metodológica foi ganhando sentido a
partir dos princípios da abordagem qualitativa, com viés na (auto)biografia, por
compreender a necessidade de articular vida e profissão, na constituição docente,
elegendo como dispositivos de recolha de “dados” a entrevista narrativa e a análise
de documentos do curso e pessoais. No desenvolvimento dessa produção, fez-se
necessário estabelecer um diálogo dos percursos formativos dos sujeitos
entrevistados com teóricos que versam sobre formação docente e leitura, a saber:
Nóvoa (2009); Lajolo (1988), Freire (1995), Gatti (2006, 2008), dentre outros. A analise
dos documentos que integram o programa e das entrevistas realizadas, a luz da
teoria supracitada, parecem apontar uma distância entre a proposta teórica do curso
Pró-Letramento e a sua execução, bem como a ausência de um trabalho intencional
na formação leitora do professor. O que nos leva a questionar os princípios
formativos previstos no discurso teórico da Rede Nacional de Formação, ao nos
depararmos com uma proposta de curso que privilegia a aplicação de atividades
conforme observa-se no curso Pró-Letramento, em detrimento do aprofundamento
em conhecimentos que respaldem e favoreçam um trabalho de reflexão e
investigação da prática.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
PALAVRAS-CHAVE: Formação continuada de professores; Reflexão da prática;
Professor-leitor.
APRESENTAÇÃO
Estamos vivendo em uma sociedade que exige cada vez mais respostas
inovadoras aos diferentes e complexos problemas apresentados.
São novas
demandas que trazem consigo novos desafios para todos os segmentos que a
constituem. No setor educacional, as atuais discussões apontam para a necessidade
de repensar o sistema educativo, na expectativa de que este se constitua, segundo
Nóvoa (2009), em um novo espaço público para a educação. O que significa assumir
uma nova função frente à sua complexidade, reconhecendo os limites da educação
na transformação política da sociedade, porém, consciente de que é através da
educação que podemos compreender segundo Freire (1986), as relações de poder
estabelecidas na sociedade, bem como
452
preparar e participar de programas na
perspectiva de promover mudanças.
Nessa perspectiva, “ ‘O novo’ espaço público da educação chama os
professores a uma intervenção técnica, mas também a uma intervenção política, a
uma participação nos debates sociais e culturais, a um trabalho continuado junto às
comunidades locais.” (NOVÓA, 2009, p.24).
O que explicita a importância e a
complexidade do papel do professor na contemporaneidade, fomentando a urgência
na construção da identidade da profissão, o que perpassa sobretudo pela necessidade
em investir em uma concepção de formação continuada de professores que promova
conhecimentos teórico-práticos, possibilite um trabalho qualificado, logo a sua
condição de intervir no mundo.
Assim, torna-se imprescindível compreender o contexto atual da formação
de professores, inicial e contínua, desenvolvidas pelos sistemas municipais em
parceria com o governo federal, à luz da teoria, tendo em vista às necessárias
mudanças. Nessa perspectiva, esta escrita tem o desejo de socializar alguns
resultados que emergiram do processo de desenvolvimento da pesquisa intitulada O
Pró-letramento e as suas Implicações na Formação do Professor Leitor, do
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Feira de
Santana, a qual, ainda na fase de análise dos dados coletados, aponta importantes
reflexões dos sujeitos envolvidos sobre as implicações do curso para a constituição
docente. A
sustentação teórico-metodológica foi ganhando sentido a partir dos
princípios da abordagem qualitativa, com viés na (auto)biografia, por compreender a
necessidade de articular vida e profissão, na constituição docente “ancorada na idéia
da emancipação da pessoa, as histórias de vida em formação propõem que o sujeito
se aproprie de seu processo de formação ao se tornar autor de sua história”
(DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 16), elegendo como dispositivos de recolha de
“dados” a entrevista narrativa e a análise de documentos do curso e pessoais.
No desenvolvimento dessa produção, fez-se necessário estabelecer um
diálogo dos percursos formativos dos sujeitos entrevistados com teóricos que versam
sobre formação docente e leitura, a saber: Nóvoa (1992); Lajolo (1988), Freire (1995),
Gatti (2006), dentre outros.
1.
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES: UM CAMINHO A SER
CONSTRUÍDO
Em 1997 registra-se uma expressiva expansão e
reorganização da formação
docente em nível superior, instalando-se no país uma grande disputa de espaço para
com o trabalho de formação de professores da educação básica. No que diz respeito à
formação continuada desses profissionais no Brasil, as discussões intensificaram-se
na década de 80, partindo de cursos de curta duração, até programas de extensão,
nas modalidades: presencial, semipresencial e a distância.
A partir de 1990, com a compreensão de que a melhoria do ensino estava
atrelada à qualificação docente, o Ministério da Educação (MEC), em parceria com os
sistemas de ensino estaduais e municipais, vem implementando vários programas de
formação continuada para os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental,
visando
sobretudo resolver os problemas originários da formação inicial do
professor. Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-
453
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
LDB, 9394/96, observa-se que as discussões sobre formação de professores da
educação básica passam a ganhar maior visibilidade, ao estabelecer que
Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-seá em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em
universidades e institutos superiores de educação, admitida, como
formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil
e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em
nível médio, na modalidade Normal. (BRASIL, 1996)
Para apoiar as instituições educacionais no trabalho com formação de
professores, visando mudanças curriculares e nas práticas educativas, em
consonância com a LDB 9394/96, o MEC criou, em 1997, os Referenciais para a
Formação de Professores, primeira versão, que foi submetida a apreciação de
educadores e especialistas de todo o país,
tendo publicada uma versão mais
completa em 1999. Além de apoiar as discussões sobre formação docente, os
Referenciais para a Formação de Professores teve como finalidade provocar
orientar mudanças na formação de professores,
454
e
conforme consta no referido
documento, ao tratar que essa proposta
[...] reflete as temáticas que estão permeando o debate nacional e
internacional num momento de construção de um novo perfil
profissional de professor. É, portanto, uma referência em relação à
qual os autores podem se posicionar, promover discussões e
reformulações e criar novas experiências nas suas diferentes
realidades, de acordo com as suas possibilidades e especificidades.
(BRASIL, 1999, p. 32)
Esse documento se constituiu em um marco no trabalho com formação de
professores, norteando muitas propostas de formação desenvolvidas no contexto da
educação pública, trazendo a tona, dentre outras questões a considerar, a
importância da reflexão da prática no trabalho formativo.
Ao conceber que a promoção das necessárias mudanças educacionais perpassa
necessariamente pelo desenvolvimento de um trabalho de formação
docente
contínuo, vislumbra-se um processo formativo que favoreça a construção de uma
prática educativa qualificada e de afirmação da identidade e profissionalização do
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
professor. Nessa perspectiva, ainda em 2006, o MEC, em parceria formalizada em
convênio com universidades, constituiu a Rede Nacional de Formação Continuada
(BRASIL,2006).
São iniciativas
que apontam para a importância da implementação de
políticas de formação de professores que vão muito além do curso de formação
inicial, em consonância com
as
demandas educacionais
que a sociedade
contemporânea vem impondo. Sobre essa questão, a pesquisadora Bernadete Gatti
(2006, p.13), em entrevista concedida à Folha Dirigida, alerta para a necessidade de
assumirmos
“ [...] que o papel da escola,
e dos professores, é o de ensinar-
educando, uma vez que postulamos que sem conhecimentos básicos para
interpretação do mundo não há verdadeira condição de formação de valores e de
exercício de cidadania”. Colaborando na ampliação dessas discussões, a referida
autora, reforça a importância de uma formação inicial de qualidade para o exercício
da docência, contudo enfatiza que a formação profissional não se restringe somente
ao trabalho realizado na Graduação, mas deve ser desenvolvida ao longo da carreira,
através da formação continuada, observando que
Nenhuma formação universitária forma um profissional completo.
Com o avanço dos conhecimentos não é possível absorver tudo. Todo
profissional precisa de uma formação suplementar – que é uma
formação permanente com cursos de extensão de especialização e
no próprio ambiente de trabalho. (GATTI, 2006, p.4,) (Grifo meu)
Em consonância com as idéias de Gatti (2006), ao tratar da importância da
formação permanente dos professores, Freire (1995), ressalta que o professor aprende
a ser professor no processo de ensino, assim necessita de espaços em que possa
refletir com seus pares sobre suas ações docentes.
Nesse sentido, com uma abordagem de educação e formação bem mais
ampliada, em 2015, o Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação
publicam a resolução nº 2, de 1º/07/2015, que estabelece as Diretrizes Curriculares
em nível superior e para a formação continuada dos Profissionais da Educação
Básica,
455
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
[...] definindo princípios, fundamentos, dinâmica formativa e
procedimentos a serem observados nas políticas, na gestão e nos
programas e cursos de formação, bem como no planejamento, nos
processos de avaliação e de regulação das instituições de educação
que as ofertam. (BRASIL, 2015, Cap.1. Art.1º)
Como vimos, as discussões teóricas e os dispositivos legais parecem bastante
articuladas ao abordarem a importância em assegurar um trabalho de formação
docente ao longo de toda a carreira docente, alinhamento que precisa ser garantido
também nas políticas e nas práticas de formação continuada de professores
oferecidas nos sistemas de ensino, para que estes não fiquem restritos a propostas de
formação continuada compensatórias, conforme nos alerta Gatti (2008, p. 58), ao
afirmar que muitos programas de formação realizados pelo governo se enquadram
na perspectiva compensatória e não de atualização e aprofundamento.
2. PRÓ-LETRAMENTO: UMA POLÍTICA DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES
456
Em meados da década de 90, registra-se no Brasil um investimento acentuado
destinado à formação continuada de professores na área de linguagem. São projetos
e programas desenvolvidos pelo
Educação- MEC,
governo federal, através do Ministério da
a exemplo Programa de Formação de Professores Alfabetizares-
PROFA, GESTAR, o Pró-Letramento, dentre outros.
Como uma das políticas de formação do governo federal em convênio com
estados e municípios, o programa de formação continuada de professores da
educação básica, intitulado “ Pro-Letramento - Mobilização pela Qualidade da
Educação - é um curso, na modalidade semipresencial, que prevê a melhoria da
qualidade de aprendizagem de leitura, escrita e matemática nos anos ou séries
iniciais do ensino fundamental.” ( Guia do Pro-Letramento/ BRASIL, 2012, p.1),
resultado da parceria entre Ministério
da
Educação e as universidades
que
integram a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores, criada pelo MEC
em 2004, com a seguinte constituição
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A Rede Nacional de Formação Continuada é formada por
Universidades em que se constituem Centros de Pesquisa e
Desenvolvimento da Educação. Cada um desses Centros mantém
uma equipe que coordena a elaboração de programas voltados para a
formação continuada dos professores de Educação Básica em
exercício nos sistemas estaduais e municipais de educação. (BRASIL,
2006, p.20)
São cinco centros de pesquisa que trabalham por áreas prioritárias de
formação, o Curso Pró-Letramento integra a área de Alfabetização e Linguagem,
apresentando os seguintes objetivos:
[...] oferecer suporte à ação pedagógica dos professores dos anos ou
séries iniciais do ensino fundamental, contribuindo para elevar a
qualidade do ensino e da aprendizagem de língua portuguesa e
matemática; • propor situações que incentivem a reflexão e a
construção do conhecimento como processo contínuo de formação
docente; • desenvolver conhecimentos que possibilitem a
compreensão da matemática e da linguagem e de seus processos de
ensino e aprendizagem; • contribuir para que se desenvolva nas
escolas uma cultura de formação continuada; • desencadear ações de
formação continuada em rede, envolvendo Universidades, Secretarias
de Educação e Escolas Públicas das Redes de Ensino. (BRASIL, 2012,
p.01).
Para tal, o programa defende uma proposta de formação continuada críticoreflexiva sobre o fazer docente, reconhecendo e
valorizando os saberes dos
professores, de suas práticas e do cotidiano escolar.
O referido programa foi implantado no município de Feira de Santana em
2008 e ficou até 2013, quando finalizou a ultima turma, com a chegada do PNAIC –
Pacto Nacional Pela Alfabetização na Idade Certa. Apesar do Pró-Letramento ter
sido desenvolvido parte na publica municipal por seis o anos, não foi possível
levantar material escrito sobre a sua implantação, em 2008, nem dos demais anos de
sua realização, junto a Secretaria Municipal de Educação. Após muitas buscas, foram
resgatados alguns documentos escritos e registros orais, em entrevista realizada com
uma professora que participou da implantação do programa, nos informando que
457
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O programa foi lançado na Bahia em 2008 e o município de Feira de
Santana aderiu ainda nesse mesmo ano. Para tal, criou um grupo,
constituído de professores de língua portuguesa e de matemática da
rede municipal. Os professores foram liberados de sala de aula, para
atuarem como orientadores de estudo. Na área de linguagem, eram
três orientadores de estudo. (Professora Margarida, entrevista 2015)
[...] ao coordenador fazia um trabalho mais burocrático, seleção para
tutor e professor, inscrição, definição de turmas, como a demanda no
momento inicial foi muito grande, tive também que estabelecer,
juntamente com a secretaria, critérios de participação, ai optamos em
trabalhar com os professores da escolas que já tinham implantado o
Ensino Fundamental de Nove Anos.(Professora Margarida,
Entrevista, 2015)
De início, o município ofereceu uma média de oito turmas do curso PróLetramento sob a coordenação geral da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG), do estado do Paraná, envolvendo professores do 1º ao 5º ano do Ensino
Fundamental I, com duração de um ano. Ao coordenador administrativo coube
também o apoio logístico para a realização dos encontros de formação dos
458
orientadores de estudo com os professores cursistas, o que se constituiu, segundo a
professora, em alguns momentos como pontos de dificuldade, desabafando que
“Foram vários problemas enfrentados no desenvolvimento do curso, de ordem
logística e de infraestrutura, para dar conta do Pró-Letramento, desde o início dos
trabalhos até à sua finalização.”( Professora Margarida, Entrevista 2015)
A fala da professora Margarida confirma que a atribuição do coordenador
era meramente administrativa, fazendo jus à nomenclatura atribuída a essa função
no programa e revelando a falta de ênfase em espaços de estudos e reflexão coletiva
com os professores cursistas e orientadores de estudo, para além dos encontros
presenciais, o que se espera de uma coordenação que tem como foco principal o
pedagógico. Logo, imprescindível em um trabalho de formação docente que tem a
prática como objeto de reflexão para a tomada de decisão.
São constatação que demonstram a fragilidade dessas políticas de formação de
professores que costumam não assegurar na prática o que defende no discurso,
conforme podemos observar no trecho abaixo extraído da proposta teórica do curso
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Assim, a prática passa de mero campo de aplicação a campo de
produção do conhecimento, à medida que a atividade profissional
envolve aprendizagens que vão além da simples aplicação do que foi
estudado e os saberes construídos no fazer passam a ser objeto de
valorização sistemática. A formação continuada deve voltar-se para
a atividade reflexiva e investigativa, incorporando aspectos da
diversidade e o compromisso social com a educação e a formação
socialmente referenciada dos estudantes. (BRASIL,2006,p.23) (grifo
meu)
Na medida em que vai se desvelando o trabalho de formação realizado com o
Pró-Letramento no município de Feira de Santana, observa-se uma certa discrepância
entre a sua execução e a proposta teórica do curso, a exemplo da falta de ênfase em
espaços de estudos e reflexão coletiva , envolvendo os professores cursistas e
orientadores, o que fica evidente ao atribuir ao coordenador uma função meramente
burocrática.
No que diz respeito a formação continuada e como esta se desenvolvia, o
portfólio de uma das professoras, elaborado como trabalho final de conclusão do
curso, traz uma coletânea de atividades e textos trabalhados na formação, que apenas
apresenta e não relata os temas e/ou matérias apresentados no corpo da produção,
conforme anuncia o objetivo expresso pela Professora no referido documento,
O objetivo deste portfólio que aqui se inicia, consiste em relatar os
temas desenvolvidos no Programa de Formação Continuada de
Professores Pró-Letramento, que foram realizadas no período de 06
de maio a 01 de dezembro de 2008. Tendo incluso neste portfólio
textos, trabalhos atividades desenvolvidas, etc.(Portfólio, 2008, p.01)
Ao analisar o portfólio, observei que trata-se de uma exposição de atividades e
textos trabalhados no curso, com raras
reflexões, não se constituindo no que
expressa o objetivo supracitado, sem nenhum registro de que este foi avaliado pelo
professor orientador de estudo. O que não condiz com uma proposta de formação de
professores baseado na reflexão sobre a prática proposta por este programa ao
definir que “[...] a formação continuada deve desenvolver uma atitude investigativa
e reflexiva, tendo em vista que a atividade profissional é um campo de produção do
459
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
conhecimento, envolvendo aprendizagens que ultrapassem a simples aplicação do
que foi estudado.” (Guia do Pró-letramento, BRASIL, 2012, p.01).
Vale ressaltar, que o portfólio pode se constituir em um importante
instrumento de análise das situações cotidianas da escola e da própria implicação
pessoal do professor na tarefa de educar, a luz das discussões teóricas e dos
conhecimentos construídos no curso. Contudo,
o portifólio analisado apresenta
apenas uma atividade, na finalização do mesmo, que consta um relato descritivo de
uma atividade, onde a professora cursista inicia, refletindo sobre a importância da
leitura na formação do aluno-leitor, a saber
O ensino da leitura e, particularmente a importância da literatura na
formação pessoal e intelectual das crianças nas séries iniciais ainda ocupa
pouco espaço nos programas de formação das escolas brasileiras. Se faz
necessário um contato mais estreito da criança com a escrita e a leitura
dentro de um contexto mais significativo. (Portfólio, 2008,p.63)
A tentativa de reflexão realizada pela Professora Girassol, a quem pertence o
460
portfólio supracitado, só aparece na última atividade apresentada neste documento,
não mais assegurada nas demais partes do relato escrito. Isto é um prenúncio da sua
necessidade em promover um trabalho reflexivo. O que parece ter acontecido ao
acionar os conhecimentos prévios, fundamentos teóricos construídos no seu processo
de formação inicial sobre leitura, os conhecimentos metodológicos assegurados no
curso Pro-Letramento, revelados na sua entrevista, aliando-os com os conhecimentos
que a experiência docente lhe revelou, tendo em vista a ressignificação da sua prática
educativa, logo da sua prática “O despertar para a leitura, busquei mais fora do
curso, o curso me deu a vara, não deu o peixe, com as leituras que eu já tinha, foi
muito mais fácil para mim. Eu aprendi muito!” (Professora Girassol, entrevista 2015).
Essas constatações levam a crer que a utilização do portfólio no PróLetramento compromete o seu valor formativo por não permitir a almejada
articulação teórico-metodológica e prática que a reflexão favorece na formação
docente, a partir da utilização desse importante instrumento, impossibilitando a
análise sobre o trabalho realizado, bem como a sistematização dos saberes adquiridos
no curso, conforme está posto na proposta de formação do Pró-Letramento:
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Assim, a prática passa de mero campo de aplicação a campo de
produção do conhecimento, à medida que a atividade profissional
envolve aprendizagens que vão além da simples construídos no
fazer passam a ser objeto de valorização sistemática. A formação
continuada deve voltar-se para a atividade reflexiva e investigativa,
incorporando aspectos da diversidade e o compromisso social com a
educação e a formação socialmente referenciada dos estudantes.
(BRASIL,2006,p.23)
Dessa forma, o referido documento reafirma a importância do uso de registro
reflexivo enquanto atividade que favorece a reflexão e a investigação no processo
formativo.
Outro aspecto considerado pelos entrevistados, diz respeito ao número
significativo de estagiários participando do Pró-Letramento, em 2008. Essas
especificidades
muitas vezes são desconsideradas no trabalho desenvolvido,
deparando-se com turmas constituídas por uma boa parte de estagiários que ainda
não são profissionais da educação e, como tal, desconhecem os saberes pertinentes a
docência. “São demandas locais que comprometem o trabalho desenvolvido no curso
quando este foi pensado para um público específico, professores que atuam nas
séries iniciais do ensino fundamental, que por si só já apresentam a sua
heterogeneidade. ” (Professor, entrevista 2015).
A cada resgate de registros escrito e oral, a partir das entrevistas, bem como
das impressões dos sujeitos entrevistados reforça-se a importância desta produção
para as reflexões sobre as políticas de formação continuada no contexto da educação
municipal de Feira de Santana, bem como de outros municípios. Tal posicionamento
encontra eco no trecho abaixo, quando a Professora Girassol avalia o programa,
destacando no que este poderia melhorar para contribuir na sua formação e
contemplar a necessidade de formação
Senti falta de leituras direcionadas a formação leitora do professor,
porque depois que deixamos a academia, deixamos muito de lado as
leituras, ate porque a gente foca muito no trabalho. Acho importante
também leituras de textos literários, científicos, que o curso garantisse
mais teoria. Professor sente falta disso, até ao fazer o relatório
avaliativo do aluno, a gente percebe que tem aquela dificuldade na
461
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
fundamentação, sobre os saberes do professor. Uma coisa eu posso
afirmar, se tiver Pró-Letramento novamente eu quero. (Professora
Girassol, entrevista 2015).
Podemos confirmar a inquietação relatada pela professora, na fala da
orientadora de estudo entrevistada, narrar a organização dos encontros realizados
presenciais com os cursistas
462
O Pro-Letramento já traz uma pauta preestabelecida para o trabalho,
ao orientador de estudo cabe a este desenvolvê-la com os professores
cursistas. O grupo de Feira de Santana tinha sempre o cuidado de
iniciar os encontros com uma leitura compartilhada, até mesmo pela
nossa sensibilidade com a leitura e com a experiência do PROFA,
para mim ali é que se dava a formação do professor leitor, mesmo
que ele não percebesse, mas ali é que se dá a formação leitora. A
leitura compartilhada era realizada na perspectiva de levar o
professor a ler. Essa atividade era realizada pelo formador e no
decorrer do curso, os professores é que levavam textos e realizavam
a leitura, eles se envolviam muito. Usávamos aqui uma pauta bem
parecida com a do PROFA, porque a gente entendia que o ProLetramento era um desdobramento do PROFA, para mim isso era
muito claro, essas políticas estão articuladas. Apesar de que,em
nenhum momento isso é dito pra gente. Eu acredito que o PróLetramento realizado pelo grupo de Feira se preocupava com a
formação leitora do professor, até pela experiência que a gente tinha
com outras formações.(Orientadora de Estudo, entrevista 2015)
A fala da orientadora de estudo é também bastante reveladora no sentido de
mostrar a importância da sensibilidade e preparação com a leitura do orientador de
estudo para o trabalho no Pró-Letramento o que atribui a participação em
programas/cursos que participara anteriormente, um diferencial do grupo de
orientadores de Feira de Santana, não se constituindo portanto, em uma
intencionalidade deste programa.
Ainda, a orientadora denuncia a descontinuidade das políticas de formação na
área de linguagem e trás à tona a autonomia do grupo de orientadores de estudo,
procurando desenvolver um planejamento coletivo, inserindo em uma pauta
preestabelecida atividades de incentivo à leitura do professor, o que se pode observar
também na fala da professora Girassol:
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
O programa ajuda muito em como trabalhar a leitura em sala de aula
com os alunos da gente, mas se a gente não tivesse uma leitura
prévia, digo respaldo teórico, habilidade com leitura, não ia
conseguir. Elas davam muitas referências pra gente procurar, buscar,
caso contrário, estagnava ali. (Professora Girassol, entrevista 2015)
A constatação da professora Girassol de que seu empenho pessoal no processo
formativo, bem como os conhecimentos prévios foram determinantes para o seu
bom desempenho no curso, ressoou como uma aparente omissão do curso com a
realização de aprofundamento teórico no espaço de formação, imprescindível ao que
se propõe a abordagem de formação continuada de professores da rede de formação
a qual o curso está ligado, a saber:
Se a formação continuada supõe cursos, palestras, seminários,
atualização de conhecimentos e técnicas, ela não se restringe a isso,
mas exige um trabalho de reflexão teórica e crítica sobre as práticas e
de construção permanente de uma identidade pessoal e profissional
em íntima interação, como também das dimensões individual e social
dos atores envolvidos no processo educativo. (BRASIL, 2006,p.24)
No que se refere aos conteúdos abordados pelo programa, a Professora
Margarida destaca a relevância destes, contudo enfatiza a dificuldade dos cursistas
em acompanhar as discussões como algo bastante recorrente nos encontros
formação
de
realizados, o que, possivelmente, deve ter comprometido as demais
atividades do curso, a exemplo da participação na discussão dos textos lidos, a
qualidade
das
atividades realizadas e
o
planejamento
das ações
a
serem
desenvolvidas em sala de aula.
O material do Pró-Letramento é muito bom! Mas, os orientadores de
estudo sempre falam que os professores sinalizaram muita
dificuldade no trabalho com os alunos, na realidade com os
conteúdos do curso e sobretudo com leitura, por não serem leitores.
Foram muitas resistências, querendo se apegar ao livro didático, só
com o tempo foram fazendo as outras atividades do curso. Acredito
que as dificuldades são principalmente por não serem leitores, não
terem alguns conhecimentos necessários ao trabalho com essa
concepção de leitura do programa. (Professora Margarida, entrevista
2015).
463
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A fala da professora parece revelar que a proposta de trabalho com leitura do
Pró-Letramento apresenta uma concepção de leitura, de leitor, bastante desconhecida
até então pelos cursistas, logo distinta das práticas desenvolvidas no âmbito escolar,
nas quais a aparente “incapacidade” desses profissionais no desempenho da função
de ensinar, reflete-se na pouca habilidade do aluno para ler. O que leva Lajolo (1988,
p.82), a uma importante conclusão
É necessário um investimento maciço na formação de professores
para que a escola possa ser aliada no projeto de tornar o Brasil um
país de leitores. Hoje, as escolas recebem livros. Prefeituras, Estados e
União compram muitos e bons livros. Mas nem sempre os
educadores sabem o que fazer com eles. Alguns os guardam a sete
chaves, com medo de os alunos os estragarem. Além de a escola
precisar deixar os livros acessíveis, os professores precisam ser
leitores. Precisam gostar de ler. Precisam saber discutir livros.
Precisam ter livros em casa. Precisam, enfim, aprender a ser bons,
ótimos leitores. (grifo meu)
A necessidade de fazer com que a leitura, principalmente a literária, na escola
464
se torne algo prazeroso, capaz de motivar o aluno a desejá-la concebendo-a como um
ato político, ainda não se faz presente nas práticas de muitos professores do Ensino
Fundamental, suscitando importantes indagações na fala dos sujeitos entrevistados:
Como ensinar o desejo pela leitura se os professores não sentem prazer no ato de
ler, conforme costumam expressar no dia a dia da formação, nas atividades que
envolvem a leitura? Outra questão que não quer se calar, como o professor pode
formar leitores se este não se percebe como tal, ou melhor, se a formação continuada
não favorece a sua formação leitora?
Na fala das entrevistadas, observa-se que, embora sejam
leitoras, as
experiências acumuladas ao longo de suas vidas não foram suficientes para garantir
o desenvolvimento de uma prática educativa que promova a formação de alunos
leitores. Diante disso, reconhecem a necessidade de um maior investimento na sua
formação continuada, bem como na dos demais integrantes do curso PróLetramento. Para tal, a Professora Margarida dá algumas pistas
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Os orientadores de estudo sempre sinalizavam a dificuldade que os
professores cursistas sentiam no trabalho com o material do curso.
Dificuldade com a leitura, por não serem leitores, apresentavam
resistências, querendo se apegar ao livro didático. Só com o tempo
foram fazendo as outras atividades do curso, mas, eram muitas as
dificuldades, principalmente por não serem leitores.
Algo preocupante, porque, para o público que temos, o professor é o
único que leva a leitura, uma realidade em que os nossos alunos não
têm pais leitores, não têm livros, o ambiente de casa não favorece a
leitura. Se a escola não abre o leque de possibilidades, fica difícil.
(Professora Margarida, 2015)
A compreensão de que a leitura deve ser um direito de todos, primeiro direito
básico, para que todos os outros direitos sejam compreendidos, logo para o exercício
da cidadania, denota à escola a urgência em ressignificar o seu papel no trabalho com
essa temática. E ao professor, como principal agente de formação de alunos leitores,
a necessidade de repensar a sua prática, o que perpassa pelo investimento em um
processo formativo contínuo, que apresente a leitura, tendo como base a literatura
como uma forma de lidar, compreender, explorar e transformar o mundo,
favorecendo a incorporação da leitura à vida pessoal e profissional, tendo em vista a
construção de uma prática educativa qualificada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao confrontar a proposta de formação da Rede Nacional de Formação de
Professores com o documento do referido curso, aliado às falas dos entrevistados e
material produzido no município pode-se constatar que, os princípios formativos
previstos no discurso da rede, se perdem em uma proposta de curso que privilegia a
aplicação de atividades, em detrimento do aprofundamento em conhecimentos, que
respaldem e favoreçam um trabalho de reflexão e investigação da prática.
As dificuldades
enfrentadas pelos professores no processo formativo
mostram que as políticas de formação continuada de professores favoreça
a
construção de saberes essenciais ao exercício da docência, assim, na área de
linguagem, espera-se respostas para um trabalho com leitura, que dê conta das
atuais demandas da educação contemporânea, por esta nos apresentar novos
465
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
contornos, novas habilidades, novos comportamentos leitores, a princípio, bastante
diferentes das experiências de leitura vivenciadas.
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Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Ministério da Educação. Brasília: 2007.
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Educação Básica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Brasília:
2006.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e Educação: figuras do indivíduoprojeto. Natal, RN: EDUFRN; Paulus, São Paulo, 2008.
466
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÂO. Resolução nº 2 de 1º de julho de 2015.
Disponível
em,
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=
17719-res-cne-cp-002-03072015&category_slug=julho-2015-pdf&Itemid=30192,
Acessado em 14/09/2015.
FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 1995
NÓVOA, António. Professores: imagens do futuro presente. Educa: Lisboa, 2009.
GATTI, 2008 Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008
Gatti, Bernadete A. Avaliação institucional: processo descritivo, analítico ou
reflexivo? Estudos em Avaliação Educacional, v.17, 2006.
LAJOLO, Marisa. Professores precisam gostar de ler. Jornal do Professor. disponível
em http://portaldoprofessor.mec.gov.br/conteudoJornal.html?idConteudo=2908.
Acesso em 14 de setembro 2015.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
467
ENTRE MAPAS, REVISTAS E LIVROS: PRÁTICAS CULTURAIS DE
ESTUDANTES-PROFESSORAS DO PPGEDUC/UNEB16
Sara Menezes Reis de Azevedo17
UNEB- [email protected]
RESUMO: Esta comunicação é fruto das reflexões e leituras realizadas pelas pesquisadoras, e de
um recorte da dissertação intitulada "E assim nos fizemos leitoras": histórias de vida e de leitura de
estudantes do PPGEduc no período de 2005 e 2010, desenvolvida no âmbito do Programa de PósGraduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc) da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). O objetivo é dialogar sobre em que medida as práticas culturais de leitura dessas estudantes
implicam diferentes processos formativos pessoais e profissionais. Verificaram-se, a partir das
histórias de leitura dessas mulheres, as concepções em torno do ato de ler, os usos sociais de leitura,
marcas e práticas constituídas dentro e fora dos espaços formais. Entrecruzamos as contribuições da
História Cultural e da Formação docente, articulando-as aos estudos de Chartier (1990, 2001, 2004),
Cordeiro (2006), Passegi (2011). Utilizamos Histórias de Vida, pois possibilitam maior entendimento
dos percursos formativos e leitores das colaboradoras. A análise dos dispositivos formativos
elencados possibilitou maior visibilidade às histórias de vida e de leitura das colaboradoras. Os
escritos retrataram as trajetórias leitoras e os percursos formativos experienciados. Participar do
movimento de (auto) formação proporcionou às estudantes- professoras reflexões e ressignificações
para as suas vidas pessoais e práticas docentes.
Palavras- chave: Leitura; Leitoras; Práticas Culturais; Histórias de Vida.
1. Primeiras impressões leitoras
A presente comunicação é fruto das reflexões empreendidas e leituras
realizadas pelas pesquisadoras, em suas itinerâncias leitoras, e de um recorte da
dissertação intitulada "E assim nos fizemos leitoras": histórias de vida e de leitura de
estudantes do PPGEduc no período de 2005 e 2010, desenvolvida no âmbito do Programa
de Pós- Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc) da Universidade
do Estado da Bahia (UNEB).
Discutimos na dissertação em que medida as práticas culturais de leitura de
estudantes do PPGEduc da UNEB implicam diferentes processos formativos pessoais
e profissionais. Foi realizado um mapeamento, a partir das histórias de leitura
dessas mulheres, sobre as concepções em torno do ato de ler, as formas de ler, os
Este artigo é uma versão ampliada e revisada do artigo intitulado “Diálogos sobre docência, leitura
e leitores: histórias de práticas culturais de leitura de estudantes-professoras do PPGEduc/Uneb”,
apresentado no VI Congresso Internacional de Pesquisas (Auto)Biográficas (CIPA), ocorrido entre os
dias 16 e 19/11/2014, no Rio de Janeiro.
17 Licenciada em Pedagogia, especialista em Alfbetização e Letramento (FAMA) e Mestre em Educação
e Contemporaneidade, pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
16
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
usos sociais de leitura, repertórios, marcas e práticas constituídas dentro e fora dos
espaços formais.
Duas vertentes teórico- metodológicas foram entrecruzadas: as contribuições
da História Cultural e da Formação docente, articulando-as aos estudos de Chartier
(1990, 2001, 2004), Cordeiro e Souza (2007), Passegi (2011), dentre outros. O trabalho
fez uso das Histórias de Vida, por estas possibilitarem um maior entendimento dos
percursos de formação e de leitura das colaboradoras.
Compreendendo a notoriedade dos estudos realizados com as Histórias de
vida, Jean Poirier (1999, p.12) revela que elas “[...] querem fazer falar os ‘povos do
silêncio’, através de seus representantes mais humildes”. Assim sendo, analisar as
histórias de vida de estudantes possibilitou-nos o conhecimento de suas práticas
culturais de leitura [antes (des)conhecidas ou (des)valorizadas] e a implicação destas
no seu cotidiano docente.
O entendimento sobre as práticas culturais de leitura na perspectiva de
Roger Chartier (2011) assinala diversos modos de ler (coletiva ou individualmente,
herdadas ou inovadoras, públicas ou íntimas) e por representações que os sujeitos
possuem sobre o que seria o “leitor ideal”. Não se trata apenas de saber ler ou não,
mas dos usos e manuseios desta leitura, das suas finalidades, das diversas maneiras
de ler, do que ele chama de “prática cultural” (CHARTIER, 2011, p.105).
A cada leitura realizada dos escritos das estudantes- professoras, o que foi
lido muda de sentido, torna-se outro, ganha novo significado. A análise dos
Rascunhos de Mim e dos Memoriais possibilita a produção desse escrito, através do
qual busco dar visibilidade às histórias de vida e de leitura das colaboradoras.
Dois dispositivos formativos produzidos entre os anos de 2005 a 2010 foram
tomados para efeitos desse estudo – Memoriais e Rascunhos de mim - para se
investigar as práticas culturais de leitura empreendidas por estas estudantes e qual a
implicação daquelas em sua prática cotidiana. Tais escritos retratam suas trajetórias
leitoras e os percursos formativos experienciados na docência, revelando que a
possibilidade de transcrever suas histórias, e participar do movimento de formação e
autoformação proporcionou reflexões e ressignificações para às suas vidas pessoais e
práticas docentes.
469
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Na dissertação foram utilizados e analisados os dispositivos de cinco
colaboradoras. Aqui, para efeitos dessa comunicação, traremos os escritos de duas
estudantes, que também são professoras. Faremos a exposição e categorização de
elementos a partir dos escritos mencionados.
2. Sobre os dispositivos elencados: Aprofundando o conhecimento sobre os
Memoriais e os Rascunhos de Mim
No contexto contemporâneo em que vivemos, é válido lembrar que a corrente
de investigação-ação-formação das histórias de vida se desenvolve em um período
em que "os indivíduos têm cada vez mais dificuldades de encontrar seu lugar na
história coletiva” (DELORY-MOMBERGER, 2011, p.47). Numa lógica de se repensar
a educação de adultos,é preciso remeter os sujeitos a (re) encontro de si mesmos,
tendo em cada narrativa (oral ou escrita) da história de vida, a ressignificação da
própria história de formação.
A utilização dos Memoriais como dispositivo formativo e investigativo se
470
inscreve em uma perspectiva de escrita pautada no ato de auto-bio-grafar (escrever
sobre a própria vida), configurando-se como um elemento que possibilita “o acesso à
vida e à docência através da voz e da letra de quem é professor (a).” (PASSEGI, 2008,
p.1).
Por meio do memorial, o sujeito-autor “[...] narra sua história de vida
intelectual e profissional, analisa o que foi significativo para a sua formação [...]
sendo também, um modo de cada autor modificar-se”. (PASSEGGI e CAMARA,
2008, p.15). Segundo Passegi (2011), o memorial pode ser de dois tipos: acadêmico e de
formação.
O memorial acadêmico é descrito com vistas ao ingresso ou progressão
funcional em instituições de ensino superior. O memorial de formação é produzido
durante a formação inicial ou continuada, sendo geralmente acompanhado por um
orientador. Neles, o autor assume, simultaneamente, os papéis de narrador e de
candidato e se inscreve em um movimento de tecer uma imagem pública de si.
Assim o memorial configura-se como "um espaço-tempo de tensões contraditórias: o
da injunção de falar de si, e o de sedução de se inventar pela narrativa" (PASSEGI,
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
2011, p.20). Os excertos que aparecerão no próximo espaço desse texto, são de dois
memoriais acadêmicos, escrito para fins de ingresso no Mestrado e no Doutorado em
Educação e Contemporaneidade, do PPGEduc.
O dispositivo denominado Rascunhos de Mim18 é cunhado ao longo do
componente curricular Abordagem (Auto)Biográfica e Formação de Professores e
Leitores desde o ano de 2005. Ao longo da disciplina, os estudantes que dela
participam são convidados a construir e refletir sobre as suas histórias de leitura.
Para Cordeiro e Souza (2007), os Rascunhos de Mim constituíram-se:
[...]Como escritas de si, nas quais cada um abriga suas memórias de
leitura, atravessando tempos e espaços reais e imaginários, cujos
gestos e práticas culturais de leitura encontram um sentido que se
abrem à compreensão de que as histórias de leitura se constroem por
caminhos os mais imprevistos. (CORDEIRO e SOUZA, 2007, p.223)
A fecundidade desse dispositivo possibilita aos leitores o encontro de um
lugar de ressignificação e (re)criação de memórias, além de um espaço formativo e de
reflexão sobre os seus percursos. Assim, esse dispositivo metodológico "[...]
possibilitou ao grupo tematizar quais os sentidos da leitura no processo de formação
e qual o papel da narrativa para a constituição do sujeito da experiência.”
(CORDEIRO e SOUZA, 2007, p.225).
Esclarecidas as potencialidades dos dispositivos, expomos aos leitores as
colaboradoras da pesquisa. Posteriormente esclareceremos as impressões, memórias
e singularidades das Histórias de Vida das duas educadoras, apresentando também
as categorias que emergiram do entrecruzamento dos dispositivos.
3. Das colaboradoras: as cúmplices da nossa pesquisa
Elencamos nesta comunicação os Rascunhos de Mim e Memoriais acadêmicos de
duas estudantes, que nos foram cedidos após seu ingresso no mestrado e/ou
doutorado no PPGEduc, no recorte temporal entre 2005 e 2010. Quanto à
Este texto foi incluído como um dos dispositivos formativos utilizados na disciplina Abordagem
(Auto)Biográfica e Formação de Professores e Leitores, ministrada pelos professores Dra. Verbena
Cordeiro e Dr. Elizeu Clementino de Souza.
18
471
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
apresentação dos nomes das colaboradoras, indico os pseudônimos 19 por elas
elencados: Anna e Nilza.
Para escolha das colaboradoras, foram definidos como critérios: a) ter cursado
a disciplina Abordagem (Auto)Biográfica e Formação de Professores e Leitores, por
ser esse o componente curricular em que é solicitada a produção do texto Rascunhos
de Mim; b) ter participado do processo seletivo para mestrado/ doutorado no
Programa de Pós- Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc) da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), pois essa seleção solicita a escrita de um
Memorial.
O corpus dessa comunicação ficou constituído por duas leitoras, estudantes do
PPGEduc. Segundo Fischer (2000), “em se tratando de histórias de vida, mais
importante do que a quantidade de sujeitos é a validade, extensão e qualidade dos
testemunhos que se pretende obter”, portanto, a nossa preocupação não versou sobre
a quantidade de colaboradoras, nem na escrita da dissertação, nem no momento de
produção dessa comunicação.
As colaboradoras tem 43 e 46 anos, residem na cidade de Feira de Santana.
472
Cada uma delas é casada e possui uma filha. Ambas cursaram o Magistério, sendo
que uma graduou-se em Pedagogia e a outra em Geografia. Possuem percursos
formativos que somam mais de 15 anos de atuação, entre os níveis fundamental,
médio e superior. Hoje, as duas são professoras da UNEB. Nilza concluiu o
doutorado enquanto essa pesquisa estava em andamento, no ano de 2013. Anna está
cursando o doutorado.
As histórias de leitura foram, para efeito de análise, organizadas pelas
categorias. A partir desta sistematização, pensamos ajudar os leitores a acompanhar
melhor não apenas os percursos e itinerâncias formativas, mas também entender
como essas professoras se constituíram leitoras.
É importante esclarecer que a leitura dos estudos empreendidos por
Pompougnac (1997) foi uma das fontes inspirativas para esclarecer aos leitores os
Escolhidos pelas professoras que colaboram com este estudo, os pseudônimos respeitam o que
preconiza o Conselho de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, por meio da portaria 196/96, que
delimita os marcos dos trabalhos realizados com pessoas. É importante destacar que os nomes
elencados por elas tem ligação emocional: são nomes de mães e professoras.
19
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
perfis, trajetos e práticas culturais de leitura das colaboradoras que conosco
partilharam suas singulares memórias, registradas em relatos que mesclam
elementos diversos. Para tanto, estabelecemos algumas categorias de análise que
foram emergindo das (várias) leituras dos escritos das estudantes. Utilizaremos duas:
a) Leitura e docência: percursos formativos; b) Práticas Culturais de Leitura.
Em alguns momentos, essas categorias podem fundir-se devido à densidade
dos escritos das professoras e a incapacidade nossa de separar tempos, pessoas,
eventos e influências nas suas trajetórias leitoras. Julgamos ser necessário assim
proceder para que não seja prejudicado o entendimento do leitor face aos eventos
apresentados sobre os escritos das colaboradoras. Era preciso respeitar as ordens e as
temporalidades diversas trazidas nos textos.
A experiência de ler e reler muitas vezes as memórias das colaboradoras,
materializadas em seus Rascunhos de Mim e Memoriais, nos desafiou a mergulhar
mais intensamente em seus sentidos diversos, e a buscar maior acolhimento teórico
para que pudéssemos compreender suas memórias escritas em suas dimensões mais
íntimas e singulares. Trata-se de uma tentativa de entender os sentidos que se
desvelam diante das suas escritas de si.
Na análise interpretativo-compreensiva de Paul Ricoeur (1996), encontramos
inspiração para buscar entender esta dimensão mais profunda da compreensão e
análise das histórias de vida e de leitura das professoras. Para este tipo de análise, o
que é relevante não é a objetivação da realidade, mas a apreensão de sentidos
colocados pelos sujeitos.
4. Leituras e histórias cruzadas
Apesar do suporte teórico de Ricoeur (1996), foi preciso tomar o cuidado de
apenas não tentar decifrar os textos para a construção das categorias de análise. Era
preciso adentrar às suas múltiplas dimensões. O pensamento de Chartier (2006) nos
alertou: “Pensamos que ler um texto é compreendê-lo, isto é, descobrir-lhe a chave.
Quando de fato nem todos os textos são feitos para serem lidos nesse sentido”
(CHARTIER, 2006, p.234).
473
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Com essa precaução, iniciamos o movimento de interpretação compreensiva
dos escritos das professoras, respeitando o direito dos textos de serem interpretados:
são eles uma explosão de significados (PRADELLI, 2013).
Ao entrecruzar as memórias das duas estudantes que colaboraram com a
pesquisa, percebemos a gama de informações que emergiram. Na tentativa de
compreender esses elementos para com eles estabelecer um diálogo e perceber as
potencialidades que daí surgem, estabelecemos algumas categorias de análise que
foram emergindo das (várias) leituras dos escritos das professoras:
a) Leitura e docência: percursos formativos;
b) As práticas culturais de leitura das estudantes do PPGEduc.
As acepções sobre o ser/ constituir-se/ reconhecer-se enquanto professora
estão, nos relatos partilhados, ligadas a memórias desveladas desde os anos iniciais
da infância e às trajetórias retrospectivas da trilha docente. Assim,
474
Uma autobiografia busca sempre “manter coesas” as representações
de uma prática cultural eminentemente polimorfa, visto que se
propõe nela escrever o que constitui a unidade de uma vida, a
história de uma personalidade. Mas, nem por isso, ela deixa de ter
um significado social. (POMPOUGNAC, 1997, p.49)
E essa prática cultural eminentemente polimorfa, parafraseando Pompougnac
(1997) é encarnada em gestos, hábitos, tempos e espaços diversos. Compreendendo
que os caminhos da profissão docente não são apenas diversos, mas também podem
ser contraditórios, empreendemos nossa análise em torno de possíveis respostas ao
problema que norteou toda a pesquisa, a saber: Que marcas da docência são percebidas
nas vidas das professoras? E qual a implicação dessas marcas nos seus percursos (formativos e
de atuação profissional)?
Dividimos as impressões sobre essas respostas possíveis, entrecruzando-as
com trechos dos Memoriais e Rascunhos de Mim das colaboradoras. Investigar e
desvelar as marcas da docência e o impacto dessas nos percursos pessoais e
profissionais das professoras que colaboram com esse trabalho tornou-se parte do
nosso espectro de inquietações.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Apesar de contarmos aqui com dados de duas professoras, é importante
destacar o que preconiza Fischer (2000), “em se tratando de histórias de vida, mais
importante do que a quantidade de sujeitos é a validade, extensão e qualidade dos
testemunhos que se pretende obter”, portanto, a nossa preocupação não versou sobre
a quantidade de colaboradoras.
4.1- Leitura e docência: percursos formativos
É sabido que as dimensões pessoais e profissionais entrecruzam-se com nossas
histórias de vida e de leitura e são indicotomizáveis (NÓVOA, 2010) ratificando as
múltiplas dimensões existentes por trás da docência. São estruturantes, trazendo
marcas, impressões, conceitos e trajetórias das nossas – e de outras tantasindividualidades. No aspecto docente da vida de Nilza, são múltiplos os modos de
ler seu percurso docente.
Simultaneamente à entrada no curso de Magistério do Instituto Gastão
Guimarães (respeitada instituição de ensino de Magistério na cidade de Feira de
Santana), foi feito por Nilza um investimento em compras de livros diversos, em
meados dos anos de 1980. A razão desse movimento foi a necessidade de maior
embasamento teórico para a realização do vestibular para a tão sonhada Licenciatura
em Geografia:
Logo em seguida, no afã da aprovação no vestibular, comecei a
comprar livros da Literatura Brasileira- Machado de Assis,
Drummond de Andrade, Aloísio de Azevedo, Fernando Sabino- uma
vez que no decurso da formação no curso de Magistério no Instituto
de Educação Gastão Guimarães (IEGG), não me foi
apresentada/exigida a leitura de obras dos referidos autores. Por
conta própria comecei a juntar dinheiro para comprar os livros que,
em meados dos anos de 1980, ainda eram muito caros. A fim de
facilitar a aquisição de alguns exemplares, me associei ao Círculo do
Livro e, a partir daí, comecei a montar a minha biblioteca. (NILZA,
Rascunhos de Mim, 2010)
As leituras denominadas pela estudante como leituras geográficas, obrigatórias
na graduação e continuadas nos outros percursos formativos, inserem-se como
fundamentais para conhecimento de teóricos e teorias outras. Nomes como Milton
475
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Santos, Josué de Castro, Roberto Correia Lobato, Selma Garrido Pimenta, Ilma P.
Veiga, Paulo Freire, Cipriano Luckesi,20 emergem como os primeiros exemplares da
recém-inaugurada biblioteca da docente.
Em um momento em que não era possível adquirir os livros, Nilza relata sua
filiação a um “Círculo”. Isso permitiu a ela ler e trocar exemplares diversos. Esse
movimento é validado por Ana Alcídia Moraes (2000), quando lembra que em alguns
casos é preciso que os leitores articulem outras estratégias: empréstimos,
encomendas, “círculos de leitura”.
Nilza também relata que a sua consolidação enquanto pesquisadora é uma
oportunidade de (auto) reflexão, pois ela descreve a leitura como responsável por
esse movimento. É possível perceber esta constatação no momento em que produziu
o Memorial de seleção para o Doutorado, no ano de 2010, descrito por ela como
decorrente das suas inquietações enquanto professora em constante processo de
formação e, também das vivências, lembranças e aprendizagens da/na sua trajetória
pessoal e profissional.
Na vida de Anna as leituras realizadas na docência são descritas como
476
fundantes para a sua prática. Ambos os textos produzidos, Memorial e Rascunhos,
acentuam a entrada na universidade enquanto consolidação de uma concepção de
leitura e reconhecimento de si enquanto leitora. É no decorrer do curso de Pedagogia,
cursada na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) no ano de 1988, que
Anna relata que as vivências com as leituras acadêmicas, políticas, sociais e humanas
foram se tornando decisivas na construção da sua identidade pessoal e profissional.
A militância dentro do Diretório Acadêmico, bem como em sindicatos,
fortalece a condição leitora de Anna imbricada com uma modificação social. As
vivências com projetos de alfabetização de funcionários tornam sua prática docente
politizada e cada vez mais implicada com uma significativa transformação dos que,
por meio da leitura das palavras, transformam a si e aos outros.
Rememorando da sua participação no PROLER- Programa Nacional de
Incentivo à Leitura21, Anna consegue redimensionar a sua postura enquanto leitora e
São teóricos que versam sobre temas diversos ligados à Geografia e à Pedagogia, denominados pela
prof. Nilza como seus “iniciadores” no campo dos estudos teóricos sobre a docência.
20
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
docente. Ela relata que a participação nesse programa proporcionou um aprendizado
significativo sobre “o ato de ler, que é individual e coletivo, é formador e
transformador, é criativo e crítico”. (ANNA, Rascunhos de Mim, 2006)
No momento em que escreveu seus textos (Memorial e Rascunhos de Mim),
Anna estava na condição de mestranda em Educação e Contemporaneidade, no ano
de 2006, cuja pesquisa versava sobre as representações e as práticas culturais de
leitura dos professores e professoras egressos do curso de Pedagogia oferecido pela
Rede UNEB 2000.
O encontro com outras pessoas, lugares, oportunidades e aportes teóricos
subsidiaram o seu olhar sobre a condição nossa de leitores do cotidiano,
fundamentado também nas práticas culturais de leitura de Roger Chartier (2006):
Alguns autores tratam a leitura como passaporte para uma viagem
que começa na primeira linha, mas que não se sabe jamais onde
poderá terminar, outros afirmam que lemos para dar conta da
realidade e de todos os desafios que dela recebemos ou a ela
impomos. [...] Mesmo concordando com todos eles, eu prefiro afirmar
que sem prazer não podemos de forma nenhuma formar leitores
desejantes. Por isso meus caros leitores, vamos beber nas várias
fontes que o universo dos livros nos oferece. (ANNA, Rascunhos de
Mim, 2006)
É bebendo nessas fontes diversas que discorremos sobre a relação íntima que
entrecruza a leitura e a docência na vida das colaboradoras. Nos seus escritos,
verificamos que trata-se de uma relação indicotomizável.
Revisitando as leituras realizadas na docência na vida das estudantes
pesquisadas, depreendemos que, ao entrar em contato com o texto, o leitor depara-se
com questões políticas, históricas, sociais e econômicas. Isso descaracteriza a suposta
“neutralidade” da leitura.
Por outro lado, é possível perceber o que esclarece Roger Chartier (1994,
p.13): “aqueles que são capazes de ler textos não o fazem da mesma maneira”. Os
O Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER) teve sua atuação consolidada em alguns
municípios no país nos anos 1980. O seu surgimento está atrelado às pesquisas realizadas na década
de 80, no âmbito da leitura, que revelavam a necessidade de se estabelecer uma Política Nacional de
Incentivo à Leitura com metas e estratégias claras. Sua realização estava condicionada às parcerias
com as prefeituras, universidades e outras instituições locais. Seu papel foi de fomentar a realização de
encontros, seminários de formação de recursos humanos para a promoção da leitura (LIMA, 2008).
21
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
diversos modos de ler durante a docência revelam diferentes modos de inserção
social e acesso aos impressos nas histórias de vida e de leitura das colaboradoras.
4.2- Modos diversos de ler: As práticas culturais de leitura das estudantes do
PPGEduc
Nesta categoria, após os devidos esclarecimentos teórico-metodológicos em
torno da conceituação das práticas culturais de leitura, especialmente demarcadas nos
estudos desenvolvidos por Roger Chartier, dentre outros pesquisadores, apresentamos
passagens dos escritos das estudantes sobre o que elas liam. Para Araújo (2006):
[...]Todo ato cultural é subversivo, a memória do eu se cose à
memória dos outros quando do exercício da indignação. Por isso é
necessário rigor contra a violência da desinformação ou, antes, da
sonegação ao banquete platônico, que nos sonegam e dão de sobra
aos privilegiados. (ARAÚJO, 2006, p. 77)
Podemos depreender que é na contramão que caminham os escritos que nos
478
fornecem pistas das práticas culturais de leitura das colaboradoras. Na vida de Nilza,
ganham destaque as leituras de revistas. As mais populares entre as jovens dos anos
1970 e 1980 eram Júlia, Sabrina e Capricho. As revistas eram guardadas com um zelo
quase sagrado, assim como os livros, impressos outros que chegariam em outro
momento na vida de Nilza. Sanches Neto (2010) também revela uma relação
ritualística com seus livros.
Esse trecho similar nas trajetórias de leitura de Sanches Neto e Nilza se
evidencia na sacralização do objeto (ambos não marcam definitivamente os livros
que leem, apenas provisoriamente com lápis). Sanches Neto vai mais além e se refere
a termos como “culpa” e a “mácula” que a marca de uma caneta causaria,
respectivamente ao seu corpo – faz uma comparação com a tatuagem - e ao papel- e
os ritos aos quais se entrega antes, durante e depois de cada leitura (como no caso
dos lápis que aponta religiosamente com um estilete).
É por meio da revista Capricho que Nilza começa a trocar cartas com outras
jovens de diversos lugares do país. A expectativa em ler e escrever cartas aos novos
amigos é descrita como um momento de uma espera ansiosa. A diversidade dos
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
locais de origem dos jovens com os quais ela trocava cartas e as peculiaridades das
suas culturas locais a levaram a um tipo outro de prática cultural de leitura, essencial
para a sua constituição enquanto professora de Geografia:
Ler os espaços, suas formas, cores, traços, geometrias: assim fui me
constituindo geógrafa.[...] Para além do livro, outra leitura que me
seduzia, desde cedo, foi a leitura de mapas e globos, mesmo sem
dominar os signos, significados e significantes dos mapas, a
linguagem cartográfica me seduzia e me encantava. Fazia muitas
viagens imaginárias, visitava países, cidades, lugares, atravessava o
Atlântico, navegava no Pacífico, percorria os canais, lagos e florestas.
Quantas aventuras! Múltiplas itinerâncias. (NILZA, Rascunhos de
Mim, 2010)
É leitor, pela concepção tradicionalista e preconceituosa, apenas aquele que
lê os livros certos, aprovados pela escola, pela mídia, pelas universidades, pela crítica
literária, ainda mesmo que esses critérios de avaliação sejam vinculados a noções
particulares de cidadania, leitura, cultura ou conhecimento. Assim, “[...] todos os
demais escritos- mesmo que materialmente idênticos aos livros “certos”- são nãolivros. Da mesma forma, aqueles que os leem- embora leiam- são não-leitores, pois
leem Sabrina, Paulo Coelho, leem literatura popular”. (ABREU, 2005, p. 154). As
leituras que se realizam em torno de objetos outros, desvalorizados por essa
concepção, são destituídas do status de leitura e são ignoradas em prol da
manutenção desta leitura mítica e preconceituosa.
Assim, vislumbrando apenas as leituras certas de impressos certos- entenda-se,
livros, são ignoradas as práticas culturais de leitura realmente desenvolvidas e
efetivamente realizadas. Negam-se as leituras e as pessoas que as operam.
Para Anna, as leituras realizadas ao redor dos pés de manga, são marcadas
como práticas culturais significativas. E estão atreladas aos muros da escola. É nesse
lugar que ela rememora as práticas culturais de leitura mais marcantes:
Aqui sim, me recordo que foi através das cobranças das leituras
autodirigidas que se deu o contato mais intenso com a leitura. Na
época a Série Vaga-Lume estava em evidência na escola pública. Li
Zezinho – o dono da porquinha preta; O Escaravelho do Diabo; O
Mistério dos Cinco Estrelas... Estes foram os responsáveis pela minha
atração/sedução pela literatura. Depois destes, outros começaram a
povoar o universo mágico da leitura. (ANNA- Rascunhos de Mim,
2006)
479
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Reflitimos com Darnton (1992, p. 213) que “o ‘onde’ da leitura é mais
importante do que se poderia pensar, pois a colocação do leitor em seu ambiente
pode dar sugestões sobre a natureza de sua experiência”, ou seja, essas vivências
trazem não apenas sensação de liberdade e cumplicidade com o lugar onde
moravam, como também trazem marcas das singularidades e histórias tecidas por
cada indivíduo. Essa valorização da leitura escolar, e posteriormente, acadêmica, em
certa medida pode ser compreendida se levarmos em conta que Anna representa a
chegada de uma primeira geração da família a ter um processo de escolarização mais
longo.
Se considerarmos que as colaboradoras dessa pesquisa são também
professoras e, portanto, “estão expostas a impressos diversificados e a necessidades
sociais que pressionam por seu uso, seja em instâncias públicas, seja em instâncias
privadas” (BATISTA, 1998, p. 27-28), então, não é difícil reconhecer que elas estão
imbricadas com as mais variadas estratégias e práticas culturais de leitura. São,
480
indiscutivelmente, leitoras, leitoras de sua vida, de suas necessidades, de seu entorno
sociocultural, enfim, leitoras.
5. E assim elas se fizeram/ nós nos fizemos leitoras...
Somos a leitura que os outros e nós também fazemos de nós mesmos... com a
provocação de Angela Pradelli (2013), concluímos por ora as discussões que nos
levaram a construção desse escrito. Essa apropriação retrospectiva em torno das
práticas culturais de leitura e do fazer docente produz um movimento de reflexão em
torno dos percursos experienciados.
Essa reflexão, por sua vez, poderá ser utilizada como suporte para possíveis
mudanças e transformações, com vistas à produção de práticas mais significativas.
Cremos que, tanto as leitoras que colaboraram com a construção deste trabalho
quanto nós, na condição de pesquisadoras, podemos representar este movimento
enquanto uma importante etapa de nossos processos formativos.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Não temos dúvidas que revisitar as histórias de vida e de leitura dessas
estudantes do PPGEduc será uma inesgotável e rica fonte de novas descobertas sobre
como cada sujeito, em tempos e modos distintos, constrói conceitos e se define ou se
reconhece leitor. Certamente ainda há muito o que se pesquisar dentro dos escritos
dessas professoras, hoje nossas cúmplices.
Assim, vislumbramos que o escrito teórico-epistemológico aqui apresentado
possa referenciar práticas outras a partir da percepção que o leitor tem de si e de suas
leituras, articulando-as com sua vida-formação e profissão, entrecruzando o ser ao
fazer, para que, com sensibilidade, reflexão e criatividade, seja compreendido como
um ser com dimensões complexas imbricadas entre o eu profissional e eu pessoal.
Que outras histórias e práticas sejam investigadas! E que daqui surjam novas
possibilidades de fazer pesquisa. Em busca da potência em torno desse conhecimento
outro, é que, o mergulhar nas histórias de vida dos sujeitos enquanto movimento de
formação, se torna premente.
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483
PROFESSOR LEITOR: UM PROCESSO EM CONSTRUÇÃO
Sheila Rodrigues dos Santos
Mestranda em Crítica Cultura (Pós-Crítica/UNEB – Bolsista/Capes)
[email protected]
RESUMO
O trabalho que ora se apresenta teve como propósito analisar como as práticas de
leituras vivenciadas pelas estudantes/professoras (egressas no curso de
Letras/UNEB – Campus II) no processo de sua formação docente têm contribuído
para a formação do professor leitor. O mesmo representa um desdobramento da
pesquisa desenvolvida no Programa de Mestrado em Crítica Cultural da
Universidade do Estrado da Bahia (UNEB), cujo intuito se sustenta em uma reflexão
entorno das práticas de leituras e a formação de professores-leitores, reflexão essa
que em plena contemporaneidade, requer pensar a noção de leitura de uma forma
plural, rizomática, que transgrida o conceito tradicional de leitura - a decodificação
dos signos linguísticos. Visibilizando as diversas práticas de leituras que a pósmodernidade possibilita ao sujeito leitor. O que nos permite configurar o ato de ler
como objeto de cultura, elemento constituinte na formação do sujeito, e sendo este
sujeito uma professora de Língua Portuguesa, o estudo das práticas culturais de
leituras dessas professoras de Língua Portuguesas perpassando pelo viés das suas
experiências cotidianas, possibilita uma reflexão a partir da noção do sujeito histórico
e social, pois como é sabido o/a professor/a de Língua Portuguesa apresentam
histórias de vida distintas, assim como as suas histórias de leituras, o que equivale
dizer que, a prática cultural de leituras de cada sujeito está atrelada a sua condição
social de sujeito, como afirma Cordeiro (2008) às práticas culturais devem ser
entendidas a partir do lugar social de cada sujeito. Neste sentido, têm-se uma
pesquisa que ancora-se na (auto)biografia e que tem as narrativas de formação como
dispositivos de análise, uma vez que a abordagem autobiográfica possibilita ao
pesquisador descrever e analisar fatos que marcam a vida e a formação dos sujeitos,
experiências essas situadas dentro de um contexto sócio-histórico e cultural, como
bem coloca Josso (2007), pois à medida que o sujeito narra um fato biográfico, faz
uma interpretação do que foi vivido, do que foi experienciado por ele, uma ação
dupla vivenciada pelo sujeito narrador, cabendo ao pesquisador que trabalha com o
método autobiográfico fazer a interpretação e compreender o que foi narrado pelo
sujeito colaborador na pesquisa. Nestas perspectivas, busca-se utilizar as narrativas
das histórias de vida de professoras de Língua Portuguesa, visto que os relatos
descritos apresentam, em geral, um estilo informal, narrativo, ilustrado por figuras
de linguagem, citações, exemplos e descrições que nos revela os processos formativos
na transição de sujeito-leitor a professora-leitora, permite-nos assim, desenhar a
genealogia das suas formas de ler a partir das suas narrativas e o significado cultural
da leitura na vida desse professor/leitor.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
PALAVRAS-CHAVE: Práticas de leituras, Leitura; Formação de Professores-Leitor
APRESENTAÇÃO
Pensar a leitura apenas como a decodificação dos signos é negar a sua função
social, é ir de encontro às teorias que a definem como uma prática social que valoriza
os saberes experienciados do indivíduo. Além disso, é se fundamentar na “grande
divisão”, uma concepção que Street (2014) qualifica as modalidades de língua oral e
escrita do sujeito de acordo com as suas habilidades cognitivas. Este mesmo autor
critica esta concepção, por negar as inúmeras práticas de leituras na qual o indivíduo
está inserido, estabelecidas pelas estruturas culturais e de poder de uma sociedade.
Martins (2006) nos afirma que aprendemos a ler a partir do nosso contexto
pessoal. E temos que valorizá-lo para poder ir além dele. Dentro desta concepção é
que discorro este artigo, com a finalidade de analisar as práticas de leituras no
processo de formação docente realizadas no curso de Licenciatura em Letras do
Campus II da universidade do Estado da Bahia, de modo a perceber como elas têm
contribuído para a formação do professor leitor, pois:
O ato da leitura resulta de um investimento individual condicionado
aos processos sociais, produzindo sentidos e se inserindo em uma
dinâmica social na qual o leitor tem um lugar e uma referência de si,
do outro e do mundo que o circunda (CORDEIRO, 2008, p. 197).
Esta autora coloca que as histórias de leitura devem ser compreendidas a
partir das subjetividades de cada sujeito, de suas trajetórias de vida e de formação,
ou seja, das experiências e do lugar social que cada um ocupa, com seus diferentes
ritmos, maneiras de ler e dos diferentes tempos e espaços de leitura que os
constituem, pois “contar história de uma vida é dar vida a essa história” (ARFUCH,
2010, p.42).
Assim, os pesquisadores que investigam história de vida, de leitura, práticas
de formação docente e de formação de leitores nos fazem pensar que a leitura é uma
prática social indispensável a qualquer sujeito e, se a situarmos no espaço
educacional, percebemos que nesta esfera há uma verdadeira justaposição de povos e
485
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
culturas. E, como fica a figura do professor, em especial do professor de Língua
Portuguesa, ao trabalhar a questão da leitura? É possível apenas uma prática de
leitura para atender os sujeitos?
Diante dessas questões-problema em torno da leitura, a qual é, sem dúvida, o
alicerce para o exercício da sua função. Compreende-se que o trabalho que o
professor desenvolve com a leitura decorre de sua visão do mundo, e do modo como
põe os seus hábitos de leitores a serviço das atividades que desenvolve. Sua
subjetividade enquanto um sujeito que se afirma leitor implica em seus
conhecimentos específicos e pedagógicos, possibilitando uma práxis. Assim,
compreender o processo identitário de professores em formação através de suas
histórias de vida, da visão particular de suas experiências, pode ser uma forma de
visibilizar esses sujeitos, dando uma ressignificação as suas práticas de leituras
vivenciadas no processo de transição de estudante leitor a professor leitor.
PRÁTICAS DE LEITURAS: O QUE É LER? E COMO SE LÊ?
486
A vida contemporânea exige o constante exercício da leitura, já que esta
ação é considerada um requisito de inclusão social e uma ferramenta
indispensável para a convivência nesta sociedade, bem como para o
delineamento de novas fronteiras do saber, já que toda e qualquer atividade
humana está relacionada com o uso da língua, através de enunciados, orais ou
escritos, provindos de todo ser humano, independentemente de sua classe
social, uma vez que o domínio da leitura e da escrita é fundamental para que o
sujeito saiba atribuir significados a cada processo por qual vivenciou,
ressaltando que este sujeito é um ser social que interfere no seu meio,
posicionando-se criticamente.
Mas, afinal, o que é a leitura? É o modo como se interpreta um conjunto
de informações impressas? É a ação de decodificação e codificação dos signos?
No contexto da contemporaneidade, esta pequena palavra – leitura –, rompe
com a dicotomia de apenas reconhecer e sonorizar as letras, com o passar dos
tempos, assim como outras palavras, ela se ressignificou e carrega consigo um leque
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
de significação. Entende-se a leitura como um processo interativo, porque se acionam
e interagem os diversos conhecimentos do leitor a todo o momento para chegar à
compreensão do que se lê, pois:
A leitura, evidentemente, não é um ato isolado do indivíduo ante ao
escrito de outro indivíduo. Sua dinâmica pressupõe a decodificação
de sinais e propõe a imersão do leitor no contexto social da
linguagem e da aprendizagem, através da compreensão do discurso
de outrem. (CRUZ, 2012, p. 71).
De fato, a leitura envolve certa dinâmica, como nos assegura Cruz (2012), pois,
ao ler, é preciso que o leitor compare o que foi lido com sua bagagem de
conhecimento mundano, ou seja, requer sua interpretação acerca do que está escrito
nas linhas e nas entrelinhas para se inferir sentido, questionando-o, assim “analisar a
leitura significa se interrogar sobre o modo de ler um texto, ou sobre o que nele se lê
(ou se pode ler)”, como diz Jouve, (2002, p. 13).
Concomitante a isso, a leitura é objeto de conhecimento, instrumento para
novas aprendizagens e entretenimento, pois o seu discurso desperta no leitor algo
que costuma denominar de prazer e possibilita ao indivíduo que faz a leitura uma
visão ou interpretação pessoal das condições sociais, políticas e econômicas de um
povo em um dado momento de sua história, uma vez que “o ato de ler é, já em si
próprio, fortemente subjetivo” (JOUVE, 2002, p. 18).
No entanto, para se tornar um sujeito crítico na era contemporânea, é
indispensável o domínio das práticas de leitura, leitura essa marcada cada vez mais
pelas presenças de imagens, sons e palavras que têm como suporte a televisão, o
vídeo, o cinema, o computador, implicando assim, novas formas de ler e novas
formas de interferir no mundo da cultura tecnológica, pois:
O fluxo sequencial do texto na tela, a continuidade que lhe e dada, o
fato de que suas fronteiras não são mais tão radicalmente, visíveis,
como no livro que encerra, no interior de sua encadernação ou de sua
capa, o texto que ele carrega, a possibilidade para o leitor de
embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na
mesma memoria eletrônica: todos esses traços indicam que a
revolução do livro eletrônico e uma revolução nas estruturas do
suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler.
(CHARTIER, 1998, p. 13).
487
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Assim, as novas práticas de leituras, apresentam características físicas e
corporais do sujeito leitor, sujeito esse que rompe com a maneira tradicional de ler,
aquela determinada pelas bibliotecas, na qual o sujeito se posta diante do livro e
passa a degustá-lo silenciosamente, página após página, seguindo sempre a mesma
prática de ler.
Os novos paradigmas concernentes à leitura implicam novas relações sociais
para com a linguagem, trazendo possibilidades também novas, em particular no
âmbito do hipertexto, considerado como o texto escrito que passa a fazer parte da
interação do sujeito com o contexto comunicativo.
Essa desconstrução linear da leitura (e consequentemente da escrita também)
para uma dimensão indisciplinar, reflete uma ruptura de paradigma com relação à
linguagem e o pensamento, bem como suas concepções sociais e políticas, pois os
sujeitos leitores são diversos, o que caracteriza também os diferentes modos de ler e
de escrever e variam segundo diferentes instituições, considerando-se a tendência à
488
contextualização das atividades, estratégias, saberes, segundo a situação específica,
num tempo e espaços concretos.
Segundo Chartier (1990), as histórias das práticas de leituras têm com intuito
identificar em cada época as modalidades partilhadas, vivenciadas pela leitura,
descrevendo, assim, as formas, posturas e gestos praticados pelos respectivos
sujeitos, produzindo uma significação e sentido desta prática.
Deste modo, a noção de leitura como uma prática sociocultural que perpassa
pela relação de poder presente na sociedade e analisar as práticas de leituras dos
estudantes/professores pressupõe entender e compreender as práticas de letramento
vivenciadas por esses mesmos sujeitos, pois, é sabido que a leitura é proveniente da
experiência existencial e a mesma não apresenta uma única dimensão existencial
para os mesmos leitores, pois:
O trabalho de leitura é, em grande parte, um processo de produção
de sentido, no qual o texto participa mais como um conjunto de
obrigações (que o leitor toma mais ou menos em consideração) do
que como escrita mensagem. A partir de então, pensamos poder
mostrar que as inferências inerentes ao ato léxico apoiam-se mais
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
sobre a capitalização cultural específica de cada leitor do que sobre a
aprendizagem escolar de uma técnica de decifração. (HERBRARD,
2011, p.37 - 38).
Corroboramos com Herbrand (2011) quando coloca que cada leitor vivencia o
que lê a partir de suas representações concretas e simbólicas e essas experiências
ganham sentido quanto o sujeito se transforma e aprende a partir das suas marcas
sócio-históricas.
CONTEXTO METODOLÓGICO DA PESQUISA
Conforme já mencionado, o presente texto aborda uma reflexão a partir das
práticas de leituras e a formação de professores-leitores. Tendo como abordagem
teórica as práticas culturais de leituras, ancoradas nos estudos autobiográficos de
narrativas de formação, uma vez que a abordagem autobiográfica possibilita ao
pesquisador descrever e analisar fatos que marcam a vida e a formação dos sujeitos,
experiências essas situadas dentro de um contexto sócio-histórico e cultural, como
bem coloca Josso (2007), pois à medida que o sujeito narra um fato biográfico, faz
uma interpretação do que foi vivido, do que foi experienciado por ele, uma ação
dupla vivenciada pelo sujeito narrador, cabendo ao pesquisador que trabalha com o
método autobiográfico fazer a interpretação e compreender o que foi narrado pelo
sujeito colaborador na pesquisa.
Ao me apropriar do método (auto)biográfico, a princípio busquei articular este
método aos meus objetivos, de um modo que esta metodologia me norteasse a buscar
os indícios que me levaria a compreender a constituição identitária do professor –
leitor. Sendo assim, a partir das narrativas de duas professoras de Língua Portuguesa
egressas do curso de Letras da UNEB-Campus II, as quais vivenciaram os saberes da
práxis docente, pois como critério de seleção foi estabelecido que as colaboradas
estivessem atuando em sala de aula. A seleção desses sujeitos se fundamenta no fato
de serem profissionais educacionais que vivenciam o campo linguístico e literário
diariamente em seus espaços escolares. Vivência essa na qual a leitura permeia por
toda a sua ação.
489
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Assim sendo, este trabalho caracteriza-se como uma pesquisa de natureza
qualitativa, ancorada no método (auto)biográfico para analisar as práticas de leituras
vivenciadas pelas professoras de Língua Portuguesa, na perspectiva de entender
como essas práticas contribuíram para a formação do professor leitor, tendo em vista
a entrevista narrativa como técnica de recolha das narrativas de formação leitora,
pois:
A entrevista de pesquisa biográfica instaura assim um duplo
empreendimento de pesquisa, um duplo espaço heurístico que age
sobre cada um dos envolvidos: o espaço do entrevistado na posição
de entrevistador de si mesmo; o espaço do entrevistador, cujo objeto
próprio é criar as condições e compreender o trabalho do
entrevistado sobre si mesmo. (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 527).
O falar de si, nesta pesquisa, possibilita visibilidade ao professor em formação,
ao permitir ouvir as suas singularidades, o que cada momento relatado revela de sua
experiência e de sua existência. O relato não se limita apenas a ação de contar, ele vai
490
além, adentrando na subjetividade do sujeito, desnudando-o, lhe permitindo reviver
momentos pela ação de rememorar, já que as narrativas, sejam elas de vida, de
formação ou de profissão, produz no sujeito narrador:
[...] ele tem também o poder de produzir efeitos sobre aquilo que relata.
É nesse “poder de agir” do relato que se baseiam as propostas de
formação que se valem das “histórias de vida” para dar início a
processos de mudança e de desenvolvimento nos sujeitos. (DELORYMOMBERGER, 2012, p. 529).
Sendo assim, as narrativas aqui apresentadas é apenas um recorte do corpus
da pesquisa intitulada “Memórias docentes: nas entrelinhas do currículo”, que se
encontra em fase de desenvolvimento, vinculada ao Programa de Pós-graduação em
Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, do campus de
Alagoinhas, cujos relatos orais são transcritos pelo trabalho da memória e
evidenciam as subjetividades dos sujeitos, seu valor heurístico, a partir de uma
análise interpretativa-compreensiva. Uma vez que, ao rememorar suas lembranças,
as professoras revisitam e revivem o processo de apropriação das suas práticas de
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
leitura, buscando pistas dos percursos, preferências de textos, ambientes, modos,
acesso e pessoas que contribuíram na sua formação, enquanto leitora.
O QUE AS NARRATIVAS NOS CONTAM: UM MERGULHO NO UNIVERSO
DAS LEITURAS
A partir das entrevistas realizadas e analisadas chegamos à seguinte
descoberta: os relatos das duas professoras de Língua Portuguesa aqui apresentadas,
evidenciam que elas iniciaram os seus primeiros contatos com a leitura na escola,
considerada por elas como um lugar de encontro com os mais variados saberes,
possibilitando-lhes a entrada no processo de alfabetização por via da escolarização,
iniciando um percurso que direcionaria para o mundo da docência. Desse modo, as
primeiras práticas de leituras vivenciadas por estas professoras está atrelada a seus
processo de processo de alfabetização/escolarização e, ao rememorarem este
momento, as professores refletem regressando no tempo essas primeiras
aprendizagens. Ao passo que íam narrando essas experiências, o sentido atribuindo à
leitura era ressignificado. Uma ação que redesenhava as práticas de leituras
vivenciadas nas histórias das professoras a partir das suas subjetividades, uma vez
que “os processos de formação de professores e leitores se modelam na tensão entre
as experiências que demarcam as histórias de vida de cada sujeito e seus percursos
de formação e autoformação” (CORDEIRO; SOUZA, 2010, p. 217).
Assim, as lembranças das leituras experiênciadas pelas colaboradoras estão
atreladas as suas experiências educacionais, conforme Cordeiro e Souza (2010), os
sujeitos, ao narrarem suas práticas de leituras, entram em contato com suas
lembranças, histórias e representações sobre as aprendizagens vivenciadas no espaço
escolar/acadêmico, como forma de tornar esses “espaços”, o espaço privilegiado da
leitura.
Para tanto, a abordagem (auto)biográfica possibilita o entrelaço das histórias
individuais com as histórias sociais, já que os sujeitos autores dessas narrativas são
sujeitos ativos que se apropriam do mundo social que está a sua volta, dando lhes
sentidos diversificados que, por sua vez, são traduzidos em suas práticas, se
491
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
manifestando na sua subjetividade; assim “a abordagem biográfica prioriza o papel
do sujeito na sua formação, o que quer dizer que a própria pessoa se forma mediante
a apropriação de seu percurso de vida, ou do percurso de sua vida escolar” (BUENO,
2002, p. 22). Assim, uma das professoras, identificadas como professora Aline, coloca:
[...] a gente não tinha acesso a livros, não tinha acesso a revistas, não tinha
acesso a televisão, rádio, essas coisas todas; meu Deus quando eu vim ter
acessa a isso eu já estava grande, grande que eu quero lhe disser eu já tava
assim [...] com nove dez anos de idade. [...]. A gente morava em um sítio lá
tinha porco, tinha cavalo, tinha jegue, tinha peru, tinha pato, tinha coque,
tinha pombo, minha mãe criava essas coisas. [...] Então, tudo isso pra mim
era motivo de criar história, tudo isso, cada coisa no quintal de lá de casa
tinha uma história, tudo eu inventava, eu tinha uma facilidade grande pra,
pra isso. Eu achei que isso me [...] facilitou a aprendizagem [...]. (Aline –
Entrevista narrativa, 2011).
Esse relato da professora Aline demarca o seu encontro com o mundo abstrato
da leitura, um indivíduo capaz de compreender o significado dos diversos objetos e
sujeitos que se manifestavam no seu espaço. Ela lia o mundo como o mesmo se
492
mostrava para si, o ato de ler era materializado pelas ressignificação das coisas que a
colaboradora os davam, a leitura não estava representada por meio da escrita, e se da
sua arte, dos cheiros, da sua capacidade de imaginar.
A professora Aline possui uma experiência própria, cotidiana e pessoal,
tornando a leitura única, incapaz de se repetir, e este é o seu grande encanto. “Daí
porque as histórias de leituras devem ser compreendidas entre a subjetividade e o
lugar social de cada indivíduo, com seus diferentes ritmos, formas de ler, tempos e
espaços de leituras os mais inusitados” (CORDEIRO, SOUZA, 2010, p. 224).
O domínio da leitura e da escrita possibilita o indivíduo compreender a sua
razão de ser no mundo, buscando cada vez mais novos conhecimentos sobre a
realidade a qual pertence. Insere-se na realidade, nas histórias registrando os
processos decorrentes, acumulando-os na memória devido ao fato de ser leitor e
escritor, despertando no sujeito leitor uma reflexão não só naquele contexto em que
está situada a história, uma leitura que proporcione ao leitor compreendê-la em
outros contextos (res)significando-a.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
A colaboradora Aline, conforme a concepção de Sonia Kramer (2000, p. 21)
apresenta a leitura como experiência, ao falar:
[...] de livros e de histórias, contos, poemas ou personagens, compartilhando
sentimentos e reflexões, plantando no ouvinte a coisa narrada, criando um
solo comum de interlocutores, uma comunidade, uma coletividade. (Aline –
Entrevista narrativa, 2011).
De fato, o domínio da leitura e da escrita é fundamental para que o sujeito
saiba atribuir significados a cada processo por qual vivenciou. Assim sendo, a
professora Aline coloca que:
Mas foi na quinta série que eu comecei a ter acesso a livros que eu não tinha
acesso antes, eu li a..., você conhece A ilha perdida, o Menino de asas,
Menino de engenho conhece? Eu li tudo isso...da quinta à oitava série eu li o
Menino de asas, eu li Menino de engenho , eu li A ilha perdida, eu li o
Escaravelho do diabo, eu li..., o que mais que eu li..., eu li tanta coisa
bacana....eu li o Escaravelho do diabo, A ilha perdida o que eu li mais
Zuleide. Eu li a Moreninha..., eu li muita coisa nessa época que me marcou,
eu li...também....meu pé de laranja lima, eu li um bocado de coisa bacana
nessa época, que hoje os meninos não ler. [...] (Aline – Entrevista
narrativa, 2011).
Este relato da professora Aline evidencia a forma como a escola
institucionaliza e direciona as leituras de uma forma sútil, pois esta colaboradora
afirma que o contato com o livro era tão fascinante e não percebia esta intenção
escolar. No espaço escolar prevalecem as obras literárias, postura que a literatura
desde sempre representa como uma ferramenta de ensino que endossa valores e
serve como pretexto para o ensino de determinados conteúdos.
Sanches (2004) descreve essa intencionalidade escolar com base na escola
pública (sua realidade, não que a escola particular fugisse a essa regra), uma vez que
vivencia um currículo que determina os conteúdos escolares se firmando em uma
instituição conformadora, mais que formadora, mostrando que o que está em jogo
não é o prazer ou conhecimento desta leitura, mas a construção de informações que
possibilitem ao aluno comprovar a leitura realizada.
A experiência da professora Aline também se cruza com a experiência da
professora Kátia, embora esta perceba as imbricações propostas pela instituição
493
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
escolar, o que difere são os tempos e os espaços vivenciados, mas a escola permanece
a mesma, pois a professora Aline vivenciou esses saberes na década de 70, enquanto
que a professora Kátia nos anos 90, com uma disparidade de vinte anos, embora a
escola tenha continuado a promover práticas de leituras que garantam ao aluno
efetivamente ler e compreender a obra lida. Sobre essas questões, a professora Kátia
coloca que:
Eu me lembro que a gente fez um trabalho com Fátima Berenice de Vidas,
com o livro a obra Vidas secas, eu nunca esqueci de Vidas Secas. Eu li no
ensino médio pra mim foi um livro que passo batido porque a escola também
deixou a desejar nesse sentido, mas depois do contato que eu tive com esse
livro na graduação eu nunca esqueci desse livro porque aquilo foi
significativo. (Kátia – Entrevista narrativa, 2011).
Neste excerto narrativo da professora Kátia fica nítido que a mesma vivenciou
duas práticas de leitura com a mesma obra literária, sendo em tempo e espaços
diversos, assim como as propostas curriculares, o primeiro momento enquanto aluna
do ensino médio em uma instituição particular, e no segundo momento como aluna
494
do curso de Licenciatura em Letras.
Quanto às práticas de leituras vivenciadas no espaço da academia, vale
ressaltar que o espaço acadêmico foi o mesmo para ambas, apenas em tempos
diferentes, pois tanto a professora Aline, como a professora Kátia vivenciaram
práticas de leituras significativas que íam de encontro com as ideologias das práticas
de leituras escolares.
A professora Aline afirma que fez:
[...] literatura portuguesa com Nanci, conheci o Primo Basílio um
estudo...que num vai me sair da memoria nunca mais a profundidade que
Nanci fez com que a gente estudasse o crime do padre amaro e tantas coisas
bacanas que eu vivi na faculdade, entendeu. (Aline – Entrevista narrativa,
2011).
Conforme Souza, as histórias de vidas ou a narrativa (auto)biográfica se
constitui em um método que nos permite “[...] compreender as histórias de
escolarização de professores em processo de formação” (2006, p. 135), pois uma
narrativa onde o sujeito se autorevela, permitindo-o se conscientizar da sua formação
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
acadêmico-profissional, é uma nova forma de pensar a formação docente,
suplantando as práticas tradicionais presente nos curso de formação docente.
Sendo assim, a sala de aula, para a professora Kátia, tornou-se um espaço vivo
de narrativas, onde os sujeitos tecem os conhecimentos a partir de uma rede de
subjetividades, desconstruindo os saberes imutáveis, como nos propõe Alves e
Oliveira (2002), ao descrever o currículo a partir da realidade cotidiana da escola,
pois
analisa
os
saberes
curriculares
sem
nenhum
julgamento
de
valor,
compreendendo e valorizando a pluralidade de conhecimentos que há neste espaço.
Nessa concepção curricular, os estudos não partem mais da teoria social hegemônica
e sim das diversas questões sociais que são vigentes.
Ler é, fundamentalmente, uma prática social, esta totalmente atrelada às
situações vivenciadas no contexto familiar, escolar, acadêmico, dentre outros. As
leituras oriundas de outros espaços e de obras não canônicas, também constitui um
sujeito leitor, com habilidades de ser um cidadão crítico. Nesta perspectiva de prática
de leitura, na qual não se institucionaliza o que ira ler, o ler é determinado pelo
gosto, pelo prazer, sem as amarras que as instituições escolares possibilitam ao
aluno, assim como ao professor visibilizar outras leituras para construírem os saberes
que lhes serão úteis dentro e fora do ambiente escolar.
Assim, cabe nos questionar e romper com a institucionalização das práticas de
leituras que são impostas pelo currículo escolar, pois a leitura é a base da sustentação
da aprendizagem para o aluno e a sua a ausência na formação do professor seria uma
mutilação, pois a leitura é, sem dúvida, o alicerce para o exercício da sua função
profissional. Assim coloca a professora Aline, ao dizer que:
Eu lia muita revista em quadrinho também viu, e na minha adolescência
adivinhe o que eu li muito, muito, muito, muito, muito que deu até um
trabalho na faculdade eu fiz com Jeane Magalhães Julia, Bianca, Sabrina, eu
li tudo. Eu viajei com aqueles homens maravilhosos, com aqueles castelos
encantadas, com aquelas praias paradisíacas maravilhosas, lindas, perfeitas
minha, minha adolescência foi tumultuada daqueles homens parecendo um
Deus grego. Eu li tudo que você pensar assim. E eu digo a você que isso tudo
me ajudou a escolher Letras como meu curso. (Aline – Entrevista
narrativa, 2011).
495
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Neste relato da professora Aline fica evidenciada uma satisfação ao degustar o
livro, pois referida docente tem liberdade em escolher o que se quer, “ser sujeito de
minhas escolhas, mesmo que elas recaíssem sobre livros e autores errados”
(SANCHES, 2004, p.18), já que o livro possibilita uma satisfação, não somente por têlo, mas pela essência que o texto transmite ao sujeito leitor. Assim, Sanches (2004)
coloca que a:
[...] satisfação psicológica não se dá pela posse do objeto, mas pela
fruição de sua essência, nunca conquistada de fata, exigindo que ele
sempre retorne a ela – por isso tendemos não só a reler como buscar
os livros da mesma família. (SANCHES, 2004, p. 66).
Assim, neste fragmento, Sanches (2004) nos propõe conceber o ato de ler com
um momento de se aventurar-se no desconhecido, descobrindo e construindo
mundos, um mundo no qual criamos um sentimento de pertença. Permitindo-nos
vivenciar diversos eus, rompendo com a lógica e a historicidade do tempo,
possibilitando-nos vivenciar um devir. E, deste modo, a professora Aline vivenciou
496
todos os seus livros.
Para Cruz (2012), as práticas de leitura, sejam elas canônicas ou não, permitem
uma junção de cultura, o encontro do mundo autor e do leitor em um único
código/língua, um discurso em que o leitor se envolve, elaborando um ponto de
vista, no qual interpreta de acordo com a sua vivência no/do mundo, uma vez que
“Ler nos forja a alma e nos insere no tecido cultural que envolve a frágil e forte
existência humana”, nos assegura Hazin (2006, p. 64).
Sendo assim, as práticas de leitura guardam a identidade de cada leitor, o
modo com se constituiu ou está se constituindo, a partir do espaço da
escola/academia, dentre outros, que possibilitem a leitura e o tempo dedicado a essa
prática são fatores inerentes à construção do sujeito professor-leitor.
As experiências aqui rememoradas pelas duas professoras colaboradoras nesta
pesquisa, evidenciam que as práticas de leitura estão ligadas às questões culturais e
não apenas com a imposição escolar, embora este espaço e tempo, qual seja, a escola
e os percursos de escolarização tenham influenciado a sua identidade leitora, apesar
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
do gosto pela leitura já existir, o que lhe faltava no caso da professora Kátia era
apenas uma ressignificação da prática que lhe foi apresentada no espaço escolar.
Quanto à professora Aline, o fascínio pela aventura promovida pela leitura,
ainda menina, não lhe permitiu conhecer a ideologia escolar para com a leitura. Do
mesmo modo, conhecer as histórias de leituras de duas alunas egressas do curso de
Letras da UNEB/Campus-II nos leva a refletir o valor significativo que essas práticas
vivenciadas nos espaços escolares e educativos, como a escola e a academia
contribuíram significativamente para a construção de uma identidade leitora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A problematização referente à leitura aqui apresentada vai além da dicotomia
codificação/decodificação dos signos, e sim a apropriação dos significados de um
texto, isto é, a produção de sentido que o sujeito leitor constitui. Assim é
fundamental que instituições de ensino sejam e possibilitem a esses sujeitos espaços
de leitura reflexiva, concebendo em seus espaços as diversas práticas de leituras
vivenciadas e construídas ao longo de sua escolarização e de sua vida.
Diante desta perspectiva, o estudo desenvolvido com as professoras de Língua
Portuguesa, a parir de suas histórias de leitoras, a fim de compreender em quais
circunstâncias suas práticas de leituras experiênciadas nos espaços de ensino
contribuíram para um perfil de um sujeito-leitor, assim como esta incide em seus
processos de formação continuada de professoras-leitoras, pois ao (re) viverem essas
experiências, implícito ou explicitamente, estas demarcam o papel formativo das
práticas de leitura na sua identidade e na sua formação continuada.
Assim, pode perceber nas vozes das professoras colaboradoras da pesquisa
que é visível a forma homogênea e institucionalizada que o espaço escolar propõe às
práticas de leituras e ganham um caráter utilitarista, porque servem de pretexto para
o
ensino
de
regras
gramaticais,
constituindo-se
de
textos
fragmentados
desvinculados dos contextos em que foram produzidos e distantes das necessidades
de leitura dos alunos, se finalizando em uma aprendizagem não significativa.
497
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Para tanto, ao dar visibilidade as narrativas das professoras, é possível dar a
sua vida outros sentidos, repensar as experiências do passado, processo que se
relaciona à história e à cultura, já que a memória de cada um se liga à memória do
grupo e aos laços de coletividade. Permite-nos assim, desenhar a genealogia das suas
formas de ler a partir das suas narrativas e o significado cultural da leitura na vida
desse professor/leitor.
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499
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
500
PINTANDO POESIA:
Uma Experiência com alunos do Ensino Fundamental II
Verônica Pereira de Almeida
Professora da rede básica estadual de ensino
[email protected]
RESUMO
Nos últimos anos, muitos pesquisadores da área de estudo da linguagem veem discutindo
muito acerca do multiletramento e das práticas educativas que envolvem o ensino da leitura
e escrita. (ver entre outros: Rojo 2009; Kleiman, 2005; Borges da Silva, 1999; Moura, 2012;
Mendes, 2008). Dentre os estudos empreendidos está a leitura como um conceito que pode
ser interpretado de diversas formas, e não somente como uma exclusividade verbal. Na
educação infantil até o final do ensino fundamental I, a presença da linguagem artística e de
textos não verbais, frequentemente aparecem nas produções dos alunos, mas, com o passar
dos anos, esse tipo de linguagem começa a desaparecer. No entanto, muitos educadores
reconhecem que há uma maior motivação por parte dos alunos, ao propor uma atividade em
que o aluno possa se expressar mais livremente, a exemplo do desenho, da pintura e de
produção de textos literários. Durante a realização da minha pesquisa de mestrado, dei início
a um processo de grandes descobertas. O acesso ao conhecimento, adquirido nas leituras e
discussões em sala de aula, passou a refletir na minha prática docente, levando-me a refletir
e experimentar algumas atividades de leitura e produção de textos. Foi a partir das minhas
reflexões sobre multimodalidade de gêneros textuais que surgiu a ideia de levar para sala de
aula o livro Pintando Poesia da artista plástica baiana Ada Brito. Outro aspecto que me
motivou a desenvolver esse estudo foi o meu desejo de inserir os alunos no universo da
poesia e da pintura, possibilitando-os descobrir diferentes formas de leituras. A experiência
desenvolvida com um pequeno grupo do ensino fundamental II (6º ano) foi bastante exitosa.
A motivação dos alunos, revelada nas suas produções, me fez refletir e repensar sobre a
minha prática em sala de aula. E é nessa perspectiva que será apresentado um relato de
experiência de uma professora que versa sobre sua proposta de atividade de leitura e escrita
de textos verbais e pictóricos, desenvolvido em uma turma do ensino fundamental II de uma
escola pública em Salvador.
PALAVRAS-CHAVE: experiência docente; prática de leitura; poesia; pintura.
1
APRESENTAÇÃO
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Foi durante o período em que cursava o mestrado acadêmico que as leituras e
discussões sobre gêneros textuais passaram a refletir na minha prática docente, levando-me a
refletir e experenciar algumas atividades de leitura e produção de textos que fugiam um
pouco da nossa rotina em sala de aula. Paralela às atividades referentes ao meu objeto de
estudo do mestrado realizei atividades de leitura e produção de poemas e leitura de
imagens. A disposição dos alunos para escrever, comentar oralmente e, principalmente,
representar seus textos por meio de imagens me motivou a levar para sala de aula, textos que
reunissem poesia e pintura. Conforme Vicentini (2011apud Aguiar e Silva), dentro do
processo evolutivo, a poesia e a pintura estão entrelaçadas. Ambas são “artes irmã”, quanto
ao efeito e a produção de sentidos. As duas artes proporcionam ao leitor diferentes formas
de ver, refletir, sentir e criar.
A motivação para a prática que ora apresento surgiu do meu interesse pela
literatura e a pintura e do desejo de inserir os alunos no universo dos poemas e da pintura,
possibilitando-os descobrir diferentes formas de leituras.
Foi a partir das minhas reflexões sobre multimodalidade de gêneros textuais,
somado ao meu interesse e as respostas dos alunos, que surgiu a ideia de levar para sala de
aula um livro de poesias pintadas. A obra apresentada ao grupo foi o livro Pintando
502
Poesia22, da artista plástica baiana Ada Brito.
Tomando como pano de fundo o livro Pintando Poesia, visando contribuir para o
aprimoramento das práticas de leitura e escrita no contexto escolar, foram traçados os
seguintes objetivos:
Verificar se e como o aluno estabelece a relação existente entre os poemas e as
pinturas;
Incentivar a turma na produção e leitura de textos não-verbais;
Analisar as produções textuais dos alunos.
22
Pintando Poesia. Livro de Poesias Pintadas, da artista plástica e escritora baiana Ada Brito. O
livro está registrado na Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro, 01 de junho de 1990.
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
2
O LIVRO PINTANDO POESIA
Pintando Poesia representa a obstinação e sensibilidade de uma artista à
produção de algo “inédito” na sua carreira – a composição de uma obra que reúne
poemas e pinturas. Em 1983, a artista plástica baiana Ada Brito23, escreve um poema
com todas as letras começadas pela letra S. Ela não imaginava que esse seria a
inspiração para algo que parecia impossível – a produção de um livro composto por
24 poemas trabalhados em todas as letras do alfabeto (incluindo a letra K), tendo
todas as palavras iniciadas pela mesma letra e ilustrações produzidas pela própria
autora.
Elementos da cultura popular, recordações da infância, brinquedos anjos e
seres mitológicos são elementos marcantes que compõem um universo de palavras e
cores.
Artista consagrada e de grande participação no cenário artístico eixo BahiaRio de Janeiro, nas décadas de 70 a 90, Ada Brito possui um acervo artístico de
subido valor estético, merecedor de um estudo sistemático, no entanto há poucas
referências bibliográficas acerca do seu trabalho. Em artes cênicas, Ada criou o Teatro
de Títeres da Hora da Criança24, premiado no 1º Salão de Arte Visual – Rio de
Janeiro. Criou figurinos e cenários, dentre esses está a cenografia do show dos “70
anos de Caymmi” – Rio de Janeiro e Opereta Narizinho – Bahia e também produziu
desenhos em quadrinhos, como a revista comemorativa do Sesquicentenário da
Bahia, editada pela Abril Cultural, em 1973.
Ada Paiva da Rocha e Brito (13 nov. 1940) Nascida em Salvador/BA Graduada em Artes Plásticas
pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Além da pintura, Ada Brito dirigiu o
Departamento de Artes Plásticas da Hora da Criança.
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O Teatro de Títeres da Hora da Criança recebeu, por sua participação especial, uma Medalha de
Prata, no I Salão de Arte Visual, realizado no Ministério da Educação e Cultura do Rio de Janeiro, de
17 a 24 de novembro de 1975.
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Vejamos abaixo uma pequena amostra do livro Pintando Poesia.
Poema em S
O poema em S foi o primeiro poema e trouxe inspiração para a produção do
livro. (fragmentos do Poema em s)
Se sentimento silencioso
Se sentisse...
Seria seu...
Sílfide sublime
Sonho supremo
Sem subterfúgios
Pintura Poema em S – Rio de Janeiro, 1984
Semblante singular
Superior, singelo...
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Poema em X
O poema não possui verbo e para ela, foi o mais difícil de produzir. O poema
em X foi Inspirado num jogo de xadrez, sendo composto de:
1º verso – 4 palavras dissílabas;
2º verso- 4 palavras trissílabas;
3º verso- 4 palavras polissílabas.
Xale
Xadrez
Xodó
Xerez
Xerife
Ximbica
Xereta
Xixica
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
Xeque mate
Xadrezista
Xingamento
Xirimbabista.
Vale ressaltar que os poemas apresentam palavras que para uma turma de 6º ano
seria de difícil compreensão, mais isso não foi empecilho para que a turma observasse mais a
sonoridade e a composição dos poemas (toda iniciada pela mesma letra). Poucos foram os
alunos que perguntaram o que significava determinadas palavras. O encanto pela imagem e
a sonoridade despertou muito mais o interesse da turma.
3
A PROPOSTA DE ATIVIDADE COM A TURMA
Essa experiência foi desenvolvida com uma turma do ensino fundamental II, em
uma turma do 6º ano de uma escola pública estadual. A turma era composta por 22 alunos
com faixa etária entre 10 a 11 anos.
Primeiro momento:
 Vamos ler esse texto? (Monet);
 Meu improviso; teu improviso;
 Apresentando o livro.
No primeiro momento foi apresentada uma pintura de Monet para que os alunos
contemplassem a pintura e realizassem uma leitura do que viam e sentiam na imagem. Em
seguida, alunos e professora criaram um pequeno texto escrito literário para representar a
pintura. Escrevendo na louça, a professora deu início ao texto e os alunos completavam seu
texto. Esse momento foi marcado pela integração e criatividade dos alunos. Após essa
motivação, foi apresentado à turma o livro Pintando Poesia.
Foi notável o encantamento dos alunos pelos poemas e, em especial, pela pintura.
Segundo momento:
 Vamos tentar?
 Quem se habilita?
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Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
No segundo momento, a turma foi convidada e motivada para produzir seus textos
verbais e pictóricos. Algumas produções foram inéditas e acompanhadas de ilustrações
também produzidas pelos alunos, outras preferiram copiar poemas extraídos do livro
didático e criaram imagens para ilustrar esses poemas.
Vejamos abaixo uma amostra do trabalho realizado com a turma.
Poesia (aluna 10 anos).
Liberdade/ Fernando Pessoa (aluna 10 anos).
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“Um peixe que está na água não tem
escolha do que ele é. Os gênios
possuem este talento que possuímos
de nadar na areia. Somos peixes, e
nos afogamos”. James Dean.
O peixe e cada talentos/ James Dean. (Por um aluno 11 anos)
Nos trabalhos dos alunos, foi possível perceber que há uma relação ente o verbal e
pictórico. Todos os trabalhos demonstraram uma relação entre a mensagem escrita e as
imagens criadas. A criatividade nas ilustrações e coerência com o texto verbal foram os
primeiros registros anotados. Outro aspecto observado foi a motivação de grande parte da
turma na produção de imagens para seus textos escritos.
Em um dos nossos encontros para realização dessa atividade, em uma conversa com
um grupo, um aluno disse que ao fazer as imagens parece que o texto ganha mais sentido.
Esse fala do aluno revela que desenhar, colorir seu texto não é apenas um recurso didático
Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015.
para mera distração, mas que pode permitir ao professor observar a linguagem e as
hipóteses de leituras dos alunos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Quando o professor consegue encantar o leitor, você pode dizer: a leitura
tem reflexos na sala de aula.”
(Kleiman, Ângela, 2007 - em entrevista à revista Na Ponta do Lápis)
De início, esse estudo foi mais uma proposta da minha prática pedagógica,
motivada por um interesse pessoal de encantar a turma com uma proposta de diálogo entre
o texto verbal e o pictórico. No entanto, percebi que foi uma experiência bastante exitosa e
que merecia um estudo mais fundamentado. A motivação dos alunos, revelada nas suas
produções, me fez refletir e repensar sobre as práticas de leituras, gêneros textuais e
formação de leitores, levando-me a repensar a minha prática em sala de aula.
No que tange aos objetivos traçados nesse estudo, posso afirmar que foram
alcançados, entretanto, vale ressaltar que ao verificar as produções dos alunos, percebi que
havia outras possibilidades de explorar uma atividade dessa natureza, por essa razão
p

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