Zorba_O Grego_Nikos_Kazanzakis

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Zorba_O Grego_Nikos_Kazanzakis
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Temas e trechos – Zorba O Grego
1. A separação e a presença do amigo que volta na lembrança
Quando o escritor está no porto, esperando o barco que o levará para viagem,
lembra-se de outro momento de sua vida, quando, também no porto,
despediu-se de seu amigo que partia para a guerra no Cáucaso. O porto
aparece tanto como o local de chegada quanto de partida. Pode significar
tanto separação quanto retorno, tanto perda quanto alegria do reencontro. O
jovem escritor está no porto se preparando para fazer uma viagem rumo ao
desconhecido. Neste momento, o passado volta com intensidade. Naquele
instante a figura do amigo se faz presença, como um porto seguro, que o
acolhe. Encontramos também o tema da separação. Dependendo de como
nos separamos, podemos guardar uma boa lembrança que nos acompanha
para sempre e nos encaminha para outros amigos, outros bons encontros. No
caso do jovem escritor, a separação do primeiro amigo o prepara para sua
viagem. A lembrança do primeiro amigo o encaminha para um novo amigo
que irá conhecer. Antes de iniciar a viagem, ele tem um diálogo interno com
um passado que é presente porque o acompanha. Este diálogo interno o
prepara para a viagem:
Eu estava sentado num canto, sentia frio, e pedi uma segunda xícara de salva. Tinha
vontade de dormir. Lutava contra o sono, contra o cansaço e contra a desolação da
madrugada. Olhava através das vidraças enlameadas, o porto que acordava, e que
gritava com todas as sirenas dos navios, com os gritos dos estivadores e embarcadiços. E,
de tanto olhar, uma malha invisível, feita de mar, de chuva e do sentimento de partida
envolveu-me o coração, apertando-o em seus fios.
Olhava fixamente para a proa negra de um grande navio; todo o tombadilho estava
ainda mergulhado na noite. Chovia e eu via os pingos da chuva unirem o céu à lama.
Eu olhava o barco negro, as sombras e a chuva, e minha tristeza tomava corpo. As
recordações iam chegando. No ar molhado ia tomando forma, composto de chuva e de
saudades, o rosto de meu amigo. Foi no passado? Numa outra vida? Ontem? Quando
afinal estive nesse porto para lhe dizer adeus? Ainda me lembro da chuva naquela
manha, do frio e da madrugada. Tinha então o coração pesado
Como é amargo separar-se lentamente dos seres amados! Mais vale cortar de uma vez, e
reencontrar a solidão, estado natural do homem. Entretanto, naquela madrugada
chuvosa, eu não podia separar-me de meu amigo. (Depois compreendi, muito tarde,
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infelizmente, o porque.) Subira com ele ao navio, e estava sentado em sua cabina entre
malas espalhadas. Olhava-o com insistência, quando não estava prestando atenção,
como se quisesse, um a um, gravar seus traços em minha memória – seus olhos
luminosos de um azul-esverdeado, seu rosto jovem, sua expressão fina e desdenhosa, e
principalmente, suas mãos aristocráticas e longos dedos afilados.
Em dado momento surpreendeu meu olhar resvalando sobre ele, ávido e lento. Voltou-se
com aquele ar zombador que assumia quando procurava esconder sua emoção. Olhoume. Compreendeu. E para disfarçar nossa tristeza:
- Ate quando? – perguntou-me irônico, sorrindo.
- Até quando o que?
- Você continuará a mastigar papel e a se lambuzar de tinta? Venha comigo, caro
professor. Lá longe, no Cáucaso, milhares de homens de nossa raça estão em perigo.
Vamos salva-los.
Ele se pôs a rir, zombando de seu nobre propósito.
- É possível que não os salvemos – acrescentou – Mas salvaremos a nós mesmos ao nos
esforçarmos para salvar os outros. Não é o que prega o meu mestre? “A única maneira
de você se salvar é lutar para salvar os outros...” Então avante, mestre, você que pregava
tão bem. Venha.
Não respondi. Terra sagrada do Oriente, mãe dos deuses, altas montanhas onde ressoa
o clamor de Prometeu! Acorrentada como ele a essas mesmas montanhas, nossa raça
chamava. Ela estava, ainda uma vez, em perigo; e chamava seus filhos a socorrê-la. E
eu a ouvia, passivo, como se a dor não fosse senão um sonho, e a vida uma tragédia
cativante, onde é a prova de grosseria e ingenuidade precipitar-se ao palco e tomar parte
na ação.
Sem esperar resposta, meu amigo levantou-se. O navio apitava agora pela terceira vez.
Estendeu-me a mão, escondendo de novo, sob a brincadeira, sua emoção.
- Até breve, camundongo comedor de papiros! – disse ele.
Sua voz tremia. Ele sabia que é vergonhoso não poder dominar o coração. Lágrimas,
palavras ternas, gestos desorganizados, familiaridades vulgares, tudo isso eram para ele
fraquezas indignas do homem. Nós, que éramos tão unidos, nunca havíamos trocado
uma palavra afetuosa. Brincávamos e nos arranhávamos como feras. Ele, o homem fino,
irônico, civilizado. Eu, o bárbaro. Ele, controlado, esgotando com naturalidade num
sorriso todas as manifestações de sua alma. Eu, brusco, explodindo num riso
inconveniente e selvagem.
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Tentei, eu também, camuflar minha emoção sob uma palavra dura, mas tive vergonha.
Não, não é que tivesse vergonha, mas porque não consegui. Apertei sua mão. Eu a
segurei sem largá-la. Ele me olhou, espantado.
- Emocionado? – disse ele tentando sorrir.
- Sim – respondi calmamente.
- Por que? Que havíamos decidido? Não havíamos combinado há anos? O que dizem
os japoneses que você admira tanto? Foudoshin! Ataraxia, placidez olímpica, quietude;
o rosto; uma máscara sorridente e imóvel. O que vai por detrás da máscara é assunto
nosso.
- Sim – disse de novo, esforçando-me em não me comprometer com uma frase muito
longa. Não sabia se poderia impedir que minha voz tremesse.
O gongo soou a bordo, afugentando de cabina em cabina os visitantes. Chovia
docemente. O ar encheu-se de palavras patéticas de adeus, juras, beijos prolongados,
recomendações apressadas e arquejantes. A mãe se precipitava sobre o filho, a mulher
sobre o marido, o amigo sobre o amigo. Como se esta pequena separação lhes lembrasse a
outra, a Grande. E o som doce do gongo vibrou subitamente, de popa a proa, no ar
úmido, como um carrilhão fúnebre. Tremi.
Meu amigo voltou-se.
- Escute – disse em voz baixa – você teve um mau pressentimento?
- Sim – respondi ainda uma vez.
- Você acredita nessas tolices?
- Não – respondi-lhe com segurança.
- E então?
Mas não havia “então”. Eu não acreditava, mas tinha medo.
Meu amigo pousou ligeiramente sua mão esquerda sobre meu joelho, como era seu hábito
nos momentos mais cordiais de nossas discussões – eu o forçava a tomar uma decisão, ele
resistia, recusava, para ceder finalmente; e então tocava em meu joelho, como para dizer:
“Farei o que você quer, por amizade...”
Suas pálpebras bateram duas ou três vezes. Olhou-me de novo. Compreendendo meus
sentimentos, hesitou em empregar nossas armas prediletas: o riso, o humor, a
brincadeira...
- Bem – disse ele – Dê-me sua mão. Se um de nós dois se encontrar em perigo de
morte...
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Parou, como se estivesse envergonhado. Nós, que há anos nos ríamos desses raids
metafísicos, e que colocávamos numa mesma chave: vegetarianos, espíritas, teosóficos e
ectoplasmas...
- E então? – perguntei, esforçando-me para adivinhar.
- Façamos uma coisa – disse ele, precipitadamente, para sair da frase perigosa que havia
iniciado – Se um de nós estiver em perigo de morte, pensará intensamente no outro, para
avisá-lo onde que quer que se encontre...De acordo?
Tentou rir, mas seus lábios, como que congelados, não se mexeram.
- De acordo – disse eu
Meu amigo, temendo ter demonstrado exageradamente sua emoção, apressou-se em
completar:
- Não creio absolutamente, é claro, nessas comunicações aéreas entre almas...
- Não tem importância – murmurei – Façamos de conta...
- Pois bem! Seja então. Façamos de conta. De acordo?
- De acordo? – disse-lhe de novo.
Estas foram nossas últimas palavras. Apertamos as mãos sem dizer nada, nossos dedos
se uniram, ardentes, separaram-se bruscamente e eu parti a passos rápidos, sem me
voltar, como se me perseguissem. Tive ímpeto de virar a cabeça e ver meu amigo ainda
uma vez, mas contive-me. “Não se volte”, ordenei a mim mesmo. “Ande!”.
A alma humana, entranhada na carne, está ainda em estado bruto, imperfeita. Não
pode, com suas faculdades insuficientemente desenvolvidas, apresentar um pressentimento
claro e seguro. Fosse ela capaz disso, como teria sido diferente essa separação!
A claridade aumentava cada vez mais. As duas manhãs se confundiam. Via agora
mais nitidamente o rosto amado de meu amigo, tendo ficado sob a chuva, imóvel,
desolado, ao ar do porto. A porta do café se abriu, o mar bramiu e um marinheiro
entrou, baixote – as pernas abertas, com bigodes que pendiam. Vozes soaram alegres:
- Viva, Capitão Lemoni!
Enrosquei-me em meu canto, procurando concentrar-me de novo. Mas o rosto do meu
amigo já se havia dissolvido na chuva.
(pgs.10 - 15, Capítulo 1)
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2. O amigo que ajuda ao nomear o nosso problema
É justamente no momento da separação que o amigo, de partida para o
Cáucaso, pode ajudar o escritor a ver seu ponto fraco. O amigo chama o
escritor de “camundongo comedor de papiros”, ajudando-o a ver como estava
ensimesmado, ao dar nome à sua limitação, ou “desgraça”, como o narrador
descreve. Agora que seu amigo nomeou o seu problema, será mais fácil
superá-lo. É esta ajuda que o permite mais tarde partir para uma viagem. A
oportunidade que desejava, de se livrar “das papeladas” e se atirar “a ação”,
surge um mês depois desta conversa com seu amigo. A viagem para Creta
parece ter “um sentido oculto” para o escritor, que está “decidido a mudar de
vida”:
A claridade aumentava, o Capitão Lemoni tirou seu rosário de âmbar e se pôs a
manuseá-lo, mal-humorado e taciturno. Eu lutava para não ver, não escutar e reter
ainda um pouco a visão que se dissipava. Reviver ainda a raiva que me invadira então,
raiva misturada a vergonha quando meu amigo me chamou de camundongo comedor de
papiros. Desde então, lembro-me bem, nesta expressão encarnou-se todo o meu desprezo
pela vida que levara. Eu, que tanto amava a vida, como me havia deixado petrificar por
tanto tempo numa confusão de livros e papeis enegrecidos! Nesse dia de separação, meu
amigo ajudou-me a ver claro. Senti-me aliviado. Conhecendo agora minha desgraça,
poderia talvez vencê-la com mais facilidade. Ela não era mais esparsa e incorpórea;
tinha agora um nome, havia tomado corpo, e ficou fácil para eu lutar contra ela.
Esse apelido havia certamente convivido comigo, sem barulho, e desde então eu procurava
um pretexto para livrar-me das papeladas e atirar-me à ação; repugnava-me ter em meu
brasão esse roedor. E eis que há um mês deu-se a oportunidade desejada. Havia
alugado, num trecho do litoral cretense, do lado do mar da Líbia, uma velha mina de
linhita abandonada, e iria agora viver entre homens simples, trabalhadores, camponeses,
longe da espécie dos “camundongos comedores de papiros”.
Fiz meus preparativos muito emocionado, como se esta viagem tivesse um sentido oculto.
Estava decidido a mudar de vida. “Até agora, minha Alma”, dizia comigo mesmo, “tu
não vias senão a sombra, e tu te alegravas; agora eu te conduzirei à carne”
Estava enfim pronto. Na véspera da minha partida, remexendo papéis, encontrei um
manuscrito inacabado. Olhei-me, hesitante. Havia dois anos que no mais fundo de mim
mesmo fremia um grande desejo, como uma semente: Buda. Eu o sentia a cada momento
em minhas entranhas, a me devorar e amadurecer. Ele crescia, se mexia, se debatia em
meu peito para sair. Agora não tinha mais coragem de sufocá-lo. Eu não poderia fazêlo. Já era muito tarde para tal aborto espiritual.
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Subitamente, enquanto segurava, indeciso, o manuscrito, o sorriso de meu amigo
desenhou-se no ar, todo ironia e ternura. “Vou levá-lo comigo!” disse eu irritado. “Vou
levá-lo comigo e não adianta rir”. Embrulhei-o com cuidado, como uma criança em suas
fraldas, e ele veio comigo.
(p.15-16, Capítulo 1)
A saudade do amigo é então uma espécie de ausência feliz, uma presença que
o acompanha. É neste estado, de partida, a caminho para sua própria viagem,
que ele conhece Zorba. Na realidade, Zorba é quem olha primeiro. O escritor
está de costas mas sente que “dois orifícios se abriam em minha nuca” (pg.
17). Antes de se virar, lhe atravessa “como um raio”, a esperança de tornar a
ver seu amigo. Ele de certa forma estava aberto para conhecer alguém como
Zorba, que ao longo da história o ajudará a realizar esta transformação interna
que tanto anseia. No início do diálogo Zorba já percebe e questiona a mania
do escritor de tentar racionalizar tudo antes de agir:
De repente, inquieto, levantei a cabeça. Não sei como, tive a impressão de que dois
orifícios se abriam em minha nuca; virei-me bruscamente e olhei, atrás de mim, a
porta envidraçada. Como um raio, a esperança louca de tornar a ver meu amigo
atravessou-me a alma. Estava pronto para um milagre. Mas ele não se deu. Um
desconhecido, beirando os sessenta anos, alto, seco, os olhos abertos, olhava-me com o
nariz colado ao vidro da porta. Trazia uma sacola achatada embaixo do braço.
O que mais me impressionou foram seus olhos, tristes, inquietos, trocistas e cheios de
vida. Ao menos foi o que pensei.
Cruzados os nossos olhares – dir-se-ia que se certificara de que eu era exatamente
quem ele procurava – o desconhecido estendeu resolutamente o braço e abriu a porta.
Passou entre as mesas com um passo vivo e elástico e veio postar-se diante de mim.
- De partida? – perguntou-me – E para onde?
- Para Creta. Por quê?
- Quer me levar?
Olhei-o atentamente. Rosto cavado, uma mandíbula forte, maçãs salientes, cabelos
grisalhos e crespos, olhos que brilhavam.
- Por que? Que vou fazer de você?
Deu de ombros.
- Por que! Por que! – disse com desdém – Não se pode fazer nada sem um porquê?
Leve-me como cozinheiro, pronto. Sei fazer sopas!
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Pus-me a rir. Seus modos e palavras cortantes me agradavam. E as sopas também.
Não era mau, pensei, levar esse simpático desengonçado para aquela longínqua
praia solitária. Sopas, conversas... Tinha o ar de quem já havia vagado muito no
alto das ondas, uma espécie de Simbad, o Marujo...Gostei dele.
- Em que pensa? – perguntou-me, inclinando a cabeça grande – Você pesa os prós e
os contras, não? Quase grama a grama, não é? Vamos, decida, coragem!
Ele se erguia sobre mim, um homenzarrão, e eu já estava cansado de ter que erguer
a cabeça para lhe falar (...)
(...) E olhei agora meu novo companheiro com um vivo interesse. Seu rosto estava
cheio de rugas, picado, como se roído pelos ventos e pela chuva.
(pgs. 17-19, Capítulo 1)
3. Quando a alma do homem nasce
O primeiro nascimento de uma pessoa é o biológico. Mas o trecho que Zorba
narra nos faz pensar no momento em que nossa alma nasce – em que
momento começamos a nos tornar seres humanos por inteiro. No caso de
Zorba, foi através do santuri tocado por um mestre turco. Zorba estava
poupando dinheiro para se casar mas, encantado pelo som do santuri, decidi
gastar todas suas economias para comprar o instrumento. Depois, Zorba
jogou-se aos pés do turco e este, ao reconhecer que o jovem havia, como ele,
“pego a febre do santuri”, se dispôs a ensinar Zorba de graça. Ambos
ultrapassaram o ódio milenar entre turcos e gregos. Sentiam-se ligados por
algo muito maior.Ficaram juntos, mestre e aluno, por um ano. Aqui temos o
tema da relação entre mestre e discípulo, sem o qual esta transformação não
teria sido possível:
Eu tinha vinte anos. Numa festa em minha aldeia, ao pé do Olimpo, ouvi pela
primeira vez tocarem santuri. Fiquei sem fôlego. Durante três dias nem pude comer.
“O que há com você?” perguntou-me meu pai uma noite. “Quero aprender a tocar
santuri!” “Não tem vergonha? Está pensando que é algum cigano? O que vai ser na
vida, tocador de instrumentos?” “Eu, o que quero mesmo é aprender a tocar
santuri!” Havia guardado umas economias para me casar assim que pudesse. Era
um garoto ainda, você sabe, um desmiolado. Tinha o sangue quente e queria me
casar, pobre de mim. Então dou o que tenho, dou ou que não tenho, e compro um
santuri. Este aqui. Com ele saio de casa, chego ate Salonica e vou a um turco,
Retsep Effendi, um artista, o mestre do santuri. Eu o encontro e me jogo a seus pés.
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“O que quer, pequeno rumi1?”pergunta ele. “Quero aprender a tocar santuri”. “E
por isso se joga a meus pés?” “Não por isso, mas porque não tenho um tostão para
lhe pagar”. “Então você também apanhou a febre to santuri?”. “Sim”. “Pois fique
aqui menino, não é preciso que me pague” “Fiquei com ele estudando durante um
ano...E desde que aprendi a tocar santuri me transformei em outro homem. Quando
estou triste, ou quando as coisas andam mal, toco santuri e fico alegre. Enquanto
estou tocando, podem falar comigo que não escuto, e se escuto não respondo. Posso até
querer responder, mas não adianta, não consigo!
- Mas por que, Zorba?
- Ora, paixão!
(p.21, Capítulo 1)
A história também nos faz pensar em que momentos da vida você é tocado
por algo ou alguém e se opera dentro de você uma transformação, como diz
Zorba, “em um outro homem”. Há aqui a idéia de que é o outro que dá
sentido a esta nova vida – sem ela somos homens sem graça.
4. O santuri como um animal selvagem que tem sua própria vontade:
para Zorba, todas as coisas têm alma
O santuri é apresentado como o real, o incognoscível, como o exemplo de
uma força da natureza que tem vontade própria, um “animal selvagem”. Aqui
também temos a idéia que as coisas do mundo têm alma, têm vida, sentimos
seu ritmo, nos harmonizamos com elas. Já encontramos aqui a importância de
valorizarmos a intuição como manifestação do instinto. Como o filósofo
Nietzche, um dos mestres de Kazantzakis, já dizia no livro Assim Falou
Zaratustra “é pelo saber que o corpo se purifica, é procurando o saber que ele
se eleva”. Na mesma obra Nietzche afirma que “para o sabedor todos os
instintos tornam-se sagrados”. Através da arte e do conhecimento, os
instintos se tornam sublimes. Por sublimação entendemos a capacidade da
pessoa de investir sua energia em atividades artísticas, intelectuais, criativas.
Desta forma laços sociais são desenvolvidos, empregando energias que ao
contrario permaneceriam em estado bruto, inviabilizando a vida em sociedade.
No caso do santuri, ele é um “animal selvagem”, mas nas mãos do homem se
transforma em arte e eleva a alma:
- Zorba...-disse eu, esforçando-me para não me atirar em seus braços – Zorba, de
acordo! Você vem comigo. Tenho linhita em Creta, você vigiará os operários. De noite,
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Nome pelo qual os árabes chamam um cristão. No caso, o turco era árabe e Zorba um cristão.
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iremos deitar-nos na praia...não tenho no mundo nem mulher, nem crianças, nem
cachorro...comeremos e beberemos juntos. Depois, você tocará santuri...
-...Se eu tiver vontade, você sabe, só se eu tiver vontade. Trabalhar para você está certo,
quando quiser. Sou homem seu. Mas o santuri é diferente. É um animal selvagem e
precisa de liberdade. Se eu tiver vontade, eu toco e chegarei mesmo a dançar. E dançarei
o zeimbekiko, o hassapiko, o pendozali – mas digo desde logo, só se eu tiver vontade.
Bons entendimentos fazem bons amigos. Se você me forçar, acabou-se. Para essas coisas,
é preciso que você saiba, sou um homem...
- Um homem? O que quer dizer com isto?
- Pois bem, livre!
(pg. 24, Capítulo 1)
Em Zorba encontramos de forma recorrente a idéia de que dentro do homem
coexistem na saúde, num movimento permanente, um grande Deus e um
animal feroz. É necessário ter cuidado e atenção contínuos para manter
ambos vivos. . Quando toca e canta, Zorba encarna esta convivência estes
três elementos – o humano, o animal e o divino:
Um outro dia, enquanto lia, deitado na praia, Zorba veio sentar-se em frente a
mim, pôs o santuri nos joelhos e começou a tocar. Levantei os olhos e o encarei.
Pouco a pouco sua fisionomia mudou, uma alegria selvagem apoderou-se dele, esticou
o longo pescoço enrugado e começou a cantar: árias macedônicas, canções cléfitcas,
gritos selvagens, a garganta humana retornava aos tempos pré-históricos em que o
grito era uma grande síntese condensando tudo o que hoje chamamos música, poesia e
pensamento. “Akh! Akh! , gritou Zorba do fundo de suas entranhas, e toda a casca
fina que chamamos civilização ruiu, dando passagem à fera imortal, ao Deus
peludo, ao terrível gorila
(pg. 189, Capítulo 13)
Já em Creta, há um momento em que Zorba tenta tocar o santuri, mas não
consegue – como ele mesmo já avisara ao escritor. Depois de insistir um
pouco, tentando tirar um som harmonioso do instrumento, desiste e explica
ao escritor que não só o santuri, mas todas as coisas têm alma, embora nem
sempre consigamos entrar em sintonia com elas:
Eu não me cansava de ver com que precauções e ternura Zorba tirava o santuri dos
panos em que o havia envolvido. Parecia que estava descascando um figo, despindo uma
mulher.
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Pousou o santuri em seus joelhos, debruçou-se sobre ele, acariciou ligeiramente as cordas
– dir-se-ia que o consultava sobre a música que iria cantar, que ele lhe pedia para
acordar, que ele docemente lhe pedia que viesse fazer companhia à sua alma dolorida,
fatigada da solidão. Começou uma canção: não deu certo, abandonou-a, começou outra.
As cordas arranhavam como sentindo dores, como se não quisessem. Zorba apoiou-se na
parede, enxugou o suor que subitamente porejou de sua testa.
- Ele não quer – murmurou, olhando com esforço para o santuri – Ele não quer.
Guardou-o de novo com cuidado, como se fosse uma fera e ele tivesse medo de ser
mordido: levantou-se lentamente e recolocou-o na parede.
- Ele não quer – murmurou de novo – ele não quer e não podemos forçá-lo.
Sentou-se novamente no chão e colocou umas castanhas nas brasas, encheu os copos de
vinho. Bebeu, bebeu mais, descascou uma castanha e deu-ma.
- Você compreende, patrão? – perguntou-me – Eu não. Todas as coisas tem uma alma:
a madeira, as pedras, o vinho que a gente bebe, a terra onde a gente caminha...tudo,
tudo patrão.
(pgs. 99-100, Capítulo 6)
Em outro momento, Zorba se pergunta quando as pessoas vão conseguir
ouvir e abraçar todas as coisas e todos os homens. Sua reflexão nos faz pensar
sobre em que momento uma pessoa passa a ver o que não conseguia ver
antes:
Chovia. Os picos das montanhas estavam escondidos nas nuvens, nem um sopro de
vento, as pedras reluziam. A pequena montanha de linhita estava sufocada de nevoeiro.
Dir-se-ia que uma tristeza humana envolvia o rosto de mulher da colina, como se ela
tivesse desmaiado na chuva.
- O coração do homem sofre quando chove – disse Zorba – não devemos querer-lhe mal.
Abaixou-se perto de uma cerca e colheu o primeiro narciso selvagem. Olhou-o um longo
momento, sem poder satisfazer-se como se estivesse vendo narcisos pela primeira vez:
cheirou-o, fechando os olhos, suspirou, e deu-o para mim.
-Se a gente soubesse, patrão, o que dizem as pedras, a chuva, as flores! Talvez elas
chamem, talvez elas nos chamem e nós não as escutemos. Quando é que as pessoas
começarão a ouvir? Quando teremos os olhos abertos para ver? Quando abriremos os
braços para abraçar todas as pedras, as flores, a chuva e os homens? Que diz você disso,
patrão? E os livrecos, o que dizem?
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(p.118, Capítulo 8)
Caminhando com o escritor em direção à aldeia, Zorba chuta uma pedra que
começa a rolar na descida do caminho. Ele então para, espantado, “como se
visse pela primeira vez na vida tão surpreendente espetáculo.” Vira-se para o
amigo escritor e lhe diz, com um “ligeiro tremor” no olhar:
-Viu isso, patrão? – disse-me enfim – Nas descidas as pedras ganham vida.
Nada respondi, mas era grande minha alegria. ‘É assim, pensava eu, ‘ que os
grandes visionários e os grandes poetas vêem as coisas pela primeira vez. Cada
manha descobrem um mundo novo que eles próprios criam.
O universo constituía para Zorba como para os primeiros homens, uma visão pesada
e compacta; as estrelas deslizavam sobre ele, o mar se quebrava contra suas
temporas; sem a intervenção deformadora da razão, ele vivia a terra, as águas, os
animais e Deus.
(pg. 169, Capítulo 12)
Mais tarde no diálogo com Zorba (pg. 330) o escritor vai retomar este tema,
desta espécie de homens que vivem sentindo-se parte do universo,
descobrindo a cada manhã um mundo novo “que eles próprios criam”.
No contato com Zorba, o escritor consegue refletir sobre sua relação com o
mundo, com as pessoas. Ele passa a ver como sua vida havia se tornado “um
monólogo interior”, em que fugia do contato verdadeiro com outras pessoas:
Sabia que Zorba tinha razão, sabia, mas faltava-me coragem. Minha vida tinha
tomado caminho errado, e meu contato com os homens não era mais do que um
monólogo interior. Havia descido tão baixo que se tivesse que escolher entre ficar
apaixonado por uma mulher e ler um bom livro, eu preferiria o livro.
(p.127, Capítulo 8) 5. Transformar a matéria em espírito e a idéia abstrata em história: a
história como “o mais alto píncaro” de uma idéia abstrata
Neste diálogo entre o escritor e Zorba encontramos a idéia de Nietzsche, de
que é pelo saber do corpo que o espírito se eleva. A tarefa do homem, de que
fala o escritor, é “transformar a matéria em espírito”. Zorba pede ao escritor :
“Fale simplesmente, para eu poder entender”. Ele pergunta ao escritor qual é
o fim, qual o sentido, o propósito do homem na terra:
- Eu creio, Zorba, mas posso estar enganado, que há três espécies de homens: os que
têm como objetivo de vida – como dizem eles – comer, beber, amar, enriquecer, ficar
célebres. Depois há aqueles que têm por objetivo não só a sua própria existência,
mas a de todos os homens. Sentem que todos os homens são iguais, como se fossem
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um só, e esforçam-se para esclarecê-los, para amá-los o mais que podem e para lhes
fazer o bem. Enfim há aqueles cujo objetivo é viver a vida do universo inteiro: todos
nós, homens, animais, plantas, astros, somos um só, somos apenas uma mesma
substancia que trava a mesma luta terrível. Que luta? Transformar a matéria em
espírito.
(pg. 330, Capítulo 24)
Zorba coça a cabeça e diz que não entende com muita facilidade o que o
escritor disse: “ Se você pudesse, patrão, me dizer tudo isso como uma
história”(pg. 330). Zorba então conta uma história para o escritor, sobre um
segredo que lhe confiou um velho turco, seu vizinho quando era criança,
chamado Hussein Agá:
Era um velho turco, nosso vizinho. Muito velho, muito pobre, sem mulher nem
filhos, completamente só. Suas roupas eram puídas, mas brilhavam de limpas. Era
ele que lavava, cozinhava e limpava o chão. De noite ia à nossa casa. Sentava no
quintal com minha avó e outras velhas e tricotava meias. Esse Hussein Agá era um
santo homem. Um dia me pôs no colo, pôs a mão na minha cabeça como se me
benzesse e disse: ‘ Aléxis, vou lhe confiar uma coisa. Você é muito pequeno para
compreender, mas vai entender quando for grande. Escute, meu filho: o bom Deus,
você sabe, não cabe nem nos sete andares da terra. Mas cabe no coração do homem.
Então tome cuidado, Aléxis, para nunca ferir o coração do homem!
(pg. 331, Capítulo 24)
O escritor ouviu Zorba em silencio e compreendeu que o amigo havia
conseguido que uma idéia abstrata atingisse seu ponto mais alto, pois a
transformou em uma história:
Se eu pudesse não abrir a boca senão quando a idéia abstrata tivesse atingido o seu
mais alto píncaro – quando se tivesse transformado numa historia! Mas isso somente
pode conseguir um grande poeta, ou então um povo, após muitos séculos de silencioso
amadurecimento.
(pg. 331, Capítulo 24)
Quando a idéia abstrata é transformada em história ela atinge “seu mais alto
píncaro”. Consegue tocar o coração dos homens, como o próprio escritor
relata em outra passagem, desta vez sobre o Natal. No hemisfério Norte o
Natal corresponde justamente ao final dos dias mais curtos, do inverno, e o
início de dias mais longos. O fenômeno físico da natureza, então, corresponde
à chegada da luz. Mas, diz o escritor, é a história do Natal – a chegada da
criança - e não a descrição científica dos dias mais longos que emociona o
homem:
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Se se dissesse: “Hoje nasce a luz”, isso não teria emocionado o coração do homem: a
idéia não se teria transformado em lenda e não teria conquistado o mundo. Teria
expressado apenas um fenômeno físico normal e não teria inflamado nossa
imaginação, quero dizer, nossa alma. Mas a luz que nasce no coração do inverno
transformou-se em criança, a criança transformou-se em Deus, e eis que por vinte
séculos nossa alma o guarda em seu seio e o acalenta.
Pouco depois da meia-noite, a cerimônia mística chegava ao fim. Cristo havia
nascido. Os aldeões corriam as suas casas, esfomeados, alegres, para as comilanças e
para sentir no mais fundo de suas entranhas o mistério da encarnação. O ventre é a
base sólida: pão, vinho e carne, antes de tudo. Só com pão, vinho e carne se pode
criar Deus.
As estrelas brilhavam, grandes como anjos, por cima da cúpula toda branca da
igreja. A Via Láctea, igual a um rio, corria de um lado ao outro do céu. Uma
estrela verde cintilava sobre nós como uma esmeralda. Eu suspirava, emocionado.
Zorba virou-se para mim:
- Você acredita nisso, patrão, que Deus virou homem e que nasceu num estábulo?
Você acredita ou você não liga para o mundo?
- Zorba, é difícil responder – disse eu – Eu não posso dizer que creio nem que não
creio. E você?
- Palavra, eu também já não sei mais onde estou. Quando era criança, eu não
acreditava nem um pouco nos contos de fada que minha avó me contava e no entanto
eu tremia de emoção, eu ria, eu chorava, como se acreditasse. Quando apareceu
barba em meu queixo, deixei de lado todas essas bobagens, e só fazia rir delas. Mas
agora na minha velhice eu amoleci, patrão, e creio de novo...O homem é uma
máquina engraçada!
(pgs. 144-145, Capítulo 10)
Em outro momento reaparece o tema sobre a tarefa do homem neste mundo,
que seria transformar a matéria em espírito, para alguns, ou “em alegria”, para
Zorba. O homem se eterniza e se transforma pelo que faz. Este é o sentido da
vida:
O que é este mundo?’ perguntava-me, ‘qual a sua finalidade e em que podem nossas
vidas efêmeras concorrer para alcançá-la? O objetivo do homem é transformar a
matéria em alegria, pretende Zorba; em espírito, dizem outros; o que vem a ser o
mesmo, em outro plano. Mas por que? Com que finalidade? E, quando o corpo se
dissolve, restará alguma coisa daquilo a que chamamos alma? Ou então nada
subsiste, e nossa inextinguível sede de imortalidade vem, não do fato de sermos
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imortais, mas porque, durante o curto instante em que respiramos, estamos a serviço
de algo imortal?
(pg. 323, Capítulo 24)
O tema da integração entre o corpo e a alma já aparece no início do livro,
quando no navio o escritor e Zorba conversam, e este diz que o homem é ao
mesmo tempo “uma grande fera e um grande Deus”. A liberdade para Zorba
vem desta integração:
- Basta que eu diga que esse mundo é um mistério e que o homem não é outra coisa
senão uma grande fera. Uma grande fera e um grande Deus. Um imbecil havia
vindo comigo da Macedônia para juntar-se aos rebeldes, Yorga chamava-se ele, e era
um porco imundo. Pois bem, ele se põe a chorar. “Por que está chorando,maldito
Yorga?”, eu lhe pergunto, chorando eu também como uma cascata...E ele se atira
sobre mim, chorando como uma criança, e me dá dois beijos. Depois, esse grande
patife tira a bolsa, derrama sobre os joelhos as moedas de ouro que havia roubado
aos turcos e joga-as para o ar, em punhados. Você compreende, patrão? Isto que é a
liberdade!
Levantei-me e subi ao tombadilho para sentir o vento áspero do mar castigar-me as
faces.
Isto é que é a liberdade, pensei eu. Ter uma paixão, acumular moedas de ouro, e
subitamente, vencer a paixão e espalhar seu tesouro aos quatro ventos. Libertar-se de
uma paixão para servir outra, mais nobre. Mas isso não é também uma forma de
escravatura? Sacrificar-se por uma idéia, por sua raça, por Deus? Ou será que,
quanto mais alto está o patrão, mais longa se torna a corda da escravatura? O
escravo pode então agitar-se em uma arena mais espaçosa, e morrerá sem nunca ter
encontrado a corda. Será isso então que chamamos liberdade?
(Pg. 36, Capítulo 2)
6. Será isto então que chamamos liberdade?
Zorba questiona o que se faz em nome da liberdade, da religião e da pátria.
Foi para a guerra a fim de lutar pela pátria, mas considera este feito como
parte de “besteiras passadas”. Ao ouvir isto o escritor o critica, perguntando
se não tem vergonha de falar assim de sua pátria. É então que Zorba
responde, contando sobre como, graças a uma experiência durante a guerra, se
deu conta da barbárie que cometia em nome de um ideal. Ele é desperto pelo
sentimento de empatia, ao sentir a dor de cinco garotinhos, órfãos de guerra,
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cujo pai havia sido morto pelo próprio Zorba no campo de batalha. É então
que Zorba se dá conta do absurdo da guerra. Ganha uma compreensão pelo
coração, pelo sentimento, diferente da compreensão do escritor que parece até
então sempre se limitar “à cabeça”. Aqui vemos o tema de uma compreensão
para além da razão :
- Já esteve na guerra, Zorba?
- E eu sei? – respondeu franzindo a testa – Não me lembro. Que guerra?
- Bem, quero dizer, você já foi lutar pela pátria?
- Se você mudasse de assunto, hein? Besteiras passadas, besteiras esquecidas.
- Chama isso de besteiras, Zorba? Não tem vergonha? É assim que fala da sua
pátria?
Zorba levantou a cabeça e olhou-me. Estava estirado na cama e por cima de mim
brilhava a lâmpada de azeite. Fitou-me um longo momento, com severidade; depois,
agarrando os bigodes com ambas as mãos:
-Você é ingênuo e pedante, patrão...salvo o devido respeito – disse finalmente – Tudo
o que digo é como se estivesse cantando.
-Como assim? – protestei – Compreendo muito bem, Zorba!
- Sim, você compreende com a cabeça. Você diz: “Isto é justo, isto não é justo; é
assim ou não é assim; você está certo ou está errado”. Mas isso leva a gente para
onde? Enquanto você fala, eu observo seus braços, seu peito. Pois bem, que é que eles
fazem? Ficam mudos. Não dizem nada. Como se não tivessem uma gota de sangue.
Então, como é que você quer compreender? Com a cabeça? Pff!
- Vamos, fale claramente, Zorba, não tente fugir! – exclamei para excitá-lo – Creio
que você não se aflige muito pela pátria, hein, malandro?
Zangou-se e deu um soco na parede que fez ressoar a lataria.
- O papaizinho aqui – vociferou – tinha bordado com os próprios cabelos a Igreja de
Santa Sofia num pedaço de pano que trazia pendurado no pescoço, contra o peito,
como um amuleto. Perfeitamente, meu velho, foi com essas grandes patas que eu
bordei, e com estes pêlos aqui, que eram, naquele tempo, pretos como azeviche. Este
que lhe fala vagou como Pavlo Melas pelos rochedos da Macedônia – um rapagão,
um colosso mais alto que esse barracão, que eu era – com minha fustanela, meu fez
vermelho, meus berloques de prata, meus amuletos, meu sabre, minhas cartucheiras e
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minhas pistolas. Estava coberto de ferro, de prata e de pregos, e quando andava os
metais tilintavam como se passasse um exército! Veja, olhe...olhe!...
Abriu a camisa e abaixou as calças.
- Traga a luz – ordenou.
Aproximei a lâmpada do corpo magro e bronzeado: talhos profundos, cicatrizes de
balas, golpes de sabre; seu corpo era uma verdadeira peneira.
- Olhe agora do outro lado!
Virou-se, mostrando as costas.
(Pgs. 266-268, Capítulo 20)
Zorba continua a conversa com o escritor, questionando os homens que se
acham “civilizados” mas cometem atos de violência contra outros homens em
nome da pátria ou da religião. Zorba se lembra de como ele próprio já havia
sido um destes homens, até um acontecimento em que viu o absurdo da
guerra. Esta experiência o transformou profundamente:
- Você está vendo, por trás nem um só arranhão. Morou? Então, leva a lâmpada.
Bobagens! – urrou furiosamente – Uma vergonha! Meu velho, quando é que o
homem vai virar verdadeiramente um homem? A gente veste calça, colarinho,
chapéu, mas ainda somos umas mulas, lobos, raposas, porcos. Dizem que somos a
imagem de Deus! Quem, nós? Que piada!
Dir-se-ia que lembranças terríveis lhe vinham ao espírito e ele se exasperava cada
vez mais, murmurando, entre os dentes moles e estragados, palavras vacilantes.
Levantou-se, pegou a garrafa de água, bebeu a grandes tragos; depois, refeito,
acalmou-se um pouco.
(...)
“Entrei para as guerrilhas como comitadji. Um dia, já escurecendo, fui dar numa
aldeia búlgara e me escondi num estábulo, na casa do padre búlgaro que era, ele
próprio, um feroz comitadji, uma besta sanguinária. De noite, tirava a batina,
punha roupas de pastor, pegava nas armas e penetrava nas cidades gregas. Voltava
de manha, antes de clarear o dia, pingando lama e sangue, e ia dizer a missa.
Alguns dias antes da minha chegada, ele tinha matado um professor grego na cama,
enquanto dormia. Eu, então, entro no estábulo do padre, me deito na palha atrás
dos bois e espero. Lá pela tardinha, vem o padre dar comida aos animais. Aí eu me
jogo sobre ele e o degolo como um carneiro; corto as orelhas e guardo no bolso. Eu
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fazia coleção de orelhas búlgaras, compreende você? Então pego as orelhas do padre e
dou no pé.
Alguns dias depois, volto à mesma aldeia, em pleno meio-dia, fingindo que era
mascate. Tinha deixado as armas na montanha e vinha comprar pão, sal, sapatos
para os camaradas. Defronte de uma casa, vejo cinco garotinhos, todos de preto,
descalços, de mãos dadas, pedindo esmolas. Três meninas e dois meninos. O maior
não devia ter mais de dez anos, o menor era ainda um bebê que a mais velha das
meninas carregava no braço, beijando e acariciando para ele não chorar. Não sei
como, sem dúvida, foi uma inspiração divina, tive idéia de chegar perto deles:
“Vocês são os filhos do padre?” perguntei em búlgaro.
O maior dos meninos levanta a cabecinha.
“Do padre que degolaram outro dia no estábulo”, respondeu.
“Fiquei com lágrimas nos olhos. A terra começou a girar como uma roda de moinho.
Eu me apoiei na parede e ela parou de rodar.
“Venham cá, meus meninos”, disse, “cheguem perto de mim”
“Tiro a bolsa do cinto. Estava cheia de libras turcas e de medijidies. Ajoelho e
despejo tudo no chão.
“ ‘Tomem!’ Grito eu, ´Tomem, tomem!´
“As crianças se jogam ao chão e começam a catar libras e medijidies.
“ ‘É para vocês, é para vocês!’ Eu gritava, ‘peguem tudo!’
“E ainda deixei com eles a minha cesta com as compras.
“E logo vou ter com os camaradas. Saio da aldeia, abro a camisa, tiro a Santa
Sofia que eu tinha bordado, rasgo, jogo para o ar, e pernas para que te quero! E até
hoje ainda corro...”
Zorba encostou-se à parede, voltando-se para mim:
- Foi assim que me libertei – disse.
- Libertou-se da pátria?
-Sim, libertei-me da pátria – respondeu, com voz firme e calma.
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(Pgs. 268-269, Capítulo 20)
7. A liberdade da alma que avança mais rapidamente que o mundo
O escritor, ao descrever Zorba, traz uma idéia sobre a liberdade da alma que
consegue avançar “mais rapidamente que o mundo”. Ele conta como Zorba
conseguia ver o instituído – moral, religião, pátria - não como verdade
absoluta, já que fora criada pelos homens, e por isto mesmo passível de
superação. No trecho anterior vemos como Zorba compreende o absurdo da
guerra em nome da religião e da pátria. Como ele mesmo diz, libertou-se da
pátria ao encontrar cinco crianças órfãs do pai que ele havia matado, por ser
búlgaro. Há a idéia de que toda pessoa nasce em uma cultura mas quando
consegue ultrapassá-la, sua alma se eleva. A alma pode então se transformar
em ‘ pássaro de aço’ (pg. 218):
Para Zorba os acontecimentos, mesmo os contemporâneos, não eram mais do que
velharias, se ele já os tivesse ultrapassado dentro de si mesmo. Seguramente, segundo ele
pensava, telegrafo, navio a vapor, estradas de ferro, a moral costumeira, pátria, religião
não eram senão velhas carabinas enferrujadas. Sua alma avançava e progredia bem mais
rapidamente que o mundo.
(p.26, Capítulo 2)
...
- Livre da pátria, livre dos padres, livre do dinheiro. Eu vou peneirando. Quanto mais
eu vivo, mais eu passo na peneira. Eu me alivio. Como direi? Eu me liberto, viro um
homem.
Os olhos de Zorba brilhavam, sua boca enorme ria de satisfação.
Calou-se um momento e recomeçou. Seu coração transbordava, não podia mais controlálo:
- Teve um tempo que eu dizia: aquele é um turco, aquele é um búlgaro; este é um grego.
Eu fiz pela pátria coisas que deixavam você de cabelo em pé, patrão. Degolei, roubei,
queimei aldeias, violei mulheres, exterminei famílias. Por que? Pretextando que eram
búlgaros, turcos. Puáh! “Vá para o diabo, seu sujo”, eu me xingo muitas vezes. “Vá
para o diabo, imbecil!”. Agora, olhe o que eu digo: este é um homem direito, aquele é
um sujo. Tanto faz se é búlgaro ou grego, não faz diferença. É bom? É mau? É só o
que pergunto hoje. E mesmo assim, agora que estou envelhecendo, juro pelo pão que
como, acho que nem vou perguntar mais. Meu velho, sejam bons ou maus, tenho pena de
todos. Quando vejo um homem, mesmo que eu banque o indiferente, isso me dói nas
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entranhas. “Olhe o coitado”, digo para mim, “ele também come, bebe, ama, tem medo;
ele também tem o seu Deus e o seu Diabo. Ele também vai bater as botas, e se deitar
bem esticado embaixo da terra e ser comido pelos vermes. Eh! Coitado! Somos todos
irmãos”
(p.270, Capítulo 20)
Uns conseguem se eternizar, como Zorba e o escritor, ao transformar a
matéria em espírito, através da sua criação, da alegria que sentem naquilo que
estão fazendo. O escritor, ao escrever a história de sua amizade, se eterniza e
eterniza Zorba. Mas, para outras pessoas a religião é a única forma de se sentir
fazendo parte da eternidade, como o próprio Zorba explica ao seu amigo:
- Minha terceira teoria – disse depressa, não podendo suportar o meu silencio – é
esta: há eternidade, mesmo em nossa vida efêmera, mas é-nos muito difícil descobri-la
sozinhos. As preocupações cotidianas nos desviam. Somente alguns, os seres de elite,
conseguem viver a eternidade, mesmo em sua vida efêmera. Como os demais se
perderiam, Deus por piedade lhes mandou a religião – e assim o vulgo pode também
viver a eternidade.
(pg. 246, Capítulo 18)
Na primeira conversa dos dois, no navio, Zorba já chamava de “mistério” o
fato do homem se comportar muitas vezes como “um animal feroz que
devora os homens”(pg. 32).
Ele me olhou com olhos arregalados, estupefatos.
- É um mistério – murmurou – Um grande mistério! Então para que a liberdade
chegue ao mundo são necessárias tantas mortes e patifarias? Se eu lhe contasse agora
os crimes e enormidades que foram cometidos, você ficaria com os cabelos em pé. E no
entanto, qual foi o resultado de tudo isso? A liberdade! Não compreendo mais nada!
Olhou-me como quem pedisse socorro. Era evidente que esse problema o
atormentava, a ponto de não mais poder suportá-lo.
- Você compreende, patrão? – perguntou com angústia.
Como compreender? O que responder? Ou aquilo a que chamamos Deus não existe,
ou aquilo a que chamamos crimes e enormidades é necessário à libertação do
mundo...
Esforcei-me em encontrar para Zorba uma explicação simples.
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- Como uma flor pode germinar e crescer sobre o lixo e o esterco? Pode-se dizer,
Zorba, que o homem é o lixo e o esterco, e que a liberdade é a flor.
- Mas a semente? – disse Zorba, batendo na mesa com o punho fechado – Para que
a flor possa nascer, é preciso a semente. E quem botou uma semente como a
liberdade em nossas entranhas sujas? E por que essa semente não floresce com a
bondade e a retidão? Por que precisa do sangue e do lixo?
Balancei a cabeça.
- Não sei – disse-lhe.
- Quem sabe, então?
- Ninguém.
- Mas então – gritou Zorba em desespero, olhando selvagemente em torno de si –
para que servem esses navios, essas máquinas, esses colarinhos?
(pg. 33-34, Capítulo 2)
8. A liberdade e a alma humana como “pássaro de aço”
A liberdade é apresentada em Zorba O Grego como algo que é construído pelo
homem. O homem não nasce livre, ele constrói sua liberdade. Quando o
escritor fala da alma humana como “um pássaro de aço”, está falando desta
liberdade que não nasce pronta, mas é construída pelo homem a cada dia, pelo
seu trabalho e na relação com seus semelhantes. Quando disse sim ao mundo
e se entrega de corpo e alma ao que está fazendo, o homem se torna fazedor,
criador – a poesis de que nos fala Platão. Ao terminar um trabalho, as vezes
olhamos espantados e dizemos ‘graças a Deus’, esquecendo o esforço que
fizemos ao realizá-lo. Sentimos como se aquilo que criamos fosse obra dos
deuses, das infinitas energias que nos ajudaram na realização. Nossa alma se
sente então como “um pássaro de aço”:
Pousou os dedos grossos no santuri e aprumou o pescoço. Sua voz selvagem, rouca,
dolorosa, elevou-se:
Quando tomares uma decisão, não tenhas medo,
Para a frente!
Solta a rédea à tua juventude, não a poupes
Dissiparam-se as preocupações, os aborrecimentos fugiram, a alma atingiu seu
próprio cume. Lola, a linhita, o teleférico, a ‘eternidade’, as pequenas e as grandes
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confusões, tudo isso se transformou em fumaça azul que se dissipou nos ares,
restando apenas um pássaro de aço, a alma humana que cantava
(pg. 218, Capítulo 16)
A alma humana se torna um “pássaro de aço”, que tem a leveza da ave e a
resistência do metal. O aço, por sua vez, não é encontrado na natureza mas
sim é resultado da combinação de outros materiais, estes sim encontrados na
natureza – o ferro e carbono. Estes metais se transformam em aço ao serem
submetidos a altas e baixas temperaturas. A analogia da transformação dos
metais está em Nietzche, quando este fala da necessidade do embate das idéias
entre os homens. Para Nietzche é desta forma que os homens crescem.
Ao mesmo tempo, quando a tarefa se completa depois de tanta
intensidade, chegamos ao final de um ciclo. Um tema recorrente e de suma
importância surge, então de novo na história – o tema da necessidade da
separação. Se a intensidade no fazer as coisas é importante, é igualmente
importante saber o momento da separação:
-Patrão, eu já disse: o santuri, ele quer um coração feliz. Eu vou tocar daqui a um
mês, dois meses, um ano, dois anos, sei lá! Aí então vou cantar como dois seres se
separam para sempre.
- Para sempre! – exclamei aterrorizado.
Repetia dentro de mim esta palavra irremediável, mas não esperava ouvi-la. Fiquei
apavorado.
- Para sempre!- repetiu Zorba, engolindo a saliva com dificuldade – Sim, para
sempre. Isso que você diz, que a gente vai se encontrar, que vamos construir um
mosteiro, são consolações indignas, que eu não aceito!
(pg. 355, Capítulo 26)
No momento de separação do amigo Zorba, na sua última noite juntos, o
escritor contem a vontade de chorar, e lhe vem a imagem do que é feita a alma
humana – de aço, e não de vento:
‘Despeça-se dele para sempre’ pensava eu ‘ olhe bem para ele; nunca mais, nunca
mais seus olhos verão Zorba!’
Olhei para Zorba, que esticava o pescoço de ave de rapina e bebia em silencio. Olheio e meus olhos ficaram embaçados. Então que mistério atroz é esse, a vida? Os
homens encontram-se e separam-se como folhas que o vento leva. Em vão o olhar se
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esforça para reter a face, o corpo, os gestos do ser amado; em alguns anos não
lembramos mais se seus olhos eram azuis ou pretos.
‘Devia ser de bronze, devia ser de aço a alma humana’ dizia comigo ‘ e não de
vento!’.
Zorba bebia, mantinha a grande cabeça bem aprumada, imóvel. Dir-se-ia que
estava ouvindo na noite passos que se aproximavam ou passos que se afastavam nos
recônditos do seu ser.
(pg. 354, Capítulo 26)
9. A figura da mulher para o escritor
Há uma luta interna do narrador contra o próprio corpo, contra os instintos,
contra o desejo pela viúva. Aqui vemos a dificuldade do escritor de se
relacionar com as mulheres. O medo da mulher parece tê-lo empurrado para
os livros e para o ideal de Buda. Ele vê a mulher como o Cão, o demônio, o
mal:
“Quem teria criado esse labirinto de incertezas, esse templo de presunção, essa jarra de
pecados, esse campo semeado de mil ardis, essa porto do inferno, essa cesta transbordante
de astúcias, esse veneno que parece mel, essa corrente que prende os mortais à terra: a
mulher?” Eu copiava lentamente, silenciosamente esse cântico budista, sentado no chão,
perto do braseiro aceso. Estava encarniçado, amontoando exorcismo sobre exorcismo, a
expulsar de meu espírito um corpo encharcado de água, balançando os quadris, que
durante todas essas noites de inverno passava e repassava diante de mim no ar úmido.
Não sei como, logo depois do desmoronamento da galeria, onde quase minha vida foi
diminuída, a viúva havia surgido em meu sangue; ela tocava-me como um animal feroz,
imperiosa, cheia de acusações. ‘Venha, venha’ gritava ela. ‘A vida não é senão um
relâmpago. Venha depressa, venha, venha, antes que seja muito tarde!
Eu sabia bem que era Mara, o espírito do Cão, sob a aparência de um corpo de
mulher de quadris possantes. Eu lutava. Havia-me posto a escrever Buda como os
selvagens que, em suas grutas, gravavam com uma pedra pontuda ou pintavam em
vermelho e branco os animais ferozes que rondavam, esfomeados, em volta deles.
( pg. 140-141, Capítulo 10)
Zorba é amigo das mulheres – não vê a mulher como o Cão, pelo contrário: a
mulher para Zorba tem a face de Afrodite (pg. 63), a mulher é divina, é Maria
mãe de Cristo. “Maria é a viúva”(p.144), diz ele para o escritor. O escritor
tinha um problema com as mulheres, por isto se refugiava, se escondia na
escrita e queria virar Buda, desapegado dos instintos, do corpo. Foi com o
incentivo de Zorba que ele conseguiu ter coragem de procurar a viúva. Ao
mesmo tempo podemos também pensar que Zorba não deveria ter
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incentivado o escritor a se iniciar justamente com a viúva cobiçada por todos
os homens daquele vilarejo tão primitivo.
Há um momento de reconciliação do escritor com a figura da mulher, quando
ele consegue ver a mulher não como Cão, mas como mãe, irmã e mulher. É
depois da conversa com Zorba, quando juntos vão para a casa de Madame
Hortense. Esta os espera de forma acolhedora, com a casa perfumada, com
comidas saborosas para a festa de Natal: “Subitamente meus olhos se
encheram de lágrimas. Senti que não estava, nessa noite solene,
completamente só, aqui na beira do mar deserto. Uma criatura feminina vinha
ao meu encontro, cheia de devotamento, de ternura e paciência: era a mãe, a
irmã, a mulher. E eu, que acreditava não precisar de nada, vi subitamente que
precisava de tudo. Zorba, devia ele também, sentir esta doce emoção, pois
apenas entramos , adiantou-se e apertou em seus braços a cantora arrebicada:
- Cristo nasceu! – disse ele”(p.146, Capítulo 10). Podemos pensar que o
narrador também começava a nascer – para um novo entendimento.
10. O escritor se da conta que não pode se desapegar do que ainda não
viveu
No início do livro, o escritor via Buda como ideal porque buscava alcançar o
total desapego de tudo. Para ele isto seria a liberdade. Mas com o tempo ele
acabou por se dar conta de que Buda era o “último homem” – e que ele não
podia ser Buda porque mal havia percorrido metade do que seria viver como
um homem. Antes, imaginava que libertação seria o desapego de tudo – como
Buda fez. Mas ele se dá conta que libertação está em viver a vida
intensamente. Escrever Buda deixou de ser um “jogo literário”. O escritor
percebeu que travava um duelo interno com “o grande não” que devorava seu
coração. Somente vai conseguir escrever sobre Zorba, quando se transformou
em um homem que diz “sim” à vida:
Tive um sobressalto e exclamei para mim mesmo: ‘Buda é o último homem! Eis aí o
seu sentido secreto e terrível. Buda é a alma pura que se esvaziou; nele está o Nada,
ele é o Nada. ‘Esvaziai vossas entranhas, esvaziai vosso espírito, esvaziai vosso
coração! ‘grita ele. Onde ele pisar, não brota mais água, não cresce erva, não nasce
uma só criança (...) Escrever Buda deixava enfim de ser um jogo literário. Era sim
uma luta de morte contra uma grande força de destruição à espreita dentro de mim,
um duelo com o grande Não que me devorava o coração. E a salvação de minha
alma dependia do desfecho deste duelo. Peguei no manuscrito, ágil e decidido. Achara
o alvo e agora sabia onde atirar! Buda é o último homem. E nós estamos apenas no
começo; não comemos nem bebemos, nem amamos o suficiente. Ainda nem vivemos
sequer. O velho delicado e esbaforido chegou-nos muito cedo.
(pg. 167-168 – capítulo 12)
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11. A importância de respeitar a necessidade de se manter a ilusão
Zorba aprendeu e conta para seu amigo sobre a importância da ilusão, da
fantasia, na infância e na velhice, através de uma estória. Ele conta para o
amigo escritor de algo terrível que fez na sua juventude e que o marcou
profundamente. Havia no seu vilarejo uma bela moça, Cristalo, para quem
todos os rapazes faziam serenatas nas noites de sábados. A avó de Zorba já
tinha quase 80 anos mas todos os sábados puxava o seu colchão para debaixo
da janela, apanhava às escondidas o seu espelho e começava se pentear e
pintar:
Ela estava esperando a serenata. Com oitenta anos! Você sabe, patrão, isso hoje me
dá vontade de chorar. Mas naquele tempo eu era bobo, não entendia, e me dava
vontade de rir. Um dia fiquei com raiva dela. Ela estava resmungando comigo
porque eu vivia atrás das moças, e resolvi botar tudo para fora: ‘Por que você se
pinta e se penteia todos os sábados? Você está pensando que a serenata é para você?
Pois não é, não. Nós desejamos Cristalo’ (...) Foi nesse dia quando vi duas lágrimas
caírem dos olhos de minha avó, que pela primeira vez entendi o que é uma mulher.
Ela havia se encolhido em seu canto, acuada como uma cadela, e o seu queixo
tremia (...) A juventude é um animal feroz que não entende nada. Minha avó
levantou os braços descarnados em direção ao alto e gritou para mim: ‘Eu te maldigo
do fundo de meu coração!’A partir desse dia ela começou a decair, depauperou-se, e
dois meses depois estava morrendo. Na sua agonia, ela me viu. Soprou como uma
tartaruga e estendeu sua mão seca para me agarrar: ‘Foi você que me matou, Aléxis
...
(pg. 64, Capitulo 4)
Em outro momento , Zorba traz de novo o tema da necessidade da ilusão, da
fantasia, da imaginação, tanto na infância como à medida que o ser humano
envelhece. É durante o Natal em que ele pergunta para o amigo escritor se
este acredita que “Deus virou homem e nasceu num estábulo” (pg. 145). O
amigo diz que não pode dizer se crê ou não crê, ao que Zorba responde que
acredita, remetendo-se a uma lembrança da infância:
(...) Quando eu era criança, eu não acreditava nem um pouco nos contos de fada que
minha avó me contava, e no entanto eu tremia de emoção, eu ria, eu chorava, como se
acreditasse. Quando apareceu barba em meu queixo, deixei de lado todas essas
bobagens e só fazia rir delas. Mas agora, na minha velhice, eu amoleci, patrão, e
creio de novo...O homem é uma máquina engraçada!”(p. 145, Capitulo 10)
25
12. Estar por inteiro é entregar-se de corpo e alma ao que se faz :
Quando fazemos as coisas pela metade os pensamentos ficam pela
metade
Quando Zorba faz as coisas, as faz com intensidade – seja o trabalho, a dança,
a música do santuri. Quando afirma que Deus “detesta cem vezes mais o meio
diabo que o arquidiabo”,nos faz lembrar de uma passagem na Divina Comédia
de Dante, em que vemos o inferno povoado daqueles que ficaram “em cima
do muro” ao longo da vida. Seriam aqueles que viveram pela metade. Há um
trecho em que o escritor se lembra como Zorba trabalhava freneticamente,
inteiramente entregue à tarefa:
O dia todo Zorba não levantou a cabeça. Trabalhou freneticamente. Cada cinqüenta
metros, os trabalhadores cavavam buracos e colocavam postes, dirigindo-se em linha
reta para o topo da montanha. Zorba media, calculava, dava ordens. O dia
inteirinho não comeu, nem fumou, nem resmungou. Estava todo entregue à tarefa.
- É porque fazemos o trabalho pela metade que exprimimos nossas idéias pela
metade – dizia-me por vezes Zorba – é porque somos pecadores ou virtuosos pela
metade que o mundo se encontra nessa perdição. Pois vá até o fim, bata forte, não
tenha medo, e vencerá. O bom Deus detesta cem vezes mais o meio diabo que o
arquidiabo”(pg. 275, Capítulo 20)
Zorba explica ao escritor porque mesmo depois da morte de Madame
Hortense ele consegue se entregar inteiramente, com todo seu espírito, ao
trabalho na mina:
“Eu deixei de pensar no que aconteceu ontem, deixei de indagar o que vai acontecer
amanhã. O que acontece hoje, neste minuto, é o que me
preocupa. Eu digo : “Que é que você está fazendo neste momento Zorba?” “ Estou
dormindo.” “ Então, durma bem!” “Estou trabalhando.” “Então, trabalhe bem!”
“Que é que fazendo neste momento, Zorba?” “Estou beijando uma mulher.”
“Então, beije bem, Zorba, esqueça o resto; não existe mais nada no mundo, só
ela!’”
(Pág. 324 Capitulo 24)
Antes o escritor já havia observado como Zorba se entregava totalmente ao
que estava fazendo no momento:
26
Recoloquei a lâmpada e fiquei vendo Zorba trabalhar. Ele se entregava inteiramente
à tarefa; não tinha mais nada na cabeça, identificava-se com a terra, a picareta e o
carvão. Fazia corpo com o martelo e os pregos, para lutar contra a madeira. Sofria
com o teto da galeria que se arqueava. Lutava com toda a montanha para tomar-lhe
o carvão, pela astúcia, pela violência. Zorba sentia a matéria com uma segurança
infalível, e a atingia sem se enganar, onde ela era mais fraca e podia ser vencida. E,
como eu o via naquele momento, enfarruscado, cheio de pó, apenas com o branco dos
olhos que luziam, parecia-me que ele havia se camuflado em carvão, se havia
transformado em carvão, para poder mais facilmente aproximar-se do adversário e
penetrar em suas defesas.
(pg. 137, Capítulo 9)
O escritor, com “admiração ingênua”, grita entusiasmado para Zorba: “Vá em
frente, Zorba!” Entretanto Zorba nem se vira - está totalmente entregue à
tarefa e se irrita com a interrupção.
Como poderia naquele momento distrair-se com um camundongo comedor de papel
que, em vez de picareta, tinha na mão um miserável toco de lápis? Estava ocupado,
não se dignava falar – Não me fale enquanto estou trabalhando – disse-me ele uma
noite (...) Como explicar? Estou todo dedicado ao trabalho, tenso dos pés à cabeça,
colado na pedra ou no carvão, ou então no santuri. Se você me toca nessa hora, de
repente, se você me fala e eu me volto, posso estourar. Aí está! (pg. 138, Capítulo
9)
Quando se entrega inteiramente ao que está fazendo, mergulhando no tempo
presente, todos os tempos se presentificam. O tempo presente é o que temos
e, quando estamos integrados todos os outros tempos nele estão contidos,
como no poema de T. S. Elliot:
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstração
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
27
Há também a idéia de que ao fazermos algo bem, por inteiro, nos
harmonizamos com o ritmo do universo, nos sentimos tomados, fazendo
parte dele. É como se tudo conspirasse em favor do que estamos fazendo, há
uma sincronicidade, sempre surgem ajudas inesperadas. Ao realizar uma tarefa
por inteiro, experimentamos uma “alegria divina”, como diria Bérgson, um
dos mestres de Kazantzakis. O escritor lembra-se de um trecho de Marco
Aurélio que também descreve esta sensação de sintonia com o todo:
Quanto a mim, fiquei acordado muito tempo, seguindo as estrelas do céu. Via-o
deslocar-se por inteiro, lentamente, com todas as constelações – e a minha calota
craniana, como a cúpula de um observatório, movia-se também, ao mesmo tempo em
que as estrelas. “Olha a marcha dos astros como se circulasses com eles...e considera
sempre as transformações de elementos uns nos outros. Estas indagações purificam as
sordidezas da vida aqui na Terra” Esta frase de Marco Aurélio encheu de
harmonia o meu coração (Pg. 276, Capítulo 20 )
13. A memória involuntária
Ao ver o seu amigo Zorba dançando de felicidade, o escritor volta a uma
memória da sua infância, quando o avô morreu. Isto acontece na medida em
que Zorba vai dançando, jogando-se à dança, erguendo-se no ar em piruetas,
“como se quisesse vencer as leis da natureza e sair voando”. O escritor fica
com medo de que “o velho corpo” do amigo “não resistisse a tanto ímpeto” e
explodisse “em mil pedaços aos quatro ventos”:
Sentia-se nesse corpo cheio de vermes a alma em luta para empolgar a carne e jogarse com ela nas trevas, como um meteoro. A alma sacudia o corpo que tombava, não
podendo mantê-lo no ar por muito tempo; ela o impulsionava de novo, impiedosa,
dessa vez um pouco mais alto, mas o coitado caía, arquejante (...) Como poderia
Zorba ouvir os gritos da terra? Suas entranhas se haviam transformado nas de um
pássaro.
(Pg. 91, Capítulo6)
O escritor então se lembra de que quando era pequeno sua imaginação não
tinha freios. Aqui vemos como a criança através da sua imaginação tem
recursos para lidar com o que não entende e teme – como a morte de alguém
querido. O escritor se lembra de quando criança imaginava, inventava e
acreditava na sua própria história fantástica e inventada em função da sua
necessidade. A visão do amigo Zorba o remete ao tempo passado, sente medo
de perder o amigo pela associação que faz com o seu avô:
28
-Como morreu o seu avô? – perguntaram-me um dia meus amiguinhos da escola
pública.
E eu, imediatamente, forjei um mito; e à medida que ia forjando, ia acreditando.
- Meu avo usava sapatos de borracha. Um dia quando sua barba já estava branca,
ele pulou do telhado da nossa casa. Mas ao tocar a terra, ele pulou do telhado de
nossa casa. Mas, ao tocar a terra, ele pulou como uma bola e subiu mais alto que o
telhado, e sempre mais alto, mais alto, e ele desapareceu nas nuvens. Assim morreu
meu avo.
(...)
Naquela noite, depois de tantos anos, ao ver Zorba pular no ar, revivi este conto
infantil com terror, como se acreditasse que Zorba pudesse desaparecer nas nuvens.
(Pg. 92, Capítulo 6)
Na presença do amigo vem a lembrança do avô, de uma forma inesperada.
Estando com o amigo Zorba, o escritor relembra como precisou criar uma
história que o ajudasse a tolerar a morte do avô. Mais tarde, ele vai escrever
um livro para manter o seu amigo Zorba vivo na lembrança. Quando criança
ele mostrou sua criatividade inventando uma história para suportar a dor. Mas
este seu talento de contador de histórias havia ficado sufocado por ele pensar
que poderia escrever apenas teoricamente, sobre idéias abstratas sem viver a
vida. A lembrança da infância o ajuda a perceber como sua criatividade havia
ficado estagnada, como sua vida. Mas isto muda. A “lenda dourada de Zorba”
é viva porque sentimos que ele viveu o que escreveu.
14. A viúva como um tabu
No livro a figura da viúva é apresentada muitas vezes. Zorba conta que
quando chegava a um novo lugar, perguntava logo onde era a casa da viúva,
por saber que seria muito bem recebido: “À noite, não importa em que aldeia
chegasse, sabia onde me alojar. Em todas as aldeias há sempre uma viúva
complacente” (p. 31, Capítulo II). O livro termina com uma carta para o
escritor dizendo que a viúva de Zorba o espera para passar uma noite em sua
casa: “A viúva lhe pede, pois, que quando o senhor tiver ocasião de chegar até
nossa aldeia, se dê ao incômodo de vir passar a noite em sua casa, e de manhã,
quando se for, levará o santuri”(pg. 369). Também sabemos que havia uma
tradição em vilarejos como aquele de que a viúva precisava se vestir de preto e
ficar isolada durante quatro anos.
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Em algumas culturas e em comunidades mais arcaicas como a do vilarejo em
que se encontram Zorba e o escritor, uma viúva jovem, é vista como um tabu.
Há nestas sociedades uma preocupação muito intensa e ao mesmo tempo
ambivalente em relação à figura da viúva. A falta do marido cria um vazio, um
desamparo, que mobiliza a vontade entre os homens de preenchê-lo. Para
reprimir esta vontade, eles a isolam, pensando assim que se protegem. É
assim que ela se torna um tabu, algo que não pode ser tocado. Por ser tabu,
desperta um desejo ainda mais forte de violá-lo. Então é justamente por se
tornar um tabu que a viúva se torna ainda mais objeto de desejo destes
homens.
Sem perceber os sinais de perigo, ou por espírito de ousadia, Zorba instiga o
amigo a procurar a viúva:
Patrão – disse ele – é aqui que quero ver você. Não desonre a espécie masculina! O
Diabo, ou o bom Deus, envia para você esse prato de príncipe; você tem dentes, não o
recuse! Pegue-o! para que o Criador nos deu mãos? Para apanhar! Então apanhe!
Mulheres já vi muitas na minha vida. Mas essa viúva, ela faz cair campanários, a
maldita! (...) Você não quer amolações? – perguntou Zorba estupefato – Então o que
quer você? (...) A vida é uma amolação – prosseguiu Zorba – A morte não. Viver,
sabe o que quer dizer? Desfazer a cintura e procurar encrenca (...) Não faça cálculo,
patrão – prosseguiu Zorba – Deixe cair as cifras, destrua a porcaria da balança, feche
a loja, estou lhe dizendo. É agora que você vai salvar ou perder a sua alma.
(pg. 127, Capitulo 8)
Um dos sinais do perigo se manifesta quando Pavli, o filho do velho
Mavandroni foi encontrado afogado na praia. As mulheres colocam a culpa do
suicídio na viúva, e repreendem os homens. Querem que algum deles a degole
– como se precisasse haver uma reparação: uma morte, para eles, precisaria ser
compensada com outra. O escritor assistiu a tudo e protesta, mas ninguém o
acompanha:
Eu tinha chegado aos rochedos onde toda a aldeia estava reunida. Os homens se
mantinham silenciosos, de cabeça descoberta; as mulheres com lenços nos ombros,
puxavam os cabelos, soltando gritos estridentes. Lívido e inchado, jazia um corpo na
areia. De pé, imóvel, contemplava-o o velho Mavrandoni. Apoiava-se na bengala, com a
mão direita. A esquerda cofiava a barba crespa e grisalha.
- Maldita sejas, criminosa – diz de súbito uma voz penetrante – hás de pagar isto ao
bom Deus!
Uma mulher levantou-se de repente e virou-se para os homens:
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- Então, não há um homem entre vocês para degolá-la como um carneiro? Puxa! Que
bando de frouxos.
E cuspiu para os homens que a olhavam sem dizer nada. Kondomanolio, o dono do
café, retrucou:
-Não precisa nos humilhar, Delicaterina – gritou ele – não precisa, há homens corajosos
na nossa aldeia e você vai ver!
Não me contive:
- Que vergonha, meus amigos! – disse eu – Qual é a responsabilidade dessa mulher?
Estava escrito. Será que vocês não crêem em Deus?
Mas ninguém respondeu.
(pg. 199, capitulo 14)
Depois da morte da viúva o escritor reflete sobre o que ela representa.
Matando a viúva, mata-se a liberdade. Os tempos se confundem, e é como se
todas as mulheres livres do tempo do rei Minos, do Palácio de Cnossos,
também fossem mortas:
O pavoroso acontecimento de um dia crescia, estendia-se no tempo e no espaço,
identificava-se com as grandes civilizações desaparecidas, as civilizações identificavam-se
com as grandes civilizações desaparecidas, as civilizações identificavam-se com o destino
da terra, a terra com o destino do universo (...) O tempo encontrara em mim seu
verdadeiro sentido: a viúva morrera milhares de anos antes, à época da civilização
engeana, e as moças de Cnossos, de cabelos crespos, morreram esta manha, à beira deste
mar risonho.
(pg. 297, capitulo 22)
O desejo que todos os homens daquele vilarejo em Creta portanto sentiam
não era simplesmente porque a viúva era muito bonita, como Zorba
acreditava. Era porque eles estavam tomados por pulsões ancestrais, muito
primitivas. Retomamos ao tema recorrente na obra, de que o homem é ao
mesmo tempo um animal feroz e um Deus. Como já nos referimos em uma
seção anterior, cada ser humano é feito de instintos, de energias que não se
podem reprimir simplesmente, mas sim canalizar em algo superior– como
Zorba fazia com a dança, por exemplo. No caso da morte da viúva, os
homens do vilarejo não conseguiram canalizar esta energia, estas pulsões que
sentiam – a reprimiram até que ela irrompesse da forma mais violenta
possível. Também podemos pensar que neste vilarejo havia uma profunda
rejeição ao estrangeiro, visto sempre como inimigo, uma ameaça, um invasor.
Assim a viúva, ao desejar um estrangeiro realizou uma dupla transgressão: em
uma sociedade machista, ousou realizar seu próprio desejo; e o fez com um
31
homem de fora do bando. O desfecho trágico mostra como não se deve
provocar aqueles que estão em estágios ainda muito primitivos.
Nikos Kazantzakis desde as primeiras páginas percebe que aquela ilha é
parecida com a de Próspero na Tempestade de Shakespeare. Nesta história o
único morador nativo era Caliban, um selvagem que Próspero tenta educar,
sem sucesso. Em vários momentos o escritor se refere ao povoado como
“Caliban”. Se o povo estava em um estado tão selvagem, só poderia se esperar
deles um desfecho primitivo. É como se Kazantzakis quisesse nos chocar
dizendo-nos que se os homens não se humanizarem, ou se instalam as guerras
sangrentas, chamadas de “santas”, ou se matam pessoas elegendo-as como um
bode expiatório.
A descrição do massacre da viúva (Pg. 291-297, Capitulo 22) ilustra um
momento de loucura coletiva daquele lugar. Esta passagem nos faz pensar
sobre como é perigoso ficar sozinho em um ambiente hostil, primitivo. A
viúva ficou muito isolada. Ela não se enquadrava, não cabia naquele lugar. Era
diferente por não sucumbir à moral daquele povoado e pagou o preço de não
ter saído daquele ambiente primitivo, em que não havia lugar para uma viúva
jovem. Quando alguém se isola ou é isolado, se torna muito vulnerável, um
alvo fácil para os outros projetaram seus medos, raivas, enfim, emoções mais
primárias. Zorba é o único que intervém no ataque à viúva – as mulheres,
jovens e velhas também participam do massacre, assistindo, apoiando,
participando do ato selvagem. Mesmo assim, o próprio Zorba não parece ter
visto os sinais que antecederam esta barbárie. Se tivesse visto o tamanho do
perigo, se pudesse prever o desfecho trágico, poderia não ter incentivado o
seu amigo a procurar a viúva. Talvez Zorba tenha ficado refém de suas
experiências passadas, em que sempre uma viúva o acolhia (pg. 31) sem
representar qualquer perigo. Mas naquele momento e naquele lugar era
diferente, e Zorba não percebeu o perigo. Zorba já sabia que se tratava de um
povo atrasado, como vemos no almoço em casa de Anagnosti, falando ao
amigo escritor:
Que falávamos anteontem, patrão? – disse-me – Você queria esclarecer o povo, abrir os
olhos dele! Pois bem, experimente abrir os olhos do tio Anagnosti! Você viu como a
mulher dele ficava ao lado, esperando ordens, como um cachorro que quer agradar? E vá
lhe dizer que é uma crueldade ficar lá comendo pedaços do porco, enquanto o porco está
vivo diante de você, gemendo; ou que a mulher tem os mesmos direitos que o homem. O
que vai fazer o pobre do tio Anagnosti das suas explicações? Você só vai lhe arranjar
problemas. E o que ganhará a mãe Anagnosti? Vão começar as cenas, a galinha vai
querer ser o galo do terreiro, não vai haver senão brigas...Deixe as pessoas tranqüilas,
patrão. Não abra os olhos delas. Se você fizer isso, que vão elas ver? A miséria em que
vivem! Deixe que continuem sonhando!
(pg. 80-81 Capitulo 5)
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Este povoado era muitas vezes chamado pelo escritor de “Caliban”, o
monstro selvagem da peça A Tempestade de Shakespeare. Eles matam o
diferente. Naquele lugar não havia espaço para alguém que desafiasse o modo
de viver deles. Para certas pessoas, os costumes da sociedade em que vivem
são como se fossem sua própria pele psíquica. Resistem a qualquer
possibilidade de mudança dos costumes porque a mudança significa para eles
a morte – como se lhe arrancassem a pele, deixassem-nos em carne viva. Para
certas pessoas a mudança é vista como a própria morte, já que são somente
casca: falta-lhes a alma interna. Então, como animais ferozes acuados
defendem-se violentamente, como o animal selvagem que, sentindo-se
ameaçado, ataca para defender a própria pele. Atacam porque não vêem que
atrás desta “pele” – seja a pátria, a moral costumeira, a religião – há um ser em
potência. Este ser é o “pássaro de aço” que cumpre sua tarefa de “transformar
a matéria em alegria”, em espírito, que assim sente-se fazendo parte de algo
maior que ele.
A verdadeira identidade de uma pessoa e de um povo é móvel, está em
perpétua construção. Quando Zorba fala que para ele não existem mais turcos
e gregos, apenas homens, ele está nos falando disto.
15. A necessidade de dissimular para se preservar em um ambiente
hostil
Depois de algum tempo convivendo com Zorba, o escritor confia ao amigo
um segredo: a mina de linhita é somente um pretexto, para que eles possam
ficar naquele lugar. O escritor mostra que não está atrás de linhita. Tem uma
busca interior, de reaprender a viver a vida com intensidade, de deixar de se
esconder atrás dos livros. Mas sabe que naquele lugar não poderia nunca
chegar contando da sua busca, da sua necessidade :
-Agora posso falar – disse – Há alguns dias tenho um grande projeto na cabeça,
uma idéia maluca. Vamos fazê-la?
- E você ainda pergunta? Mas se foi para isso que viemos aqui: para realizar idéias!
Zorba alongou o pescoço, olhando-me com alegria e medo:
- Fale direito, patrão! – gritou ele – Nós não viemos aqui por causa do carvão?
- O carvão é um pretexto para que as pessoas não fiquem curiosas. Para que nos
tomem como sábios empreendedores e não nos recebam com legumes podres.”
(pg. 90, Capítulo 6)
Depois é o próprio Zorba que tomado de alegria diz ao amigo que os dois,
agora cúmplices, vão “jogar poeira nos olhos das pessoas, para que elas não
33
nos tomem por malucos e não nos joguem tomates” (pg. 93). Neste caso eles
conseguem ver que o povoado não estava preparado para saber de sua
verdadeira intenção em morar ali. De novo reaparece o tema de se respeitar o
tempo do lugar, o tempo de cada um, o tempo das coisas. O próprio escritor
só confiou o seu segredo para Zorba depois de algum tempo. Vemos que é
necessário guardar os nossos propósitos até o momento adequado. Há
ambientes em que você não pode chegar como um livro aberto. As pessoas
poderiam não entender e, ao se sentirem ameaçadas, poderiam reagir de forma
violenta. Por isto, o escritor conta que “fingíamo-nos entendidos e práticos
nos trabalhos da linhita”. A forma como o escritor e Zorba se utilizam da
história da mina é um exemplo e um aprendizado de como é importante, ao se
chegar a um ambiente novo em que nós somos os diferentes, poder se
comportar externamente de acordo com a moral vigente. Na convivência, ao
longo do tempo, se houver empatia, nos transformamos e o ambiente se
transforma, até de maneira imperceptível.
16. A função da arte
Ao criar sua obra, o artista transformou o seu instinto em arte. Esta arte nos
mobiliza para outra forma de estar no mundo. Desde sempre a arte tem esta
função de nos preparar para a vida e nos tornar melhores:
Durante anos, séculos, os versos de Dante eram cantados assim na terra do poeta. E
como as canções de amor preparam os rapazes e moças para amar, os ardentes versos
florentinos preparavam os efebos italianos para a luta pela libertação. Todos, de
geração em geração, comungavam com a alma do poeta, fazendo de sua escravatura a
liberdade.
(pg.47, Capítulo 3)
Na Divina Comédia , o personagem Dante faz a travessia pelo Inferno,
Purgatório sempre acompanhado do poeta Virgílio. Podemos pensar que
Zorba foi um companheiro, como Virgilio, ajudando o escritor na viagem que
precisava fazer. Encontramos então a idéia de que não só a arte, mas também
o amigo pode ter esta função de nos preparar e acompanhar na viagem. É o
que vai acontecer com o escritor. Primeiro ele vai conviver com o amigo
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Zorba, para depois, na ausência deste, escrever “a lenda dourada de Zorba”, a
sua arte que eternizará o amigo – e o nosso aprendizado.
Em um outro trecho do livro, na troca de cartas entre o escritor e seu
amigo que partiu para o Cáucaso, eles se recordam de um encontro que ilustra
a função da arte de reunir as pessoas, de despertar afinidades entre
desconhecidos, como nos Círculos de Leitura. Esta experiência mostra que as
pessoas podem ser de países diferentes mas a literatura torna todos irmãos,
pois se trata de um patrimônio de todos, da humanidade. Como já dizia o
escritor Borges, o livro é escrito pelo Espírito, que vai além do tempo, da
pátria ou da cultura. Nos Círculos, a leitura em voz alta em grupo pode ser
mais demorada que na leitura individual, mas tem a vantagem das discussões e
do efeito da música das palavras. O som das palavras vai diretamente ao
coração, penetra no corpo e no inconsciente dos homens antes da razão. Esta
passagem ilustra porque esta experiência fica guardada em nós para sempre:
Você se lembra daquele dia em que atravessamos os dois a Itália de volta a Grécia?
Havíamos resolvido ir a região do Ponto, então em perigo, você se lembra? Numa
aldeia descemos as pressas do trem – tínhamos apenas uma hora antes da chegada
do outro trem. Entramos em um grande jardim viçoso, perto da estação: árvores de
folhas largas, bananeiras, juncos de sóbrias cores metálicas, abelhas agarradas a um
galho florido que tremia, feliz de vê-las mamar.
Nós íamos mudos, em êxtase, como num sonho. Subitamente, a uma volta da aléia
florida, duas jovens apareceram, lendo e caminhando. Não me lembro mais se eram
bonitas ou feias. Lembro-me apenas de que uma era loura e a outra morena, e de
que as duas usavam vestidos primaveris.
E com a audácia que só se tem em sonho, nós nos aproximamos delas e você lhes
disse rindo: “Não importa que livro vocês estejam lendo, vamos discuti-lo”. Elas
liam Gorki. Então, às pressas porque não tínhamos tempo nós nos pusemos a falar
da vida, da miséria, da revolta da alma, do amor.
Não esquecerei jamais nossa alegria e nossa dor. Éramos já, nós e aquelas duas
jovens desconhecidas, velhos amigos, velhos amantes; responsáveis por sua alma e seu
corpo, apressávamo-nos: alguns minutos mais tarde e iríamos deixá-las para sempre.
Na atmosfera perturbada, pressentia-se o rapto e a morte.
O trem chegou e apitou. Tivemos um sobressalto, como se acordássemos. Apertamos
as mãos. Como esquecer o aperto forte e desesperado de nossas mãos, os dez dedos
que não queriam se separar? Uma das jovens estava muito pálida, a outra ria e
tremia.
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Lembro-me de ter dito então a você: “Eis a verdade. Grécia, pátria e dever são
palavras que não querem dizer nada”. E você me respondeu. “Grécia, pátria e
dever, com efeito, não querem dizer nada, mas é por esse nada que vamos morrer”.
Mas por que lhe escrevo isso? Para dizer que não me esqueci de nada do que vivemos
juntos. Para ter ocasião de dizer o que nunca, por causa do hábito, bom ou mau,
que adquirimos de nos conter, me foi possível dizer quando estávamos juntos.
Agora que você não está diante de mim, que não vê meu rosto e que não me arrisco
muito a parecer ridículo, eu lhe digo que lhe quero muito. (Capitulo 8)
17. A importância da linguagem não-verbal – a comunicação pelo
corpo e pela intuição – a empatia com outro ser humano
Zorba conta para o escritor de uma vez que estava na Rússia e encontra um
bolshevique que queria lhe contar, “em detalhes, tudo o que havia acontecido
com ele durante a revolução russa”. Zorba por sua vez diz “eu, do meu lado,
queria lhe dizer tudo sobre mim” (pg. 94). Zorba não falava russo, o
bolshevique não falava grego. Mas, Zorba se lembra, “com gestos, mal ou
bem, nos havíamos posto de acordo”. Ele conta deste encontro intenso entre
eles, dois homens ávidos por contar sua história um para o outro:
Tudo aquilo que não poderíamos dizer com a boca seria dito com os pés, com as
mãos, com o ventre ou com gritos selvagens (...) Ah! Meu pobre amigo! Decaíram
muito os homens! Deixaram que seus corpos ficassem mudos, e só falam com a boca!
Que pode ela dizer? Se você pudesse ver como ele me escutava, o russo, da cabeça aos
pés, e como ele me compreendia! Eu lhe descrevia, dançando, minhas infelicidades,
minhas viagens, quantas vezes me casei, os ofícios que aprendi: carreteiro, mineiro,
carregador, oleiro, comitadji, tocador de santuri (...) tudo ele compreendia
tudo...Meus pés, minhas mãos, falavam e também os meus cabelos e roupas.
(p. 95, Capítulo 6)
18. Tocada por algo maior, a alma nasce. Assim encontramos a
finalidade da vida, que seria estar a serviço de algo imortal
Depois do assassinato da viúva, Zorba cai em um profundo silencio e os dois
amigos passam dias sem conversar. Silenciosos, fitavam o mar, ao longe,
36
quando o escritor começa a refletir sobre a finalidade da vida do homem no
mundo:
De novo se enchia meu peito de angustia. ‘O que é este mundo?’ perguntava-me, ‘
qual a sua finalidade e em que podem nossas vidas efêmeras concorrer para alcançála? O objetivo do homem é transformar a matéria em alegria, pretende Zorba; em
espírito, dizem outros; o que vem a ser o mesmo, em outro plano. Mas por que?
Com que finalidade? E quando o corpo se dissolve, restará alguma coisa daquilo a
que chamamos alma? Ou então nada subsiste, e nossa inextinguível sede de
imortalidade vem, não do fato de sermos imortais, mas porque durante o curto
instante em que respiramos, estamos a serviço de algo imortal?
(pg. 323, Capítulo 24)
Este algo imortal para Platão seria o amor ao conhecimento, que desperta o
homem e o mobiliza para fazer as coisas no mundo, assim se eternizando por
aquilo que realiza. Para Platão o ser humano é movido por uma ânsia de se
perpetuar. Uns satisfazem este desejo tendo filhos. Outros buscam se
eternizar pelas idéias, por suas criações, cuidando com alegria e usufruindo
delas para que possam ser passadas para aqueles que estão prontos para
recebê-las. O escritor sente que talvez esteja a serviço de algo imortal quando
já consegue sentir o milagre que se opera dentro dele. Ele já consegue sentir
um novo “eu”, “alguém”, um outro homem que está amadurecendo dentro de
si:
Não podia, não queria dormir. Não pensava em nada. Sentia somente, nesta noite
quente, alguma coisa, alguém amadurecer em mim. Vivia nitidamente este
surpreendente espetáculo; via-me transformar. O que sempre se passa nos mais
obscuros subterrâneos de nossas entranhas desta vez se passava no dia claro, a
descoberto, diante de meus olhos. Agachado a beira do mar, eu observava o milagre.
(pg. 322, Capítulo 24)
Na aldeia durante a festa do domingo de Páscoa também há um momento em
que os jovens dançarinos estão a serviço de algo imortal, “um só dançarino”
imortal e “sempre com vinte anos”:
A cada instante a Morte morria, e renascia a cada instante, como a Vida. Há
milhares de anos rapazes e moças dançam sob as arvores de folhagem tenra –
choupos, pinheiros, carvalhos, plátanos e esbeltas palmeiras – e dançarão ainda
milhares de anos, o rosto ávido de desejo. Os rostos mudam, desagregam-se, retornam
à terra; mas outros saem dela e os substituem. Há um só dançarino, com inúmeras
máscaras, imortal e sempre com vinte anos.
(pg. 290, Capítulo 22)
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Este “dançarino imortal” pode representar o instinto, a potencia da Dança,
que precisa dos dançarinos mortais que a realizam, eternizando-a. Esta
experiência grandiosa, entretanto nem sempre transforma o homem. Nem
sempre as pessoas capazes de fazer um belo espetáculo são tocadas na alma.
Na página 20 vimos como Zorba se transforma em outro homem depois que
aprende a tocar o santuri. O mesmo não acontece com os dançarinos na festa
pascal. Eles eram capazes de tocar e dançar. Era muito belo seu espetáculo,
mas este “Belo” não os transformou . Tampouco mudou aqueles que os
assistiam. Era pura aparência. Só representavam. O dançarino imortal não
tinha conseguido ainda tocar a alma deles. Quando o velho sacristão chegou
gritando “A viúva, a viúva, a viúva”, interrompeu-se a dança e aqueles que
estavam tocando e dançando a serviço do dançarino imortal voltaram a um
estágio primitivo, formando uma turba que gritava “Miserável! Suja! Tem o
desplante de se mostrar, ela que desonrou a aldeia! Vamos, matem-na!”. Eles
eram ainda aquele tipo de homens que faziam a lei por conta própria, pela
impossibilidade de ouvir esta outra lei que perpassa os tempos. Desta forma
não estavam a serviço de algo imortal. Eram “eternos” apenas na aparência.
19. O sonho como mensageiro
Em diferentes momentos o sonho aparece como um mensageiro. Por
exemplo, o escritor tem um sonho com seu amigo, que partiu para a guerra do
Cáucaso:
Fechei de novo os olhos, sem poder resistir, e de um só golpe, fulminante, o sono
tomou conta de mim.
Não devia ter dormido mais do que alguns segundos quando dei um grito e me
levantei de um salto. O corvo passava neste momento sobre a minha cabeça. Escoreime ao rochedo, tremendo todo. Um sonho violento, como um golpe de sabre,
atravessara-me o espírito.
Via-me em Atenas, subindo a Rua Hermes, sozinho. O sol queimava, a rua
deserta, as lojas fechadas, solidão completa. Quando passava em frente à Igreja de
Kapnikareia, vi meu amigo, vindo da Praça da Constituição, pálido e sem fôlego; ele
seguia um homem muito alto, muito magro, que andava a passos de gigante. Meu
amigo vestia seu grande uniforme de diplomata; avistou-me e gritou de longe,
ofegante:
- Olá mestre, que fim levou você? Há um século que não o vejo; venha esta noite,
vamos conversar.
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- Onde? – gritei eu também, muito alto, como se meu amigo estivesse muito longe e
me fosse necessário usar toda a voz para me fazer ouvir.
- Praça da Concórdia esta tarde, às seis horas. No Café A Fonte do Paraíso.
- Muito bem –disse – irei.
- Você diz isso – fez ele em tom de censura – você diz isso mas não virá.
- Irei com certeza! – exclamei – venha apertar-me a mão!
- Estou com pressa.
- Por que tanta pressa? Venha apertar-me a mão.
Estendeu o braço e bruscamente este se desprendeu do corpo e veio, pelos ares, segurar
a minha mão. Fiquei apavorado com esse contato frio, soltei um grito e acordei
sobressaltado (...)
Voltei-me para leste, fixei os olhos no horizonte, como se quisesse furar a distancia
e ver...Meu amigo, eu tinha a certeza, estava em perigo. (...)
(pgs. 350 e 351, Capítulo 25)
Depois que acorda, as imagens do sonho ainda acompanham a mente do
escritor:
Meu cérebro procurava em vão reunir as mensagens misteriosas que às vezes
conseguem atravessar o corpo e chegar até a alma. No fundo do meu ser, uma certeza
primitiva, mais profunda que a razão, toda animal, enchia-me de terror. A mesma
certeza que experimentam certos animais, os carneiros, os ratos, antes do tremor da
terra. Despertou-se em mim a alma dos primeiros homens, tal como ela era antes de
se destacar completamente do universo, quando ainda sentia diretamente a verdade;
sem a intervenção deformante da razão.
(pg. 352, Capítulo 25)
Ao amanhecer, Zorba acorda o amigo escritor para lhe contar o sonho. A
principio acha o sonho engraçado. Mas à medida que o conta para seu amigo,
sente ser um aviso sobre a morte próxima da amiga Madame Hortense:
– Tive um sonho. Um sonho gozado. Acho que não tarda muito vou fazer uma
viagem. Ouça, você vai rir. Tinha aqui no porto um navio grande como uma cidade.
Apitava, pronto para partir. E eu vinha correndo da aldeia para embarcar nele
trazendo na mão um papagaio. Chego, subo no navio, mas vem o capitão e grita: ‘A
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passagem!’ ‘Quanto custa?’ pergunto, tirando do bolso um punhado de notas. “ Mil
dracmas”. “Olhe aqui por favor não pode deixar por oitocentas?’ perguntei. ‘Não,
mil’. ‘Eu tenho oitocentas,tome’. ‘Mil, nem um centavo menos. Senão, vá dando o
fora depressa!’ Então eu me queimei: ‘Olhe capitão, no seu próprio interesse, pegue
as oitocentas que estou dando, senão eu acordo, meu pobre velho, e você perde tudo!’
(pg. 303, Capítulo 23)
Zorba explode em uma risada e comenta com o seu amigo sobre como o
homem é uma máquina engraçada: “você a enche de pão, vinho, peixes,
rabanetes e saem suspiros, risos, sonhos” (p. 303). Zorba diz achar que na
nossa cabeça há um cinema. Mas de repente, pula da cama sobressaltado:
– Mas por que o papagaio? – exclamou inquieto – Que quer dizer este papagaio
que ia comigo? Ai! Tenho medo que...
Não teve tempo de acabar.
(pg. 303, Capítulo 23)
Um mensageiro chega neste momento com a notícia de que Madame
Hortense está morrendo. O papagaio de Madame Hortense será o único bem
que não será roubado após sua morte, quando um bando de homens e
mulheres do vilarejo saqueiam seus pertences em um ato de selvageria. Neste
trecho vemos como Zorba sonhou mas só entendeu o significado de seu
sonho quando contou para seu amigo. Este seria o que a psicanálise descobriu
– que o sonho é a via régia que nos leva ao inconsciente, e que no
inconsciente está um saber acumulado. Este saber do inconsciente se
manifesta através do sonho, mas em linguagem simbólica. O sonho precisa ser
contado para alguém familiarizado com a linguagem dos símbolos. Através
desta conversa, poderá ser decifrado.
20. O saqueio dos bens de Madame Hortense
Quando Madame Hortense está agonizando em seu leito de morte homens e
mulheres do vilarejo já começam a roubar seus pertences. Os malandros da
aldeia foram os primeiros, roubaram as galinhas de Hortense e prepararam
uma festa no quintal da casa. Mas em seguida outros homens e mulheres
foram invadindo a casa e participando desta profanação. Um professor chega
acompanhado de alguns homens importantes da aldeia, como tio Anagnosti,
para fazer o inventário dos bens da viúva: “ Mas por onde começar? Velhas,
homens, crianças, saiam porta afora, à toda, pulavam janelas, jogavam-se do
terraço, cada qual levando o que pudera pilhar: frigideiras, panelas, colchões,
coelhos...Alguns tinham tirado dos gonzos as portas e janelas e as carregavam
às costas (...)” (p. 316, Capítulo 24)
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O professor, “com grandes ares de dignidade ofendida”, não consegue fazer
valer a lei da civilização. Sem dizer palavra, dobra a folha de papel em branco
e vai embora. O ancião Anagnosti gritava, brandia o bastão, suplicando: “É
uma vergonha, vejam só, é uma vergonha, a morta está vendo vocês” (pg.
316). Mas não lhe dão ouvidos. Não dão ouvidos para a civilização. Dão
ouvidos para a selvageria. Sabemos que é mais fácil agir como animal, que ter
o trabalho e a dignidade de transformar os impulsos animais em algo superior,
divino.
21. O tempo certo das coisas
É preciso respeitar o tempo das coisas, o tempo da espera. O universo tem
um ritmo próprio. O escritor conta de um triste aprendizado seu que ilustra
esta necessidade:
Lembrei-me de uma manhã em que encontrei um casulo preso à casca de uma árvore, no
momento em que a borboleta rompia o invólucro e se preparava para sair. Esperei
algum tempo, mas estava com pressa e ele demorava muito. Enervado, debrucei-me e
comecei a esquentá-lo com meu sopro. Eu o esquentava, impaciente, e o milagre começou
a desfiar diante de mim em ritmo mais rápido que o natural. Abriu-se o invólucro e a
borboleta saiu, arrastando-se. Não esquecerei jamais o horror que tive então: suas asas
ainda não haviam se formado, e como todo seu pequeno corpo tremulo ela se esforçava
para desdobrá-las. Debruçado sobre ela, eu ajudava com meu sopro. Em vão. Um
paciente amadurecimento era necessário, e o crescimento das asas se devia fazer
lentamente ao sol; agora era muito tarde. Meu sopro havia obrigado a borboleta a se
mostrar, toda enrugada, antes do tempo. Ela se agitou, desesperada, e alguns segundos
depois morreu na palma da minha mão. Creio que esse pequeno cadáver é o maior peso
que tenho na consciência. Pois, compreendo atualmente, é um pecado mortal violar as leis
da natureza. Não devemos apressar-nos, nem impacientar-nos, mas seguir com confiança
o ritmo eterno”(p.152, Capítulo 11)
Podemos fazer uma relação entre esta idéia do “tempo das coisas” e o que
ocorre com três personagens no livro: a avó de Zorba, o escritor e o filho de
Mavrandoni. A avó de Zorba, para continuar a viver, precisava manter a ilusão
de que aquela serenata era para ela, não podia ver que era para a bela mocinha
da vila. Zorba, ao dizer para ela a “verdade”não respeitou a ilusão que ela
ainda precisava para viver. Ela definhou e morreu em poucos dias. Pode ser
perigoso se falar de uma vez só toda a verdade para alguém que ainda não está
pronto para ouvi-la, ou ao menos não de uma vez só. O filho de Mavrandoni,
apaixonado pela bela viúva, não estava preparado para ouvir a noticia de que
sua amada tinha escolhido o escritor. Os homens da aldeia não respeitaram o
tempo que o rapaz precisava para poder sofrer esta desilusão, e se
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precipitaram contando-lhe logo toda a “verdade”, de que a viúva se
apaixonara pelo escritor. Desesperado, o jovem se suicidou. Zorba, ao
incentivar que o escritor vá procurar a viúva, também apressa o processo
interno do amigo. Este era tão inexperiente e traumatizado, havia se
distanciado tanto das mulheres, que precisaria começar mais devagarzinho, ao
invés de partir logo para uma situação tão extrema e perigosa como era a
viúva, cobiçada por todos os homens da aldeia.
22. A hospitalidade
No capítulo 6 o escritor fala como seu avô toda noite saía às ruas com seu
lampião para ver se algum estrangeiro havia chegado. Ele o levava para sua
casa, dava-lhe de comer e beber e depois lhe pedia imperiosamente que lhe
contasse tudo sobre ele, sua história, sua pátria – queria saber tudo. Na
Odisséia de Homero vemos como a hospitalidade era um valor da cultura
grega. O homem civilizado era aquele que acolhia o outro. Acreditava-se que
era através do homem que se chegava ao divino, ao mistério que rege tudo. O
homem era assim o centro de tudo. Na Grécia Antiga se acreditava que aquele
que chegava a sua casa podia ser um deus disfarçado ou um enviado dos
deuses. O visitante era assim visto como um mensageiro, representante de
algo maior, de algo desconhecido, e trazia uma mensagem – tinha algo a nos
ensinar. Valorizavam o aprendizado que vinha de surpresa, através do
visitante. Quando Ulisses na Odisséia chegou a terra dos Feácios não tinha
nada, havia perdido tudo no mar, mas tinha a sua história para contar. O rei
Alcino recebe Ulisses e fica tão maravilhado com as palavras daquele visitante,
que até lhe oferece a mão da sua filha, para ficar sempre no reino. O avô do
escritor também sentia uma profunda necessidade de ouvir e de aprender com
os visitantes, estas pessoas que se tinham colocado a caminho, à procura de
algo. Vemos nestas duas passagens uma sabedoria da hospitalidade que
perpassa os tempos:
Meu avô materno, que habitava uma cidadezinha de Creta, pegava toda a noite seu
lampião e dava a volta nas ruas, para ver se algum estrangeiro havia por acaso
chegado. Ele o levava para casa, dava-lhe de comer e beber com abundancia, depois
do que sentava-se no divã, acendia seu longo chibuque, virava-se para seu hospede –
para quem havia chegado o momento de pagar – e dizia-lhe imperiosamente: Conte!
Conte!
- O que você é, quem você é e de onde vem? Que cidades e terras viram seus olhos?
Tudo! Conte tudo, vamos, vale!
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E o hóspede começava a contar, às cambulhadas, verdades e mentiras, enquanto meu
avô fumava seu chibuque e escutava, viajando com ele, tranquilamente sentado em
seu divã. E se o hóspede lhe agradava, dizia:
- Você fica amanhã também, você não pode partir. Você ainda tem coisas para
contar.
Meu avô nunca saiu de sua cidade. Nem mesmo foi a Candia ou a Canéia. “Ir lá
para que?” dizia, “Candianos e caneenses passam por aqui, e Candia e Canéia vêm
à minha casa. Não preciso ir lá eu mesmo!”
(pg. 67-68, Capítulo 4)
O escritor reconhece nele esta mesma necessidade, que agora vive com Zorba.
Até chama-a de “mania”, enquanto nós sabemos que é uma profunda
sabedoria aprendida com seu avô. O escritor pede a Zorba que lhe conte
histórias que viveu, para com elas aprender da alma humana:
Mantenho hoje, sobre a costa cretense, esta mania de meu avô. Eu também encontrei
um hóspede, como se eu tivesse o procurado à luz de um lampião. Não o deixo
partir. Ele me custa bem mais caro que um jantar, mas vale. Cada noite o espero
após o trabalho, faço-o sentar-se diante de mim, comemos, e chegando o momento da
paga, eu lhe digo: Conte!. Fumo o meu cachimbo e escuto. Ele explorou bem a terra
e explorou bem a alma humana. Não me canso de ouvi-lo.
- Conte, Zorba! Conte.
E quando ele abre a boca, toda a Macedônia abre-se diante de mim, instala-se no
pequeno espaço entre Zorba e mim, com suas montanhas, suas florestas e torrentes,
seus guerrilheiros comitadjis, suas mulheres duras no trabalho e seus homens maciços
e rudes (...)
Cada noite Zorba me leva a passeio através da Grécia, da Bulgária e de
Constantinopla; eu fecho os olhos e vejo. Ele percorreu os Bálcãs, confusos e
atormentados; observou tudo, com seus olhos pequenos de falcão, que abre a cada
instante, cheios de surpresa. As coisas às quais estamos acostumados, e diante das
quais passamos indiferentes, erguem-se para Zorba como enigmas indecifráveis (...)
E se interroga com igual estupor diante de um homem, de uma árvore florida, de um
copo de água fresca. Zorba vê cada dia as coisas como se fosse pela primeira vez (...)
(pg. 68-69, Capítulo 4)
De novo encontramos aqui um paralelo com a Odisséia de Homero, quando
esta fala de Ulisses como um homem que “jamais se deixou vencer, viajou
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pelos confins do mundo e aprendeu a conhecer o espírito dos homens”.
Através de Zorba, o escritor recupera a lembrança de seu avô – e faz de
Zorba seu Ulisses. Ao mesmo tempo, por mais experiente que Zorba fosse,
sempre se interrogava “com igual estupor diante de um homem, de uma
árvore florida, de um copo de água fresca”(p.69). Zorba via a cada dia as
coisas como se fosse pela primeira vez. Ao ouvir Zorba, o escritor sentia-se
também aberto, como diz o poema de Cecília Meireles, “ para a eterna
novidade do mundo”:
Tendo tomado um copo de vinho, ele se virou para mim, alarmado:
- O que é essa água vermelha, patrão? Me diga! Uma velha videira deita ramos,
tem uns penduricalhos ácidos que pendem, passa o tempo, e o sol os amadurece; eles
ficam doces como o mel. E então passam a se chamar uvas; são apanhados,
esmagados, o suco é colocado em tonéis, ele fermenta sozinho, são abertos no dia de
São Jorge – Beberrão, e virou vinho! E o que é ainda esse prodígio: você bebe este
suco vermelho e eis que sua alma cresce, não cabe mais na velha carcaça e desafia
Deus para a luta. O que é isso, patrão? Me diga!
Eu não falava. Ao ouvir Zorba, sentia renovar-se a virgindade do mundo. Todas as
coisas desbotadas e cotidianas retomavam o brilho do primeiro dia quando saíram
das mãos de Deus: a água, a mulher, a estrela, o pão, voltavam à misteriosa fonte
primitiva, e o turbilhão divino empolgava de novo os ares
(p. 69, Capítulo 4).
Aqui vemos o processo do homem que sabe observar, cuidar das uvas, deixar
o tempo certo para que elas fermentem, se transmutem. E quando toma este
vinho, que ele mesmo criou, sente-se próximo do divino, “sua alma cresce,
não cabe mais na velha carcaça e desafia Deus para a luta”. Ele experimenta a
“alegria divina” ao “dar vida a vida”, como nos fala o filósofo Bergson, mestre
de Kazantzakis, .
23. A “comunicação aérea” – através do sonho Zorba e o escritor se
comunicam
O final do livro tem ligação com o seu início. A imagem do amigo no inicio
do livro aparece como uma memória involuntária, no momento em que o
escritor estava no porto a caminho para a viagem, e aberto para conhecer
outros amigos. Quando se separam, o escritor diz não acreditar em
“comunicações aéreas”. Mas no último capítulo, a imagem de Zorba aparece
no sonho. “Foi quando, em meio a tanta felicidade, lá pela madrugada, Zorba
surgiu no meu sonho” (pg. 367). Há a idéia da comunicação no momento da
44
morte neste sonho. Eles viveram a amizade no plano consciente mas aqui a
comunicação se dá no inconsciente. No início o primeiro amigo do escritor
não acreditava em “comunicações aéreas”, mas é o que ocorre no final do
livro entre o escritor e Zorba – através do sonho. Na página 368 ele começa a
escrever sobre Zorba, a “lenda dourada”. A tarefa do escritor é descrita como
feita em um estado de febre, como quando Zorba foi tomado pela febre ao
ouvir o Santuri:
Escrevia com veemência, fazia reviver apressadamente o passado, procurava lembrar-me
de Zorba e ressuscitá-lo inteirinho. Dir-se-ia que, se ele desaparecesse, o responsável seria
eu; trabalhava, pois, dia e noite, para lhe fixar, intacto, o rosto. Trabalhava como os
feiticeiros das tribos selvagens da África, que desenham nas grutas o ancestral que viram
no sonho; esforçam-se em reproduzi-lo o mais fielmente possível para que a alma do
antepassado possa reconhecer o seu corpo e nele entrar. Em algumas semanas ficou
pronta a lenda dourada de Zorba.
(pg. 368, Capítulo 26).
É neste mesmo dia, em que o narrador termina o manuscrito, que chega a
carta com a notícia da morte do amigo.
Também naquele dia, ao cair da tarde, eu estava sentado na varanda e olhava o mar.
Tinha o manuscrito sobre os joelhos. Sentia alegria e alívio, como se me tivessem tirado
um peso. Era como uma mulher que acaba de dar a luz e tem nos braços o recémnascido.
Atrás das montanhas do Peloponeso, deitava-se o sol, todo vermelho. Sula, uma
pastorinha que me traz da cidade a correspondência, subiu a varanda. Deu-me uma
carta e se foi correndo. Eu compreendi, porque, quando abri a carta e a li, não fui
tomado de espanto. Tinha a certeza. Eu sabia que no minuto preciso em que tivesse nos
joelhos o manuscrito acabado e contemplasse o por do sol, receberia esta carta.
Calmo, sem pressa, eu a li. Vinha de uma aldeia perto de Skoplije, na Sérvia, e estava,
bem ou mal, redigida em alemão. Traduzi:
“Sou o professor da aldeia e escrevo-lhe para anunciar a triste notícia de que Aléxis
Zorba, que aqui possuía jazida de pedra branca, morreu domingo passado, às seis
horas da tarde. Chamou-me quando agonizava:
‘Vem cá, mestre-escola; tenho um amigo, fulano, na Grécia; quando eu morrer,
escreva-lhe que até o último minuto eu estava lúcido e pensava nele, e que não me
arrependo de nada do que fiz, que ele passe bem e que já é tempo de se tornar
razoável.
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‘Ouça ainda. Se um padre ver me confessar e me der os santos sacramentos, diga-lhe
que dê o fora correndo e que me amaldiçoe! Fiz montes e montes de coisas na minha
vida e acho que ainda foi pouco. Homens como eu deviam viver mil anos. Boa noite!’
Foram suas últimas palavras. Logo depois, ergueu-se no travesseiro, jogou as
cobertas e quis levantar-se. Corremos para conte-lo, Liuba, sua mulher, eu e alguns
vizinhos de pulso forte. Mas ele nos afastou bruscamente, saltou da cama e foi até a
janela. Lá, agarrou-se ao peitoril, olhou ao longe para as montanhas, arregalou os
olhos e se pôs a rir, depois a relinchar como um cavalo. Foi assim, de pé, as unhas
enterradas na janela, que ele morreu.
Liuba, sua mulher, encarregou-me de lhe dizer que o saúda, que o defunto falava
muito no senhor e que ordenou a ela que lhe desse o santuri, como lembrança, depois
de sua morte.
A viúva lhe pede, pois, que quando o senhor tiver ocasião de chegar até nossa aldeia,
se dê ao incomodo de vir passar a noite em sua casa e, de manhã, quando se for,
levar o santuri.
(pg. 368-369, Capítulo 26)
24. A vivencia com o seu amigo e mestre Zorba no momento presente
lhe remete a um tempo anterior às convenções. Esta volta às origens o
torna criativo.
No Capitulo 6, Zorba nos introduz a idéia das “três espécies de homem”, que
depois vai voltar mais tarde no Capitulo 24 (pg. 330). Zorba explica para o
escritor que:
Dize-me o que fazes, do que comes e te direi quem és. Há os que transformam isto
em gordura e lixo. Outros em trabalho e bom humor, outros em Deus...como já ouvi
dizer. Existem portanto três espécies de homens. Eu não sou nem dos piores nem dos
melhores. Estou no meio. O que eu como transformo em trabalho e bom humor.
Não é muito ruim!
(p.87, Capítulo 6)
Zorba conta uma história para o escritor que ilustra como o amigo ia contra a
sua natureza criativa, ao tentar se distanciar da vida, como se fosse um homem
frio, apenas racional e calculista – muito distante de sua verdadeira essência.
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- Você, patrão – disse ele – você se esforça em transformar em Deus o que come mas
não consegue e fica se torturando com isto. Aconteceu com você a mesma coisa que ao
corvo.
- O que aconteceu com o corvo, Zorba?
- Ele, você sabe, antes andava direito, convenientemente, como um corvo, ora. Mas
um dia meteu na cabeça de se por a rebolar como uma perdiz. Desde esse tempo,
coitado, ele se esqueceu até do seu próprio andar, ele não sabe mais o que fazer, e
manca.
(Pg. 87, Capítulo 6)
Quando o escritor fala para Zorba que o carvão é um pretexto “para que as
pessoas não fiquem curiosas” e para que os tomem “como sábios
empreendedores” e não os “recebam com legumes podres” (p. 90) Zorba
ficou “de boca aberta”, procurava entender, “não ousava acreditar em tanta
felicidade” (p.90) Zorba ficou tão feliz que começou a dançar intensamente. O
escritor pedia-lhe para parar.
-Zorba ! Zorba! – gritei – Já chega!
Tinha medo de que o velho corpo não resistisse a tanto ímpeto e explodisse em mil
pedaços aos quatro ventos.
Podia gritar à vontade, como poderia Zorba ouvir os gritos da terra? Suas entranhas
se haviam transformado nas de um pássaro.
Seguia com ligeira inquietação a dança selvagem e desesperada. Quando era criança
minha imaginação trabalhava sem freios, e eu contava aos meus amigos enormidades
em que eu mesmo acreditava.
- Como morreu o meu avo? – perguntavam-me um dia meus amiguinhos da escola
pública.
E eu, imediatamente, forjei um mito; e á medida que ia forjando, ia acreditando.
- Meu avo usava sapatos de borracha. Um dia quando sua barba já estava branca,
ele pulou do telhado da nossa casa. Mas, ao tocar a terra, ele pulou como uma bola e
subiu mais alto que o telhado, e sempre mais alto, mais alto, e ele desapareceu nas
nuvens. Assim morreu meu avo.
Desde o dia em que inventei este mito, cada vez que eu ia a igrejinha de Santa
Mina, e que via, embaixo da iconóstase, a ascensão de Cristo, eu estendia a mão e
dizia aos meus colegas:
- Olhem, lá está o meu avô, com seus sapatos de borracha!
Naquela noite, depois de tantos anos, ao ver Zorba pular no ar, revivi este conto
infantil com terror, como se acreditasse que Zorba pudesse desaparecer nas nuvens.
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- Zorba! Zorba! Chega – gritava eu.
(pgs. 91-92, Capítulo 6)
Esta passagem nos mostra como o escritor, vendo Zorba dançar, volta na sua
memória à infância e lembra do tempo em que a sua imaginação trabalhava
“sem freios”. Lembra-se de que foi capaz de inventar uma história sobre seu
avô para fugir da realidade e do medo da morte do seu avô. Isto ilustra como
a vivencia no tempo presente é capaz de trazer o passado e recuperar assim
um tempo onde a imaginação do escritor trabalhava livre, conseguia criar. No
final do livro vemos como o escritor libertou sua imaginação e escreveu um
livro, “a lenda dourada de Zorba”. Aquele “corvo” que queria ser uma
“perdiz” aprendeu com seu mestre Zorba e recuperou a capacidade de
inventar. Esta lenda dourada de Zorba vai continuar inflamando a imaginação
dos homens porque são estas lendas que conseguem conquistar o coração dos
homens e assim se perpetuar no mundo.
Zorba ajuda o escritor quando pede “Se você pudesse, patrão, me dizer tudo
isso como uma história”(pg. 330). Zorba então conta uma história para o
escritor. Ele conta do segredo que lhe confia um velho turco, seu vizinho
quando era criança, Hussein Agá:
Era um velho turco, nosso vizinho. Muito velho, muito pobre, sem mulher nem
filhos, completamente só. Suas roupas eram puídas, mas brilhavam de limpas. Era
ele que lavava, cozinhava e limpava o chão. De noite ia à nossa casa. Sentava no
quintal com minha avó e outras velhas e tricotava meias. Esse Hussein Agá era um
santo homem. Um dia me pôs no colo, pôs a mão na minha cabeça como se me
benzesse e disse: ‘ Aléxis, vou lhe confiar uma coisa. Você é muito pequeno para
compreender, mas vai entender quando for grande. Escute, meu filho: o bom Deus,
você sabe, não cabe nem nos sete andares da terra. Mas cabe no coração do homem.
Então tome cuidado, Aléxis, para nunca ferir o coração do homem!.
(pg. 331, Capítulo 24)
O escritor ouviu Zorba em silencio e pensou:
Se eu pudesse não abrir a boca senão quando a idéia abstrata tivesse atingido o seu
mais alto píncaro – quando se tivesse transformado numa historia! Mas isso somente
pode conseguir um grande poeta, ou então um povo, após muitos séculos de silencioso
amadurecimento. (pg. 331, Capítulo 24)
Pensamos que, quando escreve a lenda dourada de Zorba, o escritor atingiu
este mais alto píncaro. Ao escrever sobre o amigo e mestre Zorba, conseguiu
ir além dele, eternizando-o.

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