O mundo de dentro

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O mundo de dentro
O mundo de dentro
Dr. Simão Bacamarte, protagonista do conto O Alienista (1881) de Machado de
Assis é apresentado pelo autor como figura nobre, grande estudioso vindo do
reino para a colônia com a intenção de cuidar da “saúde da alma” de seus
pacientes, maneira com a qual ele qualificava seu ofício de médico de patologias
cerebrais. Essa figura notória chega em Itaguaí contra a vontade do rei, que o teria
deixado em Portugal, “regendo a universidade ou expedindo os negócios da
monarquia”. Encontra na Casa Verde – nome do local onde ele irá clinicar
durante o tempo que a vida lhe reserva nesse cargo –, o meio de aplicar suas
pesquisas, todas ainda pouco exploradas na colônia. Com acuidade, o autor faz
dessa personagem a própria contradição humana: depois de clinicar toda a região
e definir seus critérios de normalidade e demência, o doutor resolve internar
grande parte da população de Itaguaí, incluindo vizinhos, amigos e até mesmo
sua esposa. Contudo, ele não tarda a perceber sua própria demência e, subjugado
aos valores da ciência que ele defende, resolve dar alta a todos, internando-se na
Casa Verde. “A questão é cientifica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo
primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.”
O perfil da personagem de Machado, ao mesmo tempo alienista, alienada e
alienante, é uma porta de entrada para O Mundo de Dentro de Rodrigo Cunha.
Optando por essa alternativa, vale sinalizar alguns pontos que em sua produção
aproximam-no do ambiente de Simão Bacamarte: em espaços à primeira vista
sóbrios, as pinturas parecem prefigurar o descompasso na relação entre os
diagnosticados “dementes” e seus preceptores, suscetíveis de orientá-los
enquanto buscam olhar para sua própria existência. O fato é que na lassidão
transcorrida durante a espera de respostas plausíveis, tanto os ditos dementes de
Simão Bacamarte quanto algumas figuras presentes nas pinturas de Rodrigo
Cunha, todas envoltas em situações de instabilidade psicológica e isolamento,
mantêm-se paradoxalmente à espera de pseudoalienistas com fórmulas capazes
de resolver problemas de diferentes ordens. É o que Paul McCarthy define como
“a perda da consciência de estar vivo, a perda da autêntica percepção da
existência”. Em Soprando Tuba, (2011) uma das poucas obras em que o silêncio
perde seu lugar na produção do artista, um senhor parece soprar o instrumento
com pesar. Ao invés de harmonia, ele evoca o grito, o ruído resultante do estado
de desconforto face a realidade por ele construída.
A exposição trata o espaço intimista com a mesma estranheza com que nos
deparamos com o improvável, o insípido ou com o desconhecido. Isso porque não
fomos treinados a olhar para dentro. Exteriorizamos nossas sensações, nomeamolas, somos cobrados a tomar partido, a analisar, sintetizar e a perceber o mundo
através de nossos limitados sentidos. Cobramos deles a melhor performance ou
incluímos ferramentas no corpo, com as quais somos capazes de lutar contra o
processo de deterioração das faculdades sensoriais. Mas quase nunca atentamos
para o mundo de dentro, o universo que carregamos. Em consequência, a cada
situação de introspecção imposta pela passagem do tempo, ou em decorrência de
circunstâncias imprevistas, o confronto com nossa estrutura interna faz ressurgir
um emaranhado de complexidade e nos vemos impelidos a encontrar alguém que
nos dê respostas rápidas, adaptadas ao nosso frenético ritmo de vida. Eis que
surgem os doutores Bacamarte prometendo cuidar da “saúde da alma” sem
antes avaliar a sanidade de sua própria. A Doutora (2007) é um desses casos. Seu
estatuto social é dificilmente identificado, não fosse o título da obra e sua
indumentária. Já o ambiente habitado por ela, sombrio e com pouca mobília,
aproxima-lhe da situação em que encontrava-se Simão Bacamarte em seus
últimos dias na Casa Verde: solitário em busca de resolver problemas sobre os
quais ele parecia ter domínio completo.
Em cada pintura há um pequeno assunto que se fecha no título: Homem no
Estúdio, Mulher de Traje Azul, Senhora com Cãozinho Peludo, Homem com
Máquina, Senhora com Chapéu, Homem com Criança nos Braços, Homem em
Cadeira Reclinada, Jovem com Meias Rosas. Genéricos, variantes de um mesmo
tema, cada título esconde o tom inquisitivo que constrói uma única paisagem
mental em toda a produção do artista. Enquanto sugere ações anódinas ( Homens
com as Mãos no Bolso, 2010), perdas iminentes, movimentos lentos ou
inexistentes, frontalidade entre espectador e figura representada, registro da
passagem do tempo no corpo humano (Homem Velho, 2007), o artista cria um
vocabulário visual e iconográfico que manipula geneticamente a identidade
humana, traduzindo em códigos visuais a inevitável condição de viver no mundo
de hoje, com problemas e vantagens inerentes ao processo de massificação da
cultura, do pensamento e da linguagem. Por isso, ainda que isolados, todos
parecem sair do mesmo lugar, a aparência caricata das figuras desmente a
tendência à divisão de classes. Reportando-nos ao ambiente doméstico, o artista
apresenta o espaço quase-vazio/quase-cheio com neutralidade suficiente para
nele abarcar uma quantidade considerável de indivíduos. Em conformidade com a
realidade corpórea, psíquica ou residencial-arquitetônica, uma coisa sendo a
extensão da outra, assim como afirma A Casa é o Corpo (1968), obra magistral de
Lygia Clark, os espaços de O Mundo de Dentro evocam crise e ao mesmo tempo
parecem desenhar o estado de satisfação interna. Figuras dúbias, elas nos deixam
sem resposta quando questionamos se são alienistas, alienadas ou alienantes. É
que o acesso ao mundo de dentro é pessoal e intrasferível.
Daí a simplicidade no tratamento do interior. Com economia de adereços, esses
lugares acabam sendo o antípoda do país das maravilhas comumente veiculado
nos dias de hoje através de posts que mostram pessoas quase sempre ocupadas
em fazer belas viagens, em ir aos melhores programas com os melhores amigos,
todos sorridentes e alegres. Seja a mobília, um animal, uma pequena planta, uma
tomada de energia elétrica ou um objeto específico, com destaque inclusive no
título da obra (Interior com Gramofone, 2011), todos esses elementos dividem o
espaço da tela com um sujeito, cujo estado introspectivo perturba quem pretende
participar de sua realidade. Com poucos sinais de acolhimento, mesmo as figuras
que encaram o espectador mostram-se completamente envolvidas em seu
próprio mundo. Diante de alguns casos, o olhar provocador ou distante dessas
figuras transmite deliberadamente e em tom desafiador questões do tipo “afinal,
porque viestes até aqui?” ou “o que fazes aqui ainda?” É que ao invés de
indivíduos, Rodrigo representa realidades. E nessa espécie de “cárcere privado”,
modo como uma personagem anônima qualifica a Casa Verde, o retrato da
natureza humana é atenuado com premissas existencialistas. Condenado a ser
livre, o homem é responsável pela invenção do homem. A partir de sua redoma
privada, ele é autor do que pensa e faz, responsável assim pelo que vive. “O
mundo de dentro” está longe de ser pessimista. Lidando com a contradição
humana, o artista problematiza consensos gerais e situa sua produção no limite
dos mundos mental e perceptível. Apostando todas as suas fichas na
representação de personagens "geneticamente modificadas", Rodrigo Cunha
utiliza-se de situações de confinamento para evocar a ambivalência de suas
intimistas cenas de gênero.
Josué Mattos, 2012