Texto 3 - A socializaçao Infantil por meio do jogo

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Texto 3 - A socializaçao Infantil por meio do jogo
A SOCIALIZAÇÃO INFANTIL POR MEIO DO JOGO E DO BRINQUEDO
discursos explícitos e ocultos sobre o jogo e a brincadeira nas instituições escolares
Jurjo Torres Santomé
Universidade de La Coruña, Espanha
Porque o jogo, e nenhuma outra coisa, é a parteira de
todo hábito. Comer, dormir, vestir-se e lavar-se devem
ser inculcados na criança sob a forma de jogo, com
versos que marcam o ritmo. O hábito entra na vida
como jogo; nele, mesmo em suas formas mais rígidas,
perdura até o final uma pequena porção de jogo
(Walter Benjamin, 1974, p. 79).
O jogo é uma das atividades humanas a respeito da qual mais se escreveu no século
XX. Apesar disso, os discursos que buscam explicar e valorizar o jogo são fortemente
contraditórios. A tônica das argumentações explícitas sobre a atividade lúdica é considerá-la
uma atividade indispensável para o desenvolvimento pessoal: sempre se a valoriza
positivamente e se insiste em recomendá-la como prazerosa e formativa. Contrariamente, os
discursos mais implícitos consideram tal atividade como algo secundário, de pouco valor,
como uma perda de tempo mesmo, como algo do qual as pessoas se ocupam quando não
têm coisas mais importantes a fazer.
Ao longo do século, repercutiram nas instituições escolares os estudos psicológicos,
antropológicos e, certamente, pedagógicos que recomendam estimular o jogo entre os
meninos e as meninas e empregá-lo como apoio para as aprendizagens mais formais. Os
discursos oficiais assumiram também essa filosofia educativa, ainda que muito timidamente,
e a sugerem como recurso metodológico para favorecer e/ou reforçar aprendizagens. Apesar
disso, podemos dizer que para o Ministério da Educação a norma tem sido a de manter o
jogo pouco valorizado como atividade formativa. Assim, a Lei Orgânica Geral do Sistema
Educativo (LOGSE)1 lhe dedica apenas um artigo, referente à Educação Infantil.
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A Lei Orgânica Geral do Sistema Educativo, em vigor desde 1990, regula o sistema educacional espanhol.
Foi aprovada pelo Parlamento quando Felipe González era o Presidente e o Partido Socialista detinha o
poder. Informações e detalhes estão disponíveis no site http://members.tripod.com/educac/legislac/logse.htm
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No Art. 9.5 da LOGSE, no qual se aborda a Educação Infantil, podemos ler: “a
metodologia educativa se baseará nas experiências, nas atividades e no jogo, em um
ambiente de afeto e confiança” (BOE2, 4 de outubro de 1990). Mas essa confiança e esse
valor, atribuídos de maneira explícita ao jogo, desaparecem da legislação nas etapas
educativas seguintes. Não se encontram nem no artigo 14.3 da mesma Lei, referente à etapa
seguinte, a Educação Primária; nem no artigo 20.4, em que se propõe a metodologia
didática para a Educação Secundária; nem no artigo 27.5, que tem como objeto o
bacharelado; nem no artigo 34.3, destinado a fazer recomendações sobre a etapa de
formação profissional.
Não se nega hoje o papel importante que o jogo desempenha no desenvolvimento
humano, durante a infância e a adolescência. As controvérsias começam quando tratamos de
conceituar o jogo e de explicar suas peculiaridades. Praticamente todas as pessoas que
pensaram e investigaram sobre a infância acabaram também apresentando alguma explicação
do significado do jogo e dos brinquedos.
Nessa literatura, há acordo em relação ao papel que a fantasia desempenha na
atividade lúdica. Pesquisadores como Lev S. Vygotsky destacaram-na como um dos fatores
mais importantes do desenvolvimento humano. O jogo, conforme esse mesmo autor, cria
uma zona de desenvolvimento proximal nos meninos e nas meninas. No jogo e na
brincadeira, meninos e meninas evidenciam comportamentos que vão além dos que são
típicos de suas idades e transcendem as condutas cotidianas. Nas situações lúdicas, os
meninos e as meninas “adiantam-se a si mesmos” e incorporam modos de funcionamento
psicológico correspondentes a etapas ou subetapas superiores de seu desenvolvimento.
Ao nos fixarmos nas características do jogo e da brincadeira e em suas implicações
para o trabalho curricular nas instituições escolares, há duas peculiaridades que devemos
tomar em consideração, por serem, segundo Vygotsky, os aspectos mais característicos da
atividade lúdica. A primeira é que o jogo permite criar uma situação imaginária que facilita
aos meninos e às meninas resolver ou explorar desejos irrealizáveis (por exemplo, dirigir um
carro, pilotar um avião, ser comerciante etc).
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Boletim Oficial do Estado – jornal no qual se publicam atos, leis, concursos, designações, nomeações etc
dos diferentes Ministérios.
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Jean Piaget foi um dos pesquisadores que melhor ressaltou a capacidade das meninas
e dos meninos para fingir e simular, ou seja, para o jogo simbólico, em sua obra A formação
do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho; imagem e representação. As crianças
assumem papéis fictícios e desenvolvem complicados argumentos em espaços temporais e
lugares também fictícios. Sobre isso não cabe insistir, pois pode ser corroborado por
qualquer professor ou professora, assim como por qualquer pessoa adulta.
As
crianças jogam e brincam desse modo em todas as partes, ainda que a quantidade de jogo
simbólico varie em diferentes grupos culturais e sociais, e entre cada criança considerada
individualmente (Garvey, 1978).
Não esqueçamos, além disso, que esse tipo de jogo de faz-de-conta, surge em um
momento do desenvolvimento humano em que os adultos exigem das crianças que aprendam
a suportar a não satisfação imediata de seus desejos. Trata-se de aprender a adiar, por
intervalos cada vez mais largos, essa satisfação. Por essa razão, o jogo imaginativo adquire
mais força durante a educação infantil. por meio dele, as crianças criam situações
imaginárias em que têm possibilidade de obter gratificações imediatas, o que torna a vida
real mais fácil de ser levada.
A segunda característica das situações de jogo e de brincadeira é que nelas se
incluem normas de comportamento que as crianças precisam seguir para obter êxito. Há
sempre regras, mais ou menos complicadas, que devem ser respeitadas. É impossível jogar
ou brincar sem regras mínimas, principalmente duas ou mais pessoas participam da
atividade. Essa peculiaridade das situações lúdicas favorece a reflexão e a deliberação na
infância. Ajuda, concretamente, as crianças menores, que são as que têm maiores problemas
em controlar sua impulsividade. O grau de tensão e nervosismo das crianças durante o
desenvolvimento dos jogos com regras é uma boa demonstração dos esforços que fazem
para controlar a impulsividade. Por conseguinte, as situações de jogo contribuem para a
aprendizagem da auto-regulação.
Por meio dos jogos e das brincadeiras, as pessoas aprendem a seguir determinadas
condutas, a aceitar uma série de normas que permitem que o jogo possa acontecer.
Conseqüentemente, ganham consciência do valor das regras e compreendem a necessidade
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de normas para viver em sociedade. É também pelos jogos que se desenvolvem atitudes e
habilidades de colaboração e que se aprende a importância do trabalho em grupo.
Por vezes se menciona o prazer como outra característica específica do jogo, mas
acreditamos que não se detecta claramente tal característica em todas as situações lúdicas.
Lembremo-nos de que muitos jogos baseados na competição entre duas ou mais pessoas
geram situações de tensão e mesmo de grande frustração para os que, já durante o próprio
desenvolvimento do jogo, vão perdendo. Essa situação de desagrado certamente aumenta
para os que são derrotados no fim do jogo.
Se aceitarmos que as situações lúdicas apresentam as características que têm sido
comentadas, precisamos convertê-las, nas instituições escolares, em importante foco da
atenção do professorado. Ao proporem jogos e brinquedos, os professores e as professoras
sugerem, explícita ou implicitamente, relações entre os papéis a serem desempenhados e
outros comportamentos passíveis de serem adquiridos na atividade. Por exemplo, ao
estimularem as crianças a criar situações imaginárias que evidenciem contradições com
modelos de conduta mais reais, estão impulsionando o desenvolvimento de capacidades
reflexivas e a aquisição de conhecimentos que as ajudarão a compreender melhor o mundo
em que vivem.
O jogo como recurso para conhecer a realidade social
O jogo e os brinquedos, à medida que simulam situações sociais, facilitam a
transmissão e a introjeção de informações, atitudes e valores referentes ao mundo social. As
meninas e os meninos, ao longo do tempo, aprendem a ser meninas e meninos,
respectivamente, também por meio dos brinquedos e jogos que lhes são permitidos e
disponibilizados. Desde a mais tenra idade, os meninos e as meninas se exercitam no
desempenho “adequado” dos papéis “oficiais” vigentes no mundo adulto e, também, infantil
e adolescente. “A diferenciação entre o próprio indivíduo e os outros, assim como as
condutas adequadas frente a pessoas socialmente identificadas, classes de objetos e tipos de
finalidades e planos, são explorados e podem ser sistematicamente estudados em situações
lúdicas” (Garvey, 1978, p. 156).
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Dado que os jogos e os brinquedos contribuem para aproximar as crianças do mundo
de valores, habilidades e modos de vida de suas comunidades, também facilitam ao
professorado detectar conhecimentos prévios do alunado (tanto no que se refere ao seu nível
de domínio e precisão da linguagem, como em relação à sua compreensão do meio social e
natural, ao seu domínio de determinadas habilidades e procedimentos). Analisando os jogos
e brinquedos infantis, podemos aprender a ver o mundo tal como as crianças o percebem e
identificar, desse modo, seus preconceitos, conhecimentos errôneos e expectativas referentes
aos seus próprios futuros nesse mundo.
Por meio do jogo, as crianças tanto chegam a conhecer o mundo que as rodeia, com
as peculiaridades e limitações típicas da idade e da cultura a que pertencem, como têm a
possibilidade de alterar o que não lhes agrada nesse mundo, subvertendo normas e regras
que têm certo grau de estabilidade em suas comunidades. Por meio de suas atividades
lúdicas, podem verificar as implicações de tais alterações, sem maiores riscos. Por
conseguinte, as situações de jogo são momentos e espaços de transgressão, em que é
permitido violar os papéis “estabelecidos” social e culturalmente. Por exemplo, os meninos
podem cozinhar e passar roupa e as meninas podem dirigir um caminhão. As atividades do
mundo adulto são vistas, assim, como ações para resolver problemas ou para divertir, não
para obter prioritariamente benefícios individuais ou para desempenhar papéis que
confirmem as cisões de nossas sociedades contemporâneas com base em classe social, etnia,
gênero e idade.
O jogo, como a ironia, serve também para levar a cabo representações ou assumir
papéis que, de outra maneira, estariam proibidos. Uma criança pode “brincar de médico” e
dessa maneira explorar o corpo de uma menina e vice-versa, algo que, em uma situação de
maior formalidade, estaria interditado, podendo até ser passível de punição. Essa é uma
característica compartilhada com a ironia, pois, mediante esse recurso humorístico, é
possível “dizer verdades” a uma pessoa à nossa frente, sem magoá-la, já que sempre
podemos afirmar que se trata de uma chacota. Além disso, se nosso interlocutor se
aborrecer, podemos mesmo acusá-lo de não ter senso de humor.
É também por meio de jogos e brinquedos que as crianças podem testar suas
capacidades, o que é claramente visível nos jogos de habilidade. Assim, brincar de atravessar
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uma estreita ponte imaginária, caminhando por uma linha, sem pisar fora dela, permite
constatar o próprio equilíbrio físico.
A aprendizagem por meio do jogo é uma maneira de ensaiar a vida adulta. Aprendese a ser adulto, mas sem os riscos envolvidos em situações mais reais. Inclusive no âmbito
dos adultos, os “desempenhos de papéis” e as “simulações” correspondem a variações do
jogo que permitem o exercício sem riscos de tarefas que na vida real são complicadas e
apresentam perigos, tanto físicos como emocionais. Um bom exemplo são as simulações de
situações de guerra para os militares, as cabines de simulação para pilotos de aviões etc.
Esse distanciar-se da realidade, que caracteriza as situações lúdicas, esse não se
envolver com todas as conseqüências, de modo a não se colocar em risco a vida das
pessoas, é uma peculiaridade que, em certo grau, as situações de ensino e aprendizagem
também apresentam. Quando, com base em marcos pedagógicos progressistas, insiste-se em
vincular o ensino à vida, em conectá-lo com a realidade, pode-se, na verdade, considerar que
esse tipo de educação, em muitas ocasiões, está mais próxima de situações de
jogo/simulações que da verdadeira e efetiva socialização no mundo real.
Qualquer pessoa pode lembrar-se, com facilidade, de situações em que, por meio de
jogos, chegou a aprender informações relevantes sobre a realidade, inclusive mais
significativamente do que por meio dos conteúdos escolares mais obrigatórios. Por meio do
jogo não somente se aprendem coisas e se exercitam destrezas, como também se chega a
descobrir as valorizações sociais de determinadas atividades, a importância de determinados
papéis etc.
Os distintos jogos e brinquedos estão marcados culturalmente, não são algo natural;
são, sim, fruto da história concreta de cada comunidade. No entanto, há jogos que se
repetem em culturas diferentes. A razão dessa coincidência pode ser talvez explicada com
base na existência de contatos entre essas comunidades ou em modos de vida semelhantes.
Essa dimensão sociocultural do jogo e dos brinquedos é constatável, de modo
especial, na medida em que as crianças crescem em idade, pois “os diversos aspectos do
jogo vão ficando cada vez mais submetidos à influência de fatores culturais e ambientais,
que selecionam e elaboram certas classes de comportamentos e não fomentam, por outro
lado, outras” (Garvey, 1978, p. 181). Na medida em que as crianças se tornam mais velhas,
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o prestígio social de certos trabalhos e profissões responde por sua conversão em atividade
lúdica e, ao mesmo tempo, pelo abandono de outros jogos e brinquedos. Durante os
primeiros anos de vida, as crianças brincam de comerciantes, varredores, camareiros..
Quando se vão conscientizando do prestígio e do poder das diferentes profissões em sua
comunidade, vão escolhendo brincar de arquitetos, de empresários, de desempenhar papéis
de profissionais da física, da astronomia, da medicina etc.
Como acentua Walter Benjamin (1974, p. 71), “é certo que não descreveríamos nem
a realidade nem o conceito de brinquedo se tratássemos de explicá-lo unicamente em função
do espírito infantil. Pois o menino não é um Robinson; os meninos não constituem uma
comunidade isolada; são, sim, parte do povo e da classe da qual procedem. Assim é que seus
brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma, mas representam um mudo diálogo
de sinais entre eles e o povo. Um diálogo de sinais para cuja compreensão a mencionada
obra oferece um fundamento seguro”. Estamos, então, introduzindo-nos em outra dimensão
valorativa do jogo e dos brinquedos que opera por meio de discursos mais implícitos.
Desse modo, as crianças já não constroem seus próprios brinquedos pelo fato de
viverem em uma sociedade consumista. Atualmente, os mecanismos publicitários
dominantes nesta sociedade de mercado fazem com que os meninos e as meninas rejeitem
todos os objetos que não têm formas bem terminadas, cores bem aplicadas, que não são
agradáveis ao tato e, mais importante ainda, que não correspondem aos modelos que
aparecem nos anúncios na mídia. Trata-se de algo que já sucedia também em épocas
passadas, muito embora, em função da carência de recursos econômicos de uma boa parte
da população e da pobreza dominante, as famílias se viam forçadas a recorrer à estratégia de
construir os próprios brinquedos.
Essa peculiaridade de usar a própria imaginação e criatividade para solucionar a
necessidade de dispor de brinquedos somente pode ser lembrada pelos adultos de hoje com
certa melancolia, por ser algo que já não é apreciado por nenhuma criança. É curioso como
boa parte dos adultos recorda aqueles brinquedos como se fossem o melhor dos tesouros,
como objetos maravilhosos e fantásticos. Apaga-se mesmo a inveja que alguns adultos, de
famílias menos favorecidas, tinham, quando crianças, dos brinquedos que ganhavam os que
viviam no seio de famílias economicamente privilegiadas. Esses brinquedos, objetos de
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desejo (trens elétricos, bolas, bonecas, cozinhas, pistolas, projetores de cinema etc),
ocupavam completamente, em certas épocas do ano, as vitrines das lojas e convertiam seus
possuidores em reis e senhores dos pátios de recreio, parques e ruas.
A posse dos brinquedos em moda ou mais admirados dotava seus donos de um
enorme poder e prestígio entre o resto do alunado ou dos integrantes das “turmas”. Eram
essas crianças proprietárias que tinham poder tanto de modificar as próprias regras do jogo,
como de escolher os companheiros e as companheiras com quem iriam compartilhar e
desfrutar os brinquedos.
Os brinquedos sempre funcionaram como indicadores do poder de classes e grupos
sociais. Os que nasciam no seio de famílias privilegiadas possuíam brinquedos em maior
número, mais sofisticados e, logicamente, mais caros que os das crianças de famílias
pertencentes a classes mais populares e desfavorecidas social, cultural e economicamente.
Atualmente, o forte incremento dos hábitos de consumo, assim como a necessidade
que muitas famílias têm de aparentar que “tudo vai bem”, contribuem para desvirtuar a
própria atividade lúdica. Esta parece estar sendo reduzindo a um único jogo: brincar de
colecionar brinquedos. É comum meninos e meninas deixarem rapidamente de lado o
brinquedo que tanto desejavam possuir. Desfrutam-no por pouco tempo, porque a partir do
mesmo instante em que o recebem já começam a pensar na estratégia que devem seguir para
poder ter o brinquedo seguinte em suas listas.
Esse mesmo espírito consumista, competitivo e classista faz com que os adultos, ao
darem presentes aos seus filhos, mas de modo especial às crianças de outras famílias, levem
em consideração não apenas o valor educativo do brinquedo e o prazer que quem o recebe
pode ter em desfrutá-lo, mas também o preço. Muitos adultos optam mesmo por escolher
brinquedos que aparentem maior valor econômico do que na realidade têm, e, claro, deixam
de adquirir outros cuja aparência pode ser tida como inferior ao preço real.
O jogo nas sociedades neoliberais de mercado
O consumismo lúdico nas atuais sociedades de economia neoliberal mostra-se uma
das mais importantes atividades que o mercado oferece à infância. Uma indústria de
brinquedos bastante poderosa bombardeia continuamente as crianças com seus produtos,
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principalmente nas datas em que dar presentes se torna obrigatório. A publicidade desse tipo
de produto é dia-a-dia mais invasiva. Anunciam-se os brinquedos já não apenas nos espaços
destinados especificamente à apresentação de produtos comerciais, mas também em cinemas
e na promoção de alimentos em determinadas cadeias de lanchonetes fast food.
Desse modo, a introdução dos brinquedos no mercado é feita com maior eficácia.
Assim, por exemplo, os Ursinhos Carinhosos, a Barbie, os Power Rangers não são apenas
brinquedos, mas também filmes que ajudam a atribuir uma dada personalidade a esses
personagens, dotando-os de características de conduta que condicionam as próprias
brincadeiras das crianças. Quando o menino ou a menina os vê, no cinema ou na televisão,
passa, a seguir, a brincar de acordo com as possibilidades que os filmes ou desenhos
assistidos se encarregaram de configurar. Como imaginar a Barbie mentirosa, mendiga,
boxeadora, cheia de manchas, com um nariz grande etc, se tanto os filmes como os desenhos
animados exibem-na com outra personalidade, outro estilo, outra classe social, outra idade?.
Isso não impede, todavia, que certos adultos, mais politizados, optem por criar uma espécie
de “contra-Barbie”, caracterizando-a como lésbica, como partidária do sadomasoquismo,
como viciada em sexo, e apresentando, ao mesmo tempo, seu companheiro Ken como
homossexual. Logicamente, tais “contra-brinquedos” somente são comercializados em lojas
destinadas a um público adulto e são vendidos clandestinamente.
No momento atual, é tal o grau de mercantilização das atividades lúdicas que muitas
crianças, especialmente à medida que crescem, somente sabem brincar com brinquedos
fabricados industrialmente e, ainda, também cada vez mais, em espaços físicos aos quais,
para terem acesso, precisam pagar uma entrada.
A lógica do capitalismo apoderou-se, com notável grau de êxito, dos jogos e
brincadeiras e, o que é novidade, dos espaços em que se brinca e joga. Um claro exemplo é
o número cada vez maior de parques de atrações, tanto os tradicionais das feiras e festas
populares, como os mais sofisticados e financiados, normalmente, por empresas
multinacionais. Para muitas crianças o presente e a viagem de seus sonhos têm nomes como:
Port Aventura em Tarragona, Terra Mítica em Benidorm, Tivoli World em Benalmádena,
Loro Parque em Puerto de La Cruz, Guadalpark em Sevilla, Disneyland em Paris, Parque
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Asterix em Paris, SantaPark na Finlândia etc, ou os já mais tradicionais Parques de Atrações
em Madrid, Barcelona, Zaragoza, Donostia etc.
A intenção de apropriar-se do jogo e da brincadeira está implícita também nas
cadeias comerciais destinadas à venda de brinquedos, como é o caso da empresa
multinacional Toys ‘R’ Us. Em cada uma das lojas dessa cadeia existe um ambiente similar.
Pretende-se que o consumidor ou consumidora, qualquer que seja a cidade a que vá, se
encontre em um espaço conhecido, com uma disposição de brinquedos similar à das lojas
anteriormente visitadas, com uma decoração semelhante, com rotinas idênticas para buscar,
solicitar e pagar e, ainda, com os mesmos brindes promocionais. Não há lugar para a
surpresa.
Acresça-se a tudo isso o insistente bombardeio de anúncios nos principais meios de
comunicação ajudando a completar a concepção mercantilista de brincadeira e de jogo. As
crianças aprendem por meio dos anúncios que os fabricantes de brinquedos inserem em
todas as cadeias de televisão, revistas, jornais, supermercados, assim como nos catálogos de
publicidade que enviam para seus domicílios, que brinquedos desejar e como utilizá-los,
quais são os de meninos e quais os de meninas e, ainda, que grupos sociais têm a
possibilidade de adquiri-los.
A atividade lúdica é, assim, submetida às regras do mercado, que procura
“convencer” as crianças que quanto mais caro o brinquedo, maior a diversão. Em uma
sociedade em que tudo o que é público está ameaçado e tudo se pretende passar para a
iniciativa privada, é óbvio que, se esse estado de coisas continuar, pode-se chegar também a
considerar que a atividade lúdica precisa ser paga; se for grátis, não deve ser boa nem valer a
pena. A filosofia de mercado das atuais sociedades neoliberais sustenta-se de modo
importante na busca do consentimento da população a uma máxima que poderíamos
formular da seguinte forma: todos os serviços oferecidos pelo setor público são de pior
qualidade que os “vendidos” pelo setor privado. Ou seja, um parque de diversões público
“deve ser” pior do que um particular. O mesmo tipo de valorização seria aplicável às
“brinquedotecas” públicas quando comparadas com as privadas.
O avanço dessa filosofia mercantilista explicaria, do mesmo modo, o notável grau de
degradação de muitos parques públicos. Tais parques, com freqüência, acabam por
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converter-se no “reino” de grupos marginais que o utilizam para planejar delitos ou para o
tráfico de drogas.
Também se pode constatar a apropriação da atividade lúdica por parte da iniciativa
privada no crescente número de salas de jogos com máquinas recreativas nas quais é preciso
introduzir moedas para jogar e nas quais se paga, também, o tempo em que se pode interagir
com elas.
Esse processo de crescente mercantilização da brincadeira e do jogo vem
acompanhado da limitação das situações e opções lúdicas. Estamos frente a espaços
destinados ao jogo com recursos lúdicos em que as possibilidades de interagir com eles e de
desfrutá-los já estão decididas anteriormente; são escolhas fechadas, com programações que
não comportam a possibilidade de se alterarem as regras, os significados e os ritmos do
jogo.
À medida que os meninos e as meninas se socializam nessa sociedade capitalista de
mercado, vão aprendendo que as atividades dos seres humanos precisam ter rentabilidade
econômica. Como disse Theodor W. Adorno, pouco a pouco vão introjetando que “tudo é
pela lucro”. O valor das atividades de que participam vai mudando pouco a pouco. Durante
os primeiros anos de vida, as primeiras interpretações infantis do mundo baseiam-se no
princípio de que tudo se faz “pelo prazer de fazê-lo”. Todavia, à medida que crescem e em
decorrência das experiência a que são submetidas, as crianças começam progressivamente a
interpretar a realidade como dura, difícil, concluindo que é necessário pagar por tudo, até
para brincar.
Mas como os seres humanos têm a capacidade de transformar a realidade, o jogo
pode e deve servir para recuperar e/ou criar novos valores humanos. Por meio do jogo é
possível desenvolver nos meninos e nas meninas procedimentos e valores que destaquem o
valor da comunicação e do conhecimento das demais pessoas, da cooperação, da ajuda, o
respeito e a solidariedade. Trata-se de algo que se beneficia das características do jogo
infantil, antes de os adultos transformarem a atividade em mercadoria: a de despojar as
ações de que se compõe o ato de brincar de suas dimensões de busca de benefícios
econômicos. Como acentuou Adorno (1999, p. 230), a criança, “em sua atividade sem
finalidade, toma partido, por meio de uma artimanha, pelo valor de uso contra o valor de
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troca. Ao despojar as coisas com que nos divertimos de sua utilidade mediada, busca salvar,
no lidar com elas, o que as faz boas para os homens e não para a relação de intercâmbio, que
deforma igualmente homens e coisas”.
O jogo e a brincadeira, na medida em que também sejam considerados, no mundo da
educação, como atividades realmente importantes, podem ser utilizados como estratégia
bastante adequada para o ensaio de modelos de vida mais democráticos e justos.
Os brinquedos como espelhos de modelos de vida
Os brinquedos e os jogos refletem os modos de vida da sociedade que os fabrica,
assim como as visões de futuro dessa comunidade. Essa visão da realidade e suas
expectativas sobre o futuro refletem-se tanto nos conteúdos como nas atitudes, habilidades,
valores e conversas dos personagens envolvidos nos jogos e brinquedos. Por meio das
situações lúdicas se processa a socialização das crianças em uma determinada sociedade, ou
seja, tem lugar uma antecipação do papel que podem desempenhar no mundo do futuro, as
se tornarem adultos. Os jogos e os brinquedos constituem um meio de grande poder de
exploração do mundo real, não sendo, por conseguinte, ideologicamente neutros. Isso nos
permite detectar no mercado, facilmente, brinquedos que reproduzem as mesmas
concepções ideológicas que existem na sociedade.
Em qualquer loja de brinquedos podemos encontrar brinquedos sexistas, racistas,
militaristas, classistas. Incorporam uma visão de mundo e, normalmente, traduzem os
modelos de vida dos grupos sociais hegemônicos, de suas instituições e formas de vida. Os
jogos e brinquedos se convertem, desse modo, em um recurso privilegiado de socialização
política.
Não podemos ignorar o enorme número de brinquedos sexistas que aparecem nas
campanhas de publicidade e, posteriormente, nas casas de cada criança. Alguns desses
brinquedos reproduzem os modos de vida e os objetos de uma mulher-objeto. Outros
brinquedos, ao mesmo tempo pudicos e vulgares, preservam, em sua reprodução dos corpos
humanos, os mesmos medos das sociedades vitorianas: pode-se apresentar e nomear todas
as partes do corpo humano, exceto os órgãos sexuais. Nos últimos anos, surgiram no
mercado bonecos nos quais os órgãos aparecem, mas, em geral, trata-se de bebês e meninos,
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e não adolescentes, meninas ou moças. Quando nos encontramos frente a representações de
mulheres adolescentes ou adultas, tais partes do corpo desaparecem ou, no caso das bonecas
Barbie ou similares, representam-se unicamente umas pequenas protuberâncias que
pretendem imitar os pelos. Em todos os modelos comercializados nunca se representam os
órgãos genitais de adolescentes ou pessoas adultas.
Entretanto, todos sabemos que um das primeiras coisas que tanto as meninas como
os meninos fazem com bonecas e bonecos é despi-los para ver o que há debaixo das roupas.
Também não é pouco comum que alguns desses brinquedos acabem sendo “completados”
pelos meninos e pelas meninas que procuram suprir as carências, pintando-as com pincéis
atômicos ou cavando pequenos orifícios com algum objeto cortante.
Uma das bonecas em que se constata com clareza a não neutralidade ideológica dos
brinquedos é a Barbie. Com ela se promove um modelo de sociedade capitalista em que o
valor das pessoas se mede pelo que podem comprar e consumir e em que o luxo é o único
modo de vida interessante. Não nos esqueçamos de que até os mais importantes estilistas do
mundo se dedicam a desenhar roupas para a boneca. Há mesmo quem já tenha feito uma
pergunta irônica: por que a Barbie não se mantém de pé? Coerentemente, a resposta é:
porque para mover-se utiliza “próteses” de luxo (iates, automóveis esportivos, bicicletas de
marcas famosas, cavalos de raça, jet-skis, carros grandes luxuosos etc).
Estamos diante de uma boneca que nos faz ver que somente as pessoas de raça
branca (e preferentemente louras), jovens, sadias, bonitas e magras são importantes e
merecem dispor de poder e de tempo. Além disso, defende-se, sem qualquer
questionamento, o mundo heterossexual como o único legítimo, o que justifica a criação do
companheiro Ken.
Outros jogos e brinquedos refletem situações racistas, classistas e militaristas e
ajudam a perpetuar os valores e visões de mundo dos grupos sociais que detêm os principais
instrumentos de poder (Torres Santomé, 1980). Um exemplo são os videogames de maior
aceitação. Videogames como Combate mortal ou Carmageddon são uma demonstração de
como se propõe a violência como única maneira de solucionar os problemas e conflitos
humanos. Estamos diante de jogos militaristas e fascistóides cujo objetivo é aniquilar
fisicamente o inimigo: o assassinato é cometido de modo muito realista, por meio de
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desenhos de grande qualidade, que tornam visíveis as vísceras da pessoa eliminada e que
acentuam o sangue jorrando do corpo. Os seres humanos aparecem desumanizados e de
acordo com a lógica das políticas de guerra das grandes potências militares: ou matar ou
morrer. O importante é ganhar e aniquilar o competidor e inimigo.
Qualquer arma inventada pelos adultos, disponível no mercado, embora seja um
mercado um tanto secreto, é imediatamente reproduzida em forma de brinquedo.
Com relação aos brinquedos ideológica e socialmente perigosos, como os que
promovem concepções bélicas da vida, como, por exemplo, as armas e os guerreiros
armados até os dentes, ou modelos sexistas de organização social, como, por exemplo, as
bonecas Barbie, muitas pessoas adultas limitam-se à proibição, não comprando nem
facilitando tais brinquedos para as crianças. No entanto, nunca a proibição foi uma medida
contundente para resolver uma situação conflitiva. Quem nunca viu ou não participou de
batalhas em que se convertia uma colher em uma pistola ou uma escova em uma potente e
destruidora metralhadora? As crianças recorrem, nesse caso, à fantasia para transformar
qualquer objeto em outro que desejariam ter. A proibição, na maioria das situações,
contribui para gerar mais curiosidade por aquilo que se proíbe, chegando, mesmo, a torná-lo
mais desejável.
A nosso ver, o fundamental é converter em objeto de reflexão e crítica as situações
perigosas, injustas e imorais que tais brinquedos veiculam. Um grupo de crianças brincando
de guerra pode optar por não utilizar esses brinquedos, quando se convencem dos horrores e
da destruição causados por essas armas em situações reais. Se muitos adultos odeiam as
armas é porque sabem das conseqüências de seu emprego. Os meninos não são mais cruéis,
apenas têm menos informações e conhecimentos; não são esponjas que tudo absorvem e
engolem acrítica e passivamente. Ao contrário, constroem seu conhecimento de forma ativa,
comparam as novas informações com o que já conhecem e quando se convencem de algo
tratam de comportar-se de maneira conseqüente.
Se os projetos curriculares têm por finalidade ajudar as novas gerações a
compreender o mundo, podemos dizer que compartilham essa finalidade com o mundo dos
jogos e das brincadeiras. Assim como existe uma preocupação em vigiar os conteúdos
culturais dos programas e livros-texto com os quais as crianças entram em contato, deveria
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existir uma atenção idêntica à análise dos jogos e brinquedos que se comercializam no
mercado.
Uma das diferenças entre o exercício da atividade lúdica na casa de cada estudante,
no bairro ou nos parques e o jogo nas instituições escolares é que no segundo caso a
atividade, além de se incluir com mais ou menos detalhes no projeto docente, precisa ser
objeto de reflexão, após ser posta em prática e desfrutada. Ou seja, uma vez finalizada, a
atividade lúdica deve ser avaliada. Os estudantes e os docentes devem tratar de analisar cada
um dos jogos e brinquedos desenvolvidos, assim como suas condições de realização,
peculiaridades e, certamente, os conhecimentos, as atitudes e os valores que ajudam a
promover.
É necessário, em síntese, considerar cuidadosamente as dimensões social, cultural,
política, econômica e educativa dos jogos e brinquedos.
Instituições escolares e promoção do jogo e da brincadeira
Em uma sociedade em que tudo se pretende medir com instrumentos economicistas,
é preciso também considerar as dimensões subjacentes aos discursos sobre o jogo. Percebese claramente que, para muitos, o jogo é fundamentalmente associado à diversão, ao
relaxamento, ou seja, à superficialidade e à frivolidade. As mensagens ocultas provenientes
do mundo adulto não representam o jogo e a brincadeira como atividades produtivas e
indispensáveis para viver.
Mais importante que o jogo seria o trabalho, visto como atividade séria, produtiva e
indispensável para a sobrevivência. Nesse sentido, uma mesma atividade é vista como
brincadeira ou trabalho (por exemplo, os esportes, as atividades literárias, musicais, teatrais,
pictóricas etc) em função de ser ou não uma ocupação imprescindível para obter recursos
econômicos para subsistir na sociedade.
A brincadeira e o jogo aparecem mais ligados à educação infantil, mas mesmo nela,
na medida em que as pedagogias “mercantilistas” se tornam influentes, há o perigo de se
reduzi-los a atividades valorizadas no discurso, mas que, na prática, se rotulam como “perda
de tempo” e acabam circunscritas a atividades secundárias. Brincar, para a maioria das
crianças, é a atividade que se realiza fora das aulas, nos pátios de recreio ou então nas aulas,
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quando o professor a classifica como tempo livre e a coloca à margem das demais
atividades.
Essa desvalorização do jogo torna-se mais visível à medida que se avança na
educação primária. Paralelamente ao crescimento em idade, diminui a valorização e a
importância do jogo e da brincadeira.
Formula-se mesmo a um discurso paradoxal, com influências rousseaunianas, que
defende excessivamente o jogo, considerado como a verdadeira e única atividade para a
infância. O jogo, nessa análise, é mais valorizado que o trabalho, considerado, este último,
como uma obrigação humana, conseqüência do “castigo divino” por se ter comido a fruta
proibida. O trabalho se explica, assim, como obrigação e como imposição penosa e
alienante, não como tarefa para a realização pessoal e coletiva, passível também de ser
desfrutada.
Essa concepção do trabalho como algo penoso, dolorido, aborrecido, alienado,
forçado e mesmo como tarefa incompreensível, encontra-se subjacente a expressões em
moda nas últimas décadas, como “jogo didático” e “brinquedo didático”, em vez de recurso
didático. Contudo, nem utilizando-se essa confusa denominação se consegue enganar o
alunado, já que nenhum menino ou menina pedirá como presente de Natal um dos tais jogos
didáticos. Desde o primeiro momento deram conta de que tais recursos só se utilizam nas
aulas e, ademais, com certo grau de obrigatoriedade. As crianças sabem que com essa
modalidade de jogos didáticos não há lugar para a fantasia, para o mistério, para o
imprevisto, nem para a interação com os demais colegas. Com esses recursos pseudolúdicos
não se costuma jogar conversando e trocando idéias, nem empregando obrigatória e
pertinentemente um determinado vocabulário ou formas típicas de expressão. São jogos que
normalmente se fazem solitariamente e em silêncio.
As pessoas adultas, em vez de reconhecer de modo explícito que há recursos
didáticos de pouco valor e que, além disso, têm um aspecto nada atrativo, preferem optar
por adocicar tais instrumentos com a palavra brinquedo, acrescentando-lhes o adjetivo
“didáticos”. A verdadeira característica desses recursos didáticos é que são mais bem
acabados, feitos em materiais agradáveis, com formas mais suaves e com cores mais vivas e
desenhos mais atrativos e/ou mais realistas.
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Essa diferenciação entre brinquedos didáticos e recursos didáticos contribuiu para
distinguir materiais didáticos de boa e de má qualidade. Essa distinção é semelhante à
classificação das tarefas escolares em, por um lado, em relevantes e significativas e, por
outro, em monótonas, não significativas e punitivas.
É necessário reivindicar a verdadeira importância do jogo como atividade diferente,
mas valiosa e complementar das atividades curriculares mais dirigidas e obrigatórias. Essas
últimas estão destinadas à aprendizagem de conteúdos culturais que se consideram
imprescindíveis e que os alunos e as alunas adquirem nas instituições escolares. No entanto,
os jogos e as brincadeiras podem desenvolvê-las, estimá-las e reforçá-las.
O jogo permite manter e mesmo incrementar a motivação e o interesse pelas
aprendizagens dos conteúdos culturais exigidos nos currículos. O jogo desempenha uma
função importante em relação ao desenvolvimento de comportamentos sociais,
particularmente de cooperação, assim como ao desenvolvimento de aspectos da
personalidade como perseverança, concentração, reflexão e autonomia, que repercutem de
maneira imediata nas aprendizagens mais formais e dirigidas.
Convém distinguir entre diversas formas de jogo. Talvez uma distinção básica seja a
de jogo “dirigido” e jogo “livre”, conforme seja a participação de adultos no momento de
escolhê-lo, desenvolvê-lo e avaliá-lo. Essas modalidades de jogo precisam ser explicitamente
consideradas pelo professorado no planejamento de suas tarefas escolares, o que, por sua
vez, demanda uma observação adequada do que acontece em situações de jogo e de
brincadeira.
Concebe-se a figura docente, cada vez mais, como organizadora dos ambientes de
ensino e aprendizagem, o que requer atenção tanto à organização espacial da aula e da
própria escola quanto à seleção e distribuição dos recursos nesses espaços. É nesse ambiente
construído pelo professor ou pela professora que se possibilitam ou, também, se dificultam
as oportunidades para que as crianças aprendam.
Recorrer ao jogo como atividade prazerosa, mas também formativa, acarreta
preocupar-se com os recursos necessários para o jogo, dispor de espaços para jogar, bem
como selecionar brinquedos e materiais que se harmonizem com as necessidades, interesses,
níveis de conhecimento, habilidades e ritmos de desenvolvimento de alunos e alunas.
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Poderemos perceber, então, que muitos brinquedos são concebidos com base em posições
adultas e sem a participação das crianças, o que foi destacado por Benjamin (1974, p. 65), já
em 1928, quando, ao visitar uma exposição de brinquedos no Märkischen Museum em
Berlim, acentuou como na produção de brinquedos “mostra-se, na realidade, como um
adulto imagina um brinquedo, e não o que o menino exige de um boneco”.
Reconhecer o valor do jogo no processo educativo implica, ademais, uma especial
atenção pela observação e pela avaliação de tais momentos.
Para jogar de modo adequado, os meninos e as meninas precisam, segundo Moyles
(1990, p. 111):

Companheiros e companheiras de jogo, espaços adequados, materiais para o jogo,
tempo para jogar e brinquedos que sejam valorizados pelos que compartilham o
ambiente.

Oportunidades para brincar em duplas, em pequenos grupos e com outros adultos,
inclusive com os professores e as professoras.

Tempo para explorar, por meio da comunicação verbal, o que fazem e como, para
descrever suas experiências nos jogos, com os brinquedos.

Tempo para continuar o que iniciaram (com demasiada freqüência lhes falta tempo e
jogos interessantes e valiosos em termos educativos não são terminados nem
devidamente apreciados).

Experiências lúdicas que ampliem e aprofundem o que já conhecem e o que já sabem
fazer.

Estímulos e alento para fazer e aprender mais.

Oportunidades lúdicas planejadas e espontâneas.
Com freqüência, é de fato muito difícil acompanhar-se o progresso das crianças em
situações que denominamos mais acadêmicas. Acabamos optando por modos de avaliação
mais fáceis e rápidos, como os exames sobre os conteúdos trabalhados em aula de modo
mais rígido, descuidando-nos do registro de outras dinâmicas e rotinas mais cotidianas. Se
isso acontece com os conteúdos culturais mais “ortodoxos”, pode-se supor que na
observação das atividades lúdicas a situação é ainda pior. Se os jogos constituem um meio
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de educação, de socialização e são uma tarefa considerada de verdadeira importância, é
lógico pensar que também precisam ser avaliados; é necessário observar-se o
desenvolvimento dos jogos em que cada estudante se envolve.
Para facilitar as tarefas de avaliação continuada das situações lúdicas, uma boa
estratégia pode ser construirmos folhas de registro, em que anotamos tudo o que nos
permita detectar tanto os avanços como as dificuldades no desenvolvimento de cada
estudante. Trata-se de algo que, ademais, nos obriga a refletir sobre o que consideramos
realmente importante e por quê. Penso que o quadro seguinte, elaborado por Janet R.
Moyles (1990, pp. 134-135), pode ser de grande ajuda.
Pontos de reflexão sobre jogos e brinquedos
1. Que recursos e atividades
 se empregam agora com maior freqüência e por quê?
 estimulam períodos prolongados de jogo e de concentração?
 estimulam nas crianças independência e autonomia?
 estimulam o alunado a falar
(a) de seus companheiros e de suas companheiras?
(b) com adultos?
 estimulam a manter conversações prolongadas?
 promovem mais debate sobre os resultados?
 estimulam o jogo cooperativo e a aprendizagem?
 estimulam o jogo solitário e/ou compartilhado?
desenvolvem mais eficazmente as habilidades de coordenação, manipulação,
imaginação e criatividade?
 desenvolvem compreensões, valores e conhecimentos matemáticos, científicos,
tecnológicos, ambientais, geográficos, históricos, religiosos e estéticos?
 estimulam mais o alunado a refletir sobre o jogo, a empregar sua imaginação,
habilidades e conhecimentos e a resolver problemas com persistência e atenção?
 estimulam um enfoque multissensorial da aprendizagem?
 estimulam as crianças a explorar questões morais e éticas?
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 oferecem probabilidades de gerar nas crianças condutas agressivas ou
inapropriadas?
 são mais freqüentes quando um adulto se acha presente ou intervém?
 são mais úteis para tópicos específicos?
2. Diferenciam meninos de meninas no que se refere à escolha de recursos e materiais?
Qual é a razão dessa distinção?
3. Os meninos e as meninas selecionam seus próprios recursos e atividades? Podem
encontrá-los e devolvê-los facilmente?
4. Os meninos e as meninas perseguem idéias específicas e transferem, em determinado
momento, a aprendizagem, por meio dos recursos e das atividades?
Também é necessário prestar atenção à avaliação do valor educativo de cada jogo e
brinquedo, tomando-se em consideração aqueles aspectos e características que podem
colaborar na luta contra as numeras formas de opressão e marginalização típicas de nossas
sociedades contemporâneas. Se elas se mostram, entre outros aspectos, cindidas em relação
a raça, sexo, classe social, idade e poderio militar, pode-se concluir que uma educação
emancipatória e crítica deve contribuir para capacitar as novas gerações para imaginar e
tornar possível um mundo muito menos injusto.
Em relação aos conteúdos escolares, temos denunciado a forte distorção da cultura
selecionada e veiculada pelos livros-texto. Esses conteúdos visam, dentre outros objetivos,
a legitimar o atual estado de coisas – nosso mundo injusto e não solidário. São conteúdos
culturais nos quais se reduzem ao silêncio ou se apresentam de modo distorcido muitos
povos e grupos sociais (Torres Santomé, 1998). Similarmente, cabe pensar que no mundo
do jogo e do brinquedo se produzam censuras e distorções da realidade muito parecidas
com as que se verificam nos livros-texto.
Para que uma atividade lúdica, além de divertir e relaxar, contribua para educar, fazse necessário que os adultos prestem atenção aos conteúdos dos brinquedos
comercializados. Nesses, particularmente nos que envolvem um grande número de
personagens, deveria estar representada a atual diversidade dos seres humanos. Se
pretendemos ajudar as crianças a conhecer o mundo que habitam não podemos lhes
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esconder parcelas dessa realidade – pessoas que são diferentes dos estereótipos associados
aos grupos mais poderosos.
O esquema seguinte pode ajudar-nos a formular algumas questões sobre tal tema.
Com ele, torna-se possível verificar que tipos de silêncio se produzem na educação e como
contribuir, dentro do possível, para corrigi-los.
JOGOS E BRINQUEDOS CONTRA A DISCRIMINAÇÃO
ANTI-RACISMO
Bonecos e bonecas de raças e etnias diversas e com tonalidades de pele e de cabelo
que reflitam variedades semelhantes às que se encontram em cada raça.
Jogos e brinquedos que permitam explorar similaridades e diferenças humanas, com
personagens de distintas raças e etnias desempenhando papéis de prestígio e trabalhando em
funções importantes para a comunidade.
ANTI-SEXISMO
Bonecos e bonecas que não promovam os estereótipos típicos de sociedades
conservadoras e machistas em suas reproduções das figuras humanas masculinas e
femininas.
Bonecas que não correspondam às concepções de “mulher-objeto”.
Bonecos que não incorporem concepções de masculinidade equivalentes a
agressividade, belicosidade, violência e domínio.
Jogos e brinquedos que permitam refletir sobre situações sociais injustas, resultantes
de estereótipos sexistas.
CONTRA A DISCRIMINAÇÃO POR IDADE
Bonecos e bonecas que representem pessoas adultas e de terceira idade de forma
não caricata.
Bonecos e bonecas que reproduzam a variedade das características físicas das
pessoas normais, evitando a estética dos modelos de passarela.
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Bonecas e bonecos que representem pessoas gordas ou com alguma característica
física com “pouco valor de mercado” (por exemplo, pessoas com olhos estrábicos, com uma
orelha maior que outra ou com orelhas grandes, com pés chatos, pessoas calvas etc).
ANTI-ETNOCENTRISMO
Brinquedos que assumam a diversidade cultural de nossa sociedade em: cozinhas,
comidas, objetos, instrumentos e roupas de trabalho, vestidos de celebrações e festas de
diversas culturas.
Brinquedos que permitam reconstruir modos de vida diferentes dos ocidentais.
Brinquedos que possibilitem refletir sobre situações de injustiça no Terceiro Mundo,
trazê-las à luz e discutir de que modo estamos implicados nessas situações.
CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS
Brinquedos que reproduzam instrumentos usados por pessoas com necessidades
especiais: cadeiras de rodas, muletas, bengalas, próteses, óculos com graus elevados,
aparelhos para surdez etc.
Bonecos e bonecas incapacitados.
Reproduções de edifícios e espaços físicos em que sejam visíveis adaptações feitas
para facilitar a vida de pessoas incapacitadas.
ANTI-CLASSISMO
Jogos, bonecas e bonecos que representam pessoas sem emprego ou com trabalhos
desvalorizados socialmente ou em situação de exploração.
Jogos em que se façam visíveis representações de relações de trabalho em que
existem situações de injustiça.
Brinquedos e jogos em que se abordem trabalhos com pouco prestígio social.
Jogos, brinquedos, bonecas e bonecos que levem em consideração pessoas que
vivem da agricultura e da pesca, que vivem em zonas rurais, em povoações pequenas e
isoladas etc.
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ANTI-MILITARISMO
Jogos e brinquedos cooperativos e não competitivos.
Jogos e brinquedos em que se promovam formas de superação de conflitos por meio
de situações de diálogo e nos quais se repudie a violência militarista e/ou machista.
Jogos e brinquedos nos quais não se utilizem armas.
Com base no esquema acima, podemos melhor obter e transcrever informações que
venham a ajudar também a outros professores e professoras que, em anos sucessivos,
tenham relação com esses mesmos meninos e meninas. Ficarão registradas informações mais
detalhadas sobre as aprendizagens infantis, sobre seus conceitos prévios, ritmos de
desenvolvimento, expectativas, preconceitos etc.
Não nos esqueçamos de que o professorado costuma recorrer a diversas estratégias
para comunicar ao alunado que questões considera realmente importantes e valiosas. Talvez
a mais eficaz seja a avaliação. Todas as informações e as opiniões transmitidas pelo
professor acabam convertendo-se também em foco de atenção para os meninos e para as
meninas. Se o jogo é uma atividade valorizada pelo professorado e se queremos que assim o
seja pelo alunado, o lógico é que nas aulas um dos focos de atenção seja a reflexão e a
avaliação do que se passa nas atividades lúdicas. É dessa forma que o alunado se convencerá
de que brincar ou jogar não é perder tempo.
O jogo oferece muita informação sobre as crianças, tanto sobre seus níveis e
problemas de desenvolvimento e socialização, como sobre as atitudes, os valores e os
preconceitos que estejam elaborando em cada momento. O jogo pode ajudar-nos a
identificar as necessidades de cada criança, bem como possibilitar que o próprio estudante
teste estratégias e medidas que ajudem a mitigar tais problemas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. (1999). Minima Moralia: reflexiones desde la vida dañada.
Madri: Taurus.
BENJAMIN, Walter (1974). Reflexiones sobre niños, brinquedos, livros infantis, jovens
e educação. Buenos Aires: Nueva Visión
GARVEY, Catherine (1978). El juego infantil. Madri: Morata
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MOYLES, Janet R. (1990). El juego em la educación infantil y primaria. Madri:
Morata
PIAGET, Jean (1973). La formación del símboleo em el niño. Imitación, juego y sueño.
Imagen y representación. México: Fondo de Cultura Económica
TORRES SANTOMÉ, Jurjo (1979) Um espacio para el juego: las ludotecas.
Cuadernos de Pedagogía, no57, p. 22-24
TORRES SANTOMÉ, Jurjo (1980). O xogo, os xoguetes e as ludotecas. O Ensino, no
0, p. 33-42
TORRES SANTOMÉ, Jurjo (1998). Globalización y Interdisciplinariedad: el
curriculum integrado. Madri: Morata.

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