justiça do trabalho
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TRABALHADORES E A CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL (DÉCADAS DE 1940 A 1960) 4658.5 Processo de Constituição.pmd 1 24/09/2012, 16:06 4658.5 Processo de Constituição.pmd 2 24/09/2012, 16:06 RINALDO JOSÉ VARUSSA TRABALHADORES E A CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL (DÉCADAS DE 1940 A 1960) 4658.5 Processo de Constituição.pmd 3 24/09/2012, 16:06 R EDITORA LTDA. Todos os direitos reservados Rua Jaguaribe, 571 CEP 01224-001 São Paulo, SP — Brasil Fone (11) 2167-1101 www.ltr.com.br Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: R. P. TIEZZI X Projeto de Capa: R. P. TIEZZI Impressão: PIMENTA GRÁFICA E EDITORA Setembro, 2012 Versão impressa - LTr 4658.5 - ISBN 978-85-361-2290-8 Versão digital - LTr 7427.9 - ISBN 978-85-361-2312-7 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Varussa, Rinaldo José Trabalhadores e a construção da justiça do trabalho no Brasil : (décadas de 1940 a 1960) / Rinaldo José Varussa. — São Paulo : LTr, 2012. Bibliografia 1. Costa, Armando Casimiro, 1918 2. Direito do trabalho — História 3. Justiça do trabalho — História 4. Trabalho — História I. Título. 12-10713 CDU-34:331(091) Índices para catálogo sistemático: 1. Direito do trabalho : História 34:331(091) 2. Trabalho : Direito : História 34:331(091) 4658.5 ficha trabalhadores e a construcao.pmd 1 25/9/2012, 09:35 A Maria Angélica, Maíra e Hermano, boa parte do sentido do trabalho e da vida. José Expedito (in memorian) e Maria de Lourdes, que estão sempre me ensinando. 4658.5 Processo de Constituição.pmd 5 24/09/2012, 16:06 4658.5 Processo de Constituição.pmd 6 24/09/2012, 16:06 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 9 PREFÁCIO — HELOISA DE FARIA CRUZ ......................................................................... 27 CAPÍTULO I. DEBATES INSTITUINTES: PERSPECTIVAS EM CONFRONTO NA IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO ...................................................................................... 31 CAPÍTULO II. CONSTRUINDO PRÁTICAS, RELAÇÕES E EXPECTATIVAS: SINDICATOS, ADVOGADOS E TRABALHADORES ................................................................................. 78 CAPÍTULO III. TRABALHADORES E LEGISLAÇÃO EM CONSTRUÇÃO NA “CIDADE INDUSTRIAL” . 121 CAPÍTULO IV. PROCESSOS TRABALHISTAS E A CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES FABRIS .............. 170 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 215 FONTES ............................................................................................................ 221 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 227 4658.5 Processo de Constituição.pmd 7 24/09/2012, 16:06 4658.5 Processo de Constituição.pmd 8 24/09/2012, 16:06 APRESENTAÇÃO Discutir maneiras pelas quais a Justiça do Trabalho (JT) articulou-se às experiências de trabalhadores, vivendo processos tais como a industrialização, urbanização e migração, coloca-se como a principal preocupação deste livro(1). Uma primeira oportunidade de investigar este tema apresentou-se a mim em março de 1995. Na ocasião, o sugestivo título de uma matéria jornalística (“Fogueira trabalhista: fórum queima mais de dez mil processos”) indicava aos seus leitores as “saneadoras” medidas que seriam adotadas pela 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Jundiaí (IJCJJ): “Não entre em pânico. O Fórum Trabalhista vai incinerar apenas os processos concluídos que têm mais de cinco anos de arquivo. A ‘queima’ faz parte de uma operação para deixar as Juntas Trabalhistas como ‘zero km’.”(2) Um grupo de historiadores da região, porém, resolveu não seguir totalmente o conselho do diário quanto ao pânico, e se não chegou a esta reação, ao menos se espantou com a destinação que seria dada aos processos. Disto resultaria, depois, a transferência dos processos para a guarda do Museu Histórico e Cultural de Jundiaí. Muitos outros espantos seguiram-se, como, por exemplo, o provocado pelo volume da documentação: perto de 30 metros cúbicos de papel, que totalizavam 32.154 processos. Por certo, “mais de 10 mil”, como fora anunciado. Do espanto ao questionamento foi um dos passos que desencadearam a pesquisa. Isto porque o número expressivo de processos trabalhistas foi provocador, C (1) Esta publicação é originariamente uma tese de doutorado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em História, orientado pela Profa. Dra. Heloisa de Faria Cruz e que, na banca de defesa, contou com os professores Yara Aun Khoury (PUC-SP), Kazumi Munakata (PUCSP), Paulo Roberto de Almeida (UFU) e Marcelo Badaró de Mattos (UFF). (2) Jornal da Cidade, p. 9, 31.3.1995. 9 4658.5 Processo de Constituição.pmd 9 24/09/2012, 16:06 observando-se, ainda, que aqueles alocados no Museu eram os remanescentes de outros dois descartes já realizados anteriormente, em 1965 e 1974, sendo que, somente no período que vai de 1944 (ano de abertura da IJCJJ) a 1970, foram abertas 35.176 ações naquela Junta. Sem nenhuma pretensão de verdade estatística, se considerarmos que a população da região abrangida pela IJCJJ era de 268.753 habitantes(3) em 1970, uma relação de mais de um processo para cada sete habitantes pode ser constatada. Ou seja, proporcionalmente, mais de 10% da população teria recorrido a essa prática num período de 26 anos, relação que se ampliaria se levado em conta que o total de habitantes não corresponde, obviamente, ao total de empregados. Esta imagem estatística intensificava-se ao se vislumbrar outra comparação: em 1944, instauraram-se 306 processos para uma população de aproximadamente 70 mil habitantes; em 1970, com os 268.753 habitantes, a IJCJJ registrou 2.597 processos. Assim, de uma relação de um processo para 230 habitantes, em 1944, tem-se, em 1970, uma proporção de um processo para 100 habitantes, aproximadamente. De imediato, o que esta estatística apontava era a presença e recorrência desta prática entre os trabalhadores — tendo em conta que era insignificante o número de processos instaurados pelos empregadores —, além da crescente afluência à JT. Isto permitia pensar que a implantação daquela instituição se consolidara como referência e se fizera enquanto um modo de atuar, no que se refere às relações de trabalho; os trabalhadores passavam a utilizar a Junta, sugerindo que, para um considerável número deles, ela não fora rejeitada, independente do significado que se possa ligar a isso. Numa sociedade em que o espaço judicial tem-se configurado para as classes subordinadas num legitimador de marginalidades, imputando-lhes, com muito mais frequência, o papel de acusado — e, na sequência, réu e condenado — do que o de reivindicadores de direitos (indicativo alardeado como próprio das sociedades democráticas e do exercício da cidadania) —, pareceu-me questionadora, a princípio, uma suposta inversão naquele roteiro, passível de ser visualizada na massiva procura que os trabalhadores faziam (fazem) da JT. Os “reclamantes”(4) pareciam, com isto, atribuir valores e significados àquela instituição que provocavam a investigação. C (3) Os 268.753 habitantes resultam da soma, com base no senso do IBGE de 1970, da população das cidades de Itatiba, Itupeva, Louveira, Várzea Paulista, Campo Limpo Paulista, Cajamar, Valinhos, Vinhedo, Jarinu e Jundiaí. (4) O termo “reclamante” designa os proponentes de uma ação trabalhista na Justiça do Trabalho. 10 4658.5 Processo de Constituição.pmd 10 24/09/2012, 16:06 8 Aliado a isso, vislumbrava uma possibilidade de pagar uma dívida anterior — resultante do mestrado —, qual seja, a de investigar experiências de trabalhadores que não perfilavam entre as lideranças de seus movimentos ou organizações. Esta opção/preocupação foi provocada e se beneficiou dos debates transcorridos nas últimas décadas, de modo geral, nas Ciências Humanas e, particularmente, entre os historiadores que se identificam com uma perspectiva social de interpretação e abordagem da realidade. Este debate tem-se caracterizado por um constante movimento de crítica e deslocamento para as margens, em sentido do que fora relegado e esquecido por uma produção que prioriza a consolidação de uma memória dos dominantes, de tom único, excludente e silenciador de alternativas, de oponentes e/ou resistentes, o que, por certo, implicava não só pensar historicamente a partir de “novos personagens”, como a construção de outros referenciais teórico-metodológicos. Tal perspectiva marcou-se, no dizer de Déa Fenelon, “pelas tentativas de se preocupar com a vida real mais que com as abstrações, por ver a ‘história vista de baixo’ mais do que a partir dos dominantes e tratar a experiência ou as vivências mais que os eventos sensacionais, pela possibilidade de maior identificação e empatia com o passado, pela relação intimista que estabelece com os sujeitos históricos”(5). No que se refere aos trabalhadores, se num primeiro momento, a historiografia no Brasil buscou um desmonte de formulações que os colocavam como apêndices das ações da classe dominante e de teorias que se pautavam no aferimento de uma maior ou menor consciência de classe e revolucionária(6), em outro, observa-se um deslocamento que evidencia um entendimento de que a classe não se resumia aos setores organizados, ao operariado e suas lideranças, mas compreendia outras categorias e grupos, produtores de estratégias diferenciadas de enfrentamento da realidade e dos mecanismos de dominação e exploração, forjados a partir de diversos campos de tensão e conflito(7). Isto não significa, vale ressaltar, uma visão reducionista da investigação, deslocando-a para a procura de excentricidades, mas uma mudança de enfoque que tenta visualizar processos mais amplos a partir das lógicas constituídas pelos sujeitos, prescindindo de critérios que lhes sejam exteriores, buscando investigar a classe trabalhadora não como algo monolítico e predeterminado, mas que se constitui, C (5) FENELON, Déa. História social: historiografia e pesquisa. In: Projeto História, n. 10, p. 80. (6) Ver, a respeito desta crítica, entre outros, PAOLI, Maria Célia. Os trabalhadores urbanos na fala dos outros: tempo, espaço e classe na história operária brasileira. In: Revista Comunicação, n. 7, 1973; MUNAKATA, Kazumi. O lugar do movimento operário. In: CASALECHI, J. E.; TELAROLLI, A. (orgs.). Movimentos sociais. Anais do IV Encontro Regional de História de São Paulo, 1980; PAOLI, Maria Célia e outros. Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico. In: Revista Brasileira de História, n. 6, 1983. (7) Dentre outros, apontaria como trabalhos que contemplam esta preocupação, CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, 1986 e Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte, 1990; CRUZ, Heloísa de Faria. Trabalhadores em serviço: dominação e resistência (1900-1920), 1991; SANTOS, Carlos J. F. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915), 1998; e DUARTE, Adriano Luiz. Cidadania e exclusão, 1999. 11 4658.5 Processo de Constituição.pmd 11 24/09/2012, 16:06 no dizer de E. P. Thompson, num “processo ativo”, que se expressa em diferentes práticas, espaços, instituições e situações(8). Assim, aquele contingente de nomes que saía das ações trabalhistas aguçava a curiosidade e se apresentava como uma oportunidade de se refletir sobre o que outros trabalhadores — os “comuns”, os anônimos engrossadores de estatísticas — pensavam do espaço judicial e como o vivenciaram, parecendo colocar-se na contramão das referências que eu trazia da militância na Igreja e no sindicato, onde a JT adjetiva-se a partir de motes como “cópia fiel da Carta del Lavoro de Mussolini”, “peia colocada nos trabalhadores por Getúlio Vargas” e mesmo como “uma prática pelega”. A estes questionamentos, provocações e ajustes de contas articularam-se as preocupações do momento, presentes, por exemplo, nos debates que pululavam, então — e que se estenderam pela década de 1990, assumindo outras proporções e intenções —, sobre a necessidade de mudanças na legislação trabalhista e na JT, identificadas, de um lado, por setores do sindicalismo, empresariado e governo como componentes do chamado “Custo Brasil”, uma espécie de entidade invocada para explicar insucessos, justificar ou pressionar mudanças, invariavelmente impopulares, ligadas à produção econômica. Para estes, o debate se equacionava na “flexibilização” das relações trabalhistas e na livre negociação entre patrões e empregados, que assumiam prerrogativas de salvação da economia e do emprego. Alguns, mais “otimizadores” e visionários, iam mais além, propondo uma medida definitiva e consequência “natural” da “flexibilização”: a extinção da JT, do que se beneficiariam os trabalhadores com o fim de um órgão moroso, o qual só os fazia esperar (curioso é que este critério da morosidade não os sensibilizava ou demovia a extinguir a Justiça Criminal). Um caso exemplar para caracterizar este embate, verificou-se em fevereiro de 1996, quando o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e oito sindicatos patronais ligados à FIESP (Federação das Indústrias de São Paulo) firmaram um acordo que, entre outras coisas, previa a isenção de recolhimento do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) pelas empresas e permitia que elas deixassem de assinar a carteira de trabalho. O objetivo do acordo era, com esta redução de gastos patronais, aumentar o número de trabalhadores contratados. O acordo acabaria impugnado pelo TRT (Tribunal Regional do Trabalho) de São Paulo, que declararia sua inconstitucionalidade em 16 de fevereiro daquele ano. (8) Ver a respeito, THOMPSON, E. P. Prefácio. In: A formação da classe operária, v. 1. 12 4658.5 Processo de Constituição.pmd 12 24/09/2012, 16:06 8 C Este acordo, no entanto, seria apenas o prenúncio de algumas mudanças e “balões de ensaio” decretados pelo governo, durante a década de 1990, como o apelidado “desemprego temporário”, no qual o empregador pode suspender o contrato de trabalho do empregado por quatro meses, sem o pagamento dos “encargos” que isso representaria no caso de uma demissão imediata. Por certo, este tom do debate é bastante dissonante daquele que levou à consolidação da JT e da legislação trabalhista nas décadas de 1930 e 1940, quando seus proponentes colocavam na ordem inversa as causas do atraso e das insatisfações que eles identificavam no país. Este tom, aliás, compõe outra imagem bastante presente nas memórias e, com frequência, apresentada por parte da historiografia. Há que se dizer que essa percepção do contraste existente entre estas posições não denota nenhuma originalidade deste autor: os próprios ocupantes do poder, na década de 1990, esmeravam-se em afirmar suas pretensões de entrarem para a história como os lançadores da pá de cal sobre a “Era Vargas”, que na nova cronologia utilizada não se encerrara com o fim do Estado Novo ou com a morte de seu principal personagem, mas que se estendia até o presente, por meio dos vícios e privilégios cultivados na sociedade, dos quais a regulamentação das relações de trabalho seria um dos principais. Para se assumir, no entanto, este propalado “fim da Era Vargas”, uma das implicações era a aceitação de um significado básico e único para este suposto período jurado de morte, qual seja o da intervenção do Estado na economia e na sociedade como método de ação que vise a um suposto progresso, o desenvolvimento e a justiça social. De posse desta interpretação, teríamos a superação do intervencionismo pela liberalização ou “flexibilização” das relações sociais, se concebidos como disputa de ideias etéreas, destituindo-as de suas historicidades, para fundamentar uma polarização entre o que é decretado velho e o que se diz novo. Ou talvez ainda, retomando as discussões e justificativas que pontuaram a construção da “Era Vargas” — quando um dos inimigos em voga era justamente o liberalismo —, poderia até ser conjecturado que o atual momento marca um “ajuste de contas” promovido, agora, pelos primeiros derrotados. Pensando, porém, como possibilita outra parte da historiografia, aquela “Era Vargas” enquanto uma intervenção da classe governante no sentido de manter ou ampliar a dominação(9) — talvez a partir de outros moldes —, o que se apresenta não é uma novidade, mas (desculpem-me pela redundância) um duradouro C (9) Evidentemente, não são necessários grandes “recuos” históricos para se vislumbrar as imposturas do discurso em voga. No caso, por exemplo, da pregada não intervenção do Estado na economia, fica patente em situações como as do PROER (sigla para o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, implantado em 1995, mas que seria interpretado por amplos setores da sociedade como socorro indiscriminado a bancos dilapidados) que a velha e reticente pergunta continua cabível: não se intervir para quem? No caso do PROER, por ex., dados do Banco Central de fevereiro de 2002, apontavam um prejuízo para os cofres públicos de mais de R$ 10 bilhões. Cf. Folha de S. Paulo, p. B1, 17.2.2002. 13 4658.5 Processo de Constituição.pmd 13 24/09/2012, 16:06 “continuismo”. “Continuismo” que se repete mesmo na fórmula inicial: a tentativa de propagandear um marco, uma ruptura com o passado e com a história, anunciar-se como novo ante um inimigo da sociedade, do progresso ou, num termo mais contemporâneo, da modernidade — algo feito à exaustão por aquela era, pretensamente moribunda(10). Assim, o mote também permanece: para conservar é preciso mudar sempre. No caso, os mecanismos que perpetuam a dominação, o que redunda, invariavelmente, no seu aprofundamento, compensado, politicamente, pelas “LBAs”(11) ou “Comunidades Solidárias”(12), espécies de “degraus” que mantêm o nariz dos atolados acima do nível da total submersão. Num sentido político, estas compensações assemelham-se aos ataques à legislação trabalhista: a necessidade da classe dominante de atrofiar qualquer mobilização opositora e de resistência, a exemplo do que já foi implementado em relação a outras formas(13). Ainda mais se voltarmos àquela dimensão de “massa” que atinge os processos trabalhistas, embora bastante longe do número dos “cidadãos” das cestas básicas e que, numa linha de construção de consensos, sejam muito mais oportunos e, quando necessária, sua “cassação” seja mais tranquila. Ou ainda, novamente recorrendo aos termos do momento, numa otimização de recursos, pois cestas básicas seriam muito mais baratas que processos trabalhistas. C (10) Sobre a prática propagandística no Estado Novo ver, dentre outros, CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em cena; GOULART, Silvana. Sobre a verdade oficial; GOMES, Ângela de C. A invenção do trabalhismo. (11) LBA sigla de Legião Brasileira de Assistência, órgão do governo federal fundado em 28 de agosto de 1942 e extinto em 1º de janeiro de 1995. Tinha como objetivo a assistência às famílias carentes e era presidida pelas primeiras-damas. (12) Comunidade Solidária foi um programa criado pelo governo federal brasileiro por meio do Decreto n. 1.366, de 12 de janeiro de 1995. Vinculado à Casa Civil da Presidência da República e presidido pela primeira-dama Ruth Cardoso, integrava a Rede de Proteção Social. Este programa foi encerrado em dezembro de 2002, substituído pelo Programa Fome Zero. (13) Vide, neste sentido e por exemplo, as medidas adotadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em maio de 1995, em relação à greve dos petroleiros, na qual funcionários foram demitidos (inclusive dirigentes sindicais, que teriam direito à estabilidade) bem como aplicação de multa de R$ 100 mil para cada dia de paralisação, após à sentença da Justiça do Trabalho, que declarou a greve abusiva. Tais medidas acabaram por contribuir para o desmantelamento da organização, a ponto de somente em 2001 a categoria voltar a se mobilizar massivamente e reivindicar perdas salariais. Os dirigentes sindicais seriam anistiados somente em outubro de 2001, através de medida do Congresso Nacional. 14 4658.5 Processo de Constituição.pmd 14 24/09/2012, 16:06 8 Parece-me, porém, que a falha aqui é do historiador. Cobrar a historicidade dos argumentos, o que significaria inseri-los no movimento da sociedade, tentando pautá-los nas intrincadas teias formadas pelos debates que marcam o fazer-se das relações sociais, seria querer também a superação de outra herança imputada à “Era Vargas”: o corporativismo, na sua dimensão de especialização profissional. Neste caso, historicizar seria o papel do historiador e não de outros agentes sociais, ainda mais em meio a disputas, quando o ocultar ou silenciar outros sentidos e propostas — estabelecendo um estado de “única possibilidade” ou o “ou é isso ou a crise” — torna-se o tom sobre o qual se elegem inimigos, definem-se os campos de luta e se firmam as pretensas vitórias. Então, tentando fazer a parte que me cabe, a primeira possibilidade que se apresentou para me imiscuir neste debate, partindo da temática apontada antes, foi buscar aprofundar o contato com o que me havia compelido à investigação — os processos trabalhistas —, articulando este trabalho a uma discussão com a produção historiográfica. E, neste diálogo, a preocupação básica era com significados constituídos pelos trabalhadores no que se refere à JT; o que pretendiam, pensavam, desejavam estes sujeitos em relação àquele espaço, tido agora por muitos como superado, a despeito da recorrente e massiva procura de que é alvo. Dito de outra forma, que elementos eram vividos e experimentados pelos trabalhadores que os compeliam, motivavam e os faziam acreditar ou avaliar que alguma solução aos problemas explicitados no ambiente de trabalho seriam equacionados na IJCJJ? Uma evidência desta avaliação realizada pelos “reclamantes” já se colocava explicitamente ali materializada, como ressaltei no início, nas dezenas de metros cúbicos de papel amontoados no porão do Museu. Uma evidência que, pela expressividade assumida, transformava-se, naquele momento, no primeiro desafio da pesquisa: quais processos deveriam ser investigados? Após a leitura dispersa de dezenas de processos, adotei alguns critérios, visando a delimitar a leitura: começaria pelos processos mais antigos e de trabalhadores das indústrias têxteis e metalúrgicas. Tais critérios não eram de todo aleatórios. De fato, o critério da antiguidade apontava uma crença cronológica de que, percorrendo o caminho crescente dos anos, este me revelaria algumas mudanças, o que não se mostrou de todo infundado. A opção pelos trabalhadores têxteis e metalúrgicos firmava-se numa observação geral — diria que pautada numa percepção firmada ao longo dos anos como morador de Jundiaí — da trajetória que estes setores haviam tido na região nas décadas de 1940 a 1960: as indústrias têxteis, com uma tradição mais longa(14) e que entram em decadência a partir da década de 1950(15), quando as metalúrgicas aumentaram sua participação na produção industrial(16), substituindo as têxteis. C (14) Algumas indústrias do setor têxtil haviam se implantado em Jundiaí já antes da década de 1940, tais como a Tecelagem São Bento (fundada em 1874, com 850 funcionários em 1960) e a Argos Industrial (fundada em 1913 e com 1.150 funcionários em 1965). (15) Na década de 1950, 14 empresas compunham o setor têxtil em Jundiaí, ao qual se ligavam (entre funcionários e seus familiares) perto de 20 mil pessoas. Em 1999, restavam duas empresas. (16) Grandes indústrias do setor metalúrgico implantaram-se na região, a partir do final da década de 1940, inclusive multinacionais, tais como a Vigorelli do Brasil S.A. (fundada em 1947, com 2.200 empregados em 1970), Krupp Metalúrgica Campo Limpo S.A. (fundada em 1959, com 3.150 15 4658.5 Processo de Constituição.pmd 15 24/09/2012, 16:06 Essa observação, em linhas gerais, parece inclusive reproduzir uma concepção de industrialização, demarcada pela historiografia nas décadas de 1940 a 1960 principalmente, que concebe aquele processo como pautado na diversificação da produção industrial e crescimento da participação de grandes empresas em detrimento das pequenas, além da implementação de mudanças tecnológicas e na composição da mão de obra. Em linhas gerais, esse processo é identificado com as chamadas “substituição de importados” e/ou com a “mudança na divisão internacional do trabalho”. Tomados estes aspectos gerais, poder-se-ia afirmar que os processos trabalhistas viriam a confirmar e fortalecer aquela interpretação, inclusive em alguns dos seus desdobramentos temáticos, tais como a “urbanização” da sociedade brasileira, razão elencada, por exemplo, para a “alienação política” e “submissão” do operariado brasileiro, tendo em conta sua “tradição rural” e, consequentemente, seu desligamento de instituições políticas (leia-se partidos e sindicatos). De fato, no conjunto de processos analisados, firma-se uma imagem das dificuldades vividas pelo setor têxtil, que poderia ser identificada na sua inadequação às mudanças tecnológicas, na adoção de ritmos de trabalho e produção que lhe garantisse a existência. Esta situação pode ser lida na natureza dos processos que envolvem as empresas têxteis: atraso e redução de salários, mudanças nas jornadas de trabalho, decorrentes de queda nas demandas da produção, de falências e concordatas. Estes processos envolviam vários trabalhadores, quando não a empresa toda. No setor metalúrgico, os processos trabalhistas, proporcionalmente ao setor têxtil, eram em menor número. Neste setor, as ações contrapunham, invariavelmente, as empresas aos trabalhadores individualmente, envolvendo dissídios — como as Juntas denominam, preferencialmente, os conflitos — tais como pedidos de equiparação salarial entre dois trabalhadores, a não aceitação de punições impostas aos empregados e demissões enquadradas pelas empresas na “justa causa”. C empregados em 1970), Sifco do Brasil S.A. (fundada em 1958, com 1.850 funcionários em 1970), estas duas últimas ligadas ao setor automobilístico. (17) RODRIGUES, Leôncio Martins. História geral da civilização brasileira, v. 10, p. 510. 16 4658.5 Processo de Constituição.pmd 16 24/09/2012, 16:06 8 Estas ocorrências, conjuntamente aos processos motivados por falências de pequenas empresas, poderiam apontar — reportando-me a uma análise geral da sociedade — uma reorganização do setor metalúrgico, como indica, por exemplo, Leôncio Martins Rodrigues(17), que identifica, nas décadas de 1950 e 1960, um processo no qual se consolidam as grandes empresas, e as “tradições rurais” dos trabalhadores configuravam-se como um entrave às disposições ditadas pela produção industrial. Esta visão panorâmica dos processos, por vezes, obliterava, ao pesquisador, a diversidade de situações que levavam os trabalhadores à JT. Com relação a isso, o enquadramento legal das reivindicações sugeria um procedimento que equacionava na letra da lei motivações, sentimentos, expectativas e perspectivas múltiplas, muitas vezes contrapostas entre si. Num certo sentido, o enquadramento legal se assemelha às formulações estatísticas: busca-se um denominador comum entre realidades diferentes. Contrapondo-se esta “totalização” a uma demissão por justa causa, uma alteração na jornada de trabalho, um pedido de equiparação salarial etc., articulavam-se diferentes demandas decorrentes dos modos como se dava a inserção dos trabalhadores e das empresas nos processos sociais mais amplos, o que incluía as alternativas buscadas para o enfrentamento ou acomodação diante daquelas demandas. E aqui, a atuação dos sujeitos parecia boicotar qualquer tentativa de generalização, seja nas formulações de interpretações pelos advogados, seja nas construções de justificativas que determinam sentenças por parte dos juízes, seja na busca de um direito sentido como desrespeitado pelo trabalhador ou, ainda, na construção de um que resolva, no espaço da Justiça, problemas que suplantam aquilo que se entende como sua jurisdição; sem me esquecer do empregador que tenta erigir fronteiras dentro das quais possa “jogar” com a legislação. Neste momento, a lei e o direito, noções que nas experiências observadas, definitivamente, não são sinônimas, perfazem um campo de lutas no qual ocorrem a legitimação e o convencimento — que definem o justo, o legal e o que é direito, enfim, o que é reivindicado e o que é defendido —, são forjados pelos personagens envolvidos, permeados por elementos que se articulam ao universo das relações sociais e neste se embasando, portanto. Assim, o que pode ser conceituado, em princípio, como uma arbitrariedade, pode consolidar-se a partir de consentimentos, apontando que o exercício da dominação não é “uma rua de mão única”. Ligada a estas considerações, a própria documentação produzida pela IJCJJ assumia outro significado para a pesquisa: os processos trabalhistas, vistos até então como pontos de partida, passam a ser considerados também como lugar de convergência de experiências, tendo em conta aquela permeabilidade pelo social que constitui a disputa jurídica. Esta mudança “geográfica” dos processos trabalhistas compelia a buscar no social aquilo cuja “ponta” aparecia na documentação, reinserindo-a na mobilidade que lhe dera origem, superando uma imagem de estabilidade que ela passa. C De fato, um contato inicial com os processos trabalhistas pode levar à sensação de que a documentação reproduz unicamente a uniformidade de procedimentos prescritos pela norma jurídica e constante da CLT: 17 4658.5 Processo de Constituição.pmd 17 24/09/2012, 16:06 “Art. 845. O reclamante e o reclamado comparecerão à audiência acompanhados das suas testemunhas, apresentando, nessa ocasião, as demais provas. Art. 846. Aberta a audiência, o juiz ou presidente proporá a conciliação. § 1º Se houver acordo lavrar-se-á termo, assinado pelo presidente e pelos litigantes, consignando-se o prazo e demais condições para seu cumprimento. § 2º Entre as condições a que se refere o parágrafo anterior, poderá ser estabelecida a de ficar a parte que não cumprir o acordo obrigada a satisfazer integralmente o pedido ou pagar uma indenização, convencionada, sem prejuízo do cumprimento do acordo. Art. 847. Não havendo acordo, o reclamado terá vinte minutos para aduzir sua defesa, após a leitura da reclamação, quando esta não for dispensada por ambas as partes.” Dentro disso, os processos, enquanto produção do Judiciário, parecem simplesmente organizar, numa série de documentos, a sequência dos trabalhos que constituem uma ação judicial. Esta sequência, num primeiro olhar, poderia ser confundida, delimitada ou considerada como atinente, exclusivamente, ao funcionamento burocrático da instituição. Ou seja, ao termo de reclamação seguem-se o termo de audiência, as contestações das partes, a ata de julgamento e o termo de conclusão, documentos que, permeados por uma série de outros (como certidões de convocação, atestados, contracheques, cartões de ponto, selos e guias de recolhimento), aparecem numa ordem fixa, estabelecendo um roteiro linear com começo, desenrolar e fim. Tal percepção da constituição dos processos parecia, inicialmente, fundamentar uma interpretação de que a JT configurara-se enquanto um dos mecanismos de controle consolidado no Estado Novo que, deste modo, buscava trazer para si a exclusividade na resolução dos conflitos trabalhistas, fazendo frente a qualquer formulação, tanto do empresariado quanto dos trabalhadores, de alternativas que apontassem alguma autonomia em relação ao governo neste campo. Perceber de que maneira as instituições judiciais e de governo articulavam interesses e preocupações de controle e dominação nas suas ações, ainda que significativo, parecia conformar uma restrição da disputa judicial à instituição que a organizava ou às intenções dos “idealizadores” da JT, o que se contrapunha àquela noção de inserção no social que se formara em relação aos processos trabalhistas. C “Se supomos que o direito não passa de um meio pomposo e mistificador através do qual se registra e se executa o poder de classe, então não precisamos desperdiçar nosso tempo estudando sua história e formas. 18 4658.5 Processo de Constituição.pmd 18 24/09/2012, 16:06 8 Em relação a isso, vale novamente a provocação de E. P. Thompson, formulada a partir de pesquisa sobre as práticas e significados da Lei Negra na Inglaterra do século XVIII, quando diz que: Uma lei seria muito semelhante a qualquer outra, e todas, do ponto de vista dos dominados, seriam Negras.”(18) Assim, a inserção das ações trabalhistas no conjunto das relações sociais, do fazer-se da legislação e da JT, tendo em conta os significados que esses temas assumiram para os trabalhadores, firmava-se como fio condutor da pesquisa. Como desdobramento desta consideração, delineava-se, então, uma perspectiva de que mais significativa do que o estabelecimento de critérios exteriores (como a antiguidade da ação ou a categoria do reclamante) era a articulação da documentação às questões e temática a serem investigadas, o que definiria o limite numérico dos processos trabalhistas a serem investigados, bem como as categorias de trabalhadores. Neste sentido, os documentos, antes que provas que atestam verdades ou definem realidades, ofereciam-se como oportunidades de se estabelecer um diálogo com algumas experiências, as quais se evidenciavam como inumeráveis, levando-se em conta o conjunto massivo de processos trabalhistas. Importante frisar que estas percepções se beneficiaram também do contato com outras documentações, sendo que os relatos orais de trabalhadores, advogados e funcionários da IJCJJ foram uma primeira opção vislumbrada, dada a possibilidade de contatar algumas das pessoas que apareciam nos processos. Estes possíveis entrevistados se apresentavam, então, como portadores privilegiados de elementos capazes de informar as omissões e “quebrar” os silêncios percebidos na documentação escrita, viabilizando uma leitura “nas entrelinhas” daquela documentação, além de possibilitarem a construção dos significados daquelas práticas. A escolha desses entrevistados pautara-se, também e inicialmente, num desdobramento dos critérios utilizados para a seleção dos processos trabalhistas apontados antes, além da disponibilidade e viabilidade do contato, o que me poupou, no início da pesquisa, da preocupação com outros critérios de seleção. Assim, foram entrevistadas 14 pessoas (4 advogados, 2 funcionários aposentados e 8 trabalhadores). Dentre essas, foram utilizadas neste texto 15 entrevistas, sendo 10 trabalhadores, uma funcionária aposentada da IJCJJ e 4 advogados. C Para além de uma mera lista, estas entrevistas tiveram sua definição na própria construção dos caminhos da pesquisa. Ora eu as buscava para investigar questões, ora eram as experiências que as levantavam e delineavam os percursos. Nesta dinâmica, por vezes, sentia que a situação se invertia: o selecionado era o entrevistador e não o entrevistado. (18) THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores, p. 354. 19 4658.5 Processo de Constituição.pmd 19 24/09/2012, 16:06 Porém, de maneira geral elas se ligam àquela noção de articular a ação judicial ao conjunto das relações sociais. E, neste sentido, dentre os trabalhadores foram entrevistados aqueles que vivenciaram a experiência do trabalho fabril, em Jundiaí, entre as décadas de 1940 e 1960, e naqueles setores já definidos acima. Deste modo, cinco atuaram nas indústrias metalúrgicas e quatro nas têxteis. Entre os têxteis, duas trabalhadoras — dona Cacilda Rechia Signorini e dona Dionirce Elias Matias — viveram o processo de falência da Indústria de Fiação e Tecelagem Jundiaí, ocorrido entre 1964 e 1967, experiência que se constituiu, para ambas, na única passagem pelo setor industrial. Além disso, suas experiências permitiam o contato com um elemento marcante no setor têxtil, qual seja a presença quase majoritária de trabalhadoras, possibilitando a discussão de alguns significados que esta particularidade do setor apontava, tais como a especificidade do vínculo com as empresas, quando confrontada com os trabalhadores e o lugar ocupado pelo trabalho fabril na vida daquelas entrevistadas. Numa lista de quase duas centenas de trabalhadores que viveram aquela situação, elas foram, entre outras contatadas(19), as que se disponibilizaram, superando as suspeitas imediatas quanto às intenções do entrevistador(20). Os outros dois trabalhadores têxteis — os srs. Onofre Canedo e Antonio Galdino — estiveram ligados ao setor têxtil por três décadas (entre 1942 e 1970, aproximadamente) conjuntamente à militância e direção sindical e ao Partido Comunista Brasileiro, o que lhes proporcionou, ao contrário das outras entrevistadas, passagens por diversas tecelagens. Conhecidos, em Jundiaí, pela militância partidária e no movimento dos aposentados, entrevistá-los significava a possibilidade de tomar contato não só com as mudanças na composição industrial e da cidade de Jundiaí como um todo, mas também com aspectos dos entrelaçamentos das ações sindical e jurídica do período. C (19) A localização dos entrevistados (exceção feita aos srs. Armando Tancredi, Onofre Canedo, Antonio Galdino e José Expedito Varussa) viabilizou-se pela consulta à lista telefônica, seja diretamente com identificação do entrevistado, seja pela identificação de um parente com o mesmo sobrenome. (20) Esta suspeita render-me-ia, no caso de D. Cacilda, a entrevista de seu marido, o sr. José Signorini — trabalhador metalúrgico entre as décadas de 1950 e 1980 —, que de acompanhante transformou-se também em entrevistado. 20 4658.5 Processo de Constituição.pmd 20 24/09/2012, 16:06 8 Dentre os trabalhadores das indústrias metalúrgicas, a referência inicial era buscar as experiências daqueles que se envolveram em processos trabalhistas nos quais se evidenciavam conflitos em relação à constituição da “mão de obra” naquela produção em crescimento na cidade, como os casos de insubordinação (srs. Nelson Inório e Benedito Censi) e em relação à qualificação profissional (srs. Geraldo Rossi e Armando Tancredi). Estes elementos iniciais — ligados à constituição dos trabalhadores das metalúrgicas — foram articulando-se à presença de uma situação bastante comum neste setor, qual seja o do deslocamento de outras regiões para Jundiaí, para o que, além das entrevistas dos srs. Rossi e Tancredi, aos dos srs. José Signorini e José Expedito Varussa foram significativas, evidenciando o papel da qualificação profissional como um valor forjado entre estes trabalhadores — inclusive como critério de valorização ou desqualificação da empresa por eles — e que aparecia constantemente nos processos como um fator ponderado nas disputas. Completando as opções de entrevistas formuladas ao longo da pesquisa, figuram os advogados e D. Alcina Rivelli, funcionária aposentada da IJCJJ, na qual atuou de 1945 a 1983, inicialmente como escriturária e, a partir de meados da década de 1950, como diretora da secretaria daquele órgão. Tal trajetória, como se confirmou depois, apresentava-se por si só significativa para pesquisa no sentido de se levantar os elementos dos “bastidores” de um processo, assim como o próprio consolidar da instituição na região a partir do olhar de quem fez da JT a totalidade de sua vida profissional. Através dos advogados, especificamente, busquei acompanhar e levantar aspectos de algumas experiências que saltavam dos processos no que se refere à atuação destes profissionais. Uma delas deu-se em relação à Frente Nacional do Trabalho (FNT), organização fundada por Mário Carvalho de Jesus no final da década de 1950 e ligada à Igreja Católica, que atuou durante parte das décadas de 1950 e 1960 na região da IJCJJ, assessorando sindicatos e empresas nas relações trabalhistas, o que, por vezes, desembocava nos processos trabalhistas. Os drs. Cillas D’Angieri e Oscar Panizza incluíram-se nesta situação, no início de suas carreiras, o que me levou, inicialmente, a entrevistá-los. Os demais advogados entrevistados — os drs. Gustavo Marissael Campos e Alberto Ruppert — foram contatados tendo em vista suas atuações nos sindicatos dos têxteis e metalúrgicos. Particularmente em relação a este último, a entrevista destes advogados firmou-se como uma das poucas referências internas à instituição, principalmente dada a recusa de ex-dirigentes daquele sindicato em concederem entrevistas, além da ausência de outras formas de registro. O trabalho com entrevistas orais suscita questões e discussões, muitas das quais têm envolvido um significativo número de pesquisadores nos últimos anos. Questões ligadas às formas de interpretação, à representatividade e às maneiras como os entrevistados operam a construção da memória revelam as possibilidades, riqueza e dificuldades desta documentação. Particularmente nesta pesquisa, o desafio maior senti na articulação entre as diferentes documentações, escrita e oral, não atribuindo a nenhuma delas um simples papel complementar em relação à outra, mas percebê-las nas suas diversidades e como respostas às diferentes situações. C Na pesquisa, aquela não complementaridade se explicitava constantemente. Se, quando da busca das entrevistas, a motivação foi a possibilidade de enfrentar os limites presentes na documentação escrita — visando, por exemplo, à 21 4658.5 Processo de Constituição.pmd 21 24/09/2012, 16:06 desconstrução dos processos trabalhistas no que se refere aos significados que tinham para os envolvidos na sua realização —, uma vez realizadas as primeiras entrevistas, percebi a pertinência de também se realizar o caminho inverso. Ou seja, desmontar a narrativa a partir do que havia sido percebido no processo. E aqui, há que se notar que o uso do termo “desmontar” ou “desconstruir” refere-se à intenção de investigar e interpretar os meios e mecanismos presentes na montagem tanto dos processos quanto das entrevistas, não significando a intenção de “pegar” os erros e mentiras, enquanto fatores que atestariam a qualidade ou fidelidade da documentação. Apontaria, porém, que o contato e o envolvimento com aquelas discussões não deixam incólumes as posições assumidas em relação às outras fontes; concatenar as questões, envolvendo as entrevistas orais com outras linguagens materializadas em outras fontes, é inevitável(21). Dentre outras, a apreensão da dimensão dialógica e de prática social que permeia o fazer-se das linguagens influenciou sobremaneira a interpretação das fontes. Ao mesmo tempo, a leitura dos processos trabalhistas na contraposição ou informados pelas entrevistas indicava dimensões imperceptíveis e mesmo ausentes no material produzido na Junta, revelando, por um lado, os intrincados jogos que se imiscuem na montagem de uma ação judicial e, por outro, o não enquadramento da amplitude dos conflitos e expectativas dos seus proponentes na produção processual. Em relação a isso, aquela mudança “geográfica”, referida antes, implicava a noção de que pensar os significados da JT para os trabalhadores representava também considerar os processos trabalhistas como um ponto a partir do qual seria possível pensar processos mais amplos vividos por aqueles sujeitos tais como a migração, a industrialização e a urbanização. C (21) Este trabalho com as narrativas orais beneficiou-se dos debates produzidos por autores como Alistair Thompson, Alessandro Portelli e Raphael Samuel, os quais buscam apontar a construção da memória como algo que se faz na seletividade e na elaboração de diferentes momentos e significados, num diálogo — por vezes conflituoso — entre a experiência vivida e o presente onde se constitui a narrativa. Pensam, assim, a narrativa como algo produzido pelo trabalho da memória que articula informações, constituindo relações e dissociações entre os sujeitos e classes, tornando possível estabelecer perspectivas quanto ao futuro. Nesta construção, de modo similar à prática do historiador, fato e interpretação são faces da mesma moeda e, portanto, indissociáveis. Neste sentido, estes autores se contrapõem aos que atribuem à memória uma mera função orgânica, um automatismo corporal ou um “hábito” (BERGSON) como algo “puro” (CONNERTON), como mero receptáculo “redutível a um pacote de recordações, já previsto e acabado”, na crítica de Ulpiano Bezerra. 22 4658.5 Processo de Constituição.pmd 22 24/09/2012, 16:06 8 Na maneira como os entrevistados construíam suas trajetórias, pude evidenciar as teias de relações e situações às quais se articulavam e nas quais se constituíam as ações trabalhistas, expressas, por exemplo, no esquecimento de detalhes ou mesmo das questões envolvidas naquelas disputas e no modo fragmentado como reconstituíam aquelas experiências. Para os trabalhadores que conseguiam detalhar os processos trabalhistas, estes se destacavam e cresciam em significado na memória por meio das relações com as situações vividas na família, nos bairros e nas fábricas, demarcando sentido que assumiram em suas vidas o trabalho, as empresas e o deslocamento para Jundiaí. Vale frisar novamente, nesta contraposição entre as entrevistas orais e os processos trabalhistas, que não concebo estas diferentes documentações, constituídas a partir de diversas linguagens, como incompletas. O que as revestem, por vezes, deste significado são as questões formuladas ou a perspectiva que tem o historiador das documentações com que trabalha. Entendendo as linguagens como práticas sociais, as quais incorporam saberes específicos e comprometidos com os grupos e indivíduos que se utilizam e se constituem delas e se fazem nelas(22), caberia neste trabalho buscar construir as condições de suas produções, as demandas a que respondiam, tentando estabelecer a mobilidade do seu próprio fazer-se, tendo em conta as dimensões e particularidades dos embates nas quais elas se inseriam. Neste sentido, as linguagens expressam leituras feitas por seus autores da realidade, leituras estas permeadas por intenções, perspectivas, demandas, necessidades, pressões etc. vividos pelos sujeitos nos processos em que se inserem. Na intenção e necessidade de investigar tais contingências, vi-me compelido a estender o corpus documental para além das entrevistas, o que me levou a buscar outras fontes e interlocutores tais como os Boletins do Ministério do Trabalho, as revistas Legislação do Trabalho (LTr) e Arquivos do Instituto de Direito Social, jornais locais (A Comarca, O Jundiaiense e A Folha), o jornal do Partido Socialista (A Folha Socialista), publicações da Frente Nacional do Trabalho (FNT) e de seu fundador, o advogado Mário Carvalho de Jesus, além de bibliografia específica sobre o direito do trabalho e a JT produzida por juristas. Cada um destes documentos foi entendido como expressão de práticas e posições de grupos e classes, tais como empresários, juristas, advogados, membros dos governos e organizações de classe, que se colocavam em relação às experiências vividas pelos trabalhadores. Ao mesmo tempo, articulavam-se no diálogo provocado, muitas vezes, pelas próprias fontes. Um exemplo disso é o material do Partido Socialista e da FNT. A investigação de ambos decorre dos elementos evidenciados nos processos trabalhistas e nas entrevistas de advogados. C No caso do A Folha Socialista, a investigação nesta documentação deu-se a partir das constantes referências feitas pelos advogados entrevistados e que eram formados, na década de 1950 e 1960, na PUC de Campinas, as quais apontavam a (22) Neste aspecto, foi importante para a pesquisa o diálogo com Raymond Williams, em Marxismo e literatura. 23 4658.5 Processo de Constituição.pmd 23 24/09/2012, 16:06 atuação do Partido Socialista naquela instituição, principalmente no diretório acadêmico. A Folha Socialista, publicação mantida pelo partido no Estado de São Paulo e no que se refere especificamente à legislação trabalhista, mantinha uma coluna a qual esclarecia aos leitores aspectos daquela lei, embora, como apontavam as entrevistas, sua atuação não se restringia a isso, buscando inclusive a adesão dos advogados como militantes, os quais atuariam, principalmente, a partir da legislação trabalhista. Com relação à FNT, a sua atuação era “mais explicita” em Jundiaí. Constantemente, nos processos, os termos de abertura vinham acompanhados de cartas dos advogados que traziam o timbre da organização. Sua atuação se dava, inicialmente, numa linha de conciliação, sendo que, para isso, os advogados assumiam uma posição central, prestando assessoria aos trabalhadores (inclusive constituindo os depar-tamentos jurídicos dos sindicatos), bem como, e conjuntamente, às empresas. As publicações da FNT eram variadas (boletins, artigos em jornais, cadernos de formação etc.) e visavam àquela atuação, direcionando-se ora especificamente aos advogados (seu fundador, o advogado Mario Carvalho de Jesus, inclusive, escrevia com frequência na Revista LTr), ora diretamente aos trabalhadores. Assim, tal diversidade de documentação e sujeitos firmou-se, repito, como desdobramento daquela percepção de que as disputas judiciais, bem como a própria constituição das instituições e demais espaços (cidade e fábrica, por exemplo) davam-se no bojo de um conjunto de relações e práticas sociais. Dentro desta perspectiva, pareceu-me lógico, ao longo da pesquisa, que falar dos trabalhadores implicava estabelecer também experiências de outros grupos e classes, uma vez que o fazer-se daquela classe se dava também enquanto relação e contraposição aos interesses que lhe eram adversos e que marcam as posições de outros grupos e classes. A própria divisão dos capítulos que formam este trabalho decorre desta tentativa de investigar as teias de relações que permearam o fazer-se das experiências dos trabalhadores em relação à IJCJJ, buscando uma sistematização que contemplasse os temas que a elas se articulam. C O segundo capítulo, “Construindo práticas, relações e expectativas: sindicatos, advogados e trabalhadores”, a partir da consolidação da IJCJJ, busca acompanhar e discutir alguns elementos que informaram as experiências dos trabalhadores em relação à atuação de advogados, sindicatos e da própria instituição judicial, acompanhando e refletindo sobre as diferentes tendências e formações constituídas entre 24 4658.5 Processo de Constituição.pmd 24 24/09/2012, 16:06 8 Assim, no primeiro capítulo, “Debates instituintes: perspectivas em confronto na implantação da Justiça do Trabalho”, numa espécie de introdução, viso a acompanhar e a analisar alguns debates que pontuaram a constituição da Justiça do Trabalho no Brasil, perseguindo as posições firmadas por diferentes grupos e sujeitos a partir da década de 1930, além de discutir interpretações estabelecidas pela historiografia em relação ao tema. aqueles sujeitos, tais como as ligações com a Frente Nacional do Trabalho e o Partido Socialista Brasileiro, organizações que militavam e assessoravam os trabalhadores e os sindicatos na região. A intenção, assim, é acompanhar os modos como se forjavam estratégias e perspectivas de atuação na JT num sentido mais restrito, qual seja, as que estavam ligadas às instituições e aos sujeitos que nelas atuavam. Na confrontação de diferentes trajetórias e perspectivas, torna-se possível interpretar as mudanças nos significados em relação à atuação dos advogados e dos sindicatos por parte dos trabalhadores. O terceiro capítulo, “Trabalhadores e legislação em construção na ‘cidade industrial’”, constitui-se a partir da investigação da vivência por parte dos trabalhadores de algumas dimensões de processos conceituados pela bibliografia como “industrialização” e “urbanização”. Partindo dos processos trabalhistas, busco pensar as disputas judiciais como pontos de convergência de temas e questões que se ligaram àquelas situações, tais como os deslocamentos de regiões por parte dos trabalhadores, a redefinição dos espaços em Jundiaí e a construção de ritmos e disciplinas de trabalho na cidade, o que incluía a construção de significados sobre os “vínculos empregatícios”. O quarto capítulo, “Processos trabalhistas e a construção de relações fabris”, partindo do reordenamento da produção industrial em Jundiaí — quando se verifica uma ascensão das metalúrgicas e a redução significativa do setor têxtil —, tem como objetivo discutir maneiras como os trabalhadores, tendo como ponto de partida as ações trabalhistas, viveram e enfrentaram este processo, permeado por novas exigências de qualificação profissional e de ritmos de trabalho. Se no terceiro capítulo, tento discutir as experiências dos trabalhadores em relação à cidade, neste capítulo busco pensar as disputas judiciais a partir do ambiente fabril, das relações e perspectivas constituídas em relação ao trabalho e da atuação profissional na fábrica. A valorização profissional e o significado da competência profissional que, por exemplo, informavam também os trabalhadores em relação à valorização ou não da empresa, definindo a troca de emprego; a recusa ou a formulação de estratégias de enfrentamento no espaço judicial pautadas na camaradagem e solidariedade; a alteração nos ritmos de trabalho e a percepção quanto ao papel do trabalhador na produção e na construção da fábrica; e os referenciais de justiça e de direito constituídos não tanto em relação à legislação, mas aos costumes estabelecidos na experiência do trabalho, são alguns dos aspectos evidenciados nos confrontos judiciais e que serão discutidos neste quarto capítulo. C 25 4658.5 Processo de Constituição.pmd 25 24/09/2012, 16:06 4658.5 Processo de Constituição.pmd 26 24/09/2012, 16:06 PREFÁCIO A JUSTIÇA DO TRABALHO NA ÓTICA DOS TRABALHADORES “Contra a ditadura financeira”; “Os ricos que paguem”; “Não somos mercadorias”; “Não ao retrocesso trabalhista e social”; “Não à reforma trabalhista. Injusta. Inútil. Ineficaz”. Estas são algumas das bandeiras e palavras de ordem que mobilizam centenas de milhares de trabalhadores em relação à chamada crise do euro neste início da segunda década do século XXI. E, sem dúvida, elas sinalizam para o centro da crise do capitalismo contemporâneo, o sistema financeiro, e para a solução proposta pelos organismos internacionais e governos europeus, a penalização dos trabalhadores. Na grande parte dos países em crise as soluções propostas atendem pelo nome de reforma trabalhista. Conquistas e direitos trabalhistas alcançados em séculos de lutas são, de um dia para o outro, banidos da ordem institucional em nome da estabilidade financeira; os direitos sociais e a construção histórica da “sociedade do Bem-Estar”, apontados como os grandes vilões do momento. Também no Brasil, nas décadas recentes, de tempos em tempos, o “mercado” e o sistema político retomam a discussão e as propostas sobre os supostos altos custos do trabalho e sobre a necessidade da reforma trabalhista. Propostas de flexibilização dos direitos dos trabalhadores, chamados de direitos sociais, de diminuição do “custo Brasil” via modernização das relações de trabalho apontam o teor das propostas que pretendem anunciar o fim da “era Vargas” no país. Tais formulações, na maioria das vezes, omitindo o fato de que também no Brasil a implantação da Justiça do Trabalho em 1941, assim como a Consolidação da Legislação Trabalhista em 1943, sucedem a um longo processo de lutas e conquistas de direitos por parte dos trabalhadores, clamam pela extinção do que denominam arcabouço legal atrasado e conservador herdado da era Vargas. C Assim, no final dos anos 1990, o Governo Fernando Henrique questionou fortemente estes direitos dos trabalhadores, chegando inclusive a propor a extinção da Justiça do Trabalho. No Governo Lula, teve destaque a formação do Fórum 27 4658.5 Processo de Constituição.pmd 27 24/09/2012, 16:06 Nacional do Trabalho, uma instância tripartite com o objetivo de discutir as futuras alterações na legislação. Ainda mais recentemente, no decorrer da crise de 2009/ 2011, frente aos chamados desafios da desindustrialização, reaparecem as propostas de flexibilização e modernização das relações de trabalhistas e de diminuição dos custos da folha das empresas. Não obstante todas estas investidas, constituindo-se como campo de disputa no qual se confrontam diferentes projetos sobre as relações capital/trabalho no Brasil, a Justiça do Trabalho tem logrado resistir às propostas de sua completa reformulação ou mesmo extinção. Pelo contrário, estudos indicam que durante a década de 1990, frente à crescente precarização das relações de trabalho, houve um aumento significativo das reclamações trabalhistas, indicando que a Justiça do Trabalho continuava sendo percebida pelos trabalhadores como espaço para defesa de seus direitos. É esta relação dos trabalhadores com a Justiça do Trabalho que o livro sobre os trabalhadores e a legislação trabalhista do professor Rinaldo José Varussa nos ajuda a entender. Apresentando pesquisa original e inovadora, fazendo das ações trabalhistas materiais centrais de seu processo de investigação, tomando como objeto de estudo o processo inicial de implantação e a atuação da I Junta de Conciliação e Julgamento de Jundiaí-SP, entre as décadas de 1940 e 1960, o autor discute as relações entre as experiências de trabalhadores e trabalhadoras e o funcionamento concreto da Justiça do Trabalho naquele município. C Num primeiro movimento de construção de sua argumentação, retornando a momentos da conjuntura da década de 1930, o autor acompanha os debates que pontuaram a constituição da Justiça do Trabalho no país, identificando projetos, disputas, conflitos e negociações como referências presentes em seu processo de implantação. Trazendo o estudo da Justiça do Trabalho para o campo da História Social, estabelecendo um diálogo crítico com a historiografia sobre o tema, sobretudo com interpretações até hoje largamente adotadas e que concebem a Justiça do Trabalho como mero espaço do exercício da dominação, o texto abre-se para indagações sobre os sentidos da atuação daquela instituição sob a ótica dos trabalhadores. 28 4658.5 Processo de Constituição.pmd 28 24/09/2012, 16:06 8 Diferentemente de vários outros estudos sobre o tema, os quais centram suas análises na arquitetura e construção institucional da Justiça do Trabalho, as indagações de Rinaldo recaem sobre o campo da experiência social, e seu objetivo central é o de estabelecer os significados constituídos pelos trabalhadores em relação à Justiça do Trabalho. Identificando as marcas de uma presença ativa dos trabalhadores naquele espaço que, dentre outros sinais, se traduziu na quantidade expressiva de reclamações trabalhistas apresentadas pelos trabalhadores àquela Junta de Conciliação e Julgamento, o autor interpela trabalhadores indagando sobre os sentidos atribuídos e propósitos, desejos, esperanças por eles depositados na Justiça do Trabalho. Assim, a questão central que organiza a reflexão apresentada neste texto, e que lhe dá um caráter instigante e atual, é: qual justiça e que resultados os trabalhadores esperavam obter quando ingressavam na Justiça do Trabalho com suas reclamações? Na teia de relações que articulam a construção e atuação do espaço da Junta de Jundiaí, ao lado dos trabalhadores e suas demandas por direitos e reparações, o autor faz emergir temas, sujeitos e práticas diferentes daqueles evidenciados na maioria dos estudos sobre o tema. Perseguindo atitudes dos trabalhadores reclamantes em relação à Justiça do Trabalho, indagando sobre expectativas depositadas por eles nas ações trabalhistas, o estudo também evidencia a presença de outros sujeitos e grupamentos sociais no espaço da disputa. Neste feixe de relações sociais que se articula via reclamações, no percurso dos trabalhadores nos diversos momentos das ações trabalhistas, o texto deixa visível as intervenções de advogados trabalhistas e seus coletivos de atuação, sindicatos, partidos políticos e funcionários da recém-criada Justiça do Trabalho, dentre outros. Em outro eixo de reflexão, Rinaldo discute como e de que maneiras as disputas judiciais articulam-se ao conjunto das relações vividas pelos trabalhadores na cidade de Jundiaí naquele período. Aqui os processos trabalhistas, além de ponto de partida da pesquisa, são tomados como lugar de convergência de experiências. No decorrer do texto, no diálogo com as reflexões de E. P. Thompson sobre a natureza social do Direito, o autor nos lembra a cada momento que as relações jurídicas não ocorrem no vazio, mas sim no contexto dos processos e correlações de forças nas quais se articulam. Neste caminho metodológico emergem as ligações entre as disputas judiciais, as experiências dos trabalhadores e os processos de transformação de Jundiaí enquanto cidade industrial. Nas articulações entre as reclamações e o processo de urbanização ganham visibilidade trajetórias de migração, revelando histórias de deslocamentos do interior do Estado de São Paulo ou de outros Estados do país para Jundiaí; as dificuldades da vida no espaço urbano; a dinâmica dos transportes urbanos e presença da ferrovia e das novas rodovias que cortam a região; a questão da moradia, a redefinição de espaços e a formação de bairros e regiões populares; a vida em família e as perspectivas de futuro de criação e educação dos filhos. C Elegendo como interlocutores centrais os trabalhadores e trabalhadoras dos setores têxtil e metalúrgico, setores importantes naquela dinâmica de desenvolvimento da indústria no município, o estudo também nos leva ao chão da fábrica e às dinâmicas de transformação dos processos de produção e das condições de trabalho experenciadas por aqueles sujeitos no período. Nessas articulações, disputas coletivas e individuais nos remetem à falência de pequenas empresas, experiências de aprendizagem do ofício, troca de equipamentos e maquinários, sinalizando os processos de reorganização e modernização do setor industrial. Reclamações sobre questões como a desigualdade das hierarquias fabris, a ausência de registro em carteira, contra punições consideradas injustas e dispensas por Justa Causa, pela redução ou equiparação de jornadas de trabalho, além das reivindicações salariais, emergem nos processos e nas memórias de trabalhadores e outros atores e sinalizam para as articulações entre as disputas judiciais e experiências operárias. 29 4658.5 Processo de Constituição.pmd 29 24/09/2012, 16:06 Em sua redação final, o livro revela um trabalho de reflexão histórica paciente e criterioso em um conjunto de materiais amplo e diversificado. Em cuidadoso trabalho de pesquisa, para além de uma massa considerável de processos trabalhistas lidos e selecionados, a argumentação sobre temas e problemas percorre um conjunto documental composto por uma variedade de materiais que vão desde os Boletins do Ministério do Trabalho, Revistas especializadas da área do Direito do Trabalho, publicações da Frente Nacional do Trabalho, jornais diversos da imprensa regional, textos contemporâneos de juristas e outros atores que revelam disputas em torno da implantação da Justiça do Trabalho até entrevistas orais de personagens que se articularam às disputas na Junta de Conciliação e Julgamento de Jundiaí na época. Centrais ao trabalho de articulação entre os processos e a conjuntura histórica do período, memórias de advogados, ex-funcionários da Junta e trabalhadores reclamantes imprimem uma grande vivacidade à reflexão. Vindo a público inicialmente como tese de doutorado defendida no Programa de História da PUC-SP, o estudo de Rinaldo José Varussa nos traz questões fundamentais para a compreensão das relações trabalhistas entre nós, sobre a conformação histórica da Justiça do Trabalho e, principalmente, sobre os sentidos da presença dos trabalhadores naquele espaço. Tendência crescente nas últimas décadas, sobretudo após a Constituição de 1988, os estudos históricos sobre o mundo jurídico têm se revelado um terreno fértil para indagações da História Social sobre disputas em torno da legislação, sobre a conquista de direitos ou mesmo sobre sua ausência. A abertura de fontes como processos criminais e cíveis tem possibilitado reflexões sobre sujeitos e práticas pouco visíveis em outros materiais. A Justiça do Trabalho e o tema dos direitos sociais e trabalhistas, no entanto, têm sido pouco estudados pelos historiadores. Daí a satisfação em ver publicado este estudo do professor Rinaldo José Varussa que, ao problematizar experiências de trabalhadores, confere historicidade as suas demandas e maneiras de entender o justo, o injusto, o legítimo e o legal. Dando visibilidade às ações de trabalhadores e trabalhadoras, o autor nos lembra que, por maior que tenha sido e seja o efeito de legitimidade deste arcabouço jurídico, seus destinatários não eram e não são pessoas sem história e sem perspectivas e que, com as marcas de suas presenças, eles fizeram da Justiça do Trabalho um dos espaços de disputa por reivindicações e direitos. Heloisa de Faria Cruz Professora do Departamento/ Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP. 8 C 30 4658.5 Processo de Constituição.pmd 30 24/09/2012, 16:06 CAPÍTULO I DEBATES INSTITUINTES: PERSPECTIVAS EM CONFRONTO NA IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO Ao relatar os primeiros anos de implantação da IJCJJ, dona Alcina, funcionária aposentada, estabelece como marco deste processo uma contraposição sentida, na época, em relação à própria Justiça do Trabalho (JT): “Mas no início foi difícil porque... Ah, todo mundo falava: Ah! Essa justicinha, né? Justiça do Trabalho não tinha grande valor. Então, era chamada ‘justicinha’.”(23) No tom e nos termos, a entrevistada parece fazer eco à outra fala, de alguns anos antes, numa espécie de “memória compartilhada” (A. THOMSON, 1994), quando em comemoração aos 50 anos da IJCJJ, o juiz Carlos Alberto Moreira Xavier reportara-se às primeiras ações, visando à implantação daquela Junta: “Aqui, na I Junta, lutava-se contra um quase total desconhecimento do Direito do Trabalho, mesmo por parte dos juristas, homens cultos e eruditos, mas enebriados pelos cânones civilistas. Esta luta era também a luta da Justiça do Trabalho. Tentava-se amesquinhar a nova Justiça, com a pecha de ‘justicinha’, criando-se, com isso, enormes dificuldades para a sua efetiva institucionalização. A Justiça do Trabalho, em seu todo, sofria as agruras desta batalha.”(24) C A resposta a estas “agruras”, dona Alcina tece na imagem seguinte, sugerindo uma vitória da “justicinha” em Jundiaí: (23) Entrevista de Dona Alcina Rossi Noronha, em 9.3.1998. (24) XAVIER, Carlos Alberto Moreira. O cinquentenário da I JCJ de Jundiaí, 27.4.1994, mimeo. 31 4658.5 Processo de Constituição.pmd 31 24/09/2012, 16:06 “Só para se ter uma ideia, na Junta de Jundiaí, naquela ocasião, em 1944, na qual foi instalada a I Junta, foram recebidos 300, 306 processos. Enquanto no... na Junta do Norte, não sei que cidade agora, foram apenas 32 processos.”(25) Assim, a “justicinha” se consolidava e se justificava na quantidade de processos instaurados; fazia-se grande pelo reconhecimento dos que a procuravam(26). A aplicação deste argumento, porém, presume um parâmetro, presente na fala de dona Alcina: buscar e reconhecer na adesão dos trabalhadores a justificativa da vitória e legitimidade de uma ação ou proposta, aventando uma sintonia entre aqueles que criaram e atuaram na JT e a população que dela se servia. Chama a atenção, ainda, o ponto de partida comum a essas narrativas — pautado num aludido momento de conflitos e disputas, que nas trajetórias a ser construídas por seus autores, na sequência, valorizam o presente vivido — e que guardam uma similaridade ainda com outro relato: o discurso assumido por Getúlio Vargas na promulgação do Decreto-lei n. 5.452 (a Consolidação das Leis do Trabalho) no dia 1º de maio de 1943: “A Consolidação [das Leis do Trabalho — CLT] representa, portanto, em sua substância normativa e em seu título, neste ano de 1943, não um ponto de partida, nem uma adesão recente a uma doutrina, mas a maturidade de uma ordem social há mais de um decênio instituída, que já se consagrou pelos benefícios atribuídos, como também pelo julgamento da opinião pública consciente, e sob cujo espírito de equidade confraternizaram as classes na vida econômica, instaurando nesse ambiente, antes instável e incerto, os mesmos sentimentos de humanismo cristãos que encheram de generosidade e de nobreza os anais de nossa vida pública e social.”(27) C (25) Dona Alcina apoia-se, neste ponto, num relato do dr. Rubens Noronha de Mello — seu marido e primeiro secretário da IJCJJ — que em entrevista ao Jornal de Jundiaí, em 26.4.1994, apontara que “já em 44, a Junta recebia 302 processos”. Segundo dr. Mello, “naquele ano a Junta de Cuiabá recebeu 32”. E concluiu: “Desde então, o número de processos em Jundiaí só aumentou”. (Jornal de Jundiaí, 26.4.1994, p. 4). (26) No que se refere à Justiça do Trabalho, o argumento de dona Alcina alinha-se à maneira de como o governo defendia a JT, durante a sua implantação, estabelecendo sua legitimidade e eficácia com base nos processos realizados. Um desses momentos pode ser observado em artigo de Eneas Galvão, funcionário do Departamento Nacional do Trabalho (DNT), que após divulgar os números de processos julgados nas duas Juntas do Distrito Federal, sentenciava: “À vista desses dados, é-nos lícito afirmar que, com a futura organização da Justiça do Trabalho, as Juntas, com as suas atribuições mais ampliadas, terão ainda maior eficiência, cumprindo a sua desejada finalidade. A sua realização constituirá numa surpresa para aqueles que, céticos, viam nessa tarefa uma simples miragem ou mesmo uma utopia”. In: BMTIC, n. 7, p. 105, mar. 1935. Obs.: as citações dos documentos mantêm as grafias originais. (27) A frase consta da exposição de motivos do projeto de lei elaborado, em 1942, pela comissão nomeada para redigir a CLT. 32 4658.5 Processo de Constituição.pmd 32 24/09/2012, 16:06 8 Elencando elementos que fazem da suposta vitória uma “confraternização de classes”, que contempla “beneficiados” e “conscientes” num “humanismo cristão”, os quais não são conceitos casuais, como se discutirá adiante, este discurso também coloca disputas e conflitos como referências iniciais para um período que se segue e, da mesma forma, situa-se num momento de superação àqueles, ponto-final de um percurso (“não um ponto de partida”, como faz questão de frisar o orador) quando se consolida uma vitória. Ressalto, no entanto, o aspecto de que as duas primeiras narrativas se iniciam — e como “justicinha”(28) — onde o último decreta a “Consolidação” (das Leis do Trabalho) na superação de um ambiente “instável e incerto”, que nas outras entrevistas aparece como ainda existente. Nesta contraposição, dona Alcina e o juiz Carlos Alberto parecem contradizer Getúlio Vargas, enquanto este os silencia, o que sinaliza outras disputas, desta feita sobre os significados do passado, produzidos nas contendas que os diversos presentes instituem, diferenciando lugares e experiências. Em relação à JT e à legislação trabalhista, se o olhar dos primeiros entrevistados retroage e o de Getúlio procura, na indeterminação futura, materializar uma perspectiva que contemple sua proposta, ambos apresentam aquelas instituições como vencedoras de um conflito, o que lhes justifica a existência e a sua continuidade. Tendo em conta os debates travados, na década de 1990, em relação à Justiça do Trabalho e buscando elementos que possibilitem pensar o universo de relações nas quais se forjaram a instituição, torna-se instigante detalhar as condições em que se fizeram atuantes estas disputas e tensões, visando a perceber as teias sociais e situações que informaram estes agentes; quais e como eram as oposições que se lhes faziam; que inimigos foram elencados para serem combatidos. Assim, o objetivo deste capítulo é, ao buscar as articulações entre fatos e inter-pretações que compõem as narrativas, acompanhar e analisar os elementos que permearam a formação das memórias sobre a Justiça do Trabalho e sua constituição, bem como a abordagem construída pela historiografia. Para iniciar esta empreita, vou aproveitar a “sugestão” — comprometedora — dada por Getúlio Vargas, quando estabelece como marco da virada rumo à CLT uma época “há mais de um decênio iniciada”. Lá, encontramos o segundo-ministro do recém-criado (26 de novembro de 1930, sendo Lindolfo Collor seu primeiro-ministro) Ministério do Trabalho, Indústria e do Comércio (MTIC), Salgado Filho, expondo os motivos que levaram o governo ao Decreto n. 22.132, de 25 de novembro de 1932, instaurador das Juntas de Con- C (28) A classificação de “justicinha” dada à Justiça do Trabalho, ao que parece, refere-se às características que a instituição assumira na primeira década de sua formação: prevista na Constituição de 1937 como órgão administrativo, uma vez que o Ministério do Trabalho poderia avocar para si qualquer processo no qual aquela instituição houvesse manifestado, só assume status quando de órgão judiciário com o Decreto n. 6.596, de 12 de dezembro de 1940. Mesmo assim, continuaria ligada ao Ministério do Trabalho, com seus membros sendo nomeados diretamente pelo presidente da República. Somente em 1946 os juízes da JT passaram a ser admitidos por concurso, com a JT passando ao âmbito do Poder Judiciário. 33 4658.5 Processo de Constituição.pmd 33 24/09/2012, 16:06 ciliação e Julgamento. Estas surgiam como instâncias para dirimir conflitos individuais entre patrões e empregados, já que, para os coletivos, o Decreto n. 21.396, de 12 de maio do mesmo ano, atribuía aquela tarefa às Comissões Mistas de Conciliação. E na tentativa do ministro de justificar o decreto, fica fácil constatar que a prática do estabelecimento de marcos históricos não era exclusividade do presidente da República em exercício, assim como a devida caracterização das vantagens dos tempos vividos sobre o passado: “Quando as disputas entre empregadores e empregados eram encaradas como casos de polícia, os dissídios entre eles eram resolvidos, por via de regra, e de forma arbitrária, pelas autoridades policiais que procuravam, da melhor maneira, harmonizar os litigantes, no intuito de prevenir possíveis desfechos violentos, a que eram arrastados os operários, falhos de direitos e de garantias, desde que a proteção interesseira de algum político não se fazia sentir.”(29) A articulação que o ministro faz entre as personagens chamadas para compor a imagem do passado parece instigante: policiais tentando harmonizar relações e evitando a violência, como que a preencherem uma lacuna existente na sociedade, lacuna esta localizada na situação dos trabalhadores que se encontram “falhos de direitos e de garantias”; os trabalhadores como reagentes, destituídos de iniciativas, já que são “arrastados” pela situação; e o terceiro grupo, o dos políticos, promotor de outra possibilidade de solução: a “proteção interesseira”, numa alusão ao clientelismo identificado nas ações da política direcionada aos populares à época. Assim, neste quadro de policiais pacifistas, ainda que “arbitrários”, trabalhadores marionetes e políticos gestores da ação pautada na troca de favores, o domínio da lei se apresentava como solução ao impasse verificado nas “disputas entre empregadores e empregados”, ponto ao qual se apegaram os “revolucionários” de 1930. Como todo bom discurso inaugural, neste também identificam-se as atribuições de valores e qualidades firmados sobre a superação dos existentes nos predecessores: o ministro, com a implantação das Juntas de Conciliação e Julgamento, frisava o seu significado como um espaço onde às questões trabalhistas impunha-se a perspectiva que visava a “harmonizar os litigantes”, afastando-os de soluções arbitrárias e violentas, marca do período anterior, quando a “questão social era caso de polícia”; falando apenas do passado, torna realidade um presente inexistente. C (29) SALGADO FILHO, J. P. A legislação do trabalho. In: BMTIC, n. 4, p. 112, dez. 1934. (30) Ver, com relação a isso, dentre outros, L. W. Vianna, em Liberalismo e sindicato no Brasil, o qual, na contraposição ao “mito da outorga” e em sintonia com Evaristo de Moraes Filho (O sindicato 34 4658.5 Processo de Constituição.pmd 34 24/09/2012, 16:06 8 Como a historiografia aponta, porém, o uso de leis e de instâncias de arbitragem entre patrões e empregados, visando a dirimir conflitos, não era uma novidade do governo pós-1930(30), da mesma forma como o “restabelecimento da ordem” pelas vias policiais não foi extinto com os Decretos n. 22.132 ou n. 21.396(31). A questão, assim, parece direcionar-se para a maneira como a legislação e as instituições que a ela se articularam, firmaram-se e pretenderam-se como resposta ao conjunto das relações sociais. De fato, uma significativa lista de medidas legislativas referentes às relações de trabalho é elencada pela bibliografia, apontando a recorrência e referência desse expediente, seja enquanto leis aprovadas ou decretadas, seja na proposição delas por parte de legisladores(32). Estas medidas são identificadas como as que até então se mantinham como respostas pontuais a demandas, pressões e conflitos, muitas vezes restritas a determinadas categorias de trabalhadores e Estados(33). Na bibliografia especializada — principalmente trabalhos produzidos na área do Direito do Trabalho —, tais leis e propostas são organizadas invariavelmente de modo sequencial e apontadas como exemplos do estabelecimento de uma tradição destas ações legislativas e da antiguidade da preocupação com as questões trabalhistas, o que confere um caráter progressivo, numa espécie de “processo civilizatório” iniciado já no século passado, que tem na decretação da CLT e na organização da Justiça do Trabalho o seu ápice(34). Um dos desdobramentos dessa “evolução legislativa” se apresenta na identificação de fases, como, por exemplo, a fase embrionária (referente às primeiras leis que regulavam as prestações de serviço no Império), a fase reivindicatória (quando os proponentes, em alguns casos, canalizavam em seus projetos as dificuldades observadas nas vidas dos trabalhadores) e a fase civilista (iniciada após a decretação do Código Civil — Lei n. 3.071, de 1º.1.1916 —, que passa a pautar as disputas judiciais decorrentes das relações de trabalho). C no Brasil, de 1952), sustenta “a preexistência da legislação trabalhista ao Estado de 1930”, bem como que “a própria criação do Estado intervencionista sobre o mercado não consiste em obra original” daquele governo. Op. cit., p. 32-33. (31) Se não bastassem as inúmeras evidências, o próprio ministro deixaria bem claro, em outro momento, que “a existência da legislação não quer dizer que tenha desaparecido para sempre a interferência da polícia. Esta se fará sentir toda vez que, saindo do terreno legal, enveredem os litigantes pelo caminho da justiça pelas próprias mãos”. (BMTIC, n. 4, p. 113, dez. 1934). (32) Como a instituição do Patronato Agrícola — em 1911 pela Lei Estadual n. 1.299-A e regulamentada pelo Decreto Estadual n. 2.215, de 15.3.2012 — e dos Tribunais Rurais — em 1922 —, ambos em São Paulo. (33) Novamente, recorro a L. W. Vianna que aponta a restrição do uso da legislação, uma vez que esta se limitava “aos polos dominantes do sistema — São Paulo e Distrito Federal — e nesses principalmente às categorias mais influentes como os ferroviários, portuários e marítimos”. Op. cit., p. 33. (34) Neste aspecto, tal bibliografia parece fazer eco à construção existente e defendida na década de 1930, a qual, nas palavras de Oliveira Viana, significava “a imensa e profunda evolução que vem sofrendo, em nosso direito privado e em jurisprudência, nestes quase 100 anos de história jurídica — o Código Comercial é de 1850 —, o velho instituto do contrato de locação de serviço”. Em Serviços dos carregadores de bagagem. BMTIC, n. 20, p. 92, abr. 1936. 35 4658.5 Processo de Constituição.pmd 35 24/09/2012, 16:06