Capitulo 7 - Abeiramar TV

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Capitulo 7 - Abeiramar TV
7 - O IMAGINÁRIO DA CAPOEIRA
Existe um país fantástico de lendas e mitos; fantasia e
sonhos; habitado por entidades, orixás e pessoas que um dia já
foram de carne, osso, suor e sangue; que os capoeiristas visitam
em suas viagens astrais - vamos chamá-lo de Imaginário da
Capoeira.
O Cinco Salomão
O Cinco Salomão (signo de Salomão) é a estrela de cinco
pontas do rei judeu, Salomão, a respeito do qual lemos na
Bíblia.
No Brasil, a magia e a feitiçaria são muito populares. Algo
veio com os africanos; algo dos índios brasileiros; algo dos
europeus, incluindo os judeus.
Na Europa medieval, p. ex., a estrela de cinco pontas estava
ligada a diferentes rituais e simbolismos da "magia branca".
Quando era desenhada de cabeça para baixo, significava
"magia negra".
O Cinco Salomão brasileiro tem, provavelmente, suas origens
nesta tradição, talvez vindo da cabala judia, e é usado como
amuleto protetor para "fechar o corpo". João do Rio o
menciona numa de suas crônicas, de maneira tão familiar, que
não deixa dúvidas quanto à popularidade do amuleto desde,
pelo menos, o início dos 1900s.
Muitas vezes, a estrela é um amuleto feito de metal - ouro,
prata, ferro - pendurado no pescoço; outras vezes, é usado
juntamente com ervas, infusões, banho de fumaça, rezas
mágicas.
O Cinco Salomão é o signo protetor do capoeirista. Dizem
que fecha o corpo contra faca, navalha, bala de revólver;
protege contra emboscada; fortalece o espírito contra
mandinga e olho grande.
O Cinco Salomão simboliza um homem de braços e pernas
abertas. Leonardo daVinci, que também era um alquimista, fez
um conhecido desenho da estrela e seu simbolismo. A estrela/
homem é circundada por um círculo para proteção contra o
mal físico, mental ou espiritual. No Brasil, o círculo vem,
muitas vezes, encimado por uma cruz: é a cruz do Cristo; mas
também é a cruz das encruzilhadas, local de tomada de
decisões que pertence a Exú - o mensageiro entre deuses e
homens que carrega o axé (energia vital) a tiracolo numa cabaça
pontuda.
Na academia de mestre Bimba, em Salvador (1930 em
diante), adotaram um logotipo que chamaram de Cinco Salomão,
mas que na verdade era a estrela de seis pontas do rei Davi,
outro símbolo muito poderoso entre os antigos alquimistas da
Europa. Os dois triângulos entrelaçados, um apontando para
baixo e outro para cima, tinham diversos significados: "o que
está acima é como o que está abaixo", o mundo material seria
um reflexo dos eventos do mundo espiritual; o positivo e o
negativo, o bem e o mal, caminham entrelaçados e compõe
uma única coisa, etc.
Mestre Decânio, braço direito de Bimba na década de
1940, me contou que a estrela de seis pontas tinha sido
escolhida, ao invés do tradicional Cinco Salomão de cinco pontas,
porque entre outras coisas, mostrava o entrelaçamento entre o
jogo em pé (no alto) e o jogo no chão (em baixo).
7.1 - O VALENTE E O MALANDRO; OGUM E
OXÓSSI
O Valente e o Malandro são os "ancestrais mitológicos" do
capoeirista.
Associados a eles, poderíamos citar dois orixás (deuses do
panteão do candomblé e da umbanda): Ogun e Oxóssi.
O candomblé da Bahia
Falando do candomblé na Bahia, Luis Felipe de Lima e
Muniz Sodré explicam que "o complexo mítico jejê-nagô
começara a expandir-se (em Salvador) no início do seculo
XIX" (161), paralelo a outros cultos complementares nagôs
como os dos egunguns, egboni e gueledé.Por acaso, isto ocorre
na mesma época em que começam as referências sobre a
capoeira no Rio principalmente pela "pena do escrivão de
polícia", no início dos 1800s, como já vimos com Libano Soares
(162).
Em Salvador no início dos 1900s, no candomblé do
Engenho Velho, o Ilê Ianosso - a Casa Branca -, surgiram devido
a cisões, , outros dois importantes terreiros do rito nagô-ketu: o
Gantois (fundado por tia Julia Nazaré em parceria com
Pulquéria, onde se destacou mãe Menininha em 1986, e mãe
Cleuza) e o Axé Opô Afonjá (fundado em 1910 por mãe Aninha,
depois com mãe Senhora em 1940, em 1968 com mãe Ondina,
e 1976 com mãe Stela).
Semelhante às maltas de capoeira carioca do início dos
1800s, onde originariamente todos eram africanos ladinos (já
adaptados ao Brasil, em oposição ao boçal recem chegado da
Africa), e que mais tarde absorveram os creoulos (filhos de
africanos já nascidos no Brasil); mãe Aninha, p.ex., era filha de
africanos - havia uma forte ligação, não apenas cultural, mas
também de sangue.
Os orixás
Os orixás são os deuses, que vieram da Africa com os negros
escravizados, cultuados no candomblé.
Waldeloir Rego, o mesmo que escreveu o seminal Capoeira
Angola (1968), nos explica:
(Na Africa) o culto dos orixás está circunscrito
a determinadas regiões ou cidades, no Brasil a
coisa foi completamente diferente. Lá existe
uma localidade especificamente ao culto de
determinada divindade. (163)
Assim, o culto de Oxalá - o deus que criou o homem - estava
em Ile-Ife; Exú em Ife; o de Ogun em Ire; o de Yemanjá em
Abeokuta; o de Oxóssi em Ikija, etc.
Na Bahia, e no Brasil em geral, os diferentes orixás são
cultuados no mesmo terreiro.
Diz, ainda Waldeloir:
Existe uma força mágica e mística chamada
ase (axé), sem a qual não pode haver rito. O
ase pode ser bom ou mau. O bom é
proveniente das divindades (orisa) e dos
antepassados (oku orun), isso não quer dizer
que os deuses e antepassados não fiquem
zangados com as pessoas, quando elas não
andam corretas, daí se fazer consultas para se
ter notícias disso, sua causa e o que fazer para
acalmá-los. Na sua essência eles não fazem
senão proteger as pessoas.
O ase do mal é também de dois tipos. Um é
representado pelos ajogun, que são
considerados terríveis e destruidores das
pessoas, sendo os mais importantes, iku, a
morte, e arun, a doença, etc.
O outro ase do mal é Aje, que é a destruição
total da pessoa humana...
Toda força concentrada do corpo se chama ori
e sua sede é na cabeça. A nossa divindade
está segura em nós mesmos de acordo com a
maior ou menor força do nosso ori, isto é, a
maior ou menor concentração de força que
temos, enfim, o ase que nós carregamos
conosco... daí ter sempre de fortalecer o ori
com ebo, chamado bori, que é todo ebo que se
faz na cabeça, desde o simples omi tutu (agua
fria). (164)
Com o tempo houve, também, um sincretismo entre
determinados orixás, e determinados santos católicos. Pierre
Verger nos explica:
Não se pode afirmar que já se tratava, então
(sec. XVIII), de sincretismo entre os deuses da
Africa, por um lado, e os santos católicos, por
outro...
É difícil precisar o momento exato em que
esta sincretismo pode se estabelecer. Parece
ter-se baseado, de maneira geral, sobre
detalhes das estampas religiosas que
poderiam lembrar certas características dos
deuses africanos. (165)
Este sincretismo pode mudar conforme a cidade. P.ex., na
Bahia, São Jorge é identificado com Oxossi, deus dos caçadores
(uma vez que Oxossi também é o dono da lua, e São Jorge
"mora" na lua); mas, no Rio, São Jorge é ligado a Ogun, deus
da guerra (uma vez que ambos são guerreiros; e que Ogun é o
Senhor do Ferro, e São Jorge está de armadura).
Os cultos africanos no Rio de Janeiro
Agenor Miranda Rocha (1907), nascido em Luanda, filho
de pais portugueses mas registrado no Consulado Brasileiro,
veio criança para a Bahia e, mais tarde, tornou-se um
respeitado e querido oluô da tradição nagô-ketu.
Iniciado por mãe Aninha em 1912, em Salvador; muito
jovem viajou para o Rio justamente na época em que o samba
vai se popularizar e vai surgir a figura do Malandro, na década
de 1920:
No Rio (em 1926) havia muitas tias e tios
feiticeiros, de várias nações, a maioria hoje
desaparecidos. Mas as casa de candomblé,
com filhos-de-santo e festas regulares, estas
eram poucas. Da minha nação, a nagô-ketu,
destacavam-se três casas: a de João Alabá
(Cipriano), a de Felizberto (Bamboxé), e a de
Abedê. (166)
Estas casas situavam-se na Saúde e na Cidade Nova, locais
estreitamente ligados ao samba; e João Cipriano e Felizberto
Bamboxé eram africanos. Agenor ressalta a diferença entre as
casa de candomblé de sua juventude, nas décadas de 1930/40,
e as da década de 1990.
Como veremos, as críticas são semelhantes àquelas que
poderíamos fazer à capoeira (a comercialização; o
autoritarismo; e a falta de conhecimento da história, até mesmo
da história recente):
Antigamente havia mais humildade, mais fé,
e mais respeito ao orixá. Hoje não, quase só
se vê vaidade e comércio. O Axé está
enfraquecendo...
Acho que, se eu tivesse que me iniciar hoje,
não entraria para o candomblé...
E depois, não tinha esta história de não poder
encarar o pai-de-santo, de não poder sentar
com ele à mesa, ou em assentos com a mesma
altura. Os africanos impunham e exigiam
respeito, sim, mas de uma forma natural. Este
tipo de proibição é coisa de alguns baianos, e
de alguns cariocas...
As pessoas não se lembram do tempo em que
os cultos eram reprimidos pela polícia (antes
de Getúlio Vargas, na década de 1930). (167)
Mas Agenor Miranda também ressalta que as três atuais
zeladoras das casas de Salvador têm "guardado com dedicação
as tradições e mantido as suas casas com brilhantismo e
dignidade" (168).
E, aqui, voltamos a um ponto que considero básico: é
praticamente impossível manter um alto nível numa atividade
cultural em expansão. No entanto, bastam apenas algumas
pessoas - grandes mestres ou grandes mães-de-santo, etc. - para
manter a chama acesa. Apesar das mudanças inevitáveis devido
ao passar do tempo; das mudanças na sociedade; e das
mudanças que aconteceram, e acontecem internamente no
candomblé, na capoeira, e no samba.
Na capoeira, semelhante ao que aconteceu no candomblé e
no samba, tivemos a sorte de ter mestres excepcionais: Bimba e
Pastinha, a partir dos 1930s e 1940s em Salvador, que criaram
os estilos regional e angola, "recortando" e escolhendo
determinadas características da capoeira de seu tempo; ao
mesmo tempo em que vão criando e inserindo outras novidades
(p.ex., Bimba introduz novos golpes; Pastinha escolhe uma
"orquestra" com 3 berimbaus como "a tradicional").
Tivemos a sorte de uma continuidade, ainda em Salvador,
com toda uma geração - Noronha, Canjiquinha, Caiçaras,
Waldemar, seguidos por Paulo dos Anjos, João Pequeno e João
Grande (só para citar alguns).
E quando, na década de 1960, a capoeira migra para o Rio
e São Paulo, novamente alguns mestres se destacam; uns dez ou
doze estão em atividade até hoje - inclusive eu (Nestor). Apesar
das críticas que fiz à minha geração (nascida por volta de 1945),
e às que vieram depois (autoritarismo, competição excessiva,
falta de "filosofia", etc.); também resaltei que foram elas que
impediram que a capoeira desaparecesse (como aconteceu com
a ladjá da Martinica, o moringue das Ilhas Reunião, etc.); e
elevaram o nível técnico dos golpes e quedas; sem falar da
expansão por todo o Brasil e mais 150 outros países.
E com a novíssima geração, nascida por volta de 1980, além
das novidades conquistadas pelas gerações anteriores, também
já se vê uma crítica (em 2010) ao excesso de autoritarismo no
modelo atual de academia e grupo; crítica que é feita no
sapatinho, sem confrontar os "corôas", sem querer tirar uma de
revolucionários, exatemente no espírito da malícia e da capoeira.
Somado a isto, já vemos o começo da inclusão da capoeira no
"mundo virtual", na Internet, através de sites, portais, canais de
TV, criados em sua grande maioria por estes jovens.
E eu concluí: : "a capoeira está em boas mãos.
São poucos, em relação a massa de mestres e professores;
mas não é necessário mais que isto. Foi esta sequência de
(poucos) indivíduos excepcionais que vetorizou a sobrevivência
e o sucesso da capoeira até chegarmos aos nossos dias.
O Valente e o Malandro
Mas além destes excepcionais mestres, de antanho e de
agora, que marcaram a história da capoeira, duas personagens
fujndamentais, de outra esfera de realidade, habitam o
imaginário do Jogo: o Valente e o Malandro, que às vezes se
confundem, e outras vezes se opõem. Conhece-los bem é
importante, pois vimos que para os homens das sociedades
tradicionais ou arcaicas - e a capoeira está inserida neste
universo - a ética apresenta-se como a regra do ascendente, do
ancestral.
O Valente e o Malandro são ancestrais mitológicos do
capoeirista.
Associados a eles, poderíamos citar dois orixás:
- Ogun, guerreiro vencedor de demandas cujos prazeres são
os combates e as lutas.
- Oxóssi, caçador, rei das matas, que conhece as trilhas mais
recônditas da floresta, que tem a astúcia e a paciência de quem
espera a presa e dá o bote certo no momento apropriado.
Jair Moura nos diz que:
A destreza, a coragem e o golpe-de-vista
eram cultivados na capoeira, que podia ser
jogada com, ou sem armas (brancas);
... quase todos davam preferência à navalha,
arma traiçoeira, que melhor se ajustava a seu
sistema de luta;
... o capoeirista daquela época (década de
1950) era um elemento falso, ao sentar para
se conversar com um capoeirista ficava-se
sempre de soslaio, não se fitava um
capoeirista de frente;
... o capoeirista de antigamente cultuava a
falsidade e vencia pelo logro;
... os capoeiristas em geral tinham como
orixá protetor, Ogun ou Oxóssi. (169)
E o certo é que, se a valentia é prezada e admirada no
universo da capoeiragem - os prazeres de Ogun, os combates e
as lutas -; ela deve se submeter à malandragem, que constitui
um dos esteios básicos de sua filosofia - a astúcia do caçador
Oxóssi.
Muniz Sodré nos diz que:
Eu acho que, por exemplo, a capoeira não
tem que ter a ética rígida do samurai - o
bushido - ligada a uma sociedade altamente
hierarquizada. Aqui, as inversões de
hierarquia é que são o cotidiano.
A malandragem, a figura do malandro, é
uma coisa muito séria na compreensão da
coisa brasileira - que ao nível social é
justamente aquele navegar entre os
interstícios -, e que tem uma tradição: na
Europa temos o "picaro" na Itália, o
"malandrin" na França, que têm uma posição
própria em relação ao trabalho, pois têm a
consciência da exploração. A malícia (da
capoeira) tem uma compreensão disto, uma
homologia com isto. (170)
Então, talvez o maior mito da capoeira seja, não o Valente,
mas sim o Malandro e sua forma específica de sabedoria e
interação com o mundo: através da "malandragem". Na
verdade, poderíamos dizer que a malandragem é o irmão gêmeo
da malícia; diríamos melhor, ‘irmã’, pois está mais próxima da
estratégia feminina (p.ex., a guerrilha) que da masculina (p.ex.,
o exército tradicional).
Por isso, teoricamente, todo capoeirista deveria lidar com a
Vida e com o mundo segundo a ética flexível da malandragem.
Isto não acontece totalmente, pois vimos que a capoeira está
imbricada visceralmente, não só ao mundo das ruas, mas
também à realidade das "academias" e do Sistema no qual
vivemos.
O Malandro, já vimos, não e um Guerreiro como Ogun, nem
um Valente como Besouro, Manduca e Nascimento Grande.
Muito ao contrário: o Malandro despreza a violência e a
força física - que são coisas para os estúpidos e ignorantes (na
maneira de ver da malandragem). O Malandro trabalha com a
sedução, o charme, e um profundo e intuitivo conhecimento da
vida e da psicologia humana. Suas “ferramentas” são as
palavras e seus "prestígios" (as artes do corpo) ; sua maior
qualidade é analisar pessoas e situações com uma rapidez e
esperteza impossível de serem entendidas por nós - os “otários”;
as pessoas “normais” que acreditam nas regras da moral e estão
acorrentadas pelas convenções do grupo ou classe social à qual
pertencemos.
Vamos agora ver que outras entidades habitam o
imaginário da capoeira, ao lado do Malandro, do Valente, de
Ogum e Oxóssi.
NOTAS:
161 LIMA, L.F. e SODRÉ, M. Um vento sagrado. RJ: Mauá,
1996, p.23.
162 SOARES, Carlos Eugenio Libano. A negregada instituição,
os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca
Carioca, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1994.
163 REGO, Waldeloir in CARYBÉ. Iconografia dos deuses
africanos no candomblé da Bahia. Salvador; Fund.Cult. do Est. da
Bahia, INL, UFBa; 1980, s/pg.
164 Idem, s/pg.
165VERGER, Pierre in idem.
166 LIMA, L.F. e SODRÉ, M. Um vento sagrado. RJ: Mauá,
1996, p.53.
167 Ibidem, pp.58-59.
168 Ibidem, p.59.
169 MOURA, Jair (Mestre Perigo). Capoeira, a luta regional
baiana. Salvador: Cad. de Cult./ Pref. Mun. de Salvador, 1979,
pp.9-12.
170 SODRÉ in CAPOEIRA, Nestor. Op. cit., 1992, p.134.
7.2 - OUTRAS ENTIDADES NA RODA
Além do Valente do Malandro, de Ogun e de Oxóssi, ficam
faltando elementos para melhor representar a capoeira no
imáginário do jogador.
Teríamos que procurar "alguém" cujas características
básicas fossem aquelas outras partes da malícia ainda não
presentes:
- a parte que representa a "estratégia feminina", pois vimos
que a malícia é mais do universo "feminino" que do "masculino";
- a tesão e alegria de viver, presentes constantemente na
roda através do som estimulante dos berimbaus, do canto e das
palmas;
- o conhecimento e aceitação de todas as facetas humanas,
tanto as mais luminosas, quanto as mais obscuras (o culto da
coragem, e também da falsidade); ou seja, alguém que transite
confortavelmente pelo "bem" e pelo "mal" com um total
desrespeito pelas regras e convenções da moral (a preferência
pela navalha, arma traiçoeira, que melhor se adaptava àquele
sistema de luta).
Poderíamos argumentar que o Malandro satisfaz, até certo
ponto, estas características. Mas fica faltando um elemento
básico que não sabemos bem qual é; falta ao malandro algum
tipo de poder que "estilhaça" as regras e convenções.
Foucault nos diz (171) que Nietzsche, tendo "a rudeza de
alguém de fora”, podia olhar para a Filosofia, e com um
encolher de ombros dizer: "ora, tudo isso é uma babaquice".
Foucault fala da necessidade de uma “estupidez alegre, um
pipocar de riso de quem não compreende, mas que no fim
compreende ou estilhaça - estilhaça mais que compreende”,
para alguém se "livrar" de um tipo de Filosofia típica da
Universidade, enraizada na burocracia e no conservadorismo
careta - parte do "Sistema".
Na capoeira também precisaríamos, a meu ver, de uma
outra entidade, além do Valente e do Malandro, de Ogun e de
Oxossi; alguén que "com um pipocar de riso estilhaça" os
valores, os muros, as convenções e as fachadas do "Sistema", da
sociedade hegemônica - dinheiro, consumo, moral burguesa .
É na Pombagira - versão feminina de Exú, mensageiro entre
deuses e homens, dono do axé, senhor das encruzilhadas, e Rei
do Povo da Rua -, que vamos encontrar as qualidades
necessárias somadas a este "burst of laughter that shatters
rather than understands".
Talvez espante a presença da Pombagira - ligada ao Povo da
Rua, às putas -, no imaginário de um jogo tipicamente viril,
criado e praticado originalmente por homens (até
aproximadamente 1970, a presença de mulheres na capoeira
era uma exceção). Mas a malícia é da natureza feminina; os
movimentos externos do Jogo é que são másculos, a
malandragem interna é fêmea.
Ao que Muniz Sodré comentou :
Você (Nestor) diz que a malícia é da natureza
feminina, acho isto muito bom.
Enquanto o masculino é o princípio do
definido, do claro, do poder; o feminino é o
avesso disso - é o vazio. Ela tem um poder
que você não sabe bem qual é. O poder dela
é não ter clareza sobre o próprio poder; é o
poder do vazio.
Porque a malícia é exatamente você
contornar a coisa clara e estabelecida; e neste
sentido é feminina. (172)
O sorriso, o riso, a risada, e a gargalhada vital da
Pombagira
Não é difícil entender o relacionamento da valentia de
Ogun com a capoeira:
"O Juca de Amaralina tinha mesmo de morrer,
ele quis mexer comigo sem nem bem me conhecer.
Tinha fama de valente, tinha fama de canalha;
agora está pendurado no fio da minha navalha"
(Mestre Toni Vargas)
"No dia que eu amanheço dentro de Itamaralina;
Homem não monta cavalo; mulher não deita galinha;
E as freiras que estão rezando se esquecem da ladainha"
(Mestre Bimba)
¸
O mesmo se poderia dizer em relação à astúcia de Oxóssi,
o Caçador. Aliás o próprio diálogo verbal já supõe um certo
grau de astúcia argumentativa - retórica. E a capoeira - diálogo
corporal -, pressupõe e mesmo cultua esta qualidade, conforme
vimos com Jair Moura; ou como vemos na canção abaixo:
"Eu dou nó em pingo d'água, rasteira em cobra coral;
falo bem de você, sabendo que tu me quer mal.
Sou formado em falsidade, sou difícil de enganar;
muita esquina na cidade, e a noite vai chegar".
(Mestre Nestor Capoeira)
O Valente, e Ogun, com a coragem; o Malandro, e Oxóssi, com
a astúcia, achando os interstícios e rachaduras - trilhas
recônditas, pouco conhecidas - na fachada aparentemente
invulnerável da Sociedade.
No entanto, a ação da Pombagira não é tão óbvia; mas é sua
influência, combinada e dando colorido típico à valentia e à
astúcia, que vai determinar a ética e a maneira de agir
característica ao capoeirista. Vejamos a descrição (minhas
anotacões pessoais) de uma roda da qual participei em 1991:
Recife, dezembro de 91.
Curso que fui dar no Grupo Chapéu de Couro, do mestre
Corisco (aluno do João Mulatinho; por sua vez, aluno do
Mosquito e do Gil Velho, ambos da Senzala); e palestra no
Centro Cultural de Olinda.
Roda de rua. Começo de noite. Verão. Olinda (PE), logo ali
ao lado de Recife.
A roda está formada, os jogos rolando.
Eu bebo uma cerveja gelada numa das muitas barracas na
praça ao lado da velha igreja. Conversando comigo, um
verdadeiro armário, meia cabeça mais alto que eu, músculo
por todos os lados.
Eu já joguei com ele: apesar de toda aquela carcaça, o cara
é rápido, técnico, e nada bobo. O Armário dá aula de capoeira
em Recife e me fala de seu trabalho. Aliás, já usou a palavra
"trabalho" uma dez vezes:
- Meu trabalho está muito bem estruturado, tanto na parte
física quanto na cultural. tem muita gente invejosa: criticam
meu trabalho, mas não apresentam trabalho. Um dos grandes
problemas daqui é a falta de seriedade dos capoeiristas; tem
muito sujeito sem a mínima condição de dar aula usando a
corda de mestre. A gente devia criar um orgão; e só quem
mostrasse o seu trabalho, e fosse aprovado, poderia dar aula.
Aí, então, o que acontece atualmente é que eles não têm
trabalho; aí, eles copiam o meu, e além de tudo copiam errado,
descaracterizando a capoeira e queimando o trabalho de quem
quer trabalhar.
O Armário pede mais uma PepsiCola.
Já é a terceira.
Não tem Coca, e a Pepsi está quente.
O Armário recusa educadamente e com leve ar de censura
a cerveja gelada que eu ofereço - pode depor contra a sua
imagem. Fala um pouco mais de seu trabalho e do trabalho do
grupo ao qual pertence. À medida que vai falando, vai
sacudindo pedagogicamente um indicador esticado na minha
cara, e não raro me dá umas cutucadas no peito com aquele
verdadeiro salsichão, provavelmente propiciando um futuro
enfisema pulmonar.
O Armário é um cara com muitas qualidades, mas bastante
"teleguiado", com aquele discurso decorado, introjetado na sua
mente , que eu estou cançado de conhecer. Fico na dúvida se
vale a pena gastar papo com ele ("... bater papo com otário é
jogar conversa fora"), mas acabo resolvendo que ele merece um
ponto-de-vista diferente. Quem sabe? As pessoas, as vezes,
mudam. Ele estava ligado na palestra; fez até umas perguntas
interessantes. Eu acho uma brecha no discurso do Armário e
comento:
- Mas, você sabe que essa coisa de "trabalho" não é
referência para um capoeirista. Muito pelo contrário: você
deve se lembrar que tradicionalmente o Jogo era chamado de
"vadiação".
O queixo do Armário cai alguns centímetros. Ele fica me
olhando com aquele olhar meio idiotizado de Cão Fila
Brasileiro anabolisado. Ele entendeu perfeitamente o que eu
disse, só que aquilo não bate com o credo pelo qual ele reza.
Meu comentário não caiu bem.
O Armário é um cara sério.
A terceiro Pepsi está pra lá de quente.
Está um calor danado.
E eu falei mal do "trabalho"; acho melhor sair de fininho.
Dou uma volta na praça. Encontro uma rapaziada; fumo
um e volto à roda.
Alguém me passa um berimbau e me junto aos outros dois
tocaadores, ladeados por dois pandeiros e um atabaque.
Embarco no som.
Uma dupla terminou de jogar. Olho para baixo. No pé do
berimbau estão o Armário e um cara magrelo e musculoso. Eles
terminam de se benzer, fazem suas mandingas, fazem a reverência
ao berimbau, e rolam para o centro da roda.
O jogo está equilibrado.
O Armário faz um floreio bonito e complicado seguido de
uma série de movimentos no chão; obviamente ele tinha
treinado aquela sequência repetidamente até a perfeição e
agora apresentava-a como prova de sua mestrança.
Mas a sequência está um pouco fora da dinâmica do jogo; o
Magrelo deixa o pé, esticado e imóvel, justamente na trajetória
da finalização da sequência do Armário que, por pouco, não
enfia os cornos no calcanhar do Magrelo (o sorriso malicioso da
Pombagira).
A reação do Armário é imediata.
Com uma rapidez surpreendente - visto seu peso -, ele se
agarra ao Magrelo; leva-o ao chão, aplicando-lhe uma gravata
no pescoço.
O Magrelo não reage.
Fica imóvel, o pescoço preso naquele braço de troglodita, e
dá umas pancadinhas com a mão espalmada nas costas do
monstrengo como quem diz: "tudo bem, você venceu".
O Armário - tendo demonstrado sua superioridade - larga o
Magrelo.
O Magrelo se dirige ao pé do berimbau para recomeçarem
o jogo.
O Magrelo vai ajeitando as calças, as mãos nos bolsos
(atenção Armário! o Magrelo está com as mãos nos bolsos!), e
se agacha.
O Armário, esticando a musculatura e sem prestar muita
atenção ao que está acontecendo (exceto à reação da platéia em
relação à sua ação de lutador vitorioso), também se aproxima e
começa a se acocorar.
Aí acontece o lance!
O Magrelo já está acocorado ao pé do berimbau.
O Armário está se agachando.
O Magrelo puxa algo já aberto de dentro do bolso. E, à
medida que o Armário vai se agachando, o Magrelo com um
gesto frio e calculado passa a ponta da arma, do umbigo até o
gogó do Armário, e girando, ganha o meio da roda onde
começa a gingar, o rosto impassível.
- Uma navalha! - a arma traiçoeira preferida pelos
capoeiristas, nas palavras de mestre Jair "Perigo" Moura.
O Armário pula para trás, olhos esbugalhados, as mãos
segurando o ventre!
Só então todos se dão conta que não era navalha coisa
nenhuma: era apenas o punho fechado do Magrelo, com o
indicador e o polegar distendidos! (o riso irônico da Pombagira).
O Armário sacode a cabeça e firma a vista, olhando o
próprio ventre, e se convence que não está cortado. O sangue
lhe sobe à cabeça, chega a ficar vermelho de raiva. Levanta o
rosto e vê o Magrelo que continua a gingar e fazer firulas, na
maior calma, sozinho, no meio da roda.
O Armário dá dois passos rápidos e manda uma violenta
ponteira - chute de frente e de bico - pra cima do Magrelo. Ato
contínuo, emenda uma meia-lua-de-compasso - um chute rodado com a outra perna. O Magrelo se esquiva de lado da ponteira; e
quando a meia-lua vem, zunindo a mil por hora e queimando o
ar, o Magrelo se esquiva entrando por baixo do golpe, e passa descaradamente! - a mão na bunda do Armário (a risada
debochada da Pombagira).
Na mesma seqüência de movimentos, o Magrelo atravessa como uma fuinha que já tivesse um caminho tortuoso e
predeterminado - a compacta multidão que se aglomera em
volta da roda e some entre as barracas de comida e bebida .
O Armário ainda vai atrás, mas fica entalado e impotente
entre as pessoas que circundam a roda.
A outra dupla que esperava acocorada ao pé do berimbau,
ganha o centro da roda e o jogo continua sem interupção.
Me contaram depois - mas isto eu não vi e atribuo ao
"folclore"; àquele negócio de quem conta um conto aumenta
um ponto -, que o Magrelo ao atravessar o aglomerado de
pessoas, levou a mão ao nariz; cheirou-a; e abanando a cabeça
fez uma careta como se ela estivesse cheirando mal (a
gargalhada vital da Pombagira!).
O sorriso, o riso, e a gargalhada vital da Pombagira.
Besouro, Manduca, e Nascimento Grande; Bimba e
Pastinha
Três outros personagens que habitam este imaginário da
capoeira - "ancestrais" que viveram entre 1850 e 1950 -, são
Besouro Cordão-de-Ouro que viveu na Bahia; Manduca da Praia, do
Rio; e Nascimento Grande, de Recife.
Três Valentes.
Manduca, no Rio por volta de 1860, que se alugava aos
políticos do Brasil Império para levar o terror a seus
adversários; para "emprenhar" as urnas nas eleições; respondeu
a 27 processos por ferimentos graves e leves, sendo absolvido
em todos eles pela sua influência pessoal e de seus amigos.
Besouro, em Salvador por volta de 1930. que "dava sarto
mortá e caia dentro dos próprio chinelu", segundo mestre
Bimba; que afrontava a polícia: "Não estudei para ser padre,/
tampouco pra ser doutor./Aprendi a capoeira/pra bater no
inspetor".
Nascimento Grande, que à frente dos "moleques de banda",
no carnaval do Recife dos 1940s, instaurava o caos por onde
passava.
Para completar o panteão, dois mestres - estes, (quase) de
real carne e osso, pois chegaram até nossos dias - na mais pura
oposição dualista:
- mestre Bimba (1900-1974), criador da Capoeira Regional,
mais objetiva e voltada para a luta;
- mestre Pastinha (1889-1981), criador da Capoeira Angola,
mais ligada no ritual e no lúdico.
Nestes dois mestres, que muitos de nós (os mais velhos)
conheceram pessoalmente, pode-se ver com clareza tanto o
Valente quanto o Malandro e, não raro, ouvir o riso debochado
da Pombagira.
Mestre Bimba foi um lutador temido, jamais vencido, que
fazia desafios públicos pelos jornais a todos lutadores "baianos e
de outras procedências". Nestes combates públicos, nos quais
ele queria demonstrar a eficácia de sua "luta regional baiana",
ganhou o apelido de Bimba Três-Pancadas - o máximo de golpes
que seus adversários aguentavam.
Sem dúvida, Bimba encarnava os prazeres de Ogun e a
figura do Valente.
No entanto, era uma verdadeira enciclopédia da
malandragem:
¸
"Sempre que dormir em casa alheia (e com a
mulher dos outros), durma com um olho
aberto e outro fechado, de barriga pra cima,
contando as telhas até o amanhecer".
"De noite, de madrugada, evite passar
embaixo de árvore frondosa (vagabundo pode
estar na emboscada, lá em cima); não ande na
calçada colado à parede, e pra dobrar a
esquina vá até o meio da rua"
E cantava:
"Oração de braço forte,
oração de São Mateus;
Quando amanheço zangado
quem pode comigo é Deus"
Surpreendemente para aqueles que culuavam o mito da
invencibilidade de mestre Bimba, o velho gigante negro dizia:
"Quem aguenta tempestade é rochedo" (se a parada for
dura demais, corre!)
Certa vez, mestre Jair Moura, na época discípulo de Bimba,
encostou uma caneta na cabeça do Mestre e indagou:
"Se fosse um revólver, o que o sr. faria?"
Resposta imediata:
"Eu morria, meu filho".
Por seu lado, mestre Pastinha é considerado o "filósofo da
capoeira", e lembrado como um homem afável, gentil e
acolhedor.
"Capoeira, mandinga de escravo em ânsia de
liberdade.
Seu princípio não tem método;
e seu fim é inconcebível ao mais sábio dos
mestres"
E cantava:
"Menino preste atenção ao que vou dizer:
o que eu faço brincando, você não faz nem zangado;
Não seja vaidoso e nem precipitado;
Na roda de capoeira, Pastinha já está classificado"
E aquele gentil e "suave" velhinho contava, com a maior
candura, como aos dezeseis anos foi convidado para "tomar
conta" de uma casa de jogo na zona barra-pesada da
prostituição. O delegado argumentou com o dono da casa que
aquilo não era serviço para um menino, e perguntou a Pastinha:
"Como é o seu nome?"
"Vicente Ferreira Pastinha"
"Ah, então é você o galinho de briga da minha jurisdição!"
E Pastinha pensou: "Pronto..."
Mas Pastinha não foi preso; ao contrário, foi contratado.
Mestre Pastinha também contava, com aquela mesma
candura de velhinho octagenário, que no seu tempo ele usava
uma foicezinha de mão do "tamanho de uma chave" (aquelas
chaves grandonas de ferro, para casarão colonial): "Como eu
era muito bonzinho para aqueles que quizessem me ofender, eu
mandava afiar os dois lados (da foice). Se tivesse três lados, eu
mandaria afiar os três, mas como só tinha dois...".
O anel da foice podia ser encaixado na ponta do berimbau
e "... na hora da dor, a gente manejava".
Como se vê, na capoeira até os velhinhos de cabeça branca e principalmente os velhinhos de cabeça branca -, não têm
nada de bonzinho ou ingênuo.
Aqui cabe mencionar um novo personagem que, após a
década de 1960, cheio de moral e ares de superioridade, fica
insistentemente batendo à porta do "imaginário da capoeira"
querendo entrar.
Não mais o Mestre, com "M" maiúsculo ; vamos chamá-lo
de Professor (com um pseudo “P” maiúsculo) de capoeira e,
associado a ele, o "Sucesso" e o “Trabalho” como valores e
regra moral.
A imagem deste novo Professor fascina muitos capoeiristas
da velha, média, e nova geração. Mas para muitos, embora
muitas vezes ele seja um ótimo jogador, e seu grupo ter uma
grande representatividade, ele não passa de um otário
engomadinho, ou de um esperto que visa basicamente o Poder
e também a grana.
Este Professor tem os mesmos valores valores da ordem
"tele-real" (os valores propagados pela televisão). O Professor é
um homem de negócios de sucesso; ensina capoeira em sua
própria academia, que tanto pode ser "moderna", com muitos
espelhos e aparelhos de musculação, uma eficiente e bonita
secretária loura na entrada, sentada a frente de um
computador de última geração; como também pode ser
completamente "despojada".
O Professor se veste com roupas de “jogging” e tênis
americano importado; possui uma camionete tipo “rural”, do
ano; e uma possante motocicleta japonesa.
Alguns são casados, e a esposa - sempre à sua sombra; ou
antão é uma megera insuportável - ajuda na infra-estrutura da
academia; ou então é a anfitriã perfeita que recebe os
capoeiristas de outras cidades em sua bela casa.
O Professor conhece as “malandragens” da capoeira
(ultrapassada, na opinião dele), mas está noutra: não se envolve
com drogas; não bebe; não fuma; e se eventualmente tiver
alguma aventura extra-conjugal, é extremamente discreto e faz
a diferença entre a sua esposa - uma moça "correta" -, e as
"vadias" que ele ocasionalmente come.
Sua agenda está sempre cheia: ele é um homem ocupado.
O Professor é um chato.
NOTAS:
171 FOUCAULT, M. Politics, phylosophy, culture. Rantledge,
Clapman & Hall. 1988, p.312.
172 SODRÉ in CAPOEIRA, N. Op. cit., 1992.
7.3 - GALO JÁ CANTOU (173)
O que tornou o homem das cavernas tão superior a outros
animais de seu tempo?
Não foi a força física.
Nem tampouco a capacidade de viver e cacar em grupos
organizados - vejam as formigas, p. ex.
Nem somente a fala ou a inteligência - os golfinhos têm
uma linguagem altamente sofisticada e seu cérebro é maior que
o dos homens.
Este conjunto - força física, trabalho em conjunto, fala e
inteligência - dava grandes vantagens aos seres humanos; mas o
que o homem tinha de exclusivo era a capacidade de construir
armas e ferramentas, inicialmente de madeira e osso e pedra, e
depois em metal e ferro, aumentando exponencialmente seu
potencial.
Curiosamente no candomblé, logo após Exú - "o primeiro a
comer"; mensageiro entre os homens e os orixás; que traz o axé
(energia vital) numa cabaça pontudo que carrega a tiracolo -,
vem Ogun - guerreiro violento e vencedor de demandas; ferreiro
de Oxalá (a entidade suprema); senhor do ferro. Foi certamente
sob a proteção e inspiração de Ogun - Senhor do Ferro - que o
homem executou a passagem de primitivo à civilizado.
Salve Ogun!
Senhor da guerra, do ferro, vencedor de demandas; e ele quem cavalga
no meio da estrada e abre os caminhos!
Salve Ogun!
Ele mata o marido no fogo, e a mulher na beira do fogareiro. Ele mata
o ladrão e o proprietário da coisa roubada. Ele mata também aquele que
critica esta ação.
Salve Ogun!
Os prazeres de Ogun são os combates e as lutas!
Durante muitos milhares de anos o homem primitivo se
acostumou à idéia de que sua sobrevivência dependia de suas
armas, usadas na caça, na defesa contra animais ferozes e mais
fortes, na guerra contra outros grupos de humanos. O homem
revelou-se um terrível animal predador e suas armas eram
fundamentais neste contexto.
Por outro lado, as ferramentas se sofisticaram e, hoje, temos
a real possibilidade de acabar com a miséria, a fome, a
ignorância, e termos uma vida mais saudável, longa, e com
mais curtições e menos trabalho alienante.
No entanto, as armas evouiram até que hoje enfrentamos a
possibilidade de extinção numa guerra nuclear; mas
paradoxalmente pouco foi feito em relação ao potencial das
"ferramentas" para a construção de um mundo melhor e com
menos miséria.
Hitler dizia:
"Quem quer que tenha se detido a examinar a ordem das
coisas, chega à conclusão que a ordem do mundo reside no
domínio dos mais capazes através do uso da força".
Baudelaire afirmava:
"Quer o homem abrace sua vítima no bulevar, quer mate
suas presas em florestas desconhecias, não é ele eternamente o
homem? Isto é, o mais perfeito animal de rapina?"
Carlos Drummond de Andrade não era otimista:
"Trabalhar sem alegria para um mundo caduco onde as
formas e ações não encerram nenhum exemplo".
Mas apesar destas analises realistas e sombrias, nossa
sobrevivência, hoje, depende da nossa capacidade de conviver
em paz com outros homens, e em harmonia com a natureza. O
homem moderno precisa reprogramar sua cabeça.
Altas cabeças julgam que o homem primitivo tem muito a
ver com o civilizado. Existem necessidades e coisas que
ocorrem nas profundezas de nosso ser, sem que o percebamos
devido ao nosso verniz de "civilizado". Isto pode ser utilizado
positivamente na "reprogramação" de nossas cabeças, algo que
sabemos ser essencial para nossa sobrevivência. Vejamos, p.ex.,
a questão dos "rituais":
- Quando alguém nascia, havia um ritual; quando morria,
idem.
- Antes da guerra encenava-se um ritual; quando faziam a
paz, outro ritual.
- Quando a menina ou o rapaz chegavam a puberdade,
mais um ritual.
- Lua cheia? Lua nova? É isso mesmo: rituais.
Em todas civilizações "primitivas", os rituais que
conectavam o homem com as forças da natureza e as energias
cósmicas eram essenciais. A conclusão lógica é que o homem
primitivo necessitava de rituais.
E o homem moderno, civilizado?
Se olharmos de perto, veremos que esta necessidade
continua: casamento, festa de formatura no colégio, batizado
religioso, o carnaval e o ano novo, concerto de rock 'n roll, ou ao
jogo de futebol com suas torcidas organizadas. No entanto os
rituais contemporâneos não são vistos como tais. Talvez com
razão: há uma grande diferença entre o ritual primitivo que
comemorava a chegada da lua cheia - uma festa de comunhão
com as forças da natureza -, e uma noite na discoteca - com
entrada paga.
Além disto, como vemos nos eventos esportivos, é comum
que apenas algumas pessoas tomem parte ativa; as demais
assistem a tudo passivamente, apenas aplaudindo ou vaiando
ocasionalmente - com entrada paga -; ou assistindo ao "ritual"
pela televisão. Ou seja: os rituais foram "esvaziados" de seu
contúdo e, na sequência, absorvidos pela "sociedade de
consumo".
O logo de nossa sociedade poderia ser: "Foda-se toda valor
espiritual, ético, de fraternidade, ou artístico; com a grana, e
com a máquina (filha da tecnologia) podemos tudo (até mesmo
ser felizes)!" E até o sexo e a sensualidade foram banalizados e
estereotipados pela mais grosseira pornografia.
Um alienígena poderia perguntar: mas porque esvaziar o
ritual e abandonar estes valores (os valores espiritual, ético, de
fraternidade, e artístico)? Estes rituais e estes valores não eram
essenciais ao homem primitivo? E também, ao que tudo indica,
ao homem contemporâneo?
Uma das possíveis respostas é que a nossa "sociedade de
consumo" captura todas as energias que eram dedicadas ao
ritual e a comunhão com a natureza, ao amor, ao sexo, às artes,
à espiritualidade, às curtições; e as canalisa para o trabalho
duro, chato, alienante, e geralmente muito mal pago, no campo
ou na cidade (e os donos da bola sempre reclamando, mas com
o dinheiro transbordando nas suas contas bancárias na Suiça e
nos paraísos fiscais).
Isto explica, em grande parte, porque todas atividades
espontâneas, todo ritual coletivo, foram "esvaziados" do
conteúdo original. Os Senhores não querem que os Escravos
sejam desviados do trabalho. Mas como o homem necessita de
"rituais", outros "rituais" foram criados; com entrada paga e
onde, muitas vezes, somente um pequeno grupo "entra em
cena" e o resto fica passivo, em casa assistindo em frente à
televisão (guardando as energias para o trabalho na segundafeira). Pois ninguem ficaria com o rabo grudado numa cadeira
no escritório, ou carregando tijolo pra construir o prédio dos
bacanas, se soubesse que, lá fora, o amor, o sexo, a curtição,
estava rolando de graça.
Dentro deste panorama, o carnaval carioca é um caso
curioso: costumava ser uma festa de rua muito louca; um ritual
popular. Mas esta festa, rude e um tanto violenta, foi
"civilizada", por volta de 1950 no Rio, em especial pela acão de
alguns jornais que criaram regras e premios do tipo
"Estandarte de Ouro" para o "melhor grupo carnavalesco".
E a partir aproximadamente de 1960, aos poucos, os
eventos principais passaram a ser os "bailes carnavalescos"
destinados à classe média e a burguesia nos clubes fechados, e o
desfile das Escolas de Samba patrocinados pelos bicheiros e
grandes traficantes de drogas, aliados às grandes redes de
televisão. A iniciativa pessoal de pequenos blocos, que saiam à
rua na maior curtição, tocando seus instrumentos mambembes,
pulando e sambando, foi fagocitada pelo Sistema no qual
vivemos. Isto aconteceu também pela falta de indivíduos
carismáticos e apaixonados que, remando contra a maré,
levassem os blocos às ruas.
Haviam poucas excessões, como o Cacique de Ramos no
subúrbio, o Bola Preta no centro da cidade, e a Banda de Ipanema
na zona sul. Eram blocos pequenos, não mais de 20 ou 50
"foliões", formados na maioria por grandes boêmios (não como
hoje, quando estão novamente "na moda" e arrastam até
20.000 pessoas na sua esteira).
E o carnaval "comercializou-se".
Um pouco mais tarde, os próprios "bailes carnavalescos"
começaram a ser tachados de cafonas e também entraram em
decadência.
Isto seria um exemplo típico da "dinâmica capitalista" que
nossa sociedade imprime à vida, e às manifestações culturais de
seus cidadãos.
No entanto, a partir aproximadamente de 1995 - e por isto
eu disse que o carnaval era um exemplo "curioso" -, houve um
renascer progressivo dos "blocos de rua"; bem mais
"civilizados" que os blocos de rua seminais, e sem o conteúdo
crítico à políticos e instituições que caracterizam os carnavais
de outrara. Mas, de qualquer forma, progressivamente a
alegria voltou espontaneamente às ruas do Rio (sem entrada
paga; algo que não aconteceu, p.ex., com os blocos
carnavalescos de Salvador).
Esta iniciativa, de pequenos grupos de foliões, encontrou
ressonância na prefeitura e em sucessivos governos estaduais,
talvez porque era obviamente um grande atrator turístico.
Aliás, o carnaval de rua, mais do que floresceu: os blocos que
sobreviveram desde os 1960s, como o Bola Preta e a Banda de
Ipanema; assim como outros blocos que vetorizaram o renascer
do carnaval de rua carioca por volta de 1995, como o Suvaco do
Cristo e o Simpatia É Quase Amor; além de dezenas de outros
blocos (em 2012, 171 blocos se registraram na Prefeitura para
desfilar); "arrastaram", cada bloco, de 5.000 a 100.000 pessoas
nas ruas, jovens entre 14 e 28 anos em sua imensa maioria.
Tudo na maior paz. E incrivelmente, menos de uma hora
depois do bloco passar, a Comlurb ja tinha retirado toneladas
de lixo deixando a rua limpinha e lavada; uma perfromance de
deixar qualquer País do Primeiro Mundo de queixo caído.
Por volta de 2010, na esteira do sucesso do carnaval de rua,
começaram a re-aparecer com força os "bailes carnavalescos"
para a classe média e para a burguesia que andavam muito
desprestigiados.
Evidentemente não podemos prever o futuro do carnaval
carioca: coisas que tem um súbito e grande sucesso na
sociedade de consumo podem ser "queimadas" e descartadas
rapidamente (ou não). Por outro lado, era o maior barato sair
num bloco de 50 pessoas onde você podia ir sambando ao lado
da bateria, com espaço para se mover e ouvindo aquele batidão
quase dentro do teu ouvido; é algo impossível num bloco
rodeado de 10.000 pessoas. Mas indepedente destes
comentários (ao que parece, o autor deste livro nunca esta
satisfeito), o que mais interessa é que isto que aconteceu com o
carnaval carioca mostra que, mesmo nesta nossa era de
massificação onde o capital é o principal valor, ainda é possível
a ação individual, ou de pequenos grupos independentes. Creio
que isto é uma notícia muito importante para nós, os
capoeiristas.
Para concluir: a capoeira tem a característica de ser, mesmo
hoje, um antigo "ritual" inserido na era das viagens
interplanetárias e da globalização.
A capoeira é formada por pequenos grupos independentes,
sem um organismo central controlador, sem as regras impostas
por um "patrocinador" (seja ele, o governo, ou uma marca de
cigarro, de carro, ou de papel higiênico).
A capoeira é uma prática comunitária onde todos os
capoeiristas participam da roda com o corpo presente; e não
através da internet, ou outra "realidade" virtual.
A capoeira canaliza energias violentas e destrutivas para
uma prática lúdica e artística.
Por isto, junto com outras práticas alternativas, ela poderá
ter uma função importante nos tempos que se anunciam. (173)
NOTAS:
(173) Este capítulo é um resumo de um longo texto do
segundo livro de mestre Nestor, Capoeira, Galo já cantou (RJ: Arte
Hoje, 1985. Edição revista e ampliada: RJ, Record, 1999).
Mestre Nestor diz:
"Eu tenho muito carinho por este texto. Comecei a escrevêlo por volta de 1976, com 30 anos de idade, e tinha acabado
de voltar de minha primeira viagem à Europa (1971-1974).
Era o fim da época dos hippies, e o início de uma 'mentalidade
ecológica' que se tornou importante nas últimas décadas; e
todas estas influências deixaram suas marcas em mim e neste
texto.
Apesar de ecos de um pensamento típico de uma
determinada década, creio que este texto ainda tem algo a
dizer".

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