Paper - Faculdade de Direito da Universidade Católica

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Paper - Faculdade de Direito da Universidade Católica
Rui Medeiros
PLURALISMO JURÍDICO ATUAL COMO APARENTE ALTERNATIVA À
CONTROVÉRSIA ENTRE MONISMO E DUALISMO
1. Introdução
Como é sabido, no passado, a discussão entre visões dualistas e conceções
monistas - e, dentro destas, entre as teses do primado do direito internacional e do
primado de direito interno – assumia lugar central na resposta ao problema das relações
entre direito internacional e direito interno e, mais concretamente à questão da
“determinação da relevância interna do direito internacional”1.
Hoje, pelo contrário, num quadro de crescente afirmação da “interdependencia”
entre o direito internacional e os direitos internos2, tende a sublinhar-se que da opção
entre monismo e dualismo nenhuma consequência prática advém para o problema da
vigência interna da norma internacional, já que um e outro, nas suas formulações
moderadas, convergem no essencial: “o Estado tem o dever de conformar a sua ordem
interna às suas obrigações internacionais; cabe-lhe, porém, a escolha da forma técnica do
cumprimento de tal dever; o não cumprimento de tal dever não tem, porém, como sanção
a vigência forçada do direito internacional na ordem interna, e, por conseguinte, a
obrigação para os tribunais internos de aplicar a norma internacional, nem a consequente
invalidade ou ineficácia da norma interna contrária à norma internacional; a sanção
consiste exclusivamente na responsabilidade internacional do Estado”3. Tudo isto num
1 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), Lisboa, 1967, pp. 13-14.
2
Cfr. FAUSTO DE QUADROS, A protecção da propriedade privada pelo Direito Internacional
Público, Coimbra: Almedina, 1998, p. 534.
3 Cfr. ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA / FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional
Público, Coimbra: Almedina, 1993, pp. 86-87.
quadro de prevalência e difusão das correntes monistas com primado do direito
internacional4.
A verdade, porém, é que dificilmente se pode compreender o pluralismo jurídico
do nosso tempo, hoje tão em voga, sem revisitar a problemática monismo versus
dualismo.
2. A contraposição clássica entre monismo e dualismo
I. Como refere MIGUEL GALVÃO TELES, historicamente, “as alternativas monismo,
numa ou outra das suas modalidades, e dualismo não traduzem meras formas diversas
de construir dogmaticamente a mesma realidade jurídica, mas maneiras diferentes de
entender o seu conteúdo, conceções substancialmente díspares, na medida em que
estão em causa relações de fundamentação entre normas jurídicas e portanto as
próprias condições e medida da sua validade”. Por isso, aliás, a opção monismo versus
dualismo coloca-se “a priori (em relação ao simples dado jurídico-positivo), visto que,
reportando-se à conexão entre sistemas jurídicos, necessariamente os há-de transcender”5.
Neste sentido, para lembrar a posição de um dos maiores arautos do dualismo,
HEINRICH TRIEPEL, embora partindo do entendimento de que o direito internacional e o
direito interno são “dois sistemas jurídicos distintos”, afirma que, independentemente da
concreta solução normativa adotada por um ordenamento estadual, a diferença entre
direito internacional e direito interno é radical, uma vez que as respetivas fontes e as
relações jurídicas sobre que versam não se confundem. Em particular, se o direito interno
resulta da vontade de um Estado e o direito internacional de uma vontade comum de
diversos Estados, afigura-se impossível que uma regra de direito interno decida da
validade de uma regra de direito internacional. O mesmo vale, mutatis mutandis, quando se
pretende negar a validade de uma lei interna por violação do direito internacional. Daí
que, mesmo que se admita uma espécie de “apropriação” do direito internacional pelo
Cfr. JORGE MIRANDA, Curso de Direito Internacional Público, Parede: Principia, 2012 (5.ª
ed.), p. 137.
4
direito interno, o que se verifica, em rigor, é “uma reprodução sob uma forma modificada” ou
“uma criação de um direito novo” fundado noutra fonte. Por isso, não obstante a ideia
errada que transparece de muitas disposições de diversos textos constitucionais, “um
tratado internacional nunca é, portanto, em si mesmo, um meio de criação de direito
interno”6.
Da mesma forma, na perspetiva agora de um dos maiores defensores do monismo,
HANS KELSEN afirma que a questão dualismo versus monismo não pode, em última
análise, ser resolvida através de uma concreta normação positiva7. Recorde-se que o
Autor conclui que o dualismo é “uma (epistemo)lógica impossibilidade”8, uma vez que
quer as normas de direito internacional quer as normas das ordens jurídicas estaduais são
simultaneamente normas jurídicas válidas, pelo que não podem existir conflitos
insolúveis entre os dois sistemas de normas. Por isso, em alternativa ao dualismo,
concebe “o conjunto formado pelo direito internacional e as ordens jurídicas nacionais
como um sistema unitário de normas”, recusando assim a conceção que “pretende ver no
direito internacional e no direito de cada Estado dois sistemas de normas diferentes,
independentes um do outro, isolados em face do outro, porque apoiados em duas normas
fundamentais diferentes”9.
Por aqui se vê que, visto na perspetiva dualismo ou monismo, a questão assumia
sobretudo uma relevância teórica e não estava dependente da técnica utilizada ou do
resultado normativo resultante do modo de receção do direito internacional adotado por
um concreto direito interno. Aliás, este debate entre monismo e dualismo conduz, no
final, a que cada uma das conceções em contenda conclua pelo caráter “ilógico” da
Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), p. 16.
6 Cfr. HEINRICH TRIEPEL, Droit international et droit interne (trad. Völkerrecht und Landesrecht,
1899), Paris, 1920, pp. 7 ss, 110 ss, 153 ss e 251 ss.
7 Cfr. HANS KELSEN, Il problema della sovranità (trad. Das Problem der Souveränität und die
Theorie des Völkerrechts – Beitrag zu einer Reinen Rechtslehre, 1920), Milano: Giuffrè, 1989, p. 152.
8 Cfr. JÖRG KAMMERHOFER, Kelsen – Which Kelsen? A Reapplication of the Pure Theory to
International Law, in Leiden Journal of International Law, 22 (2009), p. 233 – cfr. ainda sobre a evolução
do pensamento de Hans Kelsen neste domínio, sobretudo nos seus últimos escritos, op.cit., pp. 240
ss.
9
Cfr., por todos, HANS KELSEN, Teoria pura do direito (trad. Reine Rechtslehre, 1960),
Coimbra, 1984, pp. 437 ss – cfr. ainda HANS KELSEN, Il problema della sovranità, pp. 151 ss.
5
outra10. Seja como for, “reduzido às suas devidas proporções, o problema consiste tãosomente em saber como delinear as relações entre o princípio que fundamenta a validade
de cada um dos sistemas jurídicos (internacional ou interno) e o outro; ou se verifica
autonomia recíproca, e teremos o dualismo; ou o princípio da validade do sistema interno
reside no direito internacional e estaremos perante o monismo com primado deste direito,
quer se entenda depois que há uma só ou apesar de tudo várias ordens jurídicas,
subordinadas a uma superior ou integradas noutra mais ampla; ou, inversamente, é o
princípio do direito das gentes que reside nos direitos estaduais e o resultado será o
monismo com primado do direito interno, considere-se ou não em seguida que o sistema
internacional forma uma verdadeira ordem jurídica”11.
II. Uma segunda dimensão da discussão – agora já não meramente lógica e de
índole absolutamente fundamental – não pode, no entanto, ser menosprezada. Uma das
questões centrais que este tema convocava – e, para este efeito, mais do que a
contraposição entre dualismo e monismo, interessa distinguir as visões dualistas ou
monistas com primado de direito interno, de um lado, e a conceção monista com primado
do direito internacional, do outro - prendia-se com a posição adotada quanto à
determinação de qual dos dois sistemas - interno ou internacional - “é competente para
definir as condições, termos e limites da eficácia do direito internacional no plano
interno: enquanto para o dualismo e monismo de direito interno, tal competência
pertencerá originariamente a cada Estado, para o monismo de direito internacional caberá
a este em primeira mão, só se deslocando para os direitos internos no caso de a ordem
internacional abdicar ou lhe atribuir o seu exercício”12. O problema da conexão entre
Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
in The worlds of European constitutionalism (ed. Gráinne de Búrca / Joseph Weiler), Cambridge
University Press, 2012, p. 164.
11 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), p. 17.
12 Cfr., neste sentido, acrescentando ainda que, teoricamente, embora sem consequências
práticas, se pode defender um monismo de direito internacional moderado e afirmar
simultaneamente que, embora caiba em primeira mão ao direito internacional a definição da sua
relevância nas ordens internas, no momento presente o direito das gentes abdica do exercício da
sua competência em favor destas, MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna
portuguesa (condições, termos e limites), pp. 18-19 e 20, em nota.
10
sistemas interno e internacional não pode, pois, ser dissociado da questão de saber a qual
dos sistemas jurídicos se hão-de ir buscar as normas disciplinadoras da relevância interna
do direito internacional13.
É certo que, na busca de “um ponto arquimediano ou princípio fundamental que
possibilite a unificação do direito interno e do direito internacional num único sistema
jurídico (…), o monismo tanto tem sido tentado a partir de um princípio de natureza
susbstantiva” (v.g. desde a defesa histórica da subordinação de todo o direito, incluindo o
direito internacional, a princípios de direito natural à atual apologia de um sistema
unitário e coerente fundado na premissa da igual dignidade e liberdade de todos os
indivíduos), como tendo por base um ponto de apoio de natureza formal14.
Todavia, para efeitos desta dimensão competencial, interessa de modo particular
ter presente o modo como o monismo formal (e não meramente substantivo) é
configurado. Concretamente, e tomando por referência o pensamento de HANS KELSEN,
que dedicou ao tema uma atenção especialmente intensa – uma vez que a “sua teoria do
direito internacional é uma parte integrante da teoria pura do direito”15 –, num quadro
monista a alternativa coloca-se em termos claros: “o direito internacional tem de ser
concebido, ou como uma ordem jurídica delegada pela ordem jurídica estadual e, por
conseguinte, como incorporada nesta, ou como uma ordem jurídica total que delega nas
ordens jurídicas estaduais, supra-ordenada a estas e abrangendo-as a todas como ordens
jurídicas parciais”16.
Sem surpresa, perante este problema da determinação da competência originária,
a questão da articulação sistemática entre direito internacional e direitos internos surge,
na construção de HANS KELSEN, intrinsecamente ligada à problemática “crucial” da
essencialidade ou não da soberania na configuração do ordenamento jurídico estadual. A
Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), p. 19.
14 Cfr. JÓNATAS MACHADO, Direito Internacional – do paradigma clássico ao pós 11 de setembro,
Coimbra Editora, 2013 (4.ª ed), pp. 145 ss.
15 Cfr. JÖRG KAMMERHOFER, Kelsen – Which Kelsen? A Reapplication of the Pure Theory to
International Law, p. 225 – cfr., porém, sublinhando que a origem da Stufenbautheorie pertence a
Adolf Merkl e não a Hans Kelsen, entre nós, MIGUEL GALVÃO TELES, Beyond the Debate between Jan
Paulsson and Pierre Mayer on International Arbitral Tribunals and Hierarchy of Norms, in Escritos
Jurídicos, I, Coimbra: Almedina, 2013, pp. 649 ss.
16 Cfr., por todos, HANS KELSEN, Teoria pura do direito, p. 443.
13
sua obra de referência de 1920, ao discutir o problema da soberania em articulação com a
teoria do direito internacional, e ao fazer a apologia de um monismo com primado de
direito internacional, traduz uma crítica profunda à ideia da soberania do Estado17. Neste
sentido, o monismo com primado do direito internacional que advoga significa, em
última análise, que a soberania não reside nos Estados – ou, se se quiser ainda assim
insistir na ideia de que as ordens jurídicas estaduais são soberanas, “esta «soberania» dos
Estados apenas pode significar que as ordens jurídicas estaduais só estão subordinadas à
ordem jurídica internacional”18. É que, no fundo, na construção kelseniana, o problema de
saber se um Estado é soberano reconduz-se à questão de saber se se pressupõe a ordem
jurídica estadual como suprema, ou seja, como ordem cuja validade não é dedutível de
qualquer ordem superior19. Na verdade, embora reconhecendo a pluralidade de sentidos
que se associa frequentemente ao conceito de soberania, para o Mestre da Teoria Pura a
soberania assume-se como “a quality of a normative order”, significando a suprema
autoridade jurídica. Neste sentido, só se poderia falar em soberania do Estado caso se
assumisse que a ordem jurídica estadual constitui o “starting point” de todo o sistema
normativo, o que equivaleria a dizer que o Estado não se encontraria submetido a
nenhuma ordem jurídica superior à sua própria ordem jurídica, isto é, à sua ordem
estadual20. Ora, desde que se assuma que as ordens jurídicas estaduais assentam no
direito internacional, enquanto ordem jurídica supraestadual, ter-se-á de concluir que os
ordenamentos estaduais não dispõem da competência soberana, pelo que em rigor
“somente a ordem jurídica internacional, e não qualquer ordem jurídica estadual, é
soberana”21. Tudo isto, em síntese, porque, no quadro da construção kelseniana, “um
Cfr., concluindo justamente no sentido de que o conceito de soberania do Estado deve
ser radicalmente afastado, HANS KELSEN, Il problema della sovranità, p. 469.
18 Cfr., por todos, HANS KELSEN, Teoria pura do direito, p. 303.
19 Cfr., por todos, HANS KELSEN, Teoria pura do direito, pp. 445-446.
20 Cfr. HANS KELSEN, Il problema della sovranità, pp. 5 ss, 17 ss e 223 ss; HANS KELSEN,
Sovereignty and International Law, in The Georgetown Law Journal, 48, n.º 4 (1960), p. 627; Principles of
International Law, Holt, Rinehart and Winston, Inc., 1966, pp. 581 ss – cfr. ainda, sobre a questão de
saber em que medida a soberania de um Estado é conciliável com a soberania de um outro Estado e
se o verdadeiro monismo com primado do direito interno postula a unidade e a exclusividade de
cada ordenamento jurídico estadual, HANS KELSEN, Il problema della sovranità, pp. 274 ss
21 Cfr., por todos, HANS KELSEN, Teoria pura do direito, pp. 450-451.
17
ordenamento que retira a sua validade de uma norma superior está privado da
soberania”22.
Por isso, na perspetiva teórica de HANS KELSEN, o monismo com primado do
direito internacional nem sequer é verdadeiramente incompatível com uma ordem
interna que determine que os órgãos estaduais, especialmente os seus tribunais, apenas
estão autorizados a aplicar direito interno e, portanto, somente podem aplicar o direito
internacional quando o seu conteúdo revista a forma de direito estadual (v.g. direito
internacional transformado em direito estadual através de lei). É que, se na falta de uma
tal transformação não pode ser aplicada, num caso concreto, uma norma de direito
internacional que a esse caso se refira, isso significa tão-somente, quando se parta do
primado do direito internacional, “não que esta norma de direito internacional não tenha
qualquer validade em relação ao Estado, mas apenas que, quando ela não é aplicada e,
consequentemente, o direito internacional é violado pela conduta do Estado, este se expõe
à sanção que o direito internacional estatui como consequência de tal conduta”23. Numa
palavra, “there is no need to assume either nullity or annullability of the norm that
conflicts with international law in order to maintain the epistemological unity of national
and international law in the sense of the primacy of international law”24.
Cfr. HANS KELSEN, Il problema della sovranità, p. 164 – cfr., neste sentido, afirmando que
“die Vorstellung, dass der Staat souverän, also selbst die höchste Rechtsordnung darstelle, ist
schlechthin unvereinbar mit der Annahme, dass über dem als Träger des Rechtes gedachten Staat
ein Völkerrecht stehe, das den Staat gegen andere Staaten verpflichtet und berechtigt”, HANS
KELSEN, Der Wandel der Souveränitätsbegriffes, in Studi filosofico-giuridici dedicati a Giorgio del Vecchio
nel XXV anno di insegnamento, II, Modena, 1931, p. 3; cfr., por fim, perante a proclamação do
“principle of the sovereign equality of all peaceloving States“, recusando a tentação de sentido
metafísico de deificar o Estado, pretenso titular de um poder entendido como prima causa (à
semelhança de Deus criador do mundo e, neste sentido, soberano), e acrescentando expressamente
que esta soberania na ordem internacional significa apenas “the legal authority or competence of a
State limited and limitable only by international law and not by the national law of another State,
HANS KELSEN, The Principle of Sovereign Equality of States as a Basis for International Organization, in
The Yale Law Journal, 53, n.º 2 (1944), p. 208.
23 Cfr., por todos, HANS KELSEN, Teoria pura do direito, pp. 448-449 – cfr. ainda HANS
KELSEN, Principles of International Law, pp. 293-294, 568-569, 574-575 e 579-580.
24 Cfr. HANS KELSEN, Sovereignty and International Law, pp. 634 ss (em especial, 636).
22
3. A aparente crise da contraposição
I. A verdade, porém, é que o caminho seguido ulteriormente na resposta ao
problema clássico da determinação da relevância interna do direito internacional, não
só passou a ser dominado por considerações mais pragmáticas, como também se
afastou há muito do sentido último que esteve subjacente aos termos da controvérsia
de que se deu breve eco.
Na prática, o problema da eficácia interna do direito internacional passou a ser
analisado nos quadros limitados da análise das disposições do direito positivo interno de
cada ordem jurídica. Para este resultado contribuiu, desde logo, a contestação à suposta
inversão metodológica de definir o âmbito da relevância do direito internacional nas
ordens internas com base em soluções materiais provenientes de construções jurídicas
elaboradas aprioristicamente25. Além disso, para esta desvalorização da discussão,
também foi relevante a verificação de que o direito internacional ainda não consagra
normas gerais sobre a relevância do direito das gentes nas ordens jurídicas internas dos
diferentes Estados. Pelo contrário, nesta matéria, vigora o princípio de que pertence aos
vários direitos estaduais determinar as condições, termos e limites da aplicabilidade do
direito internacional nas respetivas ordens, sem prejuízo da responsabilidade em que
Estados venham a incorrer por força das consequências dos preceitos que aprovem, pois,
à luz das normas gerais do direito das gentes, embora os Estados tenham o dever de
assegurar o respeito interno do direito internacional, não só lhes é lícito escolher o modo
de o conseguir, como também as normas que estabeleçam não perderão validade pelo facto
de contrariem aquele dever de ordem internacional26.
Por isso, para grande parte da doutrina, não se justifica insistir na interminável
controvérsia teórica entre monistas e dualistas em torno da articulação entre direito
internacional e direito interno, tanto mais que, como HANS KELSEN evidenciou há muito,
25 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), p. 16 – cfr. ainda, contestando uma escolha assente numa lógica abstrata que
precinda completamente dos dados que se extraem do direito positivo, FRANCO MODUGNO,
Pluralità degli ordinamenti, in Enciclopedia del Diritto, XXXIV (1985), pp. 1-2.
26 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), pp. 13-14 e 19-21.
o próprio monismo é compatível tanto com o primado do direito interno como com a
supremacia do direito internacional27.
II. Por outro lado, pensando na questão da competência (e da soberania) que foi
assinalada, e tomando em particular como referência a construção kelseniana - o
problema também poderia ser equacionado, mutatis mutandis, se, na construção da
unidade do sistema jurídico ou na fixação do critério de pertinência (que determine como
normas incorporáveis as que cumprem as condições de admissão aí estipuladas), em vez
de se apelar à norma fundamental kelseniana, da qual as restantes, por derivação, retiram
pertinência através do encadeamento de normas, se recorresse às normas de reconhecimento
configuradas por HERBERT HART28 e, em particular, à ultimate and supreme rule of
recognition29 -, a situação a que se chega quando na discussão atual se convoca, ainda
assim, a alternativa entre monismo com primado do direito internacional e monismo com
primado do direito interno é frequentemente paradoxal.
À partida, como lembra JORGE MIRANDA, “parece clara a adesão que vão obtendo,
desde há décadas, as correntes monistas – e, evidentemente, de monismo com primado
do direito internacional. Juristas teóricos e práticos inclinam-se nesse sentido, quer por
razões tiradas da experiência, quer por razões lógicas e de princípio”30. Aparentemente,
portanto, poder-se-ia dizer que “a nossa Constituição, graças à sua amizade para com o
direito internacional e à sua sintonia perfeita com a letra e o espírito da Carta das Nações
Unidas e da Declaração Universal dos Direitos do Homem , aponta para uma leitura
monista das relações entre o direito internacional e o direito interno. O mesmo acontece
com um número crescente de outras constituições”31.
27
Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
pp. 164 ss.
28
Cfr. DAVID DUARTE, A norma de legalidade procedimental administrativa, Coimbra:
Almedina, 2006, pp. 29-30 – cfr., desenvolvidamente, HERBERT HART, O conceito de direito (trad., The
Concept of Law, 1994), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 103 ss e 111 ss.
29 Cfr. HERBERT HART, O conceito de direito, pp. 117 ss – na versão original The Concept of
Law, 1994, pp. 105 ss.
30 Cfr. JORGE MIRANDA, Curso de Direito Internacional Público, p. 137.
31 Cfr. JÓNATAS MACHADO, Direito Internacional – do paradigma clássico ao pós 11 de setembro,
p. 151.
A verdade, contudo, é que, em rigor, deixando a perspetiva de um monismo
estritamente substantivo – “assente na primazia dos valores comuns dos direitos
humanos, da democracia, da subordinação ao direito, da proteção do ambiente, etc”32 –,
ou o “regime privativo das normas iuris cogentis”33, a ideia muito difundida de um
monismo de direito internacional já não se casa com o sentido radical originário
(competencial) que subjazia à defesa de um tal primado por HANS KELSEN. Com efeito, a
difusão da preferência por um monismo com primado do direito internacional tende a
assentar ainda, afinal, no princípio da soberania estadual, visto que se confere a última
palavra em matéria de relações entre o direito das gentes e o direito interno à
Constituição do Estado34.
Sem dúvida que esta última conclusão não envolve, em si mesma, qualquer
incoerência. Como ensina há muito MIGUEL GALVÃO TELES, nem o dualismo nem o
monismo com primado de direito interno “são necessariamente desfavoráveis, aquele no
todo, este em parte, à relevância interna do direito das gentes (…). Do lado da ordem
interna, há seguramente um interesse em conformar-se com o direito internacional – e
nada impede que lhe atribua prevalência sobre aqueles outros que eventualmente se lhe
oponham”35. No fundo, mesmo na teorização de HANS KELSEN, num quadro em que a
soberania resida no Estado – isto é, na sua conceção, no contexto de um monismo com
primado do direito estadual –, nada obsta a que o Estado se vincule ao direito
internacional e lhe reconheça primazia sobre a legislação estadual36. Por isso, com
MATTIAS KUMM, pode afirmar-se que, ainda que um Estado admita o primado do direito
internacional ou do direito da União Europeia, uma tal opção não é incompatível com a
ideia fundamental de que “o direito constitucional nacional permanece the supreme law of
32
Cfr. JÓNATAS MACHADO, Direito Internacional – do paradigma clássico ao pós 11 de setembro,
pp. 150 ss.
Cfr., sublinhando que, neste domínio específico, e portanto numa conclusão que não
vale necessariamente para as normas iuris dispositivi, vigora um monismo com primado do direito
internacional, EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Ius Cogens em Direito Internacional, Lisboa: Lex, 1997,
pp. 507 ss (em especial, 519); Direito Internacional Público – conceito e fontes, I, Lisboa: Lex, 1998, pp.
414 ss..
34 Cfr. NEIL WALKER, Beyond boundary disputes and basic grids: Mapping the global disorder of
normative orders, in International Journal of Constitutional Law, 6, n.ºs ¾ (2008), p. 378.
35 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), p. 18.
33
the land”37. Numa palavra, mesmo que a Lei Fundamental de um Estado consagre uma
ordem constitucional aberta, isto não significa que não esteja em causa, em última análise,
uma opção constitucional interna38.
Por aqui se vê que, afinal, o resultado que assim se alcança está já muito longe da
visão monista com primado de direito internacional protagonizada – no que à dimensão
competencial do problema concerne – por HANS KELSEN. Recorde-se que, na visão
kelseniana, se se aceita que o direito internacional só vale em face de um Estado quando é
reconhecido por este com base na Constituição do Estado, forçoso é concluir que “o
direito internacional, nesse caso, apenas é uma parte integrante da ordem jurídica
estadual representada como soberana e cujo fundamento de vigência é a norma
fundamental referida à Constituição eficaz. Ela é, como fundamento de vigência da
Constituição estadual, ao mesmo tempo o fundamento de vigência do direito
internacional reconhecido, quer dizer, posto em vigência para o Estado, com base na
Constituição estadual”. A situação só se modifica verdadeiramente caso se “considere o
direito internacional, não como parte integrante da ordem jurídica estadual, mas como
única ordem jurídica soberana, supra-ordenada a todas as ordens jurídicas estaduais e
delimitando-as, umas em face das outras, nos respetivos domínios de validade”. Aqui
sim, mas só nesta hipótese, parte-se, não do primado da ordem jurídica estadual, mas do
primado da ordem jurídica internacional, visto que é esta última que contém a norma que
representa o fundamento de vigência das ordens jurídicas estaduais39.
Cfr. HANS KELSEN, Sovereignty and International Law, pp. 636-637.
Cfr. MATTIAS KUMM, Rethinking Constitutional Authority: On the Structure and Limits of
Constitutional Pluralism, in Constitutional Pluralism in the European Union and Beyond (ed. Matej
Avbelj / Jan Komárek), Oxford: Hart Publishing, 2012, p. 50.
38 Cfr. MATTIAS KUMM, Rethinking Constitutional Authority: On the Structure and Limits of
Constitutional Pluralism, p. 51.
39 Cfr., por todos, HANS KELSEN, Teoria pura do direito, pp. 300-301.
36
37
4. A relevância da contraposição entre monismo e dualismo para compreender o
pluralismo jurídico do nosso tempo
Acontece, porém, que, como se vai verificar de seguida, num movimento dialético,
quando se discute a adequação da controvérsia entre monismo e dualismo para captar o
problema do pluralismo jurídico do nosso tempo, a questão volta a ser analisada em
larga medida a partir da existência ou não de uma Grundnorm internacional que confira
unidade aos diversos (sub-)sistemas jurídicos.
a) A discussão atual em torno do pluralismo como aparente alternativa à
controvérsia entre monismo e dualismo
I. As hodiernas teorias pluralistas pretendem constituir um ”by-pass” ao debate
entre monismo e dualismo40 ou, em rigor, à contraposição entre a perspetiva do
monismo com primado do direito internacional e as visões dualistas - ou monistas com
primado de direito interno - que afirmam uma pluralidade de pretensões de primado
conflituantes. A opção, diz-se, não deve hoje ser reconduzida à alternativa entre o
constitucionalismo estadual (pretensa única fonte de legitimação do poder público, sendo
o próprio direito internacional visto como “product of state self-interest”) e o
constitucionalismo global (aparentemente, concebido como a forma de ultrapassar as
limitações do constitucionalismo tradicional), devendo antes buscar-se uma via
intermédia que assuma a autonomia recíproca e a ausência de hierarquia entre os
diferentes sistemas normativos e, por isso, recuse uma primazia acrítica na relação entre
os diferentes sistemas. Significa isto que, na perspetiva pluralista, a fragmentação
constitui um problema que não deve ser resolvido através de uma hierarquia institucional
ou normativa41.
Curiosamente, neste debate, a apologia de uma construção pluralista toma
40
p. 164.
Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
frequentemente por base – num espécie de regresso parcial às origens (isto é, no que à
localização da Grundnorm se refere) – uma parte do sentido inicial da contraposição,
assumindo designadamente que a visão piramidal, enquanto “noção ligada ao monismo
kelseniano como conceção geral da relações entre direito internacional e direito interno”,
deve ser “desconstruída42.
Por outro lado, além de ser apresentada como uma alternativa incompatível com a
visão monista no quadro de um constitucionalismo internacional, a doutrina tende
igualmente a recusar catalogar a resposta pluralista como um simples dualismo
rebatizado43.
II. O chamado, por simplicidade, caso Kadi, enquanto “microcosmo”44 de um
problema mais vasto no quadro do combate ao terrorismo, além de ilustrar bem como o
problema da multiplicação de conflitos num mundo globalizado também se coloca em
sede de proteção de direitos fundamentais45, permite evidenciar o debate entre monistas,
dualistas e pluralistas na atualidade.
Obviamente, estando em causa um leading case largamente conhecido e debatido,
incluindo na doutrina portuguesa, não se justifica descrever o caso. Mais importante é
sublinhar que os diferentes entendimentos adotados no caso Kadi pelo Tribunal de
Primeira Instância, pelo Tribunal de Justiça e pelo Advogado-Geral Miguel Poiares
Maduro (a ordem não é cronológica) tornam clara a diferença entre uma abordagem
Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
pp. 150 ss (em especial, 152 e 175).
42 Cfr. ARMIN VON BOGDANDY, Pluralism, direct effect, and the ultimate say: On the relationship
between international and domestic constitutional law, in International Journal of Constitutional Law, 6,
n.ºs ¾ (2008), pp. 397-398.
43 Cfr.FRANZ C MAYER/ MATTIAS WENDEL, Multilevel Constitutionalism and Constitutional
Pluralism, in Constitutional Pluralism in the European Union and Beyond (eds. Matej Avbelj / Jan
Komárek), Oxford: Hart Publishing, 2012, pp. 136-137 – cfr. ainda ARMIN VON BOGDANDY,
Pluralism, direct effect, and the ultimate say: On the relationship between international and domestic
constitutional law, p. 400
44
Cfr. FIONA DE LONDRAS / SUZANNE KINGSTON, Rights, Security and Conflicting
International Obligations: Exploring Inter-Jurisdictional Judicial Dialogues in Europe, 2010 (working
paper), p. 5.
45 Cfr. GRÁINNE DE BÚRCA, The ECJ and the international legal order: a re-evaluation, in The
worlds of European constitutionalism (ed. Gráinne de Búrca / Joseph Weiler), Cambridge University
Press, 2012, pp. 126 e 127.
41
monista, uma perspetiva dualista e uma visão pluralista das relações entre o direito
internacional e o direito da União Europeia.
Começando pela contraposição entre a perspetiva do Tribunal Geral (prevalência
das normas de direito internacional que, no juízo do tribunal, sejam compatíveis com o
ius cogens) e a solução do Tribunal de Justiça (primazia do Direito da União Europeia no
quadro de uma visão dualista que acentua a separação e autonomia da ordem jurídica
europeia em face da ordem internacional), a divergência de entendimento radica na
distinção
entre
uma
teoria
de
subordinação-monista,
no
contexto
de
um
constitucionalismo internacional, e uma visão dualista que enfatiza a separação das duas
ordens jurídicas em confronto e, por isso, a diversidade entre os dois sistemas e níveis de
governance46. Efetivamente, para o Tribunal Geral, na lógica kelseniana, da mesma forma
que, no espaço da União Europeia existe apenas um sistema jurídico, com os diversos
subsistemas constituídos pelos direitos internos dos diferentes Estados membros, no
plano do sistema internacional, os atos do Conselho de Segurança ou os atos da União
Europeia que os executam só podem ser julgados à luz da sua compatibilidade com as
normas de ius cogens47. Pelo contrário, o Tribunal de Justiça, em alguns dos argumentos
em que baseia a sua decisão48, considera que a dimensão interna do constitucionalismo
europeu, afirmada há muito na relação entre o direito da União Europeia e os
ordenamentos constitucionais dos Estados membros, deve ser complementada pela
afirmação da autonomia da ordem jurídica europeia também no plano externo. Ou seja,
Cfr. GRÁINNE DE BÚRCA, The ECJ and the international legal order: a re-evaluation, pp. 109 e
126 ss – cfr. ainda, sublinhando que o entendimento que prevaleceu contraria a diferença,
frequentemente assumida pela doutrina, entre a aproximação da União Europeia (com a sua maior
recetividade e abertura) e a perspetiva dos Estados Unidos em relação ao direito internacional, op.
cit., pp. 143 ss; cfr., por fim, NICO KRISCH, The case for pluralism in postnational law, in The worlds of
European constitutionalism (ed. Gráinne de Búrca / Joseph Weiler), Cambridge University Press,
2012, pp. 165 ss e 204.
47 Cfr. ARMIN VON BOGDANDY, Pluralism, direct effect, and the ultimate say: On the relationship
between international and domestic constitutional law, pp. 412-413.
48 Cfr., sublinhando que a posição adotada não foi estritamente dualista, na medida em
que se admite que certas obrigações internacionais fazem parte integrante da ordem jurídica
europeia e podem prevalecer sobre o direito europeu derivado, NICO KRISCH, Beyond
Constitutionalism: The Pluralist Structure of Postnational Law, Oxford University Press, 2012, p. 171.
46
segundo o entendimento que subjaz à posição adotada pelo Tribunal de Justiça, não se
pode olvidar a dimensão externa do constitucionalismo europeu49.
Perante esta contraposição dicotómica, a posição que o Advogado-Geral MIGUEL
POIARES MADURO assumiu no processo Kadi traduz a defesa de que se tome a sério a
alternativa pluralista. O Advogado-Geral não contesta, sublinhe-se, a natureza
fundacional e constitucional da ordem jurídica europeia ou a centralidade do Tribunal de
Justiça como jurisdição constitucional. Só que, simultaneamente, na esteira do paradigma
Solange, MIGUEL POIARES MADURO faz a apologia de um efetivo esforço de acomodação
entre as pretensões de primazia conflituantes do direito internacional e do direito da
União Europeia50 num quadro em que se assuma a interdependência e a crescente
intercomunicabilidade entre a pluralidade de ordens jurídicas transnacionais51.
III. Não cabe aqui discutir a bondade de cada uma das respostas concretas ao
problema específico da articulação entre direito internacional e direito da União Europeia.
Pelo contrário, até porque a tentação quando surgem estas situações vai no sentido de
tomar posição a partir da pré-compreensão com que se parte para o debate (v.g., em casos
como o Kadi, um internacionalista tenderá a concordar mais facilmente com a solução
adotada pelo Tribunal de Primeira Instância, enquanto será natural que um cultor do
direito europeu sinta proximidade pela posição assumida pelo Tribunal de Justiça; da
mesma forma, quando se discute as relações entre o direito da União Europeia e as
Constituições estaduais, não surpreende que europeístas e constitucionalistas tendam
muitas vezes a defender a sua dama), o que interessa, nesta sede, é enquadrar o problema
na controvérsia geral entre monismo e dualismo.
49
Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
50
Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
p. 186.
pp. 190 ss.
51 Cfr. JEAN L. COHEN, Globalization and Sovereignty - Rethinking Legality, Legitimacy, and
Constitutionalism, Cambridge University Press, 2012, pp. 296 ss – cfr., porém, no sentido de que a
perspetiva pluralista adotada não conduziu a resultados diferentes dos alcançáveis no quadro do
clássico dualismo, NICO KRISCH, Beyond Constitutionalism: The Pluralist Structure of Postnational Law,
pp. 168-169.
b) As insuficiências das respostas monistas de direito internacional (ou, no
quadro da União Europeia, de direito europeu)
Centrando a discussão apenas na questão competencial já assinalada, isto é, na
existência ou não de uma Grundnorm transnacional52, o primeiro aspeto que deve ser
sublinhado é o de que a resposta monista no quadro do primado de um
constitucionalismo internacional não consegue oferecer uma solução adequada ao
problema dos conflitos sistémicos do nosso tempo.
Desde logo, as a matter of fact, perante o fenómeno da globalização e da
privatização do nosso tempo, e em face da fragmentação do direito a que se assiste nos
dias de hoje, assiste-se atualmente a uma multiplicação de governance sites,
reciprocamente autónomos, com pretensões sobrepostas53 e cuja articulação, em larga
medida, não é pura e simplesmente objeto de regulação ao nível do direito internacional.
Por isso, da mesma forma que no plano interno imaginar a coesão da vontade soberana
estadual como poder unitário que institui normas e organiza a sua aplicação, dirigindo as
condutas e controlando os comportamentos, no quadro de uma perspetiva ordenamental
forte, traduz uma simplificação, também não se pode perder de vista que o direito num
quadro transnacional se desenvolve numa miríade de organizações que escapa em muitos
aspetos ao próprio direito internacional54. Numa palavra, a resposta monista não funciona
entre sistemas jurídicos tão diferentes e heterogéneos entre si e que não estão abrangidos
Em qualquer caso, mesmo na perspetiva de um monismo substantivo, não se pode
ignorar que “a tentativa de apregoar urbi et orbe uma teoria monista, embora plenamente aceitável
enquanto ideal regulativo, não pode obnubilar o facto da existência, no contexto atual, de uma
pluralidade de ordenamentos jurídicos internos, imbuídos dos valores mais diversos e mesmo
antagónicos (v.g. liberais / autoritários; seculares / religiosos; judaico-cristãos / islâmicos /
budistas / indús; patriarcais / igualitários; nacionalistas / multiculturais), sendo que muitos deles
dificilmente seriam compatíveis, em bom rigor, com o novo direito internacional, construído a
partir do valor da proteção dos direitos do homem, da tolerância mundividencial, da cooperação
internacional, da democracia e do Estado de direito” (cfr. JÓNATAS MACHADO, Direito Internacional –
do paradigma clássico ao pós 11 de setembro, p. 152).
53 Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
p. 165.
54 Cfr. ALFONSO CATANIA, Metamorfosi del diritto – Decisione e norma nell‘ età globale, RomaBari: Editori Laterza, 2008, pp. 83, 140, 153 e 164-167.
52
por uma regulamentação comum que os enquadre a todos55.
Por outro lado, mesmo quando se equaciona o problema do pluralismo na
perspetiva de uma teoria normativa (e não meramente descritiva), não se pode perder de
vista que a resposta plural constitui igualmente uma forma de limitação e de legitimação
do poder e, nesta medida, apresenta-se como uma resposta com sentido56. Concretamente,
o caso Kadi, ao mostrar como a luta contra o terrorismo protagonizada pelo próprio
Conselho de Segurança pode trazer novas ameaças aos direitos fundamentais, representa
apenas a ponta de um iceberg57.
c) O pluralismo como forma de dualismo
I. Tendo sempre presente que, no que se refere à dimensão competencial, mais do
que a contraposição entre dualismo e monismo, interessa distinguir as visões dualistas ou
monistas com primado de direito interno, de um lado, e a conceção monista com primado
do direito internacional, do outro, o pluralismo atual – com a assunção da coexistência
de diversas ordens jurídicas com pretensões de primazia conflituantes – está muito
mais próximo das perspetivas dualistas do que das monistas de direito internacional58.
Aliás, já em HANS KELSEN, a contraposição rigorosa não se colocava entre
monismo e dualismo, mas sim entre monismo e pluralismo, sendo justamente
caraterístico da “construção dualista – ou melhor, «pluralista», se tivermos em conta a
pluralidade das ordens jurídicas estaduais” – a coexistência de sistemas de normas
diferentes, independentes uns dos outros, porque apoiados em normas fundamentais
diferentes59.
Cfr. RALF MICHAELS / JOOST PAUWELYN, Conflict of Norms or Conflict of Laws?: different
techniques in the fragmentation of public international law, in Duke Journal of Comparative & International
Law, 22 (2011), p. 355.
56 Cfr. NICO KRISCH, Beyond Constitutionalism: The Pluralist Structure of Postnational Law, pp.
176 ss (em especial, 185-187).
57 Cfr. JEAN L. COHEN, Globalization and Sovereignty - Rethinking Legality, Legitimacy, and
Constitutionalism, p. 4.
58 Cfr. ARMIN VON BOGDANDY, Pluralism, direct effect, and the ultimate say: On the relationship
between international and domestic constitutional law, pp. 400-401.
59 Cfr., por todos, HANS KELSEN, Teoria pura do direito, p. 437.
55
A verdade, porém, é que a aproximação do pluralismo atual das visões dualistas
deixa na sombra ou por resolver uma parte importante do problema. Por isso, e embora
se esteja perante terreno movediço, tanto mais que a própria terminologia empregue e o
significado que se lhe atribui não são unívocos, havendo o risco de a discussão se tornar
em larga medida conceptual, impõe-se prosseguir a análise.
II. A primeira dúvida que cumpre esclarecer prende-se com o significado que se
atribua ao dualismo (e, portanto, à tese que admite a existência de uma pluralidade de
pretensões de primado conflituantes).
Obviamente, caso se insista na ideia de que o dualismo se baseia na premissa de
que as normas internacionais e o direito interno têm, em geral, diferentes objetos60 e se
apresentam como sistemas estritamente separados que só obedecem à sua própria norma
fundamental e que apenas admitem conexões secundárias entre si61, forçoso será concluir
que o dualismo deve ser substituído por uma teoria legal do pluralismo62.
A verdade, porém, é que nada impõe uma tal leitura do dualismo. É certo que, por
vezes, se associou “o dualismo ao princípio do exclusivismo das ordens jurídicas, isto é,
numa versão «moderada», o princípio segundo o qual os órgãos de aplicação do direito
de uma ordem jurídica só podem aplicar normas dessa ordem jurídica, ou, na versão
«extrema», o princípio segundo o qual para uma ordem jurídica todas as outras são
simples factos”63. Neste sentido, dir-se-ia concretamente que, no que se refere à relação
entre direito internacional e direitos estaduais, se trataria de dois sistemas totalmente
diferentes e independentes entre si64. Todavia, em rigor, mesmo na visão dualista, uma tal
conclusão afigura-se precipitada.
Pode admitir-se que, num quadro dualista, cada ordenamento normativo,
Cfr. ARMIN VON BOGDANDY, Pluralism, direct effect, and the ultimate say: On the relationship
between international and domestic constitutional law, pp. 401-402.
61
Cfr. MATTIAS KUMM, The Cosmopolitan Turn in Constitutionalism: On the Relationship
between Constitutionalism in and beyond the State, in Ruling the World? Constitutionalism, International
Law and Global Governance (ed. Dunoff / Trachtman), Cambridge University Press, 2009, p. 274.
62 Cfr. ARMIN VON BOGDANDY, Pluralism, direct effect, and the ultimate say: On the relationship
between international and domestic constitutional law, p. 398.
63 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), p. 17.
64 Cfr. HANS KELSEN, Il problema della sovranità, p. 154.
60
enquanto tal, é, per definitionem, configurado em termos de originariedade-exclusividade.
Neste sentido, em relação ao ordenamento de referência todos os demais se encontram
em posição de subordinação, na medida em que, para serem juridicamente relevantes,
carecem de alguma forma de reconhecimento. Daí a relatividade – tendo por referência
cada ordenamento específico – dos diversos modos de conceber as relações entre os vários
ordenamentos. É significativo que, no que se refere ao problema tradicional das relações
entre direito internacional e direito interno, a resposta do direito internacional quanto ao
status do direito nacional perante um tribunal ou uma autoridade internacional, não se
confunde com a opção constitucional de cada Estado quanto à relevância que atribui ao
direito internacional para efeitos internos65. É sabido que, se na perspetiva dos Estados as
respostas são muito diversas, a solução clássica do direito internacional é a de que,
“existindo um conflito entre a norma internacional e uma norma nacional, o direito
internacional resolve o mesmo considerando a norma nacional um mero facto, pelo que
um tribunal internacional terá de aplicar a norma internacional desconsiderando a norma
nacional”66. Ou seja, as instâncias internacionais “autocompreendem-se, acima de tudo,
como garantes da observância do direito internacional e da correção das relações
interestaduais, assim se compreendendo que desconsiderem o direito interno”. Daí que
possa haver, simultaneamente, a afirmação estadual da primazia da Constituição e a
defesa internacionalista do primado do direito internacional67. Da mesma forma, para
referir apenas mais um exemplo, no confronto entre o Estado e Igreja Católica, mesmo
sem falar da própria perspetiva que a Igreja Católica adote, cada ordenamento estadual,
tanto pode assumir por exemplo, para referir apenas hipóteses mais relevantes na
atualidade, uma posição de separação ou até de rigoroso laicismo, desinteressando-se de
qualquer comportamento ou facto de caráter religioso, como pode consagrar um princípio
65
Cfr. JÓNATAS MACHADO, Direito Internacional – do paradigma clássico ao pós 11 de setembro,
p. 144.
66 Cfr. MANUEL FONTAINE, O controlo da concessão de ajudas públicas na União Europeia e na
Organização Mundial do Comércio – Fundamentos, regimes e resolução de desconformidades, Porto: UCP,
2011 (polic.), p. 641.
67 Cfr. JÓNATAS MACHADO, Direito Internacional – do paradigma clássico ao pós 11 de setembro,
pp. 144, 152-154 e 181-182 – cfr. ainda EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito Internacional Público –
conceito e fontes, I, pp. 412 ss.
de cooperação68.
Esta prerrogativa unilateral de cada ordenamento num quadro dualista não
impede, contudo, que se estabeleçam relações de reconhecimento entre os diversos
ordenamentos, não implicando, portanto, a negação da relevância jurídica para um
determinado ordenamento de outros ordenamentos originários e exclusivos. Pode mesmo
dizer-se que os verdadeiros conflitos sistémicos só acontecem quando a ordem jurídica
em causa se abre ao conflito. Tal não sucederia se, estando em causa ordens jurídicas
distintas, as mesmas nem sequer admitissem um conflito entre as respetivas normas69. As
relações de reconhecimento não constituem, pois, qualquer corpo estranho no quadro do
dualismo (ou do pluralismo). Ou seja, como refere MIGUEL GALVÃO TELES, mesmo no
plano da articulação entre direito das gentes e direito interno, o exclusivismo das ordens
jurídicas não apresenta nenhuma relação indispensável com o dualismo. O dualismo, na
medida em que reconhece ao Estado a competência originária para disciplinar a vigência
interna do direito internacional, impõe tão-somente a necessidade de uma remissão
daquele para este; mas nada mais. Além disso, ao menos uma das modalidades da
receção – a receção formal – não envolve incompatibilidade com a interpretação ou
integração das fontes internacionais nos quadros da sua ordem jurídica própria70.
É sabido que, segundo uma perspetiva tradicional muito difundida, mesmo no
quadro do dualismo, as relações que se estabelecem podem ser quer de pressuposição quer
de reenvio ou remissão receptícia (material ou formal). Na pressuposição, isto é, quando está
em causa o mínimo necessário para que se possa afirmar que um ordenamento entra em
relação com outro, um ordenamento reconhece que um determinado facto ou uma certa
situação pode ser qualificada e disciplinada pelas normas do ordenamento pressuponente
(v.g., atribuição de efeitos civis ao casamento católico ou reconhecimento de que uma
pessoa tem uma determinada cidadania estrangeira). No reenvio ou na remissão
receptícia (material ou formal), pelo contrário, normas do ordenamento externo são
assumidas como normas aplicáveis ou vigentes no ordenamento reenviante ou
Cfr. FRANCO MODUGNO, Pluralità degli ordinamenti, pp. 2, 15, 35 e 39.
Cfr. MANUEL FONTAINE, O controlo da concessão de ajudas públicas na União Europeia e na
Organização Mundial do Comércio – Fundamentos, regimes e resolução de desconformidades, p. 641.
70 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições,
termos e limites), pp. 20-21.
68
69
remetente71.
Seja como for, para efeitos da questão agora em análise, decisivo é sublinhar que a
afirmação de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos não significa necessariamente
que, no resultado, se esteja condenado a uma lógica exclusivista, nada impedindo que um
ordenamento atribua “relevância jurídica” a outro ordenamento, podendo até acontecer
que a atribuição dessa relevância seja “unilateral”72.
Por isso, se é certo que o pluralismo jurídico atual não impede o estabelecimento
de normas de reconhecimento, cooperação ou articulação, reconhecendo-se, pelo
contrário, que no quadro de um novo pluralismo, a dimensão relacional assume um papel
central73, não é menos verdade que a visão dualista ou pluralista tradicional tão-pouco se
opunha a uma tal afirmação, já se admitindo há muito que entre diferentes “sistemas
jurídicos pode haver relações de reconhecimento”74. Nesta primeira dimensão, portanto,
pode dizer-se que o pluralismo constitui, simplesmente, “uma versão contemporânea do
dualismo”75.
III. Questão diversa é a de saber se o pluralismo atual não implica a rutura com o
modo como tradicionalmente se colocava o problema das relações de reconhecimento.
Cfr. FRANCO MODUGNO, Pluralità degli ordinamenti, pp. 15 ss e 34 ss – cfr. ainda MIGUEL
GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados na ordem interna portuguesa (condições, termos e limites), p. 15
72 Cfr. SANTI ROMANO, El ordenamiento juridico (trad. L’ordinamento giuridico, 2.ª ed., 1946 –
reimp. 1951), Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1968, pp. 240 ss, 248 ss e 305 ss – cfr. ainda, no
sentido de que, mesmo quando se reconhece superioridade a um dos ordenamentos em confronto,
isto não significa que se possa construir uma pirâmide entre os ordenamentos assente em relações
de validade. Neste sentido, em rigor, as relações que se estabelecem são sempre de coordenação,
FRANCO MODUGNO, Pluralità degli ordinamenti, p. 34.
73 Cfr. NEIL WALKER, The Idea of Constitutional Pluralism, in The Modem Law Review, 65, n.º 3
(2002), p. 339.
74 Cfr., referindo-se a relações de reconhecimento quer horizontais quer verticais (v.g. Estado
federal), MIGUEL GALVÃO TELES, Constituições dos Estados e eficácia interna do Direito da União e das
Comunidades Europeias – em particular sobre o artigo 8.º, n.º 4, da Constituição portuguesa, in Estudos em
Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento, Coimbra Editora,
2006, pp. 324 ss.
75 Cfr. JEAN L. COHEN, Globalization and Sovereignty - Rethinking Legality, Legitimacy, and
Constitutionalism, p. 292.
71
a) Diversas posições de matriz pluralista – ao sublinharem que o pluralismo
impõe uma interação reciproca entre as diferentes ordens jurídicas76 – advogam a
novidade nesta matéria das atuais respostas pluralistas 77.
A construção de GRÁINNE DE BÚRCA – ao assumir a existência de uma comunidade
internacional, ao enfatizar o teste, de inspiração kantiana, da universalização e ao
defender a centralidade dos princípios comuns de comunicação na resolução dos
diferentes conflitos sistémicos – é sugestiva a este propósito78. Da mesma forma, MATTIAS
KUMM, ao fazer a apologia de um constitucionalismo cosmopolita, recusa quer a ideia de
um sistema legal hierarquicamente integrado – na lógica monista – quer o erro de
imaginar a ordem nacional e a ordem internacional como sistemas estritamente
separados. Para o efeito, o Autor lança mão de um conjunto de princípios universais com base nos quais se determina qual dos sistemas de normas em conflito deve ter
precedência79. Também DANIEL HALBERSTAM, para referir apenas mais um exemplo,
desenvolve
uma
linha
de
argumentação que se entronca
neste pensamento
fundamental80.
Uma tal construção tem frequentemente como pano de fundo as relações entre o
direito da União Europeia e do direito constitucional dos Estados membros. Como é
sabido, em reação à decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão sobre o Tratado
de Maastricht, o movimento pluralista na Europa – sob a capa de um pluralismo
constitucional – teve na base a discussão em torno das relações entre o direito da União
Europeia e as ordens constitucionais dos Estados membros, procurando oferecer uma
third way assente num princípio de respeito mútuo e de compromisso81. A verdade,
contudo, é que a terceira via assim construída surge, muitas vezes, como uma forma de
Cfr. ARMIN VON BOGDANDY, Pluralism, direct effect, and the ultimate say: On the relationship
between international and domestic constitutional law, p. 401.
77 Cfr. GRÁINNE DE BÚRCA, The ECJ and the international legal order: a re-evaluation, p. 137.
78 Cfr. GRÁINNE DE BÚRCA, The ECJ and the international legal order: a re-evaluation, pp. 136 ss
e 281 ss.
79 Cfr. MATTIAS KUMM, The Cosmopolitan Turn in Constitutionalism: On the Relationship
between Constitutionalism in and beyond the State, pp. 273 ss; Rethinking Constitutional Authority: On
the Structure and Limits of Constitutional Pluralism, pp. 43, 54 ss e 65.
80 Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
pp. 152, 163-164.
76
reafirmar o primado – ainda que não absoluto – do direito da União Europeia.
Significativamente, quando apresentou inicialmente a tese do pluralismo constitucional,
NEIL MACCORMICK não deixou de afirmar justamente que a integração na União Europeia
significa que o novo Estado membro assume um conjunto de novas obrigações, incluindo
no que se refere à aplicabilidade direta e à primazia do direito europeu82. Da mesma
forma, JULIO BAQUERO CRUZ, por exemplo, desenvolve a ideia de um primado tendencial
do direito da União Europeia que seja compatível e permita enquadrar os casos de
legítima recusa de aplicação da normação europeia construídos numa lógica de
desobediência institucional legítima inspirada na teoria tradicional da desobediência
civil83. O mesmo se diga quando DANIEL HALBERSTAM afirma que, na relação entre direito
da União Europeia e ordens constitucionais dos Estados membros, uma visão pluralista,
se por um lado exclui qualquer ideia de supremacia no sentido de uma superioridade
hierárquica, não deixa, por outro, de se harmonizar com uma primazia tendencial no
quadro de uma acomodação horizontal entre iguais, isto é, numa lógica de primus inter
pares84. Enfim, para MIGUEL POIARES MADURO, a reivindicação da autoridade última por
um Estado-membro deve ficar reservada às situações em que o caso específico gerador do
conflito seja “de uma gravidade tal que afetasse por completo a relação constitucional
entre a União Europeia e o Estado”85.
Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
pp. 160 ss.
82 Cfr. NEIL MACCORMICK, The Maastricht-Urteil: Sovereignty Now, in European Law Journal, 1,
n.º 3 (1995), p. 262.
83 Cfr. JULIO BAQUERO CRUZ, Legal Pluralism and Institutional Disobedience in the European
Union, in Constitutional Pluralism in the European Union and Beyond (eds. Matej Avbelj / Jan
Komárek), Oxford: Hart Publishing, 2012, pp. 249 ss – cfr. ainda JULIO BAQUERO CRUZ The Legacy of
the Maastricht-Urteil and the Pluralist Movement, 2007 (working paper), pp. 18 ss (em especial,21-22).
84 Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
p. 202 – cfr. ainda, no sentido de que “there is a presumption that UN law trumps EU law and that
EU law trumps Member States law”, MATTIAS KUMM, Rethinking Constitutional Authority: On the
Structure and Limits of Constitutional Pluralism, pp. 54 ss.
85 Cfr. MIGUEL POIARES MADURO, As Formas do Poder Europeu – O Pluralismo Constitucional
Europeu em Acção (trad. Contrapunctual Law: Europe's Constitutional Pluralism in Action, 2003), in A
Constituição Plural, Cascais: Principia, 2006, pp. 50-51.
81
b) Contudo, mesmo admitindo que, em matéria de colisões inter-constitucionais,
vale um princípio geral de tolerância constitucional86 – e que, em particular, no espaço
europeu, uma das mais importantes inovações constitucionais europeias se prende
justamente com este princípio87 -, não se deve ignorar que, na sua formulação geral e
vocação transversal, um princípio de tolerância constitui uma fórmula vaga e quase
vazia88, não dispensando o papel decisivo de cada sistema no modo de resolução do
conflito em causa.
Sem dúvida, a conclusão alterar-se-ia se fosse possível identificar um conjunto de
princípios comuns aplicáveis à resolução de conflitos entre diferentes sistemas jurídicos89
ou, ao menos, no espaço da União Europeia. É significativo, por exemplo, que os
“princípios harmónicos do direito contrapontual” afirmados por MIGUEL POIARES
MADURO, isto é, “princípios com que todos os atores da comunidade jurídica europeia se
devem comprometer”, sejam apresentados como “um conjunto de princípios partilhados
pelos diferentes ordenamentos jurídicos (…) (nacionais e europeu)” no quadro de “um
ordenamento jurídico coerente e integrado”90.
Só que esta espécie de pluralismo acaba, afinal, por se aproximar das visões
monistas moderadas – ou, se se quiser, por constituir a tal “síntese entre monismo e
Cfr. GUNTHER TEUBNER, Fragmented Foundations: Societal Constitutionalism and
Globalization, Oxford Constitutional Theory, 2012, p. 158.
87 Cfr. JOSEPH WEILER, In defence of the status quo: Europe’s constitutional «Sonderweg», in
European Constitutionalism Beyond the State (ed. Joseph Weiler / Marlene Wind), Cambridge
University Press, 2003, pp. 18 ss - cfr. ainda, mas na perspetiva de um princípio de lealdade, RAMSES
A. WESSEL, The multilevel constitution of European foreign relations, in Transnational Constitutionalism –
International and European Perspectives (ed. Nicholas Tsagourias), Cambridge University Press, 2010,
pp.181 ss.
88 Cfr., referindo que os pluralistas, se é certo que tendem a apresentar uma argumentação
forte para recusar perspectivas hierárquicas na articulação entre os diferentes sistemas, não
deixam, porém, de pecar quando concretizam os modos de cooperação entre os vários sistemas,
socorrendo-se frequentemente para o efeito de fórmulas vagas, JOSEPH WEILER, Dialogical epilogue,
in The worlds of European constitutionalism (ed. Gráinne de Búrca / Joseph Weiler), Cambridge
University Press, 2012, pp. 301 ss.
89 Cfr., contrapondo a este propósito um “pluralism under international law” a um “radical
pluralism”, N.W. BARBER, The Constitutional State, Oxford University Press, 2012, pp. 167 ss.
90 Cfr. MIGUEL POIARES MADURO, As Formas do Poder Europeu – O Pluralismo Constitucional
Europeu em Acção, pp. 39 ss.
86
dualismo”91 de que falam diversos autores, mas que se encontra em qualquer caso já
muito distante (e este é aqui o aspeto decisivo) da matriz dualista que está na base do
pluralismo clássico. MIGUEL POIARES MADURO reconhece-o expressamente quando, em
artigo ulterior, afirma que a sua teoria pode ser vista como uma forma de monismo
implícito92. Esta segunda perspetiva parece assim ter subjacente a ideia de que há uma
Gesamtordnung com diferentes centros autónomos93, tendendo, por isso, a confundir-se
com um monismo moderado, tanto mais que o monismo é compatível com o
reconhecimento de um processo descentralizado de criação normativa94.
Ora, pelas duas razões oportunamente apresentadas, as respostas monistas, ainda
que no quadro de um monismo moderado apoiado num soft constitucionalismo ou num
constitucionalismo cosmopolita light, não conseguem oferecer uma solução adequada ao
problema dos conflitos sistémicos do nosso tempo, seja em face da multiplicação de
governance sites, reciprocamente autónomos, e cuja articulação, em larga medida, não é
pura e simplesmente objeto de normação comum (ainda que de natureza principiológica),
seja na perspetiva da própria limitação e legitimação dos diferentes poderes.
5. Conclusão
As considerações anteriores permitem extrair uma conclusão segura: o problema
da aplicação numa determinada ordem jurídica de normas provenientes de outros
sistemas – além de não se reconduzir a uma simples questão técnica, tendo uma
inequívoca dimensão política ou, em ordens constitucionais, uma clara relevância
Cfr. DANIEL HALBERSTAM, Local, global and plural constitutionalism: Europe meets the world,
pp. 171 e 175 ss.
92 Cfr. MIGUEL POIARES MADURO, Three Claims of Constitutional Pluralism, in Constitutional
Pluralism in the European Union and Beyond (eds. Matej Avbelj / Jan Komárek), Oxford: Hart
Publishing, 2012, pp. 82-83.
93 Cfr. RENÉ BARENTS, The Fallacy of European Multilevel Constitutionalism, in Constitutional
Pluralism in the European Union and Beyond (eds. Matej Avbelj / Jan Komárek), Oxford: Hart
Publishing, 2012, pp. 156-158, 159-166 e 175-179.
94 Cfr. ALEXANDER SOMEK, Monism: A Tale of the Undead, in Constitutional Pluralism in the
European Union and Beyond (eds. Matej Avbelj / Jan Komárek), Oxford: Hart Publishing, 2012, pp.
343 ss (em particular, criticando a construção de Mattias Kumm, 362 ss).
91
político-constitucional95 - constitui uma questão cuja resolução não dispensa a indagação
da resposta específica dada por cada um dos sistemas jurídicos conflituantes.
Cfr. CLAUDIO FRANZIUS, Recht und Politik in der transnationalen Konstellation, in AöR, 138
(2013), p. 255.
95

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