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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE PRÉ – ALAS BRASIL GT 19: JUVENTUDES, TERRITORIALIDADES E IDENTIDADES A construção identitária dos jovens Adventistas do Sétimo Dia: dilemas e conflitos no espaço público Geová Silvério de Paiva Júnior Universidade Federal de Pernambuco E-mail: [email protected] 04 a 07 de Setembro de 2012 – UFPI Teresina - PI A construção identitária dos jovens Adventistas do Sétimo Dia: dilemas e conflitos no espaço público Geová Silvério de Paiva Júnior* O presente texto trata de ensaiar algumas reflexões a respeito do lugar da religião na esfera pública. Para este fim, peculiar é o caso do Adventismo do Sétimo Dia, denominação protestante pouca estudada no âmbito das ciências sociais e, por vezes, estranha ao próprio campo religioso que não sabe enquadrá-la se seita ou religião. O estranhamento sofrido pelos Adventistas no interior do campo religioso brasileiro em conjunto com sua invisibilidade acadêmica em detrimento do frison que se é estudar as religiões afroindobrasileira e o neopentecostalismo demonstra a carência de estudos socioantropológicos desta religião, por sinal de amplitude mundial, com forte organização burocrática consolidada desde o século XIX e presença na esfera pública, através de suas instituições para além das igrejas (aqui se incluí hospitais, sanatórios, restaurantes, editoras, escolas, universidades, redes de televisão, emissoras de rádio, etc) e de seu singular repertório de crenças. Este trabalho, portanto, pretende esboçar através das peculiaridades do Adventismo do Sétimo Dia, no que tange especialmente a guarda do sábado, a problemática do lugar da religião na esfera pública. Por esta via, destacar-se-á 1 os dilemas por quais muitos membros do ASD passam em seu cotidiano, com especial atenção para o segmento juvenil, no que diz respeito ao mundo dos estudos e do trabalho. Pensar a relação religião e esfera pública remete a pensar a relação Estado e religião. Logo, como veremos no decorrer das próximas páginas, o direito de ser Adventista do Sétimo Dia no mundo contemporâneo extrapola os limites da instituição religiosa esbarrando na esfera estatal, responsável por garantir o direito de liberdade religiosa. Assim, também não há escapatória * Mestrando pelo programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco e Bacharel em Ciências Sociais pela mesma universidade. 1 ASD e IASD são as siglas que significam respectivamente Adventismo do Sétimo Dia e Igreja Adventista do Sétimo Dia. Durante este trabalho farei uso corrente destas siglas para designar a religião e a igreja em questão. 1 para não se pensar a respeito da laicidade do Estado e do quão ambígua ela pode ser. Ambiguidade capaz de gerar conflitos e impasses no direito de ser Adventista do Sétimo Dia trazendo, inclusive, implicações na construção subjetiva da identidade Adventista a qual, cedo ou tarde, deve enfrentar determinados dilemas na esfera pública. Longe de se pretender um manifesto, se a antropologia advoga e encontra atualmente o seu labor no pluralismo, incluso o pluralismo religioso, o presente ensaio apenas tenta visibilizar o ASD dentro deste pluralismo no qual as problemáticas geradas na esfera pública não lhe são alheias. Talvez, muito 2 mais agudas sejam para ele e os guardadores do sábado em geral , a quem se podem estender as reflexões aqui dispostas. Feita estas considerações iniciais, o texto caminhará, então, na compreensão dos dilemas enfrentados pelo direito de ser Adventista do Sétimo Dia na esfera pública laica chamando sempre atenção para o segmento juvenil adepto do ASD e a singularidade de sua experiência. Deste modo, pontualmente, ao longo do texto, a categoria juventude será mais bem elaborada no intuito de lançar as questões as quais melhor representam a problemática aqui esboçada. Antes, se faz necessário revisitar brevemente o quadro teórico da secularização que marca a discussão do lugar da religião na modernidade, se no público ou privado, para a partir disso seguirmos com as reflexões a respeito da laicidade do Estado e o nível de intervenção deste na proteção e garantia do direito à liberdade religiosa e correlatos. Aplicar tal escopo teórico ao Adventismo do Sétimo Dia não fará sentido sem um breve parêntese que nos auxilie no melhor entendimento da denominação através de um rápido relato histórico de sua formação e de uma prévia análise do universo simbólico do Adventismo no que concerne ao seu conjunto de crenças e práticas. Devo adiantar que este ensaio é um diálogo direto com dois trabalhos monográficos. O primeiro é oriundo do campo jurídico, construto de um próprio 2 As religiões que aderem à prática de guardar o sábado são conhecidas como religiões sabáticas. Para além dos Adventistas do Sétimo Dia podemos ainda citar como exemplo os Batistas do Sétimo Dia e os Judeus. Melhor será explicado sobre o guardar o sábado, mas de antemão cabe dizer que a prática consiste em neste período de tempo os fiéis fazerem atividades voltadas exclusivamente para Deus estando proibidos de executarem atividades seculares como estudar, trabalhar, atividades domésticas, comércio e atividades de lazer, por exemplo. 2 nativo (em outras palavras, um ASD). Intitula-se “Proteção à liberdade religiosa: 3 desafios e paradigmas do século XXI” de Enéias Pergentino Dias (2011) . O segundo trabalho é de autoria do licenciado em história André C. Machado Silva (2007) e chama-se “Direitos humanos e trabalho no capitalismo: conflitos 4 e contradições na Guarda do Sábado Adventista” . Ambos os trabalhos, cada qual na sua área de saber, debruçam-se sobre as mesmas questões com as quais estamos trabalhando com enfoque para o caso dos Adventistas do Sétimo Dia. Com base na discussão a ser aqui desenvolvida, o caso dos Adventistas do sétimo Dia parece dar novos ares ao debate da relação religião e esfera pública. Mas por onde começar? Entre idas e vindas da secularização: afinal qual o lugar da religião? A respeito das reflexões produzidas sobre o mundo contemporâneo há por parte das ciências humanas e sociais a ênfase em uma perspectiva pluralista que dê conta de interpretar a fragmentação do sujeito moderno inserido nas mais diversas esferas da vida social e ao mesmo tempo confinado ao individualismo de seu tempo histórico. Fala-se em um mundo secularizado, em outras palavras, um mundo movido pela administração burocrática e com esferas de valor autônomas pelo qual o indivíduo transita razoavelmente de forma livre a fim de dar sentido a sua ação e consolidar a sua identidade. Diante deste panorama a religião e a espiritualidade humana são encerradas no íntimo do ser se constituindo como dimensões privadas e subjetivamente próprias dos indivíduos de maneira a não existir a necessidade de uma mediação institucional entre o sagrado e o profano. As identidades religiosas antes fornecidas por instituições sólidas e de autoridade inquestionável passam a ser desregulamentadas. A crise de sentido se estabelece na medida em que como consequência desta desregulamentação a fonte moral do ser humano 3 Tive a oportunidade de conhecer Enéias Pergentino na minha primeira empreitada em campo, no dia mundial do jovem adventista, onde foi possível ter uma frutífera conversa a qual tive certeza que estava no caminho de pesquisa certo. Agradeço imensamente à Enéias pela troca de informações, por me disponibilizar sua monografia para leitura e pelo constante apoio. 4 Em minhas andanças pela Internet esbarrei com o referido trabalho que através de uma perspectiva histórica situa o Adventismo do Sétimo Dia e seus dilemas de existência na esfera pública dentro de uma lógica conflitiva com o sistema capitalista no estado do Maranhão. 3 passar a ser ele mesmo, confuso em meio à alta dinâmica e fluidez do mundo dito globalizado. Parece então não mais haver espaço para religião neste mundo. O cimento social representado pela religião conforme teoriza Durkheim parece ter se quebrado e quando não transformado em inversão da realidade sendo o ópio do povo no olhar de Marx, se seculariza e desencanta conforme anuncia Weber. Como então pensar religião e religiosidade no mundo contemporâneo diante deste clássico quadro teórico? Peter Berger (1985; 1997) aponta para o fato de que a modernidade, na verdade, representaria uma pluralidade de escolhas e ofertas diversificadas de modos de vida, neste sentido, o caminho unívoco e progressista do projeto de modernidade também geraria possíveis reações. Sobre estas reações poder-se-ia pensar a respeito da emergência de novos movimentos religiosos, inclusive alguns tidos como tradicionalistas que resgatam valores não condizentes com os novos tempos. Do outro lado, Hervieu-Léger (1997; 2000) vai nos falar da crise em torno destes grupos religiosos tradicionais, promovendo assim, a gênese daquilo que poderia ser chamado de religiões pós-tradicionais baseadas nas opções individuais dos sujeitos: o já falado movimento de desregulamentação do religioso o qual ocasionaria transformações e rupturas em modelos religiosos mais ortodoxos e institucionais. Com o exposto até então, fica claro que a modernidade tanto como categoria analítica na comunidade científica quanto realidade empírica está repleta de religião e religiosidade sendo as continuidades, rupturas e transformações destas esferas da vida humana importantes e intenso objeto de investigação socioantropológica interpretado nos tempos atuais pelos primas da heterogeneidade e pluralidade. Então, ainda que se possa falar em secularização, ela não é um processo uniforme, muito menos absoluto. A ideia da autonomização das esferas de valor, tal como elucidada no paradigma weberiano clássico da secularização, pode vingar até certa medida, no entanto, é errôneo pensar o retraimento completo do religioso à esfera privada como produto deste processo. Ora, pelo contrário, a existência da religião na esfera pública em sua diversidade resulta historicamente desta autonomização que separou Estado de religião (ou equivalentemente Estado de Igreja Católica). No caso do campo 4 religioso brasileiro, por exemplo, ele não é tido mais como exclusivamente católico, mas como um campo múltiplo e competitivo, muitas vezes teorizado e representado dentro de uma lógica cristã, mas que na verdade também conta com um repertório diversificado de religiões não cristãs em sua constituição. Sobre este assunto, Paula Montero (2006, p. 49-50) nos fala: No processo de constituição de nosso Estado moderno como esfera política própria, ao passo que houve um retraimento do catolicismo para o espaço social, produziuse um intenso conflito em torno da autonomia de certas manifestações culturais de matriz não cristã, ou da sua legitimidade para expressar-se publicamente. Assim, no processo mesmo de constituição do Estado brasileiro como esfera separada da Igreja Católica, manifestações variadas de “feitiçaria”, “curandeirismo” e “batuques” só puderam ser descriminalizadas quando, em nome do direito à liberdade de culto, passaram a se constituir institucionalmente como religiões. Estando claro e evidente através das idas e vindas do paradigma da secularização as suas limitações e equívocos, não resta dúvida de que a depender do contexto, uma modernidade encantada repleta de religião como parece ser o caso da brasileira é plenamente viável. O encantamento, ou mesmo a secularização, podem variar em maior ou menor grau; interessa-nos aqui é o estatuto da religião na moderna esfera pública, onde a separação Estado e Igreja possibilitou o pluralismo religioso pela quebra do monopólio cristão católico. O caso do Brasil ilustrado na citação acima parece ser um bom exemplo deste processo. Liberdade religiosa no Estado laico: considerações antropológicas sobre ordenamentos jurídicos Resolvida a questão do lugar da religião na modernidade e na esfera pública, pelo menos no consenso de que ela não desapareceu e nem parece que vai desaparecer vistas as fortes evidências empíricas por meio do pluralismo, o problema é deslocado para a questão da liberdade religiosa. Liberdade esta que permite ou deveria permitir a coexistência pacífica e pressupõe o respeito e a tolerância à diversidade. Como assegurar e proteger 5 o direito à liberdade religiosa? Quem deve fazer isso? Tais perguntas abrem caminho para a dimensão da articulação entre Estado e religião. A separação destes implicou no Estado laico, ou seja, um Estado isento de religião. Será? A laicidade do Estado é algo um tanto ambíguo na medida em que permite duas linhas de argumentação. Na primeira anula-se completamente o religioso do espaço público vetando a qualquer tipo de religião uma dimensão pública institucional, confinado-a a esfera privada e íntima dos indivíduos, sendo imputadas sanções aqueles que ousarem professarem sua fé de modo proselitista no espaço público, por exemplo. Apesar de ser uma interpretação extremista condizente com uma teoria da secularização radical, ela é comumente acionada em casos conflitantes nos quais se pensam o Estado na posição de mediador estar atuando a favor de alguma religião. Os agentes que recorrem a tal linha argumentativa, não é preciso dizer muito, são os indivíduos partidários de uma secularização radical da esfera pública, onde religião é assunto de interesse privado e restrito aos indivíduos e ao seu espaço social mais íntimo no interior da esfera doméstica. Poderíamos dizer que é mais um assunto da família que do Estado. De um ponto de vista jurídico legal, esta forma de pensamento e seus desdobramentos tem pouco crédito atualmente na medida em que outros direitos circunscritos à liberdade religiosa são garantidos tanto internacionalmente como em constituições de diversos países, a saber, os direitos de consciência, crença, culto e organização religiosa. Cabe ao Estado garantir tais direitos sem, contudo, que isto signifique professar uma fé e tomar partido de uma ou outra religião. É sob esta direção que a laicidade estatal deve ser interpretada e conduzida. O Estado não poderá adotar ou promover uma doutrina religiosa, deverá manter-se afastado de interferir na vida religiosa de seus cidadãos, conservando deste modo o pleno exercício da liberdade religiosa destes, agindo parcialmente em relação às religiões. O Estado, contudo, deverá se preciso for dispensar um tratamento diferenciado para determinados grupos religiosos quando não estiver ocorrendo igualdade ou isonomia entre estes e os demais, conforme dito quando estudado o princípio de igualdade. Em resumo, o Estado deverá manter um regime de aconfessionalidade. (DIAS, 2011, p. 33-34). 6 Sendo bastante esclarecedor o comentário acima, vale lembrar que nossa moderna democracia, na qualidade de um princípio ideal o qual sempre tentamos alcançar, é forçada a lidar com a questão do multiculturalismo no mundo contemporâneo. Em consequência, é emergente o diálogo entre políticas de igualdade e políticas da diferença na luta por reconhecimento e (re) distribuição deste entre os diversos grupos sociais, dos quais as religiões não 5 estão de fora . Cada vez mais, passa-se a entender o princípio de igualdade como protetor da diversidade, em outras palavras, é um principio baseado no tratamento igual dos diferentes, se necessário fazendo uso de medidas equitativas no intuito de reduzir as desigualdades produzidas historicamente entre os diversos grupos. Em conjunto com o princípio da igualdade, entendido nos termos acima descritos, aplica-se também o princípio da tolerância, pelo qual o respeito à diferença deve ser exercido conferindo o pleno exercício público desta diversidade. A liberdade religiosa no âmbito da constitucionalidade dos Estados modernos e do direito internacional deve se fazer sob a égide destes dois princípios – a igualdade e a tolerância – entendidos como formas de garantia, proteção e respeito à diversidade. A noção de igualdade pela diferença a qual permeia o direito e as políticas dos Estados modernos democráticos é uma ideologia relativamente recente em decorrência do avanço e complexificação do multiculturalismo. Historicamente traz diversos problemas e impasses. Analisando o caso do Brasil, a garantia do direito à liberdade religiosa surge com a república na constituição de 1891. A partir dela estava instituída a separação entre Estado e Igreja Católica. O primeiro já não tinha mais obrigações com a segunda, não mais oficial no país desde então, pelo menos constitucionalmente. O artigo 72, §3º da referida constituição nos diz: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto”. No entanto, apenas em aparência a liberdade religiosa estava instituída no país. Existia o problema 5 Sobre as políticas de igualdade e diferença no contexto da democracia dos Estados modernos liberais frente à questão do multiculturalismo e a problemática das lutas por reconhecimento e (re) distribuição deste, ver autores como Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser os quais possuem riquíssimas discussões sobre o assunto. 7 na época de saber quais formas de cultos eram verdadeiramente religiosas e não ameaçariam a moral e a ordem pública (MONTERO, 2006). Separação Igreja Católica e Estado brasileiro consolidada, a suposta liberdade religiosa emergente da constituição republicana de 1891 assegurou os primeiros passos para a visibilização do pluralismo religioso, ainda que, em seu momento inicial, este tenha sido historicamente regulamentado pelo aparato estatal em seu esforço de categorizar a esfera legítima do religioso e a ilegalidade de práticas mágicas que se reivindicavam como religião. Foram os campos jurídicos e médicos, segundo Montero (2006), responsáveis pela compreensão do que se poderia convencionar como religioso digno de proteção jurídica conforme a liberdade religiosa instituída e do que era mágico, portanto, ilegal, ameaça à saúde e à moral pública sob o estigma de 6 “curandeirismo” e “charlatanismo” . O Estado brasileiro republicano laico trouxe à tona a problemática do pluralismo religioso, de como lidar com ele, e que formas de regulamentação e intervenção poderiam e deveriam ser adotadas de acordo com a legitimidade da lei sob as variações do que se deve compreender por fenômeno genuinamente religioso através do contraponto entre magia e religião, no que poderíamos de certa forma remeter, neste caso, para o contraponto existente entre religiões cristãs e não cristãs. Por outro lado, não podemos nos esquecer de que nos conflitos existentes entre tais religiões, concorrencialmente uma gama de religiões protestantes já se fazia presente também tentando buscar seu espaço na esfera pública. Pelo final do século XIX, estavam praticamente instaladas no Brasil todas as denominações do protestantismo histórico – luteranos, anglicanos, metodistas, presbiterianos, congregacionistas e batistas. No século XX, em suas primeiras décadas, surgem no país as primeiras igrejas pentecostais, sendo na metade do século as maiores igrejas do protestantismo brasileiro, desdobrando-se atualmente no movimento neopentecostal. 6 Paula Montero se preocupa em seu trabalho em demonstrar a emergência do pluralismo religioso brasileiro na esfera pública a partir do Estado republicano focando sua análise nas disputas por legitimidade de religiões não cristãs como espiritismo e candomblé em suas reivindicações pelo estatuto de religiões em um cenário religioso onde o catolicismo ainda dominava. Evidencia o maior sucesso do espiritismo kadercista no processo em detrimento da permanência subalterna e desqualificada das religiões de matriz africana. 8 O Estado brasileiro permanece laico. Com os inúmeros avanços constitucionais desde a república até então, a garantia do direito à liberdade 7 religiosa é promulgada na constituição federal de 1988 em seu artigo 5º , em 8 9 especial nos incisos VI e VIII . Devemos aferir disto tudo, que mesmo com as idas e vindas da secularização no Estado e na Religião e com os conflitos e impasses historicamente produzidos entre estas esferas em decorrência do pluralismo religioso visibilizado a partir da separação delas, a religião tem espaço garantido e a ser protegido no espaço público. Todavia, a diversidade religiosa continua a ter e a gerar problemas neste espaço, que nem sempre encontra solução amparada pelo direito à liberdade religiosa. Exemplo disto é o caso dos Adventistas do Sétimo Dia que devido ao seu conjunto particular de crenças e práticas acabam tendo que enfrentar alguns dilemas na esfera 10 pública no mundo do trabalho, acadêmico e, por que não, da sociabilidade . A forma como lidam com tais dilemas tem impacto direto sobre a sua subjetividade e a construção da própria identidade Adventista. Na juventude tais dilemas parecem se manifestar de forma mais aguda na medida em que tal categoria se vê impelida a circular e viver na esfera pública de maneira mais intensa e independente da família. Antes de colocarmos a questão dos dilemas enfrentados pelos jovens Adventistas do Sétimo Dia na esfera pública, melhor entendermos um pouco desta religião. De seita a igreja: a institucionalização do Adventismo do Sétimo Dia O Adventismo surge no século XIX, nos Estados Unidos, inserido no contexto dos movimentos messiânicos, no caso, movimentos “messiânicos milenaristas”. Entre os séculos XVIII e XIX o protestantismo norte americano 7 Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes. 8 É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. 9 Ninguém será privado de seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se a invocar para eximir-se de obrigação legal a todos a todas imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. 10 Aqui encaro assim como Montero (2006, p. 58) também o faz em nota, a dimensão da sociabilidade como fazendo parte da esfera pública de um modo mais amplo, de acordo com o ponto de vista histórico antropológico. 9 inicia um processo de expansão externa através das missões internacionais. Paralelamente a esse processo emerge no país diversas associações de caráter voluntário, aquelas que possuem “qualificação religiosa” são as chamadas seitas no sentido weberiano, se contrapondo a sua noção de igreja que se apresenta como instituição organizada administrativa e burocraticamente com vistas à atribuição de salvação. Igreja e seita permanecem como dois “princípios estruturais”, o compulsório e o voluntário que, no Adventismo, permanecem em todos os níveis de associação; o voluntário, entretanto, especificando-se às etapas de adesão e, com adoção do modo de vida do grupo, pelos adeptos, assume o caráter compulsório, grau cada vez maior de condição de fidelidade organizacional e ideológica. (OLIVEIRA FILHO, 2004, p. 158-159 – grifo do autor). Diante do exposto parece ser possível enxergar o Adventismo como seita e igreja na medida em que partilha do caráter compulsório e voluntário destas categorias. Poder-se-ia considerar, então, o aspecto seita e igreja como dois momentos de um processo de formação do movimento adventista que parte da complexificação do universo simbólico das crenças e práticas rituais legitimadas no interior da associação voluntária. Na primeira metade do século XIX, nos Estados Unidos, Guilherme Miller com base no livro de Daniel (8:14) 11 oferece uma interpretação a gerar a profecia das “duas mil e trezentas tardes e manhãs” dando início ao mito fundador da seita e, posteriormente, da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Com isto, profeticamente uma cronologia de eventos que periodiza o sagrado e o profano passa a fazer parte do repertório de crenças dos adeptos adventistas até culminar na “purificação do santuário” no ano de 1844, ou seja, segundo a crença adventista o messias retornaria naquele ano. “O grande desapontamento” foi como ficou conhecida a não ocorrência da profecia do retorno do messias em 1844, consequentemente, ocasionando diversas perdas no interior da seita. Ainda assim, um pequeno grupo de remanescentes permaneceu na seita sob a confirmação das visões proféticas 11 Até duas mil e trezentas tardes e manhãs e o santuário será purificado. 10 da futura líder carismática dos adventistas, Ellen Harmon, posteriormente Ellen H. White, reinterprentando o conjunto de crenças construídas por Guilherme Miller futuramente tornando-as as “verdades fundamentais” da futura igreja, as quais podemos citar, por exemplo, a guarda do sábado, a mortalidade da alma, 12 as doutrinas do santuário e a reforma de saúde . Para explicar o “grande desapontamento”, uma releitura da profecia millerista é executada, surge à doutrina do santuário, no qual dividido em dois compartimentos o ano de 1844 representaria a transição do messias do primeiro para o segundo compartimento, do santo para o santíssimo. O santuário celestial seria equivalente ao “novo concerto” na concepção adventista. A transição de um ponto a outro deste santuário inicia o “tempo do fim” anunciando, dessa forma, o retorno próximo do messias. É no “tempo do fim” que se inicia o “juízo investigativo”, primeiramente dos mortos, o messias ressurgindo apenas quando findado o “juízo dos vivos” e a divulgação de sua chegada. Interessante perceber que a elaboração destas reinterpretações ocorre em um contexto de conferências nos Estados Unidos pelo qual é possível inferir os indícios de institucionalização do movimento adventista rumo a se tornar uma igreja. A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) atualmente apresenta a maior membresia em números absolutos no Brasil, segundo país com maior quantitativo de adeptos da religião (DIAS, 2007, p. 91). É também um dos grupos mais expressivos do protestantismo tradicional no país perdendo apenas para os luteranos e batistas (SCHUNEMANN, 2003). A respeito de sua chegada em solo nacional há de se mencionar a peculiar relação da IASD com a comunidade alemã imigrante entre os séculos XIX e XX. Vale enfatizar o caráter missionário e intencional do movimento adventista no Brasil ainda que isso tenha ocorrido quase que exclusivamente nas comunidades alemãs. Não foram necessariamente os imigrantes que trouxeram o Adventismo, mas a existência e dispersão de suas comunidades de imigrantes ajudaram a difundir a doutrina durante o processo missionário. Verdade que o auto grau de dispersão e o grande isolamento destas comunidades também se constituíram 12 A saúde é um outro ponto singular entre os Adventista do Sétimo Dia. Apesar de não ser o foco de análise neste trabalho, vale fazer menção ao modelo alimentar vegetariano como ideal a ser seguido. O não uso de remédios e as interdições referentes a chás e café também chamam atenção. 11 como obstáculos de expansão do Adventismo em longo prazo, assim como contribuíram para sua intensificação no interior do país e nas camadas mais rurais, onde era maior a presença alemã. Como consequência é perceptível uma afinidade étnica alemã com a mentalidade adventista no Brasil, tendo o movimento crescimento tímido entre os nativos. Apenas com o fim da primeira guerra mundial que é possível dizer também do fim da primeira era alemã da IASD no Brasil, uma vez que a relação entre Alemanha e Brasil é estremecida durante o evento, não sendo do interesse da IASD se envolver neste tipo de atrito por causa de sua íntima relação com as comunidades imigrantes de alemães no Brasil. O Adventismo começa a alcançar de fato os Brasileiros em 1904 durante a organização de sua primeira igreja na cidade de Rolante –RS marcando um novo momento na história da denominação no país. Segundo silva (2007), existiriam mais Adventistas no Brasil que nos Estados Unidos, seu país de origem. Interessante assinalar que o Adventismo do Sétimo Dia extrapola os muros de suas igrejas, agregando dessa maneira, outras instituições como escolas, universidades, hospitais, internatos, editoras, etc. Ainda assim é por meio de seu percurso histórico e desenvolvimento de seu conjunto de crenças que segue (re) inventando uma tradição, tradição móvel sujeita à contingência histórica e à apropriações locais por onde ela adentra, mas que permanece em sólida base doutrinária revelada no próprio nome da igreja. Assim, o autor argentino César Ceriani Cernades (1999, p.62) faz o seguinte apontamento: “Como su nombre lo indica, el inminete retorno de Cristo y la afirmacíon del dia sábado como único y auténtico dia de descanso son los dos princípios irreductibles que esta iglesia sostiene, y la ‘materia prima simbólica’ com la que 13 inventarán uma tradición” . Tal tradição é reveladora de uma identidade religiosa particular e cuja peculiaridade – em especial quando levamos em conta o sabatismo – nos remete a um complexo exercício de pensar a relação religião e esfera pública no mundo moderno. 13 Como seu nome indica, o eminente retorno de Cristo e a afirmação do dia de sábado como o único e autêntico dia de descanso são os dois princípios irredutíveis que esta igreja sustenta e a “matéria prima simbólica” com que inventará uma tradição. (CERNADES, 1999, p.62 - tradução minha). 12 O sábado representa para os Adventistas do Sétimo Dia a oportunidade de vivenciar a presença de Deus. A observância do sábado para a Igreja Adventista do Sétimo Dia, revela que desistimos de confiar em nossas próprias obras, compreendendo que somente Cristo, o Criador, pode nos salvar. A observância do sábado revela o supremo amor por Jesus Cristo, o Criador e Salvador do homem. Ao observar o Sábado, o adventista mostra a sua confiança em aceitar a vontade de Deus para a sua vida. (SILVA, 2007, p. 37-38). A guarda do sábado como marca essencial do ASD conjuntamente com a crença no segundo advento (a volta de Jesus Cristo) são fundamentadas na palavra bíblica. Em relação à primeira crença e sobre a concepção de tempo da denominação, ressaltamos que a passagem dos dias é diferenciada pelo pôr do sol. Assim, o sábado sagrado começa na verdade ao pôr do sol das sextas-feiras terminando ao pôr do sol dos sábados. Durante este período, os Adventistas devem cumprir seu descanso adorando a Deus e se afastando de atividades seculares, o que repercute nas estratégias que os adeptos da religião devem lançar no mundo do trabalho, da escola, na esfera doméstica e mesmo na esfera mais ampla da sociabilidade. Afinal, eles não estão sós no mundo, a pluralidade de religiões, crenças, ideologias, etc, em algum momento bate de frente com os dogmas deles. Como lidar com isto na esfera pública? É muito difícil pensar, por exemplo, que uma empresa privada, ou mesmo instituição pública, que necessite de seus funcionários em dias de sábado ou até o fim do expediente as sextas-feiras ao anoitecer libere o empregado por motivos religiosos. Há espaço para negociação nestes casos? Uma escola ou cursinho liberaria seu aluno adventista nos dias considerados sagrados por sua confissão religiosa? Como jovens adventistas lidam com possíveis atitudes estigmizadoras ou mesmo de exclusão que partam de amigos não adventistas da mesma geração, uma vez que não compartilham dos mesmos valores e práticas nos fim de semanas? (Por sinal, tão importantes, ainda que de modos diferente, para a juventude). A categoria juventude: breves notas 13 As pesquisas referentes à juventude datam do século XVIII tendo por base 3 correntes intelectuais da época: a epistemologia empírica, a pedagogia pietista a qual culminará posteriormente na psicologia individual da juventude e por fim o racionalismo encarnado na pedagogia filantrópica. Ambas as três correntes se entrecruzam nos estudos de Rousseau, nos quais a juventude é percebida como uma fase da vida do ser humano de valor único e específico. A entrada no mundo juvenil para este autor seria como um segundo nascimento – o nascimento do homem maduro, consciente, moral. Um autor o qual não poderia deixar de ser citado é Eduard Spranger no que diz respeito a sua psicologia da juventude. Para ele: Uma das características mais evidentes dessa idade [a idade juvenil] é a de que o jovem se torna consciente de que não pode permanecer na dependência espiritual e no aconchego familiar, mas que necessita ingressar na ordem social e continuidade cultural, que é necessário compreendê-las e absorvê-las, mantendo uma atitude mental e espiritual independente a seu respeito. O jovem se vê extraído de sua existência fechada e indiferençada, para ser colocado no mundo incongruente de múltiplos relacionamentos mentais e de valores; vê-se envolvido em questões profissionais, sociais e políticas, racionais, de gosto e religiosas, sendo intimado a tomar posição; chamado, mas ao mesmo tempo, ainda não bem admitido às ambições e divergências do mundo adulto. (apud. FLITNER; 1968, p. 52-53). Dessa forma, Spranger entra em acordo com as percepções de Mannheim (1968) em que para este a juventude representaria uma cisão de mundos para o indivíduo, a entrada na juventude significaria a saída do mundo privado e a entrada para o mundo público. É o momento de rompimento com a estrutura familiar para adentrar numa estrutura mais complexa e entrelaçada por inúmeros subsistemas, a estrutura social. Nesta passagem, conflitos e tensões são inevitáveis, pois dizem respeito às divergências existentes entre família e a sociedade. Isso poderia ser explicado devido à distinção de que 14 nesta há inúmeros novos agentes e mecanismos de socialização enquanto aquela é única e assume uma atitude de proteção e monopolização do jovem 14. Através de sua hermenêutica Spranger compreende a idade juvenil como um processo de crise e maturação psíquica. Daí se infere que o conflito de diversos mundos ao qual o jovem é intimado a participar constitui justamente o seu amadurecimento em prol de uma consciência moral como já podia ser percebido no pensamento Rousseauniano. Mannheim (1968) encara a juventude como um recurso latente das sociedades dinâmicas, isto é, das sociedades modernas. Ela seria uma agente em potencial da mudança e revitalização social, entretanto, tal potencial não é intrínseco à natureza do jovem: “a juventude não é progressista nem conservadora por índole, porém é uma potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade” (Ibidem, p. 7475). Por ser inserido no sistema social na condição de “um de fora”, aquele que veio do aconchego familiar para enfrentar os problemas da vida moderna, por ter que aprender como agir numa infinidade de complexos subsistemas e adquirir mais papéis sociais nem sempre concordantes uns com os outros e não encarar tais eventos com naturalidade como um adulto já habituado à vida moderna o faz é que o jovem teria essa potencialidade da mudança e revitalização social na concepção de Mannheim. Tal concepção é congruente com o pensamento pré 1ª guerra mundial em que existia uma certa essencialização da juventude como conflituosa e potencialmente revolucionária. Após este período, dentro de uma perspectiva histórica é verificado que os ânimos se acalmam e a juventude de certa forma se acomoda. Flitner (1968) observa que ela move-se mais pelo individualismo, tornando-se um pouco mais apática e seguindo o caminho da racionalidade. Com tais considerações a partir de um olhar histórico dentro das novas configurações dispostas pela modernidade não cabe mais pensar na juventude 14 A família no mundo contemporâneo vem passando por diversos rearranjos, o que amplia a gama de configurações parentais possíveis, conseqüentemente, incluindo um leque maior e mais diversificado de agentes e mecanismos socializadores dos jovens no âmbito familiar. Desse modo, a família não mais concebida como entidade homogênea e única nos processos de socialização juvenil, por meio dos processos de divórcio, uniões homossexuais, facilidades de adoção, entre outros se torna um agente socializador tão multifacetado quanto as mais variadas instâncias da estrutura social mais ampla em tempos mais recentes. No entanto, tal fato parece ainda não anular as divergências, principalmente no campo dos valores morais, entre família e estrutura social tal como foi apontado por Spranger e Manhheim. 15 como uma totalidade, como um movimento propensor do progresso, o novo proletariado da história. Seria mais adequado pensar a juventude em termos de situação, consequentemente isso implica reconhecer a juventude como categoria histórica, social e cultural distinta de outras categorias etárias. Mas não só isso, ela não se distingue apenas de outras categorias etárias, também se distingue de outras juventudes e cada uma delas encerra um valor em si. Não há uma situação juvenil, porém diversas. Isso implica um exercício complexo o qual não cabe aqui desenvolvê-lo, mas, pelo menos, reconhecê-lo: a construção de um conceito de juventude a partir das diversas juventudes e de suas situações histórica e sóciocultural. Assim, de acordo com Flitner “o relacionamento entre a mentalidade juvenil e a situação histórico-social tornouse consciente. Com isso, estavam criadas as premissas para uma pesquisa ampla da juventude através das colocações sociológicas do problema”. (1968, p. 67). Conclusão: os jovens Adventistas do Sétimo Dia e os dilemas a serem enfrentados na esfera pública Associa-se comumente a juventude como a classe etária mais antenada com a dinâmica e velocidade das sociedades (pós) modernas ou (pós) industriais destinada à contestação e renovação destas sociedades. Como podemos inferir do exposto anteriormente, pelo prisma da pluralidade a juventude não se encerra em uma categoria única e essencialista. Uma multiplicidade de caminhos e direcionamentos surge tornando complexa a relação juventude e mundo existindo assim aqueles que, em certo sentido, estão na “contramão” do movimento moderno, aderindo a valores e padrões um tanto mais conservadores e tradicionais, reconhecendo-se como diferentes por não seguirem direcionamentos mundanos majoritários. Em termos mais gerais, podemos reconhecer neste grupo as juventudes religiosas. No que concerne às juventudes religiosas engajadas institucionalmente fazer parte de uma igreja significa pertencer a uma comunidade moral e religiosa que assume uma postura diferenciada em relação ao restante do mundo. Algumas denominações escolhem o caminho da separação, outras vivem neste mundo, mas não partilham de seus valores. Quando um jovem 16 adere a uma determinada igreja ele, portanto, se diferencia do jovem mundano, de um tipo comum, ao mesmo tempo em que ele também se diferencia das formas mais fluídas de religiosidade anunciadas pela pós-modernidade escolhendo uma religiosidade institucional. Tal religiosidade o diferencia perante outras juventudes, perante outras juventudes religiosas e também perante novas ou tradicionais formas de religiosidade, sejam elas institucionais ou não. Os jovens de igreja, em si, são um segmento que se destaca de outros jovens. Lançam mão dos sinais diacríticos que marcam a juventude, como lazer, sociabilidade, namoros, músicas, aprendizado e educação, e colorem esses sinais com a particularidade das suas denominações religiosas. (SCOTT & CANTARELLI, 2004, p. 387). A respeito de nosso objeto de análise central, os sinais diacríticos dos jovens Adventistas do Sétimo Dia coloridos com as particularidades do universo simbólico de crenças e práticas de sua religião, por vezes os colocam frente a alguns dilemas os quais devem enfrentar na esfera pública. Tais dilemas são fruto da “restrição” que possuem em relação ao Sábado. Como categoria etária e geracional impelida mais enfaticamente a circular na estrutura social mais ampla de forma mais independente da família (SPRANGER apud. FLITNER, 1968; MANNHEIM, 1968), inevitável é, cedo ou tarde, as tentativas de entrada no mundo do trabalho e no mundo acadêmico, isso sem falar na esfera da sociabilidade e nos anos do ensino básico, em especial se forem em escola laica. Silva (2007) aponta para um antagonismo entre o sistema capitalista e a doutrina do Adventismo do Sétimo Dia. Tal antagonismo resulta do modo sabatista de ser Adventista o que acaba por gerar incompatibilidade com a concepção de tempo adotada pelo sistema capitalista. O tempo de fato adquire uma centralidade tal em nossa cultura e sistema econômico que a guarda de um dia fixo por motivação religiosa em mundo que em maior ou menor grau se pensa secular soa como desperdício, um absurdo, uma incredulidade. 17 A santificação e a guarda de um dia da semana representa um aspecto teológico fundamental para diversas religiões. Embora o sentido teológico e histórico do dia de guarda ou adoração varie entre as diferentes religiões, é inegável que a observância de práticas religiosas, em particular ou em público, possibilite conflitos entre obrigações legais e princípios religiosos. (SILVA, 2007, p. 62). Tais conflitos se manifestam no mundo do trabalho no caso dos Adventistas, por exemplo, quando um empregador deixa de contratar um funcionário adventista devido a sua confissão religiosa e a sua “restrição” temporal em relação ao dia de sábado. Ainda que não se alegue a não contratação por motivos religiosos, a pouca literatura a respeito do assunto indica que a causa é justamente essa. É preferível para o empregador alguém mais “disponível”. Entretanto, há casos em que se é possível negociar, até porque não é comum em entrevistas de emprego o quesito religião aparecer de uma forma tão determinante. Na maior parte, os conflitos se dão posteriormente a contratação nas situações em que se necessita do funcionário no dia em que para ele é sagrado. No entanto, de acordo com alguns adventistas que tive a oportunidade de conhecer em minha pesquisa de campo, os fiéis estão dispostos a compensar o dia de sábado, por exemplo, através de horas extras durante a semana ou também não se importam em trabalhar domingos e feriados, desde que o seu direito legal e dever religioso de guardar o sábado esteja salvaguardado. Os Adventistas mais do que ninguém estão dispostos a negociar, concordam em obedecer ao regime trabalhista reivindicando apenas maior flexibilidade. Existem empregadores dispostos a negociar, mas ainda assim permanece o problema da negociação desta flexibilidade trabalhista, alguns casos sendo forçados a serem resolvidos judicialmente. A observância do sábado é problemática por esbarrar na efetividade da Constituição Federal Brasileira de 1988 que mesmo garantindo o Estado laico de liberdade religiosa, apresenta déficits no que se refere aos observadores do sábado em seu direito ao trabalho e ao estudo sem prejuízos à consciência. Ainda que a maioria dos ordenamentos jurídicos conceda ao trabalhador um dia de descanso semanal o qual deva coincidir preferencialmente com o dia de 18 descanso religioso, é interessante perceber que tal concessão em nosso sistema jurídico é historicamente permeada de influência cristã majoritariamente católica que estabeleceu o dia sagrado de descanso religioso não mais o sábado, e sim, o domingo - dia preferencial de descanso para o trabalho secular de acordo com nossa jurisprudência (DIAS, 2011). Os argumentos até então apresentados sobre os dilemas adventistas no mundo do trabalho são semelhantemente aplicados ao mundo do estudo. Ainda que sejam dilemas comuns a todos os adventistas, cabe ressaltar que a juventude parece ser mais sensível a estes dilemas na medida em que um tentador mundo secular apresenta-se em sua frente e que negá-lo por absoluto é uma opção inviável. O trabalho e o estudo são dimensões importantes na consolidação da subjetividade humana, e primordiais no processo de independência juvenil. Negociar a religiosidade a qual nasceram e escolheram voluntariamente na esfera pública se mostra um desafio tremendo, principalmente quando os princípios doutrinários que acreditam e resolveram adotar bate de frente com algumas situações cotidianas restringindo o direito a liberdade religiosa, ao trabalho e ao estudo, importantíssimos para a constituição da identidade e para afirmação no mundo. Creio poder concluir com um caso bastante ilustrativo da problemática em questão. Diz respeito à possibilidade de acesso ao ensino superior através de processo seletivo vestibular no qual uma etapa precedente é importante, praticamente um pré-requisito e momento obrigatório do ritual de passagem que é o vestibular. Falo da submissão ao Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), realizado anualmente em um fim de semana (sábado e domingo), pelo menos desde o ano de 2009. Em teoria, devido à guarda do sábado, estudantes adventistas estariam privados de fazer o exame, consequentemente se não extinguindo, minando as possibilidades de acesso ao ensino superior em instituição pública ou mesmo privada com bolsas na medida em que a nota do ENEM ajuda ou é pré-requisito no processo seletivo de ingresso nas universidades e faculdades e também nos programas de concessão de bolsa ou crédito. Isto esbarra diretamente no direito à liberdade religiosa do grupo o qual poderia se ver obrigado a escolher entre sua religião ou a tentativa de fazer um curso superior com vistas a maior qualificação para adentrar no mercado de trabalho. Felizmente para o caso do ENEM o impasse 19 é contornável. Os adventistas e demais guardadores do sábado recorrendo judicialmente, conseguem obter no Supremo Tribunal Federal o direito de fazer o exame findado o período sagrado, no caso, no anoitecer do sábado. Os candidatos entram junto com todos os outros no local de prova no dia de sábado e, permanecendo em uma sala reservada para os que partilham da mesma crença e doutrina, aguardam até o pôr do sol para realização do exame. Neste meio tempo, permanecem incomunicáveis e executam suas atividades de adoração (orações, leituras bíblicas, etc). Com o término do sábado, tem permissão para fazer o exame tendo o mesmo tempo que os outros candidatos. Apesar de a situação ser contornável, a solução constantemente deve ocorrer pelos caminhos jurídicos, o que demanda uma burocracia a qual poderia ser evitada. Alguns Estados no país, por exemplo, já possuem uma legislação a qual dá conta deste tipo de situação entre os sabatistas, evitandose um grande percurso burocrático e reconhecendo e garantido o direito de liberdade religiosa dos Adventistas do Sétimo Dia e demais denominações que detém o sábado como dia sagrado. O mesmo procede em alguns concursos públicos. Já no contexto escolar e acadêmico, há maiores brechas para negociação, contudo, muitos casos conflitantes ainda existem. Muitos cursos pré-vestibular, universitários e mesmo aulas do ensino básico cada vez mais obrigam os estudantes a participarem das atividades letivas no dia de sábado para atender a maior carga horária. Cabe, então, na relação alunos, família, professores e escola se encontrar a melhor maneira possível de resolver o impasse. A questão posta, resta saber empiricamente quais estratégias de integração com o mundo a juventude Adventista do Sétimo Dia emprega em seu cotidiano na esfera pública para proteger, garantir ou reivindicar seu direito de liberdade religiosa, seu direito de ser Adventista do Sétimo Dia. Sendo “uma potencialidade pronta para qualquer oportunidade” (MANNHEIM, 1968, P. 7475), como a juventude então explora seus potenciais para articular sua religiosidade com a multiplicidade de valores e ideologias pelos quais esbarram na busca de oportunidades por emprego, estudo e na tentativa de sociabilidade com indivíduos e instituições não adventistas? O presente ensaio esboçou apenas algumas reflexões que dão novos ares a discussão da religião na 20 esfera pública a partir do caso peculiar dos Adventistas do Sétimo Dia, uma denominação bastante presente e atuante no plural campo religioso brasileiro, mas timidamente notada pelas ciências sociais no país. A tentativa aqui foi mais modesta no sentido de visibizar certos dilemas cotidianos dos adventistas, mas que afetam significativamente a construção identitária dos adeptos desta religião do ponto de vista de sua existência e atuação no mundo e no espaço público. Referências bibliográficas BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 3ª ed. São Paulo: Editora Paulus, 1985. _______________. Rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1997. CERNADAS, César Ceriani. Inventando una tradicion al adventismo argentino. Mitológicas. v. 14, Buenos Aires, 1999. Disponível em: << http://redalyc.uaemex.mx/pdf/146/14601405.pdf>>. DIAS, Enéias Pergentino. Proteção à liberdade religiosa: desafios e paradigmas do século XXI. Monografia de graduação. Curso de direito. Olinda: FIBAM, 2011. FLITNER, Andreas. Os problemas sociológicos nas primeiras pesquisas sobre a juventude. 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