leitura e produção textual

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leitura e produção textual
ISSN 1415-8973
Número 10, 2009
A COR DAS LETRAS
Revista do Departamento de Letras e Artes
Universidade Estadual de Feira de Santana
LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL
Imprensa Universitária
Universidade Estadual de Feira de Santana
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C793 A Cor das Letras: Revista do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. – N. 1 (1997)-. – Feira de
Santana: UEFS, 1997-.
v. ; il., 25,5 cm.
Anual.
ISSN 1415-8973
1. Lingüística – Periódicos. 2. Letras – Periódicos. 3. Artes – Periódicos.
I Universidade Estadual de Feira de Santana.
CDU: 8 + 7 (05)
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Leitura e Produção Textual. A Cor das Letras: Revista do Departamento de Letras e Artes da
Universidade Estadual de Feira de Santana, n. 10, 2009. Feira de Santana, UEFS, 2009. Periodicidade anual. ISSN 1415-8973
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Capa:
Evandro Ferreira Vaz
Impressão:
Imprensa Universitária – UEFS
Versão eletrônica disponível em:
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SUMÁRIO
Tema — Leitura e Produção Textual:
Análise de gêneros discursivos na esfera pedagógica: a prova discursiva de
Língua Portuguesa no Vestibular ........................................................................
Erislane Rodrigues Ribeiro
7
Leitura e leitores: perfil da escola pública ..........................................................
Heloísa Barretto Borges
Maria Helena Rocha Besnosik
25
Conhecimentos prévios e práticas leitoras no ensino fundamental ...................
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
Valter Sávio Roesler
37
Leitura, experimentação artística e produção textual nas séries iniciais do
Ensino Fundamental ............................................................................................
Maria Emília Lubian
55
Literatura:
Um prefácio à biografia .......................................................................................
André Luis Mitidieri
67
De Clarice Lispector a Cazuza: marcas da literatura na obra musical .................
Daiane Raquel Steiernagel
75
A tradição oral e a literatura descolonizadora em João Guimarães Rosa e Mia
Couto ...................................................................................................................
Miguel Nenevé
Roseli Siepamann
African-American Theater & the Deconstruction of the American Dream .........
Marcela Iochem Valente
Narrativas afro-brasileiras: Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, Diário de Bitita,
de Maria Carolina de Jesus, e Becos da Memória, de Conceição Evaristo ..........
Francineide Santos Palmeira
Utopia e messianismo na literatura hispano-americana colonial .......................
Rogério Mendes Coelho
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101
111
123
5
O consórcio da ciência e da arte enquanto projeto estético norteador d’Os
sertões, de Euclides da Cunha .............................................................................
Léa Costa Santana Dias
133
Resenha:
RANGEL, Jurema Nogueira Mendes. Leitura na escola: espaço para gostar de
ler. Porto Alegre: Mediação, 2005. 176 p. ..........................................................
Taciana Zanolla
Flávia Brocchetto Ramos
149
Normas Editoriais ...............................................................................................
157
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ANÁLISE DE GÊNEROS DISCURSIVOS NA ESFERA PEDAGÓGICA: A PROVA
DISCURSIVA DE LÍNGUA PORTUGUESA NO VESTIBULAR
Erislane Rodrigues Ribeiro1
Resumo: Por considerarmos bastante relevante os estudos de gêneros discursivos na esfera pedagógica como forma de embasar as práticas de escrita e leitura realizadas nas escolas, com este artigo pretendemos dar nossa contribuição,
analisando o gênero prova discursiva de Língua Portuguesa. Procuraremos observar, em prova de Língua Portuguesa do Processo Seletivo 2004 da UFG, como
se configura seu conteúdo temático, sua forma composicional e seu estilo, conforme a teoria proposta por Bakhtin.
Palavras-Chave: Gêneros do discurso, prova discursiva, Língua Portuguesa, vestibular.
Abstract: Through this article, we intend to give our contribution to genre discursive test of Portuguese because we consider very important for the study of genres of the pedagogic sphere as a way of teaching based practices of reading and
writing carried out in schools. We intend to observe in tests of Portuguese of the
Selective Process 2004 of UFG, as set their thematic content, its form and its
composicional style, as the theory proposed by Bakhtin.
Key Words: Discursive genres, discursive test, Portuguese, vestibular.
INTRODUÇÃO
A escola é uma importante esfera de atividade de nossa sociedade e
como tal tem seus próprios gêneros discursivos, por intermédio dos quais se
constituem e se desenvolvem as diversas interações escolares e/ou as atividades de ensino e de aprendizagem.
Na opinião de Rodrigues (2002, p. 213), “o sucesso do aluno na escola
passa pelo domínio dos gêneros escolares, que também devem ser considerados objetos de aprendizagem”. Para ela, “um projeto pedagógico para a produção da escrita”, além de contribuir “para a plena participação na vida social
pública”, deve se orientar “(sem excluir os demais) para aqueles gêneros cujo
domínio é necessário para o bom desempenho escolar (saber tomar notas,
fazer resumos, resenhas, participar de seminários, etc.)”.
Em consonância com o que defende a autora, ressaltamos a importância
de se exercitar, nas aulas de língua portuguesa, a leitura e escrita de provas
discursivas de concursos e vestibulares para que, conhecendo as especificidades desse gênero, os indivíduos se saiam melhor no momento em que com
eles se defrontam.
1
Doutora em Lingüística e Língua Portuguesa pela FCLAR/UNESP; Docente do Curso de Letras,
Campus Catalão, Universidade Federal de Goiás; endereço eletrônico: [email protected].
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7
Nosso objetivo, com a escrita deste artigo, é, então, desenvolver a análise do gênero prova discursiva de Língua Portuguesa em contexto de vestibular,
pois sabemos que, como afirma Rocco (1995, p. 24), as características da nossa
realidade escolar, sobretudo a de 2º grau, não nos permite negar ou mesmo
“desconhecer o alto nível de influência que o vestibular exerce sobre o ensino”. Desta forma, com base na teoria bakhtiniana, procuramos observar como
a prova discursiva de Língua Portuguesa do Processo Seletivo de 20042 se caracteriza em termos de forma composicional, conteúdo temático e estilo.
O presente texto encontra-se organizado do seguinte modo. Inicialmente, apresentamos algumas considerações sobre: o que vem a ser gêneros do
discurso segundo propõe Bakhtin, como eles podem ser distinguidos dos tipos,
a intrínseca relação que estabelecem com seu suporte, além da reconhecida
importância que o trabalho com os gêneros no ensino adquiriu recentemente.
A seguir, teorizamos, rapidamente, sobre o gênero prova discursiva de Língua
Portuguesa especificamente. Em seguida, analisamos a prova discursiva de
Língua Portuguesa do Processo Seletivo 2004 da UFG, observando, especialmente, como ela se constitui no que se refere a seu conteúdo temático, sua
forma composicional e seu estilo. Por fim, apresentamos nossas considerações
finais e as referências bibliográficas.
1 GÊNEROS DO DISCURSO
Releituras da obra de Bakhtin já foram realizadas, em outros momentos
da história, para reavivar uma série de conceitos, como dialogismo, polifonia,
carnavalização, interação. Atualmente, um número bastante significativo dos
pesquisadores que cita Bakhtin o faz, principalmente, para abordar o tema
gêneros do discurso. No entanto, apesar do número de citações de Bakhtin
(2000) em pesquisas que versam sobre a questão dos gêneros, os trabalhos
sobre o tema têm se diversificado numa velocidade espantosa, distanciando-se
uns dos outros em razão das diferentes leituras dos textos do autor e dos distintos objetivos almejados pelos pesquisadores.
Partindo da idéia defendida por Bakhtin (2000) de que não é possível a
comunicação verbal a não ser por algum gênero, vários pesquisadores, dentre
eles Marcuschi (2002a) e (2002b), têm procurado mostrar a funcionalidade da
noção “gêneros textuais” e defendido a importância de se trabalhar com eles e
não com os tipos textuais nas aulas de língua materna. Para Marcuschi (2002a,
p. 22), os tipos textuais “abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção” e os gêne2
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As questões desta prova encontram-se em anexo.
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ros são “os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica”. Em Bakhtin, gênero
(às vezes denominado pelo autor de tipos, formas) não são aquelas categorias
de que fala Marcuschi (2002, p. 22), mas as formas que os enunciados adquirem em determinadas esferas de atividades entre interlocutores que as reconhecem porque as mesmas se constituíram historicamente, através de processos de interação.
Para Bakhtin (2000, p. 284), gênero do discurso é um “tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico”, elaborado por cada esfera em que a língua é utilizada. Conceituando gêneros do discurso em relação às esferas de atividade humana, Bakhtin
reconhece que inexistem classificações que partam da observação das esferas
da atividade humana, provavelmente em razão de serem tão variadas, fazendo
com que os gêneros, por sua vez, sejam também variados e heterogêneos, de
natureza infinita. Para o autor russo, além de inexistir tal classificação, falta
estabelecer uma distinção básica entre dois subgrupos de gênero. Num primeiro grupo, incluem-se os gêneros de discurso primários, simples, os quais são
constituídos de uma comunicação verbal espontânea; num segundo grupo,
estão os gêneros de discurso secundários, complexos, que “aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais
evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica”, absorvendo
e transformando os gêneros primários (BAKHTIN, 2000, p. 281). Além disso, os
gêneros secundários, em sua maior parte, promovem uma “[...] compreensão
responsiva de ação retardada: cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido
de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do ouvinte” (BAKHTIN, 2000, p. 291).
A escolha de um gênero do discurso, seja ele primário ou secundário, é,
segundo Bakhtin (2000, p. 301), decorrente das especificidades de determinada esfera da comunicação verbal, o que significa dizer que existem gêneros,
mais ou menos apropriados, tanto em relação às esferas do cotidiano (familiar,
íntima, comunitária) como também em relação às esferas dos sistemas ideológicos constituídos (científica, artística, religiosa, política, jornalística, militar,
escolar), aos quais corresponde certo estilo lingüístico ou funcional.
Quanto aos nomes que usamos para designar os gêneros, não são inventados por nós como resultado de um trabalho individual, são constituídos socialmente e historicamente. E em relação aos critérios utilizados no processo de
designação dos gêneros, em geral utiliza-se um desses critérios: “forma estrutural, propósito comunicativo, conteúdo, meio de transmissão (suporte), paA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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péis dos interlocutores, contexto situacional, mas vários desses critérios podem atuar em conjunto” (MARCUSCHI, 2002b, p. 8).
Uma tese que Marcuschi (2003) tem defendido em relação ao gênero diz
respeito à sua estreita relação com o suporte. Definindo o suporte como “um
lócus físico com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação
do gênero materializado como texto”, o autor tem apostado na idéia de que
“[...] como o suporte tem um formato específico, ele pode ter contribuições ao
gênero. [...]. Seria interessante analisar a hipótese de que os gêneros têm preferência e não se manifestam na indiferença a suportes”. Em outras palavras, o
autor atribui grande importância ao suporte para a circulação dos gêneros na
sociedade, além de destacar a influência que ele, certamente, acarreta na “natureza do gênero suportado”. Desse modo, na visão do autor, “[...] o suporte
não é neutro e o gênero não fica indiferente a ele” (MARCUSCHI, 2003, p. 1-7).
Em relação à aquisição dos gêneros, conforme Bakhtin (2000, p. 301),
não se distancia da aprendizagem das formas de nossa língua materna. Para
ele, “as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros
do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida”. E como a aprendizagem das formas da língua e dos gêneros do discurso ocorre conjuntamente
através de nossas experiências, falta domínio do gênero se há “falta de vivência de determinadas atividades de certa esfera” (FIORIN, 2006, p. 69).
No Brasil, o recente interesse pelo estudo dos gêneros do discurso decorre, em parte, da importância que o MEC tem atribuído ao trabalho com os
gêneros no ensino de leitura e produção de textos, em especial nas aulas de
língua portuguesa, como se pode verificar pela leitura dos PCNs de língua portuguesa elaborados por esse órgão do governo. De acordo com os PCNs
(1997), nas situações de ensino, é necessário contemplar
a diversidade de textos e gêneros, e não apenas em função de sua relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são
organizados de diferentes formas. A compreensão oral e escrita, bem como a
produção oral e escrita de textos pertencentes a diversos gêneros, supõem o desenvolvimento de diversas capacidades que devem ser enfocadas nas situações
de ensino. É preciso abandonar a crença na existência de um gênero prototípico
que permitiria ensinar todos os gêneros em circulação social (BRASIL, 1997, p.
23-24).
Atualmente, podemos dizer que é quase unânime a opinião de que é necessário trabalhar com a diversidade de gêneros, já que, como ponderou Bakhtin (2000, p. 303), “são muitas as pessoas, que dominando magnificamente a
língua, sentem-se logo desamparadas em certas esferas da comunicação ver10
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bal, precisamente pelo fato de não dominarem, na prática, as formas do gênero de uma dada esfera”.
2 O GÊNERO PROVA DISCURSIVA
Uma prova “discursiva” é, segundo Chociay,
[...] um diálogo regido por um objetivo específico: o professor emite frases com
intenção de avaliar; o aluno emite frases correspondentes com intenção de ser
avaliado. O professor quer saber se o aluno domina certos conteúdos e alcança
certos comportamentos; o aluno quer demonstrar que conhece tais conteúdos e
exerce tais comportamentos (CHOCIAY, 1998, p. 52).
O modo como Chociay define a prova de vestibular comumente denominada discursiva, sugere-nos que é possível pensar a interlocução entre candidatos e banca a partir das considerações de Pêcheux (1993) quando trata do
jogo de imagens que envolve os sujeitos. Geraldi (1993, p. 69-71) propôs um
exemplo de como essas imagens funcionam, elaborando “um quadro hipotético de respostas que um aluno, na escola, construiria [...] quando lhe é solicitado que escreva um texto”. A partir do quadro proposto pelo autor, desenvolvemos um para compreendermos melhor as imagens envolvidas no processo
de interlocução envolvendo banca e vestibulandos no processo seletivo 2004
da UFG.
À pergunta “quem sou eu para lhe falar assim?”, é provável que os
membros da banca respondessem que são: professores de português, com
experiência nos níveis superior e fundamental e/ou médio, com condições de
selecionar, com base no que se ensina nos níveis que antecedem o vestibular,
os alunos com condições de ingressar na universidade; pesquisadores atualizados em suas áreas de atuação quanto às mais recentes abordagens teóricas;
profissionais que têm, em decorrência de sua formação e profissão, domínio
da língua padrão, além de uma competência inquestionável em atividades de
avaliação da leitura e escrita de terceiros. Além disso, são pessoas bem informadas, cujos pontos de vista costumam ser considerados relevantes pela sociedade.
À pergunta “quem é ele para eu lhe falar assim?”, a banca, provavelmente, responde que ele é um candidato, alguém que concluiu o ensino fundamental e o ensino médio e que ao candidatar-se a uma vaga na universidade
deve demonstrar certos conhecimentos e habilidades e que não pode, ao responder questões da prova de língua portuguesa, cometer erros (nem no conteúdo nem na forma).
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Neste ponto, consideramos pertinente citar Bakhtin (2000, p. 320), para
quem,
o enunciado, desde o início, elabora-se em função da eventual reação-resposta,
a qual é o objetivo preciso de sua elaboração. O papel dos outros, para os quais o
enunciado se elabora, [...] é muito importante. Os outros, para os quais meu
pensamento se torna, pela primeira vez, um pensamento real (e, com isso, real
para mim), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação
verbal. Logo de início, o locutor espera deles uma resposta, uma compreensão
responsiva ativa. Todo enunciado se elabora como que para ir ao encontro dessa
resposta (BAKHTIN, 2000, p. 320).
Quanto à questão, “de que lhe falo eu (banca)?”, os professores que
compõem a banca responderiam que falam sobre temas relativos à língua portuguesa, pois a prova é de língua portuguesa, além de temas atuais, para avaliar o que o aluno tem lido e/ou se é uma pessoa bem informada. Com base no
que propõe o manual do candidato e a partir das abordagens teóricas que se
destacam na academia, a banca elabora o seu dizer, tentando evitar, entretanto, que as respostas possam vir a ser muito heterogêneas entre si, o que impossibilitaria a correção.
As imagens que a banca tem de si, dos candidatos que respondem as
questões da prova discursiva de língua portuguesa e dos temas nela contidos
compõem, portanto, um quadro que, em nossa opinião, pode revelar bastante
das condições em que os discursos das bancas são produzidos.
Segundo Chociay, servem de instrumento para o diálogo, para essa relação de interação verbal entre o professor (banca) e o aluno (candidato), os
“[...] mesmos tipos de frase empregados na comunicação ordinária submetidos, porém, a um processo de elaboração cuidadoso” (CHOCIAY, 1998, p. 52).
Ao analisar questões de provas discursivas da Vunesp, o autor verifica que:
os enunciados das perguntas desenvolvem-se em dois itens que podem ser denominados, respectivamente, comentário e solicitação. Por meio do comentário
são fornecidos ao candidato esclarecimentos sobre o aspecto ou o pormenor do
texto focalizado; por meio da solicitação se formula a pergunta propriamente dita, dividida em dois subitens (CHOCIAY, 1998, p. 61).
A vantagem desse tipo de questão é, segundo ele, que o comentário acaba por criar para o candidato “um contexto a partir do qual sua capacidade
de observação, análise e interpretação poderá operar-se sem maiores entraves
[...]”, o que procuraremos observar no momento das análises (CHOCIAY, 1998,
p. 63).
No tópico seguinte, passamos a analisar questões da prova discursiva de
língua portuguesa propostas pelo centro de seleção da UFG no processo seletivo 2004.
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3 ANÁLISE DA PROVA DISCURSIVA DE LÍNGUA PORTUGUESA DO PROCESSO
SELETIVO 2004 DA UFG
Em 2004, a segunda etapa do processo seletivo se realizou em dois dias.
3
No primeiro dia, os candidatos receberam o caderno de questões contendo as
questões discursivas de língua portuguesa e aquelas relacionadas às obras
literárias previamente indicadas para o vestibular 2004, as quais compõem o
que a UFG denomina prova de “língua portuguesa”. Além dessas questões, no
mesmo dia foi realizada a prova de “redação”.
A questão 01 dessa prova situa-se no início da página 01 do caderno de
questões e inicia-se com uma seqüência injuntiva, pois o objetivo é fazer com
que o interlocutor aja, lendo uma nota de Elio Gaspari, retirada da Folha de
São Paulo (16 nov. 2003). Como se pode ver, o comentário da questão 01 é
caracterizado por uma instrução dada ao vestibulando; pela apresentação da
nota irônica de Elio Gaspari, seguida da referência que indica que foi publicada
anteriormente pela Folha de São Paulo; por uma contextualização dada através da explicação de quem é Madame Natasha (personagem criada pelo autor
para ridicularizar a linguagem usada por autoridades que atropelam a comunicação). Já a solicitação é dividida em perguntas: a, em que se pede ao candidato que explique por que o emprego dos termos “eficientização” e “eficientizados” está sendo criticado, e b, em que se solicita ao vestibulando reescrever o
último parágrafo conforme a norma padrão.
Em relação à pergunta a, podemos dizer que o comentário feito antes da
solicitação, com o uso do texto de Gaspari, seguido da explicação de quem é
madame Natasha, delimita as possibilidades de leitura, com a finalidade de
direcionar a resposta do vestibulando. Em se tratando de um processo seletivo, tal expediente não merece ser alvo de críticas. Assim, com essa pergunta,
pode ser avaliada a capacidade do candidato em identificar pistas no texto que
o levam a determinadas leituras.
Como respostas esperadas para a letra a dessa primeira questão, o centro de seleção da UFG divulgou as seguintes4:
a) O emprego dos termos “eficientização” e “eficientizados” é criticado
por ser uma impropriedade vocabular. Podem ser considerados neo3
4
O “Caderno de questões” é o suporte utilizado pela UFG para as questões das provas e para
as respostas dadas pelos candidatos.
Em 2004, o Centro de Seleção tornou públicas, em seu site, as respostas esperadas na prova
discursiva de língua portuguesa.
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logismos técnicos, usados em lugar de termos disponíveis e recorrentes, tais como “qualificação” e “melhoria”. Além de serem questionáveis diante da norma padrão, esses termos manifestam um exagero
do estilo técnico e burocrático que não contribui para a clareza da
mensagem e que não é, portanto, adequado a textos oficiais nem a
autoridades governamentais.
A crítica decorre do fato de um secretário de Estado, Wagner G. Victer, derivar indevidamente os termos “eficientização” e “eficientizados” da palavra “eficiente”, pois já existem palavras equivalentes em
português, e esses neologismos não contribuem para a clareza do
que está sendo comunicado.
Quanto à pergunta b dessa primeira questão, a despeito de tematizar os
níveis de linguagem, assunto que merece de fato estar presente em questões
de vestibular, valoriza, como em geral acontece nesse tipo de questão, a norma padrão da língua portuguesa.
A segunda questão, apresentada na mesma página da primeira, também
é composta por um comentário e pela solicitação, esta dividida em dois itens.
Novamente, o comentário se inicia com instruções dirigidas aos candidatos
com o fim de desencadear a ação de ler a resenha que se segue e a ação de
escrever para responder ao que se pede; a seguir, insere-se uma resenha do
filme O amor custa caro, adaptada da revista Carta Capital de 15 de outubro de
2003; por último, são apresentadas duas perguntas que devem ser respondidas pelos candidatos.
Na letra a, exige-se, basicamente, que o candidato demonstre ser um
leitor capaz de mostrar sua capacidade de apreender a idéia-núcleo do texto
apresentado. Já para responder corretamente a solicitação b, o candidato precisa saber o que é enredo e ponto de vista, quer dizer, exige-se que o vestibulando tenha certo domínio de uma nomenclatura específica para que tenha
condições de responder a contento o que é solicitado.
Segundo o centro de seleção, as respostas esperadas, utilizadas como
referências para a correção dessa questão, eram:
a) De acordo com o resenhista, a obra dos irmãos Coen está acima da
média da produção americana por apresentar um ponto de vista crítico com relação aos usos e costumes americanos.
O recurso empregado pelo resenhista para exemplificar a sua opinião
é a citação de outros filmes dos cineastas e sua classificação em dois
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gêneros: o humor negro (Fargo) e a comédia escrachada (Arizona
nunca amais), por exemplo.
b) De acordo com a resenha, em termos de enredo, o filme é caracterizado pelo conflito entre um advogado especializado em divórcios e
processos afins e uma mulher deslumbrante que busca enriquecer
por meio de casamentos.
Em termos de ponto de vista, o filme é uma comédia escrachada e
uma crítica à obsessão americana com advogados, processos judiciais
e julgamentos.
Na página 2, são apresentadas as questões 3 e 4. A questão 3 foi elaborada a partir de uma charge de Angeli, publicada na Folha de São Paulo no dia
13 de outubro de 2003. Nela, o comentário consiste: numa seqüência injuntiva
que orienta o leitor para que “leia” uma charge apresentada; na própria charge, seguida da referência com a indicação do nome de seu autor, do local e
data de publicação e na orientação com relação à leitura a ser feita, segundo a
qual a charge dramatiza o problema do desemprego no Brasil. Em seguida,
vem a solicitação, com perguntas a e b. Tanto em uma como em outra, o vestibulando é orientado a analisar “a combinação da linguagem verbal com a nãoverbal”.
Na pergunta a, pede-se que o candidato explique “por que a situação retratada é irônica”. Assim, apesar de se orientar o aluno para que “leia”, o que,
sob o nosso ponto de vista, significaria que o vestibulando é uma das instâncias que contribui para a constituição do sentido, é dado o pressuposto de que
a situação retratada é irônica, cabendo ao candidato apenas explicar o porquê
disso acontecer.
Quanto à pergunta b, solicita-se que o candidato reescreva a fala das
personagens da charge, explicitando a relação entre as orações através do uso
de uma conjunção ou de uma locução equivalente, sem que seja alterada a
ordem das orações. De novo, o candidato deve demonstrar o domínio de uma
nomenclatura gramatical: para responder a questão, tem que saber o quê e
quais são as conjunções e as locuções. Além disso, também nessa questão,
trabalha-se com a idéia do sentido literal, imanente ao texto, ao se dar a instrução de que o candidato deve manter “o sentido original da frase”, o que vai
de encontro à concepção de linguagem como forma de interação e à tese de
que os sentidos são produzidos e compreendidos pelos interlocutores no processo de interação.
Segundo o centro de seleção da UFG, as respostas esperadas para a
questão 4 seriam:
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a) A situação retratada é irônica porque a personagem que anuncia vagas acaba de perder seu trabalho, que é uma espécie de subemprego. A situação, por ser exagerada, chama a atenção para a gravidade
do desemprego.
OU
A situação retratada é irônica porque mostra que até o trabalhador
que anuncia empregos acabou de tornar-se mais um desempregado.
OU
A situação retratada é irônica porque quem foi despedido tinha como
profissão anunciar empregos. Se até quem anuncia empregos é despedido, então não há muito o que anunciar.
b) A resposta que mantém o sentido da frase deve conter:
Uso da conjunção ou de locução equivalente;
Manutenção do aspecto verbal;
Uso do verbo no modo subjuntivo ou na forma nominal infinitiva.
Possibilidades de construção (alguns exemplos):
- Você não vai acreditar, mas acabo de ser despedido!
- Você não vai acreditar, porém acabo de ser despedido!
- Ainda que você não acredite, acabo de ser despedido!
- Por incrível que lhe pareça, acabo de ser despedido!
- Embora você não acredite, acabo de ser despedido!
- Apesar de você não acreditar, acabo de ser despedido!
- Mesmo que você não acredite, acabo de ser despedido!
- Por mais que você não acredite, acabo de ser despedido!
Na questão 4, apresenta-se o comentário: com uma instrução para que
se leia um trecho de uma matéria publicada na Folha de São Paulo no dia 26 de
agosto de 2003, intitulada “Unesco reúne grupo para salvar línguas”, com a
indicação do local e da data da publicação. Depois disso, são feitas as perguntas a e b.
No item a, partindo do pressuposto de que “línguas mortas” é uma metáfora, pede-se que o candidato explique “como se forma o sentido metafórico” dessa expressão. Para isso, o vestibulando precisa saber o que é uma metáfora ou “o sentido metafórico”. Outra vez, espera-se do vestibulando um
saber metalingüístico em nível terminológico. A resposta esperada pela banca
para a pergunta era mais ou menos a seguinte, segundo divulgou o Centro de
Seleção:
16
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a) O sentido metafórico da expressão “línguas mortas” forma-se com
base na comparação entre línguas e seres vivos; nesse sentido, o
termo apresenta características similares a um organismo vivo enquanto é falada por uma comunidade. Se essa língua deixa de ser usada, torna-se morta.
Já a pergunta b é uma questão que, seguramente, pode avaliar a capacidade do candidato no que se refere à leitura. O candidato acertaria o item b da questão, conforme divulgou o centro de seleção da
UFG, caso sua resposta expressasse o eixo da seguinte resposta esperada:
b) Elementos que devem compor possíveis respostas:
Estabelecimento da analogia com espécie animal;
Reconhecimento da valorização da diversidade lingüística;
Reconhecimento da língua como veículo de cultura/ identidade étnica;
Reconhecimento da língua como experiência humana/ identidade
comunitária.
Possibilidade de construção da resposta:
De acordo com Grinevald, a extinção de uma língua é análoga ao desaparecimento de uma espécie animal. Como a preservação das espécies animais é uma defesa da diversidade genética (ecossistema
global), há nesse raciocínio uma valorização implícita da diversidade
lingüística e, por conseqüência, da diversidade sociocultural: identitária e comunitária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Feita a leitura de cada questão em particular, queremos, nesse momento, fazer algumas considerações quanto a regularidades que a comparação
entre elas deixa entrever, mesmo tendo consciência de que o corpus aqui analisado é um tanto restrito para análises mais consistentes e conclusões melhor
acabadas.
Considerar as provas discursivas de língua portuguesa como um gênero,
ou, ao menos, um sub-gênero ___ é bastante provável que as provas discursivas
de outras áreas também possam ser englobadas em um mesmo gênero ___, nos
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
17
dá a possibilidade de arriscar a dizer algo sobre seu estilo, seu conteúdo temático e sua estrutura composicional.
Para começar, pensemos sobre seu conteúdo temático que, apesar de
não ser o assunto específico de um texto, pode ser entendido como um domínio de sentido de que um gênero se ocupa, com estreita vinculação com outros
gêneros pertencentes à mesma esfera de atividade. Considerando as questões
discursivas de língua portuguesa como um gênero do discurso pedagógico que
se vincula ao ensino como esfera de atividade, podemos supor que existam
tantos outros gêneros pertencentes a esse setor que compartilham com as
questões discursivas praticamente o mesmo domínio de sentido.
Analisando as quatro questões da prova discursiva de Língua Portuguesa
do Processo Seletivo 2004, podemos afirmar que elas funcionam como um
espaço privilegiado para a emergência de discursos que objetivam comentar,
descrever e analisar a língua, o que também ocorre com outros gêneros desse
mesmo setor de atividade. Para exemplificar, basta lembrarmos da primeira
questão, em que, no comentário, há uma nota cujo tema é a impropriedade
vocabular em textos oficiais e da quarta, que traz no comentário um texto
sobre a extinção das línguas em comparação ao desaparecimento de espécies
animais.
Ainda com relação ao conteúdo temático, devido à estreita relação do
gênero prova discursiva de língua portuguesa com gêneros em que se divulgam as pesquisas realizadas pela lingüística, gêneros estes que fazem parte do
cotidiano dos professores que compõem a banca, há, em nossa opinião, um
uso excessivo de termos técnicos provenientes dos estudos gramaticais e/ou
lingüísticos e literários, os quais, muitas vezes, acabam por se tornar empecilhos para a realização de uma boa leitura por parte de muitos candidatos. Nas
questões que analisamos observamos termos como enredo, ponto de vista,
conjunção, locução, sentido metafórico, os quais, a despeito de denunciarem a
presença da heterogeneidade constitutiva, pois remetem aos discursos da
gramática, da lingüística e da teoria literária, não fazem parte das enciclopédias de certos candidatos, acabando por levá-los a leituras equivocadas das
questões. Há quem defenda o ensino da teoria gramatical no ensino fundamental e médio, de nossa parte, concordamos integralmente com Possenti
(2001) quando afirma que não é preciso ensinar ao aluno
o que é um anafórico, ou um precedente, ou pressuposto, ou pronome etc. Não
é preciso dizer nada disso para uma pessoa ler. Se disser, não prejudica. Agora,
se os professores gastarem muitas aulas para ensinar isso, seus alunos não estarão lendo e ficam prejudicados (POSSENTI, 2001, p. 6).
18
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Vale ressaltar que o que o Centro de Seleção propõe, teoricamente, através dos manuais de candidato, não se efetiva completamente na prática, no
momento dos vestibulandos lerem as questões da prova discursiva de língua
portuguesa, pois, em relação à gramática, a UFG advoga a tese de que seu
estudo deve ser visto como uma “uma estratégia para compreensão/interpretação/produção de textos” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS,
2004, p. 27).
Outro ponto que nos chamou a atenção foi que, contradizendo o que se
propõe no manual de candidato 2004, nos quais se afirma que a leitura não é
uma tarefa mecânica de decodificação, mas um processo ativo de construção
de sentidos, na questão 3 do Processo Seletivo 2004, pede-se que o candidato
“mantenha o sentido original da frase”, o que nos leva à constatação de que ao
menos nesse momento, em grande medida em razão da necessidade de cerceamento das possibilidades de leitura ___ o que possibilita a correção das questões ___ e por se dar o processo interativo num quadro institucional que restringe a enunciação, mantém-se uma concepção de leitura, segundo a qual há
um sentido original inscrito pelo autor no texto, o que depõe contra as mais
recentes abordagens sobre a leitura.
No que diz respeito à construção composicional das questões, ao “modo
de organizar o texto, de estruturá-lo” (FIORIN, 2006, p. 62), destacamos que,
ao contrário do que a afirmação de Chociay (1998) levaria a supor, a forma de
composição das questões, constituídas de comentário e solicitação nem sempre contribui para que o candidato às vagas da UFG possa exercer sua capacidade de observação, análise e interpretação sem maiores entraves (CHOCIAY,
1998, p. 63). Como pudemos verificar, há comentários, por exemplo, que, em
vez de orientar os alunos em relação ao que significa determinado termo da
Lingüística ou da Teoria Literária, de cujo entendimento depende a elaboração
da resposta, tratam de questões secundárias, na medida em que não contribuem diretamente para que os vestibulandos tenham condições favoráveis para
elaborar suas respostas.
De qualquer modo, de fato, constatamos haver, ao menos nas questões
que analisamos, essa forma de composição da questão discursiva, dividida em
comentário e solicitação. Nos comentários de todas as questões, um gênero de
outra esfera de atividade foi trazido para seu interior, contribuindo para a caracterização do novo gênero. Assim, nas questões aparecem charges, nota,
resenha, os quais saem, em especial, da esfera jornalística para a esfera do
ensino, fazendo com que os textos passem “de um gênero para outro”, em
razão de estar “colocado em outro contexto, ou seja, em outra esfera de atividade” (FIORIN, 2006, p. 72), além do que a mudança de suporte contribui para
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a passagem de um gênero a outro. Evidencia-se, assim, a presença bastante
forte da heterogeneidade mostrada, especialmente a marcada. Talvez porque
a UFG defenda, como propõe no manual do candidato do processo seletivo
para ingresso em 2004, que os textos escolhidos para a elaboração das provas
sejam variados, pertencendo a gêneros diversos, com as mais diferentes funções, todas as questões analisadas trazem como parte do comentário textos
diversos de gêneros variados (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2004).
Conforme expõe Marcuschi (2002b, p. 5), na composição dos gêneros
entram seqüências estruturais sistemáticas a que ele denomina tipos textuais,
os quais abrangem algumas poucas categorias conhecidas: a narração, a argumentação, a exposição, a descrição e a injunção. Tidos como tipologicamente
heterogêneos, os gêneros podem se constituir da combinação de diversos
tipos, nas mais variadas ordens. Como não poderia ser diferente, isso ocorre
com o gênero em análise. Porém, queremos ressaltar a importância que a seqüência tipológica injuntiva adquire nesse gênero, na medida em que “com a
seqüência injuntiva, o agente-produtor tem como objetivo fazer agir o destinatário e não só fazer ver” (SOUSA, 2002, p. 162). Assim, nas questões analisadas,
aparecem, com certa freqüência, verbos no imperativo: leia, explique, reescreva, responda, mantenha e os pronomes interrogativos qual, como e por que.
Os verbos e os pronomes citados acima contribuem para compor o estilo
desse gênero, pois, como define Fiorin (2006, p. 62), o estilo é uma “uma seleção de certos meios lexicais, fraseológicos e gramaticais em função da imagem
do interlocutor e de como se presume sua compreensão responsiva ativa do
enunciado”.
Assim, realizadas essas análises, parece-nos que a banca construiu uma
imagem dos vestibulandos como indivíduos sobre os quais ela possui um poder
dado pela sua posição sócio-histórica, cabendo-lhe solicitar, deles, um conhecimento teórico-terminológico e temático bastante apurado para refletir sobre
a língua e analisá-la.
REFERÊNCIAS
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BRASIL, Secretaria de educação fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997.
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Imprensa Oficial, 1998.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
20
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: MARCUSCHI, L. A.; DIONÍSIO,
A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna,
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Pernambuco, 2002b. Mimeografado.
MARCUSCHI, L. A. A questão do suporte dos gêneros textuais. Pernambuco: Universidade Federal
e Pernambuco, 2003. Mimeografado.
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Ed. UNICAMP,
1993.
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prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS. Centro de seleção. Manual do candidato: processo seletivo.
2004. Goiânia, 2004.
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ANEXOS5
5
22
Tivemos acesso à prova discursiva de Língua Portuguesa do Processo Seletivo 2004 pelo site
www.cs.ufg.br.
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LEITURA E LEITORES: PERFIL DA ESCOLA PÚBLICA
Heloísa Barretto Borges1
Maria Helena Rocha Besnosik2
Resumo: Este trabalho focaliza Projeto de pesquisa em andamento, em uma
escola pública de Feira de Santana – BA. O propósito da pesquisa é conhecer o
perfil de estudantes e professores da escola pública, tendo como ações atuais: a
implantação de Círculos de Leitura com os professores, realizados mensalmente;
a aplicação de um Questionário aos alunos; a implantação de Oficinas de Leitura
com os alunos; e realização de Entrevistas com professores e alunos. Este Projeto
é, metodologicamente, de abordagem descritiva, com caráter explicativo. Apresenta características de intervenção, visto que os dados coletados propiciarão
aos envolvidos uma revisão teórico-metodológica. Os resultados parciais obtidos
referem-se à aceitabilidade da comunidade escolar, assim como sinais de modificação na dinâmica das estratégias de leitura por parte dos docentes, que têm se
mostrado receptivos a novos aprendizados.
Palavras-Chave: Círculo de leitura, Oficinas de leitura, Escola Pública.
Abstract: This study presents a current research project held in a public school of
Feira de Santana, Bahia. The research focuses on getting to know the profile of
students and teachers of this public school and has as present actions: the implementation of reading groups with the teachers, on a monthly basis; application of a questionary for the students; implementation of reading groups with
students and interviews with both students and teachers. The methodology of
this project is one of descriptive approach, with an explanation character. It
presents intervention features, due to the fact that the collected data will bring
to the parts involved a theoretical and methodological review. The partial results
obtained refer to the acceptability by the school community, as well as signs of
modification in reading strategies used by the teachers, who have shown themselves receptive to a new learning.
INTRODUÇÃO
A literatura (e talvez somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a
expansão da peste da linguagem. [...] há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar (Ítalo Calvino).
Este texto, que ora apresentamos, é uma tentativa de sistematização e
análise parcial dos dados coletados em um estudo de caso realizado no Colégio
Estadual de Feira de Santana, na cidade de Feira de Santana/BA, com a pers1
2
Professora Assistente do Cursos de Pedagogia e de Letras da Universidade Estadual de Feira
de Santana (UEFS); endereço eletrônico: [email protected].
Professora Adjunta do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS); endereço eletrônico: [email protected].
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
25
pectiva de traçar o perfil leitor de alunos e professores no contexto de uma
sociedade contemporânea.
Esta pesquisa teve a sua origem a partir da implantação de um Projeto
denominado “Tecendo Leituras”, numa parceria entre a Secretaria de Educação do Estado da Bahia e a Universidade Estadual de Feira de Santana, que se
caracterizava na realização de oficinas de leitura com alunos e professores, na
perspectiva de estímulo ao desenvolvimento de leitores críticos, no ambiente
escolar.
Durante a realização do Projeto, observamos o interesse das escolas envolvidas em solidificar um trabalho de leitura, tendo como referência todas as
áreas do conhecimento. No entanto, o projeto não teve continuidade por falta
de empenho da Secretaria da Educação do Estado. Sendo assim, nós, pesquisadores vinculados ao Núcleo de Leitura Multimeios/UEFS, resolvemos tomar
como campo para um trabalho de pesquisa e extensão o Colégio Estadual de
Feira de Santana, um dos sete estabelecimentos envolvidos no referido projeto.
A escolha deste colégio explica-se por ser um dos mais antigos da cidade
e por ser considerado de médio porte, trabalhando com alunos do Ensino Médio. Além disso, durante o tempo em que convivemos dentro do colégio, éramos instigados pelos professores a realizar um trabalho mais efetivo no que diz
respeito à formação de leitores reflexivos, que pudessem se posicionar frente
à realidade da sociedade.
Nesse sentido, o nosso contato na escola permitiu que percebêssemos
como os alunos, de um modo geral, tinham pouco contato com práticas de
leitura que os levassem a uma reflexão sobre as concepções e as possibilidades
de uso das diversas linguagens. A formatação das oficinas no Projeto “Tecendo
Leituras” permitiu que experimentássemos com os professores e com os alunos a leitura de vários textos, desde o escrito até o imagético. Essas vivências
leitoras foram enriquecedoras, no sentido de oportunizar o conhecimento
dessa realidade, o que facilitou a elaboração deste projeto de pesquisa, cuja
proposta é aliar a investigação à intervenção.
Isso indica o nosso compromisso de pesquisadoras em não perder de
vista a necessidade de investigar as formas de acesso desigual ao livro, no âmbito social no qual a escola se insere, e a relevância de um debruçar-se na busca de alternativas de intervenção para minimizar os conseqüentes prejuízos na
formação de leitores proficientes. Significa, assim, uma interferência construtiva no traçado das metas primordiais da escola pública.
Nessa perspectiva, questões afloram, tais como: O que significa ler na
sociedade atual, com seus sistemas plurais de comunicação e interação? Quais
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A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
as representações de leitura que o jovem e/ou adulto estudante da escola
pública faz diante da realidade escolar marcada por parcos recursos materiais
e operacionais, em contraste com as necessidades que a sociedade impõe ao
cidadão, na sua lida diária? Que sentido tem a leitura no viver cotidiano de
alunos e professores?
AS TEIAS DA PRÁTICA
As atividades de leitura são realizadas com os professores de todas as
áreas do conhecimento, porque pretendemos aprofundar a reflexão sobre a
formação do sujeito letrado, desconstruindo a idéia de que o lugar da leitura é
da responsabilidade apenas do professor de língua portuguesa. É necessário
que todos os professores compreendam que a responsabilidade de formar
leitores cabe à escola como um todo. É tarefa do professor de geografia, de
história, de matemática, de física, de química, de educação física, de ciências,
de artes, enfim de todas as áreas. O aluno precisa ser desafiado a:
Ler tudo, desde as banalidades que possam parecer divertidas até coisas
que o professor julga que devem ser lidas para o desenvolvimento pessoal do
aluno como pessoa sensível, civilizada, culta, como cidadão, para o estabelecimento de seu senso estético, de sua solidariedade humana, do seu conhecimento (GUEDES; SOUZA, 2004, p. 17).
O que temos como realidade nas nossas escolas é a percepção de que
cada área preocupa-se com os seus conteúdos específicos e não há a dimensão
de que o mote do trabalho do professor se realiza através da leitura, sendo
que a diversidade textual é o que torna possível um passeio pelo conhecimento já construído, visto que:
Esta leitura de inserção do aluno no universo da cultura letrada desenvolve a habilidade de dialogar com os textos lidos, através da capacidade de ler
em profundidade e interpretar textos significativos para a formação de sua
cidadania, cultura e sensibilidade (GUEDES; SOUZA, 2004, p. 19).
Soares (1988) assinala que a democratização da leitura ainda não acontece de forma plena na nossa sociedade. Os indivíduos aprendem a ler e a escrever, mas nem sempre se tornam leitores letrados, isto é, usuários plenos da
língua escrita. É válido ressaltar que o ato de ler requer, inicialmente, a apreensão do código lingüístico, embora não se esgote na apreensão do sistema
lingüístico, nos limites da alfabetização.
É notório que a responsabilidade escolar com a formação de neoleitores
e com o aprofundamento da proficiência leitora de sua clientela se amplia
através do reconhecimento de que só a vivência da língua escrita nos mais
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
27
variados modos de uso social e nos diversos suportes de circulação rumo a um
estado pleno de letramento3, representará a garantia de apropriação do mecanismo da leitura, primordial para a prática cidadã, no cenário social. Nesse
mister, a escola agrega o valor de mediadora, incorporando o aprendizado de
que:
Entre as leis sociais que modelam a necessidade ou a capacidade de leitura, as da escola estão entre as mais importantes, o que coloca o problema,
ao mesmo tempo histórico e contemporâneo, do lugar da aprendizagem escolar numa aprendizagem da leitura, nos dois sentidos da palavra, isto é, a aprendizagem da decifração e do saber ler em seu nível elementar e, de outro
lado, esta outra coisa de que falamos, a capacidade de uma leitura mais hábil
que pode se apropriar de diferentes textos (CHARTIER, 1996, p. 240).
É perceptível a ressonância de uma crise de leitura que tem afetado os
sistemas nacionais de ensino (fundamental, médio e superior), na contemporaneidade, haja vista os resultados de pesquisas e avaliações divulgados pela
mídia. Ressalve-se que não se pode pensar a leitura apenas numa perspectiva
canônica.
A nossa tentativa nessa pesquisa, ao pensar em traçar o perfil desses leitores a partir da inserção de alunos e professores em práticas de leitura, é
fazer aflorar o leitor que existe escondido em cada um, abrindo espaço para
que falem de suas leituras que, muitas vezes, são desqualificadas pela própria
escola. As avaliações nacionais sobre o nível de leitura dos alunos da escola
pública sempre revelam dados em que os alunos apresentam baixos índices no
que se refere à performance de leitura. No entanto, esses dados se limitam a
mostrar uma leitura canonizada e autorizada pelo sistema educacional, que
não permite traçar um panorama mostrando a variedade textual utilizada por
esses jovens.
Há que se ressaltar as diversas situações de leitura presentes nas práticas sociais, fazendo parte das manifestações da cultura, que exigem de pessoas notadamente letradas um preparo específico, seja relativo ao domínio da
informática, seja relacionado à habilidade interpretativa de um filme, de uma
obra de arte, de alguns manuais ou textos instrucionais.
A História da Leitura tem apresentado uma variedade de leitores, que
não se limitam a leituras autorizadas, ou mesmo que mais ouvem do que lêem
o texto escrito. Na experiência do contato com os professores desse colégio,
constatamos a pouca familiaridade com o texto literário e como a leitura estava restrita às necessidades profissionais, para atender a uma demanda conteudista do momento. Os professores e as professoras, todos com formação
3
28
Sobre Letramento, ver SOARES (1998).
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
universitária, apresentaram queixas a respeito da falta de leitura dos alunos,
entretanto não conseguiam localizar a raiz do problema. Na verdade, eles
também fazem parte do problema, apesar do nível avançado de escolaridade
em relação aos estudantes.
A leitura do texto literário localiza-se, muitas vezes, no campo do prazeroso, sem a compreensão dos aprendizados embutidos nesse tipo de leitura.
Lê-se literatura para ocupar o tempo, para se distrair, para fugir da realidade.
Onde fica a possibilidade de construir uma experiência estética na leitura do
texto literário? Iniciamos então os Círculos de Leitura por área de conhecimento, uma vez por mês, lendo textos literários. Nessa perspectiva, dominar a leitura implica em elaborar sentidos, de forma mais aprofundada, como fator
preponderante para recuperar o papel social de cidadão.
Admitimos que um texto literário é um instrumento poderoso de contextualização do mundo, em seus vários enfoques, porque propicia uma profunda reflexão sobre o conjunto complexo de componentes mentais e emocionais da compreensão, trazendo em seu bojo o caráter polissêmico, que abre
espaço para múltiplos olhares interpretativos. A partir da leitura, então, o ser
humano poderá amadurecer sua forma de atuação no mundo, ao perceber as
possíveis vias de acesso e/ou de ocultamento existentes nas relações horizontais e verticais das práticas sociais.
O texto literário também se torna relevante por conta do aspecto catártico que lhe é conferido, do jogo lúdico que estimula a imaginação do leitor, da
possibilidade de lidar com o prazer, da liberdade de criar, das novas significações que atribui aos signos. Pode constituir-se, ainda, pelo caráter interpretativo/reflexivo que encerra, em instrumento desalienador de estereótipos sociais
e elemento aguçador da criticidade. A obra literária, assim, pode ser entendida
como um objeto construído que “humaniza em sentido profundo, porque faz
viver” [...] “é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção” (CANDIDO, 1995, p. 244; 245).
Para a literatura, a palavra assume a dinâmica de educar os sentidos,
com vistas a uma ação transformadora do indivíduo, o qual, a partir da chegada ao mundo, torna-se apto a interpretá-lo. E o faz de várias maneiras: pelo
olhar, pelo cheiro, pelo tato, pelos ruídos captados e, conseqüentemente, pelos significados sensoriais e emocionais apreendidos, muitas vezes além das
palavras, antes pelo reconhecimento de intenções e motivações que ele impregna às ações em sua volta.
Por conseguinte, o ser humano elege a palavra como algo imprescindível
para garantir o seu lugar social no mundo e dar sustentabilidade a sua condição de sujeito pensante, que é e está cada vez mais desafiado a construir sabeA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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res e valores, bem como usufrui-los no seio da cultura, sempre fazendo escolhas em situações plurais. Esse processo construtivo de valores, efetivado pelo
escritor e reprocessado pelo leitor, sugere que:
Todas as obras literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo
que inconscientememte, pelas sociedades que as lêem; na verdade, não há
releitura de uma obra que não seja também uma “reescritura”. Nenhuma obra, e nenhuma avaliação atual dela, pode ser simplesmente estendida a novos
grupos de pessoas sem que nesse processo, sofra modificações, talvez quase
imperceptíveis (EAGLETON, 1997, p. 17).
Como intérprete, o leitor identifica, na tessitura textual, uma significação tanto subjetiva quanto histórica. É o nível hermenêutico de apropriação da
obra - unidade semântica viva e, portanto, polissêmica - que vai garantir-lhe o
equilíbrio no processo de (re)construção de valores do mundo. Na realidade, a
literatura opera com a linguagem, peculiarmente empregada, considerando as
múltiplas possibilidades e expectativas subjacentes a um discurso contextualizado e carregado de intencionalidade, que se disponibiliza ao leitor.
TECENDO O LEITOR NOS MEANDROS DA ESCOLA
Dirigir um olhar crítico para a questão da leitura, na atualidade, bem
como envolver a escola na implementação de projetos que invistam prioritariamente na formação de leitores não só para o interior da escola, mas para o
mundo, se constitui em eixo central da preocupação de educadores. Concordamos que “cada leitor, a partir de suas referências, individuais ou sociais,
históricas ou existenciais, dá sentido mais ou menos partilhado, aos textos de
que se apropria” (CHARTIER, 1996, p. 20).
Sob essa ótica, é possível considerar a importância de revalorizar criticamente o papel da escola, enquanto aglutinadora e difusora de saberes, no
sentido de implementar abordagens pedagógicas que mobilizem os potenciais
de aprendizagem que o estudante dispõe. Isso implica no resgate cultural da
leitura, compreendendo-a como uma prática, entre outras, que designa consumo cultural e incorporando o sentido de que:
A leitura obedece às mesmas leis que as outras práticas culturais, com a
diferença de que ela é mais diretamente ensinada pelo sistema escolar, isto é,
de que o nível de instrução vai ser mais potente no sistema dos fatores explicativos, sendo a origem social o segundo fator. No caso da leitura, hoje, o peso
do nível de instrução é mais forte. Assim, quando se pergunta a alguém seu
nível de instrução, tem-se já uma previsão concernente ao que ele lê, ao número de livros que leu no ano, etc. Tem-se também uma previsão concernente
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A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
à sua maneira de ler. Pode-se rapidamente passar da descrição das práticas às
descrições das modalidades dessas práticas (BOURDIEU, 1996, p. 237).
O entendimento conseqüente, então, é que o conjunto das ações pedagógicas tanto na área de ensino da língua materna, quanto nas demais áreas
do conhecimento, deve convergir para a efetivação de um movimento didático
que parte da dimensão pessoal, isto é, direcionado à esfera da experiência
subjetiva, para atingir uma abrangência coletiva. Assim, cada leitura se formaliza evidenciando seu aspecto cognitivo, além de seu elemento históricocultural.
Desse modo, reconhecendo os sentidos e os valores historicamente atribuídos às situações de leitura, é possível afirmar a relevância de implementação de uma política de leitura, através de mecanismos mobilizadores, que ampliem as formas e os processos de leitura e ofereçam oportunidades de
aprendizado aos educandos, principalmente os economicamente despossuídos, ratificando que “Mas ler aprende-se” (CHARTIER, 1996, p. 22).
O processo de formação do leitor escolar, como ponto de partida para a
constituição do leitor social proficiente, está vinculado às nuanças interpretativas que a totalidade dos docentes da escola estabelecem, dimensionando a
prática cotidiana da leitura via implementação de rituais didáticos produtivos,
estimuladores e sedutores, assumindo uma mediação inteligente e atualizada,
ao oferecer um repertório variado de leitura.
Aproximar o educando do livro indica uma tomada de atitude eficaz e eficiente, de mão dupla, posto que exige que o docente invista em sua própria
formação leitora e conceba o livro, então, como fonte inesgotável e imprevisível de saber e poder, com o qual deve se cumpliciar, assumindo que:
[...] todo professor é também um professor de leitura: conhecendo o
professor as características e dimensões do ato de ler, menores serão as possibilidades de propor tarefas que trivializem a atividade de ler, ou que limitem o
potencial do leitor de engajar suas capacidades intelectuais, e, portanto, mais
próximo estará esse professor do objetivo de formação de leitores (KLEIMAN,
1995, p. 11).
Sendo assim, a qualificação da atividade de leitura na escola pública pode se efetivar, na medida em que haja possibilidades de professores e alunos
darem maiores saltos no desenvolvimento de seus potenciais de leitores crítico-reflexivos, que ressignifiquem os valores ideológicos do seu espaço-tempo e
conquistem sua autonomia leitora. Os textos literários, então, como produtos
culturais e mananciais de leitura, tornam-se, para estudantes e professores,
instrumentos exemplares de incorporação de conhecimentos e exercício das
emoções.
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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OS CÍRCULOS DE LEITURA
Dentre as práticas de leitura que temos exercitado com os professores,
destacamos os “Círculos de Leitura”, que consistem na leitura em voz alta de
um texto literário previamente escolhido. Esta prática é originária dos Encontros de Leitura promovidos pela Fundação Biblioteca Nacional, por meio do
Programa de Incentivo à Leitura, denominado PROLER.
O círculo de leitura retoma a experiência da leitura em voz alta, prática
que foi muito difundida antes da consolidação da leitura silenciosa e da expansão da alfabetização.
A leitura em voz alta vai durante muitos séculos fazer parte das práticas
leitoras de uma população considerada não letrada, ou melhor, não alfabetizada. Era muito comum na França, entre os séculos XVI e XVIII, tanto no campo
quanto na cidade, as pessoas se reunirem para escutar a leitura de um livro,
fosse no ambiente familiar ou no trabalho. Era época de uma leitura intensiva,
em que o mesmo texto era lido diversas vezes, pela escassez de material impresso. Sabe-se por diversas pesquisas no campo da leitura, ainda na França,
da existência de uma importante instituição social denominada “veillé” em que
os camponeses se reuniam para namorar, cantar, conversar, fazer trabalhos
manuais, contar histórias e também, se existisse entre eles algum homem alfabetizado e que possuísse livros, poderia ler em voz alta.
Aparece, então, a figura do ledor, que encarnava o indivíduo que ia um
pouco além da decifração dos signos e ainda era um possuidor de livros, o que
lhe conferia um status social. Diz Fabre (1996): “O lugar do ledor é sempre o
mais iluminado, contra o fogo, à noite, ou no vão da janela, quando há sol,
senta-se na cadeira que lhe é reservada”. O ledor, portanto, era uma figura
importante, presente nos vários relatos sobre leitura do século XVI ao XVIII.
Esta modalidade de leitura sobreviveu durante muito tempo, na França
do século XIX. Na cidade, as pessoas já liam silenciosamente e individualmente,
mas no campo ainda persistia uma leitura coletiva e em voz alta: “Eles pertenciam às “gerações de ouvintes” que ainda não haviam se transformado em
“gerações de leitores”, ou seja, pessoas para as quais a leitura era muitas vezes
experiência coletiva, integrada em uma cultura oral (LYONS, 1999, p. 197).
A leitura em voz alta no inicio do século XIX também fazia parte “da cultura do local de trabalho”. Afirma Lyons: “Perdiguier menciona as leituras em
voz alta entre carpinteiros franceses, no inicio dos anos 1820, em que se declamavam Racine e Voltaire” (LYONS, 1999, p. 195).
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Têm-se notícias de que a leitura em voz alta era muito comum nos ambientes familiares ou de trabalho. Manguel (1997) relata a experiência de trabalhadores cubanos numa fábrica de charutos onde acontecia uma leitura
pública de livros e do jornal dos trabalhadores, durante o turno de trabalho,
em 1866. Um dos trabalhadores era escolhido como leitor oficial e os outros o
pagavam por esta tarefa. Essas leituras foram desaparecendo aos poucos, devido a proibições do governo. Contudo, elas reaparecem ainda no século XIX,
por meio de trabalhadores que imigraram para os Estados Unidos. Assim,
O material dessas leituras, decidido de antemão pelos operários(que,
como nos tempos de El Fígaro, pagavam do próprio salário o lector), ia de histórias e tratados políticos a romances e coleções de poesia clássica e moderna.
Tinham seus prediletos: O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, por
exemplo, tornou-se uma escolha tão popular que um grupo de trabalhadores
escreveu ao autor pouco antes da morte dele, em 1870, pedindo-lhe que cedesse o nome de seu herói para um charuto; Dumas consentiu (MANGUEL,
1997, p. 135-6).
Essa leitura nas fábricas de charuto ultrapassou o século XIX e sobreviveu até 1920. A leitura partihada remonta não só o século XIX, mas muitos
séculos anteriores; lia-se publicamente nas tabernas, nos salões da corte, nas
estalagens, nos locais de trabalho, nos lares humildes, nos mosteiros, nas praças públicas. A literatura brasileira, do século XIX, mostra alguns exemplos de
leitura em grupo como as dos serões familiares. Machado de Assis, em seu
livro Dom Casmurro, apresenta o personagem José Dias, o agregado da casa,
que tinha a tarefa de ler à noite, depois do jantar, para as pessoas da família.
Essas leituras, em geral, tinham a função de entretenimento.
Câmara Cascudo também relata esses serões familiares nas casas dos
sertanejos, no século XIX, quando se refere a leituras dos folhetos de cordel:
A ausência de jornais, o isolamento das fazendas e engenhos de açúcar
determinavam uma vida familiar mais intensa. Raramente o chefe da casa saía
à noite. A dona, filhos, noras, permaneciam fiéis ao serão habitual, candeeiro
aceso, depois da “janta”, fazendo sono, trabalhando nas obras manuais, ouvindo a leitura tradicional desses folhetos que vinham de séculos, mão em mão
com seu público inalterável (CASCUDO, 1953, p. 25).
A leitura em voz alta também foi e ainda é uma prática de leitura nas escolas. Na França, no final do século XIX, era realizada para incentivar nos alunos o gosto pela leitura. O professor primário era orientado a escolher uma
obra atraente e no final da aula, duas ou três vezes por semana, fazer essa
leitura para os seus alunos.
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Nas nossas escolas, essa prática tem sido usada com um outro objetivo,
pois não é o professor que efetua a leitura e sim os alunos. O professor vai
observar a competência do aluno para decifrar os sinais, além de ser usada
como um instrumento disciplinador.
Pois bem, a leitura realizada em voz alta para determinados grupos não
é uma prática nova, inventada nos dias de hoje. O que é novo na prática dos
Círculos de Leitura “é o uso do círculo para aproximar leitores na troca de suas
interpretações para estímulo intensivo da própria experiência de dizer e dizerse”4.
Essa prática efetivada nos círculos se diferencia dos momentos anteriores da história, porque se está diante de um grupo em que todos sabem ler.
Não são ouvintes apenas de uma leitura, mas eles vão juntos numa leitura
coletiva do mesmo texto, partilhando opiniões sobre o que leram.
Sendo assim, iniciamos o nosso Círculo de Leitura com o texto de Machado de Assis, “Pai contra mãe”. Em todos os grupos, por área de conhecimento, aconteceu um debate caloroso com relação à escolha do texto, como
também no desenrolar da própria leitura.
Alguns professores expressaram suas dificuldades com a leitura de Machado de Assis, apontando que, na verdade, poderíamos ter iniciado com um
outro autor, alegando que este era um clássico de linguagem difícil. Durante as
conversas pós leitura do texto, percebíamos que os comentários eram feitos a
partir das experiências de cada leitor e observávamos que algumas leituras
eram realizadas ao “pé da letra”, sem levar em conta o contexto e a ironia
implícita no texto, característica deste escritor.
A leitura do conto machadiano mobilizou as professoras para uma discussão no campo da ética, na figura da personagem que faria qualquer coisa
para o bem-estar da sua família. Machado de Assis põe em foco uma análise da
sociedade brasileira, ainda na época da escravatura, em que prevalecia a mentalidade de naturalizar a situação dos negros, ressaltando as fraquezas humanas na luta pela sobrevivência.
Tratando-se de um texto literário e, portanto, de característica polissêmica, as interpretações tomaram diversos caminhos, desde uma análise a partir do contexto da época, até trazer as discussões para o contexto atual, numa
tentativa de relacionar as posturas dos personagens aos valores éticos e morais vivenciados no presente momento histórico-político do país e as mazelas
sociais decorrentes.
4
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YUNES, Eliana, Folheto do PROLER.
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CONCLUSÃO
As avaliações realizadas na culminância dos Círculos de Leitura demonstraram o impacto emocional causado nos docentes das diversas áreas, pela
vivência desta atividade, considerada profícua. Os depoimentos referentes ao
processo de despertamento para a valorização da leitura literária tornaram
notório o estado de lacunas conceituais e operacionais da formação de alguns
professores, em relação a esse tipo de texto. Entretanto, o que surpreendeu
foi o fato de alguns expressarem sua satisfação pela sensação de que uma chave abria a porta de suas mentes para a percepção das imagens contidas nos
textos literários, as quais ora estavam explícitas, ora implícitas, instigando o
seu olhar arguto de leitor.
Portanto, dar visibilidade, na escola pública que temos, a uma formação
leitora autônoma, via oferta de textos literários significativos, pode se constituir em contribuição eficaz para o delineamento da escola que queremos ajudar
a (re)construir, especialmente voltada para o compromisso de ampliar o universo cultural e alargar o horizonte social dos cidadãos que nela atuam, professores e alunos. Este propósito compõe a relevância social desta pesquisa,
que ora viabilizamos como expressão de nossa responsabilidade no exercício
profissional, bem como do nosso desejo amoroso de transformação e otimização da escola pública.
REFERÊNCIAS
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BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. Debate entre Pierre
Bourdieu e Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. Trad.: Cristiane Nascimento;
revisão da tradução Angel Bojadsen. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
CASCUDO, Luís da Câmara. Cinco livros do povo: introdução ao estudo da novelística no Brasil.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. Trad.: Cristiane Nascimento; revisão da tradução Angel
Bojadsen. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
EAGLETON. Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad.: Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1997
FABRE, Daniel. O livro e sua magia. In: CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. Trad.: Cristiane
Nascimento; revisão da tradução Angel Bojadsen. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
NEVES, Iara Bitencourt; SOUZA, Jusamara Vieira; SCHAFFER, Neiva Otero; GUEDES, Paulo Coimbra; KLUSENER, Renita. (Org.). Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2004.
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KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1995.
LYONS, Martin. Os novos leitores no século XIX: mulheres, crianças, operários. In: CAVALLO,
Guglielmo; CHARTIER, Roger. (Org.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática,
1999.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad.: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
SOARES, Magda. As condições sociais da leitura. In: ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da. (Org.). Leitura – perspectivas Interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
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CONHECIMENTOS PRÉVIOS E PRÁTICAS LEITORAS NO ENSINO
FUNDAMENTAL
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo1
Valter Sávio Roesler2
Resumo. Este trabalho constitui-se a partir da verificação de leitura de dois textos, feita por alunos do ensino fundamental (5ª série) em duas escolas localizadas no município de Prudentópolis-Paraná, uma na área central da cidade e
outra na área rural. A pesquisa objetiva diagnosticar a competência leitora
desses alunos. Também, tem a intenção de verificar o papel dos conhecimentos
prévios na construção dos sentidos na leitura.
Palavras-chave: leitura; concepção interacionista; conhecimentos prévios; ensino
fundamental.
Abstract. This article reports the reading of two texts made by students of an
primary education (fifth level) in two schools in the municipality of Prudentópolis-Paraná- Brazil, one in downtown Prudentópolis and other in the rural area.
The investigation has as purpose to diagnose the reading competence of these
students. It also has the objective to investigate the paper of previous knowledge
in the building of the senses in the reading.
Key words: reading; interactive conception; previous knowledge; primary education.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho propicia momentos de reflexão sobre a prática de
leitura de alunos de duas quintas séries do ensino fundamental, pertencentes
a duas escolas localizadas em Prudentópolis-PR, sendo uma localizada na área
central da cidade e outra na zona rural. Tem-se por objetivos realizar um diagnóstico da competência leitora dos alunos envolvidos na pesquisa e verificar
que conhecimentos prévios são ativados pelos alunos de diferentes contextos
durante a leitura.
Para buscar alcançar os objetivos propostos, estrutura-se este artigo em
três partes. Na primeira – Revisão teórica – discorre-se sobre as diferentes
concepções de leitura que exercem influência na atividade pedagógica e sobre
o papel dos conhecimentos prévios na atividade leitora; na segunda parte –
Cenário da pesquisa – descrevem-se os sujeitos e os procedimentos para a
coleta de informações; na terceira parte, analisa-se e discute-se o material
1
2
Professora, Universidade Estadual do Centro-Oeste/ UNICENTRO, Campus de Irati, Departamento de Letras, Irati-PR; e-mail: [email protected].
Professor, Colégio Estadual Ambrósio Bini, Almirante Tamandaré, PR; e-mail: [email protected].
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coletado durante o trabalho de campo, bem como apresentam-se os resultados, mantendo como linha de discussão os estudos que compreendem a revisão teórica. Por último, as considerações finais retomam os objetivos pretendidos.
1 REVISÃO TEÓRICA
1.1 CONCEPÇÕES DE LEITURA
A leitura tem sido estudada e descrita a partir de diferentes teorias, o
que gera uma diversidade de concepções. A leitura pode ser concebida como
“captação” do significado do texto. Nessa concepção, o texto é o elemento
primordial da leitura, pois nele está toda a essência do conhecimento e as informações necessárias para que haja a compreensão do escrito. Assim, o leitor
não é concebido como sujeito ativo, cabendo a ele somente extrair as informações já prontas e acabadas.
O ato de ler também pode ser entendido como forma de atribuição de
significado às palavras escritas (GOODMAN, 1987; SMITH, 1999). Ao contrário
da primeira concepção, a atribuição de sentido coloca o leitor como a fonte do
conhecimento. A qualidade do texto é considerada menos importante que o
repertório de conhecimentos que o leitor adquire em sua trajetória de vida e
traz para a leitura.
Essas duas concepções têm sido alvo de muitas críticas, visto que, ao
privilegiarem ora o papel do texto ora o papel do leitor, acabam por oferecer
uma visão muito limitada acerca da leitura. Dessa forma, diversos autores vêm
abordando a leitura como um processo interativo (KLEIMAN, 1989; 1996;
KATO, 1990; LEFFA, 1996). Nessa concepção, o ato de ler passa a ser visto como um processo que integra tanto as informações da página impressa – um
processo perceptivo – quanto as informações que o leitor traz para o texto –
um processo cognitivo. Isso implica reconhecer que o significado não está nem
no texto nem na mente do leitor; o significado torna-se acessível mediante o
processo de interação entre leitor e texto, não mais um produto de leitura que
se centra num só dos participantes: o texto ou o leitor.
Para que a interação leitor e texto seja o mais produtiva possível, é preciso que o leitor desenvolva uma série de estratégias, “que envolvem a presença de objetivos a serem realizados, o planejamento das ações que se desencadeiam para atingi-los, assim como sua avaliação e possível mudança”
(SOLÉ, 1998, p.70). Nesse sentido, se o leitor processa o texto é porque tem
alguma meta a ser alcançada e é a partir desta que faz previsões sobre o conteúdo do texto, seleciona as informações mais relevantes, inferencia – basean38
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do-se nas informações proporcionadas pelo texto e nos seus conhecimentos
prévios – confirma ou refuta as previsões e inferências antes mencionadas,
retrocede na leitura a fim de resolver possíveis dúvidas. É o que nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) denomina-se de estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação.
Autores como Dell’Isola (1996) e Moita Lopes (1996) adicionam o componente social na atividade de interação. Para eles, a leitura é numa prática
social, porque leitor e autor revelam na leitura marcas da individualidade e do
lugar social de onde provêm. Dell’Isola (1996) aponta a leitura como ato de coprodução do texto. Isso porque o texto nunca está acabado, pois apresenta
espaços lacunares que serão preenchidos de acordo com as condições sociais,
ideológicas, culturais, históricas e afetivas do leitor. Moita Lopes (1996) chama
a atenção para o fato de que há relações de poder implícitas no uso da linguagem. Assim, ao interagir com o texto, o sujeito leitor deve adquirir uma postura crítica para questionar determinadas “verdades” veiculadas no texto e, consequentemente, certos aspectos da realidade.
Portanto, a leitura, enquanto interação, envolve elementos diversos, incluindo não apenas o texto (forma e conteúdo), mas também as características
do sujeito leitor (seus conhecimentos prévios, seus objetivos, suas estratégias,
suas opiniões, suas crenças) e o contexto social que envolve o leitor, o texto e
o momento de produção da leitura.
1.2 O CONHECIMENTO PRÉVIO NA LEITURA
Em seu significado tradicional, conforme vimos, o ato de ler é interpretado como uma forma de decifrar os signos gráficos a partir do conhecimento
que o indivíduo tem do sistema de uma língua. Atualmente, compreende-se a
leitura como um processo que abrange também os conhecimentos trazidos
pelo leitor.
Colomer e Camps (2002) descrevem e agrupam em dois itens os conhecimentos prévios que o leitor utiliza no momento da leitura: os conhecimentos
sobre o escrito e os conhecimentos sobre o mundo.
Os conhecimentos sobre o escrito envolvem o conhecimento da situação
comunicativa e os conhecimentos sobre o texto escrito. O primeiro está relacionado ao tipo de interação social proposta pelo autor do texto, isto é, ao
conhecimento de quem está propondo a comunicação, com que objetivo, em
que tempo e em que espaço. O conhecimento da situação comunicativa particular dá ao leitor a possibilidade de confrontar seu próprio objetivo de leitura
com o do autor.
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Já os conhecimentos sobre o texto escrito abrangem as noções dos recursos paralingüísticos (por exemplo, o conhecimento das convenções na separação de palavras, orações e parágrafos), as relações grafofônicas (ou seja, a
capacidade de análise das letras e sua relação com os sons), bem como os conhecimentos morfológicos, sintáticos e semânticos, os quais possibilitam a
identificação das categorias lingüísticas, ou seja, permitem ao leitor distinguir
sujeito, predicado, verbo, adjetivo e a significação de palavras polissêmicas.
Segundo Kleiman (1989), o conhecimento lingüístico desempenha um papel
importante para o leitor no entendimento do texto, pois objetiva agrupar as
palavras em unidades maiores, também significativas, chamadas constituintes
das frases.
Ainda no nível dos conhecimentos sobre o texto escrito, Colomer e
Camps (2002) citam os conhecimentos textuais, aquilo que o indivíduo conhece dos conceitos sobre o texto. Esses abrangem o conhecimento das estruturas
textuais (narrativa, expositiva e descritiva), dos fatores de textualidade, como
a coerência e a coesão, e das regras de construção dos textos. A capacidade de
identificar as estruturas textuais “permite prefigurar o desenvolvimento do
texto de forma mais previsível e facilita a compreensão das idéias fundamentais que já se encontram ordenadas no esquema do texto” (COLOMER; CAMPS,
2002, p.52). Então, quando o leitor tem noções sobre a estrutura narrativa,
isto é, sabe que no desenvolvimento dessa tipologia há sucessão temporal de
acontecimentos, personagens inter-relacionados e apresentação de um conflito central que depois será resolvido, é provável que ele, ao se deparar com os
vários gêneros da ordem do narrar (fábula, conto, crônica, lenda, etc.), avance
mais facilmente na leitura, realizando predições, levantando hipóteses e inferências.
Outro tipo de conhecimento citado por Colomer e Camps (2002) e Kleiman (1989) corresponde ao conhecimento sobre o mundo ou conhecimento
enciclopédico, o qual pode ser adquirido formal e informalmente através da
escola, do convívio familiar, do convívio com os amigos, através de leituras,
rádio, TV, internet. Abrange desde as noções que um médico tem dentro de
sua área até as noções sobre fatos simples do cotidiano como: “existem vários
tipos de pássaros”; “a geladeira serve para conservar os alimentos”; “o telefone é um meio de comunicação”.
Os conhecimentos sobre o mundo estão organizados na forma de esquemas (KLEIMAN, 1989). Os esquemas formam uma “rede de conhecimentos” que são armazenados de forma extremamente organizada na memória do
leitor e que são acionados quando ele processa o texto. À medida que amplia
ou se altera o conhecimento enciclopédico do leitor, os esquemas automodifi40
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cam-se. Dessa forma, ao ler um texto o esquema armazenado na memória do
leitor modifica-se, ampliando-se e possibilitando ao leitor produzir novos significados às leituras que fará a partir do contato com novos textos.
Certamente, os conhecimentos sobre o escrito e sobre o mundo são cruciais para o desenvolvimento da leitura, no entanto, acreditamos que para a
formação de sujeitos críticos, capazes de se posicionar conscientemente no
contexto social, há necessidade de um outro tipo de conhecimento: o conhecimento das contradições da realidade. Trata-se de um saber que permite ao
leitor tomar o texto não como um depósito de verdades, mas como uma fonte
de informações e idéias que podem ser questionadas, contestadas e contrastadas com a realidade. Conhecer as contradições presentes na sociedade é
conhecer as mazelas sociais, como a violência urbana, e saber em que medida
elas estão relacionadas com as condições em que vive a população; é conhecer
as razões que levam uma minoria a deter os benefícios do trabalho produtivo;
é conhecer as formas de opressão e dominação de uma classe sobre a outra; é
conhecer os modos de imposição dos referenciais de mundo da classe dominante por meio da publicidade; é conhecer as maneiras que a classe política
utiliza para que os atos de corrupção sejam rapidamente esquecidos pela população.
Esse conhecimento também pode ser construído pelos sujeitos no dia-adia, no convívio social, mas é no coletivo escolar, nos momentos de leituras
compartilhadas, na análise das diferentes interpretações sobre o mesmo tema
veiculadas nos diversos textos, nos debates e cotejos de idéias entre os pares,
que ele será aguçado e aperfeiçoado, permitindo ao leitor confrontá-lo com os
fatos e idéias que circulam através dos novos materiais escritos que serão lidos.
2 CENÁRIO DA PESQUISA
Fizeram parte da pesquisa dois grupos de alunos da 5ª série do ensino
fundamental. O primeiro grupo, que será chamado nessa pesquisa de grupo A,
é formado por trinta alunos, sendo vinte do sexo masculino e dez do sexo feminino. Tais alunos são de classe baixa, utilizam o transporte municipal para se
dirigir à escola e a maioria de seus pais são agricultores. A instituição escolar
que freqüentam é de rede pública e está localizada no meio rural. Já o segundo
grupo, ou grupo B, é formado por dezessete alunos, oito do sexo masculino e
nove do sexo feminino. São de classe média, moram no centro da cidade ou
em suas proximidades, todos dispõem de transporte próprio para se dirigir à
escola. São filhos de bancários, professores e comerciantes. A escola na qual
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41
estudam é de rede particular e está situada no centro da cidade de Prudentópolis-Paraná.
Para a coleta de informações, foram utilizados dois textos, seguidos de uma pergunta aberta. Primeiramente, foi apresentado o texto
“Carroça vazia”, retirado da rede mundial de computadores-internet
(Anexo I), o qual proporciona ao leitor uma comparação entre o barulho
de uma carroça vazia e as pessoas grosseiras e inoportunas. Num segundo momento, foi exposto aos alunos o texto “Relato de ocorrência
em que qualquer semelhança não é mera coincidência” (Anexo 2), de
Rubem Alves, que narra um acidente numa BR, envolvendo um ônibus,
que atropela uma vaca, que morre logo em seguida. Os moradores das
redondezas, ao verem o acidente, correm na direção do ocorrido, para
aproveitar a carne da vaca morta, e deixam as vítimas à mercê da sorte.
Após a entrega de cada texto, em dias distintos, solicitou-se aos alunos
que realizassem a leitura silenciosa e, em seguida, respondessem à seguinte
questão: O que você entendeu do texto? Optou-se por essa pergunta por acreditarmos que essa seria uma oportunidade para que o aluno expusesse com
as próprias palavras a sua compreensão do texto e evidenciasse sua visão de
mundo e sua criticidade.
De acordo com o propósito de uma pesquisa de campo, em que o pesquisador tem a necessidade de conhecer o ambiente escolar no qual a pesquisa foi efetuada, propusemo-nos a comparecer nas duas escolas nos respectivos
dias agendados para assim desenvolver as atividades e obter conhecimento
sobre a prática leitora dos alunos.
3 DESCRIÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
3.1 DESCRIÇÃO DOS DADOS REFERENTES À LEITURA DO TEXTO “CARROÇA
VAZIA”
Nesta seção, são apresentadas as informações obtidas durante o trabalho de campo, quantificando-se e exemplificando-se as respostas dadas pelos
sujeitos da escola “A” e, posteriormente, pelos sujeitos da escola “B”. Por
questões éticas, os alunos são assim identificados: A1, A2... B1, B2...
3.1.1 Escola “A”
No desenvolvimento da leitura do texto “Carroça Vazia”, estavam presentes 23 alunos da escola A. Os seguintes resultados foram constatados:
91% dos alunos apresentaram respostas superficiais, retirando algumas
informações do texto. Por exemplo:
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A1: “Eu entendi que o pai do garotinho disse que quando está fazendo
muito barulho e que a carroça está vazia”.
A3: “Eu entendi que o pai do menino ouvia o barulho da carroça vazia”.
A5: “Que o pai foi com a menina no parque pacear”.
9% dos alunos teceram comparações entre o barulho de uma carroça
vazia e o comportamento de algumas pessoas:
A14: “Eu entendi que no texto tinha um menino que foi dar um passeio
com seu pai e ele deu alguns exemplos, que quando a carroça está vasia ela faz
mais barulho e quando nós entramos na carroça faz pouco barulho e eu entendi com isso que tem pessoas que ficam gritando querendo ser o maior que
sempre tem mais, as pessoas tem se respeitar”.
A12: “Quem está brigando gritando é a mesma coisa que uma carroça
vazia. Porque enquanto mais vazia e enquanto a pessoa mais briga mais barulho faz”.
3.1.2 Escola “B”
Na escola B, em que participaram 15 alunos, obteve-se o seguinte resultado:
33% dos alunos reproduziram na resposta alguns dados do texto:
B1: “Que uma carroça estava passando e estava vazia”.
B2: “Que um dia o pai de um menino disse para ele: -Quanto mais vazia
a carroça está mais barulho ela faz”.
67% buscaram comparar o barulho de uma carroça vazia e as atitudes de
algumas pessoas:
B4: “Eu entendi que algumas pessoas são que nen uma carroça porque
fazem barulho encomodam e são chatas”.
B9: “Entendi que a pessoa quanto mais vazia é mais barulho faz. Ex: sendo grosseiro(a), interrompendo conversas, se achando que é o dono(a) de tudo,
etc.”
3.2 DESCRIÇÃO DOS DADOS REFERENTES À LEITURA DO TEXTO “RELATO DE
OCORRÊNCIA EM QUE QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA
COINCIDÊNCIA”
3.2.1. Escola “A”
Já na leitura do texto “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência”, os 23 alunos pesquisados da escola A tiveram as
seguintes percepções sobre o escrito:
87% dos alunos extraíram informações da parte inicial do texto:
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43
A9: “Eu entendi que no dia 3 de uma vaca caminhava pela ponte do Rio
coreado em direção a o Rio de Janeiro um onibus de passageiro trafega em
direção a São Paulo”.
A11: “Eu entendi que no mes de maio um ônibus estava vindo do Rio de
Janeiro para São Paulo e tinha uma vaca na ponte, o ônibus bateu na vaca e
ela moreu”.
13% dos alunos mencionaram superficialmente a necessidade de que as
pessoas sejam mais solidárias umas com as outras:
A8: “Eu entendi que a gente não pode canhar as coisas”.
A13: “Eu entendi que não pode ser cainho, não pode querer só para gente. Porque se alguma vez a gente precisar de alguma coisa eles vão emprestar”.
3.2.2 Escola “B”
Quanto aos 15 alunos da escola B, constatou-se o seguinte:
60% dos alunos prenderam-se ao conteúdo textual:
B5: “Que aconteceu um acidente em cima de uma ponte, com um ônibus
que ia do Rio de Janeiro para São Paulo e uma vaca que ia de São Paulo para o
Rio de Janeiro”.
B6: “Que tem um acidente e uma vaca morrem.
20% dos alunos enfatizaram a despreocupação das pessoas com os acidentados:
B8: “Em uma madrugada, um ônibus está passando em uma ponte, mas
lá está uma vaca, o motorista tenta desviar e bate na vaca, a vaca morre e o
ônibus cai no rio, muitos morreram. Depois vem várias pessoas para se aproveitar da vaca morta (pegar sua carne) e nem ligaram as pessoas mortas”.
B9: “Entendi que a vaca é dividida em várias pessoas e as pessoas nem
se preocupam com as pessoas do acidente”.
20% dos alunos obtiveram interpretações variadas, isto é, enfocaram
suas respostas em outros pontos como:
B1: “Que o motorista atropelou uma vaca na ponte pois está muito rápido”.
B4: “Eu entendi que se a gente for andar de carro tem que cuidar os animais e a estrada”.
44
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3.3 ANÁLISE DAS RESPOSTAS REFERENTES AO TEXTO “CARROÇA VAZIA” E
“RELATO DE OCORRÊNCIA EM QUE QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É
MERA COINCIDÊNCIA”
3.3.1 Escola “A”
Na leitura do texto “Carroça vazia”, os dados revelam que a grande maioria dos alunos da escola A copia partes do texto, demonstrando que não
constrói a compreensão, apenas extrai algumas informações. No exemplo A6,
constata-se que o aluno inicia sua resposta buscando demonstrar que se trata
de uma construção pessoal (“eu entendi”), contudo, no restante da resposta,
limita-se a copiar as primeiras linhas do texto
A6: “Eu entendi que serta manhã meu pai munto sábio, convidou-me a
dar um passeio no bosque e eu aceitei com muito praser. Ele se deteve numa
clareira e depois de um pequeno silêncio me perguntou: - Além do cantar dos
pássaros. Você está ouvindo mais alguma coisa? Apurei os ouvidos alguns segundos e respondi: - Um barulho de carroça”.
Dessa forma, não se evidencia uma prática de interação entre o alunoleitor e o texto. Tal ocorrência pode ser explicada como resultado da tarefa
escolar que orienta para a localização e cópia de trechos do texto como a resposta “certa”.
Já na resposta do aluno A14, pode-se perceber que há uma diferenciação na leitura:
A14: “Eu entendi que no texto tinha um menino que foi dar um passeio
com seu pai e ele deu alguns exemplos, que quando a carroça está vasia ela faz
mais barulho e quando nós entramos na carroça faz pouco barulho e eu entendi com isso que tem pessoas que ficam gritando querendo ser o maior que
sempre tem mais, as pessoas tem se respeitar”.
O aluno A14 elabora a resposta resumindo a história e estabelecendo
conexão entre suas experiências e o texto, na medida em que compara os ruídos de uma carroça vazia e a conduta de algumas pessoas que querem sobressair-se em relação às demais, “querendo ser o maior que sempre tem mais”.
Verifica-se, também, que ao se referir à carroça, utiliza a primeira pessoa do
plural (nós), demonstrando uma marca de seu lugar social. É importante salientar que a carroça faz parte de sua realidade, pois todos os alunos da escola A
residem na área rural, onde a carroça é um dos meios de transporte. Quando
A14 menciona “as pessoas tem se respeitar”, verifica-se um valor social que é
adquirido e perpetuado pelo aluno em suas práticas de interação. Pode-se
afirmar, então, que o aluno estabelece diálogo com o texto, pois leva em conta
os conhecimentos que ele traz consigo para construir sentidos.
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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No que se refere ao texto “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência” percebe-se, também, que a grande maioria se
restringe a reproduzir as palavras do texto. O aluno A10, por exemplo, assim
responde:
A10: “Quem primeiro se retira é Elias com a mulher as despojos da vaca
estão estendidos numa poça de sangue. João chana com uim assobio seus dois
auxiliares”.
O aluno “escolhe” algumas linhas do texto e as reproduz, não demonstrando a compreensão do texto. Trata-se de, simplesmente, cumprir a tarefa
que lhe foi determinada.
Poucos alunos mostram algum distanciamento do escrito para responder à pergunta. Um exemplo é o aluno A21, que inicia a resposta com informações presentes no texto (vaca e o acidente do ônibus), entretanto adota uma
atitude valorativa frente ao conteúdo quando se refere à vaca:
A21: “Que eles bateram numa vaca e pegaram toda a carne da vaquinha, coitadinha. que uma vaca queria ir para o Rio de Janeiro mas o motorista
bateu nela e ela morreu”
Embora não tenha apresentado reflexões sobre os motivos que levaram
as pessoas a disputar a carne do animal, o aluno consegue reconstruir com as
suas palavras o enredo, manifestando conhecimento da estrutura narrativa.
Nota-se, ainda, que o aluno usa o substantivo vaca no diminutivo para expressar algum sentimento de piedade para com o animal. Tal ocorrência pode ser
explicada pelo fato de ele morar no interior e de que o animal faz parte de seu
cotidiano, podendo assim lhe representar algum valor. Conforme Dell’Isola
(1996), os espaços lacunares presentes em todo texto são preenchidos também com as condições afetivas do leitor.
Analisemos outros dois exemplos:
A8: “Eu entendi que a gente não pode canhar as coisas”.
A13: “Eu entendi que não pode ser cainho, não pode querer só para gente. Porque se alguma vez a gente precisar de alguma coisa eles vão emprestar”.
Observa-se que os alunos A8 e A13 enfatizam suas respostas nas ações
das personagens, as quais não dividem suas facas, facões e sacos umas com as
outras para abaterem a vaca. Isso evidencia que mesmo não apresentando
reflexões sobre os motivos que levaram os moradores a ignorarem as pessoas
mortas, os alunos conseguem tecer comentários relevantes sobre a falta de
solidariedade. Outro aspecto que pode ser notado na escola A é com relação
ao vocabulário utilizado pelos alunos, pois alguns usam algumas palavras da
variedade não padrão da língua portuguesa, por exemplo, “canhar”, “cainho”.
46
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Geralmente essas palavras, que revelam a procedência dos alunos – marcas de
seu lugar social – são ignoradas pela escola, por se tratar de palavras que não
condizem com a variedade padrão da nossa língua, porém se trata de um repertório de conhecimentos adquirido pelo aluno no convívio social.
3.3.2 Escola “B”
Na leitura do texto “Carroça vazia”, os alunos da escola B tiveram uma
menor porcentagem de cópias. Assim, pode-se afirmar que tais alunos estão
melhor preparados para o exercício da leitura, pois uma grande parte deles
ativa seus conhecimentos e interage com o texto. Isso se evidencia na resposta
do aluno B10:
B10: “Que tem gente que quer ser mais rico e glamuroso que os outros e
isso é tipo a carroça que faz barulho e irrita os outros e não podemos ser assim”.
Observa-se que o aluno relaciona a carroça com o comportamento de
algumas pessoas. Assim, ele ativa seus conhecimentos prévios, conciliando-os
com o texto. Pode-se dizer que ele participa de forma ativa na leitura e apresenta uma percepção reflexiva, demonstrando que na convivência social as
pessoas não devem ter o comportamento semelhante ao de uma carroça vazia.
Na leitura do segundo texto, verificam-se, por parte do grupo B, melhores resultados em comparação com o grupo A. Entretanto, percebe-se um número elevado de alunos, 60%, que retira as palavras do texto para responder à
questão proposta:
B5: “Que aconteceu um acidente em cima de uma ponte, com um ônibus
que ia do Rio de Janeiro para São Paulo e uma vaca que ia de São Paulo para o
Rio de Janeiro”.
B3: “Que nenhuma semelhança tem coincidência”.
Conforme a concepção interacionista, a compreensão de um texto não
depende apenas da decodificação de signos lingüísticos. Na realidade, o ato de
ler consiste num conjunto que envolve também o conhecimento que o leitor
tem sobre a língua, seu conhecimento de mundo, suas crenças e sua experiência de vida. Dessa forma, se a maioria dos alunos da escola B se restringe ao
conteúdo textual, pode-se dizer que na leitura do segundo texto não houve um
processo de interação entre leitor e texto.
Constata-se que o mesmo grupo de alunos apresentou desempenho diferenciado na leitura dos dois textos narrativos. Compreende-se que a extensão do texto causou essa diferenciação. A narrativa “Relato de ocorrência em
que qualquer semelhança não é mera coincidência” é mais extensa que “CarA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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roça vazia”, fator esse que pode ter gerado um desinteresse pela leitura e reflexão. Supõe-se, assim, que a escola pode estar acostumando os alunos à leitura de textos curtos e simplificados, prejudicando a formação plena do leitor.
Analisam-se na seqüência algumas respostas dadas por aqueles alunos
que procuraram não repetir o conteúdo textual:
B11: “Que aconteceu um acidente numa ponte um ônibus bateu na vaca
e os passageiros morreram mas os vizinhos da ponte queriam só a carne da
vaca e nem se preocuparam com as pessoas do acidente que estavam mortas”.
No início da argumentação, o aluno apresenta insegurança em responder com suas próprias palavras, pois resume parte da história com as palavras
do autor. Todavia, quando diz “os vizinhos queriam só a carne e nem se preocuparam com as pessoas do acidente”, o aluno B11 revela uma preocupação
com o fato ocorrido. Assim, ele participa de forma mais ativa na leitura, pois dá
sentido às ações das personagens e expressa sua opinião na resposta.
Já o aluno B1 enfoca sua resposta em outro ponto, o qual corresponde à
velocidade do motorista:
B1: “Que o motorista atropelou uma vaca na ponte, pois está muito rápido”.
Mesmo não compreendendo a problemática da narração, pode-se dizer
que o aluno cumpriu seu papel de leitor, pois sua argumentação trouxe um
sentido a mais para o texto. Subentende-se que a resposta do aluno, enfatizando a velocidade, está de acordo com sua realidade de vida, pois o mesmo
reside no centro da cidade e seu convívio com carros e outros automóveis é
freqüente, sendo assim, o aluno possui consciência sobre o trânsito, conhecimento esse que ele adquiriu em sua vivência.
Outro exemplo demonstra construção semelhante à do aluno B1:
B4: “Eu entendi que se a gente for andar de carro tem que cuidar os animais e a estrada”.
Pode-se afirmar que, ao dizer “Eu entendi que se a gente for andar de
carro...”, o aluno já teve ou tem experiência com automóveis. Seu conhecimento de mundo foi ativado no ato da leitura quando se inclui no texto, e ao
continuar “... tem que cuidar os animais e a estrada”, o aluno B4 deixa seu
ponto de vista e tenta explicar a preocupação que se deve ter com a direção e
com os animais. Tratam-se de conhecimentos baseados na experiência vivencial.
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3.4 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A atividade proposta revelou que os alunos da escola A, em sua maioria,
destacam-se pela atitude de reproduzir o conteúdo, retirando os fatos e informações presentes no material escrito. Os alunos da escola B tiveram um
melhor desempenho do que os da escola, entretanto, em textos mais extensos
também apresentam tendência a copiar o que está explícito na superfície textual. Esse ciclo vicioso de apego exagerado ao texto – que reflete uma concepção de leitura como extração de significados – é de certa forma uma realidade
rotineira na vida dos alunos, rotina que contribui para a formação de leitores
acríticos, condicionados a apenas identificar elementos explícitos na superfície
textual, sem atitude ativa e questionadora diante da palavra escrita. De acordo
com estudiosos como Angelo (2005) e Araújo (2001), o leitor acredita estar a
par do conhecimento que o texto lhe proporciona, porém, copiar ou parafrasear o que o autor escreve pode, num futuro próximo, acarretar dificuldades
para o leitor, na interação com diferentes textos e, conseqüentemente, afetar
a capacidade crítica do aluno.
Um pequeno número de alunos procurou ativar seus conhecimentos e
estabelecer diálogo com o texto. Esses conhecimentos demonstrados por esse
grupo foram adquiridos no cotidiano e revelaram-se na leitura por meio da
variedade lingüística utilizada (“canhar”, “cainho”, “glamuroso”) e do uso da 1ª
pessoa (“eu entendi”, “nós”, “a gente”), por meio da perpetuação de valores
afetivos e sociais (“coitadinha”, “as pessoas tem se respeitar”, “não querer só
pra gente”), por meio do enfoque dado às ações das personagens (por exemplo, na ênfase à velocidade do motorista e aos cuidados no trânsito). Ao manifestarem esses conhecimentos, os alunos conseguiram distanciar-se das palavras do autor e produzir um sentido a mais para o texto, mesmo que a
resposta não seja aquela que o professor poderia determinar como certa.
Nota-se que faltou aos alunos das escolas pesquisadas o conhecimento
das contradições da realidade, o qual poderia favorecer o desenvolvimento de
argumentos e o posicionamento crítico. Por exemplo, na leitura do texto “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência”, não
se evidenciou nenhum comentário acerca do porquê as pessoas demonstrarem preocupação apenas em apanhar a carne da vaca, ignorando as vítimas do
acidente. De acordo com Silva (1991, p. 80),
Leitura sem compreensão e sem análise dos referenciais indiciados pelo texto, à
luz das experiências de um leitor situado; leitura sem o embate e confronto do
contexto do escritor com o contexto do leitor; enfim, leitura sem cotejo qualitativo, gerador de mais significados para o leitor a partir de uma ou mais incursões
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num determinado texto, constitui-se em tarefa bancária ou mecânica e, por isso
mesmo, “desastrosa” na área de aprendizagem da leitura.
Por isso, é urgente que a prática de leitura nas escolas seja redimensionada, deixando de ser o cumprimento de uma formalidade para se tornar uma
atividade de questionamento, confronto e construção de sentidos, um momento em que o aluno pode ouvir o que o outro tem a dizer e oferecer-lhe
uma contra-palavra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando o primeiro objetivo dessa pesquisa – diagnosticar a competência leitora dos alunos da 5ª série do ensino fundamental – pode-se afirmar
que os alunos, de modo geral, não apresentam desempenho satisfatório na
leitura, visto que a maioria ainda encontra-se inserida no modelo escolar caracterizado pela tentativa de localizar e copiar as informações contidas no texto e denominá-las como a resposta “correta”.
O segundo objetivo era verificar que conhecimentos prévios são ativados pelos alunos durante a leitura. Aqueles que privilegiam o procedimento de
extração, renunciando as palavras próprias, não revelam na leitura conhecimentos sobre o mundo e sobre as contradições da realidade, os quais poderiam favorecer a interação e o exercício da leitura crítica. Já aqueles que não se
prendem ao conteúdo textual e interagem com o texto, manifestam em suas
respostas conhecimentos que têm a ver com a sua realidade vivencial e que
atuam também como marcas do lugar social, embora ainda não revelem atitudes questionadoras, de confronto e contestação.
Ao finalizar este artigo, destaca-se a idéia de que a formação de leitores
ativos e críticos só será concretizada se a escola romper com as práticas tradicionais de ensino de leitura, que perpetuam os procedimentos reprodutivistas,
e passar a propiciar o diálogo contínuo entre textos e entre leitores, estimulando, assim, a discussão, a reflexão, o confronto, a formulação de argumentos
e a tomada de decisão.
REFERÊNCIAS
ANGELO, C. M. P. O leitor e o mundo: leitura de alunos de séries finais de ciclo. Maringá, PR,
2005. Dissertação de mestrado.
ARAÚJO, E. G. A construção de sentido na leitura por crianças de meio de letramento diferenciados. Campinas, 2001. Dissertação de mestrado.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/ SEF, 1998.
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COLOMER, T.; CAMPS, A. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2002.
DELL’ISOLA, R. L. P. A interação sujeito-linguagem em leitura. In: MAGALHÃES, I. (Org.). As múltiplas faces da linguagem. Brasília: UNB, 1996, p.69-75.
GOODMAN, K. S. O processo da leitura: considerações a respeito das línguas e do desenvolvimento. In: FERREIRO, E; PALACIO, M, G (Org.). Os processos de leitura e escrita: novas perspectivas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987, p.11-22.
KATO, M. A. O aprendizado da leitura. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989.
KLEIMAN, A. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes, 1996.
LEFFA, V. J. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Porto Alegre: DC Luzzatto,
1996.
MOITA LOPES, L. P. Oficina de lingüística aplicada. Campinas,: Mercado de Letras, 1996.
SILVA, E.T. da. De olhos abertos: reflexões sobre o desenvolvimento da leitura no Brasil. São
Paulo: Ática, 1991.
SMITH, F. Leitura significativa. Trad. Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artmed, 1999.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Trad. Claudia Schilling. 6. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
ANEXOS
1)
Carroça vazia
Certa manhã, meu pai, muito sábio, convidou-me a dar um passeio no
bosque e eu aceitei com prazer. Ele se deteve numa clareira e depois de um
pequeno silêncio me perguntou:
- Além do cantar dos pássaros, você está ouvindo mais alguma coisa?
Apurei os ouvidos alguns segundos e respondi:
- Estou ouvindo um barulho de carroça.
- Isso mesmo, disse meu pai, é uma carroça vazia.
Perguntei ao meu pai:
- Como pode saber que a carroça está vazia, se ainda não a vimos?
- Ora, respondeu meu pai, é muito fácil saber que uma carroça está vazia
por causa do barulho. Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz.
Tornei-me adulto e, até hoje, quando vejo uma pessoa falando demais,
gritando (no sentido de intimidar), tratando o próximo com grossura inoportuna, prepotente, interrompendo a conversa de todo mundo, querendo demonstrar que é a dona da razão e da verdade absoluta, tenho a impressão de ouvir a
voz do meu pai dizendo: “Quanto mais vazia a carroça, mais barulho ela faz...”.
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(Texto veiculado na Rede Mundial de Computador – Internet; autor desconhecido)
2)
Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência
Na madrugada do dia 3 de maio, uma vaca caminha na ponte do rio Coroado, em direção ao Rio de Janeiro. Um ônibus de passageiros trafega em
direção a São Paulo. Quando vê a vaca, o motorista tenta desviar. Bate na vaca, o ônibus cai no rio.
Em cima da ponte a vaca está morta. Debaixo da ponte estão mortos:
uma mulher não identificada, Olívia Monteiro, Manoel dos Santos, o filho de
Manoel de um ano e Eduardo Varela.
O desastre foi presenciado por Elias Gentil dos Santos e sua mulher Lucília, residentes nas cercanias. Elias manda a mulher apanhar um facão em casa.
Ele está preocupado. Lucília corre. Surge Marcílio. Elias olha com ódio pra ele.
Aparece também Ivanildo. Elias está com raiva de todo mundo. Suas mãos
tremem. Elias cospe no chão.
“Bom dia, seu Elias”, diz Marcílio. “Que coisa”, diz Ivanildo, depois de
debruçar na amurada da ponte e olhar os bombeiros e os policiais embaixo.
Em cima da ponte, além do motorista de um carro da polícia estão apenas Elias, Marcílio e Ivanildo.
“A situação não anda boa não”, diz Elias olhando para a vaca. “É verdade”, diz Marcílio. Os três olham para a vaca. Ao longe se vê o vulto de Lucília,
correndo. Elias recomeçou a cuspir. “Se eu pudesse também era rico”, diz Elias.
Marcílio e Ivanildo balançam a cabeça, olham para a vaca e para Lucília, que
chega correndo. Elias segura o facão na mão, como se fosse um punhal; olha
com ódio para Marcílio e Ivanildo. Corre para cima da vaca. “No lombo é onde
fica o filé”, diz Lucília. Elias corta a vaca.
Marcílio e Ivanildo correm em grande velocidade. “Eles vão apanhar as
facas”, diz Elias com raiva. “Aquele mulato, aquele corno. Você devia ter trazido uma bolsa, uma saca, duas sacas, imbecil. Vai buscar duas sacas”, ordena
Elias. Lucília corre.
Elias já cortou dois pedaços de carne quando surgem correndo Marcílio
e sua mulher Dalva, Ivanildo e sua sogra Aurélia e Erandir Medrado com seu
irmão. Todos carregam facas e facões. Atiram-se sobre a vaca.
Lucília chega correndo e mal pode falar. Ela mora no alto do morro. Lucília corta a vaca.
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“Alguém me empresta uma faca se não eu apreendo tudo”, diz o motorista do carro da polícia. Os irmãos Medrados, que trouxeram vários facões,
emprestam um ao motorista.
Com uma serra, um facão e uma machadinha aparece João Leitão, o açougueiro, acompanhado de dois ajudantes. “O senhor não pode”, grita Elias.
João se ajoelha perto da vaca. “Não pode”, diz Elias dando um empurrão em
João. João cai.
“Não pode”, gritam todos, com exceção do motorista da polícia. João se
afasta, pára; fica observando. A vaca está semidescarnada. Não foi fácil cortar
o rabo. A cabeça e as patas ninguém conseguiu cortar. As tripas ninguém quis.
Elias encheu as duas sacas. Os outros homens usam as camisas como se
fossem sacos.
Quem primeiro se retira é Elias com a mulher.
Os despojos da vaca estão estendidos numa poça de sangue. João chama com um assobio seus dois auxiliares. Um deles traz um carrinho de mão. Os
restos da vaca são colocados no carro. Na ponte fica apenas a poça de sangue.
(Rubem Fonseca – texto adaptado)
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LEITURA, EXPERIMENTAÇÃO ARTÍSTICA E PRODUÇÃO TEXTUAL NAS SÉRIES
INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Maria Emília Lubian1
Resumo: A produção textual baseada na leitura e expressão artística faz com que
os alunos demonstrem interesse em divulgar suas idéias, isto porque envolve
uma atividade prazerosa, há interlocutores reais para os textos produzidos e
também o auxilio dos colegas para que os textos se tornem melhores na provocação de sentidos dentro do gênero escolhido. Dessa forma, relacionamos esta
abordagem com a enunciação, visto que esta visão contempla o “ter o que
dizer”, “a quem dizer” e a descoberta de diferentes maneiras de “como dizer” na
produção textual. As leituras de gêneros textuais narrativos e poéticos, observando as suas características de forma e conteúdo aplicadas na produção dos
textos pelos grupos de alunos, bem como a divulgação destes em “histórias na
sacola”, em sarais, hora do conto, dramatização envolvendo as produções dos
alunos e textos dos autores trabalhados, são apresentados neste trabalho em
escola da rede municipal de ensino de Não-Me-Toque com crianças de terceira e
quarta séries. Dessa forma, o nosso trabalho objetiva relacionar práticas de leitura e escrita, envolvendo a expressão artística desenvolvidas com alunos de
séries iniciais do ensino fundamental.
Palavras-Chave: Leitura, Produção textual, Expressão artística.
Resumen: La produción textual baseada en la lectura y en la expresión artística
hace con que los alumnos demonstren interés en divulgar sus ideas, eso porque
envuelve una actividad prazerosa, hay interlocutores reales para los textos produzidos y también la ayuda de los compañeros para que los textos se tornem
mejores en la provocación de sentidos dentro del género eligido. De esa forma,
relacionamos esta abordage con la enunciación, una vez que esa visión contempla el “tener el que decir”, “a quien decir” y la descoberta de diversas maneras
de “como decir” en la produción de textos. Las lecturas de los géneros textuales
narrativos e poéticos, mirando las sus características de forma y contenido en la
produción de los textos por la clase de alumnos, bien como la divulgación de esas
en “historias en la bolsa”, en sarais, hora del cuento, dramatizaciones de las produciones de los alumnos e textos de los escritores estudiados, son apresentados
en este trabajo en la escuela de la rede municipal de ensino de Não-Me-Toque
con chicos de las clases tercera e quarta. Así, el nuestro trabajo objetiva interrelacionar prácticas de lectura y escrita, envolvendo la expresión artística desenvolvidas con alumnos de las clases iniciales de la enseñanza primaria.
Palabras Llave: Lectura, Produción textual, Expresión artística.
1
Mestre em Letras — Estudos Lingüísticos pela Universidade de Passo Fundo (UPF); Professora
do Ensino Fundamental na Rede Municipal de Ensino de Não-Me-Toque, RS; Coordenadora
da “Educação em (re)vista” da referida rede e professora da área sociolingüística do Magistério Público Estadual no Núcleo de Educação de Jovens e Adultos e de Cultura Popular de Carazinho, RS. Também é professora de cursos de pós-graduação pela Portal Faculdades, RS e
Aupex-FACEL, SC; endereço eletrônioco: [email protected].
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INTRODUÇÃO
As grandes nações escrevem suas autobiografias em três manuscritos: o livro de
história, o livro das palavras e o livro da arte (John Ruskin. Filósofo, crítico e historiador de arte britânico).
Bakhtin (2003), retomado por Geraldi (1993), afirma que todo enunciado
deve possuir uma razão para ser produzido, uma vez que, a partir da finalidade, pode-se construir um texto na escola ou para a escola, construindo-se,
assim, uma produção textual ou uma redação. Contudo, vêem-se ainda exercícios de escrita que não evidenciam esse fator, fazendo com que o estudante
não saiba por que escreve.
Este artigo apresenta o resultado de uma experiência escolar, vinculada
ao projeto “História na Sacola” desenvolvido na EMEF Santo Antônio pela
quarta série do ensino fundamental do turno da tarde, com a colaboração da
quarta e terceira séries do turno da manhã. Este projeto visa o desenvolvimento de práticas de leitura, produção textual e divulgação destas por meio da
expressão artística, refletindo sobre a promoção da escrita como uma produção de texto na escola e não apenas de uma redação.
1 A FINALIDADE DA PRODUÇÃO TEXTUAL NA ESCOLA SEGUNDO A
PERSPECTIVA DA ENUNCIAÇÃO
Para Bakhtin (2003, p. 281), um dos elementos essenciais para a totalidade acabada do enunciado, que permite a possibilidade de responder é “o
intuito, o querer-dizer do locutor”, ou seja, a finalidade. Para o autor, independente do tipo de enunciado, o interlocutor capta, compreende e sente o querer dizer do locutor. Nas aulas, em muitas ocasiões, a produção é determinada
pelas propostas presentes nos livros didáticos e a finalidade da produção textual, não fica clara para o aluno, fazendo com que este não saiba por que escreve. Noutras ocasiões, não há clareza quanto à intencionalidade que precisa
ser contemplada nos textos de forma que o aluno não vê uma função comunicativa para seu texto, a não ser cumprir esta tarefa solicitada pela professora.
A produção resultante desse tipo de exercício apresenta um tratamento superficial do tema e a falta de posicionamento do autor.
Bakhtin (2003) aponta que, o intuito (elemento subjetivo) entra em
combinação com o objeto do sentido (objetivo) para formar uma unidade indissolúvel. Logo, a partir da junção do subjetivismo do indivíduo com o objeti56
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
vo geral da escrita, forma-se o enunciado (unidade indissolúvel). Embora, o
intuito deva apresentar as marcas individuais do sujeito, o que é possível constatar em textos de alunos é a falta de posicionamento ou expressão de seus
pontos de vista.
Para Lerner (2002), o processo de produção de textos é bem mais que
um exercício, sendo através dele a expressão do pensamento, por isso, lança
um desafio aos professores:
o desafio é promover a descoberta e a utilização da escrita como instrumento de
reflexão sobre o próprio pensamento, como recurso insubstituível para organizar
e reorganizar o próprio conhecimento(...)”. O desafio é, em suma, combater a
discriminação que a escola opera atualmente, não só quando cria o fracasso explícito daqueles que não consegue alfabetizar, como também quando impede
aos outros – os que aparentemente não fracassam – chegar a ser leitores e produtores de textos competentes e autônomos. O desafio que devemos enfrentar,
nós que estamos comprometidos com a instituição escolar, é combater a discriminação desde o interior da escola; é unir nossos esforços para alfabetizar todos
os alunos, para assegurar que todos tenham oportunidades de se apropriar da
leitura e da escrita como ferramentas essenciais do processo cognoscitivo e de
crescimento pessoal (LERNER, 2002, p. 28-29).
Na prática escolar, com relação à produção de textos, as aulas precisam
aproximar a escrita tal como ela ocorre nas situações cotidianas dos alunos na
escola e extra-escolares. Caso contrário, o aluno pode não saber o que dizer
nem como, pois escrever sobre o que não se identifica, ainda mais com a preocupação em uma estrutura formal em relação à apresentação do seu texto, se
torna inviável. Esta prática descaracteriza-se do objetivo da linguagem que é
estabelecer relação entre os indivíduos e os textos falados ou escritos. Revela
não a dificuldade do aluno em se expressar, mas sim a dificuldade do professor
em instaurar práticas de linguagem dialógicas para haver produções textuais
com marcas de autoria pelo grupo. Segundo, Lerner (2002, p. 18), se faz necessário fazer da escola “uma comunidade de escritores que produzem seus próprios textos para mostrar as suas idéias, para informar sobre fatos que os destinatários necessitam ou devem conhecer [...]”.
A partir das discussões respeito dos conhecimentos produzidos historicamente pelo homem e veiculados por textos e de experiências coletivas, não
pela assimilação destas informações, mas através do questionamento, da relação com a vida da transformação destas em conhecimentos é que se verifica
uma prática dialógica de produção textual. A partir do diálogo é possível expressar as idéias através da produção de textos orais e escritos, tendo em vista
que a produção é um processo e não um produto final. Todo o processo que
envolve discussões, debates, pesquisas, leituras de diferentes gêneros que
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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culminam na produção escrita são bastante viáveis, mas o mais importante
nisso é o “para quê” dessas práticas. Segundo, Koch (1998, p.26), o texto acontece a partir da interação: “[...] o texto pode ser concedido como resultado
parcial de nossa atividade comunicativa, que compreende processos, operações e estratégias que têm lugar na mente humana, e que são postos em ação
em situações concretas de interação social”. Porque, segundo Citelli (2003, p.
11), “estruturar um texto, integrando os vários níveis de sentidos, não é tarefa
fácil, e a reflexão só ganhará eficácia se vier acompanhada de experiências e
fatos significativos.” Ao contrário de uma prática monológica de linguagem, em
que para tudo o que se tem a dizer existe uma expressão apropriada, adequada, à espera de seu usuário e que desvaloriza as variações lingüísticas, o dialogismo vem restaurar a verdadeira função da linguagem que é a interação. Ao
instituir uma prática intersubjetiva, que leve em conta a reflexão, será possível
resgatar um discurso mais pessoal, mais autêntico de nossos alunos que se
sentirão capazes de se expressar como autores. Quando o aluno/autor passa a
conhecer de perto, na sua materialidade, o leitor de seus textos, pode debater
suas idéias, começa a pensar mais concretamente num interlocutor para a sua
produção escrita.
Na perspectiva dialógica, a compreensão é obtida através da negociação
de sentidos entre locutor e interlocutor, é através da interlocução que os sentidos e a própria linguagem se constituem, visto que os sujeitos não são sempre os mesmos e a própria interlocução molda-os num processo evolutivo
constante. Isso ocorre porque novas informações vão sendo incorporadas e
reajustadas às anteriores e, através disso, vão reconstruindo o próprio sujeito.
Por isso, se faz necessário observar estratégias visando o caráter dialógico da
linguagem, tendo em vista um interlocutor real. Assim, uma prática pedagógica
baseada na interação, facilita ao educando encontrar as ferramentas de que
precisa para, ao reconhecer o seu interlocutor, fazer uso das qualificações pertinentes para desenvolver um discurso eficaz e ao alcance do outro.
Nesta perspectiva, Geraldi (1995, p. 136) faz uma diferenciação entre
“produção de texto” e “redação”, afirmando que: “nesta, produzem-se textos
para a escola; naquela produzem-se textos na escola.” Redação, para o autor,
é um texto escrito sobre um tema proposto (ou imposto) pelo professor em
que o aluno deve pôr em prática as regras gramaticais aprendidas. O exercício
de redação é artificial, simulado, pois o texto não possui interlocutor e, portanto, não se configura por uma interação. A redação é uma atividade isolada em
que se privilegia a forma, em detrimento do conteúdo. O aluno precisa mostrar
que sabe escrever, e, por isso, preenche a folha em branco com palavras bonitas, agradáveis aos olhos do professor. A voz do aluno é calada, para em seu
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lugar, emergir a linguagem institucionalizada, conforme aponta Geraldi (1995).
Assim, a redação não é trabalhada como uma prática social, pois a escola, em
vez de possibilitar ao aluno um espaço para experiências pessoais, apresenta
atividades que correspondem a “episódios de reprodução”, priorizando exercícios gramaticais ou registro de conteúdos previstos.
Para deixar clara a distinção entre redação e produção textual, Geraldi
(1995) apresenta algumas condições importantes para se produzir textos. Segundo o autor, é necessário que se tenha “o que dizer”, “uma razão para dizer”, que “o locutor se constitua como tal” e que “saiba escolher estratégias
adequadas”, de acordo com suas necessidades para a escrita. Para tanto, é
preciso que o professor permita ao aluno que se constitua como sujeito de
suas produções, de seus discursos e, que realmente produza seus textos dentro de uma situação real de comunicação, sabendo para quem dizer, sobretudo, o que dizer, utilizando, conforme destaca o autor, de estratégias adequadas para tal. Nesta perspectiva, são levadas em consideração as funções da
escrita, as variações lingüísticas, a intencionalidade e a imagem do interlocutor, que pode ser real ou virtual. A escrita deixa de ser um mero exercício escolar, para adquirir um caráter dinâmico e processual, no qual o aluno se constitua como um sujeito ativo, passando a estabelecer uma real interação com seu
interlocutor.
Produção de textos, ao contrário do “exercício de redação”, é um processo dinâmico, de interação. É uma atividade em que, na opinião de Geraldi
(1995, p. 136) o sujeito articula, aqui e agora, um ponto de vista sobre o mundo, vinculado a uma forma discursiva de maneira natural com o que se tem a
dizer. Nesse aspecto, o texto é visto como um processo em que os sujeitos
concretizam seus discursos, em que estabelecem interlocução, cientes da real
função da escrita nas suas diversas situações de uso. É uma atividade dialógica,
em que a linguagem é vista como forma de interação humana, em que o aluno
saiba de fato “o que dizer”, “para quem dizer” e “como dizer.” Em outros termos, a produção de textos é uma atividade em que os sujeitos produzem discursos que se concretizam nos textos. Nesta atividade, quando um tema é
proposto, há um levantamento de idéias relacionadas ao assunto, com discussões que possibilitem argumentações a favor ou contra as idéias enfocadas,
sem controle ou diretividade pelo professor, para haver o desenvolvimento da
reflexão do aluno em torno da escrita. Nesse sentido, nas produções, aparece
a heterogeneidade de vozes que não reproduzem simplesmente a palavra dita
pela escola ou as palavras alheias, mas a palavra do próprio aluno.
Em consonância com as idéias de Geraldi (1995, 2001), não se pressupõe
que os alunos tenham ou não dom para a produção, mas são orientados para
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adquirir uma capacidade comunicativa, tanto no que se refere ao domínio dos
mecanismos básicos da linguagem, quanto à postura crítica da realidade. O
trabalho pedagógico não se realiza em função de um programa preestabelecido; ele acontece no cotidiano escolar, levando em conta as necessidades dos
alunos na construção de conhecimentos. Sendo assim, o texto não é visto como produto, mas como um processo que precisa ser explorado, exposto, valorizado e vinculado aos usos sociais. Quanto ao professor, não se impõe como
avaliador e juiz dos textos dos alunos, mas como um representante do leitor a
que o texto se destina. Ele age como um interlocutor, encarando o aluno como
sujeito de seu discurso. Com esse procedimento o professor questiona, sugere,
provoca reações, exige explicações sobre as informações ausentes no texto,
contrapõe à palavra do aluno, refutando, polemizando, concordando e negociando sentidos mediante as pistas deixadas no texto. Tudo isso, para que a produção textual do aluno evolua em todos os níveis e alcance, de forma satisfatória, o efeito de sentido proposto por ele, sendo que este possa se sentir
valorizado ao ter o seu modo de pensar sobre a realidade, divulgado a diferentes interlocutores.
2 A PRODUÇÃO TEXTUAL A PARTIR DA LEITURA E DA EXPERIMENTAÇÃO
ARTÍSTICA
O gosto por estudar está presente nas primeiras séries escolares, pois
nestes anos a arte e o lúdico fazem parte do cotidiano escolar. É nestes momentos que o educando tem a possibilidade de expressar sua interioridade de
uma maneira prazerosa e espontânea e a arte manifesta-se como forma de
expressão nas aulas. Por isso, despertar o gosto pela leitura nas séries iniciais
se torna um trabalho natural. As histórias, as lendas, as poesias, as músicas, a
expressão plásticas são apreciadas e necessárias, pois a partir da motivação
que trazem ao aluno, ajudam a despertar a sua capacidade discursiva. Ou seja,
a literatura passa a ter a função de despertar novas experiências aos jovens
leitores, conforme aponta Caldin (2001) sobre a literatura infantil na contemporaneidade. Para a autora, a literatura deve facilitar a compreensão e desvelar dos dogmas que a sociedade impõe através do questionamento destes através da leitura. A literatura infantil contemporânea, segundo Caldin (idem),
oferece uma nova concepção do texto escrito que é aberto a múltiplas leituras
e faz da literatura um suporte para a compreensão do mundo. A literatura ao
abrir espaço para o questionamento, favorece a reflexão que transpassa tanto
a interpretação da obra quanto da realidade do aluno.
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Levando em conta esta possibilidade apresentada pela literatura infantil,
torna-se mais fácil redigir uma história se houver a leitura, a dramatização, a
ilustração de narrativas do gênero a ser produzido. Ainda mais, se as histórias
são lidas e comentadas no grupo, cada um expondo numa roda de conversa o
que mais lhe chamou a atenção, os personagens e suas ações, as idéias apresentadas na obra. Para referenciar esta idéia, citamos Citelli (2003, p. 11) que
afirma a respeito da produção textual: “estruturar um texto, integrando os
vários níveis de sentidos, não é tarefa fácil, e a reflexão só ganhará eficácia se
vier acompanhada de experiências e fatos significativos.” Mais adiante, a autora expõe, a partir de sua experiência, maneiras de proceder em atividades de
leitura e escrita em sala de aula: “o ponto de partida para o desenvolvimento
de cada proposta de redação é um trabalho de sensibilização que proporciona
aos participantes um mergulho prático, pois participativo e reflexivo, no trabalho de redigir” (CITELLI, 2003, p. 20). A autora afirma que a necessidade de a
produção acontecer com a participação de todos, incluindo o professor, sendo
que todos produzem e lêem os seus textos e os dos demais, através de um
processo de interação através do signo escrito. Citelli (idem, p. 20) destaca
como exemplo desta interação, a organização de varais de poesias musicados,
rápidas apresentações de textos, para que a escola possa ler a produção dos
colegas.
Concordamos que a sensibilidade artística está presente entre as crianças e adolescentes com a mesma intensidade com que estão descobrindo seus
sentimentos. A música e seus gêneros, a poesia, a dança, as artes visuais estão
ali registradas na sua expressão, no seu material escolar, nos seus ídolos. O
teatro é uma forma de ser outro, de viver outros sentimentos, de conhecer
outros mundos mesmo que seja só na platéia. Quando estão envolvidos com o
trabalho de montar uma apresentação teatral, ou improvisar um texto, estão
ali lendo e relendo, inventando enredos e falas, assumindo o discurso de um
personagem. Para o aluno que não é acostumado a ler como atividade escolar,
para conhecer seus ídolos lê, decora suas letras de música, revistas que falam
de sua vida, ao notar o sexo oposto, lê mensagens e poesias românticas e as
copia e volta a ler em seus cadernos, agendas, até mesmo faz acrósticos, inventa frases, poesias, que escreve em cartas para quem está apaixonado ou
mostra para amigos. Ao assistirem a filmes, novelas, seriados, idealizam os
seus ídolos, imaginam-se no lugar destes, observam todos os detalhes e depois
recriam novas situações para estes na sua mente. Imaginam-se atores, cantores famosos, imitam seu modo de ser, inserem no seu vocabulário o que estes
falam. Ou seja, os alunos lêem e muito, mas coisas que lhes trazem interesse,
não como imposição escolar.
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A poesia é muito apreciada pelos alunos, pela sua sonoridade e jogo de
palavras que mexem com sua imaginação. Ler, reconhecer diferentes poesias,
decorar os textos e dizer de foram dramatizada, desperta tanto a vontade de
ler mais quanto de inventar outras poesias. As crianças adoram ver a natureza,
as cores, os sentimentos expostos na poesia, tanto como adoram ouvir música.
Adoram ouvir músicas e dançar. Ao unir a música e a poesia num sarau, por
exemplo, entre alunos do ensino fundamental em que realizamos a experiência, os alunos demonstraram muito interesse nestas atividades, sempre sugerindo e querendo fazer mais. A música, a poesia, o teatro, as artes plásticas
unidas numa apresentação resultou em trabalhos muito interessantes. Inclusive, despertou a vontade de produzir textos para serem inseridos nas apresentações junto com os textos de poetas estudados pelo grupo. Enfim, acreditamos que as artes e sua linguagem vêm a contribuir no processo de ampliação
da capacidade de expressão dos alunos tanto na fala como na escrita. Torna as
aulas mais alegres e dinâmicas, o lúdico volta a fazer parte da aprendizagem,
reforçando a interação verbal entre os indivíduos, os textos e as artes, conforme apontam.
Para Micarello e de Freitas (2002), a leitura e escrita estimuladas a partir
de elementos culturais para além dos muros da escola, que possam encontrar
nestes instrumentos uma fonte de prazer e entretenimento. Também a leitura
cumpre um papel social ao favorecer o despertar da consciência cidadã, promovida pelo debate entre os leitores a respeito dos sentidos presentes, conforme explica Caldin (2001, p. 10) sobre a formação de leitores. Para a autora,
a leitura enquanto oportunidade de enriquecimento e experiência é primordial
na formação do indivíduo e do cidadão, porque aquele que lê é capaz de melhor desempenho em suas atividades e apresenta melhor aptidão para enfrentar os problemas sociais.
É importante para a produção, o conhecimento do que se quer dizer e
isso só é possível pela leitura, promovida através do diálogo entre os autores e
diferentes textos. Ninguém escreve do nada como um “Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela
primeira vez”, conforme aponta Bakhtin (2003, p. 300). Para o autor, na realidade da interação lingüística “cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias
de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera da
comunicação discursiva” (BAKHTIN, op. cit., p. 297). A leitura dos diferentes
textos a respeito do tema a ser trabalhado, o diálogo entre eles e sobre eles,
irá embasar a produção do texto. No entanto, somente esta perspectiva não
basta. Para o sujeito, aqui reconhecido como o aluno, se sentir um autor, precisa ter claro para si quem será o seu leitor. Este não pode ser apenas a figura
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solitária de um professor, que o lê principalmente como avaliador de sua capacidade de expressão, dando-lhe uma nota. Segundo Bakhtin (2003), é preciso
levar em conta um elemento fundamental do enunciado que é o seu direcionamento a alguém, o que irá definir a construção do seu enunciado tanto pelo
seu conteúdo, gênero e estilo.
Sendo assim, há uma motivação para a escrita se o sujeito reconhece o
seu leitor, também favorece a linguagem a ser empregada neste contexto. A
possibilidade de interação lingüística que reconhecemos na fala, deve estar
presente na escrita também, o que favorecerá a escolha das palavras, o gênero
a ser empregado nas diferentes situações de interlocução, favorecendo a expressão da intencionalidade, conforme aponta Bakhtin (2003). Para o autor,
reconhecemos os diversos gêneros do discurso na expressão oral, como a poesia presente nas músicas, a opinião de uma pessoa sobre um assunto, o relato
da vida dos mais velhos, a narração de fatos do noticiário, o drama, a comédia,
a ficção nos filmes, nas novelas, nos desenhos animados. No entanto quando
não existe o contato com estas formas nos livros, “em termos teóricos podemos desconhecer a sua existência” (BAKHTIN, 2003, p. 282, grifo do autor).
Então, para que seja possível se expressar com proficiência, fazendo uso dos
diversos gêneros, é preciso ter o contato com estes na escrita. Também com o
hábito da leitura somos capazes de perceber semelhanças deste texto com
outros, pela intertextualidade ali presente e também verificar a intencionalidade do autor.
A produção textual é favorecida pela leitura, no sentido que esta última
proporciona o contato com diferentes discursos presentes nos gêneros textuais, favorece através do debate a reflexão tanto sobre o conteúdo quanto sobre a forma de apresentação dos discursos nos diferentes textos e intencionalidades dos autores. As leituras, o debate proporciona a análise do que estas
dizem para si enquanto sujeito da interação verbal, para que ao produzir um
texto seja possível perceber o seu conhecimento do gênero aliado ao seu conhecimento de mundo. Ainda nos referimos a Caldin sobre a leitura e a formação do cidadão: “A leitura, portanto, dá voz ao cidadão, no sentido de que sua
interpretação pode gerar a transformação do mundo,” (2001, p. 11). Ou seja, a
consciência crítica também se forma pela leitura e o debate do que é lido, o
que se reflete na produção textual. Retomando palavras de Bakhtin (2003)
sobre a discursividade, ninguém faz uso da palavra sem ter um motivo, sem
direcionar-se para alguém, caso contrário este se torna um exercício sem sentido. Os sentidos dos enunciados nascem da interação entre os indivíduos e
textos, numa constante interação que constitui seus discursos.
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3 RELATO DE EXPERIÊNCIA, “HISTÓRIA NA SACOLA”
Para relacionar práticas de leitura e escrita dos gêneros narrativo e poético, envolvendo a expressão artística desenvolvidas com alunos de séries iniciais do ensino fundamental, organizamos junto a nossa comunidade escolar o
projeto: “história na sacola” em que os professores de 3ª e 4ª séries desenvolvem como seus alunos. Este projeto visa despertar o gosto pela escrita através
da expressão artística, através da ilustração dos textos produzidos, pela contação de histórias ou dramatização dos textos lidos e produzidos nos gêneros
trabalhados com os grupos nas outras turmas de séries iniciais, favorecendo a
divulgação tanto das leituras como das produções dos alunos.
Este trabalho surgiu a partir da discussão de dados do SAEB e SAERs,
provas nacionais e estaduais que mediram o nível de interpretação e produção
textual dos alunos, de 4ª e 8 séries e de 2ª e 5 séries. Observamos que nossa
escola obteve níveis abaixo da realidade das outras escolas municipais e estaduais de Não-Me-Toque. A partir de um debate em reunião de formação entre
as professoras, começamos a pensar em atividades que pudessem reverter
este quadro e, mais do que preparar para os próximos testes, discutimos possibilidades de favorecer o aprendizado dos usos da linguagem nos diferentes
contextos, para que os alunos sejam capazes de ler com competência, compreendendo as intencionalidades presentes nas obras. Para que com as leituras, também possa ser despertado o desejo de produzir textos, tendo em vista
a existência de leitores reais para as suas produções.
A Biblioteca ganhou um espaço próprio, reorganizado, com a aquisição
de diferentes obras de literatura e de pesquisa para educação infantil até as
séries finais do ensino fundamental. O nome eleito para este ambiente entre a
comunidade escolar foi “O mundo da imaginação”, o qual parece apropriado
pelas possibilidades que podem ser criadas a partir deste espaço junto aos
alunos. Cada professor iniciou um trabalho efetivo de troca de idéias sobre as
obras lidas pelos alunos. Também há professoras que têm carga horária quinzenal para a realização de hora do conto com alunos de séries iniciais e também empréstimo semanal de livros de literatura infantil e infanto-juvenil. Os
alunos das séries iniciais têm participado dos momentos de divulgação e discussão de leituras, na hora do conto dirigida por professoras ou mesmo organizando a contação de histórias na biblioteca para as outras turmas, com o
auxílio da professora da oficina de teatro. Também estamos organizando entre
as professoras a contação de histórias por professores para professores e comunidade adulta do bairro e do município para estimular a divulgação de obras e leitura também entre familiares e professores.
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Para relacionar uma prática de leitura, produção e divulgação de textos
pelos alunos da quarta série, podemos mencionar o estudo das histórias de
assustar do folclore popular, em que aparecem os elementos “mistério, seres
assustadores como fantasmas, mula-sem-cabeça, lobisomem, casas e florestas
mal assombradas, cemitério”. Trabalhamos em sala de aula histórias folclóricas
brasileiras registradas em livros e também resgatamos as histórias que a comunidade conta, principalmente por avós. Os alunos contaram em sala de aula
estas histórias e comparamos com os livros, o que tinha de semelhante e diferente. Por exemplo, o lobisomem é uma lenda que se acredita, inclusive que
pessoas narram que chegaram a ver de longe sua sombra. Também narram a
possibilidade de lugares serem mal assombrados e de ter percebido a presença
de fantasmas. A partir das leituras e das histórias contadas pela comunidade,
foram recontadas em sala de aula pelos alunos algumas das histórias de terror.
Os alunos organizaram em pequenos livros ilustrados suas histórias que foram
emprestados às outras turmas na sacola feita pelo grupo. Também houve um
momento em que os alunos se prepararam e foram nas outras turmas fazer
uma sessão de “contos de assustar”, com cortinas fechadas para escurecer o
ambiente e criar um clima.
Em seqüência ao nosso trabalho, neste ano letivo, estamos organizando
com a quarta série a contação coletiva de histórias, em que os textos de autores da biblioteca ou produzidos pela turma, são trabalhados para serem apresentados nas outras séries do ensino fundamental e também na educação
infantil. A contação envolve a expressão dramática e o canto para que as histórias possam entusiasmar o público, provocando o despertar da imaginação
tanto de quem conta como de quem ouve a história.
CONCLUSÃO
Sabemos que a produção textual é um processo e que temos alunos em
nossa turma que tiveram poucas oportunidades de escrita nas outras séries e
que, agora na quarta, estão começando a sua condição de produtores de textos, por isso algumas destas histórias ainda não apresentaram muitas marcadas da intenção do autor, apesar de ser de interesse do grupo o tema destas
narrativas. Também destacamos que a produção foi realizada em vários momentos, primeiro de troca de idéias sobre o gênero, seus elementos, leituras
realizadas, conversas sobre estas leituras e com pessoas da comunidade. No
momento da produção dos textos, cada aluno debateu com a professora e
colegas seu texto, o que poderia colocar para aperfeiçoar suas idéias, discutindo a lógica do texto, o que queria dizer e o como dizer de maneira a ser entenA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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dido pelos leitores. Nestes aspectos, foi observada a organização lógica das
idéias e a maneira de expressá-las tanto na estrutura do texto, como na pontuação, ortografia e a letra. Num outro momento, foi organizado o livro, o que
seria dito e ilustrado em cada página. Noutro momento, como seriam apresentadas as histórias para as outras turmas organizando o modo como uma “história de assustar” seria contada. Depois disso, foi feita uma avaliação das produções, quanto à forma de apresentação dos livros e a contação das histórias
para as outras turmas. Enfim, a produção e divulgação das idéias nos textos é
um processo que leva tempo e empenho, sendo que a cada produção há uma
evolução da condição de leitor e produtor de texto pelos alunos no gênero
trabalhado, pois estamos procurando evidenciar um processo de “produção
textual” na escola e não de redação conforme aponta Geraldi (2001). Isto porque produzir é um processo que exige evolução constante.
REFERÊNCIAS
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CALDIN, Clarice Forkamp. A função social da leitura da literatura infantil. Centro de Ciências da
Educação – Universidade de Santa Catarina, documento eletrônico, www.encontrosbibli.ufsc.br/Edicao_15/caldin_funcaosocial.pdf. Santa Catarina, 2001. p. 1-12.
CITELLI, Beatriz. A produção e leitura de textos no ensino fundamental: poema, narrativa, argumentação, v. 7. 3. ed. Coord.: CITELLI, Adilson; CHIAPPINI, Ligia. Aprender e ensinar com textos.
São Paulo: Cortez, 2003.
GERALDI, J. W. Portos de Passagem. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
GERALDI, J. W.. Escrita, uso da escrita e avaliação. In: GERALDI, W. J. (Org.). O texto na sala de
aula. São Paulo: Ática, 2001, p.127-131.
KOCH, I. V. A inter-ação pela linguagem. 4 ed. São Paulo: Contexto, 1998.
KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003.
LERNER, Delia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: ARTMED,
2002.
MICARELLO, Hilda Aparecida Linhares da Silva; FREITAS, Lucélia Rodrigues de. Os sentidos produzidos por crianças e adolescentes pelas suas experiências com leitura e escrita na escola. In:
FREITAS, Maria Teresa A.; COSTA, Sérgio Roberto. (Org.). Leitura e escrita na formação de professores. Juiz de Fora: UFJF, 2002.
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UM PREFÁCIO À BIOGRAFIA
André Luis Mitidieri1
Resumo: O presente artigo discorre sobre antigas espécies biográficas, em suas
interconexões com a poética, a retórica, a filosofia e a história. Associadas aos
conceitos de “memória”, “rememoração”, “imagem”, “mimese” e “testemunho”,
as primeiras formas aparentadas à biografia, de que se tem notícia no mundo
ocidental, configuravam-se em paralelo à decadência da pólis grega. Nesse contexto, o homem público não teria condições de estabelecer diferenças entre a
própria vida e vidas outras, de maneira que a separação entre o autobiográfico e
o biográfico apenas ocorreria depois que tal unidade viesse a desintegrar-se.
Palavras-Chave: Biografia, Memória, Mimese, Testemunho.
Resumen: Este artículo trata de las antiguas espécies biográficas, en sus interconexiones con la poética, la retórica, la filosofía y la historia. Vinculadas a los conceptos de “memoria”, “rememoración”, “imagen”, “mimesis” y “testimonio”, las
primeras formas asemejadas com la biografía, de las cuales hay conocimiento en
el mundo ocidental, se han configurado al mismo tiempo em que ocurria el declinio de la pólis griega. En ese contexto, el hombre público no tendría condições
de apartar la própia vida de vidas ajenas, de modo que la separación entre el autobiográfico y lo biográfico solamente habría de ocurrir luego que tal unidade se
desintegrara.
Palabras-Clave: Biografía, Memoria, Mimesis, Testimonio.
A palavra “biografia” tem origem etimológica nos vocábulos gregos Bios
(vida) e Gráphein (desenhar, gravar, ou a ação de escrever, descrição, tratado
ou estudo). Partindo desse pressuposto, uma espécie biográfica se faria suportar pela escrita, por descrições orais e até mesmo por imagens. O conceito
expresso por “grafia”, também presente em “historiografia”, suscita uma pergunta inicial: vidas ou histórias podem ser escritas, desenhadas, gravadas em
algum lugar?
Para respondê-la, faz-se necessário lembrar que fontes remotas duma
arte biográfica encontram-se nos relatos dedicados a patriarcas e reis de Israel
(Antigo Testamento), bem como aos heróis épicos de sagas gregas, germânicas
e célticas. Outro tipo biográfico despontava nos ensinamentos de santos e
sábios, constantes nos livros proféticos da Bíblia. De modo semelhante, nas
1 Doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS); Professor Adjunto de Língua e Literatura Espanhola na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Docente
Colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da URI, Campus Frederico
Westphalen; endereço eletrônico: [email protected].
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sentenças de Buda; nos fragmentos antológicos de Confúcio e nas palavras dos
Sete Sábios da Grécia2.
No Ocidente, as espécies que se assemelham às narrativas biográficas
remontam à era clássica dos gregos (séc. V-IV a.C.). Além dos fragmentos com
teor biográfico, os helenos puderam conservar alguns resíduos de mitos aqueus e das epopéias do período arcaico (VIII-V a.C.). Articuladas, linguagem e
memória haviam permitido a circulação oral dessas histórias, até que o alfabeto se revelasse um importante aliado contra o esquecimento e o risco da efemeridade, próprio à memória.
Substituindo as faculdades de memorização, a escrita se conecta nem
tão somente à história da poética ocidental, mas também às histórias da filosofia e da própria historiografia. As primeiras escritas conjugaram uma contabilidade elementar com o sistema de representações míticas e se viabilizaram em
paralelo ao desenvolvimento da metalurgia e dos agrupamentos humanos. A
descontinuidade entre o meio pensado e o ser pensante acontecia junto à
fixação agrícola: “O seu fundamento está na criação de uma imagem cósmica
cujo pivot é a cidade” (LEROI-GOURHAN, 1985, p. 210. v. 1).
Os poemas épicos sinalizam a certa articulação dos velhos modos de falar; sua transcrição, paralela ao nascimento do alfabeto, revela a capacidade
dos textos homéricos em transmitir suas narrativas sob condições ainda préletradas. A mimese homérica, entretanto, não tentava copiar da aparência;
igual ao mito, vinha das “figuras inteiriças” cuja unidade já existia antes da
observação de que se faziam objeto. “Sua presença viva e sua diversidade provêm, como é possível perceber por toda parte, da situação em que inevitavelmente elas se vêem envolvidas; e é essa situação que determina suas ações e
seus procedimentos” (AUERBACH, 1997, p. 14-15).
Originalmente, a palavra grega Mўthos designava qualquer narração, ficcional ou que se ligasse a eventos reais, para depois exprimir narrativas de
ordem lendária ou maravilhosa. Assim, os mitos reunidos na Teogonia (1979) e
n’Os trabalhos e os dias (1996) indicam que Hesíodo (séc. VIII a.C.) pareceu
compreender a necessidade de unificar o conjunto humano, confrontando-o
com a ordenação do cosmos3. O registro mítico e a poesia épica, bem como os
2
3
68
Muitas histórias da Bíblia centraram-se na narração biográfica: Noé e sua arca; Moisés, José,
João Batista, os reis magos; Davi e Golias, Sansão e Dalila; Josué, o homem que fez parar o
Sol; Daniel na cova dos leões. Não por acaso, personagens e temas bíblicos foram retomados
em várias obras da literatura ocidental, como José e seus irmãos, por Thomas Mann, Esaú e
Jacó, por Machado de Assis, Jacó e Raquel, por Camões. Cf. BIOGRAPHY, 1990; MACHADO,
2002, p. 40.
A Ilíada e a Odisséia já são construções complexas, indicando o começo de uma parceria
fecunda entre o oral e o escrito. Cf. HAVELOCK, 1996b, p. 16.
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universais poéticos que vieram depois deles — drama e lírica — sofreram os
efeitos da tensão entre as modalidades orais e escritas da linguagem.
Isso não constitui um elemento isolado de outras tensões: em percurso
jamais cumprido sobre uma linha reta nem constante, a civilização helênica
enfrentava longo processo de modificações políticas, religiosas e sociais. A
sistematização dos métodos de escrever proporcionava uma das condições
para que os gregos se enamorassem de Sophía, quer dizer, da sabedoria. Os
gregos principiaram lentamente a desenvolver-se conforme os modos de pensamento lógico e analítico, encaminhando-se à filosofia, entre os séculos IX e
VI a.C.
Arquíloco de Paros (c. 680-646 a.C.) criticava o ideal heróico, rechaçava
o mito e expunha seu desejo de inscrever-se no político. Para Max Treu (1955),
a doutrina da mímesis fora testemunhada ineditamente pelo arcaico poeta, em
sua expressão “A palavra é a imagem da realidade.” Arquíloco descerrou caminhos para uma grande ruptura na arte poética dos helenos, que Simônides de
Céos (c. 556-c. 467 a.C.) teria o mérito de assinalar, ao praticá-la como um
ofício e ao defini-la como um produto ilusório.
Esse fabricador de epigramas responsabilizou-se por secularizar a poesia
e descobrir a técnica de memorização. A memória se transformava em faculdade psicológica e cada pessoa iria desempenhá-la segundo normas, de um ou
de outro jeito, previamente definidas, entretanto, “postas ao alcance de todos.
A invenção da mnemotécnica corresponde à mesma intenção de um outro
aperfeiçoamento técnico, atribuído a Simônides: a invenção de letras do alfabeto que deviam permitir uma melhor notação escrita” (DETIENNE, 1988, p.
57).
O “lírico de Céos”4 relacionou a memória com uma noção inovadora
que, por sua vez, associava o tempo à aprendizagem e se desvinculava da idéia
divina de Chrónos (PAGE, 2003, p. 521-527). Ao assinalar uma atividade profana, Simônides rompeu com a tradição anterior — da “palavra inspirada” —
num quadro bem definido econômica e socioculturalmente: o da pólis. A cidade mais a retórica se faziam acompanhar do desenvolvimento da escrita, assim
4
Seria notável que os poetas não mais recorressem à “simples recitação, para apresentarem
suas obras. Desde o século VII a escrita é a forma necessária de publicação” (DETIENNE, 1988,
p. 57). Porém, o termo lírico, “tal como hoje se usa, é pós-clássico, e se emprega, freqüentemente, para identificar as fragmentárias relíquias de uma série de poetas entre Arquíloco e
Simônides. Em seu próprio tempo, esses poetas [líricos] não eram lidos, mas ouvidos. Para alcançar, em qualquer medida, o que chamamos de ‘publicação’, suas ‘obras’ deviam ser, não
escritas, mas executadas, perante audiências grandes ou pequenas” (HAVELOCK, 1996b, p.
26).
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também, a poesia, embora sua forma épica antes houvesse transitado pela
oralidade.
Os “filósofos da natureza” já conduziam sua reflexão sobre o lógos, príncípio de toda inteligibidade, no século VI a.C. Todavia, os “filosofadores”5 présocráticos pensavam a palavra como um caminho de reconhecimento do real6.
A configuração urbana se dava em meio à crise que destituiu a Hélade duma
“presença obsessiva do monarca minóico ou micênico, êmulo dos ‘déspotas’
orientais. Mas, antes da razão, está aquilo que a fundamenta, ou seja, a representação que o homem faz, no caso, o homem grego, da verdade, Alétheia”
(VIDAL-NAQUET, 1988, p. 8).
Nascida na Magna Grécia, a retórica somou forças com aquele protopensamento racional do século VI a.C. De igual maneira, viria confluir com a
sofística, que se organizava durante a próxima centúria, no interior de semelhante moldura: encravada numa rudimentar democracia e nos primeiros movimentos da justiça exercida sob forma dialogal. Os sofistas propunham-se a
uma educação instituída pelo discurso e voltada à práxis dentro das urbes helênicas.
Aliados à filosofia socrática, eles unificaram ética e política, reconhecendo-as como um tópico discursivo inseparável. A história, que designava um
conceito jurídico do “verdadeiro”, seguia o mesmo compasso da tecnologia
alfabética. O historiador também sentiria os efeitos da laicização da memória e
da palavra (CHÂTELET, 1985). A raiz de tais vocábulos assenta-se na Grécia dos
tempos arcaicos, onde o hístor era uma testemunha:
aquele que vê e que escuta, e, na sua qualidade de herdeiro do mnémon, é também um memorialista. Em sua ‘verdade’, atestam-se, pelo menos, duas componentes: o não-esquecimento e, complementarmente, o relato exaustivo, o relato
completo, exaustivo, o relato daquilo que aconteceu realmente (DETIENNE,
1988, p. 119).
5
6
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O substantivo “filósofo” não consta em documentos escritos antes do último quartel do
século V a.C. Os pré-socráticos tiveram que descobrir o pensamento conceitual como idéia e
método antes de surgirem os produtos do pensamento, isto é, os sistemas. Abrangem de Xenófanes a Demócrito, mas a chamada Escola de Mileto não pode ser incluída porque, no direcionamento da mente grega ao abstrato, “qualquer contribuição que possam ter feito se perdeu. Todas as suas ipsissima verba desapareceram e com elas qualquer indício de tentativas
conceituais” (HAVELOCK, 1996a, p. 315).
O real “é compreendido como o mundo extratextual, que, enquanto faticidade, é prévio ao
texto e que ordinariamente constitui seus campos de referência. Estes podem ser sistemas de
sentido, sistemas sociais e imagens do mundo, assim como podem ser, por exemplo, outros
textos, em que se efetua uma organização específica, ou seja, uma interpretação da realidade. Em conseqüência, o real se determina como o múltiplo dos discursos, a que se refere o
acesso ao mundo do autor, tal como mostrado pelo texto” (ISER, 1983, p. 412-413).
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O alfabeto vocálico sofria pequenas mudanças e a alfabetização se tornava comum entre a quinta e a quarta centúrias a.C. Depondo a favor da disseminação do letramento, as “artes” retórica e poética encorpavam-se como
áreas de estudo7. A retórica se caracterizou por tratar basicamente da oratória
e do raciocínio, enquanto a poética veio-se ocupando dos tipos épico e mítico
da poesia; mais tarde, do drama e da lírica propriamente dita. Marcas da retórica sofística e, de certa forma, da tematização biográfica, pronunciam-se no
Elogio a Helena (414 a.C.), discurso elaborado pelo sofista Górgias (c. 485/480375 a.C.).
Sócrates (c. 469-399 a.C.) tangenciaria o ingresso da “ficção” na memória, conforme os diálogos platônicos Mênon e Teeteto (427 a.C.-348/347 a.C.).
Através do conceito de Anamnese (reminiscência) e baseado na “metempsicose” (transmigração das almas), Platão inaugurou a teoria do conhecimento,
desenvolvida em Fedro, Banquete, Fédon e A República. Em suas reflexões, o
invento da escrita acarretaria o fim do ato de recordar — que acessava o conhecimento do “verdadeiro” — pois a rememoração impressa em letras aparecia como renovado mecanismo, apto a repetir as formas da vocalidade
(SMOLKA, p. 174, 2000)8.
A cultura helênica teria dependido da memória doutrinadora, a qual se
interligava com uma identificação entre artista e público. Acontecendo durante a reencenação dos poemas, o elo condenado pelo filósofo de Atenas — entre platéia e declamador — constituiria um ato e um estado “mimético”. No
entanto, “a raison d’être do seu ataque é que, na execução poética, como era
praticada até então na Grécia, não havia um ‘original’. O termo mímesis é escolhido por Platão como o único perfeitamente adequado” (HAVELOCK, 1996a,
p. 177)9.
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Não quer dizer que a poética e a retórica já existissem como sólidos campos “do discurso e
do conhecimento, mas coube a Sócrates e aos sofistas unificá-los como campos e reconhecêlos como tópicos, a fim de preparar o caminho para que se tornassem disciplinas”
(HAVELOCK, 1996a, p. 315).
Estas palavras relacionavam-se com Ápate (engano) quando a filosofia empenhou-se para
substituir o discurso figurativo pelo conceitual: Eikōn (signo e presença duma coisa ausente);
Eidόlon (o acontecimento representado e ausente). Nas reflexões platônicas, ambas envolvem a problemática da imaginação, que compreenderia também a da memória, e admitem as
respectivas traduções: cópia com idéia de fiel semelhança; imagem do evento copiado. Cf.
RICOEUR, 2004, p. 20-33.
A mímesis veio equivalendo ao conceito tradicional de representação, embora não se confundisse com uma cópia. Seu objeto, “mimema, importa enquanto ilustra uma determinada
visão de mundo; a arte causa o regozijo do filósofo e do intérprete ao confirmar a justeza de
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Aristóteles (384-322 a.C.) retomava fundamentos platônicos a respeito
da memória (Mnēmē), todavia, separou-a da rememoração (Anamnēssi). No
livro I de sua obra Metafísica (1979, p. 8-35), o filósofo de Estagira declara que
a primeira conservaria o passado, equivalendo à lembrança das sensações
percebidas e imaginadas, ao passo que a segunda consistiria no ato de convocar as impressões sensoriais, através da vontade. Um estímulo sentido pelo ser
humano produziria forma analógica à sensação experimentada, vinculando as
coisas de que se recorda ao recebimento por meio dos sentidos.
Conforme o estagirita (1994, p. 281-304), a memória equivale a uma
qualidade (afeto) do sensível ou do julgado. As rememorações devem-se a tal
estado sensório, indutor de suas existências, no tempo decorrido entre o retorno do elemento afetivo e sua primeira impressão na alma, como “imagem”.
A problemática da imagem na lembrança era trazida pela distinção aristotélica
entre os termos Phantasma (a inscrição mesma, um desenho, um quadro etc.)
e Eikōn (a representação de algo diverso).
Os elos da memória com a imaginação, as recordações e a distância
temporal ainda exigiram a definição de Mnēmoneuma. Esse vocábulo significava uma lembrança, um souvenir, já que faria pensar em algo distinto de sua
própria constituição. Integrando a parte do espírito que deveria interseccionarse com os mecanismos imaginativos, a memória era conferida ao passado e a
imagem, distanciada duma simples acepção de cópia, o que não eliminava uma
“aporia da presença da ausência” (KRELL, 1990; RICOEUR, 2004, p. 33-41).
Ao supor a experiência como necessária à realização dos artefatos culturais, Aristóteles fica mais próximo ao reconhecimento dos universos da ficção.
Quando se reconhece um ato de fingir nas estruturas ou nos elementos de um
texto, “os critérios naturais quanto a este mundo representado estão suspensos. Assim, nem o mundo representado retorna por efeito de si mesmo, nem
se esgota na descrição de um mundo que lhe seria pré-dado. Estes critérios
naturais são postos entre parênteses pelo como se” (ISER, 1983, p. 400).
No século em que viveram os filósofos de Atenas e Estagira, Grammatikós passou a fazer parte do vocabulário grego; nomeava os aptos a ler, tomando lugar ao termo precedente: Kritikós. Na mesma centúria, um tipo de ancestral do papel, manufaturado a partir da planta do Cyperus Papirus, expandiu-se
desde o Egito e daria nova forma de disposição aos antigos textos. A inovadora
suas idéias. Assim o não entendimento da mimesis correspondia a uma hierarquia implícita:
em primeiro plano, apontava o discurso conceitual, o que diz o que é e separa a verdade das
opiniões, seja ele identificado com o discurso filosófico ou com o científico. É ele então que
disciplina os discursos inferiores, que carecem de sua incidência para que se digam valorizáveis ou desprezíveis” (COSTA LIMA, 1981, p. 227).
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técnica do papiro, lado a lado com a descoberta de outros suportes, proporcionariam terrenos mais amplos à secularização da memória e da palavra.
A decadência da pólis jogava papel essencial à ampliação das espécies
biográficas, que se tornariam mais relevantes quando a ruína da sociedade
urbana produzisse uma idéia de generalizado desencanto. A biografia ocidental
ia surgindo enquanto se alterava o status dos gregos, ou seja, durante a “ruptura havida entre a civilização da pólis e os grandes impérios que se lhe seguem. Na crise, impõe-se a necessidade do registro, cujo ‘balizamento’ são
vidas que se relatam” (CARINO, p. 160, 1999).
Os caminhos abertos ao espaço biográfico não deixavam de vincular o
cidadão aos domínios da ágora. Ao se pronunciar, o homem público nem podia
fazer diferenciações entre a própria existência e a vida alheia: a separação
entre biografia e autobiografia só iria ocorrer depois que essa unidade se desintegrasse. Suas formas clássicas não eram “desligadas do acontecimento
político social e concreto, e de sua publicidade retumbante. Ao contrário, elas
eram inteiramente definidas por esse acontecimento; eram atos verbais cívicopolíticos, de glorificação ou de autojustificação públicas” (BAKHTIN, 1990, p.
251).
Em lugar de sete sábios gregos, foi Sophía quem, ao se recolher na escrita, passou a transmitir o mito, a poesia, retórica, sofística, filosofia, história e,
ainda, o discurso ético-político. Entravada no pretérito arcaico, a Paideía de
Homero fez-se advertência, lembrança, memorização e se faria reminiscência,
rememoração ou retorno do reprimido. Como a musa, de canto sedutor, os
saberes ocidentais aqui fluem desde o leito de Mnémosine, a mãe das musas.
Memória encarnada, ela ajuda na identificação das barreiras por cujo intermédio se pode combater as ações erosivas de Améles, o rio do esquecimento.
REFERÊNCIAS
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al. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 8-35. (Os Pensadores).
AUERBACH, Erich. Dante: poeta do mundo secular. Tradução por Raul de Sá Barbosa. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 2. ed. rev. aum.
Traduzido por Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1990.
BIOGRAPHY. The New Encyclopaedia Britannica. 15. ed. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1990.
32 v. v. 2.
CARINO, Jonaedson. A biografia e sua instrumentalidade educativa. Educação & Sociedade,
Campinas, ano XX, n. 67, p. 153-181, ago. 1999.
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CHÂTELET François. El nacimiento da la historia: la formación del pensamiento historiador em
Grécia. Madrid: Siglo XX de España, 1985.
CHÂTELET François. El nacimiento da la historia: la formación del pensamiento historiador em
Grécia. Madrid: Siglo XX de España, 1985.
DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Traduzido por Andréa Daher. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
HAVELOCK, Eric. A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais. Traduzido por
Ordep José Serra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996b.
HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. Traduzido por Enid Abreu Dubránzsky. Campinas, SP: Papirus,
1996a.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou O que é fictício no texto ficcional. Traduzido por Heidrun
Krieger Olinto e Luiz Costa Lima. In: COSTA LIMA, 1983, p. 384-416.
KRELL, David Farrell. Of Memory, Reminiscence and Writing: On the Verge. Bloomington: Indiana
University Press, 1990.
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra. Tradução por Vítor Gonçalves. Lisboa: Edições 70,
1985. 2v. v. 1 (Técnica e Linguagem).
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo? Rio de Janeiro:
Objetiva, 2002.
VIDAL-NAQUET; Pierre. Prefácio. In: DETIENNE, 1988, p. 7-11.
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DE CLARICE LISPECTOR A CAZUZA: MARCAS DA LITERATURA NA OBRA
MUSICAL
Daiane Raquel Steiernagel1
Resumo: Este trabalho tem como objetivo estudar dois artistas – Clarice Lispector (escritora) e Cazuza (cantor e compositor) e a relação intertextual entre suas
obras. Cazuza era fã de Clarice e teve uma grande influência dos textos da escritora em várias de suas composições. Neste trabalho será estudado, em especial,
a obra intitulada de A Via-Crúcis do Corpo, título este tanto do livro de Clarice,
como da música de Cazuza. Porém, anteriormente a este estudo, faremos algumas colocações sobre a relação entre a arte e a psicanálise e sobre a vida de ambos, para posteriormente fazermos a comparação destas obras.
Palavras-Chave: Literatura; Música; Psicanálise.
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo estudiar dos artistas – Clarice Lispector (escritora) y Cazuza (cantor y compositor) y la relación intertextual entre las
sus obras. Cazuza era fan de la Clarice tiendo una gran influencia de los textos de
la escritora en muchas de sus composiciones. En este trabajo estudiarse, en especial, la obra intitulada de La Via-Crúcis del Corpo, nombre este tanto de el libro
de Clarice, como de la música de Cazuza. Como la literatura Comparada no exclui
la teoria, tal estudio tiene como base teórica la psicoanálisis. Antes la este estudio, fazemos algunas colocaciones entre la arte y la psicoanálisis y sobre la vida
de el ambos para posteriormente estudiarse la comparacion destas obras.
Palabras-Llave: Literatura; Música; Psicoanálisis.
Sabemos por textos autobiográficos que a escritora Clarice Lispector tinha em sua escrita uma razão de viver, considerava esta mais importante que
o amor. Sua preferência dirigiu-se a narrativa de seus contos, romances, crônicas e na literatura infantil. Muitos trabalhos já foram escritos procurando entender sua obra e a pessoa que era, porém, parece que as “respostas” não são
suficientes, deixam questionamentos pendentes, isso ocorre porque seus textos não são simples, mas pelo contrário, a densidade da obra de Lispector é a
marca registrada da autora.
Já o cantor e escritor Cazuza, começou sua carreira escrevendo letras de
músicas quais exploravam um “mundinho a dois”, pois no início da carreira
Cazuza não se preocupava tanto com questões sociais como ficou conhecido
nacionalmente, esta preocupação começou a ocorrer após algum tempo, principalmente depois da descoberta de sua doença – a AIDS – parece que este
fato lamentável fez com que o cantor começasse a se preocupar com questões
mais abrangentes, questões referentes a sociedade em que vivia, percebemos
1
Psicóloga, Mestre em Letras: Estudos Literários, pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM); endereço eletrônico: [email protected].
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isto claramente em músicas como: O Tempo Não Pára, Burguesia, Ideologia, e
inúmeras outras. Foi devido a este amadurecimento musical que Cazuza ganhou tanto prestígio e suas músicas ficaram marcadas, talvez, pela eternidade.
Esta característica de falar do social, também é percebida nos escritos de
Clarice, ambos a seu modo fizeram uma crítica social. Deixaram marcado em
suas obras fatos de sua geração, é por isso que são tão admirados até os dias
de hoje, pois não se referem apenas a questões próprias, mas escrevem principalmente sobre suas gerações e sobre seu país. A partir de uma perspectiva
radicalmente subjetiva que busca pelo particular apontar as fraturas da realidade social.
A partir do proposto pretendo, desenvolver um trabalho no qual estudarei estes dois escritores e a relação intertextual entre suas obras. Como a Literatura Comparada não dispensa a teoria, para fazermos um estudo comparativo usaremos a psicanálise como base teórica. Pois, para a psicanálise o social
tem uma importância formadora do sujeito, ou seja, a psicanálise nasce de um
cruzamento entre literatura e medicina. Percebe-se esta importância dada ao
social desde os primeiros estudos freudianos em textos como: Mal Estar na
Civilização, Totem e Tabu, Moisés e o Monoteísmo, entre outros, e esta preocupação fica ainda mais evidente a partir da formulação da tese de Lacan onde
o autor dirá que “O Inconsciente é Social”. Sendo assim, percebemos que as
preocupações literárias e psicanalíticas convergem ao mesmo ponto – onde se
elimina a falsa dicotomia entre indivíduo e sociedade e redimensiona as intersecções entre o singular e o social.
1 UM DIÁLOGO ENTRE LITERATURA E MÚSICA
O escritor consegue dar significados ao mundo em que vive, consegue
estruturar a realidade de um modo pessoal e estilizado. Porém, a sua obra não
surge do nada, o escritor ao escrever seu texto, sua música, seu livro, vem com
uma carga anterior a qual é baseada em diversos autores, ou muitas vezes em
uma obra específica, em um determinado autor. Não será uma cópia, mas sim
“inspirado” no escrito que o antecede.
A partir disto podemos falar da relação intertextual que uma obra de arte estabelece com outras obras de arte. Neste caso, da importância que a literatura de Clarice Lispector teve na obra musical do cantor Cazuza, o qual era
leitor e fã da escritora, tendo como seus livros de cabeceira Água Viva e A Descoberta do Mundo. Do primeiro, após sua leitura, se originou a música intitulada Que o Deus Venha, porém as influências dos textos de Clarice aparecem
constantemente em sua obra, um exemplo disto é a música A Via-Crúcis do
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Corpo, letra adaptada de um conto de Clarice, feita para a trilha sonora do
filme homônimo de José Antônio Garcia.
Será com base nestas duas obras, uma literária e a outra musical, que faremos uma análise, falando assim da intertextualidade da obra de arte, pois a
arte é o resultado de uma tentativa de transfigurar, para o texto literário ou
para a música, uma experiência humana.
A música A Via-Crúcis do Corpo com letra de Cazuza, que tem por base o
livro de Clarice Lispector com mesmo título não será um reflexo do livro, ela
está modificada, tendo um estilo próprio devido à questão da subjetividade de
seu criador. Percebemos que a versão de Cazuza está em primeira pessoa (como veremos a seguir), diferente do texto de Clarice que é em terceira pessoas.
Isto ocorre porque o texto absorve, transforma e ao mesmo tempo adapta
influências ao modo e estilo do autor. O novo texto, no caso música, será
transformado através de um “mosaico de citações”.
A relação da psicanálise com a arte, especialmente com a literatura, tem
sido uma constante desde os primeiros passos das formulações freudianas. A
partir da literatura os mais importantes conceitos psicanalíticos tiveram sua
origem, entre eles o Complexo de Édipo, a noção de Inconsciente, o Narcisismo,
entre outros.
Então, levando em conta a teoria psicanalítica, podemos pensar a escrita
como uma tentativa de responder uma demanda do sujeito do inconsciente,
ou seja, a escrita seria uma busca de cobrir o vazio que o sujeito – neste caso o
escritor – carrega consigo. Na escrita o sujeito (se) permite que sua subjetividade aflore de forma que não precise estar de acordo com o senso comum ou
com as representações sociais existentes, isto fica evidente na obra dos dois
autores quais pretendemos estudar neste trabalho.
A arte literária pode, então, ser considerada como um lugar onde o inconsciente se encena. Podemos dizer que ela se constitui no cerne da linguagem e o texto literário possibilita com que o sujeito possa transcrever as “imagens do impossível”, ou seja, do inconsciente em forma de palavras – letras,
sem reconhecê-las como parte de seu desejo, já que o texto literário permite
que o sujeito, à priori, conte uma história fictícia.
Considerada deste ângulo a arte literária permite que o escritor enuncie
seu desejo em uma folha de papel, a qual consegue minimizar uma falta com
as inscrições realizadas na escrita, sua “materialidade de texto”. As palavras
serão sempre substitutas – travestidas de novas aparências e nesse percurso
do discurso o desejo pode aflorar sem que alguém necessite reconhecê-lo como seu. Podemos dizer que o sintoma do escritor é o seu desejo de escrever,
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muitas vezes articulado ao desejo de expressão extra-textual, como é o caso da
performance musical.
Enquanto palavra discursiva, a linguagem se teatraliza, nesse palco ficcional, duplo do palco psíquico. Duplo, não idêntico, pois a relação do imaginário literário
não é absoluta identidade com o psíquico. Esse se forja com uma matéria linguageira que também se torna fantasia, num jogo que se realiza num mundo de vozes que se repetem, se invertem e se subvertem (BRANDÃO, 2004, p. 33).
Podemos considerar o escritor – ou o artista – como o pioneiro a dar, através de sua obra de arte, um significado histórico às suas representações e
expressões. Nosso objetivo neste trabalho não é o de saber até que ponto ele
(artista) tem consciência deste processo, a nossa pretensão é de poder colher
o significado que a obra de arte deixa – a obra de arte de Clarice Lispector e
Cazuza, onde o corpo derrotado pela pulsão de morte sobrevive na arte que
sublimou esse desejo e que incorpórea no imaginário de cada ouvinte e leitor,
a vida e a pulsão que a gerou. Sendo que, em especial para estes dois artistas,
a escrita era como uma motivação para a vida. Vejamos alguns depoimentos:
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha
própria vida. (LISPECTOR, 1978)
É a minha criatividade que me mantém vivo. Meu médico diz que sou um milagre, porque eu tenho tanta energia, tanta vontade de criar, e que é isso que me
deixa vivo. (ARAUJO, 2004. p 394)
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 10 de dezembro de 1920, porém
com menos de um ano de idade seus pais mudaram-se para o Brasil e foi aqui
que a autora passou o maior tempo de sua vida. Esta escritora teve sua obra
consagrada e estudada por diversos pesquisadores. Se concentrou em poucos
gêneros literários e sua preferência dirigiu-se a narrativa de seus romances,
contos, crônicas e na literatura infantil. Segundo seus críticos devido à densidade da obra de Clarice é difícil falar em sua totalidade, para tentar entender
sua obra é necessário estudar cada texto, cada conto, cada romance, em sua
singularidade. O fascínio pela obra desta autora, se dê talvez, por este fato,
pela densidade de sua obra e especialmente pela capacidade que tinha sobre o
indizível.
A impressão que temos é que Clarice se entregava de corpo e alma nas
suas escritas, e fazia da literatura sua razão de viver. Em um trecho de Água
Viva Clarice Lispector demonstra de forma sucinta essa sua relação com a escrita: “Só que aquilo que capto em mim tem, quando esta sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um
relance de olhar. Mais que um instante, quero seu fluxo ” (LISPECTOR, 1973, p.
16).
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As narrativas de Clarice em nada tinham de tradicional, pelo contrário, a
autora questionava as convenções rígidas de sua época através de seus personagens, especialmente em suas protagonistas mulheres. Outra marca de sua
obra é a evocação de Deus, que leva ao conceito de “epifania”. A autora procura estabelecer um diálogo direto com Deus, pois a inspiração de Clarice parte
de outros textos e um deles é a própria bíblia. Seu livro Um Sopro de Vida é um
exemplo do diálogo da autora estabelecido com este Deus. Neste diálogo a
própria voz da autora assume a criação através de sua personagem Ângela.
Pode-se pensar em uma troca de lugares onde Deus assume a forma de um
deus-mulher. Estas características ficarão evidentes também na obra de Cazuza, ele mencionará “um Deus mulher, um Deus de saia” em sua composição
Cobaias de Deus.
Esses jogos de identidade ficcional, como ocorre no exemplo anterior, é
algo estruturante na obra de Clarice. Especialmente em Água Viva e Um Sopro
de Vida a escritora preocupa-se com as palavras, como objeto concreto com
potencial metafórico infindável.
A poética da escritura que se vai engendrando e Água viva expõe o trajeto de ir e
vir entre pintura e escrita, o sair de uma para entrar na outra, no movimento
contínuo de descosturar limites, atravessado ainda pelas múltiplas referencias à
música (ZILBERMAN et al., 1998, p. 51).
Outra característica marcante de nossos dois escritores – Clarice e Cazuza – é a relação que estabeleceram com a escrita em seus leitos de morte,
ambos escreviam quase que desesperadamente e tinham na sua escrita “um
sopro de vida”.
A história do sujeito Cazuza começa a ser contada em quatro de abril de
1958, uma sexta-feira santa. Sua adolescência ocorreu na transição dos anos
70-80, período marcado pela euforia onde tudo tinha que se dar ao máximo,
em seu extremo. Não é à toa que o que melhor representa este período antigo
é o trinômio sexo, drogas e rock’ n’ roll. Justamente o lema do poeta. Cazuza e
os protagonistas desse período tinham muita pressa em gozar a vida, como se
o mudo fosse acabar a qualquer momento por isso os seus atos eram feitos
sem limite algum, mas, pelo contrário, com muitas extravagâncias.
Transo. Com homem, com mulher, não tem o melhor problema (ARAÚJO, 2004,
p. 353).
Tudo na noite é mais interessante. Gosto de sair, de correr de carro em qualquer
dessas Freeways da zona sul, de estar com amigos, de dançar [...] (ARAÚJO, 2004,
p. 383).
Desde pequeno Cazuza já escrevia versos e poemas. Sempre gostou muito de músicas da MPB. Essa influência veio devido à profissão de seu pai, pois
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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conviveu desde pequeno com cantores como Elis Regina, Gilberto Gil, Caetano
Veloso, Gal Costa, entre outros. Também teve influência da Rita Lee, Jovem
Guarda e Raul Seixas. Começou a curtir o rock aproximadamente aos quatorze
anos, ouvia bandas e cantoras como Janis Joplin e Rolling Stones, influências
básicas de sua música. Essas influências musicais apareciam muito em suas
composições, as quais “misturavam” MPB e rock’ n’ roll. Vejamos como o poeta descreve essa característica:
Do menino passarinho com vontade de voar (Luis Vieira) a Janis Joplin. Mas com
uma diferença. A dor-de-cotovelo da MPB, dando a volta por cima. “Ah, você não
gosta de mim? Então, foda-se também, eu estou aqui e sou mais gostoso”
(ARAUJO, 2004, p. 355).
Desde o início a relação de Cazuza com a música se dava de uma forma
intrínseca e talvez tenha sido essa paixão que o motivou a lutar com tanta força nos momentos mais difíceis de sua vida, pois como ele sempre relatava, a
música era praticamente um “lance sexual”. Quando subia no palco se sentia
um super-herói e quando estava longe deste era apenas um menino tímido.
É a minha criatividade que me mantém vivo. Meu médico diz que sou um milagre, porque eu tenho tanta energia, tanta vontade de criar, e que é isso que me
deixa vivo. Minha cabeça está muito boa, ela comanda tudo (ARAUJO, 2004, p.
394).
O que diferencia Cazuza de muitos cantores é que ele mesmo compunha
suas letras, que diga-se de passagem, são legítimos poemas – marca de sua
autoria – pois o que nos interessa neste trabalho é a letra da composição e não
sua melodia.
Hoje sei que vendo meu bacalhau, mas meu lance mesmo é a poesia, que eu
mastigo e vomito no público (ARAÚJO, 2004, p. 359).
Ao cantar Cazuza fazia uma das coisas que mais o deixava feliz e ao
mesmo tempo era o que levava de forma mais séria em sua vida. Esta trajetória será drasticamente alterada quando descobre que está doente. Essa mudança em sua vida será percebida nas letras de suas músicas, pois o interprete
manifesta no corpo aquilo que o poeta institui no papel.
Podemos perceber que a partir do momento que nosso poeta exagerado
descobriu que estava com AIDS houve um amadurecimento, percebido nas
letras de suas composições. Neste período não deixou de fazer suas estripulias,
porém mudou sua forma de encarar o trabalho. No início dizia trabalhar apenas para se divertir, conquistar um “broto”, depois passou a ver o trabalho de
outra maneira, começou a se preocupar em cantar melhor e em falar mais de
coisas abrangentes, como por exemplo, de sua geração.
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A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
Falamos, de forma breve, da vida destes dois artistas, para demonstrarmos como mesmo estando em épocas distintas, tendo uma vida diferente, as
questões presentes em suas obras são semelhantes, pois ambos conseguem
tratar de sentimentos, de questões sociais, conseguem ver para além de “seus
mundos”.
2 A VIA-CRÚCIS DO CORPO
Freud ao definir a Sublimação afirma que esta é a capacidade do sujeito
de investir em atividades artísticas, intelectuais, ideológicas, cientificas, atividades denominadas pelo autor como “Atividades Superiores”. Compreendemos este processo como a possibilidade da pulsão se lançar a uma meta outra,
distante da satisfação sexual propriamente dita. A ênfase recai, então, sobre o
desvio em relação ao sexual, ou seja, pressupõem-se a manutenção do objeto
da pulsão, havendo, no entanto, a transformação do alvo. A sublimação seria o
que permitiria a constituição de uma dialética da alteridade por meio da inscrição da pulsão no campo da cultura, mais especificamente a “cultura de massa”. A arte seria assim, uma modalidade de sublimação às pulsões, na qual o
sujeito manteria o objeto de investimento transformando seu alvo. A partir
deste conceito proposto por Freud, podemos dizer que as duas obras quais
pretendemos trabalhar – o conto de Clarice e a música de Cazuza – foram originadas a partir do processo de sublimação.
O livro A Via-Crúcis do Corpo de Clarice Lispector foi publicado pela primeira vez em 1974, é composto por treze contos, os quais a mulher possui
uma posição central. Alguns críticos consideram esta obra como inferior aos
escritos de Clarice ou até mesmo imoral. Porém a autora, como em toda sua
obra, abre espaço para falar dos sentimentos mais profundos e das idiossincrasias da alma. Vejamos o que a autora fala sobre seu livro:
[...] O poeta Álvaro Pacheco, meu editor na Artenova, me encomendou três histórias que, disse ele, realmente aconteceram. Os fatos eu tinha faltava a imaginação. E era assunto perigoso. Respondi-lhe que não sabia fazer história de encomenda. Mas – enquanto ele me falava ao telefone – eu já sentia nascer em
mim a inspiração. A conversa telefônica foi na sexta-feira. Comecei no sábado.
No domingo de manhã as três histórias estavam prontas [...]. Todas as histórias
desse livro são contundentes. E quem mais sofreu foi eu mesma. Fiquei chocada
com a realidade [...].
[...] Já tentei olhar bem perto o rosto de uma pessoa – uma bilheteira de cinema.
Para sabem do segredo de sua vida. Inútil. A outra pessoa é um enigma. E seus
olhos são de estátua: cegos [...] (LISPECTOR, 1974, p. 9-11).
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Percebemos que apesar de alguns críticos considerarem este livro inferior, pela descrição da autora pode-se dizer que ele possui uma profundidade,
característica de Clarice. MD Magno em seu livro Arte e Psicanálise: Estética e
Clinica Geral, nos faz refletir sobre a racionalidade e emoção presente na obra
de arte e tenta demonstrar que ambos estão presentes na obra de arte, tanto
a racionalidade quanto a emoção. Faz isto invertendo a frase de Pascal a qual
diz: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”, Magno (2008, p.
38) dirá: “A razão tem corações que ela própria não se dá conta”. Podemos
dizer que o conto que trabalharemos a seguir é pura emoção, ou seja, a estória
contada por Clarice é sobre um ato passional, onde por amor acaba se cometendo um assassinato.
Neste momento trabalharemos em especial o conto O Corpo, qual pode
ser considerado como o cerne do livro além de ser o conto que mais inspirou o
cantor Cazuza em sua composição A Via-Crúcis do Corpo.
O conto O Corpo relata a história de um homem bígamo chamado Xavier, ele mora com Carmem e Beatriz, mas além de já manter uma relação dupla,
às vezes sai para manter uma terceira relação com uma prostituta. Em princípio Carmem e Beatriz nada sabem e vão se tornando cada vez mais amigas
além de manterem uma relação intima quando Xavier não estava em casa,
como Lispector nos diz “faziam amor apesar de não serem homossexuais. Amor triste.” Em um determinado momento Xavier chega em casa com uma
marca de batom na camisa, as duas começam a ficar desconfiadas até que
descobrem a traição. Ficam furiosas e decidem se vingar, Carmem pode ser
considerada como a líder, aquela que planeja tudo enquanto Beatriz obedecia.
Certa noite ficam olhando Xavier dormir e pensando o que fazer. Carmem diz
ter duas facas na cozinha, elas pegam-nas e matam o homem.
Comparando este conto à música de Cazuza fica claro as semelhanças,
porém o cantor elabora a maior parte da letra em primeira pessoa. Além disso,
podemos dizer que faz suas próprias interpretações, usa de sua singularidade.
Essa é a diferença essencial entre um artista para uma pessoa que não é artista, pois as pessoas que não são também se emocionam diante de uma obra
literária ou de obras de arte, já o artista consegue fazer algo a mais, outra obra
de arte a partir daquela que leu ou viu. Descrevendo assim, o que sentiu ao
defrontá-la, traduzindo isto (no caso de Cazuza) em palavras. Freud nos diz que
a diferença está justamente no fato do artista conseguir materializar suas emoções e fantasias, enquanto que o homem sem esse dom ficará com essas
fantasias apenas no pensamento.
Vejamos a letra da composição de Cazuza, na íntegra, para compreendermos melhor as semelhanças com o conto de Clarice:
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O homem pode ter suas fêmeas
Mulheres podem ter seu machos
Tudo é possível no amor
Só não volta a infância perdida
Só não nos livramos de morrer à toa
O amor pode não ter ciúme
A dor pode ser disfarçada
Mas a via-crúcis do corpo
Já foi a muito traçada
Meu Deus, estamos abandonados
E só nos resta matar
Meu Deus, como a vida é amarga
E doce como chocolate
Será que eu tenho um destino?
Não quero ter a vida pronta
Como um plano de trabalho
Como um sorvete de menta
Matei, mataria mil vezes
E mil vezes não me arrependeria
Quem mata por amor tem perdão
Porque o amor é a morte
A comida na mesa
Os vasos de jardim
O corpo do ser amado
Enterrado no jardim
Deus, por que não me procuras?
Tenho sempre que ir a ti
Deus, estamos cansados
Está tudo desequilibrado
Meu ciúme é um crime comum
Minha infância está perdida
Não há nada de mais em matar
O escroto que não te ama
A via-crúcis do corpo
O mundo caminha assim
A via-crúcis da alma
Essa nunca vai ter fim (Cazuza. A Via-Crúcis do corpo, 1989).
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Na primeira estrofe já percebemos as semelhanças do conto de Clarice
na composição. Cazuza, da sua maneira, fala da relação de bigamia existente
no conto, percebemos isso na frase “O homem pode ter suas fêmeas”. Porém
a palavra pode dá uma autorização, ou seja, concorda com o fato e isto envolve a singularidade do cantor diante da leitura que fez do conto, pois em nenhum momento há uma discussão se este fato é aceitável ou não. Percebemos
que o compositor usa da primeira pessoa em vários momentos da música. Será
que estaria presente nesta música algo de sua vida? Não sabemos, e nem é
este nosso objetivo, mas o que se percebe que é uma característica marcante
em suas composições, é o fato de eliminar o amor e considerar apenas o sexo,
como também faz nesta composição.
Em diversas composições Cazuza fala de questões homossexuais ou bissexuais e A Via-Crúcis do Corpo é uma delas, onde percebe-se que o cantor
concorda com o que se passa no conto ao dizer que “Tudo é possível no amor”.
Sabemos que hoje ainda existe preconceito em relação ao homossexualismo,
mas na época em que Cazuza escreve esta composição este preconceito é ainda maior. Podemos pensar estas manifestações explícitas de demonstrar que
concordava com estes relacionamentos amorosos em suas músicas como uma
tentativa de instigar o ouvinte a também se questionar sobre esta temática.
“Só não volta a infância perdida, só não nos livramos de morrer à toa”.
Apesar de matar seu amado, as mulheres não resgatam o tempo que passou, e
por outro lado, o homem, por amar, não se livrou de morrer à toa. “O amor
pode não ter ciúmes, a dor pode ser disfarçada”. Essa frase da composição
demonstra o que acontecia no início do conto, pois apesar de sentir dor, ciúmes, isto era disfarçado, até que um dia aparece, pois “a via-crúcis do corpo a
muito já foi traçada”.
“Meu Deus, estamos abandonados e só nos resta matar”. Esta frase demonstra, de certa forma, o que as duas mulheres sentiram ao descobrir que
haviam sido traídas por uma terceira mulher, o desespero de ambas. Ao dizer
“Como a vida é amarga e doce como chocolate” nos mostra a dualidade da
vida, não vivemos apenas de momentos bons, mas sim um vai e vem de sentimentos bons e ruins. No conto as duas mulheres possuem uma vida feliz ao
lado de seu amado apesar de ter que dividi-lo entre elas, o problema surge
quando percebem que não são “suficientes” para aquele homem, ele precisa
de mais, e isto mostra o lado amargo de suas vidas. Mas também, pode nos
fazer refletir sobre questões outras, ou seja, a perfeição é utopia e toda vida
terá o lado amargo e doce.
A quarta estrofe da composição é criação própria do cantor, o qual faz
questionamentos e conclusões em relação à leitura que fizera do conto de
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Clarice. “Será que eu tenho um destino? Não quero ter a vida pronta como um
plano de trabalho, como um sorvete de menta”.
“Matei, mataria mil vezes e mil vezes não me arrependeria”. Ao matar
Xavier, as duas mulheres demonstram tristeza, mas não arrependimento, pelo
contrário chegam a ser irônicas no momento em que os polícias chegam em
sua casa e elas mostram onde o corpo de Xavier está enterrado. Pois “quem
mata por amor tem perdão porque o amor é morte”. Esta frase pode ser considerada como uma justificativa para o ato das duas mulheres. “A comida na
mesa os vasos de jasmim o corpo do ser amado enterrado no jardim”, esta
frase é muito semelhante ao que ocorre no final do conto.
A sétima estrofe, como ocorre na quarta, é algo próprio de Cazuza, e
como em outras composições questiona Deus (semelhança com Clarice, pois a
escritora em diversos livros usa o nome de Deus, ora para questionar, ora para
exaltar, como ocorre com Cazuza). “Deus, porque não me procura? Tenho
sempre que ir a ti. Deus, estamos cansados, está tudo desequilibrado”.
A próxima estrofe, também como já ocorrera anteriormente, parece ser
uma justificativa para o crime ao dizer que “Meu ciúme é crime comum”, traz
o leitor para dentro da história, pois ciúme é algo comum e muitos crimes já
foram cometidos em função deste sentimento. A justificativa continua: “Não
há nada de mais em matar um escroto que não te ama” e finaliza a composição com a seguinte frase: “A via-crúcis do corpo, o mundo caminha assim, a
via-crúcis da alma, essa nunca vai ter fim”.
Enfim, percebemos que apesar de Cazuza, ora justificar as mulheres ora
justificar a atitude do homem, não toma partido por nenhum dos personagens
como ocorre no conto, onde não há um julgamento explícito do autor de quem
está certo ou errado. Além desta, outras inúmeras semelhanças são percebidas
entre o conto de Clarice e a música de Cazuza. Podemos dizer que a estória é a
mesma, mas como cada autor usa de sua singularidade, o escrito posterior
será semelhante e não igual ao escrito que o antecede. Apesar de Cazuza ter
usado o conto de Clarice como modelo ele está modificado, até mesmo pelo
medo que é elaborado, em forma de canção.
CONCLUSÃO
A partir deste trabalho, da comparação de escritores com tanta importância literária, cultural e social, como é o caso de Clarice Lispector com sua
obra literária, e de Cazuza com sua obra musical, percebemos como a obra de
Clarice influenciou a obra de Cazuza e sua própria vida, pois o cantor se identificava com os escritos de Clarice, isto fica claro não apenas nas influências que
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a escritora teve na carreira do cantor ao compor músicas inspiradas em seus
textos, mas também no fato de Cazuza considerar um de seus livros como sendo seu livro de cabeceira – o livro Água Viva.
A importância destes dois autores pode ser percebida no fato de anos
após suas mortes ainda serem admirados e estudados. Clarice, escritora única,
marcou sua geração e continua sendo lida até os dias de hoje; já Cazuza marcou o rock’n’roll dos anos oitenta, devido a expressão singular presente nas
letras de suas músicas, as quais são muito ouvidas nos dias de hoje e regravadas por diversos cantores. Ambos os escritores falaram de questões sociais.
O conto e a música estudados neste trabalho, ambos com mesmo título:
A Via-Crúcis do Corpo, narram uma estória que faz com que o leitor e/ou ouvinte se questione, pois tanto Clarice como Cazuza, conseguem fazer com que
questões que sejam aparentemente consideradas questões individuais se ampliem, faz com que o receptor se dê conta de coisas que antes, talvez, não
tivesse se questionado. Este conto e esta música trazem à tona um tema difícil
de ser tratado, que é o caso de um assassinato passional e também, de relacionamentos considerados pela sociedade em geral como promíscuos, mas a
forma com que ambos abordam estas questões faz com que “enxergamos” de
outra maneira. Esta, talvez, seja a grande característica de ambos: conseguir
falar de questões, que principalmente para a época que se encontravam eram
questões difíceis e carregadas de preconceitos, de uma forma que muitas vezes é tida como bela, conseguindo assim, transformar temas difíceis –
inquestionáveis por muitos – em reflexões.
Enfim, a partir da intertextualidade e da teoria da literatura comparada
podemos unir Clarice Lispector e Cazuza, escritores a princípio diferentes, porém estudando-os percebemos que possuíam muitas questões em comum,
questões estas que os inquietavam e que os faziam escrever, pois podemos
pensar a arte como uma exteriorização do conhecimento imaginativo do sujeito, que por meio de sua obra consegue expor seu conhecimento ao mundo
externo, já que a arte nasce do inconsciente do criador.
REFERÊNCIAS
ARAUJO, Lucinha. Cazuza: só as mães são felizes. Lucinha Araújo em depoimento a Regina Echeverria; projeto gráfico Hélio de Almeida. 2. ed. São Paulo: Globo, 2004.
ARAUJO, Lucinha. Cazuza: preciso dizer que te amo. São Paulo: Globo, 2001.
BRANDÃO, Ruth Silviano. Literatura e psicanálise. Porto Alegre: Edufres, 2004.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.
LISPECTOR, Clarice. A via-crúcis do corpo. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
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MAGNO, M. D. Arte e psicanálise: estética e clínica geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Novamente,
2008.
NOGUEIRA, Arnaldo Jr. Projeto Releituras. Disponível em <http://www.releituras.com/clipector
_bio.asp>. Acesso em 09/05/2009.
ZILBERMANN, Regina et. al. Clarice Lispector: a narração do indizível. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998.
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A TRADIÇÃO ORAL E A LITERATURA DESCOLONIZADORA EM JOÃO
GUIMARÃES ROSA E MIA COUTO
Miguel Nenevé1
Rose Siepamann2
Resumo: Neste trabalho exploramos a tradição oral, a linguagem brincalhona,
revolucionária e descolonizadora em dois textos em línuga portuguesa: “A terceira margem do rio”, do brasileiro João Guimaraes Rosa e “Nas águas do
tempo”, do moçambicano Mia Couto. Nos dois contos as personagens se misturam e se diluem com a imagem do rio, uma vez que elas buscam, pelo rio, fazer
seus deslocamentos para um mundo mais interior, mais íntimo mais isolado.
Tanto em Guimaraes como em Couto, pode-se perceber que a linguagem como
instrumento de revolução e descolonização uma vez que revisitam culturas e
vozes “condenadas”, recriando, revalorizando e revigorando uma linguagem
esquecida pelos “homens cultos.” A linguagem “impura”, o linguajar do povo, o
brincar com a linguagem, o inventar e desinventar enchem os dois textos de
graça e sugerem relfexao sobre um mundo de pessoas simples, apegadas à terra.
Palavras-Chave: Criação, Linguagem, Inventação, Descolonizaçao.
Abstract: In this study we explore the oral as well as the creation and recreation
of Portuguese language in the works of a Brazilian and a Mozambican writer. We
focus our attention on their use of a creative, “impure” and revolutionary language. Joao Guimaraes Rosa in “The Third Bank of the River” and Mia Couto in
“The Waters of Time” reveal very good skills in re-inventing and recreating the
Portuguese language in a way that makes the text very light and funny. In both
stories, simple people from the interior get mixed with the river that flows along
their lives. At the end, river and man seem to be the same. The simple “impure”
and unsophisticated language reveals the close connection between man and nature at the same time that promotes a recovery of the forgotten culture of the
people. In this way, one can state that the revolutionary language is a way of valorizing people´s simple life and in this way a decolonizing a particular world.
Key Words: Creation, Language, Invention, Decolonization.
– A propósito da língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. […] a mucosa está coberta de
fungos, formando uma placa esbranquiçada.
– Quais fungos? – reage Bartolomeu. Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser
porque só falo português (Mia Couto, Venenos de Deus, p. 110-111).
1
2
Doutor em Letras, Professor de Literatura de Língua Inglesa da Universidade Federal de Rondonia (UNIR); endereço eletrônico: [email protected].
Aluna PIBIC do Curso de Letras Ingles da Universidade Federal de Rondonia (UNIR); endereço
eletrônico: [email protected].
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Em uma palestra proferida na UFMG em Belo Horizonte, em julho de
2007, Mia Couto afirma que “Brasil e Moçambique não apenas falam a mesma
língua, mas sentem de forma semelhante o que não pode ser dito em nenhum
idioma”3. O autor acredita que há muita cosia em comum entre os dois países
como uma espécie de saudade do que aconteceu, ou lamentação do que poderia ter acontecido, são sentimentos comuns a países de língua portuguesa.
Por inúmeras vezes o autor tem confessado a importância da literatura brasileira para a sua literatura, o seu jeito irreverente de escrever. Entre os escritores brasileiros que deixaram influência em sua alma e em seu jeito de escrever,
está o mineiro João Guimarães Rosa. Neste trabalho gostaríamos de explorar a
tradição oral e a importância dela tanto para o brasileiro Guimarães Rosa como
para o moçambicano Mia Couto. Argumentamos que tanto o brasileiro como o
moçambicano de certa forma escrevem uma literatura descolonizadora ao
voltar para o seu passado, ao resgatar ditos populares, provérbios do povo da
terra, mitos escondidos nos distantes confins. Exploramos também a diferença
entre os dois escritores. Enquanto que em Guimarães a narrativa vai se tornando densa, em Mia Couto, parece haver mais uma preocupação com o processo da criação ou melhor recriação da linguagem do que com questões psicológicas. “Escolhemos os contos, “A Terceira Margem do Rio” de Guimarães
Rosa e “Nas Águas do Tempo” de Mia Couto uma vez que em ambos os textos
a paisagem humana e as vozes diversas não ouvidas anteriormente são valorizadas pelos autores. Nos dois contos estas vozes se misturam e se diluem com
a imagem do rio, uma vez que as personagens buscam, pelo rio, fazer seus
deslocamentos para um mundo mais interior, mais íntimo mais isolado. Ademais, nas duas obras pode-se perceber que os autores usam a linguagem como
forma de descolonização uma vez que revisitam culturas e vozes recriando e
revalorizando e revigorando uma linguagem esquecida. Antes de apresentarmos os textos, gostaríamos de discutir brevemente o conceito de descolonização por meio da linguagem proposto por alguns teóricos do pós-colonialismo.
A Linguagem é fundamental para a discussão sobre descolonização porque a colonização começa com a linguagem. “O controle do ‘centro’ (que se
instala como padrão) sobre a língua do outro, isto é sobre outras variantes
‘impuras’, permanece como um dos mais fortes instrumentos de controle. Por
exemplo, a força da linguagem pode ser demonstrada pelo poder de nomear, a
função dos nomes que se dá aos locais ou às pessoas. Nomeá-lo é entender.
Portanto, renomear, recriar a linguagem é uma forma de dizer que não se aceita a imposição ou a colonização. Referindo-se à linguagem e colonização, o
3
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Palestra proferida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no dia 3 de julho 2007,
no auditório da reitoria da UFMG. Disponível no periódico Centro de Informação da UFMG.
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queniano Ngugi Wa Thiong´o (1986) afirma que a cegueira (ou surdez) que
muitas vezes a mente colonial tem em relação à voz, à realidade e à cultura de
povos humildes, colonizados explica um pouco da história de desconsideração
para o povo do interior, para o colonizado. A tradição e cultura oral, as histórias foam desconsideradas “por não fazerem parte do mundo “ civilizado” do
mundo do colonizador. Em sua obra Decolonizing the Mind (1986) Ngugi, lembrando Frantz Fanon, argumenta que a lingaugem é usada para colonizar, para
afastar o povo colonizado do colonizador, do centro onde se tomam as decisões. Portanto a linguagem funciona como um mecanismo que separa os “ que
sabem” e os que não sabem. Assim aprender a lingua culta, no caso de Ngugi,
a língua inglesa, significa esquecer o passado, a história, as crenças enfim a
herança cultural.
A linguagem culta, logicamente, vai refletir somente a história e a cultura dos privilegiados. Neste aspecto, a colonização não é uma questão de força
física, mas de uma subjugação psicológica ou subjugação espiritual. Quando se
propaga que a cultura verdadeira é a do colonizador, que usa a norma culta,
quando se despreza a tradição oral ou a oratura, devasta-se a cultura do povo
humilde, sem educação e sem acesso ao poder. Como diz o autor queniano, “a
lingua carrega cultura e cultura carrega (principalmente por meio da oratura e
literatura), o corpo completo de valores pelo quais nós percebemos a nós e
nosso lugar no mundo.” Portanto, é a linguagem que vai ajudar a descolonizar,
a recuperar e a repensar valores e crenças até então negligenciados.
No capítulo “The Language of African Literature”, da obra Decolonizing
the Mind, Ngugi volta a argumentar que ele, com seu povo, aprendeu o valor
das palavras pelo seu significado e suas nuances : “Language was not a mere
string of words. It had a suggestive power well beyond the immediate and
lexical meaning”. Ou seja, a língua não era apenas uma série de palavras, mas
tinha um poder sugestivo muito além do significado lexical imediato” (p. 11). O
autor confirma que a apreciação da força sugestiva da língua era reforçada por
jogos de palavras, provérbios, transposição de sílabas de música da sua cultura. A alienação colonial acontece quando a pessoa se distancia do seu mundo,
da realidade ao redor, começa com uma dissociação,com uma afastamento
deliberado de sua língua, de seus conceitos, de seu pensar, de sua educação
enfim, da linguagem do dia a dia (p. 28).
Em sua obra The Wretched of the Earth, Frantz Fanon argumenta que a
descolonização tem que acontecer em cada nível, para que aconteça a criação
de “ um novo homem” (p. 36) uma vez que o colonizador conquista privilégios
à custa do prejuízo do colonizado, ele sente necessidade de justificar o privilégio ao criar o mito de si mesmo e o mito do colonizado. O colonizador é o virA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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tuoso, o civilizado, aquele que tem a linguagem e comportamento corretos e
por isso conquista a mais alta posição. Por meio da linguagem pode-se também reverter esta visão ao resgatar a cultura e a história do povo oprimido.
Fanon enfatiza que o intelectual que escreve para o sua nação, deve escrever
para compor a sentença que expressa o coração do povo e para tornar-se uma
peça importante para uma nova realidade em ação (p. 179). Por fim, o intelectual nativo deve usar o passado com a intenção de abrir o futuro, como um
convite e uma base para a esperança (p. 187).
Bill Ashcroft (1995, p. 300) sustenta que a linguagem é o primeiro defensor da “propriedade”, comumente mantida para incorporar ou conter o significado por uma representação direta ou de um jeito mais sutil ao determinar a
percepção do mundo. “ A linguagem num mundo pós-colonial, caracterizada
como é pela complexidade, hibridização e mudança constante, inevitavelmente rejeita a crença numa estrutura ou num código lingüístico que pode ser descrito pelo colonizador como “ padrão.” Este rejeitar da linguagem padrão está
bem visível nos textos que nos propomos analisar. Neste caso que o linguajar
do povo ou até mesmo o dialeto vem como forma de descolonização. Edward
Kamu Brathwaite (1995, p. 311), por exemplo, falando sobre a língua do Caribe, o inglês caribenho diz que o dialeto foi considerado um erro, um inglês
ruim, uma linguagem inferior. Por outro lado, ele afirma que o dialeto ou a
linguagem impura é a língua que se usa quando se quer fazer graça de alguém.
“ Caricatura fala em dialeto” (p. 311). A linguagem impura como o dialeto tem
uma longa história de colonização de sofrimento, de distância do centro vêm
do interior onde as pessoas trabalhando na roça tem sua dignidade distorcida
por meio da linguagem. É neste aspecto que ambos os escritores, o brasileiro
João Guimarães Rosa e o moçambicano Mia Couto podem ser considerados
autores de textos descolonizadores. Os seus textos são visivelmente uma resposta a uma dominação cultural ou lingüística. Eles tecem suas histórias que
são as histórias do seu povo demonstrando uma recusa em usar a língua padrão e a cultura padronizada do colonizador. Eles nomeiam a sua realidade, o
seu povo e o seu ambiente, visivelmente extraindo daí uma força textual que
forma harmonia com a complexa identidade cultural do povo menos privilegiado que aparecem em seus textos.
É esta linguagem do povo sofrido, esta linguagem de deboche de divertimento, esta linguagem fora do padrão, esta linguagem reinventada, “brincriada” que veremos tanto em histórias de João Guimarães Rosa e de Mia Couto.
Neste trabalho exploraremos os universos rosiano e coutiano mostrando como
a há identificação pelo uso da linguagem como descolonização, pois ambos se
aproximam pela herança colonial, fatores de subdesenvolvimento, às trocas
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A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
culturais, e à língua. Mas o que mais os entrelaça é o gesto e o gosto do contar,
poderíamos de dizer, de ouvir as personagens falarem do seu jeito. Assim a
suas obras nos dão a certeza de que a literatura atravessa os tempos, as fronteiras e mergulha nas ondulações da história, para recriá-las de uma certa forma rejeitando o padrão, o oficial. Neste aspecto que há uma descolonização
uma volta à língua portuguesa uma briancriacão e uma re-criação. Há também
descolonização pelo fato de podermos ouvir aquelas vozes muitas vezes negligenciadas em outras vozes pela história oficial. Ambos se aproveitam da possibilidade da oratura ou da literatura oral para desestabilizar as verdades, as
certezas e as identidades imutáveis.
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908.
Foi médico, atuou como diplomata, atividades que ajudaram nos caminhos
para um escritor que construiria uma obra carregada de experiências humanas
pungentes, aflitivas, dolorosas, com muitos mistérios. Seus textos nunca cessarão de gerar discussões, sob várias abordagens. Suas obras entre as quais
Grande Sertão Veredas, Sagarana, Primeiras Estórias são conhecidas no Brasil e
no exterior e no ano de sua morte, 1967 ele seria indicado para o Prêmio Nobel de literatura.
“A Terceira Margem do Rio” é um conto que faz parte do livro “ Primeiras Estórias” publicado em 1962. Neste texto não é difícil perceber que o autor
transpõe barreiras lingüísticas para favorecer a rebeldia no uso da língua portuguesa. A recriação,a recuperação de provérbios e dizeres revelam a busca de
um mundo esquecido, mais profundo, mais primitivo. O leitor sente logo a
marca da solidão, de uma viagem feita a sós, à busca das origens,ou busca a
um mundo desconhecido, a algo nunca antes esclarecido. O pai que “era sério,
cumpridor, ordeiro, positivo” (ROSA, 2005, p. 77) um dia decidiu fazer uma
canoa pequena para ele deslizar pelo rio. Para explicar a decisão da partida do
pai é que são ouvidas muitas vozes que revelam a visão de um povo humilde
do interior de Minas. Mostrando convivência com o povo deste interior, o autor vai colocando a contribuição popular em seu texto. Já no início. por exemplo se percebe a oralidade, aquilo que se ouve na boca das pessoas, como por
exemplo: “ do que eu mesmo me alembro (ROSA, 2005, p. 77). “Nosso pai nada não dizia” “ nossa mãe era que regia e que ralhava no diário” (p. 77). A oralidade revela também intimidade, apego ao chão, à terra e à natureza. É interessante observar que na expressão da mãe, a mulher,” Cê vai, ocê fique, você
nunca volte!” (p. 77), há uma gradação de uma linguagem oral para uma linguagem mais culta. Poderíamos dizer que a norma culta significa o distanciamento, a ruptura com aquela vida. Ao se afastar, ao ir embora, o homem se
afasta da vida coloquial, cotidiana, íntima com a mulher, deixando de ser próA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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ximo para ser distante. A oralidade, portanto, pode ser a força da vida deste
povo, a valorização do não ouvido pelo centro, do esquecido pelas autoridades, do negligenciado pelos homens “ cultos” que vivem distantes dali.Quando
a mulher opta pela linguagem culta é como se estivesse assumindo outra identidade, ou assumindo a perda do seu mundo, do seu jeito de ser, como se estivesse aceitando a colonização.
Portanto, como vimos argumentando a oralidade dá força à linguagem
como um meio de descolonização uma vez que convida o leitor a repensar a
realidade de uma região muitas vezes negligenciada e esquecida. . A oralidade
é reproduzida na fala do narrador: “o rio por aí se estendia grande, fundo, calado que sempre” (p. 77). As frases curtas também lembram ao leitor a realidade de poucas palavras de um mundo distante da cidade: Ele me escutou.
Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá concordando (p. 78). A
recriação ou o distanciamento da linguagem padrão, podemos dizer a rebeldia
no uso da língua também é revelada pela sintaxe: “não fez a alguma recomendação”, “nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no
brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele”. Quando o autor usa expressão como “o rio-rio-rio,
o rio sempre fazendo perpétuo” parece refletir o linguajar do povo do sertão
do pouco vocabulário e da necessidade de enfatizar o contínuo fluxo do rio, o
não parar, o continuar a existir. Podemos dizer que o constante uso de neologismos serve para mostrar a herança cultural e lingüística, para revelar conceitos que podem contribuir para o entendimento deste mundo íntimo. Vemos
em “A Terceira Margem”, por exemplo, neologismos como “diluso” (p. 79) que
pode ser, talvez, uma variante de diluto, diluído; “bastável” (p. 79) adaptação
do verbo bastar com o sufixo “avel”, significando que pode bastar; “entrelembro” (p. 81), lembrar entre um e outro pensamento. Assim em sintonia com o
contexto vão aparecendo muitos outros neologismos: “malsinar”, “demoramento”, “bubuiasse” (p. 81). Esta linguagem sugere que os mistérios da alma,
mesmo das pessoas simples é de difícil acesso, de difícil compreensão. A loucura de um pai no sertão pode remexer lembranças, visitar uma consciência distante ou talvez expressar a necessidade da fuga de um mundo que não podia
ser seu. Pelo rio, o pai pode estar buscando a si mesmo, buscando mistérios
que ainda não pode compreender em si mesmo. Esta mesma busca, de um
modo mais sobrenatural, acontece no conto “Nas Àguas do Tempo “de do
moçambicano Mia Couto.
Mia Couto nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Atuou como jornalista, biólogo e, como escritor, tem construído uma vasta obra que mostra a
realidade de um país repleto de vozes singulares, apresentadas ao leitor pelo
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forte imaginário do autor que se dilui ao imaginário do povo moçambicano.
Segundo o próprio autor a utilização deste apelido tem a ver com sua paixão
pelos gatos e desde pequeno dizia a sua família que queria ser um deles. Ele
disse uma vez que não tinha uma “terra-mãe” — tinha uma “água-mãe”, referindo-se à tendência daquela cidade baixa e localizada à beira do Oceano Índico para ficar inundada. Entre os romances se destacam Terra Sonâmbula, O
último Vôo do Flamingo e o Outro Pé da Sereia.
Por diversas vezes em várias entrevistas Mia Couto tem confessado que
obra de Guimarães Rosa influenciou seus escritos. Foi por meio do angolano
Luandino Vieira. que ele chegou a Guimarães, como confirma o autor em entrevista em 13 e janeiro de 2009:
O Guimarães foi uma iluminação para mim, uma descoberta importantíssima. Eu
tinha feito já um livro, Vozes anoitecidas, em que eu me deparava com essa coisa
do como é que eu vou escrever usando esta língua portuguesa herdada dos portugueses com uma estrutura, uma lógica, uma racionalidade e como esta língua
pode contar as histórias que eu quero, como pode dar luz a esses personagens
4
que vivem numa outra cultura .
Parece que podemos afirmar Guimarães por meio do Angolano Luandino
Vieira ajudou Couto a refletir, repensar e revisar questões de herança lingüística, questões de fronteira entre a escrita e a oralidade, questões que refletem a
descolonização pela linguagem:
Luandino [Vieira] foi a primeira influência grande. Ele faz isso com o linguajar de
Angola, particularmente dos subúrbios de Luanda. Depois, numa entrevista que
Luandino deu, eu tomei conta de que existia um tal João Guimarães Rosa deste
lado. Mas não tinha nenhuma maneira de chegar até ele, porque nós tínhamos a
guerra e não havia coisas do Brasil circulando. Pedi a um amigo que me trouxesse um livro, trouxe Primeira Histórias. De facto, foi um momento mágico. A escrita do Guimarães Rosa está cheia não só desse trabalho de reconstrução de uma
língua mais plástica, mas também há ali um convite para que a oralidade invada
a escrita, numa espécie de transbordarão daquilo que é a lógica da escrita, que
se deixa ir por outra lógica. Acho que é mais do que um trabalho lingüísticopoético. É uma coisa que tem a ver com a fronteira entre a oralidade e a escrita,
isso é que foi importante para mim (COUTO, 2009 – entrevista).
No conto “Nas Águas do Tempo” que faz parte da coleção Histórias Abensonhadas, Mia Couto, como no conto de Guimarães Rosa, apresenta vozes
que se diluem com o correr do rio. A oralidade e a recriação são as marcas das
falas das pessoas. Neste conto o narrador não é o filho, como em Guimarães
4
Entrevista a Fabio Salem, Nivaldo Souza, Rodrigo Antonio, Rodrigo Turrer e Thais Arbex Pinhata. Disponível em: http://group.xiconhoca.com/2009/01/13/mia-couto-autor-de-oultimo-voo-do-flamingo-entrevista.
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Rosa, mas é o neto: “Meu avô nestes dias me levava rio abaixo” (p. 13). Nas
duas estórias a mulher fica na terra e os homens buscam o rio como se à procura de um mistério. Parece que a mulher, como aparece em outras estórias
dos dois autores deve se apegar mais à casa, ao chão, enquanto que o homem
pode seguir o fluxo da vida, ou o fluxo do rio, sempre revalorizando as vozes
antigas, a voz interior, os ancestrais, o quase esquecido:
Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do
mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca
de morrer. A esse rio volto a gora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos de outra margem (COUTO, 2003, p. 17).
Como Guimarães Rosa, Mia Couto, recria, dentro da língua portuguesa,
uma outra língua culturalmente remodelada, baseada na oralidade, nos costumes e na sabedoria do povo. Por exemplo: “[...] Ele remava, devagaroso,
somente raspando o remo na correnteza.O barquito cabecinhava, onda cá,
onda lá, parecendo ir mais sozinho quer um tronco desabandonado” (COUTO,
2003, p. 14): Como em Guimarães, os verbos são criados a partir de nomes,
prefixos são utilizados para recriar e reinventar palavras com significado específico para o momento. É bom lembrar que não se pode dizer simplesmente
que o autor moçambicano recria a linguagem passando da tradição para o
texto. Segundo estudiosos, como Iolanda Cristina (2003) e Maria do Carmo
Lanna Figueiredo (2003), Mia Couto não faz uma simples recriação dos elementos da tradição para o texto, porque ela ainda é vivida pelo seu povo, especialmente no que diz respeito à população que vive no meio rural, ainda sem
acesso à alfabetização, tendo como forma potente de comunicação a oralidade
. É esta oralidade viva e pertinaz que fica visível por exemplo no deslocamento
da ordem sintática, semântica e lexical, como na prefixação, sufixação etc.
Argumentamos que ela serve para dar força de expressão a vozes amortecidas
num país pobre e colonizado.
Os neologismos em Mia Couto, como em Guimarães, servem também
para mostrar a herança cultural e lingüística, de um povo que fica longe dos
centros de poder. Expressões como “devagarosos” “ agorinha”, desbengalado”
“ solavanqueava”, “ ensonada”, “ sonecando”, “espantável”, “desequilibrismo”
“ alonjar-se” “ arrepioso”, “barafundido” “neblinaram”, entre muitas outras”,
são marcas de Mia Couto em suas estórias e revelam a importância que se dá
às populações esquecidas, semi ou completamente analfabetas, que se expressam pela palavra dita e não escrita. Os recursos do autor moçambicano,
como do autor brasileiro, não somente dão graça ao texto, mas também chamam atenção do leitor para um mundo diferente, um mundo esquecido, negli96
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genciado que precisa ser ouvido e que contém uma riqueza cultural inestimável.
Assim a narração, a memória e a História se entrecruzam de tal maneira,
que o leitor percebe que a ficção agradável de se ler não fica muito distante da
realidade social. Neste caso, a postura dos autores não é apenas uma questão
de estética, mas também ideológica. Neste aspecto o texto descoloniza o antigo, o tradicional, o oral o português dos cantos mais pobres. A tradição em
Couto como em Guimarães não é algo para ser evocado ou apenas lembrado,
mas, da mesma forma como permanece viva em seu país, traduz-se no texto.
Ao lermos, ouvimos, um “falar”; de vozes que privilegiam a oralidade, as raízes,
as origens, as lembranças velhas, o quase esquecido.
Como diz Iolanda Cristina Santos no artigo “Brasil e Moçambique: Estórias que se contam”.
Uma das marcas desta linguagem é a oralidade, responsável por dar vigor ao texto e traduzir a vida, as vivências, costumes e comportamentos das diversas comunidades culturais de Brasil e Moçambique. Nesse sentido é importante ressaltar que Moçambique, sendo um país cuja cultura é predominantemente ágrafa,
não somente a literatura, bem como a história recorre, quando necessário, à tradição oral, utilizando-a como fonte (ver http://www.segundocoloquioafricano.
ufjf.br/iolanda.pdf).
Como temos demonstrado, além das características da tradição oral, a
criação do autor também acolhe vários neologismos também na forma textual
como semântica. Isto, não é somente uma postura estética ou lingüística, mas
postura descolonizadora que pretende dar força às diferenças, às vozes negliciadas ou esquecidas. A ligação com o mundo antigo, entre sonho e realidade
proporciona nova visão:
Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a
neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito
espanto, tremendo de um frio arrepioso.... Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares.
E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos
se neblinaram até que se poentaram as visões (COUTO, 2003, p. 14).
Deste modo, Mia Couto como Guimarães, reflete o que Fanon (p. 36) argumenta, isto é, que o intelectual quando escreve para seu povo deve escrever
no sentido de resgatar a esperança, de mostrar as margens que tem muito a
tecer com o centro.
Podemos concluir, portanto, que os textos de Mia Couto e Guimarães
Rosa podem ser lidos como textos descolonizadores, ao usar a linguagem para
mostrar rebeldia à visão estereotipada de um país, de uma região, de um povo.
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As vozes amortecidas, negligenciadas, distorcidas aparecem para fazer a diferença, para anunciar um outro mundo. Ademais, os textos de Guimarães e Mia
Couto, argumentamos, dialogam entre si para reafirmar, inverter, contestar e
deformar alguns de seus sentidos. “A Terceira Margem do Rio” e “Nas Águas
do Tempo”, revelam que prosa e poesia se confundem para mostrar uma realidade nunca antes percebida. Ambos os autores tratam da angustia do ser
humano diante do mistério da vida e da morte. Concluímos que os dois autores nos contos analisados escrevem textos de descolonização usando a linguagem para desvelar, revelar e desmantelar a ‘ verdade” ou a mentira do colonizador. Logicamente pode-se perceber diferenças nos contos dos autores. Em
Mia Couto, parece haver mais uma preocupação com o processo da criação ou
melhor recriação da linguagem e menos com a história em si ou com questões
psicológicas mais profundas. Segundo o autor moçambicaono(2007), a idéia de
recriar, dentro da língua portuguesa, uma outra língua culturalmente remodelada, concretiza a possibilidade de mediação entre classes cultas e simples por
meio da fala. "Somente renovando a língua se pode renovar o mundo", argumento o autor. Mia Couto também explora mais a questão do sobrenatural, do
apego aos antepassados. A sua narrativa parece ser mais brincalhona e mais
leve enquanto que em Guimarães a narrativa vai se tornando densa, como se
sugerisse a necessidade de se recorrer à Psicologia para entender os mistérios
do pai. Os textos sugerem que a Linguagem é fundamental para a descolonização. Eles chama atenção sobre a língua do outro, isto é sobre outras variantes “ impuras” a linguagem do povo apegado à terra, à casa, ao rio. Os autores
mostram que a força da linguagem pode ser demonstrada pelo poder de nomear e renomear, pois nomear é estar próximo, é entender, renomear, recriar
a linguagem é uma forma de dizer que não se aceita a imposição ou a colonização.
REFERÊNCIAS
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e Tiffin, H. London and New York: Routledge. 1995
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COUTO, Mia. Venenos de Deus, Remédios do Diabo: Rio Nova Fronteira, 2008.
COUTO, Mia. Palestra realizada na manhã desta terça-feira, dia 3 de julho 2007, no auditório da
reitoria da UFMG. Mia Couto usa obra de Guimarães Rosa para explicar semelhanças entre Brasil
e Moçambique. Centro de Comunicaçaõ da UFMG, 03/07/2007.
COUTO, Mia. Entrevista a Fabio Salem, Nivaldo Souza, Rodrigo Antonio, Rodrigo Turrer e Thais
Arbex Pinhata. Disponível em http://group. xiconhoca.com/2009/01/13/mia-couto-autor-de-oultimo-voo-do-flamingo-entrevista/
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FANON, F. The Wretched of the Earth. London: Penguin books, 1983
FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lanna. Sacudindo o sentido do mundo: o texto e a mulher em
Guimarães Rosa e Mia Couto. In: Veredas de Rosa II. II Seminário Internacional Guimarães Rosa.
2001. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2003.
NGUGI, Wa. Thing´o Decolonizing the Mind: The politics of language In AFrican literature. London: James Currey, 1986.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. São Paulo : Nova Fronteira, 2005
ROSA, João Guimarães. Noites do sertão. Rio de Janeiro/São Paulo: Record/Atalaia, n.d. Disponível em: xiconhoca.com/2009/01/13/mia-couto-autor-de-o-ultimo-voo-do-flamingo-entrevista.
SANTOS, Iolanda Crsitina dos. Brasil e Moçambique: estórias que se contam. Iolanda Cristina dos
Santos. Disponível em www.segundocoloquioafricano.ufjf.br/iolanda.pdf.
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AFRICAN-AMERICAN THEATER & THE DECONSTRUCTION OF THE AMERICAN
DREAM
Marcela Iochem Valente1
Abstract: Lorraine Hansberry was an African-American playwright who used her
plays as a way of protest against the injustice towards the African descendants in
the USA and fought against the prejudice and discrimination faced by her people
at that time. Her work was a site for many discussions that were very relevant to
further movements such as the civil rights one. She showed in her work that although the USA was supposed to be the Land of Opportunity, the prosperity of
this land as well as the ideals from the American Dream were not available the
same way to all citizens, just to those who could fit the mainstream American
stereotype. This article is going to show that Theater can be an important way of
self-representation, a site for relevant discussions, and a way of subverting patriarchal discourses.
Key words: African-American Theater, American Dream, the Land of Opportunity,
deconstruction, Lorraine Hansberry.
Resumo: Lorraine Hansberry foi uma escritora afro-americana que fez de suas
peças uma forma de protesto contra as injustiças sofridas pelos descendentes africanos nos EUA além de lutar contra o preconceito e a discriminação vividos
por seu povo. Sua obra foi palco para diversas discussões de grande relevância
para movimentos que vieram a ocorrer posteriormente como por exemplo o
movimento pelos direitos humanos. Ela mostrou que embora os EUA fossem vistos com a terra das oportunidades, a prosperidade desse país, assim como os ideais do Sonho Americano, não estavam disponíveis da mesma maneira para todos os cidadãos, mas apenas para aqueles que pudessem se enquadrar nos
padrões tidos como americanos. Este artigo pretende mostrar que o Teatro pode
ser uma importante forma de auto-representação, um local para discussões relevantes e uma oportunidade para a subversão de discursos patriarcais.
Palavras-chave: Teatro afro-americano, Sonho americano, Terra das oportunidades, Desconstrução, Lorraine Hansberry.
AMERICAN THEATER: A GENERAL PANORAMA
I said racism is a device that, of itself, explains nothing. It is simply a means. An
invention to justify the rule of some men over others… (Lorraine Hansberry).
1
Mestre em Letras: Literaturas de Língua Inglesa, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro — PPGLET/UERJ. Professora de Literaturas de
Língua Inglesa no curso de letras inglês/português da Fundação Educacional de Duque de Caxias (FEUDUC). Endereço eletrônico: [email protected].
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Theater is built upon devices. In the theatrical environment, the signification of
objects results from their specific usage in the moment (Harry Elam & David
Krasner).
American Theater started without a national identity being just sort of
an imitation of the English one and having as its basis the Shakespearean
trends. But social, political and economical changes reshaped the theatrical
practices along the time. Movements such as the Renaissance brought a real
revolution to Theater and in about fifty years the dramatic movement was
considerably changed (RICE, 1962, p. 140). After a while American Theater,
instead of a mere copy of the English one, turned into a search for selfrepresentation. Elmer Rice states that there are some moments in history
when social changes, historical facts and concerns of society lead to great artistic representation and according to him Renaissance was a period like that.
Dramatists from this period were concerned about portraying the world in
which they lived in and also the people who inhabited this world.
Another moments pointed by Rice as being responsible for many
changes in Theater were the XIX and XX centuries. Some facts such as the Industrial Revolution, the Civil War as well as the Immigration Movements into
the United States during this period were fundamental to the changes that
took place in the theatrical practices. The immigrant’s necessity of selfrepresentation, for example, considerably contributed to the changes in Theater. Members of different nationalities started to appear portraying characters
from their original countries and cultures. Because of the new reality of the XX
century, there was also a new search for national and cultural values that had
been disregarded so far. As David Mamet stated
[i]n the theater today we’re beginning to recognize ourselves as Americans. In
the sixties we rejected pride in being American. In the seventies the theater is
saying that being American is nothing to be ashamed of. But we have to learn
with it (BIGSBY, 1990, p. 274).
It is important to mention that the performance of the United States in
joining the World War I had great influence in these changes as well. By “the
great” performance that the country had during the war — according to the
American mainstream point of view — they were able to show that the USA
was not a pacific country cultivating their land anymore, but on the contrary,
they had more power than they were expected to have. This fact made them
look for self representation reevaluating some patterns followed so far, showing pride for their country and opening ways for subversive as well as nationalist works. According to Rice, this general self-criticism and insatisfaction with
the national culture lead to a search for an art that questioned and challenged
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the existent ideas and that could show a new and subversive way of expression
(RICE, 1962, p. 147). And in this period of questioning and search for selfrepresentation we also had the minority groups trying to insert themselves
into history by their art productions. They wanted to show their thoughts and
feelings in relation to the land of opportunity and also the American Nightmare
that many of them faced while searching for the American Dream. And they
also wanted to produce Theater about themselves, by themselves and addressed to themselves because:
[t]here was no longer a single audience to be addressed, if in truth there ever
had been. Now blacks, women, Chicanos, gays, Indians and Chinese addressed
themselves, displayed an image of themselves bestriding in the stage, the central
characters in their own drama rather than marginal figures in some national pageant. And dramatic form itself began to fragment and re-form (BIGSBY, 1990, p.
11).
One of the so-called minority groups that produced impressive works of
art including plays concerning self-representation and questioning of hegemonic values were the African Americans. Theoreticians such as Harry Elam
and David Krasner argue that “analyzing African American theater and performance traditions offers insight into how race has operated and continues to
operate in American society” (ELAM; KRASNER, 2001, p. 3). African American
Theater can be seen as social protest, and as asserted by some African American critics and artists such as W.E.B. Du Bois, Amiri Baraka among others, this
protest and revolt must have the purpose of changing black lives, subverting
their expected position of subaltern, and fighting against the oppressive conditions they face. By means of theatrical practices many African Americans inserted themselves into history and helped in the creation of an African American identity, because “performance can constitute, contain, and create
‘cultural memory’” (ELAM; KRASNER, 2001, p. 9).
AFRICAN AMERICAN THEATER: LORRAINE HANSBERRY AND A RAISIN IN THE
SUN
The black performer, visibly marked and read by the audiences as “black”, enters
the stage and negotiates not only the spaces between the stage representation
and the social reality but also racial definitions and stereotypes, racial misconceptions, and ambivalences of race (Harry Elam).
One of the biggest changes in the theatrical practices during the XX century was the emergence of companies producing a non-standard theater, “a
theatre which would reach out to those for whom reprocesses Broadway plays
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had no relevance” (BIGSBY, 1990, p. 21). This way came out Off-Broadway and
Off-Off Broadway productions. “On the whole such groups performed plays
unlikely to receive Broadway production and looked for an audience substantially different from that which patronized the uptown theater”(BIGSBY, 1990,
p. 22).
Yet at the same time Off and Off-Off Broadway, some regional theaters, and the
scatter of small theater groups across the country did explode established views
of the potential and function of the theatre and did provide a stage for those excluded as much from the cultural as from the political and economic system.
They explored the limits of language and inspected the assumptions behind their
own approach to character and plot. They examined the relationship between
the theatrical moment and historical event. They explored their own space. They
posed questions about the self which perceives. They moved theatre closer to
the anxieties, the aspirations, the fears, the social and political urgencies of the
people they addressed and whom they invited to share their group solidarity
(BIGSBY, 1990, p. 37).
Off and Off-Off Broadway were spaces where minority groups were able
to produce and to be recognized for their work. They produced plays talking
about their reality, peculiarities, and anxieties; plays that could address their
people and serve as a way of self-representation. In this space they could have
a theater that talked about and to their people helping in the construction and
definition of their identities. But despite the difficulties to produce something
out of this space, there were some African American authors who tried to have
their plays produced and recognized outside. Although they faced prejudice
and discrimination, they wanted to show their realities and to have the chance
of producing outside this specific space making their plays watched by all kinds
of people, and not only minority groups. They also wanted to make their productions a kind of protest against all the discrimination faced by those in their
position of outsiders. One author that must be mentioned while talking about
this subject is Lorraine Hansberry.
One of the reasons why Hansberry is an important name in African
American theater is the way she opened to African-Americans. She had her
play A Raisin in the Sun produced on Broadway in a time when it was not expected to find black people in the audiences of such a place, and much less on
the stages. It was not even believed to be possible before she did it. As Lisbeth
Lipari stated “A Raisin was not only the first play on Broadway written by an
African American, it was also the first Broadway play directed by an African
American, Lloyd Richards” (LIPARI, 2004, p. 85) and these were reasons enough
for this play to be a complete failure in a society full of prejudice as the north
American one. And Lipari goes on affirming that “as Hansberry herself has
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noted, until A Raisin, never before had white people seen black characters
talking together outside the presence of whites, nor had audiences, black or
white, seen African Americans portrayed on the screen with dignity, humanity,
and complexity” (LIPARI, 2004, p. 97).
In the introduction to the edition of the play published in 1994 Robert
Nemiroff, to whom Hansberry was married during a period of her life, stated
that:
bringing to Broadway the first play by a black (young and unknown) woman, to
be directed, moreover, by another unknown black “first,” in a theater where
black audiences virtually did not exist-and where, in the entire history of the
American stage, there had never been a serious commercially successful black
drama! (NEMIROFF, 1994, p. 6).
It is needless to say that it was a great challenge to the author. It is also
worthwhile remembering that Hansberry was not only the first black woman
to have a play produced on Broadway but also the first afro-descendant and
the fifth woman to receive the ‘Best Play of the Year Award’ from the New
York Drama Critics (1960) because of this play. It is also important to mention
that this was not the only award of the play. In the same year it also received
the ‘Tony Award for the Best Actor in Play’ given to Sidney Poitier, the ‘Tony
Award for the Best Actress in a Play’ given to Claudia McNeil and also the ‘Tony Award for the Best Direction of a Play’ given to Lloyd Richards (Data from the
Internet Broadway Database).
Hansberry’s work was not only performed on Broadway, but also turned
into a movie released by Columbia Pictures in 1961. It counted on a great cast
that included actors who had performed the play in theater - such as Sidney
Poitier. She received a special award at the Cannes Festival being the youngest
American, first woman, and the first African American to win the award for this
1961 version. Later on, in 1973 Neminoff, together with Charlotte Zaltzberg
adapted this work and produced a musical called Raisin that ran on Broadway
for nearly three years and won the Tony Award as the best musical. Raisin was
revived in 1981, when Claudia McNeil, who had played the character Lena in
the original 1959 production, recreated the role in the musical adaptation. To
complete the success, another version of the movie was launched in 2004, and
in the same year the play was again on the stages of Broadway, in the Royale
Theatre. In 2007, the play had the opportunity to be one more time on the
stages of Broadway for three months, and last year (2008), it has been adapted
to be launched as a made-for-TV movie.
Despite its repercussion, several performances, success in the United
States and importance to the African-American studies, I am conscious that the
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play I am dealing with in this paper is not so well-known. As it has not been
translated into Portuguese so far, in Brazil it is usually known just among those
concerned with the African-American studies. So, I believe that it is important
to present in this paper at least an overview of its plot.
THE DECONSTRUCTION OF THE AMERICAN DREAM
Whatever happened to this nation? Or did it ever exist?...did it ever exist with its
freedoms and slogans…the buntings, the goldheaded standards, the songs? With
Equality, Liberty…In the West they plow under wheat. Where is America? I say it
does not exist. And I say that it never existed. It was all but a myth. A great
dream of avarice (David Mamet).
Alam and Krasner affirm that “African American theater and performance have been and remain powerful sites for creation, application, and even
the subversion of notions of blackness and of concepts of African American
identity” (ELAM; KRASNER, 2001, p. 5-6). They also assert, based on Stuart
Hall’s theories that identity is something fluid and always in process and for
this reason “[t]here is not simply one African American identity but many African American identities” (ELAM; KRASNER, 2001, p. 13) that are invented or
constructed according to the moment and situation experienced. As Stuart Hall
argues:
[i]dentities are about questions of using the resources of history, language and
culture in the process of becoming rather than being: not “who we are” or
“where we have come from” so much as what we might become, how we have
been represented and how that bears on how we might represent ourselves
(HALL, 1996, p. 4).
Based on this concept, we know that identities are not fixed as they
were believed to be during a long time. The Cartesian subject was replaced by
a post-colonial one that is known by its fragmentation and fluidity and the
African American Theater can help us to understand this new kind of subject
and some of the reasons of its changes and fragmentation.
The African American Theater shows the reality of the fragmented subjects who are living in a situation “in-between” two cultures and according to
Shannon
[t]his living in at least two worlds while claiming an African-derived identity
which refuses to abandon itself by assimilation into mainstream Euro-centric culture is befuddling for many whites who, because of the privilege their white skin
carries, have not had to negotiate such dualities (SHANNON, 2001, p. 150).
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This way, the fragmented subjects who take part in the new diasporic
movements have to learn how to negotiate between the memories of their
homeland and the new reality their face in the colonizer’s land. They have also
to learn how to handle the cultural, racial, and political differences they face in
this new world.
In the article “Uh Tiny Land Mass Just Outside of My Vocabulary: Expression of Creative Nomadism and Contemporary African American Playwrights”,
Kimberly Dixon compares the African American expatriate tradition and displacement to nomadic movements. She states that the experience of migration
is a shared cultural memory as an individual experiences it. This phenomenon
is so common that even non migratory artists are influenced by it. Even those
who stayed, discuss this issue in their works because the ones who left to the
new world were, and will continue to be, part of their lives. She mentions nomadism not only as a kind of migratory history but also as a frequent preoccupation in postmodernism with themes such as migration, exile, fluid identities,
displacement, among others.
In order to reinforce her argument, Dixon quotes Rosi Braidotti’s concept of nomadic subjects in which the author states that nomadism, in the
sense she is considering it, refers to a “kind of critical consciousness that resists settling into socially coded modes of thought and behavior. Not all nomads
are world travelers; some of the greatest trips can take place without physical
moving” (DIXON, 2001, p. 214). According to Braidotti’s concept the idea of
migration or nomadism does not necessarily need a physical displacement,
instead of it, it requires a “transmobility of thought and identity” and the subversion of concepts and behavior (DIXON, 2001, p. 215). A nomadic subject,
according to her, is an active and critical subject capable of making decisions
and questioning patterns, rejecting or subverting the standardized acts when
necessary.
Dixon asserts that:
these artists’ nomadic subjectivity is in keeping with postmodern and postcolonial discourse on the renegotiation of positionality by the monolithic West and its
subjects. No longer are oppressor-oppressed or self-Other precise or permanent
identities. Subjects now frequently resist their disadvantaged position, while the
monolith now finds it fashionable to examine its own oppression at the hand of
individuals or the social systems at large (DIXON, 2001, p. 216).
Despite all the prejudice, oppression, harsh and restrictions, African
American writers continue in their struggle against repression and inferiority
imposed by the colonizer and, as they use their art productions as a representation of their reality, they constantly work on themes such as displacement,
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migration and shattered identities. What Dixon calls the African American artists’ creative nomadism is a movement in pro of self-representation, a kind of
struggle for space and resistance to the oppression constantly faced by ‘the
other’. Based on the aforementioned ideas, creative nomadism does not
mean crossing fixed boundaries in the search of supplies, but it is something
more subjective. It is an expression of identity and a search for selfrepresentation, voice and subversion of patterns. That’s why many works produced by minority groups come on the opposite way in relation to the American Dream, many times deconstructing it. A Raisin in the Sun is a nice example
of this kind of work.
In A Raisin in the Sun, Hansberry presented the situation faced by African American people, and also questioned the reality in which they lived. By
using some autobiographical references the author tells the story of a black
family who suffers a lot of prejudice and discrimination in their search for the
ideals presented in the American Dream and shows that this Dream can easily
become a nightmare for the immigrants in the land of the opportunity because
of attitudes moved by prejudice and discrimination.
The play tells us the story of a Southside Chicago family, the Youngers,
full of dreams that are usually deferred. When we are introduced to the family,
they are expecting to receive some money from an insurance due to the death
of Mr. Younger, and each member of the family has a different plan for it.
These plans and dreams deferred bring many struggles to the play, and only by
the end of it, a decision is finally made. Mamma – the one responsible for the
family since her husband’s death – decides that the best option for the money
the family would receive would be buying a house for them, but she does so in
a white neighborhood, what leads the family to suffer strong prejudice even
before they move.
In this play, Hansberry shows the difficulties faced by the African descendents in the USA in their search for a better life. As they are a hybrid of two
different cultures, they have fragmented identities, and so, they do not fit
among the Americans because they are black and they have African descendents; but they are not Africans either, as they are born and live in America.
This way, they are fragmented subjects and for this reason, they suffer constant discrimination and displacement.
Although the American Dream indicates that everyone has the right of
happiness and freedom, Hansberry showed that it is not exactly as it seems to
be. In this search for happiness and a better life many people can find only
prejudice and discrimination. Hansberry criticizes these ideals in her play,
showing that, unfortunately, this dream applies only for those who are white,
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Americans, and from a mainstream family, and not exactly for everyone. For
several people who take part in the diasporic movements, such as the AfricanAmerican family presented in the play I am working with, the American Dream
can turn into a hard nightmare full of disillusions.
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NARRATIVAS AFRO-BRASILEIRAS: ÚRSULA, DE MARIA FIRMINA DOS REIS,
DIÁRIO DE BITITA, DE MARIA CAROLINA DE JESUS, E BECOS DA MEMÓRIA, DE
CONCEIÇÃO EVARISTO
Francineide Santos Palmeira1
Resumo: Este artigo buscou averiguar, por meio das obras: Úrsula, de Maria
Firmina dos Reis, Diário de Bitita, de Maria Carolina de Jesus, e Becos da
Memória, de Conceição Evaristo, em que medida os discursos dessas autoras assemelham-se e diferenciam-se no que tange as questões étnicos-raciais e de
gênero. Embora pertençam a contextos históricos diversos, essa autoras fazem
parte de um grupo de escritoras negras que apresentam um contra-discurso em
suas produções literárias questionando/rasurando uma tradição literária que
representa a afrodescendência e os afrodescendentes a partir de imagens negativas/depreciadoras.
Palavras-Chave: Escritoras, Mulher, Afrodescendente, Literatura, Gênero.
Abstract: This article aims to verify how the works: Úrsula, of Maria Firmina dos
Reis, Diário de Bitita, of Maria Carolina de Jesus, and Becos da Memória, of Conceição Evaristo approach and difference about the racial question and the gender question. Although, the historic context is different, these authors are part of
a black authors group that makes a opposite speech in their literary works and
they question a speech of a literary tradition that represents the african descendents from negative and deprecatory images.
Key Words: Authors, Woman, African descendents, Literature, Gender.
A literatura brasileira, desde sua formação até a contemporaneidade,
tem apresentado os afrodescendentes a partir de discursos demarcados negativamente. As obras de autores como Aloísio de Azevedo, Bernardo Guimarães,
Gregório de Matos, José de Alencar e Xavier Marques exemplificam essa assertiva. Nos textos desses autores, a mulher negra, por exemplo, figura em imagens nas quais são construídas como um corpo-objeto e/ou relacionada a um
passado de escravidão. A esse respeito, a estudiosa Sueli Carneiro afirma que
as mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira por serem diferentes do modelo
estético da mulher branca.
Entretanto, esse discurso literário estereotipado negativamente é questionado e rasurado por uma produção literária de autoras negras. As mulheres
negras deixam, então, de ser objeto da representação de um outro para ser
simultaneamente sujeito e objeto da escrita literária. Por meio de suas pers1
Mestre do Programa de Pós- graduação de Letras e Lingüística da Universidade Federal da
Bahia (UFBA); Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA; endereço eletrônico: [email protected].
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pectivas — marcadas como não poderia deixar de ser, pela vivência de ser
mulher negra na sociedade brasileira — essas escritoras afro-brasileiras contribuem para constituição de uma história que revela elementos apagados e/ou
desprivilegiados pela escrita falo-cêntrica e branca.
Neste ensaio, apresentaremos um recorte do projeto Vozes Femininas
Negras que objetivou averiguar — por meio da apreciação das obras: Úrsula,
de Firmina dos Reis, Diário de Bitita, de Carolina de Jesus, e Becos da Memória,
de Conceição Evaristo — como são construídas as representações acerca
dos/das afrodescendentes sob a perspectiva de escritoras afro-brasileiras e em
que medida os discursos dessas autoras assemelham-se e diferenciam no que
tange as questões étnico-raciais e de gênero.
Firmina dos Reis, Carolina de Jesus e Conceição Evaristo são sujeitos femininos negros que contribuíram com a luta história de seus ancestrais pela
questão da afrodescendência no Brasil por meio do instrumento da escrita,
dialogando com Foucault (1970, p. 2) quanto afirma que “[...] o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é
aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos
assenhorear-nos”.
Assenhoreadas desse poder, essas autoras afro-brasileiras produziram o
que neste ensaio será denominada de Literatura Feminina Negra. Para entendermos esse conceito faz-se necessário trazer à tona algumas outras conceituações. Primeiro, o que é literatura feminina? Segundo a estudiosa Nelly Richard (2002, p. 133), “[...] qualquer literatura que se pratique como dissidência
da identidade, a respeito do formato regulamentar da cultura masculinopaterna [...]” (RICHARD, 2002, p. 133) levaria o coeficiente minoritário e subvesivo (contradominante) do “feminino”. No excerto acima, Richard traz um conceito de literatura feminina no qual a condição sine qua non para realizar tal
produção, não é atrelada ao sexo do sujeito da escrita, mas ao conteúdo da
escrita.
De forma semelhante, de acordo com o conceito de literatura negra aqui
adotada, o de Florentina Souza, a etnia não é uma prerrogativa da literatura
afro-brasileira ou literatura negra, mas sim o discurso. Para essa estudiosa,
essa literatura existe quando: “[...] poemas e contos instauram /adotam um
discurso que constrói e assume uma identidade afro-brasileira e engaja-se num
projeto político de repúdio ao racismo e suas manifestações e de combate às
desigualdades sociais” (SOUZA, 2005, p. 110).
A partir dos conceitos acima sobre literatura feminina e literatura negra,
podemos definir a literatura feminina negra, a partir do corpus aqui estudado,
como uma produção que traz em sua textualidade a percepção de um sujeito
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atravessado pelas identidades de ser mulher e de ser negra na sociedade brasileira. Outra característica dessa escrita consiste no fato de evidenciar a participação e a importância da contribuição dos afrodescendentes na história brasileira, com destaque especial para o papel desempenhado pelas mulheres
negras. Essa literatura adjetivada lida tanto com a ficção quanto com as experiências vivenciadas.
Além do fato de serem escritoras afro-brasileiras, o estudo e o cotejo
das obras Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus e Conceição Evaristo interessa ao projeto EtniCidades: História e Memória da Afrodescendência, devido
suas trajetórias especificas, em relação a carreira de escritoras. Firmina foi
professora, escritora e jornalista em um período em que a escravidão era reconhecida por lei e atualmente é considerada a primeira escritora brasileira,
além de ser autora do primeiro romance abolicionista que se tem conhecimento na literatura brasileira;Úrsula. Carolina foi uma catadora de papel, sem instrução formal que se apoderou da escrita e que teve sua primeira obra traduzida para diversas línguas. E Conceição Evaristo se destaca pela atuação
profissional e política, sua constância de publicação na série Cadernos Negros,
a divulgação e a crítica respeitosa que vem recebendo do exterior e o seu próprio pensar da questão da literatura negra ou afro-brasileira. Interessa-nos
perceber/averiguar os encontros e desencontros dessas vozes femininas negras que emergiram em momentos distintos, e que tem se destacado na trajetória da literatura afro-brasileira, a respeito das representações acerca da afrodescendência, dos/as afrodescendentes e das questões relacionadas ao
gênero. Isso porque como o próprio nome indica, o projeto EtniCidade: História e Memória da Afrodescendência mapeia as representações que foram feitas a respeito dos negros , afrodescendentes e da cultura afro-brasileira em
geral para construir um acervo crítico da produção e circulação deste conjunto
de representações.
A primeira questão que se destaca no cotejo entre Maria Firmina dos
Reis, Carolina de Jesus e Conceição Evaristo é uma identidade em comum, já
indicada no título dessa pesquisa- Vozes femininas negras: Maria Firmina dos
Reis, Carolina de Jesus e Conceição Evaristo; ou seja, a condição de ser mulher
negra na sociedade brasileira. E essa identidade é muito importante, pois evidencia o lugar de fala das escritoras, já que nenhum discurso literário é neutro.
A esse respeito Said, na obra O Oriente como Invenção do Ocidente, afirma
que:
Muito do meu investimento pessoal neste estudo deriva da minha consciência de
ser um “oriental” [...] De muitas maneiras o meu estudo do orientalismo foi uma
tentativa de inventariar em mim o oriental, os traços dessa cultura cuja dominação foi um fator tão poderoso na vida de todos os orientais. [...] Enquanto isso,
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tão severa e racionalmente quanto pude, tentei manter uma consciência crítica,
além de empregar os instrumentos de pesquisa histórica [...] Em nada disso, contudo, perdi jamais de vista a realidade do envolvimento pessoal de ter sido constituído como “um oriental” (SAID, 1996, p. 37).
Assim como Said evidencia no excerto acima, o seu lugar de fala, todos
os discursos são produzidos a partir de um lugar de fala, não há discursos neutros. Escritores(as) são pessoas que vivem em um determinado tempo e estão
inseridos em uma determinada sociedade. Suas escritas surgem confirmando
ou negando a eficácia, a validade dessa mesma sociedade, para todos os sujeitos pertencentes ao grupo.Dessa forma a construção dos discursos e as temáticas abordadas pelas escritoras e escritores encontram-se intimamente relacionados aos locais de fala das mesmas(as).
Embora as escritoras Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus e Conceição Evaristo possuam uma identidade em comum, a de mulher negra na sociedade brasileira, as mesmas a vivenciaram em momentos históricos e em contextos sociais distintos. Maria Firmina, no século XIX, Carolina de Jesus, na
primeira metade do século XX e Conceição Evaristo, na segunda metade do
século XX e inicio do século XXI. O que não impede de existir semelhanças entre as mesmas. Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo possuem acesso a
um conhecimento institucionalizado e formal, a prova disso é que ambas prestaram concursos e ingressaram no magistério público. Outra característica
comum entre essas duas escritoras é o prestígio social que as mesmas desfrutaram, na imprensa devido sua escrita e ao papel social que representavam.
Contrapondo-se a Firmina e Evaristo, Carolina de Jesus não teve acesso a uma
educação formal, só estudou até a quarta série, e o prestígio social que Carolina teve acesso com a publicação de seu primeiro livro Quarto de despejo devese mais ao fato dessa escrita trazer uma denúncia social do que ao caráter
literário de sua obra. Por outro lado, Conceição Evaristo e Carolina de Jesus
foram empregadas domésticas e vão escrever sobre o cotidiano dos afrodescendentes no contexto pós escravidão, no século XX, por meios de temáticas
como: a vida na favela, a mulher negra de baixa renda, situações de violência
contra mulher e a situação histórico-social do negro no Brasil.
Neste ensaio interessa-nos evidenciar além das possíveis relações entre
as escritoras, as percepções resultantes do cotejo entre as obras Úrsula, de
Maria Firmina dos Reis, Diário de Bitita, de Maria Carolina de Jesus, e Becos da
Memória, de Conceição Evaristo no tocante a gênero e etnia.
Cronologicamente falando, Maria Firmina dos Reis é a primeira a publicar sua obra. Tendo vivido no século XIX, Firmina foi professora, escritora e
jornalista em um período em que a escravidão era reconhecida por lei. Atualmente, temos conhecimento das seguintes obras da autora: dois romances,
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Úrsula (1859), primeiro romance abolicionista que se tem conhecimento na
literatura brasileira, Gupeva (1861); o conto, A escrava (1887) e um livro de
poemas denominado de Cantos à beira-mar (1871).
Úrsula (1859) representa um do marcos na história da literatura afrobrasileira, pois é o primeiro romance abolicionista que se tem conhecimento
na literatura brasileira. Esse texto de Maria Firmina inova ao trazer a história
da afrodescendência brasileira, apesar da trama ser protagonizada pelos jovens brancos — Ùrsula e Tancredo. Uma obra que segundo Luzilá Ferreira, é
um típico produto da época com seus personagens apaixonados e sofredores,
seus amores infelizes, seu final trágico. Em Úrsula, os personagens principais
são Úrsula e Tancredo. O encontro do jovem casal foi promovido pelo escravo
Túlio. Foi esse escravo que apresentou a jovem Úrsula que vivia um drama ao
lado sua desafortunada mãe, paralítica, ao sofrido Tancredo, homem que perdera a mãe e fora traído pelo pai e por Adelaide, aquela que julgava ser o
grande amor de sua vida. O amor que surgiu do convívio entre ambos o fez
superar seus sofrimentos e lutar pela vida conjunta, todavia o incestuoso Comendador Fernando P. condenou a si próprio e ao jovem casal a um martírio
seguido de morte.
Os escravos representados nessa obra não se identificam com os valores
dominantes nem reproduzem estereótipos, tais como “o negro de alma branca”. Pelo contrário, nesse texto o escravo Túlio possui qualidades derivadas da
nobreza de seu sangue africano as quais sevem de modelo para descrição do
protagonista da obra: “E que em seu coração [Tancredo] ardiam sentimentos
tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro: [...]”
(REIS, 1988, p. 26), isto é, o branco considerado como o detentor de um comportamento modelar pela sociedade brasileira é descrito sob uma perspectiva
que considera o negro como parâmetro moral. Além disso, os escravos nesse
romance conservam suas práticas culturais como forma e resistência a escravidão, sua memória guarda a sua história, como podemos perceber na seguinte
fala da escrava Mãe Suzana: “[...] a mente! isso sim ninguém a pode escravizar![...]” (REIS, 1988, p. 35).
Entretanto, essa obra denuncia não apenas a situação vivenciada pelos
negros, a subordinação da mulher no patriarcado brasileiro, herdeiro das relações coloniais, também é criticada nessa obra. A esse respeito Constância Lima
(2005, p. 443) afirma que “[...] Em uma reflexão inédita na escrita de seu tempo, Maria Firmina dos Reis fala como mulher e associa a dominação de raça à
de seu sexo, vinculando, portanto, gênero e etnia [...]”. Como exemplo dessa
afirmação de Lima, destaca-se a cena em que a jovem Úrsula, presa ao território familiar, inveja a mobilidade adquirida pelo escravo liberto, vide: “E Úrsula
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invejava vagamente a sorte de Túlio e achava mor ventura do que a liberdade
poder ele acompanhar o cavaleiro” (REIS, 1988, p. 37-38).
Na seqüência cronológica temos Carolina Maria de Jesus. Nascida no século XX, na cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais, em 1914. Carolina
foi uma catadora de papel, sem instrução formal que teve sua primeira obra
traduzida para diversas línguas. Entre os livros dessa escritora destacam-se
Quarto de Despejo (1960), Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963),
Provérbios (1963) e Diário de Bitita (1982 publicação póstuma).
Diário de Bitita é uma obra em que Carolina narra suas lembranças da
infância e da adolescência, entre as quais destacam-se a busca por trabalho,
sua visão de mundo, suas experiências, e suas opiniões. Embora esse livro
tenha o nome diário, no título, não traz relatos cotidianos datados em seqüência. Ao invés disso, o livro é dividido em capítulos por temáticas, e os conteúdos destes se desenvolvem conforme as lembranças daquela temática, estando, portanto, mais próximo do que comumente se denomina de autobiografia.
Contudo, o Diário de Bitita também pode ser lido como uma história de
caráter coletivo, isso porque a obra tematiza a história dos afro-brasileiros, no
contexto da pós abolição. A luta cotidiana pela liberdade é evidenciada em
Diário de Bitita em passagens como: “Quando os pretos falavam: - Nós agora
estamos em liberdade – eu pensava”. Mas, que liberdade é esta se eles têm de
correr das autoridades como se fossem culpados de crimes? (JESUS, 1986, p.
56).
Outro fato a ressaltar em Diário de Bitita é o ponto de vista que evidencia as relações de gênero. Sob a denominação de gênero tem se buscado compreender a construção e a organização social da diferença sexual, isto é, uma
relação que segundo Colling (2004) não é um fato natural, mas sim uma relação construída e incessatemente remodelada, efeito e motor da dinâmica social. Uma construção cultural que hierarquizou a diferença entre os sexos,
mascarando o privilegiando do modelo masculino por meio da pretensa neutralidade sexual dos sujeitos. Nesse sentido, destaca-se na obra um momento
em que a personagem Bitita, após ser presa acusada de insultar o sargento,
ouviu a seguinte frase: “- Esta vagabunda vive viajando. Moça direita não viaja” (JESUS, 1986, p. 181). Por ter participado do mundo público, tendo tido
ações que era (são) consideradas do domínio masculino, tal como movimentos
de deslocamentos constantes, Bitita é vista de forma negativa pelos moradores
de sua cidade natal.
Já na segunda metade do século XX, destacamos um romance da mineira Conceição Evaristo. Além dos vários contos e poemas dos Cadernos Negros
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de sua autoria, essa escritora tem dois romances publicados: Pociá Vicêncio e
Becos da Memória .
Becos da Memória enfoca principalmente a reconfiguração da situação
escravista por meio da moradia: a favela/senzala. Na favela de Maria-Nova, os
habitantes: putas, bêbados, malandros, crianças e mulheres sofridas vivem em
uma intensa precariedade de tudo; comida, dinheiro, água. Até o território que
habitam será retirado deles. Vivem o desfavelamento. Tudo isso é narrado sob
a percepção da outrora menina Maria – Nova: “[...] Maria –nova, um dia, escreveria a fala de seu povo” (EVARISTO, 2006, p. 161).
Segundo Eduardo de Assis Duarte, Becos da Memória é um romance coletivo, marcado por uma pluralidade de sujeitos e de dramas em que ganha
relevância não os efeitos de um herói, mas sim as vozes e gestos de muitos.
Outra característica dessa obra é a presença marcante das mulheres,
como Vó Rita, Negra Tuina, Maria-Velha, Cidinha-Cidoca, Ditinha. Mulheres
fortes que lutam cotidianamente pelo sustento familiar. Todavia, algumas vezes sofrem com a violência de seus conjugues. Esse tipo de violência, a violência contra mulher é definido como “um fenômeno extremamente complexo,
com raízes profundas nas relações de poder baseadas no gênero, na sexualidade, na auto-identidade e nas instituições sociais” (HEISE et al., 1994 apud
ANGULO-TUESTA, 1997) pode ser exemplicada pela seguinte passagem de
Becos da Memória:
[...] [Fuizinha.] ia vivendo a pesar da morte da mãe e do pai carrasco. Ele era dono de tudo. Era o dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é para tudo.
Mulher é para gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para gozar, assim
pensava ele. O Fuinha era tarado usava a própria filha (EVARISTO, 2006, p. 76).
É visível no excerto acima que o personagem Fuinha desenvolvia uma relação familiar baseada nas dinâmicas de afeto/poder, nas quais estavam presentes relações de subordinação e dominação que alcançaram o extremo, já
que a sua esposa e filha eram vitimas da violência doméstica. Como resultado,
sua esposa foi a óbito e Fuinha passou a desenvolver uma relação com a filha
que além da violência doméstica física e mental, era incestuosa. Quando questionado sobre essa relação familiar, o personagem responde de uma forma
que explicita o seu pensamento machista.
Como essas produções literárias estão inseridas em contextos históricos
distintos, retratam fases distintas da história afrodescendente. Em Úrsula, os
negros vivenciam a escravidão; em Diário de Bitita, são delineadas as estratégias de escravização do século XX, como a “tutela” e o cotidiano das empregadas domésticas. E Becos da Memória enfoca principalmente a reconfiguração
da situação escravista por meio da moradia: a favela/senzala. Dessa forma,
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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temos um mapeamento da Hitória afrodescendente do século XIX ao século
XX, sob a perspectiva de escritoras afro-brasileiras.
Embora cada uma dessas obras retrate um momento específico da história afrodescendente, em todas elas é possível notar a preocupação de trazer
a história do negro, contada sob a perspectiva do próprio negro, a partir do
recurso da Memória. Em Úrsula, há três personagens negros. Susana, Anastácio e Túlio são personagens secundários desse romance, os dois primeiros –
Susana e Anastácio- foram escravizados após captura no continente africano e
o último, Túlio, nascera em terras brasileiras. Túlio e Susana são escravos da
mãe de Úrsula, representante do bem na obra ,ao passo que Antero é cativo
do maléfico Comendador. Nesse livro , ao contrário de outras obras do período, temos acesso a história dos escravos a partir do ponto de vista dos próprios escravos. De forma inovadora, é possibilitado ao oprimido contar sua
história:
Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente, que ai me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira- era uma escrava!Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que
me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lagrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi
possível... a sorte me reservava ainda longos combates.Quando me arrancaram
daqueles lugares,onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade!
Meu deus! o que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudeste avaliar!...
(REIS, 1988, p. 82).
No excerto acima, temos as palavras da personagem Susana que narra o
momento em que foi capturada em sua terra natal e a vida que os negros tinham na sua pátria. Esse fragmento evidencia a humanização do negro, fato
que a sociedade escravista buscava a todo custo contrariar, contando nesse
intento com a contribuição da Igreja católico. Era a literatura afrodescendente
surgindo como contra-voz a uma literatura eurocêntrica, patriarcal e branca
que não reconhecia (reconhece) o negro como parte da nação brasileira e como pessoa.
Nas obras ambientadas no século XX, Diário de Bitita e Becos da Memória a história da escravidão tematizada em Úrsula é narrada por personagens
que representam pessoas mais velhas, aquele que detém o conhecimento nas
sociedades afrodescendentes, ou seja o avô de Bitita e o Tio Totó, respectivamente:
No mês de agosto, quando as noites eram mais quentes,nos agrupávamos ao redor do vovô para ouvi-lo contar os horrores da escravidão. Falava dos Palmares,
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o famoso quilombo onde os negros procuravam refugio. O chefe era um homem
corajoso de nome Zumbi. Que pretendia libertar os pretos (JESUS, 1986, p. 58).
Quando Tio Totó se entendeu por gente ele , ele já estava em Tombos de Carangola.Sabia que não nascera ali, como também não nascera seus pais. [...] sabia
que seus pais eram escravos e que já nascera na Lei do Ventre Livre (EVARISTO,
2006, p. 23).
As duas obras das quais foram retiradas os excertos acima, são textos
narrados por personagens que trazem ao texto escrito histórias que ouviram
de uma pessoa mais velha. Portanto, são textos baseados em memória coletiva. A perpetuação da Memória afrodescendente é delineada nas obras, nelas:
todos os personagens que trazem a história dos negros, são pessoas que viveram o momento narrado, Mãe Suzana, viveu a liberdade em terras africanas,
avô de Bitita foi escravo e Tio Totó nasceu no período da escravidão. Evidenciando dessa forma, que o contar por meio da oralidade é a uma forma de perpetuação dessa Memória. Outra forma de manter essa Memória é fazendo
como as personagens Bitita e Maria-Nova, narrado-a. Em Becos da Memória, a
descoberta desse método é evidenciada pela personagem Maria-Nova:
Um dia, e agora ela já sabia qual iria seria sua ferramenta, a escrita. Um dia ela
haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes,os murmúrios os silêncios,o
grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria –nova, um dia,
escreveria a fala de seu povo (EVARISTO, 2006, p. 161).
Por fim, a realização desta pesquisa possibilitou alguns resultados e conclusões entre os quais se destacam os seguintes:
- As obras de Maria Firmina dos Reis, Diário de Bitita, de Maria Carolina de Jesus, e Becos da Memória, de Conceição Evaristo apresentam
como característica comum o fato de trazerem a história do afrobrasileiro, contada sob a perspectiva do próprio, a partir do recurso
da Memória.
- O cotejo entre as obras evidenciou que as autoras demonstram consciência de serem sujeitos femininos na sociedade brasileira e vão explicitar isso em seus textos artísticos tanto por meio de personagens
como por meio de prólogo.
- No que diz respeito à questão de gênero, as obras se diferenciam visto que Maria Firmina prioriza o contexto das mulheres brancas abastardas; ao passo que Carolina de Jesus e Conceição Evaristo retratam
a questão entre a população pobre e negra. Todavia, em todos eles, é
possível notar, a distinção entre ser uma mulher e ser uma mulher
negra.
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
119
- O exercício da liberdade é uma temática que se encontra presente
nas três obras. Esta temática aparece tanto relacionada ao racismo,
como as preconceito de gênero, no caso deste último as situações
trazidas pelas obras podem ser sintetizada por meio da seguinte fala
da personagem Bitita, no romance de Carolina de Jesus:
- Mamãe ...eu quero virar homem. Não gosto de ser mulher! Vamos mamãe!
Vamos mamãe !Faça eu virar homem! (JESUS, 1986, p. 10).
- Por que é que você querer virar homem?
- Quero ter a força que tem o homem. O homem pode cortar árvore com um
machado. Quero ter a coragem que tem o homem. Ele anda nas matas e não tem
medo de cobras. O homem que trabalha ganha mais dinheiro do que uma mulher e fica rico e pode comprar uma casa bonita para morar (JESUS, 1986, p. 11).
- A realização dessa pesquisa possibilitou um mapeamento da história
afrodescendente do século XIX ao século XX, sob a perspectiva de escritoras afro-brasileiras.
- Úrsula traz os personagens negros como secundários, ao passo que
Diário de Bitita e Becos da Memória os trazem como personagens
principais, com destaque para figura feminina negra.
- A partir dos romances aqui analisados, observou-se que do século XIX
ao século XX, modificaram-se as nomenclaturas senhor/escravo por
patrão/empregado ou ainda a tutela; sociedade escravocrata por sociedade capitalista, mas as relações sociais entre brancos e negros,
autoridades e negros e as condições de submissão morais e econômicas nas relações de trabalho mantiveram-se.
Enfim, o cotejo desses textos permitiu-nos observar que as vozes femininas negras aqui estudadas, por um lado, assemelham-se, ao construíram
uma leitura da história afrodescendente que rasura a história oficial e ao discutirem a questão de gênero. E por outro lado, distinguem-se ao retratam fases
distintas da história afrodescendente, como observamos anteriormente.
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121
UTOPIA E MESSIANISMO NA LITERATURA HISPANO-AMERICANA COLONIAL
Rogério Mendes Coelho1
Resumo: O presente trabalho apresenta o estudo de uma das configurações discursivas mais emblemáticas que descreveram as realidades americanas durante
o período colonial: os relatos de Cristobal Colón. O foco do presente artigo consiste na problematização dos escritos do navegador não apenas como discursos
de fundação do espaço americano, onde perspectivas como história e ficção; imitação e desvio se confundem, estabelecendo as bases interpretativas das realidades americanas, mas, sobretudo, o desenvolvimento da imaginação como importante instrumento, tanto para fundamentar a base do pensamento político
moderno quanto para fundamentar o processo de formação das sociedades
americanas no século XVI.
Palavras-Chave: Relatos de Viagem; Imaginação; Século XVI.
Resúmen: El presente trabajo presenta el estudio de una de las configuraciones
más emblemáticas que describieron las realidades americanas durante el periodo colonial: Los relatos de Cristóbal Colón. El enfoque del presente artículo consiste en la problematización de los escritos del navegador no sólo como discursos
de fundación del espacio americano, donde perspectivas como la historia y ficción; imitación y desvío se confunden, estableciendo las bases interpretativas de
las realidades americanas, pero, sobretodo, el desarrollo de la imaginación que
fue importante tanto para fundamentar la base del pensamiento político moderno cuanto para fundamentar el proceso de formación de las sociedades americanas.
Palabras-Llave: Siglo XVI; Relatos de viaje; Utopía.
Um dos focos dos projetos expansionistas nos séculos XV e XVI consistiu
na necessidade de difundir o cristianismo. Ou seja, além da expansão de fronteiras políticas e mercantis, homens como Colón lançaram-se em mares ignotos movidos por um ideal “epopéico” de propagação dos valores cristãos. Para
muitos historiadores, em essência, uma iniciativa semelhante ao ímpeto das
cruzadas medievais.
De fato, é possível observar, além dos distanciamentos, aproximações
entre o espírito das cruzadas e alguma das incursões náuticas no século XVI. O
que não surpreende, haja vista homens como o explorador Cristobal Colón
possuírem ainda no século XVI valores medievais. Inclusive, é possível observar, por exemplo, aproximações entrenó espírito das cruzadas e as incursões
náuticas do almirante Colón na ocasião em que acreditou, por meio do encon1
Professor de Literatura Hispano-Americana da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN/CERES); doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); endereço eletrônico: [email protected].
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tro com a América, ter encontrado o Éden e, com o feito, ambicionou estabelecer, em definitivo, a dimensão religiosa Una – Católica. O que não surpreenderia, pois, a orientação religiosa/imaginário do navegador italiano a serviço da
Coroa Espanhola relacionava-se a uma perspectiva redentora e milenarista.
Desse modo, propagar a fé e adquirir riquezas a partir do encontro e conquista
de territórios pareceu conveniente e ideal para o arrojo e ousadia de homens
como Colón, dispostos a conciliar interesses materiais, políticos e espirituais.
[…] Vuestras Altezas, como católicos cristianos y Príncipes amadores de la santa
fe cristiana y acrecentadores de ella y enemigos de la secta de Mahoma y de todas idolatrías y herejías, pensaron de enviarme a mí, Cristóbal Colón, a alas dichas partidas de India para ver los […] pueblos y tierras y la disposición de ellas y
de todo y la manera que se pudiera tener para la conversión de ellas a nuestra
santa fe; y ordenaron que yo no fuese por tierra al Oriente, por donde se costumbra de andar, salvo por el camino de Occidente, por donde hasta hoy no sabemos por cierta fe que haya pasado nadie (COLÓN, 2003, p. 2).
Da Idade Média à época do encontro com a América, no século XVI, a
Europa ainda situava deus no centro da razão dos homens que julgava conhecer a verdadeira “única” forma de religiosidade. Unilateralidade que colaborou
para reiterar o imaginário cristão no continente americano como insígnia capaz
de responsabilizar-se pela conduta e destino de homens a exemplo da mentalidade de navegadores e exploradores europeus, leais á Coroa e fiéis à Igreja.
Relação que influenciou diretamente a visão de mundo de cada indivíduo e
navegador na interpretação de cada experiência e descobertas, incluindo-se a
América quando, na ocasião de seu encontro, tomou a forma do Éden, de acordo com as expectativas e imaginação de seus intérpretes. Por isso não surpreende que fosse comum e fizesse sentido existir e acreditar em profecias
que se responsabilizariam pela melhor sorte da humanidade nem poderia surpreender Colón situar-se como profeta numa revelação que poderia suprimir
grande parte dos males vividos pelo Velho Mundo. Foi imbuído nesse sentimento, misto de fé e esperança, que Colón investiu-se em mares ignotos no
ímpeto de explorar espaços e levou adiante o “significado e a vontade” das
palavras de Deus como homem de fé.
Para Janice Teodoro, em “América Barroca” (2004), o navegador, imerso
no sentimento místico que orientava a época, sentiu-se, sob a égide do cristianismo, quando pensou ter localizado o “Paraíso Terrestre”, responsável pela
possibilidade de “redenção” do Ocidente. Mais que um casual encontro2 a
América significou para Colón o cumprimento de uma profecia; obsessão que o
2
Ver O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América. Trad. Ana Maria Martinez Corrêa e Manoel Lelo Bellotto. São Paulo: UNESP, 1992.
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navegador acreditou ser porta-voz. Tanto que a impressão que se tem ao analisar os textos é que a imagem da Terra Santa suscitada pelo navegador atrelou-se, principalmente, ao interesse de um homem em imortalizar-se como o
responsável por encontrar o “elo perdido” do Ocidente.
López (2006) acrescenta que o sentimento de Colón vinculava-se a uma
anterioridade para muitos desconhecida ao recordar os estudos dos escritos
bíblicos do navegador ao lado do padre Gaspar Gorricio quando buscava a
confirmação do “significado” de suas viagens como “prenúncio” místico. “Confirmação” e “prenúncio”, inclusive, que o navegador italiano procurou “fundamentar” no Libro de las Profecías3. Dessa maneira, Colón acreditou, ao explorar o continente americano, que cumpria o que estava escrito nas sagradas
escrituras. Ou seja, acreditou ser o mensageiro de Deus ao pensar ter encontrado o Paraíso na América. Dessa maneira,
[...] a América mostrou ser um mundo novo no sentido de uma ampliação não
previsível da velha casa ou, se se preferir, da inserção nela de uma parcela da realidade universal, considerada até então como de domínio exclusivo de Deus
(O’GORMAN, 1992, p. 198).
A função do Libro de las Profecías além de promulgar a “revelação” de
espaços sagrados e perdidos teve a intenção de homologá-los ao tentar persuadir os Reis Católicos de que o encontro com a América era, de fato, a confirmação de profecias. Tanto que Colón anexou o Libro de las Profecías a outros
documentos compromissados com o testemunho da verdade entregues aos
Reis após as expedições. Ao fazê-lo, o navegador buscou respaldo necessário
para reconhecer a “revelação” e firmar-se responsável pela boa nova.
Apesar do esforço de Colón para reconhecer a existência do Paraíso Terrestre é possível que os Reis Católicos, representantes de Deus na terra, tenham rejeitado a idéia messiânica porque a “revelação” de Colón prejudicaria
a estabilidade política e administrativa dos reinos. Ou seja, viabilizar o milagre
da redenção significaria relegar a segundo plano a importância (do papel) dos
Reis nas vidas dos homens.
De qualquer maneira, as afirmações de Colón a respeito do continente
americano serviram para ampliar as possibilidades de entendimento das terras
3
Os estudos levados a cabo junto com o Padre Gorricio resultaram na escritura de
um caderno de citações proféticas. O livro tentou fornecer, entre diversas referências – salmos, excertos dos Apóstolos, palavras de Santo Agostinho, Jeremias, Isaías,
Gênese e Apocalipse –, sugestões e indicações sobre o devir e a salvação no plano
terrestre. Salvação que acreditou Colón intermediar ao acreditar ter localizado ao
visualizar semelhanças no Novo Mundo com os indícios a que se referiam às palavras dos profetas.
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125
descobertas. Pensar a respeito do que apresentou Colón fez com que muitos
homens pensassem a respeito de sua condição e organização social. Basta
observar que grande parte das Utopias escritas no século XVI tenha se referido
muitas vezes ao encontro de OIlhas Perdidas e o relatos desses encontros.
Muitos fizeram menções diretas sobre a América como é o caso de Thomas
More – A Utopia – e Tommaso Campanella – “A Cidade do Sol”. Porém, independente dos desdobramentos possíveis, o fato é que as subjetividades na
interpretação de Colón não foram suficientes para empreender a idéia de salvação porque ficou evidente o fracasso da razão primeira do financiamento
das expedições que se relacionavam a buscas materiais – nesse ponto muitos
inferem que a idéia do Paraíso foi exposta por Colón no intuito de encobrir o
fracasso das investidas. Nesse caso, é bom salientar que antes da fixação material por ouro que justificava a empreitada da exploração.
No es la población salvo allá más adentro, adonde dicen otros hombres que yo
traigo que está el rey que trae mucho oro; y yo de mañana quiero ir tanto avante
que halle la población y vea o haya lengua con este rey que, según éstos dan las
señas, él señorea todas estas islas comarcanas y va vestido trae sobre sí mucho
oro; aunque yo no doy mucha fe a sus decires, así por no los entender yo bien,
como en cognoscer que ellos son tan pobres de oro que cualquiera poco que este rey traiga les parece a ellos mucho (COLÓN, 2003, p. 13).
Colón era um homem crente em busca de sua verdade e que acreditava
estar apto para conhecê-la e difundi-la. Tanto que anexo aos diários de navegação estava o Libro de las Profecias entregue aos Reis Católicos. Colón, desse
modo, autoproclamava-se como “[...] homem comum e iluminado que, com a
ajuda de outros homens iluminados, tinha o dom de antever o amanhã ou a
razão resplandecente que se serviria útil ao explicar o passado e dar um sentido final à história humana”, como sugere Cordiviola (2005, p. 70). O que leva a
crer que Colón, antes de estar a serviço dos Reis, estava a serviço dos desígnios
de Deus, envolvido em outras descobertas ademais das imediatas e comuns.
Colón acreditava ser uma espécie de “escolhido” por Deus para revelar
novos rumos para a Humanidade. O navegador genovês também acreditava
que o fato de ser navegador o vocacionava a intermediar novas relações alémmar. Ao escrever o Libro de las Profecias, respaldado por afirmações de profetas justificou seu intento. Para o descobrir a América significou descobrir um
plano de Deus, ao reafirmar as previsões de profetas como Isaías: “en efecto,
las islas me aguardan y las naves del mar en primer lugar, para que conduzca a
tus hijos desde los lejos” (COLÓN apud LÓPEZ, 2006, p. 51). Como acreditava
ser o mediador dos mundos internalizou as palavras do profeta e acreditou ser
digno da incumbência de conduzir “los hijos” às Ilhas, à América. Em Jeremias
126
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314, o genovês reafirmou a pertinência das profecias e o papel por ele assumido como “mediador” de uma nova Era. É possível que Colón, ao assumir o
compromisso com os Reis de encontrar uma nova rota para as Índias na verdade estava imbuído em encontrar, sobretudo, as Ilhas anunciadas pelos profetas. Como navegador, conciliar convicções pessoais e missões sociais, talvez
tenha sido, de fato, a confirmação necessária para respaldar seus interesses.
Então, o que haveria de ilegítimo ou absurdo em suas palavras e interpretações?
A Bíblia preanuncia aquilo que o navegante encontrará no seu percurso, e a geografia de mil maneiras confirma o que fora previsto muito antes, e que, portanto,
era indisputável, por obedecer desígnios divinos (CORDIVIOLA, 2005, p. 68).
Percebe-se, com isso, que Colón foi, sobretudo, fiel às suas crenças e
responsabilidades e fez delas tentativa de conversão de um mundo. O que
significaria a concretização do sonho de encontrar o Paraíso na terra. Dessa
maneira, que ao projetar o Paraíso Terrestre na América Colón deixou inscrito
em seus diários não o que ele viu no continente americano, mas o que gostaria
de ver, de acordo com o repertório de pressentimentos, imaginações e desejos
coletivos perpassados de gerações e gerações entre frustrações e ansiedades
que se fizeram materializáveis em semelhanças até então não experenciadas.
Desse modo, diante da urgência da revelação e condição em que se encontravam os homens medievais, do ponto de vista econômico e social, pouco importava saber se o navegador ao desembarcar em 1492 em terras desconhecidas
chegava a outro continente: prevaleceu a impressão de que se preferiu manter
os sonhos de uma civilização.
O mito, a repetição da repetição, se inscreve como força antecipatória no fluxo
linear da história cristã; ensaia eternos retornos que desordenam e desviam os
sentidos do tempo, invoca estranhas continuidades que parecem se configurar
no além da história e da geografia. Cria uma outra esfera de interpretação, que,
apelando a tradição e ao divino, não apenas se contrapõe à banalidade do real,
mas também ajuda a redefinir essa mesma noção de real (CORDIVIOLA, 2005, p.
87).
O que se destaca nas palavras do almirante genovês firma-se como oportunidade de reviver e conquistar “origens” e torná-las tão inquestionáveis
quanto profícuas para o desenvolvimento da história do homem. Pois, os cristãos há muito buscavam o Paraíso quando ele não se mostrou ao alcance de
olhos que pertenciam a corpos e espíritos que, indubitavelmente, se achavam
4
“Oid, gentes, la palabra del Señor en las islas que están lejos” (COLÓN apud LÓPEZ, 2006, p.
51).
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merecedores do consolo de angústias e necessidades, materiais e espirituais
supridas.
El propio sentido de insatisfacción de la cristiandad del siglo XV halló su expresión en la ansia de volver a una situación más favorable. La vuelta debía ser al
perdido paraíso cristiano, o a la Edad de Oro de los antepasados, o a alguna engañosa combinación de ambos (ELLIOTT, 2000, p. 44).
Dessa maneira, a “descoberta” do navegador apresentou-se revolucionária e providente, pois, a imagem e a possibilidade de redenção habitava
desde há muito a imaginação de cidadãos comuns, nobres, navegadores, exploradores e povoadores do Ocidente como obsessão. Obsessão por representar e indicar o recomeço que teria a função de livrar os homens dos “pecados”
cometidos que obstaculizavam a realidade em curso.
Reviver esse tempo, reintegrá-lo o mais freqüente possível, assistir novamente ao espetáculo das obras divinas, reencontrar os Entes Sobrenaturais e
reaprender sua lição criadora é o desejo que se pode ler como em filigrana em
todas as reiterações rituais dos mitos. Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que
essa história é significativa, preciosa e exemplar (ELIADE, 2004, p. 22).
No entanto, o que fez Cristóbal Colón acreditar que estava diante de Paraíso Terrestre? Ou, ao menos, quais os elementos além de sua convicção influenciaram e fizeram com que o espaço americano se tornasse algo próximo
ou a sua própria materialização?
Ora, a idéia desse mundo resguardado de toda espécie de calamidade e padecimentos físicos, tanto quanto a outra, que ela se enlaça estreitamente, da longevidade extrema dos seus moradores, tende a entrosar-se, muitas vezes, na inspiração dos velhos motivos edênicos, tais como aparecem principalmente na
literatura devota da Idade Média. A simples presença do desconhecido e do mistério poderia, aliás, encaminhar sobre esse rumo as imaginações (HOLANDA,
1996, p. 283).
Desse modo, a imaginação deu sentido a América. Colón pensou encontrar o Paraíso com base em indícios literários pré-existentes e semelhanças
testemunhadas com os olhos da fé. O que para a época foi “lícito”, “legítimo”
apesar das palavras de Colón terem sido meras especulações fundamentadas
em convicções pessoais e analogias feitas pela ausência de recursos lingüísticos
para explicar um universo distinto. Em verdade, a América foi uma realidade
material que não havia sido experenciada – Literaturas – e que foi confundida
com outra realidade – profecias –igualmente nunca vista e experenciada, o
Paraíso, o que causou espanto e entusiasmo. Prevaleceu um Dever Ser ao invés de uma nova experiência com a realidade.
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Uma realidade que se fundamentava como imaginação em duas perspectivas distintas e convergentes: a herança de um imaginário anterior ao descobrimento e a necessidade de reatualizá-lo, o que se tornou possível a partir
do “descobrimento”. Colón viabilizou as duas perspectivas ao interpretar o
espaço americano. Desse modo, mais do que representar a vontade de Deus é
possível que ele tenha representado a infelicidade e a impaciência de homens
com a realidade que o cercava quando pensou ter encontrado o “Paraíso”.
O resultado é que uns, meio desenganados, [...] movidos por uma desordenada
impaciência, procuravam ou já cuidavam ter encontrado na vida presente o que
os outros aguardavam na futura, de sorte que o mundo, para suas imaginações,
se convertia num cenário prenhe de maravilhas (HOLANDA, 1996, p. 4).
Por isso, não seria exagero admitir que, caso a América não existisse àquelas alturas, seria necessário inventá-la.
La invención del otro como creación, alegoría, leyenda, fábula o simple mentira
inscribe, poco a poco, el Nuevo Mundo en el ideal de un deber ser, mítico primero, utópico luego. Esta idealidad de contraponer al ser empírico que la invención
americana va ratificando al mismo tiempo en el inventário de la nueva realidad
abordada, vocación etnológica “avant la lettre” de cronistas y padres misioneros
que integra y completa el soñar despierto de la utopía (AINSA, 1998, p. 34).
Uma via possível por meio do “milagre” da semelhança e que se responsabilizou por conciliar bases do pensamento lógico e mágico. A semelhança
que, segundo Foucault (1987), desempenhou importante papel no século XVI
por conduzir a exegese e a interpretação dos homens ao “organizar” o jogo
simbólico das formas. O que faz sentido ao perceber os esforços dos navegadores ao tentar descrever os novos mundos. Novos mundos que reavivaram,
por meio da linguagem, o que dificilmente poderia conceber-se: o Paraíso Terrestre ou a sua possibilidade. Universo que se assemelhou ao que de mais maravilhoso poderia existir para um homem que acreditava no além.
O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo suas hastes os segredos que serviam ao
homem. A pintura imitava o espaço. E a representação – fosse ela festa ou saber
– se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título
de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar
(FOUCAULT, 1987, p. 33).
Mais que uma revelação, os escritos de Colón desvelaram-se na tentativa de reavivar o desejo de saldar uma antiga dívida do homem para consigo
mesmo após séculos de infelicidades, buscas e insuficiências. A importância da
projeção de Colón consistiu em proporcionar, mesmo que por alguns instantes,
a oportunidade de os homens redimirem-se perante Deus dos maus procediA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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mentos e os mal-estares causados por eles próprios a si mesmos. O encontro
com a América, pelas “semelhanças” com o Paraíso perdido, poderia significar
um sinal divino de consentimento para recomeçar uma nova fase. Por isso, não
seriam absurdas as relações que fez Colón, mesmo ele representando anseios
de poder e riqueza. De qualquer forma, é nesta aparente combinação entre o
divino e o terreal, entre o espiritual e o material, que o sonho tentou acomodar-se no continente recém-descoberto: a oportunidade propícia para a sua
materialização.
Independente das intenções e percursos, parece que o encontro de Colón com o “Paraíso” esteve mais relacionado à certeza de suas convicções do
que a preocupação de seguir a lógica das coordenadas marítimas que o levariam ao Éden. Talvez, o fato de existirem indícios sobre a localização do Paraíso
ao Oriente não fossem suficientes para desvirtuar outras possibilidades. Mesmo porque, por meio da ciência de que o mundo era esférico, a idéia sobre o
Oriente poderia relativizar-se de acordo com referências de origem e caminho.
Mais relevante foi chegar e desembarcar em um destino e perceber sugestões
semelhantes a de suas convicções e tentar conciliá-las com o compromisso
institucional. Convicções, inclusive, compatíveis e associáveis a palavras proféticas que norteavam a razão da época. Convicções, no entanto, que apesar de
plausíveis e justificáveis, poderiam limitar-se a devaneios, frutos de uma imaginação que gerou obsessão.
O Senhor, teu Deus, te fez entrar numa terra boa, terra de torrentes, de fontes,
de águas subterrâneas, jorrando na planície e na montanha, terra de trigo e de
cevada, de vinhas, figueiras e romãzeiras, terra de óleo de oliva e de mel
(DEUTERONÔMIO, 8, 7).
[...] porque es cierto que la hermosura de la tierra de estas islas, así de montes e
sierras y aguas, como de vegas donde hay ríos cabdales, es tal la vista que ninguna otra tierra que sol escaliente puede ser mejor al parecer ni tan fermosa [...]
(COLÓN, 2003, p. 73).
A impressão que se tem ao examinar os indícios que levaram o genovês
ao escrever como escreveu ao interpretar a América marca “[...] a imaginação
como ferramenta útil para dar explicação não somente ao desconhecido, mas
também para tentar justificar o que não se queria admitir como evidente”
(LÓPEZ, 2006, p. 48): o Novo Mundo como espaço distinto e inimaginável e
descrição do espaço realizada pelo navegador fosse tão-somente a descrição
de outra realidade; uma realidade que ele gostaria de testemunhar, que poderia ou não ser divina, a depender de quem e por quais razões poderia interpretá-las dessa maneira. O que leva a crer que as realidades podem tornar-se divinas quando se acredita que elas são semelhantes ao que desejamos e
acreditamos como tal.
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É possível que a idéia do Paraíso, de fato, tenha sido uma espécie de representação, semiologia capaz de tornar legível e legítimo espaço até então
inconcebível, porém, conveniente e reconhecível como convicção, esperança e
realidade se demonstrado e comprovado. Uma necessidade, uma perspectiva
que agradaria tanto os leitores quanto o escritor. Desse modo, a expectativa
de muitos leitores somada à convicção do hermeneuta italiano fundiu-se em
uma estratégia retórica que articulou idéias preestabelecidas pelo imaginário
do Ocidente. Assim, não seria exagero considerar que encontrar o continente
americano foi uma oportunidade que materializou o mito, de acordo com devaneios e necessidades, por meio de uma linguagem fundamentada na busca
por felicidade e redenção. Sonho que se queria possível enquanto vida os homens tivessem.
A religiosidade dessa experiência deve-se ao fato de que, ao re-atualizar os eventos fabulosos, exaltantes, significativos, assiste-se novamente às obras criadoras
dos Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo de todos os dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral, impregnado da presença dos Entes
Sobrenaturais. Não se trata de uma comemoração dos eventos míticos mas de
sua reiteração. O indivíduo evoca a presença dos personagens dos mitos e tornase contemporâneos deles. Isso implica igualmente que ele deixa de viver no
tempo cronológico, passando a viver no Tempo primordial, no Tempo em que o
evento teve lugar pela primeira vez (ELIADE, 2004, p. 22).
O que poderia ser oportuno. A fórmula era simples: considerar a América como possibilidade de felicidade e redenção a partir do resgate de idéias
edênicas. O mito da terra incógnita decorrente da sensação de viver em um
universo incompleto, de acordo com as promessas de imaginários, sonhos de
homens que produziram Literatura. Seria a imaginação um transtorno necessário? Não importa. Seja qual for a resposta estará, assim como esteve até aqui,
ao se tratar de futuro, o desejo por um lugar seguro e maravilhoso não foi nem
será descabido. Um futuro que pretensa e curiosamente foi delineado pelos
antigos.
Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os
tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das
antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel, imóvel como o
Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de proteção (BACHELARD, 1993, p. 25).
Seja como for, não deve ter sido simples para o navegador italiano lidar
com outra natureza. Pois, a imagem do Paraíso (re)suscitada por Colón relacionou-se à dificuldade de identificar e reconhecer uma realidade distinta. Pois,
até então, os europeus bastavam-se. Não esperavam eles conscientizarem-se
de que não estavam sós e que não passaram de meros componentes integranA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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do um sistema maior de convivência e realidade. É possível que inserir a América no patrimônio do imaginário do Ocidente tenha sido uma reação oportuna
na tentativa de manter o mundo uno e sob controle. De toda forma, mais um
transtorno firmado pela imaginação.
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HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1996.
LÓPEZ, Juan Ignácio Jurado-Centurión. A forja da identidade através da literatura colonial dos
séculos xvi e xvi: navegantes, cronistas e religiosos no Novo Mundo. Dissertação de Mestrado
orientada pelo Professor Dr. Alfredo Cordiviola (UFPE) e apresentada ao Departamento de PósGraduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2006.
O’GORMAN, Edmundo. Invenção da América. Trad. Ana Maria Martinez; Manoel Lelo Bellotto.
São Paulo: UNESP, 1992.
THEODORE, Janice. América barroca. São Paulo: Nova Fronteira/EdUSP, 1992.
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O CONSÓRCIO DA CIÊNCIA E DA ARTE ENQUANTO PROJETO ESTÉTICO
NORTEADOR D’OS SERTÕES, DE EUCLIDES DA CUNHA
Léa Costa Santana Dias1
Resumo: Neste artigo, parte-se da própria concepção euclidiana do consórcio entre ciência e arte e se constrói um diálogo entre ambas, entendendo-as como
partes indissociáveis de um mesmo discurso, que se interpenetram durante toda
a narrativa, dando a Euclides a oportunidade de se constituir como aquilo que
ele acreditava ser o escritor do futuro.
Palavras-Chave: Euclides da Cunha, Os sertões, Canudos, Ciência, Arte.
Abstract: In this article, is built a dialogue between science and art, starting from
own Euclides’ conception about the consortium among both. These are understood as inseparable parts of a same speech, that influence each other along the
whole narrative, giving Euclides the opportunity to constitute himself, as he believed to be, the writer of the future.
Key Words: Euclides da Cunha, Os sertões, Canudos, Science, Art.
Em Os sertões, de Euclides da Cunha, os eventos da guerra de Canudos
foram representados através de um estilo peculiar, marcado pela interinfluência entre caracteres discursivos próprios de textos literários e científicos. Desde a publicação do livro em dezembro de 1902, esse modo de narrar tem sido
tema de discussões entre pesquisadores de diferentes áreas do saber.
Num texto publicado no Correio da Manhã em fevereiro de 1903, Moreira Guimarães, ex-colega de Euclides na Escola Militar, declarou ser Os sertões
“mais produto do poeta e do artista que do observador e do filósofo”
(GUIMARÃES, 2003, p. 87). Sentindo um certo desconforto em lidar com a ciência e a arte num só texto, criticou:
Por igual não se encontram nesse livro as virtudes da imaginação e os atributos
da reflexão. Porque nem sempre, lado a lado, marcham, pelas páginas emocionantes dessa encantadora obra, o delicado cultor da palavra e o destemido pensador brasileiro (Idem, p. 87).
Num texto publicado em 31 de janeiro de 1903 na Revista do Centro de
Ciências, Letras e Artes de Campinas, o botânico José de Campos Novaes adotou postura análoga, acusando Euclides de ter sido “algum tanto injusto no
aquilatar o valor intrínseco dos trabalhos dos especialistas, que amam o detalhe exato, congruente e conclusivo” (NOVAES, 2003, p. 112-3). Também teceu
1
Professora de Literatura Brasileira da Universidade do Estado da Bahia – UNEB (Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – Campus XXII – Euclides da Cunha). Mestra em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS; endereço
eletrônico: [email protected].
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críticas àquilo que considerava um estilo de “ares rebarbativos, muito diverso
do estilo claro, preciso e técnico” (Idem, p. 114), indispensável aos textos científicos.
Cinqüenta anos depois da publicação de Os sertões, ao considerar o valor artístico do texto, o crítico Afrânio Coutinho aproximou-se do posicionamento assumido por Moreira Guimarães e José de Campos Novaes. Mas, ao
contrário destes, elogiou esta particularidade, entendendo o livro como “uma
obra de ficção, uma narrativa heróica, uma epopéia em prosa, da família de A
guerra e a paz (sic), da Canção de Rolando e cujo antepassado mais ilustre é a
Ilíada” (COUTINHO, 1995, p. 61).
Quase cem anos depois de Os sertões, o teórico Luiz Costa Lima rejeitou
o caráter ficcional de Os sertões, defendido por Afrânio Coutinho, destinando à
ciência o lugar-centro, o lugar de tema; e à literatura, o lugar-margem, o lugar
de ornato (LIMA, 1997, p. 146). Para o crítico,
o plano literário é aceito por Euclides apenas ali onde é passível de ilustrar ou figurar mais expressivamente verdades cientificamente estabelecidas. O plano literário se confunde com as bordas da narrativa, formando a margem ornada, o
ornamento aformoseador (Idem, p. 205).
Visto a partir dessa perspectiva, Os sertões seria um texto de ciência, no
qual o literário aparece como um “ornamento embelezador ou ressaltante de
verdades cientificamente dispostas” (Idem, p. 204).
Entre esses dois posicionamentos críticos advindos dos meios literários,
que enfatizam ora a ciência (Luiz Costa Lima), ora a arte (Afrânio Coutinho),
está a maior parte dos pesquisadores, que preferem classificar Os sertões como um texto de múltiplas inserções. Dentre eles, destacam-se Leopoldo Bernucci, Valentim Facioli, Walnice Nogueira Galvão, José Carlos Barreto de Santana, Roberto Ventura, José Veríssimo e Berthold Zilly.
José Veríssimo foi um dos primeiros estudiosos a considerar a hibridez
discursiva de Os sertões. Num texto publicado no Correio da Manhã em 03 de
dezembro de 1902, um dia após o lançamento da obra-prima euclidiana, o
crítico fez a seguinte declaração:
O livro, por tantos títulos notáveis, do Sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo
o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um
homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza, como ao contato do
homem, e estremece todo, tocado até ao fundo d’alma, comovido até às lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as
“secas” que assolam os sertões do norte brasileiro, venha da estupidez ou maldade dos homens, como a campanha de Canudos (VERÍSSIMO, 2003, p. 46).
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Apesar de ter feito essa declaração sob o impacto de uma leitura rápida
e superficial, Veríssimo revelou sensibilidade para apreender o que, de fato,
Euclides se propunha com Os sertões, a nível estético: estabelecer, num só
texto, a confluência de discursos aparentemente opostos. No entanto, mesmo
reconhecendo o talento de Euclides para o manejo das antinomias, o crítico fez
uma ressalva ao livro, condenando a presença de termos técnicos, arcaísmos,
expressões obsoletas ou raras, neologismos e infrações à língua e à gramática,
responsáveis pela falta de simplicidade na linguagem, a que considerou um
defeito “de quase todos os nossos cientistas que fazem literatura” (Idem, p.
23).
Em carta ao crítico, datada de 03 de dezembro de 1902, Euclides agradeceu o modo como Os sertões foi recebido e aproveitou a oportunidade para
revelar os princípios norteadores de seu projeto de escrita. Discordando do
que foi dito quanto ao emprego dos termos técnicos, assegurou que eles não
trouxeram prejuízo ao texto; pelo contrário, foram recursos plenamente adequados à sua proposta, fundamentada sobretudo na idéia de que “o consórcio
da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais
elevada do pensamento humano” (CUNHA, 1997, p. 143).
Antes mesmo da escrita de Os sertões, a idéia de fazer a ciência e a arte
confluírem num só texto já constituía um traço significativo do pensamento de
Euclides – algo que continuou a marcar os textos posteriores, sobretudo os
escritos amazônicos. Trata-se de um diálogo com autores europeus cujos trabalhos são marcados pela interinfluência entre esses dois discursos. Dentre
eles, Auguste Thierry, Jules Michelet, Henry Thomas Buckle, Victor Hugo, Carlyle, Hegel, Berthelot e Spencer.
Em 08 de maio de 1892, tomando como pretexto o anúncio da publicação dos livros de poemas dos escritores Júlio César da Silva e Ezequiel Ramos
Júnior, Euclides publicou em O Estado de São Paulo, na sessão “Dia a Dia”, uma
crônica na qual defendia o consórcio, argumentado que “é pela arte, de uma
maneira geral, que se pode formar a mais pronta, a mais ampla e a mais segura
idéia da superioridade afetiva e mental de um povo” e que
a ciência, altamente cosmopolita, define na história as épocas sucessivas de elevação humana; o seu caráter de universalidade é tal que é vulgar o fato de notáveis descobertas feitas simultaneamente em pontos diferentes: define de um
modo geral o espírito humano – competindo a arte mais especial, definir o espírito das nacionalidades (CUNHA, 1995, p. 672).
Através do consórcio, objetivava-se promover a fusão entre os valores
universais – representados, segundo Euclides, pela ciência – e os valores particulares, nacionais – atribuídos à arte. Para que esse ideal fosse traduzido em
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linguagem, seria necessário que houvesse um grande evento histórico capaz de
motivá-lo – papel desempenhado, segundo Valentim Facioli, pela guerra de
Canudos (FACIOLI, 1998, p. 35-59).
Por estar inserido no contexto das três últimas décadas do século XIX,
em contato com diversas correntes filosóficas, como o Darwinismo social, o
Determinismo de Taine, o Evolucionismo de Spencer, o Positivismo de Comte e
Littré etc., era natural que Euclides fizesse uso dos modelos cientificistas do
seu tempo na elaboração de sua leitura dos eventos de Canudos. Além disso,
deve ser considerada a própria formação intelectual do autor, adquirida na
Escola Militar. Walnice Nogueira Galvão, admitindo fortes influências dessa
escola sobre a formação intelectual de Euclides e sobre a elaboração de Os
sertões, enfatizou que se compararmos as áreas do conhecimento mobilizadas
no livro
com o currículo da Escola quando ele era aluno, verificamos que já estava familiarizado com boa parte delas. Tinha estudado na Escola química orgânica, mineralogia, geologia, botânica, arquitetura civil e militar, construção de estradas, desenho geográfico, física experimental, topografia e desenho topográfico, ótica,
astronomia, geodésia, administração militar, tática e estratégia, história militar,
balística, mecânica racional, tecnologia militar e as matemáticas. Afora outras, de
natureza diversa destas, como direito natural e direito público, direito militar,
análise de Constituição, direito internacional aplicado às relações de guerra etc.
Todas essas, e mais algumas, faziam parte de seu currículo escolar. Como matérias de currículo, não teriam sido obrigatoriamente estudadas a fundo, conforme
se percebe no livro, mas é com as vistas afinadas por esses saberes que Euclides
2
avalia Canudos e a guerra (GALVÃO, 1994, p. 624-5).
A busca pela verdade científica era uma preocupação comum a todos os
intelectuais que se ocupavam com a idéia de progresso. Conforme Maria Amélia Dantes, houve no Brasil, até meados do século XIX, uma certa valorização da
ciência enquanto fator de progresso, evidente, por exemplo, nas ações da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, responsável pela criação do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838 – órgão importante para o resgate
da história do país, bem como do seu conhecimento territorial (Dantes, 1988,
p. 268). Ao se preocupar com a difusão da ciência, o país pretendia se definir
no cenário mundial como sociedade científica e moderna. E porque a ciência
ocupava o centro do pensamento brasileiro, também contagiou a literatura,
transformando muitos romances escritos nesse período em divulgadores de
modelos científicos deterministas (SCHWARCZ, 1993, p. 32).
2
José Carlos Barreto de Santana também assinalou a importância da Escola Militar na carreira
de Euclides da Cunha (SANTANA, 2001, p. 40-8).
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Sendo um intelectual da época, comprometido com o ideal de progresso, Euclides estava sujeito a apreender a ciência a partir dessa perspectiva. No
entanto, ao utilizá-la em sua narração dos eventos da guerra, não se transformou num simples repetidor de fórmulas, que teriam transformado sua obra
num manual científico ou num árido romance de teses científicas. Euclides o
fez acreditando estar revestido da caracterização de “escritor do futuro” –
princípio retomado do discurso de posse do químico francês Berthelot, na Academia Francesa, em 1901, no qual se ressalta, segundo José Carlos Barreto
de Santana, ser comum naquela Academia a recepção tanto de artistas quanto
de historiadores e estudiosos das ciências naturais e exatas (SANTANA, 2001,
p. 22). Inspirando-se nas deduções do químico, Euclides argumentou em defesa própria: “o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer
trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma
síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das
experiências” (CUNHA, 1997, p. 144).
A partir das afirmações de Euclides nessa carta a Veríssimo e na crônica
supracitada, escrita em 1892, pode-se deduzir que a ciência e a arte aparecem
em Os sertões atendendo a um projeto estético previamente elaborado, que,
ao dar forma à narrativa, transformou-se num meio sobremodo eficiente, naquele momento histórico, para a representação da realidade brasileira, metaforizada nos conflitos desencadeados em Canudos.
Como o escritor permaneceu pouco tempo no cenário da guerra (talvez,
menos de três semanas) e, conseqüentemente, não presenciou muitas cenas
descritas no livro, surgiram-lhe várias lacunas no processo de escritura que
tiveram que ser supridas com a imaginação (ZILLY, 2001, p. 44). Lacunas tendem a ser produzidas no contato com o real que se desconhece e são propensas a serem preenchidas com o que se supõe ver ou com aquilo que o visto
possibilita uma aproximação. Nesse sentido, Os sertões se assemelha às narrativas de viagens. Nestas, conforme destacou Francisco Ferreira de Lima,
o medir, pesar e comparar são atividades básicas fundamentais, por uma razão
muito simples. Trata-se de aproximar o inaproximável, de maneira que esse real
estranho ganhe um contorno de credibilidade e possa ser, mercê do modelo prévio, visualmente compreendido. É o meio mais eficaz para conter o desamparo
do leitor, que só sabe ver o novo pelo velho (LIMA, 1998, p. 92).
O homem que viajara supondo saber o que encontraria e sobre o que teria que falar teve a visão clara e precisa dos fatos desestabilizada: Canudos não
se encaixou na forma pré-estabelecida. Com isso, conforme observações de
Lourival Holanda Barros, o narrador passou a ter uma visão astigmata, em que
não se correspondiam duas imagens: a que havia em sua mente e a que se lhe
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apresentava perante os olhos (BARROS, 1992, p. 45-6). Havia o choque perante
o desconhecido – uma espécie de deslumbramento diante de um outro que
não se adequava às descrições divulgadas oficialmente – e a necessidade de
apresentá-lo ao país a partir de novas perspectivas. Havia um novo sertão,
fruto das impressões da viagem, que precisava ser revelado. E, para tal, a Euclides pareceram-lhe insuficientes as palavras. Às lacunas provindas do contato
com o novo, juntaram-se outras, surgidas da própria dificuldade de se lidar
com a realidade sertaneja. Havendo, então, a impossibilidade de explicar o
fato por meio de um discurso unilateral, o escritor recorreu à arte, utilizando
“a fantasia” como um meio de insurgência “contra a gravidade da ciência”
(CUNHA, 2001a, p. 138), dando a impressão de que o homem de ciências se
afastava da verdade científica e se aproximava da veracidade artística, contradizendo-se, de certo modo, com o posicionamento assumido na carta a Veríssimo, na qual se dizia “convencido (sic) que a verdadeira impressão artística
exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta” (CUNHA,
1997, p. 144). “Assim, onde a ciência não podia resolver, fosse por suas condições teóricas de base, fosse por carência de pesquisas, a imaginação poética
estava a postos para suprir o vazio que se apresentasse” (FACIOLI, 1998, p. 54).
Através dessa forma peculiar pela qual são tratadas as palavras e a linguagem, o “rigor incoercível da verdade” (CUNHA, 2001b, p. 784) pretendido
por Euclides parece ser posto em segundo plano – o que dá à mímese representativa um aparente domínio textual, em “que o que passa a adquirir importância parece já não ser propriamente o que se narra mas como se narra”
(BERNUCCI, 1995, p. 107). Nesse encontro entre ciência e arte, emergem as
muitas antíteses e paradoxos, que compõem aquilo que Walnice Nogueira
Galvão classificou como o “pensamento oximorótico” de Euclides da Cunha.
Por meio dele, “vemos o autor cedendo passo a um número imenso de vozes
estranhas umas às outras, emitindo uma discussão de idéias muitas vezes contraditórias”. Sua predileção pelas antinomias, portanto, é um recurso que “não
só orna como expressa a dificuldade real de alcançar uma síntese entre doutrinas contraditórias” (GALVÃO, 1994, p. 630). Aliás,
a síntese é impossível: a verdade do livro está em suas contradições. As idéias
vão e voltam, o argumento que se expõe num dado passo é seguido de seu contrário, logo depois ou centenas de páginas adiante. Tudo isso representa, no seu
movimento de vaivém, a impossibilidade da inteligência brasileira de entender o
fenômeno e de tomar um e um só partido” (Idem, p. 631).
A ciência e a arte, assim dispostas no texto, não se alternam entre si,
mas formam um só discurso, particularmente antitético e antinômico. Essa
opção narrativa, segundo Valentim Facioli, é fruto da consciência de que
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a ciência era cosmopolita e a arte nacional; aquela daria conta da mobilidade
constante do pensamento científico na civilização ocidental; esta captaria os aspectos mais profundamente estáveis da formação étnica da nação. Aquela era o
influxo do progresso; esta podia ser até contraditória com este mas devia expressar o sentido de uma evolução que a integrasse nele. O fundo de suas antíteses era um sentimento dramático da distância que, no Brasil, separava uma e outra (FACIOLI, 1990, p. 166).
Ou seja, na perspectiva de Euclides, os princípios de ciência e arte estavam separados, como também estavam a Europa e o Brasil. Consorciá-los era a
expressão de uma impossibilidade, ou melhor, de um projeto que só poderia
ser concretizado plenamente no futuro, quando o Brasil transitasse de sua
“condição pré-civilizada e ‘sem história’ para a condição plena de civilização”
(FACIOLI, 1998, p. 37), pois ao país do presente, periférico e incivilizado, restavam apenas “o desejo de ser como o centro do processo, que coincidia com o
progresso e a civilização, e a consciência de estar fora do lugar, ou, num outro
lugar, visto este como atraso e barbárie” (FACIOLI, 1990, p. 95-6). A Euclides,
vivenciador desses conflitos, cabia a tarefa de representá-los. Sendo, simultaneamente, uma testemunha ocular de alguns momentos da guerra e um intelectual “envolvido com membros da comunidade científica”, que sempre se
definiu “como integrante dessa comunidade” (SANTANA, 2001, p. 97), sobreveio-lhe a angústia de “dizer aquilo que a experiência própria impunha”, sem a
possibilidade de prescindir “da mediação das ciências-panacéia, sob pena de
nem parecer moderno e civilizado, nem incluir o futuro do Brasil no processo
histórico ocidental” (FACIOLI, 1990, p. 112). No texto, a angústia é expressa por
meio da inversão entre essência e aparência, pois
a experiência euclidiana real (insuficiente para se constituir como ciência enquanto processo normalizador de conhecimento universal) como não coincidia
com as conclusões das ciências, e não sendo descartável, só se podia expressar
mediante os recursos artísticos, porque parecia a Euclides ser mera aparência
concreta que ocultava verdades mais profundas e mais genéricas. A essência
dessa aparência já estava dada pela generalidade das conclusões das ciências. O
que se vê, hoje, em perspectiva, é que a essência era tomada como mera aparência e esta que, de fato, era ideologia, ou pior, era política imperalista com a
cara, invisível então, de panacéia, passava por essência. Esse jogo perverso baralhava a identidade do país e de seu sujeito cognoscente no interior dele. Era a
história de um país e de um homem que precisavam ser outra coisa para se reconhecerem a si mesmos mutuamente (Idem, p. 112-3, grifos do autor).
Tanto a ciência (expressão do mundo civilizado) quanto as impressões
advindas do contato com o outro (responsáveis por uma revisão de valores e
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por uma relação antitética com a ideologia republicana3) eram conflituosas e
precisavam conviver juntas, ainda que isso só fosse possível com a inversão de
seus valores. A marca de Os sertões, portanto, teria que ser a dialética – atuante na mutualidade de influxos entre a ciência e a arte, que, por serem facetas
inseparáveis de um mesmo discurso, não permitiam que houvesse momentos
em que uma predominasse sobre a outra. Por isso, a dissociação que alguns
críticos costumam fazer entre elas mutila a escrita,
justamente porque a reorganiza numa forma lógico-racional que não é a dela. Ou
seja, priva-a de sua psicologia profunda, recobrindo-a de uma projeção repressiva, espécie de necessidade racionalizadora que a tornaria domável, ou neutralizada o suficiente para se enquadrar em expectativas prévias (Idem, p. 138).
Durante todo o discurso, o autor tratou a ciência e a arte como partes
indissociáveis e quase indistintas de um mesmo todo, cujas vozes muitas vezes
dissonantes só se fizeram representáveis porque regidas por uma lógica própria. A essa, o critico Valentim Facioli apresentou-a como delírio, que teria seu
“momento de verdade, particular e universal”, que não rejeita a ciência disponível, pois estaria engendrado no “encontro desta com o olhar apaixonado
(mas também colonizador) do escritor” perante o “sertão desconhecido e rebelde” (Facioli, 1998, p. 55-6).
Regido por essa força delirante, Euclides fez uma construção inusitada
logo no primeiro parágrafo de Os sertões:
O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas
e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos
das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar
para terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo
que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o
despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior
(CUNHA, 2001a, p. 71).
Segundo José Carlos Barreto de Santana, nessa descrição, o planalto
brasileiro foi confundido com o planalto central, cujos limites não podiam ser
definidos com precisão, mas certamente não se estenderiam do Rio Grande do
Sul até Minas Gerais, nem chegariam até o Atlântico (SANTANA, 2001, p. 105).
3
Ao longo da vida, Euclides deu demonstrações claras de confiança no ideal republicano. No
entanto, diante do modelo instaurado no Brasil, foram muitas suas decepções. É o que se
percebe, por exemplo, numa carta ao pai, Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, escrita em
14 de junho de 1890: “Imagine o senhor que o Benjamim, o meu antigo ídolo, o homem pelo
qual era capaz de sacrificar-me, sem titubear, e sem raciocinar, perdeu a auréola, desceu à
vulgaridade de um político qualquer, acessível ao filhotismo, sem orientação, sem atitude,
sem valor e desmoralizado – justamente desmoralizado” (CUNHA, 1997, p. 30).
140
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Para chegar a essas conclusões, o historiador se utilizou das pesquisas de Arol4
do de Azevedo e de outros estudiosos, dentre eles, Luís Cruls e Orville Derby.
Segundo Derby, o planalto brasileiro estava dividido em duas partes: uma, a
cadeia central ou goiana, ocupando parte do sul de Goiás e parte de Minas a
oeste do rio São Francisco; a outra, a cadeia oriental ou marítima, acompanhando a costa do Atlântico, indo das proximidades do cabo de S. Roque até
praticamente os limites meridionais do país e os das bacias do Paraná, Amazonas, São Francisco e Parnaíba (apud SANTANA, 2001, p. 105). Segundo Cruls, o
planalto central, mencionado pela Constituição brasileira, possuía limites mais
restritos que os propostos por Derby: abarcava a região mais central do planalto brasileiro. Sendo assim, a “única parte do planalto brasileiro que mereceria
a denominação de central seria a que se achava nas proximidades dos Pirineus,
no estado de Goiás” (Apud: SANTANA, 2001, p. 106).
José Carlos Barreto de Santana, analisando a denominação dada por Euclides ao planalto brasileiro (cientificamente, um erro geográfico), destacou
que como o escritor conhecia trabalhos que abordavam aspectos relacionados
à classificação deste planalto5, dificilmente teria cometido tal equívoco e se,
por algum descuido, o tivesse cometido, é provável que o teria corrigido posteriormente, já que o desvelo dispensado às edições de Os sertões é um traço
característico de sua personalidade6 (SANTANA, 2001, p. 106-8). Segundo o
4
5
6
Numa carta de Euclides a Luís Cruls, escrita em 20 de fevereiro de 1903, fica evidente que
ambos trocavam correspondências entre si (CUNHA, 1997, p 149). Cruls, professor de Astronomia na Escola Militar durante o período em que Euclides era aluno, foi convidado pelo governo republicano para chefiar a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, “encarregado de, em obediência à Constituição, demarcar a área que deveria ser reservada ao
futuro Distrito Federal”. O convite se deu em 1892, época em que era diretor do Observatório Nacional do Rio de Janeiro. O geólogo da Comissão era Eugênio Hussak, cujo relatório sobre a geologia do planalto central ocupou quatro páginas e meia de uma caderneta de anotações de Euclides (SANTANA, 2001, p. 106).
Aires de Casal, Humboldt e Derby – autores cujos trabalhos versam sobre problemas de
classificação do planalto brasileiro – foram citados em Os sertões. Os livros de Wappaeus e de
José Manuel de Macedo, que tratam do mesmo tema, fazem parte da relação dos livros da
biblioteca de Euclides da Cunha, elaborada a partir do inventário realizado por ocasião de sua
morte (SANTANA, 2001, p. 105-6).
Em dezembro de 1901, Os sertões foi encaminhado à Livraria Laemmert para publicação.
Embora relutante, a livraria se encarregou de publicar o livro (RABELLO, 1983, p. 161). Em janeiro de 1902, Euclides recebeu as primeiras provas, dedicando-se, nos meses subseqüentes,
às constantes revisões, emendas, supressões, acréscimos e correções (BERNUCCI, 2001, p.
58). Segundo Sylvio Rabello, na tipografia que imprimira a 1ª edição do livro, o escritor pôs-se
a corrigir, em cerca de mil exemplares, os erros tipográficos mais graves, utilizando nanquim
e ponta de canivete. Foram oitenta emendas em cada exemplar. Oitenta mil ao todo
(RABELLO, 1983, p. 165). A hipótese de que algum leitor mais exigente pudesse corrigir seu
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
141
pesquisador, Euclides, conhecendo autores que tratavam de questões do planalto brasileiro, e citando-os como fonte, e, apesar disso, apresentando como
central o planalto brasileiro, o fez porque era sua intenção fundar, por meio do
discurso, uma geografia e uma paisagem específicas (Idem, p. 108-9).
Em outros momentos da narrativa, ocorrem construções semelhantes.
Como exemplo, faça-se remissão ao fato de Euclides ter admitido a existência
de um mar cretáceo extinto na região de Monte Santo – hipótese que deveria
ter sido inviabilizada pelos estudos de Hartt e Derby, aos quais teve acesso. O
caso, mencionado por José Carlos Barreto de Santana, ilustra a maneira como
Euclides construiu a narrativa, dialogando com dados fornecidos pela ciência,
selecionando informações que melhor servissem para validar cientificamente
suas idéias, ainda que as mesmas fontes fossem contraditórias às suas convicções (Idem, p. 113). O historiador, destacando o contato de Euclides com os
autores citados, atribuiu a escolha euclidiana à “finalidade específica de validar, pelo ponto de vista da ciência, uma ‘profecia retrospectiva’ que se diferenciaria da profecia de um sertão que um dia seria praia, apenas pelo sentido
da seta do tempo” (Idem, p. 114). Este é o modo pelo qual Euclides teria tornado possível um paralelo entre a ciência e as supostas palavras de Conselheiro, transcritas de um texto encontrado em Belo Monte: “Em 1894 ha de vir
rebanhos mil correndo do centro da Praia para o certão; então o certão virará
Praia e a Praia virará certão” (Cunha, 2001a, p. 277).
Em Os sertões, aparecem apenas algumas partes deste documento, que
está transcrito, na íntegra, na Caderneta de campo (CUNHA, 1975, p. 74-5).
Marco Villa, utilizando a fonte de autoria euclidiana, questionou a autenticidalivro, página por página, linha por linha, deixava-o apavorado. Por isso, dedicou vários dias de
sua vida “à tarefa de emendar com a maior vigilância tudo o que lhe parecia uma impropriedade, uma obscuridade ou um defeito nas suas páginas” (Idem, p. 181). Roberto Ventura, seu
último biógrafo, confirmou esse fato, apontando um número menor de correções: aproximadamente 37 – 12 acréscimos e 25 supressões – em cerca de 1200 exemplares, perfazendo o
total de pouco mais de 44 mil emendas (VENTURA, 2002, p. 41). Seu trabalho de revisão parecia interminável: emendou para a 2ª edição, publicada em 1903; emendou para a 3ª, publicada em 1905; e, finalmente, emendou para a 4ª, publicada em 1911, que, entretanto, reproduzia fielmente a 3ª – o que fez com que sua última vontade só fosse trazida a público em
1914, com a 5ª edição, elaborada a partir do exemplar da 3ª edição, cuidadosamente anotado pelo autor. Apesar de conter um número excessivo de emendas – 1500, segundo Sylvio
Rabello (1983, p. 186); 2600, segundo Walnice Nogueira Galvão, a partir de pesquisas no apócrifo de Os sertões, transcrito do autógrafo de Euclides por Fernando Nery (GALVÃO, 1981,
p. 97) –, esta edição certamente não seria a definitiva. Em sua última entrevista, concedida a
Viriato Correia, publicada em 15 de agosto de 1909, o dia do assassinato, Euclides confessou:
“Hei de consertar isto por toda a vida. Até já nem abro Os sertões porque fico atormentado, a
encontrar imperfeições a cada passo” (CUNHA, 1995a, p. 520).
142
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
de do documento supracitado, argumentando que por ser datado de 24 de
janeiro de 1890, não poderia ter sido escrito em Belo Monte, criada em junho
de 1893. Para o historiador, é estranho e contraditório o fato de o documento
se constituir uma profecia sobre o passado, pois, datado de 1890, começou a
vaticinar acontecimentos desde 1822 (VILLA, 1999, p. 232-3). E se, de fato, este
documento for apócrifo, como muitos outros que foram publicados na época e
atribuídos aos conselheiristas, a sua utilização em Os sertões parece não se
tratar de um simples descuido do autor. Considerando-se o rigor metodológico
de Euclides da Cunha, é provável que sua opção narrativa tenha sido algo
consciente e com objetivos específicos. O sertão, castigado pela seca, ao ser
transformado em praia, estaria em maior uniformidade com a idéia de sertão
paraíso que aparece no livro (CUNHA, 2001a, p. 130). Visto como praia, seria
um ambiente agraciado com a abundância das águas e, em conseqüência, poderia ser descrito como a “Canaã sagrada” (Idem, p. 295), onde “nem é preciso
trabalhar, [...] a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz
de milho as barrancas” (Idem, p. 308). De um espaço que um dia teria essas
características, somente após se esgotarem as mínimas possibilidades de sobrevivência é que, segundo Euclides, o sertanejo sairia choroso, num “êxodo
penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida” (Idem, p. 237). O sertão praia é
o sonho do sertanejo que permanece na terra apesar da fome, da seca, da
miséria e da marginalização social. É o sonho do sertanejo migrante, que aguarda ansioso a chegada das chuvas a fim de retornar feliz, “esquecido de
infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e
instável, os mesmos dias longos de transes e provações demorados” (Idem, p.
237).
Ao adornar a cidadela de Canudos com tais simbologias, Euclides tornoua passível de ser liderada por D. Sebastião, rei português desaparecido em
Alcácer-Quibir, na África, em 1578. Apesar de nos relatos dos sobreviventes da
guerra não existir qualquer menção ao sebastianismo (VILLA, 1999, p. 234;
GALVÃO, 2001, p. 108), há remissão ao rei português nos folhetos proféticos
encontrados no arraial e transcritos por diversos autores (GALVÃO, 2001, p.
108). No final do século XIX, usou-se largamente o termo sebastianismo para
nomear todos os que defendiam a restauração monárquica (VILLA, 1999, p.
234). Aliás, nem mesmo era preciso haver qualquer intenção monarquista nas
ações dos que se opunham ao regime em vigor para que fossem considerados
sebastianistas pelos representantes da elite brasileira. Euclides, como pensador inserido nesse contexto, não ficou imune a essa tendência e aplicou o termo aos habitantes de Canudos, citando, tanto em Os sertões (CUNHA, 2001a,
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
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p. 319-20) quanto na Caderneta de campo (CUNHA, 1975, p. 59-61), quadras
da poesia popular que sugeriam o paralelo. Vale ressaltar, no entanto, que os
moradores de Canudos não eram defensores da volta do regime monarquista,
tampouco os sebastianistas portugueses eram anti-republicanos, até porque,
em Portugal, a República só viria anos depois. A analogia entre eles só se tornou possível mediante um tratamento ideológico e estético. Ao sugerir o paralelo, Euclides aproximou o movimento de Canudos de outros movimentos brasileiros, como, por exemplo, do episódio da Pedra Bonita7, ocorrido em
Pernambuco, entre os anos de 1836 a 1838, “onde D. Sebastião era a presença
tutelar, conjurada à custa de sacrifícios humanos”8 (GALVÃO, 2001, p. 107). Ao
mesmo tempo, Euclides reforçou a metáfora da Vendéia, com sua conotação
anti-monarquista, embora tal imagem tenha sofrido ao longo do texto um abalo de credibilidade, como a própria idealização euclidiana da República. O sebastianismo português e a Vendéia francesa, apesar de inaplicáveis à realidade
sertaneja, possibilitavam o estabelecimento de uma ponte entre o conhecido e
o desconhecido. Foram estratégias utilizadas por Euclides para transpor, via
linguagem, o abismo existente entre o interior bárbaro e o litoral europeizado,
entre o Brasil, que almejava civilizar-se, e a Europa, civilizada e moderna.
Outro fato representado em Os sertões de forma altamente transgressora à veracidade dos fatos é o momento em que o frei João Evangelista de Monte-Marciano retirou-se do arraial, após fracassada tentativa de persuadir os
sertanejos a desertarem de Canudos. Ao partir, o frei possivelmente disse apenas a seguinte frase: “Se vocês não se dispersarem, então um dia vocês podem
ser castigados pelo último juízo” (apud ZILLY, 2001, p. 45). No entanto, foi descrito como se tivesse agido de modo semelhante aos apóstolos quando mal
recebidos nas cidades que visitavam. Segundo Euclides, ao sair do arraial, o
missionário “sacudiu o pó das sandálias”, “apelando para o veredictum tremendo da Justiça Divina...” (CUNHA, 2001a, p. 327). Apesar de ter tido acesso
ao Relatório do frei, Euclides ignorou certas informações, narrando o espetáculo da partida da seguinte maneira:
E abalou, furtando-se a seguro pelos becos, acompanhado dos dois sócios de reveses...
Galga a estrada coleante, entre os declives da Favela.
Atinge o alto da montanha. Pára um momento...
7
8
Este episódio é citado em Os sertões (CUNHA, 2001a, p. 243-4).
Alguns anos após a guerra de Canudos, entre os anos de 1912 a 1916, ocorreu em Santa
Catarina a sublevação do Contestado, “de sebastianismo não só evidente como explícito na
boca dos insurrectos”. Nessa espécie de Guerra Santa, São Sebastião, amalgamado a D. Sebastião, era o santo padroeiro, invocado “no intróito solene dos documentos, ao lado da Santíssima Trindade” (GALVÃO, 2001, p. 107).
144
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Considera pela última vez o povoado, embaixo...
É invadido de súbita onda de tristeza. Equipara-se ao “Divino Mestre diante de
Jerusalém”.
Mas amaldiçoou... (Idem, p. 327).
Diante do procedimento narrativo adotado, percebe-se que Euclides
preferiu ao aproveitamento realista da fonte a sua ficcionalização, certamente
por possibilitar maior expressividade ao discurso. A frase “Mas amaldiçoou...”
é a última da segunda parte do livro e, portanto, a última antes do começo de
“A luta”. A partir dela, “o leitor fica na expectativa da realização ou não dessa
maldição. Pura técnica de suspense”, conforme destacou Berthold Zilly (2001,
p. 45). Pensando-se a partir da “Nota preliminar”, pode-se dizer que essa maldição foi impulsionada pela “força motriz da História”, que, por sua vez, implicou o “esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes” (CUNHA,
2001c, p. 66). Este, no entanto, processou-se de forma truncada em Canudos.
Afinal, a civilização do litoral foi mal sucedida em seu propósito de “trazer para
o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas
retardatários” (CUNHA, 2001a, p. 682). E como não foi dada aos sertanejos a
oportunidade de serem incorporados à civilização, o que houve em Canudos,
na interpretação de Euclides, foi “um crime”, “um refluxo para o passado”
(CUNHA, 2001c, p. 67). Disso advém a crítica à ciência, que, intimada a dizer as
últimas palavras nas linhas finais do livro, tornou-se frágil e emudecida: “É que
ainda não existe um Maudsley9 para as loucuras e os crimes das nacionalidades” (CUNHA, 2001a, p. 781).
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9
O inglês Henry Maudsley (1835-1918) foi um médico alienista, professor de Medicina Legal
em Londres. Dentre as várias obras que escreveu, destaca-se O crime e a loucura.
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147
RESENHA1
RANGEL, Jurema Nogueira Mendes. Leitura na escola: espaço para
gostar de ler. Porto Alegre: Mediação, 2005. 176 p.
Taciana Zanolla2
Flávia Brocchetto Ramos3
Em Leitura na escola: espaço para gostar de ler, Jurema Nogueira Mendes Rangel investiga práticas de leitura desenvolvidas em escolas de ensino
fundamental do Rio de Janeiro. A autora é mestre em Educação pela Universidade Estácio de Sá (2003). Sua formação inclui graduação em Pedagogia, pela
Universidade Santa Úrsula (1977), e especializações em Dificuldades de Aprendizagem, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000), Psicopedagogia em Educação, pela Universidade Estácio de Sá (1999), e Leitura, Teoria e
Prática, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1990). Além
disso, possui experiência na área de Educação, com ênfase em Currículo, atividade exercida durante quinze anos. Atualmente, é professora da Universidade
Estácio de Sá. Seus conhecimentos teóricos, aliados à prática de docência, lhe
permitem realizar uma análise aprofundada da leitura nas escolas onde foram
realizadas observações.
Para realizar o estudo, Rangel caracteriza práticas de leitura coordenadas por professoras de 4ª série do ensino fundamental em duas escolas cariocas, sendo uma pública e outra particular. Além disso, investiga as histórias de
leitura das docentes, os discursos das instituições sobre leitura e os espaços e
tempos dedicados a essa prática em cada escola. Para coletar esses dados, a
autora visitou as duas escolas, onde manteve contanto com direção, coordenação pedagógica e professoras. Em relação às docentes, a atuação da pesquisadora incluiu a observação de aulas, totalizando quinze encontros de quatro
horas na escola pública e dezessete encontros na escola particular. Além disso,
as professoras prestaram entrevistas. A análise desse material busca as representações das docentes sobre o erro na leitura, seus efeitos sobre os estudan1
2
3
Resenha produzida como atividade do projeto de pesquisa Formação do leitor: o processo de
mediação do docente, desenvolvido na Universidade de Caxias do Sul, com apoio da FAPERGS
e do CNPq, sob a orientação da professora Dra. Flávia Brocchetto Ramos.
Licenciada em Letras pela Universidade de Caxias do Sul. Bolsista PIBIC/CNPq do projeto
Formação do leitor: o processo de mediação do docente, entre agosto de 2006 e julho de
2008. Endereço eletrônico: [email protected].
Docente da Universidade de Caxias do Sul (UCS); orientadora.
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
149
tes, o processo de produção desses “erros” e as concepções de leitura presentes na cultura escolar.
A obra contém quatro capítulos, além de prefácio, introdução e referências. No primeiro capítulo, Rangel apresenta as concepções teóricas que embasam sua investigação. Nos dois capítulos seguintes, a autora apresenta e analisa os dados sobre práticas de leitura levantados nas escolas, à luz do
referencial teórico apresentado no primeiro capítulo. O último capítulo traz as
conclusões e perspectivas sinalizadas pela investigação.
No primeiro capítulo, intitulado “A leitura na escola”, Rangel expõe concepções de leitura de diferentes correntes teóricas e suas implicações nas práticas em sala de aula. Primeiramente, a autora apresenta a abordagem interacionista ou cognitivo-processual, representada por Kato e Kleiman. Essa
corrente investiga os processos mentais envolvidos na leitura, enfatizando a
interação texto-leitor ou autor-texto-leitor e considerando que, nesse processo, estão envolvidos tanto aspectos extralingüísticos quanto lingüísticos. De
acordo com Rangel, nessa perspectiva, “a leitura compreensiva depende tanto
do texto – forma – quanto do leitor” (p. 19). Dessa forma, “o texto comporta
uma concepção que não se esgota nele mesmo, mas no diálogo que provoca
com o leitor” (p. 27). Enfatiza-se a função de mediador do docente, que deve
agir como facilitador do aprendizado da leitura, intervindo em situações sem
impor respostas prontas. O papel do leitor é ativo, o que contribui para a formação de um leitor reflexivo.
Outra concepção de leitura citada por Rangel é a de Paulo Freire, que
defendeu e lutou por uma educação libertária, político-emancipatória, contrária à educação reprodutora e excludente. Nessa perspectiva, a leitura é compreendida e promovida como atividade crítica e transformadora, com vistas à
emancipação dos sujeitos, e se desenvolve como processo dinâmico e dialógico, ativando os conhecimentos anteriores do sujeito, construídos na interação
social, e extrapolando a significação do texto, ao contribuir para a apreensão
crítica da realidade. Rangel conclui que essa “prática pedagógica alimenta a
consciência de si próprio e do outro” (p. 30), favorecendo o movimento intersubjetivo, “lócus da produção do conhecimento” (p. 30). A leitura libertária
permite ao sujeito tomar consciência de si enquanto agente transformador da
sociedade.
A autora também lembra as contribuições de Wolfgang Iser, teórico da
Estética da Recepção, para a compreensão da interação texto-leitor, relacionadas, especialmente, ao conceito de vazios. Segundo Iser, o texto possui vazios,
ou seja, espaços de indeterminação, que são preenchidos pelas projeções do
150
A Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
leitor. Para a autora, essa corrente dialoga com a concepção interacionista,
pois ambas consideram a importância do repertório do leitor na significação.
Complementando essas perspectivas, Rangel apresenta a abordagem
discursiva, que considera “as condições de produção do discurso: os interlocutores, o contexto da enunciação e o contexto histórico-social (ideológico)” (p.
40). Essa concepção, alicerçada em Mikhail Bakhtin, vem acrescentar às demais correntes uma perspectiva ainda não explorada, a da discursividade: o
“texto é o produto de uma atividade discursiva onde alguém diz algo a alguém” (GERALDI apud RANGEL, p. 44), sendo que a formação ideológica determina o que pode e deve ser dito. Dessa forma, os textos são produzidos no
interior de uma estrutura social e, por isso, os sentidos construídos dependem
desse contexto, influenciado-o e sendo influenciados.
Contrapondo-se a essas concepções, está a concepção estruturalista,
que entende a leitura como decodificação e o texto como objeto pronto, acabado, do qual o leitor deve apreender um sentido único, que está inscrito na
obra. Nessa perspectiva, o leitor desempenha uma função passiva, enquanto
ao professor cabe zelar pela decifração adequada do texto, corrigindo as leituras dos alunos para assegurar a compreensão correta, pré-determinada.
Rangel pontua que a adoção de uma ou outra concepção de leitura evidencia diferentes objetivos da educação escolar, estejam eles voltados para a
emancipação dos sujeitos ou para a manutenção da ordem estabelecida.
No segundo capítulo, “Tempos e espaços de leitura nas escolas”, a pesquisadora investiga as diretrizes de leitura nas instituições visitadas e, através
de entrevistas com as docentes que participaram da pesquisa, procura recuperar suas histórias de leitura.
Primeiramente, Rangel destaca elementos importantes em relação aos
espaços de leitura nas escolas. Na escola particular, existem duas bibliotecas,
uma destinada aos alunos menores e adaptada a eles – “mesas mais baixas,
bancos, almofadas, um teatro de marionetes, paredes e estantes coloridas,
que permitem o acesso ao livro pelo próprio aluno” (p. 77) – e outra destinada
à pesquisa, mais tradicional, na qual o aluno solicita material ao bibliotecário.
Entretanto, a pesquisadora chama a atenção para o fato de não ter presenciado o uso desses espaços, durante suas visitas à escola. De acordo com a própria coordenadora pedagógica, o espaço de pesquisa é utilizado com pouca
freqüência.
Na escola pública, a autora não destaca a biblioteca como espaço de leitura, mas o pátio da escola, onde são disponibilizados livros aos alunos, durante o recreio. De acordo com Rangel, o espaço da escola é bastante reduzido,
especialmente para atividades como correr e brincar. Por esse motivo, a autoA Cor das Letras — UEFS, n. 10, 2009
151
ra pontua que a presença de livros no intervalo pode significar que a leitura
está sendo utilizada como recurso disciplinador.
Outro aspecto relevante apontado por Rangel foi a resistência das docentes em participar da investigação. A pesquisadora destaca o silêncio das
professoras, que relutavam em fornecer informações sobre seu trabalho e sua
trajetória de leitura. Essa resistência foi maior na escola particular, onde a coordenação demonstrou uma postura mais autoritária do que na escola pública.
Para Rangel, isso sinaliza a submissão do docente ao autoritarismo institucionalizado, que “produz e reproduz, no cotidiano, formas multifacetadas de dominação e silenciamento, um verdadeiro sistema de controle de saberes e
fazeres entre direção/professor, professor/professor, professor/aluno” (p. 91).
Nas histórias de leitura das docentes, destaca-se o papel desempenhado
pela família no estímulo e na apropriação do hábito da leitura. De acordo com
a autora, “o papel de modelo exercido pelos pais é o principal incentivo para a
leitura do cotidiano infantil, favorecendo a construção de um conhecimento de
mundo no qual a criança se move, age, fala sempre em contato com o outro”
(p. 100). Por outro lado, a leitura na escola aparece como um momento normativo, quantitativo, passivo, de reprodução do texto e primazia da obra sobre
o leitor e do verbal sobre o visual. Dessa forma, delineia-se uma “tensão entre
o espaço da família e o da escola, que engendra o desejo de ler em confronto
com o exercício de uma leitura normativa, que produz um sujeito desejável,
legítimo e educado” (p. 106). A pesquisadora observa que essa tensão perpetua-se no espaço escolar, uma vez que os relatos das professoras revelam vivências de leitura escolar muito semelhantes às propostas que desenvolvem
em sua prática atual.
A análise das aulas de leitura é realizada no terceiro capítulo, “O aluno
leitor: o que lê e como lê?”. As visitas às escolas sinalizam, de acordo com Rangel, que as preferências do leitor-aluno em relação à leitura não são consideradas. Segundo ela, desconsideram-se as especificidades do aluno e de seu
contexto, adotando-se critérios baseados nos padrões culturais e lingüísticos
de classes dominantes. Rangel observa que, na escola particular, considera-se
que o aluno desenvolve em casa o gosto pela leitura, enquanto, na escola pública, enfatizam-se as deficiências culturais do aluno. Dessa forma, a escola
contribui para a perpetuação das desigualdades sociais e exime-se de intervir
na ordem estabelecida.
Outro dado levantado durante as observações é o repertório de leitura
oferecido aos alunos. Esse material compõe-se especialmente de livros de literatura e manuais didáticos. Os livros de literatura são selecionados de acordo
com a linguagem e a moral que apresentam, as quais devem estar de acordo
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com os modelos definidos pela escola como apropriados aos alunos. A seleção
geralmente é feita pela coordenação, nas duas escolas, que afirmam abrir espaço para sugestões e opiniões de professores. Entretanto, apenas as docentes
da escola pública afirmam discutir as propostas com os coordenadores. Na
escola pública, também são utilizadas obras recebidas do governo durante
campanhas. Para a autora, de acordo com esses dados, em geral, nem o professor escolhe o que quer que seus alunos leiam nem o aluno escolhe o que
quer ler. Além disso, Rangel destaca a existência de uma maior flexibilidade em
relação ao planejamento e execução de práticas de leitura na escola pública. A
pesquisadora também observa certo ativismo nas atividades posteriores à
leitura, geralmente verificada através de provas, questionamentos e fichas,
entre outros. Não há espaço para a polissemia nem para a verbalização que
permite a interação entre os leitores e a construção de novos significados.
Outras leituras, como gibis e textos para pesquisa, têm pouco espaço,
especialmente na escola particular. Em uma atividade de pesquisa desenvolvida na instituição particular, por exemplo, foi solicitado que os alunos trouxessem material de casa. Entretanto, em nenhum momento da aula eles tiveram
espaço para relatar experiências sobre a pesquisa realizada, compartilhando
estratégias e materiais. Rangel pontua que os professores parecem considerar
que esse tipo de aprendizagem ocorre espontaneamente. Na escola pública,
além da presença de gibis no recreio e nos horários de leitura, a professora
oportunizou, em uma aula, a leitura compartilhada de contas de luz, telefone,
revistas e catálogos.
Rangel destaca que “a leitura dos livros didáticos é a que mais caracteriza a leitura da escola” (p. 132). Na escola pública, não há livros didáticos suficientes para todos os alunos, sendo que alguns precisam copiar os textos e atividades para realizar as tarefas. Além disso, os livros são antigos, apresentando
textos defasados, situação que a professora procura contornar utilizando textos de livros mais recentes. Entretanto, “a adoção de livros com embasamentos teóricos diametralmente opostos compromete uma orientação que assuma
uma posição político-pedagógica que promova a emancipação do leitor” (p.
137). Dessa forma, as relações interlocutivas não se concretizam, já que a leitura apoiada nesses suportes não corresponde aos interesses do aluno.
Na escola particular, o texto didático adotado apresenta uma proposta
mais adequada aos interesses do aluno. As atividades de compreensão de texto presentes no manual pautam-se na abordagem interacionista de Kleiman.
Segundo Rangel, a coordenação afirma que essa proposta é coerente com a
linha pedagógica da escola. Entretanto, durante as aulas de leitura observadas,
a pesquisadora constatou que a abordagem dada às atividades pela professora
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diluiu qualquer possibilidade de interação e diálogo entre texto e leitor, sendo
destinada ao aluno uma função passiva de decifração dos textos.
A autora conclui que a visão estruturalista predomina nas práticas das
instituições visitadas, contrariando os discursos oficiais. Essa conclusão apóiase também na representação do erro na leitura observada entre as professoras. O trabalho das docentes entrevistadas pauta-se em questões de transcrição do texto e não propicia o diálogo entre texto e leitor. A resposta correta
para uma atividade é aquela que coincide com aquilo que o docente julga ser
próprio do texto. Respostas diferentes não são utilizadas para a investigação
do pensamento do aluno e a possível ampliação da significação, mas são consideradas como erro, que deve ser corrigido. O diálogo entre texto e leitor,
fundamental para a leitura nas visões interacionista, transformadora e discursiva, está excluído das práticas escolares, que se apóiam na primazia do texto
sobre o leitor, do escrito sobre o visual e na onipotência do professor. Nesse
ponto, a pesquisadora destaca a influência das histórias de leitura das docentes no trabalho que realizam com seus alunos, reproduzindo e perpetuando
práticas.
Rangel conclui seu trabalho com o capítulo “A leitura como passaporte
para a vida”, destacando as conclusões de sua investigação nas escolas. De
acordo com a autora, nos estabelecimentos de ensino, verifica-se que:
- as práticas dos docentes são respaldadas por concepções de leitura
estruturalistas;
- não há espaço para a polissemia, imprevisibilidade e discursividade
nas leituras realizadas;
- existe uma dicotomia entre a leitura da escola, que silencia a leitura
de mundo e o mundo de experiências dos alunos, e a leitura na escola, como a realizada na hora do recreio da escola pública, durante a
qual a liberdade e o prazer do leitor têm espaço, nas não penetram
na aula de leitura;
- ocorre um assujeitamento do professor à instituição e ao sistema de
ensino e do aluno ao professor, instituindo-se uma política de silenciamento;
- a leitura é pedagogizada, ao serem realizadas práticas de avaliação e
verificação que afastam o aluno do texto;
- instituem-se padrões de leitura – a leitura do livro didático e a do
professor – , os quais, por sua vez, instituem o erro;
- enfatiza-se o erro, “utilizando vários mecanismos coercitivos e limitadores da função simbólica que a leitura contém, mobilizando uma
espécie de apagamento do leitor” (p. 166).
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Ao longo da obra, a autora deixa claro que sua perspectiva sobre a leitura aproxima-se das visões discursiva, interacionista e transformadora. Destaca
também sua crença no poder de inclusão ou exclusão social da leitura. Dessa
forma, embora os resultados de seu estudo indiquem que as práticas escolares
seguem caminho diverso daquele que ela julga mais apropriado, afirma: “penso que esta publicação pode abrir caminhos para se pensar a leitura como uma
ação para além do momento em que se realiza” (p. 166). O livro realmente
atinge esse objetivo, ao aliar uma rica revisão teórica à análise de práticas em
escolas. Pesquisadores, estudantes de licenciaturas, professores de todos os
níveis de ensino e profissionais ligados à educação certamente tirarão proveito
das reflexões de Rangel, encontrando não apenas respostas a suas indagações,
mas também caminhos para aprofundar estudos. A obra instiga o leitor a continuar pensando a leitura e contribui, dessa forma, para a concretização de
vivências significativas de leitura na escola.
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NORMAS EDITORIAIS
Os trabalhos, submetidos à revista A Cor das Letras, do Departamento de Letras
e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), devem observar as seguintes normas editoriais:
1 ÁREA DE CONHECIMENTO
Podem ser submetidos, sob a forma de artigos ou resenhas, trabalhos oriundos
do campo dos estudos lingüísticos, literários e das artes, bem como de outras áreas de
conhecimentos afins e/ou interdisciplinares.
Os trabalhos devem ser, preferencialmente, inéditos, redigidos em língua Portuguesa, Inglesa, Francesa ou Espanhola, levando-se em conta a ortografia oficial vigente e as regras para a indicação bibliográfica, conforme normas da ABNT em vigor. É
altamente recomendável que o artigo seja submetido a uma revisão técnica (com respeito às normas de apresentação de originais da ABNT) e a uma revisão do vernáculo
antes da submissão ao Conselho Editorial.
2 PROCEDIMENTO DE ENVIO
Os trabalhos devem ser enviados:
– ao endereço eletrônico: [email protected] ou
– à secretaria do Departamento de Letras e Artes da UEFS: [email protected] (tel.
075-3224.8185).
3 FORMATAÇÃO
Os trabalhos devem apresentar um resumo breve e objetivo em língua vernácula, traduzido para uma língua estrangeira (inglês, francês ou espanhol), ambos seguidos de três a cinco descritores (palavras-chave). Além disso, são exigidas as seguintes
informações, a serem colocadas na primeira página do trabalho, ou no corpo do email: título do trabalho; nome completo do autor por extenso (ou o nome utilizado em
publicações científicas); filiação científica do autor (departamento – instituição ou
faculdade – universidade – sigla – cidade – estado – país), bem como explicitação da
instituição de aquisição do maior grau de formação e especificação da área de conhecimento.
Os trabalhos devem ser digitados em processador de texto usual, tendo o seguinte formato:
a) fonte Times New Roman ou assemelhada, tamanho 12, para o corpo do texto; tamanho 11, para citações e 10 para notas;
b) espaço 1,5 entre linhas e parágrafos; espaço duplo entre partes do texto;
c) as páginas devem ser configuradas no formato A4, sem numeração, com 3
cm nas margens superior e esquerda e 2 cm nas margens inferior e direita;
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b) utilizar apenas um sistema de referenciação: ou o sistema completo em nota de rodapé ou o sistema autor-data, atendendo às normas da ABNT em vigor para cada um deles (pede-se atenção especial para que não ocorra sobreposição destes dois ou outros sistemas de referenciação).
Dúvidas acerca da formatação podem eventualmente ser soluciondas mediante
consulta aos editores ou o cotejamento com a formatação adotada neste número da
revista, disponível em: http://www.uefs.br/dlet/publicacoes.htm.
4 EXTENSÃO
O artigo, configurado no formato acima, deve ter entre 12 e 18 páginas, no máximo; a resenha, 6 páginas.
Recepção de textos para a edição n. 11, relativa a 2010: até julho 2010.
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