Ramos, R. - Erro e verdade na quarta meditação de Descarte…

Transcrição

Ramos, R. - Erro e verdade na quarta meditação de Descarte…
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Erro e Verdade na Quarta Meditação de Descartes
Renata Ramos
PUC-Rio (Bolsista CAPES)
Ao tratar do problema do erro, que aparece na Quarta Meditação, Descartes toma como
claro duas teses que foram analisadas nas Meditações anteriores: a Regra Geral da Verdade1, que
afirma que toda ideia clara e distinta é verdadeira, e a da supressão da hipótese do deus enganador,
através da prova da existência de Deus2. Com isto, conclui que bastaria que realizássemos os nossos
juízos acerca das ideias claras e distintas e suspendêssemo-los quando tratassem de ideias obscuras
e confusas para que jamais errássemos3, visto que a hipótese de existir um Ser soberano que cause o
erro sistemático, que cometeríamos mesmo julgando segundo a Regra Geral da Verdade, foi
abolida.
Dessa forma, temos, por um lado, no início da Quarta Meditação, a explicitação feita por
Descartes da tese de que esse deus, cuja existência foi provada na Terceira Meditação, é veraz4, o
que acarretaria na validação da Regra Geral da Verdade e na suposta inexistência do erro.
Entretanto, por outro lado, o próprio filósofo admite, com base no ensinamento da experiência, o
fato de sermos sujeitos ao erro5.
Ora, dado que Deus é veraz, e, portanto, não quer nos enganar (como foi suposto no caso do
Gênio Maligno), e que sabemos, pela Regra Geral da Verdade, que devemos limitar os nossos juízos
apenas às ideias claras e distintas, isto é, dado que sabemos algum meio para não errar, como, então,
é possível o erro?
Tendo esta questão em vista, Descartes, no restante da Quarta Meditação, tratará da questão
do erro primeiramente investigando a sua natureza, e, em seguida, analisando-o sob duas
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A Regra Geral da Verdade é extraída como possível a partir do argumento do cogito: “E, portanto, parece-me que já
posso estabelecer como regra geral que todas as coisas que concebemos mui claramente e mui distintamente são todas
verdadeiras.” (Meditações, p. 137, §2; AT IX, 27); e após a prova da existência de Deus ganha um fundamento
metafísico: “[...] porque toda concepção clara e distinta é sem dúvida algo de real e positivo, e portanto não pode ter sua
origem no nada, mas deve ter necessariamente Deus como seu autor; Deus, digo, que, sendo soberanamente perfeito,
não pode ser causa de erro algum; e por conseguinte é preciso concluir que uma tal concepção ou um tal juízo é
verdadeiro.” (DESCARTES, René. Meditações Metafísicas; Objeções e Respostas. In: Obra Escolhida. Introdução de
Gilles-Gaston Granger, prefácio e notas de Gerard Lebrun, tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 3. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. §16, p. 169. Todas as citações das Meditações e das Objeções e Respostas deste trabalho
serão extraídas dessa edição, com a indicação do texto referente, seguida da página e do parágrafo referentes à citação.
Ao lado também indicaremos, seguidos da sigla AT, o tomo e a página de: DESCARTES, René. Oeuvres De Descartes.
Editado por Charles Adam e Paul Tannery Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1983. 11 v. IX, 49). Acerca da Regra
Geral da Verdade ver: LANDIM Filho, Raul. Evidência e Verdade no Sistema Cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992.
2
Cf. Meditações, p. 159, §2; AT IX, 41-42.
3
“[...] experimento em mim mesmo certa capacidade de julgar, que sem dúvida recebi de Deus, do mesmo modo que
todas as outras coisas que possuo; e como ele não quereria iludir-me, é certo que ma deu tal que não poderei jamais
falhar, quando a usar como é necessário.” (Meditações, p. 159, §4; AT IX, 42).
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Cf. Meditações, p. 159, §3; AT IX, 42.
5
“[...] mas em seguida, retornando a mim a experiência me ensina que estou, não obstante, sujeito a uma infinidade de
erros […].” (Meditações, p. 160, §4; AT IX, 43).
2
perspectivas: uma epistemológica e outra metafísica. A primeira, como veremos, procura explicar o
erro a partir da análise das faculdades da substância pensante, esclarecendo, assim, como este
evento ocorre nas criaturas. Já a segunda perspectiva pretende compatibilizar o fato das criaturas
errarem com a existência de um criador perfeito através do, assim chamado, princípio de
diversidade, que, como veremos, toma a presença de defeitos nas criaturas como parte de um todo
perfeito, isto é, como sendo a melhor configuração dos seres criados no Universo.
Isto posto, analisaremos o problema do erro na ótica cartesiana, tratando de ambas
perspectivas, metafísica e epistemológica. Concluiremos que ambas são inovações cartesianas na
medida em que têm por finalidade a fundamentação do conhecimento do sujeito acerca da natureza,
ou seja, a comprovação metafísica da validade da Regra Geral da Verdade, que, portanto, torna-se o
método seguro para a ciência.
I
A análise do erro de Descartes, como dissemos, parte da aparente incompatibilidade entre a
existência de um Ser soberano e veraz e criaturas que erram, gerada pelo reconhecimento da Regra
Geral da Verdade e pela suspensão da hipótese do Deus Enganador. Com isto, tendo em visa a
solução desta suposta incompatibilidade, torna-se necessário, primeiramente, responder à pergunta
do que é o erro, isto é, uma análise da natureza deste.
Pode-se dizer que a investigação cartesiana acerca da natureza do erro desenvolve-se em três
hipóteses: ou (1) este é um efeito de um poder que Deus deu às criaturas; ou (2) é fruto de uma
negação; ou (3) de uma privação.
A primeira hipótese, como dissemos, sustenta que Deus teria nos dado algum poder que
tivesse como efeito o erro. Porém, de acordo com Descartes, Deus não nos deu nenhuma faculdade
positiva causadora do erro; de fato, isso seria contra a tese da veracidade divina. Antes, como
argumenta o filósofo, recebemos o poder de julgar, que se usado da maneira para o qual foi criado,
não falharemos. Daí, como foi dito anteriormente, poderíamos inferir que jamais erramos, pois se
tudo o que somos é devido a Deus e se não recebemos dele nenhum poder para errar, então não
deveríamos falhar6. Todavia, isto é imediatamente rejeitado pelo filósofo, uma vez que o erro é um
fato da experiência. Dessa forma, ao pensarmos apenas em Deus, não encontramos nenhuma causa
do erro, dado que não possuímos nenhuma faculdade positiva que tenha este efeito.
Descartada, portanto, a primeira hipótese, o filósofo defende que devemos buscar a causa do
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“E não restaria nenhuma dúvida quanto a esta verdade, se não fosse possível, ao que parece, inferir dela a consequência
de que assim nunca me enganei; pois se devo a Deus tudo o que possuo e se ele não me deu nenhum poder para falhar,
parece que nunca devo enganar-me.” (Meditações, p. 159, §4; AT IX, 42-43).
3
erro em nós mesmos, já que nos reconhecemos sujeitos a uma infinidade de falhas. Dessa forma, ao
voltarmos nossa atenção para nós mesmos, nos é apresentada não apenas a ideia real e positiva de
Deus, isto é, do Ser soberano e infinitamente perfeito, mas também uma ideia negativa do nada, ou
seja, da total ausência de perfeições. Além disso, prossegue o filósofo, nos reconhecemos como
algo de intermediário entre Deus e o nada, entre o ser e o não-ser. Com isto, afirma que enquanto
criaturas de Deus, não há nada que nos conduza ao erro, porém enquanto partícipes do nada,
podemos errar. Em outras palavras, por não sermos o próprio Deus, isto é, por não sermos dotados
da totalidade das perfeições, temos necessariamente alguma participação no nada, entendido como a
ausência de perfeições, e, portanto, somos sujeitos ao erro7.
Assim, Descartes conclui que o erro não é algo de positivo que, portanto, dependa de Deus;
ao contrário, o erro é apenas uma carência, a ausência de perfeições. Dessa forma, afirma o filósofo,
nós não erramos porque nos foi dado algum poder específico para esse efeito, mas porque o poder
de discernir o verdadeiro do falso, este sim nos dado por Deus, não é infinito. Isto posto, torna-se
explícita a segunda hipótese que antes mencionamos: o erro seria, para Descartes, explicado pelo
conceito de negação, isto é, pela falta de perfeições; ou seja, às criaturas caberia o erro, porque
careceriam daquelas8.
Entretanto, o filósofo prossegue a análise e defende que esta “solução” não é suficiente, pois
o erro é antes a privação de algum conhecimento que deveríamos possuir, do que a falta de alguma
perfeição9. Ou seja, Descartes, através deste conceito de privação, defende que, por um lado, a
substância pensante, enquanto tal, deveria pensar clara e distintamente todas as ideias que possui,
mas, por outro lado, por ser criatura, é um ser finito e, portanto, não é isso o que ocorre e, portanto,
há o erro. De fato, seria incompatível com a natureza sumamente boa e veraz de Deus que as suas
criaturas possuíssem alguma faculdade que fosse imperfeita em seu gênero, a qual lhe faltasse
alguma perfeição. Logo, segundo o filósofo, não é pelo fato de que nos foram negadas algumas
perfeições que erramos, pois já temos faculdades perfeitas em seus gêneros, que, portanto, se usadas
corretamente não levam ao erro. Ao contrário, no próprio exercício de nossas faculdades
7
“[...] ao meu pensamento não se apresenta somente uma ideia real e positiva de Deus, ou seja, de um ser
soberanamente perfeito, mas também, por assim dizer, uma certa ideia negativa do nada, isto é, daquilo que está
infinitamente distante de toda sorte de perfeição; e que sou como que um meio entre Deus e o nada, que nada se
encontra em mim, na verdade, que me possa conduzir ao erro, na medida em que um soberano ser me produziu; mas
que, se me considero participante de alguma maneira do nada ou do não-ser, isto é, na medida em que não sou eu
próprio o soberano ser, acho-me exposto a uma infinidade de faltas, de modo que não devo espantar-me se me engano.”
(Meditações, p. 160, §4; AT IX, 43).
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“Assim, conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que dependa de Deus, mas que é apenas uma carência; e,
portanto, que não tenho necessidade, para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus particularmente para
esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo fato de o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do
falso não ser infinito em mim.”(Meditações, p. 160, §5; AT IX, 43).
9
“[...] o erro não é uma pura negação, isto é, não é a simples carência ou falta de alguma perfeição que me não é devida,
mas antes é uma privação de algum conhecimento que parece que eu deveria possui.” (Meditações p. 160, §6; AT IX,
43).
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percebemos que o que nos faltam são conteúdos, e não uma melhor “operacionalidade” daquelas.
Dessa forma, o que nos é “negado” são conhecimentos que nos parece que deveríamos possuir, uma
vez que fariam parte da atividade normal e correta de nossas faculdades caso os tivéssemos, o que
constitui a terceira hipótese mencionada acima.
Assim, a hipótese, na visão do filósofo, mais adequada à natureza do erro é esta última, que
o toma como fruto de uma privação. Contudo, Descartes ainda se encontra sem argumentos
suficientes para defendê-la de dúvidas, dado que ainda não analisou como a privação ocorre
concretamente na substância pensante. Por isso, a fim de exaurir a investigação acerca daquele,
inicia uma análise mais apurada dos nossos erros propriamente dito, isto é, um estudo das operações
das faculdades da substância pensante e de como aqueles aí se dão. Em outras palavras, para
concluir de fato o que é o erro, que é condição para a compatibilização da existência de Deus e de
criaturas que erram, torna-se necessária uma análise epistemológica deste, na qual será comprovada
a sua verdadeira natureza. Portanto, o filósofo passa a problematizar o erro sob uma perspectiva
epistemológica, como veremos a seguir.
II
Na Quarta Meditação, das Meditações Metafísicas, Descartes inicia a discussão do erro, sob
o aspecto epistemológico, com a análise das faculdades da substância pensante. A partir desta, o
filósofo sustenta a tese de que os erros são ocasionados pelo concurso de duas faculdades: o
entendimento e a vontade10.
De acordo com Descartes, a primeira dessas faculdades, o entendimento, tem a função
apenas de conceber ideias, de tal forma que, em estrito senso, não encontramos nessa nenhum
erro11. Porém, tal faculdade é finita, o que se expressa de duas maneiras. Por um lado, o
entendimento não concebe todas as ideias, já que o ser pensante, enquanto criatura, é finito; ou seja,
por ser criada e não ser o criador, a substância pensante não concebe todas as ideias. Por outro, esta
faculdade é limitada por conceber não apenas ideias claras e distintas, mas também ideias obscuras
e confusas. Entretanto, é válido lembrar que, segundo o filósofo, apesar de finita, a faculdade do
entendimento é perfeita em seu gênero, já que foi criada por Deus; e sua perfeição se expressa pelo
fato dela fazer aquilo para que foi criada: conceber ideias.
10
“E, em seguida, olhando-me de mais perto e considerando quais são os meus erros (que apenas testemunham haver
imperfeição em mim), descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em
mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre-arbítrio; isto é, de meu entendimento e conjuntamente de minha
vontade.” (Meditações, p. 162, §9; AT IX, 44).
11
“Isto porque, só pelo entendimento, não asseguro nem nego coisa alguma, mas apenas concebo as ideias das coisas
que posso assegurar ou negar. Ora, considerando-o assim precisamente, pode-se dizer que jamais encontraremos nele
erro algum, desde que se tome a palavra erro em sua significação própria.” (Meditações, p. 162, §9; AT IX, 44).
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Já a vontade, para Descartes, é, formalmente, a capacidade de fazer ou deixar de fazer algo
de forma livre12. Esta faculdade, por ser livre, possui a característica peculiar de ser infinita, que se
expressa, também, de dois modos. Por um lado, a vontade é infinita na medida em que é o poder do
sim e do não, isto é, é um pleno poder de escolha. Por outro lado, dada a capacidade infinita de
eleição, a sua extensão também é infinita, ou seja, ela pode ser aplicada a todo e qualquer conteúdo
que é fornecido pelo entendimento, seja este claro e distinto, seja este obscuro e confuso. Assim,
podemos afirmar que a vontade é infinita porque é livre, ou seja, porque é um poder infinito de
escolha que se aplica a todas as ideias do entendimento.
Dessa forma, se comparo estas faculdades, percebo que, enquanto o entendimento me
aparece como tendo uma extensão pequena e grandemente limitada, a vontade se revela
extremamente ampla e infinita. Isto posto, o erro, como apontamos acima, seria o fruto do concurso
e do descompasso de ambas faculdades: sendo a vontade mais ampla e extensa que o entendimento,
a aplico a coisas que não entendo, e isso faz com que eu erre13. Em outras palavras, dado que a
substância pensante possui a faculdade de conceber ideias limitada e o poder de escolha ilimitado,
esta [a substância pensante] tende a expandir a determinação da vontade para além dos limites da
compreensão clara e distinta do entendimento, o que torna o erro factível.
Contudo, o filósofo não se limita a meramente apresentar este descompasso, mas oferece um
argumento para justificar esta concepção do erro, que se baseia na tese de que a vontade é sempre
acompanhada por um estado de indiferença frente às ideias que o entendimento concebe obscura e
confusamente14. Para o filósofo, a indiferença é o estado mental, no qual se encontra a substância
pensante quando esta não possui razões que compelem a vontade a afirmar ou negar uma ideia.
Dessa forma, quando formulo um juízo acerca de ideias obscuras e confusas, eu erro porque não
conheço clara e distintamente aquilo que estou julgando; em outras palavras, elaboro um juízo
acerca de ‘x’ sem ter razões suficientes nem para afirmá-lo, nem para negá-lo, e como, neste caso, a
vontade é acompanhada do estado de indiferença, a escolha será feita de maneira aleatória15, e por
isso há o erro16. Com isto, Descartes estabelece que o conhecimento claro e distinto, fornecido pela
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“Pois consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou
fugir), ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir as coisas que o entendimento nos propõe,
agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto.” (Meditações, p.
164, §9; AT IX, 45).
13
“Donde nascem, pois, meus erros? A saber, somente de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o
entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo; das quais,
sendo a vontade por si indiferente, ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro. O
que faz com que eu me engane e peque.” (Meditações, p. 165, §10; AT IX, 46). Ver também: Respostas às Quintas
Objeções, p.272-273, §537; AT VII, 376-377.
14
Cf. Meditações, p. 166, §11 e §12; AT IX, 46-47.
15
Aleatória aqui significa apenas que não há razões suficientes para a escolha e, portanto, esta será tomada sem motivos
que inclinem irresistivelmente a vontade.
16
“[...] pois, por prováveis que sejam as conjeturas que me tornam inclinado a julgar alguma coisa, o tão-só
conhecimento que tenho de que são apenas conjeturas e não razões certas e indubitáveis, basta para me dar ocasião de
6
faculdade do entendimento, deve preceder a determinação da vontade, a fim de que se evite o erro.
Além disso, o filósofo afirma que caso eu julgue a respeito de uma ideia que não concebi clara e
distintamente, faço um mau uso de meu livre-arbítrio, já que o melhor seria, neste caso, suspender o
juízo para evitar o erro17. Ou seja, não percebendo clara e distintamente todas as suas ideias, mas
valendo-se da infinitude de sua vontade, isto é, de seu livre arbítrio, a substância pensante expande
sua vontade para além dos limites do entendimento, e assim erra. Assim, podemos ver que, para o
filósofo, o erro é fruto do descompasso entre as faculdades do entendimento e da vontade, e ocorre
quando, por meio de nosso livre-arbítrio, julgamos acerca das ideias obscuras e confusas, às quais a
vontade é acompanhada do estado de indiferença; de tal forma que o melhor uso de nossa liberdade
frente às ideias obscuras e confusas seria a suspensão do juízo, uma vez que dessa maneira o erro
seria evitado.
Contudo, se o erro ocorre apenas quando julgamos acerca das ideias obscuras e confusas,
parece que o erro não foi suficientemente explicado: mais uma vez, bastaria limitar os nossos juízos
às ideias claras e distintas para nunca errarmos, e suspendê-los diante das obscuras e confusas.
Como uma forma de solucionar tal impasse, Descartes parece introduzir a tese de que há algumas
ideias que nos aparecem como claras e distintas sem o serem de fato18; ou seja, conceberíamos uma
ideia como se fosse clara e distinta, e que, na verdade, é obscura e confusa. Ora, se assim for,
assentimos irresistivelmente a algumas ideias, que nos parecem ser claras e distintas, mas que de
fato são obscuras e confusas, e por isso haveria o erro. Em outras palavras, o erro se daria quando
damos adesão a uma ideia que nos aparece como clara e distinta sem o ser de fato.
Assim, para o filósofo, o erro ocorre porque, por meio de nosso livre-arbítrio, assentimos,
algumas vezes, às ideias obscuras e confusas, e porque assentimos irresistivelmente às ideias que
nos aparecem claras e distintas, mas que na verdade não o são. Neste sentido, Descartes afirma que
julgar o contrário. Isto é o que experimentei suficientemente desses dias como muito verdadeiro, pelo simples fato de
ter notado que podia duvidar disso de alguma maneira.” (Meditações, p. 166, §12; AT IX, 47).
17
“Ora, se me abstenho de formular meu juízo sobre uma coisa, quando não a concebo com suficiente clareza e
distinção, é evidente que o [livre-arbítrio] utilizo muito bem e que não estou enganado; mas, se me determino a negá-la
ou a assegurá-la, então não me sirvo como devo de meu livre-arbítrio, se garanto o que não é verdadeiro, é evidente que
me engano, e até mesmo, ainda que julgue segundo a verdade, isto não ocorre senão por acaso e eu não deixo de falhar
e de utilizar mal o meu livre arbítrio; pois a luz natural nos ensina que o conhecimento do entendimento deve sempre
preceder a determinação da vontade.” (Meditações, p. 166, §13; AT IX, 47).
18
Segundo esta interpretação, Descartes restringiria estas ideias que nos aparecem como claras e distintas sem o serem
de fato às ideias materialmente falsas, como no exemplo da cera: “[...] prefiro passar adiante e considerar se eu concebia
com maior evidência e perfeição o que era a cera, quando a percebi inicialmente e acreditei conhecê-la por meio dos
sentidos exteriores, ou ao menos por meio do senso comum, como o chamam, isto é, por meio do poder imaginativo, do
que a concebo presentemente, após haver examinado mais exatamente o que ela é e de que maneira pode ser conhecida.
[…] Pois, que havia nessa primeira percepção que fosse distinto e evidente e que não pudesse cair da mesma maneira
sob os sentidos do menor dos animais? Mas, quando distingo a cera de suas formas exteriores e, como se a tivesse
despido de suas vestimentas, considero-a inteiramente nua, é certo que, embora se possa ainda encontrar algum erro
em meu juízo, não a posso conceber dessa forma sem um espírito humano.”(Meditações, p. 134, §15; AT IX, 25; grifo
nosso). Ver também: GUÉROULT, Martial. Descartes selon l`ordre des raisons: L’Âme et Dieu. Paris: Aubier, v. 1,
1953, p. 144-145.
7
“[...] é neste mau uso do livre arbítrio que se encontra a privação que constitui a forma do erro”19.
Dessa forma, a análise epistemológica do erro comprova a hipótese acerca da natureza deste, ou
seja, é demonstrado que este é, por um lado, fruto de uma limitação do entendimento, que constitui,
a forma do erro, e, por outro, pela extensão ilimitada da vontade, que julga acerca daquelas ideias
que não são concebidas clara e distintamente, isto é, cujo conhecimento nos é privado. Assim,
apenas depois de tal análise o filósofo pôde comprovar a terceira hipótese acerca da natureza do
erro, isto é, que este é explicado pela privação de alguns conhecimentos que nos parece que
deveríamos possuir; e, com isto, pode prosseguir na análise metafísica, que veremos adiante.
III
Após a investigação da natureza do erro e de como este ocorre na substância pensante, o
filósofo reconhece a seguinte dificuldade: Deus é bom e veraz, e, portanto, quer sempre aquilo que
é melhor; ora, ele poderia ter feito as suas criaturas de forma que nunca errassem, mas as fez
errando; logo, será mais vantajoso errar? Esta dificuldade pontua exatamente o problema que a
análise metafísica do erro visa solucionar, isto é, a compatibilidade da existência de um Ser
soberano com criaturas que erram.
Isto posto, a fim de solucionar o problema do erro em sua perspectiva metafísica, Descartes
tem que, por um lado, isentar Deus de ser a causa de nossos erros e, por outro, explicar porque seria
mais vantajoso errar do que não errar, sem que, com isto, haja contradição com a natureza boa e
veraz daquele.
Quanto a primeira parte, vimos que o filósofo nega que o erro seja fruto de algum poder
específico para tal fim dado-nos por Deus. Com isto, ele afirma que a privação, que é, como vimos,
a forma do erro, não se encontra em algum poder que recebemos de Deus. A partir disso,
desenvolve quatro argumentos em defesa da não culpabilidade de Deus quanto aos nossos erros20.
Primeiramente, Descartes afirma que a privação, além de não estar em algum poder que
recebemos de Deus para este efeito, tampouco se encontra na operação mesma de julgar enquanto
esta é dependente Deus, e justifica da seguinte maneira: é próprio de um entendimento finito não
compreender uma infinidade de coisas e o entendimento criado o ser finito; ora, dada esta condição
não devemos culpar Deus pelos nossos erros, pois ele nos concedeu algumas perfeições e criou o
19
Meditações, p. 166, §13; AT IX, 47; grifo nosso.
Cf. Meditações, p. 166-167, §13; AT IX, 47-48. Acerca destes argumentos, é interessante notar a semelhança com as
soluções ao problema do mal (ou do erro) dos filósofos anteriores a Descartes. Tal semelhança, contudo, guarda uma
diferença central que é, justamente, o objetivo deste trabalho mostrar: Descartes se vale destes argumentos, não para
apenas solucionar o problema metafísico do mal ou do erro, mas para, principalmente, fundamentar um método seguro
para a ciência. Cf. ZBIGNIEW, Janowski. Cartesian Theodicy: Descartes’ Quest for certitude. Dordrecht, Holanda:
Kluwer Academic Publishers, 2002.
20
8
melhor mundo, logo não há razões para reivindicar um intelecto mais amplo ou maiores perfeições.
Ademais, diz o filósofo, tampouco temos razões para lastimar que Deus nos tenha dado a
faculdade da vontade mais ampla do que a do entendimento, promovendo, assim, o descompasso
entre essas que gera o erro; mas, ao contrário, é pela sua natureza ilimitada que nos reconhecemos
imagem e semelhança de Deus, o que, portanto, não poderia nos levar a afirmar a participação de
Deus na concretização da privação, ou seja, no erro.
O terceiro argumento é relativo a concorrência de Deus nos atos da vontade. Para Descartes,
os juízos nos quais nos enganamos são verdadeiros e absolutamente bons na medida em que
dependem de Deus, e que, por isso, há mais perfeição em nós por podermos errar do que se não o
pudéssemos.
Por último, o filósofo ressalta que a privação não tem necessidade do concurso divino, uma
vez que não é uma coisa ou um ser. De fato, na explicitação da natureza do erro, que mencionamos
acima, Descartes conclui que o erro é sob certo ponto de vista uma negação, isto é, a ausência de
perfeições, que, contudo, aparece-nos sob a forma de privação, ou seja, como se devêssemos
possuir algo que não possuímos. Dessa forma, se relacionamos Deus como a causa da privação,
devemos entendê-la como uma simples negação.
Assim, dados estes quatro argumentos, Descartes conclui que, de fato, nossos erros não têm
Deus como causa. E, além disso, que não é uma imperfeição em Deus o fato de ele nos conceder a
liberdade de julgar acerca das ideias que não compreendemos clara e distintamente; mas certamente
o é em nós, pelo fato de não a usarmos corretamente, isto é, formulando juízos sobre ideias
obscuras e confusas.
Entretanto, há ainda outro problema que Descartes deve responder, pois a não culpabilidade
divina para com nossos erros ainda não explica porque erramos: Deus poderia ter-nos criado livres
sem que nunca errássemos, mas nos criou errando. Neste sentido é que dissemos que o filósofo
deve explicar em que medida é mais vantajoso falhar do que não falhar. E, para solucionar tal
problema, Descartes introduz o princípio da diversidade. Ao investigarmos a perfeição das obras de
Deus não devemos tomar cada criatura separadamente, ao contrário, o que deve ser levado em
consideração é o conjunto da obra. Sendo assim, aquilo que antes, analisado sozinho, parecia
imperfeito, torna-se perfeito dentro da natureza e da ordem do Universo21. Além do mais, parece
ser, de fato, uma maior perfeição, em relação ao todo, o fato de algumas de suas partes serem
defeituosas do que se fossem todas semelhantes. Ou seja, a diversidade existente no Universo é,
portanto, a expressão da melhor configuração das criaturas em sua totalidade. Dessa forma, o erro,
analisado deste ponto de vista global é apenas mais um elemento deste todo e que, por isso, pode
21
Cf. Meditações, p. 168-169, §15; AT IX, 48-49.
9
ser visto como algo vantajoso.
Assim, podemos dizer que Descartes soluciona o problema metafísico do erro ao, por um
lado, eximir Deus de sua responsabilidade, através da apresentação desses quatro argumentos que
vimos acima, e, por outro, ao justificar em que medida o erro é o melhor para as criaturas. Com isto,
o filósofo realiza o seu objetivo específico da Quarta Meditação, explicando o erro das criaturas e
compatibilizando-o com a existência do Deus veraz.
O objetivo geral de Descartes ao escrever as Meditações era o de fundar um método seguro
para o conhecimento. Isso, em sua perspectiva, envolveria, por um lado, a demonstração de que não
há o erro sistemático, como na hipótese do Deus enganador, e, com isto, de que o erro não pode ter
Deus como causa, pois isso seria contrário à sua natureza. Para tanto, o filósofo teve que provar a
existência de um Deus veraz, a fim de excluir a hipótese do deus enganador, e argumentar em favor
da veracidade divina, para eximir Deus de ser a causa do erro. Por outro lado, Descartes teria
também que descobrir o que é o erro e o que devemos fazer para não errar, para assegurar o método
correto para a ciência. Em outras palavras, para atingir seu objetivo último, o filósofo tem que
fundamentar a Regra Geral da Verdade, que afirma que toda ideia clara e distinta é verdadeira,
através da demonstração de sua validade.
Neste sentido, vimos que Descartes ao tratar da questão do erro na Quarta Meditação, após
ter estabelecido a Regra Geral da Verdade e provado a existência do Deus veraz nas Meditações
anteriores, poderia extrair destas que o erro é improvável; porém, ele próprio reconhece que a
experiência nega tal conclusão, ou seja, o erro é um fato, cabe, portanto, explicá-lo. Com isto,
naquela Meditação, Descartes investiga como é possível o erro, e, para tanto, como mostramos
acima, estuda a natureza deste e analisa-o sob duas perspectivas: epistemológica e metafísica.
A conclusão que o filósofo chega é a de que a natureza do erro consiste, do ponto de vista
das criaturas, numa privação, ou seja, na ausência de certos conhecimentos que parece-nos que
deveríamos possuir. A partir disto, no desenvolvimento de sua análise, o erro é explicado
epistemologicamente pelo descompasso entre as faculdades do entendimento e da vontade, e
justificado pelo mau uso do livre arbítrio. Por último, Descartes se empenha em compatibilizar a
existência de um Deus veraz com o fato de suas criaturas errarem, e, como dissemos acima, o faz
escusando Deus de ser a causa de nossos erros e argumentando pelo princípio da diversidade que o
erro é algo de positivo dentro da perspectiva da totalidade das criaturas.
Dessa forma, por um lado, ficou demonstrada a veracidade divina, que exclui a hipótese de
Deus ser a causa do erro, e, por outro, analisada a natureza do erro, que seria uma privação que se
expressa nas substâncias pensantes pelo descompasso entre as faculdades do entendimento e da
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vontade. Entretanto, falta ainda demonstrar a validade da Regra Geral da Verdade; em outras
palavras, é conhecida a natureza do erro e que Deus não é a sua causa, mas é necessário ainda
mostrar como das análises que tratamos acima, Descartes fundamenta o meio seguro para não errar.
Para demonstrar a validade da Regra Geral da Verdade, o filósofo parte da tese, que faz parte
da sua teoria da ideias, de que toda concepção clara e distinta é algo de positivo e real22. Ora,
enquanto tal esta deve ter Deus como causa, já que Ele cria todo o real. E como, nesta investigação
do erro, foi analisado a natureza deste e demonstrado que Deus não é a causa de erro algum, deve-se
concluir que toda ideia clara e distinta é necessariamente verdadeira. Ou seja, dado que as ideias
claras e distintas são reais (têm realidade objetiva), estas têm Deus como causa e, portanto, são
verdadeiras, já que Deus é veraz. Assim, a validade da Regra Geral da Verdade é assegurada, em
última instância, pelo argumento metafísico da veracidade divina, que torna, portanto, esta regra
geral em um método seguro para o conhecimento.
Com isto, Descartes, na Quarta Meditação, demonstra não apenas aquilo que é necessário
fazer para evitar o erro, como também descobre o método que deve ser seguido para se alcançar a
verdade. E, nesse sentido, esta investigação acerca do problema do erro é uma inovação cartesiana,
uma vez que não busca simplesmente a solução de um problema metafísico, isto é, compatibilizar a
existência de Deus sumamente bom com o fato de suas criaturas errarem, mas, ao contrário, visa
principalmente à fundamentação do conhecimento do sujeito. É evidente, por tudo que foi dito aqui,
que Descartes se ocupa do problema metafísico, mas é necessário ressaltar que só o faz em vista do
problema do conhecimento; ou seja, na investigação cartesiana do erro, o problema metafísico é
subordinado ao do conhecimento. Assim, apesar de Descartes aceitar e utilizar em sua investigação
algumas soluções relativas ao problema do erro da tradição, a sua [solução] é inovadora, como
mostramos, por priorizar, dentro de uma problemática metafísica, o aspecto epistemológico.
22
Essa afirmação se relaciona com o conceito de realidade objetiva de Descartes, apresentado na prova da existência de
Deus (Terceira Meditação). A realidade objetiva é o conteúdo das ideias que me permite distingui-las entre si, uma vez
que formalmente todas são iguais, isto é, são ideias, modos do pensamento. Não aprofundarei este ponto aqui, pois,
devido ao seu grau de dificuldade, demandaria um grande espaço, e este não é o foco deste trabalho.
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