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Heloisa Gadelha Talarico
O corpo fala?*
The aim of this article is to reflect on various body languages.
The body speaks through partial paralysis, a typical example of hysterical conversion
where the symptom appears and disappears, taking on the form of a metaphor.
Could lesions in organs also be considered forms of body language?
We discuss this question based on a clinic case.
> Key words: Psychoanalysis, body, unconscious understanding, desire
Como escutar a fala de um corpo? Podemos dizer que o corpo fala por meio de
seu sintoma?
Em meu percurso clínico tenho obtido a
seguinte resposta: Quando o homem não
fala sobre suas necessidades, desejos e
angústias, seu corpo acaba falando por ele.
O corpo muitas vezes fala por uma paralisação parcial, exemplo típico da chamada conversão histérica, onde o sintoma
aparece e desaparece constituindo-se
como uma metáfora. Poderíamos dizer que
uma outra maneira do corpo falar, seria
lesando seus próprios órgãos?
Como um lapso, a lesão de órgãos poderá portar um saber de si que se encontra
encoberto e necessita aparecer?
O lapso surpreende o sujeito e ensina
algo, pois à medida que sua fala “escapa”,
ou seja, quando ele diz, sem saber o que
*> Este artigo foi elaborado sob a supervisão do Prof. Dr. Mário Eduardo Costa Pereira.
pulsional > revista de psicanálise > artigos > p .33-39
ano XVI, n. 167, mar./2003
A intenção desse artigo é refletir sobre as diferentes falas de um corpo.
O corpo fala por meio de uma paralisia parcial, exemplo típico da chamada conversão
histérica, onde o sintoma aparece e desaparece, constituindo-se como uma metáfora.
Poderíamos colocar que uma outra maneira do corpo falar, seria lesando seus próprios
órgãos?
Discuto essa questão à luz de um caso clínico.
> Palavras-chave: Psicanálise, corpo, saber inconsciente, desejo
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disse, existe um saber “inconsciente”, que
surpreende e aponta para algo novo, ou
já conhecido e esquecido?
Assim, poderíamos colocar a lesão de órgão como uma forma violenta e urgente
de falar. Uma fala que rompe, ferindo o
corpo, portadora de uma marca responsável pela cisão corpo e mente.
Pensar a lesão de órgão como portadora
de um saber alienado de si, onde é necessária a separação, o corte, mente/corpo,
para uma posterior reintegração? Reintegração esta que propicie uma desalienação do sujeito em relação a seu próprio
desejo. Como se o corpo precisasse dessa “marca” para ressurgir como corpo desejante de um sujeito.
Talvez essas questões obtenham mais sentido se discutidas à luz de um caso clínico.
O atendimento, que chamarei de Júlia,
aconteceu em um Hospital Universitário,
onde iniciei uma pesquisa sobre a necessidade da inserção da prática psicanalítica em Hospitais Gerais, em condições a
priori distintas das estabelecidas nos consultórios privados.
Júlia, 34 anos, com diagnóstico de lúpus
eritematoso sistêmico desde 1991. Deu entrada no Hospital, em 3/12/1997, com
quadro de confusão mental, queda do nível de consciência e alteração do ciclo
sono-vigília. Após investigações clínicas,
seu laudo médico relata possuir comprometimentos viscerais, tendo apresentado
quadro de mutismo, fato não esclarecido
no prontuário médico.
Com indícios de vasculite cerebral, diagnóstico não confirmado, mas não descartado pela equipe médica, apesar de exames com resultados normais.
Foi encaminhada para o Ambulatório de
Psiquiatria, em setembro de 1998, após
ter passado por vários departamentos,
incluindo reumatologia e neurologia.
Nesse hospital, recebemos os pacientes
por meio de indicação do psiquiatra responsável pelo caso. Normalmente, os pacientes continuam em tratamento com o
psiquiatra.
O atendimento em parceria mostrou-me ser
possível instaurar a relação transferencial,
apesar da interferência de terceiros, fato
inerente ao tratamento realizado dentro
de uma instituição hospitalar.
Esse caso começou diferente. Júlia veio
para a psicoterapia após alta ambulatorial, o psiquiatra só iria atendê-la se fosse necessário.
Nesse atendimento não existia a “dupla”
atuando em conjunto. Recaía sobre mim
uma maior responsabilidade.
Nosso primeiro encontro desenrolou-se
de uma maneira especial. Senti Júlia querendo me mostrar algo de importante.
Havia uma urgência em seu olhar. Um
sentimento estranho no ar. Ela entrou tímida e vacilante. Sua fala, de início,
truncada, um pouco “gaga”, mas com um
olhar firme, intenso. Ela parecia mais preocupada em me olhar e em sentir o meu
olhar, do que em falar... Aqui aparece a
demanda inscrita no sintoma.
Expliquei que aquela consulta era diferente das demais consultas do hospital.
Eu estava ali para ouvi-la, e ela para falar
sobre o que quisesse...
Assim, ela passou a discorrer sobre sua
doença, pois esta era a razão que a trouxera a meu encontro.
Cabe ressaltar que nos hospitais, os pacientes possuem prontuários com informações sobre seu quadro clínico e sua evolução. Assim, utilizam o termo “minha
doença”, pois sabem que os detalhes
artigos
Eu tinha saudades... me sentia só, ficava um
vazio. Era como um buraco onde eu acumulava mágoas. Eu não falava disso, guardava
para mim.
Ela começa associar a doença à sua história quando conta:
Antes da doença levava uma vida normal,
dava aula de pintura em cerâmica, tinha
minha casa. Hoje, vivo na casa de minha
sogra. Lá, existe muitos palpites, e isso me
deixa muito nervosa. Agüento tudo calada.
À medida que tentava falar, com dificuldade, sobre suas angústias, ela se mostrava mais calma, terminando a entrevista
sem gaguejar.
Até aí, eu não tinha conhecimento de seu
quadro médico. Foi por meio de um comentário informal com seu psiquiatra,
que ele disse tratar-se de um caso de lúpus. O diagnóstico me impactou. Era minha primeira experiência com essa “doença”. Compreendi o sentimento estranho
que inicialmente pairava no ar. O algo de
importante que logo de início ela queria
mostrar, e não conseguia, estava expresso por um grave e destrutivo sintoma.
Não estaria sua dificuldade de falar atrelada a um sintoma que falava por ela?
Essa questão se instaurou diante do meu
impacto frente a sua doença.
Assim, nosso segundo atendimento transcorreu de uma forma diferente, mais difícil. Tive a sensação de estar diante de
um caso difícil, mas tão difícil, que não
saberia o que fazer com ele. Aqui percebi a importância do analista não dissimular o medo que sente diante de seu paciente. É necessário se conscientizar e
tentar entender muito bem o sentimento
despertado por alguns pacientes, a fim de
não atuar no processo. Situações como
essa enfatizam a necessidade da análise
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técnicos estão na pasta que os acompanha e
identifica, dentro dos diferentes setores.
A constante utilização do termo, “minha
doença”, pela maioria dos pacientes, não
pode ser vista como uma necessidade velada de embutir algo de singular dentro
do sistema hospitalar?
Contou que a primeira hospitalização
aconteceu após o nascimento de seu filho.
Depois que meu filho nasceu eu afundei...
ele tirou toda a minha resistência... Fui internada dez dias após seu nascimento. Permaneci em coma durante trinta dias. Quando voltei, permaneci durante alguns dias
consciente, mas sem falar... As enfermeiras
diziam que nessa fase eu estava muito agressiva. Eu não falava, mas me debatia, urrava.
Perguntei mais sobre o nascimento do filho.
Meu filho só chorava, ninguém me ajudava... Minha mãe ficava comigo durante o dia.
Sentia raiva quando ela saía. Meu leite secou, queria que ela ficasse para ajudar a esquentar o leite.
A profunda relação simbiótica que possuía com a mãe, a impediu de ocupar a
posição de mãe. Assim, a grande evolução
da doença, a internação, a coma, o mutismo, a impediram, temporariamente, de
exercer a nova posição. Aqui, seu corpo estava falando, mas ela ainda não entendia,
só atuava...
No decorrer da entrevista Júlia consegue
apropriar-se de fatos que até então se encontravam dispersos em sua memória.
Durante o relato, ela se depara com o desamparo que viveu após o casamento.
Quando casei minha mãe não ia me visitar... Meu marido reclamava... Fiquei casada
durante sete anos, sem filho. Ela só entrou
em minha casa quando meu filho nasceu.
Permiti que Júlia se aprofundasse nesse
período, diz ela:
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pessoal do analista.
Nessa sessão ela começou a falar sobre a
morte do irmão:
Eu gostava demais dele, parece que era a
única pessoa que me entendia. Minha doença apareceu seis meses após a sua morte.
Tentei indagar mais sobre esse episódio,
pois, provavelmente, havia nessa lembrança
algo de significativo para ela, mas Júlia
ainda não estava pronta para lembrar...
Em função das dificuldades que o caso me
suscitava, resolvi conhecer mais sobre o
assunto e supervisioná-lo periodicamente.
“Neurotizar o que está disperso...”, essa
foi minha primeira orientação.
Não houve sessão seguinte. No dia anterior ela ligara avisando que não viria, pois
havia batido o carro e estava com o braço enfaixado e dolorido.
Esse acontecimento sinalizou-me para o
fato de que, frente às emoções geradas
pela escuta de sua própria fala, ela reagia
de forma concreta. Tive a sensação de estar diante de um doente indecifrável, que
atuava lesando o próprio corpo; isso me
travava.
Após o acidente veio para a sessão chateada, sentindo-se culpada pelo estrago
do carro e particularmente triste com a
sogra.
Minha sogra disse que deveriam cassar minha carta, em função da minha doença. O
que me aconteceu poderia ter acontecido a
qualquer um...
Nessa sessão minha escuta ficou presa ao
concreto da batida, não conseguindo
levá-la a metaforizar sobre o significado
de sua atuação.
Ao terminarmos percebi Júlia menos culpada, mas muito triste.
À medida que nossos encontros aconteciam, a relação transferencial se consoli-
dava, ela se sentia menos ameaçada, e seu
vínculo com o passado despertava.
Minha mãe sempre dava razão para minha
irmã. Comigo ela só brigava. Minha mãe só
gostava dela. Um dia até com meu pai ela
gritou, e até ele recuou. Só agora, depois que
fiquei doente, minha mãe resolveu se importar comigo. Hoje sou a que ela mais protege. Mesmo assim, ela pergunta tudo para
minha irmã. Minha irmã é a chefona... Eu
implico muito com isso.
Assim, podemos colocar:
“Se o inconsciente fosse fogo de artifício,
estas seriam as faíscas que, efemeramente, iluminariam o horizonte” (Cesarotto,
1996, p. 153).
Aqui, começam a despontar as faíscas de
sua problemática familiar. Ela consegue
verbalizar o ciúme que sente frente à
irmã, e o quanto a doença serviu de ponte entre seu desejo e a dificuldade de
simbolizá-lo, necessitando, até hoje, da
atenção e proteção da mãe.
Na semana seguinte ela apareceu mais
animada, continuou falando sobre a relação com a irmã, contando sentir-se
inferiorizada, pois não conseguiu se formar, e casou-se com um homem pobre.
Sempre agüentei as diferenças que minha
mãe fazia, sem me queixar. Eu sempre
agüento tudo calada... Terminando com um
sorriso...
Ela começa a se dar conta de que, ao calar, o corpo falava em seu lugar, adoecendo.
Eu sentia o vínculo transferencial se afirmando a cada sessão, mas achava que
caminhávamos a passos de tartaruga.
Nos atendimentos posteriores procurei investigar melhor a relação que ela tinha com
o olhar.
O que aquele olhar inicial queria me dizer?
tempo, se acalma e conta ter ficado quatro dias na casa dos pais, apesar da desaprovação do marido, e tudo começou
quando ela voltou para sua casa.
Eu voltei com febre e diarréia. Meu marido
me levou para o hospital. Ele não ficou bravo comigo. Toda vez que eu saía com meu
namorado, quando voltava meus pais não me
olhavam... Ficavam de cara feia comigo por
semanas. Não me davam bola. Eu ficava triste, largada e infeliz... Estava com medo que
meu marido fizesse a mesma coisa, brigasse muito comigo.
Essa súbita piora me fez pensar mais sobre o caso. Será possível ajudá-la? Será
que nesse caso a psicanálise pode vir a
atrapalhar? Tendo a psicanálise como
objetivo fazer o sujeito defrontar-se com
as suas verdades esquecidas, colocando
o adulto em contato com suas reivindicações infantis. Nesse caso, à medida que
ela se apropriava das cenas vivenciadas
em seu passado, quando uma fala inconsciente acontecia... o corpo reclamava e a
doença progredia.
Meu supervisor coloca que o contato
com a verdade nunca pode vir a atrapalhar, exemplificando: “Quando o pai de
uma criança morre, o que é melhor dizer:
seu pai morreu, ou seu pai saiu e volta
mais tarde...”
Assim, a supervisão me conscientizou
mais uma vez do fato de que o contato
com a verdade nunca pode ser prejudicial, desde que se crie condição para se
acolher essa verdade.
Em se tratando de ir ao encontro da verdade, eu não me neguei a procurá-la...
Sentia que o caso me “travava” e isso não
ocorria em função de sua gravidade.
Existia um ponto cego..., que foi desfeito
em função da supervisão individual e
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Meu pai só me olhava, não precisava dizer
mais nada... Meu pai era muito severo. Era
só ele me olhar que eu ficava quieta. Me arrepio só de lembrar... É só alguém me olhar
feio que eu murcho... nem consigo falar...
Se pensarmos que “O outro aparece aos
olhos do eu como fonte de todas as respostas possíveis...” (Lacan, 1993, p. 42).
Como ela se organizou frente a um olhar
que lhe causava arrepio?
Não seria essa resposta que, transferencialmente, ela buscava em meu olhar?
Para se organizar, necessitava de um
olhar...
Ela mostrou isso, logo de início, ao interpelar-me através do olhar.
Investigando mais sobre a forma como
seu pai a olhava, ela conta que esse olhar
feio era dirigido a ela e ao irmão que
morreu.
Só eu e meu irmão tínhamos esse medo... Ele
coitado, nunca conseguia falar... Eu precisava ajudá-lo a se defender. Ele não se permitia nada... era indefeso como eu.
Não seria a fala: “Ele era indefeso como
eu” – originada de um sentimento de inferioridade e de indefinição – a única forma encontrada por ela, de colocar em
seu corpo a representação como sintoma, em função de não ter podido
metaforizar suas questões?
Outra vez a novidade...
Ela entra chorando, com um choro
pequenino, sentido... parece que até para
chorar ela precisa pedir licença...
Estou vindo da reumatologia, minha taxa de
glóbulos brancos diminuiu... Foi necessário
aumentar a medicação. De 5 mg/dia passei
para 30 mg/dia.
Nesse momento dou-me conta do quanto o caso me assusta. Tentei permanecer
o mais calma possível. Ela chora por um
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da minha análise pessoal.
Assim, pela análise pessoal, pude me descolar da verdade doutrinária e perceber
o quanto questões contratransferenciais
estavam em jogo, e em função disso o
quanto estava sendo difícil escutá-la.
Essa paciente me despertou algo muito
singular. Seu choro era diferente do choro de meus outros pacientes. A meu ver,
era um choro doído, sentido, e como
tudo que acontece com ela “dói muito”.
Ela acabava me passando sua dor. Diante desse sentimento Júlia me despertava,
impulsionando-me a “questões”; questões
sobre o caso, e questões sobre mim...
Transferencialmente ela me pegava de tal
maneira que algo tomava conta do meu
psíquico, como o lúpus tomava conta de
seu corpo...
Isso me assustava... Em função disso apareceu esse termo em uma de nossas sessões. Acabei por inferir a palavra assustada em sua fala por sentir-me assim...
No dia do aumento da medicação, ela me
deixou tão “em dúvida” que eu precisava
do “saber médico” para me acalmar...
O que significa uma paciente com esse
quadro, ter um aumento tão brusco na
medicação?
Aqui aparece o fato de o quanto é confortável atender esses pacientes muito graves dentro de um hospital. Só o fato de
estar tão próxima do saber médico, nos
ajuda a desatar certos nós que a própria
transferência nos coloca...
Do ponto de vista médico, como se situa
essa questão?
Nesse caso a resposta médica foi: “Casos
assim são sempre uma surpresa... existem
fases de melhora, outras de grande melhora e algumas de grande piora...!
Isso me tranqüilizou, mas não me conven-
ceu. Em minha experiência anterior nunca havia convivido com essa “grande
piora”, precisava digeri-la. Depois da conversa com o médico pude perceber que
eu precisava de “um tempo para compreender...”
Esse caso exemplifica o quanto o contato com a própria verdade dói; e ela me
mostrava isso de uma maneira visível, por
meio das lesões que iam acontecendo em
seu corpo. Júlia falava através da enfermidade que dominava seu corpo.
Não havia percebido o quanto nossa
profissão é “doída” até esse momento, colocar o outro em contato com sua verdade...
até então havia sido relativamente fácil.
À medida que fui me apropriando do desamparo no qual o caso me colocava,
consegui criar condições para minha escuta. Assim, juntas, tentamos construir e
reconstruir algo talvez nunca significado.
Continuei supervisionando o caso e, conforme cada supervisão acontecia, a situação se clareava e ela melhorava...
Lembro-me que a situação “mexia” tanto
comigo, que tive o cuidado de marcar
minha análise pessoal, sempre que possível, após cada sessão de supervisão. Eu
precisava falar...
“Os casos de análise não seriam para o
analista, poderosos motores da análise
interminável, a partir deste lugar do outro,
produtor da auto-análise?” (Fédida, 1992).
Em uma das supervisões meu supervisor
coloca: “Pense que ela possui uma pele
sem melanina, uma pele transparente...
Só que ela não pôde perceber que você
enxerga isso...”
Essa frase novamente me remeteu a
“questões”...
Eu já havia vivido situações on de minha pele reagia como uma pele queima-
Referências
Cesarotto, Oscar. No olho do Outro. São Paulo:
Iluminuras, 1996.
Fédida,P. Nome, figura e memória. São Paulo:
Escuta, 1992
Lacan, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1993.
Nasio, J.-D. Los gritos del cuerpo
Artigo recebido em julho/2002
Aprovado para publicação em janeiro/2003
artigos
começado a pintar.
Transcrevo um recorte dessa sessão:
Ontem foi meu aniversário. Meu marido me
deu flores, minha mãe me mandou um cartão com os seguintes dizeres: “Tenho muito
orgulho em ter você como filha...”
Júlia para, pensa, me olha e continua:
Era tudo que eu queria... Ao me dar os parabéns meu pai falou: —Hoje você faz dois
anos! Dois anos? Tudo começou há dois
anos: a internação, a ausência de vida por
trinta dias... Houve um nascimento, ou melhor: um renascimento...
Ela termina dizendo:
Às vezes precisamos “morrer” para “nascer”
outra vez.
Não poderíamos colocar que foi “sua doença” a responsável pelo seu renascimento?
Não teria seu corpo a necessidade de
passar por essa “prova” para constituir-se
como desejante?
Da mesma maneira que o sintoma surge
para abafar a dor causada pela angústia,
as marcas corporais não estariam, aqui,
ocupando o lugar da fala não expressa,
engolida?
Já dizia Nietzsche:
“Sabemos o que a consciência pode, porém não sabemos em absoluto onde
pode ir um corpo...” (Nasio, p. 78)
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da e, às vezes, um simples toque ardia...
Isso me fez “compreender” o quanto eu
deveria ser cuidadosa... Pois, um simples toque poderia “doer” demais... E, como resposta, a marca do coração aparecia no corpo...
Como instaurar a situação analítica frente a uma situação “tão especial”?
Nesse caso o enquadre deveria ser instalado de maneira a propiciar acolhimento
e proteção a alguém que, até o momento,
só conhecia um sentimento: O MEDO.
Para poder falar, ela precisava antes de
tudo constituir um lugar, pois só depois
de constituído esse lugar é que ela poderia vir a se colocar por intermédio da palavra. Lugar esse que até então não havia
sequer existido...
Parecia que ela nunca havia tido um espaço, um canto próprio onde pudesse
construir sua história secreta.
Na sessão seguinte à sua piora, ela entra
mais firme, parecendo mais segura, me
olha com um pequeno e tímido sorriso e diz:
“Estou melhor... Tenho uma amiga que tinha essa doença e sarou. Hoje ela tem
dois filhos”.
Atrás de toda sua timidez, aparece uma
esperança de cura...
Essa situação analítica foi estabelecida,
com uma paciente “grave”, dentro do
contexto hospitalar.
As sessões aconteceram em uma sala do
hospital, dentro do Ambulatório de Psiquiatria, designada para esse fim. Nessa
sala o divã é representado pela maca azul.
Júlia não utilizava o divã, os atendimentos
aconteciam cara a cara.
Esse tipo de psicanálise pode ser
avalizada pelos próprios analistas?
Após seis meses de tratamento, ela chega
com uma aparência mais tranqüila, contando que naquela semana havia re-
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> clinicando
Miriam Chinalli
O paradoxo do amor transferencial
pulsional > revista de psicanálise > clinicando> P. 40-48
ano XVI, n. 167, mar./2003
Falar de transferência é falar de amor. E esse amor, decorrente da análise, é um modo
de captação, de embuste, do desejo do analista. Ao persuadir o analista de que ele tem
o que pode completá-lo, o analisando desconhece o que lhe falta. Esse pressuposto é
ilustrado numa situação clínica em que uma mulher se questiona a respeito do
alcoolismo de seu pai e dos homens que a cercam.
> Palavras-chave: Transferência positiva e negativa, neurose de transferência,
regra de abstinência, confrontações clínicas
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To speak of transference is to speak of love. And this love, resulting from analysis,
is a manner of deceitfully capturing the analyst’s desire. By persuading the analyst
that the patient has what can complete the analyst, the patient ignores his own needs.
This presumption is illustrated in a clinical situation where a woman questions herself
about the alcoholism of her father and of other men around her.
> Key words: Positive and negative transference, transference neurosis,
role of abstinence, clinical confrontation
Para se constituir como analista, é preciso estar incrivelmente apaixonado,
apaixonado por Freud principalmente, isto é, acreditar nessa coisa
completamente louca que chamamos de o inconsciente
e que tentei traduzir pelo “sujeito-suposto -saber’”.
Lacan, Lettres de l’ÉFP, n. 23.