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HORIZONTE
TEOLÓGICO
ANO 11 | Nº 21 | JANEIRO-JULHO 2012
BUSCANDO SER CRISTÃO
NO CONTEXTO ATUAL
ISSN 1677-4400
Horizonte Teológico | Belo Horizonte | V. 11 | N. 21 | P. 1-130 | 2012
© 2012 - Instituto Santo Tomás de Aquino
Proibida a reprodução de qualquer parte, por qualquer meio, sem a prévia
autorização do Conselho Editorial
Jornalista responsável: Purificacion Vega Garcia - MTB: 3039
Conselho Editorial: Antônio Pinheiro, Cleto Caliman, José Carlos Aguiar, Manoel
Godoy, Sílvia Contaldo, Wolfgang Gruen.
Revisão: Helena Contaldo - Conttexto
Diagramação: Lívia Duarte
Normalização Bibliográfica: Iaramar Sampaio - CRB6/1684
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Publicação Semestral
Impressão: Editora O Lutador
H811
Horizonte Teológico / Instituto Santo Tomás de Aquino. v. 11, n. 21
(1º Sem. 2012) - Belo Horizonte: O Lutador, 2012-132p.
ISSN 1677-4400
Semestral
1. Teologia - Periódicos. 2. Filosofia - Periódicos. I. Instituto Santo
Tomás de Aquino.
CDU: 2:1
Elaborada por Iaramar Sampaio - CRB6/1684
SUMÁRIO
EDITORIAL 5
BUSCANDO SER CRISTÃO NO
CONTEXTO ATUAL
Manoel Godoy
OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE 9
CRISTÃ HOJE
Werbson Beltrame Pereira
ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA 31
E HERMENÊUTICA
Elton Vitoriano Ribeiro
A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA: 43
“SE CALAREM A VOZ DOS PROFETAS...”
Gilvander Luís Moreira
FOUCAULT: 71
“TÉCNICAS” E “TECNOLOGIAS”
Guaracy Araújo
O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO 81
ESPIRITUAL: O EFEITO RESTAURADOR DA FÉ
Carlos Ribeiro Natali
Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R
RECENSÕES 101
NORMAS PARA COLABORADORES 115
LIVROS RECEBIDOS 119
ISTA - Instituto Santo Tomás de Aquino
Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos
Diretor Executivo: Manoel Godoy
GRADUAÇÃO:
Filosofia (licenciatura)
Coordenação: Antonio Martins Pinheiro
Teologia (bacharelado)
Coordenação: Cleto Caliman
PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu):
Coordenação: Cleto Caliman
Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos - 360 horas / aulas
Janeiro / julho / janeiro
Especialização para Formadores da Vida Religiosa - 360 horas / aulas
Janeiro / julho / janeiro
Especialização em Aconselhamento Pastoral e Espiritual - 360 horas / aulas
Janeiro / julho / janeiro
Especialização em Gestão das Obras Sociais nas Instituições Religiosas
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EDITORIAL
Manoel Godoy
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BUSCANDO SER CRISTÃO NO
CONTEXTO ATUAL
No seu Ano Jubilar, o ISTA tem a alegria de poder publicar
mais um número da Revista Horizonte Teológico com um conteúdo
que remete à sua caminhada de reflexão filosófica e teológica no
mundo acadêmico. Em 19 de outubro deste ano, celebraremos os 25
anos de contribuição com o processo formativo no âmbito da vida
consagrada.
Inúmeros alunos e alunas formados no ISTA estão espalhados
pelo Brasil e exterior, como discípulos e discípulas, missionários e
missionárias da Boa Nova, sobretudo em áreas mais carentes, onde a
vida consagrada se apresenta, muitas vezes, como a única esperança
dos deserdados da sociedade neoliberal excludente. A aventura de
ser cristão no contexto atual, testemunhando o amor de predileção
de Jesus Cristo aos mais pobres, torna a existência desafiadora e
carregada do mais profundo sentido. E é o que nossos ex-alunos e exalunas, no seio da Igreja ou da sociedade, vivenciam e experienciam
no seu dia a dia.
Nesse contexto, apresentamos, nesta edição, os desafios
à espiritualidade cristã hoje por nosso aluno de pós-graduação
Werbson Beltrame Pereira. O mundo atual marcado pela cultura pósmoderna, multiforme e fragmentada, de fato coloca o cristão frente
ao desafio de dar conta de sua fé de maneira convincente aos outros
e a si mesmo.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.5-7, jan./jul. 2012.
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EDITORIAL
Tal espiritualidade está profundamente relacionada com a
questão sobre a autocompreensão cristã, que Elton Vitoriano Ribeiro,
professor da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, trata em seu artigo,
destacando duas vertentes que se imbricam e se remetem uma à
outra: a antropologia e a hermenêutica.
Uma das formas concretas de fazer emergir a autocompreensão
cristã e a espiritualidade que a acompanha está na temática da
hermenêutica militante, que sempre nos coloca frente a frente com
os apelos éticos e cristãos do engajamento na causa dos pobres. Esse
é o escopo da contribuição de Frei Gilvander Moreira, professor do
ISTA, que, partindo da Bíblia, discorre sobre a necessária profecia na
vivência da fé cristã.
Já a ótica analítica do poder, tema que persegue o pensamento
de Foucault, que supera o mero conceito de luta de classes marxiano
e abre pistas para se pensar o poder e as relações de classe como um
feixe de multiplicidade de formas e focos de relação, se nos apresenta
como outro grande desafio para a vivência do cristianismo como a
expressão mais contundente de uma fé alicerçada na linha do poderserviço. Essa é a perspectiva do texto de Guaracy Araújo, professor de
filosofia da PUC Minas.
Concluindo este número da Revista, temos uma contribuição
bastante pertinente para a vivência da fé cristã: o luto como efeito
restaurador da fé. Trabalhar as perdas que todo ser humano sofre ao
longo de sua existência se torna um imperativo para quem acredita
que a vida se prolonga para depois da morte. Carlos Ribeiro Natali,
aluno de pós-graduação do ISTA, e Paulo Sérgio Carrara, professor do
ISTA, se unem para nos ajudar nessa tarefa.
Ainda temos duas resenhas, contribuindo com o itinerário
formativo de nossos alunos, abordando temas atuais e pertinentes
para o exercício da vida consagrada. A primeira é sobre o livro “O
Sofrimento Psíquico dos Presbíteros: Dor Institucional”, de William
Cesar Castilho Pereira. Depois que a vida dos presbíteros ficou mais
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exposta às contingências existenciais, com a despedida das armaduras
que os protegiam – a vestimenta, o distanciamento nas relações –
novas oportunidades de realização humana se lhes abriram, porém,
também novas dimensões de sofrimento e de angústia. O padre
standard que emergiu da concepção do seminário tridentino tinha seu
itinerário definido desde o princípio do exercício do seu ministério.
As múltiplas formas de ser padre criam uma nova situação: rica pela
quantidade de opções; angustiante pelo mesmo motivo. É o professor
Carrara que apresenta o livro de William Castilho, em que emerge
essa problemática dos padres, à luz de pesquisa e trabalho de campo
com os mesmos.
A segunda trata do livro “Ética da Esperança”, de Jurgen
Moltmann. É possível uma proposta de ética cristã num mundo que
se vê ameaçado de tantas maneiras, onde o tecido das relações
humanas se apresenta muito esgarçado? Há princípios gerais
que podem ser relidos na ótica cristã e servir como base para uma
sociedade eticamente fundamentada também para os não cristãos?
O professor de moral do ISTA, Amarildo José de Melo, é quem nos dá
a resenha dessa obra do grande teólogo contemporâneo.
Tenho certeza de que a leitura deste número da Horizonte
Teológico muito contribuirá para aguçar os espíritos de todos os que
se dedicam à reflexão teológica e à práxis cristã.
Pe. Manoel Godoy
Diretor Executivo do ISTA
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.5-7, jan./jul. 2012.
ARTIGOS
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE
CRISTÃ HOJE
Werbson Beltrame Pereira
Resumo
A pergunta à qual este artigo busca uma resposta é: quais
são os desafios que o mundo e a cultura pós-moderna apresentam
para a espiritualidade cristã, hoje? É possível a espiritualidade cristã
ainda hoje? Diante da análise da pós-modernidade é perceptível que
o homem vai se entregando aos prazeres e aos redutos solitários
almejando riquezas sempre crescentes em busca de uma satisfação
que parece não ter fim. É exigência do próprio ser cristão o re-propor
da questão sobre sua espiritualidade. Naturalmente, hoje em dia
muita coisa se tornou possível e, por isso mesmo, impossíveis se
tornaram outras. Em busca da resposta à pergunta aqui apresentada,
neste artigo se fará uma contextualização da pós-modernidade
e seus principais desafios à espiritualidade cristã; analisar-se-á a
secularização, o ateísmo, o narcisismo e a perda do mistério e suas
implicações sociais culturais, religiosas e antropológicas na vida do
ser humano, enxergando em seu horizonte o declinar da razão e o
retorno ao sagrado.
Palavras-chave: Pós-modernidade. Espiritualidade. Secularismo.
Ateísmo. Narcisismo.
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
1. Introdução
Os cristãos vivem hoje uma realidade marcada por grandes
mudanças que afetam profundamente sua vida. Sentindo-se
constantemente desafiados a discernir os sinais dos tempos, se
torna profundamente relevante, à luz da espiritualidade, aprofundar
em uma pergunta fundamental: quais são os desafios que o mundo
e a cultura pós-moderna apresentam à espiritualidade cristã, hoje?
Diante da profundidade e amplitude da pergunta, torna-se necessário
fazer uma análise da sociedade atual, dado que a pós-modernidade
não é fruto apenas de uma época, sendo mais o amadurecimento dos
esforços medievais em sua busca de libertação através principalmente
da re-visitação da cultura clássica grego-romana e dos esforços e
anseios pela novidade, ao mesmo tempo em que colhe os frutos ainda
imaturos de uma modernidade. É basilar para a espiritualidade cristã
saber como esses desafios afetam a vida, o sentido religioso e ético
de todos os que buscam sua dimensão mais profunda para encontrarse com Deus.
Em presença de tantos méritos e avanços, a pós-modernidade,
descortinando a grandiosidade do homem em suas diversas formas
de produção, faz emergir, de outro vértice, a constatação de que
a precariedade humana nunca foi tão exposta como em tempos
hodiernos. Concomitantemente a essa conturbada situação
ocorreram descobertas significativas que não só contribuíram para
um avanço técnico-científico e econômico como proporcionaram
uma ampliação dos horizontes humanos e uma mudança de postura
evidenciando a tomada de posse do sujeito que se projetou no centro
do Universo.
O ser humano se experimenta como nunca, “quer em sua
atividade exercida sobre o mundo, quer em sua reflexão teórica
objetivante, como alguém a quem está de antemão designado a
um lugar na história do mundo que o cerca e do mundo das relações
humanas” (RAHNER, 1989, p.58). O homem, assumindo sua finitude
histórica, vislumbra no horizonte a característica fundamental de sua
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essência: fazer experiência do seu condicionamento histórico, sobre
as dimensões de seu espaço e tempo. Denuncia-se de certo modo,
aos olhos da história, as falências que o projeto burguês, já no início
da modernidade, prometeu aos sonhos e desejos da racionalidade.
Conhecer tais pensamentos, desejos e construções lançará à
espiritualidade cristã a possibilidade de compreender o interior
imensurável da subjetividade humana e a proposta pós-moderna aos
homens e mulheres de hoje.
2. Um olhar sobre a pós-modernidade
As grandes crises da Idade Média pontuaram o fim do
feudalismo e forjaram um período novo, em que a criatividade
suplantou a ordem estabelecida e a ciência impulsionou descobertas
vertiginosas. Eis o advento da modernidade. Esse período inovador e
com ares de liberdade foi fruto de uma convergência de eventos, ideias
e personalidades que movimentaram toda a Europa numa complexa
relação sócio, cultural, religioso, científico e econômica expressada
nas grandes “revoluções” nestes campos concomitantemente, a
saber, o Renascimento, a Reforma e a Revolução Científica.
Diante dos olhos do ser humano moderno surge, nesse
complexo contexto, uma atitude nova diante do mundo e das ordens
estabelecidas, um ser humano novo e uma sociedade transformada pela
razão humana. “Nenhum domínio do conhecimento, da criatividade
ou da exploração parecia estar fora do alcance do homem” (TARNAS,
2002, p.246). Este afã criativo é o genitor da pós-modernidade que
arremessa os homens e mulheres de hoje, os quais se deixam, em
grande parte, ocultar o sentido espiritual de suas vidas, sem uma clara
percepção do mistério de Deus e seu desígnio amoroso. A realidade
traz inseparavelmente uma crise do sentido do ser cristão em pleno
século XXI. A “apatia e a insensibilidade emocional, o desleixo interior
e a indiferença” (FRANKL, 1991, p.38) são heranças estruturantes do
pensamento e da vivência do ser humano pós-moderno.
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
Quando o homem pós-moderno se defronta com sua
dimensão espiritual, em típica desconfiança herdada da modernidade,
encontra-se, expressa ou ocultamente, aquele horrível preconceito
segundo o qual somente os objetos das ciências, que trabalham
funcionalmente, são as verdadeiras e seguras realidades sobre as
quais é possível construir alguma coisa com seriedade, à medida que
tudo o mais sobre o que não se pode falar tão exatamente e com tanta
clareza “pertence ao âmbito dos sonhos e das opiniões gratuitas,
que fazemos bem deixando-as como são ou reprimindo-as, até que
estourem em um irracionalismo selvagem de emoções e agressões
sociais” (RAHNER, 1978, p.61).
Esse novo espírito afoito e aventureiro manifestou fortemente
o relativismo pós-moderno que rapidamente assumiu características
céticas, rasgando fendas profundas no construto humano, abrindo
espaço para as elaborações provindas do pensamento moderno que,
gradativamente, alçavam voos mais altos rumo à máxima liberdade
(adágio individualista), apatia e indiferença, traços que assinalam o
indivíduo pós-moderno.
3. Os principais desafios à espiritualidade
O ser humano em seu mundo, não apenas o exterior, mas
também o interior, tornou-se desmesurado e multiforme pelas
modernas ciências naturais, históricas e sociais e por todo o atual
modo de pensar e viver pós-moderno. Nenhum homem hoje consegue
harmonizar “todas as suas múltiplas experiências e os resultados de
todas as ciências e encaixá-los em um sistema perfeito” (RAHNER,
1978, p.35). A falta de equilíbrio diante de uma sociedade líquida1 que
traz consigo não pequenas dificuldades mostra que o ser humano,
“ao procurar penetrar mais fundo no interior de si mesmo, aparece
frequentemente mais incerto a seu próprio respeito” (GS 4). Ladeado
entre a esperança e a angústia, sobrepõe a imponência da inquietação
1 Esta ideia foi expressa recentemente por Zygmunt Bauman, em seu livro Modernidade
líquida, para caracterizar a fluidez ou não solidificação da sociedade pós-moderna
diante das forças tangenciais deformantes. No pensamento de Bauman, os fluidos não
fixam o espaço nem prendem o tempo, “os fluidos não atêm muito a qualquer forma e
estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-las” (BAUMAN, 2001, p.12).
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ao se interrogar acerca da volátil sociedade em que habita.
Diante dos imensuráveis desafios gestados pela pósmodernidade, a espiritualidade contemporânea sente-se atraída
a sondar, dentro de uma perspectiva antropológica espiritual, os
principais desafios a fim de perceber suas linhas predominantes
por trás das solicitações da cultura atual. Dentre os vários desafios
à espiritualidade cristã que caracterizam a pós-modernidade,
destacam-se: o secularismo; o ateísmo; o narcisismo e a perda do
mistério.
3.1. Secularização
Houve, e ainda há, uma tendência forte entre os sociólogos2
para sustentar que a nova cultura estaria secularizando a vida e seria
incompatível com a religião. A nova cultura seria a causadora da
decadência da fé, decadência das Igrejas cristãs e de sua espiritualidade.
Entretanto, é válido afirmar que “os sociólogos oferecem explicações
teóricas e fazem muitas pesquisas, que geralmente confirmam as
suas instituições – já que as perguntas são feitas de tal modo que
incluem a resposta desejada” (COMBLIN, 2003, p.13). Diferente do
pensamento de muitos sociólogos, “A pós-modernidade não se opõe
à religião. O que ela não aceita e contesta é toda forma ou tentativa
de interferência dessa última na coisa pública. A religião passa a ser
questão pessoal, reduzida a dimensão do âmbito privado, intimista.”
(OLIVEIRA, 2001, p.28).
Valendo-se da secularização, a pós-modernidade, reproduzindo
a mentalidade técnico-científica e extremando-a, passa a explicar
os fatos humanos e cósmicos sem nenhuma referência ao sagrado:
“querendo ver as realidades humanas e terrestres sem nenhuma
relação com Deus, a pós-modernidade termina fazendo que elas se
voltem contra o próprio ser humano” (OLIVEIRA, 2001, p.29).
No mundo pós-moderno, “na medida em que alarga o horizonte
intelectual do homem, verifica-se progressivamente a perda da função
2
Se, na Europa, há um fenômeno acentuado de secularização, este não pode ser
atribuído simplesmente à nova cultura, porque esta mesma cultura não produz efeitos
opostos em outras regiões e religiões, como no caso específico da América Latina.
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
da religião” (RUBIO, 2006, p.34). A supremacia da razão, anunciada
valentemente já nas bases da modernidade, sustentada e reelaborada
na pós-modernidade, proporciona ao homem a capacidade de
compreender seu mundo onde céu e inferno não são mais localizações
físicas e geométricas3. Devido à exaltação da secularização com base
no iluminismo, “neste período a espiritualidade se fez cada vez mais
ciência: impôs-se uma nova metodologia, correspondente à nova
mentalidade científica do tempo” (MONDONI, 2000, p.68). Em
passos longos, em um veloz caminhar, o homem foi deixando de lado
a imagem de um Deus irreal e, nesse sentido, Nietzsche4 tinha razão
ao anunciar a morte de deus.
Foi revelada em palcos bem iluminados pela razão a opinião
de que a secularização não nega a existência de Deus, mas sugere
que as pessoas passem a comportar-se sem nenhuma preocupação
com o sagrado. Gestada na sociedade pós-moderna, essa negação
é precisamente o construto social que se convencionou chamar de
indiferença religiosa. Essa marginalização de Deus (indiferença
religiosa), defendida audaciosamente pelo secularismo pós-moderno,
tenta deixar de lado os valores universais como a paz, a solidariedade,
a justiça e a liberdade, temas tão preciosos à espiritualidade cristã.
Numa era energizada em alta voltagem pela razão, a
espiritualidade cristã tornava-se uma estrutura metafísica cada vez
menos convincente ao homem pós-moderno. Em outras palavras,
a espiritualidade cristã tornou-se, diante do secularismo, uma base
menos segura sobre a qual se deve construir uma vida, com seus
3
Richard Tarnas, em seu livro A epopeia do pensamento ocidental, defende que,
depois de Newton, o panorama da modernidade estava completamente secularizado.
O materialismo mecanicista havia provado de modo impressionante sua força
explanatória e sua eficiência utilitária. Experiências e fatos que pareciam desafiar
princípios científicos aceitos – supostos milagres e curas pela fé, êxtases espirituais
e revelações religiosas, profecias, interpretações simbólicas de fenômenos naturais,
encontros com Deus ou o demônio – eram, cada vez mais, considerados efeitos da
loucura ou do charlatanismo, ou de ambos.
4 Para Nietzsche, as noções de ateísmo, culpabilidade e ressentimento estão
intimamente ligadas. Essa trilogia se torna uma associação que jamais deve ser
esquecida para se compreender uma das constantes essências da negação de Deus. Já
na modernidade “este tema da morte de Deus, vulgarizado ao extremo, já não ocupa
mais posição de destaque no pensamente ateu” (LACROIX, 1965, p.10).
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projetos, desejos e realizações. Para qualquer pessoa ponderada,
anuncia o secularismo: deixar-se conduzir por princípios espirituais
torna-se uma obscura noção primitiva. A metafísica e, praticamente,
tudo que seja implausível não podem ser uma crença convincente
para qualquer pessoa ponderada. O ser humano pós-moderno por
simples miopia, não enxergando a realidade conjuntural, insiste em
acreditar que
apenas os cosmos, as correlações empíricas e as causas tangíveis,
é que poderiam ser confirmados através de experimentos. Planos
teleológicos e causas espirituais não poderiam sujeitar-se a teses,
não poderiam ser sistematicamente isolados e, portanto, não
se poderia saber se existiam ou não. Era melhor tratar apenas
de categorias empiricamente comprováveis do que permitir que
princípios transcendentais, por mais nobre que fosse a sua abstração,
entrassem na discussão científica (TARNAS, 2002, p.330).
Andando por caminhos escuros e incertos, cada vez mais
distantes da espiritualidade, o homem atual se convenceu de que os
princípios transcendentais não poderiam ser mais corroborados do
que um conto de fadas, uma fantasia, uma obra mal elaborada da
infantilidade do ser humano. O secularismo germinou, na sociedade
pós-moderna, a ideia de que Deus é apenas uma combinação
de fantasia e projeção, não passando de um mito folclórico bem
sucedido. A indiferença metafísica e o descaso com o sagrado,
levados ao extremo, têm seu ponto de convergência em um segundo
desafio à espiritualidade contemporânea: o ateísmo; afinal, este
“surge especificamente da secularização do mundo contemporâneo”
(RAHNER, 1970, p.67). Em outras palavras, o ateísmo é fruto da
secularização elaborado por princípios e desejos mais ocultos e
escondidos do homem pós-moderno.
3.2. Ateísmo
O mundo se alargara imensuravelmente e, com ele, o espírito
humano foi assumindo novos padrões diante da sociedade cada
vez mais secularizada e distante das afirmações sobrenaturais. O
homem pós-moderno tem consciência muito viva de estar inserido
numa história que é edificada solidamente sobre bases inabaláveis
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
alicerçadas pelo próprio homem, enquanto que em épocas anteriores
“a história não parecia estar propriamente nas mãos do homem: era
dada pelo destino ou pela providência” (RUBIO, 2006, p.35). O homem
torna-se consciente de que a ele, e somente a ele, compete dirigir o
curso de sua vida e consolidar a própria história.
O ateísmo surge como cristalização dos desejos humanos por
liberdade, desejo gritante do homem de se afirmar como soberano
e senhor de sua própria vida, a tal ponto que tudo o que vem da
religiosidade, da espiritualidade, é por ele rechaçado como atrasado e
como sinônimo de aprisionamento; “a ideia de Deus é então encarada
como inútil e perigosa” (RAHNER, 1970, p.17). Essa visão é algo que
deve se evitar a todo custo em vista de uma libertação intelectual
racionalista e cientificista, tendo como meta a ser alcançada o
antropocentrismo perpétuo e duradouro.
Na consolidação de sua centralidade, identidade e imponência
diante da história, o ser humano avista em sua mitologia atual o não
espaço e o não lugar para Deus, que passa a ser considerado como
mera projeção da natureza interna e fruto dos desequilíbrios psíquicos
do ser humano. Assim o ateísmo anuncia: o amadurecimento humano
supõe a negação das fantasias intelectuais tediosas que afirmavam
a existência de Deus. Ecoa nas profundezas abismais dos corações
humanos a ideia de que Deus “é um assunto que absolutamente não
me interessa. Deus a mim não importa, a não ser na medida em que
os homens o inventaram, o que provocou belas obras de arte, belas
poesias” (LACROIX, 1965, p.11). Deus, neste sentido, se reduz a uma
crença humana, a qual se pode investigar mensurando as explicações
psicológicas, históricas ou sociológicas.
A dimensão da revelação divina na história, a Palavra de Deus,
o plano da salvação e o agir de Deus perderam sua força e credibilidade.
Para muitos, neste conturbado redemoinho secular, os ideais morais
ensinados por Jesus, fundamento de toda espiritualidade cristã,
foram totalmente deixados de lado ou relativamente permaneceram
apenas admiráveis como os de qualquer outro sistema ético social.
Este pulsar secular do ser humano pós-moderno faz correr em suas
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veias “o desejo de autonomia do homem a tal grau que constitui um
obstáculo a qualquer dependência de Deus” (GS, n.20). A liberdade,
a vontade de poder que a técnica hodierna deu ao ser humano, é
anunciadora do homem que tem o fim em si mesmo, autor de sua
própria história. Cada vez mais parece óbvio, diante do ateísmo, que
Jesus é um simples homem, embora bastante convincente.
A sociedade contemporânea busca a todo preço submeter
Deus apenas como um princípio de explicação, fazendo dele o
primeiro experimento no método analítico explicativo para considerálo meramente um objeto. Não restam dúvidas de que o deísmo
é realmente a pior negação de Deus. Com o emergir das ciências
modernas com seu método analítico indutivo, quaisquer aparentes
implicações religiosas devem “ser julgadas como extrapolações
poéticas, mas cientificamente injustificáveis, com as evidências
disponíveis” (TARNAS, 2002, p.332). O homem, convencendo-se
de sua própria construção esmerada na natureza material, deixa
escapar por entre os dedos a afirmação de sua própria personalidade
e autoimagem diante da negação da imagem de Deus. Sendo assim,
“o ateísmo deve ser considerado entre os fatos mais graves do tempo
atual e submetido a atento exame” (GS, n.19).
De posse desse novo complexo de considerações, é necessário
examinar cautelosamente as entrelinhas do ateísmo para descobrir
que o grito latente afirmativo do homem pós-moderno, que se diz
centro de todas as coisas, não se trata nada mais do que um profundo
narcisismo, negligenciado por tantos séculos.
A própria civilização atual não por si mesma, mas pelo fato de estar
muito ligada com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais
difícil o acesso a Deus. Sem dúvida, não estão imunes de culpa
todos aqueles que procuram voluntariamente expulsar Deus do seu
coração e evitar os problemas religiosos, não seguindo o ditame
da própria consciência; mas os próprios crentes, muitas vezes, têm
responsabilidade neste ponto. Com efeito, o ateísmo, considerado
no seu conjunto, não é um fenômeno originário; antes decorre de
várias causas, entre as quais se conta também a reação crítica contra
as religiões e, nalguns países, principalmente contra a religião cristã.
Pelo que, os crentes podem ter tido parte não pequena na gênese do
ateísmo, à medida que, pela negligência na educação da sua fé, ou
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da
sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam
do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião (GS, n.9).
3.3. Narcisismo
Buscando resgatar o que estava perdido, o ateu sente a
necessidade de ocultar sonoramente tudo aquilo que faz ecoar a
palavra “Deus”. Foi chegado o momento no qual não se podia mais
privar o homem de se olhar diante de um espelho guardado por
vários séculos. Diante de uma polarização tão extremada, surge um
profundo encantamento de sua própria imagem. No profundo pensar,
o ateu se desencanta com a imagem de Deus para encantar-se com
sua própria imagem. A espiritualidade contemporânea acompanhou a
gestação de mais um de seus grandes desafios: o narcisismo. Projetase o narcísico5 pós-moderno na sociedade em busca de respostas
imagéticas questionando a religião, os valores pregados por ela,
as tradições, entre outras coisas mais. Certos valores não são mais
preservados como importância, pois o que se busca é a felicidade a
todo custo, uma vez que:
O desejo de felicidade é o primeiro elemento desse referencial.
Entenda-se tal desejo como busca do prazer pessoal, sem nenhuma
relação com a solidariedade e a partilha. É o querer ter momentos
de autossatisfação, momentos prazerosos, mas sem nenhum
compromisso, especialmente com os outros e as outras (OLIVEIRA,
2001, p.23).
5
Quando falamos em narcisismo, estamos nos referindo ao mito grego segundo o
qual Narciso, depois de rejeitar tantos quantos tentassem aproximar-se sensualmente
dele, acaba por apaixonar-se pela própria imagem refletida em um lago cristalino.
Esse mito descreve um jovem tão vaidoso que não é capaz de amar a ninguém além
de si mesmo. Desse exagero da vaidade é que surge, na psicologia, o termo narcisismo, próprio para designar um jeito de ser cuja característica principal é um exagerado
apreço pela própria imagem, a exemplo de Narciso. Freud em 1914 escreveu um texto
sobre o narcisismo equiparando o narcisista a um louco que, numa radicalização,
nega a realidade que não se acomoda ao seu próprio mundo de desejos. Cria então
uma realidade própria radicalmente subjetiva que lhe permite entrar em contato com
as coisas. Até mesmo Freud, em suas pesquisas sobre o narcisista, “ficou muito insatisfeito com o resultado e escreveu a Abraham: o narcísico teve um parto difícil e traz
todas as marcas de uma deformação correspondente” (FREUD, 2006, p.78).
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O maior valor para o narcísico pós-moderno é sentir-se bem,
sentir-se em harmonia com o próprio corpo, com a mente, com os
outros, com o mundo, e principalmente com sua própria imagem,
resguardando o falso sentimento de participar emocionalmente
da vida dos outros, sentindo-se feliz. Nesse sentido, a felicidade é
o valor absoluto, mesmo que seja uma felicidade profundamente
individualista e egoísta com “suas” imagens irreais. Para o narcisista,
moral é aquilo que me faz feliz, me dá prazer, mesmo que isso
signifique morte ou miséria para as outras pessoas. É característico
no comportamento narcisista o “maquiar” os relacionamentos,
os sentimentos e a realidade. Raramente o narcisista consegue ter
contato com a realidade. Diante da sociedade o outro é visto como
mero objeto manipulável ao seu prazer. Agindo de forma superficial,
raramente o narcísico consegue ter contato com seu interior,
dimensão tão cara para a espiritualidade cristã.
Lastimavelmente, a existência do ser humano pós-moderno
está pautada na aparência, na imagem de si, na representação
elogiada de si. Prática similar aos fariseus6 na época de Jesus e que
hoje se revigora como um grande desafio à espiritualidade cristã pósmoderna. De forma muito sutil, o próprio cristão pode fingir possuir
os valores do espírito, da piedade e da virtude. Nesse caso, a pessoa
mantém “aparência de piedade, mas nega a sua força interior”
(cf. 2Tm 3,5). É crescente a falta de caridade com o próximo em
uma sociedade de cristãos que tende a reduzir as pessoas a meros
admiradores, vendo-as apenas em função de sua própria imagem, e
olhando-as a partir de sua imaculada aparência.
O mais profundo da ruptura com a modernidade foi, e ainda
é, a afirmação do corpo contra a mente, do reino do corpo contra o
reino das ideias, das abstrações, das teorias. O deus contemporâneo
é corporal. “O novo deus é um deus que goza da sua corporeidade,
6O
apóstolo Paulo, falando de certos ritos e prescrições exteriores tão caras aos fariseus, avisa que muitos “têm na verdade aparência de sabedoria pela religiosidade
afetada, pela humildade e mortificação do corpo, mas não têm valor algum senão para
satisfação da carne” (Col 2,23). A espiritualidade cristã é exaltada quando se vê “uma
ação, ainda que pequenina feita às escondidas e sem desejo de que seja conhecida,
que mil outras realizadas com o desejo de que sejam vistas pelos homens”, diz São
João da Cruz.
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
serve como modelo para todos, porque todos aspiram integrar-se a
ele” (COMBLIN, 2003, p.37). Diante desse endeusamento do corpo, o
que está em voga não diz respeito unicamente à corporeidade. O que
se revela aos olhos do desejo pós-moderno é a inversão daquilo que
a modernidade pretendia: se os homens modernos desejavam ser
independentes, racionais e aparecer como adultos (mesmo que para
isso fosse preciso negar a figura do pai repressor – Deus), por outro
lado, os contemporâneos querem ser jovens que nunca chegaram
a ser adultos, rejeitando a realidade e as próprias condições físicas,
biológicas e psíquicas.
Olhando-se no espelho, o narcísico pós-moderno se sente
atraído pelas práticas surgidas nas expressões religiosas atuais,
nas quais as atividades corporais atingem a sua maior perfeição,
relacionadas com práticas de autoajuda, exercícios físicos ou mentais,
recurso às receitas das antigas meditações orientais, fascinando-se
pela magia7, entre outras coisas mais. Tudo isso visando ao prazer
emocional, à satisfação corporal, ao bem-estar, à paz, à tranquilidade.
Tudo no âmbito pessoal e não mais comunitário. A conjugação do
verbo na terceira pessoa não faz mais sentido para o homem pósmoderno. Enxerga-se na pós-modernidade narcísica uma geração
mais interessada em viver da melhor forma possível o momento
presente do que em projetar e preparar o futuro: é uma now generation
(geração do agora). Após dezenove séculos, assistimos agora a
uma redescoberta do carpe diem horaciano. Como consequência
natural desse fenômeno, temos o aumento do consumismo e uma
substancial ignorância do sentido do mistério que pervade a vida
(CENCINI, 1999b, p.8).
O narcísico, mesmo inconscientemente, lança-se em um
precipício imensurável de dor e angústia, perdendo o sentido mais
7
No pensamento contemporâneo, a magia desperta muito interesse e a linguagem
mitológica tem muito mais força do que a ciência (contrária ao pensamento moderno).
Não é de se assustar a grande aceitação dos escritos de Paulo Coelho e sobre Harry
Potter. O homem pós-moderno, nessas literaturas, é representado em um mundo
sobrenatural e que sempre diante de um sofrimento e dificuldade tem a certeza da
felicidade sem muito esforço e sem nenhuma prática ascética. Tudo é muito fácil,
pois sempre conta com uma intervenção externa, sempre é assistido por forças
sobrenaturais.
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estrito da palavra mistério, em seus desdobramentos, significados
e relações. Nunca se tentou firmar as bases de uma sociedade
tão superficial e sem sentido de vida. A superficialidade se impõe
com muita frieza e sutileza sobre a profundidade do mistério tão
necessário e caro à espiritualidade. A espiritualidade cristã anuncia
que, na medida em que uma pessoa se fecha ao mistério, não poderá
sequer descobrir o comprimento e a largura, a profundidade e a altura
(cf. Ef 3,18) da própria vida, ela sequer terá “coragem para conhecer
a si mesma em seus aspectos positivos e negativos, de descer aos
infernos do próprio eu e, ao mesmo tempo, tender para aquilo que a
transcende” (CENCINI, 1999b, p.8).
3.4. A perda do mistério
Analisando o ser humano atual, é palpável uma sensação
muito nítida: o homem diante do secularismo, ateísmo, narcisismo,
infelizmente perdeu, ou está progressivamente perdendo, o senso
do mistério. Não é espontâneo ao homem pós-moderno admitir o
encantamento com a natureza, com as pessoas e com Deus. Tudo
passou a ser considerado como simples e mero objeto, friamente
relacionado, manipulado e calculado, sujeito ao método analítico
sistemático.
Consequente à perda do mistério, na pós-modernidade se
estrutura a incapacidade de estabelecer relações com a totalidade
do objeto, isto é, com o eu, com o tu, com a vida, “com todas as
realidades enfim que estão embebidas de mistério” (CENCINI, 1999b,
p.11). O ser humano, ao negar a dimensão do mistério, tão cara à sua
espiritualidade, conscientemente ou não, contenta-se com o mero
prazer do superficial, do imediato e da liquidez, em que o que “está
acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação
dos poderes de derretimento da modernidade” (BAUMAN, 2001,
p.13). O homem hodierno, infelizmente, contenta-se com aquilo que
é fácil e imediatamente decifrável por simplesmente ser evidente.
A perda do mistério na vida do homem pós-moderno faz este
ser redutivo e superficial consigo mesmo, com os outros e com Deus.
A apatia diante do mistério gera no ser humano pós-moderno uma
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
enclaustração em si mesmo, em que este não reconhece sua identidade
refletida no espelho criado por ele mesmo. Distante da compreensão
do homem pós-moderno está o reconhecimento da possibilidade
de amar e deixar ser amado pelos outros. “É difícil reconhecer, em
tanto atos de bondade de que fomos objeto, a mediação humana
e providencial do amor de Deus! Essa ingratidão é um componente
daquele narcisismo que hoje impera” (CENCINI, 1999a, p.76).
O não se abrir para o mistério revela com certa constância “um
medíocre, que não conhece os grandes entusiasmos e as grandes
paixões, pois fica alheio aos conflitos e às oposições dilacerantes”
(CENCINI, 1999b, p.11). Revela um homem fragilizado por sua própria
ousadia de querer ter controle de tudo a seu próprio tempo. Vive-se
em uma sociedade padecente de grandes projetos, uma vez que os
mesmos necessitam de empenho, tempo e entusiasmo.
O vazio gestado pelo secularismo em suas cores obscuras
e cinzentas deixou cansada a vista do ser humano hodierno, ao
ponto de este perder o encantamento e a paixão por si mesmo. O
não encantar-se consigo mesmo gesta coletivamente, na sociedade
contemporânea, um projetar de desânimo em massa que a todo o
momento anuncia que não vale mais à pena confiar no próprio humano.
“Agitados entre a esperança e a angústia, sentem-se oprimidos pela
inquietação” (GS, n.4).
Jamais o pensamento iluminista com seus cálculos e
geometria conseguiu mensurar e prever que a ausência e a morte
do mistério fazem morrer também no interior humano a dimensão
criativa de sua própria vida, condição existencial do ser humano. Tudo
se transforma numa monótona sucessão mecânica, automática,
tudo fica pronto para o uso e para o consumo. A falta de sentido na
vida do ser humano atual não só destrói o sentido do mundo e suas
categorias significativas como proclama igualmente o consequente
desvirtuamento do ser humano, que se encontra agora caído na mais
angustiante desintegração, sem referências norteadoras e sem um
ponto de unidade e de ordem. O ser humano se enxerga envolvido
numa emaranhada rede de momentos e instantes sem uma linha
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mestra que o conduza a um corpo comum.
É difícil ao ser humano contemporâneo a possibilidade de
sustentação em suas buscas que lhe capacite para uma existência
comprometida com a realidade atual em sua totalidade. É justamente
essa situação de desagregação da existência humana, entregue ao
acaso momentâneo, que caracteriza o desvirtuamento do homem
pós-moderno. O extremo suspeitar do homem pós-moderno diante
de todas as coisas o impediu de suspeitar de si mesmo, não se
encontrando com o essencial de toda pergunta, o mistério.
O contrário do mistério e da abertura ao mistério é, por um lado, a
presunção de saber, presunção que é, em parte, suficiência, e em
parte, inconsciência; por outro lado, é a sensação, um tanto fatalista
e nihilista, de não poder conhecer o mistério do próprio eu, e muito
menos, o mistério que nos cerca e nos envolve (CENCINI, 1999c,
p.10).
O fechamento ao mistério conduz o homem pós-moderno
à não integração pessoal. Suas relações são meramente objetivas,
imediatas, voltadas para a fluidez, afastando-se de si mesmo, e não
entrando nunca em contato com aquela parte do eu que não pode ser
evocada senão pela integração total com a realidade.
O homem pós moderno, “ao procurar penetrar mais fundo
no interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a
seu próprio respeito” (GS 4). Em outras palavras, o mistério perdido
parcializa e empobrece a relação que o sujeito estabelece consigo
mesmo, com o outro e com Deus, instaurando e legitimando ainda
mais o individualismo crescente em uma sociedade tão padecente de
proximidade e afetos.
4. O declinar da razão e o retorno ao sagrado
Há duas maneiras de enxergar os desafios que desse fato
emergem: o fechamento, caminho simplista e imaturo ou a abertura,
assumindo o desafio do evangelho, mediante o questionamento de
como, onde e quando se pode anunciá-lo na nova situação cultural,
numa sociedade conduzida por um novo sistema de valores que está
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
substituindo a cristandade de outrora. Assim, torna-se evidente o
desafio de se questionar: “[...] já que a Igreja perdeu espaço na nova
cultura, como pode reconquistar este espaço, recuperar o prestígio
perdido e a audiência que teve durante tantos séculos?” (COMBLIN,
2003, p.36). Quaisquer que sejam as respostas a essas perguntas (um
tanto sutis), pode, em todo o caso o “[...] homem na graça, como em
habitat próprio da oração, onde quer que esteja, falar com Deus, dirigirse a ele, chegar a ele com a sua interpelação se é que verdadeiramente
reza e não tenta esconjuros mágicos, que pretendam subordinar Deus
a nós” (RAHNER, 1978, p.64).
Esses desafios e questionamentos proporcionam, distanciam
no horizonte, respostas prontas e satisfatórias; no entanto, a
espiritualidade atual conquistou valores, temas e orientações novas,
suscetíveis antes ou depois de uma síntese orgânica. A espiritualidade
atual imersa em uma insegurança dominante encontra coragem
e vigor no florescer da busca pelo sagrado, instaurada pelo próprio
homem pós-moderno. Há, na pós-modernidade, um retorno ao
sagrado, diante do desmoronamento do edifício otimista, no qual a
racionalidade moderna construiu suas bases e estruturas.
É justamente diante da “plasticidade e da mudança constante
da realidade e do conhecimento” (TARNAS, 2002, p.422) que o homem
pós-moderno reclama por uma dimensão profunda de sua existência,
negada e rejeitado por longos tempos. O renovado interesse espiritual
brota de profundas exigências de autenticidade, de interioridade e
de real liberdade, aos quais não satisfaz a sociedade contemporânea
multifacetada em todos os sentidos. As promessas iluministas e
calculistas das ciências, em vez de oferecer ao ser humano um mundo,
um ambiente em que este pudesse morar e conviver procurando o
bem comum, trouxeram-lhe, entre outras coisas, o critério da disputa,
da competição, da massificação e da manipulação e coisificação das
pessoas; uma angustiante incomunicabilidade, um futuro incerto e
ameaçador, a atrofia dos sentimentos em um cristalizar dos sonhos
e dos grandes projetos. A constante e incisiva negação esconde, em
seu silêncio, o desejo do negligenciado.
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É preciso observar que esta ruptura nunca é completa, justamente
porque toda experiência é sempre culturalmente definida, inclusive
a religiosa. A experiência corresponde e, com isto, se ajusta a
uma situação global. Os próprios sinais de protesto, de ruptura
ou de retorno às fontes apresentam uma forma necessariamente
relacionada com uma problemática de conjunto. Em seu “desprezo”
ou em seu isolamento, o fiel continua dependendo do que combate
[...] (FIORES, GOFFI, 1989, p.343).
O próprio ser humano, em toda sua prepotência, percebeu
que já não era mais possível continuar pensando e vivendo segundo a
lógica natural, imaginando que sabe tudo, que tudo já está claro, que
tudo convence, que tudo pode ser explicado e mensurado a partir da
racionalidade como o sumo critério da vida, como esquema dentro
do qual todas as coisas devem se encaixar. Grande parte da sociedade
atual, diante da aridez pós-moderna, se encontra “cansada, por
assim dizer, da racionalidade” (RATZINGER, 2006, p.66, tradução
nossa). No fundo, o próprio homem, em sua busca de autonomia e
liberdade, descobriu que sua própria lógica racional calculista é, de
fato, redutiva, negando a liberdade humana, tornando a vida sem
sentido e obscura.
A insegurança instaurada e a constatação de tamanha
incapacidade e limitação despertam o ser humano pós-moderno
para o mais sublime de sua existência: a dimensão espiritual. Floresce
no limite da racionalidade do homem atual o sentimento de não
poder fazer tudo, e assim, “[...] no percurso do reconhecimento da
validade de quaisquer afirmações ou hipótese de verdade, um salto
de fé é um ingrediente inevitável” (HAUGHT, 2009, p.83). Mesmo
diante das circunstâncias não favoráveis, seja por cegueira, seja por
determinabilidade ou por culpa própria, o homem é convidado a olhar
sobre o seu rosto verdadeiro e único, real e divino, mesmo que esteja
destorcido pelas marcas profundas da racionalidade moderna. A face
humana de Jesus revela a face divina em contornos muito marcantes,
apontando a partir de si o caminho ao Pai invisível, inefável e
inominável. Os cristãos encontram Deus, sobretudo em Jesus Cristo.
O retornar ao sagrado aqui expressado diz respeito à:
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
[...] possibilidade da salvação de uma vida que parece desesperante.
Me refiro especialmente às formas de expressão e às sensibilidades
suficientemente diferenciadas frente à vida fracassada, frente a
patologias da sociedade, frente ao fracasso de uma concepção
de vida individual e frente a uma vida deformada em seu conjunto
(RATZINGER, 2006, p.41, tradução nossa).
Em tempos pós-modernos, depois de certas decepções,
aprendendo da história e através de um verdadeiro processo de
maturidade, deve-se reconhecer que a espiritualidade já não é mais
uma palavra infeliz. “Hoje é um horizonte pedido, um clamor que vem
de dentro, água vida da caminhada. Há uma autêntica e profunda
sede de espiritualidade [...]”. (CASALDÁLIGA, 1998, p.7). Caminhando
entre cálculos e mensurações, de repente até os mais otimistas viramse no meio de uma densa escuridão. Serenamente é anunciado que “a
sociedade ocidental do futuro não continuará pensando tal como os
que a precederam, assim como o adulto não fala nem pensa como
o fazia quando era criança” (LENAERS, 2010, p.12). A razão já não
mais consegue iluminar a vida e história do homem pós-moderno.
Consequentemente o mesmo percebeu que as
[...] inúmeras descobertas científicas ajudaram a melhorar a qualidade
de vida da humanidade, se bem que não igualitariamente, mas
pouco contribuíram para aprofundar o sentido de sua existência. A
euforia e a crença exageradas no poder do homem, paulatinamente,
deram lugar à frustração. Esse descontentamento, fruto de um vazio
interior, tem gerado, nos últimos tempos, a busca de respostas num
Ser Superior, no Absoluto, enfim, numa Luz que venha a iluminar e
vivificar os caminhos da história pessoal e coletiva. Hoje, mais que
ouvir falar de Deus, cresce o número de pessoas que desejam senti-lo
(CASTRO, 1998, p.12).
Deus, que por muito tempo foi colocado na esfera da razão,
transformado em átomos e fórmulas a serem memorizadas, passou a
ser objeto de desejo. Em todo caso, “compete a cada tempo apostar
em seu ensaio de dar resposta minimamente significativa a suas
interrogações precisas: só assim suscitará atitudes e promoverá
práxis que lhe ajudem nas urgências de seu respectivo momento”
(QUEIRUGA, 2006, p.5). Hoje como nunca, o ser humano busca a
Deus em um sentido profundo para sua vida a fim de dar horizonte e
alívio à sua própria existência desertificada por longos anos.
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Diante do declinar da humanidade sobre questões
fundamentais de sua existência, o retorno ao sagrado8, o retorno
à dimensão espiritual, é fundamental ao cristianismo repensar
profundamente sua forma de dialogar com as novas circunstâncias
apresentadas pela pós-modernidade, sendo capaz de encontrar-se
diante os desafios, não escudando-se em regras e moralismos; por
outro lado, a espiritualidade é convidada a se revitalizar deixandose iluminar pela força revigoradora encarnada e manifesta a toda
criatura: Jesus Cristo, plenitude de toda espiritualidade. Em Jesus
Cristo o ser humano pós-moderno vislumbra o horizonte de seu
desenvolvimento a uma aprendizagem que lhe possibilita hoje a
redescoberta do Caminho que o conduz a uma vida realizada e com
sentido.
5. Conclusão
Este artigo visou revelar que no interior da pós-modernidade
adormecem riquezas as quais, sendo bem exploradas, possibilitam à
espiritualidade cristã um novo dinamismo, um novo impulso. Diante
dos desafios pós-modernos, a espiritualidade deve dialogar, tendo
clareza de sua identidade, sabendo de sua responsabilidade diante
dos homens e mulheres que buscam em Deus o sentido último de
suas vidas. Por essas e outras razões, é fundamental na espiritualidade
cristã o permanente “aggiornamento”, essencialmente fundamentada
no amor a exemplo de Jesus Cristo. É necessária a espiritualidade
à abertura para um autoconhecimento a fim de contribuir com seu
verdadeiro serviço aos homens e mulheres de hoje que desejam “[...]
redescobrir a beleza e alegria de ser cristãos” (CELAM, DAp, n.14,
p.15).
8 Autores
como Frei Antônio Moser insistem em afirmar que não se deve criar uma
ilusão a respeito do retorno ao sagrado. Para ele, “o que mais cresce no momento
atual é o indiferentismo religioso, o qual já não conhece fronteiras nem sociais, nem
econômicas. Um sempre maior número de pessoas se torna religiosamente indiferente” (MOSER, 1996, p.26).
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OS DESAFIOS À ESPIRITUALIDADE CRISTÃ HOJE
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Werbson Beltrame Pereira. Graduado em filosofia pela Faculdade
Católica Salesiana de Vitória-Espírito Santo. Graduado em Teologia pelo
Instituto de Filosofia eTeologia da Arquidiocese de Vitória – Espírito Santo
e Especialista em Aconselhamento Pastoral e Orientação Espiritual pelo
Instituto Santo Tomás de Aquino – Belo Horizonte.
E-mail: [email protected]
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-29, jan./jul. 2012.
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ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E
HERMENÊUTICA
Elton Vitoriano Ribeiro
1. Introdução
A pergunta sobre quem é o ser humano se impõe a todos em
todos os tempos. Perguntar-se pelo que se é, é uma atitude irrecusável.
Neste perguntar-se, encontra-se também o cristão, isto é, aquele que
fez de sua vida um seguimento radical a Jesus, o Cristo. Mas aí surge
outra questão na esteira da primeira: o que é o ser humano a partir
da revelação cristã? O que é o ser humano em sua relação com Deus
Trino revelado em Cristo? O que somos à luz de Jesus Cristo revelador
de Deus?
Para a autocompreensão cristã, conforme a Encíclica Gaudium
et Spes, “Cristo, ao revelar o mistério do Pai e de seu amor, desvela
também plenamente o homem ao homem e lhe faz conhecer sua
altíssima vocação” (CONCÍLIO VATICANO II, 1968, p.22). Mas qual é
esta vocação humana revelada pelo Cristo? O que ela tem a dizer sobre
o ser humano em geral, e não apenas sobre os cristãos? Qual a sua
relevância para a vivência dos homens e mulheres contemporâneos?
Estas são algumas das indagações que a reflexão antropológica, na
sua vertente teológica, quer nos ajudar a elucidar. Elucidação que se
dá a partir de e com as Sagradas Escrituras, lidas em Igreja, no mundo
histórico.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012.
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ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA
2. Surgimento da antropologia teológica
A antropologia teológica, assim como a entendemos
atualmente, é uma disciplina recente (LADARIA, 1998, p.11-16).
Podemos, de certa forma, datar seu surgimento no período pósVaticano II. Nesse período, houve um resgate e reagrupamento de
vários tratados da teologia com intenção de compor uma reflexão
acerca do ser humano em sua totalidade. Evidentemente, esta
preocupação com o ser humano sempre esteve presente no discurso
teológico. Temas como criação, graça, pecado original, destino final
do ser humano, revelam a presença do ser humano no horizonte
reflexivo da teologia. Desde a patrística, especialmente com as
reflexões de Santo Agostinho, passando pelo pensamento escolástico
de Santo Tomás de Aquino, até os primeiros tratados de Antropologia
Teológica do período pós Vaticano II, o ser humano esteve mais ou
menos tematizado, presente na reflexão teológica. Mas só com
uma especial abordagem acerca da necessidade de uma nova e
criativa articulação entre cristologia e antropologia que a questão
da antropologia teológica ganhou relevância no quadro dos temas
teológicos a serem refletidos.
Na tentativa, necessária e urgente, de conciliar a fé cristã com
o pensamento moderno, o Concílio Vaticano II construiu uma reflexão
que levou em consideração toda a questão antropológica e sua
relevância naquele momento. Quer dizer, houve uma preocupação
em dialogar com o pensamento moderno de cunho, eminentemente,
antropocêntrico que se revelou, paradigmaticamente resumido,
na questão antropológica fundamental apresentada por Kant:
o que é o homem? É sob esse signo que vai caminhar todo o
pensamento moderno. É sob esse signo que a teologia encontrará
um ponto de diálogo com a modernidade. Só assim a teologia terá,
verdadeiramente, palavras que façam sentido para o ser humano
moderno.
Historicamente a teologia católica fechou-se às novas
descobertas antropológicas num primeiro momento. Toda uma série
de antropologias regionais (física, cultural, psicológica, etc...), que
exigiam cidadania no pensamento moderno, pareciam perigosas
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à teologia. Mas tais desafios levaram a teologia a colocar-se,
humildemente, à escuta do outro e em diálogo com as várias questões
levantadas pela modernidade. Neste contexto mais amplo de virada
antropocêntrica é que alguns teólogos católicos construíram um
discurso específico de antropologia teológica.
3. Atual contexto e o discurso cristão sobre o humano
O contexto atual no qual devemos pensar o discurso cristão
sobre o humano não é menos desafiante. O advento do pós-moderno
(LYOTARD, 1986; LIPOVETSKY, 1989; TAYLOR, 1991), a crítica radical
ao antropocentrismo moderno, o enfraquecimento das concepções
de Deus, de ser humano e de mundo; o fim das grandes narrativas, do
discurso único, propõem novos e desafiantes problemas à teologia.
É neste campo minado pelos mestres da suspeita Marx, Nietzsche e
Freud (RICOEUR, 1978, p.350-351), mas cheio de possibilidades, que
devemos pensar a teologia. Pensar uma palavra teológica que seja
relevante para o ser humano contemporâneo.
O enfraquecimento da concepção de Deus acontece num
momento de crítica à ontoteologia (Heidegger) e na busca de uma
abordagem linguística do real por meio de seus jogos de linguagem
(Wittgenstein). Contribuiu muito para isso o desmoronamento
da ideia clássica de Deus Todo Poderoso diante das inomináveis
tragédias ocorridas no século vinte (Auschwitz, Ruanda, Bósnia, para
lembrar algumas). As consequências desse enfraquecimento são
visíveis na redução da fé à moral, por exemplo, numa continuidade
epistemológica da reflexão de Kant em “A religião dentro dos limites
da pura razão”; na impossibilidade de conceitualização de Deus,
por exemplo no ressurgimento de um tipo de teologia negativa
(GIBELLINI, 1998, p.115-122); na substituição da transcendência
divina pela transcendência humana, como no pensamento de ComteSponville e Luc Ferry; e pela busca de um lugar no sentimento humano
para o encontro com Deus deixando de lado toda a reflexão teológica
que busca conciliar fé e razão.
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ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA
Também, o enfraquecimento do ser humano é um radical
questionamento de todo o antropocentrismo moderno. Esse
enfraquecimento conduz a um questionamento da noção de pessoa,
à substituição da noção de criatura pela noção de condição humana
(H. Arendt), à morte da memória e das utopias, à substituição da
vivência das virtudes pela busca desenfreada da felicidade, à ojeriza
e repulsa de todo tipo de culpa e pecado, a substituição da ética e da
política pela estética.
Finalmente, o enfraquecimento da concepção de mundo
conduziu à colonização do mundo pelos objetos da tecnociência que
levou a uma redução do mundo a um grande depósito de coisas, visto
como uma pátria desambientada e sem futuro.
Ora, neste contexto atual que se nos apresenta fica a questão
sempre pertinente de como pensar a antropologia teológica numa
época tão plural. Face à grande narrativa que sempre foi a teologia,
como pensá-la num mundo de narrativas parciais, de pensamento
fraco (Vattimo)? Ainda, como pensar a antropologia teológica desde
nossa situação latino-americana e, mais especificamente, brasileira?
Situação marcada profundamente por uma cultura mestiça e por uma
história longa e triste de injustiças?
4. diálogos da teologia com a contemporaneidade
Dois discursos teológicos de grande relevância nos ajudam a
refletir sobre a possibilidade e o método necessários à teologia para
um frutífero diálogo com o nosso tempo. Karl Rahner e Wolfhart
Pannenberg, cada um em seu tempo e a sua maneira, pensaram a
questão do discurso da antropologia teológica que, verdadeiramente,
fale aos homens e mulheres contemporâneos.
Karl Rahner (1972) tece uma reflexão sobre a antropologia
e a protologia no conjunto de sua teologia. Rahner, com seu
discurso teológico transcendental, se inscreve dentro da primeira
modernidade. Influenciado por Maréchal em sua obra Le point de
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depart de la metaphysique, 1944-1949, que buscou um diálogo do
tomismo com o kantismo e, na filosofia por Kant e Heidegger, Rahner
vai propor um novo ponto de partida para o desenvolvimento de uma
antropologia teológica (OLIVEIRA, 1984).
O ponto de partida de Rahner é a noção de existencial
sobrenatural. Para Rahner, o ser humano se encontra sempre no
existencial sobrenatural, ou seja, ele não pode prescindir do fato de
que sua autoconsciência, mesmo que de forma não necessariamente
tematizada, está interpelada pelo chamado de Deus à comunhão
com Ele. O ser humano é caracterizado por sua abertura para Deus,
quer dizer, o ser humano está desde sempre, em virtude de sua
estrutura antropológica, aberto à possível revelação e chamado
de Deus. Esta capacidade de conhecer a Deus é dom. Este dom,
que é a própria autocomunicação de Deus é graça, isto é, é relação
com o Absoluto. Autocomunicação que se dá historicamente, e
que historicamente se realizou em Cristo Jesus, o logos encarnado.
Portanto, o trabalho da antropologia teológica será o de tematizar
esta abertura transcendental do ser humano para o Absoluto, e sua
efetivação histórica em Jesus Cristo onde encontramos de maneira
fundamental e plena o que é e quem é o ser humano. Ou seja, é em
Cristo que a natureza humana foi conduzida definitivamente à sua
salvação absoluta.
Wolfhart Pannenberg (1972) busca uma fundamentação
cristológica para a antropologia cristã. Pannenberg possui um discurso
fortemente influenciado pelo pensamento filosófico de Hegel, assim
ele se encontra no que chamamos segunda modernidade. Desse
lugar ele vai construir um discurso teológico de cunho messiânico
histórico.
A perspectiva de Pannenberg (1993) é a de dar à antropologia
uma fundamentação cristológica. Elementos importantes dessa sua
reflexão são a dimensão de historicidade constitutiva do ser humano
e a abertura radical do ser humano para uma determinação que não
é dada, mas que será realizada historicamente. Esta abertura para
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ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA
uma determinação futura encontra seu novo, isto é, sua plenificação
em Jesus Cristo. Na vida de Cristo se revela a presença do Reino de
Deus, ele é autobasileia. Neste segundo Adão, neste homem novo
e definitivo, se dá a salvação de Deus. Salvação que consiste na
relação, isto é, na comunhão do ser humano com Deus, vale dizer,
numa espécie de participação na vida de Deus, por Cristo, no Espírito.
Assim, a presença do Reino de Deus, na aceitação de seu anúncio por
Cristo Jesus, é o ato de amor salvífico de Deus presente na vida do
humano. Esta salvação é dada como dom ao ser humano. Dom que
deve ser acolhido na liberdade. Liberdade que é dada historicamente
em Cristo Jesus, que nos libertou para a liberdade, para falar como
São Paulo. Ora, dom, amor, relação, não podem existir a não ser em
regime de liberdade. E é a esta liberdade fundamental que todos
somos chamados em Cristo Jesus. Liberdade que liberta para o amor,
para o dom, para a relação com Deus e com o outro.
5. Um novo ponto de partida
As reflexões de Rahner e Pannenberg nos ajudam a perceber
que o discurso teológico sobre o humano deve trabalhar em regime de
peregrinação. Quer dizer, sua tarefa de diálogo com o mundo nunca
deve se fixar em posições caducas e retrógradas. Caso isso ocorra,
corre-se o risco de tornar irrelevante para os homens e mulheres de seu
tempo a sempre nova e criativa mensagem de Deus sobre o humano.
Cabe, portanto, aos teólogos fazerem sempre e de maneira renovada
uma hermenêutica da palavra de Deus e da existência humana.
Parece-nos que numa situação de desconstrução das grandes
narrativas, de fragmentação do humano, de coexistência num
mesmo contexto cultural de elementos pré-modernos, modernos e
pós-modernos, exige-se uma nova abordagem que possibilite tornar
relevante o discurso teológico sobre o humano. Neste contexto atual,
parece-nos que a proposta de uma hermenêutica narrativa tem mais
a dizer e dá mais a pensar aos homens e mulheres de hoje (GEFFRÉ,
1989).
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6. A hermenêutica como proposta para um método em antropologia
teológica
Na incessante busca de falar para seus contemporâneos,
acreditamos que um possível caminho para a antropologia teológica
seja o de pensar seu método a partir da proposta hermenêutica de
Paul Ricoeur. Ricoeur propõe a hermenêutica como via longa para o
pensar. Essa via longa leva a pensar a interpretação como um processo
complexo que inclui tanto o momento da descrição das estruturas e
suas leis (a explicação), como o momento da apropriação do sentido
pelo sujeito (a compreensão), como fazendo parte de um único arco
hermenêutico. Arco hermenêutico que leva aquele que interpreta a,
através do encontro com o mundo do texto, configurar sua figuração
interior, re-orientando sua orientação a partir da afecção provocada
pelo texto. Quer dizer, os textos com os quais entramos em contato,
para falar como Ricoeur, os quais lemos, refletimos e amamos,
refazem nosso horizonte, vale dizer, nossa própria identidade
narrativa (RICOEUR, 1990).
É próprio da linguagem remeter a um além de si mesma.
Ela remete a um mundo da vida, mundo humano que é tecido pela
linguagem1. Por isso, para Ribeiro (2003), a exegese narrativa se
preocupa com, ao interpretar as narrações que compõem nosso
ethos originário, por exemplo, as narrativas bíblicas sobre a criação,
o problema da intriga. A intriga, segundo Lévinas (1998), é a relação
entre os termos onde um e outro não são unidos nem por uma síntese
do entendimento, nem pela relação do sujeito ao objeto e, no entanto,
um é imprescindível ou é significante para o outro, sendo que eles
estão ligados entre si sem que o saber possa esgotá-los ou desvelálos. Daí que a função hermenêutica será, propriamente, um tecer
uma intriga. Esse tecer é um configurar a ação humana e dar-lhe certa
inteligibilidade. Isso na medida mesma em que o ato configurante da
intriga coloca junto elementos díspares formando uma totalidade
significante de sentido.
1
Para Ricoeur há uma impossibilidade de acesso imediato ao que quer que seja.
Assim, toda experiência humana no mundo é mediada pela linguagem e só é acessível
através dela. Daí a preferência de Ricoeur pela chamada via longa da hermenêutica
em detrimento da via curta heideggeriana.
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ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA
Este diálogo entre as interfaces intrigantes, na temporalidade,
numa tradição, se dá na narratividade. Ora, narrar não é um ato
gratuito e ingênuo. No narrar encontramos algumas modalidades
pré-narrativas da ação que exigem, pela própria condição humana
que tem na linguagem um medium intransponível, serem conduzidas
à narrativa. Por exemplo, na memória das vítimas da injustiça a
narratividade refigura, no plano do agir, o acontecido, podendo
alterar o sujeito, em alguns casos, para uma verdadeira conversão
ética. Assim, Ricoeur (2002) vai propor uma poética da existência, vale
dizer, uma hermenêutica narrativa, em que o poético tem o caráter
de recriar a existência humana a partir da narratividade.
Ora, a antropologia teológica, ao adotar esse método,
tentará compreender o ser humano a partir das narrativas bíblicas.
Especialmente, pensar o ser humano a partir desta fonte inesgotável
de sentido que é o Evento Cristo (JUNGES, 2001, p.89-130; PALACIO,
2002, p.5-21). Mas, antes ainda, é necessário esclarecer o caráter
mimético da narração. Para Ricoeur, a narração é o resultado de
uma tríplice mímesis. Mímesis que é o próprio caráter de modelo das
formas narrativas, e que pode ser descrito como transmissão, como
confrontação e como descoberta de si.
Toda narração tem um pressuposto, uma pré-figuração
(Mímesis I). Quer dizer, toda história é enraizada num contexto que é
narrativo. Por exemplo, os evangelhos estão intimamente imbricados
no contexto das primeiras comunidades cristãs e na vida daqueles
homens e mulheres que aderiram ao Cristo Jesus, não isolados, mas
em Igreja, vale dizer, em comunidade, a comunidade dos com Jesus.
Portanto, está inscrita em toda narrativa uma pré-compreensão da
ação e da tradição narrativa onde esta ação é dita.
Toda narração possui um princípio, um meio e um fim, quer
dizer, toda narrativa tem uma configuração propriamente dita
(Mímesis II). Esta configuração não existe solta, absoluta, mas só ganha
pleno sentido se for compreendida como um momento intermediário
entre a pré-figuração anterior a ação e sua re-configuração posterior.
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É a dimensão refigurativa de toda narração (Mímesis III). Ela
marca a interseção entre o mundo do texto e o mundo do leitor ou
do ouvinte, mundo onde a narrativa ganha seu pleno sentido. Por
exemplo, apropriar-se da narração cristológica é ir-se configurando,
numa verdadeira fusão de horizontes, ao Cristo Jesus. Configuração
que, ao apresentar um modelo de humanidade, interpela nossa
própria humanidade. Diante da figura de Cristo, somos seduzidos,
afetados, atraídos, de forma a constituir nossa própria identidade,
narrativamente. Só assim o ser humano se compreende, só se
compreende ao narrar sua própria história2.
Portanto, a mímesis possui uma relação com a história em geral
(ao propor e dar sentido), uma relação com a ação (ao propor e gerar
ações), e uma relação com a identidade daquele que interpreta (ao
narrativamente influenciar nesta mesma identidade). Daí podermos
fazer-nos a seguinte pergunta antropológica: quem me torno quando
ajo com os outros em Cristo?
7. Conclusão: antropologia teológica e mistagogia
Construir uma reflexão em antropologia teológica como
descrevemos enquanto método exige uma perspectiva hermenêutica.
Perspectiva que, acreditamos, nos ajuda a não cairmos em um
dogmatismo estéril, nem em um fideísmo paralisante. Para uma
antropologia teológica que se quer hermenêutica, falar de Deus é
também falar do ser humano que fala de Deus (GEFFRÉ, 2001).
É um falar antropológico que deve manifestar a pertinência do
mistério cristão para a inteligência e a prática dos homens e mulheres
contemporâneos. Por isso, a antropologia teológica, na sua dimensão
de narratividade, será uma hermenêutica atualizante da palavra de
Deus e da existência humana.
2
Aqui entendemos, como Ricoeur, que o sujeito não é apenas constituído como
substância, como cogito (idem), mas é alguém que atua no drama de sua existência e
aí é também constituído (ipse), quer dizer, todo sujeito é sempre sujeito em relação,
que se constitui narrativamente.
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ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA
Portanto, a antropologia teológica, como a compreendemos,
é mistagogia3. Quer dizer, é fundamentalmente interpretar a narração
da experiência da misteriosa gratuidade de Deus na vida dos seres
humanos, como encontramos nos relatos bíblicos. Interpretação
que faz emergir um sentido, sentido que nos configura e que nos
convoca a uma práxis em favor dos outros como maneira privilegiada
de atualizar a experiência de fé. Experiência de fé que é vivida sob o
signo da adesão pessoal e comunitária ao Cristo Jesus. Experiência
que nos conduz ao Pai e que é guiada pelo Espírito. Experiência que
nos revela a misteriosa e profunda verdade de que somos filhos de
Deus e irmãos uns dos outros.
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A compreensão da antropologia teológica como mistagogia é um mergulhar na
dimensão mistérica da fé cristã, fé que é dinâmica e por isso sempre em processo
de interpretação da narração dos textos bíblicos. Fé que se vive e se celebra
numa comunidade eclesial, e que nos convoca, inexoravelmente, a uma prática
transformadora e libertadora (TABORDA, 2004, p.588-615; VÁZQUES MORO,
2001).
3
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Elton Vitoriano Ribeiro
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GIBELLINI, G. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998.
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ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E HERMENÊUTICA
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RICOEUR, P. Nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996.
Elton Vitoriano Ribeiro SJ, Jesuíta, Doutor em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Atualmente professor
na FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Autor do livro:
Reconhecimento ético e Virtudes. São Paulo: Loyola, 2012.
E-mail: [email protected]
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.31-42, jan./jul. 2012.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA:
“SE CALAREM A VOZ DOS
PROFETAS...”
Gilvander Luís Moreira
Palavra de Javé: consolai os aflitos e afligi os consolados!
Ninguém pode tocar o corpo dos escritos proféticos
sem sentir a batida do coração divino.
1. Para começo de conversa
A Bíblia, se interpretada com sensatez e a partir dos pobres,
nos educa para a vivência profética, o que passa necessariamente por
construir uma convivência humana e ecológica onde o bem comum
seja um princípio básico seguido.
Os grandes desafios da realidade social, eclesial e eclesiástica
para as pessoas cristãs que se engajam nas lutas sociais e na construção
de uma sociedade justa, solidária, ecumênica e sustentável – também
construção de uma igreja Povo de Deus – me fazem recordar também
os desafios de muitos profetas e profetisas da Bíblia e de suas
profecias.
Quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –
MST – realiza ações radicais – não extremistas, mas aquelas que, de
fato, vão à raiz dos problemas e, por isso, ferem o coração da idolatria
do capital –, o ódio dos poderosos despeja-se sobre os militantes
desse que é o maior movimento popular da América Afrolatíndia.
Isso faz acordar em mim profecias bíblicas, como as das parteiras do
Egito, dos profetas Elias, Amós, Miqueias e do galileu de Nazaré.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
Antes de passar a palavra às profetisas e aos profetas da Bíblia,
pergunto: Quantos de nós já nos dispusemos a fazer a experiência de
viver sob lonas pretas e gravetos – em condições similares aos animais
no meio do mato, ou em condições piores do que nas favelas? Quem
de nós já viveu à beira das estradas, em lugares ermos e remotos,
sujeitos aos ataques noturnos repentinos? Quantos já permaneceram
em um acampamento do MST por mais de um dia, observando o que
comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como
são suas condições de vida? Quantos já viram o desespero das mães
procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde
em fogo às 3 da madrugada, atacado por jagunços?
Sentindo-me na pele dos Sem Terra, convido você para visitar
algumas profecias bíblicas das parteiras, de Elias, Amós, Miqueias
e Jesus de Nazaré, na esperança de que possam iluminar nossas
consciências e aquecer nossos corações para discernirmos o que é
preciso fazer, como fazer e comprometermo-nos de fato com a causa
dos pobres que, com fé libertadora, lutam por direitos humanos, por
uma terra sem males.
1.1. Uma premissa básica: nosso Deus é transdescendente
Muitos perguntam: se Deus existe e é todo poderoso, por que
permite tanta dor, tanta violência e sofrimento no mundo? Deus é
sádico? Está sentado na arquibancada, de braços cruzados, vendo o
sangue do inocente verter na arena da vida? Deus não faz nada? Um
sábio, ao ouvir essas interpelações, respondeu: Deus fez e faz todos
nós para sermos no mundo expressão do Deus que é infinito amor. A
única força que Deus tem é o amor, que aparenta ser a realidade mais
frágil, mas é a mais poderosa do mundo. Só o amor constrói.
JESUS se tornou tão humano que acabou se divinizando. Pelo
seu relacionamento íntimo com o Pai, ao qual chamava de papai
(abbáh, em hebraico), Ele nos revela uma característica fundamental
que perpassa toda a experiência do povo de Deus da Bíblia: o Deus
comprometido com os pobres é um Deus transdescendente, não
apenas transcendente – sua transcendência se esconde na imanência,
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
Gilvander Luís Moreira
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o divino no humano. A partir do Êxodo, constatamos como Javé é um
Deus que ouve os clamores dos oprimidos e desce para libertá-los
(Ex 3,7-9). No início do Gênesis, o Espírito está nas águas, permeia
e perpassa tudo (Gn 1,2). Em Jesus de Nazaré, tendo “nascido de
mulher” (Gl 4,4), Deus se encarna, descendo e assumindo a condição
humana. No Apocalipse, Deus larga o céu, desce, arma sua tenda
entre nós e vem morar conosco definitivamente (Ap 21,1-3). Logo,
um movimento de transdescendência perpassa toda a Bíblia. Essa
característica se reflete em Jesus.
1.2. Profecia é sussurro de Deus
Os oráculos proféticos, normalmente, são introduzidos com
uma fórmula característica: “Assim disse Javé....” ou “Oráculo de Javé”
(Jr 9,22-23). A expressão “ne’m YAHWEH”, em hebraico, geralmente
traduzida por “oráculo de Javé” ou “Palavra de Javé”, significa
“sussurro, cochicho de Deus no ouvido do profeta ou da profetisa”.
Para entender um cochicho, um sussurro, é preciso fazer silêncio,
prestar muita atenção, estar em sintonia, ter proximidade, ser amiga/o.
Logo, Deus não falava claramente aos profetas, como nós, muitas
vezes, pensamos. Deus fala hoje para – e em – nós do mesmo modo
que falava aos profetas e às profetisas. Deus cochicha (sussurra) em
nossos ouvidos, sempre a partir da realidade do polo enfraquecido,
na trama complexa das relações e estruturas humanas.
Precisamos colocar nossos ouvidos e nosso coração pertinho
do coração dos violentados, para que nossas palavras possam refletir
algo da vontade do Deus da vida. Mais que fazer cursos de oratória,
precisamos de cursos de “escutatória”. Para ouvir os clamores mais
profundos dos empobrecidos, é necessário conviver com eles.
1.3. A força e a fraqueza da palavra profética
Intervenções proféticas que, no tempo do profeta (ou da
profetisa) devem ter provocado calafrios, e ter soado quase como
blasfemas, hoje podem parecer insossas a muitos leitores. Assim
palavras de grande profundidade humana podem passar despercebidas
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
para muitos cristãos. Se os profetas bíblicos ressuscitassem no nosso
meio hoje e atualizassem suas profecias, provavelmente suscitariam
mal-estar ou escândalo. Eis um exemplo: o profeta Amós, em pleno
século VIII a.C., fez a seguinte profecia:
Ide-vos a Betel pecar, em Guilgal pecai firme;
oferecei pela manhã os vossos sacrifícios
e no terceiro dia os vossos dízimos;
oferecei pães fermentados, pronunciai a ação de
graças,
anunciai dons voluntários,
pois é disso que gostais, israelitas
Oráculo de Javé (Am 4,4-5).
Este texto é quase incompreensível para as pessoas que
não sabem o que é Betel nem Guilgal, desconhecem a expressão
“oferecer sacrifícios” (só ouviram falar de “sacrificar-se”, “mortificarse”), desconhecem o que são os ázimos e os dons voluntários. Isso
nos revela a fraqueza da palavra profética. Mas atualizando a profecia
acima apresentada, poderemos, talvez, apresentá-la assim:
Ide pecar em Aparecida no Norte,
em Juazeiro do Padre Cícero pecai firme.
Assisti à missa todos os dias,
Oferecei vossas velas e oferendas.
Queimai o incenso da bajulação,
Ardam os incensórios,
Anunciai novenas,
Pois é disso que gostais, católicos.
Oráculo do Senhor.
Aqui notamos a força da mensagem, sua clareza, brevidade e
concisão. Também é patente a dureza e ironia com a qual se expressa.
Em Am 4,4-5 o profeta usa o gênero “instrução”, típico dos sacerdotes.
Assim Amós, usando o estilo de linguagem dos sacerdotes, critica-os
com uma ironia fina e os ridiculariza.
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O exemplo acima nos mostra a força e a fraqueza da palavra
profética. Fraca porque ficou aprisionada por uma linguagem, uma
história, uma cultura que não é a nossa. Forte porque resplandece
com todo vigor quando lhe arrancamos as “sujeiras” do tempo e
encontramos o seu sentido “em si” e a sua mensagem “para nós”.
Para entendermos bem o sentido “em si” de Am 4,4-5 devemos
estudar exegeticamente o texto. Para percebermos a veemência da
crítica do profeta Amós ao culto, explicitando assim a relação de Israel
com o culto, devemos considerar o seguinte:
• Os versículos 4 e 5 do capítulo quatro de Amós são uma
irônica exortação (seis verbos no imperativo) a caminhar
para os santuários de Betel e Galgala para multiplicar as
transgressões, mais do que para adorar Deus. O caráter
irônico dos versículos é sublinhado pela exortação para
oferecer um sacrifício cada manhã, e pior ainda, o dízimo
(= a décima parte) a cada três dias. Dt 14,28 e Dt 26,12 são
dois textos que regulam esta obrigação, estabelecem que
a décima parte deve ser paga a cada três anos. Portanto,
pedir para pagar a cada três dias o que deve ser pago a
cada três anos é, no mínimo, uma ironia sarcástica.
• Também a ação de graças com a oferta do pão fermentado
(v.5) contradiz formalmente o que é indicado em Ex
12,15.39; 13,7; Dt 16,3. Da celebração da Páscoa (Ex
13,3; 23,18; 34,25) até as pequenas “ofertas vegetais” (Lv
2,4.5.11), tudo deve ser feito sempre com pães ázimos,
e não com pão fermentado. Se comparar essa ironia
com Os 8,13, segundo a interpretação proposta por
alguns autores1, ela não se refere portanto a uma falsa
celebração da Páscoa somente. “Cada manhã” (v.4) não
deve ser traduzido por “na manhã”, como crítica de uma
celebração pascal que devia acontecer à tarde.
• Com relação às ofertas voluntárias, pode-se encontrar
um tratamento irônico no incitamento a proclamar e
fazer conhecê-las. Essas ofertas, justamente porque
1
SIMIAN-YOFRE, H. El desierto de los Dioses. Cordoba, 1992, p.86.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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voluntárias, não eram provavelmente reguladas por
específicas disposições2. As concessões sobre a imperfeita
qualidade da oferta voluntária, não permitida para outros
sacrifícios (Lv 22,23), nas regras mais amplas sobre o
tempo para consumir a oferta (Lv 7,16; 22,21), assim como
a menção delas no último lugar no resumo de Lv 23,3738, depois dos “sacrifícios para o fogo”, holocaustos,
oblações, vítimas, libações, dons e votos. Tudo sublinha o
caráter privado desses sacrifícios. Proclamar essas ofertas
destrói seu caráter e finalidade. Não parece que o anúncio
(retórico) do salmista dos sacrifícios que fará nem o da
proclamação das graças recebidas por Deus (Sl 66,15-16)
pode ser interpretado como justificação ou explicação do
relacionamento indicado em Am 4,5.
Vamos contemplar como agiram profetisas e profetas da Bíblia.
Isso poderá ser uma bússola na nossa missão na atualidade.
2. “Se calarem a voz dos profetas...”
2.1. No início, mulheres lutadoras
As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra os nomes
de duas: Séfora e Fuá (Ex 1,8-22) –, diante de um Ato ditatorial
(Medida Provisória = “Decreto Lei”) que mandava matar as crianças
do sexo masculino, se organizaram e fizeram greve e desobediência
civil-religiosa. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império
dos faraós. O Deus da vida quer respeito à dignidade humana e não
concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”,
diziam em seus corações Mulheres do “sistema de saúde” do Egito.
Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou
numeroso e muito poderoso.” (Ex 1,20), isto é, crescia em quantidade
e em qualidade. O Movimento das Mulheres campesinas, a Marcha
Mundial das Mulheres, as guerreiras de Dandara, o Movimento
2
Cf. as referências bastante gerais em 2Cr 31,14; Sl 68,10; 119,108 – no singular e
no sentido “profano”, ofertas voluntárias para a construção do templo, cf. Ex 35,29;
36,3.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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Feminista, todos são legítimos herdeiros do Movimento das parteiras
do Egito. O mesmo Deus que impulsionou as parteiras estava com
as mil Mulheres da Via Campesina que expuseram a farsa da Aracruz
Celulose em 08 de março de 2006.3 Ontem, lutavam contra o império
dos faraós; hoje, lutam contra o império das multinacionais.
2.2. Profeta Elias, intransigente defensor dos pequenos
Em meados do século IX a.C., o profeta Elias ferveu o sangue
de indignação quando ouviu e viu que o rei Acab, a primeira dama
Jezabel e latifundiários estavam reforçando a latifundiarização da
terra prometida pelo Deus da vida ao povo Sem Terra, filhos/as de
Abraão e Sara. A terra para o povo da Bíblia é herança de Deus, deve
ser passada de pai para filho para usufruto; jamais ser considerada
uma mercadoria. “Javé me livre de vender a herança de meus pais”
(IRs 21,3), respondeu Nabot, um pequeno agricultor, ao receber
uma proposta indecorosa do rei que desejava comprar seu sítio
para anexá-lo ao grande latifúndio que já tinha acumulado. O rei
Acab se irritou com a resistência de Nabot. Jezabel, rainha adepta
do ídolo Baal, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra
do sitiante. Caluniou, criminalizou e demonizou Nabot, que, com
o beneplácito do poder judiciário, foi condenado à pena de morte
na forma de apedrejamento. Morte que mata aos poucos. Hoje, o
“apedrejamento” aos empobrecidos acontece por meio de calúnias,
humilhações e, muitas vezes, com o veredicto da justiça. Mais de 6
milhões de indígenas e outros 6 milhões de negros já foram os Nabots
no Brasil. Com a cumplicidade da classe dominante e a omissão de
muitos, cerca de 30 mil jovens estão sendo exterminados no Brasil
anualmente, na guerra química, não declarada, do crack.
Mas a opressão dos pobres e o sangue dos mártires suscitam
profetas. O profeta Elias, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo
o pequeno sítio de Nabot, após tê-lo matado, em alto e bom som
profetizou: “Você matou, e ainda por cima está roubando? Por isso,
3
Cf. o vídeo-documentário Rompendo o silêncio: as mudas passaram a falar (Luta
das mulheres da Via Campesina destruindo um viveiro de Mudas da Aracruz Celulose
e povos indígenas do Espírito Santo lutando para resgatar suas terras invadidas pela
Aracruz).
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assim diz Javé (Deus solidário e libertador): No mesmo lugar em que os
cães lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair
sobre você a desgraça” (IRs 21,19.21). Acab desencadeou uma grande
perseguição ao profeta Elias, que fugiu, mas refez sua opção pelo Deus
da vida e continuou lutando ao descobrir que não estava sozinho na
luta. Outros 7 mil profetas conspiravam com ele e ao lado dele. Elias
inspirou Eliseu, que inspirou Jesus de Nazaré, que inspira milhões de
pessoas cristãs pelo mundo afora. Acab teve morte sofrida, parecida
com a do ditador Garrastazu Médici no Brasil.
2.3. Profeta Miqueias, um camponês que clama por justiça
Camponês de origem, o profeta Miqueias captou os sussurros
do Deus da vida no final do século VIII a.C., quando o território de
seu povo estava sendo devastado pelos assírios imperialistas. Para
Miqueias, a cobiça e as injustiças sociais deixam Deus possuído por
uma ira santa. “São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o
manto (como os Sem Terra e sem-casa, de hoje), vocês exigem a veste;
vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu povo
(como milhares de meninas que são empurradas para a prostituição
infanto-juvenil), e tiram dos filhos a liberdade que eu lhes tinha dado
para sempre (Miq 2,8-9).
Após se libertar das garras dos faraós no Egito e marchar
40 anos pelo deserto, o povo oprimido da Bíblia conquista a terra
prometida que estava em mãos de grileiros cananeus. Os territórios
foram sorteados fraternalmente, para que cada família tivesse o
seu lote. Fizeram reforma agrária. Mas, após alguns séculos, os
enriquecidos, pouco a pouco, foram invadindo cada vez mais campos
e territórios. Assim, multidões de sem-terra foram jogados na miséria
e impossibilitados de ter a sua parte na terra do povo de Deus.
Vindo da roça, Miqueias, ao chegar à capital Jerusalém, se
defronta com os enriquecidos – políticos profissionais e religiosos
funcionários do sagrado – e os acusa de roubar casas e campos para
se tornarem latifundiários. “Ai daqueles que, deitados em seus leitos
de marfim, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam
campos, e os roubam.” (Miq 2,1-2).
Miqueias mostra que a riqueza deles se baseia na miséria de
muitos e tem como alicerce a carne e o sangue do povo. “Essa gente
tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa
comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O
melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca
de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou:
agora é a ruína deles.” (Miq 7,3-4).
2.4. Profeta Amós, a luta contra a injustiça social
Provavelmente as composições mais antigas do livro do
profeta Amós (Am 1-6; 7-9) datam de meados do século VIII a.C.,
e surgiram como literatura de protesto e resistência. “O acento
principal da mensagem de Amós está na crítica social e no anúncio de
um juízo iminente de Deus na história, bem como na tênue, mas clara
exigência do restabelecimento da justiça como alicerce das relações
sociais”4.
Amós é um profeta precursor, radical, exemplar e
paradigmático. A profecia de Amós é, em certo modo, um divisor de
águas na história da profecia no sentido de que instaura um novo jeito
de ser profeta.
O livro de Amós está organizado em duas grandes unidades
literárias: I) Am 1-6: Palavras e II) Am 7-9: Visões.
2.4.1. Endurecimento ou perdão
Amós, em Am 4,4-135, reflete sobre culto, história,
endurecimento e perdão e nos ajuda a refletir sobre três aspectos
intimamente entrelaçados, fundamentais na ética profética sobre
4
REIMER, Haroldo. Amós – profeta de juízo e justiça. RIBLA, Petrópolis, v.35/36,
p.171, 2000.
5 Sugiro que antes de você continuar a leitura do texto, leia na Bíblia Am 4,4-13.
Assim você entenderá melhor a reflexão que se segue.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
a concepção de pecado em relação ao culto, à história e aos limites
de uma possível reconciliação com Deus. Diante do “pecou, pecou...
endureceu, endureceu...”, haverá castigo ou perdão? A conclusão
que se coloca na base e no fim do estudo de Am 4,4-13 é “Preparese Israel, para encontrar-se com seu Deus!” Trata-se de um anúncio
de punição in extremis diante da incapacidade de Israel de reagir, ou
de uma velada promessa de perdão? Ou existe outra interpretação
possível?
A declaração final de Javé ao ser humano que fecha a unidade
Am 4,4-13 constitui-se quase como uma nova revelação do Sinai, que
deve pôr fim ao conflito entre o ser humano e a divindade, em favor
do ser humano. As punições pedagógicas de Javé deixam lugar a um
esclarecimento que abre o coração do ser humano para que veja o
conjunto da sua história e reconheça o processo de endurecimento
de seu coração.
Am 4,4-13 evoca, portanto, uma situação em que há certa
semelhança com aquela do relato das pragas do Egito, mas não
é, obviamente, a recordação daqueles fatos. O discurso de Amós
menciona, talvez, um passado histórico não identificável nem pela
forma nem pelo conteúdo do texto. As pragas do tempo do Êxodo
feriam o Egito, não Israel, e de uma maneira diferente da relatada
em Amós 4. Além do mais, as tais “pragas” eram no mundo antigo
o resultado de situações críticas naturais ou políticas: a fome era o
resultado de toda estiagem prolongada e peste nas plantações, assim
como a morte dos jovens (v.10) é o efeito de toda ação militarista, no
mundo antigo e moderno.
Às pragas ou punições descritas se reúnem ainda a menção a
Sodoma e Gomorra. O discurso de Amós 4 quer, portanto, dar conta
de toda a antiga história de Israel, também de Israel patriarcal, para
aplicá-la a uma nova situação.
Um ponto particular de relação com o Êxodo é a presença do
refrão “mas não retornastes a mim”, que estrutura o texto de Amós 4,413. Assim, como no relato das pragas, o endurecimento do coração
do faraó é o motivo estruturante que faz aumentar as pragas.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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No relato do Êxodo, um primeiro grupo de textos, atribuídos
tradicionalmente à fonte javista (J), apresenta de fato o faraó como
responsável pelo seu próprio endurecimento, como havia predito
Deus.6 O outro grupo de textos (os chamados “heloístas”) atribuem a
obstinação ora ao faraó (Ex 9,35) ora a Deus mesmo (Ex 10,20.27). O
relato sacerdotal (P) o atribui habitualmente a Javé.
Esta diversidade de concepção no atribuir a responsabilidade
pelo pecado aparece também em outros textos fora do Êxodo,
com diferente vocabulário e problemática. Em 2Sm 24,1 Javé é o
responsável direto pelo pecado de Davi devido ao recenseamento;
segundo 1Cr 21,1 a responsabilidade é, ao invés, de Satanás. O verbo
hebraico usado é o mesmo: swt (= incitar, seduzir).
Tanto em Êxodo como em Am 4,4-13 se coloca um grande
problema exegético e teológico: É possível e legítimo que Deus
continue a aplicar punições que levam a um endurecimento sempre
crescente? Não se comporta Javé assim como o pai que exagera, com
sua punição, o seu filho e o força a se rebelar (cf. Ef 6,4)?
É necessário reconhecer que por trás dos textos de
endurecimento há o mistério da liberdade humana e “onipotência”
divina: amor infinito de Deus. Em relação a Deus, há uma consciência
profética de que as obras e a Palavra de Deus não podem permanecer
sem efeito (cf. Is 55,11), mas são sempre eficazes (diferente de
eficientes). Se não produzem imediatamente a conversão, devem
amadurecer o sujeito para um novo castigo, o que, em última análise,
não exclui a possibilidade de conversão.
Em relação ao “castigado” (?), há consciência do fato de que a
exortação à conversão, quando não ouvida, se torna uma condenação.
Isto é, nada mais, nada menos, que a dinâmica das relações
interpessoais. Quando duas pessoas se encontram e começam a se
conhecer, a relação pode progredir, parar ou eventualmente morrer.
Mas, enquanto existe, cada ação e reação levam ao crescimento
ou diminuição daquela relação. Todo ato (ou omissão) nas relações
6
Cf. Ex 7,14.22; 8,11.15.28; 9,7.34.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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interpessoais soma e cultiva a relação ou a empobrece descultivando-a.
Nenhum ato fica neutro.
De modo semelhante, na relação do ser humano com Deus,
cada ação que não melhora a relação, a piora, mas jamais a deixa
igual. Se não se aceita um convite à conversão, como uma oferta de
amizade, o recusa. E essa recusa tornará mais difícil que aconteça
um novo convite.7 Além disso, aceitar uma nova oferta de amizade
implicaria reconhecer o erro precedente, o que pode exigir um grau
maior de humildade.
Em relação aos profetas e profetisas, esse processo se explica
na medida em que os/as “intérpretes de Javé” sabem do paradoxo da
missão deles. Os profetas e profetisas sabem que a palavra profética
conduz às vezes à conversão de alguns poucos, mas na maioria das
vezes leva ao endurecimento de muitos. Os oráculos de condenação
no futuro, pronunciados com absoluta segurança, refletem a
consciência dos profetas de que a advertência seria inútil.
A consciência que os profetas e profetisas têm das três
realidades descritas acima se apresenta, de modo muito claro, em Is
6,9-11: “Então disse ele: Vai, e dize a este povo: Ouvis, de fato, e não
entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis. Engorda o coração
deste povo, e faze-lhe pesados os ouvidos, e fecha-lhe os olhos; para
que ele não veja com os seus olhos, e não ouça com os seus ouvidos,
nem entenda com o seu coração, nem se converta e seja sarado. Então
disse eu: Até quando Senhor? E respondeu: Até que sejam desoladas as
cidades e fiquem sem habitantes, e as casas sem moradores, e a terra
seja de todo assolada”.
2.4.2. Amós, conspirador e subversivo?
Em Am 7,14 Amós se recusa a ser considerado profeta segundo
a ótica de um sacerdote vassalo do poder político. Amós se define
como “vaqueiro” e cultivador de sicômoros. No v.15 Amós parece ser
7
Gato escaldado com água quente tem medo até de água fria, diz a sabedoria
popular.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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um pastor que cuida do rebanho miúdo (ovelhas e cabras), mas não
um vaqueiro. Em Am 7,10-17 não há a intenção primeira de descrever
pessoalmente a profissão do profeta, mas enfatiza o fato de que Amós
foi retirado da sua vida precedente, do seu mundo, das preocupações
domésticas para proclamar a Palavra de Deus.
Am 7,10-17 quer legitimar o conteúdo da profecia de Amós e
ajudar a comunidade a superar todos os preconceitos que possam
existir contra o profeta por causa da sua origem humilde, como se
fosse um “nordestino”, um sem-terra, um menor de rua, um portador
do vírus HIV etc. O relato de Am 7,10-17 quer nos dizer que a profecia
vem da margem, da periferia, do meio dos marginalizados e excluídos.
São esses, por excelência, os “intérpretes de Javé”.
Na Bíblia esse “gênero” é utilizado para descrever de maneira
diferente as vocações de Moisés, Gedeão, Eliseu, Saul. Mas uma
estreita relação se encontra em 2Sam 7,8. Natã transmite a Davi
a mensagem de Javé: “Eu te tirei das pastagens, pastoreavas as
ovelhas”. O elemento que caracteriza essas situações não é o fato de o
convocado pertencer a um grupo, mas, ao contrário, o fato de ele ser
um “de fora”, um excluído. Assim Am 7,14 quer exprimir a distância
de Amós das formas institucionais da profecia e dos profetas “da
corte”.
O relato do confronto entre o sacerdote Amasias e Amós (com
a implicada presença do rei) oferece a justificação da decisão de Javé.
O povo não somente não ouviu as diversas palavras transmitidas
por Amós, mas decidiu silenciá-lo, expulsando-o para sua terra. Já
não há nada mais a esperar senão o fim definitivo, e diante disso
resta somente a lamentação. O profeta anuncia a necessidade de
conversão; pede perdão a Deus pelo povo; pede para parar a punição.
O rei (e a monarquia) e o Templo expulsam o profeta, silenciando-o. O
povo sofrerá muito mais. Ai de um povo que não escuta seus profetas
e profetisas e, pior ainda, que os persegue, os expulsa e os silencia.
Am 7,10-17 revela a interpretação que setores da classe
dirigente tinham do conteúdo da profecia de Amós. Aos olhos da elite,
o profeta é um “conspirador”, interessado em “golpe de estado”. Para
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
Javé e o povo empobrecido, Amós é um profeta. Para a elite, ele é um
“subversivo”, um agitador.
2.4.3. Vacas de Basã são mulheres ou homens opressores?
Em Am 4,1-3 temos a seguinte profecia: “OUVI esta palavra,
vacas de Basã, que estais sobre monte de Samaria, que oprimis os fracos,
que esmagais os excluídos, que dizeis aos vossos senhores: ‘Trazei-nos
o que beber!’. O Senhor Javé jurou, pela sua santidade: sim, dias virão
sobre vós, em que vos carregarão com ganchos e a vossos descendentes
com arpões (de pesca). E saireis pelas brechas que cada uma tem diante
de si, e sereis empurradas em direção ao Hermon, oráculo de Javé”.
Segundo uma interpretação mais tradicional, Am 4,1-3 seria
uma investida do profeta Amós contra as mulheres ricas de Samaria,
designadas como “vacas de Basã”, mulheres de personagens
importantes, que ocupam o tempo em luxuosos banquetes e, ao
mesmo tempo, são responsáveis pela opressão e exploração dos
empobrecidos. A imagem de um banquete só de madames é, no
mínimo, algo curioso em uma sociedade reconhecidamente machista
e patriarcal, assim como atribuir às mulheres a responsabilidade pela
opressão e pela injustiça.
A região de Basã, como o Líbano e o Carmelo, é famosa pela
fertilidade do solo. A tristeza causada pela punição divina se manifesta
na debilidade do Líbano, do Basã, do Carmelo e do Saron (Is 33,9).
Ao contrário, a generosidade divina se expressa no nutrimento do
povo com a “manteiga das ovelhas e dos touros de Basã” (Dt 32,14). O
anúncio messiânico, com o qual se conclui o livro de Miqueias, inclui a
promessa de um pasto abundante “em Basã e em Galaad, como nos
dias antigos” (Miq 7,14). No ambiente de louvor do Sl 68, “Basã” são
os montes (v.16) que testemunham, junto com o Sinai e a natureza,
a grandeza das obras de Javé. Logo integrar “Basã” numa imagem
depreciativa é algo estranho ao uso corrente de “Basã” na Bíblia.
De “vaca de Basã” não se fala em nenhum outro lugar no
Primeiro Testamento da Bíblia. As montanhas de Basã são famosas
pelos seus touros, cabritos e carneiros (mas não vacas; cf. Dt 32,14).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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Por isso os touros de Basã podem ser imagens dos inimigos poderosos
(cf. Sl 22,13 e, sobretudo, Ez 39,18).
A expressão “vacas de Basã” adquire um sentido mais
verdadeiro dentro da cultura bíblica se o termo “vacas” não for
utilizado em relação a mulheres, mas a homens, aqueles que quiseram
ser como os touros de Basã, pela força deles, autoridade e dignidade
se tornaram “vacas”, com as conotações depreciativas que as formas
femininas podem ter no Primeiro Testamento.
Nesse contexto, os “seus senhores” (Am 4,1b, com sufixo
masculino) se referem provavelmente não aos “maridos”, como
propõem algumas traduções, um uso pelo qual não se tem nenhuma
outra ocorrência, mas refere-se a uma pessoa de mais autoridade
(política). “Senhor”, além do frequente uso como título divino, se
refere a Acab (2Rs 10,2.3.6), ao faraó (Gn 40,1), ao rei da Babilônia
(Jer 27,4), e em casos isolados a várias pessoas: “outros senhores...”
(Is 26,13).
A interpretação que propomos de “vacas de basã”, acima,
está em sintonia com a hipótese de que “vacas de basã” seja também
uma alusão às estátuas cultuadas. Logo, em Am 4,1-3 está uma forte
denúncia do poder opressor de um “senhor” com poder político de
dominação respaldado por uma legitimação religiosa.
2.4.4. Amós: “Restabeleçam a justiça!”
A profecia de Amós é “uma crítica veemente e contundente
aos agentes e mecanismos de exploração e opressão dos camponeses
empobrecidos sob o governo expansionista de Jeroboão II e sob as
condições de um incremento de relações de empréstimos e dívidas
entre pessoas do próprio povo no século VIII a.C.”8. Em outros termos,
o profeta Amós não apenas critica pessoas corruptas, mas questiona
também de modo muito forte o sistema gerador de pessoas corruptas.
Não somente as mazelas pessoais estão na mira do “camponês” que
entrou para a história como um grande profeta. Amós tem consciência
8
REIMER, Haroldo. Amós: profeta de juízo e justiça. RIBLA, Petrópolis, v.35/36,
p.188, 2000.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
de que o problema fundamental da injustiça reinante na sociedade
não é fruto somente de fraquezas pessoais, mas tem como causa
matriz estruturas sócio-econômico-político-culturais e religiosas que
engrenam uma máquina de moer pessoas. Na mira de Amós também
estão relações comerciais que causam endividamento, aprisionam
pessoas e escravizam, retirando a liberdade de ser pessoa humana.
Além das denúncias sociais, a profecia de Amós destacase com o anúncio de um juízo iminente de Javé na história do seu
povo. Amós inverte as expectativas quanto a um tão sonhado “dia de
Javé” (Am 5,18-20). Este não será mais uma “ideologia de segurança
político-religiosa” pelos fortes de Israel. A perversão da justiça para
os pobres, a opressão dos empobrecidos e a exploração das pessoas
mais enfraquecidas clamam pelo juízo divino. O “dia de Javé” será um
“dia mau” sobre os fortes de Israel, sobre o estado tributário, suas
instituições e seus agentes.9
Amós critica com coragem a “corrida armamentista” de Israel.
Ele anuncia que serão desmanteladas as forças militares dos estados
vizinhos (Am 1,5.8b.14b; 2,2b) e sobretudo de Israel (Am 2,13-16;
3,11b; 5,2-3; 6,13-14).
O profeta Amós denuncia duramente também as instituições
religiosas que estão justificando o processo de extorsão de tributos
da população camponesa (Am 4,4-5; 5,21-23). Pelo conluio com
a opressão econômica a religião oficial também será dizimada
(templos) e seus agentes (Am 5,27; 7,9; 9,1) “Odeiem o mal e amem
o bem: restabeleçam no portão a justiça!” (Am 5,15). “Aqui está a
exigência positiva por excelência na profecia de Amós. Os israelitas
são conclamados a reconstruir as relações sociais baseadas na justiça
e no direito (mishpat / sedaqah). Só assim será possível escapar do
juízo vindouro anunciado. O futuro de um “resto” passa pela prática
de Justiça”10. O juízo abre caminho para a justiça. A presença dos
9 A fé em um Deus que é infinito amor não coaduna com a existência de inferno como
um lugar de punição. No entanto, se não há algum tipo de inferno, os opressores ficarão sem nenhuma punição?
10 REIMER, Haroldo. Amós: profeta de juízo e justiça. RIBLA, Petrópolis, v.35/36,
p.189, 2000.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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profetas e profetisas no meio do povo deixa Javé livre de qualquer
responsabilidade diante da punição que o povo merece.
2.5. Profeta Oseias, o profeta das relações de amor e da antiidolatria religiosa
2.5.1. Chão histórico do livro de Oseias
A data provável da profecia de Oseias é 755 a 721 a.E.C. Trata-se
do final do reino do Norte, últimos anos do reinado de Jeroboão II até
o reinado de Oseias, filho de Ela. No primeiro capítulo de Oseias está
uma forte crítica contra a dinastia de Jeú. Os capítulos 2 e 3 refletem
certa prosperidade de produção e tranquilidade política, marcas do
reinado de Jeroboão II. Do capítulo 5 em diante, estão reflexos da
crise que se instaura em Israel, devido a pressões externas vindas do
Império Assírio. Com a chamada guerra siro-efraimita e a subjugação
de parte do território por Teglat-Falasar III (rei da Assíria), por volta
de 733 a.E.C., aumentam significativamente na Palestina o clima
de violência e a insegurança interna. Os capítulos finais de Oseias
testemunham os acontecimentos em torno do ano 724 a.E.C., data
do cerco à cidade de Samaria e da destruição do reino do Norte, com
o consequente exílio do povo para a Assíria, potência imperialista da
época.
2.5.2. Chaves que destrancam as profecias de Oseias
A profecia atribuída a Oseias é composta de catorze capítulos,
organizados em duas grandes unidades: 1a) Os 1-4; 2a) Os 5-14.
O capítulo 4 parece ser o grande elo das duas partes, pois faz uma
ligação entre o conteúdo de Os 1-3 e o de Os 5-14.
Para entendermos bem a profecia de Oseias, precisamos levar
em consideração as implicações dos gêneros literários presentes no
texto. Precisamos também não cair na armadilha da interpretação
simplesmente alegórica, com base em polarizações como Javé-Israel,
marido-mulher e fidelidade-infidelidade. Isso reduz tremendamente
a realidade gritante que lateja por trás do texto. Por isso, para
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
compreender bem as profecias de Oseias, é preciso levar no coração as
angústias das pessoas marginalizadas e excluídas e, particularmente,
o clamor das mulheres, que resistem, apesar de tudo, frente à violência
patriarcal e outras agressões dos mais diversos matizes.
Os primeiros quatro capítulos focalizam o âmbito da casa e
suas relações peculiares. Oseias, nos capítulos de 5 a 14, amplia o foco,
detendo-se no mo(vi)mento promovido em várias instâncias do Estado
monárquico (a corte do rei, seu exército, sacerdotes e funcionários).
Isso nos mostra que a profecia de Oseias vai do miúdo da vida para
o macro, do cotidiano para as questões globais, mas revelando a
interdependência e o entrelaçamento das várias dimensões da vida
humana e social. Oseias denuncia o poder opressor localizado nas
grandes instituições, mas também desvenda a microfísica do poder:
todas as relações interpessoais (sociais, etc) são permeadas de
relações de poder. O poder não está localizado somente nas grandes
instituições, mas está presente nas microrrelações. Estão permeadas
de poder as relações homem-mulher, adulto-criança, professoraestudante, governante-governados, branco-negro, sadio-doente...
O quarto capítulo de Oseias versa sobre o cotidiano da colheita,
com uma veemente crítica aos sacerdotes, já que eles representavam
o Estado monárquico. A idolatria justificava religiosamente as
estruturas e relações de opressão e exploração. A isso Oseias chamava
de prostituição e de adultério. Eram frequentes em Israel e afetavam
as relações entre mulheres e homens dentro de casa. Em Os 4,1-19
temos uma profecia que denuncia a macro-opressão realizada pelos
“sacerdotes”, e outra que põe o dedo na ferida da micro-opressão que
acontece nas relações interpessoais, particularmente entre homem
e mulher, entre adultos e crianças. O miúdo da vida (o cotidiano) e o
macro da vida são as duas pernas presentes na profecia de Oseias.
Elas se entrecruzam no texto.
Em particular, a profecia de Oseias revela para as pessoas o que
significa viver sob as guerras e alianças de Israel com o Império Assírio
(cf. Os 5,13; 7,11; 8,9), em um ir e vir sem rumo que foi corroendo as
forças da nação até chegar ao seu final (cf. Os 5,12; 7,9; 8,8). Isso sem
falar da violência que rasgou ventres de mulheres grávidas (cf. Os
14,1) e tirou a vida de crianças de peito (cf. Os 9,11-14).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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A biblista Tânia Mara, com fina sensibilidade e intuição
feminista, nos diz que em Oseias “movimentos de corpos prostituídos
abrem a profecia... movimentos de corpos em resistência atravessam
a profecia... movimentos de corpos transgressores desafiam a leitura
da profecia e proclamam novidades!”.11
Prostituição, em Oseias, não é uma questão sexual-moral,
mas uma questão de idolatria. Oseias não faz censura moral e
muito menos é moralista. Não se refere a pessoas individualmente
prostituídas, mas ao “país que foi prostituído”.
O livro de Oseias não qualifica Gomer como prostituta. Afirma,
ao contrário, que a “nação se prostituiu” (Os 1,2). Assim, a ênfase
recai sobre a nação, e não sobre Gomer. Muitas outras mulheres se
encontravam em situação parecida. Oseias 4,14 menciona que as
filhas se prostituíam e as noras praticavam adultério nos tempos da
colheita. Mas faz bem precisar que a prostituição em Oseias é “um
dado de realidade que atinge o corpo de homens, mulheres, crianças e
lhes expropria a vida. Mais do que isto, é fundamental identificar que
as crescentes críticas ao longo da profecia dirigem-se não às mulheres,
mas aos sacerdotes, aos reis e aos príncipes” (cf. Os 5,1-2.4...).
Segundo a profecia de Oseias, os sacerdotes são os grandes
culpados pela violência reinante. O povo percebe que os sacerdotes
haviam se transformado em assassinos e se comportavam como
bandidos em emboscada (Os 5,9). O povo percebe a ilusão que é
acreditar no Império Assírio como caminho de salvação (Os 14,4). O
povo cai na real e consegue ver que os reis e príncipes são insensatos,
mentirosos e se matam por disputas internas (cf. Os 7,1-7) e por
disputas políticas externas (cf. Os 5,1-15; 7,8-16; 8,8-14; 10,6-15).
Diante dessa dramática máfia religiosa e política, o povo, passando
por um processo sofrido de conversão, conclui, voltando-se para
o Deus Javé: “é em Ti que o órfão encontra misericórdia” (Os 14,4). A
hipocrisia e o cinismo dos sacerdotes na condução do culto fazem
o povo descobrir que o caminho para a libertação não passa pelos
�� SAMPAIO,
Tânia Mara Vieira. Oseias: uma outra profecia. RIBLA, Petrópolis,
v.35/36, p.157, 2000.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
sacrifícios, mas pela misericórdia. A conclusão é: “Misericórdia, sim;
sacrifício, não!” (Os 6,6).
A profecia de Oseias não tolera os pecados que estão
desfigurando o povo. Quando ouvimos a palavra “pecado” quase
automaticamente somos levados para o episódio bíblico da queda de
Adão e Eva. Assim, fazemos uma separação entre pecado e história
das sociedades. Pecado não é ofensa a Deus, sem ter nenhuma relação
com as relações humanas e históricas. Oseias ajuda-nos a perceber o
“pecado” como vindo das entranhas das relações históricas e, muitas
vezes, apoiado por funcionários das instituições religiosas.
Em Oseias transparece um Deus que é só Misericórdia. Oseias
é radicalmente contra não somente os sacrifícios, mas contra todo e
qualquer sacrificialismo. O desfecho da profecia de Oseias reconhece
Deus como sendo só misericórdia. “Misericórdia quero; sacrifício,
não.” (Os 6,6). Oseias ouviu os sussurros de Javé, que dizia: “Eu vou,
eu mesmo, persuadir o povo, conduzi-lo ao deserto e convencê-lo.” (Os
2,16).
Hoje, de forma disfarçada, a indústria do sacrificialismo e da
idolatria, denunciada com ira profética por Oseias, está funcionando
a todo vapor em realidades tais como o agronegócio, a mineração
depredadora, o neoliberalismo político e o fundamentalismo religioso.
Enfim, na idolatria do mercado e do capital.
2.6. Jesus de Nazaré, um profeta que se tornou Cristo
Jesus, o galileu de Nazaré, se tornou Cristo, filho de Deus.
Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na enxada e
na carpintaria, ao lado de seu pai José. Os evangelhos fazem questão
de dizer que Jesus nasceu em Belém (em hebraico, “casa do pão” para
todos), cidade pequena do interior. “És tu Belém a menor entre todas
as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o evangelho de Mateus
(Mt 2,6), resgatando a profecia de Miqueias (Miq 5,1).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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2.6.1. De forma radical, Jesus mostra como resolver o problema da
fome
A fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos
e cristãs, que os quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando
pães e saciando a fome do povo.12 É óbvio que não devemos historicizar
os relatos de partilha de pães como se tivessem acontecido tal como
descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta a setenta anos
depois. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as
primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original de
Jesus. Não podemos também restringir o sentido espiritual da partilha
dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome de pão se
saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização
do texto. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as agruras
da vida, é uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas
das partilhas de pães têm como finalidade inspirar solução radical
para um problema real e concreto: a fome de pão.
A beleza espiritual das narrativas de partilha de pães está no
processo seguido. Em uma série de passos articulados e entrelaçados
que constituem um processo libertador. O milagre não está aqui ou
ali, mas no processo todo. Ei-lo: Mateus mostra que o povo faminto
“vem das cidades”, ou seja, as cidades, ao invés de serem locais de
exercício da cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência
sobre os corpos humanos.
“Jesus atravessa para a outra margem do mar da Galileia” (Jo
6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim,
dos excluídos. Jesus não fica no mundo dos incluídos, mas estabelece
comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos e
o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.
Profundamente comovido, porque “os pobres estão como
ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e
líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas estavam
colocando grandes fardos pesados nas costas do povo. Com olhar
12 Cf. Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-13.
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altivo e penetrante, Jesus vê uma grande multidão de famintos
que vêm ao seu encontro, só no Brasil são milhões de pessoas que
têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má
alimentação. ---------Jesus não sentiu medo dos pobres, encarou-os e procura superar
a fome que os golpeava e humilhava. Apareceram dois projetos para
resgatar a cidadania do povo faminto. O primeiro foi apresentado
por Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?”
(Jo 6,5). No mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos:
“Despede as multidões para que vão aos povoados comprar alimento
para si.” (Mt 14,15). Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do
mercado. Está pensando que o mercado é um deus capaz de salvar
as pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe não percebe que está
enjaulado na idolatria do mercado.
O segundo projeto é posto à baila por André, outro discípulo de
Jesus, que, mesmo se sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um menino
com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos
e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos
devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer mãos à obra.
Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam
consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem
de André (em grego, andros = humano), anima o povo a “sentar na
grama” (Jo 6,10). Aqui aparecem duas características fundamentais
do processo protagonizado por Jesus para levar o povo da exclusão à
cidadania. Jesus convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade
escravocrata do império romano somente as pessoas livres, cidadãs,
podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé, pois não
podiam perder tempo de trabalho. Era só engolir e retomar o serviço
árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semiescrava.
Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros
termos, defendendo que os escravos têm direitos e devem ser
tratados como cidadãos.
Por que sentar na grama? A referência à existência de “grama”
no local indica que o povo está no campo, na zona rural, e é a partir de
uma reorganização da vida no campo que poderá advir uma solução
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radical para a fome que aflige o povo nas cidades. Em outras palavras,
o combate que liberta da fome passa necessariamente pela realização
de uma autêntica Reforma Agrária. Não dá para continuar a iníqua
estrutura fundiária no Brasil:
Dados e informações comparativas do Movimento dos Pequenos
Agricultores – MPA – revelam a síntese da estrutura fundiária
brasileira em 2003: como agricultura familiar, abaixo de 200 hectares,
há 3.895.968 de imóveis rurais (91,9% dos imóveis) compreendendo
uma área de 122.948.252 hectares (29,2% do território), enquanto
apenas 32.264 propriedades rurais (0,8% dos imóveis rurais) têm
acima de 2 mil hectares, constituindo um território de 132.631.509
de hectares. Essas grandes propriedades têm em média 4.110,8
hectares, correspondendo a 31,6% do território (LAUREANO, 2007).
Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em
grupos de cem, de cinquenta...” (Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros
cristãos nos inspiram que o problema da fome só será resolvido, de
forma justa, quando o povo marginalizado e excluído se organizar.
“Jesus agradeceu a Deus...”. A dimensão da mística foi valorizada.
A luz e a força divinas permeiam os processos de luta. Faz bem
reconhecer isso.
Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca
a solidariedade conclamando para a organização dos marginalizados
como meio para se chegar à cidadania de e para todos.
“Recolham os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar
nada.” (Jo 6,12). Economia que evita o desperdício. Quase 1/3 da
alimentação produzida é jogada no lixo, enquanto tantos passam
fome.
As pessoas perceberam a profecia realizada por Jesus nas
entranhas dos fatos humanos. Jesus não quis ser bajulado e retirouse, de novo, para uma montanha. Exercer a solidariedade de
forma gratuita e libertadora. Não estabelecer vínculos que geram
dependência em quem é ajudado e consciência tranquila em quem
dá coisas.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
2.6.1. De forma clandestina, Jesus e os seus entram em Jerusalém
Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém (Lc 9,51-19,27),
Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém. De forma
clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu
grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,2940). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em
Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que
tem também um tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva
uma profecia do passado.
Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na
capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um
jumentinho – meio de transporte dos pobres –, mas deviam fazer isso
disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte:
“Se alguém lhes perguntar: ‘Por que vocês estão desamarrando o
jumentinho?’, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A
repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada
na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem
a verdade, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de
repressão.
Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus
montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi
realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas.
“Bendito o que vem como rei...” Viam em Jesus outro modelo de exercer
o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do
bem comum.
Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de exercício
do poder –, certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele
evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem
domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem”,
impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda...!”
Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam.
Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem
anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta
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por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto
e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetiza:
“Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc
19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades
Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão.
Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem
raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra
construir...!”
2.6.2. Jesus chuta o pau da barraca do deus capital
Os quatro evangelhos da Bíblia13 relatam que Jesus, próximo à
maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa,
invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos
da idolatria do capital que muitas vezes têm a cruz de Cristo pendurada
em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir
que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de
Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus
“fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como
as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as
moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas
(eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os
pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou:
‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa
de negócio’. Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à
pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de
pessoas que não aceitam nenhuma opressão.
3. E agora, José? E agora, Maria?
Enfim, os tempos são outros, mas uma engrenagem de moer
vidas está em pleno funcionamento. O capitalismo, como um castelo
de areia, está podre. A idolatria do mercado e do capital está levando
a humanidade e todas as criaturas da biodiversidade ao abismo. A
maior devastação ambiental da história da humanidade cresce em
13
Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17.
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A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
progressão geométrica. As mudanças climáticas estão cada vez mais
afetando a vida humana, vegetal e animal. “O tempo está doido”,
dizem muitos. Doidos mesmos são os egocêntricos que mandam e
desmandam acrisolados no próprio umbigo.
Intuo que as profecias das parteiras, de Elias, Miqueias, Amós,
Oseias e de Jesus de Nazaré estão vivas, hoje, no ensinamento e na
prática do MST, de Dandara – ocupação que se tornou comunidade –,
do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, da Via Campesina,
de muitos sindicatos que ainda continuam combativos, de milhares
de Comunidades Eclesiais de Base, que, mesmo silenciadas e
perseguidas, continuam testemunhando um jeito rebelde de encarnar
o evangelho do Galileu de Nazaré. Em tantos movimentos populares
vejo a profecia viva. No Movimento dos Negros, dos indígenas, dos
deficientes, das mulheres... Por isso vejo que a Bíblia respira profecia.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!
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70 |
A BÍBLIA RESPIRA PROFECIA
VV. AA. Profetas: ontem e hoje, Série Estudos Bíblicos 04, Vozes, Petrópolis, n.14,
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WILSON, Robert R. Profecia e sociedade no antigo Israel. São Paulo: Paulus,
1993.
Frei Gilvander Luís Moreira, O.Carm. Frei e padre carmelita; mestre em
Exegese Bíblica; professor do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos,
no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, em Belo Horizonte, e no
Seminário da Arquidiocese de Mariana, MG; assessor da CPT, CEBI, SAB
e Via Campesina.
E-mail: [email protected]
Site: www.gilvander.org.br
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.43-70, jan./jul. 2012.
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FOUCAULT:
“técnicas” e “tecnologias”
Guaracy Araújo
Os pensadores que emergem na cultura filosófica francesa a
partir dos anos sessenta muitas vezes fazem uso de uma metáfora
referenciada na técnica. Termos como “máquina” (que comparece
regularmente nos trabalhos de Gilles Deleuze) e “técnica” ou
“tecnologia” (tal como usados por Michel Foucault) usualmente
designarão, para tais autores, processos em relação aos quais não
se supõem orientações das quais os agentes estejam plenamente
conscientes ou uma tendência histórica inevitável (o que faria
parte das orientações fundamentais da cultura iluminista ou do
pensamento hegeliano, por exemplo). Igualmente pretende-se
evitar uma orientação teleológica determinada por perspectivas
substancializadas da realidade, das quais um exemplo seria a noção
de luta de classes do marxismo. Tais termos são antes vinculados a
uma visão da história mais aberta ao reconhecimento da contingência
e das interações estratégicas de certos grupos em determinados
períodos históricos.
É este o caso para Foucault ao tematizar “técnicas” ou
“tecnologias”. Apartando-se de modelos filosóficos baseados numa
racionalidade centrada no sujeito, Foucault assumirá tais noções
enquanto modelos que dariam inteligibilidade estratégica a certas
práticas sociais. Inicialmente estas serão implicadas em uma discussão
acerca das relações de poder na Modernidade. Tais relações são
pensadas por Foucault nos termos de uma analítica do poder.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012.
72 |
FOUCAULT
As principais orientações desta analítica são as seguintes:
A) Em primeiro lugar, propõe-se uma análise do poder a
partir de suas extremidades, de suas “capilaridades”, o que
implica a recusa da ideia de que o poder funcionaria em
um foco central a partir do qual se disseminaria de forma
homogênea em todo o corpo de uma sociedade dada.
O que se pretende aqui é um deslocamento da questão
acerca do fundamento do poder, em prol de uma visão que
pretende ressaltar formas de exercício localizadas deste, e
que não se confinam estritamente à instância política.
B) Outra “precaução metodológica” adotada por Foucault
ressalta o estabelecimento de relações de poder específicas,
irredutíveis, que surgem em contextos específicos. Ao
invés de supor que determinados grupos ou agentes
empreenderam grandes estratégias para a tomada do
poder (como se pudessem ver para além da história),
Foucault pergunta como determinadas estratégias,
inicialmente locais, constituíram relações de poder e de
sujeição de certos grupos a outros. Trata-se assim de
assumir o ponto de vista de uma multiplicidade de formas
e focos de relação, e não de reduzi-las a priori a um foco
central e homogêneo.
C) Foucault proporá uma “visão relacional do poder”, uma
visão nominalista e, sobretudo, estratégica do poder.
Este deveria ser analisado em termos de estratégias que,
formuladas em níveis locais, foram (por motivos inteligíveis,
embora não intencionais) aplicadas a domínios cada vez
mais vastos (ou que regrediram, mudaram seu campo
de aplicação etc). Assim, o foco da análise passa de uma
busca na soberania do princípio de uma dominação política
para a pergunta sobre como dominações locais lograram
constituir certos campos estratégicos de relações de poder
– inclusive, aquele denominado soberania. Relações que
têm sua base em relações entre forças (claramente, trata-se
de uma dívida de Foucault para com Nietzsche): supõe-se
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012.
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aqui que certas relações entre forças – que não se confinam
à esfera política, podendo ser apontadas em qualquer
contexto no qual ocorram relações entre os seres humanos
– tornam-se típicas e codificam-se enquanto estratégias
costumeiras que mantêm processos contínuos de sujeição.
Assim, as relações de poder não são exteriores aos
dominantes e dominados: ao contrário, Foucault acredita
que tais processos moldam, produzem individualidades.
O poder produz gestos, comportamentos, e mesmo os
corpos daqueles que participam dessas relações1.
D) A analítica do poder assume também uma imanência do
poder ao saber, um condicionamento recíproco entre estas
duas instâncias. Podemos introduzir este tópico lembrando
que o uso feito por Foucault das prescrições de método
da analítica do poder quase sempre se dará em estudos
baseados em peças discursivas, em formas de discurso que
o autor pretende desencavar (falamos aqui dos “saberes
sujeitados”, objeto da genealogia). O saber pode ser visto
na obra de Foucault como condição de acesso para a análise
das relações de poder.
E) Uma outra orientação da analítica do poder2 é a proposta
de que este sempre se exerce com certo elemento de
resistência. O caráter relacional do poder aponta para
a dominação de certos sujeitos ou grupos sobre outros,
o que é denominável simplesmente como “sujeição”.
Ora, tal dominação nunca é absoluta, ela sempre suscita
a formação de contrapoderes, de focos de resistência.
Uma metáfora usada por Foucault a este respeito é a da
fricção: dominadores e dominados estão sempre em uma
relação de tensão latente ou explícita. A resistência, ao
formar contrapoderes, torna as relações de dominação
permanentemente instáveis e, portanto, remodeladas no
decorrer do tempo, e até mesmo revertidas.
1 Este é um dos argumentos centrais de História da sexualidade I: a vontade de saber.
Cf., na edição brasileira desta obra, as p. 19 a 49.
2 Este aspecto encontra-se exposto de forma mais clara em História da sexualidade I:
a vontade de saber, p.91 da edição brasileira.
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FOUCAULT
F) Enfim, a analítica do poder assume um “direcionamento
ascendente da análise. Ou seja, recusa para o estudo das
relações de poder uma orientação “estatista”, na qual
o Estado implementaria e daria suporte ao conjunto
destas no interior de uma sociedade. Recusa que orienta
a analítica no rumo de “mecanismos infinitesimais”, de
modalidades particulares de relação de poder. É a estas
que Foucault nomeará com os termos “técnica” ou
“tecnologia”, indicando formas específicas a partir das
quais o poder é efetivamente exercido. Foucault analisará
as técnicas ou tecnologias de poder indicando que estas
usualmente surgem de forma relativamente autônoma
e à margem dos grandes aparelhos de Estado, sendo
no entanto muitas vezes repertoriadas, transformadas,
“colonizadas” etc.
Dois exemplos dados por Foucault neste momento de sua
trajetória (que corresponde à primeira metade da década de setenta
do século vinte) indicam as principais linhas de ação das técnicas
ou tecnologias de poder. São estes o “panoptismo” e seu papel na
constituição do que é chamado pelo autor de “sociedade disciplinar”,
e a medicina social e suas implicações no que é chamado pelo autor
de “biopoder”.
O Panóptico3 é um projeto de prisão formulado pelo jurista e
filósofo inglês Jeremy Bentham no início do século XIX. O Panóptico
organiza em um determinado espaço um esquema que objetiva
3
Alguns momentos da descrição que Foucault faz do Panóptico: “(...) na periferia
uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se
abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada
uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o
interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que
a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central,
e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um
escolar. Pelo efeito de contraluz, pode-se perceber da torre (...) as pequenas silhuetas
cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator
está sozinho, perfeitamente individualizado e sozinho. Cf. Vigiar e punir, p.165-166
da edição brasileira.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012.
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e disciplina os indivíduos da forma mais anônima possível – o que
importa é a vigilância permanente dos que estão nas celas. O
exercício do poder é ininterrupto e impessoal, mas acarreta uma clara
sujeição dos aprisionados. Além disso, o olhar panóptico observa
os indivíduos permanentemente, produzindo dados passíveis de
estudo, todo um saber indissociável do exercício do poder dentro do
Panóptico, e que permite experimentações com o fim de ordenar,
disciplinar, normalizar. No Panóptico o poder exerce-se produzindo
verdades sobre as condutas individuais, neste “laboratório do
poder”, no qual, “graças a seus mecanismos de observação, ganha
em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos
homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes
do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas
as superfícies onde este se exerça”4. O Panóptico é uma tecnologia
de poder que obedece a uma orientação determinada: a produção
de sujeitos disciplinados. Tal orientação, na medida em que poderia
ser observada em outras tecnologias de poder no mesmo contexto
histórico (do final do século XVIII ao século XX) indiciaria um modelo
social maior, chamado por Foucault de “sociedade disciplinar”.
Outra tecnologia de poder analisada pelo autor durante
a primeira metade dos anos setenta (e que ocorreria no mesmo
contexto histórico das “sociedades disciplinares”) diz agora respeito
não ao tratamento disciplinar conferido aos indivíduos, mas sim ao
modo como as populações, a partir do final do século XVIII, passam a
ser percebidas como fator de riqueza dos Estados Modernos. Foucault
afirmará que tal percepção vincula-se a numerosas tecnologias de
poder. Um de seus focos é a Medicina Social enquanto gestão de
aspectos vitais da população (natalidade, morbidade, expectativa de
vida, resistência a doenças, riscos de vida etc). A medicalização (ou
seja, a adoção de mecanismos públicos de Medicina Social, a criação
de leis que obrigam as famílias a cuidar da saúde de seus membros,
a vacinação coletiva etc) é uma tecnologia de poder na medida em
que realiza tal orientação (gerir politicamente a vida das populações),
chamada por Foucault pelo termo “biopoder”5.
4 Cf. Vigiar e punir, p.169 da edição brasileira.
5 Cf., na coletânea de artigos Microfísica do poder,
p. 79 a 98 da edição brasileira.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012.
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FOUCAULT
A partir do final da década de setenta, Foucault deslocará
progressivamente suas análises do poder para análises centradas na
noção de governo. Considerando que o estudo centrado no poder
gerava numerosos equívocos em seus leitores (em particular, a
percepção segundo a qual as relações de poder seriam irreversíveis
e os sujeitos totalmente assujeitados a suas orientações), Foucault
adotará as noções de governo e conduta, as quais suscitarão por
sua vez remanejamentos, fazendo emergir tecnologias cujo foco é
conduzir ou governar condutas. Duas tecnologias de governo serão
particularmente enfatizadas por Foucault: a confissão, no âmbito do
poder pastoral, e a polícia, no que tange aos Estados Modernos.
O poder pastoral consiste no modo de direcionar condutas
que emerge nos primeiros séculos da Igreja. Ele supõe a existência
de um pastor (um líder) e um rebanho (os conduzidos). Trata-se de
uma forma de poder/governo na medida em que o pastor conduz
o rebanho em sua vida cotidiana fazendo uso de mecanismos
específicos. O mecanismo ou tecnologia mais relevante neste sentido
é a confissão, a partir da qual a alma de cada ovelha do rebanho
poderá ser governada. A confissão (e os mecanismos de obediência
que esta implica) permite depreender verdades sobre a conduta de
cada membro do rebanho, criando condições para um combate em
torno de sua alma e para sua consequente salvação6.
Foucault acredita que o poder pastoral teria alcançado sua
máxima amplitude no decorrer da Idade Média, sendo eclipsado no
mundo moderno. No entanto, outra tecnologia de governo emergirá
a partir do século XVII: trata-se da polícia. Esta assume nesse contexto
histórico um sentido bastante diferente daquele com o qual estamos
acostumados. A partir do século XVII teriam surgido, no âmbito de
teorias e práticas sociais próprias à articulação entre os Estados
Modernos e as sociedades civis, relações de governo que manteriam
em parte o objetivo do poder pastoral (conduzir à salvação), mas cujo
quadro seria essencialmente secular e orientado para o bem-estar vital
e material das sociedades. Estas seriam efetivadas por instituições
6
Cf., no curso Segurança, território, população, p. 166 a 252 da edição brasileira.
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públicas de polícia, encarregadas de zelar por todos os aspectos que
poderiam levar a esse bem-estar, e rigorosamente falando por todos
os aspectos da vida social: da circulação de mercadorias e pessoas às
trocas de bens, da saúde pública à instrução, da moralidade à pobreza.
A polícia, tal como a conhecemos hoje, teria surgido apenas no século
XX, a partir da desarticulação das funções assinaladas7.
Ao tematizar o governo, Foucault progressivamente adotará
outro sentido para este termo, pois a noção de governo deixa-se ler
em dois sentidos: governo sobre os outros, governo sobre si mesmo.
É este segundo sentido que será mais diretamente abordado por
Foucault a partir do início dos anos oitenta. E assim surgirão novas
técnicas ou tecnologias, dessa vez associadas ao termo “si”: técnicas,
tecnologias de si – as quais se referem aos modos como sujeitos
dispõem, em contextos históricos dados, de condições para – diante
da referência vinda pelas formas de poder e governo próprias a cada
época – governarem a si mesmos.
Dois exemplos nesse sentido são dados pelo uso da meditação
e dos cadernos de memória (hypomnémata) por parte das elites
ilustradas gregas e romanas nos períodos clássico e helenístico (entre
os séculos V. a.C. e II d.C.). A prática constante da meditação, da
discussão consigo mesmo, bem como a anotação de fatos ou frases
particularmente instrutivas presenciadas durante o dia seriam formas
de fixar condutas positivas que habilitariam seus praticantes a uma
relação mais livre e pessoal consigo mesmos e com os outros.
O uso por parte de Foucault de noções como técnica e
tecnologia vem no bojo de uma tentativa de avaliar a relação entre
campos de saber e modalidades de poder, que incluirá posteriormente
o elemento das subjetivações mais ou menos alinhadas a tais saberes
e poderes. Segundo Charles Taylor, o relato de Foucault acerca das
implicações entre saberes e poderes é mais preciso e operatório do
que aquele proposto pela Escola de Frankfurt. Enquanto os teóricos
frankfurtianos atribuiriam um papel mais substancial aos conceitos
7
Cf., no curso Segurança, território, população, p. 419 a 488 da edição brasileira.
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que formulam, Foucault assumiria conceitos mais operatórios, o que
lhe daria uma margem de manobra maior em suas formulações8.
Sem entrar no mérito da análise de Taylor, gostaria de assinalar
a oposição entre as noções de técnica e tecnologia em Foucault
diante da teorização frankfurtiana acerca da razão instrumental.
A razão instrumental significaria o uso da racionalidade enquanto
centrada apenas nos meios de obtenção de finalidades que não são
avaliadas em termos estritamente racionais; sua operação seria pouco
diferenciada em se considerando o mundo natural e as esferas da vida
social. O amplo predomínio de tal modelo de racionalidade no mundo
contemporâneo ocasionaria uma sociedade na qual as possibilidades
da liberdade estariam cada vez mais soterradas, ocasionando a
perspectiva pessimista própria aos teóricos frankfurtianos.
Enquanto isso, o uso por parte de Foucault das noções
ligadas aos termos “técnica” e “tecnologia” também aponta para
esquemas de racionalização imanentes à vida social, mas assinala
(diferentemente da razão instrumental frankfurtiana) nuances no que
diz respeito às finalidades e orientações implementadas, de acordo
com a tecnologia/técnica em questão – o que indica a recusa a um
grande modelo de racionalidade, em prol de esquemas específicos
que seguiriam orientações particulares. A linha de análise de Foucault
impede ainda uma assimilação dos processos racionais aplicados à
natureza aos esquemas de racionalização próprios ao campo social.
Enfim, ao abrir espaço em seus últimos trabalhos para as técnicas/
tecnologias de si, Foucault avalia os espaços de liberdade abertos
em contextos históricos distintos, favorecendo uma reflexão sobre
as possibilidades da liberdade na contemporaneidade e impedindo
assim uma perspectiva abertamente pessimista e negativa sobre o
mundo que nos cerca.
8
Em Foucault on Freedon and Truth.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012.
Guaracy Araújo
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REFERÊNCIAS
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Tradução Márcio Alves da Fonseca e
Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Tradução Vera Lúcia Avellar Ribeiro et al. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003. v.1/5.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução Maria A.
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guillhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal,
1999.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado et al. Rio de
Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população. Tradução Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes,
1997.
TAYLOR, C. Foucault on Freedon and Truth. In: HOY, David Cousin (Org.). A critical
reader. Oxford: Basil Blackwell, 1986.
Guaracy Araújo. Professor de Filosofia na PUC Minas e doutorando em
Filosofia na UFRJ.
E-mail: [email protected]
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.71-79, jan./jul. 2012.
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA
DIREÇÃO ESPIRITUAL:
o efeito restaurador da fé
Carlos Ribeiro Natali
Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R
1. Introdução
Dentre as diversas preocupações cotidianas da vida humana,
a morte ocupa lugar central. Ela parece quebrar a linha ascendente
do desenvolvimento da pessoa. Entretanto, o vasto noticiário sobre
a morte acabou banalizando-a. Tornou-se tão comum ver pessoas
morrerem todos os dias que poucos se dão ao trabalho de refletir sobre
o significado da morte. Seja como for, uma coisa é certa: nascemos e
morreremos um dia. Em relação ao futuro, a morte é a possibilidade
mais certa. Prever o futuro ninguém consegue, mas a morte se revela
um dado do futuro de todos os seres humanos; mesmo que ele
chegue a viver 500 anos, morrerá um dia. A certeza da morte levanta
sérios questionamentos. Diante dela, as pessoas se perguntam: será
possível evitá-la? O que realmente acontece conosco no momento da
morte? Existe uma esperança de vida após a morte? Quanto aos que
ficam, como podem amenizar o processo de dor? O luto, processo
natural em toda perda, pode ocorrer de forma saudável? Quem pode
nos ajudar a aliviar a dor?
Em resposta a essas e a outras questões, surgem muitas
tentativas de respostas. As ciências, sobretudo as médicas, travam
uma luta constante contra a morte, criando cada vez mais recursos
e técnicas que se propõem a postergá-la, dando a impressão de que
a morte é, na verdade, uma doença para qual ainda não se descobriu
a cura. Cientistas trabalham para prolongar indefinidamente a
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
existência, prevendo que no futuro o ser humano poderá viver 200,
300 anos. As inúmeras religiões e seitas buscam, cada uma à sua
maneira, explicar e dar sentido à morte, bem como oferecer consolo
aos que necessitam. As diversas correntes da psicologia explicam o
processo do luto e oferecem distintas fontes de amenização da dor.
Este artigo pretende apresentar, mesmo que em breves
reflexões, a problemática da morte e suas implicações no atendimento
espiritual. Também se deseja oferecer aos leitores a possibilidade de
entendimento da morte e, ao mesmo tempo, apresentar uma certeza
de fé e esperança na ação divina. Estudar tal tema se justifica pelo
grande número de fiéis que procuram os atendimentos paroquiais e
conversas informais com pessoas esclarecidas na fé cristã, no anseio
de respostas acerca de como enfrentar a perda de pessoas próximas.
Talvez a maior dificuldade seja acalentar por meio de palavras àqueles
que se encontram em pleno luto. A melhor forma de ajudar se encontra
na escuta sincera e nas palavras reconfortantes com bases na fé.
O artigo, num primeiro momento, quer explicitar o papel
decisivo das reflexões psicológicas para se entender o luto e sua
importância no processo de perda; em seguida busca apresentar a
visão católico-cristã da morte e sua dimensão vital para o homem
de fé e, finalmente, apontar caminhos para a direção espiritual e o
aconselhamento pastoral que surgem como importantes ferramentas
para a compreensão e a aceitação da morte em nossos dias. No final
desse caminho, apresenta a fé cristã como resposta significativa
para as dores do luto e o trabalho pastoral como fator decisivo na
promoção de uma vida mais digna e significativa para todos.
2. O luto saudável e o luto patológico
“A última coisa que se diz sobre alguém que nasce é que vai morrer,
enquanto esta é a coisa mais certa da vida. Não tem outro jeito. Talvez
mais que uma ‘vida mortal’, a nossa é uma ‘morte vital’, um viver
morrendo”. (Santo Agostinho).
A morte se tornou um grande tabu: poucas pessoas falam
e escrevem sobre ela. O processo da morte de um ente querido
raramente é acompanhado por seus familiares, que terceirizam seu
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012.
Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R
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papel, entregando seus próximos a hospitais e agências funerárias. Só
se menciona a morte em vista de sua eliminação: os avanços médicos
prolongam cada vez mais a vida; os produtos de beleza tentam
promover o impossível, afinal, a juventude não pode ser eterna.
Consequentemente, é preciso disfarçar o processo de envelhecimento.
Consultórios de psicologia ficam lotados de pacientes em busca da
aceitação da passagem normal do tempo – todos querem permanecer
como se estivessem na “flor da idade”.
O homem sempre se preocupou em pensar e desvendar os
segredos da morte. O que realmente acontece com o ser humano
no momento da morte sempre foi motivo de muita hesitação. Por
muito tempo a morte foi vista como parte natural da vida, ou seja,
algo aceito como inevitável. Por conseguinte, preparando-se para
ela, o moribundo buscava acertar todas as suas pendências em vida,
as que sobravam permaneciam no testamento como obrigação para
seus familiares. No momento da morte, tudo já estava preparado: o
velório, o rito fúnebre, o local do “repouso eterno”, a divisão dos bens.
Tudo era devidamente cuidado durante a própria vida. As pessoas
que continuavam vivas faziam questão de vivenciar e, de certa forma
celebrar, a morte dos parentes falecidos. Eram comuns práticas como
o velório dentro da própria casa ou noutro local de grande significado
para o morto ou para a família. Eram comuns, também, as fotografias
fúnebres (o momento da morte era trazido para dentro do convívio
familiar), a distribuição de objetos pessoais, a “comemoração”
de aniversários como sétimo dia, meses e anos de falecimento, a
preparação de comidas e bebidas do gosto dos falecidos – práticas
que mantinham viva a memória da pessoa querida.
Hoje constatamos uma despreparação para a morte; ninguém
quer morrer e, por conseguinte, não há preocupação com esse
momento. As mortes de familiares e entes queridos acontecem em
instituições de saúde. Não é possível presenciar nenhum, ou quase
nenhum, velório dentro de casa. As agências funerárias se tornaram
as únicas responsáveis pela organização da despedida e também
dos ritos fúnebres, que devem ser realizados de acordo com a crença
descrita previamente em formulários ou escolhida pelos parentes.
Poucas pessoas se preocupam em lembrar as datas como o aniversário
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
natalício ou o dia do falecimento dos entes que se foram. O que talvez
demonstre a distância que temos da morte nos dias atuais são as
próprias fotografias. Antes se fazia questão de registrar o momento
da morte, hoje o que se faz em unanimidade é levar uma imagem
da pessoa viva para as placas do cemitério. Isso talvez seja o maior
reflexo da eterna busca pela vida e a negação da morte como algo
natural.
O momento atual traz sérias indagações: se não nos preparamos
para a hora da morte, como podemos enfrentá-la de forma natural?
A dor, comum a toda perda, pode ser aliviada com um processo
saudável de vivenciar o luto? Quais seriam as consequências da perda
não vivenciada? São problemas que podem ser bem entendidos a
partir das reflexões estabelecidas pela psicologia.
Para prosseguirmos nossa discussão, vamos tomar por base a
seguinte consideração:
Somos indivíduos reprimidos pelo proibido e pelo impossível,
que procuram se adaptar a seus relacionamentos extremamente
imperfeitos. Vivemos de perder e abandonar, e de desistir. E
mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor sofrimento, todos
nós compreendemos que a perda é, sem dúvida, “uma condição
permanente da vida humana” (VIORST, 2003, p.234).
As perdas marcam a existência humana. Elas se manifestam
de diversos modos e em situações variadas: perdemos motivação
profissional, o convívio com pessoas que nos circundam, amores,
amigos, sonhos, dinheiro, fama, reconhecimento e muitas outras
coisas. Apesar de toda perda ocasionar dores profundas, nenhuma é
mais dura do que a morte. Inevitável para todos e, ao mesmo tempo,
a mais difícil de superar. Segundo a psicóloga Maria Helena Bromberg
(1999), nossos costumes ocidentais nos educam para entender a
morte como um grande castigo, afinal, nossa cultura é a do bem-estar
prolongado e nunca nos prepara para perder; para nossos padrões de
vida o fim se revela absurdo, por isso o processo natural do luto não
acontece.
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Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R
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Segundo a psicologia, o luto obedece alguns passos que
precisam ser percorridos pela pessoa até que possa ser superado por
completo, gerando a aceitação confortável e não o esquecimento
diante da perda. A psicologia afirma que as fases do luto se dividem
de três a cinco – aqui utilizaremos cinco – e se organizam da
seguinte forma: Entorpecimento, Protesto, Negociação, Desespero
ou Depressão e Restituição ou Aprovação. Existe, de certa forma,
um consenso, ao evidenciar que “o luto é doloroso e difícil, já que,
simultaneamente, é necessário desligar-se do objeto perdido e
manter seus traços internalizados.” (WAHBA, 2005, p.179).
A primeira fase do processo de elaboração do luto é a que
chamamos de Entorpecimento ou Choque Inicial, caracterizada
pela incredulidade. Quem passa pela perda de alguém próximo
ou, em alguns casos, de pessoas que apenas conhece ou admira,
enfrenta um período de tempo na ânsia de negar o acontecido. A
frase mais ouvida nessa fase é: “você só pode estar brincando!”. Dura
cerca de algumas horas após a notícia e, em casos mais graves, até
dias. A segunda fase é conhecida como Protesto. Nesse período, a
pessoa enlutada oscila entre momentos distintos, ora sente raiva e
rancor pela perda da pessoa próxima, ora sente culpa, que chega a
ser excessiva e sem fundamento. Uma fase marcada por choros e
agitação constantes, que chega a durar de dias a meses, dependendo
do caso. A terceira fase, a Negociação, se mostra característica e de
fácil reconhecimento. É marcada pela tentativa de prorrogação do
inevitável, ou seja, o encontro com o defunto, tudo é motivo para
adiar tal encontro: a limpeza da casa, a visita a outras pessoas, a falta
de interesse pelo caso e outras atividades que devem ser feitas antes
da visita ao defunto. Dura o tempo que o enlutado conseguir delongar.
A quarta denomina-se Desespero ou Depressão. Fase difícil de ser
superada, demandando requisitos como apoio familiar e de amigos e,
sobretudo, força de vontade própria. Como todo processo deprimido,
predomina nessa fase o sentimento de vazio, a falta de interesse, a
apatia com diversas pessoas e situações e o afastamento típico. Dura
meses ou até anos, em casos extremos. A quinta e última fase do luto
é a Restituição ou Aprovação; o tempo de duração é indeterminado
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
– depende da própria pessoa –, é o consentimento na morte, sua
aceitação. O luto começa a ser superado e a perda apresenta menos
dor. A pessoa não esquece o ente querido, no entanto, ele está
presente na memória e não gera mais sofrimento, a não ser pequenos
lapsos de dor em datas marcantes ou de celebração.
O Luto Saudável, ou o considerado normal, ocorre quando a
pessoa enlutada consegue entender a morte como algo natural e,
portanto, passa pelas etapas do luto de forma mais sincera e consciente
de que precisa chegar ao final. A determinação do enlutado não pode
ser confundida com o esquecimento do morto, ao contrário, ele está
presente em sua lembrança, onde é seu lugar, e a sua falta física
pode ser menos dolorosa. O que realmente acontece com o enlutado
saudável é que ele possui força para passar pela dor. Força que foi
cultivada durante a vida bem resolvida e atenta à sua naturalidade. É
claro que bons profissionais podem oferecer aos enlutados opções de
saída; no entanto, como em toda terapia, o protagonista é sempre o
paciente e, no caso do luto, isso não é diferente. Superar as perdas se
mostra uma questão de esforço pessoal.
Ao contrário, podem ocorrer verdadeiras prisões em etapas
distintas do processo de elaboração do luto ou, até mesmo, nenhuma
saída pela falta de estrutura do enlutado. A este doloroso processo a
psicologia denomina Luto Patológico ou doentio. “O luto patológico
mostraria a permanência do vínculo com a pessoa que morreu,
ocasionando negação, distorção e adiamento do luto.” (WAHBA, 2005,
p.180). Esse tipo de luto ocasiona diversos problemas para a pessoa
enlutada, além de distúrbios psíquicos, como a falta de atenção e a
perda de memória, problemas físicos, falta de sono, falta de apetite,
dores estomacais, enxaquecas e outras. Além desses, problemas
sociais, como a desmotivação para estudar, trabalhar e até interagir
com outras pessoas. “O luto não realizado pode se manifestar não
só na tristeza padrão, mas em doenças psiquiátricas.” (BROMBERG,
1999, p.9). O tratamento em clínicas de psicologia e, sobretudo, com
profissionais especializados no luto ainda é o melhor remédio para a
superação da perda de um ente querido.
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Quanto ao tempo de duração da elaboração do luto, seja
saudável ou patológico, segundo as reflexões da psicologia, não se
determina. Os teóricos do luto e também os psicólogos apontam
o tempo de um ano, mais ou menos, para a absorção da perda. O
primeiro ano também é o período ideal para o acompanhamento
junto aos terapeutas. Tratar o luto depois do primeiro ano, segundo
Bromberg (1999), torna-se mais complicado, já que as perdas estão
mais cristalizadas, o que compromete a recuperação plena, podendo
ser mascarada ou até adiada pelo paciente.
É inegável a grande contribuição da psicologia para a superação
das perdas, no entanto a morte continua sendo uma grande barreira
na vida das pessoas, cujos aspectos não são totalmente analisáveis
pela psicologia. Em meio a tamanha complexidade, faz-se necessária
a busca de alternativas para a vivência saudável do luto. E a fé cristã
se apresenta como ferramenta para a aceitação das perdas. Não
se trata de uma instrumentalizar a religião e sim de compreender
a fé como requisito confortante e capaz de oferecer respostas para
nossas maiores inquietações, cujo cerne se encontra na pergunta: o
que acontece depois da morte física? É o fim de tudo? É realmente
possível que a morte, símbolo da destruição, se torne a fonte de uma
nova vida? A vida continua noutra dimensão? A morte faz mesmo a
vida desembocar na fonte da verdadeira vida? Há, pois, uma vida que
começa com a morte?
3. A vida que se obtém pela morte
“Ó morte, onde está tua vitória!
Cristo ressurgiu, honra e glória!
Na dor nós temos alívio. Cristo ressuscitou!
Conosco fez seu convívio. Cristo ressuscitou!”
(Hinário Litúrgico da CNBB).
O ser humano se encontra no centro da reflexão teológica
proposta pela Igreja, que se ocupa de forma consistente das
diversas realidades que cercam a vida humana. A morte, intrigante
e assustadora para muitos seres humanos, desempenha um papel
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012.
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
central dentro do anúncio de Jesus Cristo que faz a Igreja. O grande
diferencial em relação a muitas outras opiniões é que, para os cristãos,
ela não representa o fim, mas o verdadeiro começo para uma vida
eterna junto ao coração de Deus. Essa esperança se pauta na fé e,
com certeza, ajuda a amenizar a dor dos que perdem seus parentes
e amigos.
A opinião da Igreja sobre a morte sofre importantes objeções
feitas pelos céticos e grupos arreligiosos: como a Igreja pode se
pronunciar sobre coisas que ainda estão por vir? Será mesmo possível
viver a vida inteira em prol de algo que nem sequer sabemos ser
verdade? Pois bem, as respostas a tais objeções estão justamente
na fé que os cristãos professam. Fé que precisa ser vivida e não
apenas proclamada em discursos. A própria vida se fundamente em
certezas de fé. Para os cristãos, a vida humana se enraíza em Deus e
se caracteriza por uma abertura essencial a ele. Abertura que marca a
história da humanidade.
A História é vida vivida e refletida. Portanto é vendo e vivendo a vida
que podemos descobrir o futuro da vida. (...) porque no homem e no
mundo não há somente ser, mas também poder ser, possibilidades e
abertura para um mais. Por isso as afirmações de futuro que fazemos
não querem outra coisa do que explicitar, desentranhar e patentear
o que está implícito, latente e dentro das possibilidades do homem
(BOFF, 1997, p.16-17).
A Igreja não nega a morte, mas a enquadra na sua perspectiva
cristã, cuja base é a Sagrada Escritura. A dor e o sofrimento caudados
pela separação de entes queridos afetam também os cristãos. O que
muda é a forma como enxergam e vivenciam a morte.
A morte é sim o fim da vida. Mas fim entendido como meta
alcançada, plenitude almejada e lugar do verdadeiro nascimento. A
união interrompida pelo desenlace não faz mais que preludiar uma
comunhão mais íntima e mais total (BOFF, 1997, p.35).
É uma nova significação do sentido da morte, ela é, sim, o
fim da vida biológica, mas ao mesmo tempo representa um pórtico
para a vida eterna, promessa de Deus para seus filhos, imersos no
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012.
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mistério pascal de Cristo, portanto feito de morte e ressurreição. Para
os cristãos, que compartilham a vitória de Cristo desde esta vida, a
morte foi vencida e já não apresenta nenhum perigo para aqueles
que creem e vivem o Mistério Pascal de Cristo – Encarnação, Paixão,
Morte e Ressurreição.
Segundo a fé cristã, no momento da encarnação de Jesus, o
Emanuel – Deus Conosco –, a salvação entra no mundo e todos que
acreditam nele e seguem seus ensinamentos caminham rumo à vida
eterna, Reino Divino que há de vir, mas que precisa ser construído já
aqui na terra. Durante sua vida pública, Jesus revela sua divindade e
mostra por meio de suas ações a força de Deus que está em seu viver.
Realiza diversos milagres e sinais no meio do povo e, com isso, acaba
gerando um mal-estar com as autoridades políticas e religiosas,
devido à libertação que pretende realizar por meio do amor – seu
único e mais valoroso mandamento. Jesus acaba sendo condenado
à morte, e morte de cruz; a esperança de libertação parecia estar
perdida. A morte toma Jesus nos braços e o leva consigo, no entanto,
Deus-Pai, por meio do Espírito Santo, o liberta das garras da morte
e o ressuscita. Com a nova vida de Seu Filho, a morte já não existe,
pois Jesus comunica, através do Espírito Santo, sua vitória a todos
os cristãos que, desde essa vida, entram no seu mistério, de cuja
plenitude participarão por meio da morte.
Segundo as reflexões de Renold Blanck (2000), teólogo da
contemporaneidade, Jesus Cristo, sendo Deus, assumiu as mazelas
humanas, menos o pecado, para que, morrendo, vencesse a morte
de maneira definitiva. Cristo experimentou a morte, com toda a
sua força, mas ela não chegou a devorá-lo, assim como fazia com
os demais homens. Nele estava presente a divindade e a morte
acabou sendo destruída. Por meio do mistério pascal de Cristo foram
derrubadas todas as barreiras que dificultavam a aproximação entre
Deus criador e os homens, criaturas passíveis de erros e pecados,
portanto necessitadas da ação de Deus em suas vidas. A natureza do
ser humano foi elevada pela encarnação, o pecado foi derrubado pela
cruz, a morte vencida pela ressurreição de Jesus. Portanto, a morte
não é mais uma muralha, mas porta que conduz à vida eterna.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012.
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
A ressurreição de Jesus representa a verdadeira libertação para
os cristãos. Todas as pessoas, a partir do Evento Cristo (encarnação,
morte e ressurreição), se tornam herdeiras da vida eterna, por
meio do batismo. Ao mergulhar nas águas batismais, o ser humano
morre para a vida de pecado e, ao ressurgir, ressuscita para a vida
nova oferecida por Deus. A partir desse momento único e especial, a
morte biológica não mais representa fim, mas passagem, páscoa dos
fiéis. Para Blanck (2000), a morte é mistagoga, ensina por meio dos
mistérios celebrados, mostrando que Jesus Cristo é o único remédio
eficaz para a morte, afinal, Ele é a própria vida.
A morte se apresenta como a situação por excelência privilegiada da
vida, na qual o homem irrompe numa inteira maturação espiritual,
onde a inteligência, a vontade, a sensibilidade e a liberdade podem,
pela primeira vez, ser exercidas em sua plena espontaneidade, sem
os condicionamentos exteriores e as limitações inerentes à nossa
situação no mundo (BOFF, 1997, p.46).
A libertação da morte é garantia para todos, no entanto, se
apresenta como uma via de mão dupla. Por um lado, o amor infinito
de Deus que criou todas as coisas e ofereceu seu próprio Filho para a
salvação de todos, por outro a liberdade que implica responsabilidade
do homem que, mesmo em sua finitude, é capaz de assumir em vida
os ensinamentos de Cristo e ganhar a vida eterna junto a Deus e
aos demais justos. Nesse ponto é possível afirmar que, mesmo com
o Mistério Pascal de Cristo, o homem pode decidir entre a vida ou
a condenação eterna, outra prova de que Deus ama e respeita as
decisões de seus filhos.
A tradição cristã nos aponta para a existência de três realidades
distintas que se apresentam ao homem no momento de sua morte.
É importante ressaltar que “toda a vida humana é um tender, um
caminhar e educar-se para isso” (BOFF, 1997, p.55). São elas: o céu,
o purgatório e o inferno. O céu muito se caracteriza como uma
realidade pautada no amor e na comunhão definitiva com Deus – é
a vida eterna propriamente dita. No desenrolar de sua existência, o
homem faz constantes escolhas que o levam a construir sua realidade
definitiva, que será eternizada na morte. Quando vive segundo os
ensinamentos de Jesus, fazendo a vontade do Pai, pela confiança na
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ação do Espírito Santo, já começa a construir na terra o céu, onde
viverá pela eternidade. No céu entrará definitivamente na convivência
com Deus, o que representa a realização absoluta do seu próprio ser.
O purgatório é uma oportunidade de aprimoramento, maturação
e crescimento do homem antes de se encontrar definitivamente
com Deus. Mesmo tendo a oportunidade de resolver seus impasses
existenciais na vida terrena, a condição falha do homem muitas vezes
o impede de se tornar capaz da convivência divina, portanto, é preciso
esta realidade purgativa para prepará-lo de forma íntegra para se
achegar ao coração amoroso de Deus. O inferno, assim como o céu,
está intimamente ligado às nossas ações cotidianas. Se em vida não
optamos pelos ensinamentos de Jesus, ou seja, viver em comunhão
com Ele, no momento de nossa morte biológica o convívio com Deus
também não é um desejo. O inferno é a eterna frustração humana, já
que o homem viverá eternamente sem a convivência divina. É uma
realidade em que, mesmo desejando, não será possível tocar no Amor,
nela o homem está endurecido no mal. É um viver completamente
sem Deus, fonte de toda vida. Sem dúvida nenhuma é uma segunda
morte. A Igreja não afirma, no entanto, que alguém se encontra na
situação de inferno. Ao contrário, ela reza para que todos se salvem.
Embora admita a possibilidade do inferno, lutará até o fim para que
tal possibilidade não se realize para ninguém. O inferno permanece,
pois, um mistério que não pode ser pensado como criação de Deus,
que é amor e misericórdia, mas sim como resposta do homem a
Deus, que se fecha em seu egoísmo. Alguém optou, com toda sua
liberdade, contra Deus? Não sabemos e rezamos para que isso não
aconteça com ninguém.
Diante da morte, o cristão deve oferecer ao mundo uma nova
esperança, sentimento que brota de seu coração e que é muito bem
explicitado por Alselm Grün:
Os cristãos devem contribuir para que este mundo se torne mais
humano. Eles são os representantes da esperança de que ele seja cada
vez mais imbuído do Espírito de Jesus. (...) Na atualidade, percebemos
que não é possível que a esperança cristã se trate nem de uma
esperança puramente intramundana, nem de um menosprezo a esta
terra. A esperança cristã sempre é, concomitantemente: esperança
para todos, neste mundo, e esperança pela comunhão com Deus que
nos céu nos espera (GRÜN, 2010, p.91-92).
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
Mesmo diante das verdades apresentadas pela fé, os cristãos
não estão isentos da dor e da tristeza comuns à perda de entes
queridos. Sofrem o desespero inicial, a saudade constante e as
diversas complicações que são provenientes da separação daqueles
que amam. Por tal razão, devem estar cada vez mais unidos a Cristo e
aos seus ensinamentos, para que o conforto e a certeza de recuperação
que brotam de seu coração, local da manifestação do Espírito Santo,
possam ser maiores do que a dor que sentem. Para isso tomam das
Sagradas Escrituras a Palavra de Deus revelada àqueles que primeiro
acreditaram na libertação promovida por Jesus, seus apóstolos e
discípulos:
Irmãos, não queremos que ignoreis coisa alguma a respeito dos
mortos, para que não vos entristeceis, como os outros homens que
não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou,
cremos também que Deus levará com Jesus os que nele morreram
(ITs 4,13-14).
Sendo assim, o modo como os cristãos encaram a morte
também os leva a viver o luto de forma diferenciada. Não negam a
morte e nem mesmo a dor que ela traz consigo, antes se fortalecem
pela fé e resgatam na própria fé os motivos para viver. Não uma
simples vida, mas aquela que os prepara para o encontro definitivo
com Deus, criador e razão de suas existências.
4. A Direção Espiritual diante da perda
“A vida pra quem acredita,
não é passageira ilusão
e a morte se torna bendita,
porque é a nossa libertação”
(Irmã Míria T. Kolling).
A Direção Espiritual representa hoje importante ferramenta
nos trabalhos pastorais. É crescente o número de pessoas que buscam
auxílio para suas questões existenciais e também para outras mais
corriqueiras. Ao buscarem o acompanhamento espiritual, as pessoas
anseiam encontrar mais do que apenas conselhos e outras palavras,
antes desejam alguém para ouvi-las diante da correria que se tornou
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012.
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a sociedade hodierna, que dificulta o processo do luto. Por isso a
necessidade de se aperfeiçoar cada vez mais na arte de aconselhar.
A principal característica de um diretor espiritual é o proeminente
cuidado com a pessoa humana. Não um simples cuidado, mas
aquele em que se cultiva a intimidade, o sentir junto com o outro, o
respeito completo pelas inúmeras situações que podem aparecer e a
capacidade de olhar sempre adiante para que, nas trevas da mazela
humana, emerja a luz que ilumina e aponta caminhos novos. Devese criar uma perfeita sintonia em que reine a escuta e a intervenção
necessárias. Muitos são os casos em que a escuta atenciosa e as
palavras fraternas mudam destinos e escolhas para o resto da vida
daqueles que as procuram.
Dentre os muitos assuntos apresentados no momento
da Direção Espiritual, um dos maiores desafios hoje em dia, com
certeza, é a morte. Não apenas o antigo medo de morrer – que ainda
se apresenta de forma significativa – mas como lidar com a perda
de entes queridos. A dor e a insegurança, típicas de quem entra no
processo de luto, são as maiores barreiras a serem enfrentadas pelos
que perdem alguém. Se as pessoas enlutadas não são capazes de
elaborar de forma saudável seu luto, acabam sofrendo por toda a vida.
Ajudar as pessoas a lidar com seu sofrimento é a grande motivação
do diretor espiritual. No decorrer da Direção Espiritual, o orientador
precisa auxiliar as pessoas a passar pelo doloroso processo da perda
da forma mais saudável possível. As palavras a seguir nos oferecem
um bom ponto de sustentação para entender o importante trabalho
que o diretor deve realizar na vida da pessoa enlutada:
Para elaborar o luto é preciso separar o real do imaginário. A perda
é como se fosse um pacote fechado. Nem sempre o conteúdo
corresponde ao rótulo. É preciso abrir o pacote para lidar com a perda
real. O segredo para abrir o pacote e separar o joio do trigo está em se
perguntar várias vezes: o que eu perco com esta perda? (MIRANDA,
2003, p.79).
O trabalho parece simples, no entanto, colocar novamente a luz nos
olhos de quem só enxerga as trevas se revela uma tarefa extremamente
difícil. É preciso tato e, acima de tudo, um ponto de sustentação.
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
Para servir como base de argumentação, aconselham-se as verdades
reveladas pela fé cristã; podem servir de conforto, bem como motivo
de aceitação da morte e das dores que vêm com ela.
No início da Direção Espiritual, é preciso levar em conta alguns
aspectos que podem ser decisivos para a elaboração do luto daqueles
que estão necessitados de aceitar a perda. Antes de qualquer coisa, é
preciso entender que a dor ocasionada pela separação é verdadeira e
muito profunda na vida do enlutado. Logo em seguida, o orientador
precisa lembrar que a escuta sincera pode ser mais valorosa do que
palavras vazias; antes de falar é preciso ouvir tudo o que a pessoa
tem a dizer. O local do atendimento também precisa ser levado em
consideração: faz-se necessário um lugar em que a pessoa se sinta
confortável e, acima de tudo, em que tenha certeza de que suas
dores não serão partilhadas com outras, afinal deve haver confiança
entre o atendido e o atendente. Observadas essas importantes
considerações, o atendimento já possui os passos iniciais para se
obterem os resultados favoráveis para os enlutados.
Como consolador, não devo fazer com que esperem ouvir de mim
palavras pias, e sim, devo simplesmente estar ali, deixar que o outro
expresse seu luto, suportar ver suas lágrimas, seu desespero, sua
desesperança e, apesar de tudo, continuar ao seu lado. Quem está
em luto, perde o chão. Por isso, precisa de pessoas que sejam firmes,
fortes, que se mantenham fiéis a ele durante o luto, para que, assim,
também possa encontrar uma nova forma de reerguer (GRÜN, 2010,
p.111).
Ao começar a intervenção no atendimento com a pessoa
enlutada, após ouvi-la de forma sincera e atenta, faz-se necessário
que o diretor espiritual concentre suas forças para que o enlutado
compreenda o valor da vida. É preciso explicitar a importância da
vida antes de falar da morte propriamente dita. O fator de maior
importância para valorizar a vida é que ela mesma se apresenta
como um dom de Deus, nosso primeiro chamado para estar em
comunhão com Ele e com nossos irmãos. Os cristãos, durante muito
tempo, justamente por acreditarem na vida eterna que ainda há
de vir, foram acusados de não se importarem com a vida terrena,
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012.
Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R
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compreendendo-a como passageira, se concentrando naquela que
virá após a morte. No entanto, essas constatações são infundadas,
já que eles possuem como modelo de vida o próprio Jesus, que se
encarnou e viveu plenamente no meio dos seus. Segundo as reflexões
de Anselm Grün (2010), conhecido diretor espiritual, o desejo de
Jesus Cristo, vencedor da morte, é que seus irmãos se concentrem
para viver de forma plena e entendam que a vida é única para cada
ser humano, portanto, devem se concentrar para potencializar suas
capacidades e se conhecerem cada vez mais.
A esperança cristã, que há muito estamos discutindo, serve,
portanto, para potencializar a própria vida. A separação e a dor
ocasionadas pela morte podem se transformar em força para viver.
O pensamento na morte tem o propósito de intensificar nossa vida,
para que experimentemos com todos os sentidos. E seu propósito é
nos convidar a sermos, nesta vida, testemunhas de uma esperança
que transcende este mundo. Justamente como testemunhas dessa
esperança, nos tornamos benção para este mundo, que tem a
tendência de fechar-se em si mesmo. Nossa esperança abre o mundo
para Deus. Os céus se abrem sobre o mundo e, assim, fazem com que
a vida na terra se torne mais humana (GRÜN, 2010, p.99).
A fase seguinte é mostrar para a pessoa que sofreu a perda
significativa em sua vida que o luto, ou melhor, sua elaboração,
obedece a certa regularidade de acordo com as fases elaboradas
pelo aporte da psicologia e implica, acima de tudo, força de vontade
para ser superado. Repitamos as fases: Entorpecimento, Protesto,
Negociação, Desespero ou Depressão e Restituição ou Aprovação.
É importante apresentar cada uma delas de forma clara e objetiva,
explicitando as principais características e as implicações negativas
que podem ocorrer quando não existe a superação de uma ou mais
fases. Resumidamente, diferenciar o luto saudável do patológico.
É importante que o enlutado reconheça em qual fase está e como
vem lidando com ela. Se não houver uma constatação clara, o
orientador pode auxiliar com questões relacionadas às características
e “sintomas” de cada uma.
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O LUTO NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
O grande risco nesse momento do aconselhamento está
ligado ao medo de esquecer o ente querido. Para superar tal
dificuldade, é importante ressaltar que a elaboração da perda não
implica esquecimento da pessoa amada. Definitivamente, esta não é
a missão do orientador; antes, deseja-se que a morte seja entendida
como aquilo que realmente é: algo natural à vida humana, cujo aspecto
negativo foi vencido por cristo no seu mistério pascal. Isso torna a
perda menos dolorida. O orientando compreende, pouco a pouco,
que o luto precisa ser superado para que a vida continue a existir. “O
luto é como a noite, quando não se torna patológico acaba por tornarse dia. Noite e dia, esse é o processo da vida! Aceitar a noite, entregarse a ela, é preparar-se para receber o dia.” (MIRANDA, 2003, p.101).
Entendido o valor da vida humana e as fases de elaboração
do luto por parte do enlutado, resta ao orientador explicitar de forma
esperançosa as verdades da fé católico-cristã, que servirão como
conforto e, até mesmo, como motivação para viver de forma plena
os ensinamentos da Tradição. Ao compreender tais constatações, a
pessoa estará apta para realizar seu luto de forma saudável, já que
possuirá certezas de uma vida ao lado de Deus para os que partem
da vida biológica. Por outro lado, torna-se capaz de compreender o
verdadeiro valor da vida presente. Não significa viver em prol do que
ainda virá, mas conscientizar-se de que a vida é muito mais do que
apenas viver biologicamente. É desfrutar a vida de forma plena em
sua dimensão biológica e espiritual.
É preciso mostrar que em Cristo Jesus nossa esperança está
consumada, que, por meio da cruz e ressurreição dentre os mortos,
a morte foi vencida para sempre. O orientador possui a missão de
reacender a chama da esperança que pode estar se apagando no
orientando. Aquilo que agora causa dor pode ser entendido como
passagem para uma vida mais plena que há de vir. O que nos garante
tais afirmações é a própria revelação bíblica, repleta de textos que
comprovam nossa esperança, a tradição da Igreja, que oferece aos
católicos estudos e textos de grande riqueza teológica e, acima de
tudo, a fé que professamos que nos aponta para a certeza da vitória e
da libertação promovida por Jesus Cristo.
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Ajudar as pessoas enlutadas a compreender o papel do
luto e a importância de superá-lo de forma saudável deve ser para
o orientador a grande motivação desse tipo de atendimento. “Nós
precisamos da esperança pelo que não vemos, pela força que há por
detrás da fraqueza, pela alegria que aguarda, nas profundezas do
luto, até que ela possa ressurgir.” (GRÜN, 2010, p.112). Além do mais,
a Igreja considera consolar os enlutados uma obra de misericórdia.
Esse caminho da direção espiritual aponta para os enlutados uma
nova luz que os faz recomeçar com esperança.
Na assistência aos enlutados, devemos pedir ao anjo da esperança que
esteja conosco, para que possamos transmitir aos desesperançados a
esperança necessária para que a pessoa não se afunde em seu luto, e
sim, através do luto, continue caminhando, com fé de que, depois da
escuridão, a luz o espera (GRÜN, 2010, p.113).
5. Conclusão
A morte continua assombrando a imaginação de muitas
pessoas. Na sociedade contemporânea, inúmeras são as tentativas
de contorná-la. Exatamente! Não se pretende compreendê-la
de forma plena e aceitá-la como algo natural da vida humana,
ao contrário, deseja-se domá-la, superá-la e, até mesmo, acabar
com ela. No entanto, todas as tentativas são inúteis. Ela continua
levando todos quando chega a hora. A morte se torna para nós a
maior certeza, a mais temida certeza que temos. Este artigo oferece,
portanto, esclarecimentos e afirmações que nos ajudam a aproximar
de forma sincera do processo de luto ligado à morte. Possibilita
compreender a distinção entre o passado e o presente em relação
à morte e as implicações provenientes da separação que ela nos faz
experimentar.
Diante da morte, um sentimento é inevitável, a saber, a tristeza
proveniente da separação de um ente querido. Por mais que nossa
relação com a morte tenha mudado, a dor continua a nos invadir e a
provocar inúmeras consequências para aqueles que ficam. Há muitas
soluções para o problema do luto. Os consultórios de psicologia
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estão repletos de pacientes em busca de superar suas dores e as
religiões oferecem explicações para a morte e também consolo para
os que ficam, respondendo questionamentos e fortalecendo a fé dos
enlutados.
São pontos que foram abordados, diretamente ou
indiretamente, neste artigo e que devem ser levados em consideração,
por aqueles que desejam elaborar o luto de forma mais saudável.
Para auxiliar nesse doloroso e necessário processo, apresentou-se a
figura do orientador espiritual, que surge como figura essencial para
abrir os olhos dos enlutados e fazê-los compreender a morte como
um processo da vida. Para isso ele utiliza pressupostos da psicologia –
as fases da elaboração do luto – e da religião – as verdades reveladas
pela fé em Jesus Cristo.
No que diz respeito à fé, ela cumpre seu papel de auxiliar na
aceitação da morte e na superação da dor ocasionada pelo luto, o
que afirma o argumento central deste artigo. Por meio da fé, a morte
ganha novo significado, deixa de ser o fim da vida biológica e passa a
ser uma porta de acesso para a vida eterna junto ao coração de Deus.
Para os homens e mulheres de fé, ela é inerente, por mais dolorosa
que seja, já que possibilita o encontro com Deus criador de todas
as coisas – o que de forma alguma implica a desvalorização da vida
terrena. Os esforços dos orientadores espirituais querem retirar as
pessoas do luto e trazê-las novamente à vida, que, como nos ensinou
Jesus, precisa ser plena e pautada no amor a Deus e ao próximo.
REFERÊNCIAS
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(Pensamento cristão).
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Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012.
Carlos Ribeiro Natali e Paulo Sérgio Carrara, C.Ss.R
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BLANCK, R. Escatologia da pessoa: vida, morte e ressurreição. São Paulo: Paulus,
2000.
BOFF, L. Vida para além da morte. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
BROMBERG, M. H. Morte não é castigo. Revista Isto é, São Paulo, n.1541, p.7-9,
14 abr. 1999.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Hinário litúrgico. São
Paulo: Paulinas, 1986.
GRÜN, Anselm. A cruz: a imagem do ser humano redimido. 2.ed. São Paulo: Paulus,
2010.
KOLLING, Míria Therezinha. Cantar a beleza da vida. ITAICI, São Paulo, v.18, n.74,
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MIRANDA, M. L. Quem tem medo de viver?: aprendendo a lidar com a finitude.
Belo Horizonte: Editora CEAP, 2003.
VIORST, J. Perdas necessárias. São Paulo: Melhoramentos, 2003.
WAHBA, L. L. Eu e tu: quando o tu desaparece. In: OLIVEIRA, M. F.; CALLIA, M. H,
P. (Org.). Reflexões sobre a morte no Brasil. São Paulo: Paulus, 2005. p.175-184.
Carlos Ribeiro Natali é presbítero da Diocese da Campanha, sul de
Minas Gerais. Aluno do Curso de Especialização em Aconselhamento
Pastoral e Orientação Espiritual do Instituto Santo Tomás de Aquino ISTA. Na Diocese atua como Coordenador dos Presbíteros e também
como orientador espiritual no Seminário Diocesano Nossa Senhora
das Dores. Este artigo, entregue na secretaria da pós-graduação, foi
posteriormente revisado pelo prof. Dr. Paulo Sérgio Carrara, em vista de
sua publicação na revista “Horizonte Teológico”, do ISTA.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.81-99, jan./jul. 2012.
RECENSÕES
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PEREIRA, William Cesar Castilho. O sofrimento psíquico dos
presbíteros: dor institucional. Petrópolis: Vozes, 2012. 542 p.
William Cesar Castilho, doutor em psicologia, psicanalista,
analista institucional, é professor de psicologia na PUC Minas; tornouse conhecido por suas obras, artigos e conferências, sobretudo na
área da psicologia da vida religiosa e presbiteral, à qual dedicou seus
últimos trabalhos. Seu livro sobre a formação para a vida religiosa: A
formação religiosa em questão, publicado pela Editora Vozes, obteve
grande aceitação e está na segunda edição. O livro sobre o sofrimento
psíquico dos presbíteros nasceu de um longo trabalho com presbíteros
de todo o Brasil. Para além de seu trabalho junto aos padres, o livro
é fruto, também, como se constata por sua leitura, de longos anos
de cuidadosa pesquisa sobre esse delicado assunto: o sofrimento
psíquico dos presbíteros.
No primeiro capítulo, o autor apresenta detalhadamente
o referencial teórico de sua análise do sofrimento do presbítero:
a “síndrome de burnout”. O termo burnout designa a síndrome que
extrai as forças, o envolvimento pessoal e a satisfação no exercício
da profissão. A síndrome foi estudada preferencialmente nas
categorias de profissionais que desenvolvem uma tarefa de ajuda.
São numerosos os sintomas da síndrome de burnout: tristeza, vazio
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interior, despersonalização, alterações de comportamento, depressão,
esgotamento, estresse, insatisfação, recalque de conflitos internos
etc. Embora haja abordagens teóricas diferentes sobre a síndrome,
os autores são unânimes quanto aos seus traços característicos e
sua repercussão negativa na vida profissional. O autor mostra, no
entanto, que, se há consenso quanto ao diagnóstico, não o há quanto
à profilaxia e identifica duas propostas de tratamento.
A primeira se define como clínica disciplinar individual.
Nesse caso, dá-se atenção aos sintomas e se ignoram os fatores
desencadeantes da síndrome, que se torna um problema do indivíduo,
a ser tratado com medicamentos, sobretudo antidepressivos e
ansiolíticos, que aliviam a sensação de esgotamento. Associase ao tratamento medicamentoso a terapia individual, visando à
elaboração pessoal dos sintomas. Não se questiona, pois, a instituição
à qual o profissional pertence e sua implicação no seu processo de
adoecimento psíquico. Uma segunda proposta de tratamento se
define como clínica psicossocial institucionalizada, cuja abordagem da
síndrome parte de uma epistemologia interdisciplinar. Os aspectos
da existência humana são diversificados. O homem se constitui como
ser psíquico, biológico, social. Seus problemas se compreendem
à luz de sua inserção numa realidade concreta que envolve suas
relações. Portanto, a clínica psicossocial institucionalizada, sem
negar a necessidade de tratamento medicamentoso e psicoterápico
para a síndrome de burnout, inclui na sua abordagem a análise das
organizações e instituições, em vista de chegar à causa do problema,
que nunca se encontra somente no indivíduo, mas na teia de relações
estabelecidas dentro da instituição. A intervenção para solucionar a
crise chega, pois, à instituição. Se também essa não for devidamente
tratada, o profissional não supera satisfatoriamente a síndrome de
burnout. Aqui o trabalho se torna mais exigente, porque envolve
todos os membros da instituição.
No segundo capítulo, o autor faz um longo estudo da síndrome
de burnout entre os presbíteros, que se define como “síndrome do
bom samaritano desiludido por compaixão”. Os presbíteros relatam
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os mesmos sintomas da síndrome descritos por profissionais de
outras áreas: cansaço, tristeza, desilusão, esgotamento, perda de
motivação para o trabalho, despersonalização, mudanças de humor
e comportamento, depressão, vazio existencial etc. Tais sintomas se
relacionam, no entanto, com o exercício do ministério presbiteral.
Concretamente, os presbíteros reclamam de uma sobrecarga
de trabalho, muitas vezes burocrático e repetitivo, com pouco retorno
afetivo. Denunciam frustrações graves no contato com os paroquianos
e insucessos pastorais. Há, ainda, dificuldades de convivência entre
os próprios presbíteros, marcadas por rivalidades explícitas ou
camufladas, busca de prestígio e de paróquias ricas. A distribuição de
cargos e funções na diocese nem sempre se baseia no princípio da
justiça. Muitos relatam perda da busca da intimidade com Deus na
oração, com queda no nível da espiritualidade e despersonalização.
Permanece certa desconfiança da instituição. Alguns lamentam
o recente retrocesso na inclusão dos leigos na vida da Igreja. A
multirreferencialidade atual faz o presbítero se questionar sobre
sua identidade presbiteral, marcada por perda de status e privilégios
numa sociedade mais secularizada e socialmente menos cristã. Tudo
isso provoca baixa autoestima e enfraquecimento do sentimento
de pertença ao presbitério. Muitos enfrentam sérias dificuldades
para suportar a solidão, à qual se acrescentam os problemas de
ordem afetivo-sexual, de manejo nem sempre fácil do ponto de vista
psicoespiritual. O autor, além de mostrar, com pesquisas confiáveis,
as causas do sofrimento do presbítero hoje, faz uma longa análise da
situação da Igreja antes e depois do Concílio Vaticano II, enfatizando
as consequências das mudanças socioculturais e históricas na
vida da Igreja e na sua organização hierárquica. De fato, a Igreja
ressente ainda hoje a mudança de paradigma de uma sociedade
pré-moderna (cristandade) para uma sociedade moderna e pósmoderna. A passagem de uma unidade forte, centralizadora e rígida
para a “fragmentaridade” frágil, o diálogo e a democracia fez emergir
desafios de difícil solução. Do ponto de vista histórico, a síndrome de
burnout desponta como consequência de profundas mudanças de
paradigma na filosofia, nas ciências humanas e na cultura, com as
quais a instituição nem sempre lida de modo satisfatório.
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No terceiro capítulo, o mais denso do livro, o autor se
debruça sobre a análise dos sintomas da síndrome de burnout entre
os presbíteros e o faz a partir de um sólido referencial teórico, que
leva em consideração aspectos sociais e psicológicos, sobretudo
psicanalíticos. Procura mostrar os impactos da pós-modernidade
sobre a vida presbiteral. Na verdade, profundas mudanças
socioculturais estão na origem da síndrome do bom samaritano
desiludido. Uma vez que a vida dos presbíteros está imersa na
sociedade, não se pode negar a influência que novos paradigmas
sócio-históricos exercem sobre ele. O referencial do autor, no entanto,
não se restringe a análises meramente teóricas, mas inclui seu longo
trabalho com presbíteros de diversas dioceses. Sua abordagem une a
teoria com longa escuta dos problemas dos presbíteros. A temática
do capítulo se revela vasta, complexa e até polêmica. O autor
trata da espiritualidade do presbítero, mostrando-a como lugar de
unificação do exercício do ministério com as demandas subjetivas.
Muitas vezes, a ausência do cultivo da espiritualidade desencadeia
desilusão, tristeza e perda de motivação. Partindo de um estudo das
motivações vocacionais, William analisa o imaginário vocacional do
jovem, marcado por idealizações e fantasias que se chocam com uma
realidade institucional complexa. Normalmente, as vocações nascem
nas famílias rurais, ainda bastante tradicionais, que apoiam a vocação
do filho. Outros se descobrem vocacionados através da pastoral de
juventude paroquial. Uma vez no Seminário, tendem a uma relação
de submissão à autoridade, em vista da conquista do objetivo. No
discernimento vocacional, há sempre o latente e o manifesto, como
esclarece a psicanálise. O latente costuma emergir depois que o
seminarista se tornou padre, a não ser que a formação esteja aberta
para acolher a verdade conflitiva do jovem e para ajudá-lo a fazer um
caminho de crescimento psicoespiritual.
Os relatos dos presbíteros revelam algumas insatisfações com
a convivência no presbitério, marcada por disputas, desavenças e, às
vezes, desconfiança. Nem sempre os presbíteros sentem que sua
relação com o bispo e com os colegas se realiza dentro de um equilíbrio
sadio. Há rivalidades, busca de paróquias mais rendosas e de maior
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prestígio na diocese. Por outro lado, o modelo paroquial tradicional
atravessa uma crise, causada pela emergência de um modelo midiático
de evangelização, que diminui o sentido de pertença a uma paróquia
territorial e confunde os paroquianos. A pluralidade de movimentos,
espiritualidades, estilos e modos de anunciar o evangelho deixa a
sensação de certa falta de rumo. A relação entre padres e bispos não
permanece imune ao processo das transferências. A relação com a
autoridade conjuga sempre amor, ódio e outros sentimentos. Muitos
presbíteros falam da solidão como um desafio. Embora necessária
para o processo de individuação e para a relação saudável com o outro,
quando não é bem elaborada causa muitos transtornos afetivos.
Nesse capítulo, o autor ousa abordar o tema da afetividade
e da sexualidade do presbítero. Seu discurso não se prende à frieza
acadêmica, mas nasce da escuta profissional e comprometida dos
presbíteros. De fato, a questão se revela espinhosa, a sexualidade
permanece, muitas vezes, no âmbito do latente e a pressão
institucional exerce certo controle dessa dimensão da vida do
presbítero. No entanto, os temas da sexualidade, mormente da
homossexualidade, emerge com força em conversas informais
entre os presbíteros. Seus testemunhos são contundentes e alguns
verbalizam, inclusive, uma divisão entre presbíteros homossexuais
e heterossexuais, que disputam poder e prestígio. O autor analisa,
ainda, a questão da pedofilia e da efebofilia, apresentando suas
causas e possíveis tratamentos. Avalia também a questão do poder e
do dinheiro na vida do presbítero.
O quarto capítulo aborda alternativas para a superação da
síndrome de burnout a partir da pastoral presbiteral. O enfoque do
autor se apoia nos dispositivos da clínica psicossocial, que envolve os
presbíteros e a instituição Igreja na solução de conflitos. A pastoral
presbiteral inclui três dimensões importantes: eclesial, espiritual e
pastoral. Sua concretização supõe a criação de grupos terapêuticos
onde os problemas sejam tratados de forma transparente e
respeitosa. A clínica, nesse caso, não se define como lugar de
pessoas doentes, mas lugar de cuidado com a saúde, em todos
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os seus níveis. Seu ambiente é agradável e democrático. Propõese a “fala” como excelente método de cura das questões pessoais,
pastorais e relacionais. O que não pode ser falado, também não pode
ser curado. O autor quis fornecer, ainda, material metodológico
em vista da viabilização da pastoral presbiteral nas dioceses, a ser
alavancado pelos próprios presbíteros, vistos como protagonistas de
seus saberes, de sua produção e capazes de criar instrumentos para
solucionar conflitos e problemas pessoais e pastorais. William oferece
uma série de propostas de encontros nos quais os padres verbalizam
seus desafios e, juntos, organizam soluções possíveis. O objetivo final
da pastoral presbiteral é dar mais qualidade à vida espiritual, psíquica
e pastoral do presbítero, melhorando suas relações com o bispo,
com os outros presbíteros, com os fiéis e com ele mesmo. A pastoral
seria uma forma saudável de lidar com os impactos negativos da pósmodernidade na vida do presbítero.
William nos brindou com um texto profundo e consistente
sobre a síndrome de burnout entre os presbíteros.Seu trabalho se
mostra pioneiro no contexto da Igreja no Brasil. Partindo da análise
sociocultural, histórica e psicanalítica, apresenta ao leitor um livro
maduro e equilibrado, que ousa enfrentar temas delicados, como o
sofrimento psíquico do presbítero, de maneira discreta e respeitosa
da instituição. Sua abordagem corajosa da questão da sexualidade,
sustentada não só na teoria psicanalítica da sexualidade, mas na
experiência da escuta e do trabalho com os presbíteros, reclama
respeito. Hoje muito se escreve sobre a crise da instituição e do exercício
do mistério presbiteral. Mas poucos autores têm a segurança, a
experiência e a “neutralidade” do professor William. Ele não faz críticas
gratuitas à instituição, seu objetivo se resume ao desejo de ajudar
os presbíteros e a Igreja no manejo de suas delicadas crises atuais.
Seu trabalho evidencia grande conhecimento da situação hodierna
dos presbíteros, em suas dimensões mais cruciais. E o melhor é que
William não somente aponta problemas, conflitos e desafios, mas
investiga minuciosamente suas possíveis causas, evitando soluções
prontas e apontando caminhos possíveis em vista de soluções reais
e não ideais, a partir da pastoral presbiteral, alicerçada no trabalho
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012.
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da clínica psicossocial. Seu livro se destina a todos os estudiosos da
análise institucional e, é claro, aos presbíteros e aos bispos abertos
à discussão sobre os problemas que afligem a Igreja e a vida dos
presbíteros. Sua leitura ilumina, enriquece, faz despontar horizontes
novos de compreensão da realidade atual e deixa o grande desafio da
pastoral presbiteral como caminho possível de cura e de prevenção
de conflitos psíquicos, espirituais e pastorais.
Paulo Sérgio Carrara
[email protected]
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012.
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MOLTMANN, Jurgen. Ética da esperança. Tradução Vilmar Schneider.
Petrópolis: Vozes, 2012. 313p.
Esta obra do pastor e teólogo batista alemão Jurgen Moltmann,
recentemente publicada pela Editora Vozes, vem trazer-nos uma
reflexão de fundamental importância para o tempo em que estamos
vivendo. Numa sociedade considerada pós metafísica e pós cristã
tem ainda sentido falar de esperança? E de esperança cristã? Qual o
papel da cristandade diante do vazio ético em que vivemos? O ponto
de partida teológico é o da Reforma, em especial a teologia batista,
porém numa perspectiva profundamente ecumênica.
Na base de sua reflexão está a preocupação globalizada de
um mundo em perigo: a ameaça da guerra nuclear; o absurdo do
terrorismo internacional, deixando quase que impotentes as forças de
segurança dos Estados, pois a vida deixa de ser amada e morte de ser
temida; o perigo de um colapso da natureza, por uma sociedade que
absolutiza o progresso baseado na produção e no consumo; ligado
a isso, a questão da injustiça social e da superpopulação dos países
pobres e em desenvolvimento; ainda a aplicação do conhecimento
tecnológico no campo da vida e vida humana, colocando em perigo
todas as espécies de seres vivos e até o gênero humano.
Diante dessas graves questões éticas, o que fazer? O que a
cristandade tem a dizer? Qual a responsabilidade ética dos cristãos
neste mundo ameaçado?
No primeiro capítulo, o tema tratado é Escatologia e Vida.
Partindo do pensamento escatológico dos grandes expoentes
da Reforma no século XVI, o autor vai aprofundar a ética batista
resgatando a história e a contribuição do complexo e perseguido
movimento dos anabatistas do século XVI, a cristologia e escatologia
de Karl Barth frente à tentativa de justificativa religiosa do estado
nazista, até a paradigmática contribuição de Martin Luther King,
com uma escatologia messiânica, um cristianismo engajado na luta
não violenta contra o racismo, contra a guerra, pela democracia
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participativa e os direitos sociais e a ética transformadora de Walter
Rauschenbusch, precursor do movimento golpe social, que proclama
a necessidade “de um cristianismo revolucionário que chame o
mundo de mau e o transforme” (Moltmann 56). Diz não às tentativas
de reconstrução do “sacro império cristão”, mas sim ao engajamento
na história visando à sua transformação: Não basta transformar as
espadas em espadas cristãs, é preciso que se tornem arados, com o
cuidado de não degradar a natureza; não basta ser pacífico, é preciso
ser pacificador.
No segundo capítulo, nesta mesma perspectiva teológica e
ética, a autor tratará do tema Uma ética da vida. O ponto de partida
é a constatação de Albert Camus no período pós segunda grande
guerra, de “que a Europa tenha deixado de amar a vida” (Moltmann
59). A partir daí, passa a analisar os sintomas dessa constatação: o
terrorismo, a ineficácia das políticas de dissuasão, o programa nuclear
suicida – com a constante ameaça da guerra nuclear –, o declínio do
depauperamento social, a armadilha do aniquilamento ecológico
mundial, a questão da existência da humanidade: Existe no cosmo
um princípio antrópico?, e a consciência aterrorizada. Após refletir
sobre essas ameaças reais à vida no planeta, o autor contrapõe esta
mentalidade de morte à esperança cristã, tratando do Evangelho
da vida. “O etos da esperança é, nos sinóticos, a conversão na fé no
Evangelho do Reino de Deus; em Paulo, o efeito da ressurreição do
Cristo crucificado na justificação dos ímpios; em João, a vida eterna
no amor. A conversão para o futuro, a ressurreição para a vida e a vida
vivida no amor constituem o etos cristão da esperança” (Moltmann
74). “A vida é um “fim em si mesmo”, isto é, excede utilidade e
inutilidade. Tem seu sentido em si mesma. Por conseguinte, deve
ser vivida. Não tem um valor, isto é, não pode ser utilizada. Não há
vida indigna da vida, que se pudesse destruir ou tomar de si mesmo.
Toda vida carrega em si a centelha da vida eterna. O direito à vida
é um direito humano inviolável” (Moltmann 77). “A esperança da
ressurreição de Cristo encoraja ao engajamento do amor em favor
da vida em toda parte, a qualquer hora, porque ele permite olhar
para a vitória universal da vida obre a morte” (Moltmann 78). “A vida
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acolhida e amada” (Moltmann 81).
O autor apresenta algumas orientações para uma política para
a vida conjunta: diante da ameaça da guerra nuclear, diz: “a união da
humanidade para salvar a vida na era da ameaça nuclear requer a
relativização dos interesses individuais das nações, a democratização
das ideologias que geram conflitos, o reconhecimento das diversas
religiões e a subordinação de todos ao interesse comum pela vida”
(Moltmann 82); é a justiça e não a segurança que cria a paz. Afirma que
não há paz onde reina a injustiça e a violência. “A paz na história não é
um estado, mas um processo, não é uma propriedade individual, mas
um caminho coletivo. A paz não é ausência da violência, mas presença
de justiça” (Moltmann 84). A solução apresentada como possível é a
vida em comunidade: “é claro que se pode viver na pobreza, quando
ela é suportada conjuntamente e dividida justamente. Somente a
injustiça torna a pobreza um tormento” (Moltmann 85). É preciso
repensar a forma de ser do ser humano no mundo, de repensar sua
relação com a natureza, passar da dominação à comunhão. “Uma
conversão das convicções e dos valores básicos é tão necessária como
uma conversão da mentalidade e do estilo de vida” (Moltmann 86).
Segundo o autor, “O monoteísmo estrito do cristianismo
ocidental moderno se tornou o motivo essencial da secularização
do mundo e da natureza, como imagem de Deus na terra, o ser
humano teve de se conceber (...) como dominador, como sujeito
de conhecimento e de vontade, e se confrontar com o seu mundo
e sujeitá-lo como um objeto passivo” (Moltmann 86). “A conversão
que temos de realizar passa pela mudança na imagem de Deus que
nos orientamos” (Moltmann, 87): a fé no Deus uno e trino. “Os seres
humanos não poderão corresponder a esse Deus triúno por meio da
dominação e da sujeição, mas apenas por meio da comunhão e da
reciprocidade que promove a vida” (Moltmann 87).
Em um parágrafo especial deste capítulo sobre o Evangelho da
Vida, o autor tratará da ética médica. Dirá que “quanto maior se torna
o poder técnico-científico sobre o processo vital, maior é o alcance
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da responsabilidade de todas as pessoas envolvidas” (Moltmann 89).
Não pode o “ser humano brincar de Deus com a vida e a morte dos
outros seres humanos” (Moltmann 94). A partir daí refletirá sobre
a ética do início da vida, o estatuto do embrião e critérios éticos e
jurídicos a serem seguidos no que se refere ao controle da natalidade
por meio da esterilização ou da inseminação artificial, a questão da
concepção e do aborto, o aborto por indicação médica, por indicação
criminológica e indicação social. Por fim trata da ética do final da vida,
sob o título a vitalidade na saúde e na doença. Aqui a grande questão
será ajudar aos médicos a vencer a tentação de tornarem-se somente
intérpretes de exames, negando o relacionamento. “O doente não
é um objeto, mas sempre ao mesmo tempo um sujeito” (Moltmann
113), uma pessoa humana doente. Reflete sobre o conceito de saúde,
e a vitalidade no morrer e na morte. Afirma que “a vida humana não
é um meio para um fim, ela vive porque é vivida. É boa em si mesma
porque é amada, afirmada e justificada a partir da eternidade”
(Motmann 116), “deve-se aceitá-la mesmo na sua finitude e amá-la
na sua fragilidade. Citando o Catecismo de Heidelberb, conclui que
“não serve à vida o que não consola no morrer” (Moltmann 117).
Também reflete eticamente sobre o suicídio ou morte livre dizendo
que “nenhum ser humano mata a si mesmo no ápice de sua liberdade.
O suicídio é, geralmente, resultado da falha de liberdade sem saída”
(Moltmann 119). No que se refere à morte a pedido, diz que raramente
tem a ver com a “autodeterminação e liberdade; na maioria dos
casos, trata-se de uma legítima defesa contra situações insuportáveis
ou imaginadas ou percebidas como indignas em que as pessoas se
encontram” (Moltmann 121).
A assistência para provocar a morte pode consistir em um
fazer ou em um deixar de fazer. “Sugerir o pedido de morte provocada
a deficientes, doentes incuráveis e pessoas idosas é condenável,
porque é cínica. Desobriga os ‘saudáveis e aptos’ da solidariedade, da
compaixão e do amor ativo ao próximo” (Moltmann 122). Quanto às
clínicas de eutanásia que se espalham pelo ocidente, diz: “Penso que a
oferta comercial de assistência ativa para morrer é algo abominável”
(Moltmann 123). “Deve-se responsabilizar o ‘deixar’ morrer. Dele
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faz parte um bom acompanhamento do morrer, para que o doente
agonizante possa deixar sua vida consolado e afirmado” (Moltmann
123).
O autor conclui o capítulo refletindo sobre o tema central da
fé cristã, que é a ressurreição da vida. “Proponho-me falar de uma
ressurreição da vida em vez de uma ressurreição dos mortos, do
corpo ou da carne” (Moltmann 125). Refletindo sobre a espiritualidade
do corpo, dirá que “vida rejeitada, não amada, negada, é vida
desperdiçada e morta. O que experimentamos aí é a morte antes da
morte” (Moltmann 126). “A esperança na ‘ressurreição da carne’ influi
em nossa vida corporal e sensorial aqui e agora!” (Motmann 127).
“Quem se sente aceito e amado, também está bem consigo mesmo e
aceita seu corpo assim como ele é e vem a ser com o passar do tempo”
(Motmann 131).
O terceiro capítulo tem por tema A ética da terra. Como
o capítulo anterior, um texto denso, com diversas e complicadas
subdivisões. Tem por objetivo questionar o antropocentrismo
moderno, construído sob a autonomia do sujeito e sob o ímpeto do
domínio e do poder. A grande preocupação é o futuro da natureza, o
risco de uma catástrofe ecológica mundial e da civilização humana
atual, diante da sede de domínio e exploração sem medida dos
recursos naturais na busca desmedida de riqueza e poder. Considera
que o antropocentrismo judeu, cristão e islâmico é responsável por
esta mentalidade, que levou o ser humano a agir de forma despótica,
como dominador e destruidor da natureza. A partir de uma bela
teologia da criação, baseado em Christoph Blumhardt e Dietrich
Bonhoeffer, o autor vem chamar a atenção para a necessidade de
uma compreensão da relação entre o ser humano e a natureza, a
uma mudança de estilo de vida, um modelo comunitário marcado
pelo respeito por todas as formas de vida e à natureza em geral, onde
a ideologia do capitalismo neoliberal, construído sob a competição
desmedida, baseada no consumo, na produção e no lucro seja
colocado em cheque. O que está em jogo é a vida do planeta. É
preciso pensar nas gerações futuras, limitar nossa sede de progresso,
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pensar globalmente e agir localmente. O estilo de vida pessoal tem
consequências globais, e as mudanças globais afetam a vida pessoal.
A vida da comunidade cristã primitiva oferece luzes para este novo
estilo de vida: uma vida baseada na fé no Cristo ressuscitado, na
partilha, na propriedade comum dos bens, na solidariedade.
O quarto capítulo tem por título A Ética da Paz Justa, uma
ética política da paz. O ponto de partida é a consciência de que a
base de uma vida em paz é a justiça. Desenvolve o capítulo tentando
responder à questão: qual justiça humana corresponde à justiça de
Deus e promove a vida e conserva a terra? Primeiramente trata da
questão da relação entre justiça e igualdade. Afirma que os direitos
humanos são um primeiro esboço de uma constituição universal da
Humanidade. Num segundo ponto considera a grave questão de
que os problemas do mundo moderno se tornaram globais, ao passo
que as instituições políticas permanecem locais. A primeira tarefa
em face aos problemas globais será, portanto, a superação desse
déficit da política. Constata que a ética sempre chega tarde, e que
é a confiança a substância, o bem supremo da política democrática,
que ela é provocada pela humana e tira consequências para a vida.
Historicamente, reflete sobre as religiões do ut des, desde Teodósio e
Justianiano até a modernidade. Depois reflete sobre a justiça a partir
da concepção do carma indiano e do Antigo Testamento. Elabora
uma reflexão sobre os limites dos conceitos de justiça distributiva,
chamando a atenção para o cuidado com as vítimas. Passa depois
ao conceito de justiça criadora, redentora e restauradora: justitia
justificans. Diz que é preciso garantir o direito no mundo das vítimas
e dos autores dos crimes, que na missão da Igreja são necessários os
carismas da diaconia e da profecia, que os cristãos devem defender as
vítimas, porque o próprio Jesus foi vítima da violência e da injustiça. A
partir daí, passa a refletir sobre o conceito de poder. Quando este se
torna bom e justo? Chama a atenção para que o Estado mantenha em
suas mãos o monopólio da violência, para a defesa da sociedade da
ação de grupos de criminosos e do terrorismo. Por outro lado, chama
a atenção para o direito e a obrigação da resistência social, quando
a polícia e os militares atentam contra as leis do Estado, quando o
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governo promulga leis em contradição com a própria constituição e
quando um governo chega ao poder por meio de um golpe interno,
ou de uma ocupação externa. Nessas situações, “o amor ao próximo
é mais importante que a obediência a toda autoridade” (Moltmann
230). Conclui refletindo sobre a doutrina da guerra justa, seu indevido
uso como justificativa dos Estados soberanos e suas guerras e, ligado
ao tema, a questão da doutrina do armamento atômico. Por fim,
apresenta o ideal de uma sociedade sem armas e o inovador amor
ao inimigo. “A responsabilidade secular cristã requer uma ética da
responsabilidade secular, de acordo com o parâmetro da justiça e da
paz que procuramos crer e viver no discipulado de Cristo” (Moltmann,
243). É preciso integrar os direitos humanos individuais e sociais, os
direitos humanos econômicos e os direitos ecológicos da natureza.
“Assim, como a ética cristã se move no marco dos direitos humanos
– se quiser se tornar relevante hoje –, a esperança universal cristã os
integra em sua visão global” (Moltmann, 270).
A obra é concluída com um quinto capítulo tem por título
A alegria em Deus, contrapontos estéticos. Aqui reflete sobre o
fundamento bíblico do Shabbat: a celebração da criação, o júbilo da
ressurreição de Cristo e a paz em meio ao conflito. “Ao descanso e
ao júbilo acrescentamos, como terceiro dom, a paz: não a paz que
acaba com todo o conflito, mas primeiramente a paz que, em meio ao
conflito, nos permite levar o conflito a um termo justo” (Moltmann,
281). “Quem sente em si a proximidade do Cristo Ressurreto, é
tomado por uma alegria que abraça o mundo. Ele vê este mundo
controverso e sofredor já no ‘resplendor matutino’ de sua beleza
eterna” (Moltmann, 283).
Amarildo José de Melo
[email protected]
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.21, p.101-114, jan./jul. 2012.
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c) Entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações,
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4 cm e utilizar fonte Times, corpo 10.
e) Para texto citado com menos de três linhas, usar aspas
no próprio corpo do texto.
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artigo, texto, nome do(s) autor(es), referências e anexos.
h) Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da
primeira página com fonte Times 12, em formato negrito,
todas as letras maiúsculas.
116 |
i) Digitar os títulos de seções com fonte Times, corpo 12, em negrito.
O título da introdução deve ser redigido na terceira linha após o
título. Os demais títulos, duas linhas após o último parágrafo da
seção anterior (pular linha). Os títulos de seções são numerados com
algarismos arábicos seguidos de ponto (por exemplo, 1. Introdução,
2. Fundamentação teórica). Apenas a primeira letra de cada subtítulo
deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes próprios.
j) Artigos e comunicações devem ter entre 4 mil e 8 mil palavras,
incluindo os anexos; recensões, entre 1 mil e 2 mil palavras.
k) As referências devem ser indexadas pelo sistema autor data
no corpo do texto e não em nota de rodapé. Para citar, resumir ou
parafrasear um trecho da página 36 de um texto de 2005 de Pedro da
Silva, a indexação completa deve ser (SILVA, 2005, p.36). Quando o
sobrenome vier fora dos parênteses deve-se utilizar apenas a primeira
letra em maiúscula.
l) Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em
itálico. Use itálico para indicar ênfase ou grafar termos estrangeiros.
m) As referências devem ser antecedidas da expressão Referências,
em negrito. A primeira referência deve ser redigida na segunda linha
abaixo dessa expressão. As referências devem seguir a NBR 6023
da ABNT: os autores devem ser citados em ordem alfabética, sem
numeração, sem espaço entre as referências e sem adentramento;
o principal sobrenome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e
iniciais dos demais nomes do autor (Por exemplo: MATOS, Henrique
Cristiano José. Liturgia das horas e vida consagrada. Belo Horizonte:
O Lutador, 2004.)
n) Se houver outros autores devem ser separados uns dos outros por
ponto e vírgula; título de livro, de revista e de anais, em negrito; título
de artigo: letra normal, como a do texto.
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4. Dados dos autores
Os autores deverão informar seus dados pessoais: nome completo; instituto
religioso ao qual estão vinculados (opcional); maior titulação; atividade
atual (local e instituição); endereço eletrônico.
5. Exemplares dos autores
Os autores de artigos e comunicações publicados receberão três exemplares
da revista; de recensões, dois exemplares.
LIVROS RECEBIDOS
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VOZES
www.livrariavozes.com
O cuidado necessário
Autor: Leonardo Boff
O Planeta e a humanidade estão correndo grave
risco em consequência das mudanças provocadas
pela exacerbada intervenção humana em todos
os campos da natureza e da cultura. Dois valores
constituirão as pilastras báscias que poderão
garantir um novo modo de habitar a Terra: a
sustentabilidade e o cuidado. A sustentabilidade
permitirá manter, transformar e reproduzir o já
existente. O cuidado representa uma forma suave,
amiga e harmoniosa com que a sustentabilidade
é implementada. Ele cura as feridas passadas e
previne as futuras. Esse cuidado se estende a todas
as esferas da vida: à saúde, à educação, à ecologia,
à ética, à espiritualidade e ao cotidiano de nossas
existências, amplamente abordadas neste livro.
Inteligência espiritual
Autor: Francesc Torralba
Segundo o autor de nosso livro, a Inteligência Espiritual
é constitutivo do ser Humano, ou seja, todos temos uma
inteligência espiritual, mas aqueles que a desenvolvem
tem maior capacidade de lidar com as contradições da
vida e do trabalho, maior compreensão da própria finitude
e da dinâmica da vida, com seus altos e baixo. Uma pessoa
Inteligente Espiritualmente não é arrogante na Vitório ou
sucesso e não se abate nas derrotas ou frustações, entende
isto como parte do processo da vida.
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Pai-nosso - Orar com o Espírito de Jesus
Autor: José Antonio Pagola
Pai-nosso, do mesmo autor de Jesus - Aproximação
Histórica, apresenta esta oração tendo como objetivo
desenvolver a atmosfera espiritual que faz dessa prece a
mais vivida no cristianismo. A obra está dividida em duas
partes. Na primeira, apresenta uma reflexão ou comentário
bíblico-espiritual a respeito do conteúdo desta oração,
seguida, na segunda parte, por súplicas dos salmos que
ajudam a criar ressonâncias espirituais ao rezar e meditar
essa oração. O Pai-nosso apresenta o resumo e o cerne de
todo o evangelho, por isso, nada melhor do que conhecêlo melhor e ter o auxílio dos salmos para mentalizar suas
invocações e petições.
Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média
Autor: José D’Assunção Barros
A história da Igreja e da religiosidade medievais é
certamente marcada por tensões e conflitos diversos,
não apenas entre a Igreja e os poderes constituídos,
como também entre a Igreja oficial e as novas formas de
religiosidade que começam a se afirmar neste período.
Este entremeado de relações é o objeto dos seis ensaios
reunidos neste livro. Do surgimento das Heresias e das
ordens menores às relações entre Papado e Império, ou à
constituição de um imaginário específico no qual a religião
desempenha um papel particularmente importante, o livro
Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média procura
examinar os diversos atores envolvidos nesta complexa
história que fornece uma das raízes das sociedades
européias e americanas do mundo moderno.
| 121
PAULUS
www.paulus.com.br
Reforma Litúrgica: renovação ou revolução?
Autores: Antônio S. Bogaz e João H. Hansen
Este livro pode ser considerado um verdadeiro tratado
sobre Reforma Litúrgica, pois em suas páginas podemos
reconhecer os caminhos da liturgia como fonte e ápice
da vida da Igreja. A partir do itinerário do Movimento
Litúrgico, os autores descrevem as conquistas preciosas
que se descortinaram com a Reforma Litúrgica proposta
pelo Concílio Vaticano II, particularmente por meio da
Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium.
Os padres da igreja: de Clemente Romano a Santo
Agostinho
Autor: Bento XVI
A publicação reúne as catequeses que o Santo Padre
Bento XVI quis dedicar aos mais importantes escritores
eclesiásticos dos primeiros quatro séculos cristãos, de
Clemente Romano até Santo Agostinho. O papa Bento,
com a vivacidade da linguagem falada, abre uma fascinante
galeria de vinte e seis quadros, cada um deles dedicado a
um autor das origens cristãs. Procede principalmente em
ordem cronológica — dos padres apostólicos e apologetas
até os grandes padres que viveram entre o século III e as
primeiras décadas do século V —, considerando as Igrejas
do Ocidente e do Oriente.
122 |
Arqueologia das terras da Bíblia
Autor: José Ademar Kaefer
Na história da pesquisa bíblica, a arqueologia sempre
tem tido papel determinante. Nas últimas décadas, com
o desenvolvimento de novas técnicas, novos métodos e a
inclusão de novas ciências, esse papel tem aumentado. As
novas descobertas arqueológicas exigem dos estudiosos
uma revisão ampla da compreensão dos textos bíblicos,
particularmente no que diz respeito ao contexto histórico e
literário. O livro trata dos principais sítios arqueológicos de
Israel e alguns da Jordânia, sendo de excelente ajuda para
estudantes, professores e também para peregrinos às terras
santas terem uma informação prévia e concisa dos lugares
a visitar.
A Igreja e seus ministros: Uma teologia do ministério
ordenado
Autor: Francisco Taborda, SJ
A Igreja não é um rebanho passivo, mas uma comunidade
articulada em diferentes funções. Todas elas provêm do
Espírito de Deus, seja na espontaneidade da vida, pelas
qualidades com que Deus dota cada pessoa, seja suplicando a
Deus no sacramento que dê a essa pessoa, reconhecida apta
pela comunidade, a graça do ministério ordenado, expresso
pela coletividade, pela comunidade eclesial. Assim sendo, a
primeira parte desta obra tratará de estabelecer a maneira
como a Escritura e a Tradição nos apresentam o ministério
ordenado, para posteriormente ser analisados a celebração
do sacramento da ordem e o valor nele expresso.
O desgaste na vida sacerdotal: Prevenir e superar a
síndrome de burnout
Autor: Helena López de Mézerville
A necessidade que a Igreja tem de entender, prevenir
e superar a “síndrome de burnout” ou desgaste na vida
sacerdotal é algo primordial para o sacerdócio do século XXI.
Num recente estudo feito pela doutora Helena López de
Mézerville, demonstrou-se que três em cada cinco dos quase
novecentos sacerdotes latino-americanos entrevistados
estavam média ou gravemente esgotados. Esta obra se
apresenta como o ápice de um trabalho que procura melhorar
a qualidade de vida de seminaristas, presbíteros e religiosos
em toda a América.
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Paradigma Teológico de Tomás de Aquino
Autor: Frei Carlos Josaphat
O leitor deste Paradigma teológico de Tomás de Aquino poderá
participar de uma incrível experiência espiritual e intelectual
que é percorrer os meandros da Suma de Teologia, guiado
por alguém que não apenas a conhece muito bem, mas
também vivenciou os ensinamentos aí recolhidos: frei Carlos
Josaphat. Nisso, aliás, assemelha-se o autor de Tomás de
Aquino, que conhecia a doutrina cristã de maneira exímia e,
uma vez que a absorveu por completo, tratou de experienciála em sua vida. Totalizando 17 capítulos e uma bibliografia
elementar, frei Carlos esmiúça a Suma de Teologia em mais
uma interessante chave de leitura, que desperta o gosto por
saborear a obra clássica por excelência da teologia cristã.
124 |
IDÉIAS & LETRAS
www.ideiaseletras.com.br
Compreender o outro: Administrando diferenças para a
convivência global
Colaborador: Martin Vielajus
A mundialização não é uma dominação.Ela aproxima
claramente os espaços e o tempo da comunicação, mas
não apaga a diversidade cultural. Este livro reflete sobre
os mal-entendidos culturais na mundialização e sobre as
importantes áreas de acordo que hoje desafiam quem lida
no campo humanitário, nas empresas e nas organizações
internacionais, diante de pessoas levadas a trabalhar ou viver
em culturas que não são as suas. As culturas do outro trazem
inúmeras perguntas: Temos sempre a mesma concepção
de tempo? De ação? De riqueza? Da hierarquia? De vínculo
com o ambiente? Falamos a mesma linguagem? Toda a
comunicação é verbal? São questões que nos ajudam a tomar
consciência de nosso próprio condicionamento cultural e nos
motivam a praticar as duas virtudes da relação intercultural:
a dúvida, que não impede termos convicções; e a paciência,
que não impede termos dinamismo.
Quem é seu dono? A disputa para patentear os genes
humanos
Autor: David Koepsell
“Quem é seu dono?” Essa pergunta, apesar de parecer
simples e até mesmo estranha e ultrapassada, ganha
novos ares e contornos quando inserida no mundo
contemporâneo. Nos últimos cem anos, emergiram novas e
mais sutis formas de posse, que têm hoje um impacto sobre
qualidades e características essenciais de cada um de nós.
Esta obra investiga como as leis de propriedade intelectual
têm sido utilizadas para reivindicar direitos sobre blocos de
construção essenciais de múltiplas formas de vida, incluindo
seres humanos – os genes.
Com o fim da corrida para mapear o genoma humano,
começa agora a competição entre grandes companhias para
patentear os genes. No entanto, como isso é possível? O
livro faz despertar para as implicações de longo alcance da
natureza insidiosa do patenteamento de genes.
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Sociologia da droga
Autor: Henri Bergeron
O consumo de drogas já se tornou um fato social bemestabelecido, acredita o autor. Nesse sentido, surge a
dicotomia entre a continuidade de uma prática que é agradável
por um lado e, por outro, é reconhecidamente nociva, e da
qual, por vezes, se quer libertar. Quais são os determinantes
da massificação recente do consumo de drogas? Quais são
os processos sociais e políticos que presidiram a classificação
de certas substâncias como entorpecentes? Essas são
apenas algumas das questões tratadas neste livro, volume
indispensável para quem deseja compreender um dos mais
complexos problemas sociológicos dos últimos sessenta
anos.
Filosofia Clínica e Humanismo
Autor: José Maurício de Carvalho
Uma excelente fonte de informação para especialistas
bem como para aqueles que buscam um primeiro contato
com a Filosofia Clínica, método criado pelo psicanalista e
filósofo Lúcio Packter, que direciona os procedimentos de
diagnose e tratamento a partir da metodologia filosófica. A
elaboração da obra conta com dois procedimentos distintos:
o desenvolvimento de conferências e estudos apresentados
sobre o assunto e uma entrevista com a Assessoria Virtual
do Instituto Packter. Nesse sentido, o objetivo do autor é
mostrar que a Filosofia Clínica consiste em uma técnica de
ajuda pessoal, que respeita o sofrimento e o mundo singular
dos indivíduos.
Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica
Autor: Edmund Husserl
Com a publicação deste volume, o público brasileiro
interessado por filosofia tem finalmente acesso, em
português, a um texto fundamental para se compreender um
momento decisivo da história da fenomenologia. Assim como
para se medir o sentido e alcance de algumas das querelas
que agitaram aquele setor da filosofia contemporânea que
se proclama herdeiro de Husserl, pouco importando se mais
ou menos infiel. Trata-se do projeto original de filosofia
transcendental que permite ao leitor medir a envergadura
de outros textos de Husserl, assim como entender o sentido
e as razões subjacentes à introdução de novos conceitos na
fenomenologia.
126 |
SANTUÁRIO
www.editorasantuario.com.br
A economia à luz da Bíblia: Reflexões bíblicas sobre o
dinheiro e propriedade
Autor: Rodolfo Haan
A problemática econômica contemporânea é analisada sob
a ótica dos relatos e posições da Bíblia. Para essa análise, o
especialista holandês Rodolfo Haan vale-se de expressões
bíblicas sobre questões como segurança e técnica, comércio
e desenvolvimento, produtividade e distribuição, riqueza e
pobreza. A obra não propõe um estudo sobre a economia
no tempo dos relatos da Bíblia, e sim ultrapassa as barreiras
cronológicas. Dessa maneira, o significado espiritual
do processo econômico é esclarecido e alcança-se uma
compreensão mais aprofundada da sociedade moderna e o
lugar em que nela ocupa a fé cristã.
Teologia em diálogo: os desafios da reflexão teológica na
atualidade
Organizador: Ney de Souza
A obra apresenta uma série qualificada de artigos de
renomados pesquisadores na área de teologia, tendo como
pano de fundo o Concílio Vaticano II e as contribuições da
teologia latino-americana para a articulação entre fé e vida.
O conjunto de textos selecionados por Ney de Souza
ultrapassa o mérito científico, permitindo ao leitor uma
reflexão teológica ampla, focada também no compromisso
da Igreja Católica com a justiça social e a construção de uma
sociedade solidária.
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CUPOM DE ASSINATURA ANUAL
Revista Horizonte Teológico
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