Apocalypse Now, Please

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Apocalypse Now, Please
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
Apocalypse Now, Please
quinta-feira, julho 12, 2012
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por Léo Tavares*
Sei que não foram sacerdotes mesopotâmicos que adivinharam esse meu destino até agora pouco
surpreendente. É claro que quando se debruçavam sobre o fogo eles estavam mais ocupados em ver
dilúvios, pragas, tremores de terra e colunas de templos a desabar sobre o mar. Civilizações inteiras
desaparecendo no cosmos, e as próprias estrelas se modificando lentamente em espetáculos mais sublimes
e terríveis que o meu despertar comer dormir numa cidade que ainda não viu catástrofes bíblicas. A única
coisa que me remete a essas estrelas é uma certa lentidão evolutiva. Mas não me interessa a evolução
física dos homens. Se todos nós ainda temos resquícios de rabo, é das coisas muito particulares que falo;
coisas cujas estruturas, se é que existem, me parecem mais complexas e imutáveis do que a matéria que
forma os organismos vivos. Hoje vemos o átomo. Queria poder ver os sonhos, os pensamentos, as
fantasias. Seria bom poder entender porque me sinto mais eu pela minha vontade de sorriso do que pela
visão do meu rosto sorrindo, porque quando eu choro eu sou mais o meu desconsolo do que uma cara
patética a se contorcer e uma voz entrecortada tentando verbalizar o indizível da dor. É fácil demais ser
patético através do choro, e o ridículo camufla a beleza que existe nas lágrimas, que é uma beleza que não
se pode enxergar. Queria ver como são belas, às vezes, as vontades de choro. Queria saber o nome de um
sentimento que me nasceu um dia e ficou até hoje. Descobrir se ele se parece remotamente com alguma
coisa chamada amor ou vontade de amor, ou amargura de amor, ou ódio. Uma mão tem cinco dedos, e
nenhum deles é igual ao outro. Queria saber se o amor também tem cinco dedos e se assim for, é alguma
coisa que unge, que rasga, que afaga, que delira e que apaga, tudo ao mesmo.
Se esta minha lentidão em envelhecer minha alma me torna um irmão espiritual de estrela, quando eu
choro me nasce um vinco a mais e meu corpo está mais próximo de ser poeira. Hoje desisti de me olhar
no espelho e fui mais eu em soluços quando enfiei a cara no travesseiro e fui entrando no escuro: cada vez
mais eu, cada vez distinguindo melhor no cosmos o envelhecimento magistralmente belo das estrelas - é
preciso que se dê adjetivos como esse às estrelas e às coisas de estrelas, e nesse caso até o lugar-comum e
as redundâncias merecem perdão. A nós, nada de monumental. Exceto afirmar que estamos
monumentalmente entediados nessa cidade. Incomensuravelmente sozinhos nesse mundo todo, e antes
que possamos olhar com nosso olho bem dentro do olho de um sonho, nos desintegraremos sem alardes e
sem legado. Se a nossa História comporta as adivinhações mesopotâmicas, não comporta as adivinhações
da minha história, minúscula e repleta de casualidades em livrarias de esquina e outros leves sobressaltos.
Mas eu não quero fazer parte dessa História maior, nem quero a pretensão de profecias às minhas
pequenas vertigens diante de certos olhares alheios. Aos sacerdotes, prefiro os cineastas, e aos sumérios,
prefiro os poloneses. Krzysztof, por exemplo. Esses que me incutiram no espírito um desejo não físico de
olhar as coisas. Nesse sentido, ainda que incapazes de transmutar o eterno vazio em paisagem, alguns
terremotos e um sem-fim de dilúvios me atravessam todos os dias, insuspeitos e ínfimos para o mundo
como a morte de uma formiga. Aparentemente, a cidade continua tranquila e todos nós vamos chorar
ridiculamente por alguns milhões de anos ainda, ignorantes dos sentimentos sem nome, com nossos
microscópios e átomos e tédios e vincos e resquícios de rabo.
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*Publicado originalmente na Revista Macondo/ edição nº 04.
** Léo Tavares é nascido em São Gabriel, RS. Há doze anos reside em Brasília, onde estuda Artes
Visuais na UnB. Participou de publicações coletivas de contos e poemas, entre eles a antologia do
Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, edição 2007, e do Concurso Nacional de Poesia
Cassiano Nunes, edição 2009. Foi finalista do Prêmio SESC de Literatura em 2010, com o livro de
contos Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer. Participa de um grupo de poesia chamado Nexo
Grupal.
Publicações online:
Blog pessoal: http://mobileazul.blogspot.com
Blog do coletivo de poetas Nexo Grupal: http://nexogrupal.blogspot.com
Colaborador
no
blog
Cultura
Visual
cinematográficas: http://culturavisualqueer.wordpress.com
Queer,
com
críticas
E-mail para contato: [email protected]
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