gail godwin o colégio de todos os segredos

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gail godwin o colégio de todos os segredos
GAIL GODWIN
O COLÉGIO DE TODOS
OS SEGREDOS
TRADUZIDO DO INGLÊS POR
ELSA T. S. VIEIRA
Se forem passear no nosso bosque escuro
Quando o falcão esconde o rosto sob a asa
E a neblina se levantou já nos vales
E a coruja pia:
Não se assustem se, no vosso caminho,
Um fantasma solitário encontrarem.
Perguntem-lhe: «O que amavas mais?
E o que deixaste por fazer?»
Prólogo da peça escolar de 1931, de Suzanne Ravenel,
A Freira Vermelha
PRÓLOGO
UMA MEMÓRIA COMEÇADA
31 de maio de 2001
Festa da Nossa Senhora da Visitação
Casa de Olivia e Gudge Beeler
Mountain City, Carolina do Norte
A
s ala, embora pequena, é clara e arejada. Uma secretária muito
polida está voltada para a janela que dá para um quadrado de
relva com canteiros de flores. Do lado esquerdo da secretária, lápis
afiados foram colocados, enviesadamente, sobre um bloco de papel
amarelo novo. Por trás do bloco está uma pequena sineta de bronze.
Do lado direito da secretária há uma bandeja de prata. Colocados
sobre a toalha branca engomada estão um copo de água de pé alto,
de vidro lapidado, um jarro de prata salpicado de gotículas geladas,
um guardanapo de chá com uma rosa bordada, um pacote de
M&M’s coloridos e uma caixa de lenços de papel Kleenex de edição
limitada.
No centro da secretária, um gravador elipsoide reluzente aguarda a sua senhora.
Duas mulheres entram, de braço dado. A mais elegante, de calças de linho vincadas, conduz delicadamente a mais velha, que é
praticamente cega. Ainda consegue ver formas e cores, identificar
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objetos e – com alguma ajuda – as pessoas que conhece. Guiada
pelos sentidos do olfato e do tato e pela longa familiaridade com as
coisas apropriadas e a sua disposição prática, ainda consegue reconhecer uma sala perfeitamente decorada.
Aos oitenta e cinco anos de idade, tem uma juba leonina de
cabelo branco ondulado, postura ereta e um perfil nobre. Os olhos
azuis cintilantes, encovados, fazem com que as suas antigas alunas
sintam que ela consegue ver dentro delas tão intensamente como
sempre, e talvez consiga, auxiliada por outros instintos desenvolvidos e aguçados ao longo de décadas a tomar conta de raparigas. Está
vestida com o gosto simples de alguém que prefere o conforto ao
feminino, e a única indicação de que é freira é a cruz latina, pendurada na sua corrente de prata, apoiada sobre o seio modesto da blusa
de seda.
Todas as primaveras, desde que a escola fechou em 1990, um
grupo das suas antigas alunas reúne esforços para a levar da casa de
retiro da ordem, em Boston, para uma visita de um mês a Mountain
City. Sabem como foi duro para ela deixar Mountain City, o seu
lar durante sessenta anos, primeiro como aluna interna do sétimo
ano, vinda de Charleston, Carolina do Sul, depois como aluna
interna da academia, onde fez os seus votos de postulante no último
ano. Daí em diante, à exceção de alguns semestres na universidade
depois de tomar o hábito – e daquela única e horrível «licença sabática» (1952-1953) que lhe foi imposta pelo seu voto de obediência
– toda a sua vida como freira, professora, diretora da academia e,
finalmente, madre reverenda, se passou dentro dos abençoados
muros da escola de Mount St. Gabriel’s.
Este ano, vai ficar com Olivia Stewart Beeler, finalista de 1974,
possivelmente a sua turma mais satisfatória em cinquenta anos de
ensino. As raparigas de 1974 não foram difíceis; vivazes sem serem
maldosas, expeditas sem serem destrutivas. O seu ano com elas (na
sua qualidade de diretora, dava sempre aulas aos últimos anos) fora
fácil, depois dos tempestuosos anos sessenta e das suas consequências.
Houvera outras turmas gratificantes, claro, desde as desafiadoras e
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estimulantes, até às doces e calmas, e às comoventes e tristes, como
em 1943 e 1944, anos em que seis alunas finalistas perderam os
noivos nos teatros de guerra da Europa e do Pacífico. E havia ainda
aquelas turmas excecionais que surgiam de longe a longe e a mantinham intelectualmente em forma, anos em que um grupo de raparigas se destacava e brilhava quase com demasiada intensidade para
o bem do resto da turma, desencadeando correntes de ressentimento
e sofrimento nas menos dotadas. A seguir, surgiram as filhas das
classes em ascensão social do pós-guerra, que tomavam como garantida a sua segurança: até as partidas que pregavam eram mais divertidas do que cruéis.
E depois, no outono de 1951, os elementos perniciosos que
concluíram os estudos como a classe de finalistas de 1955, entraram
no nono ano e passaram para a sua responsabilidade. Ela ainda lhe
chama «o ano tóxico» e, até hoje, não tem a certeza de quanto do
mal causado pode ser atribuído a si própria.
Um ano que mais vale esquecer. Contudo, cinquenta anos
depois, aquelas raparigas ainda a assombram.
Agora, porém, as suas antigas alunas persistiram e finalmente
levaram a melhor. Convenceram-na de que tem de escrever as memórias da escola ou, mais precisamente, dizê-las para esta máquina
que a aguarda e que mais parece uma nave espacial em miniatura.
– Caso contrário, madre, perder-se-á tudo. Mount St. Gabriel’s
foi a escola das escolas. Por favor. Pense nisso durante o inverno.
Lembra-se de todos os trabalhos de casa que nos deu? Pois bem,
este é o nosso trabalho de casa para si. Será uma história fabulosa,
madre. Trate apenas de começar a recordar e nós tratamos do resto.
Temos os álbuns, os livros de fim de curso e os recortes de imprensa;
até já encontrámos uma editora! Mas não podemos fazê-lo sem as
suas memórias.
Isso fora na primavera anterior e ela pensara no assunto e rezara
durante o longo inverno de Boston – e, para dizer a verdade, já
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compusera partes substanciais na sua mente. Ou melhor, permitira
que se compusessem a si próprias. Agora, esta tarde, na bela casa de
Olivia e Gudge em Mountain City, está prestes a começar.
– Primeiro do que tudo, madre, quero que experimente esta
cadeira e veja se se sente confortável nela.
A freira passa os dedos ao de leve sobre as curvas de mogno das
costas da cadeira.
– É uma das tuas Chippendales.
– Mas esta tem braços e um bom encosto simples. Não queria
que tivesse ornamentos a cravarem-se nas suas costas.
– Preocupas-te sempre tanto com os outros, Olivia.
Senta-se na cadeira. Estende as mãos e explora os artigos indistintos e brilhantes em cima da escrivaninha.
– E lembraste-te de que eu sou canhota!
– Ora, com certeza, madre. Foi a senhora que o tornou moda
para as outras canhotas entre as alunas. E sempre gostou de fazer
rabiscos num bloco enquanto pensava. Agora vou mostrar-lhe como
funciona o gravador. Este modelo também pode fazer gravações ativadas por voz, mas não precisamos de nos preocupar com isso agora.
Disse ao Gudge que a senhora gosta de ter na mão as rédeas das
situações e que preferia ter a opção, à moda antiga, de começar e
parar quando muito bem entender. Mas por favor, não se esqueça,
estas são as suas férias. Trabalhe apenas um bocadinho por dia.
– E o que consideras ser «um bocadinho», Olivia?
– Bom, uma cassete tem sessenta minutos de cada lado.
Quando a cassete chegar ao fim, talvez seja boa altura para dar por
terminado o trabalho do dia. No entanto, se sentir que tem mesmo
de continuar, toque a sua sineta e a Sally ou eu viremos virá-la. Oh,
e está a ver esta pequena grelha na parte da frente? É o microfone.
Disseram-nos que a qualidade de som deste modelo é tão boa que
nem precisa de elevar a voz. Basta falar no seu tom normal, como
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se estivesse a conversar com uma pessoa do outro lado da mesa, por
exemplo.
– Espero bem que essa pessoa seja Deus – comenta a freira,
com a sua ironia habitual, e Olivia ri-se.
Quando fica sozinha, acomoda-se na robusta cadeira Chippendale, apoiando levemente os cotovelos nos braços finos e curvos.
Respira fundo, ouve-se expirar. As suas narinas apanham o cheiro a
limão do óleo das mobílias, os vestígios do perfume Chanel N.º 5
de Olivia e o aroma do bolo de ananás invertido que Sally está a
fazer para ela na cozinha. Através das janelas abertas, o relvado é
uma laje esverdeada salpicada com sombras, e os canteiros de flores
são manchas pastel com borrões vermelhos e amarelos.
Espantosamente, sente o mesmo frémito de inquietação dos
seus dias de estudante, quando as monitoras de Mount St. Gabriel’s
estavam prestes a entregar o enunciado do exame e sentia que tudo
o que tinha estudado se escoava pelos buracos da sua mente.
Inclina-se para a frente e fecha as mãos sobre a secretária, depois
abre-as no tampo, de palmas para baixo, satisfeita com a sua forma
e suavidade – envelheceram bem. Roda o anel de prata no dedo
anelar esquerdo. Há muito tempo que festejou o Jubileu de Ouro
– um evento de gala na basílica de Mountain City, acompanhado
pelos jornais, em que o bispo fez a homilia e as suas antigas alunas
vieram de locais tão distantes como Paris e Venezuela. O seu septuagésimo quinto ano como freira, o Jubileu de Diamante, está apenas a oito anos de distância. Chegará lá? Hoje em dia, aos noventa
e três anos, uma pessoa está apenas no princípio da velhice avançada. Desde que consiga manter a lucidez.
Prepara-se para dizer uma oração antes de começar, depois
decide que a oração deve inaugurar a cassete e carrega no botão
«Gravar». Ouve um estalido discreto, a que se segue um zumbido
quase inaudível – muito diferente da máquina velha em que praticou durante o último inverno, em Boston.
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– Que as palavras da minha boca e a meditação do meu coração
sejam aceitáveis aos Teus olhos, Senhor, minha força e meu Redentor.
Para, rebobina a fita e ouve a sua voz. Depois de todos aqueles
anos nas montanhas no oeste da Carolina do Norte, ainda tem o
sotaque arrastado da sua infância nas terras baixas de Charleston.
Já lhe têm dito que é encantador, «aristocrático», mas há também
nele algo de inegavelmente frívolo, especialmente quando reza uma
oração. Pareceria Teresa de Ávila frívola quando rezava em voz alta
no seu espanhol aristocrático?
Sabe que pode rebobinar de novo e gravar outra coisa qualquer
por cima, mas decide deixar a oração e continuar. Nas memórias
publicadas, não se ouvirá o sotaque de Charleston.
Senhor, e se eu não estiver à altura desta tarefa? As raparigas
querem tanto esta pequena história. E quem, melhor do que eu,
estará preparada para isso? Ninguém esteve em Mount St. Gabriel’s
mais tempo do que eu, primeiro como aluna e depois como professora. Sou a única pessoa ainda viva que conheceu pessoalmente
a nossa fundadora, a madre Elizabeth Wallingford, durante os seus
últimos dias, na enfermaria. Para o melhor ou para o pior, eu sou a
memória viva daquilo que resta. Em todos os aspetos, sou a pessoa
viva mais qualificada para preservar a memória de Mount St.
Gabriel’s, se é que está destinada a ser preservada. Além do mais,
quero fazê-lo.
Bom, Suzanne, como de costume, respondeste à tua própria
pergunta.
Mas preciso de saber se estás comigo neste empreendimento,
Senhor. É a Tua vontade, ou estou apenas a ser conduzida pela
ambição?
Na maior parte das vezes, a tua ambição serviu-nos bem. Produziu muitos resultados bons, mas desgastou parte da tua alma.
(– Quando diz que ouve o lado «Dele» do diálogo – perguntara-lhe o seu mestre de retiro, o padre Krafft –, a voz parece estar a falar
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consigo de fora? Diria que é uma audição corpórea? Ou seja, ouve-a
da mesma maneira que está a ouvir a minha voz?
Ela estava no mês de retiro obrigatório antes de fazer os votos definitivos.
– Não, padre, não é exterior a mim, mas é uma voz perfeitamente
articulada e não é a minha voz.
– Porque diz que não é a sua voz?
– Bom, em primeiro lugar, o tom é mais grave. É uma voz de
homem. E Ele não tem o meu sotaque. E é sábio. Diz coisas em que eu
nunca teria pensado.
– Pode ser mais específica, irmã?
– Ele tem respostas para coisas que eu nem saberia como começar
a resolver sozinha. Aponta-me locais em mim que eu não sabia que
existiam. E não é sempre agradável, padre. Ele consegue punir ou rebaixar. Noutras ocasiões é engraçado, quase provocador. O Seu sentido de
humor é mais masculino.)
Não sei se estou a compreender, Senhor, quando dizes que a
minha ambição produziu resultados bons mas desgastou a minha
alma. Se pelo menos pudesse ver um plano desta pequena história
que vou ditar!
Avança cassete a cassete, Suzanne. A tua ambição e os teus hábitos de disciplina ser-te-ão úteis. Quanto à parte não ditada que vai
restaurar a tua alma, lembra-te dos teus exercícios inacianos. Visualiza a história do ano que te assombra. Prossegue cena a cena. Habita
em cada participante com todas as tuas faculdades.
Esta tarde vou começar a história da escola de Mount St. Gabriel’s
em Mountain City, Carolina do Norte. É um grande empreendimento,
mas darei o meu melhor. Há álbuns desde os anos da abertura da escola,
em 1910, até ao seu encerramento, em 1990, e temos livros de curso
para todos os anos exceto os primeiros três anos da Grande Depressão,
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quando a escola não tinha dinheiro para os mandar fazer. Nenhuma
rapariga foi mandada para casa por a sua família deixar de conseguir
pagar alojamento ou propinas. Comemos muitas papas de aveia e feijão
nesses anos, mas todas as raparigas foram alimentadas.
Vim para Mount St. Gabriel’s como interna para o sétimo ano, em
1929, e lá fiquei mesmo depois de o meu pai perder tudo. Isto foi apenas
dezanove anos depois da fundação da escola. E nela ficaria até ao seu
encerramento. Assim, fiz parte de muito do que aconteceu nesse local
único e, com a ajuda de Deus Nosso Senhor, espero tornar este relato
tão interessante como a história de Mount St. Gabriel’s.
– do prefácio de Mount St. Gabriel’s recordada:
Uma Memória Histórica, pela madre Suzanne Ravenel,
Ordem de Santa Escolástica, 2006; publicado por
Mountain City Printing Company
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PARTE UM
CAPÍTULO 1
VISITA GUIADA
Terceiro sábado de agosto de 1951
Escola de Mount St. Gabriel’s
Mountain City, Carolina do Norte
Q
uando se tomou conta de tantas raparigas como eu, madre
Malloy, percebe-se logo nos primeiros anos que cada
turma se revela um organismo por direito próprio. Espero que não
esteja demasiado cansada para um pequeno passeio.
– De forma alguma, madre Ravenel. Há dois dias que não faço
outra coisa senão estar sentada em comboios.
– Ótimo. Nesse caso – a diretora da escola, com passos tão rápidos como o seu discurso, desviou-se subitamente do caminho de
gravilha e, segurando nas saias pelo tornozelo, entrou num trilho
pelo meio do bosque –, vamos dar uma volta pelo novo campo de
atletismo e depois subimos até à gruta para nos sentamos um bocadinho com a Freira Vermelha e rezarmos a Nossa Senhora em frente
da nossa Anunciação do Della Robbia.
– Quem é a Freira Vermelha?
Sem abrandar o passo, a diretora virou-se para recompensar a
jovem professora nova com um sorriso de apreciação.
– Sabe, muitas vezes dou por mim a pensar nela como um
–
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«quem». Ao fim de todos estes anos! A forma mais breve de explicar,
é que ela é a nossa mascote. Se é que se pode chamar mascote a uma
tonelada de mármore vermelho com dois metros de altura. Está inacabada desde meados da Primeira Guerra Mundial. É uma boa história, e sabe que mais? Vou guardá-la até estarmos na gruta. Há
tantas coisas que quero mostrar-lhe primeiro. Ora bem, onde é que
eu ia?
– Estava a falar sobre… organismos?
– Ah, sim. Uma turma nunca é apenas um conjunto de raparigas individuais, embora também seja isso, claro, se pensarmos nas
raparigas isoladamente. Mas uma turma, no seu todo, desenvolve
uma consciência de grupo. É uma unidade orgânica, com as suas
próprias propriedades específicas. Enquanto damos o nosso passeio,
vou falar-lhe um pouco sobre as suas alunas do nono ano, a próxima
turma de caloiras da escola. São um grupo exigente, essas raparigas.
Vão precisar de controlo.
– Como… como um organismo, é isso que quer dizer? Ou…
algumas em particular?
– As duas coisas, madre Malloy.
Na presença da diretora, a madre Malloy, que era habitualmente calma e tinha um discurso conciso, deu por si a tropeçar e a
balbuciar. Pelas minhas respostas até agora, pensou ela, esta mulher
volúvel e segura de si deve estar a perguntar-se como é que eu vou
tomar conta de qualquer turma, quanto mais de uma turma «exigente» que requer «controlo». A madre Malloy estava aborrecida
com a inépcia que se apoderara dela logo ao descer os degraus do
comboio, com muito cuidado por causa das saias compridas, agradecendo ao revisor que a segurava pelo cotovelo, quando uma freira
com óculos escuros se precipitou para a receber. A madre Ravenel
era uma mulher vigorosa e atraente, de estatura média, com o rosto
corado e bonitos dentes brancos. Frases rápidas, banhadas num
sotaque sulista, atacaram a jovem freira de Boston. A sua mão foi
firmemente apertada entre as mãos imaculadamente enluvadas da
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madre Ravenel e ficou mortificada por se ter esquecido de calçar as
suas luvas.
O pior ainda estava para vir. A madre Ravenel apresentou-lhe
o motorista, um negro de uniforme, e um jovem de pele mais clara:
– Este é o Jovan… chamamos-lhe o nosso Anjo dos Transportes… e este é o seu neto, Mark, que vai para a universidade no próximo ano.
A madre Malloy estendeu a mão primeiro ao grisalho Jovan,
que a apertou após uma ligeiríssima hesitação. Embora se tivesse
apercebido de que fizera algo fora do protocolo, não tinha agora
alternativa senão repetir o gesto com o jovem Mark, que, depois de
um olhar rápido para o avô, lhe apertou a mão e correu à procura
do seu baú. Enquanto os dois homens o colocavam na caixa aberta
da carrinha decorada com o brasão de Mount St. Gabriel’s (o arcanjo, com as palmas das mãos viradas para cima, a flutuar de forma
protetora sobre uma cadeia montanhosa), a madre Ravenel aproximou a cabeça velada da jovem e confusa freira e confidenciou-lhe
em tom gentil:
– Fazemos as coisas de forma ligeiramente diferente por aqui,
madre, mas acabará por se habituar aos nossos costumes. Penso que
descobrirá que existe um grande respeito entre as raças e igual
amor… se não mesmo mais.
Nunca vi uma freira com óculos escuros, pensou a madre Malloy na estação ferroviária, tentando conter a sua vergonha.
– Claro, as raparigas adolescentes são complicadas – estava a
madre Ravenel a dizer agora. Saiu do caminho, aos ziguezagues, e
penetrou numa clareira no bosque. – Tem irmãs, madre?
Nunca conheci uma freira que corresse tanto de um lado para
o outro, pensou a madre Malloy, esforçando-se por acompanhar a
sua guia. No noviciado, em Boston, ensinaram-nos a deslizar graciosamente e a manter a custódia dos membros. Talvez a formação
religiosa seja outra coisa que fazem «de forma diferente» no sul.
O sotaque é melodioso mas, de alguma forma, não se presta a um
discurso de muita gravidade.
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