Capitulo 7 - Abeiramar TV
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Capitulo 7 - Abeiramar TV
7 - O IMAGINÁRIO DA CAPOEIRA Existe um país fantástico de lendas e mitos; fantasia e sonhos; habitado por entidades, orixás e pessoas que um dia já foram de carne, osso, suor e sangue; que os capoeiristas visitam em suas viagens astrais - vamos chamá-lo de Imaginário da Capoeira. O Cinco Salomão O Cinco Salomão (signo de Salomão) é a estrela de cinco pontas do rei judeu, Salomão, a respeito do qual lemos na Bíblia. No Brasil, a magia e a feitiçaria são muito populares. Algo veio com os africanos; algo dos índios brasileiros; algo dos europeus, incluindo os judeus. Na Europa medieval, p. ex., a estrela de cinco pontas estava ligada a diferentes rituais e simbolismos da "magia branca". Quando era desenhada de cabeça para baixo, significava "magia negra". O Cinco Salomão brasileiro tem, provavelmente, suas origens nesta tradição, talvez vindo da cabala judia, e é usado como amuleto protetor para "fechar o corpo". João do Rio o menciona numa de suas crônicas, de maneira tão familiar, que não deixa dúvidas quanto à popularidade do amuleto desde, pelo menos, o início dos 1900s. Muitas vezes, a estrela é um amuleto feito de metal - ouro, prata, ferro - pendurado no pescoço; outras vezes, é usado juntamente com ervas, infusões, banho de fumaça, rezas mágicas. O Cinco Salomão é o signo protetor do capoeirista. Dizem que fecha o corpo contra faca, navalha, bala de revólver; protege contra emboscada; fortalece o espírito contra mandinga e olho grande. O Cinco Salomão simboliza um homem de braços e pernas abertas. Leonardo daVinci, que também era um alquimista, fez um conhecido desenho da estrela e seu simbolismo. A estrela/ homem é circundada por um círculo para proteção contra o mal físico, mental ou espiritual. No Brasil, o círculo vem, muitas vezes, encimado por uma cruz: é a cruz do Cristo; mas também é a cruz das encruzilhadas, local de tomada de decisões que pertence a Exú - o mensageiro entre deuses e homens que carrega o axé (energia vital) a tiracolo numa cabaça pontuda. Na academia de mestre Bimba, em Salvador (1930 em diante), adotaram um logotipo que chamaram de Cinco Salomão, mas que na verdade era a estrela de seis pontas do rei Davi, outro símbolo muito poderoso entre os antigos alquimistas da Europa. Os dois triângulos entrelaçados, um apontando para baixo e outro para cima, tinham diversos significados: "o que está acima é como o que está abaixo", o mundo material seria um reflexo dos eventos do mundo espiritual; o positivo e o negativo, o bem e o mal, caminham entrelaçados e compõe uma única coisa, etc. Mestre Decânio, braço direito de Bimba na década de 1940, me contou que a estrela de seis pontas tinha sido escolhida, ao invés do tradicional Cinco Salomão de cinco pontas, porque entre outras coisas, mostrava o entrelaçamento entre o jogo em pé (no alto) e o jogo no chão (em baixo). 7.1 - O VALENTE E O MALANDRO; OGUM E OXÓSSI O Valente e o Malandro são os "ancestrais mitológicos" do capoeirista. Associados a eles, poderíamos citar dois orixás (deuses do panteão do candomblé e da umbanda): Ogun e Oxóssi. O candomblé da Bahia Falando do candomblé na Bahia, Luis Felipe de Lima e Muniz Sodré explicam que "o complexo mítico jejê-nagô começara a expandir-se (em Salvador) no início do seculo XIX" (161), paralelo a outros cultos complementares nagôs como os dos egunguns, egboni e gueledé.Por acaso, isto ocorre na mesma época em que começam as referências sobre a capoeira no Rio principalmente pela "pena do escrivão de polícia", no início dos 1800s, como já vimos com Libano Soares (162). Em Salvador no início dos 1900s, no candomblé do Engenho Velho, o Ilê Ianosso - a Casa Branca -, surgiram devido a cisões, , outros dois importantes terreiros do rito nagô-ketu: o Gantois (fundado por tia Julia Nazaré em parceria com Pulquéria, onde se destacou mãe Menininha em 1986, e mãe Cleuza) e o Axé Opô Afonjá (fundado em 1910 por mãe Aninha, depois com mãe Senhora em 1940, em 1968 com mãe Ondina, e 1976 com mãe Stela). Semelhante às maltas de capoeira carioca do início dos 1800s, onde originariamente todos eram africanos ladinos (já adaptados ao Brasil, em oposição ao boçal recem chegado da Africa), e que mais tarde absorveram os creoulos (filhos de africanos já nascidos no Brasil); mãe Aninha, p.ex., era filha de africanos - havia uma forte ligação, não apenas cultural, mas também de sangue. Os orixás Os orixás são os deuses, que vieram da Africa com os negros escravizados, cultuados no candomblé. Waldeloir Rego, o mesmo que escreveu o seminal Capoeira Angola (1968), nos explica: (Na Africa) o culto dos orixás está circunscrito a determinadas regiões ou cidades, no Brasil a coisa foi completamente diferente. Lá existe uma localidade especificamente ao culto de determinada divindade. (163) Assim, o culto de Oxalá - o deus que criou o homem - estava em Ile-Ife; Exú em Ife; o de Ogun em Ire; o de Yemanjá em Abeokuta; o de Oxóssi em Ikija, etc. Na Bahia, e no Brasil em geral, os diferentes orixás são cultuados no mesmo terreiro. Diz, ainda Waldeloir: Existe uma força mágica e mística chamada ase (axé), sem a qual não pode haver rito. O ase pode ser bom ou mau. O bom é proveniente das divindades (orisa) e dos antepassados (oku orun), isso não quer dizer que os deuses e antepassados não fiquem zangados com as pessoas, quando elas não andam corretas, daí se fazer consultas para se ter notícias disso, sua causa e o que fazer para acalmá-los. Na sua essência eles não fazem senão proteger as pessoas. O ase do mal é também de dois tipos. Um é representado pelos ajogun, que são considerados terríveis e destruidores das pessoas, sendo os mais importantes, iku, a morte, e arun, a doença, etc. O outro ase do mal é Aje, que é a destruição total da pessoa humana... Toda força concentrada do corpo se chama ori e sua sede é na cabeça. A nossa divindade está segura em nós mesmos de acordo com a maior ou menor força do nosso ori, isto é, a maior ou menor concentração de força que temos, enfim, o ase que nós carregamos conosco... daí ter sempre de fortalecer o ori com ebo, chamado bori, que é todo ebo que se faz na cabeça, desde o simples omi tutu (agua fria). (164) Com o tempo houve, também, um sincretismo entre determinados orixás, e determinados santos católicos. Pierre Verger nos explica: Não se pode afirmar que já se tratava, então (sec. XVIII), de sincretismo entre os deuses da Africa, por um lado, e os santos católicos, por outro... É difícil precisar o momento exato em que esta sincretismo pode se estabelecer. Parece ter-se baseado, de maneira geral, sobre detalhes das estampas religiosas que poderiam lembrar certas características dos deuses africanos. (165) Este sincretismo pode mudar conforme a cidade. P.ex., na Bahia, São Jorge é identificado com Oxossi, deus dos caçadores (uma vez que Oxossi também é o dono da lua, e São Jorge "mora" na lua); mas, no Rio, São Jorge é ligado a Ogun, deus da guerra (uma vez que ambos são guerreiros; e que Ogun é o Senhor do Ferro, e São Jorge está de armadura). Os cultos africanos no Rio de Janeiro Agenor Miranda Rocha (1907), nascido em Luanda, filho de pais portugueses mas registrado no Consulado Brasileiro, veio criança para a Bahia e, mais tarde, tornou-se um respeitado e querido oluô da tradição nagô-ketu. Iniciado por mãe Aninha em 1912, em Salvador; muito jovem viajou para o Rio justamente na época em que o samba vai se popularizar e vai surgir a figura do Malandro, na década de 1920: No Rio (em 1926) havia muitas tias e tios feiticeiros, de várias nações, a maioria hoje desaparecidos. Mas as casa de candomblé, com filhos-de-santo e festas regulares, estas eram poucas. Da minha nação, a nagô-ketu, destacavam-se três casas: a de João Alabá (Cipriano), a de Felizberto (Bamboxé), e a de Abedê. (166) Estas casas situavam-se na Saúde e na Cidade Nova, locais estreitamente ligados ao samba; e João Cipriano e Felizberto Bamboxé eram africanos. Agenor ressalta a diferença entre as casa de candomblé de sua juventude, nas décadas de 1930/40, e as da década de 1990. Como veremos, as críticas são semelhantes àquelas que poderíamos fazer à capoeira (a comercialização; o autoritarismo; e a falta de conhecimento da história, até mesmo da história recente): Antigamente havia mais humildade, mais fé, e mais respeito ao orixá. Hoje não, quase só se vê vaidade e comércio. O Axé está enfraquecendo... Acho que, se eu tivesse que me iniciar hoje, não entraria para o candomblé... E depois, não tinha esta história de não poder encarar o pai-de-santo, de não poder sentar com ele à mesa, ou em assentos com a mesma altura. Os africanos impunham e exigiam respeito, sim, mas de uma forma natural. Este tipo de proibição é coisa de alguns baianos, e de alguns cariocas... As pessoas não se lembram do tempo em que os cultos eram reprimidos pela polícia (antes de Getúlio Vargas, na década de 1930). (167) Mas Agenor Miranda também ressalta que as três atuais zeladoras das casas de Salvador têm "guardado com dedicação as tradições e mantido as suas casas com brilhantismo e dignidade" (168). E, aqui, voltamos a um ponto que considero básico: é praticamente impossível manter um alto nível numa atividade cultural em expansão. No entanto, bastam apenas algumas pessoas - grandes mestres ou grandes mães-de-santo, etc. - para manter a chama acesa. Apesar das mudanças inevitáveis devido ao passar do tempo; das mudanças na sociedade; e das mudanças que aconteceram, e acontecem internamente no candomblé, na capoeira, e no samba. Na capoeira, semelhante ao que aconteceu no candomblé e no samba, tivemos a sorte de ter mestres excepcionais: Bimba e Pastinha, a partir dos 1930s e 1940s em Salvador, que criaram os estilos regional e angola, "recortando" e escolhendo determinadas características da capoeira de seu tempo; ao mesmo tempo em que vão criando e inserindo outras novidades (p.ex., Bimba introduz novos golpes; Pastinha escolhe uma "orquestra" com 3 berimbaus como "a tradicional"). Tivemos a sorte de uma continuidade, ainda em Salvador, com toda uma geração - Noronha, Canjiquinha, Caiçaras, Waldemar, seguidos por Paulo dos Anjos, João Pequeno e João Grande (só para citar alguns). E quando, na década de 1960, a capoeira migra para o Rio e São Paulo, novamente alguns mestres se destacam; uns dez ou doze estão em atividade até hoje - inclusive eu (Nestor). Apesar das críticas que fiz à minha geração (nascida por volta de 1945), e às que vieram depois (autoritarismo, competição excessiva, falta de "filosofia", etc.); também resaltei que foram elas que impediram que a capoeira desaparecesse (como aconteceu com a ladjá da Martinica, o moringue das Ilhas Reunião, etc.); e elevaram o nível técnico dos golpes e quedas; sem falar da expansão por todo o Brasil e mais 150 outros países. E com a novíssima geração, nascida por volta de 1980, além das novidades conquistadas pelas gerações anteriores, também já se vê uma crítica (em 2010) ao excesso de autoritarismo no modelo atual de academia e grupo; crítica que é feita no sapatinho, sem confrontar os "corôas", sem querer tirar uma de revolucionários, exatemente no espírito da malícia e da capoeira. Somado a isto, já vemos o começo da inclusão da capoeira no "mundo virtual", na Internet, através de sites, portais, canais de TV, criados em sua grande maioria por estes jovens. E eu concluí: : "a capoeira está em boas mãos. São poucos, em relação a massa de mestres e professores; mas não é necessário mais que isto. Foi esta sequência de (poucos) indivíduos excepcionais que vetorizou a sobrevivência e o sucesso da capoeira até chegarmos aos nossos dias. O Valente e o Malandro Mas além destes excepcionais mestres, de antanho e de agora, que marcaram a história da capoeira, duas personagens fujndamentais, de outra esfera de realidade, habitam o imaginário do Jogo: o Valente e o Malandro, que às vezes se confundem, e outras vezes se opõem. Conhece-los bem é importante, pois vimos que para os homens das sociedades tradicionais ou arcaicas - e a capoeira está inserida neste universo - a ética apresenta-se como a regra do ascendente, do ancestral. O Valente e o Malandro são ancestrais mitológicos do capoeirista. Associados a eles, poderíamos citar dois orixás: - Ogun, guerreiro vencedor de demandas cujos prazeres são os combates e as lutas. - Oxóssi, caçador, rei das matas, que conhece as trilhas mais recônditas da floresta, que tem a astúcia e a paciência de quem espera a presa e dá o bote certo no momento apropriado. Jair Moura nos diz que: A destreza, a coragem e o golpe-de-vista eram cultivados na capoeira, que podia ser jogada com, ou sem armas (brancas); ... quase todos davam preferência à navalha, arma traiçoeira, que melhor se ajustava a seu sistema de luta; ... o capoeirista daquela época (década de 1950) era um elemento falso, ao sentar para se conversar com um capoeirista ficava-se sempre de soslaio, não se fitava um capoeirista de frente; ... o capoeirista de antigamente cultuava a falsidade e vencia pelo logro; ... os capoeiristas em geral tinham como orixá protetor, Ogun ou Oxóssi. (169) E o certo é que, se a valentia é prezada e admirada no universo da capoeiragem - os prazeres de Ogun, os combates e as lutas -; ela deve se submeter à malandragem, que constitui um dos esteios básicos de sua filosofia - a astúcia do caçador Oxóssi. Muniz Sodré nos diz que: Eu acho que, por exemplo, a capoeira não tem que ter a ética rígida do samurai - o bushido - ligada a uma sociedade altamente hierarquizada. Aqui, as inversões de hierarquia é que são o cotidiano. A malandragem, a figura do malandro, é uma coisa muito séria na compreensão da coisa brasileira - que ao nível social é justamente aquele navegar entre os interstícios -, e que tem uma tradição: na Europa temos o "picaro" na Itália, o "malandrin" na França, que têm uma posição própria em relação ao trabalho, pois têm a consciência da exploração. A malícia (da capoeira) tem uma compreensão disto, uma homologia com isto. (170) Então, talvez o maior mito da capoeira seja, não o Valente, mas sim o Malandro e sua forma específica de sabedoria e interação com o mundo: através da "malandragem". Na verdade, poderíamos dizer que a malandragem é o irmão gêmeo da malícia; diríamos melhor, ‘irmã’, pois está mais próxima da estratégia feminina (p.ex., a guerrilha) que da masculina (p.ex., o exército tradicional). Por isso, teoricamente, todo capoeirista deveria lidar com a Vida e com o mundo segundo a ética flexível da malandragem. Isto não acontece totalmente, pois vimos que a capoeira está imbricada visceralmente, não só ao mundo das ruas, mas também à realidade das "academias" e do Sistema no qual vivemos. O Malandro, já vimos, não e um Guerreiro como Ogun, nem um Valente como Besouro, Manduca e Nascimento Grande. Muito ao contrário: o Malandro despreza a violência e a força física - que são coisas para os estúpidos e ignorantes (na maneira de ver da malandragem). O Malandro trabalha com a sedução, o charme, e um profundo e intuitivo conhecimento da vida e da psicologia humana. Suas “ferramentas” são as palavras e seus "prestígios" (as artes do corpo) ; sua maior qualidade é analisar pessoas e situações com uma rapidez e esperteza impossível de serem entendidas por nós - os “otários”; as pessoas “normais” que acreditam nas regras da moral e estão acorrentadas pelas convenções do grupo ou classe social à qual pertencemos. Vamos agora ver que outras entidades habitam o imaginário da capoeira, ao lado do Malandro, do Valente, de Ogum e Oxóssi. NOTAS: 161 LIMA, L.F. e SODRÉ, M. Um vento sagrado. RJ: Mauá, 1996, p.23. 162 SOARES, Carlos Eugenio Libano. A negregada instituição, os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1994. 163 REGO, Waldeloir in CARYBÉ. Iconografia dos deuses africanos no candomblé da Bahia. Salvador; Fund.Cult. do Est. da Bahia, INL, UFBa; 1980, s/pg. 164 Idem, s/pg. 165VERGER, Pierre in idem. 166 LIMA, L.F. e SODRÉ, M. Um vento sagrado. RJ: Mauá, 1996, p.53. 167 Ibidem, pp.58-59. 168 Ibidem, p.59. 169 MOURA, Jair (Mestre Perigo). Capoeira, a luta regional baiana. Salvador: Cad. de Cult./ Pref. Mun. de Salvador, 1979, pp.9-12. 170 SODRÉ in CAPOEIRA, Nestor. Op. cit., 1992, p.134. 7.2 - OUTRAS ENTIDADES NA RODA Além do Valente do Malandro, de Ogun e de Oxóssi, ficam faltando elementos para melhor representar a capoeira no imáginário do jogador. Teríamos que procurar "alguém" cujas características básicas fossem aquelas outras partes da malícia ainda não presentes: - a parte que representa a "estratégia feminina", pois vimos que a malícia é mais do universo "feminino" que do "masculino"; - a tesão e alegria de viver, presentes constantemente na roda através do som estimulante dos berimbaus, do canto e das palmas; - o conhecimento e aceitação de todas as facetas humanas, tanto as mais luminosas, quanto as mais obscuras (o culto da coragem, e também da falsidade); ou seja, alguém que transite confortavelmente pelo "bem" e pelo "mal" com um total desrespeito pelas regras e convenções da moral (a preferência pela navalha, arma traiçoeira, que melhor se adaptava àquele sistema de luta). Poderíamos argumentar que o Malandro satisfaz, até certo ponto, estas características. Mas fica faltando um elemento básico que não sabemos bem qual é; falta ao malandro algum tipo de poder que "estilhaça" as regras e convenções. Foucault nos diz (171) que Nietzsche, tendo "a rudeza de alguém de fora”, podia olhar para a Filosofia, e com um encolher de ombros dizer: "ora, tudo isso é uma babaquice". Foucault fala da necessidade de uma “estupidez alegre, um pipocar de riso de quem não compreende, mas que no fim compreende ou estilhaça - estilhaça mais que compreende”, para alguém se "livrar" de um tipo de Filosofia típica da Universidade, enraizada na burocracia e no conservadorismo careta - parte do "Sistema". Na capoeira também precisaríamos, a meu ver, de uma outra entidade, além do Valente e do Malandro, de Ogun e de Oxossi; alguén que "com um pipocar de riso estilhaça" os valores, os muros, as convenções e as fachadas do "Sistema", da sociedade hegemônica - dinheiro, consumo, moral burguesa . É na Pombagira - versão feminina de Exú, mensageiro entre deuses e homens, dono do axé, senhor das encruzilhadas, e Rei do Povo da Rua -, que vamos encontrar as qualidades necessárias somadas a este "burst of laughter that shatters rather than understands". Talvez espante a presença da Pombagira - ligada ao Povo da Rua, às putas -, no imaginário de um jogo tipicamente viril, criado e praticado originalmente por homens (até aproximadamente 1970, a presença de mulheres na capoeira era uma exceção). Mas a malícia é da natureza feminina; os movimentos externos do Jogo é que são másculos, a malandragem interna é fêmea. Ao que Muniz Sodré comentou : Você (Nestor) diz que a malícia é da natureza feminina, acho isto muito bom. Enquanto o masculino é o princípio do definido, do claro, do poder; o feminino é o avesso disso - é o vazio. Ela tem um poder que você não sabe bem qual é. O poder dela é não ter clareza sobre o próprio poder; é o poder do vazio. Porque a malícia é exatamente você contornar a coisa clara e estabelecida; e neste sentido é feminina. (172) O sorriso, o riso, a risada, e a gargalhada vital da Pombagira Não é difícil entender o relacionamento da valentia de Ogun com a capoeira: "O Juca de Amaralina tinha mesmo de morrer, ele quis mexer comigo sem nem bem me conhecer. Tinha fama de valente, tinha fama de canalha; agora está pendurado no fio da minha navalha" (Mestre Toni Vargas) "No dia que eu amanheço dentro de Itamaralina; Homem não monta cavalo; mulher não deita galinha; E as freiras que estão rezando se esquecem da ladainha" (Mestre Bimba) ¸ O mesmo se poderia dizer em relação à astúcia de Oxóssi, o Caçador. Aliás o próprio diálogo verbal já supõe um certo grau de astúcia argumentativa - retórica. E a capoeira - diálogo corporal -, pressupõe e mesmo cultua esta qualidade, conforme vimos com Jair Moura; ou como vemos na canção abaixo: "Eu dou nó em pingo d'água, rasteira em cobra coral; falo bem de você, sabendo que tu me quer mal. Sou formado em falsidade, sou difícil de enganar; muita esquina na cidade, e a noite vai chegar". (Mestre Nestor Capoeira) O Valente, e Ogun, com a coragem; o Malandro, e Oxóssi, com a astúcia, achando os interstícios e rachaduras - trilhas recônditas, pouco conhecidas - na fachada aparentemente invulnerável da Sociedade. No entanto, a ação da Pombagira não é tão óbvia; mas é sua influência, combinada e dando colorido típico à valentia e à astúcia, que vai determinar a ética e a maneira de agir característica ao capoeirista. Vejamos a descrição (minhas anotacões pessoais) de uma roda da qual participei em 1991: Recife, dezembro de 91. Curso que fui dar no Grupo Chapéu de Couro, do mestre Corisco (aluno do João Mulatinho; por sua vez, aluno do Mosquito e do Gil Velho, ambos da Senzala); e palestra no Centro Cultural de Olinda. Roda de rua. Começo de noite. Verão. Olinda (PE), logo ali ao lado de Recife. A roda está formada, os jogos rolando. Eu bebo uma cerveja gelada numa das muitas barracas na praça ao lado da velha igreja. Conversando comigo, um verdadeiro armário, meia cabeça mais alto que eu, músculo por todos os lados. Eu já joguei com ele: apesar de toda aquela carcaça, o cara é rápido, técnico, e nada bobo. O Armário dá aula de capoeira em Recife e me fala de seu trabalho. Aliás, já usou a palavra "trabalho" uma dez vezes: - Meu trabalho está muito bem estruturado, tanto na parte física quanto na cultural. tem muita gente invejosa: criticam meu trabalho, mas não apresentam trabalho. Um dos grandes problemas daqui é a falta de seriedade dos capoeiristas; tem muito sujeito sem a mínima condição de dar aula usando a corda de mestre. A gente devia criar um orgão; e só quem mostrasse o seu trabalho, e fosse aprovado, poderia dar aula. Aí, então, o que acontece atualmente é que eles não têm trabalho; aí, eles copiam o meu, e além de tudo copiam errado, descaracterizando a capoeira e queimando o trabalho de quem quer trabalhar. O Armário pede mais uma PepsiCola. Já é a terceira. Não tem Coca, e a Pepsi está quente. O Armário recusa educadamente e com leve ar de censura a cerveja gelada que eu ofereço - pode depor contra a sua imagem. Fala um pouco mais de seu trabalho e do trabalho do grupo ao qual pertence. À medida que vai falando, vai sacudindo pedagogicamente um indicador esticado na minha cara, e não raro me dá umas cutucadas no peito com aquele verdadeiro salsichão, provavelmente propiciando um futuro enfisema pulmonar. O Armário é um cara com muitas qualidades, mas bastante "teleguiado", com aquele discurso decorado, introjetado na sua mente , que eu estou cançado de conhecer. Fico na dúvida se vale a pena gastar papo com ele ("... bater papo com otário é jogar conversa fora"), mas acabo resolvendo que ele merece um ponto-de-vista diferente. Quem sabe? As pessoas, as vezes, mudam. Ele estava ligado na palestra; fez até umas perguntas interessantes. Eu acho uma brecha no discurso do Armário e comento: - Mas, você sabe que essa coisa de "trabalho" não é referência para um capoeirista. Muito pelo contrário: você deve se lembrar que tradicionalmente o Jogo era chamado de "vadiação". O queixo do Armário cai alguns centímetros. Ele fica me olhando com aquele olhar meio idiotizado de Cão Fila Brasileiro anabolisado. Ele entendeu perfeitamente o que eu disse, só que aquilo não bate com o credo pelo qual ele reza. Meu comentário não caiu bem. O Armário é um cara sério. A terceiro Pepsi está pra lá de quente. Está um calor danado. E eu falei mal do "trabalho"; acho melhor sair de fininho. Dou uma volta na praça. Encontro uma rapaziada; fumo um e volto à roda. Alguém me passa um berimbau e me junto aos outros dois tocaadores, ladeados por dois pandeiros e um atabaque. Embarco no som. Uma dupla terminou de jogar. Olho para baixo. No pé do berimbau estão o Armário e um cara magrelo e musculoso. Eles terminam de se benzer, fazem suas mandingas, fazem a reverência ao berimbau, e rolam para o centro da roda. O jogo está equilibrado. O Armário faz um floreio bonito e complicado seguido de uma série de movimentos no chão; obviamente ele tinha treinado aquela sequência repetidamente até a perfeição e agora apresentava-a como prova de sua mestrança. Mas a sequência está um pouco fora da dinâmica do jogo; o Magrelo deixa o pé, esticado e imóvel, justamente na trajetória da finalização da sequência do Armário que, por pouco, não enfia os cornos no calcanhar do Magrelo (o sorriso malicioso da Pombagira). A reação do Armário é imediata. Com uma rapidez surpreendente - visto seu peso -, ele se agarra ao Magrelo; leva-o ao chão, aplicando-lhe uma gravata no pescoço. O Magrelo não reage. Fica imóvel, o pescoço preso naquele braço de troglodita, e dá umas pancadinhas com a mão espalmada nas costas do monstrengo como quem diz: "tudo bem, você venceu". O Armário - tendo demonstrado sua superioridade - larga o Magrelo. O Magrelo se dirige ao pé do berimbau para recomeçarem o jogo. O Magrelo vai ajeitando as calças, as mãos nos bolsos (atenção Armário! o Magrelo está com as mãos nos bolsos!), e se agacha. O Armário, esticando a musculatura e sem prestar muita atenção ao que está acontecendo (exceto à reação da platéia em relação à sua ação de lutador vitorioso), também se aproxima e começa a se acocorar. Aí acontece o lance! O Magrelo já está acocorado ao pé do berimbau. O Armário está se agachando. O Magrelo puxa algo já aberto de dentro do bolso. E, à medida que o Armário vai se agachando, o Magrelo com um gesto frio e calculado passa a ponta da arma, do umbigo até o gogó do Armário, e girando, ganha o meio da roda onde começa a gingar, o rosto impassível. - Uma navalha! - a arma traiçoeira preferida pelos capoeiristas, nas palavras de mestre Jair "Perigo" Moura. O Armário pula para trás, olhos esbugalhados, as mãos segurando o ventre! Só então todos se dão conta que não era navalha coisa nenhuma: era apenas o punho fechado do Magrelo, com o indicador e o polegar distendidos! (o riso irônico da Pombagira). O Armário sacode a cabeça e firma a vista, olhando o próprio ventre, e se convence que não está cortado. O sangue lhe sobe à cabeça, chega a ficar vermelho de raiva. Levanta o rosto e vê o Magrelo que continua a gingar e fazer firulas, na maior calma, sozinho, no meio da roda. O Armário dá dois passos rápidos e manda uma violenta ponteira - chute de frente e de bico - pra cima do Magrelo. Ato contínuo, emenda uma meia-lua-de-compasso - um chute rodado com a outra perna. O Magrelo se esquiva de lado da ponteira; e quando a meia-lua vem, zunindo a mil por hora e queimando o ar, o Magrelo se esquiva entrando por baixo do golpe, e passa descaradamente! - a mão na bunda do Armário (a risada debochada da Pombagira). Na mesma seqüência de movimentos, o Magrelo atravessa como uma fuinha que já tivesse um caminho tortuoso e predeterminado - a compacta multidão que se aglomera em volta da roda e some entre as barracas de comida e bebida . O Armário ainda vai atrás, mas fica entalado e impotente entre as pessoas que circundam a roda. A outra dupla que esperava acocorada ao pé do berimbau, ganha o centro da roda e o jogo continua sem interupção. Me contaram depois - mas isto eu não vi e atribuo ao "folclore"; àquele negócio de quem conta um conto aumenta um ponto -, que o Magrelo ao atravessar o aglomerado de pessoas, levou a mão ao nariz; cheirou-a; e abanando a cabeça fez uma careta como se ela estivesse cheirando mal (a gargalhada vital da Pombagira!). O sorriso, o riso, e a gargalhada vital da Pombagira. Besouro, Manduca, e Nascimento Grande; Bimba e Pastinha Três outros personagens que habitam este imaginário da capoeira - "ancestrais" que viveram entre 1850 e 1950 -, são Besouro Cordão-de-Ouro que viveu na Bahia; Manduca da Praia, do Rio; e Nascimento Grande, de Recife. Três Valentes. Manduca, no Rio por volta de 1860, que se alugava aos políticos do Brasil Império para levar o terror a seus adversários; para "emprenhar" as urnas nas eleições; respondeu a 27 processos por ferimentos graves e leves, sendo absolvido em todos eles pela sua influência pessoal e de seus amigos. Besouro, em Salvador por volta de 1930. que "dava sarto mortá e caia dentro dos próprio chinelu", segundo mestre Bimba; que afrontava a polícia: "Não estudei para ser padre,/ tampouco pra ser doutor./Aprendi a capoeira/pra bater no inspetor". Nascimento Grande, que à frente dos "moleques de banda", no carnaval do Recife dos 1940s, instaurava o caos por onde passava. Para completar o panteão, dois mestres - estes, (quase) de real carne e osso, pois chegaram até nossos dias - na mais pura oposição dualista: - mestre Bimba (1900-1974), criador da Capoeira Regional, mais objetiva e voltada para a luta; - mestre Pastinha (1889-1981), criador da Capoeira Angola, mais ligada no ritual e no lúdico. Nestes dois mestres, que muitos de nós (os mais velhos) conheceram pessoalmente, pode-se ver com clareza tanto o Valente quanto o Malandro e, não raro, ouvir o riso debochado da Pombagira. Mestre Bimba foi um lutador temido, jamais vencido, que fazia desafios públicos pelos jornais a todos lutadores "baianos e de outras procedências". Nestes combates públicos, nos quais ele queria demonstrar a eficácia de sua "luta regional baiana", ganhou o apelido de Bimba Três-Pancadas - o máximo de golpes que seus adversários aguentavam. Sem dúvida, Bimba encarnava os prazeres de Ogun e a figura do Valente. No entanto, era uma verdadeira enciclopédia da malandragem: ¸ "Sempre que dormir em casa alheia (e com a mulher dos outros), durma com um olho aberto e outro fechado, de barriga pra cima, contando as telhas até o amanhecer". "De noite, de madrugada, evite passar embaixo de árvore frondosa (vagabundo pode estar na emboscada, lá em cima); não ande na calçada colado à parede, e pra dobrar a esquina vá até o meio da rua" E cantava: "Oração de braço forte, oração de São Mateus; Quando amanheço zangado quem pode comigo é Deus" Surpreendemente para aqueles que culuavam o mito da invencibilidade de mestre Bimba, o velho gigante negro dizia: "Quem aguenta tempestade é rochedo" (se a parada for dura demais, corre!) Certa vez, mestre Jair Moura, na época discípulo de Bimba, encostou uma caneta na cabeça do Mestre e indagou: "Se fosse um revólver, o que o sr. faria?" Resposta imediata: "Eu morria, meu filho". Por seu lado, mestre Pastinha é considerado o "filósofo da capoeira", e lembrado como um homem afável, gentil e acolhedor. "Capoeira, mandinga de escravo em ânsia de liberdade. Seu princípio não tem método; e seu fim é inconcebível ao mais sábio dos mestres" E cantava: "Menino preste atenção ao que vou dizer: o que eu faço brincando, você não faz nem zangado; Não seja vaidoso e nem precipitado; Na roda de capoeira, Pastinha já está classificado" E aquele gentil e "suave" velhinho contava, com a maior candura, como aos dezeseis anos foi convidado para "tomar conta" de uma casa de jogo na zona barra-pesada da prostituição. O delegado argumentou com o dono da casa que aquilo não era serviço para um menino, e perguntou a Pastinha: "Como é o seu nome?" "Vicente Ferreira Pastinha" "Ah, então é você o galinho de briga da minha jurisdição!" E Pastinha pensou: "Pronto..." Mas Pastinha não foi preso; ao contrário, foi contratado. Mestre Pastinha também contava, com aquela mesma candura de velhinho octagenário, que no seu tempo ele usava uma foicezinha de mão do "tamanho de uma chave" (aquelas chaves grandonas de ferro, para casarão colonial): "Como eu era muito bonzinho para aqueles que quizessem me ofender, eu mandava afiar os dois lados (da foice). Se tivesse três lados, eu mandaria afiar os três, mas como só tinha dois...". O anel da foice podia ser encaixado na ponta do berimbau e "... na hora da dor, a gente manejava". Como se vê, na capoeira até os velhinhos de cabeça branca e principalmente os velhinhos de cabeça branca -, não têm nada de bonzinho ou ingênuo. Aqui cabe mencionar um novo personagem que, após a década de 1960, cheio de moral e ares de superioridade, fica insistentemente batendo à porta do "imaginário da capoeira" querendo entrar. Não mais o Mestre, com "M" maiúsculo ; vamos chamá-lo de Professor (com um pseudo “P” maiúsculo) de capoeira e, associado a ele, o "Sucesso" e o “Trabalho” como valores e regra moral. A imagem deste novo Professor fascina muitos capoeiristas da velha, média, e nova geração. Mas para muitos, embora muitas vezes ele seja um ótimo jogador, e seu grupo ter uma grande representatividade, ele não passa de um otário engomadinho, ou de um esperto que visa basicamente o Poder e também a grana. Este Professor tem os mesmos valores valores da ordem "tele-real" (os valores propagados pela televisão). O Professor é um homem de negócios de sucesso; ensina capoeira em sua própria academia, que tanto pode ser "moderna", com muitos espelhos e aparelhos de musculação, uma eficiente e bonita secretária loura na entrada, sentada a frente de um computador de última geração; como também pode ser completamente "despojada". O Professor se veste com roupas de “jogging” e tênis americano importado; possui uma camionete tipo “rural”, do ano; e uma possante motocicleta japonesa. Alguns são casados, e a esposa - sempre à sua sombra; ou antão é uma megera insuportável - ajuda na infra-estrutura da academia; ou então é a anfitriã perfeita que recebe os capoeiristas de outras cidades em sua bela casa. O Professor conhece as “malandragens” da capoeira (ultrapassada, na opinião dele), mas está noutra: não se envolve com drogas; não bebe; não fuma; e se eventualmente tiver alguma aventura extra-conjugal, é extremamente discreto e faz a diferença entre a sua esposa - uma moça "correta" -, e as "vadias" que ele ocasionalmente come. Sua agenda está sempre cheia: ele é um homem ocupado. O Professor é um chato. NOTAS: 171 FOUCAULT, M. Politics, phylosophy, culture. Rantledge, Clapman & Hall. 1988, p.312. 172 SODRÉ in CAPOEIRA, N. Op. cit., 1992. 7.3 - GALO JÁ CANTOU (173) O que tornou o homem das cavernas tão superior a outros animais de seu tempo? Não foi a força física. Nem tampouco a capacidade de viver e cacar em grupos organizados - vejam as formigas, p. ex. Nem somente a fala ou a inteligência - os golfinhos têm uma linguagem altamente sofisticada e seu cérebro é maior que o dos homens. Este conjunto - força física, trabalho em conjunto, fala e inteligência - dava grandes vantagens aos seres humanos; mas o que o homem tinha de exclusivo era a capacidade de construir armas e ferramentas, inicialmente de madeira e osso e pedra, e depois em metal e ferro, aumentando exponencialmente seu potencial. Curiosamente no candomblé, logo após Exú - "o primeiro a comer"; mensageiro entre os homens e os orixás; que traz o axé (energia vital) numa cabaça pontudo que carrega a tiracolo -, vem Ogun - guerreiro violento e vencedor de demandas; ferreiro de Oxalá (a entidade suprema); senhor do ferro. Foi certamente sob a proteção e inspiração de Ogun - Senhor do Ferro - que o homem executou a passagem de primitivo à civilizado. Salve Ogun! Senhor da guerra, do ferro, vencedor de demandas; e ele quem cavalga no meio da estrada e abre os caminhos! Salve Ogun! Ele mata o marido no fogo, e a mulher na beira do fogareiro. Ele mata o ladrão e o proprietário da coisa roubada. Ele mata também aquele que critica esta ação. Salve Ogun! Os prazeres de Ogun são os combates e as lutas! Durante muitos milhares de anos o homem primitivo se acostumou à idéia de que sua sobrevivência dependia de suas armas, usadas na caça, na defesa contra animais ferozes e mais fortes, na guerra contra outros grupos de humanos. O homem revelou-se um terrível animal predador e suas armas eram fundamentais neste contexto. Por outro lado, as ferramentas se sofisticaram e, hoje, temos a real possibilidade de acabar com a miséria, a fome, a ignorância, e termos uma vida mais saudável, longa, e com mais curtições e menos trabalho alienante. No entanto, as armas evouiram até que hoje enfrentamos a possibilidade de extinção numa guerra nuclear; mas paradoxalmente pouco foi feito em relação ao potencial das "ferramentas" para a construção de um mundo melhor e com menos miséria. Hitler dizia: "Quem quer que tenha se detido a examinar a ordem das coisas, chega à conclusão que a ordem do mundo reside no domínio dos mais capazes através do uso da força". Baudelaire afirmava: "Quer o homem abrace sua vítima no bulevar, quer mate suas presas em florestas desconhecias, não é ele eternamente o homem? Isto é, o mais perfeito animal de rapina?" Carlos Drummond de Andrade não era otimista: "Trabalhar sem alegria para um mundo caduco onde as formas e ações não encerram nenhum exemplo". Mas apesar destas analises realistas e sombrias, nossa sobrevivência, hoje, depende da nossa capacidade de conviver em paz com outros homens, e em harmonia com a natureza. O homem moderno precisa reprogramar sua cabeça. Altas cabeças julgam que o homem primitivo tem muito a ver com o civilizado. Existem necessidades e coisas que ocorrem nas profundezas de nosso ser, sem que o percebamos devido ao nosso verniz de "civilizado". Isto pode ser utilizado positivamente na "reprogramação" de nossas cabeças, algo que sabemos ser essencial para nossa sobrevivência. Vejamos, p.ex., a questão dos "rituais": - Quando alguém nascia, havia um ritual; quando morria, idem. - Antes da guerra encenava-se um ritual; quando faziam a paz, outro ritual. - Quando a menina ou o rapaz chegavam a puberdade, mais um ritual. - Lua cheia? Lua nova? É isso mesmo: rituais. Em todas civilizações "primitivas", os rituais que conectavam o homem com as forças da natureza e as energias cósmicas eram essenciais. A conclusão lógica é que o homem primitivo necessitava de rituais. E o homem moderno, civilizado? Se olharmos de perto, veremos que esta necessidade continua: casamento, festa de formatura no colégio, batizado religioso, o carnaval e o ano novo, concerto de rock 'n roll, ou ao jogo de futebol com suas torcidas organizadas. No entanto os rituais contemporâneos não são vistos como tais. Talvez com razão: há uma grande diferença entre o ritual primitivo que comemorava a chegada da lua cheia - uma festa de comunhão com as forças da natureza -, e uma noite na discoteca - com entrada paga. Além disto, como vemos nos eventos esportivos, é comum que apenas algumas pessoas tomem parte ativa; as demais assistem a tudo passivamente, apenas aplaudindo ou vaiando ocasionalmente - com entrada paga -; ou assistindo ao "ritual" pela televisão. Ou seja: os rituais foram "esvaziados" de seu contúdo e, na sequência, absorvidos pela "sociedade de consumo". O logo de nossa sociedade poderia ser: "Foda-se toda valor espiritual, ético, de fraternidade, ou artístico; com a grana, e com a máquina (filha da tecnologia) podemos tudo (até mesmo ser felizes)!" E até o sexo e a sensualidade foram banalizados e estereotipados pela mais grosseira pornografia. Um alienígena poderia perguntar: mas porque esvaziar o ritual e abandonar estes valores (os valores espiritual, ético, de fraternidade, e artístico)? Estes rituais e estes valores não eram essenciais ao homem primitivo? E também, ao que tudo indica, ao homem contemporâneo? Uma das possíveis respostas é que a nossa "sociedade de consumo" captura todas as energias que eram dedicadas ao ritual e a comunhão com a natureza, ao amor, ao sexo, às artes, à espiritualidade, às curtições; e as canalisa para o trabalho duro, chato, alienante, e geralmente muito mal pago, no campo ou na cidade (e os donos da bola sempre reclamando, mas com o dinheiro transbordando nas suas contas bancárias na Suiça e nos paraísos fiscais). Isto explica, em grande parte, porque todas atividades espontâneas, todo ritual coletivo, foram "esvaziados" do conteúdo original. Os Senhores não querem que os Escravos sejam desviados do trabalho. Mas como o homem necessita de "rituais", outros "rituais" foram criados; com entrada paga e onde, muitas vezes, somente um pequeno grupo "entra em cena" e o resto fica passivo, em casa assistindo em frente à televisão (guardando as energias para o trabalho na segundafeira). Pois ninguem ficaria com o rabo grudado numa cadeira no escritório, ou carregando tijolo pra construir o prédio dos bacanas, se soubesse que, lá fora, o amor, o sexo, a curtição, estava rolando de graça. Dentro deste panorama, o carnaval carioca é um caso curioso: costumava ser uma festa de rua muito louca; um ritual popular. Mas esta festa, rude e um tanto violenta, foi "civilizada", por volta de 1950 no Rio, em especial pela acão de alguns jornais que criaram regras e premios do tipo "Estandarte de Ouro" para o "melhor grupo carnavalesco". E a partir aproximadamente de 1960, aos poucos, os eventos principais passaram a ser os "bailes carnavalescos" destinados à classe média e a burguesia nos clubes fechados, e o desfile das Escolas de Samba patrocinados pelos bicheiros e grandes traficantes de drogas, aliados às grandes redes de televisão. A iniciativa pessoal de pequenos blocos, que saiam à rua na maior curtição, tocando seus instrumentos mambembes, pulando e sambando, foi fagocitada pelo Sistema no qual vivemos. Isto aconteceu também pela falta de indivíduos carismáticos e apaixonados que, remando contra a maré, levassem os blocos às ruas. Haviam poucas excessões, como o Cacique de Ramos no subúrbio, o Bola Preta no centro da cidade, e a Banda de Ipanema na zona sul. Eram blocos pequenos, não mais de 20 ou 50 "foliões", formados na maioria por grandes boêmios (não como hoje, quando estão novamente "na moda" e arrastam até 20.000 pessoas na sua esteira). E o carnaval "comercializou-se". Um pouco mais tarde, os próprios "bailes carnavalescos" começaram a ser tachados de cafonas e também entraram em decadência. Isto seria um exemplo típico da "dinâmica capitalista" que nossa sociedade imprime à vida, e às manifestações culturais de seus cidadãos. No entanto, a partir aproximadamente de 1995 - e por isto eu disse que o carnaval era um exemplo "curioso" -, houve um renascer progressivo dos "blocos de rua"; bem mais "civilizados" que os blocos de rua seminais, e sem o conteúdo crítico à políticos e instituições que caracterizam os carnavais de outrara. Mas, de qualquer forma, progressivamente a alegria voltou espontaneamente às ruas do Rio (sem entrada paga; algo que não aconteceu, p.ex., com os blocos carnavalescos de Salvador). Esta iniciativa, de pequenos grupos de foliões, encontrou ressonância na prefeitura e em sucessivos governos estaduais, talvez porque era obviamente um grande atrator turístico. Aliás, o carnaval de rua, mais do que floresceu: os blocos que sobreviveram desde os 1960s, como o Bola Preta e a Banda de Ipanema; assim como outros blocos que vetorizaram o renascer do carnaval de rua carioca por volta de 1995, como o Suvaco do Cristo e o Simpatia É Quase Amor; além de dezenas de outros blocos (em 2012, 171 blocos se registraram na Prefeitura para desfilar); "arrastaram", cada bloco, de 5.000 a 100.000 pessoas nas ruas, jovens entre 14 e 28 anos em sua imensa maioria. Tudo na maior paz. E incrivelmente, menos de uma hora depois do bloco passar, a Comlurb ja tinha retirado toneladas de lixo deixando a rua limpinha e lavada; uma perfromance de deixar qualquer País do Primeiro Mundo de queixo caído. Por volta de 2010, na esteira do sucesso do carnaval de rua, começaram a re-aparecer com força os "bailes carnavalescos" para a classe média e para a burguesia que andavam muito desprestigiados. Evidentemente não podemos prever o futuro do carnaval carioca: coisas que tem um súbito e grande sucesso na sociedade de consumo podem ser "queimadas" e descartadas rapidamente (ou não). Por outro lado, era o maior barato sair num bloco de 50 pessoas onde você podia ir sambando ao lado da bateria, com espaço para se mover e ouvindo aquele batidão quase dentro do teu ouvido; é algo impossível num bloco rodeado de 10.000 pessoas. Mas indepedente destes comentários (ao que parece, o autor deste livro nunca esta satisfeito), o que mais interessa é que isto que aconteceu com o carnaval carioca mostra que, mesmo nesta nossa era de massificação onde o capital é o principal valor, ainda é possível a ação individual, ou de pequenos grupos independentes. Creio que isto é uma notícia muito importante para nós, os capoeiristas. Para concluir: a capoeira tem a característica de ser, mesmo hoje, um antigo "ritual" inserido na era das viagens interplanetárias e da globalização. A capoeira é formada por pequenos grupos independentes, sem um organismo central controlador, sem as regras impostas por um "patrocinador" (seja ele, o governo, ou uma marca de cigarro, de carro, ou de papel higiênico). A capoeira é uma prática comunitária onde todos os capoeiristas participam da roda com o corpo presente; e não através da internet, ou outra "realidade" virtual. A capoeira canaliza energias violentas e destrutivas para uma prática lúdica e artística. Por isto, junto com outras práticas alternativas, ela poderá ter uma função importante nos tempos que se anunciam. (173) NOTAS: (173) Este capítulo é um resumo de um longo texto do segundo livro de mestre Nestor, Capoeira, Galo já cantou (RJ: Arte Hoje, 1985. Edição revista e ampliada: RJ, Record, 1999). Mestre Nestor diz: "Eu tenho muito carinho por este texto. Comecei a escrevêlo por volta de 1976, com 30 anos de idade, e tinha acabado de voltar de minha primeira viagem à Europa (1971-1974). Era o fim da época dos hippies, e o início de uma 'mentalidade ecológica' que se tornou importante nas últimas décadas; e todas estas influências deixaram suas marcas em mim e neste texto. Apesar de ecos de um pensamento típico de uma determinada década, creio que este texto ainda tem algo a dizer".