anais 2012

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anais 2012
ISSN:
VI ENCONTRO NACIONAL DO GRUPO DE
ESTUDOS DE LINGUAGEM DO CENTROOESTE (GELCO)
IV COLÓQUIO REGIONAL NO BRASIL DA
ASSOCIAÇÃO LATINOAMERICANA DE
ESTUDOS DO DISCURSO (ALED)
ESTUDOS DE LINGUAGEM:
PESQUISA, ENSINO E
CONHECIMENTO
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Campo Grande (MS)
23 a 26 de Outubro de 2012
Realização:
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
2
ANAIS - 2013
ISSN: 2176-1256
ANAIS
Junho – 2013
Apoio:
3
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE
GROSSO DO SUL
FEDERAL DE
MATO
Cidade Universitária
n – CEP: 79070-900
MS
Reitora: Profª. Drª. Célia Maria Silva Correa Oliveira
Vice-reitor: Prof. Dr. João Ricardo Figueiras Tognini
Pró-reitores:
PRAD – Me. Claodinardo Fragoso da Silva
PREAE – Prof. Dr. Valdir Souza Ferreira
PREG – Prof. Dr. Henrique Mongelli
PROPLAN – Profª. Drª. Marize Lopes Pereira Peres
PROPP – Prof. Dr. Dercir Pedro de Oliveira
PROINFRA – Prof. Dr. Julio Cesar Gonçalves
PROGEP – Prof. Dr. Robert Schiaveto de Souza
CCHS – Centro de Ciências Humanas e Sociais
Diretora – Profª Drª. Élcia Esnarriaga de Arruda
PPGMEL – Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de
Linguagens.
Coordenador – Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins
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ANAIS - 2013
VI ENCONTRO NACIONAL DO GRUPO DE ESTUDOS DE
LINGUAGEM DO CENTRO-OESTE (GELCO)
IV COLÓQUIO REGIONAL NO BRASIL DA ASSOCIAÇÃO
LATINOAMERICANA DE ESTUDOS DO DISCURSO (ALED)
ESTUDOS DE LINGUAGEM:
PESQUISA, ENSINO E CONHECIMENTO
ANAIS
Junho – 2013.
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DO GELCO E IV
COLÓQUIO REGIONAL DA ALED
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ISSN: 2176-1256
GELCO (BIÊNIO 2010 – 2012)
Presidente:
Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins (UFMS/CCHS)
Vice-presidente:
Profª. Drª. Solange Maria de Barros (UNEMAT)
Secretária (titular):
Profª. Drª. Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS/CPTL)
Secretária (suplente):
Profª. Drª. Claudete Cameschi de Souza (UFMS/CPAQ)
Tesoureiro (titular):
Prof. Dr. Wagner Corsino Enedino (UFMS/CPTL)
Tesoureira (suplente):
Profª. Drª. Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (UFMS/CPTL)
Conselheiros:
Profª. Drª. Maria Luceli Faria Batistote (UFMS/CCHS)
Profª Ms. Ana Carolina Nunes da Cunha Vilela-Ardenghi (UFMS/CCHS)
Prof. Dr. Dercir Pedro de Oliveira (UFMS/PROPP)
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ANAIS - 2013
ALED (BIÊNIO 2011 – 2013)
Presidente
Neyla Graciela Pardo
Vice-presidente
Denize Elena Garcia da Silva
Secretário
Teresa Oteiza
CFO
Maria Cristina Azqueta
Delegado regional no Brasil
Wander Emediato
Realização:
GELCO – Grupo de Estudos de Linguagem do Centro-Oeste
ALED – Associação Latinoamericana de Estudos do Discurso
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Apresentação
De 23 a 26 de outubro de 2012, no Câmpus da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em Campo
Grande (MS), realizou-se o VI Encontro Nacional do Grupo de
Estudos de Linguagem da Região Centro-Oeste – GELCO, cuja
organização orbitou em torno dos seguintes objetivos:
incentivar o estudo, o ensino e a pesquisa no âmbito das áreas
de Linguística, Literatura e Línguas, na região Centro-Oeste;
promover a divulgação e o intercâmbio de trabalhos científicos
produzidos nas áreas de Linguística e Literatura, realizados por
estudiosos integrados à região Centro-Oeste; promover o
intercâmbio entre os trabalhos locais e aqueles realizados por
pesquisadores advindos de outras regiões do país; e realizar
atividades que permitam a professores e pesquisadores o
contato com desdobramentos teóricos recentes nas áreas de
Linguística e Literatura.
Nesse sentido, o evento cumpriu com aquilo a que se
propusera, posto que registrou a participação de pesquisadores
advindos de instituições de todos os estados da Região CentroOeste (UFMS, UFGD, UEMS, IFMS, UnB, UFG, UFMT,
UNEMAT, UCDB), bem como de unidades federativas do
Nordeste (UECE, UEMA, UFRPE), do Norte (UNIR, UFT), do
Sudeste (USP, UFSCAR, UNESP, UNICAMP, UNISO,
UNICSUL,UNIP, UNITAU, UNIBERO, UFMG, UFU, PUC,
FMU, FACCAMP) e do Sul (UEL, UEM, UEPG, UNESPR,
UFSC, UNIPAMPA, UFFS), o que permitiu, de fato, a
discussão de questões atinentes às diversas áreas dos estudos de
linguagens, além de justificar o caráter nacional do Encontro, o
qual contou, ainda, com a presença de membros da Associação
Latinoamericana dos Estudos do Discurso - ALED, entidade
que se vinculou ao GELCO para, na oportunidade, realizar o
seu IV Colóquio Regional.
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ANAIS - 2013
Durante os quatro dias de sua realização, o Encontro
registrou a realização de duas conferências, sete mesasredondas, 11 minicursos, 35 Grupos Temáticos, que abrigaram
cerca de 250 comunicações individuais, e mais de 60 painéis
expostos. Tendo em vista tal panorama quantitativo de grande
relevância, é preciso considerar que as discussões empreendidas
em cada um desses espaços contemplaram pontos atuais das
pesquisas que são feitas no país sob as diversas perspectivas
que se apresentam para os estudos linguísticos e literários.
Com base na amplitude dos temas trazidos à baila ao
longo do evento, bem como na importância das discussões
efetuadas nas atividades várias que ele abrigou, a comissão
organizadora sabe que colocar tais conhecimentos à disposição
de um número muito maior de interessados é um dever a que
não pode se furtar, razão pela qual apresenta esta publicação
dos Anais do VI Encontro Nacional do GELCO, cujos textos
oferecem uma visão de conjunto das discussões que se
realizaram durante o evento.
Que a leitura seja produtiva para tantos quantos tiverem
acesso a este material, suscitando reflexões e debates em um
campo sempre tão fecundo e motivador como é o da seara
linguageira, é o desejo maior dos envolvidos nesta tarefa. E que
venham novos encontros do GELCO...
A Comissão Organizadora
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Sumário
Programação geral .............................................................................. 14
Trabalhos ............................................................................................ 20
A aldeia urbana marçal de souza: algumas reflexões subalternas .. 21
A construção do lugar em que se vive: análise semiótica de dois
textos poéticos infantis ................................................................... 43
A deficiência na infância: a formação dos discursos e formas de
controle ........................................................................................... 63
A linguística aplicada ao teatro no ensino de inglês: do fragmento à
uma hiper-realidade ...................................................................... 100
A temática indígena: aspecto social na poética emmanuelina ...... 118
A trajetória da leitura: curiosidades e funções sociais .................. 144
í
“
f ”, “
gã” “
g
A mais bela história
de Adeodata , de Rosane Almeida ................................................ 167
A voz oficial no caderno especial - festival de inverno de Bonito do
j
“O E
M ”................................................................... 199
Análise crítica do discurso: expressões multimodais e contextos 226
á
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c b u j
í c : O “c
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y”
Mato Grosso do Sul ...................................................................... 254
As condições de produção do discurso do professor de Língua
P ugu
f
g c f u
“g
á c ”
“ gu
” ................................................................................... 268
As crônicas de Alice Vaz de Melo: o olhar individual de uma
memória coletiva .......................................................................... 291
Aspectos sociolinguísticos das vogais médias no português falado
numa escola de fronteira Brasil-Paraguai ..................................... 311
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ANAIS - 2013
Breve história da EJA: uma abordagem sociolinguística ............. 337
Brô MC´s: reflexos da identidade indígena na música ................. 358
Clarice em cena: silêncio, traição e morte em A pecadora queimada
e os anjos harmoniosos ................................................................ 379
Confissões na poesia de Arlinda Pessoa Morbeck ....................... 404
Contribuições iniciais para elaborar o Atlas Toponímico Matogrossense ...................................................................................... 419
Da palavra à imagem: uma discussão sobre a categoria temporal na
adaptação de O tempo e o vento ................................................... 441
Dialogismo em foco: reflexões sobre o material didático produzido
para Educação a Distância ............................................................ 467
Discurso sobre Vaidade Masculina no século XXI ...................... 493
Educação e inserção profissional de jovens e adultos com
deficiência: os discursos entre escola e trabalho .......................... 520
Ensino de língua materna e a heterogeneidade da/na linguagem . 543
Entre a análise de discurso e a análise das relações de poder ....... 563
Gêneros digitais no ensino de linguagens: a interdiscursividade nas
charges digitais de Maurício Ricardo e nas notícias políticas do
blog Radar on-line ........................................................................ 585
Ideologia e crença pessoal nas decisões jurídicas: as marcas da
dialética. ....................................................................................... 618
Manoel de Barros, o criançamento e a desconstrução: considerações
polifônicas .................................................................................... 640
Mediadores de leitura: um estudo do acervo PNBE 2011 ............ 670
Memórias de leitura: uma história de formação do leitor no Brasil
...................................................................................................... 690
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Mulheres executivas: depoimentos como efeito de realidade na
reportagem .................................................................................... 705
Nova York de Will Eisner: a cidade contada em fragmentos....... 728
O discurso da obrigatoriedade do ensino de Filosofia no Ensino
Médio............................................................................................ 750
O escândalo como construção do fato noticioso em jornais
paulistanos .................................................................................... 776
O indígena no século xxi: representações e estereótipos .............. 808
O lugar da expressão subjetiva na poesia de Eduardo Martins .... 825
O melodrama no picadeiro da dramaturgia pliniana .................... 846
O português falado na zona rural de MS – aspectos crioulizantes da
língua afro- brasileira. .................................................................. 870
O referencial foucaultiano na pesquisa: análise das dissertações e
teses produzidas no PPGEDU/UFMS .......................................... 895
O subalterno mostra a cara ........................................................... 924
Produção Discursiva e Regimes de Verdades: proposições de
professores sobre a escolarização em Unidades Prisionais .... 944
Romero Britto, consumo e mercado: uma reflexão a partir das
teorias culturais contemporâneas.................................................. 963
Semiótica, leitura e temática indígena: uma proposta para a
aplicação em sala de aula ............................................................. 980
Subalternas crônicas clariceanas ................................................ 1002
Tango do bidê – Análise semiótica do humor e da crítica à violência
doméstica e ao machismo na canção paulistana da década de 1980
.................................................................................................... 1020
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ANAIS - 2013
Tematização e figurativização e suas correlações com o plano de
expressão em A invenção de Hugo Cabret 3D ........................... 1043
T uçã
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“As Palavras
e as Coisas” M ch F uc u ................................................ 1061
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Programação geral
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ANAIS - 2013
TERÇA-FEIRA – 23 DE OUTUBRO DE 2012
LOCAL: Auditório da Faculdade Estácio de Sá
19:00h
CERIMÔNIA DE ABERTURA
Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins
Presidente do GELCO
Prof.ª Dr.ª Denize Elena Garcia da Silva
Vice-Presidente da ALED
Prof.ª Dr.ª Célia Maria Correa de Oliveira
Reitora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Prof. Dr. Dercir Pedro de Oliveira
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul
Prof.ª Dr.ª Élcia Esnarriaga de Arruda
Diretora do Centro de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Prof.ª Me. Dagmar Tavares Viana de Queiroz
Diretora Geral da Faculdade Estácio de Sá
19:30h
ATIVIDADE CULTURAL
Apresentação do Grupo Vocal Maria Bonita
20:00h
CONFERÊNCIA DE ABERTURA (LITERATURA)
Prof.ª Dr.ª Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan (UNESP-Ar)
A quem interessa a polêmica entre as teorias e a literatura?
21:30h
COQUETEL
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
QUARTA-FEIRA – 24 DE OUTUBRO DE 2012
LOCAL: Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCHS
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS
7:30h – Entrega de Material e Últimas Inscrições
8:00h – 11:00h – Minicursos
13:30h – 15:30h – Sessões dos Grupos Temáticos
16:00h – 17:30h – Mesas-redondas
18:00h – Sessão de Lançamento de Livros
QUINTA FEIRA – 25 DE OUTUBRO DE 2012
LOCAL: Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCHS
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS
8:00h – 11:00h – Minicursos
13:30h – 15:30h – Sessões dos Grupos Temáticos
16:00h – 17:30h – Mesas-redondas
18:00h – Assembleia Geral do GELCO (Eleição de Nova
Diretoria)
SEXTA-FEIRA – 26 DE OUTUBRO DE 2012
LOCAL: Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCHS
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS
9:00h – 11:00 – Exposição de Painéis
11:10h – 11:40h – Espaço ALED
13:30h – 15h30h – Sessões dos Grupos Temáticos
16:00h – 17h30 – Conferência de Encerramento (Linguística):
Prof.ª Dr.ª Maria José Coracini (UNICAMP)
Subjetividade e leitura: (in)scrição de si e do outro
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ANAIS - 2013
MINICURSOS (24 e 25 de outubro)
1. Transposição didática de gêneros: do objeto às dimensões
ensináveis - Prof. Dr. Adair Vieira Gonçalves (UFGD)
2. Michel Foucault e o processo de subjetivação - Prof. Dr.
Conrado Neves Sathler (UFGD)
3. Semiótica tensiva: princípios básicos - Prof. Dr. Ivã Carlos
Lopes (USP)
4. Discurso, mídia e política: problemáticas contemporâneas Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas (UFSCAR)
5. Transgredindo os gêneros do discurso em sala de aula:
leitura e produção – Prof.ª Dr.ª Gláucia Muniz Proença Lara
(UFMG) e Prof.ª Dr.ª Aline Saddi Chaves (UEMS)
6. Educação bilingue no contexto indígena - Profª. Dr.ª Daniele
Marcelle Granier (UnB) e Prof. Dr. Sinval Martins de Souza
Filho(UFG)
7. A sociolinguística e o ensino da língua materna - Prof. Dr.
José Leonildo Lima (UNEMAT)
8. Retórica, argumentação e discurso - Prof. Dr. Wander
Emediato (UFMG)
9. Lexicografia e ensino: aspectos teóricos e práticos - Prof.
Dr. Auri Claudionei Matos Frübel (UFMS) e Prof.ª Me. Isabel
Cristina Ratund (UFMS)
10. Toponímia: tendências teórico-metodológicas – Prof.ª Dr.ª
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Aparecida Negri Isquerdo (UFMS) e Prof.ª Dr.ª Ana Paula
Tribesse Patrício Dargel (UEMS)
11. Poesia brasileira contemporânea I - Prof. Dr. Daniel Abrão
(UEMS) e Poesia brasileira contemporânea II – Prof.ª Dr.ª
Elaine Cristina Cintra (UFU)
MESAS-REDONDAS (24 de outubro)
Questões de Análise do Discurso
Prof. Dr. Wander Emediato (UFMG)
Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas (UFSCAR)
Prof.ª Dr.ª Maria Luceli Faria Batistote (UFMS)
Pesquisas geolinguísticas no Brasil Central
Prof.ª Dr.ª Vanderci de Andrade Aguilera (UEL)
Prof. Dr. José Leonildo Lima (UNEMAT)
Prof.ª Dr.ª Aparecida Negri Isquerdo (UFMS)
Literatura e teatro: diálogos constantes
Prof. Dr. Alexandre Flory (UEM)
Prof. Dr. André Luís Gomes (UnB)
Prof. Dr. Wagner Corsino (UFMS)
Literatura e política
Prof. Dr. Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT)
Prof.ª Dr.ª Elaine Cristina Cintra (UFU)
Prof. Dr. José Alonso Torres Freire (UFMS)
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ANAIS - 2013
MESAS-REDONDAS (25 de outubro)
Colonialismo e pós-colonialismo em literaturas de língua
portuguesa
Prof. Dr. José Antônio de Souza (UEMS)
Prof.ª Dr.ª Susylene Dias de Araújo (UEMS)
Prof.ª Dr.ª Rosana Cristina Zanelatto dos Santos (UFMS)
Funcionalismo e ensino: gramaticalização de marcas de
subjetividade
Prof.ª Dr.ª Denize Elena Garcia da Silva (UnB)
Prof.ª Dr.ª Vânia Casseb-Galvão (UFG)
Prof.ª Dr.ª Rita de Cássia Ap. Pacheco Limberti (UFGD)
Pesquisas do centro-oeste sobre línguas indígenas
Prof. Dr. Dioney Moreira (UnB)
Prof. Dr. Sinval Martins de Souza Filho (UFG)
Prof.ª Dr.ª Onilda Sanches Nincao (UFMS)
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Trabalhos
20
ANAIS - 2013
A aldeia urbana marçal de souza: algumas reflexões
subalternas
Alessandro Fagundes MATOS1
Edgar Cézar NOLASCO2
RESUMO: A subalternidade é um problema de representação que
envolve a questão de quem tem o poder e quem não o tem. O não
direito à fala, pois se fala já deixa de ser, é que caracteriza o indvíduo
como subalterno. Percebemos aqui uma questão que há muito é
discutida na academia. Com base nessas postulações já levantadas,
nota-se que é preciso delimitar o locus, o lugar em que esse indivíduo
se encontra para, aí sim, fazer uma reflexão sobre a questão social
intitulada subalternidade. No Estado de Mato Grosso do Sul,
precisamente em sua capital, Campo Grande, encontramos, e podemos
pensar como o melhor exemplo de sujeito subalterno, o indígena,
especificamente o que vive na aldeia urbana Marçal de Souza. Este
trabalho visa refletir sobre algumas considerações dessa condição
subalterna do indígena alocado em uma aldeia urbana. Tomaremos
como base para nossa discussão os postulados dos estudos subalternos
e pós-coloniais.
PALAVRAS-CHAVE: Aldeia Urbana; Indígena; Subalternidade.
De tanto crescer pelo mundo
afora, a cidade global adquire
características
de
muitos
lugares. As marcas de outros
povos, diferentes culturas,
distintos modos de ser podem
1
Alessandro Fagundes Matos é mestrando na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul – UFMS - E-mail: [email protected]
2
Edgar Cézar Nolasco é Professor Doutor da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul – UFMS – E-mail: [email protected]
21
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
concentrar-se e conviver no
mesmo lugar, como síntese de
todo o mundo. A cidade pode
ser um caleidoscópio de
padrões e valores culturais,
línguas e dialetos, religiões e
seitas, modos de vestir e
alimentar, etnias e raças,
problemas e dilemas, ideologias
e utopias.
Octávio Ianni, A era do
globalismo, p. 58
Caleidoscópio. Na epígrafe apresentada a cidade é
metaforizada como um conjunto de objetos, cores, formas, que
produzem imagens em constante mutação. A imagem que antes
tinha a cidade, de apenas ser um arranha-céu de cimento, com
pessoas atravessando ruas frenéticas a todo momento, onde a
vida realmente acontecia já não é suficiente. A cidade é muito
mais que isso, ela sofreu e continuará sofrendo mutações. É uma
mistura de culturas, religiões, fantasias, sonhos, etnias e
infindáveis mesclas. Encontramos nesse lugar classificado como
urbano: brancos, negros, pardos, indígenas, entre outros; todos
vivendo no mesmo espaço, buscando o seu lugar, disseminando
a sua cultura, tendo trocas - seja consciente ou não - em maior
ou menor escala.
Em meio a tantas trocas, quem hoje em dia se questiona
como a mandioca foi parar em seu prato? De onde veio o estilo
musical intitulado rap que está presente tanto na periferia quanto
no centro, tratando de problemáticas que estão no seio de cada
classe social? Muito difícil se perguntar sobre isso, mas a
verdade é que a mandioca, o rap, e outras coisas mais, estão
presentes na vida daqueles que nela vivem.
22
ANAIS - 2013
Já que a cidade é esse lugar em que várias etnias se
encontram, talvez a imagem que ainda traga certo tipo de
espanto seja a do indígena. Como assim? O indivíduo da floresta
compartilhando o mesmo espaço com o não indígena e
estabelecendo uma relação de troca – por mais que essa seja de
forma desproporcional, pois o indígena é quem mais se apropria
de costumes de uma cultura que não é sua. Algo parece estar
fora do lugar – muitos pensam – mas não, ele está na cidade e
aqui procura o seu espaço.
Por que o seu espaço na cidade?
E qu
qu c
u
,“
g
”
órgãos específicos, regidos por um estatuto, esses sujeitos ainda
c
u
“ g
”
u
qu
áreas, enfadados em
lutas por terras, cheios de promessas, crimes não resolvidos ou
que demoram anos para serem concluídos; exemplo pode ser o
do líder indígena Marçal de Souza que foi assassinado na década
de 80 e o caso só teve um desfecho quase dez anos depois. Essa
mudança de lugar, das reservas para a cidade, é um meio, penso,
de diminuir, ou tentar pelo menos, essas gritantes diferenças do
indígena para com o branco. Por mais que o medo, por parte dos
mais velhos, do deslocamento dos indígenas para a cidade
acarrete em uma perda de terras ainda maior, os mais jovens
continuam saindo do lugar de origem para tentarem a vida na
urbe. Mas será que a simples atitude de se deslocar é suficiente
para diminuir as diferenças e ter voz? Acredito que a resposta
não é tão animadora.
O sujeito indígena, não respeitado desde o
“ c b
”
B
, ã
z, ã
h ó –o
pouco que sabemos é contado pelo branco. É subalterno, ou
seja, a sua enunciação não é capaz de abalar os discursos do
23
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
poder; se assim conseguisse, já não o seria. (BEVERLEY, 2004)
Ser subalterno não é apenas ser classificado como tal, é não ter
direito ao grito, não produzir práticas discursivas, não interagir
discursivamente, condenado todos os dias pelo outro por
antecipação, até mesmo a academia o condena - não de maneira
literal (será?) - o condena quando não abre espaço para essa
representação. (NOLASCO, 2010)
Viver em uma constante desigualdade fez Marçal
proferir, em 1950, num discurso, em um culto evangélico,
palavras a respeito da esperança. Apesar do tempo transcorrido,
suas letras continuam vivas. A fala foi comentada por Schaden.
...assisti a uma dessas reuniões dirigidas por
Marçal de Souza, à qual compareceram
dezenas de índios, não só Nandeva e
Kaiowá, como também alguns dos Terena
O
g çã
“
ç ” “
é
ç ,
para os índios não há mais o que esperar
neste mundo. Daqui a uns cinquenta anos
estarão reduzidos a uns restos miseráveis.
Esperança só no Além, onde se medirão a
todos com igual medida, pobres e ricos,
ignorantes e instruídos. (TETILA, 1994, 21)
Será que o subalterno, em especial o indígena, só será
considerado e tratado nas mesmas proporções igualitárias
quando chegar ao céu? Se o líder, quase que em palavras
proféticas, mencionou que estariam reduzidos a restos
miseráveis, o que se pensar para mais daqui cinquenta anos?
Serão restos miseráveis na cidade ou em suas reservas? Se daqui
a cinquenta anos a pergunta ainda estiver latente e for pertinente
à discussão, quem sabe a resposta seja precisa. No atual
24
ANAIS - 2013
momento, e se persistir o modelo de sociedade – acredito que
não mude –, a relação de subordinação e dominação continuará.
O crítico subalternista latino-americano John Beverley defende
que a lógica das lutas sociais se fundamenta na dominação de
um que acarreta na subordinação do outro e é justamente por
causa da caracterização e modelo de sociedade, relação
dominante/subalterno, que as identidades subalternas são
reforçadas. (NOLASCO, 2010)
Enquanto o tempo não passa, me atentarei ao presente. O
indígena está na cidade. Se só em restos mortais eu não sei, mas
está reduzido, e muito. Certa vez uma professora relatou a
seguinte experiência: Uma criança a procura em pranto.
Questionada sobre o que aconteceu, não conseguia falar. Depois
de acalmada e já podendo expor o porquê daquele estado
emocional abalado, disse que uma outra havia chamado ela de
índio. O que espanta logo em seguida, é que a menina intitulada
de índio pelo colega realmente pertencia a uma etnia indígena.
Diante do acontecido, parece que ser índio para alguns tomou a
forma de um problema, e já se nota um conflito de identidade; a
g çã
u ó
u O “x”
qu ã
b
á c
apresentada não é ser índio, a maior dificuldade que esses povos
enfrentam, independente da etnia que pertence, é não ter
representatividade, é viverem condenados ao silêncio, a uma
transculturação desnivelada que pende para uma desproporção
avassaladora, de não ter espaço nem mesmo na cidade que é o
lugar da diferença, do caleidoscópio de várias cores e formas. E
qu f z qu
ç
qu
é
qu
“ c h ”
e ao mesmo tempo o exclui?
Antes de comentar sobre a aldeia urbana Marçal de
Souza, locus da proposta reflexiva aqui apresentada sob a
perspectiva da subalternidade, julgo interessante fazer, mesmo
que de maneira breve, uma curta apresentação dos indígenas
25
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Terêna em solo brasileiro, embasada por Roberto Cardoso de
Oliveira, em seu livro Do índio ao bugre: o processo de
assimilação dos Terêna. Darei ênfase à etnia Terêna por ser a
maioria residente da aldeia em questão. Informo que os estudos
foram feitos na década de cinquenta, na região sul do então
estado de Mato Grosso.
A pesquisa, de caráter sociológica, realizada por
Oliveira, menciona que a etnia Terêna é um subgrupo dos
Guaná e que nos mea Aos poucos, em um processo lento, as
ondas humanas, ou seja, a migração da sociedade nacional para
os lugares em que estavam estabelecidas as aldeias, ou próximo
delas, influenciou o engajamento dessas populações a uma
relação frequente que permitirá trocas substanciais, propiciando,
assim, uma reconfiguração, se é que assim se pode dizer,
cultural. Mesmo os Terêna sendo, em todo decorrer de sua
história, fechados, eram frequentemente procurados pelos
fazendeiros por serem exímios vaqueiros e bons agricultores.
Além de suas habilidades com o gado e a terra, eram acionados
porque se contentavam com remunerações baixas para
simplesmente se vestirem, se alimentarem e satisfazerem os seus
vícios. (OLIVEIRA, 1976). Algo que merece ser ressaltado, e
que pode fundamentar um dos principais motivos para sua
locação na cidade, é que mesmo possuindo algumas terras, os
ameríndios não conseguiam tirar dela o sustento necessário para
suas famílias, precisando recorrer a serviços, mesmo que em
caráter exploratório, para complementar a renda. Dá-se início a
migração para espaços urbanos.
O que começou com uniões interétnicas e intertribais, e
que mais tarde acarretaria em um processo de destribalização de
muitos indígenas, teve como consequência o desapego às
tradições dos grupos étnicos envolvidos nesses matrimônios. No
que tange à destribalização, o efeito foi a constante perda de
26
ANAIS - 2013
terras por parte dos indígenas. O prejuízo da perda de solo
fomentou a proximidade com os fazendeiros, pois, os
ameríndios, precisavam levantar o sustento para suas famílias
deslocadas. Nessa situação, mesmo que algumas indígenas ainda
possuíssem pequenos espaços para o plantio, o subsídio
alimentar produzido não era suficiente, tendo que recorrer a
serviços, muitas vezes, de regime exploratório, já que eram
constantemente ludibriados por aqueles que os empregavam.
Além desses fatores que contribuíram, mais tarde, para a
mudança do campo para cidade, pode-se notar um processo de
transculturação por causa do frequente contato com as agências
de mudança cultural (Posto do Serviço de Proteção ao Índio
localizado nas aldeias, escolas, igrejas católicas e protestantes),
com os fazendeiros e a população urbana. Inicialmente, esses
grupos destribalizados, ou até mesmo aqueles que mantinham
uma proximidade com territórios urbanos, mudaram-se para as
cidades de Miranda e Aquidauana. A atitude de ir para a urbe
ganha força, e na década de 90 há a implantação da aldeia
urbana Marçal de Souza no município de Campo Grande, já
capital do Estado de Mato Grosso do Sul.
No que concerne à aldeia Marçal de Souza, apresento
que após travar lutas para não perder a terra, que fora doada a
índios da etnia Terêna, é constituída a aldeia que abriga não
somente a etnia supracitada, mas também de outras, assim,
como ultimamente tem sido aceito em seu espaço pessoas que
não pertencem à etnia alguma, por conta de uniões
matrimoniais. A relação entre cidade, seja letrada ou não, com o
sujeito subalterno vai trazer mudanças significativas nesse
indivíduo deslocado. O contato constante com a cultura do
branco ocasiona uma ressignificação de valores, adaptação ao
sistema cultural diferenciado, algo já notado nas relações
interetnicas e intertribais, tendo que recriar o seu modo de vida,
27
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
se apropriando do discurso alheio para sua sobrevivência. Para
os mais velhos que pertencem a qualquer etnia indígena, tal
proximidade apresenta um risco a sua cultura, já que os mais
jovens estabelecem um contato mais aberto, não tão apegado a
tradições de seu determinado grupo, pois elas não perduraram
mais em sua memória. Mas qual o papel da memória? Qual a
necessidade de preservá-la? A memória tem uma função fixa
que a conecta à tradição, é ela que faz o sujeito saber, ou pelo
menos tenta, a sua origem, o lugar de onde veio, a sua história,
mesmo sendo ela excluída dos discursos hegemônicos, e no caso
do subalterno, o seu percurso histórico contado pelo outro;
quando narrado. (ACHUGAR, 2006) Paralelamente, o
esquecimento que acomete os indígenas presentes na cidade
também é necessário para a nova necessidade estrutural. Após a
proximidade com a cultura alheia, e passar pelo processo de
entrelaçamento, se apropriar das marcas que estão do outro lado,
as fissuras criadas precisam superadas, e nesse momento ocorre
o esquecimento. É preciso dizer que o caminho do esquecimento
é lento, assim como o resgate da memória também o é, tendo
muitas vezes resultados nas gerações vindouras que já crescem
c
c
“f u
u
”,
g
u
novo momento de resgate memorial e esquecimento marcado
pelo seu tempo, sua história e realidade.
Oliveira associa a apropriação de novos valores culturais
com o conceito de assimilação. O que para ele era o
““processus” pelo qual um grupo étnico se incorpora noutro,
perdendo sua peculiaridade cultural e sua identificação étnica
” (OLIVEIR , 1976) Ou j , cu u çã , qu á
ideia de apenas recebimento e incorporação de uma cultura
alheia, não estabelecendo um processo de troca e adota um
perfil colonizador. Para a reflexão aqui proposta, o termo que se
orienta em uma via apenas não é suficiente, sendo necessário
28
ANAIS - 2013
recorrer a outro, cunhado inicialmente pelo cubano Fernando
Ortiz, vocábulo este que pretende abarcar e significar o processo
de movimento constante do encontro de povos e suas culturas,
constituindo trocas, mesmo que não sejam niveladas. Segundo
Ortiz, o termo que melhor expressa a mudança contínua é
transculturação e não a aculturação. Transculturação designa
as fases do processo de transição de uma
cultura a outra, já que este não consiste
somente em adquirir uma cultura diferente,
como sugere o sentido estreito do vocábulo
anglo-saxão, aculturação, mais implica
também necessariamente a perda ou
desligamento de uma cultura precedente, o
que poderia ser chamado de uma parcial
desculturação, e, além disso, significa a
consequente criação de novos fenômenos
culturais que poderiam ser denominados
neoculturação. (...) No conjunto, o processo
é uma transculturação e este vocábulo
compreende todas as fases da trajetória.
(ORTIZ, 1983, p.90)
Um exemplo de troca, recebimento de algo oriundo de
outra cultura, pode ser vista na imagem a seguir, extraída de
uma matéria feita na Aldeia Urbana Marçal de Souza, pois, nela
nota-se o antes, o cocal, uma provável tentativa de resgatar a
identidade indígena tão fragilizada, que ao mesmo instante
estabelece um contato, e faz uso, de um equipamento
tecnológico que é presente na cultura do outro, da sociedade que
não compartilha na mesma proporção de seus costumes.dos do
século XVIII os grupos Guaná (Chanás, Choarana e
Quainoconas, os outros três subgrupos) passam para as margens
orientais do Paraguai, estabelecendo ocupação no lugar que hoje
29
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
é conhecido como Triângulo Mineiro. O relato desse grupo em
solo brasileiro já é marcado pelo conflito pelas terras. No tempo
aqui mencionado, os bandeirantes, com sua ânsia por domínio e
exploração, levaram as fronteiras do Brasil até a bacia do
P gu N
í
u
c
“ u
”, j uí
espanhóis pela expansão do império, o indígena esteve sempre
em meio ao fogo cruzado, sendo o mais prejudicado, envolvido
ora por uns, ora por outros, brigando muitas vezes entre si; foi o
mais espoliado de seus bens, terras e de sua gente. (OLIVEIRA,
1976)
A respeito dos Terêna, subgrupo que tinha por habilidade
o plantio, tem-se muito pouco relato por conta do seu contato
mínimo com o branco e até mesmo com as outras etnias
indígenas. Oliveira comenta que
a bibliografia a seu respeito só começa com
Castelnau, em 1844-45, portanto na metado
do século passado. Encontramos ligeiras
referências no século XVIII através de
Sanches Lavrador, Azara e Aguirre, que não
vão além de meras indicações sobre
localização e estimativas censitárias. Já os
séculos XVI e XVII nem sequer os
mencionam. As Cartas Ânuas, por exemplo,
tão férteis de informações sobre os muitos
grupos chaquenhos, quase nada nos dizem
sobre a situação dos Terênas no século
XVII. E, sobre os Guaná, Schmidel e
Cabeça de Vaca, de passagem pelo chaco
paraguaio respectivamente em 1535-36 e
1543, limitam-se a umas poucas indicações,
de menor importância, excetuando-se,
naturalmente, a célebre proposição do
primeiro, quando compara as relações
30
ANAIS - 2013
Guaná-Guaikurú com a subordinação
existente, na época, entre senhores feudais e
camponeses em sua pátria. (OLIVEIRA,
1976, p. 23)
Como consequência do distanciamento entre os
indígenas da etnia Terêna com as outras, e até mesmo com a
sociedade nacional, ela se torna uma nação que procura
conservar sua integridade cultural e os costumes herdados de
seus antepassados. No decorrer da obra, salta aos olhos o zelo
empregado à manutenção de seus valores e práticas culturais
que permeava a etnia, mesmo quando os outros subgrupos
Guaná já estabeleciam um contato mais corrente com outras
etnias e a sociedade; podemos destacar a proximidade com
pesquisadores e fazendeiros da região. Fato que tomou força
após a Guerra do Paraguai e como fruto das uniões interétnicas e
intertribais.
Figura 1
Imagem extraída do vídeo http://www.youtube.com/watch?v=ryFw9MH3g2g
31
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A necessidade de reforçar, ou trazer à memória suas
origens quando o indígena está inserido e estabelecendo relações
c
cu u
“c
z çã ”, c
u
g f c çã
cultural e a base de sua identidade é afetada. Em se tratando da
identidade desses grupos ameríndios, vê-se que ela se torna,
como qualquer outra, uma celebração móvel, assumindo
diferentes formas, sendo elas não definidas. (HALL, 1998). A
mudança implica, às vezes, em uma identidade não resolvida,
deixando-a com características que a conduzem ao declínio.
Para melhor elucidar a questão levantada, apresento uma
entrevista cedida pelo presidente do Conselho de Segurança
Comunitário da Aldeia Marçal de Souza, Ênio de Oliveira, ao
jornal Correio do Estado, extraído do canal Ponto de Cultura na
rede de vídeos youtube. Nas palavras do entrevistado é
percebido o declínio que essa ressignificação/adaptação traz ao
sujeito indígena que está em constante contato com a cultura e
os valores que fluem de maneira mais livre na cidade.
Nossa vontade é de trazer a comunidade
para dentro do ponto de cultura para que não
se perca a cultura, porque praticamente já
está deixando de existir. A maioria da nossa
comunidade não ousa mais falar a língua.
Entende, mas tem vergonha talvez até de
falar. Então a gente vai trabalhar a autoestima da comunidade para buscar o que ele
é, ele ser o que ele é. Porque existe uma
frase que diz isso claramente: posso ser o
que você é sem deixar o que eu sou. Você
pode ser formado em doutor, médico,
advogado, grandes profissões, mas você
nunca deve deixar de ser índio.3
3
http://www.youtube.com/watch?v=ryFw9MH3g2g
32
ANAIS - 2013
Buscar ser o que ele é. É perceptível a preocupação em
dar continuidade às práticas culturais que envolvem o grupo
indígena que está alocado em território urbano. Uma
característica que marca a identidade do indivíduo que nasceu e
cresceu em uma comunidade indígena é a língua. Noto que há
uma desvalorização dela por parte do próprio, ele mesmo já não
quer mais fazer uso daquilo que faz parte de sua peculiaridade,
que caracteriza o seu grupo, que o torna diferente. A vergonha
que ronda esse sujeito, como destacada pelo Sr. Ênio, o
impossibilita de afirmar o que é, sua origem. Recai sobre seus
ombros a imagem de um ser deslocado, o outro, um tipo de
doença que corre em suas veias, que o torna tão diferente ao
ponto de exclui-lo, de envergonhá-lo pelo que é e sempre será.
Sim, sempre será, aceitando ou não.
Ainda no ponto que tange à língua, à aprendizagem e o
uso dela, em conversas com indígenas que estão na academia,
que residem em lugares próximos à cidade, nota-se que o fator
econômico pesa quando o assunto é discutido e exposto pelos
anciões das aldeias e das famílias. Quando são questionados a
respeito, ou até mesmo em situações do cotidiano, o discurso é
que aprender a língua nativa, e não a portuguesa, é uma perda de
tempo, pois ela não trará condições financeiras favoráveis para o
consumo. Os que compartilham essas conversas, e que estão
hoje em espaços acadêmicos, dizem que a mudança de
mentalidade em relação a sua própria origem mudou após o
ingresso em cursos de graduação, pois notou que sua cultura é
rica e que sua diferença tem valor. Quando voltam para suas
aldeias na condição de professores, encontram barreiras a serem
transpostas. O desafio inicial, ou a primeira barreira, é o de
resgatar nos mais jovens os valores esquecidos por conta do
tempo e da transculturação desnivelada que o acomete. Não
33
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
obstante, além dos jovens estudantes das escolas situadas em
reservas ou em aldeias urbanas, a própria família interpela,
frequentemente, os docentes a respeito do ensino da língua
nativa, que para explicarem sua prática docente, precisam
recorrer à LDB para justificarem o porquê ensinar e a
necessidade em aprender a língua. Nota-se que precisam se valer
do discurso alheio, o do colonizador, para validarem a sua
enunciação a partir do outro.
A condição de inferior não provém de seu íntimo, não
brotou, ela foi difundida, semeada por aquele que não faz parte
de seu rol de valores e práticas culturais - o colonizador – o
mesmo que estrangulou a sua diferença. O fardo de ser
considerado menor veio de fora e é tão forte que atinge de modo
tão eficiente os povos primeiros dessa terra chamada América,
que os impossibilita, no caso da aldeia urbana em questão, de
falarem sua própria língua, de a praticarem.
Em um espaço que comporta tantas diferenças, a cidade,
a produção desse grupo subalterno parece ser apenas fumaça.
(ACHUGAR, 2006). Por essa perspectiva, é algo equiparável à
contaminação, que apenas faz mal à saúde daqueles que a
inalam ou tem contato com ela – talvez essa seja a concepção
sobre si dos próprios indígenas que vivem com a vergonha de
sua etnia, de suas raízes e de suas diferenças. A presença dele
parece que causa um mal-estar, enfim, certo tipo de desconforto.
Quem o vê, classifica-o com um olhar piramidal, situando-o
abaixo da base das massas. A impressão que se tem, é que o
sentimento da sociedade excludente se assemelha ao que era
presente nos corações daqueles aqui habitavam quando tiveram
o primeiro contato com colonizadores portugueses. A diferença
é que, dificilmente, e atrevo-me a dizer impossível, o processo
histórico acontecerá de maneira diferente: o indígena se
apropriando das terras e tirando proveito do não índio; uma
34
ANAIS - 2013
reapropriação do solo, com um espírito induzido e motivado a
tomar de volta o que lhes pertence.
A que ponto a sociedade moderna, pós-moderna, híbrida,
como preferir classificar, chegou. O legítimo dono das terras
americanas, seja do Norte, Central ou Sul, tem que barganhar,
disputar, lutar, sangrar até morrer pelo seu espaço, seja na
cidade ou em qualquer outro lugar. Em se tratando de cidade, já
que a presença do indígena nela causa desconforto em muitos:
Quem disse que aqui, a cidade, não é o lugar dele? Quem está
investido de autoridade para dizer onde e quando o indígena
deve se alocar, difundir sua cultura, fazer uso de sua língua? De
maneira muito simplista, penso, poderia dizer que o lugar
urbano está fora de suas coordenadas para se alocar, que o
recinto é desconhecido, estranho e perigoso, mas a pergunta
retorna de maneira redundante: Quem tem a real autoridade para
afirmar tal ideia? A academia com sua prática excludente que
nega o espaço para esse sujeito se representar, cristalizando os
discursos classificados como hegemônicos? A política elitista
carregada de ranços da colonização e que é disseminada como
uma corrente de águas para as outras camadas da sociedade que
apenas reproduzem o discurso repressor? Como transformar
água em vinho, a discussão é belicosa e bem mais profunda do
que se imagina.
Tentar representar o subalterno pode reforçar ainda mais
a subalternidade que o acomete. O erro é justamente esse: tentar
representar. O discurso acadêmico já vem carregado dessa
condenação antecipada. O certo não é querer falar pelo outro, o
subalterno, o indígena da aldeia urbana, mas sim abrir espaços
para que ele fale, se represente e seja ouvido. (SPIVAK, 2010).
Entendo que falar pelo outrem só reforça o efeito do discurso
dominante, uma cópia da modalidade discursiva imperial, já que
o subalterno só existe por causa dessa enunciação carregada por
35
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
uma ideologia excludente que gera e difunde uma falsa
consciência de sempre ter alguém maior e outro inferior. Um
x
é c
qu
“ c b
” Nã
há vestígios que perguntaram aos que aqui estavam como eles se
denominavam, apenas intitulara-os de índios.
Refletindo sobre essa questão de representar o outro e
não abrir espaço para ele, dificilmente se vê, na cidade de
Campo Grande, lugar onde está localizada a aldeia urbana
Marçal de Souza, um espaço para que o indígena que ali mora,
vive, pratica sua cultura carregada de valores híbridos – porque
já está em contato com a cultura do branco, e dela já se
apropriou, houve um processo de transculturação e em seu meio
também já está difundido valores de outras etnias indígenas –
um lugar para que possa falar e ser ouvido. O que noto é que são
produzidos vários discursos sobre o indígena, mas pouco, quase
nulo, se não nulo, um espaço para sua representação. Mas por
outro lado, só querer apenas abrir um espaço para sua autorepresentação já parece reforçar sua subalternidade. Penso que o
correto seria se a sua enunciação fosse de maneira acomodada,
sem ser forçada por um ranço de obrigação, sem ter que preparar
um lugar, período, momento para dizer: pronto, você tem dez
minutos para nos interpelar (academia, centro, periferia, etc.) ou
a produção de inumeráveis trabalhos e pesquisas para falar
sobre; seria mais proveitosa a espontaneidade, embora tenha a
plena consciência que uma atitude similar seja utópica.
Instituir uma aldeia urbana não é suficiente, acredito.
“Of c ” u
ug
r, com casa, escola que
contemple o ensino da língua nativa – mesmo quando eles, que
já sabem ou estão aprendendo, têm vergonha de falar – um
espaço denominado memorial cultural – tendo em mente que ali
pode ser apenas uma oportunidade de vender seu artesanato –
ã é uf c
D qu
“ g
”, qu
36
ANAIS - 2013
verdade é uma obrigação do Estado para com qualquer pessoa
que viva em território nacional - proporcionar as necessidades
básicas - quando se é invisível frente a toda uma sociedade? É
curioso saber que muitos que moram na capital sul-matogrossense não saibam que há uma aldeia urbana em seu
ó
b
qu
há gu “bug ” qu b
suas portas oferecendo produtos originados do plantio, e logo
depois que são questionados, perguntados sobre quem era,
dizem que era apenas mais um índio, intitulando de maneira,
muitas vezes pejorativas e banalizadas, aquele que faz parte de
um grupo marcado por sua diferença, mas ao mesmo tempo é
uf c
ã c
“u
”
A ideia de a cidade ser o lugar das marcas de outros
povos, diferentes culturas, distintos modos de ser e que podem
concentrar-se e conviver no mesmo lugar (faço menção à
epígrafe), parece não valer para o nativo. Um espaço tão
diversificado, amplo de/para relações e trocas culturais, dá a
impressão de ser tão insuficiente para aceitar em seu meio uma
cultura ameríndia. Não somente a questão cultural é
problemática, mas a econômica também atinge esse grupo. O
processo de inserção dessa população no mercado de trabalho,
no que tange a condições igualitárias, ainda é delicada. Segundo
Vanderléia Mussi, pesquisadora do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), citada por
Campos (2006), cerca de 71% dos trabalhadores da Marçal de
Souza recebem um salário mínimo ou menos. Para elucidar
melhor a desigualdade que ronda os indígenas que na cidade
vivem, ainda segundo a pesquisadora, os índios da Água Bonita,
outra aldeia que fica na periferia de Campo Grande, são
acometidos pelo alto índice de desemprego que chega a 48%.
37
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Mas diante de tantos problemas, desigualdade,
invisibilidade, carência de espaços para representação, por
que então vir para a cidade?
Uma das principais razões para buscar a vida na cidade é
a procura por melhores condições de saúde. Mas um fato
curioso é que o sistema de saúde urbano nem sempre é receptivo
a essas pessoas. Alegam que a responsabilidade do atendimento
ao indígena que está alocado na cidade é da Fundação Nacional
de Saúde (Funasa) – órgão que, curiosamente, tem em sua
política a prática de não prestar atendimento a índios
urbanizados. Percebo, que além da falta de representação que já
acomete o grupo indígena que vive em território urbano, o
descaso que as políticas públicas têm para com ele. A
subalternidade não infere somente no ponto de não poder falar,
mas acarreta em consequências que se materializam no
cotidiano do sujeito subalterno. Não ter acesso pleno a um
atendimento de saúde é uma prova contundente disso. Negar
uma necessidade pública é negar o direito à vida. A
subalternidade é um problema político e se algum dia a
sociedade excludente denominada como branca pensar em
mudar essa situação catastrófica, será preciso mudar sua
política; cabe salientar que não somente as práticas políticas do
branco, mas dos próprios órgãos nacionais instituídos para velar
pela sobrevivência - digo sobrevivência, pois as condições que
se encontram esses grupos não são dignas de dizer que vivem dos povos indígenas. Enquanto isso não acontece e acredito que
demorará ainda muito, se acontecer, o índio estará condenado a
continuar vivendo oprimido em sua própria terra, fadado ao
b buc ,
c
“ g bu
”, “c ch c
”
“bug ”
c
u qu qu
u
ug
qu
reflexões da sociedade se disseminam devem parar de querer
38
ANAIS - 2013
falar pelo subalterno, e sim, estabelecer um diálogo para que as
políticas mudem, já que a subalternidade é um problema
político, uma questão de poder. Que aqueles que na cidade
estão, ou até mesmo em reservas indígenas se encontram, não
venham ter a tristeza daquela criança que uma vez chorou por
ser chamada de índio. Encerro aqui com as palavras de Joel
Pizzino Filho, quando escreveu um poema em homenagem ao
líder indígena Marçal de Souza, trabalho que fez parte da
semana que homenageou o líder oito anos após a sua morte. O
poema trata da relação do indígena com o não indígena, e nos
mostra que mesmo depois de estabelecer contato frequente com
o outro, aqueles que na cidade vivem e são originados de etnias
variadas, ainda são índios.
O Banguela dos lábios de mel
Apesar de minha roupa, eu ainda sou índio
Apesar do gole amargo da caninha
no bolicho da esquina, eu ainda sou índio
Apesar do colar de nylon, de lã pinguin
e das desbotadas penas de galinha – matéria prima
que disfarça meu artesanato – eu ainda sou índio
Apesar da bíblia em caiuá, da carteira não identidade,
daquele jogo de camisa e do troféu que ganhei
antes da eleição, eu ainda sou índio
Apesar do reumatismo, da sífilis, da prost-instuição,
de banhar nas águas envenenadas pela agricultura branca
e da tuberculose que se quer meus avós conheciam
eu ainda sou índio.
Apesar de pedir pão velho nos cerrados portões,
caçar nos lixuosos latões das ocas de concreto
e de dormir nas frias margens da rodiviária –
Apesar da malária – eu ainda sou índio
39
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Apesar de ser vagabundo por opção, incapaz de
acumular,
de não oferecer o badalado perigo e ser o bandido
no faroeste da televisão, eu ainda sou índio
Apesar de pedir perdão na catedral, tomar guaraná,
balbuciar o gu
x
“bug ”,
eu ainda sou índio
Apesar de comer milho e ser humilhado,
comer mandioca e ser ensopado, eu ainda sou índio
Apesar de vestir jeans, ser deputado, fazer comercial
e querer apito no carnaval, eu ainda sou índio
Apesar de sacar os grilos e ser grilado, apesar de estar
exilado em meu próprio chão, eu sou ainda sou índio
Apesar de não apaixonadamente como Peri,
estar banguela e me chamarem Marçal, eu ainda sou
índio
“ c
c qu u ã
b b
u
,
porque nós índios não guardamos datas como vocês
guardam datas e anos no papel. Nosso calendário
é o inverno, nosso correr dos meses é a lua,
nosso rel... (MS)4
Referências
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Trad. de Lyslei
Nascimento. Belo horizonte: Editora UFMG, 2006.
BEVERLEY, John. Subalternidad y representación. Trad. de
Marlene Beiza y Sergio Villalobos-Ruminott. Madrid:
iberoamericana, 2004.
4
FILHO apud TETIL , M ç
uz : Tu ã’!,
89
40
ANAIS - 2013
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
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IANNI, Octávio. A era do globalismo. 4ª ed. Rio de Janeiro:
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NOLASCO, Edgar Cézar. babeLocal: lugares das miúdas
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ORTIZ, Fernando. Contrapuento cubano del azúcar y del
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SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra
Regina Goular Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira
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guarani que não se cala. Campo Grande: UFMS, 1994.
41
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
YOUTUBE.
Disponível
<http://www.youtube.com/watch?v=ryFw9MH3g2g>
em 08 de setembro de 2012.
em
Acesso
42
ANAIS - 2013
A construção do lugar em que se vive: análise semiótica de
dois textos poéticos infantis
Andréia Reis Bacha MORININGO1
Geraldo Vicente MARTINS2
RESUMO: Neste trabalho, pretendemos analisar duas produções
poéticas (Menina Pequena e Campo Grande hospitaleira),
presentes nas coletâneas Poetas da Escola II e III, publicadas nos anos
de 2009 e 2010, respectivamente, quando seus autores eram alunos do
5º ano do ensino fundamental, na Escola Municipal Dr. Tertuliano
Meirelles, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Para tanto,
recorremos ao instrumental teórico-analítico da semiótica discursiva,
que procura explicar os mecanismos discursivos de produção dos
sentidos no texto, a partir da observação do plano de conteúdo e do
plano de expressão. O estudo orienta-se a partir do que a semiótica
concebe como percurso gerativo do sentido, instância na qual são
estabelecidos três níveis: fundamental, narrativo e discursivo.
Verificamos que ambas as produções são revestidas de figuras que
recriam o mundo concreto, proporcionando, assim, um efeito de
realidade. Outros aspectos considerados relevantes para a análise
concernem
a
estratégias
de
intertextualidade
e
de
interdisciplinaridade, quando são utilizados conhecimentos de outros
ramos do saber, como ciências, geografia e história, sobre o local em
que se vive, a fim de se construírem efeitos de verdade nos textos.
PALAVRAS-CHAVE: produções poéticas; semiótica discursiva;
percurso gerativo do sentido.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de
Linguagens. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS –
[email protected]
2
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de
Linguagens. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS –
[email protected]
43
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
1. Introdução
Compreender um texto poético exige que o leitor
considere, além de seu conteúdo, o significado dos elementos de
expressão, o que se torna mais claro quando se recorre ao
instrumental teórico-analítico da semiótica discursiva.
Segundo as concepções de seu iniciador, Algirdas Julien
Greimas, o texto resulta de um plano de conteúdo, que pode ser
veiculado por diferentes manifestações, e um plano de
expressão, que veicula o conteúdo do texto, propriamente dito.
Além disso, concebe-se o texto como resultado das
relações entre os componentes de níveis diversos. Dessa forma,
o texto passa a ser apreendido a partir de
diferentes instâncias de abstração e, em
decorrência, determinam-se etapas entre a
imanência e a aparência e elaboram-se
descrições autônomas de cada um dos
patamares de profundidade estabelecidos no
percurso gerativo. (BARROS, 1998, p. 15).
Com base nessa acepção, pretendemos analisar, em dois
poemas infantis, alguns procedimentos que o constituem
capazes de produzir um efeito de sentido de verdade nos textos.
Para tanto, a análise considerará, sobretudo, o plano discursivo,
patamar superficial do percurso gerativo do sentido, mais
próximo da manifestação textual e enriquecido semanticamente,
além dos procedimentos da expressão que produzem tais efeitos.
2. Fundamentação teórica
A semiótica discursiva, também denominada francesa
ou greimasiana, oferece um instrumental metodológico que
44
ANAIS - 2013
permite estabelecer os sentidos possíveis de um texto,
cu
c
x c “ qu
x
z c
f z
z
qu
z” (B RRO , 2005, 11)
x
,
em primeiro lugar, de seu plano de conteúdo concebido sob a
forma de um percurso gerativo que vai do mais simples e
abstrato ao mais complexo e concreto. Dito de outro modo, a
ó c
cu
“ qu
x
z, c
z
para que o faz, buscando recuperar, no jogo da
intertextualidade, a trama ou o enredo da sociedade e da
h ó ” (B RRO , 2005, 78). Além disso, determina que o
estudo da significação deve obedecer a três condições: ser
gerativo, ser sintagmático e ser geral (FIORIN, 2012, p. 17).
A primeira condição, a de ser gerativo, impõe ao
analista a necessidade de construir o sentido do texto a partir
dos investimentos dos conteúdos dispostos em patamares
sucessivos e, por conseguinte, progressivos; a segunda
condição, a de ser sintagmático, explica a produção e a
interpretação do discurso, que passa a ter uma estruturação
própria; e a terceira condição, a de ser geral, considera a
manifestação do sentido por diferentes planos de expressão ou
por vários planos de expressão ao mesmo tempo (FIORIN,
2012, p. 17).
Como a teoria semiótica procura examinar a
u c çã “ qu
â c
u
elo discurso, em
que deixa marcas ou pistas que permitem recuperá- ”,
(BARROS, 2005, p. 78), é necessário o estudo do percurso
g
, qu “
c
u
hierárquico, em que se correlacionam os níveis de abstração do
senti ” (FIORIN, 2012, p.18).
No percurso gerativo do sentido verifica-se uma
sucessão de patamares, recebendo cada um, uma representação
metalinguística explícita. Cada patamar do percurso gerativo
45
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
tem um componente sintáxico e outro semântico e pode ser
assim explicado:
No nível das estruturas fundamentais, uma
sintaxe explica as primeiras articulações da
substância e das operações sobre ela
efetuadas e uma semântica surge como um
inventário das categorias sêmicas com
representação sintagmática assegurada pela
sintaxe; na instância das estruturas
narrativas, uma sintaxe regulamenta o fazer
– simulacro do homem no mundo e das suas
relações com os outros homens – e uma
semântica atribui estatuto de valor aos
objetos do fazer; na etapa mais superficial
das estruturas discursivas, uma sintaxe
organiza as relações entre enunciação e
discurso e uma semântica estabelece
percursos
temáticos
e
reveste
figurativamente os conteúdos da semântica
narrativa. (BARROS, 1988, p. 16).
Dentre os níveis do percurso gerativo do sentido, o nível
discursivo encontra-se mais próximo da manifestação textual, e
é por meio do texto que se torna possível compreender o
cu
“N
uu
cu
u c çã
revela e é onde mais facilmente se apreendem os valores sobre
qu
u
qu
x f c
uí ” (B RRO ,
2005, p. 54).
A sintaxe discursiva comporta os mecanismos de
instauração de pessoas, tempos e espaços no discurso,
projetados pela enunciação. Esse mecanismo denomina-se
debreagem, que é definida como
46
ANAIS - 2013
a
operação pela qual a instância da
enunciação disjunge e projeta fora de si, no
ato de linguagem, e com vistas à
manifestação, certos termos ligados à sua
estrutura de base, para assim constituir os
elementos que servem de fundação ao
enunciado-discurso.
(GREIMAS
e
COURTÈS, s/d, p. 95).
Se essa operação trabalha sobre as categorias de pessoa,
tempo e espaço, conclui-se que existem três formas de
debreagem: actancial, temporal e espacial. Vejamos o que elas
significam:
a debreagem actancial consistirá, então, num
primeiro momento, em disjungir do sujeito
da enunciação e em projetar no enunciado
um não-eu; a debreagem temporal, em
postular um não-agora distinto do tempo da
enunciação; a debreagem espacial, em opor
ao lugar da enunciação um não-aqui.
(GREIMAS e COURTÈS, s/d, p. 95).
A debreagem pode ainda ser: enunciativa e enunciva. A
debreagem enunciativa ocorre quando o sujeito instala no
discurso a pessoa (eu), o tempo (agora) e o espaço (aqui) da
enunciação; e a debreagem enunciva, quando o sujeito instala a
pessoa (ele), o tempo (então) e o espaço (lá) do enunciado.
Essas debreagens produzem dois tipos básicos de discurso: os de
primeira e os de terceira pessoa. É preciso compreender que
com as debreagens enunciativas e enuncivas
criamos a ilusão de que as pessoas, os
espaços e os tempos inscritos na linguagem
47
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
são decalques das pessoas, dos tempos e dos
espaços do mundo. No entanto, a
embreagem desfaz essa ilusão, pois
patenteia que eles são criações da
linguagem. (FIORIN, 2012, p. 31).
Esses mecanismos de debreagem e embreagem
pertencem a toda manifestação de linguagem, ou seja, todas as
línguas apresentam as categorias de pessoa, de espaço e de
tempo, podendo expressar-se distintamente de uma língua para
outra, ou de uma linguagem para outra.
A embreagem, ao contrário da debreagem,
desreferencializa o enunciado que ela afeta. Por exemplo,
quando se usa uma terceira pessoa no lugar de uma segunda, é
como se o interlocutor não falasse com o interlocutário, mas
com os outros sobre ele. Dessa forma, desreferencializa-se a
instância do tu. (FIORIN, 2012, p. 30).
O componente semântico do nível discursivo apresenta
dois procedimentos: a tematização e a figurativização. Enquanto
a tematização busca abstrair do texto conceitos que explicam o
mundo, a figurativização produz textos concretos com o intuito
de simular a realidade enunciada. Portanto, a figurativização e a
tematização são operações enunciativas que desvelam os
valores, as crenças, as posições do sujeito da enunciação
(FIORIN, 2012, p. 32).
Quando abordamos, no percurso gerativo do sentido, o
nível narrativo, talvez seja importante traçarmos uma distinção
entre narratividade e narração. A narratividade é um elemento
presente em todos os textos e a narração diz respeito a uma
tipologia textual, concernente a uma determinada categoria de
textos. A narratividade é uma transformação situada entre dois
estados sucessivos e diferentes (FIORIN, 2002, p. 21).
48
ANAIS - 2013
No nível narrativo do percurso gerativo do sentido,
depreende-se o enunciado como unidade elementar da sintaxe
narrativa. Dependendo da relação que se estabelece entre o
sujeito e o objeto-valor, o enunciado pode caracterizar-se por:
enunciado de estado ou enunciado de fazer. Isso significa que a
relação de junção (conjunção ou disjunção) entre o sujeito e o
objeto-valor determina um enunciado de estado. Caso ocorra
uma transformação nessa relação, ou seja, se há a passagem de
um estado a outro por meio de um fazer, instala-se um
enunciado de fazer. Ressalta-se que sujeito e objeto na narrativa
não se referem, necessariamente, a pessoa e coisa, mas
f
“ é
qu
u
í
u fc
c
,
u
”
(FIORIN, 2002, p. 22).
Quando um enunciado de fazer rege um enunciado de
estado, integrando estados e transformações, tem-se o programa
narrativo (PN), unidade operatória que organiza a narratividade,
cuj “c é
óg c
c c z çã
f
dois tipos fundamentais de programas, a competência e a
performance. A competência é, por conseguinte, uma adoção de
valores modais; a performance, uma apropriação de valores
c
” (B RRO , 2005, 27)
A manipulação, a competência, a performance e a
sanção integram a sequência canônica de uma narrativa
complexa. Expliquemos cada uma: na fase da manipulação, que
pode ser por tentação, intimidação, sedução ou provocação,
ocorre a ação de um sujeito sobre outro, na tentativa de
manipulá-lo a um querer e/ou dever fazer alguma coisa; na fase
da competência, o sujeito é dotado de um saber e/ou poder fazer;
na fase da performance, ocorre a mudança de um estado a outro;
finalmente, a fase da sanção confirma a realização da
49
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
performance, reconhece, portanto, que o sujeito operou a
transformação.
A semântica do nível narrativo aborda a relação do(s)
sujeito(s) com o(s) objeto(s), que podem ser caracterizados
como: objetos modais e objetos de valor. Os primeiros
representam a modalização do fazer e a do ser a partir de quatro
modalidades: o querer, o dever, o saber e o poder fazer para a
realização da performance principal. Os segundos representam
os objetos com os quais o sujeito entra em conjunção ou
ju çã N
, “ bj
é qu
c á
para se obter outro objeto; o objeto-valor é aquele cuja obtenção
é f ú
u uj ” (FIORIN, 2002, 29)
Finalmente, o nível fundamental encontra-se no patamar
profundo, mais abstrato do percurso gerativo do sentido. Nele,
correlacionam-se dois termos-objetos que operam por negação
ou asserção na sintaxe fundamental. Esses termos-objetos se
opõem estabelecendo uma relação de contrariedade, na
semântica fundamental, a partir dos elementos de base /euforia/
versus /disforia/. A relação eufórica ocorre quando os valores
visados pelo sujeito estão em conformidade com o que deseja, e
a disfórica, quando estão em discordância.
Explicamos, sucintamente, o simulacro metodológico
com que opera a semiótica discursiva. Entretanto, no decorrer
do trabalho analítico, consideramos outros elementos do
conjunto teórico da semiótica discursiva, dada sua natureza
abrangente e complexa, tais como os procedimentos expressivos
que contribuem para a significação global do texto poético.
Nos textos com função estética, as categorias de
conteúdo se correlacionam às da expressão (FIORIN, 2012, p.
58), o que nos permite interpretar os efeitos de sentido gerados
por alguns recursos fônicos, como aliteração, assonância; por
recursos métricos e rítmicos; por determinados recursos
50
ANAIS - 2013
sintáticos; por algumas figuras de construção, como repetição,
quiasmo, gradação etc. (FIORIN, 2002, p. 36). Esses efeitos de
sentido podem perpassar todos os níveis do percurso gerativo,
criando a ilusão de verdade ou de aproximação com a realidade.
Surgem, portanto, os sistemas semissimbólicos que, para
a semiótica,
são aqueles em que a conformidade entre os
planos da expressão e do conteúdo não se
estabelece a partir de unidades, como nos
sistemas simbólicos, mas pela correlação
entre categorias (oposição que se
fundamenta numa identidade) dos dois
planos. (FIORIN, 2012, p. 58).
A partir dos sistemas semissimbólicos torna-se possível
analisar, além das relações entre expressão e conteúdo, a
percepção sensorial na produção do sentido do texto, ou seja, o
estudo desses sistemas “
b c
çõ
í
gí ” (FIORIN, 2012, 67) I
g f c qu
o estudo do semissimbolismo tem um
alcance teórico e um analítico. De um lado,
permite discutir, com profundidade, o papel
da percepção sensorial na produção do
sentido; de outro, possibilita o exame
acurado das relações entre expressão e
conteúdo. (FIORIN, 2012, p. 67).
Os sistemas semissimbólicos, portanto, dão base à
análise dos textos poéticos, nos quais são estabelecidas diversas
homologações entre as categorias da expressão e do conteúdo,
que permitem compreendê-los. Ao poeta incumbe a tarefa de
51
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
recriar o mundo nas palavras, articulando um modo expressivo
de trazê-lo ao entendimento do leitor.
3. Análise de textos
Os dois textos aqui analisados fazem parte da Coletânea
Poetas da Escola II e III, organizada pelos alunos do 5º ano do
ensino fundamental das turmas A e B da Escola Municipal Dr.
Tertuliano Meirelles, nos anos de 2009 e 2010. Na apresentação
dos livros, a professora responsável pela idealização desse
trabalho, Tânia Mara Dias Gonçalves Brizueña, esclarece que a
publicação dos poemas realiza a intenção dos alunos de tornar
pública a percepção do lugar onde vivem.
É importante esclarecer aos leitores que o trabalho de
produção, compilação dos textos e publicação teve inspiração no
projeto Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro,
cuja categoria poesia destinou-se aos alunos do 5º e 6º anos.
Passemos à analise dos poemas.
Texto I
Menina Pequena
(Sandy Ferreira Maia)
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
Índia pequena,
Menina Morena,
Calma e serena,
É belo seu luar.
Amor do caboclo imigrante
Nordestinos, paraguaios e japoneses
Escolheram viver felizes aqui.
Entre prosas e segredos
Minha pequena se formou.
52
ANAIS - 2013
10. Campo Grande se destaca
11. Encanta o Pantanal.
12. É fácil poetizar você Campo Grande
13. O céu é azul.
14. Araras, tucanos, bem-te-vis,
15. Joões-de-barro
16. Enfeitam o céu.
17. Que não é raro o tuiuiú
18. Vive feliz no Pantanal.
19. Gosto de você Campo Grande,
20. Sou feliz em te dizer
21. Índia pequena, Menina Morena,
22. Cresci e abraço você.
No plano discursivo, no nível sintático, percebe-se a
manifestação de dois tipos básicos de discurso: os de primeira e
os de terceira pessoa, operando a instalação das debreagens
enunciativa e enunciva, no que se refere às três categorias de
enunciação: actancial, temporal e espacial.
E
“É b
u u ” (4º
), c f gu -se a
instalação de uma debreagem actancial enunciva por meio do
u
“ u”
u
b g
poral
u c
, c
b “ ”
;
“E c h
f z
qu ” (7º
),
-se a instalação
de uma debreagem temporal enunciva e de uma debreagem
espacial enunciativa.
Percebe-se, no poema, que a utilização dos mecanismos
de projeção da enunciação permite a obtenção de efeitos de
aproximação do sujeito com o conteúdo do enunciado, o que
implica esse sujeito da enunciação em seu dizer, criando o efeito
de sentido de compromisso com o que enuncia. Portanto, apesar
de predominar no discurso o uso da terceira pessoa, isso não
53
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
provoca a ilusão de objetividade, uma vez que a história é
u
b
, u “ u” é c , f
z
c
cu
c
, ju f c
“É
fácil poetizar você Ca
”,
c
fu çã
juíz
c
x
ã “É fác ”, qu x g
avaliação de um sujeito da enunciação.
Em relação à semântica discursiva, ocorre, no poema,
uma sequência isotópica figurativa que humaniza Campo
Grande. Percebeg
x c “Í
qu ”, “M
M
”, “
c b c
g
”,
estabelecendo, também, a relação aproximativa do enunciador
com elementos da história, da geografia e da cultura da região,
fato esse que comprova o emprego de recursos
c
,
ó
f gu
“í
”,
“
”, “c b c
g
”, c
c ê c
conhecimentos de outros campos do saber no encadeamento de
ideias.
O enunciador, na verdade, sintetiza um processo de
colonização de natureza bastante trivial: o nativo (no caso, o
índio, o caboclo), a alusão a algumas etnias que povoaram a
região (nordestinos, paraguaios e japoneses), a recorrência aos
dois córregos principais (Prosa e Segredo), que cortam a cidade
de Campo Grande, em cujas margens os primeiros
desbravadores da região fixaram-se; as aves típicas da região do
Pantanal (araras, tucanos, bem-te-vis, joões-de-barro, tuiuiú).
Com essas considerações, percebe-se que se trata de um poema
com orientação bucólica, pois exalta a beleza natural do lugar
O íu
, “M
P qu ”, f
partir de um substantivo comum que, ao ser especificado pelo
bu “P qu ”,
c f
u c á
cu
sujeito visado.
Dessa leitura, depreendem-se temas como:
54
ANAIS - 2013
 o do relacionamento amoroso, comprovado nos versos:
“M h
qu
f
u”, “
cê
”,
“
c
b ç
cê”;
 o da colonização da região por povos imigrantes:
espanhóis, italianos, japoneses, paraguaios, portugueses, e por
povos migrantes de diversas regiões do Brasil. Isso se comprova
“N
,
gu
j
”;
 o da erotização da mulher nativa, em que subjazem a
pureza, a calmaria, a serenidade e a beleza, presentes nos versos
“Í
qu ”, M
”, “
”, “É b
u u ”,
qu
f z c
“c b c
g
”;

: “
,
gu
, j
” “qu
c h
f z
qu ”,
já h
f gu
indígena;
 o da exaltação da natureza, que enuncia um modo de
viver, o cotidiano tranquilo, contemplativo, o lado bucólico,
c
: “O céu é zu ” / “
, uc
,b te- ,” / “J õ -de-b
” / “E f
céu” / “Qu ã é
u u ú” / “V f z
P
”
Em relação ao plano da manifestação, considerando a
correlação entre expressão e conteúdo como ponto central para
configuração dos textos poéticos, percebe-se, no nível sonoro, a
ocorrência da aliteração do /e/, em sua grande parte, fechado,
no
cábu
g
: “ qu ”, “
”, “
”,
“
”, “b ”, “ u”
Nos três primeiros versos, as rimas apresentam-se
paralelas e recaem nas vogais similares tônicas, produzindo um
efeito de sentido de estabilidade, de tranquilidade do sujeito em
relação ao objeto-valor. Esse mesmo efeito, percebido ao longo
de todo o poema, é produzido a partir de outros recursos sonoros
e de algumas figuras de linguagem, como: presença da
55
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
â c
f ch
/ /
“
c b c
g
”, “N
,
gu
j
”;
ç
f c
/z/
cábu “f z
qu ” “
g
”,
produzindo a aliteração /ze/, /za/, /za/ e /ze/, sucessivamente.
N
“E
g
”,
b
/ /,
cábu “
”, c
õ -se ao som fechado do /e/,
cábu
“ g
” E
çã
uz u
f
semântico paralelo ao efeito sonoro (aberto e fechado), podendo
significar a relação de comunicação do povo campesino. As
prosas e segredos, automaticamente, levavam às criações dos
causos contados pelos primeiros habitantes do lugar.
No nível narrativo, ocorre uma transformação de estado
do sujeito em relação ao objeto-valor. O último verso comprova
c ê c : “
c
b ç
cê”,
-se a
modalização do ser-fazer, ou seja, o sujeito torna-se competente
para ação. Evidencia-se, portanto, a conjunção plena entre
sujeito-morador e objeto-c
, f gu
z
“ b ç ” O
g
c
, “ b ç ”,
gu ç ,
“ u é c ”
çã
bj -cidade e
perpassa todo o poema, uma vez que o ato de abraçar alguém
requer o estabelecimento de um contato aproximativo. Essa
relação proximal do narrador e do objeto-valor perceptível no
discurso permite ao poeta atribuir ao el
“c
”
características construídas a partir da experiência observada.
Texto II
Campo Grande hospitaleira
(Stuart Vieira da Silva)
1. Campo Grande, cidade hospitaleira
2. Um celeiro de cultura, de contraste sem igual,
3. De histórias fascinantes
56
ANAIS - 2013
4. De um povo acolhedor
5.
6.
7.
8.
Cidade Morena uma beleza
Onde a mãe natureza
Nos mostra sua grandeza
Através de sua harmonia maravilhosa
9. Há em ti a beleza que alma encanta
10. Vinda do Pantanal, das baías e igarapés.
11. Vindo da sonolência matutina dos jacarés
12. Da sutil leveza do voo3 da garça branca.
13. Dos momentos de descanso prazeroso
14. No sentir da paz que é infinita
15. Nas grutas e nos balneários de Bonito
16. Nas águas cristalinas do rio Formoso.
O poema é construído a partir da observação do sujeito
em relação à cidade de Campo Grande, evidenciando, nesse
contexto, a objetividade do poeta ao descrever o lugar onde se
vive.
O íu “
h
” z
bu
existência de um estado permanente, condicionado pelo verbo
g çã ( ), í c , qu c c z “
”c
cidade hospitaleira. Trata-se, portanto, de um enunciado de
estado. O empr g
x c “h
” hu
z
Campo Grande, conferindo-lhe, supostamente, um caráter
altruísta.
Na primeira estrofe, o verso inicial retoma o enunciado
contido no título; porém, ocorre, na leitura, uma pausa
3
No livro, o vocábulo aparece com acento, pois a publicação foi anterior ao
Novo Acordo Ortográfico.
57
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
deliberada em função do uso da í gu ,
“
” I
qu
g z
quê c
ó c qu hu
z
: “c
h
”,
“c
cu u ,
c
,
h ó ,
u
”
Verifica- ,
c
uçã
“h
”
“c
”,
céc
uf x “ ”,
segmentos lexicais de significações similares, a competência de
u uj
qu “ c h ”, “ ú ” “ g g ”
N
gu
f ,
qu
c “
M
u
b z ”,
enta, do mesmo modo, a mesma isotopia.
Mais uma vez, percebe-se um enunciado de estado ao longo
dessa estrofe. O sujeito posiciona-se como observador,
instalando-se a debreagem actancial enunciva, abstraída a partir
do uso do verbo e do pronome (sua). No plano da manifestação,
verifica-se o uso de rimas, quando se utiliza a sibilante /z/, na
sequência: beleza, natureza, grandeza, maravilhosa, para
u
f
u c
b
“ ã
u z ”
Apresenta-se, portanto, o objeto“ u z ” c m o qual o
uj
“
”
á
c ju çã , c u
, c
natureza-mãe, que, também, executa a função hospitaleira.
Na terceira estrofe, o primeiro verso apresenta-se,
c
,
: “Há
b z qu
c
” O poeta utilizou essa construção como estratégia para
uçã
:“ c
” “b c ” P c b -se que a
organização das rimas acontece com o auxílio do recurso de
interdisciplinaridade, ou seja, com o conhecimento a respeito da
geografia e da ciência do local onde vive. Inclusive, explora-se
bastante esse recurso estilístico, produzindo um efeito musical
ainda maior, em relação à estrofe anterior. As rimas encontramse interpoladas e no interior dos versos, como acontece com
“b z ”
“
z ” O conteúdo construído, com base em
informações advindas de outras áreas do conhecimento, permite
58
ANAIS - 2013
a organização mais expressiva daquilo que se pretende enunciar.
Instala-se, dessa vez, a debreagem temporal e actancial
u c
, c
b “há”
“ c
”
u
“ ” Ex
qu f
bj
-valores com os
quais o sujeito entra em conjunção.
A última estrofe, na realidade, está interrelacionada
c
à
f
O
“D
c
z
” ác
nuidade à sequência enunciativa do
último verso da 3ª estrofe. Utiliza-se a mesma estrutura de
,c
z , “N
z
qu é f
”, “N g u
b
á
B
”, “N
águ c
F
”, o enunciador estabelece
çã c
“b z ” qu
c
“
” N -se que não
se trata de uma beleza comum, mas de uma beleza
transcendental, provida de gratuidade, de generosidade, o que
comprova a significação do título do poema. O enunciador
organiza as ideias recorrendo aos conhecimentos que tem da
geografia do local onde se vive.
O texto nos permite abstrair alguns temas, como:
 o do bucolismo: no percurso de todo o texto, exaltam-se
os elementos naturais que potencializam a cidade de Campo
Grande e servem como atrativos para que ela se torne
hospitaleira;
 o do do acolhimento, como característica tanto da cidade
qu
u
u çã : “
,c
h
”,
“D u
c h
”;
 o da relação mãe – filho simbolizada pela natureza –
mãe.
Podemos, finalmente, verificar que o poema cria um
efeito musical a partir dos recursos empregados para sua
elaboração. Percebe-se a organização estética do texto por meio
de estrofes e versos distribuídos em números iguais. Essa
59
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
construção torna evidente a recorrência às
convencionais do poema clássico.
estruturas
4. Considerações finais
Podemos traçar algumas conclusões a partir do que
observamos na análise dos textos:
 os dois poemas referem-se à mesma temática: os
atrativos da cidade de Campo Grande que a tornam uma cidade
acolhedora e boa para viver. O enunciador, nos dois textos,
transpõe para o discurso elementos lexicais que dependem de
uma capacidade de abstração;
 ambos os textos exploram recursos de expressão, como
rimas, musicalidade e ritmo das palavras, imagens, figuras de
linguagem, criando efeitos de sentido, em que predomina a
função poética da linguagem. Portanto, há poesia nos textos;
 recorre-se ao mecanismo da interdisciplinaridade para
manifestar a beleza natural e a história de Campo Grande.
Encerramos este trabalho com o pensamento de Ferreira
u : “O
x
c
ç , qu ê
u
c
olhos virgens e que, por quase nada saber, está aberta ao
mistério das coisas. Para criança – como para o poeta – viver é
u
c
c b
”
As crianças, autoras desses poemas, imprimem nos
textos a percepção do lugar onde moram. Para elas, viver em
Campo Grande é prazeroso, pois o lugar apresenta diferentes
atrativos naturais que agregam valores como liberdade, beleza,
bem-estar, prazer etc.
Elas criam um efeito de verdade sobre os fatos narrados,
a partir dos julgamentos, das considerações e dos juízos que
estabelecem nos textos. Embora possam ter convivido com o
aprendizado formal da geografia e da história da região, ambas
60
ANAIS - 2013
evidenciam, no texto, um modo particular de assimilação desse
aprendizado.
Isso significa que a poesia, ao agregar um conjunto de
experiências, de conceitos, de valores, além de utilizar-se do
jogo com os sons, com os ritmos, com as rimas, manifesta a
realidade interior (eu poético) associada à realidade exterior
(contexto socio-histórico vivenciado).
Por isso, a poesia deve ser trabalhada na escola, uma vez
que desafia a criança a investir na expressão do conteúdo e dos
sentimentos que emanam a partir da construção do
c h c
N
c , c c
qu “
b
ã éu
,
g qu
cu
” ,
,
c
c
u
“ g
á c
discurso, para que eles possam, com mais eficácia, interpretar e
g
x ” (FIORIN, 2002, 9)
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto.
São Paulo: Ática. (Série Fundamentos, 72). 2005.
______. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São
Paulo: Atual. 1988.
FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido
discursivos). São Paulo: Contexto. 2012.
(estudos
______. Elementos de análise do discurso. São Paulo:
Contexto. 2002.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de
semiótica. São Paulo: Cultrix, s/d.
61
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
LOPES, Ivã Carlos; HERNANDES, Nilton (orgs.). Semiótica
(objetos e práticas). São Paulo: Contexto. 2005.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Poetas da
escola II. Campo Grande: Prefeitura Municipal. 2009.
______. Poetas da escola III. Campo Grande: Prefeitura
Municipal. 2010.
62
ANAIS - 2013
A deficiência na infância: a formação dos discursos e formas de
controle
Marina Cezaria da SILVA1
RESUMO: Busca-se explorar, por intermédio dos discursos, as
relações possíveis entre a educação infantil e a deficiência, tomando
como fontes de análise e subsídios empíricos, entrevistas com os
g
qu
E uc çã I f
( EINF’ ),
coordenadores pedagógicos e professores. Além dos documentos
produzidos sobre os bairros Cidade Morena, Moreninha I, II e III,
lócus da pesquisa. Foi realizada também, uma entrevista com o
presidente da Associação das Moreninhas para obter a história e as
condições sociais dos bairros, no sentido de compreender os discursos
produzidos por intermédio da prática pedagógica sobre a deficiência;
visando a um modo de análise arqueológico postulado por Michel
Foucault em que foram trabalhados alguns conceitos do referido autor.
Os resultados indicam que a deficiência na educação infantil é
produtora de discursos que adquirem diferentes formas de controle,
constroem verdades, cerceando o que deve ser dito ou não.
PALAVRAS-CHAVE: EINF’ D f c ê c ; I c u ã ;
social.
Introdução
Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado
apresentada, com o mesmo título, ao Programa de Pós
Graduação Stricto Senso da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, apresenta-se a análise das entrevistas realizadas
com as quatro gestoras,duas coordenadoras pedagógicas e
1
Professora, Mestre em Educação, Diretora do Centro de Educação Infantil –
Uirapuru, Campo Grande-MS e membro do Grupo de Estudos e Investigação
Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul.
63
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
dezesseis professoras dos quatro Centros de Educação Infantil
localizados nos bairros das Moreninhas em Campo Grande, MS,
e com as famílias das três crianças deficientes matriculadas nos
EINF’
A finalidade é a compreensão de como foi possível
aparecer na ordem do saber o pano de fundo que compõe a
inclusão de alunos com deficiência na educação infantil. No
intuito de localizar o discurso da inclusão na educação infantil, o
modo de análise arqueológico em Foucault será utilizado para
localizar as raízes históricas entre o sujeito e o domínio de
objetos como parte da prática discursiva para se chegar ao saber
de uma época. Na ordem do saber, como foi possível aparecer a
produção desse discurso (FOUCAULT, 2005b).
Procuramos olhar o outro lado do discurso, o das
participantes, sem considerar o exterior, o que ele poderia ter de
singular, terrível ou talvez maléfico? Foucault diz que o discurso
não está essencialmente na ordem das leis que o honra; ele, ao
mesmo tempo, desarma, mas contém um poder que é concedido
pelas pessoas, procurando desvelar a inquietação diante do que o
discurso é em sua realidade material, o não dito (FOUCAULT,
2005b).
De acordo com Foucault (2005b), há de se ter cuidado
para analisar o discurso em virtude de sua existência transitória,
com duração que não pertence a ninguém e que pode se esquivar
da materialidade. Com esses deslocamentos, ele vai tomando
outras formas; vai exercendo controles, construindo verdades e
com isso vai cerceando o que deve ser dito ou não.
Antes das análises dos discursos relatados pelas
á
uc
f
EINF’
Moreninhas, houve a intenção de mostrar um breve relato de
informações levantadas nos bairros onde estão localizados os
64
ANAIS - 2013
Centros de Educação escolhidos para esta pesquisa, como segue
abaixo.
1.
As Moreninhas
Localizados na região sul, a 15 km de distância do centro
do município de Campo Grande, MS, os bairros que integram a
região das Moreninhas compõem um dos maiores conjuntos
populacionais da cidade. A escolha para esta pesquisa ocorreu
pelo fato de esse conglomerado habitacional possuir
características de município. São formados pelos bairros da
Santa Felicidade, Nova Jerusalém, Nova Capital, Novo Brasil e
Novo Século, além da Cidade Morena, Moreninha I, II, III e IV.
Foram criados no início da década de 1980, com o intuito de
proporcionar moradias às pessoas com alto índice de pobreza
que margeavam a região central da cidade.
Com levantamento realizado para este estudo, constatouse que os bairros atualmente contam com boa infraestrutura,
comércio local e seus moradores não precisam se deslocar até o
centro da cidade para comprar calçados, vestuário, gêneros
alimentícios, produtos veterinários, medicamentos, móveis e
utensílios domésticos. Também contam com serviços médicos,
clínicas, laboratórios para exames médicos, serviços de
psicologia, odontologia e fisioterapia.
Quanto a serviços públicos, a região dispõe de delegacia
de polícia civil (4º distrito); grupamento do corpo de bombeiros;
polícia militar; serviços de pequenas causas; cartório do 4º
Ofício de Notas; Posto de Saúde 24 horas, junto de uma
maternidade; terminal de transbordo; praça; o Parque Jacques da
Luz;
á
fu b “T c
L ã ”; f
; c c
escolas estaduais e duas municipais; duas agências dos Correios;
duas agências bancárias; três caixas automáticos de todas as
65
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
agências bancárias; uma casa lotérica da Caixa Econômica
F
qu
EINF’ , qu f z
qu
Há também um cemitério e a prestação de serviços póstumos.
O EINF’
c
qu
c z ,
respectivamente, na Cidade Morena, Moreninha I, Moreninha II
e Moreninha III, juntos contam com cerca de oitocentos e
setenta (870) crianças matrículas. São distribuídas pela forma de
organização institucional entre as faixas etárias: Berçário,
crianças de quatro (4) meses a dois (2) anos; Nível I (dois (2) e
três (3) anos); Nível II (três (3) e quatro (4) anos) e Nível III
(quatro (4) e cinco (5) anos), em regime integral, das seis horas
e trinta minutos às dezessete horas. Porém, como já relatado na
introdução deste trabalho, essas nomenclaturas mudaram para o
funcionamento no ano de dois mil e doze (2012).
Para apropriar e analisar os discursos das diretoras,
coordena
góg c
f
EINF’
selecionados, foram marcadas as entrevistas individuais, de
acordo com suas disponibilidades. Esse agendamento ocorreu no
mês de junho de dois mil e onze (2011). O Termo de
Consentimento foi assinado antes de cada entrevista e depois de
aprovado pelo Comitê de Ética da UFMS.
O roteiro foi estabelecido a partir dos dispositivos
reguladores já analisados neste estudo em relação
essencialmente aos princípios e orientações, visando à
perspectiva de inclusão escolar, embora a convivência desta
autora em uma das instituições, como professora, já viesse
demonstrando os limites de sua operatividade nesse processo
propositivo de incluir.
Em função da perspectiva teórico-metodológica adotada,
o objetivo do processo empírico veio ao encontro da busca em
c c
u
u c
qu
“
fu ”
qu
cu ã
c
é
u
c
66
ANAIS - 2013
acontecimentos discursivos que se recortam em si, sendo
detentores de uma mesma base – a escolarização.
Compreendendo que são, também, processos de
investigação, tentativas de detectar as possíveis relações entre as
práticas discursivas e os poderes que as permeiam, dinâmicas do
mesmo fenômeno – a educação infantil e a deficiência, que
levou à necessidade de realizar a entrevista como uma das fontes
desta pesquisa.
Os depoimentos foram gravados e digitados
individualmente. Todos foram enviados aos entrevistados
eletronicamente para que fizessem as considerações ou ajustes
u “f
”, c
h u
c
, cada pergunta
formulada. Nem todos os sujeitos fizeram uma devolutiva;
posteriormente, todas as entrevistas foram impressas e levadas a
cada um para assinatura.
2.
Formação das participantes e tempo de atuação na
educação
As professoras, as coordenadoras e três diretoras
possuem formação em Pedagogia, licenciatura Plena, e uma das
diretoras, além da Pedagogia, também é formada em Letras.
Elas possuem licenciatura tanto na Educação Infantil como no
Ensino Fundamental. Das vinte e duas (22) participantes da
entrevista, dezoito (18) já concluíram a pós-graduação ou ainda
estão cursando e quatro (4) declararam não ter uma
especialização.
Referente ao tempo de atuação, somente as diretoras (D)
e duas professoras (Prof) relataram nas suas falas o seu tempo
de atuação: D1 tem dezessete (17) anos em sala de aula e está há
quatro anos como diretora; D2 tem três anos como diretora, não
tem experiência em sala de aula; D3 tem trinta e cinco (35) anos
67
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
na educação, destes, onze (11) anos são como diretora; D4 tem
trinta (30) anos na educação e um ano como diretora; a Prof 1,
com onze (11) anos na profissão e a Prof 12, com dez (10) anos,
cinco (5) como recreadora e cinco (5) como professora.
Os depoimentos foram agrupados por segmentos de
atividades escolares em que cada sujeito entrevistado é
á
g z çã
EINF’ f
c fc
seguinte forma: professores - representados pela abreviatura
“P f”;
quê c
u é c
P f 1; P f 2; é P f
16; diretoras - c f c
“D”,
D1; D2; D3
D4, e coordenadoras pedagógicas “ P”,
sequência CP1 e CP2.
3.
Conceitos foucaultianos para a análise do discurso
Para facilitar a compreensão, são esclarecidos alguns
conceitos trabalhados por Foucault em suas obras, que foram
apoderados para melhor esclarecer as análises das entrevistas.
U
é “ c
c
”, qu ,
u , é qu c
época pode dizer na esfera do saber, o que estava presente no
pensamento de cada período; o que é provisório, muda a época,
muda o pensamento, e o acontecimento é outro ou pode ser o
mesmo, mas se mostra com outra roupagem.
Assim, para Foucault (2005a), como uma das
possibilidades de análise, a arqueologia é uma descrição dos
acontecimentos discursivos, da forma que vem se configurando
no desenvolvimento dos discursos. Esses discursos se
modificam como práticas sociais e seu posicionamento na
sociedade.
O que antes era escondido, não era dito, era velado,
passa a ser dito, institucionalizado. Nas palavras de Foucault
(2005b,
60): “[ ]
já ã é u
c
c
68
ANAIS - 2013
oculto do qual as práticas seriam as manifestações; elas agora
definem o campo das transformações, da novidade, das relações
f ç ”
O acontecimento em Foucault também esclarece o
surgimento do homem como objeto do saber. Discorre sobre ele
em sua disposição manifesta, com regularidades, dependências e
transformação na ordem de um discurso.
Para Foucault (2005b), é um fato para o qual algumas
análises históricas se concentram. Porém, por trás desses fatos
se buscam as redes discursivas, surgimentos de outros discursos,
estabelecendo uma nova ordem do saber. Conforme o autor, eles
se mostram como uma série de acontecimentos discursivos,
descrevendo esses discursos em sua materialidade própria do
enunciado constituindo dessa forma uma irrupção de
singularidades históricas, muitas das vezes sem o conhecimento
do que elas efetivamente tratam, ou seja, repetem-se discursos
legitimados pela sociedade.
Dessa forma, a noção de acontecimento de deficiente nos
EINF’ ,
f
, c c z -se pelos
enunciados como:
ausência, necessitado, imperfeito,
incompleto, limitado, problemático, não adaptável, inacabado,
trabalhoso e anormal, o que Foucault (2002) cha
“
c ”, c c b
f
qu :
Descrevem-se em geral os efeitos e os
mecanismos de poder que se exercem sobre
eles como mecanismos e efeitos de
exclusão, de desqualificação, de exílio, de
rejeição, de privação, de recusa, de
desconhecimento; ou seja, todo o arsenal
dos conceitos e mecanismos negativos da
exclusão. (FOUCAULT, 2002, p. 54).
69
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
M c
cu
qu “ ã
u
”
c
f
desconhecimento, e o que é desconhecido provoca
estranhamento e rejeição. Essa prática, segundo o autor, não está
restrita apenas ao deficiente se aplica ao pobre, ao negro, ao
indígena, ao preso, ao doente e a outros.
Quanto ao conceito de acontecimento de família, foram
recolhidos das entrevistas os enunciados que a caracterizam
como: ausente, displicente, tem medo, omissa, desconhece a
deficiência, não apoia, deficiente, doente, precisa de ajuda,
despreparada, desestruturada, tem vergonha do deficiente,
insegura, despreocupada e resistente.
A noção de acontecimento de prática pedagógica na
educação infantil com as crianças deficientes presentes nos
enunciados das entrevistadas na pergunta se havia alguma
limitação ou dificuldade para trabalhar com crianças deficientes
no CEINF, as respostas foram:
a) fazem o acolhimento:
[...] acho assim que é o nosso papel mesmo
da sociedade a gente enquanto educadores
de estar acolhendo, de estar também
buscando, e a gente fazer o nosso papel
passar isso pra frente porque tem gente que
não tem conhecimento, a gente não tem
muito, mas o pouquinho que a gente tem
você tem que esta instruindo (D2) [...] se
chegar uma criança hoje, numa cadeira de
roda aqui eu vou recebê-la sem saber o que
fazer, vai ser o cuidar só, nos vamos ter
cuidado pra não cair, cuidado esse tipo de
cuidado, como lidar profissionalmente a
gente não sabe, porque nos não temos esse
preparo. (D3). [...] qual é o básico que eu
creio que hoje é possível pra ser feito é
70
ANAIS - 2013
acolher, é o acolhimento emocional porque
eu só fiz isso eu acho que nem conhecia
como fazer, bom enquanto não chegam
vamos dizer a parte teórica, a parte
curricular eu vou fazer o básico eu vou
acolher emocionalmente. (D4). [...] a gente
tenta o professor tem que fazer peripécia
malabarismo pra agradar mas a gente sabe
que em turmas grandes a gente não agrada
todo mundo, você ta as vezes a gente
propõem uma atividade e pra gente tem esse
resultado aqui mas pra criança não tem e aí
você tem que usar o jogo de cintura e tentar
driblar, ver, porque nem todo mundo gosta
da mesma historia, então a minha
preocupação maior seria com o bem estar da
criança. (Prof 6). [...] falta de conhecimento
do grupo em relação a esse trabalho de
inclusão como no CEINF não basta o
professor ter conhecimento sobre a inclusão
é um todo é um grupo, existe Direção, em
alguns existe o Professor de apoio, existe a
Cozinha, as crianças vão dormir, então aí se
você for pensar cada situação dessas tem
limitações porque a criança vai passar mais
ou menos de seis a oito horas no CEINF e o
professor trabalha quatro horas com ele, e
depois? Como é que vão atender essas
crianças, como é que essas crianças serão
atendidas, com certeza de uma forma
precária. (Prof 9).
b) não sabem o que ensinar:
71
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
[...] você não sabe diretamente o que fazer
na hora lá dentro da sala de aula, o que você
vai fazer com essa criança, o que vai fazer?
Você fica sem um norte, sem uma direção e
ao ver é isso. (Prof 1). [...], por exemplo,
teria que estar buscando como que eu vou, a
maneira que eu vou introduzir pra ela a
atividade que eu dou pro os outros não
posso estar separando ela né, eu tenho que
incluir ela ali as vezes eu vou usar um
suporte diferente né, mas ela tem que saber.
(Prof 4). [...] essa criança ela como todos os
outros tem direitos ta a educação, o direito
de estar no meio de outras crianças tem
direito de aprender diante de suas limitações
mas ela tem o direito acho que qualquer
coisa que ela aprender a mais pra vida dela
ela já vai ser uma pessoa diferente. (Prof
10).
c) precisam de professor itinerante:
[...] Aí eu falo deveria ter uma professora só
pra ela, itinerante né, então eu tenho que dar
conta das outras crianças e dela, então eu
acho que não sai uma coisa assim, de
qualidade né, não adianta ter o
conhecimento especifico pro problema dela
a gente lidar com isso é difícil né. (Prof 2).
[...] você precisa ter tempo pra isso dedicar,
ter tempo, precisa muito de apoio, não
adianta pegar um aluno com deficiência e
deixar lá como se fosse uma samambaia tem
que trabalhar o tempo todo com ele. (Prof
3). [...] vou precisar de alguém pra me
72
ANAIS - 2013
ajudar mas a questão do pedagógico de
ensinar de correr atrás de recursos de ajudar
essa criança aprender? Pra mim não tem
diferença nenhuma dos outros, eu faria meu
papel pedagógico do mesmo jeito, já
trabalhei com criança assim, mas
dependendo do grau que a criança precisa
mais eu acho que 15 alunos teria que ser pra
ter um bom trabalho, no máximo 20 pra
fazer um bom trabalho. (Prof 11).
d) formação continuada:
[...] como largar 20 para cuidar de 1? Qual a
formação enquanto professora eu tenho para
lidar com qualquer tipo de deficiência? Eu
respondo,
nenhuma.Os
cursos
de
capacitação da secretaria d educação não
abordam esse assunto, é preciso capacitar os
professores para que estes conduzam as
aulas, amparados nos princípios da educação
especial que são a preservação da dignidade
humana, a busca da identidade e o exercício
da cidadania. (Prof 15).
Nessas falas, trazidas para mostrar a relação
professor/aluno com deficiência, aparece a concepção de prática
pedagógica atrelada à transmissão de conhecimentos, como
precisa de material de apoio, profissional de apoio, suporte para
ensinar e a concepção de que o professor desenvolve a criança.
Isto faz emergir que o entendimento de ensino e aprendizagem é
centrado no professor que ensina e não na criança que aprende,
faltando a compreensão do que é o conhecimento, implícito
nesses discursos.
73
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Nessas regularidades discursivas, observa-se, no entanto,
que esses acontecimentos se constituem de uma multiplicidade
de processos legais, institucionais e normativos, sem contar com
seus efeitos ou conceitos, bons ou ruins. Nas entrevistas nota-se
que esses acontecimentos discursivos constituem as verdades
que revelam a necessária presença da inclusão na educação
infantil, para o cuidar, fazer a guarda enquanto os pais
trabalham.
De certa forma, neste estudo, percebe-se como a
fcê c
c
u c
f
EINF’ ócu
desta pesquisa. Além disso, os sujeitos deficientes constituídos
como objetos do conhecimento, estabelecendo os espaços onde
esses objetos se transformam e onde é possível se falar deles
(FOUCAULT, 2005a). O autor propõe que sejam organizados
os conceitos que formam o campo de aparecimento desses
enunciados, determinando a sua materialidade, controlando o
discurso, determinando as condições de seu funcionamento.
Observa-se que o discurso da inclusão dos deficientes
está atrelado ao discurso social, cultural, que estabelece os
padrões de normalidade em uma sociedade. Os discursos da
educação dispõem quem deve ser incluído ou não, e a regra que
define as condições históricas para o surgimento da deficiência
como objeto de seletividade social.
Enfim, sobre as condições de possibilidades discursivas,
Foucault diz que será sempre na materialidade desse discurso que
sua visibilidade é possível. Há sempre uma vontade de verdade.
Assim, nas entrevistas, o que foi entendido é que houve uma
apropriação social do discurso da inclusão, e cada sociedade tem seu
regime de verdade, quando aparecem falas como:
[...] se deve buscar políticas públicas para
melhorar a situação deles. (Prof4; Prof12).
[...] é preciso ter estruturas adequadas para
74
ANAIS - 2013
atender as necessidades dos deficientes.
(Prof7; Prof9; Prof10). [...] é preciso
suporte, apoio, mais atenção da sociedade.
(CP2; Prof2; Prof3; Prof8; Prof14). [...] eles
são iguais a nós, todos temos deficiências.
(D1; Prof13). [...] eles podem se
desenvolver. (CP1; Prof6). [...] eles tem
potencial. (Prof1). [...] Não temos orientação
certa, não temos a formação certa. (D2;
Prof15; Prof16).[...] a criança tinha que ter
informação, um laudo mesmo, pra saber se
essa criança tem a possibilidade de fazer
isso ou aquilo. (D3; Prof11).
4.
Procedimentos de análises dos discursos
A análise do discurso para Foucault (2005a) está
centrada em alguns procedimentos que ele intitula de
“
f çã ”, “
çã ”, “
çã ”
“ xc u ã ”
Seguindo esse delineamento de análise, houve o cuidado de trazer
as falas das entrevistadas isentas de qualquer forma de julgamento,
mostrando onde os procedimentos de análises foucaultianos
permitem entender o presente, dentro de um discurso legalizado em
que é necessária a inclusão na educação infantil e de que forma os
EINF’
ã
cb
c ç .
P “
f çã ” de um discurso, entende-se a unidade de
origem discursiva, não como um autor, mas do que é aceito
dizer, do que circula nas falas das professoras, como não se
aceita que na educação se exclua, sob pena de ter que prestar
conta do que se diz. Todas as professoras aceitam em suas salas
de aulas crianças com deficiência. Porém, no não dito, não é isso
que se quer dizer. Observa-se que quando questionadas a
respeito de receberem crianças com deficiência em sua sala de
aula, respondem da seguinte maneira:
75
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Sim, eu receberia porque, eu recebo até um
filho, se Deus mandasse um filho eu
receberia porque já trabalhava com
educação especial, eu tenho essa facilidade,
eu gosto. (D1).
Com certeza, com certeza, expondo pra mãe
todas as nossas dificuldades é por que a mãe
tem que estar ciente disso, que a gente esta
recebendo porque tem que receber. (D3).
Sim receberia, pelo fato de eu ter trabalhado
com as crianças antes de toda essa
movimentação legal, vamos dizer assim,
porque à medida que a Lei foi implantada
foi surgindo já, olha a gente vai ter que
receber. (D4). Sim, porque a gente não pode
ter discriminação com a criança. (CP1). Sim,
porque não é o discurso que a gente faz?
Que tem que incluir, agora cabe ao professor
incluir da melhor maneira possível. (CP2).
No caso eu já tenho, eu não tenho problema
nenhum em receber assim em questão, seria
um preconceito meu, dizer que não
trabalharia com essa criança porque não
tenho suporte. (Prof2). Com certeza, porque
eu acho que ela um cidadão comum igual
aos outros, ela tem direito, como um normal
tem. (Prof4). Sim, receberia, porque eu
acredito que eu tenho que fazer a diferença
se eu escolhi essa profissão eu tenho que
não deixar essa criança a mercê eu tenho que
fazer algo porque eu acredito que só a
educação vai mudar e eu acredito que eu não
posso deixar essa criança a mercê o que eu
faço para os não deficientes eu tenho que
76
ANAIS - 2013
fazer buscando atividades complementares e
buscando sempre o melhor. (Prof5).
Receberia, por que eu não posso dizer não,
eu como educadora eu não posso dizer não
pra nenhuma criança, nenhum aluno.
(Prof8). Com certeza, porque eu acho que
essa criança ela como todos os outros tem
direitos a educação, o direito de estar no
meio de outras crianças tem direito de
aprender diante de suas limitações. (Prof10).
Claro, com certeza nossa porque se eu me
negar receber uma criança dessa eu estou
negando tudo; eu estou negando como
educadora eu estou negando a transformação
da sociedade, eu estou negando tudo.
(Prof11). Não só receberia como tenho em
minha sala, há sim receberia sim, com
prazer, por que acho que a gente tem que
trabalhar com eles, porque como qualquer
uma criança normal, não vai ter nenhuma
discriminação, normal. (Prof13). Sim, aliás
c
qu
EINF’
ã
tornando um depósito de deficientes, físicos,
psíquicos, deficientes sociais, deficientes de
família, deficientes de educação, limites, e
deficiência vergonhosa dos prédios que são
cedidos para prefeitura onde funcionam
gu
EINF’ (P f15) Depende do
apoio e se eu tivesse preparo pra isso,
dependendo da deficiência também. (Prof
16).
Esses dizeres parecem não condizerem com a prática,
justamente porque o falante não é seu autor, eles estão postos na
lei. Isso se confirma em outro momento deste estudo quando
77
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
questionadas as entrevistadas sobre suas dificuldades em
trabalhar com deficientes em sua sala de aula: elas se mostram
despreparadas, sem apoio, estrutura, formação, mas receberiam
os deficientes. Algumas já trabalharam em instituições
direcionadas a deficientes e acham um ganho para suas carreiras
profissionais. No entanto, segundo Foucault (2005a), esse
discurso está na ordem da lei. Ele é legitimado pela ciência,
então aceito como verdade.
Ou
cí
cu
é
“
çã ”,
apropriação social do discurso, um jogo de leitura que não é a
percepção do pensamento. O papel do sujeito será o de
reproduzir a ordem dada, que é pré-existente ao próprio sujeito
e, independente dele, ou seja, entre o ser e o pensamento existe
um nexo a ser estabelecido pelo discurso (FOUCAULT, 2005a).
A representação de uma verdade, da vontade do saber e
da sua aplicação em uma sociedade, que procura contornar essa
vontade de verdade, difundida em várias instituições inclusive
as educacionais, é explícita na fala das entrevistadas sobre como
a sociedade vê o deficiente que na verdade representa o
pensamento delas, o que não se desloca do social, todos são
parte dele e reproduzem seus discursos:
[...] é polemico, polemico num sentido bem
amplo. (D1). [...] a sociedade ainda trata
desse tema com muita discriminação por
mais que fala que tem que ter a inclusão é
tudo muito bonito você falando no papel;
agora eu acho assim que vai estar melhor
isso na próxima geração. (D2). [...] Eu acho
que precisa melhorar mais, precisa de mais
atenção. (D4). [...] há muito preconceito,
muito preconceito, Eu tenho varias
resistências, e eu acho uma falácia, é uma
78
ANAIS - 2013
mentira, a sociedade vê isso com receio,
com preconceito, não por que é inclusão, as
pessoas só têm um probleminha, mas ela vê
diferente ela trata diferente, e ela tem medo,
a sociedade tem medo. (CP1). [...] eu vejo
que a sociedade ainda tem muito
preconceito com a deficiência, os
percentuais de deficientes estão aumentando
bastante, antigamente não se via tanto, ou
eles eram escondidos não sei não se via
tanto, hoje em dia eles estão saindo pra
trabalhar, eles estão saindo pra estudar, a
sociedade eu acho que precisa buscar
políticas publicas pra tentar melhorar a
situação deles, principalmente nas escolas,
acho que hoje a palavra deficiência esta em
todos os lugares que a gente vê. (Prof 1).
[...] com preconceito eu sinto muito
preconceito. (Prof2). [...] tratam como se
fossem uma arvore, um banco de praça.
(Prof3). [...] esta deixando muito a desejar,
se fala muito em ajudar as pessoas que se
encontra com deficiência, mas fica mais nas
palavras, então falta muito, a sociedade
deixa muito a desejar o poder público, tudo.
(Prof4). [...] a própria sociedade não esta
preparada para estas pessoas. (Prof7). [...]
acho que tem mudado um pouco, mas ainda
precisa mudar mais por que, muitas das
vezes são esquecidos, por exemplo, estão
querendo fazer inclusão das crianças que
tem algum tipo de deficiência seja ela física
u
c óg c
EINF’ , ó qu
estão dando é... suporte pra isso? Eles vão
colocar pessoas capacitadas pra isso? Pelo
79
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
que eu tenho visto não, então é tratado de
uma forma muito superficial, muito assim...
a deficiência...é assim então você se vira,
sabe. (Prof8). [...] esse tema da deficiência
esta na moda, mas é pura moda, porque na
realidade ninguém se importa muito com o
deficiente, está aí na mídia se fala muito,
mas na pratica se faz pouco pelo deficiente
desde sala de aula até fora, na calçada, no
mercado, no banco, tudo, ainda falta muita
coisa para que o deficiente tenha um acesso
melhor as coisas. (Prof9). [...] a própria
sociedade exclui por ser diferente. (Prof13).
[...] como uma hipocrisia sem vergonha.
(Prof15). [...] hipócrita, muita hipocrisia,
muito projeto aleatório, utópico, a sociedade
é muito hipócrita. (Prof16).
Diante das falas, nota-se que não há como se eximir de
responsabilidade. A sociedade não é o outro, há a presença de
cada um dentro dela, o que é difícil compreender. Nas falas há
uma representação do real, do social, com todo o resquício
cultural herdado e que é passado para as outras gerações. São os
discursos de verdades que ela acolhe, faz funcionar como
verdade e traz à tona o próprio regime de verdade. A sociedade,
nas palavras de Foucault, é excludente, ou seja, organiza-se pela
seleção, pela exclusão (FOUCAULT, 1987).
“
çã ”,
u
cí
á
discurso, segundo o qual não se pode falar de tudo, existe o
lugar de quem fala e a qualificação do sujeito que fala. Assim,
ficam diferenciadas as falas das diretoras em relação às das
professoras quanto à inclusão das crianças deficientes nos
CEINFs, que por elas é visto da seguinte forma:
80
ANAIS - 2013
Então, é.. cada dia que passa está vindo
crianças com necessidades especiais cada
dia que passa, vem uma serie de
necessidades especiais de deficientes, entre
aspas, o que é deficientes também né? O que
é e o que não é? Mas assim, as mães, elas
vem fazer as matrículas e elas não falam pra
gente, a gente descobre no dia a dia, e
quando descobre, fala pra mãe. Mãezinha
será que o fulano esta assim, será que o
fulano não está com problema, tem isso, tem
aquilo, mas não, há eu percebi mas já levei
no médico e não é nada não. então, assim é
complicado, tem que pensar muito na
questão do professor itinerante, tem que ter
uma formação, tem que ter uma pósgraduação em educação especial tem que ter
uma experiência de pelo menos um ano
numa instituição, conhecer, tudo né? Ver
como é a realidade deve propor atividades
para essa criança se não vai ficar fingindo,
entre aspas, que está trabalhando, também
não é inclusão isso, é uma exclusão. (D1).
Olha eu acho legal, a gente tem que ter
mesmo, tem que incluir e é assim, a gente
tem que começar o nosso trabalho agora pra
realmente ele ser incluso, estar aí na
sociedade trabalhando, constituindo família
que nem já tem. Mais assim, a longo prazo,
futuramente, acho muito bacana, por mais
da dificuldade que a gente tem mas eu acho
que tem que ter mesmo eu acho que na
educação infantil, na escola, na vida social,
no trabalho, qualquer canto né, eu acho que
81
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ele é um ser humano só tem alguma
deficiência mais é um ser humano igual a
gente, que garante que nós não temos né,
quem garante que nós não temos uma
deficiência, você fala normais, normal entre
aspas, não é verdade? Então assim, eu acho,
que graças a Deus hoje em dia eu fico
pensando eu não tenho na minha família,
mas se tivesse como seria o tratamento né,
como que seria? A gente, eu acho assim,
muito bacana, na verdade, a gente só sente
quando esta na pele, você tem que ser
próximo, você tem que agir melhor, mas eu
acho muito bacana, que nem por enquanto
só tenho uma mas eu falo para as meninas se
vim mais a gente tem que aceitar e a gente
esta aí pra isso, pra trabalhar com essas
crianças, incluir.. (D2).
Pergunta difícil, porque a gente tem que
aceitar, porque é uma Lei que esta aí, nos
temos que cumprir, mas ao mesmo tempo
cumprir como? De que jeito? Então
realmente nos temos que incluir crianças no
meio das nossas crianças, mas nos não
temos profissionais pra isso, nos não temos
acessibilidade, não temos preparo nenhum.
Na verdade, nos não temos desde o
profissional até o próprio espaço, nós não
temos espaço para cadeirante, que na
EINF’
os que estão
construindo eles já tem, por exemplo o
banheiro com acessibilidade tem a rampa,
nos não temos, no nosso CEINF aqui nos
não temos nem rampa pra eles subirem,
82
ANAIS - 2013
estou lutando, já pedi, inclusive nós temos
uma rampa pequenininha ali, foi eu quem
fiz, eu mandei fazer, nós não tínhamos, mas
já pedi pra secretaria, então a gente está
lutando pra isso. (D3).
De educação infantil especificamente?
é, ele não tem assistência devida, devida não
olhando assim ao pé da letra mas o mínimo que
tem se buscado por aí, ele não tem assistência
individualizada, eles tem simplesmente chegado,
eles só chegaram vejo que eles estão na fase
inicial, que as escolas já deram um passo a mais,
c
í
EINF’
ã (D4)
Diante desses depoimentos, nota-se que as diretoras
procuram eximir de que não receberiam os alunos com
deficiência, todas recebem, o que comprova o discurso
vinculado na sociedade em que o preconceito é algo já superado,
mesmo sendo este de base cultural; afinal, os cargos de diretora
são preenchidos por indicação política e são pessoas que
exercem, de certa forma, influencia em seu local de atuação.
Entretanto, a responsabilidade recai sobre as famílias, que não
têm conhecimento, não aceitam a deficiência e são resistentes.
Ela também é depositada no professor, que não é qualificado,
não tem interesse, não busca e não tem experiências.
É
í
b
qu
cu
qu
“
”
deve ser afastado, precisa ser vigiado por laudos, por conversas
com a família para que o mantenha o mais docilizado possível,
porque ele é o diferente e não se sabe trabalhar com o diferente.
Isto mostra o não dito do discurso, porque esse não dito não é
condizente com a legalidade.
É “
çã ” ch
F uc u (2005b), u j ,
foi interditado nas falas das diretoras, porque foi fixado um
83
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
limite até onde elas deveriam falar. Existe um lugar de onde elas
falam e as reconduz ao silêncio. O autor ressalta que não é fácil
dizer alguma coisa nova, diferente daquilo que se espera, porque
o discurso situa-se em um feixe de relações sociais, culturais e
econômicas, que vai limitar esses discursos, mostrando a
superfície de uma inclusão que não acontece.
“
çã ”
bé
f
professoras quando usam outros termos para dizer que não
querem deficientes em suas salas de aula, por não saberem como
lidar; de não ter uma desculpa para dar; não ter formação
específica ou que eles deveriam ter um lugar apropriado.
Quando questionadas sobre como elas viam a inclusão dos
deficientes nos CEINF’ ,
:
É uma situação muito preocupante, porque
pela estrutura que a gente tem aqui dentro
do CEINF a gente não tem uma estrutura
especifica até mesmo para os que estão aqui
que não tem dificuldade nenhuma, falta um
apoio, um profissional de apoio que sabe
lidar com esse tipo as salas geralmente são
lotadas, material pra uma pessoa que eu
acredito com deficiência precisa de um
material diferenciado, e agente não tem isso
aqui nos CEINF. (Prof1).
É porque é Lei, que a criança esteja incluída
né, mas dentro da sala de aula o professor
não tem especialização nenhuma não tem
suporte nenhum pra isso. (Prof2).
Olha, é imposto pra gente, que devemos
receber essas crianças né, mas não temos
acessibilidade. (Prof4).
84
ANAIS - 2013
eu não tenho preparação para trabalhar com
essa criança, eu acho que essa criança
precisa dependendo do tipo de deficiência
ela precisa de uma fono, precisa de um T. O.
ela precisa de uma Fisioterapeuta, pra ela ter
essa inclusão, pra ela ser inclusa realmente,
e não tem isso, nem na escolas, não tem,
então o que acontece geralmente é uma
classe numerosa, com duas pessoas ou três,
o certo é três, mas tem sala que tem só duas
e daí? Como é que essa criança vai ficar? Eu
fico me perguntando, será que realmente ela
vai ser inclusa ou vai ser excluída de vez.
(Prof8).
Na realidade é assim bastante precária,
quase inexistente, se você for pensar em
inclusão como manda a Lei, nos podemos
dizer que não existe porque na realidade o
que existe hoje nos CEINFs é você abrir a
porta e colocar uma criança a mais, sem
levar em conta as necessidades dessa pessoa,
como vai ser atendido, qual a formação do
professor do profissional que vai estar perto
dessa criança, não tem nada hoje, nada
mesmo. (Prof9).
Eu queria estar preparada para receber
apesar de já ter recebido e sem ser
questionada se eu queria ou não, a gente tem
que receber, só que eu não tenho um preparo
pra estar trabalhando, não sei como trabalhar
com essa criança a gente tem assim aquele,
o que a gente vai adquirindo com a pratica,
85
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
mas a fundo o que trabalhar com uma
criança com deficiência, dependendo da
deficiência que ela tenha eu não tenho uma
qualificação
assim
especifica
pra
isso.(Prof14).
Ainda que as professoras entendam que a inclusão é um
direito da criança, elas confessam que as recebem em virtude da
lei, ou seja, por serem obrigadas. Mas, quanto ao trabalho
educativo, nada está dito, mas se observa que ele não acontece
em consequência de fatores alocados pelas professoras como
externos ao seu trabalho. O principal deles é a falta de estrutura.
Com isso, verifica-se que a inclusão ainda é um fator
legal, dito, prescrito nos aparatos que regem e governam o
discurso. Não fazem parte de uma prática discursiva da inclusão,
que remete a outro princípio discursivo citado por Foucault
(2005b) c
“ xc u ã ”,
qu
c
separação, rejeição. Foi apontado por todas as entrevistadas que
é
c
qu
f
cu ã ,
“ c ” ã
quer por perto, porque não sabem o que fazer com eles. A
técnica da escolarização de ensinar tudo a todos se aplica a
todos que consigam responder a ela, o que foge disso é excluído.
Quando questionadas sobre as condições que os
EINF’ f c
c b
c
ç c
deficiências, nota-se outro fator que revela o princípio da
“ xc u ã ”. Então outra forma de exclusão é desenhada, a
histórica. Na sociedade não há espaço para o que não se encaixa
dentro dos padrões que ela estabelece. Mesmo que para efetivar
essa exclusão são usados outros termos, outras formas de dizer
como:
[...] nem mesmo quem faz uma pósgraduação está preparado, a pessoa não está
86
ANAIS - 2013
preparada. (D1). [...] nós temos que abrir as
EINF’
(D3)
[ ]
EINF’ ã
ã
,
na questão física de acessibilidade nem na
questão profissional; a parte curricular do
próprio centro não está adequado pra isso.
(D4).
[...] além da acessibilidade que não tem eu
acredito assim, que essa lei, pelo que já me
informaram o CEINF não tem direito a uma
professora auxiliar. (CP1).
[...] não tem estrutura pra receber um
deficiente, cadeirante, não tem rampa não
tem banheiro adaptados. (CP2). [...] é um
assunto muito novo. (Prof1).
[...] não porque eu tenho uma aluna e eu não
tenho nada direcionado de como trabalhar
com aquela criança. (Prof2). [...] a parte
pedagógica tem, o que as crianças tem, não
tem fisioterapeuta no CEINF, não tem
psicólogo, não tem psiquiatra, não tem um
terapeuta ocupacional, então como essa
criança vai ficar dentro do CEINF, não tem
nem banheiro adequado, e as salas mesmos,
que espaço que ela vai estar o tempo todo.
(Prof8).
[...] se for esperar estar preparado a inclusão
não chega, vai demorar muito. (Prof9). [...]
h
uc çã
f
EINF ‘
não estão preparado porque eu acho que é
nem tanto lugar, são os profissionais, que
87
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
nós não temos profissionais preparados.
(Prof12).
[ ] ã
ch qu
EINF’
ã
preparados não, eu acho que a gente teria
que ter um acompanhamento de um
profissional da área da saúde para nos dar
noções de como trabalhar com essas
crianças, e na maioria das vezes nem um
laudo a gente tem. E outra coisa é o espaço
físico que às vezes não atende as
necessidades
das
crianças,
mobílias
próprias, porque é tudo na aparência.
(Prof14).
[...] não. Professores sem informação
CEINF’
cu
f
c
,
envolvidos em um contexto onde a
sobrevivência é a principal luta, os
portadores de deficiência ficam esquecidos
num canto pela própria instituição, pela
família, pela comunidade e pelas
autoridades. Ficam marginalizados do
convívio social, sem cidadania, sem
dignidade. (Prof15).
[...] não estamos preparados. (Prof14, D2,
Prof3, Prof4, Prof11, Prof13, Prof16).
Esses enunciados estão ligados ao discurso da exclusão
com suas regularidades, crenças, sem serem incoerentes, porque
eles aparecem na mesma formação discursiva da inclusão. Para
Foucault (2005a, p. 73), são pontos de equivalência. Nas
u , “[ ]
u -se num mesmo
nível; e ao invés de constituírem uma pura e simples falta de
88
ANAIS - 2013
c ê c ,f
u
” D
f
, ju f c -se a
inclusão estar restrita a um contingente de mais ou menos 70
matrículas, em todos os Centros de Educação Infantil do
município de Campo Grande, MS, que no total são 96 Centros.
5.
Discursos das participantes
inclusão, educação e família
sobre
deficiência,
Nas entrevistas, uma das perguntas era sobre a
ã
fcê c
c
ã u
“
c
” qu
f
EINF’
“
participante ” qu
f í
fz
c u
respostas da F2 serem respondidas pelo pai da aluna:
c
[...] pessoa que tem algum tipo de limitação.
(Prof1). [...] é ter dificuldade em alguma
coisa. (Prof2). [...] limitado. (Prof4). [...]
toda pessoa que necessita de um cuidado
especial. (Prof7). [...] é a pessoa que tem
algo que não é considerado normal pelos
padrões da sociedade. (Prof8). [...] incapaz,
é aquela em que a pessoa não consegue, é ir
até onde a gente vai. (D3). [...] falta de
alguma coisa. (Prof9); (D1); (D4).[...] é
necessitar de ajuda para executar algumas
funções ou atividade. (Prof11). [...] sem
habilidades. (Prof12). [...] não ter domínio
de algumas habilidades. (Prof14). [...]
anormal. (Prof16). [...] precisa de um
cuidado a mais. (CP1). [...] ausência de uma
estrutura mental, visual. (CP2).
Segundo o Decreto Federal n.º 914, de 6 de setembro de
1993 (BRASIL, 1993a), deficiente é a "[...] pessoa que
89
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
apresenta, em caráter permanente, perdas ou anomalias de sua
estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que
gerem incapacidade para o desempenho de atividades, dentro do
padrão considerado normal para o ser humano". Observa-se que
as falas das entrevistadas e o que está disposto no documento
legal são discursos que se afinam.
Já as famílias entrevistadas dos alunos deficientes
responderam, mesmo não gostando da palavra deficiente por
achar muito pesada, que:
[...] disfunção de uma estrutura psíquica,
fisiológica ou anatômica. (F1). [...] pessoas
que nascem com alguma coisa assim, como
cegas, surdas, que a gente vai precisar ter
muitos cuidados (F2). [...] tem atraso no
desenvolvimento; são diferentes das outras
que tem idade certa, normais. (F3).
Ao contrário do que foi relatado em algumas falas das
c
EINF’ , a família sabe o que é deficiência,
mesmo atrelando em algumas vezes à doença, porém não como
limitação para a educação destes. Com exceção da F3, as outras
duas famílias não veem o processo educativo nos Centros de
Educação Infantil como possibilidade e nem que estes estejam
preparados para a inclusão, o que relatam em suas falas:
Não, as faltas de estruturas no ambiente
dificulta as limitações que eles precisa
condições de acessibilidades são visto em
b
EINF’ , f
adaptadas,banheiros,refeitórios, rampas de
acesso e sem falar no grande números de
crianças que são assistidas por um pequeno
grupo de funcionários.(F1).
90
ANAIS - 2013
[...] não, porque tem que ter uma pessoa pra
ele lá, e o pessoal da SEMED falou que ele
precisa de uma pessoa só pra ele, mas até
agora não veio ninguém, e ele está lá desde
8 meses e agora que falou que ele tem
direito de ter uma pessoa só pra ele mas não
tem, tem a C. né, mas ela direto pega
atestado, não sei inclusive o dia que ela não
vai pedem pra não levar ele, toda sexta ela
não está e não é pra levar ele, é muito
complicado, a diretora tem muita boa
vontade mas não depende só dela né,
depende de uma equipe né, pra mim está
tudo despreparado. (F3).
Foucault (2002) relata que a figura do deficiente surgiu
na sociedade no lugar do monstro, representando uma violação
das leis dos homens e da natureza, não respondendo por sua
incapacidade. Será o monstro cotidiano, banalizado, sem vida,
incorrigível, mas que terá que ser colocado em instituições para
a sua correção.
Foi observado que não há nada de novo nas respostas das
entrevistadas, pois o individuo anormal foi constituído na
prática e no saber do séc. XVIII. Desde então vem sendo alvo
dos discursos dos saberes institucionais, que por elas foram
confiscados e absorvidos na tentativa de correção. Quanto a
isso, Foucault (2002, p. 72) esclarece que:
O contexto de referência do individuo a ser
corrigido é muito mais limitado: é a família
mesma, no exercício de seu poder interno ou
na gestão da sua economia; ou, no máximo,
é a família na sua relação com as
instituições que lhe são vizinhas ou que a
91
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
apoiam. O individuo a ser corrigido vai
aparecer nesse jogo, nesse conflito, nesse
sistema de apoio que existe entre a família e,
depois a escola, a oficina, a rua, o bairro, a
paróquia, a igreja, a policia, etc. Esse
contexto, portanto, é o campo de
aparecimento do individuo a ser corrigido.
Mas quando perguntadas quais seriam seus limites para
trabalhar com alunos deficientes, elas respondem: Ainda
segundo o autor, o que define um indivíduo a ser corrigido é
justamente o fato de ele ser incorrigível. Há sempre a questão de
que é preciso fazer algo para amenizar. É certo que essas
crianças não ocuparão o mesmo espaço que as normais em
virtude do estabelecimento de um padrão de normalidade. O que
não se enquadra nesse padrão é excluído, pois isto se institui nas
práticas culturais e se adapta nas práticas pedagógicas.
Para esclarecer esses pontos reporta-se a Foucault
(2005b), que classifica os discursos nos princípios da inversão,
descontinuidade, especificidade, exterioridade, para fazer com
que apareçam os procedimentos de classificação, ordenação,
distribuição e interdição. O autor trabalha com a noção de
acontecimento, série, regularidade e condição de possibilidade.
Como o discurso é controlado e existe um padrão
b c , F uc u
z qu é c
h u
u “ bu
bj ”, u j , ã
f
u
qu qu
circunstância. Não se tem o direito de dizer tudo. É preciso
seguir um ritual mesmo que não se concorde. Nas falas das
entrevistadas não há a hipótese de não aceitar o deficiente.
Todas aceitam e defendem a inclusão, a necessidade de
formação contínua para melhor atender o deficiente. Defendem
o direito e a aceitação dos deficientes em salas de aula comuns
92
ANAIS - 2013
para conviver com seus iguais, mas em que operatividades são
postulados, revelam outros elementos.
[...] salas de aulas cheias, necessidade de
professor auxiliar, o tempo em sala de aula é
muito pouco, má formação, falta de
acessibilidade do aluno. (D1; D4; CP2;
Prof1; Prof2; Prof3; Prof4; Prof5; Prof8;
Prof10; Prof11; Prof12; Prof13; Prof14;
Prof15; Prof16). [...] a família não informar
o que a criança tem. (D2; D3). [...] não
tenho limites em trabalhar com o deficiente.
(CP1). [...] a questão pedagógica, não sei o
que trabalhar. (Prof6, Prof7). [...] uma
equipe preparada (Prof9).
Porém, como o autor bem esclarece, esse procedimento
à “ j çã ”,
f
c c
qu ã
qu
EINF’ ã
ã
s; o corpo
docente não está preparado, precisa de um professor de apoio;
não tem material adequado; as salas são cheias e que não têm
conhecimento sobre a deficiência.
É o que se percebe nos dizeres de Foucault (2005b, p.
43-44):
Sabe-se que educação, embora seja, de
direito, o instrumento graças ao qual todo o
individuo, em uma sociedade como a nossa,
pode ter acesso a qualquer tipo de discurso,
segue, em sua distribuição, no que permite e
no que impede, as linhas que estão marcadas
pela distancia, pela oposição e lutas sociais.
Todo sistema de educação é uma maneira
93
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
política de manter ou modificar a
apropriação dos discursos, com os saberes e
poderes que eles trazem consigo.
As falas das entrevistadas mostram essa ideia do autor.
Os sujeitos que participaram da pesquisa reconhecem que os
deficientes infantis têm o direito de estar nos espaços de
educação para receber o devido cuidado. Por outro lado, eles são
negados quando os professores revelam que o espaço físico não
oferece condições de inclusão, ao mostrar o despreparo para o
exercício da função e até ao considerar a obrigação de aceitar
u
fc
“ qu ã
u j
” ( P1)
Quanto à posição das famílias em relação ao processo
inclusivo como limite e possibilidade, elas relatam que:
Possibilidade existe a inclusão no ambiente
comum de aprendizagem claro oferecendo
as condições de acessibilidades possibilita o
preparo para a inserção nos espaços sociais.
A inclusão é extremamente favorável á
eliminação de posturas excludentes, pois a
partir da convivência com portadores de
necessidades especiais as crianças aprendem
desde cedo a não discriminar valores como a
solidariedade e o respeito a diferença.(F1).
[...] porque desde que nós descobrimos que
ela tinha baixa visão nós procuramos o
ISMAC, e lá ela desenvolveu bastante, eles
fazem estimulação, ensina postura, ajuda a
ficar independente, essas coisas e, foram
eles que mandaram a gente colocar ela num
CEINF, eles falaram que ia ser bom pra ela
94
ANAIS - 2013
conviver com outras crianças da idade dela.
(F2).
Não, não vai desenvolver nada porque a
professora não vai poder dar atenção pra ela,
só pra ela, não vai dar, quando eu fazia
normal médio e fui fazer estágio na escola
eram tantas crianças problemática que
tinham na sala, que eu falei gente, cadê o
pai, a mãe dessas crianças pra correr fazer
um exame né, não é pra estar excluída
daquela sala, mas que deveria ter um
especialista tratando deles né, isso pra mim
não é eles serem excluídos né, isso seria um
tratamento melhor pra eles, como essas
crianças vão desenvolver? Elas lá no meio
daquelas crianças que não tem problema
nenhum? Eu penso assim o meu não vai
desenvolver, como que eu vou colocar o L.
numa sala com um monte de criancinhas a
professora não vai dar a atenção que ele
merece, até já me falaram, L. não vai
colocar ele nessas escolas, vai procurar uma
particular que é melhor, não dá como que eu
vou jogar meu filho lá, não dá, ele é um
bebe gigante com aquelas crianças que tem
uma evolução diferente dele. (F3).
Não que a família mostra resistência; ela matricula a
criança com outras possibilidades, que não é a educativa, mas
como meio de sociabilidade e convivência, vendo o direito de
seus filhos serem inseridos nesse processo. O fato de dizerem
que a escola não está preparada, não ter pessoas qualificadas
para acompanhar o desenvolvimento de seus filhos é parte do
95
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
processo de culpabilização que a sociedade nas suas instituições
procuram se eximir, em um processo em que a legislação passa
a responsabilidade para a escola e a escola à família e esta, em
um processo de superação, faz o caminho inverso.
O mesmo dito visto nos aparatos normativos nacionais
que colocam a educação como direito de todos, dever do Estado
e obrigação da família, o que Foucault (2002) ressalta que a
família surge no cenário da modernidade como um dos
instrumentos importantes na direção das condutas alheias, que,
no entanto, estas passaram a serem regidas por uma série de
obrigações, principalmente em relação à infância.
Algumas considerações
Reafirma-se desse modo que não houve a intenção de
mensurar, nas entrevistas, se as verdades ditas são boas ou ruins,
certas ou erradas, verdadeiras ou falsas, mas esclarecer quais
enunciados de verdades estão contidos nos discursos da inclusão
nos CEINFs, o que fez reportar a uma localidade da cidade de
Campo Grande, MS.
Porém, mesmo esses discursos expressos nas falas dos
participantes serem localizados, não são fatos isolados, não são
privilégios de uma localidade, o que fica comprovado nos dados
do INEP (2011), apenas 70 matrículas de crianças com
fcê c
EINF’
u cí
M
qu
esses discursos estão vinculados ao desejo de ser aceito pelo
outro e de reproduzir o que é dito socialmente.
As verdades ditas são produções sociais, dentro de uma
cultura de padrões de normalidades, centradas no discurso da
inclusão que vem permeando as legislações nacionais e
produzindo subjetividades, mesmo não falando que o anormal
96
ANAIS - 2013
deve ser recolhido, mantido afastado dos outros, tem-se esse
comportamento de excluí-los de outras formas.
z
c
uj
EINF’
das Moreninhas reafirmam o conceito de deficiente na
sociedade, como o incapaz, e evidencia, mais uma vez, as tantas
mazelas enfrentadas por eles e suas famílias nos serviços
públicos essenciais, como saúde e educação, que, como foi
analisado, o conceito de educação não faz sentido para quem é
deficiente; basta fazer a guarda destes por algumas horas do dia,
então o EINF’ cu
u
Pensar em uma educação que não reforça as contradições
sociais, respeitando os deficientes ou não, como sujeitos de suas
próprias construções históricas, passa pela mudança de vontade
e envolvimento político de quem lida com o deficiente,
despojado de uma preocupação com a ordem de seus discursos,
como possibilidade de entendimento da realidade e dos
problemas referentes à inclusão de deficientes nas escolas
comuns, sem buscar para eles soluções definitivas ou respostas
reveladoras, mas podendo evidenciar como foram produzidos e
constituídos como tais.
A educação passa mais pela forma de como se concebe o
aluno com deficiência ou não, e não com a destreza em se lidar
com a deficiência. Constitui na forma como ele é visto, um ser
humano limitado e diferente como qualquer outro, sendo
respeitado como gente, e tratado com a mesma dignidade que
toda pessoa gostaria de ser tratada. Assim, a questão da inclusão
passa ao conjunto de relações impostas à realidade social
brasileira, o que leva a concluir que o discurso da inclusão dos
deficientes em sala de aula comum é uma estratégia sedutora de
apaziguamento dos conflitos sociais, mesmo que isso provoque
o processo inverso, que é a fragmentação para que se estabeleça
o controle.
97
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Diante disso, a palavra da família é ouvida na
manutenção da cesura; sua escuta é investida pelo desejo de
saber sustentado sobre um suporte institucional, como coerção,
utopia ou angústia e que permite construir novos discursos,
defendido e apropriado pelo discurso econômico e político.
Enfim, como já dito neste trabalho, a sociedade se
organiza pela exclusão, quando estão presentes os mecanismos
de rejeição que entram em jogo quando um sujeito que fala,
sejam os professores ou a família, formula um ou vários
enunciados de uma pertença de classe, de uma apropriação
social do discurso, a separação permanece.
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JORNAL FOLHA DE S. PAULO.
Pais barram filho
deficiente na escola. FOCO, São Paulo, ano 50, 16 ago. 2010.
C1.
LOPES, Maura Corcini; HATTGE, Morgana Domenica (Orgs.).
Inclusão escolar: conjunto de práticas que governam. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009.
99
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A linguística aplicada ao teatro no ensino de inglês: do
fragmento à uma hiper-realidade
Lindomar Cavalcante de Lacerda LIMA1
“T
x é
b ção e
transformação
de
uma
u
c
u
x ”
(KRISTEVA, 1969, p. 146)
RESUMO: A aproximação entre disciplinas tornou-se uma constante
nas discussões relativas às interdisciplinaridades. Assim, este artigo
apresenta proposta que vai muito além de um cruzamento entre
disciplinas, algo que se apropria da ideia de interdisciplinaridade e
consegue, num movimento autofágico, ir além, inserindo
conhecimentos das áreas da linguística e da semiótica, utilizando
como pano de fundo a teoria literária e a teoria teatral. Como aporte
teórico foram utilizados os conceitos de Rygaert, Pallotini e Rosenfeld
e as teorias para o aprendizado de Línguas de Thornbury, Batstone e
Malley e Duff, juntamente, com as teorias de estudo da linguagem de
Eco, Kristeva, Bauman e Baudrillard. Assim, demonstra-se o efeito
metodológico que uma abordagem teatral causa no ensino de uma
segunda língua.
PALAVRAS-CHAVE: Inglês; Teatro; Hipertexto;Escola Pública
Introdução
Vivemos, hoje, o que Bauman chama de sociedade de
consumidores, estruturada em forma de rede de informações,
criada apenas para o consumo e que configura o novo espaço
global. A economia mundial segue a tendência de uma nova
1
Professor de Língua Inglesa da rede Estadual e Municipal de Ensino de
Campo Grande-MS. Mestre em Estudos de Linguagens. Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]
100
ANAIS - 2013
mercadoria: a informação e a comunicação, mediada por
computador, além de influenciar o andamento do mercado
mundial, possibilita o desenvolvimento de novas formas de
leitura e, com isso, a configuração de uma nova morfologia
genérica, o hipertexto.
A sociedade da comunicação tenta formar sua identidade
nas possíveis e instáveis mudanças acarretadas pelo seu próprio
processo de desenvolvimento cyber-cultural e pós-moderno,
considerando que o homem moderno, como vemos assinalado
nos livros de história, carregou consigo a descrença de uma
perspectiva pessimista acenada pelo seu próprio processo de
industrialização. O Homem pós-moderno, por conseguinte,
aprendeu a viver com esse falso otimismo, vinculando-o agora a
um racionalismo informatizador.
Essa perspectiva pós-modernizadora de simulação é
assinalada por pensadores como, por exemplo, Baudrillard e
à“
da comunicação que induz esta
sobrevalorização no simulacro, com fins dissuasivos, os de
curto-circuitar, antecipadamente, toda a possibilidade de
comunicação (precessã
qu
õ f
)”
(BAUDRILLARD, 1981, p. 105).
Tal perspectiva atinge, na era da cultura de massa, o seu
ponto de sombria exaustão, com a reprodução em massa de
realidades criadas pelo cinema e pela televisão, para entorpecer
o senso crítico e satisfazer ao mesmo tempo o desejo de
mudança, frustrando o homem pós-moderno, que parece ter
assumido a passividade do conformismo.
Preocupado com isso, já em 1818, Samuel Taylor
Coleridge buscava demonstrar os princípios pelos quais o
pensamento humano era organizado. Em sua introdução à
Encyclopaedia Metropolitana Treatise on Method, ele já
demonstrava aversão ao sistema de classificação alfabética e
101
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
propunha princípios mais significativos de organização da
informação.
A busca crescente de todos esses teóricos e escritores,
em criar outra forma narrativa que pudesse ser mais veloz e
dinâmica e que deixasse o leitor livre para seguir suas próprias
escolhas, sem um direcionamento linear pré-determinado pelo
autor, nos permite entender que temos aí um proto-hipertexto.
O termo hipertexto, entretanto, só apareceu em primeira
mão, quando Theodor H. Nelson (1965) em uma apresentação à
Conferência Nacional da Association for Computing Machinery,
nos Estados Unidos, revelou-o como um novo vocábulo para se
referir a uma escrita/leitura não sequencial, não linear.
Partindo das concepções desses pensadores, surgiu a
ideia de explorar esses simulacros em sala de aula e, como o
teatro nada mais é que puro simulacro, ou seja, representação de
uma realidade, as peças foram enriquecidas com o novo
conceito e desenvolvidas pelos alunos. Saímos dos teatrinhos
que simulavam situações de datas comemorativas, mobilizando
vocabulários usados em restaurante, hospital ou aeroporto, para
criar verdadeiras adaptações de outros textos como Romeo and
Juliet, de Shakespeare ou Sítio do Pica Pau Amarelo, de
Monteiro Lobato.
Entretanto, o ponto crucial em sala de aula foi a
adaptação da peça Macbeth, de Shakespeare e Corpse Bride
2
(Noiva Cadáver), de Tim Burton, sendo a última mais
complexa, tendo em vista que, montar uma peça com um texto
originalmente escrito para o teatro como Macbeth é bem mais
fácil do que selecionar recortes de cenas de um filme e adaptálos para serem encenados.
2
http://www.youtube.com/watch?v=_AHOXEdD46s&feature=mfu_in_order
&list=UL,
102
ANAIS - 2013
É reconhecido que as artes têm o poder de antecipar
muitas invenções da ciência e prever vários avanços
tecnológicos, nesse caso, com a arte-educação, não foi diferente.
Autores como Landow, Bolter e Murray são unânimes em
afirmar que essas tentativas de rompimento dos padrões
"lineares" da escrita teriam sido precursoras do conceito do
hipertexto.
Portanto, considera-se os teatros produzidos pelos
alunos, metaforicamente, de hipertextuais, algo parecido com
uma intertextualidade de caráter genérico, porque se referem a
muitos outros textos por meio de conexões e associações que
podem ou não ficar a cargo do leitor. São obras que, de certa
forma, subvertem a noção de texto tradicional, apontando para a
atividade do leitor em seguir caminhos variados em histórias
multiformes.
Jorge Luis Borges, no seu conto O jardim dos caminhos
que se bifurcam, apresenta uma história repleta de alusões e
associações dentro dela mesma, como se fosse um labirinto,
num exercício de narrativa que assume formas diferentes de
tempo e de espaço, realizando uma verdadeira reconceituação
desses aspectos na forma literária:
- Antes de exumar esta carta, eu tinha me
perguntado de que maneira um livro pode
ser infinito. Não conjeturei outro processo
que o de um volume cíclico, circular. Um
volume cuja última página fosse idêntica à
primeira, com possibilidade de continuar
indefinidamente. Recordei também aquela
noite que está no centro das Mil e Uma
Noites, quando a Rainha Scherazade (por
uma mágica distração do copista) põe-se a
f
xu
h ó
‘1001
N
’, c
c
ch g
u
zà
103
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
noite na qual está fazendo o relato, e assim
até o infinito. Imaginei também uma obra
platônica, hereditária, transmitida de pai a
filho, na qual cada novo indivíduo aditasse
um capítulo ou corrigisse com piedoso
cuidado a página dos antepassados
(BORGES, 1997, p.100, grifos do autor).
Borges ilustra mais especificamente no fragmento
descrito acima, um exemplo do que seria uma hiperficção,
narrativa comum veiculada pela Web, que tem um texto com
várias opções de continuação (bifurcações), por meio de links à
escolha do leitor que, assim, cria sua própria história.
A teoria literária, a semiótica e a linguística são de uma
importância teórica- metodológica essencial em sala de aula,
pois essas teorias ampliam o horizonte de criatividade do
professor e quem ganha com isso no aprendizado é o aluno.
As aulas deixam de ser interdisciplinares e passam a ser
hiperdisciplinares, ou seja, quando o hipertexto é usado numa
prática cênica, ele se torna um simulacro de si mesmo, e não
vemos mais os alunos, mas os atores dando forma e vida às
palavras.
O interessante é que, mesmo as encenações sendo em
inglês, temos aí uma outra característica semiótica do teatro, a
desconstrução da compreensão por signos verbais, dando lugar
a recursos corporais, algo como um semissimbolismo, ou seja,
recursos gestuais que dizem mais que as próprias palavras.
Hipertexto: outra forma de intertextualidade?
O hipertexto é uma forma de organização da informação
e, como elucidado anteriormente, nasceu com a literatura nos
meios impressos. Poetas e escritores como James Joyce, Jorge
104
ANAIS - 2013
Luis Borges, Marcel Proust, Julio Cortazar, Umberto Eco,
Roland Barthes, Ítalo Calvino, entre muitos outros, tiveram a
oportunidade de experimentar formas alternativas de
organização da informação e dos caminhos de escrita e leitura.
Outro exemplo, porém mais recente, é do escritor
B
ég
’
u
c Simulacros, que
possibilita ao leitor múltiplas direções em sua narrativa, com
jogos teatrais e performances, inserindo um coautor na própria
obra, tendo assim, uma participação ativa. Sant´Anna propõe
uma construção intencional que relaciona/cruza teatro e
narrativa, jogando com questões que dizem respeito à realidade
e à ficção.
Compreendendo as restrições temporais e curriculares
do componente curricular Língua Inglesa, buscou-se criar
mecanismos para gerar uma relação diferente do aluno/ator com
a obra estudada para a encenação. Foram realizadas várias
experiências, como: construção da história com mais de um fim,
apresentação de um evento sob diversos pontos de vista e até
cruzar fragmentos de romances e teatro ou cinema e teatro
dando a possibilidade ao aluno de escolher o caminho mais
adequado para construir a sua narrativa.
Buscou-se, enfim, mecanismos que tornassem os teatros
múltiplos, mais próximos de um mosaico, com novos ritmos
para o fluxo do texto. Ou seja, como o tempo das aulas é curto e
não se pode usar o teatro como um fim em si mesmo, o trabalho
com fragmentos foi a melhor opção. Os alunos foram separados
em grupos e tomaram conhecimento dos resumos das peças
selecionadas, da trama e das personagens.
Os teatros são construídos com base na
hipertextualidade, como percebemos pela definição do termo
hipertexto:
105
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
[...] técnica
de
armazenamento e
apresentação da informação baseada num
sistema de referências cruzadas que formam
uma rede de associações (à semelhança da
forma como se processa o pensamento
humano, baseado em associações de idéias
num
percurso
não
seqüencial)
Originalmente, como o próprio nome
sugere, hipertexto estava baseado na
apresentação textual de informações de
forma não-linear (FERREIRA, 1999, p.
332).
As referências cruzadas, característica de toda escrita
hipertextual, constituem o foco da construção dos teatros em
sala de aula e fazem os alunos seguirem caminhos pré-definidos
por meio de uma grande coleção de informações textuais.
Então, o uso do hipertexto, como teoria de suporte para a
utilização do teatro, como aporte metodológico para o ensino de
língua inglesa, apesar de permitir liberdade de ação, tanto numa
superfície cênica como textual, pode, mediante desdobramentos
e variantes, utilizar-se de montagens textuais, tais como recorte
de falas de um filme, parafraseando e adaptando essas falas ao
tema de cada teatro.
Assim, os alunos aprendem a adequar o limite físico e
temporal das peças pré-definidas pelo próprio espaço da sala de
aula e tempo das aulas. Dessa maneira, o teatro em hipertexto,
por não ser linear, funciona aos saltos de um ponto para outro,
baseado tanto nas necessidades dos atores/ alunos e
alunos/espectadores, quanto nos padrões de relações
explicitamente definidos pelo regimento escolar.
Os teatros produzidos durante as aulas têm como base as
técnicas do teatro escolar do oprimido de Augusto Boal.
106
ANAIS - 2013
Destacam-se assim, as técnicas de Boal, porque entre tantas
outras as suas possuem relações explícitas entre teatro e
educação, técnicas que visam alfabetizar em todas as linguagens
possíveis, especialmente artísticas, como o teatro, a fotografia, o
c
, c
é
,
qu
“
são linguagens, mas que nem todas as linguagens são
á c !” ( BO L, 1991, 137)
Embora as artes ainda sejam contempladas sem a
atenção necessária, por parte dos responsáveis pela elaboração
dos conteúdos programáticos, os objetivos da educação formal
contemporânea são direcionados de acordo com Demerval
Saviani para a formação omnilateral, quer dizer, em todas as
direções do ser humano .
O prazer que os alunos celebram por se verem
observados falando em inglês e a interferência dessa lucidez no
seu modo de agir como ator faz com que eles se tornem mais
críticos e, amiúde, mais exigentes nas dramatizações e
caracterização das personagens. A intertextualidade, quase
sempre, permite apenas uma leitura conduzida e linear, diferente
do hipertexto que aceita ordenações pouco usuais para os
retalhos que o constituem.
Todo hipertexto é intertextual, mas, quase sempre, a
intertextualidade não é um fenômeno hipertextual, que é
marcado por permitir ao aluno a montagem de um texto próprio,
sem guias. O hipertexto nos meios da informática tem sido
definido como uma abordagem para o gerenciamento de
informações:
hipertexto é um texto não-linear: apresenta
uma flexibilidade desenvolvida na forma de
ligações permitidas/ sugeridas entre nós que
constituem redes que permitem a elaboração
de vias navegáveis (Nelson, 1991); a não-
107
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
linearidade é tida como a característica
central do hipertexto. (MARCUSCHI, 2011,
p. 14).
Assim, hipertexto é uma rede de conceitos conectados
por ligações. Uma unidade mínima, usualmente, representa um
único conceito contido em uma/ou mais superfícies de
informação. Embora uma estrutura hipertextual, geralmente,
ilustre somente informações textuais, pode conter outros meios
de comunicação, como, sons e imagens, sendo esses a base do
teatro.
Escrevendo as peças por fragmentos
Ressalta-se que um texto verbal se distingue de outras
formas de expressão porque se vale unicamente de processos
linguísticos. Ao escrever um romance, o autor seleciona uma
série de fragmentos e referências lexicais para que seu texto seja
coerente. O tipo de personagem, o ambiente, sua personalidade,
notas, citações, divisão em capítulos, tudo visa a produzir um
determinado contexto para o entendimento do texto literário.
O escritor se vale de estratégias enunciativas verbais
para que o leitor consiga atualizar o texto. Cria-se uma espécie
de movimento que engloba essas estratégias e a absorção delas
por parte do leitor. Essa cooperação textual se realiza quando o
leitor (enunciatário) consegue interagir com os códigos do texto.
Uma escrita hipertextual pode contribuir para melhorar a
compreensão da narratividade de um romance, mas, pode
também, pela falta de linearidade, desorientar o leitor, que talvez
não esteja habituado com esse formato de texto.
No caso do teatro escolar, os alunos devem
disponibilizar pistas sobre possíveis direções que os
espectadores poderão seguir, mas sem nunca guiar a sua leitura,
108
ANAIS - 2013
pois, mesmo que a plateia não tenha conhecimento de língua
inglesa, sua leitura terá de ser livre.
O teatro escolar desenvolvido pelos alunos, por meio de
hipertexto, cria um ambiente propenso a essas discussões,
jogando com as possibilidades de criação de um mundo regido,
não por leis físicas, mas apenas a partir de jogos teatrais.
Jogos esses que transformam a narrativa em um conjunto
de encenações não sequenciais, ou seja, uma escrita em
hipertexto - um texto com vários caminhos que permitem que os
leitores façam escolhas, como se as peças fossem vistas e lidas
melhor de uma tela interativa, pois permite-se dessa maneira,
que os espectadores/alunos interfiram nas encenações, pedindo
para os colegas que repitam trechos onde o entendimento não
ficou claro.
Os teatros criados pelos alunos são concebidos por meio
de uma série de pedaços de textos conectados por links
narrativos que oferecem ao leitor diferentes caminhos, como um
bosque de narrativas que se bifurcam.
Cada encenação estabelece ligações com outros textos.
zB u
,“
á
c çã x c b
da comunicação, os mass media, a informação em forcing
gu
u
u u çã
” (B UDRILL RD,
1981, p.106, grifos do autor), através da representação e do
simulacro, misturando a narrativa que também é um simulacro.
A confiança positivista na observação e na
experimentação vem sendo cada vez mais questionada. O texto,
desde Machado de Assis, não oferece uma posição confortável.
No discurso narrativo contemporâneo, o uso declarado de
muitos hipertextos sugere uma recusa textualizada em
referendar a subjetividade singular; o hipertexto pós-moderno
soa como uma ironia, pluralizando essa subjetividade e
109
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
atribuindo outras funções ao leitor que, além de ler a narrativa,
deve tentar estabelecer certas ligações.
A imagem da escrita transformou-se, deixando de ser a
da inserção única e passando a ser a imagem de um conjunto de
textos paralelos, numa perversão que revela um quadro
referencial distintamente pós-estruturalista, no qual o sujeito é
sempre considerado em processo e como local de contradições
sem fim.
Em La révolution du language poétique, Julia Kristeva,
já afirmava que os textos de vanguarda de Lautréamont e de
Mallarmé revelavam o sujeito em crise. A ficção pós-moderna
mais atual é a herdeira dessa crise, condicionando a narrativa,
inevitavelmente, a uma potencial fragmentalidade.
O múltiplo e o heterogêneo investem diretamente contra
a ordem totalizante do discurso e, por isso, estilhaçam e
fragmentam o texto:
Estaremos, agora, diante de um novo
realismo na literatura brasileira? Um novo
realismo
que
assume
uma
forma
fragmentária? Pois está difícil, hoje em dia,
não escrever em fragmentos. Porque a
realidade, cada vez mais complexa, também
se estilhaçou (SANT´ANNA, 1997, p. 307).
No teatro escolar, o autor e os atores performatizam
esses mesmos fragmentos. Podemos dizer até, que isso coloca
em prática, dentro da ficção, aquilo que alguns teóricos
reivindicam na teoria narrativa: a necessidade de considerar que
um sujeito é constituído material, histórica e experimentalmente
pela linguagem, isto é, um sujeito gerado, pode-se dizer,
precisamente pelo processo de seu envolvimento nos gêneros
narrativos.
110
ANAIS - 2013
Isso fica bem claro durante as performances
apresentadas pelos alunos, em que cada aluno assume, de fato,
seu papel atoral e cumpre o seu contrato ficcional com
fidelidade.
Cada teatro, realizado pelos alunos, cada história é uma
digressão de todas as outras histórias. Essa poética de
leitura/encenação encontra a sua justificativa teórica nos textos de
Derrida:
Mas se ela não se abrisse para todos estes
discursos, se ela não se abrisse para
quaisquer daqueles discursos, não seria nem
mesmo literatura. Não há literatura sem uma
suspensa com significado e referência.
Suspensa significa suspense, mas também
dependência, condição, condicionalidade.
Em sua condição suspensa, a literatura pode
exceder apenas a si mesma. Sem dúvida,
toda linguagem refere-se a algo além de si
mesma, ou à linguagem como alguma outra
coisa (DERRIDA, 1992, p. 48, grifos do
autor).
Considerações finais
A partir dessas colocações, podemos dizer que o teatro
escolar apresenta uma natureza hipertextual, dadas as seguintes
características:
a.
não-linearidade:
é tida como a
característica central do hipertexto;
b. volatilidade: não tem a mesma
estabilidade dos textos de livros;
111
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
c. topografismo: não é hierárquico nem
tópico, por isso ele é topográfico, ou seja,
um espaço de escritura e leitura que não tem
limites definidos para se desenvolver, essa é
a característica inovadora do Teatro
Escolar.
d. fragmentariedade: consiste na constante
ligação de porções em geral de breves
fragmentos ocasionando com isso uma nãolinearidade, já que o autor não tem mais
controle do tópico;
f. multissemióticidade: caracteriza-se pela
possibilidade
de
interconectar
simultaneamente a linguagem verbal com a
não-verbal (musical, cinematográfica, visual
e teatral) de forma integrativa;
g. interatividade: procede pela interconexão
interativa que, por um lado, é propiciada
pela multissemiose e, por outro lado, pela
contínua
relação
de
um
leitor.
(MARCUSCHI, 2011, p. 15).
É válido ressaltar que essas relações, apresentadas no
teatro escolar, como dito anteriormente, assemelham-se a links,
já que eles são constituídos, parcialmente, por fragmentos de
outros textos que criam as ligações, e parcialmente pelos
alunos/atores que escolhem os caminhos a seguir.
Esse tipo de narrativa não é prerrogativa de nossos dias,
como o leitor já percebeu ao longo desse artigo. No teatro
escolar, vislumbra-se o exercício da hipertextualidade, ou seja,
um novo tipo de leitura, mais dinâmica e fragmentada, sem as
demarcações nítidas do começo, meio e fim do modo
convencional.
112
ANAIS - 2013
Afirma-se então, que a linguística aplicada ao ensino de
línguas e a teoria literária, hoje em dia, estão presentes em
vários campos do saber humano e não poderiam estar ausentes
no ambiente escolar e que seu auxílio é mais necessário à sala de
aula.
Por meio de interrupções e interrogações que permitem a
inserção no seu próprio trabalho – a peça teatral criada por ele
mesmo - o aluno passa a exercer um papel ativo no comando da
história e percebe que seu aprendizado não saiu de uma mera
recepção e reprodução de conhecimento passivo, mas que
constitui a produção de algo verdadeiramente significativo, o
conhecimento:
Já seria tempo de notar que o que está
ocorrendo no domínio das letras é algo mais
importante do que uma simples inversão
qu
àf
‘
çã ’ u
‘f ç c
’, u à c ê cia de
‘
gê c
cí c ’ E
u
çõ
precedem de uma obstinação em pensar a
literatura do ponto de vista dos gêneros
tradicionais, sem levar em conta um
acontecimento capital no domínio literário, a
b ,
‘ c u ’ (PERRONEMOISÉS, 2005, p. XI).
A linguística aplicada ao teatro para o ensino de inglês,
ao fazer de sua especificidade narrativa seu próprio referente e
objeto de autocrítica, torna-se exploração crítica da linguagem,
pois trabalha com a produção textual.
Isso permite concluir que as atividades desenvolvidas em
sala de aula vão mais além, pois não é explorada uma produção
113
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
textual simples, mas sim uma produção em língua inglesa,
acrescida de conhecimento literário.
Ao mesmo tempo, à medida que os cruzamentos
realizados entre ensino de línguas e teatro assumem nosso papel,
possibilitam ao aluno estabelecer interconexões em sua memória
para ir, assim, construindo a coerência textual. Nessas
c xõ ,
é L
“ f
qu
c f gu
h
x ” (LEMO 1996, p. 35).
O texto se torna pretexto para uma nova aventura de
linguagem, ou seja, o discurso teatral sobre o texto torna-se, ele
próprio, outro texto, permitindo ligações/links aos leitores, que
vão construindo o seu próprio entendimento e, assim,
sucessivamente, estabelecendo uma coerência, ao todo
fragmentada do teatro escolar:
Atingimos então o momento do encontro, o
qu
‘c í c ’
‘
u ’,
adotando diante da linguagem a mesma
atitude e os mesmos meios, correndo os
mesmos riscos e alcançando o mesmo
prazer, fundir-se-ão finalmente na escritura
[teatral] (PERRONE-MOISÉS, 2005, p.
XIII).
O fragmento/hipertexto, no ensino de língua inglesa pelo
teatro, instaura-se, inicialmente, nas possibilidades do ficcional
como gerador de pseudo-mundos, em que tudo passa a ser
gerado e idealizado pelas performances realizadas pelos alunos.
Nessas performances, os alunos, inconscientemente,
acabam desenvolvendo outra percepção de leitura e começam a
questionar a relação entre ensino de língua inglesa e prática
teatral, gramática e escritura:
“M qu
, c
é
sério. Por que a cada livro que você lê –
114
ANAIS - 2013
bom ou mau – você se modifica, nunca mais
será o mesmo homem. Todas aquelas idéias
brilhantes ou estúpidas que começaram a
penetrar em seu cérebro. Se você pega um
autor russo do final do século passado, por
exemplo. É provável que uma nova
inquietação tome conta de sua alma, para
não deixá-la até o final de seus dias. Uma
inquietação que o fará ver o mundo com
novos olhos - os olhos da angústia e do
medo. Angústia e medo, no entanto, que se
levados ao seu último extremo, podem
apressar em você o salto liberador que é o
bj
g
h
”
( NT’ NN , 1992, 40)
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João da Costa Pereira, Lisboa: Relógio
d´Água, 1981. 201 p.
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pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
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116
ANAIS - 2013
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diretrizes e bases da educação, Princípios, n. 47, 1998.
117
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A temática indígena: aspecto social na poética
emmanuelina
Jorgina Espindola Ortega de LIMA1
Rita de Cassia Pacheco LIMBERTI2
RESUMO: Num contexto em que se encontram diversas etnias e,
consequentemente, diversidade de ideiasde conhecimentos e de
costumes, a convivência se estabelece por meio de uma inter-relação
cultural, observadacomo o novo espaço em que os povos indígenas os descendentes de tribos de outras regiões- hoje estão alocados na
Reserva Indígenas de Dourados. O poeta douradense Emmanuel
M
h ,
cfc
“
cí
” “O Í
T
”,
T
(1984) ”Í
V h “, ub c
Livro Margem de Papel, e 1994, c
b
“c
ê c ”
A proposta é realizar uma leitura analítica embasada na teoria
semiótica greimasiana, identificando os aspectos de resistência e de
subalternidade na relação do povo indígena com a cultura da
sociedade não-indígena, por meio da análise das estruturas narrativodiscursivas, partindo das estruturas fundamentais para chegar ao
sentido do texto no aspecto discursivo.
PALAVRAS-CHAVE: indígena; discurso; poesia.
Introdução
Buscando-se compreender a semiotização do sujeito, por
meio da semiótica da linha francesa, na poética emmanuelina,
verificou-se um posicionamento crítico- social voltado à
temática indígena, que aponta a degradação social quesofrem os
povos indígenas, em especial os que vivem em Dourados,
1
Mestranda em Letras Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)[email protected]
2
Professora Doutora na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)[email protected]
118
ANAIS - 2013
Mato Grosso do Sul, local berço poético e natal de Emmanuel
Marinho. Em seus poemas Índia Velha, publicado no Livro
Margem de Papel, em 1994 e Genocíndio e O Índio e Trator,
publicados no livro Canto de Terra (1984), com voz de veludo,
há gritos que ecoam a penúria que sofrem os povos indígenas
em relação, sua impossibilidade de inserção na vida social
douradense, lugar em que se produz e se reproduz cultural e
ideologicamente, sua miséria, sua segregação e sua
marginalidade.
Para a semiótica, teoria que ampara esta análise, a vida é
como uma grande narrativa, compreendida como um mundo
espetacular
em
que
os
sujeitos
são
actantes
(destinador/destinatário) que se relacionam com esse mundo e
com os objetos de valor, por conjunção e/ou disjunção, num
jogo de transformações de seus estados (dos sujeitos). A
narrativa, então, é pensada como o lugar em que se simula o
fazer do homem que transforma o mundo e a narratividade, por
sua vez, apresenta-se como componente presente em todos os
tipos de texto, observável pela abordagem analítica da sintaxe e
da semântica.
As temáticas relacionadas às causas sociais nos poemas
de Emmanuel Marinho serão apontadas no poema A poesia é
suja de som.
1.
A temática indígena, uma questão social na poética
emmanoelina
Dizer, mas não dizer de forma que afronte a sociedade,
mas que a alerte, que a denuncie, que inverta os seus valores,
está para a linguagem poética, sonora e singular, que diz,
melodicamente, o tudo e a todos, assim como nos diz a letra do
:“
é uj
”:
119
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A poesia é suja de som...
"A poesia
é suja de som
de sonhos
de sangue
e de signos.
atravessa o universo das coisas
se veste nas cores das palavras.
acalanta.
grita.
pede pão no morno das manhãs
faz manha pelo papel
rola nas páginas brancas
brinca
conta o espelho da história
em sete frases
finge a letra verde
das matas
E em metáforas
se reparte pelos séculos
de tinta e boca
a poesia
a poesia dá de beber aos bêbados
escorre pela barba dos poetas
anda descalça nos ônibus
nos bares
Vê através das portas
come pétalas
e passa fome
a poesia lê o mundo
120
ANAIS - 2013
inventa outros
mofa nas gavetas
arranha paredes
perturba a ordem pública
e protesta nas praças pela paz (MARINHO,
1994, p. )
A poesia é um espaço privilegiado em que se pode
discutir qualquer tema, desde o próprio fazer poético até as mais
intrigantes questões sociais, tornando-se, assim, um objeto
muito rico para pesquisas voltadas aos estudos da significação.
Por sua natureza metafórica, já apresenta, numa primeira
abordagem, o dilema da depreensão do sentido primeiro,
c f u
ubj c
(“
u
c
”)
b
u
j
b
qu õ
c
“
é uj
” é u
g
ó
f z
poético e seu universo. As palavras, como mariposas, orbitam os
sentidos, os tocam e recuam, voltam e fogem.
Analisar semioticamente um poema é um desafio
intelectual que requer um labor constante, considerando que o
fazer poético é e está para além de uma compreensão temporal,
para além de uma primeira leitura. O sentido da poesia não está
apenas circunscrito ao contexto predeterminado porque ela
conta o espelho da história e em metáforas se reparte pelos
séculos. Não podemos tomá-la num tabuleiro de compreensões
que estariam didaticamente a serviço de uma simples forma de
interpretação, mesmo porque a história, a cultura, os devaneios,
os gritos e as angústias, os sonhos, as lutas são todos registrados
na poesia. Esse universo em que se insere a poesia (ou que a
poesia concebe), além da nuance metafórica, é ressignificado a
cada leitura, a cada momento da história, a cada fato novo e
similar que acontece.
121
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A presença polissêmica dos signos linguísticos que
atravessa o universo das coisas e se veste nas cores das
palavras faz com que o texto poético seja um campo
ressemantizado a cada leitura, exercendo uma função de espelho
da sociedade porque reflete a cultura, a política, os anseios, os
sonhos e as transformações sociais de uma época.
No caso da poética emmanuelina, temos que a poesia
atravessa o universo das coisas, atravessa também o nosso
mundo, recaindo no mundo dos outros, procurando sensibilizar
nossos sentidos, fazendo-nos ver e sentir que temos o outro3 que
está lá, como uma mazela social. Nessa vertente, as ressonâncias
procuram diluir as fronteiras relacionais, os limites entre
humanos, impostos pela sociedade, esta que contribui para que
se esqueçam da gênese humana, dos homens enquanto
indivíduos.
Ao dar de beber aos bêbados, a poesia exerce seu poder
inebriante, entorpecente, algo que altera a consciência. É um
convite a uma nova percepção da realidade que nos cerca e que
nos alimenta. Mergulhados em nossa cegueira social poderíamos
perfeitamente nos perguntar quem é o bêbado, nós os lúcidos
que enxergam uma realidade emoldurada e presumível,
3
É à medida que tenho que responder não só pelo Rosto de outro homem,
mas que, ao lado dele, abordo o terceiro, que surge a necessidade mesma da
atitude teorética. O encontro com Outrem é imediatamente minha
responsabilidade por ele. A responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o
nome grave do que chama amor ao próximo, amor em Eros, caridade, amor
em que o momento ético domina o momento passional, amor sem
concupiscência. Não gosto muito da palavra amor, que está gasta e
u
F
u
u çã
u
É
, “ ã ”
do Rosto, e se aplica ao primeiro que aparece. Se ele fosse meu único
interlocutor, eu só teria tido obrigações! Mas não vivo num mundo onde só
há u “
ch g ”
há
u
u
c
:
bé é
meu outro, meu próximo. (LEVINAS, 2005, p. 143-144)
122
ANAIS - 2013
confortável e conveniente. A sobriedade deveria fazer-nos
enxergar a quem nos rodeia, quem faz parte da nossa vida e,
sobretudo, ter uma visão global do cenário em que estamos
inseridos, mas se a poesia lê o mundo, essa faculdade parece ter
ficado para ela enquanto nos mantemos míopes diante dos
problemas que não estão contidos na dimensão ideológica em
que nos movemos.
Os significados nos apontam que temos uma visão plural
e superficial do mundo, pois já não andamos descalças nos
ônibus nos bares como anda a poesia e não nos despimos dos
dogmas sociais que nos direcionam o olhar, um olhar que não vê
através das portas O “ u í c ”
c
obstáculos que existem entre as pessoas para que não
enxerguem umas às outras, não se deem conta de seu espaço e
de sua capacidade de movência.
A poesia nos aponta essa visão condicionada, descortina
visões inusitadas, leva à reflexão. O saber que vem pela poesia
vem enlevado pela fruição, nos toca por uma percepção
sinestésica, na medida em que ela lê o mundo e inventa outros.
Se a poesia lê o mundo e o mundo somos nós mesmos, estamos,
então, circunscritos nas sete frases, o que não nos garante que
nelas vamos nos encontrar. Se a poesia conta o espelho da
história, ela nos apresenta uma imagem invertida e menor, que é
a propriedade que as superfícies espelhadas possuem, de não se
deixarem atravessar, de refletir, de negar. Ver pelo espelho pode
ser uma oportunidade de reflexão e de autoconhecimento, mas
as imagens espelhadas sempre trazem o risco de projeções
imaginárias e de ilusão:
“ g z çã
u fíc fí c ” é
matéria significante do poema com todos os
seus jogos de figuras e retornos, é o
conjunto dos procediment
“ u
u fíc ” é
qu
á qu
123
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
apreendemos o sentido pleno do texto. Mas
então, será preservado, no nível da memoria
e da sensibilidade, também aquele primeiro
e volteante co-sentido. (BOSI, 1977, p. 28)
A proposta da poesia emmanuelina caracteriza-se,
sobretudo, por perturbar a ordem pública e protestar nas
praças pela paz. Seu perturbador descortinamento de uma
realidade triste, crua e invisibilizada, incomodam posições
sociais e políticas que, reacionárias, vendo na poesia um
eloquente desestabilizador do status quo, preferem que ela mofe
nas gavetas e não venha arranha(r) as paredes. Após se terem
dado a conhecer, no entanto, mesmo mofando nas gavetas, os
simulacros construídos por seus signos já não podem ser
desfeitos; ainda que negados, sua existência ressuma na própria
negação.
A poesia possui, assim, além do álibi de ser ficção, o
escudo e a lança das metáforas: escudo que dissimula e camufla
sentidos, lança e desnuda verdades, recrudesce revoltas,
desvanece quimeras. A poesia emmanuelina trava essa batalha
de atravessar o espelho da história e alcançar, com sua lança, o
âmago da significação: o que se coloca atrás das representações,
onde as imagens já não são invertidas, nem menores, são reais.
Este lugar que Emmanuel atinge é o espaço do indígena na
sociedade, o qual, tal qual o que se tem através dos espelhos,
parece não existir. Mesmo sendo espaço utópico, no entanto, a
poesia o constrói e o sustenta em seus simulacros, que
reverberam sentidos em outras direções, orientando a
c f gu çã
“ u ”
E éu
ég
tessitura poética: atingir lugares insondáveis da significação.
Observe-se o que Bosi aponta:
124
ANAIS - 2013
De qualquer modo, só por metáfora redutora
á qu é “c cu ” u
há
ressonância e retorno. Frases não são linhas.
São complexos de signos verbais que se vão
expandindo e desdobrando, opondo e
relacionando, cada vez mais lastreados de
som-significante. (BOSI, 1977, p. 27)
De estrutura textual totalmente livre, a poesia se elabora
de tal forma que sua composição, embora na superfície pareça
ser simples, quer por um número reduzido de palavras, quer pela
desordenação da forma linear, muito diferentemente de um texto
não poético, é capaz de, em sete frases, construir e conter um
universo de narrativas.
A tessitura poética se apresenta de forma singular, um
arranjo textual único, plurissemântico. O fato de Emanuel
Marinho discutir a situação do indígena em suas poesias faz
ressignificar os sujeitos índios, com todos os seus desejos, seus
quereres, seus prazeres, e o mais importante: os seus
desprazeres, produzindo, assim, um eco das questões sociais,
uma lente aos olhares, um grito de dor que dói. A voz que grita
não é indígena, é a voz do ser social que exclui a vida digna dos
índios, reiterando a ideia de que, de fato, as sete frases são
muito mais que palavras no papel, mais que rimas, mais que
frases é o sangue de índios nas ruas. Nessa ótica, temos que as
palavras, as frases, a poesia não são palavras, não são frases, não
são arranjos poéticos, são ressonâncias mais profundas, sejam
no plano do conteúdo (do significante), sejam no plano da
expressão (do significado).
Com os signos linguísticos, os poetas, por meio do eu
lírico, vão conta(ndo) o espelho da história, trazendo à memória
fatos que queremos esquecer, ou que foram adormecidos por
c
ê c h ó c N
“Í
h
b
125
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
primeiro do segundo do terceiro branco que chegou, se
lembra?” Tem-se uma exortação à memória, uma crítica ao
fechar de olhos para as questões sociaisque estarão eternizadas
nas sete frases(obra) emmanuelinas.
O fato de não haver uma memória instituída a respeito da
dizimação dos povos indígenas da época da colonização, de não
haver um reconhecimento de que os atos praticados contra esses
povos, àquela época, trazem consequências negativas até hoje, é
contradito e denunciado porque, a todo tempo, nos arredores de
nossa cidade, Dourados - Mato Grosso do Sul, estão
acontecen
f
“O
í
”, em
que prevalecem atitudes avassaladoras contra os índios. A
u çã é
í
“
h u”, u j ,
qu
j
c
apontar: há problemas de moradia, de fome, de miséria, de
educação, de saúde, ou seja, dos Direitos e Garantias
Fundamentais4 do cidadão. Realmente se nota o índio indo
sumindo e a sociedade, como um trator, traaaaaaaaindo a
esperança do indígena: se lembra? Esse questionamento é
pertinente porque quer retomar a memória adormecida, não
“Í
h ”, mas de todos, dos brancos e dos
indígenas que sobrevivem bravamente aos maus tratos sofridos
ao longo da história.
4
Conforme o Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil
(CF) A Assembleia Nacional Constituinte esteve reunida para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos. Todos esses Direitos e Garantias Fundamentais
estão preservados no Artigo 5º. da referida Constituição, cujo caput, assim
f
“T
ã gu
,
çã
qu qu
u z ,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
,
gu
” (VADE MECUM SARAIVA, 2010 p. 7).
126
ANAIS - 2013
2.
O lugar do sujeito na poética de Emmanuel Marinho
O trabalho poético é às vezes acusado de
ignorar ou suspender a praxis. Na verdade, é
uma suspensão momentânea e, bem pesadas
as coisas, uma suspensão aparente.
Projetando na consciência do leitor imagens
do mundo e do homem muito mais vivas e
reais do que as forjadas pelas ideologias, o
poema acende o desejo de uma outra
existência, mais livre e mais bela. E
aproximando o sujeito do objeto, e o sujeito
de si mesmo, o poema exerce a alta função
de suprir o intervalo que isola os seres.
Outro alvo não tem na mira a ação mais
enérgica ou mais ousada. A poesia traz, sob
as espécies, da figura e do som, aquela
realidade pela qual ou contra a qual, vale a
pena lutar. (BOSI, 1977, p. 192)
A obra literária(o poema)é uma criação artístico-cultural
que veicula, também, uma realidade social por meio dos signos
linguísticos. Nessa concepção, a poética emmanuelina toma o
curso que aproxima o objeto das coisas e o sujeito de si mesmo,
exerce a função de suprir o intervalo que isola os seres, traz, sob
a forma da figura e do som, a realidade pela qual ou contra a
qual vale a pena lutar, como bem aponta a epígrafe acima. Os
á
“
cí
”, “Í
V h ” “O Í
” ã
c
f
qu c
cu õ
b
espaço e o lugar social que o sujeito indígena ocupa e
desnudam,, com notável eloquência, a realidade de exclusão
social patente dos povos indígenas.
N
,“
cí
”,
-se uma estrutura
de texto dramático, com duas personagens (um menino e um
127
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
adulto), como uma cena teatral, que na verdade reproduz uma
cena do cotidiano da cidade de Dourados:
GENOCÍNDIO
(crianças batem palmas nos portões)
Tem pão velho?
Não, criança
tem o pão que o diabo amassou
tem sangue de índios nas ruas
e quando é noite
a lua geme aflita
por seus filhos mortos
Tem pão velho?
Não, criança
temos comida farta em nossas mesas
abençoada de toalhas de linho, talheres
temos mulheres servis, geladeiras
automóveis, fogão
mas não temos pão.
Tem pão velho?
Não, criança
temos asfalto, água encanada
supermercados, edifícios
temos pátria, pinga, prisões
armas e ofícios
mas não temos pão.
Tem pão velho?
Não, criança
tem sua fome travestida de trapos
nas calçadas
128
ANAIS - 2013
que tragam seus pezinhos
de anjo faminto e frágil
pedindo pão velho pela vida
temos luzes sem almas pelas avenidas
temos índias suicidas
mas não temos pão velho
Tem pão velho?
Não, criança
temos mísseis, satélites
computadores, radares
temos canhões, navios e usinas nucleares
mas não temos pão.
Tem pão velho?
Não, criança
tem o pão que o diabo amassou
tem sangue de índio nas ruas
e quando é noite
a lua geme aflita
por seus filhos mortos.
Tem pão velho?
(MARINHO, 1994)
O texto se apresenta em forma de diálogo em que uma
criança pergunta e um adulto responde. Uma mesma pergunta,
que está repetida por seis vezes no poema, inicia e encerra o
á g : “T
ã
h ?” “
cí
”, í u
,é
um neologismo, uma mistura da palavra genocídio com índio
que realmente designa um paratexto-título.
O aspecto
5
sociológico do significado do termo genocídio, definido como
5
Ge.no.cí.dio sm (geno+cidio) 1. Sociol. Delito contra a humanidade,
definido pela ONU. Consiste no emprego deliberado da força, visando ao
extermínio ou à desintegração de grupos humanos, por motivos raciais,
129
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
o extermínio ou a desintegração de um grupo de humanos
éevocado por uma analogia imediata e direta, ou seja, em
“
cí
ӎ
íg
qu
á
x
e o poema desenha esse extermínio, esse massacre velado. O
jogo entre o ter e o não ter revela claramente a estrutura
fundamental do texto: fartura versus miséria. Na narrativa há
uma luta entre classes sociais: a criança representando a classe
íg
, u j , qu
qu
c
“ ã
h ”,
e o adulto, representando a classe da comunidade não indígena,
c
qu
“c
f
b ç
de toalhas de linho, h
”,
u ,
indígenas, ocasionada pela situação de miséria – “
ã qu
o diabo amassou/ tem sangue de índios nas ruas e quando é noite
u g
f
u f h
” – até a potência bélica
“
í
, satélites computadores, radares/ temos canhões,
u
uc
/
ã
ã ” Tu
qu ã
pode ser dito diretamente, é dito no poema.
A oposição ter/não ter está muito clara entre as duas
classes representadas no poema. Ao mesmo tempo em que diz
“Nã , c
ç , ã
ã ”,
uj
c
u
que tem. O enunciador chega a incluir a própria cena que ele
compõe, qual seja, crianças que batem palmas nos portões e
: “T
ã
h ?” E
ã
c
uí
microuniversos semânticos da narrativa, construindo-se o
“ ã
h ”c
, f z
-se a ausência
de vida na ausência do pão. Assim, encontra-se, no nível
profundo do poema, sua oposição de base, /vida/ versus/ morte/
, a qual se reveste, no nível das estruturas narrativas, pela
indigência e a mendicância indígena.
religiosos ou político, etc. 2. Dir. crime de quem mata o seu próprio pai ou
mãe. (MICHAELIS, 2000, p. 1026)
130
ANAIS - 2013
vida
morte
não-morte
não-vida
O bj
“
ӎ
“ ã
h ”
a ausência do pão – e a consequente negação ao pedido do
indígena - é a própria negação da inserção dos indígenas na
sociedade não indígena. Observa-se que estes não possuem a
vida, embora pareçam ter, porque possuem todos os outros
objetos de valor, mas não possuem o pão, que figurativiza
exatamente a vida (de que ele é alimento) e, metaforicamente, o
alimento do espírito; então o que realmente têm é a morte. Ao
mesmo tempo, no poema, o objeto valor deveria pertencer ao
que tem fartura, mas não pertence, o abastado não comeu do pão
que daria a vida aos menos favorecidos, mas possuem apenas o
pão que o diabo amassou, o pão do Judas, daquele que os
g à
é
,
u
“ ã ”
c
çã
moral da sociedade não –índia teria de oferecê-lo e, assim,
simbolicamente, abrir ao menos uma fresta para o indígena
adentrar a comunidade não indígena. À medida que se nega o
pão, nega-se o espaço ao índio; à medida que se admite não
possuí-lo, declaram-se as limitações das relações interculturais e
da própria sociedade não-índia.
131
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
O segundo poem , “O í
”,
P
,
“ çõ ”
b h qu
seus avanços tecnológicos, trouxe para os índios:
b M g
g
,c
O ÍNDIO E O TRATOR
o índio e o trator
o trato ao índio
o trator indo
e o índio rindo
o índio e o trator
o trato ao índio
o índio indo
sumindo
só indo
e o trator
traaaaaaaa indo (MARINHO, 1994, p....)
No poema, tem-se uma aparência benéfica de início, mas
que engana visto que o que parece beneficiar também o indígena
constitui-se em poderosa arma de aniquilação de sua identidade
e de sua existência. O trator, que num primeiro momento
apresenta-se como um benefício, figurativiza a ação da
c
c
, qu “ g ”
qu
,
relações humanas, torna os sujeitos números, traindo e tragando
o trabalhador sem levar em conta sua depauperação. . As
relações de sobrevivência do indígena com a modernização é
explanada no poema de forma a produzir o efeito de sentido da
traição: o eu lírico vai descrevendo a modernização - como de
fato ocorreu na vida dos trabalhadores na agricultura - que, ao
desenvolver-se, ao afirmar-se como sendo algo inovador e
132
ANAIS - 2013
produtivo, trouxe resultado aparentemente positivo por um lado,
porém aniquilador por outro, porque foi engolindo a mão-deobra da agricultura, obrigando muitos dos trabalhadores rurais a
abandonar a vida do campo, vindo morar na cidade. Destaca-se
“í
u
ó
”
malefício real na atual configuração da pequena produção em
que, antes, contratava-se mão-de-obra dos povos indígenas e,
hoje, resultou em relações capitalistas de trabalho, seja pelo
“
g
á ”
f
c
c
c
,
ch
“b
f ”,
j
g çã
íg
processos mecâ c
g
u
,
“b fíc
” qu
z u
qu
uçã g íc
E
processo de industrialização acelerada da agricultura motivou a
expansão de terras destinadas a esse fim. O processo de
extensão de terras acabou por engolir as pequenas produções
agrícolas e não garantiu mais emprego, justamente por conta da
mecanização do trabalho no campo, cujo objetivo capitalista
visava a investimentos financeiros em maquinário e produções
em grande escala, com menor quantidade de trabalhadores.
Esse cenário subjaz ao poema que tem claramente as
duas oposições: a aparência (trato ao índio e o índio rindo)
versus essência (trato ao índio e o índio sumindo). O mundo
rural modificado pelo desenvolvimento mecânico, pelas novas
tecnologias, pelo avanço da engenharia genética, da
biotecnologia , esqueceu-se que homem vivia no campo. Com
relação aos indígenas, a invasão foi de traição propriamente dita:
, adentraram suas terras de uma forma devastadora, substituíram
o indígena que capinava a braquiária pelo uso de máquinas.
Todo esse cenário da agroindustrialização propiciou uma grande
transformação na interação social entre trabalho, pessoas e
culturas; as pessoas que trabalhavam no campo migravam para
133
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
as cidades, mas quanto ao índio, ele ia sumindo, sendo traído,
tragado pelo trator.
Já
c
,
u
“Í
V h ”, c
no livro Cantos da terra (1981), segue na mesma linha de
apontamento da destruição de um povo, de uma cultura, mas que
pode ser retomada pela memória, fazendo uma comparação
,
c
é “Í
h ,
b ”,
ã
f gu
uh
íg ,
u
,“ u c
h
”
u
que ficou guardado na memória:
ÍNDIA VELHA
Índia velha
se lembra do cheiro verde
na fonte limpa
onde se matava a sede
água boa de beber
Índia velha
se lembra
do primeiro
do segundo
do terceiro branco
que chegou
se lembra?
Se lembra
Quando tu andavas nua
olha a cor de teu vestido encardido
Quando andas pela rua
Se lembra
se lembra de teus colares
teus amores a lua cheia
134
ANAIS - 2013
lençóis de flores na aldeia
se lembra?
Índia Velha
se lembra
dos pés pisando no mato
olha a cor de teus sapatos
pisando asfalto e areia
Índia Velha
Se lembra
tantos brancos que chegaram tantos
Que até perdestes as contas
e as contas de teus colares (MARINHO,
1981)
aqui não está faltando pedaço do poema¿
Um jogo temporal entre um presente e um passado,
ainda que seja uma situação aparentemente natural, sempre
oferece uma lacuna, um intervalo, como se fatos fossem
suprimidos com o tempo. O que realmente subjaz aos fatos são
os sentimentos, às vezes nostálgicos, principal razão de
existência, nos povos indígenas, de uma forte sensação de perda
e de, ao mesmo tempo, de necessidade de preservação. Essa
oscilação de sensações é de ordem tímica, é um intervalo que
não é físico, é sentimental. A marca deste sentimento é
sufocante por conta do sentimento de perda que daquilo que era
bom, por isso mesmo, nostálgico.
E
“Í
V h ” há u
uê c
,
constatada no presente, sendo, então, mais que uma condição de
, qu
u í c
z
c
“Í
V h ” O
“j g ”
b
-se na existência de uma vida passada
melhor, mais feliz em relação que se tem no presente, mas que
matem laços que a ligam à vida do tempo passado, assim vai
resignando a existência de ambas.
135
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A relação entre o passado (o vivido, que se apresenta, no
presente, como condição de virtualidade) e o presente (a vida)
configura-se, semioticamente, como uma eterna busca por algo
que nunca virá a ser (por isso, virtualizada), ou seja, o
sentimento de perda sobrevive ao próprio objeto de desejo de
uma vida feliz. Sob esse aspecto, a comunidade indígena ou a
mulher indígena sofre a dor da perda, mas também tenta
recuperar sua origem perdida através de seu deslocamento como
observadora. Neste estado conjuntivo temos a seguinte
distribuição:
Conjunção
vida digna/ no passado
não-disjunção
não memória
disjunção
memória
não-conjunção
não vida digna/no presente
Trazer à memória a vida digna dos indígenas é veicularse por meio dos programas narrativos em e que vai enumerando,
a cada momento, cada item que estaria guardado na memória da
g “Í
V h ”
O narrador-questionador apresenta olhar nostálgico e
reflexivo no presente, capta o sentido de ambos os tempos,
tornando-os descentralizados, e vai preenchendo o espaço vazio
da perda, conferindo- h
gu
quíc
: “ h
c
u
c
/Qu
u ”
Emmanuel recorre à expressividade pela palavra, recriando o
“Í
V h ,
b ”, como se a história
em si não contasse os fatos, mas os vivenciasse. Não foi preciso
se ter vivenciado, ter-se vivido aquela época (como a índia que
136
ANAIS - 2013
está velha) para recordar6 o que está adormecido. A recorrência,
a própria expressividade recria o tempo passado, preenchendo a
lacuna, o intervalo, relatando as perdas sofridas pelas condições
sociais que lhes foram impostas com a chegada dos outros, dos
brancos.
O passado, agora recordado, expressa um penoso
conflito: trazer à lembrança é como abrir portas de um passado
presente e que se ausenta. O poema manifesta uma luta temporal
em que o eu lírico é incitado a pronunciar-se frente a sua
c
çã
qu c
u “fug ”,
-se um desafio ao
tempo cronológico que, na condição humana, tem o papel
constatador de perdas e de esquecimento daquilo que é meritório
e benéfico. Destaque-se que, na construção do sentido do
poema, o esquecimento vai sendo desarticulado por meio das
qu
,à
ó ,
u
:“
b ” Há
clara intenção de dar ritmo às lembranças através de uma
linguagem que manifesta o desejo de recuperação do
tempo/fatos ausentes, que modificam o tempo presente. São, por
isso, produtos de sentidos que remetem explicitamente à árdua
tarefa de recuperar um passado não retornável, além de
mostrarem seu objetivo de perturbação do tempo presente
desconstituinte.
Em todo o poema está tecida uma densa relação entre
presente e passado (Índia Velha/Se lembra/tantos brancos que
chegaram tantos/Que até perdestes as contas/ e as contas de teus
colares/) a índia que é velha, que se esqueceu do passado, que
não lhes restou lembranças, apenas uma cegueira memorialística
qu
c
“
b ”,
fragmento os fatos e desfragmentando o esquecimento, junta-se
6
Re (cor)dar a natureza é, etmologicamente, repô-la no coração do homem,
socializando-a no mesmo passo em que o homem se naturaliza. (BOSI,
1977, p.155)
137
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
u
cu
é c :
çã
“
b ”u
maneira de dar consciência à memoria de recordar o já perdido,
aproximando o passado e o presente, trazendo o ausente para
presente, paralelamente. Nessa busca incessante, de relembrar,
de concretizar o passado, vai também constatando a afirmação
de que a memória é frágil, que se deteriora com o passar dos
tempos em que presentificar o passado é garantir o direito à vida
digna do indígena na atualidade.
Considerações finais
A poética emanuelina, sem dúvida, em toda sua
estrutura, em todo o seu sentido, é um trabalho artístico-cultural
merecedor de análise. Quando se trata de poemas voltados às
temáticas sociais, o berço é a grande região de Dourados, Mato
Grosso do Sul, a cidade de muitos povos de culturas diversas:
seus habitantes nativos, culturas brasileiras paulista, sulista,
mineira, nordestina, e de países europeus (como Itália e
Portugal) e orientais (como Síria, Líbano e Japão) com ressalvas
à cultura do país vizinho, o Paraguai.
O sujeito social, no caso específico, o indígena na
poética de Emmanuel está inserido neste contexto de diversas
etnias, pensamentos, conhecimentos, costumes e sabores, cuja
convivência se estabelece por meio de uma inter-relação
cultural. Esse sujeito representado no texto poético, é alocado
nas reservas indígenas de Dourados, sendo obrigado a inserirse, interagindo com a comunidade não indígena, como bem
descreve o poeta douradense Emmanuel Marinho em seus
qu
ã
qu c
“I
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f gu z çã cu u
“Í
”
c
“
cí
”
138
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143
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A trajetória da leitura: curiosidades e funções sociais
Graciela Fatima GRANETTO1
Ana Aparecida Arguelho de SOUZA2
RESUMO: Leitura intensa ou extensa, profana ou angelical, forma de
depravação ou de se alcançar conhecimento, requisito para se casar ou
meio de se malfadar, para curar ou acusada de ofuscar. Como parte da
pesquisa desenvolvida no Programa de Mestrado em Letras da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, este trabalho propõe a
apresentação da trajetória da leitura, de sua origem aos vários
momentos de sua história, chegando aos dias atuais, numa verdadeira
viagem mundo afora. Por meio de concepções e, até mesmo das
perspectivas apresentadas, é possível compreender o declínio de
práticas de leitura em alguns momentos e lugares, a sua retomada em
outros, bem como elaborarmos uma hipótese de como o conceito de
leitura ainda poderá ser alterado. Nesse aspecto, faz-se importante
compreender a história da leitura a fim de reconhecer as nossas
possibilidades de atuação, como promotores, sujeitos ativos dessa
mesma trajetória.
PALAVRAS-CHAVE: História da leitura; Função social da leitura;
Hipersentido.
Introdução
A leitura começa a ser elaborada por volta de 5.700 anos atrás,
na Mesopotâmia. Desde então, ela passou a compor e a se constituir
como uma prática cada vez mais necessária, considerando as
transformações que a sociedade sofria a cada período.
Entre o repúdio à sua supervalorização, muitos fatos
construíram e continuam a construir sua trajetória. Este trabalho tem o
1
Mestranda - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS –
[email protected]
2
Prof.ª Dr ª. - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS –
[email protected]
144
ANAIS - 2013
objetivo de analisar a leitura, considerando trechos de sua história e
alguns fatos curiosos que a compõe, além de reconhecer novas
possibilidades de atuação tendo em vista as novas perspectivas nas
quais ela se insere, principalmente por meio das transformações
tecnológicas.
A cultura e a língua mudam porque elas
sobrevivem num mundo que muda: o
sentido de um verso, de uma máxima, ou de
uma obra muda pelo simples fato de que
mudou o universo das máximas, dos versos
ou das obras simultaneamente propostos
àqueles que o aprendem, o que se pode
chamar de copossíveis. (Bourdieu, apud
GERALDI, 2010, p. 112)
Corroborando com as palavras de Bourdieu, é
interessante observar que como a cultura, a língua, até mesmo o
suporte material de todo o objeto de leitura muda de acordo com
as necessidades criadas a partir das transformações sociais.
As tabuletas de argila cabiam na palma da
mão. As folhas de papiro podiam ser unidas
formando rolos portáteis. Ambos os
materiais atenderam às necessidades dos
leitores durante milhares de anos – quase
perfeitamente ajustados, de fato, às
respectivas exigências da sociedade.
(FISCHER, 2006, p.76).
Do mesmo modo, o conceito de leitura também sofreu
grandes modificações, já que, ao longo da história, teve
145
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
significados diferentes para vários povos: reconhecimento de
códigos, declamação, capacidade de extrair sentido de símbolos,
bem como a compreensão de seu significado, entre outros.
Essa definição continua a se expandir. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais, por exemplo, postulam que a leitura
[...] é um processo no qual o leitor realiza
um trabalho ativo e construção do
significado do texto, a partir de seus
objetivos, do seu conhecimento sobre o
assunto [...] não se trata simplesmente de
extrair
informações
da
escrita,
decodificando-a letra por letra, palavra por
palavra. Trata-se de uma atividade que
implica, necessariamente, compreensão.
(BRASIL, 1998, p. 41)
1. A trajetória da leitura: trechos de sua história e alguns fatos
curiosos
Das tabuletas de argila, do couro, do papiro e do
pergaminho, na antiguidade, às telas digitais, a trajetória da
leitura foi marcada por diversos fatos curiosos dignos de serem
recontados.
Sabemos, por exemplo, que na Antiguidade Clássica,
poucas eram as pessoas que aprendiam ler e escrever.
A escrita e a leitura estavam relacionadas, basicamente,
aos registros administrativos, ligados exclusivamente ao
trabalho, desse modo, as pessoas que desenvolviam essas
habilidades tornavam-se profissionais dessa atividade. Esses
eram chamados de escribas, únicos leitores e escritores oficiais.
146
ANAIS - 2013
Pouquíssimos na Mesopotâmia podiam
alcançar essa aptidão. Por volta de 2000
a.C., em Ur, a maior metrópole da região
com uma população de aproximadamente 12
mil pessoas apenas uma pequena parcela –
talvez uma em cada cem ou cerca de 120
pessoas, no máximo – era capaz de ler e
escrever. (FISCHER, 2006, p.17).
Profissão promissora, mas que dependia de longos anos
de dedicação. Para se tornar um escriba, a criança tinha de
frequentar a escola de formação de escribas dos seis aos dezoito
anos, “desde o início do período matutino até o final do
vespertino durante 24 dias de cada trinta” (FISCHER, 2006, p.20).
Como mencionado anteriormente, o número de
alfabetizados era mínimo, uma cidade com cerca de dez mil
habitantes tinha 185 escribas aproximadamente, dos quais
apenas dez eram mulheres. Esse dado chama atenção, pois
embora o número de mulheres fosse inexpressivo, comparado
aos escribas do sexo masculino, foi uma mulher, Enheduanna, a
primeira pessoa a assinar a autoria de um trabalho escrito: uma
série de canções em louvor à deusa do amor e da guerra.
Nesse mesmo período (2500-2350 a.C.), no Egito,
iniciou-se o uso do papiro em detrimento das tabuletas de argila,
o que facilitava muitíssimo a leitura e o que possibilitou,
provavelmente, a escrita do livro mais antigo do mundo: o Pruss
Papyrus. Antes disso, poucos trabalhos mais extensos foram
escritos.
O papiro – planta que crescia em abundância às margens
do rio Nilo – se transformava, então, em mercadoria de extrema
importância, e em consequência, a leitura era difundida e os
livros comercializados amplamente. “[...] os livros estavam
entre as posses mais estimadas de gregos e romanos instruídos,
147
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
sendo objetos de uma paixão outrora dedicada apenas à família,
ao cônjuge ou aos amantes. Para muitos, os livros eram ainda
mais estimados” (FISCHER, 2006, p.46).
Para os judeus, a leitura também tinha grande
importância na Antiguidade, mas por motivos comerciais; por
essa razão, muitos deles escreviam e liam em grego, embora
fossem analfabetos em hebraico e aramaico, línguas nas quais
estavam escritos os textos sagrados, por isso, o trabalho dos
escribas do templo ainda era bastante valorizado. Na maioria
dos lugares, nos séculos VII e VIII, por exemplo, o assassinato
de um escriba tinha a mesma repercussão que o assassinato de
um bispo, inclusive cabia a mesma punição.
Em Roma, as livrarias já se faziam populares. Os
vendedores expunham cartazes divulgando as obras, excertos de
textos eram distribuídos gratuitamente para despertar o interesse
dos leitores, que aumentavam de quantidade visivelmente.
Enquanto isso, equipes de escravos eram mantidas para copiar
livros em grego e latim.
No Império Romano, assim como na Grécia, outra forma
de divulgação das novas obras expandia-se com intensa
profusão: eram as leituras públicas, que serviam não apenas de
entretenimento, mas principalmente como um pré-lançamento,
momento em que os futuros leitores podiam, inclusive, fazer
interferências na obra.
Os autores apresentavam seus versos,
histórias e lendas mais recentes, e seus
amigos literatos, companheiros eruditos ou
poetas, bem como sua família, mecenas e o
público em geral participavam gritando em
sinal de aprovação, batendo palmas em
intervalos regulares e levantando-se e
aclamando em passagens particularmente
148
ANAIS - 2013
excitantes. Essa reação do público não era
apenas um gesto respeitoso em relação a um
membro da família ou colega; era, na
verdade, parte da etiqueta tradicional, um
protocolo a ser seguido. (Na realidade, a
ausência manifesta de qualquer parte
poderia ser tomada como grave ofensa.)
Todos os bons escritores esperavam críticas
construtivas em uma leitura pública. Após
escutarem essas críticas, refinavam então
sua obra para que esta se adequasse ao gosto
do público. Esperava-se que o público
chegasse pontualmente e permanecesse no
local durante toda a leitura. (FISCHER,
2006, p.67-68)
Apenas no final da Antiguidade é que a leitura se torna
mais silenciosa e introspectiva, antes disso, ler era sinônimo de
declamar, não se concebia a leitura se não fosse para a prática da
oralidade. A partir daí, mostra-se mais voltada para o indivíduo,
para sua procura e busca interna. “Assim como os gregos e
romanos antigos experimentaram a ‘fala do papiro’, que
transformou a leitura em uma popular ferramenta oral para o
acesso à informação, seus descendentes conheceriam a ‘visão do
pergaminho’, que divulgou a própria fé em um solitário
silêncio” (FISCHER, 2006, p.89).
Isso não quer dizer que, nesse momento, houvesse uma
ruptura da oralidade para a leitura individual. A leitura
particular, até o século XIV, jamais foi uma constante. O que
ocorreu, na verdade, foi a legitimação dessa prática.
A mudança que ocorreu na prática da leitura deu-se de
forma lenta e gradativa, mas visível. Já no começo do século IX
era possível perceber que essa nova prática estava mudando a
rotina nos scriptoria, locais onde os copistas trabalhavam, de
149
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
um local extremamente barulhento, afinal todos os copistas liam
em voz alta os textos que copiavam; para um lugar silencioso, já
que a oralidade, a partir dessa transição, começou a perder
espaço para a leitura silenciosa.
Com isso, modificava-se também a relação dos leitores
com a leitura, antes pública, agora privada; e até mesmo a
escolha de temas que despertavam interesse começava a ser
respeitada, já que essa prática agora se tornava individual e
silenciosa.
Os livros passavam a ser cada vez mais valorizados.
Tanto que os agiotas da época, ao emprestar dinheiro, recebiam
obras literárias como garantia. No século XV, as feiras mais
importantes passavam a comercializar livros, tornando esse, um
negócio altamente lucrativo. Como ainda era artigo raro, a posse
de um livro era comparada a bens como cavalos ou gado, por
isso, seu roubo muitas vezes era punido até mesmo com a pena
de morte.
A representação social do leitor também era
valorizadíssima, a ponto de pessoas comprarem encadernações
vazias para serem consideradas leitoras. A representação do
leitor era mais importante que a própria ação da leitura.
Na Rússia, durante o reinado da alemã
Catarina, a Grande (no poder entre 17621796), Herr Klosterman enriqueceu
vendendo
metros
de
encadernações
enganosas. Eram capas vazias recheadas
com jornal imitando volumes autênticos.
Esses “livros” vazios preenchiam as paredes
das casas dos cortesãos que desejavam
impressionar a imperatriz bibliófila. De
certa forma, isso era um sintoma do
desconforto em relação à leitura no país,
150
ANAIS - 2013
nessa época em que ser visto como um leitor
era, muitas vezes, mais importante que de
fato ler. (FISCHER, 2006, p.248)
Embora muito valorizado, o ato de ler era extremamente
penoso. Basta imaginar as letras miúdas escritas no pergaminho
sendo lidas à luz de velas, lampiões ou tochas.
Parte das dificuldades acabou quando, em 1450, foi
impressa a primeira página com tipo móvel de metal, e o
pergaminho – feito da pele de cabra ou de carneiro – deixava o
palco para a entrada triunfante do papel, que tinha sido
desenvolvido na China muito antes, por volta de 100 d.C., e com
a prensa, tornou-se essencial.
E tudo começou com Gutenberg em Mainz.
A inovação causou um impacto muito mais
imediato do que, em geral, se imagina. Em
1450, apenas uma prensa estava em
operação em toda a Europa. Em 1500, cerca
de 1700 prensas em mais de 250 centros de
impressão já haviam publicado por volta de
27 mil títulos em mais de dez milhões de
cópias. Em apenas duas gerações, o número
de leitores na Europa passou de dezenas de
milhares para centenas de milhares. Nos
últimos quinhentos anos, nada contribuiu
mais para o avanço da sociedade que a
invenção da imprensa. (FISCHER, 2006,
p.190).
Com relação à iluminação adequada para os leitores
noturnos, foi apenas no século XIX que houve progressos no
sistema. De qualquer forma, o livro impresso foi, por algum
tempo, objeto de profunda adoração. Beijava-se o livro antes de
151
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
iniciar a leitura, mais que isso, vestia-se roupa de gala para tal
ato. No entanto, aos poucos as atitudes dos leitores foram
mudando, afinal os livros não tinham mais o toque pessoal do
autor ou do copista, a relação do leitor para com o livro foi, da
mesma forma, tornando-se impessoal, porém altamente rentável.
O século que havia começado com editores
de grande potencial intelectual, os quais
aproveitavam a contribuição de célebres
eruditos e contavam com seu apoio em
projetos, terminou com livreiros-editores
priorizando objetos comerciais, já não se
preocupando em favorecer o mundo das
letras, mas apenas buscando publicar livros
cuja venda fosse garantida. Os mais ricos
fizeram fortuna com livros cujo mercado era
garantido, reedições de antigos best-sellers,
obras
religiosas
tradicionais
[...].
(FISCHER, 2006, p.190)
No final do século XVII, além da representação do livro
estar sofrendo alterações, o próprio conceito acerca da principal
função da leitura se modificava: da concentração (leitura
intensa) para o acesso a mais informações (leitura extensa).
Críticas a essa mudança eram comuns, pois a leitura intensa
abria caminho para um tipo de leitura que se preocupava com a
quantidade, a extensão, o aumento do número de informações
repassadas aos leitores, que também se multiplicavam.
Uma boa forma para comprovarmos o aumento
considerável do número de alfabetizados era comparar ao
número de certidões de casamento, já que em alguns reinos, a
Suécia, por exemplo, os iletrados sofriam punições severas,
além de não participar da comunhão, a ponto de se sentirem
152
ANAIS - 2013
totalmente excluídos, também eram proibidos de se casarem.
Por isso, o aumento do número de certidões atesta o aumento
das pessoas alfabetizadas.
No entanto, se os alfabetizados aumentavam em número,
as mulheres, principalmente depois das núpcias, tinham de
deixar de lado a paixão pelos livros. Ler na cama era
considerado depravação, para as mulheres a única maneira de
tomar conhecimento pelo que estava sendo lido era a
possibilidade do marido fazer a leitura. Elas podiam tão somente
ouvir a leitura, desde que essa fosse feita pelo marido.
Claro que existiam algumas exceções, Fischer (2006)
nos conta que Diderot, por exemplo, descreveu detalhadamente
como tentou curar a beatice literária de sua esposa, inicialmente,
lendo obras diversas para ela ouvir, já que ela havia afirmado
que só tocaria em livros religiosos.
Com o passar do tempo, essa literatura religiosa começa
a declinar, por causa do Iluminismo. A emancipação do
c hu
f z
í
“ écu
” N
entanto, algo estava por desestabilizar a crescente construção
dessa sociedade letrada: o século do livro era também o século
das revoluções. E com elas, um número enorme de iletrados saía
do campo para as fábricas. Desse modo, a alfabetização teve de
ser disseminada em uma escala ainda maior. Chegou ao ponto
da leitura receber críticas mordazes no que se refere a se
constituir como um entretenimento individualizado, em
detrimento das longas conversas que antes existiam. Crítica que
a televisão sofreu desde 1970 (período de sua inserção nos lares
do nosso país) e que, da mesma forma, a internet sofre
atualmente.
O tempo transcorria, mas as leituras públicas ainda
permaneciam como prática de entretenimento, de busca de
153
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
informação e de conhecimento, além das praças e salões, as
leituras públicas também ganhavam o chão das fábricas. É o
caso ocorrido com os imigrantes cubanos.
Surgiram também outros tipos de leitura
pública. O costume monástico do lector ou
clérigo leitor das Escrituras na igreja foi
restabelecido nas fábricas cubanas de
charutos, em 1865, por exemplo, sendo mais
tarde proibido pelo governo por ser
considerado subversivo. Os imigrantes
cubanos levaram esse costume para Key
West, Nova Orleans e Nova York,
praticando-o nessas cidades de 1869 até a
década de 1920: de manhã até a noite,
enquanto estivessem trabalhando, escutavam
a leitura de histórias, romances, jornais,
poesias, ensaios políticos e muitos outros
textos. Não se sabe se isso incentivou os
trabalhadores analfabetos a aprender a ler,
mas a leitura em grupo transformou as horas
que de outra forma seriam de puro tédio em
oportunidades de obter instrução e até
inspiração: com as mãos ocupadas, a mente
estava livre para aprender e se desenvolver.
Operários das fábricas de cigarros com
muitos anos de casa eram capazes até de
recitar obras completas de cor. (FISCHER,
2006, p.190)
Com a população letrada crescendo e essa compondo o
segmento dos trabalhadores, os livros se tornaram ainda mais
154
ANAIS - 2013
populares. Dessa forma, atendia-se essa parcela da sociedade
que compunha o novo público-alvo do mercado editorial.
Consequentemente, essa indústria do livro aprimorava-se cada
vez mais, tanto na produção em maior escala, quanto nos preços
ainda mais baixos.
Se por um lado esse mercado se desenvolvia por causa
dos novos leitores, por outro, esse desenvolvimento colaborava
para que outras pessoas se tornassem letradas. É certo que a
capacidade de ler também torna a pessoa mais capaz em outros
aspectos e isso, de certa forma como hoje, incomodava a classe
que detinha o domínio político. Por essa razão, tantas bibliotecas
foram queimadas, destruídas, saqueadas.
O principal foco da censura do século XX
estava nos textos de cunho político. A
queima de mais de vinte mil livros em
Berlim [...] enquanto os telejornais
registravam o acontecimento, a fogueira
engolia obras de Bertolt Brecht, Thomas
Mann, Albert Einstein, Karl Marx, Sigmund
Freud, Émile Zola, Marcel Proust, H.G.
Wells, Upton Sinclair, Ernest Hemingway,
entre centenas de outros. Depois de 12 anos,
a maior parte da Alemanha estava em
ruínas, ao passo que esses autores
conquistavam muito mais leitores alemães
que em qualquer outra época. (FISCHER,
2006, p.190)
As bibliotecas se reerguiam na Alemanha, mas a censura
relacionada com a escolha dos textos que podiam ou não ser
lidos permaneceu por muito tempo, afinal, a ideia era a de que a
155
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
restrição da leitura ou a destruição literal dos livros dariam
maior estabilidade ao poder político. Mesmo com essas
restrições, nos países desenvolvidos, no final do século XX, o
analfabetismo era combatido veementemente, Fischer trata do
analfabetismo nesse período como um exílio interno, algo mais
grave que uma deficiência física.
Passado o tempo, atualmente não são apenas os índices
de analfabetismo que preocupam, mas em que nível pode-se
considerar uma pessoa realmente alfabetizada. Daí emerge uma
das questões recorrentes a respeito dos problemas educacionais,
especificamente no Brasil: a precária condição da leitura do
aluno brasileiro. Nesse sentido, faz-se importante uma análise
sobre as funções sociais do ato de ler e as perspectivas que
podem ser consideradas.
2. A trajetória da leitura: funções sociais e o leitor
Faz-se importante retomarmos o caráter evangelizador
da leitura, principalmente em se tratando de Idade Média,
período no qual a igreja era o centro da cultura letrada. No início
dessa prática, era ela que se prestava a alfabetizar àqueles que
desejavam seguir carreira religiosa. Provavelmente por isso,
passou a monopolizar e censurar toda e qualquer produção
escrita.
Ironicamente, mas não ingenuamente, a Igreja
organizava campanhas de alfabetização. Já que negar a cultura
letrada era impossível, o objetivo era utilizar essa prática a favor
de sua ideologia, tolhendo, de certa forma, a população de
estudar textos religiosos por conta própria.
Quando, no final do século XVII, a leitura intensa, que
exigia essencialmente grande concentração, deixava de ser
privilegiada, visando uma quantidade maior de informações, na
156
ANAIS - 2013
verdade, era para atender uma necessidade da sociedade. Afinal,
de puro deleite e entretenimento, o ato de ler diminuía a grande
responsabilidade que, até então, a memória humana detinha, ou
seja, a de armazenar informações. Essa função, a leitura
abarcou, pelo menos inicialmente.
Além da diferença de competências, existem
outras que provêm do próprio estilo da
leitura e engendram as relações mais
contrastadas entre o leitor e o objeto lido. A
hipótese fundamental, construída a partir das
situações da Alemanha na segunda metade
do Século XVIII e da Nova Inglaterra na
primeira metade do século XIX, constata a
passagem de uma leitura dita intensiva a
uma outra, dita extensiva. [...] Inicialmente,
o leitor é aí confrontado com um número
reduzido de livros (a Bíblia, as obras de
piedade, o almanaque), que perpetuam os
mesmos textos ou as mesmas formas, que
fornecem às gerações sucessivas referências
idênticas. Por outro lado, a leitura pessoal
encontra-se situado em uma rede de práticas
culturais apoiada sobre o livro: a escuta de
textos lidos e relidos em voz, na família ou
na igreja; a memorização desses textos
ouvidos, mais reconhecidos do que lidos,
sua recitação para si ou para outros.
(CHARTIER, 2001, p.86)
O número de informações aumentou podendo ser
comparado ao progressivo aumento de materiais impressos. A
interação existente, até então, era do leitor com a escrita, com o
texto impresso que, de certa forma, era interpretado sem que
157
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
outras relações fossem observadas, o que para Chartier é
impossível.
Contra a representação (...) segundo a qual o
texto existe em si mesmo, separado de
qualquer materialidade, devemos lembrar
que não existe texto fora do suporte que
permite sua leitura (ou da escuta), fora da
circunstância na qual é lido (ou ouvido). Os
autores não escrevem livro: escrevem textos
que se tornam objetos escritos –
manuscritos, gravados, impressos e, hoje,
informatizados – manejados de diferentes
formas por leitores de carne e osso cujas
maneiras de ler variam de acordo com as
épocas, os lugares e os ambientes.
(CAVALLO, CHARTIER, 2002: 09)
Uma nova maneira de ler vai se impor, então: a leitura de
numerosos textos, lidos em uma relação de intimidade,
silenciosa e individualmente. Ela é, também, leitura laica,
porque as ocasiões de ler se tornam independentes das
celebrações religiosas, já que a igreja nesse momento começa a
enfraquecer-se em detrimento do desenvolvimento e
fortalecimento do comércio. Desse modo, também a leitura
começa a se expandir e ganhar outra roupagem, instrumento de
conscientização e conhecimento ao invés de instrumento de
evangelização.
Em pouco tempo o público leitor já não lia o que era
indicado pelas instituições religiosas e autoridades, mas o que
era de seu interesse, seja emocional, profissional, enfim, ler
passava a ser uma escolha pessoal.
158
ANAIS - 2013
As mudanças não param nesse aspecto da escolha do que
realmente se tem interesse em ler. Como dissemos
anteriormente, novos suportes modificam as práticas de leitura e
escrita de uma sociedade. Em se tratando de leitor, podemos
observar um distanciamento entre ele e o texto, já que passa a
ter menos contato físico com o que lê. O leitor do material
impresso manuseia as páginas, coloca o livro no colo, lê na
cama, leva-o a vários lugares.
Os gestos mudam segundo os tempos e
lugares, os objetos lidos e as razões de ler.
Novas atitudes são inventadas, outras se
extinguem. Do rolo antigo ao códex
medieval, do livro impresso ao texto
eletrônico, várias rupturas maiores dividem
a longa história das maneiras de ler. Elas
colocam em jogo a relação entre o corpo e o
livro, os possíveis usos da escrita e as
categorias intelectuais que asseguram sua
compreensão. (CHARTIER, 1998: 77)
Quanto à compreensão, Eco (2002) afirma que a
elaboração de um texto pressupõe a previsão das estratégias e o
movimento interpretativo do leitor.
Ao produzir um texto, o autor faz uma hipótese sobre
como este será lido, como o leitor percorrerá cada linha e então,
prevê como será esse leitor, que o autor denomina leitor
modelo. Considerando essa previsão, estratégias são tomadas.
Para organizá-las, o autor "deve assumir que o conjunto de
competências a que se refere é o mesmo de seu leitor" (p. 58).
Umberto Eco ressalta que não se trata de esperar que
esse leitor realmente exista, mas desenvolver o texto de forma a
construí- ,
,
b z
u
c
ã
“O
significado, no entanto, constrói-se pelo esforço de interpretação
159
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
do leitor, a partir não só do que está escrito, mas do
c h c
qu
z
x ” (BR IL, 1998,
44)
Desse modo, a ideia do leitor modelo parte do público-alvo que
o autor pensa alcançar.
Voltando a questão corporal no que tange à leitura, Manguel
(1997: 180) enfatiza o caráter intimista do ato de ler na cama, uma
atividade autocentrada, invisível ao mundo, que traz, mais do que
, “u qu
c
c
”
3. A trajetória da leitura: perspectivas
Parece-nos que estamos caminhando cada vez mais por esses
campos privados, de que falava Manguel, principalmente quando
pensamos na leitura junto aos suportes mais atuais, que favorecem ao
, qu “c
c
-se de toda forma de
ç c u á ” ( H RTIER,1998:144).
Em contrapartida, o texto pode assumir uma postura
coletiva nunca vista anteriormente. Afinal, as mídias digitais
possibilitam essa participação do leitor que pode intervir no
c
x ,
qu
u
“
u ,
manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais
numerosos e mais livres do que qualquer uma das formas
g
” ( H RTIER, 1998: 88)
Na verdade, é importante destacar que não é só a
interação dos sujeitos no ato de leitura (autor, texto, leitor) que
sofre modificações ao analisarmos a leitura do texto digital.
Outros aspectos como a pluralidade de representações que
permite integrar texto, imagem e som no mesmo suporte, o
chamamos de hipersentido; ou ainda, o fato do leitor poder
reunir textos que tratam do mesmo tema ou do mesmo campo de
interesse, num vai e volta contínuo (hipertexto); a barra de
rolagem do texto na tela, que lembra os rolos da Antiguidade
160
ANAIS - 2013
apesar daquele ser horizontal e atualmente ter a sequência
vertical.
Podemos inferir, nessa feita, o caráter subjetivo que essa
u
f
f
L
B ff, “c
u ê
com os olhos que tem. E interpreta onde os pés pisam. Todo
ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender o que
alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua
visão de mundo. Isto faz da leitura sempre um releitura. [...]
Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co- u ” (BOFF,
1997).
A diferença, imediatamente visível, no livro
impresso, entre a escrita e a leitura, entre o
autor do texto e o leitor do livro, desaparece
em proveito de uma realidade diferente: o
leitor diante da tela torna-se um dos atores
de uma escrita a várias mãos ou, pelo
menos, encontra-se tem posição de
constituir um texto novo a partir de
fragmentos
livremente
recortados
e
reunidos. (CAVALLO; CHARTIER, 1998,
p.31).
Todos os envolvidos no ato de ler, de certa forma, estão
vivenciando uma prática nova de leitura. Desse modo, essas
mudanças fazem com que Chartier considere que estamos
vivendo uma verdadeira rev uçã
c : “( )
revolução, fundada sobre a ruptura da continuidade e sobre a
necessidade de aprendizagens radicalmente novas, e, portanto,
um distanciamento com relação aos hábitos, tem muito poucos
precedentes tão violentos na longa históri
cu u
c ”
(CHARTIER, 1998: 93)
161
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Algumas mudanças já são palpáveis, confirmando a
revolução defendida por Chartier, como a leitura de jornais
impressos que migrou fortemente para a Internet causando até o
fechamento de jornais aqui no Brasil, bem como em várias
partes do planeta. O livro impresso e, em especial o livro de
literatura, ainda convive muito bem com os dois formatos:
impresso e digital.
Constata-se, assim, a leitura como um processo de interação
entre leitor e texto, promovendo-se a atitude ativa do sujeito diante
daquilo que lê, o que possibilita a formação e o desenvolvimento do
leitor competente.
Esse leitor é quem constrói o significado de um texto,
por meio de seu conhecimento linguístico-textual e de mundo,
seja no suporte impresso ou hipertextual. Coloco-os lado a lado
– impresso e hipertextual – intencionalmente, afinal, o
hipertexto nada mais é que é um novo formato de texto, e como
todo texto, exige envolvimento, conhecimento da
intencionalidade discursiva do autor, objetivos do leitor,
familiaridade com o gênero, conhecimento do suporte, do tema
e, sem dúvida, motivação.
Dessa maneira, a concepção de interação que a leitura
implica é outra, afinal, um texto não existe em si mesmo, como
os estruturalistas acreditavam: texto pressupõe interação.
Nesse momento, cabe a seguinte ponderação de Orlandi
“[ ]
ã
g c
x ( çã uj
/ bj ),
mas com outro (s) sujeito (s) (leitor virtual, auto, etc.). [...] Ficar
na objetividade do texto, no entanto é fixar-se na mediação,
absolutizando-a, perdendo sua historicidade, logo, sua
g f câ c ” (O
, 1988, 09)
Por isso, é importante dizer que o texto, a construção de seu
significado, depende de como é constituído seu leitor, pois a
leitura, nessa sociedade midiática, cada vez mais recebe
interferências desse leitor. Nesse sentido, segundo Chartier
162
ANAIS - 2013
(2001), a ação do leitor na internet é maior porque no texto
virtual desaparece a hierarquia. Nele os dois, autor e leitor, são
construtores do texto.
Uma vez que a preponderância passe para a
leitura na tela, o que sem dúvida acontecerá,
o mundo da leitura, notadamente a cultural,
mais uma vez terá a sua essência
modificada. O leitor passivo terá a
possibilidade, caso escolha, de se tornar o
leitor ativo à medida que ingressar na
narrativa ficcional para co-planejar enredo e
final. (FISCHER, 2006, p.190)
Podemos retomar, nesse momento, o conceito de
hipersentido, e inclusive arriscar na perspectiva que o ato de ler
estará cada vez mais próximo dele. Considerando-o como
possibilidade de uma leitura polissêmica, superando o mito da
interpretação única, fruto do pressuposto de que o significado
está dado no texto. Pelo contrário, o suporte virtual, à medida
que instiga os sentidos, possibilita o aguçar de muitas
interpretações. Entendemos, então, que não existe a leitura,
existem várias; em momentos e circunstâncias distintas.
Conclusão
Embora haja a necessidade de retomarmos a história da
leitura, por meio de trechos e de fatos curiosos, o aspecto mais
relevante é refletirmos sobre a função social da leitura e sobre
o papel do leitor, como sujeito ativo na construção de sentido
no texto e principalmente, as perspectivas do ato de ler,
considerando o hipertexto e o hipersentido.
Afinal,
163
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
[…] c c b -se a leitura como uma prática
social, um meio de possibilitar a realização
de novos diálogos entre os sujeitos
envolvidos
no processo:
o autor,
representado pelo texto, e o leitor, uma
resposta a uma necessidade, em práticas de
letramentos socialmente determinadas.
Logo, fora da escola, não se lê só para
aprender a ler, não se lê de uma única forma,
não se decodifica palavra por palavra, não se
responde a perguntas de verificação do
entendimento
preenchendo
fichas
exaustivas, não se faz desenho sobre o que
mais gostou e raramente se lê em voz alta.
(BRASIL, 1998, p.44).
Vivemos numa sociedade da cultura letrada, ou seja,
estamos cercados por palavras e textos escritos a todo o
momento. Inicialmente, temos uma necessidade social da
leitura, que é aquela que nos aproxima da nossa sociedade, da
maneira como o mundo contemporâneo está organizado. Por
isso, o ato de ler tem realmente sofrido mudanças, pois não é
uma prática isolada da sociedade, que também sofre mudanças.
[…]
u c
u
b c – como bem
deveria – a panóplia da experiência humana.
À medida que a leitura continua a se
desenvolver nas sociedades que exaltam, de
fato, a palavra escrita, incluindo cada vez
mais subgêneros, tecnologias e ideias
inovadoras, ela reflete a transformação
genuína da própria humanidade. (FISCHER,
2006, p.285)
164
ANAIS - 2013
O livro já foi de pedra, de madeira, de couro, de tecido.
Seu futuro não poderia ser diferente. O que importa é pensarmos
que são suportes diferentes, porque as necessidades e as
condições de leitura sofreram alterações, isso porque, o sujeito
que constrói o sentido dessa prática, o leitor, também é diferente
relacionado àquele que deu início ao ato de leitura. Por isso, as
habilidades e os comportamentos dos leitores também são
distintos.
Sabemos que não se lê da mesma forma que se lia na
Idade Média, ou antes; muito menos, como se lê no computador
e no livro aberto sobre a mesa ou o colo. Colocamos em
evidência práticas diferentes de se relacionar com a leitura,
considerando inclusive, as perspectivas do mundo tecnológico.
Afinal, os leitores aprenderão a transitar sobre a leitura impressa
e digital e quantas mais surgirem.
Referências
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da
condição humana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
CAVALLO, Guglielmo, CHARTIER, Roger (Organizadores).
História da Leitura no Mundo Ocidental. [Trad. Fulvia M. L.
Moretto, Guacira Marcondes Machado, José Antônio de
Macedo Soares]. 1ª ed. São Paulo: Ática, 2002.
CHARTIER, Roger (Org). Práticas da Leitura. [Trad.
Cristiane Nascimento]. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade,
2001.
ECO, Umberto. Entre autor e texto. In: ECO, Umberto (Org.).
Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins
165
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Fontes, 1997. P.79 -104.
FISCHER, Steven Roger. . História da leitura. [Trad. Claudia
Freire]. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
GERALDI, J. W. (org.). A aula como acontecimento. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010. In BOURDIEU, 1987.
Choses Dites. Paris, Minuit.
LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. A formação da
leitura no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2003.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo:
Cortez, 1988.
166
ANAIS - 2013
A tríade “a profana”, “a pagã” e “a sagrada em A mais bela
história de Adeodata , de Rosane Almeida
Adriana Patrícia Sena CORDEIRO1
Wagner Corsino ENEDINO2
RESUMO: Ancorados nos estudos Ryngaert (1996), Pavis (1999),
Magaldi (1991), Guinsburg (2009), Prado (2002), Pallottini (1989)
acerca de modo de estruturação do texto teatral, este trabalho tem
como objetivo analisar, sob o viés da cultura/ e cultura popular do
Nordeste (ARAÚJO, 2007; ORTIZ, 2002; CANCLINI, 2011) e dos
estudos de gênero (COSTA; BRUSCHINI, 1992; LOURO, 1997),
regularidades e dispersões na construção das três mulherespersonagens que ancoram a representação do feminino, em
constituição ao longo da história da Humanidade, no texto teatral A
mais bela história de Adeodata, da dramaturga contemporânea
brasileira Rosane Almeida. As vozes inscritas no texto e na história
contada, atravessadas da/pela cultura popular nordestina, pela
memória e pela História, orquestram a representação da mulher na
sociedade, evidenciando que, apesar das transformações sociais
promovidas a partir do século XX, quanto aos papéis sociais
vinculados ao gênero, a maioria dos estigmas e traços inscritos no
patriarcalismo permanecem, estabelecendo distinções entre o sagrado,
o pagão e o profano.
PALAVRAS-CHAVE: cultura popular; gênero; teatro brasileiro
contemporâneo; A mais bela história de Adeodata
1
Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Letras (Áreas de
Concentração em Estudos Literários), em nível de Mestrado, da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Três Lagoas, e-mail:
[email protected]
2
Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul –
Câmpus de Três Lagoas e-mail: [email protected]
167
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Introdução
O texto A mais bela história de Adeodata, da dramaturga
Rosane Almeida, é explorado, quanto aos fios do discurso
sobre/de gênero entrelaçados na obra e ecoados nas/pelas vozes
femininas das personagens.
A opressão feminina é um fato histórico, que se estende
desde a Antiguidade e percorre todos os espaços da atuação
humana. A história da luta pela libertação feminina é, por sua
vez, algo relativamente recente e inscrito, sobretudo no Ocidente
e, na busca de direitos, a mulher conquistou direito ao voto,
engajou-se na vida econômico-social e política, constituindo
uma problemática em que está engendrado o estudo do gênero.
O objetivo do trabalho é analisar, sob o viés da cultura
popular e dos estudos de gênero, a configuração das
personagens femininas no texto teatral A mais bela história de
Adeodata, da dramaturga contemporânea brasileira Rosane
Almeida.
Visando a uma aproximação entre a dramaturgia e o
texto literário, por meio de uma abordagem técnica e
metodológica
consistente,
as
análises
empreendidas
fundamentam-se nos pressupostos de Pavis (1999), Guinsburg
(2009), Ryngaert (1996), Prado (2002), Magaldi (1991) e
Pallottini (1989). A esses construtos aliam-se outros, pertinentes
às temáticas inscritas na obra, quais sejam: cultura e cultura
popular (ARAÚJO, 2007; ORTIZ, 2002; CANCLINI, 2011) e
gênero (COSTA; BRUSCHINI, 1992; LOURO, 1997).
1.
Cultura: em torno de uma definição
Para Hall (2004, p. 50),
168
ANAIS - 2013
As culturas nacionais, ao produzir sentidos
b “
çã ”,
c
qu
podemos nos identificar, constroem
identidades. Esses sentidos estão contidos
nas estórias que são contadas sobre a nação,
memórias que conectam seu presente com
seu passado e imagens que dela são
construídas.
Nesse diapasão, podemos afirmar que o texto em estudo
está permeado de traços culturais, inscritos no cotidiano dos
personagens e marcados em sua indumentária, suas danças, seus
costumes e sua religião. Quando Rosane Almeida valoriza
Dedé, que é vista como sujeito da margem pelo discurso da
intelectual, ela faz emergir daí a vivência da autora, trazendo
para o palco a representação de uma sociedade em plena
transformação.
Tratando de questões mais recentes e dos avanços
c óg c , O z (2003,
106)
c qu : “
c
[...] leva a uma unificação do espaço, fazendo com que os
lugares se globalizem. Cada local, não importa onde se encontre,
u
[ ]” P
é
dança, da poesia, da
b
u
cê c ,
u“ c
”
pelas personagens que coexistem num único espaço cênico, bem
como pelo jogo polifônico entre as vozes e as configurações das
personagens Dona Dedé e Doutora Déo, a autora provoca
reflexões sobre as relações entre vida e arte, sobre
transformações sociais (locais, universais ou até atópicas)
ocorridas na sociedade, com destaque para a sociedade
nordestina. É como se o local interagisse com o restante do
mundo por intermédio da arte e da cultura, e não apenas pelos
avanços tecnológicos, ainda não tão familiares à cientista
pesquisadora em cena, que usa o computador para
169
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
registrar/divulgar dados culturais coletados por meio de fontes
orais.
Na obra A mais bela história de Adeodata, é notório que
a personagem Doutora Deó, por não possuir o conhecimento da
cultura nordestina, recorre à personagem Dona Dedé, para
selecionar dados para sua pesquisa acadêmica. Dedé, por sua
vez, obteve seus conhecimentos culturais por herança paterna,
mas sabe que, ao longo do tempo, há as diásporas (HALL,
2003), os deslocamentos, remetendo a um processo de
(des)identificação:
DEDÉ (começa a recitar)
Eu nasci num pé de serra,
e quem nasce em minha terra,
não existe outra saída:
ou vira escravo da fome,
ou sai e vai ganhar nome,
longe da terra querida [...] (ALMEIDA,
2006, p. 51)
O poema recitado são versos heptassílabos, concebidos
új (2007) c
“
á c c
,h j
,
ú c ”
No texto em estudo, percebemos que
“ u ”
da personagem Dedé é construída no cenário nordestino; seu
passado, marcado pelas tradições culturais que aprendeu com
seu pai ainda na adolescência, renasce em seu presente:
[...] hoje em dia a poesia é minha lavoura.
Isso era pai que dizia. Olhe, pai tinha
vocação para que tanta coisa nesse mundo:
era mestre de maracatu, capitão de cavalomarinho, poeta violeiro, cantava que era
uma coisa maravilhosa, tinha uma voz linda!
(ALMEIDA, 2006, p. 28)
170
ANAIS - 2013
Saudade eu tenho de Nazaré da Mata: a
feira, as sambadas, o cavalo-marinho, o
çu
E
b !!! ” ( LMEID ,
2006, p. 24).
Tanto em Dedé quanto em Dora o saber popular reside
na memória: Dora canta e dança os costumes do povo
nordestino enquanto Dona Dedé conta sua história, seus hábitos,
suas tradições.
Significativo também o convite de Dedé para que
Adeodata venha unir-se a ela em um número de telepatia:
“ b
f zê”; “
z h ,
!” ( LMEID , 2006,
p. 52).
É dessa maneira e por meio desse texto que Almeida
(2006) globaliza as danças, os detalhes, os costumes, que
acionam a memória dos leitores e aproximam o Nordeste do
restante do país ou do mundo pela cultura da internet. Mostra-se
o dia a dia do povo num piscar de olhos ou num clicar no
computador e, assim, leva-se a cultura popular para o país
inteiro e para o mundo. Essa globalização social pode ser
observada na dramaturgia de Almeida:
Claro que não sou eu, é que a tecnologia
veio para resolver todos os problemas que
nós não tínhamos! Como é? (Apertando
duas teclas com uma mão e outra com o
telefone que está no ouvido.) Control,
Alt?Tudo junto? Control, Alt Del, sei...
bom... foi... Graças a Deus! Tudo ok. (Pára e
ouve assustada ao telefone.) O quê
Apolônio? para eu deletar o seu nome do
meu chip? (ALMEIDA, 2006, p. 31).
171
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
1.1.
Cultura popular
Para Canclini (2011), que analisa a situação da cultura
popular na America Latina, existe uma hierarquia entre os
capitais culturais: a arte vale mais que o artesanato, e a cultura
escrita, mais que a transmitida oralmente. Mesmo nos países em
que os saberes e práticas culturais populares, como as dos
indígenas ou dos camponeses, foram considerados como
expressões nacionais, esses capitais simbólicos possuem uma
posição secundária, de subordinação.
Ao refletir sobre a cultura popular, Martin Barbero
(2003, p.119) destaca que ela se faz e refaz na contradição entre
c
f
b
c
ú :“
algo nos ensinou é a prestar atenção à trama: que nem toda
assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de
submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e que
nem u qu
‘ c ’ ã
c
,
pois há coisas que vindo de lá respondem a outras lógicas que
não são as da dominação.
No Brasil, Renato Ortiz é quem estuda em profundidade
a questão da cultura popular. Em sua obra Românticos e
folcloristas, o autor propõez u
“ qu
g
c c ”, c
“ íz h ó c ” N u bu c ,
século XIX é considerado um momento de suma importância: a
“cu u
u ”
,
“ g
te
lapidada
pelos
diferentes
grupos
c u ” (ORTIZ,1992, 6)
Para Ortiz (1992, p. 66-7),
cu u
u
“é
elemento simbólico que permite aos intelectuais tomar
consciência e expressar a situação periférica que seus países
c ”
172
ANAIS - 2013
Roger Chartier, em uma revisão do conceito
h
g áf c
cu u
u ,
c qu é
“cu u
u ” qu
b z
u “u
práticas que nunca são designadas pelos seus atores como
c
à ‘cu u
u ’” ( H RTIER, 1995, p. 179).
Segundo o pensador, hoje só é possível conceber o popular
como espaço híbrido de trocas culturais, para além de categorias
eruditas ou populares.
Em A mais bela história de Adeodata, percebemos uma
tensão entre a cultura erudita e cultura popular. A Doutora Déo,
mulher com conhecimento intelectual, em busca de concluir sua
tese, está inserida na cultura erudita; em contraponto, Dedé é
uma trambiqueira que possui riqueza de conhecimentos
provindos da sua história, do seu passado, logo cultura popular.
N “c á
hu
”
ç , c x
ligados ao âmbito rural e componentes urbanos e
“ u
z
” N qu
z
à cu u
u ,
processo de coexistência representa um cruzamento de
elementos de raízes folclóricas com elementos relacionados ao
espaço urbano das novas massas de trabalho. Por conseguinte, a
"cultura de elite", envolta no tradicionalismo do século XX,
também buscou mecanismos artístico-culturais modernos e
cosmopolitas.
Na peça, Dona Dedé menciona o cavalo-marinho e
destaca o amor do seu pai pelo maracatu, manifestações
culturais de diferentes lugares, que se unem formando a
identidade nacional:
Olhe, pai tinha tanta vocação para tanta
coisa nesse mundo: era mestre de maracatu,
capitão de cavalo-marinho, poeta violeiro,
cantava que era uma coisa maravilhosa,
173
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
tinha uma voz linda! (ALMEIDA, 2006, p.
28).
Dra. Deo, em suas leituras no computador e nos livros
usados em suas pesquisas acadêmicas, evoca também a
mitologia:
DOUTORA DÉO: Porque você não fala
como James Frazzer, Mário de Andrade...
Que o homem, na sua ignorância, para
explicar a natureza, criou deuses e
deusas?...porque ignorância é ignorar algo, e
toda a mitologia é só outra maneira de
explicar as coisas. Você não vai explicar
isso, porque isso não é cientificamente
comprovado, você não tem estatísticas. [...]
Nesse fragmento, observamos que Doutora Déo sabe que
“
çã cu u ” ã é uf c
O mito, entre os povos
,
u f
u
u
;
“u
ingênuo, fantasioso, anterior a toda reflexão e não crítico de
b c
gu
” qu ã ó x c
“
f ô
u
u
c
uçã cu u ”,
qu
,
bé , “ f
çã hu
” ( R NH ;
MARTINS 1992, p. 62). Hoje, ela precisa de paradigmas
, qu
,
“
í c ”
c
çã
c íf c , b u
qu
“qu õ
h j ” ã u ,
entre as quais a da preservação ambiental:
DOUTORA DÉO: [...] Mas você não vai
escrever isso, que é tudo muito pesado. Isso
não, mas eu vou escrever que as florestas
tropicais são queimadas e derrubadas tão
depressa que poderão sumir nos próximos
174
ANAIS - 2013
trinta anos, que cem milhões de mulheres já
passaram pelo ritual de mutilação e que cada
ano acontecem dois milhões de mutilação
porque tudo isso é cientificamente
comprovado e eu tenho as estatísticas.
(ALMEIDA, 2006, p.-32-33-40).
Doutora Déo representa esse conhecimento da academia
partindo da universidade, mas, para que ocorra o sucesso em sua
carreira, ela vai depender da contribuição da personagem Dedé,
que, apesar de ter poucos estudos, tem uma vasta vivência e
experiência da cultura nordestina.
A personagem Dedé, com seus medicamentos caseiros
(manipulados pelo cacique), tenta sobreviver. De acordo com
sua fala, os remédios poderão curar todas as enfermidades do
corpo e até da alma. Vejamos o trecho a seguir:
Esse pajé não extinto, minha gente, ele lha
para o peixe-boi e capta o que o peixe-boi e
ele transfere pelo poder da mente para uma
banha de porco natural orgânica cem por
cento derretida. Contra todos os males que
afetam a alma, o espírito ou o juízo
[...]BPBA3. Isso é bom pra tudo...
CAGANEIRA ARRITIMIA DOR DE
DENTE
REUMATISMO
FRIEIRA
PEREBA CÂIBRA SONAMBULISMO
BUCHO INCHADO ESPINHA CALO
CRAVO
UNHA
ENCRAVADA
RESFRIADO GRIPE HÉRNIA DOR DE
CORNO [...] (ALMEIDA, 2006, p. 21-22).
3
BPBA vem a ser banha de peixe-boi da Amazônia.
175
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
1.2.
Cultura popular brasileira
Importa mencionar que a sociedade brasileira (mas não
apenas ela) conheceu, a partir de 1930, o crescimento industrial,
que a vem transformando até hoje, sob o signo do capital e da
expansão da miséria pelo mundo.
P
é
O z (2006, 71), “
çã
cu u é
f
xc u
f
çã ”, o que se pode
visualizar na obra em análise, sobretudo quando Dona Dedé
relata:
DONA DEDÉ: Eu tô bem , tô muito bem ...
Pra quem andava descalça no mato, caçando
tatu... eu tô bem demais...[...]É tudo gente
trabalhadora, tudo sai de casa às quatro
horas da manhã e só volta agora. [...] Agora
está essa confusão porque é a hora do
“ uch ’ ( LMEID 2006, 23)
Ao longo da peça em análise, compõem o cenário e a
linguagem, artefatos, dizeres do povo e ensinamentos de
medicina popular, sobretudo por intermédio das personagens
Dora e Dedé.
g
D
éu
b
qu “ ç
dos caboclinhos, com uma máscara que lembra antigos rituais
íg
” ( LMEID , 2006, 32):
2.
Raízes culturais nordestinas em A mais bela história
de Adeodata
Tomamos como apoio, para a estruturação deste item, a
obra de Alceu Maynard Araújo, Cultura popular brasileira
(2007), buscando, em A mais bela história de Adeodata, de
176
ANAIS - 2013
Rosane Almeida, algumas das raízes culturais que concorrem
para a construção do texto dramático em análise.
Segundo o Dicionário do Folclore, de Câmara Cascudo
(1984), o reisado é um auto popular, que aparece para alegrar o
povo nordestino em época natalina. Na região de São Francisco,
ocorreu uma mistura desse gênero com outros tipos de danças,
como congos.
Ressalta Araújo (2007, p. 60) que esse sincretismo,
atinge vários ritmos,
como o próprio bumba-meu-boi, que o
admite como um dos seus entremeios, isto é,
as representações, as peças que são as
danças cantadas, narrativas de assuntos e
motivos os mais variados em que misturam
amor e guerra, religião e história local,
representando a guerra com o vibrar de
espadas e toques de maracás.
Suas indumentárias são as mais variadas, os trajes são
c
u
f
,c
ç
“espelhinhos, vidrilhos,
lentejoulas, aljôfares, que enchem os saiotes axadrezados e
c
c
” ( R UJO, 2007, 60)
Quanto às falas da personagem Dedé, são recheadas da
linguagem popular e das gírias. Ela narra a história do seu pai,
um homem que vivia para o brinquedo, fazia o bem a todos que
passavam pela sua casa e era apaixonado pelos bailados ou
danças nordestinos:
[...] pai era besta demais. Trabalhava feito
um condenado; os outros ficavam com o
lucro, e pai com a experiência. Todo
dinheirinho que ganhava era pro brinquedo;
177
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ora era um chapéu, ora era um manto, ora
era um instrumento... Na casa da gente,
chegasse quem chegasse tinha comida e
dormido. (ALMEIDA, 2006, p. 29).
Nesse trecho, constatamos que a cultura popular está
entranhada na pele do povo nordestino. A felicidade
“
”c
f z
gu
c cuj cu u
está impregnada no seu cotidiano. Como afirma Frederik Antal
(apud BURKE, 2002, p. 28), a cultura é expressão ou mesmo
“ f x ”
c
,
x
ão, a obra literária não pode
ser desvinculada das condições em que foi produzida.
2.1.
Em torno do feminino
Destaca Heloisa Buarque de Hollanda (1992, p. 60), o
conceito de sujeito do feminismo:
O sistema sexual de gênero deixa de ser
visto, portanto, como constituinte de uma
esfera autônoma e passa a ser considerado
como uma posição da vida social em geral.
É neste sentido que Laurentis elabora o
c c
“ uj
f
”
tanto da ideia de mulher essência inerente a
todas as mulheres, quanto da noção de
gênero que define a mulher enquanto ser
histórico, gerado pelas relações sociais.
A mulher está inserida no meio social, como parte
intrínseca da história, como ser em evolução, sempre em
movimento com as relações da sociedade.
P L u (2008, 17): “
g g çã
c
í c
a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como
178
ANAIS - 2013
consequência a sua ampla invisibilidade como sujeito, inclusive
c
uj
ê c ” 4.
Por isso, Rosane Almeida atribuiu à personagem
Doutora Déo – valorizada moral e intelectualmente como sujeito
feminino – a responsabilidade de falar de ações sociais e
políticas e de opressão feminina: todos esses temas permeiam a
sua voz e vão entrelaçar-se para culminar, indireta ou
diretamente, na questão do gênero:
Quando o homem estabelece a propriedade,
ele cria a hereditariedade. E vai atacar a
mulher naquilo que sempre foi o pivô da
idolatria, e também da inveja, do respeito e
também do medo, a sua sexualidade.
(ALMEIDA, 2006, p. 38).
No fragmento, insinua-se um diálogo com discursos
segundo os quais o homem, com o intuito de preservação da
propriedade, desejou a sua função paternal, pois só assim
transformaria a sociedade em um sistema patriarcal, em que os
homens exerceriam papéis importantes e acabariam sendo os
chefes ou mantedores das famílias, como também da
propriedade. À mulher, caberia cuidar dos filhos.
V íg
“
â c ”
g
c
ç
emergir a partir do conflito familiar vivido por ela: em uma
sociedade repleta de preconceitos, Doutora Déo enfrenta
problemas com a filha, cujo namorado é drogado; a garota é
sustentada pela mãe, cujo ex-marido, pai da menina, não dá
apoio para sanar os problemas familiares; a Doutora luta pela
conquista da independência feminina.
4
Do movimento feminista, participaram acadêmicas como Simone Beauvoir,
Betty Friedman e Kate Millet (cf . LOURO, 2008, p.17).
179
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Observemos, por outro lado, o comentário da
g
D
D é
D u
: “E
que vai entrar para uma tal de Academia Brasileira de Letras e
qu í
u ‘
í ’” ( LMEID , 2006, 35)
Aqui, ironicamente, a voz da personagem rude, do
sertão, dialoga com o que escreveu Heloisa Buarque de
Hollanda (1992, p. 57) sobre a importância da mulher no cânone
á ,
b “
f
u
qu
g
literária para resgatar os trabalhos das mulheres, que de diversas
formas, foram silenciadas ou excluídas da história
da
u ”
2.2.
Teatro personagens e representações da mulher
A
“
” c
u
significações fundamentais: o local em que se realizam
espetáculos e uma arte específica, transmitida ao público por
intermédio do ator. (MAGALDI, 1991, p. 7). Nessa perspectiva,
P
(2007,
372),
“[ ] é
c
úb c
h u
çã qu h é
u
u
ug ”
Quanto a personagens teatrais, Ryngaert (1996 p. 126)
ensina que:
Para o teatro grego, a persona é a mascara, o
papel desempenhado pelo ator, e não a
personagem esboçada pelo autor dramático.
O ator é somente um intérprete que não se
confunde com a ficção e que o público não
assimila imediatamente a uma encarnação
da personagem textual. Na maior parte do
tempo, utilizamos essa mesma palavra,
personagem, para designar os diferentes
180
ANAIS - 2013
avatares da partitura textual prevista para ser
representada em cena por um ator.
é
,“
g
ã x
no texto, ela só se realiza no palco, mas ainda assim é preciso
partir do potencial textual e ativách g
c ”
(RYNGAERT, 2006, p. 129).
Segundo Pallottini (1989, p. 9-10), cabe à personagem
fazer de conta que é outra pessoa e, por meio de falas ficcionais,
veicular o conteúdo de uma peça de teatro, papel que cabe às
três personagens encarnadas, na peça, por Rosane Almeida.
Explicamos: No âmbito do espetáculo, cabe a Rosane
Almeida-atriz representar o papel das três mulheres que a
Rosane Almeida-dramaturga criou e que mostram as
experiências femininas a partir de diferentes sentidos de
“cu u ” (
çã ,
,
, b
, c h c
,
status e poder), marcando o texto dramático. Num jogo entre o
é
, u
,
ç , “
ub
g
transgredir front
”
b
“
c c
”,
çã
á c
-se com/pelas falas
de dona Dedé, Retirante, paupérrima, trambiqueira assumida e
sábia, seu saber contrapõe- “
b
u
”
u
Dé ,
uma professora universitária às voltas com sua tese sobre a
â c
f
“
u
c
ã
fu
h ó
hu
”,
qu
ê ju
z
,
silêncios e atributos de Dora, a artista, marcados por discursos
da sabedoria popular.
Para Ryngaert (2006, p.129):
O ator geralmente continua, em seu trabalho
sobre o sensível, a pensar na unidade de seu
papel através do conceito de personagem,
mesmo que não se prenda a uma estética da
181
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
identificação. O público, enfim, receptor
sem o qual a representação teatral não pode
ocorrer, sempre se apoia na personagem
para entrar na ficção.
Prado (2002, p. 97-98),
u
“
g
f cçã ”, c c z
çã à
g ,
sempre encarnada por um ator no processo de representação
teatral:
A personagem não perde, portanto, a sua
independência não abdica de suas
características pessoais; mas quando canta,
quando vem à ribalta e encara corajosamente
a plateia, admitindo que está no palco, que
se trata de uma representação teatral, passa
por assim dizer a outro modo de existência:
se não é propriamente o autor , também já
não é ela mesma.
Importante salientar que, para Mary G. Castro e Lena
Lavinas (1992, p. 221), ainda vivemos
[...] a mesma forma de hierarquia social
característica do patriarcado, onde as
mulheres se encontram sob domínio direto
(chefias) dos homens. Como diria Saffoti
(1984),
podemos
reconhecer
nessa
formulação a prática combinada do
capitalismo com o patriarcado na construção
social da submissão feminino a necessária a
reprodução da sociedade de classes.
182
ANAIS - 2013
No texto dramático A mais bela história de Adeodata,
percebemos que a personagem Doutora Déo não representa a
submissão feminina, e sim a ruptura com essa prática: do
cu
g
c c
“ u
”, emergem
representações – as visíveis e as não visíveis – do jogo de poder
entre masculino e feminino:
DOUTORA DÉO: Quando o homem
estabelece a propriedade, ele cria a
hereditariedade. E vai atacar a mulher
naquilo que sempre foi o pivô da idolatria, e
também da inveja, do respeito e também do
medo, a sua sexualidade. E isso Freud nunca
explicou. A partir desse momento, o homem
não quer mais idolatrar a natureza, não a vê
como um receptáculo, sua única idéia é
dominar a natureza, dominar a mulher.
(ALMEIDA, 2006, p. -39).
Falando pelo viés psicanalítico freudiano e usando o
presente do indicativo (que, entre outros sentidos, representa
verdades absolutas), a personagem reconhece (mesmo querendo
negar ou tentando silenciar) a superioridade ou domínio
masculino: é o homem quem ataca; é o homem quem domina.
É como se o servilismo feminino começasse a ser posto
em xeque, porém a dominação masculina assume sutil e
silenciosamente um outro discurso, a partir de outro ponto de
referência, conforme analisou Chartier (apud SOIHET, 1998, p.
77-87): ela emerge de dentro de um esquema de consentimento,
quando, para marcar resistência, reemprega o discurso da
dominação, pois há, contra o próprio dominador, uma
reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos
instituintes da dominação masculina. A mulher conquista o
183
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
território da fala, da expressão, o que ainda não significa,
todavia, romper com a dominação masculina; pelo contrário,
esta acontece pelo argumento e pela autopermissão por parte das
mulheres.
É por meio das falas da personagem Doutora Déo que
parece esboçar-se um processo de (re)constituição da identidade
do sujeito mulher. Conforme destaca Orlandi (1987, p.17): a
linguagem é ação, transformação; é como um trabalho
bó c : “
éu
social com todas as suas
implicações, conflitos, reconhecimentos, relações de poder,
c
u çã
”
Entendemos que é pela palavra que a Doutora Déo
articula sua contribuição na luta pela libertação feminina, nos
embates ou relações de poder masculino versus feminino, e,
sobretudo, pela união de homens e mulheres em favor de uma
nova história da humanidade:
E, nesse sentido, o que o povo construiu
para o engrandecimento da alma e das
relações humanas, mesmo à margem do
mundo oficial, ao longo das eras, é maior
que qualquer império que o homem já ergue.
A obra do povo vem da vida e do prazer, da
graça de seu compromisso com o Belo.
Quem sabe se esse tão anunciado tempo
novo é o início de uma nova era na história
da humanidade, na qual homens e mulheres
entusiasmados, exaltados com o seu
potencial, não precisarão mais de impérios,
de ídolos , não precisarão mais idolatrar uma
Deusa nem temer a um Deus, poderão sim ,
comungar com forças que nos empurram
para o verdadeiro destino humano. Destino
184
ANAIS - 2013
esse eternamente marcado pelo sonho de
cada um. (ALMEIDA, 2006, p.58-59).
Na fala da Doutora Déo, emergem novamente as
ponderações de Heloisa Buarque de Hollanda (1992, p. 59):
çõ
“ gu g
f
” u
“
f
”, qu
construções sociais, exigem a avaliação das
condições particulares e dos contextos
sociais e históricos em que foram
estruturadas. Os sistemas de interpretação
feminista teriam como tarefa fundamental a
reflexão sobre a noção de identidade e
sujeito, levando em consideração a
multiplicidade de posições cabíveis que a
noção de sujeito sugere, tendo por base um
claro compromisso com uma perspectiva
historicizante em suas análises.
Já na voz de Dedé fica visível o discurso da inferioridade
feminina, de sua subjugação ao homem, de sua condição de
objeto, silenciando completamente, em pleno século XXI, o
discurso da libertação feminina:
Adeodata Cruz, já foi dona de três casas de
zona, mas perdeu tudinho para um cafetão
safado [...] Aquela lá é Adeodata das Dores,
uma sofredora: o marido fugiu com a irmã, e
dos doze filhos que tinha só restou dois, um
não deu pra nada e o outro nem para isso
deu.[...] A outra bonitona é Adeodata das
Flores: não é brilhantina, mas vive na
cabeça de tudo que é homem. Parece o mar:
todo macho vai na onda [...]E tem mais a
185
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
menininha do lado, é filha dela,
Adeodatinha... E eu vou dizer uma coisa: a
fruta nunca cai muito longe do pé. Logo,
g ,
x “f z ”
c
cc c
ç
“f z ”
c
ç
( LMEID , 2006,
36).
No conjunto discursivo, é visível a manutenção dos
c u
f çã
“ é ”
h
uh
âmbito da sexualidade, naturalizados pela voz de uma mulher,
confirmando a relação de submissão e a desvalorização do
feminino, inscritas no imaginário social. Observamos que a
g
f í
é f g
;
“
”
“
h ” é c
u
bj , c
u
qu
imagético-discursivo não só da mulher, mas da região (também
estigmatizada) de onde provém a personagem que fala e as
personagens sobre as quais se pronuncia: o Nordeste.
Também na voz da doutora Déo se apresentam, no texto
dramático em análise, fragmentos em que a mulher é
caracterizada como submissa ao homem, seja por preconceito,
seja por meio da violência:
DOUTORA DÉO: Em pleno século XXI, na
Índia, em alguns países asiáticos e em vinte
e oito países africanos quando as meninas
entram na adolescência, os pais exigem a
extirpação do clitóris e, às vezes, até dos
lábios da vagina, usando tesoura, lâminas e
até mesmo pedaços de vidro. Numa
cerimônia banhada de sangue e dor,
costuram tudo, deixando só um buraquinho
186
ANAIS - 2013
para a urina e para a menstruação.
(ALMEIDA, 2006, p. 40).
DOUTORA DEO: Seiscentas mulheres
foram queimadas por ano, em Toulouse
quatrocentas em um único dia, em algumas
aldeias queimaram todas as mulheres, e
ninguém se pergunta qual o tamanho da
escuridão deixada por esse clarão dessas
fogueiras????????? E sua voz fica
incomodando na Terra... (ALMEIDA, 2006,
p.45).
Z
(2009, 220),
c
b
“ b çã
u h ”, c
qu
b gê c
c
“
se dos matriarcados neolíticos ao feminismo radical
c
â
[ ]”
qu
f
é “u
político bastante amplo [...], alicerçado na crença de que,
consciente e coletivamente, as mulheres podem mudar a posição
f
qu cu
c ”
É na voz da Doutora Déo com os posicionamentos
c
“
” c
uí
g
experiência adquirida por meio das pesquisas científicas, seja no
plano do discurso religioso (numa espécie de carnavalização),
seja na discussão do cotidiano humano, do intelectual ou do
avanço tecnológico que começam a emergir vozes e discursos
de/sobre a superioridade feminina no meio social:
Como é que eu vou escrever que naquele
momento o homem não tinha compreensão
do papel dele na fecundação, principalmente
diante dos atributos que a natureza confere
às mulheres? O mistério da maternidade, da
amamentação, do sangue... [...] Você
187
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
deveria escrever sobre um tema mais
conhecido mais divertido, inserido no
contexto atual e, principalmente, de fácil
assimilação. Hoje em dia, a biodiversidade
está em alta. (ALMEIDA, 2006, p. 32-33).
[...] nesses anos todos convivendo com
artistas populares, estudando a trajetória da
espécie humana, chego à conclusão de que
esta sociedade que esta aí clama por
transformações, e como não é uma
sociedade administrada por elefantes,
abelhas, jacarés ou peixe-boi, mas sim por
seres humanos, as transformações têm que
se dar é na qualidade do ser humano. (p.58).
Na construção do elemento feminino, Almeida compara a
Terra à mulher: assim como a Terra, a mulher alimenta o ser
humano:
Que o momento do ser humano que não tem
a referência nenhuma objetivo dele é a
sobrevivência. Essa sobrevivência está
atrelada a Terra que ele pode colher dali.
(né) O ser humano enquanto nômade vivia
de caça e da colheita antes do período
agrário. Ele tem um respeito por esta Terra
porque a Terra é o elemento feminino, ela dá
a vida. No ser humano, não cabia entender
quanto a figura masculina contribuía para
essa vida. Hoje a gente. Essa associação que
o ser humano fez a associação sempre fez do
macro para o micro essa figura muito
próxima da figura feminina a mulher
também dava a vida e também alimentava
188
ANAIS - 2013
sua cria e era uma coisa que o bicho homem
não fazia durante milhões de anos. Durante
milhões de anos o homem teve muito
respeito pela mulher. Por isso tem a estátua
de Vênus...5
Almeida constrói seu texto na voz da personagem
D u
Dé : “E qu
c J u,
qu J ã B
c h c
D u ” ( LMEID , 2006, 43)
Almeida tem como fios condutores a bíblia e o texto de
B
(2004),
çã ,
qu
g g
u “
u ”: “u
ã
é
z h u
g fc
c
,
é
u
í u ;
“
ã
qu qu ó
b
”,
u
u
çã
reveladora, singular, ao mesclar tradição e linguagem ao
f
c
:
çã ” (ELIOT, 1989 apud
ENEDINO; SÃO JOSÉ, 2011, p. 105).
2.3.
A Profana, a Sagrada e a Pagã
Percorrendo a história da humanidade, cujos fios se
alinhavam nos contornos e vozes das personagens femininas
postas em cena em A mais bela história de Adeodata, Rosane
Almeida não focaliza o homem, mas a mulher, ou melhor:
diferentes representações ou imagens do feminino que se
constituíram ao longo dessa história: a sagrada, a profana e
pagã.
A primeira mulher representada é a virgem Maria,
caracterizada como sagrada, que, por obediência, pureza e
santidade, foi escolhida por Deus para a concepção do Seu filho,
Jesus, o Messias, que viria dar a vida pela humanidade. Em
5
E
189
g
14/3/2012 “Voz de Rosane Almeida.
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
contraponto, temos Eva, a profana, causadora da queda do
homem e culpada pelo pecado: a parte imunda da criação;
enfim, a perdição da humanidade, conforme pondera Barros
(2004), ao estabelecer a dicotomia sagrada versus profana:
Eva tornava-se objeto de repulsa, dos piores
insultos, este mesmo século XI promovia
Maria, e impulsionava seu culto. Eva,
estigmatizada como diabólica era a
causadora das desgraças que se abatiam
sobre a humanidade, da queda, da culpa, do
pecado. De matriz da vida, de repente, ela
passou a representar a via direta para a Porta
do Inferno, reunindo em seu seio todo o mal,
associando-se ao Diabo. Maria surgia como
a esperança de salvação, exemplo sem par
da pureza e da maternidade, certeza para
seio da qual o filho indigno pode vir
esconder sua vergonha. Maria, pela
obediência, pureza, virgindade, santidade,
foi promovida ao Paraíso, guardiã da Porta
do Céu, detentora e dispensadora de todo o
bem. Completamente dicotomizadas, Eva
assumia o profano, o Imundo, diabólica;
Mara
idealizada,
dessexualizada.
(BARROS, 2004, p. 162-163).
É pela voz da personagem Dora que a história bíblica de
E
g c
h ó “c
”
ç , b
se que Rosane Almeida desterritorializa Eva e a serpente para
reterritorializáu g
f
, “ u ”:
Sobre a terra, a raça humana vive uma vida
tirana vive uma vida tirana, Pisando a
190
ANAIS - 2013
suçuarana que corre em torno do sol,Entra o
homem distraído num jardim todo
florido,Morde o fruto proibido e sente o
puxão do anzol. (ALMEIDA, 2006, p.33)
Na avaliação de Barros (2004 p. 332):
[...] a serpente passou a ser a encarnação de
Satã, assim como foi também neste
momento que se atribuiu a ela ter
demonstrado desejo em relação à mulher.
Não foi difícil associar Eva a serpente e a
Satã e apresentá-la como personificação do
Mal. Foi essa a herança que Eva deixou às
mulheres e ao cristianismo.
De acordo com Caillois (apud BARROS, 2004), as
deusas pagãs estão em dois polos, o sagrado e o profano, e
apresentam as duas faces da moeda, com o polo positivo e o
negativo: este está ligado à força de destruição e morte; o outro
é instrumento de purificação, benção. A Igreja coloca Eva como
impura e Maria torna-se o símbolo do bem.
V
f
qu
“E
M
c
características de oposição e complementaridade, mas não
atendem mais às necessidades do imaginário coletivo, que se
c u
cu u
u
g ”
(BARROS, 2004, p.164).
Na peça, emerge a representação da mulher como polo
do mal, avesso à santidade:
As mulheres têm mais conivência com o
demônio porque Eva nasceu de uma costela
torta de Adão, portanto nenhuma mulher
pode ser reta [...] Uma vez obtida a
191
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
intimidade com o demônio, elas são capazes
de desencadear todos os males: impotência
masculina,
estragos
nas
colheitas...
(ALMEIDA, 2006, p.45). [grifo nosso]
Devemos apontar que, no relato de Dona Dedé sobre as
prostitutas, inscrevem-se, além dela, que também se pronuncia
do lugar profano, Adeodata Flores e Adeodatinha:
Adeodata Cruz, já foi dona de três casas de
zona, mas perdeu tudinho para um cafetão
safado [...] Aquela lá é Adeodata das
Dores, uma sofredora: o marido fugiu com a
irmã, e dos doze filhos que tinha só restou
dois, um não deu pra nada e o outro nem
para isso deu.[...] A outra bonitona é
Adeodata das Flores: não é brilhantina,
mas vive na cabeça de tudo que é homem.
Parece o mar: todo macho vai na onda [...]E
tem mais a menininha do lado, é filha dela,
Adeodatinha... E eu vou dizer uma coisa: a
fruta nunca cai muito longe do pé. Logo ,
logo, de x “f z ”
c
cc c
ç
“f z ”
c
ç
( LMEID , 2006,
36).(grifos nosso)
Ainda acerca dessas representações femininas, vale
mencionar o comentário de Barros (2004, p. 30) sobre a
virgindade:
[...] A virgindade era puramente moral,
significando apenas que a mulher não
dependia, não estava sob o poder, ou
autoridade, de nenhum homem. [...]a virgem
pagã era aquela que possuía liberdade
192
ANAIS - 2013
sexual, estava disponível, aquela que podia
ser disputada pelos homens como detentora
de uma soberania que lhe outorgava a Deusa
e que a tornava responsável pela
maternidade, pela renovação da natureza,
pelo renascimento dos mortos.
Constatamos esse olhar na obra de Rosane Almeida
quando retrata a pagã por meio da personagem Dona Dedé, que
não se preocupa com o casamento: embora houvesse morado
com um homem, não se sente presa e o meio social em que vive
está povoado de prostitutas ou adultérios. Assim, Dona Dedé
naturaliza sua condição e vangloria-se de seu poder de sedução
junto aos homens:
Não teve do
qu ã
u ‘ ç ’
coco comigo de umbigada e tudo...Eh!
doideira! Meu ibope no hospício foi tão
grande que o vigia se apaixonou por mim e
fugiu comigo de noite e me trouxe
“ qu ” [ ] ( LMEID , 2006, 50)
Quanto ao sagrado, é caracterizado por Rosane Almeida
c
c ê c : qu
á
c ,
“
possibilidade da transcendência, de você sair desse seu corpo e
se colocar a serviço de outras coisas, de outros estágios de
c cê c ,
u
ê c fí c ,
u
c ” (DEL
PICCHIA; BALIEIRO, 2010, p. 214).
Reforça Ramos (2010,p. 204-205) o conceito de sagrado:
“O g
é c xã c
u z É c xã c
É viver o dia a dia. É não colocar Deus em cima e nós aqui
b x ‘
g
é,
,
u ã
espírito e a
é ”
193
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Assim, podemos afirmar que a personagem Dora é o
instrumento do sagrado na obra de Rosane Almeida: quando a
dançarina demonstra a cultura popular por intermédio das
danças, ela faz a transcendência, produzindo um momento
sagrado:
E nesse cenário de tudo e de nada,
milhões de nãos-luz de vida que tenho,
com toda energia que em mim está
guardada,
Juntei a profana, a pagã e a sagrada, e fiz um
alicerce lá na vastidão,
Depois dele pronto rumei direção
Para um mundo tão belo e tão desolado;
Se fosse preciso eu teria jurado
Que o centro do céu é o vasto sertão [...]
(ALMEIDA, 2006, p. 56).
3.
Considerações
O artigo apresentado tem como objeto de análise uma
obra ainda inexplorada no universo acadêmico: o texto
dramático de Rosane Almeida, atriz nas artes circenses e nova
dramaturga Rosane Almeida, A mais bela história de Adeodata,
que traz à ribalta a cultura nordestina e questões de gênero.
A autora traz à baila a cultura popular nordestina –
marcada pela relação com o sensível, com o simbólico, com o
mítico e com a transcendência – com um olhar diferenciado,
representado nas indumentárias, nos bailados, nas falas e nas
didascálias, procurando evidenciar que é por meio da cultura
que o ser humano se realiza como tal e que se identifica.
Devemos esclarecer que a cultura popular é um
instrumento de conservação, mas também de transformação
194
ANAIS - 2013
social. Nesse sentido, podemos afirmar que há, nas falas de
Dedé, um amálgama de presente e passado, imbricados em um
só contexto histórico.
Talvez aqui possamos mencionar as palavras de T.S
Eliot em seu ensaio de Tradição e Talento Individual “o
presente consciente constitui de certo modo uma consciência do
passado, num sentido e numa extensão que a consciência que o
passado tem de si mesmo não pod
” (ELIOT, 1989,
41).
Compreendemos que necessitamos das raízes culturais
do passado para acrescentar ao novo, e Almeida o faz com
riqueza de detalhes quando põe em cena outra mulher, a
personagem intelectual Doutora Déo, cujas ferramentas são, do
“
í c ”,
f
çõ
f c
;
“ ó c ”,
x “c íf c ” h ó c
qu
Portanto, a doutora Déo representa a academia, e Dona Dedé, a
experiência, unidas numa só história.
A terceira mulher representada na peça é Dora
(possivelmente o alter ego
u
,
c
“ f uê c ”
Nelson Rodrigues): uma personagem dançarina que entra em
cena para dançar e recitar poemas; para descrever e dançar
bailados típicos da cultura nordestina.
No âmbito do texto da peça, construído na confluência
da tríade feminina, podemos afirmar que as vozes vêm
emanharadas umas nas outras, produzindo-se o jogo da
intertextualidade e do dialogismo. Relatam-se aspectos da
história da humanidade, em especial a questão do gênero como
construção cultural.
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
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198
ANAIS - 2013
A voz oficial no caderno especial - festival de inverno
de Bonito do jornal “O Estado MS”
Gisele Guedes COLOMBO1
Maria Luceli Faria BATISTOTE 2
RESUMO: O presente trabalho pretende analisar a
predominância do discurso oficial na publicação Caderno
E c F
I
B
j
“O E
M ”,
buí
30
ju h
2012,
f xõ
sobre a ausência da crítica cultural no jornalismo cultural
campo-grandense. Neste empreendimento científico adota-se a
concepção de jornalismo como um campo social definido por
tensões e interações das vozes diversas que integram o espaço
social. O discurso jornalístico revela ainda, intrínseco em seu
processo de produção, a seleção e interpretação de fatos
noticiáveis ou não, ou seja, direciona os assuntos discutidos pela
sociedade. Assume-se, dessa forma, a compreensão de crítica
como julgamento, interpretação fundamentada em argumentação
comprovada por alguma autoridade em assuntos específicos. A
crítica no jornalismo é um elemento chave que deve agregar sua
função informativa e de opinião. Os textos selecionados serão
analisados na perspectiva teórica da Semiótica francesa,
focalizando e desvendando a semântica discursiva sob o prisma
da tematização e da figurativização.
PALAVRAS-CHAVE:
semiótica
francesa;
discurso
jornalístico; cultura.
1
Mestranda em Comunicação - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) - [email protected]
2
Professora Doutora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) - [email protected]
199
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Introdução
Em 30 de julho de 2012, o jornal O Estado MS fez a
distribuição em Campo Grande (MS) do Caderno Especial
Festival de Inverno de Bonito, um evento3 que é considerado
pelo governo estadual como um dos mais representativos para a
divulgação da cultura regional sul-mato-grossense. Ao buscar
analisar nosso córpus, observa-se de forma evidente a difusão do
discurso oficial. Sendo o esperado o discurso jornalístico crítico,
essa constatação contraria uma das características do jornalismo.
Para Gadini (2009), o jornalismo já traz em sua essência a
perspectiva crítica. Assim como a História, ele não pode estar
dissociado da crítica, em face dessa configurar-se em referência
permanente a um sistema de valores sócio-históricos
compartilhados, além de possuir caráter educativo. O autor
afirma que,
Ao legitimar o olhar/análise do crítico, o
jornal se revela como meio, espaço e
dispositivo; como um cenário em aberto,
onde se presentifica e visualiza sua força na
u çã
u
“c
ê c ”
complexo, plural e em permanente
construção: o campo cultural (GADINI,
2009, p.246).
No jornalismo brasileiro, geralmente a abordagem crítica
das matérias informativas persiste como forma de manter maior
influência e credibilidade frente ao público leitor. Ainda
segundo Gadini (2009) os cadernos culturais assumem a prática
e a referência de reportagens mais interpretativas e evidenciadas
pela crítica e/ou orientação ao leitor. Isso porque, no âmbito
cultural, a análise e a interpretação crítica são mais admitidas e
publicamente aceitas, demonstrando que o leitor busca mais do
3
Evento denominado Festival de Inverno de Bonito.
200
ANAIS - 2013
que informação (no sentido estrito do termo). Ele está
predisposto à interpretação crítica e à apreciação cultural.
O leitor brasileiro de cadernos culturais, segundo o autor,
tem predisposição ao interesse pela interpretação crítica e
apreciação cultural e, constatando que o jornal, nosso objeto de
análise, apresenta um direcionamento contrário a essa tendência
na cobertura jornalística do Festival de Inverno de Bonito,
houve a motivação para uma breve reflexão do jornalismo
cultural campo-grandense, examinando a linguagem jornalísticacultural enquanto discurso.
Pretendemos, pois, verificar a existência ou não da
representação da pluralidade de discursos que demarcam o
território ideológico cultural local e a abordagem de cultura
difundida naquela ocasião. Tomamos como pressupostos
teóricos e metodológicos a Semiótica francesa, que em seus
procedimentos analíticos desvendam a sintaxe e a semântica
discursiva sob o prisma da discursivização (actorialização,
temporalização, espacialização), da tematização e da
figurativização. Em nossas análises, daremos enfoque à
semântica discursiva.
1. Campo Cultural: demarcando territórios ideológicos
Para iniciar nossa reflexão, buscamos entender o campo
cultural como um território cultural ideológico, no qual os
indivíduos e grupos humanos se identificam com modos de ver,
pensar, agir e se expressar. Nesse sentido, o território não deve
ser entendido como sinônimo de espaço nem lugar. Andrade
(1996) aponta que esse termo deve ser associado à idéia de
domínio, poder e gestão de um espaço específico. Ao habitarem
um território, as pessoas passam a se conscientizar que fazem
parte dele, confraternizando-se umas com as outras, gerando,
201
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
com isso, o sentimento da territorialidade. Um país pode possuir
um grande espaço, mas não possuir um território. Para
territorializar este espaço, é necessário promover a sua gestão.
Por outro lado, a territorialidade também deve ser vista como
um processo subjetivo de conscientização da população de se
integrarem ao território.
Ao mesmo tempo que um grupo de pessoas, com
interesses ideológicos específicos, podem promover a
territorialização, é possível também que aconteça a
desterritorialidade. Ou seja, a resistência à territorialização pelos
grupos que se sentem lesados com a ampliação do domínio de
grupos externos, afetivando-se assim choques culturais. Em
resumo, as concepções de território, territorialidade e
desterritorialidade têm conotações tanto econômicas quanto
antropológicas e sociais. Para o pesquisador Edgar Aparecido da
Costa (2009), do mesmo modo que é construído, o território é
destruído e depois reconstruído. Neste processo os sujeitos
territoriais perdem e ganham novas identidades. Ratifica a
f
çã
M c
ué
qu (2007, 163), “há
,
recriação, novas territorialidades, novas identidades, novos
arranjos territoriais, redefinições, novos significados, com desc
u
” Mu
z
ã ê c cê c
completa do território que integra. Não conhecem os interesses,
o jogo e os conflitos de forças ideológicas, as normas que os
compõe, apesar de senti-las, segui-las e respeitá-las.
(...) o território tem um forte traço de
imaterialidade, tanto que não é preciso que
sua regulamentação seja materializada em
formato de Lei para que seja respeitada,
obedecida pelos seus componentes, a
exemplo de muitos territórios das guangues,
202
ANAIS - 2013
dos traficantes, das milícias (APARECIDO
DA COSTA, 2009, p. 63).
Conforme o autor nos apresenta, ele resulta do
relacionamento humano, social, cultural e político de um
ambiente físico que se transforma e é transformado pela
sociedade. O uso do território é uma maneira de se compreender
“
é
u
a terra, organizarem o espaço e de dar significado aos lugares,
u
x
ã g g áf c
c ”(b
, 66)
Para compreender um território e integrar-se, é preciso
conhecer os conceitos de ideologia, consciência e hegemonia.
P
Lu (1995,
20), ( )“
g
organizado: complementos de valores, orientaciones y
predisposiciones que forman perspectivas ideacionales
expresadas a través de la comunicación mediada
c
gc
” O autor defende que algumas ideologias
podem sofrer grande resistência dos receptores ou serem
absorvidas com êxito. O pensamento organizado nunca tem
como característica a inocência, pois refletem ideias de
indivíduos, grupos de pessoas e instituições, mesmo que não
seja possível percebê-las claramente.
O termo ideologia retrata ainda, a relação entre a
informação e o poder social sob uma contextualização política,
econômica e cultural. Quem na sociedade detém em suas mãos o
poder político e econômico acaba por definir, através de
diversos meios de comunicação, ideias específicas, manipuladas
para construir a informação pública e o imaginário social,
fixando dessa forma a ideologia dominante que representa os
interesses materiais e culturais de seus criadores. Lull (op.cit.,
p.20) afirma,
203
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Quienes
construyem esas ideologias
g
f
u
‘
f
có ’ u
u
có
procede directamente de la capacidad que
tienen para articular públicamente sus
sistemas de ideas preferidos. Por
consiguiente, la ideologia tiene fuerza
cuando puede ser representada y
comunicada.
Nota-se que as elites informacionais impregnam a
sociedade com seu pensamento organizado dominante pelo fato
de controlarem as instituições que distribuem as formas
simbólicas de comunicação, inclusive os meios de comunicação.
Estes últimos difundem e legitimam tendências ideológicas
entre o público de forma persuasiva, fortalecendo seus
significados e ampliando seu impacto social. A mídia de forma
geral tem a capacidade de distribuir representações e promover
no público a aceitação e a circulação de temas dominantes. O
autor (op. cit.) defende ainda que a ideologia não só é integrada
por representações simbólicas particulares, mas também é
transmitida por meio de uma gramática de produção por meio da
qual a mídia universaliza um estilo de vida.
f
qu “
presentación repetida de esferas ideológicas partidistas persiste
f
‘
c
’ cu u ,
cu
g
uy x u
é
” ( 25)
A ideologia nos parece familiar e é normalizada da
mesma forma que na relação social cotidiana, na qual a
linguagem e outros códigos de comunicação são aprendidos e
reforçam o contexto da interação social do dia-a-dia. Isso
explica o processo de mediação social, no qual o público
reconhece, interpreta, edita e utiliza as representações
ideológicas dos meios de comunicação de massa na sua
204
ANAIS - 2013
construção social da vida diária. Ao remeterem as informações
da mídia em suas conversações diárias, as pessoas articulam e
revalidam socialmente os temas oferecidos. O imaginário social
mediado torna-se referência para o mundo real, o que resulta em
análises sociais extremamente complexas.
O domínio que a transmissão da ideologia exerce sobre a
consciência é tão expressivo que aqueles que estão no poder têm
a capacidade de penetrar no pensamento e influenciar as ações
humanas. Por mais que o público crie resistências para aceitar as
ideias transmitidas pelos meios de comunicação de massa, isso
só acontece depois de ter recebido os temas dominantes
difundidos pela mídia. Os meios de comunicação e outras fontes
de informação visam modelar a consciência tanto individual
quanto a coletiva, de modo que elas reverberem os temas
oferecidos pela mídia que representa a corrente ideológica
dominante e incorpore uma forma de pensamento e uma conduta
social que harmonize com estas idéias. As pessoas geralmente
não percebem que os meios de comunicação modelam seus
pensamentos, pois a persuasão acontece não somente no
momento em que estão expostas à informação.
Apesar da forte influência dos meios de comunicação na
vida cotidiana das pessoas, nenhum indivíduo, grupo social ou
instituição consegue difundir uma ideologia de forma tão eficaz
que não encontre resistência da reflexão do público. A
transmissão ideológica da mídia não é perfeita e as pessoas não
são apáticas imitadoras. Os emissores precisam conquistar sua
hegemonia ideológica, ou seja, encontrar um método com o fim
de obter e manter o poder.
, gu
Lu (
c ), “h y
la influencia ideológica es esencial en el ejercicio del poder
c ” Nesse sentido, concorda com Gramsci e Stuart Hall, que
afirmam que a mídia é um instrumento utilizado pelas elites
dirigentes para perpetuar seu poder difundindo sua filosofia,
205
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
cultura, moral e pontos de vista. A classe dominante estabelece
os limites mentais e estruturais do território em que vivem as
classes subordinadas, oferecendo significados que sustentem a
subordinação.
A hegemonia está intimamente ligada com a
representação ideológica da cultura. Ela persegue que suas
propostas ideológicas se transformem em crenças culturais
autoevidentes, onde as pessoas subordinadas admitam a
ideologia dominante como sua realidade normal traduzida em
experiências físicas e de consciência cotidianas. Assim, a
h g
c b
“E c
social puede llegar a ser um médio de control más eficaz que la
c có
fu z ” (Lu ,
cit. p. 53). Entretanto, a
hegemonia é na realidade muito frágil e tem que ser reafirmada
constantemente por meio de um trabalho ideológico contínuo
dos indivíduos e grupos de interesse. A hegemonia fracassa
quando sua ideologia não consegue deter a resistência social,
reconhecida como contrahegemônica, revelada em pessoas que
representam a independência de pensamento e a criatividade em
estilos de vida e valores.
Propomos que a integração com o espaço territorial
acontece por meio de uma tomada de consciência cultural, que
pode ser difundida e fortalecida pelos meios de comunicação de
massa locais. No entanto, essa consciência cultural somente
torna-se possível, se o público passa a estabelecer contato com
um discurso ideológico que conceitue e direcione qual é a
cultura que representa os indivíduos de uma determinada
comunidade, para que possam adquirir consciência de sua
identidade cultural.
206
ANAIS - 2013
2. Conceituando o termo “Cultura”
No
g “Reconsidering Culture, Counterculture, and
N
h ugh T
cá L ”,
qu
I
State University, Baldwin (2012) traz luz à pesquisa cultural e
b
f xõ
b
f çã
“cu u ”
c
desse fenômeno na sociedade pós-moderna.
Segundo
Baldwin
(2012),
pesquisadores
têm
questionado o que significa precisamente a cultura como um
vocábulo acadêmico. Ele defende que é de fundamental
importância esse raciocínio, pois a forma como as pessoas
interpretam a cultura vai influenciar o que os pesquisadores irão
estudar, como estudarão suas definições e o que farão com o
conhecimento adquirido para depois implementá-lo de forma
prática. Acredita, ainda, que a dificuldade aumenta quando se
considera no estudo a cultura popular e a influência do Estado
na própria definição de cultura, pois são escassos os locais que
promovem esse diálogo.
O autor discorre que no mundo acadêmico existem
diversas definições concorrentes do termo cultura. Sugere que é
um termo polivalente, assumindo junto com outros pensadores
uma visão crítica ou pós-moderna da cultura. Assim como,
Donald e Rattansi (1992), afirma que a cultura não deve mais
ser compreendida de forma simplificada, caracterizada como
crenças religiosas ou rituais culturais, mas da maneira como
estas expressões são produzidas por meio de sistemas de
significados, inseridos em estruturas de poder, e disseminados
pelas instituições em que estes são implantados. Referenda
ainda a visão de Moon (2002), caracterizando-a como uma zona
de contestação em que grupos diversos lutam para determinarem
assuntos de interesses próprios. Levando em consideração a
noção de cultura como "estrutura dominante ou hegemônica",
207
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
defende que a conceituação de cultura é em si política e deve ser
inserida num contexto, sem deixar-se de lado um compromisso
ético/moral.
Raymond Williams, escritor de estudos culturais, citado
por Baldwin, a define como "um modo de vida particular, que
expressa certos significados e valores não apenas na arte e na
aprendizagem, mas também nas instituições e comportamentos
ordinários". Autores como O' Sullivan e seus colegas em Fiske
(1992), desdobraram esse foco nas instituições e incluíram os
significados que socialmente "produzem e reproduzem",
adicionando, mas não limitando a reprodução através de cultura
de massa. A cultura é agora vista como uma parte determinante
da atividade social e, portanto, é uma esfera importante para a
reprodução das desigualdades de poder.
Percebemos que para Baldwin (2012, p.54) esse
vocábulo é multi-discursivo, e pode ser mobilizado em inúmeros
discursos, de maneira que os estudiosos não podem apresentar
uma definição fixa de cultura em todo e qualquer contexto e
esperar que ela faça sentido. É preciso identificar o contexto
discursivo em si. A definição é determinada pelo próprio termo
em seu contexto discursivo.
É preciso conhecer as conceituações modernas de cultura
para se construir uma abordagem sobre a realidade da vivência
cultural sul-mato-grossense. Pois a nossa interpretação de
cultura implicará nos métodos que escolheremos em nossa
investigação social, nas intervenções que implementaremos em
nossa esfera social, e na ética de nossa comunicação dentro e
por meio das culturas.
Importa também considerar que antigas definições de
cultura predominaram por muitos anos. Entre elas a de Kroeber
e Kluckhohn (1952), apontadas por Baldwin (2012):
208
ANAIS - 2013
Cultura consiste de padrões, explícitos e
implícitos, de e para o comportamento
adquirido e transmitido por símbolos,
constituindo as realizações distintas de
grupos humanos, incluindo as suas
personificações em artefatos. O núcleo
essencial da cultura consiste em ideias
tradicionais (isto é, historicamente derivado
e selecionado)
e, especialmente, seus
valores anexados; sistemas de cultura
podem, por um lado, ser considerados como
produtos de ação, por outro, como
elementos condicionantes da ação.
Olhando-se para o desenvolvimento da noção de cultura,
é possível observar que as definições de cultura estão
relacionadas com o sentido de "cultivo" (baseadas sobre a noção
de cultivo, do latim colere, muitas vezes traduzido como um
elevado sentido de classe ou de desenvolvimento moral e
educacional. Baldwin (op. cit.) afirma que alguns cientistas
sociais denunciaram esta definição como elitista, afirmando que
todos os grupos de pessoas possuem cultura.
A partir de nossas análises, percebemos que alguns
pesquisadores sul-mato-grossenses ainda possuem como
referência essa definição que se encontra enraizada nas práticas
culturais disseminadas no âmbito do governo estadual. A
Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, representante do
governo estadual, figura como uma das principais instituições
que estabelece o discurso ideológico da cultura nos territórios
local e regional. Dessa forma, apresenta-se uma situação que
precisa ser repensada. Deve-se selecionar e defender definições
que representem a identidade cultural de Mato Grosso do Sul e
os habitantes de seu território com coerência e que estejam
209
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
harmonizadas e consoantes com a realidade histórica e sóciocultural deste território, contemplando as identidades e etnias
diversas que nele habitam. Mas vale mencionar, também, que
alguns estudiosos de comunicação locais, já têm visto a cultura
em termos de padrões de símbolos e significados, como um
processo contínuo de comunicativo co-construção.
Destacamos que o caráter estadual sobre a representação
da identidade deve estar na agenda da pesquisa acadêmica, pois
assim como Adorno (1991) argumenta, citado em Baldwin
(2012), a face comercial da cultura faz com que a diferença
entre cultura e vida prática desapareçam. Não é possível refletir
sobre cultura sem voltar os olhos à sua administração, ao papel
da economia, do Estado e das empresas na formulação dessa
cultura.
Afinal, assim como acredita Fiske (1992), a cultura do
dia-a-dia é aquela de práticas concretas que representam e
executam diferenças. Estas diferenças constroem uma esfera de
luta entre os indivíduos que constituem a disciplina social e a
popularidade. Essas diferenças produzidas têm a capacidade de
preencher e ampliar os espaços e poder do povo.
3. O jornalismo na formação de consciência e opinião
pública
Ao entender notícia como sinônimo de jornalismo, Park
(1972, p. 174) sustenta que esta registra acontecimentos isolados
à medida que eles ocorrem. Como forma de conhecimento, dá
atenção ao presente, e somente depois da publicação e do
reconhecimento público de sua significação, é que a notícia se
transforma em história. De acordo com esse autor (op. cit.
p.175)
210
ANAIS - 2013
(...) o relato de uma notícia é um mero
“
j ”
u c qu u c
c
ocorreu. Se o ocorrido tiver real
importância, o interesse por ele acarretará
novas indagações e um conhecimento mais
completo das circunstâncias em que se
verificou. (...) o conhecimento não chega ao
público, como chega ao indivíduo, em forma
de percepção, mas em forma de
c u c çã ,
é,
íc ”
Em consonância com essas ideias, destacamos que a
função da notícia e, consequentemente, do jornalismo, é
informar e orientar os indivíduos oferecendo os contextos de
acontecimentos relatados por meio de interpretações
compreensíveis e que têm a intenção de serem interessantes. A
notícia evoca no indivíduo a vontade de repeti-la a outra pessoa,
gerando assim conversações, comentários, discussões e outras
interpretações. O choque de ideias acaba se transformando em
consenso ou opinião da coletividade. É o que Park (ibidem,
182)
ã úb c “É
çã
acontecimentos presentes, ou seja, da notícia, que se funda a
opinião pública. Essa atenção pública tende a aumentar a
influência da pessoa ou das pessoas dominantes na
c u
”
A notícia tende a circular numa área que se amplia cada
vez mais, à medidade que se multiplicam os meios de
comunicação. Na sociedade a notícia fundamenta suas
discussões formando a opinião pública. Ela orienta ideias,
consciência e atitudes do homem e da sociedade num mundo
real. Sua importância aumenta constantemente com a expansão
dos meios de comunicação, afinal ela coopera com a
acumulação de conhecimentos na sociedade tornando possível
211
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
uma interpretação mais rápida e completa dos acontecimentos à
medida que ocorrem. As pessoas, que hoje têm a possibilidade
de formar opiniões utilizando-se dos meio de comunicação,
participando dos acontecimentos sociais, fundamentando assim
a opinião pública, ao menos esperam que o jornal diário
publique em suas páginas a interação das diversas vozes
(discursos) que integram o território social simbólico. E no caso
do jornalismo cultural, a interpretação simbólica dos fatos e
acontecimentos culturais não pode abster-se da crítica.
E
gc
,
“c í c ”
g g “k
”,
qu
g f c “ju g ”
(2009) c
qu
L y
Perrone-Moisés (1998), a crítica explica-se como um
julgamento reflexivo e não determinante, que admite valores por
meio de consenso, ainda que estes sejam provisórios. Ao
estabelecer-se o consenso fixam-se critérios que sustentam
valores estéticos, reconhecidos e legitimados pelos sujeitos
sociais.
A seguir, apresentamos ao nosso leitor, de forma breve,
algumas noções sobre a perspectiva teórica utilizada para
análise do córpus.
4. O discurso
A análise do discurso considerada como um estudo da
linguagem, segundo Barros (2003), supera o âmbito da palavra
ou da frase e volta o olhar científico para a organização
z
x
ux
x
“
çõ
enunciação e o discurso enunciado e entre o discurso enunciado
e os fatores sócio-históricos que o constr
” N
,
perspectiva da semiótica francesa, busca a explicação do sentido
do texto incluindo-se os mecanismos e procedimentos que
constroem esses sentidos. A autora esclarece que,
212
ANAIS - 2013
(...) o texto se organiza e produz sentidos,
como um objeto de significação, e também
se constrói na relação com os demais objetos
culturais, pois está inserido em uma
sociedade, em um dado momento histórico e
é determinado por formações ideológicas
específicas,
como
um
objeto
de
comunicação (p. 88).
No entanto, cabe ressaltar que há, nesta perspectiva
teórica, uma distinção entre texto e discurso, sendo que este
último se configura na última etapa da construção dos sentidos
no percurso gerativo da significação, apresentando-se de
maneira mais concreta e complexa e inserindo-se no plano de
conteúdo dos textos. O percurso gerativo dos sentidos é o
mecanismo metodológico que vai examinar o plano de conteúdo
de um texto.
O percurso gerativo de sentido é um fluxo de categorias
passíveis de serem descritas de forma adequada e que atuando
c
u “ u c
óg c ”,
uçã
a interpretação do sentido, numa sequência que percorre do
nível mais simples ao nível mais complexo. Fiorin (2002, p.17)
apresenta como três estas categorias do percurso: o nível
fundamental (ou profundo), o narrativo e o discursivo. Cada
nível é integrado por um componente sintáxico e um semântico.
O nível narrativo no percurso gerativo de sentido está
relacionado com a transformação do conteúdo, em que a
narratividade atua como um elemento da teoria do discurso. Na
classe de discurso, a narração liga os personagens
individualizados a estados e transformações por meio de
enunciados. Os enunciados de estado determinam uma relação
213
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
de disjunção ou conjunção entre um sujeito e um objeto e os
enunciados de fazer demonstram as transformações.
A análise feita neste artigo dará atenção ao nível
discursivo, no qual as formas abstratas do nível narrativo
aparecem revestidas de termos que lhe dão concretude. Nesta
categoria a narrativa é, segundo Barros (2005, p.191), situada no
tempo e no espaço e os atores do discurso (sujeitos, objetos,
destinadores e destinatários) são desvendados em termos
semânticos de pessoa, em temas que configuram os valores dos
objetos e que posteriormente são transformados em figuras.
Segundo Fiorin (op. cit. p. 69), na relação entre temas e figuras,
desencadeia-se um processo de simbolização, estabelecendo-se
para uma figura apresentada, uma interpretação temática
específica. Assim o símbolo define-se como uma figura em que
a interpretação temática é fixa. Ele atua sempre como um
elemento concreto que veicula um conteúdo abstrato. O nível
f gu é “ ug
g
f
çã
g ” (b
,
75), c c z
ores
semânticos. Somente neste nível é possível demonstrar que o
nível narrativo pode manifestar universos ideológicos variados.
O discurso é a matéria-prima do jornalismo. Na
perspectiva da semiótica francesa, a enunciação configura-se por
meio dos esquemas narrativos assumidos por sujeitos que
converte-os em discurso. Quando a enunciação é efetivada, ela
apresenta marcas no discurso construído, apesar de que nem
sempre seus elementos encontram-se manifestados claramente
no enunciado.O sujeito da enunciação é sempre um eu que
manifesta-se na produção discursiva, situado num espaço e num
tempo. Para se realizar a análise de um discurso, em sua sintaxe,
é preciso estudar as marcas da enunciação no enunciado. Isso é
possível por meio dos procedimentos da discursivização, da
actorialização, da espacialização e da temporalização. Um
214
ANAIS - 2013
enunciado não existe sem a prerrogativa de existência de um
receptor, conceituado pela semiótica francesa como
enunciatário. O enunciador tema função de persuadir o
enunciatário com procedimentos argumentativos e este vai
interpretar a mensagem. Estabelecem-se assim as projeções da
instância da enunciação no enunciado e as relações entre
enunciador e enunciatário.
Considerando a comunicação não como um ato de
informar e sim de persuadir, a linguagem, ao ser um instrumento
de produção de sentidos, tem como finalidade convencer o
enunciatário a crer na mensagem transmitida. Nesse sentido, a
argumentação aparece como um conjunto de procedimentos
linguísticos e lógicos usados pelo enunciador para convencer o
enunciatário. Todos os discursos possuem procedimentos
argumentativos. Um deles é a ilustração, que por meio de um
caso particular busca comprovar a verdade geral enunciada. Por
mostrar diversos modos de ser ou de fazer, notamos que o
jornalismo cultural utiliza fortemente este procedimento para
persuadir o leitor a concordar com suas afirmações acerca das
questões culturais.
A tematização e a figurativização também são níveis de
concretização de sentido semânticos encontrados no discurso
jornalístico cultural. A figura é o termo que remete a algo do
mundo natural, que se fundamenta em um sistema de
representação que tem um correspondente perceptível no mundo
natural existente ou construído (Fiorin, op. cit. p. 65). Os temas
têm uma natureza conceitual que não remete ao mundo natural,
porém funciona como categorias que organizam, categorizam e
ordenam os elementos do mundo natural. Existem dois tipos de
textos: os figurativos e os temáticos. Os figurativos criam um
efeito de realidade construindo um simulacro da realidade para
representar o mundo. Os temáticos explicam a realidade
215
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
classificando e ordenando a realidade significante configurando
relações e dependências. Os discursos figurativos têm uma
função descritiva ou representativa, enquanto os temáticos têm
uma função predicativa ou interpretativa. A classificação que se
dá a discursos como temáticos ou figurativos resulta da análise
dos elementos abstratos ou concretos que dominam o texto.
O autor (op. cit. p. 76) afirma também que diferentes
textos podem tratar do mesmo tema, contudo a abordagem é que
se apresenta de diferentes formas. Os percursos temáticos que
tornam explícitos o tema geral são diferentes e os percursos
figurativos que os revestem também. Esse tema geral
encontrado em diversos discursos constitui não necessariamente
um tema, mas demonstra uma configuração discursiva que
apresenta diversos percursos temáticos.
5. As análises
Essa configuração discursiva somente pode ser
apreendida confrontando-se os diversos discursos. Percebemos,
assim, que num caderno cultural existe uma configuração
cu
P
x
,
“cu u ”,
desdobrau
“ ub
” cu u
Bu c
,
então, estudar essas proposições por meio das análises do nosso
córpus.
O Caderno Especial - Festival de Inverno de Bonito do
j
“O E
M ”,
u c
( ág
F1)
chamada Mergulho Cultural. Segundo maior encontro de artes
E
, “F
I
B
” é u g
espetáculo. No nível narrativo o texto convida o leitor a passar
de um estado de disjunção com a cultura para um estado de
conjunção com as manifestações culturais, por meio de um
mergulho em um grande espetáculo. O que é o espetáculo?
216
ANAIS - 2013
Conforme apresentado no dicionário é “ u
que atrai a vista
u
çã ”, “
g
u
á ”, “qu qu
representação pública que impressiona ou é destinada a
impressionar a vista por sua grandeza, cores ou outras
qu
”, “representação teatral, cinematográfica, circense" e
“ x b çã
b h
í c ” (M ch
, 2001, 134)
Nesse enunciado subjaz todas essas definições que
apresentam o Festival de Inverno de Bonito como um evento
que atrai e prende a atenção, que é grandioso e notável pelas
qualidades auditivas e visuais da manifestações culturais que no
local acontecem, entre elas as representações teatrais,
cinematográficas, circences e, também, exibições de outros
trabalhos artísticos.
A ideia do enunciado da capa é reforçada no artigo
presente na página F2, de autoria do presidente da Fundação de
Cultura de Mato Grosso do Sul, enunciador representante da
voz/ fala do Governo do Estado que busca persuadir o leitor
enunciatário de que o evento merece sua atenção. Além disso, o
discurso sobre a cultura no evento Festival de Inverno de Bonito
busca gerar paixões empáticas eufóricas de prazer na conjunção
sujeito-objeto. A ilustração é o procedimento argumentativo
u z
u
z qu
u
fc
f
qu “
ácu c
u ”,
c
discurso apresenta uma
série de exemplos que irão confirmar a afirmativa inicial. No
enunciado deste artigo, o esquema narrativo básico: mergulho
num espetáculo cultural é tematizado como um evento
grandioso. A partir de então o enunciador descreve como
exemplo de manifestação desta grandiosidade, a bênção do
poeta consagrado nacional e internacionalmente, Manoel de
Barros, o coro de um público de mais de dez mil pessoas que
presenciaram emoções palpáveis, uma multidão encantada com
um show na grande tenda do festival, mais de trinta mil turistas
217
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
presentes, um recorde de público de 60 mil pessoas e o aporte de
cinco milhões de reais na economia local no período do festival,
a difusão do potencial turístico incomensurável da bela e
encantadora cidade de Bonito. O festival também tem de tudo
para todos, até para as crianças com sua inesgotável energia. As
diversas atividades ofertadas mais o público fazem uma festa!
Os artistas plásticos engrandecem o evento, os grupos de dança
e os espetáculos teatrais e de comédia têm sucesso com a
circulação permanente das pessoas por todos os espaços. Os
artistas que atuam em Mato Grosso do Sul são orgulho para
todos que moram no Estado e os artistas nacionais fazem
tributos pujantes, põem o povo para dançar, galvanizam os
espectadores, renovam a música popular e causam adrenalina
pura.
A assinatura de todo esse espetáculo grandioso é
hierarquicamente apresentada como a grande ação do governo
do estadual, seguida pela da prefeitura de Bonito e outros
parceiros que não são nomeados que recebem a aprovação com
aplausos de quem ama a arte, a cultura, a cidade de Bonito que é
puro frisson e o que é bonito. Quem vai ao festival são as
pessoas bonitas e interessantes e que aprovam o grande
espetáculo. Neste artigo o representante oficial fala diretamente
ao leitor criando um efeito de sentido de intimidade.
De modo geral, todo o caderno especial faz uma
cobertura escrita com forte apelo emocional, criando um efeito
x
c c
qu
I
é
f
“
importância de Manoel de Barros para Mato Grosso do Sul está
no carinho do escritor pelo estado e principalmente pela
u z
P
”
c
c çã
de sua trajetória de vida desde o nascimento e na confissão de
que o escritor prefere permanecer ao lado de sua família,
enaltecendo o sentimento familiar e de amizade, expondo a
218
ANAIS - 2013
relação do poeta sul-mato-grossense com o escritor Carlos
Du
O íu
é
ág
3 “O
u
Águ ” f gu
z
b h do personagem
homenageado, poeta Manoel de Barros. A água simboliza o
movimento da vida traduzido na poesia do escritor. O texto
busca demonstrar que quem percorreu o caminho de Manoel de
Barros, localizado na rua Pilad Rebuá, entrou em conjunção
com o prazer que a leitura da poesia pantaneira proporciona. A
temática da humildade e delicadeza do poeta é proposta pelo
jornal, que cria um efeito de realidade por meio da citação do
túnel de painéis com inscrições da simplicidade e generosidade
das coisas da natureza presentes nos escritos de Manoel de
Barros que segundo o enunciador tinha um design chamativo.
é
u
“ f
ú c ”,
páginas F4 e F5 traz a temática do sucesso da integração das
pessoas na grande festa promovida durante esse festival. As
apresentações musicais que aconteceram nos dias 27 e 28 de
julho de 2012 apareceram como argumento ilustrativo da
concretização do encontro cultural de pessoas no Palco Fala
Bonito e na Grande Tenda, que vinham de diversos municípios
de Mato Grosso do Sul. O apresentador também representava
um reforço do argumento inicial exaltando a integração de
forma lúdica e dando destaque ao aumento do público no evento
no fim de semana, segundo a matéria. Outros argumentos
ilustrativos são percebidos na citação do sucesso de público com
o destaque dos números oficiais de espectadores dos shows e da
f
c
F cã qu
“É ã
u
ju ” O
cu
c
R b
á f ch
integração cultural dizendo que finalmente teve a oportunidade
de participar da grande festa que o festival realiza.
I u
“Mú c R g
c
ç
gu
f
E
”,
é
bé
ub c
219
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
páginas F4 e F5 traz a temática da territorialização da música
regional produzida pelos artistas sul-mato-grossenses. A
conquista do território aparece figurativamente com a descrição
dos músicos presentes e a popularidade dos estilos apresentados:
“ c
K
M qu
b
J y E í
Pétalas de Pixe, Os Beatles Maníacos, Naip e os Músicos Maria
Cláudia e Marcos Mendes concederam charme ao encontro e
f ç
ç
g
”
f
çã
sentimento de territorialidade aparece de forma indireta,
sugestionando a objetividade jornalística na fala da estudante
Isabela Corsini e de seu filho Enzo que elogiaram os artistas e a
g
çã
“( ) u
,
há
oito anos aqui e a gente sempre vem para o Festival de Inverno
g
( )”
A maté
c
íu “
ê c
c
c
u b
”, u
ág
F6, z c
tema o encantamento do público com as apresentações artísticas
cênicas do evento. O discurso do texto apresentado pela
jornalista Tatiana Pires é mais objetivo no sentido jornalístico,
ug
c
c
çõ “
livre no Palco das Águas e no Centro de Convenções da cidade)
e descreve os tipos de manifestações artísticas (teatro, dança,
circo) e o número de público. Esse discurso apresenta recursos
que transmitem a simulação de distanciamento e fidelidade à
realidade do evento, sendo utilizados como estratégias de
enunciação. A objetividade é vista pelos jornalistas como um
dos recursos para desviar a atenção do leitor dos filtros da
realidade construídos a partir do sistema de valores do jornal
não se mostra como um sujeito social que atua representando
determinados interesses sócio-políticos no que noticia. No
cu
x
x c çã
u “ u” é
a
utilização da terceira pessoa na reportagem, transmitindo ao
220
ANAIS - 2013
leitor a ideia de que o próprio assunto se auto-apresenta. O
jornal também persuade o leitor de que o recorte da realidade
que fazem ao produzir a notícia é a própria realidade,
apresentando diálogos. Neste contexto, os adjetivos são evitados
e o texto é caracterizado como temático porque ele apresenta as
sinopses dos espetáculos nas quais descrevem sentimentos dos
personagens e explicações sobre os temas apresentados. Ao
conceder voz aos entrevistados, cria-se a ilusão de situações
“
”
á g cu u , c
/ z
diversos grupos de artes cênicas que participaram do evento.
N
ág
F6,
í u “M
c
ã
g z
ç ”,
um tom mais
interpretativo à matéria que discorre sobre o tema competência
das companhias de dança de Mato Grosso do Sul. Neste texto, o
discurso interpretativo é predominante. Para produzir o efeito de
objetividade, a autora mostra envolvimento com a história
narrada por meio do uso de adjetivos e advérbios, sendo que a
subjetividade do texto é demonstrada pelo público como
resultado de dados apresentados. Nesta situação, o enunciatário
é conduzido a acreditar que o julgamento realizado pelo
enunciador fic
f
“P
c
g f
,
f
,
c
”
“
ê
companhias de dança do Estado vidraram os olhos dos
c
” x
fc
ju g
u c
b
o trabalho executado pelos grupos de dança que atuam em Mato
Grosso do Sul. A excelência do trabalho aparece figurativizados
f
“
gu
I Y
D ç
u
movimentos que remetiam a asas e a conexão do corpo com a
”
í u “O
qu
bé
ç
espec ”,
é
c z
ág
F7 z
uma voz que representa o discurso oficial com a afirmação da
221
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
gestora de artes e cultura da Fundação de Cultura de Mato
Grosso do Sul, Cristina Moura. O tema apresentado é a
conscientização ambiental, figurativizado pela literatura
regional, jogos e oficinas práticas com a utilização de materiais
reciclados. A linguagem do texto é objetiva apresentando dados
c
“ 100 c
ç
c
estímulo pelo interesse de ações cu u ”
ã u z u
adjetivos.
é
“V
k
M T
c
f
”,
z c
çã
í c
expressão audiovisual. Ela também apresenta como
procedimento argumentativo a ilustração discorrendo sobre a
experiência dos produtores audiovisuais na captação de vídeos
de situações corriqueiras e absurdas sob um novo olhar. No
texto predomina a objetividade, produzindo um efeito de sentido
de distanciamento, com a utilização da 3ª pessoa e explicitando
a voz dos videomakers e do público, representada pela
f
uzy
új
f
: “É b
b c
b h
”
Na página F8, o consumismo foi o tema explorado na
g
“Mu
Mx f
u
á ”,
apontando o consumo de produtos culturais diversificados e
sustentáveis. A questão das diversas opções de consumo foi
figurativizado pela descrição dos artigos como tapetes,
bijuterias, roupas, luminárias, entre outros. O tema da
sustentabilidade configura-se na opinião do público, e dos
c
c
c c
u
V é D’ á u
artesão Raul Menezes. O texto da matéria em questão é
apresentado de forma predominantemente objetiva e a utilização
da 3ª pessoa na reportagem cria junto ao enunciatário um efeito
de distanciamento, reafirmada na voz dos entrevistados,
representados pelos artesãos e comerciantes presentes no evento.
222
ANAIS - 2013
O intercâmbio cultural entre produtores é tema da
é “P
hã
câ b ”, qu
ser depreendido por meio de citações das manifestações
culturais como artes plásticas, artesanato, literatura, música e
moda. O discurso é opinativo apesar de produzir efeitos de
f
ã L
D’Á
e Deonilda Miller. Entretanto a matéria não consegue abranger o
intercâmbio sugerido inicialmente das diversas manifestações,
pois as outras expressões culturais apontadas não possuem
representações nas vozes de outros produtores. Já a reportagem
“Of c
f
x
cc
”,
exemplificam o tema integração e intercâmbio cultural de forma
mais abrangente, mantendo o discurso objetivo e dando voz à
artista plástica Fernanda Castro nas explicações da importância
do seu trabalho, à educadora Lira Delquech que discorreu sobre
a finalidade das oficinas de artes pláticas no evento e
descrevendo o trabalho do artista plástico Cláudio Tozzi com o
uso da 3ª pessoa.
(IN) CONCLUSÕES
Nossa análise do Caderno Especial - Festival de Inverno
B
j
“O E
M ”
,
meio das figuras
e temas apreendidos, a ausência da crítica cultural ao apresentar
predominantemente uma perspectiva eufórica do Festival de
Inverno de Bonito, dando destaque às afirmações positivas dos
sujeitos participantes do evento e à opinião de sujeitos que
representam a voz oficial. As argumentações ilustrativas do
conteúdo do discurso reforçam a conceituação de grandiosidade
do evento e o posicionamento conceitual de cultura é diverso,
denominada como manifestações artísticas, compartilhamento
de identidades, produto de atividades significativas (expressões
223
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
artísticas), produto de representações e significações (texto,
literatura) e domínio ideológico.
Referências
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áreas de fronteira. In: APARECIDO DA COSTA, Edgar ;
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Estudos Fronteiriços. Campo Grande, MS: Editora UFMS,
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Sonia (org). Geografias da comunicação : espaço de
observação de mídia e de culturas. São Paulo: INTERCOM,
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Luiz (org). Introdução à linguística II: princípios de análise.
São Paulo: Contexto, 2003
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nacional e do poder local. In: SANTOS, Milton et. al.
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224
ANAIS - 2013
HERNANDES, Nilton. A Mídia e seus Truques – o que
jornal, revista, TV, rádio e internet fazem para captar e
manter a atenção do público. São Paulo: Editora Contexto,
2006.
LULL, James. Medios, Comunicación, Cultura. Buenos Aires:
Amorrortu, 1997
PARK, Robert. A notícia como forma de conhecimento. In:
STEINBERG, C. S. Meios de comunicação de massa. São
Paulo: Cultrix, 1972.
225
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Análise crítica do discurso: expressões multimodais e
contextos
Regina Célia Pagliuchi da SILVEIRA1
RESUMO: Este trabalho está situado na Análise Crítica do Discurso
(ACD) e tem por tema a contribuição dada pela categoria Cognição
para a análise de textos multimodais do discurso publicitário. Com a
pós-modernidade e as mudanças sociais resultantes do aparecimento
das altas tecnologias, os textos multimodais ocupam lugar importante
nas interações discursivas. Anteriormente, os textos eram
preferencialmente verbais e quando construídos com outras semioses,
estas projetavam significações fixas, diferentes dos textos
multimodais que hoje são construídos de forma a inter-relacionar o
visual, a cor e o verbal, exigindo outras estratégias de produção e
processamento da informação. Dessa forma, a vertente Semiótica
Social da ACD tem objetivado encontrar novas perspectivas para
analisar de forma crítica a multimodalidade textual, a partir das
categorias Sociedade e Discurso. Este trabalho apresenta resultados
parciais de uma pesquisa mais ampla, inserindo a categoria Cognição
para tratar dos contextos selecionados para a construção multimodal
de anúncios publicitários.
PALAVRAS-CHAVE: anúncios publicitários; contextos e texto
multimodal; sociedade, discurso e cognição; análise crítica do
discurso.
Este texto está situado na área da Análise Crítica do
Discurso e tem por tema a contribuição da categoria Cognição
para analisar, de forma crítica, textos multimodais, anúncios
1
Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1974); professora titular do Departamento de Português da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected]
226
ANAIS - 2013
publicitários, a partir dos contextos selecionados para a
construção textual.
Tem-se por objetivos:
- geral: contribuir com a análise de textos multimodais;
- específicos: 1. Rever a noção de contexto, a partir das
categorias analíticas Sociedade, Cognição e Discurso; 2.
Examinar a seleção e a combinação de cognições sociais,
expressas em anúncios publicitários, com seus respectivos
contextos.
Entende-se que toda construção textual e a produção de
sentidos são elaboradas cognitivamente pelo processamento da
informação, na memória de trabalho das pessoas. Sendo assim,
entende-se que para analisar os discursos, de forma crítica, é
necessário inserir a categoria Cognição junto às categorias
Sociedade e Discurso.
O material analisado é constituído de anúncios
publicitários multimodais impressos, publicados em revistas
brasileiras, nos anos 2011 e 2012. As análises realizadas foram
orientadas pela inter-relação das categorias Sociedade, Cognição
e Discurso e objetivaram examinar as relações cotextuais entre
imagens, cores e expressões verbais, assim como os contextos
de sua produção discursiva.
1.
Análise Crítica do Discurso
A Análise Crítica do Discurso (ACD) está relacionada à
escola de Frankfurt e busca analisar o discurso para encontrar as
estratégias utilizadas pelo poder, a fim de impor ideologias que
passam a guiar a conduta das pessoas em sociedade, de forma a
discriminar grupos, conforme as decisões do poder. Nesse
sentido, a ACD tem por objetivo denunciar o domínio das
227
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
mentes das pessoas pela dialética entre os discursos públicos e
os eventos discursivos particulares.
De forma geral, a ACD é multi e transdisciplinar e
postula uma dialética entre o social e o individual, ou seja, o
social guia o individual e este modifica o social. Sendo assim,
centra-se em problemas sociais e busca analisar tanto os
elementos das práticas sociais quanto os das práticas
discursivas; logo, analisar o discurso de forma crítica requer
teorização e descrição tanto dos processos e das estruturas
sociais que dão lugar à produção de um texto quanto das
estruturas sociais e os processos com os quais os indivíduos ou
os grupos sociais, como sujeitos históricos, criam sentidos em
sua iteração com os textos.
Para uma visão crítica, três conceitos são importantes, a
saber: poder, história e ideologia. De forma geral, a ACD
reconhece a contribuição de todos os aspectos do contexto
comunicativo ao significado do texto. (cf. Wodak, 2003)
A ACD apresenta-se com diferentes vertentes, entre elas,
a social, a histórica, a semiótica social e a sócio-cognitiva. A
pesquisa realizada está situada entre a vertente semiótica social
e a sócio-cognitiva.
1.1. Vertente semiótica social
Segundo a semiótica social, há uma inter-relação,
perpassada pela ideologia, entre Sociedade e Discurso, de forma
que as mudanças sociais produzem mudanças nos discursos e
vice-versa. Com a pós-modernidade e a globalização, ocorre
uma mudança na sociedade, devido à descoberta e ao uso das
altas tecnologias: anteriormente, o acesso exclusivo ao público
era pela mídia e por outros veículos do poder; atualmente, o
228
ANAIS - 2013
acesso ao público é também individual e preferencialmente
realizado pelas redes sociais, devido à rapidez e por estarem fora
da censura.
Assim, a partir da década de 90 do século passado, com
as mudanças sociais e as altas tecnologias, ocorre o privilégio
dos textos multimodais para a interação comunicativa. Tais
textos modificaram-se. Anteriormente, ao se articular
modalidades diferentes com o verbal, aquelas apresentavam
significações fixas para seus significantes, como por exemplo,
as placas de trânsito, as indicações de direção, a venda de
produtos; dessa forma, a produção de sentidos focalizava o
verbal, para os letrados. Com as mudanças sociais, ocorrem
mudanças no discurso e os textos multimodais, passam a ser
construídos com diferentes semioses inter-relacionadas, de
forma que uma se projeta na outra, modificando-se.
Consequentemente, os textos multimodais atuais apresentam
dificuldades para a produção/compreensão discursiva.
Fairclough (2001) distingue três elementos que são
relativos aos efeitos constitutivos do texto, decorrentes do
discurso:
- a construção de identidades sociais e de posições para
os sujeitos sociais e o eu;
- a construção das relações sociais entre as pessoas;
- a construção de sistemas de conhecimento e crenças.
Esses três elementos correspondem respectivamente às
funções da linguagem postuladas por Halliday (1985):
- identitária, relativa aos modos pelos quais as
identidades sociais são estabelecidas no discurso;
- relacional, que diz respeito a como as relações sociais
entre os participantes do discurso são representadas e
negociadas; e
229
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
- ideacional, relativa ao modo pelo qual os textos
significam o mundo e seus processos, entidades e relações.
A essas três funções é acrescida a função textual que diz
respeito a como as informações são trazidas ao primeiro plano
ou relegadas a segundo, apresentadas como conhecidas ou como
novas e selecionadas como tema ou como comentário.
A semiótica social, embora apresente diferenças para
seus pesquisadores, segundo Kress e van Leeuwen (2001), deve
satisfazer a três requisitos, para ter uma visão crítica, ou seja:
a.
representar e comunicar aspectos relevantes das
relações sociais que intervêm na comunicação;
b.
representar e comunicar os feitos, estados de
coisas e de percepções que o produtor quer comunicar; e
c.
tornar possível a produção de mensagens que
tenham coerência, internamente no texto, e, externamente, com
aspectos relevantes do entorno semiótico, também designado
“c
x ”
Dessa forma, poder-se-á analisar os elementos verbais
com os não verbais e, para tanto, é necessário considerar como a
linguagem verbal e os elementos não verbais articulam-se em
uma peça discursiva, já que as imagens e as cores, a partir da
pós-modernidade, passam a ter certas funções, anteriormente só
desempenhadas por expressões verbais.
Já Faircloud (2001) propõe três dimensões para se
analisar o discurso de forma crítica: texto, prática discursiva e
prática social.
A dimensão do texto é analisada por uma série de
categorias, a saber: léxico, gramática, coesão e estrutura textual.
A dimensão da prática discursiva é focalizada pela
produção, distribuição e consumo de textos; nelas é abordada a
força dos enunciados, a coerência dos textos, a intertextualidade,
a representação do discurso, a pressuposição e o controle
230
ANAIS - 2013
interacional. A dimensão da prática social analisa a matriz social
e as ordens do discurso, assim como seus efeitos ideológicos e
políticos.
O discurso é visto como uma prática social que produz
textos diferenciados em gêneros, dependendo do uso social
deles. O texto é entendido como um produto enunciado por
diferentes semioses, inclusive a verbal.
Em síntese, os textos são analisados em seus elementos
construtivos; a prática discursiva, no uso de seus gêneros
textuais; e a prática social, em função dos participantes nas
funções e ações específicas de suas interações sociais, tais
como, por exemplo, o professor e seus alunos, em sala de aula; o
padre, os noivos, padrinhos, família e convidados, em um
casamento.
1.2
Vertente sócio-cognitiva
Conforme a vertente sócio-cognitiva, é necessário
postular três categorias para uma análise crítica do discurso:
Sociedade, Cognição e Discurso. Van Dijk é o maior
representante desta vertente.
Segundo o autor (1997), há uma inter-relação entre essas
categorias analíticas, de tal forma que uma se define pela outra,
pois todas as definições necessárias para uma análise crítica do
discurso decorrem das cognições seja as individuais, memória
autobiográfica, seja as sociais, memória social.
Dessa forma, segundo a vertente sócio-cognitiva, tem-se
por pressuposto que a interação comunicativa pelo discurso
decorre das formas individuais e sociais de representação mental
do que acontece no mundo, ou seja, formas de conhecimento
construídas nos e pelos discursos públicos institucionalizados e
por eventos discursivos particulares.
231
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Logo, toda a produção/compreensão discursiva perpassa
pela cognição.
Sendo assim, entende-se que:
A Sociedade é definida por grupos sociais, sendo que
cada qual é uma reunião de pessoas que têm os mesmos
objetivos, interesses e propósitos em comum. Dessa forma, a
estrutura social é formada por um conjunto de papéis sociais
selecionados, para serem representados, dependendo dos
interesses do grupo. Por exemplo, há grupos sociais ancorados
no trabalho que selecionam os papéis, entre outros, do
professor-aluno, do padre-fiel, do empresário-funcionários, do
industrial-empregado. Mas, há grupos sociais ancorados na
exploração do outro, apresentando-se pela marginalidade das
leis que regem a sociedade atual, de forma a selecionar, por
exemplo, os papéis de traficante-drogado, prostituta-cliente,
assaltante-vítima. Logo, as práticas sociais variam a sua
estrutura social devido aos papéis sociais selecionados pelos
objetivos, interesses e propósitos do grupo social. Estes guiam o
ponto de vista para focalizar o mundo e, a partir daí, representálo mentalmente.
Como os grupos sociais diferem entre si por terem
pontos de vista diferentes, esses grupos estão em constante
conflito, pois suas condutas sociais decorrem de suas próprias
crenças, em um determinado momento histórico.
A Cognição compreende as formas de conhecimento do
grupo social, que em seu conjunto formam o marco das
cognições sociais, que são construídas mentalmente, a partir do
ponto de vista selecionado pelo grupo, para focalizar o que
acontece no mundo. O ponto de vista decorre dos objetivos,
interesses e propósitos do grupo social e ao ser projetado para
focalizar o que acontece no mundo, projeta ao mesmo tempo um
conjunto de valores que passam a compor a representação
232
ANAIS - 2013
cognitiva, como forma de conhecimento avaliativa. Sendo
assim, é a partir do que é focalizado pelo ponto de vista que se
maximizam ou minimizam e até se cancelam certas
propriedades do que é focalizado, de forma a construir
conhecimentos que são crenças sociais (valores culturais e
ideológicos). Estas guiam a construção de formas de
conhecimento individuais, decorrentes de experiências pessoais.
Dessa forma, todas as formas de conhecimento são crenças por
serem construídas com valores culturais e ideológicos,
decorrentes do ponto de vista projetado. Logo, os grupos sociais
diferenciam-se entre si por terem crenças diferentes. Todavia, os
discursos públicos institucionalizados, constroem crenças extragrupais, ou seja, uma unidade imaginária, também designada
memória social, que identifica uma nação, em seu contexto
histórico.
Desde que as formas de conhecimento são construções
mentais, elas são produzidas e armazenadas na memória das
pessoas.
Kintsch e van Dijk (1983) tratam das estratégias de
compreensão discursiva, a partir do modelo de memória por
armazéns que diferencia a memória de curto prazo, a de médio
prazo e a de longo prazo.
A memória de curto prazo é sensorial e dá entrada para a
informação que será processada pela memória de trabalho,
situada entre a memória de curto prazo e de médio prazo. A
memória de trabalho transforma as expressões textuais em
sentidos secundários e globais, de forma recursiva. Para tanto,
recorre a conhecimentos armazenados na memória de longo
prazo, ativando-os para a memória de trabalho, fazendo
inferências e explicitando implícitos.
A memória de longo prazo comporta dois armazéns: o
social e o individual. O armazém social, também designado
233
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
memória semântica, arquiva as representações construídas
socialmente em sistemas de conhecimentos distintos. Há pelo
menos três sistemas gerais de conhecimento: o enciclopédico,
conhecimentos de mundo, perpassados pela cultura e pela
ideologia; o simbólico, conhecimentos de códigos semióticos,
tais como os visuais, os de cores e os de línguas; e o
interacional, conhecimento de esquemas interacionais
comunicativos, tais como atos de fala, gêneros textuaisdiscursivos e quadros enunciativos. Esses sistemas de
conhecimento organizam as representações mentais tanto do
armazém social quanto do individual.
A memória de longo prazo social armazena as formas de
conhecimento construídas socialmente, por discursos públicos e
institucionais, tais como os da família, da igreja, do Estado, da
empresa. Tais discursos são perpassados pela ideologia dos
grupos de poder, construindo valores que compõem as crenças,
cujos interesses são do próprio poder, de forma a impor a
dominação das mentes das pessoas, para a discriminação, por
exemplo, de raças, sexo, nações. Tais discursos, também, são
perpassados pela cultura seja grupal seja extra-grupal.
Segundo Silveira (2009), a cultura compreende um
conjunto de crenças, cujos valores são definidos pelo vivido e
experienciado pelas pessoas em sociedade, como por exemplo,
formas de se alimentar, dormir, vestir, festejar datas. Sendo
assim, tanto as ideologias como as culturas são conjunto de
valores que guiam o comportamento das pessoas e seus hábitos
sociais. Ambas compõem as crenças: as ideologias, transmitidas
e impostas pelo poder, porque ele tem acesso ao público com
facilidade; as culturas são transmitidas de pai para filho na vida
cotidiana e não objetivam discriminação. As ideologias nascem
nas culturas, para satisfazerem interesses do poder; as culturas
234
ANAIS - 2013
têm raízes históricas e dinamicamente se modificam a cada
problema novo a ser resolvido, no cotidiano da vida das pessoas.
A memória de longo prazo individual armazena as
formas de conhecimento construídas por experiências
individuais, sendo, portanto, autobiográfica. Os conhecimentos
sociais guiam os individuais, mas estes, progressivamente,
modificam os sociais, devido as modificações sofridas para
resolver problemas novos.
Segundo Kintsch e van Dijk (1983), é a ativação dos
conhecimentos sociais e dos individuais que explica as razões de
nenhum texto ter a mesma leitura nem para o mesmo leitor, em
momentos diferentes, nem para leitores diferentes, ainda que
haja um certo consenso de leitura entre eles.
A memória de médio prazo armazena, durante certo
período de tempo, os sentidos produzidos durante o
processamento da informação, modificando-os até construir os
sentidos mais globais que serão armazenados na memória de
longo prazo, como formas de conhecimento social ou individual.
O Discurso é definido como uma prática social,
selecionada pelo grupo social, cujos textos produtos estão em
uso.
Van Dijk (1997), ao inserir a categoria Cognição na
inter-relação das categorias Sociedade e Discurso, afirma que
todas as formas de conhecimento são construídas no e pelo
discurso.
Há discursos públicos e eventos discursivos particulares.
Os discursos públicos são definidos como prática social e
diferenciam-se entre si por um contexto discursivo mental: os
participantes, suas funções e suas ações.
Segundo van Dijk, há três categorias para analisar de
forma crítica os discursos públicos: Poder, Controle e Acesso.
235
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Cada uma dessas categorias está relacionada extratextualmente a contextos. Estes se diferenciam dos textos, cuja
c
uçã c
xu é
g
“c x ”
O “c
x ” c
f
quê c
dos elementos presentes no produto textual.
Cada uma das categorias Sociedade, Cognição e
Discurso agrupam seus próprios contextos, que são selecionados
pelo produtor do texto para combiná-los no produto textual.
2. Expressões multimodais e contextos
Segundo a teoria da multimodalidade, os textos
multimodais produzem sentidos múltiplos, pois são produzidos
com diferentes semioses. Neste texto, a multimodalidade é
tratada pela combinação de imagens, cores e expressões
lingüísticas.
Os estudiosos da multimodalidade apresentam diferenças
entre si. Neste item, são analisadas as expressões multimodais
de um anúncio publicitário, apresentado a título de
exemplificação, tendo por ponto de partida a gramática visual,
proposta de Kress e van Leewen (1996). Estes autores
asseveram que a comunicação não ocorre apenas entre pessoas
de um mesmo grupo social e, por essa razão, é preciso que uma
teoria da multimodalidade forneça explicações no caso das
mensagens que exprimem valores e crenças dos outros grupos.
Ao tratarem das imagens, os autores entendem que elas
baseiam-se em padrões de realidade construídos cultural e
historicamente e não na correspondência objetiva entre imagem
visual e o mundo. Sendo assim, as imagens representam as
relações entre pessoas, lugares e as coisas em um complexo
conjunto de relações que possam existir entre as imagens e
aqueles que as observam.
236
ANAIS - 2013
a.
b.
c.
d.
Para se analisar esse conjunto complexo de relações,
Kress e van Leewen propõem quatro estratos:
o discurso: são conhecimentos socialmente construídos, ou seja,
os discursos desenvolvem-se em contextos sociais específicos
que podem ser públicos ou não, como, por exemplo, contexto
familiar e contextos explicitamente institucionalizados
(publicidade, jornal, etc.). Os discursos podem ser realizados de
diferentes maneiras, por exemplo, um discurso de guerra sobre
conflito étnico pode ser realizado como parte de uma conversa
em um café, um documentário de TV, uma coluna de jornal;
o design: são maneiras de realizar discursos em contextos
determinados, de forma a conceituar a forma dos produtos e dos
eventos semióticos, conforme os propósitos e a concepção de
quem será a audiência. Por essa razão, um mesmo um mesmo
design pode ser realizado de formas diferentes dependendo do
contexto de produção;
a produção: é a articulação na forma material dos produtos ou
eventos para a produção real do texto produto. Outros conjuntos
complexos de habilidades são requeridos, como habilidades
técnicas, artísticas, manuais e visuais. Neste estrato, a
preocupação está situada nas fontes que possibilitam a produção
semiótica;
a distribuição: é o acesso ao público pela reprodução dos
produtos e dos eventos semióticos. A distribuição não
acrescenta nenhum sentido ao produto multimodal, mas é o
facilitador das funções pragmáticas de preservação e
distribuição. A distribuição importa na medida em que quanto
maior e mais eficientes forem os meios de difusão, maior será o
consumo pela audiência e, assim, maior disseminação
ideológica.
Para Kress e van Leewen (2001), o grau em que a
intenção e a interpretação serão compatíveis, dependerá do
237
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
contexto. Para van Dijk (2012), o contexto cognitivo por ser
composto por inferências e explicitações realizadas com
conhecimentos sociais e individuais armazenados na memória
de longo prazo das pessoas, varia de pessoa para pessoa e para a
mesma pessoa conforme modelos de situação, projetados pelo
produtor dos sentidos.
2.1 A título de exemplificação: um anúncio publicitário
multimodal
Fonte: revista Veja. Edição 2192, ano 43, n. 47, tiragem 1 235597, Editora
Abril, 24 de novembro de 2010, p.37.
Segundo Kress e van Leewen (1996), ao tratarem da
semiose visual, os sentidos podem ser realizados pelas línguas e
pela comunicação visual. Essas realizações, necessariamente,
não se sobrepõem, pois algumas coisas podem ser expressas
tanto pelo visual quanto pelo verbal; mas, outras, só pelo visual
ou pelo verbal.
238
ANAIS - 2013
No texto exemplificado:
- o verbal expressa crenças do marco das cognições
c
(cf
D jk, 1997): “ N
u c
c u
ã N
,
c u
” Ex
,
bém, o que
foi selecionado das cognições sociais como valores positivos,
para caracterizar individualizando um caminhão da Ford, que
metonimicamente (a parte pelo todo) representa todos os demais
produzidos por ela e que estão em campanha publicitária, a fim
de seduzir o interlocutor para se tornar o seu consumidor:
“P ê c
R bu z É
qu
cê
c
c
, é
qu
cê
c
F ” E,
, “
performance do motor trabalha a seu favor e a robustez garante
uma viagem tra qü N
”
- o visual expressa a velocidade, de forma a explicitar a
x
ã
b “ c
”
í
u c
hã
Ford, ou seja, por um flash que recorta o lado dianteiro do
caminhão, salientando pela focalização a roda em movimento de
ida ou volta, pela estrada sem movimento, conservada, tranqüila
e livre para deslocamento. Expressa ainda o cenário: céu claro
de um amanhecer, montes sombreados e entrecortados por uma
estrada de pista simples e bem conservada no piso e nas linhas
demarcadoras. O caminhão é de cor vermelha que culturalmente
para o brasileiro representa emoções fortes como o amor, o
perigo, a atração, a paixão. O recorte de um caminhão Ford
vermelho sugere que ele enfrenta os perigos, vencendo-os com
“ ê c
bu z”
2.2 Distribuição espacial do texto exemplificado
A distribuição espacial das expressões, no texto
multimodal, segue a diagramação dada ao texto. Kress e van
Leewen (1996) têm por ponto de partida a gramática sistêmico-
239
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
funcional de Halliday (1985) e, assim, propõem as seguintes
categorias para se analisar a composição de textos multimodais:
“
”
“
”:
x , qu u
posicionamento das fontes selecionadas no eixo horizontal,
consideram espacialmente a direita e a esquerda. Os elementos
qu
ã
c
“
” ( c h c
c
)
,c
“
”( c h c ) N
x
x
fc , “
”
á u
à qu
u
representação, no texto, é pelo verbal que expressa a ida e a
volt (“c
”)
c
h
,
,
c
:
“
ã ” “
”; x
,
bé , c ç
c
respeito de uma viagem tranqüila e segura. O verbal está
projetado sobre o visual (estrada de dupla mão, desimpedida e
bem conserv ) O “
”
á
u
à
,
flash
metonímico de um caminhão da Ford, representado em sua
metade (parte inferior da cabine do motorista e a roda em
movimento veloz, respeitando as linhas demarcatórias da
estrada.
- o real e o ideal: os textos que usam o posicionamento
das fontes selecionadas consideram espacialmente, no eixo
vertical, o real (embaixo) e o ideal (em cima). No texto
exemplificado, o ideal está situado em cima, ou seja, um céu
tranquilo do amanhecer o dia, um céu sem limites. O real está
situado em baixo: a roda do caminhão em movimento sobre uma
estrada bem sinalizada e tranqüila e o verbal, projetado sobre o
u : “F ç
õ
u ícu
gu
”
- o valor da informação no centro ou na margem: quando
essa seleção ocorre, esse tipo de composição significa que
aquilo que é representado no centro é o núcleo da informação a
que todos os outros elementos, em algum sentido, estão
dependentes e, por isso, os elementos que ficam às margens são
dependentes do central. No texto exemplificado não foi
240
ANAIS - 2013
selecionado esse tipo para dar saliência à sua composição. No
centro do referido texto está situada a estrada de duas mãos, em
baixo; em cima a elevação de um monte e o céu límpido e
tranquilo sem limites.
- a saliência: dar saliência a elementos cria uma
hierarquia de importância entre eles. No texto exemplificado, à
direita há saliência de parte do caminhão da Ford, de modo a
focalizar em tamanho maior a roda em movimento de ida ou
(“ c
c
ê c
bu z”)
uma estrada de
mão dupla.
Sendo assim, essa saliência hierarquicamente ancora os
demais elementos que compõe o texto na velocidade segura para
ir e voltar (rapidez devido à potência e robustez dos caminhões
Ford). A saliência é considerada a função principal para a
integração dos elementos selecionados, para compor um texto
multimodal, de forma a representar o tema textual.
2.3 Seleção das fontes e combinação semiótica do verbal com
o visual
As fontes são selecionadas de paradigmas que compõem
as partes do texto multimodal e podem ser vistas como
interagindo e afetando umas às outras, conforme elas são
combinadas para compor o todo do texto produto. É interessante
observar que a noção de seleção, para a ACD, não implica a
consciência do sujeito-produtor, devido à disseminação da
ideologia, que instaura a dominação pelo Poder.
No texto exemplificado, as fontes são selecionadas de
um paradigma social e de um paradigma mercadológico de
produtos industrializados, além de um paradigma geográfico:
241
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
- paradigma social: dois grupos sociais foram
selecionados: um familiar (marido-mulher) e um empresarial
(patrão-empregado);
- paradigma de produtos industrializados: é selecionada a
imagem recortada de um caminhão da Ford (à direita), para de
modo hiperonicamente representar, pelo verbal, todos os
c
hõ
uz
: (à qu
) “F ,
c
hõ
g
”
- paradigma geográfico: é selecionado o elemento
qu
g
ug
“ qu - á”,
b
“ ” A estrada selecionada é secundária,
pois se trata de uma estrada de mão dupla interiorana brasileira
que possibilita o tráfico de mercadorias de grandes centros para
pequenos centros urbanos e rurais. A paisagem recortada pela
estrada representa o distanciamento dos grandes centros
urbanos, pois não existem habitantes e propriedades, mesmo as
rurais.
Os elementos selecionados são combinados no eixo
horizontal e vertical da composição semiótica do texto.
2.4 A composição textual
Os textos diferenciam entre si pelos gêneros discursivos,
decorrentes dos usos que esses textos têm em sociedade. Dessa
forma, os gêneros textuais são vistos como formas discursivas,
ligadas às esferas da vida social.
Segundo estudiosos do gênero, as pesquisas devem ser
realizadas para responder a seguinte pergunta: Por que os
membros discursivos constroem textos da maneira como são
feitos?
A inserção da categoria Cognição para o exame de
contextos na produção de sentidos e para a composição do
242
ANAIS - 2013
produto textual indica que o anúncio publicitário é um gênero
textual construído com uma sequência textual explicativa
incrustada em uma sequência argumentativa, de forma a seguir o
esquema mental que formaliza a lexia de designação. Por essa
razão, compõe, textualmente, o anúncio publicitário, seguindo a
organização lingüística da expressão e do seu conteúdo:
significante, área semântica e área sintática (cf. Pottier, 1974).
Dessa forma, o texto traz explicitados, para o interlocutor, os
semas selecionados para estarem contidos em uma lexia nova,
relativa à designação do produto anunciado. Logo, o referente
xu ,
x x
f c , é “c
hõ F ”
A área semântica dessa designação é composta por pelo
conjunto de predições com valor positivo selecionadas das
c g çõ
c : “ ê c
bu z” Ex c çõ :
“ ê c =
f
c
” (
çã
b ); “ bu z”=g
u
g
qu
na volta (representação pelo visual e cores). Os argumentos são
selecionados das necessidades que um caminhoneiro tem e
tornam-se legítimos por participarem das cognições sociais do
gu : “ ê c
bu z: é
qu
cê
c
c
; é
qu
cê c
F ”,
satisfazer a su
c
z, u j , “
u
c
c u
ã N
,
c u
”
A área sintática desse esquema textual da lexia de
designação formaliza o produto anunciado como substantivo,
caracterizado pela relação produtor-produto: implícita na
g çã “c
hõ F ”
,
x h z
vertical além da saliência, a composição do verbal com as
imagens e cores.
O tema do texto (rapidez e segurança no deslocamento)
preenche o sema categorial da lexia textual e os comentários
textuais (explicitações) preenchem os seus semas específicos.
243
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Para responder a pergunta proposta pelos estudiosos do
gênero, ter-se-ia:
- Por que os membros discursivos da publicidade
constroem anúncios publicitários da maneira como são feitos?
- os publicitários constroem seus anúncios publicitários,
seguindo o esquema de uma lexia, vista como uma unidade
mental, porque têm por objetivo (macroato de fala) construir
para seu auditório o conteúdo e a forma de uma designação que
não é vocabular (lexia em estado de dicionário) da língua, pois é
desse paradigma que se seleciona os elementos verbais para
compor as expressões linguísticas do texto. As designações
lexicais adquirem conteúdo para os falantes a partir de seu uso
efetivo pelo discurso. A tarefa do publicitário é construir um
texto que tem a função social de divulgar o produto que não é
conhecido do auditório e, para tanto, apresenta-o por um
esquema já conhecido (designação com conteúdo e expressão), a
fim de ser de uso discurso frequente, como o é a lexia em
estado de palavra nos textos.
2.5 Os contextos no anúncio publicitário
Desde que se insira a categoria Cognição às categorias
Sociedade e Discurso, todos os contextos são entorno do texto
produto, enquanto formas de representação mental, ou seja,
formas de conhecimento das cognições sociais e individuais.
Dessa forma, os sentidos produzidos são dependentes
dos contextos ativados da memória de longo prazo para a
memória de trabalho, a partir da percepção de como o texto
multimodal está composto.
No texto exemplificado, são prováveis pela sua
composição, os seguintes contextos:
244
ANAIS - 2013
- contexto social: dois grupos sociais são selecionados
das cognições sociais: um familiar e outro empresarial. As
identidades dos papéis sociais são estabelecidas pelas relações
sociais entre marido-mulher e patrão-empregado.
No grupo social familiar, o marido-caminhoneiro tem a
sua função identitária fora do ambiente doméstico (representada
pelo recorte visual do caminhão vermelho da Ford) e a mulherdona de casa tem a sua função dentro do lar. As ações que o
marido-caminhoneiro pratica são relativas, na ida, ao transporte
de mercadorias de cá para lá com segurança e rapidez
(representado pela roda do caminhão com movimento veloz, em
uma estrada desimpedida); é, assim que atende às ordens do
patrão, sendo, dessa forma, eficiente para ser digno do emprego
e do salário; na volta, as suas ações atendem aos desejos da
esposa, trazendo o dinheiro para o sustento de seu lar. As ações
praticadas pela esposa são relativas ao gerenciamento do salário
do marido, de forma a garantir o abastecimento, a ordem e a
saúde dos que participam da família. Tais identidades são
perpassadas pela cultura e pela ideologia. Pela cultura, pela
representação avaliativa de uma sociedade familiar matriarcal
brasileira; pela ideologia, pela discriminação do feminino, na
produção econômica do país.
No grupo social empresarial, patrão-empregado, ambos
têm suas funções fora do lar, na empresa. As ações que o patrão
pratica são relativas às ordens que dá ao empregado para o
cumprimento de tarefas, transportando mercadorias que atendam
a seus interesses de lucro da empresa (representação visual e em
cores do caminhão, com saliência na roda em velocidade,
movimentando-se em uma estrada muito bem conservada, sob
um céu iluminado do amanhecer); para tanto, negocia e toma
decisões, representando a autoridade do Poder. As ações que o
empregado pratica são relativas à obediência ao patrão, de forma
245
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
a atendem suas decisões com eficiência e segurança, indo de cá
para lá (ida) e vindo de lá para cá (volta).
Tais identidades sociais são perpassadas pela ideologia
do Poder, ou seja, o patrão é sujeito agente e empregado, sujeito
obediente que para ser digno do seu emprego precisa executar as
decisões do patrão com eficiência e segurança. Tais identidades,
também são perpassadas pela história, pois com a pósmodernidade e as altas tecnologias, o valor positivo das crenças
sociais é atribuído à rapidez e segurança. Além disso, as
imagens de uma estrada secundária (pista dupla), muito bem
conservada sob um céu azul e límpido do amanhecer é uma
fantasia no Brasil atual, onde as estradas são esburacadas,
devido ao desgaste, excesso de carga pesada e trânsito
carregado, estradas antigas e mal conservadas, além disso, com
a mudança climática, o período das chuvas é freqüentado por
violentos temporais destrutivos. Dessa forma, o produto
anunciado (caminhões Ford) é representado ideologicamente
como a solução para os problemas de transporte da carga
pesada, no Brasil.
- contexto discursivo: o discurso publicitário, visto
como uma prática social institucionalizada, defini-se por um
esquema cognitivo, organizado pelas categorias Poder, Controle
e Acesso, cada qual com seus participantes, funções e ações.
O Poder é representado pelos donos da empresa que
tomam a decisão de anunciar seus produtos. No texto
exemplificado, os donos da empresa Ford que decidem anunciar
os seus caminhões, para vender mais no mercado. Para tanto,
contratam uma agência de publicidade.
O Controle é representado pelos participantes da agência
de publicidade que têm por propósito produzir o anúncio
publicitário que propicie a maior venda do produto anunciado.
246
ANAIS - 2013
Para tanto, recorrem à pesquisa de mercado (marketing) a fim de
saber o que falta para os consumidores do produto anunciado.
Dessa forma, os participantes especialistas que executam as
ordens do dono da agência publicitária produzem o anúncio, de
forma a atender a três exigências: criar a necessidade de
consumo, prometer que o consumo do produto anunciado
satisfaz a necessidade com pouco gasto e em pouco tempo.
O Acesso é representado pelos participantes que
distribuem o anúncio para que ele tenha acesso ao auditório
selecionado pela agência (auditório universal ou particular). É o
acesso ao público que garante a realização das funções
pragmáticas de preservação e distribuição, de forma a garantir
maior disseminação ideológica.
O discurso publicitário tem seu contexto discursivo
ancorado no propósito de transformar o interlocutor em
consumidor.
- contexto cognitivo: as crenças sociais (conhecimentos
avaliativos) compõem o contexto cognitivo, de forma a produzir
um entorno relativo às identidades sociais e suas relações entre
as pessoas. Nas cognições sociais, o grupo familiar selecionado,
marido-caminhoneiro e esposa, é caracterizado por baixa renda
e pouca escolaridade, com sobrevivência salarial. Como o
marido tem suas funções fora de casa, a mulher é responsável
pelo lar e pelo gerenciamento do salário do marido, assim, é
g
“
c ”
O gu
ã empregado, o patrão é caracterizado por alta renda e
escolaridade; já o empregado, baixa renda e escolaridade,
dependendo do emprego e para tanto precisa, ideologicamente,
ser rápido, eficaz e garantir segurança com a sua atuação.
Dessa forma, o contexto cognitivo cria o entorno para definir os
modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no
247
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
discurso, de forma a construir a função textual de tema e
comentário. L g ,
c
“c
h
”
ideologicamente é representada por <<aquele que trabalha no
transporte de mercadorias, obedecendo ao representante do
Poder da empresa e à representante do Poder familiar,
deslocando-se com rapidez e segurança pelas estradas
brasileiras, pois dirige caminhões Ford>>.
Nesse sentido, no texto exemplificado, os caminhões
Ford são tematizados pela rapidez e eficiência tendo por
comentário a potência e a robustez do veículo e a performance
do motor. O que é tematizado e comentado está de acordo com
as cognições sociais, cujos valores culturais e ideológicos guiam
os desejos do caminhoneiro e de seu patrão.
- contexto de linguagem: o contexto de linguagem
decorre do conhecimento que se tem a respeito dos diferentes
usos da linguagem, a partir de variedades e variações
lingüísticas, selecionadas para a composição do texto.
Nos grupos sociais de baixa escolaridade, devido ao
baixo poder aquisitivo, a mulher é quem fica em casa e sua
função é garantir o bem-estar dos membros de sua família; dessa
forma, suas ações estão ancoradas no gerenciamento do salário
do marido, para a manutenção da ordem no lar, segundo uma
cultura matriarcal. De forma geral, o vocábulo (lexia em estado
de dicionário) que designa o papel representado p
é“
c ”
u
çõ ,
“
é c ” N
lingüística nativa, usada por esses grupos sociais, ocorre a
z çã
cábu “
ã ” = << qu qu
decisões, emprega e paga o salário>> e o vocábulo com a forma
f
“
”
c
<<
, ã
família, dona de casa e dona do lar>>.
248
ANAIS - 2013
Nos grupos sociais de mais escolaridade devido a uma
melhor renda, são usadas as variedades: padrão real (oral) e
padrão normativo (escrito) segundo as quai “
ã ,
”=
<<
u
u
góc
u
>>; “
”=
<<mulher casada>>.
Assim sendo, devido ao conhecimento dessas
variedades, o anúncio traz representado em língua duas
sequências dialógicas:
- a primeira sequência dialógica: diálogo do
caminhoneiro e os interlocutores textuais-discursivos, leitores da
revista Veja (“ u”- quem fala para o interlocutor: o uso das
x
õ é
c
guí c
: “N
ida eu (caminheiro) acelero por causa do patrão. Na volta, (euc
h
)
c u
” E
x
õ
b
contêm implícitos ideológicos.
- a segunda sequência dialógica: diálogo dos fabricantes
da Ford com os interlocutores textuais-discursivos, os
caminhoneiros e os leitores da revista Veja (“ u”- quem fala
cu
(“ cê” = c
h
u
caminhão que são meus interlocutores); o uso das expressões é
c
ã
: “P ê c
bu z;
gu
c
u
ícu : “É
que você
precisa para encarar a estrada, é isso que você encontra na Ford.
A performance do motor trabalha a seu favor e a robustez
g
u
g
qu
”; - “ g
( ó, f b c
F ,
u ó )
”
s çã “
ӎc
uí c
gu
caminhoneiros: << muitos quilômetros percorridos para
transporte de carga>>; mas, ressemantizada no texto passa a
conter <<há muitos anos, a Ford tem o hábito de produzir bons
veículos para conduzir cargas pesadas, com eficiência, pelas
rodovias principais e secundárias>>.
249
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
- contexto histórico: o contexto histórico é construído
com a ativação de conhecimentos que situam cronologicamente
os eventos no mundo. Para o texto exemplificado, podem
ocorrer dois tempos cronológicos: tempo anterior-tempo
posterior.
- no tempo anterior: o Brasil foi regido por uma política
de transporte ferroviário, sendo este o meio mais eficiente e
barato para o transporte de carga pesada. Segundo o que é
ensinado, na escola brasileira, em aulas de Geografia do Brasil,
nossa primeira ferrovia foi inaugurada em 1854, construída pela
Imperial Companhia de Estradas de Ferro, para ligar o porto de
Mauá à Serra da Estrela, a caminho de Petrópolis. A partir daí
foram construídas outras ferrovias, para o transporte do café e
de outras economias agrícolas para exportação. De 1870 a 1920,
c
u “
f
”,
14 k
28 556 k
de extensão. Em 1960, havia 38.339 km de ferrovias.
- no tempo posterior: o Brasil é regido por uma política
de transporte rodoviário para o transporte de passageiros e carga
leve e pesada. Com isso, as ferrovias foram diminuindo a
extensão até quase se anularem.
A composição do texto exemplificado é feita com a
política de transporte rodoviário. Este é representado
ideologicamente como seguro, eficaz e rápido, apagando o valor
negativo atribuído ao preço alto de seu custo e as dificuldades
brasileiras para a conservação e produção energética, além do
desequilíbrio ecológico, devido à dependência energética do
petróleo e do álcool, para a locomoção em rodovias.
Para concluir, acredita-se que os objetivos propostos
tenham sido cumpridos, pois os resultados apresentados indicam
que tratar de textos multimodais (anúncios publicitários), pelo
enfoque dos contextos, de forma a considerar a categoria
250
ANAIS - 2013
Cognição, com as categorias Sociedade e Discurso, contribui
para descrever tanto aspectos da composição textual da
modalidade verbal e visual, assim como estratégias de
compreensão, aplicadas para a produção de sentidos. Logo, os
sentidos produzidos são representações mentais que constroem
socialmente as crenças contidas nas cognições sociais grupais e
extra-grupais, perpassadas historicamente pela cultura e pela
ideologia. Tais crenças são construídas no e pelo discurso, cujo
produto é o texto.
Os resultados apresentados indicam, também, que os
elementos selecionados pelo produtor participam de sistemas de
conhecimento (semiótico, interacional e enciclopédico),
armazenados na memória de longo prazo das pessoas após terem
sido processados por elas. Todavia, é necessário considerar que
esse armazenamento nem sempre é consciente e, por razão, a
ideologia do Poder, que tem acesso ao público por discursos
públicos e institucionalizados, passa a dominar a mente das
pessoas, levando-as a sustentar essa ideologia por sua
reprodução textual, no e pelo discurso.
Nesse sentido, conclui-se que, na interação comunicativa
entre as pessoas, todas as práticas sociais e os textos estão interrelacionados, de algum modo, às formas de conhecimento,
representações mentais sociais e individuais que são crenças
originadas no social. Logo, são elas que guiam as ações das
pessoas no mundo, tanto para manter quanto para modificar,
dinamicamente, a memória social.
Os resultados apresentados abrem novas perspectivas de
pesquisa para se tratar de outros tipos de contextos implicados
nos textos multimodais publicitários e de textos multimodais de
outros discursos.
Referências
251
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
FAIRCLOUD, Norman. Language and globalization. London:
Routledge, 2006.
______ Discurso e mudança social. [Trad. Izabel Magalhães].
Brasília-DF: Edunb, 2001.
HALLIDAY, Michel. An introduction
Grammar. Baltimore: Edward Arnold, 1985.
to
funcional
KINTSCH, Walther e VAN DIJK, Teun. Strategies discoursive
comprehension. London: Academic Press, 1983.
KRESS, Gunther e VAN LEEWEN, Theo. Multimodal
discourse: the modes and media of contemporary
communication. London: Arnould, 2001.
______. Reading images: the grammar of visual design.
London: Routledge, 1996.
POTTIER, Bernard. Linguistique générale. Théorie et
description. Paris: Klincksiek,1974.
SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi da. Um novo olhar para as
narrativas de humor: os sentidos no cotidiano e na cultura. O
texto em perspectiva. PIRES, Leda Corrêa Pires, BEZERRA,
Antônio Bezerra e CARDOSO, Denise (Orgs), Aracaju-SE:
UFA, 2009.
VAN DIJK, Teun. Racismo y análisis crítico de los médios.
Barcelona: Paidós, 1997.
______. Sociedade e Discurso. [Trad. Rodolfo Ilari], São
Paulo: Cortez, 2012.
252
ANAIS - 2013
WODAK, Ruth. De qué trata el análisis crítico del discurso
(ACD). Métodos de análisis crítico del discurso. WODAK,
Ruth; MEYER, Michel (Orgs). [Trad. Tomás Fernandez Aúz e
Beatriz Eguibar], Barcelona:GEDISA, 2003.
253
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Análise de discurso da cobertura jornalística: O
“caso Guaiviry” em Mato Grosso do Sul
Tatiane QUEIROZ1
Maria Luceli Faria BATISTOTE2
RESUMO: Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população
indígena do país. Grande parte dos índios, das etnias Guarani e
Kaiowá, está concentrada no sul do estado. Na mesma região,
localizam-se grandes propriedades rurais que sustentam a principal
atividade econômica do estado: o agronegócio. Essa situação tem
g
c f
“
u
”, cuj
ê c
tem sido noticiada pela imprensa regional e nacional. Em 2011,
notícias do ataque ao acampamento indígena Guaiviry e a morte do
cacique Nísio Gomes permearam as manchetes de portais de notícias
de todo país. Neste artigo, propomos a análise do sentido produzido
por matérias da cobertura jornalística sobre este acontecimento, que
fc uc h c
c
“
u
y”
b
u
teóricos da semiótica francesa, pretende-se recorrer aos conceitos
pertencentes à semântica discursiva para analisar os relatos que
compõem o córpus deste trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: semiótica francesa; índio; discurso; imprensa.
Introdução
Mato Grosso do Sul abriga 73.295 índios, a segunda
maior população indígena do país, de acordo com dados do
último Censo Demográfico divulgado pelo Instituto Brasileiro
1
Mestranda em Comunicação - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) - [email protected]
2
Professora Doutora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) - [email protected].
254
ANAIS - 2013
de Geografia e Estatística (IBGE). No estado, há 74 aldeias e 11
acampamentos indígenas, segundo dados da Secretaria Especial
de Saúde Indígena (SESAI) e, o mesmo levantamento, aponta
que 66,5% dos índios são das etnias Guarani e Kaiowá e estão
concentrados nas regiões denominadas de Grande Dourados,
Cone sul e Sul fronteira.
Também nestas regiões, estão concentradas grandes
propriedades rurais que movimentam uma das principais
atividades econômicas do estado: o agronegócio. Relatórios
divulgados mensalmente pelo Ministério de Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior (MDIC) apontam que a produção
de soja, milho, cana-de-açúcar e a pecuária são responsáveis por
grande parte do Produto Interno Bruto (PIB) gerado por Mato
Grosso do Sul.
Esta área vem sendo palco de conflitos motivados por
“
u
” D u
, u
f ndem que as
propriedades foram adquiridas dentro dos preceitos de
legalidade, do outro, índios afirmam que foram expulsos de suas
terras tradicionais e defendem a retomada do território.
O processo de ocupação de territórios tradicionalmente
indígenas por não indígenas iniciou-se a partir da década de
1890, quando se instalou, no território ocupado pelos Guaranis e
Kaiowás, a Cia Matte Laranjeiras. Mais tarde, a partir da década
de 1950, iniciou-se a implantação das fazendas de gado que
resultou em um desmatamento sistemático da região. A
atividade provocou a dispersão de dezenas de aldeias indígenas
tradicionais (BRAND, 1997).
A violência resultante desses conflitos vem sendo
noticiada há anos pela imprensa regional, nacional e até
internacional. Um dos casos de grande repercussão na mídia foi
o assassinato do cacique Marcos Verón. Ele foi morto durante
um ataque ao acampamento indígena que morava, na cidade de
255
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Juti, na madrugada do dia 13 de janeiro de 2003. O cacique foi
agredido com socos, pontapés e coronhadas e morreu em
decorrência de traumatismo craniano, aos 73 anos (MORONI,
2011).
Fatos mais recentes também tiveram grande repercussão
na imprensa. Em 2011, as notícias do ataque ao acampamento
indígena Guaiviry, localizado na fronteira do Brasil com o
Paraguai, em Mato Grosso do Sul, permearam as manchetes de
jornais impressos, portais de notícias na internet e telejornais de
todo o país.
O ataque, que ocorreu no dia 18 de novembro, resultou
na morte do cacique Nísio Gomes, de 55 anos. O caso também
repercutiu na mídia internacional. No mesmo dia do ataque, o
portal de notícias do The New York Times editou uma nota
sobre o assunto com o título “Brazil: Chief Killed in Land
Dispute”.
A repercussão do caso gerou novas pautas que
abasteceram a imprensa durante semanas. A invasão ao
acampamento Guaiviry motivou a visita de autoridades do
Governo Federal a Mato Grosso do Sul e trouxe novamente à
tona a discussão sobre a questão fundiária e a miséria em que
vivem milhares de famílias indígenas no estado.
Bennetti (2007, p.108) lembra que a notícia é um modo
de conhecimento e constrói sentidos sobre a realidade:
A
Notícia é um dos eixos
‘c
’
â
sociais de normalidade e anormalidade. Ao
lidar essencialmente com o que é
inesperado, incomum ou perigoso, o
jornalismo acaba indicando o que seria
socialmente desejável, normal ou adequado.
De forma mais ampla, o jornalismo constrói
256
ANAIS - 2013
sentidos sobre a realidade em um processo
de contínua e mútua interferência.
Partindo-se da premissa de que é por meio da imprensa
que os fatos públicos são conhecidos pelo público em geral e
chegam aos telespectadores, ouvintes, internautas como
“ íc ”,
b h
õ
uz
pela cobertura jornalística sobre este acontecimento, que ficou
c h c
c
“
u
y”
b
u
teóricos da Semiótica francesa, desenvolvida por Algirdas Julien
Greimas, e em seus seguidores, tais como Fiorin e Barros,
recorremos aos conceitos de tematização e figurativização,
pertencentes à semântica do nível discursivo, para analisar os
relatos que compõem nosso córpus.
1. Notícias sobre o “Caso Guaiviry”
Como mencionamos, as notícias sobre o ataque ao
acampamento indígena Guaiviry permearam manchetes de
jornais impressos, portais de notícias na internet e telejornais de
todo o país. Para a organização de nosso córpus, selecionamos
apenas matérias publicadas em alguns portais de notícias na
internet, tais como: G1, Folha de São Paulo e Campo Grande
News, por terem sidos os que publicaram as maiores
quantidades de notícias sobre o caso.
Para este trabalho, em face da grande extensão de
matérias, fizemos um recorte e selecionamos três textos
publicados no dia 18 de novembro de 2011, dia em que ocorreu
o ataque ao acampamento Guaiviry, nos portais de notícias. São
eles:
257
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Figura 1: Publicada no portal 1, c
qu c
í
c
íu
u
“P íc
M ”
g
258
ANAIS - 2013
A matéria é composta de três parágrafos, além de título,
subtítulos3 e indicações de data e horário em que ela foi
publicada, além de indicação do autor. O texto possui ainda um
infográfico4, que pode ser visualizado como um mapa, que
indica a localização do acampamento atacado.
3
O subtítulo completa o que está no título ao acrescentar mais dados.
Juntamente com o título, o subtítulo tem ainda a função de atrair o leitor para
o texto.
4
São ilustrações, que podem ser gráficos, tabelas, mapas, ou simulações, que
têm a função de informar visualmente o que está escrito no texto.
259
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
“Lí
Figura 2: Publicada no portal Folha de São Paulo com o título
íg
é
c uz
M ”
260
ANAIS - 2013
A matéria é composta por sete parágrafos, além de título
e indicações de data e horário em que ela foi publicada e
editada, indicações do autor e do local em que foi escrita. O
texto conta ainda com uma fotografia, que funciona como uma
complementação das informações escritas. A imagem possui
legenda5 e créditos que indicam o nome de um fotógrafo ou de
uma agência.
5
Tem a função de explicar ou complementar a informação que consta na
fotografia. Geralmente aparece em apenas uma linha de texto, logo abaixo da
fotografia.
261
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
262
ANAIS - 2013
Figura 3: Pub c
g
263
c
c
N w c
íg
íu
“MPF
b ”
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A matéria é composta de 19 parágrafos curtos, com
dois intertítulos, além de título, subtítulo e indicações de data e
horário em que ela foi publicada. Também há a indicação do
autor. O texto possui ainda uma fotografia com legenda e
créditos que indicam o nome de um fotógrafo ou de uma
agência.
2. A produção de sentido nas matérias jornalísticas
Recorremos aos conceitos de tematização e
figurativização, pertencentes à semântica do nível discursivo,
para analisar os relatos que compõem o córpus apresentado
neste artigo.
Fiorin (2002) destaca que a semiótica não se interessa
pela verdade dos enunciados, mas por sua veridicção, isto é,
pelos efeitos de sentido de verdade com os quais um discurso se
apresenta como verdadeiro, falso, mentiroso, etc.
Segundo Barros (2000), a semiótica tem por objeto o
texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz
e o que ele faz para dizer o que diz. Em sua conceituação de
x ,
u
f
qu “
x
ó x
qu
c c b
na dualidade que o define – objeto de significação e objeto de
c u c çã ”
Tematização e figurativização são os dois procedimentos
semânticos do nível discursivo. Fiorin conceitua os dois
elementos e aponta que, na análise do texto, eles são
complementares:
A figura é o termo que remete a algo do
mundo natural: árvore, vagalume, sol,
correr, brincar, vermelho, quente e etc.
Assim, a figura é todo conteúdo de qualquer
língua natural ou de qualquer sistema de
264
ANAIS - 2013
representação que tem um correspondente
perceptível no mundo natural. (...). Tema é
um investimento semântico, de natureza
puramente conceptual, que não remete ao
mundo natural. Temas são categorias que
organizam, categorizam, ordenam os
elementos do mundo natural: elegância,
vergonha, raciocinar, calculista, orgulhoso,
etc (FIORIN, 2002, p.65).
Barros destaca que a recorrência de traços semânticos no
texto se constitui em percursos que podem ser organizados por
temas e recobertos por figuras:
Tematizar um discurso é formular os valores
de modo abstrato e organiza-los em
percursos. (...). Pelo procedimento de
figurativização, figuras do conteúdo
recobrem os percursos temáticos abstratos e
atribuem-lhes traços de revestimento
sensorial (BARROS, 2000, p. 68-72).
é
j
í c
b
“
u
y”,
apresentadas neste artigo, descrevem o dia em que ocorreu o
ataque ao acampamento indígena e dão indicativos ao leitor da
localização do cenário onde se passou o fato, na região sul de
Mato Grosso do Sul, na faixa de fronteira do Brasil com o
Paraguai.
Na notícia publicada pelo portal G1, as figuras utilizadas
para a descrição
qu
ã : “í
”, “f
”,
“ c
”, “
”, “
”, “c
” E
figuras indicam um clima de tensão, de apreensão e de dúvida,
recobrindo, pois, o tema conflito.
265
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
No segundo texto, publicado no portal Folha de São
Paulo, é possível depreender temas como criminalidade e
é , qu
ã
f gu : “
”,
“h
c uz
”, “u
mulher e uma criança de cinco anos
bé
f
”, “
c
”
Na matéria publicada no portal Campo Grande News, surgem
f gu
c
: “
”, “
f
”,
“ x cu
”, “
”, “ gu ”
,
qu u f c
á
a essas figuras é o da violência.
Considerações finais
Os conflitos advi
“
u
”,
um lado, ruralistas defendendo propriedades adquiridas,
segundo eles, dentro dos preceitos de legalidade e do outro,
índios afirmando que foram expulsos de suas terras tradicionais
acabaram gerando situações desastrosas.
Como já mencionado, o ataque ao acampamento
indígena Guaiviry e a morte do cacique Nísio Gomes
permearam as manchetes e, com isso, um enfoque maior foi
dado às questões indígenas, dando relevância e visibilidade às
situações assustadoras vivenciadas por essa etnia. Os índios não
se configuram como sujeitos, mas apenas como objetos. E,
como tais, sofrem as ações de outros sujeitos ou antissujeitos.
Os preconceitos e as discriminações são apreendidos pela
hostilidade tematizada nas matérias em análise.
Considerando o exercício de análise realizado,
depreende-se que as figuras e os temas são culturais. Dessa
forma, torna-se evidente o confronto existente e a
marginalização sofrida pelo sujeito indígena.
Esses recursos abordados permitem reconhecer a
imagem daquele que na memória, na história, e não apenas em
um determinado momento histórico, por desobediência ou por
266
ANAIS - 2013
não querer ceder às imposições que lhes são impostas, precisa
ser excluído ou apagado.
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto.
São Paulo, Ática, 2000.
BENETTI, Márcia. Análise do Discurso em jornalismo: estudo
de vozes e sentidos. In: LAGO, Claudia; BENETTI, Márcia.
Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007, p. 107-122.
BRAND, A. J. O impacto da perda da terra sobre a tradição
Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da Palavra. Tese de
doutorado, História da PUC/RS, 1997.
BRASIL, Ministério da Saúde. Relatório Anual de Gestão
2010. Secretaria Especial de Saúde Indígena, Mato Grosso do
Sul, 2010.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São
Paulo: Contexto, 1996.
_______. Enunciação e Semiótica. Letras: Revista do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Santa Maria, Rio Grande do Sul, n. 33, p.69-98, 2006.
MORONI, J. Caso Verón e Caso Passo Piraju: analogias
quanto à cobertura midiática e suas implicações no Tribunal
do Júri. Campo Grande: UCDB, 2011.
267
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
As condições de produção do discurso do professor de
Língua Portuguesa frente a ideologias conflituosas entre
“gramáticos” e “linguistas”
Elisângela Leal da Silva AMARAL 1
Maria Leda PINTO 2
RESUMO: Este projeto, que está sendo desenvolvido por meio do
Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Letras, tem como
bj
á
“ cu ”
f
í gu
ugu
f
à “ á c
cu
”
uz
u ,
novas abordagens linguísticas, inclusive nos livros didáticos. Com
base na Análise de Discurso de linha francesa, objetiva-se observar e
analisar as construções desse sujeito e seu posicionamento no ato da
linguagem como trabalho, em um momento em que o lugar de onde se
pronuncia encontra-se abalado por tantas instabilidades e
transformações. Não pretendemos, com esta pesquisa, apontar as
soluções para esses fatores, no entanto, é papel do analista investigar
as condições de produção de um sujeito atravessado por ideologias tão
divergentes em tempo de conflito, ou talvez até mesmo de revolução.
Nosso objetivo, portanto, é conhecer os novos discursos formados
nesse contexto, a fim de melhor compreender seus sentidos. Como
nossa pesquisa se encontra em fase inicial, não há ainda dados
analisados, o que possuímos advém de reflexões embasadas no
levantamento das fontes, especialmente das leituras realizadas até o
momento de autores como Pêcheux (1969/1997), Foucault (1986),
Orlandi (2012), Rodrigues, Silva e Faïta (2011), entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; conflito; linguagem como trabalho.
Introdução
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
2
Professora orientadora Dra. Maria Leda Pinto.
268
ANAIS - 2013
Em meio a tantas transformações sociais por que passa
nossa era, abre-se espaço para conflitos, reflexões buscas e
reinvenções. Nesse contexto, observa-se o homem, afetado pelas
transformações, e o mundo sendo transformado. Entre os dois, a
linguagem significa toda a realidade vivenciada e transforma um
animal racional em ser humano, em sujeito e/ou sujeitando-o.
Para compreender esse fenômeno, ou os fenômenos que surgem
a partir daí, um elemento se torna indispensável: o discurso.
Realizado por meio de palavras, que pairam sobre a
atmosfera perpétua das vivências humanas, tal qual satélites que
absorvem a luz de toda essa história ganhando, assim,
significação, renovando-se em cada mudança de fase, elas, as
palavras, vão sendo ditas organizadas em frases, orações e
períodos; fazendo a história, transformando os homens em uma
dialogia constante. Esse espetáculo carece de cenário para ser
produzido. Não é simples, mas complexo. Nesse sentido, para
vir a ser e/ou por vir a ser, reclama as condições de produção.
Pensadas por Pêcheux, são elas que permitem ao analista
examinar o discurso sob os parâmetros da cientificidade da
Análise do Discurso de linha francesa. As condições de
produção fazem com que o discurso não seja apenas um texto
produzido por um homem qualquer, mas uma discursividade
realizada por um sujeito situado em um lugar social para
desempenhar um determinado papel social. Ao analista, nesse
sentido, cabe ter noção de cada uma dessas condições a fim de
melhor poder investigar o sentido, ou os sentidos, possíveis de
se identificar/em no momento da fala de um sujeito.
Das relações entre o sujeito e seu interlocutor, em um
ug , b
c
u “j g
g ”,
irromper-se-á o a identidade do sujeito, que a Análise do
Discurso de linha francesa, (doravante AD) aponta como
alguém que é afetado pela linguagem, atua na construção da
269
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
história e pelas duas se constitui. Este artigo traz um pouco mais
de reflexão sobre as condições de produção de um discurso que
não é apenas mais um: é o discurso do professor de Língua
Portuguesa em meio a tantas transformações sociais e conflitos.
Considerações sobre o estudo e as transformações do
discurso
Em momentos anteriores ao evento que marca o
lançamento do Curso de Linguística Geral, o estudo de língua,
que sempre foi uma preocupação de estudiosos e pesquisadores,
seguia outros cursos, o enunciado já era estudado, porém sua
principal linha de estudo se restringia a questões de
compreensão de texto, uma interpretação pautada em aspectos
formais, mais precisamente relacionados às regras da gramática
normativa.
Desse modo, o campo sobre o qual a AD veio a se
estabelecer não era novo, no entanto funcionava sob as
perspectivas da então filologia. É relevante que se faça uma
abordagem sobre essa fase anterior à AD para que se perceba
que o enfoque dessa nova disciplina ou método de análise é
outro.
Nesse sentido, antes de 1960, o discurso se intitulava
“texto”, seu estudo se dava de maneira particularmente escolar,
“enfim, a prática escolar referida é a explicação de textos,
presente sob múltiplas formas em todo aparelho de ensino, da
escola à universidade ” (M IN UENE U, 1993) D
modo, a missão de interpretar textos fazia da filologia, ciência
u
é c ,
“
u
cê c ”
(M IN UENE U, 1993), uma vez que sua
finalidade se restringia a desvendar o que os autores das diversas
270
ANAIS - 2013
á
“qu
z ”,
u çã c u
Eu
época. Assim, Maingueneau (1993) descreve a filologia.
qu
f
g f ch
“
fíc
” Ou j , o papel da filologia consiste
em determinar o conteúdo de um documento
lavrado em língua humana. O filólogo quer
conhecer a significação (sic) ou a intenção
daquele cuja fala é conservada através da
escrita. Deseja captar a cultura e o meio no
interior dos quais este documento nasceu e
compreender as condições que permitiram
sua existência (...). Para o filólogo, a ciência
da linguagem propriamente dita (...) é
apenas um conjunto de meios para atingir o
sentido contido na palavra escrita ou falada.
(...) Se a filologia se aplica a problemas
verdadeiramente lingüísticos, como a
fonética, a morfologia, a sintaxe ou a
semântica, é apenas para assegurar uma
interpretação
exata
(MAINGUENEAU,1993, p.10).
Como pudemos perceber, os estudos filológicos de então
se assemelham muito ao que ainda hoje é estudado em língua
portuguesa e até mesmo nas outras diversas disciplinas escolares
em que se pretende alcançar uma interpretação rasa ou apenas
captação das informações conteudistas de cada área específica,
algo que passa bem perto da decodificação por parte daquele
que contém informações básicas sobre determinado assunto.
Como exemplos desse tipo de leitura e interpretação,
poderíamos citar uma lista de problemas matemáticos ou um
exercício de interpretação de texto presente em provas de
Língua Portuguesa ou mesmo em questões de múltipla escolha
271
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
de História ou Geografia na escola ou em concursos
diversos.Antes de Maingueneau, Pêcheux já se ocupara de
justificar Filologia:
Faz-se necessária uma abordagem, ainda
que um tanto sintetizada, da filologia devido
ao fato de que ela seja a antepassada direta
á
D cu
h f c ,‘
as questões concernentes aos usos
semânticos e sintáticos colocados em
evidência pelo texto ajudavam a responder
as questões que diziam respeito ao sentido
x ( qu
u
“qu
z ”) ’
(PÊCHEUX, 1990, p. 61)
Percebemos, nesse sentido, que as informações textuais
eram, praticamente, reduzidas às informações explícitas,
restringindo o que houvesse de implícito apenas ao
conhecimento referente ao que cerceasse o assunto em questão.
O papel do sujeito, tal qual a Análise do Discurso concebe hoje,
ainda não havia sido despertado, o autor era tão somente um
transmissor de informações veiculadas a determinados
conteúdos dentro de suas especificidades, aquele que quando
falava ou escrevia, produzia um texto que falava por si,
organizado dentro dos conjuntos de normas estruturais de
determinada língua. Parte daí a observação de Maingueneau
(1993.p.9) qu
D
“o encontro de uma conjuntura
intelectual e de uma prática escolar ”
Conforme profere, em concordância com Maingueneau,
Pêcheux (1990):
Até os recentes desenvolvimentos da ciência
linguística, cuja origem pode ser marcada
com o Curso de Linguística Geral, estudar
272
ANAIS - 2013
uma língua era, na maior parte das vezes,
estudar textos, e colocar a seu respeito
questões de natureza variada provenientes
ao mesmo tempo, da prática escolar que
ainda é chamada de compreensão de texto, e
da atividade do gramático sob modalidades
normativas ou descritivas (... )(PÊCHEUX,
1990, p. 61)
Nesse sentido, é notório que o estudo de língua e o
estudo de texto se fundem ou se confundem, uma vez que, até
Sausseaure, o protagonista era o texto e sua informatividade, o
que queria dizer aquele ajuntamento de palavras e frases
organizadas em torno das regras de determinada língua. Mesmo
tendo em vista a existência de um autor, era o conjunto
estrutural do texto que se responsabilizava pelo sentido ou pelo
que o autor tenha se proposto a dizer.
Em contrapartida, a conjuntura intelectual se compõe de
estudiosos que viam no texto algo além da estrutura inicial ou
microtextual, vista aqui como estruturas gramaticais de uma
í gu
cu “em torno de uma reflexão
sobre a “escritura”, a linguística, o marxismo e a psicanálise”,
os novos estudiosos da linguagem passam a defender que a
“ í gu
u
ó
” (ORL NDI, 2012);
f
passam a visualizar o texto a partir de um sujeito histórico,
elemento que, nesse sentido, se constitui por meio de atos
discursivos em uma historicidade de permanente transformação,
da qual, dialogicamente; nele habita uma consciência
materializada, sobre a qual ele não tem domínio, seu dizer é
atravessado por outros dizeres que já foram ditos se alternando
num jogo de poder presente em uma sociedade organizada em
classes.
273
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Esse processo é complexo, como não poderia deixar de
ser no caso de uma disciplina que nasce no entremeio de outras
ê, c f
f
O
: “ a análise do discurso se
constitui no espaço de questões criadas pela relação entre três
domínios disciplinares” (ORLANDI, 2012). Para que seja
compreendido com maior profundidade, é necessário que se
recorra ao referencial teórico da história do nascimento da AD,
bem como às teorias de cada disciplina que a circunda mais
: “a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise”
(ORLANDI, 2012). Sob esse dispositivo teórico, a linguística
ocupa o espaço da Filologia apresentando novas perspectivas
para buscar alcançar a interpretação, não apenas do texto, porém
agora do discurso.
Nesse sentido, o texto não é mais apenas um enunciado
linguístico resultado de uma determinada autoria, não é objeto
de estudo limitado por parâmetros estruturais linguísticos, não
g fc
h
c
, u j , “para a análise do
discurso, o que interessa não é a organização linguística do
texto, mas como o texto organiza a relação da língua com a
história no trabalho significante do sujeito em sua relação com
o mundo.” (ORL NDI, 2012)
Da mesma forma, a Análise do Discurso não concebe um
autor elemento individual, constituído em si mesmo, consciente
de suas atitudes, ou capaz de organizar um enunciado baseado
apenas em suas convicções, tendo como interesse a intenção de
remeter uma dada mensagem a fim de alcançar algum objetivo
particular. Para a AD, a relação existente entre o discurso
produzido num dado momento e a produção de sentido está
totalmente ligada ao lugar de onde esse discurso ressoa, da
mesma forma em que o sujeito que o profere é definido pela
çã qu cu
qu
“Aí entra então a
274
ANAIS - 2013
contribuição da Psicanálise, com o deslocamento da noção de
homem para a de sujeito” (ORL NDI, 2012)
O analista do discurso precisa estar atento a toda essa
formação discursiva, ou seja, existe um contexto históricoideológico que faz parte do discurso, e sem o qual é impossível
se chegar a um significado condizente com a realidade
discursiva.
“O analista do discurso, vem dessa forma trazer sua
contribuição às hermenêuticas contemporâneas. Como todo
hermeneuta, ele supõe que um sentido oculto deve ser captado,
o qual, sem uma técnica apropriada, permanece inacessível ”
(MAINGUENEAU, 1993).
Os elementos da comunicação segundo Pêcheux e a
constituição desses elementos
Durante a época em que se estudava apenas o texto e sob
bj
c b
qu “
qu
z ”, gu
elementos não exerciam os papéis que passam a exercer a partir
de Pêucheux. A nós, como analistas, interessa a compreensão
daquilo que o mestre passa a apresentar a partir de então. Não
estamos dizendo que as teorias anteriores não sejam relevantes,
seria incoerência, mesmo porque foram elas os primeiros passos,
sem os quais não teríamos os avanços que agora conhecemos.
Nesse sentido, cabe-nos tão somente argumentar que,
com gratidão, damo-nos ao privilégio de construir sobre as bases
sólidas que outros outrora construíram, reconhecendo sim sua
importância sem nos prendermos agora a elas, uma vez que,
gu
O
, “
çã
curso, em sua definição,
distancia-se do modo como o esquema elementar da
comunicação dispõe seus elementos, definindo o que é
g ” (ORL NDI 2012)
275
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A autora faz referência ao esquema elementar formado
por um emissor que codifica a mensagem, um código
linguístico, uma mensagem transmitida, um referente conhecido
como o contexto, e um receptor que decodifica a mensagem.
Obviamente, esse esquema reduz a comunicação a uma
estaticidade extremamente distante da realidade compreendida
pela AD, que nem concebe a linguagem como pura
comunicação, mas entende que os mecanismos de linguagem
humana vão muito além de pura transmissão de informações:
(...) diremos que não se trata de transmissão
de
informação
apenas,
pois,
no
funcionamento da linguagem, que põe em
relação sujeitos e sentidos afetados pela
língua e pela história, temos um complexo
processo de constituição desses sujeitos e
produção de sentidos, e não meramente
ã
f
çã ” (ORL NDI,
2012, p.20).
Eis o esquema. Usá-lo-emos com o propósito de
demarcar a mudança proposta por Michel Pêcheux:
(L)
D
A
B
R
(...) a teoria da informação, subjacente a este
esquema, leva a falar de mensagem como
transmissão de informação: o que dissemos
precedentemente nos faz preferir aqui o
termo discurso, que implica que não se trata
276
ANAIS - 2013
necessariamente
de
transmissão
de
informação entre A e B, mas, de modo mais
g ,
u “ f
”
pontos A e B. (PÊCHEUX, 1990, p.82)
Pêcheux, a partir de então, apresenta uma reformulação
dos elementos envolvidos no uso/manifestação da linguagem.
Trata-se de uma nova leitura do papel do homem no universo,
bem como dos processos que configuram a existência e as
possibilidades desse universo, materializado a partir de
elementos antes não vistos como materialidade. É a contribuição
da filosofia marxista transformando, ou reformulando, as formas
e as formas impostas ao mudo.
D c
c
Pêch ux, “F c bem claro, já de início
que os elementos A e B designam algo diferente da presença
fí c
g
hu
u ” (Pêch ux 1990,
p.82) Assim sendo, se anteriormente, concebia-se um homem
emitindo uma mensagem a outro homem, agora poderíamos
inqu : “Qu
é h
?”; u,
g fc
, “O
qu é h
?”
c uz h
D,
qual um espelho côncavo, faz refletir novas imagens, e num
jogo de polissemia, faz nos refletir acerca das mesmas.
Desse modo se antes o homem era visto como um agente
consciente de seus direitos, deveres e potencialidades, no
entanto, olhando mais a fundo, o que ilusoriamente era visto
como um elemento pronto não revela seu início e nem seu fim;
verdadeiramente certo é dizer que o homem não é, mas ele está.
E explorando as duas predicações destinadas a esse verbo, notarse-á, que, em um caso e em outro, a oração se formulará
apresentando informações relevantes, ainda que uma delas seja
considerada pela gramática normativa como acessória, na
prática não é bem assim.
277
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Aparecerá o predicativo que poderia ser preenchido por
um título qualquer, ou um lugar determinado. Em ambos os
casos, percebeu qu é h
, c b qu “ g
c
P ã ”: à
b
u b
-se uma imagem, à
luz do conhecimento, outra; apenas um recorte histórico de um
elemento eterno, ou seja, o homem de hoje, nada mais é do que
um fragmento do que foi ontem e do que será amanhã.
Quando se diz sobre o predicativo, é para ilustrar que o
antigo emissor não é aquele que transmite uma mensagem
própria, mas é um representante sob um título imposto por um
período de tempo, representando a expressão de uma ideologia
que emerge de uma determinada instituição. A AD reconhece o
discurso como
Assim se identifica o sujeito que é sujeito por um espaço
limitado de tempo, não há sujeito sempre sujeito, essa posição é
dura apenas enquanto ocupa o lugar reservado a ele, no jogo de
g
c
çõ
uçã , “o discurso significa
entre locutores” (ORL NDI 2012). Portanto, esse sujeito
divide o seu espaço com o outro, já que nenhum discurso
provém de um sujeito como fonte única do seu dizer, pois
conforme afirma Orlandi (2012) Dessa forma, um A e alguém
aqui designado B. Quem é A e quem é B depende do lugar de
onde se fala. Trataqu O
x c :“
ê c
sujeito - a de que somos sempre já sujeitos apaga o fato de que o
í u é
uj
g ” (ORL NDI
2012).
278
ANAIS - 2013
Reflexões sobre o “jogo de imagens”
Dentro do estudo das condições de produção, uma teoria,
em particular, requer um espaço substancial: a teoria do Pêcheux
u
“j g
g ”
Todo sujeito, ao proferir uma fala, passa pelo processo
de atribuição de identidades, a si mesmo, ao seu interlocutor.
Essa identidade não é algo simples, mas se constitui de uma
c
x
çã N f
Pêch ux, “o que funciona nos
processos discursivos é uma série de formações imaginárias
que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao
outro, a imagem que eles se fazem do seu próprio lugar e do
lugar do outro ” (Pêch ux 1990, 82) N
, f
se analisa dentro de uma determinada situação, não de forma
cristalizada, visto saber que não é um ser único e cristalizado,
mas que vivencia papéis predeterminados na historicidade do
mundo e do discurso. A fala vem, nesse sentido, a ser construída
sob condições que determinam o que deve ser falado a partir
daquele lugar, desse modo, não é algo individual, mas
institucional.
É importante visualizar novamente o quadro das
formações imaginárias, segundo Pêcheux (1990, p. 83), para
uma melhor compreensão dos fatos mencionados até então:
279
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Expressões
designam
formações
imaginárias
que Significação
as expressão
I
A
I
A
I
B
I
B
(A)
A
(B)
(B)
B
(B)
da Questão
implícita
cuja
“
”
subentende
a
formação imaginária
correspondente
IA(A): Imagem do Quem sou eu para
lugar de A para o lhe falar assim?
sujeito
colocado
em A
IA(B): Imagem do Quem é ele para que
lugar de B para o eu lhe fale assim?
sujeito
colocado
em A
IB(B): Imagem do Quem sou eu para
lugar de B para o que ele me fale
sujeito
colocado assim?
em B IB(A): Imagem do Quem é ele para que
lugar de A para o me fale assim?
sujeito
colocado
em B
Ao tratar desse esboço, o estudioso ainda acrescenta:
é
g
c c
qu
“ f
”
(R
qu
c ,
“c
x ”,
“ u çã ”
qu
c
cu
pertence igualmente às condições de
produção. Sublinhemos mais uma vez que se
trata de um objeto imaginário (a saber o
ponto de vista do sujeito) e não da realidade
física.
280
ANAIS - 2013
Colocaremos pois:
Expressões que Significação
designam
as expressão
formações
imaginárias
A
I A (R)
B
I B (R)
“P
de A sobre R
“P
de B sobre R
da Questão implícita
cuja
“
”
subentende
a
formação
imaginária
correspondente
” “D qu
h f
?”
” “D qu
f
?”
Nesse sentido, as identidades, que não são fixas, mas
tornam-se igualmente imaginárias, como toda a composição do
qu
g á
é, ã
c
uí
b
“ é
c h c
” qu
ç
c
u
qu
,b
c
“c h c
é ” qu
A pressupõe per c
B
é
,
“Já”
adormecidos sinalizam a formação discursiva3 adequada para
cada situação. Assim a identidade de A passa a ser formulada
por quem ele pensa ser somada a quem ele acredita esperarem
que seja, e a força de seu discurso dependerá do resultado que
ele imagine obter.
Como esse processo, além de complexo, se movimenta,
ou seja, foge à estaticidade, o discurso de A motivará um
posicionamento de B, o interlocutor, nesse sentido, B poderá
3
Para este trabalho, adotamos o conceito de formação discursivo de Orlandi:
“A formação discursiva se define como aquilo que numa formação
ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura
sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito.” (ORL NDI,
2012)
281
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
construir um próximo discurso e remetê-lo a A dando vida a
outro aspecto da dialogia da linguagem, que se move enquanto é
atravessada pela história movimentando a própria história.
E por falar em história, na história das teorias, que
também não param, Pinto retoma a fala de Osakabe (Pinto.
2010, p.125):
(...) analisando o esquema de formações
imaginárias criado por Pêcheux, , vai propor
uma reformulação das perguntas que
c
õ
ch
“j g
g ” por
entender que carecem de outro elemento
igualmente importante e que se fundamenta
sobre a relação atuacional e pragmática entre
A e B. Para Osakabe, a pergunta central não
se localiza mais em A ou B, mas sobre A e
B, podendo ser assim construída: O que A
pretende falando dessa forma? Duas outras
perguntas podem surgir do desdobramento
desta questão. São elas: O que A pretende de
B falando dessa forma? O que A pretende de
f
f
?”
um ap
A primeira parte do desdobramento vai ao encontro de
ó
Pêch ux b
“
çõ ”
:
(...) a antecipação de B por A depende da
“ â c ” qu
u õ
B:
encontram-se assim diferenciados os
discursos em que se trata para o orador de
transformar o ouvinte (tentativa de
persuasão, por exemplo) e aqueles em que o
orador e seu ouvinte se identificam
(f ô
cu
c
cu u , “ c
282
ANAIS - 2013
h ”
f
(PÊCHEUX, 1990, p.85).
c
,
c)
Esse detalhe é suficiente para que se perceba que,
embora a história continue fazendo de todos apenas os atuais
personagens, posteriores a uns e antecedentes de outros, cada
um é único em sua existência. Nesse sentido, há uma unicidade
b
ç
qu
u h
é c “
ug ”
contracenem, em uma mesma época, sujeitos que, apesar de
constituídos a partir de hipotéticas mesmas ideologias, sejam
sujeitos diferentes.
Apesar de a AD não tratar o sujeito como um indivíduo
qu
c
u
, u c c
, “tentativa de
persuasão” (PÊCHEUX, 1990), em algumas situações é
perceptível, desse modo as intenções, embora seja um vocábulo
que pareça não fazer parte da AD, podem ser fundamentadas por
meio do jogo de imagens de Pêcheux, quando aborda o princípio
“
c çõ ” (PÊ HEUX, 1990) entre A e B. Nesse
sentido, cabe a reflexão sobre o fato de, por parte de A, haver
intenções sociais, coletivas. A absorve as ideologias, no entanto
também as filtra, seleciona e transforma, no momento em que
faz suas leituras. O que não poderia ser observado na primeira
f
D, qu
uj
c
“um espaço discursivo
supostamente dominado por condições de produção estáveis e
homogêneas ” (PÊ HEUX, 1990) Já
c
f
D,
discurso se constitui entre forças conflitantes, o outro ganha
x
ã
ch
“discurso-outro”
u “discurso
heterogêneo” (PÊ HEUX, 1990), u qu qu
c
forças conflituosas, diferente da fase inicial da AD. Seria por
isso que no mundo observamos diferentes organizações sociais,
não únicas, diferentes atuações políticas, não as mesmas,
283
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
diversos níveis de posturas frente a relações econômicas, não
apenas a ganância.
Dessa forma os elementos das condições de produção
são inesgotáveis em suas complexidades sem que isso torne o
trabalho do analista impossível, apenas requer dele uma atitude
de alguém que analisa algo vivo e tenha ciência de que, frente a
isso, não lhe cabe uma postura enrijecida, ao contrário precisa
estar sempre atento à formação discursiva.
Do lugar (escola): uma instituição sujeito
“P
,
c c
, u
h
óg c
Estado desempenha o papel dominante, muito embora não
escutemos sua música a tal ponto, ela é silenciosa! Trata-se da
c ” ( hu
, 2012) N
c á
u
qu
ideologia se materializa trazendo à existência a historicidade da
vida humana por meio do discurso, um aparelho, especialmente,
se destaca. Desde o seu nascimento, vem se comportando como
instituição que visa ao atendimento da formação daqueles que
constituem a sustentação do Estado enquanto força dominante,
aqueles que suprirão as necessidades da produção e devem
aprender a desempenhar bem esse papel.
De nossa parte, surgem outras possibilidades de
reflexões, ainda que considerando toda a historicidade desse
aparelho definido por Althusser como o ocupante do papel
dominante dentre os demais aparelhos ideológicos, se há uma
‘
çã ’
uj
cu , ã
considerar também a possibilidade de haver sujeitos diferentes,
com motivações persuasivas diferentes a fim de alcançar
objetivos diferentes? Não negamos que a escola continue
gerando mão de obra para a produção; mas de onde saíram
aqueles nomes que fizeram – e alguns que ainda fazem- a
284
ANAIS - 2013
diferença no rumo da nossa História? É bem verdade que a
escola continua exercendo o papel de força motriz para o
funcionamento do Estado de produção, no entanto também é ela
que movimenta nossa sociedade de classes e transfere ou
mobiliza alguns.
Apesar de forte representante da ideologia do Estado,
não há de se negar que a escola é também um aparelho que
funciona como uma ponte de mão dupla, uma vez que por um
lado é via de acesso da mão de obra daqueles que atenderão às
necessidades de produção do capitalismo, por outra via,
direciona aqueles que tomam um rumo diferente do que estava
aparentemente predestinado, ou seja, gera rupturas nos sistemas
até então solidificados de alguns grupos.
Nesse sentido, a escola tem incorporado, até certo ponto,
o papel de aparelho ideológico de Estado inculcando a ideologia
dominante, preparando o aluno para que vá ao encontro da
demanda social empregatícia produtiva, há, por conta disso, uma
identidade preconcebida desse sujeito institucional. Entretanto,
se Osakabe tem razão em seu questionamento, abre-se outro
gancho, visto que a escola não fala por meio de si mesma, mas
por meio de outros sujeitos, que a transformam em lugar. É
óbvio que esses também trazem consigo, na dialogia da
historicidade, discursos interpelados pela ideologia dominante,
c
uí
‘já’, ã b
, ao pensarmos
sujeito-direção e sujeito-corpo- c
; qu
‘ ’
c
u
‘
’ g
‘B ’? Qu
dessa materialidade pode atuar como força de ruptura?
Considerações sobre a identidade do sujeito/professor de LP
c
285
Sendo o professor de língua portuguesa um sujeito que
u
ç ‘ c ’, h
b g
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
uz
u
cu , u ‘ gu g
c
b h ’,
c
g
g
‘B’,
u ,
á á
atender às necessidades impostas pela sociedade atual. Desse
modo, toda a fala do docente precisa convergir para a
preparação do aluno na direção das exigências do mercado de
trabalho, seja no sentido instrucional da tecnicidade, seja no
conhecimento intelectual para os concursos profissionalizantes
ou demais concorrências nas diversas disputas pelas melhores
vagas. Há sempre essa exigência.
P
u
,
qu
b
u ‘B ’,
‘ ’
c
uj
à
z qu ju
c
u
identidade da escola, ou mais claramente, sujeito a quem
qu ‘é
b ’ h j N
c
, há
ainda uma disputa por ser a melhor voz, a mais acertada. Esse
fator pode desencadear conflitos e recriar discurso, afinal como
dizia Pêcheux: “O surgimento de um acontecimento discursivo
não é um fato rotineiro, nem intencional e nem mesmo
elaborado, mas constituído no bojo das relações de
produção/transformação das relações de produção” (1997, p.
191)
O professor é um trabalhador do intelecto, sujeito à
instituição escola, que por sua vez está sujeita ao Estado e,
concomitantemente é dirigida por vozes que se constituíram
poder, até para justificar e motivar a aceitação da instituição,
mediante exigências da sociedade moderna.
No momento em que essas vozes se dividem,
obviamente, surgem, em meio aos conflitos, novos discursos.
Então, diante das abordagens da AD, para que o professor de
í gu
ugu
j
c
uj
,
‘já
’,
da imagem feita da escola, que também tem força de sujeito, da
demanda da organização social, das necessidades impostas aos
alunos, e até mesmo das exigidas por alguns que sofreram
286
ANAIS - 2013
u u , qu
qu ‘
’
c
qu
transforma pelo discurso e também o transforma, e ainda pelo
que ele, profissional, vê em si mesmo somado ao que pretende.
É o resultado de toda essa soma de fatores que estabelecerá a
identidade do professor.
A dúvida que surge é em relação à complexidade da
relação: se as parcelas podem ser tão diferenciadas por
circunstâncias tão diversas, teríamos uma identidade ou
identidades diferenciadas de um mesmo sujeito? Se a resposta
for negativa, o sujeito será constituído classe; no entanto se for
afirmativa, estará ocorrendo fragmentação ou multiplicação do
que era uma classe. Recorrendo a Análise do Discurso, na
concepção de Orlandi, quando diz que:
Análise de Discurso concebe a linguagem
como mediação entre o homem e a realidade
natural e social. Essa mediação, que é o
discurso, torna possível tanto a permanência
e a continuidade quanto o deslocamento e a
transformação do homem e da realidade em
qu
” (ORL NDI, 2003, 15 )
qu
uj
bé é ‘ h
’, cabe
investigar se o que se dá é continuidade, deslocamento ou
transformação do sujeito professor de Língua Portuguesa nessa
formação de identidade e na atuação do agente da linguagem
‘c
b h ’
u f
çã
cu
,
local de trabalho.
E
Lugar do linguista e o lugar do gramático
suj
287
Como abordamos anteriormente, a AD pressupõe um
f
c
c
,
, “clivado” (ORL NDI,
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
1998); é dessa forma que se constitui o professor de língua
portuguesa da atualidade, entre correntes ideológicas diferentes:
“Em outros termos, a ciência clássica da linguagem pretendia
ser ao mesmo tempo ciência da expressão e ciência dos meios
desta expressão, e o estudo gramatical e semântico era um meio
a serviço de um fim, a saber, a compreensão do texto...”
(PÊCHEUX, 1990). A fala do mestre francês vem resumir o
objeto de estudo e preocupação do gramático, aquele que
durante
muito
tempo
trabalhava
a
linguagem
metalinguisticamente.
Apesar de cada língua, ou cada variação, apresentar sua
respectiva gramática, por questões de demandas sociais que
contribuem para a determinação do papel da escola, como já
mencionado anteriormente, apenas o funcionamento da
gramática da língua portuguesa considerada culta é preocupação
da escola. Assim, gramático continua sendo o estudioso da
gramática da língua considerada oficial. Para ele, em nome da
demanda social, conhecer e preservar
a composição das estruturas convencionais do idioma é
extremamente necessário. Pêcheux, como linguista, demonstra o
qu O
c
c
“deslocamento e a transformação
do homem” (ORL NDI, 2003)
( )
gu á
: ‘D qu
f
x ?’, ‘Qu
ã
c
c
x ?’
‘E
x
á
conformidade com as normas da língua na qual
?’, u ã ‘Qu
ã
próprias a
x ?’ (Pêch ux, 1990, 61)
Nesse sentido, alguns gramáticos se transformaram em
lingüistas, ou seja, estudiosos da linguagem sob outros aspectos.
Dentre as inúmeras teorias, Benveniste esclarece:
288
ANAIS - 2013
a língua permite que o homem se situe na
u z
c
;
h
‘
u
necessariamente em uma classe, seja uma classe
u
u c
uçã ’ E
consequência, a língua sendo uma prática
hu
,‘
u qu g u
uc
h
f z
[
] ” (B
, apud
Alkmim. 2001, p. 27-grifos da autora).
Dessa maneira, se o gramático se preocupa com a forma
com a qual a língua se constitui, o linguista se preocupa com seu
uso, em suas diversas maneiras. Percebe-se então dois diferentes
campos de atuação.
Considerações finais
Em meio às complexidades da linguagem, um
profissional se manifesta no entremeio de diversos conflitos
impostos pelas demandas sociais, entretanto um conflito se
evidencia em proporções mais desafiadoras: são as divergências
u
í gu
B
: “g
á c ”
“ guí c ”
“g
á c ” “ gu
” Há
aqueles que reconhecem a mútua importância, mas têm se
destacado alguns de discursos agressivos e incisivos.
Na historicidade do homem, a realidade se materializa na
capacidade do uso da linguagem, é na relação com o outro que
c
u, c
f
Pêch u: “( ) se o homem
entende seu semelhante é porque eles são um e outro, em algum
grau, “gramáticos”, enquanto que o especialista da linguagem
só pode fazer ciência porque, já de início, ele é, como qualquer
homem, apto a se exprimir ” (PÊ HEUX, 1990) E
b h
do professor atravessa essa capacidade de se expressar, vai além
na medida em que a escola o concebe como responsável por
aprimorar essa aptidão.
289
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Além de a língua humana ser um objeto de infindáveis
reflexões e descobertas, de notáveis riquezas, dois extremos
conflituosos têm delimitado a ação do professor de língua
portuguesa. Nesse sentido, surge a necessidade de conhecer o
discurso produzido em meio às condições de produção que o
cercam.
Referências
MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da Obra
Literária. Trad. Marina Appenzeller. Martins Fontes, São
Paulo, 1995.
__________. Novas Tendências em Análise do Discurso.
Campinas: Pontes, 1993. Trad. de Freda Indursky.
MUSSALLIM, F. e BENTES, A. C. Introdução à linguística –
domínios e fronteiras1. São Paulo. Cortez, 2000.
ORLANDI, E.P. Análise de Discurso:
procedimentos. Campinas: Pontes, 2012.
princípios
e
PÊCHEUX, M. A análise automática do discurso (1969). In:
GADET, F. e HAK,T. (orgs.) Por uma análise automática do
discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas:
UNICAMP.
SILVA, M. C. P.S. e FAÏTA, D. (Orgs.) Linguagem e
trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na
França. São Paulo: Cortez, 2002.
290
ANAIS - 2013
As crônicas de Alice Vaz de Melo: o olhar individual de uma
memória coletiva
Marta Roque BRANCO1
Paulo BUNGART NETO2
RESUMO: Este trabalho visa observar traços das crônicas de Alice
V z M
ub c
ã “U
Ou ”
j
O Grito
entre os anos de 1970 e 1971. Esses textos relatam, por intermédio da
memória, os acontecimentos que envolvem a formação e o
desenvolvimento da cidade de Ivinhema – uma pequena cidade do
interior de Mato Grosso do Sul em seus primeiros anos de
emancipação. A autora traz em suas narrativas literárias as
representações do espaço e dos costumes de uma época. São textos
que apresentam um recorte histórico coletivo a partir do olhar
individual de um figura atenta e preocupada com o meio social em
que vive. São escritos que se constituem como um rico material sobre
a formação da cidade de Ivinhema e, consequentemente, de Mato
Grosso do Sul. Os textos serão analisados pelo viés dos estudos
memorialísticos, com o auxílio de autores como Halbwachs,
Zilberman e Souza.
PALAVRAS-CHAVE: Memórias de Alice Vaz de Melo; jornal O
grito; registros sobre Ivinhema.
1. Introdução
Apesar de vasta, a produção memorialística do Mato
Grosso do Sul permanece, de modo geral, desconhecida do
público leitor e até mesmo da comunidade acadêmica. Em todas
1
Marta Roque Branco, Mestranda. Universidade Federal da Grande
Dourados – UFGD. [email protected]
2
Paulo Bungart Neto, Prof. Dr. Universidade Federal da Grande Dourados –
UFGD. [email protected].
291
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
as regiões do estado podemos encontrar interessantes autores e
b
gê
, c c í c qu
j
“
í c
no Mato Grosso do Sul como gênero representativo da
cu u f
ç ”, c
lo Prof. Dr. Paulo
Bungart Neto, pretende demonstrar, contribuindo para tirar do
anonimato as mais diversas obras do gênero confessional.
Assim, no sudeste do estado, temos, por exemplo, as Memórias
de Jardim e Senhorinha Barbosa Lopes, de Samuel Xavier
Medeiros; da região sul, obras como Só as doces... uns ‘causos’
por aí, de Elpídio Reis (Ponta Porã); e Chão do Apa: Contos e
memórias da fronteira, de Brígido Ibanhes (nascido em Bella
Vista, Paraguai, e radicado em Dourados); de Ribas do Rio
Pardo, a obra Onde cantam as seriemas, de Otávio Gonçalves
Gomes; da região do Pantanal, O pescador de sonhos, do exgovernador de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul Pedro
Pedrossian (nascido em Miranda), bem como diversas obras do
corumbaense Renato Báez (por exemplo: Corumbá: Memórias
& notícias e Corumbá: Lembranças e tradições); da capital
Campo Grande, os registros de Maria da Glória Sá Rosa,
cearense de nascimento e campograndense por adoção (Deus
quer o homem sonha a cidade nasce: Campo Grande – Cem
anos de história; e Crônicas de fim de século, dentre outras); e
as memórias dos irmãos Barros, nascidos em Cuiabá, criados em
Corumbá e há muitos anos habitantes da capital sul-matogrossense (Manoel de Barros e suas Memórias inventadas,
escritas em verso; e Abílio Leite de Barros, Histórias de muito
antes, coletânea de contos e memórias). Nota-se, portanto,
somente dentre os autores citados acima (há vários outros, não
mencionados) que a produção memorialística no Mato Grosso
do Sul é vasta e diversificada, nada ficando a dever aos outros
estados ou regiões do Brasil.
292
ANAIS - 2013
Do Vale do Ivinhema, compondo o conjunto de obras
confessionais dos escritores sul-mato-grossenses podemos citar
os escritos de Alice Vaz de Melo, dos quais este artigo visa,
como se percebe a partir do título, destacar algumas das crônicas
ub c
ã “U
Ou ”,
j
O Grito, entre
os anos de 1970 e 1971, principalmente as que discutem
aspectos culturais e históricos do desenvolvimento de Ivinhema.
Tais textos se fazem pertinentes à medida que revelam a
complexidade de obras literárias ricas em aspectos históricoidentitários sobre a formação e desenvolvimento de uma
pequena cidade do interior de Mato Grosso de Sul, fato que se
deve ao envolvimento sócio, histórico e cultural da autora com
seu tempo e seu lugar, preocupações estas que a fizeram
destacar-se e ser ouvida dentro de um espaço ainda
desconhecido e com poucos recursos, especialmente por ser
mulher em um tempo e local em que as mulheres ocupam
espaços limitados.
2. Aporte Teórico
Antes de atermos à discussão dos textos de Alice, um
aspecto precisa ser abordado: o caráter memorialístico
recorrente nos textos da autora, já que estes narram fatos
acontecidos durante o desenvolvimento de Ivinhema e que são
reconstruídos por meio de registros que ficaram gravados em
sua memória.
2.1. O caráter memorialístico das crônicas de Alice
Devido à complexidade dos estudos memorialísticos,
tomemos como definição de memória aqui o conceito registrado
293
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
por Regina Zilberman em seu
or
ó ”:
x
“P á c
,
Memória constitui, por definição, uma
faculdade humana, encarregada de reter
conhecimentos adquiridos previamente. Seu
bj
é u “
” x
indivíduo, que o armazena em algum lugar
do cérebro, recorrendo a ele quando
necessário. Esse objeto pode ter valor
sentimental, intelectual ou profissional, de
modo que a memória pode remeter a uma
lembrança ou recordação; mas não se limita
a isso, porque compete àquela faculdade o
acúmulo de um determinado saber, a que se
recorre quando necessário. (ZILBERMAN,
2010, p. 17)
Para a adequada compreensão de textos envolvendo
lembranças, é indispensável que essas análises estejam
associadas a um estudo mais aprofundado sobre memorialismo.
Essa abordagem se torna inevitável porque aproxima memória
(passado) e consciência (presente), cabendo a esta última o
ponto de união entre passado e futuro. Tal noção é de suma
importância para se perceber que o texto memorialístico é
construído por uma concepção individual. É o que ressalta Tânia
Regina de Souza:
Uma narrativa de memórias construída
através da concepção individual que o
narrador possui a respeito daquilo que viveu
ou testemunhou é suficiente para revestir a
verdade com uma visão singular e
individual. Lembranças de experiências
294
ANAIS - 2013
vividas, contidas na interioridade da
consciência humana, quando exteriorizadas,
representam um passado já reelaborado nas
asas de um tempo sem rédeas e, por que não,
com asas. (SOUZA, 2001, p. 17)
Textos pertencentes ao gênero memorialístico são, pois,
resultados de impressões passadas que trazem em si marcas da
convivência com um determinado grupo social e da experiência
dessa relação. Falar de memória é olhar para além de um
conceito de armazenamento de informações passadas. É
c b qu “c
ó
u é u
b
ó
c
” (H LBW H , 2006,
69)
c
uí
é
u “c c çã
u ”,
dizer de Souza, as lembranças que essa concepção evocam são,
para Maurice Halbwachs, coletivas, uma vez que não há
recordações exclusivamente individuais, pois pertencemos
necessariamente a grupos sociais e vivemos em comunidade
(família, ambiente escolar ou profissional, etc.), e, como tal,
b ç ã
bé “
u
”, u seja, coletivas.
Essa ideia é muito clara no capítulo inaugural de sua
obra A memória coletiva,
u
“M ó
u
ó c
”,
qu
c u f cê f
qu “( )
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas
por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós
bj
qu
ó
”
(H LBW H , 2006, 30)
é
, “( ) R c
testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para
completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos
alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas
ç
b cu
ó ” (2006, 29)
Nesse sentido, os textos de Alice Vaz de Melo se
constituem como importante testemunho do período de
295
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
formação de sua cidade, uma vez que trazem as marcas da
convivência do grupo social daquele lugar e as experiências
dessa relação por meio das impressões da autora dentro da
memória coletiva, e se enriquece à medida que aproxima o
passado do momento presente – memória e consciência – para
uni-lo ao futuro e, assim, construir uma identidade histórica que
traga em si as marcas construídas por cada contexto sócio,
histórico e cultural.
2.2. Memória e consciência na construção de uma identidade
histórica
A relação entre história e literatura nem sempre
apresentou convergências discursivas. Por muito tempo,
acreditou-se que seus caminhos e fins eram opostos,
apresentavam discursos divergentes: para a história, cabia a
verdade científica, enquanto a literatura restringia-se a formas
artísticas alicerçadas na ficção, no fantástico, no maravilhoso.
Constituíam, portanto, polos antagônicos: verdade e ficção.
Os paradigmas de verdade e ficção, no entanto, sofreram
um rompimento com a contestação da história como verdade,
que ocorreu desde o século XIX e, de forma mais sistemática,
no século XX com a Escola dos Anais, que passou a questionar
a historiografia tradicional segundo a qual a história era relatada
como uma crônica de acontecimentos.
“c
g
”, o discurso histórico
sofreu um grande abalo e, aos poucos, foi perdendo sua
condição de pensamento autônomo e autolegitimador, o que
desestabiliza o distanciamento até então existentes entre as duas
possibilidades de narrativa, a histórica e a literária.
Assim, os laços entre ambos os discursos se estreitam e
vários estudiosos passam a dedicar-se aos estudos de tais
296
ANAIS - 2013
relações e a discutir o diálogo da história com a literatura. É o
caso, por exemplo, da historiadora Sandra Pesavento. Para ela,
“
u
história são narrativas que tem o real como
referente para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele
toda uma outra versão ou ainda para ultrapassá-lo. Como
narrativa, são representações que se referem à vida e que a
x c ” (2006, 14)
Dentro dessa concepção, o historiador e o literato
comungam de um mesmo trajeto, ambos caminham na trilha do
imaginário, já que este caminho aceita as duas formas de
apreensão do mundo: a lógica, que compõe o conhecimento
científico, e a conceitual, correspondente ao conhecimento
sensível, e se constitui, segundo Pesavento, como um sistema de
representação sobre o mundo que, sem se confundir com a
realidade, coloca-se em seu lugar e tem nela seu referente.
Dessa forma, a história que antes era vista como verdade
científica, passa agora à construção de uma experiência, que
reconstrói uma temporalidade e a transfere em narrativa. A
literatura, por sua vez, de uma simples ficção, passa a ser uma
impressão da vida, que revela e insinua verdades, tornando-se
capaz de reconstruir a história e dar significado aos
acontecimentos por meio de representações do que poderia ter
sido. Ambas trabalham com a interpretação da realidade, mas
enquanto a história tem a intenção de se aproximar da verdade, a
literatura não apresenta essa preocupação.
Tendo em vista esse novo olhar voltado para os possíveis
traços convergentes e até mesmo complementares entre história
e literatura, as crônicas de Alice Vaz de Melo se constituem
como importantes representações históricas na medida em que
revela a complexidade de textos literários ricos em aspectos
histórico-identitários sobre a formação e desenvolvimento de
Ivinhema e até mesmo de Mato Grosso do Sul.
297
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Essa nova possibilidade de produção da história
aproxima o trabalho histórico do fazer literário, pois as
narrativas ficcionais apresentam suporte para direcionar o olhar
do historiador para caminhos não percebidos em outras fontes.
Por meio de fatos criados pela ficção, as narrativas literárias
revelam e insinuam as verdades da representação ou do
simbólico, constituem formas de pensar e de agir, registram a
vida e, por isso, mostram-se como um notório e recorrente
testemunho de seu tempo e podem ser analisadas como fontes
documentais. Como aponta Pesavento:
A literatura é, pois, uma fonte para o
historiador, mas privilegiada, porque lhe
dará acesso especial ao imaginário,
permitindo-lhe enxergar traços e pistas que
outras fontes não lhe dariam. Fonte
especialíssima, porque lhe dá a ver, de
forma por vezes cifrada, as imagens
sensíveis do mundo. A literatura é narrativa
que, de modo ancestral, pelo mito, pela
poesia ou pela prosa romanesca fala do
mundo de forma indireta, metafórica e
alegoricamente. Por vezes, a coerência de
sentido que o texto literário apresenta é o
suporte necessário para que o olhar do
historiador se oriente para outras tantas
fontes e nelas consiga enxergar aquilo que
ainda não viu (PESAVENTO, 2006, p. 22).
A literatura não se constitui como fonte enquanto dados
acontecidos, mas como representação de uma sensibilidade,
como registro dos sonhos, medos, costumes individuais e
coletivos, enfim, da vivência em certo momento histórico. Ela
298
ANAIS - 2013
permite pensar com mais liberdade, pensar as pistas, as
possibilidades.
Assim, as crônicas de Alice Vaz de Melo mostram-se
como exemplo de um contexto onde as fronteiras entre o
literário e o histórico perdem os seus limites. Vaz de Melo traz
em suas narrativas literárias as representações do espaço, dos
costumes, dos anseios da realidade de uma época. Conta os
acontecimentos gerados pelo desenvolvimento de Ivinhema –
uma pequena cidade do interior de Mato Grosso do Sul ainda
em seus primeiros anos de emancipação – e aponta para as
causas e consequências dessas transformações. São textos que
apresentam um recorte histórico coletivo a partir do olhar
individual de uma figura atenta ao seu tempo, preocupada com o
meio social em que vive e com perspectivas de um futuro
promissor.
3. Memórias do Vale do Ivinhema nas crônicas de Alice Vaz
de Melo
Tendo em vista a vasta produção literária de Alice Vaz
de Melo, sua contribuição e importância para a formação
cultural de Ivinhema e, consequentemente, de Mato Grosso do
Sul, passemos a observar algumas das crônicas de Alice Vaz de
Melo publicadas no jornal O Grito. O objetivo é o de perceber a
participação de tais textos na formação histórica e cultural de
Ivinhema através, por exemplo, da interação da autora com os
leitores do jornal. Esses trabalhos se constituem também como
um rico material sobre a formação e desenvolvimento da cidade
de Ivinhema e, consequentemente, de Mato Grosso do Sul.
3. 1. Sobre a autora
299
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
É indispensável, para a análise das crônicas de Alice Vaz
de Melo, a construção de uma breve biografia da autora a fim de
contextualizar seus escritos, situá-la no tempo e no espaço para,
assim, compreender a relevância de sua obra dentro da
construção histórica da pequena cidade por ela retratada.
Também é relevante mencionar sua vasta produção e as
contribuições e importância das mesmas para a formação
cultural de Ivinhema e, consequentemente, de Mato Grosso do
Sul, visto que suas produções, especialmente as crônicas
publicadas em O grito narram fatos ocorridos antes de um
período de transição histórica para a região, isto é, o
desmembramento de Mato Grosso, ocorrido em 1977, com a
consequente criação do estado de Mato Grosso do Sul.
P u Bu g N
“O
no Mato Grosso do Sul como testemunho da formação do
”:
[...] alguns dos principais volumes de
memórias de autores pertencentes à região
foram redigidos e publicados justamente
neste período, fase de transição histórica que
pressupõe a compreensão e a afirmação de
uma nova identidade a partir de referenciais
culturais distintos daqueles existentes na
porção norte do estado. É óbvio que as cenas
recordadas e mesmo a redação de muitos
destes capítulos dizem respeito a fatos
passados antes da separação, mas, por outro
lado, também é evidente que, referindo-se a
episódios ocorridos em cidades, vilarejos e
fazendas que viriam a fazer parte do
território criado sob a designação de Mato
Grosso do Sul, tais fatos, ocorridos em certo
300
ANAIS - 2013
tempo e espaço definidos, atuam como
prenúncio de características culturais
marcantes e servem como importante
testemunho do período de formação e
consolidação deste recente estado brasileiro.
(BUNGART NETO, 2009, p. 112)
Filha de Etelvina e Sebastião Vaz de Melo, Alice Vaz de
Melo viveu no Vale do Ivinhema nos anos 60, mais
precisamente no distrito de Amandina, onde atuou diretamente
na formação cultural da cidade, fundada em 1964, trabalhando
como professora.
Seu pai, descendente de italianos, era proprietário de um
armazém e o irmão viria a ser mais tarde grande proprietário de
terras naquele local. Sua mãe, portuguesa de nascimento, era de
tradição religiosa, o que não foi suficiente para fazer de Alice
pessoa fiel às tradições e ao moralismo da época. Prova disso foi
seu casamento que durou cerca de três meses e os romances que
vivenciou com importantes personalidades daquele lugar, um
deles retratado em seu diário Em busca da mais gelada.
Até sua morte, em 1996, Alice produziu uma obra
relativamente vasta para a época e até hoje desconhecida do
público leitor sul-mato-grossense. Sua produção literária abarca
gêneros como romance (A dama da morte, de 1968, já esgotado,
e O enterro, descoberto há pouco), conto (inédito e assinados
com pseudônimos, motivo que os tornaram desconhecidos até
mesmo da própria família), diário (Em busca da mais gelada,
com textos datados de 1962 e 1963, inéditos e incompletos,
porque boa parte da obra se perdeu em um incêndio), crônicas
(
ã “U
Ou ”
j
O grito, do qual
participou como colunista entre os anos de 1970 e 1971 – parte
do jornal também se perdeu devido à ação do tempo, mas o
restante se encontra nos arquivos da Fundação Nelito Câmara,
301
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
em Ivinhema). Além da literatura, dedicou-se à pintura (realizou
trabalhos nas artes visuais, pinturas em telas de Brin, produções
que se acabaram, visto que seus trabalhos eram repintados até se
deteriorarem).
Passemos à discussão de algumas crônicas publicadas
por Alice no jornal O grito, principalmente as que discutem
aspectos culturais e históricos do desenvolvimento de Ivinhema,
aspectos estes ligados à vida comunitária, como a conservação
dos cinemas e de outros bens públicos.
3. 2. O olhar individual de uma memória coletiva
As crônicas de Alice Vaz de Melo publicadas na coluna
“U
u ”
j
O grito, de um modo geral, relatam
os acontecimentos que envolvem a formação e o
desenvolvimento da cidade de Ivinhema. Nelas, é possível
encontrar dados que sugerem as origens dos grupos que ali se
estabeleceram antes mesmo da emancipação daquele lugar
quando ainda os primeiros colonos fixaram residência e as
transformações por que passou a região até o momento da
narração dos fatos. Descrevem também os costumes, alguns
hábitos da sociedade da região à época, a paisagem e até mesmo
os problemas enfrentados e as vitórias conquistadas por seus
moradores.
Podemos destacar como exemplo dos relatos sobre as
transformações ocorridas no decorrer do tempo o texto
publicado no do dia 11 de novembro de 1970, data em que se
festejavam sete anos da emancipação da cidade. As
comemorações do aniversário do município dão ensejo a uma
inspirada crôn c
qu
f z u “b
ç ”
do que teria mudado ao longo dos sete anos de emancipação
política de Ivinhema (entre novembro de 1963, data da
302
ANAIS - 2013
autonomia, e novembro de 1970, data da publicação da crônica).
Vejamos como o texto se inicia:
Parece que foi ontem... O ruído dos
machados, o grito aflitivo das araras, a
algaravia dos peões paraguaios, os ranchos
junto ao Ponta Porã, a estrada para a Gleba
Azul que era apenas um nome e nada mais.
E quem não se lembra ainda de quando a
chaminé da Serraria Piravevê se tornou um
marco em meio aos troncos calcinados?
Motivo de orgulho para uns e de escárnio e
desgraça para outros? [...] Sete anos...
Fazem sete anos que nos trouxeram notícia
de sua emancipação política à 11 de
novembro de 1963. E quantos não
acreditaram na sua sobrevivência? Para
esses é a lição viva de uma terra bendita da
terra prometida!
Esta crônica sobre o aniversário e emancipação da
cidade relembra fatos do passado e compara Ivinhema em duas
épocas diferentes: os trabalhos iniciais e após sete anos de
c c
c çã
c
uçã (“ uí
ch
”)
ug ( “ ch ”
“ õ
gu
”,
ch
é
,
c) á
g
questionamentos relativos não apenas ao passado e à forma
como esta ocupação e desenvolvimento se deram, mas também a
preocupações quanto ao presente e ao futuro de um lugar que,
em sua visão, constitui“
g
”
u
“
”
qu ,
,
c , é
h
g
sugestionada pela data comemorativa, uma reflexão profunda da
comunidade em relação a tudo que se podia/pode esperar da
303
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
cidade e dos habitantes, características presentes na importância
dada à conservação da memória coletiva e social de Ivinhema.
A sugestão de reflexão sobre o progresso da cidade é
direcionada especialmente àqueles que não acreditaram no
sucesso de suas atividades iniciais, como se pode notar na
sequência da mesma crônica:
Nós que a conhecemos sem armazéns, sem
escolas, sem ônibus, sem correio, sem
conforto algum, nós a saudamos hoje, como
coração cheio de alegria e embevecimento,
com a alma repleta do justo orgulho
daqueles que a viram crescer ou que estão
crescendo juntos. [...] Foram sete anos de
trabalho, de luta, de esperança. E para
aqueles que com seu pessimismo
pretenderam abafar a nossa fé em Ivinhema,
o exame de consciência, e balanço
obrigatório: Ginásio, ACARMAT, cinema,
cafeeiros produzindo, soja, trigais, Banco,
estradas! E as glebas que eram apenas
nomes e mapas que não convenciam? Elas
estão aí para provar que somos o que
seremos, para provar que aqui só ficam as
pessoas de fibra, de coragem, de brio!
A menção às conquistas de Ivinhema (Ginásio, cinema,
cafeeiros, soja, Banco, etc.) aparece não apenas como evidência
de que o descrédito de alguns pe
qu “
b f
fé” ã
b u
h
qu
qu
lutaram/lutam pelo progresso da cidade, mas também como
demonstração da esperança na construção de um lugar que traga
orgulho àqueles que se empenham e festejam seu crescimento.
O louvor aos responsáveis por essas conquistas é indício do
304
ANAIS - 2013
afeto, envolvimento e preocupação de Alice com o meio em que
, ug
“qu ó f c
fb , c g ,
b ”
Percebe-se também, neste trecho, a formação da
população: peões paraguaios. A ideia da diversidade das origens
dos colonizadores aparece também em um trecho da crônica do
dia 25 de agosto do mesmo ano:
Ninguém pode negar que, quase todos os
moradores adultos de Ivinhema, vieram de
outras cidades, outros ambientes, outras
plagas... E sabe o que aconteceu com todos
nós, através dos anos? Nós estamos
transformando em verdadeiras ostras! Sim,
podemos nos vangloriar de que estamos
construindo um magnífico arquipélago. Uma
ilha aqui, outra ali, etc...
Aqui temos a noção de uma cidade formada por
forasteiros, povos de outros lugares, de vários lugares e que, por
isso, trazem costumes e experiências diferentes, formando um
ambiente cultural diversificado, heterogêneo. Experiências estas
que precisam ser compartilhadas e adaptadas para que a
u çã ã
f
“
” f ch
u c ch
u
“ h ”
u
Outro exemplo desse envolvimento fica visível também
na preocupação com a conservação de patrimônios e bens
públicos (como quando fala, por exemplo, dos buracos das
ruas), ou na crítica aos atos de vandalismos despendidos aos
espaços de lazer, fato este que mostra a exata noção de Alice de
que estes pertencem à memória e à história de toda a região,
portanto, são bens comuns a todos os moradores, conscientes ou
305
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
não disso, como podemos observar nesta outra crônica do dia 14
de agosto de 1970:
Continuando; as cadeiras do nosso cinema
estão sem assento... de quem é a culpa? Dos
proprietários? Não. A culpa é dos próprios
ivinhemenses que, talvez tenham sangue de
índio, de bugre, sei lá, pois que vantagem
existe em depredar uma coisa que é nossa?
E não é só no cinema não. Em toda parte se
evidencia o vandalismo, uma falta de
educação e escrúpulos que precisa ser
corrigida: árvores decepadas, torneiras
arrebentadas... é o máximo! [...] Não
queremos generalizar, pois os ivinhemenses
em sua maioria são pacatos e ordeiros, mas
perguntamos: o que sucederá quando for
inaugurado o novo cinema? Vai ser um
cinema moderno, uma casa de espetáculos
que poucas cidades interioranas se gabarão
de ter... Teremos classe para frequentá-lo?
[...] Aos proprietários e dirigentes das coisas
novas, que vão surgindo em Ivinhema, a
nossa
sugestão:
severidade,
muita
severidade. Que os culpados da destruição e
arruaças sejam vigiados e punidos, para que
aprendam a conservar e dar valor àquilo que
é nosso, pois servirá como cartão de visita
ao nosso querido Ivinhema, ou então jamais
teremos nada limpo e novo.
O texto traz consigo as inquietações de uma jovem
intelectual preocupada com a preservação do seu lugar, dos bens
comunitários que constituem o patrimônio histórico e que serão
306
ANAIS - 2013
heranças para as próximas gerações. As denúncias realizadas
por Alice às depredações mostram, além da consciência de
conservação do patrimônio já existente, o seu engajamento com
as necessidades daquele povo, com o descaso de alguns, com as
possibilidades de melhorias por meio da contribuição e empenho
de todos.
É interessante observar também como Alice considera
importantes alguns aspectos diretamente voltados para a
compreensão e assimilação da cultura e do desenvolvimento
histórico e sócio-econômico de Ivinhema. Exemplo disso são os
destaques que dá aos eventos sociais, tais como bailes dançantes
e outras festividades coletivas.
Outro aspecto que desperta preocupação e denúncia é o
descaso com a juventude, com a falta de incentivos e apoio das
pessoas para com estes que poderiam ser os provedores da
vivacidade com a realização de eventos onde seriam
beneficiados não apenas os jovens, mas toda a população com
diversão e alegria. É o que podemos ver no texto que segue:
A juventude de Ivinhema, justiça haja,
sempre esteve jogada às traças, sem um
plano sadio de divertimento, sem alguém
que se interessasse por elas, dando-lhe um
pouquinho de alegria e incentivo. Senão
vejamos: alguém se lembra de mencionar
u f
h ; qu c
c ? “Lá ã
u”,
“Nã á é”, fu
ã
ác
u
”, “
ô, ã qu
é
c
h
g
”,
Vocês sabem o que aconteceu na sexta
feira? A juventude fez um simulacro de
reunião, xingou, discutiu, discordou,
concordou, tornou a discordar e a discutir...
307
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
e sabe qual foi o resultado? Duas festas
boas, alegres, onde todo mundo se divertiu,
cantou e dançou. Então vocês não acham
que a juventude deveria se reunir mais
vezes? Se for preciso brigar para que
aconteçam festinhas similares, vamos
discutir e brigar, minha gente! Assim
provamos que a mocidade ivinhemense
existe, vibra e quer aparecer, com a graça de
Deus.
Publicada no dia 07 de julho de 1970, esta crônica é mais
um exemplo de que a autora apresenta um olhar voltado para os
problemas dos diversos setores daquela pequena cidade, o que a
torna uma das principais vozes e representante da escrita do
município. As inquietações motivadoras que permeiam o
universo de Alice é característica de sua atitude transgressora
dentro de seu contexto, um mundo ainda em formação, marcado
por duras rotinas de um lugar com poucos recursos onde, em
especial, à mulher não era dada voz ativa.
Alice foi expectadora de todos esses acontecimentos, já
que se estabeleceu na região desde 1960 e fez-se ouvir,
participou ativamente da história e se tornou uma figura única
para a época com seus registros, denúncias, preocupação,
incentivo. Foi uma figura antenada com seu tempo e que ajudou
a moldar os costumes dos moradores daquela região.
As crônicas de Alice são, assim, uma fonte de
conhecimento, o retrato de um determinado tempo e lugar que,
por meio do olhar individual da autora, capta a essência de sua
época. São textos que trazem as marcas da vida de uma
sociedade e os costumes da região, representam o espaço
histórico da colonização e desenvolvimento de sua cidade. São,
portanto, textos literários que, por meio da memória coletiva
308
ANAIS - 2013
retratada pelo ponto de vista de uma memória individual,
servem de suporte/fonte aos registros históricos de uma região.
4. Considerações finais
As crônicas de Alice Vaz de Melo, publicadas no jornal
O grito, narram os acontecimentos históricos e os costumes do
período de colonização e desenvolvimento da cidade de
Ivinhema, fato este que vem comprovar que os textos literários
podem ser fontes riquíssimas para o historiador, que dá acesso
privilegiado a possibilidades de leitura que outras fontes não
dariam. Alice, com seu olhar crítico, revela verdades e
possibilidades do contexto de sua época. Seus textos expressam
formas de pensar e agir, exprimem uma postura de
comportamento e sensibilidade que torna possível pensar a
literatura na relação com a história como um evidente
testemunho de seu tempo.
É notório, dentro dessas representações, o papel
fundamental que a memória exerce, recurso que, mesmo
embebido por impressões particulares de um acontecimento
coletivo, é responsável por trazer presente os conhecimentos
adquiridos previamente. Nas crônicas de Alice, a memória se
destaca com mais visibilidade no texto sobre o aniversário da
cidade onde a autora relembra os acontecimentos ao longo de
sete anos de transformação.
Em suma, a literatura pode ser utilizada, como
percebemos no decorrer deste trabalho, como possibilidade de
conhecimento do mundo, como configuração dos costumes,
comportamentos, sonhos, angústias dos homens sempre em
movimento dentro de um certo momento da história.
Possibilidades estas que se deve ao fato de a literatura trazer em
si o privilégio de pensar o passado e anunciar o futuro.
309
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
5. Referências bibliográficas
BUNGART NETO, Paulo. O memorialismo no Mato Grosso
do Sul como testemunho da formação do estado. In:
SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos (Org.). Literatura e práticas
culturais. Dourados: Editora UFGD, 2009, p. 111-127.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo:
Centauro, 2006. Trad. de Beatriz Sidou.
MELO, Alice Vaz de. Umas e Outras (crônicas). In: O grito.
Ivinhema: 1970-1971.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e Literatura: uma velhanova história. In: COSTA, Cléria Botelho & MACHADO,
Maria Clara Tomaz (org). História e Literatura: identidades e
fronteiras. Uberlândia: EDUFU, 2006, p.11-27.
SOUZA, Tânia Regina de. A infância do velho Graciliano:
Memórias em letras de forma. Florianópolis: Editora da UFSC,
2001.
ZILBERMAN, Regina. Práticas narrativas, oralidade e
memória. In: TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato et al. Sobre
as poéticas do dizer. São Paulo: Letras e Voz, 2010, p. 28-41.
310
ANAIS - 2013
Aspectos sociolinguísticos das vogais médias no
português falado numa escola de fronteira BrasilParaguai
Márcio Palácios de CARVALHO 1
Elza Sabino da Silva BUENO 2
Resumo: O estudo apresenta informações iniciais acerca da influência
e situação de contato linguístico numa escola municipal localizada na
cidade de Bela Vista-MS, no texto aborda o uso das vogais médias [e]
e [o] da língua portuguesa nas posições pretônicas, tônicas e
postônicas e verifica-se também se os fenômenos relacionados às
vogais médias atingem as zonas fronteiriças do Estado de Mato
Grosso do Sul. Já que pesquisas sociolinguísticas realizadas em outras
regiões fronteiriças do país apontam que os processos de
harmonização vocálica no caso das pretônicas, a abertura do timbre
nas vogais tônicas e o processo de alçamento das vogais postônicas
finais e não finais tendem a manter um padrão mais conservador,
devido a fatores linguísticos, extralinguísticos e geográficos. Ainda,
abordando o espaço fronteiriço, pelo viés da Sociolinguística
Variacionista, constata-se se há interferência fonético-morfológica na
modalidade oral da língua portuguesa falada na localidade pesquisada.
Para tanto, utiliza-se como aporte teórico pesquisadores como: Tarallo
(2007); Labov (2008); Câmara Jr (1991-2008) entre outros.
Palavras-chave: Contato linguístico; Português falado e bilinguismo.
1
. Graduado em Letras habilitação Português/Espanhol pela Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul. M (Campus de Dourados). Atualmente é
Mestrando em Letras pela mesma instituição, na Unidade Universitária de
Campo Grande – MS, bolsista da CAPES.
2
. Doutora em Letras pela UNESP/ASSIS - Docente da Graduação e da PósGraduação em Letras na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul –
UEMS e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da UEMS e
Pesquisadora da FUNDECT.
311
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Introdução
O presente texto discute uma situação de influência e
contato linguístico entre as línguas portuguesa, espanhola e
guarani que são faladas em uma escola pública localizada no
município de Bela Vista-MS a 342 quilômetros de Campo
Grande, capital do Estado de Mato Grosso do Sul.
Nessa comunidade escolar os alunos utilizam as línguas
espanhola e guarani para se comunicar, principalmente, nos
momentos informais, o mesmo acontece na entrada e saída do
turno escolar, quando os país ou responsáveis pelos alunos vão
levá-los ou buscá-los. Há nessas ocasiões a preferência pelas
línguas faladas no Paraguai, isso acontece porque muitos dos
estudantes que frequentam a escola moram no Paraguai. Além
da forte influência do Paraguai na cidade.
As cidades fronteiriças de Bela Vista- MS e Bella Vista
Norte-PY são dependentes uma da outra. Na parte comercial
muitos brasileiros vão ao Paraguai fazer compras ou morar,
visto que nesse país o custo de vida é mais baixo. Por outro
lado, muitos paraguaios vêm ao Brasil para trabalhar ou estudar,
assim as populações de ambas as nações transitam livremente de
um lado para o outro, o que torna o espaço uma zona de
interpenetração de costumes, culturas e línguas.
Levando em conta o espaço geográfico onde a
comunicação oral acontece, o texto analisa o comportamento
das vogais médias [e] e [o] nas posições que pode ocupar na
palavra, a saber; pretônica, tônica e postônica, com isso
pretende-se saber se os processos linguísticos de harmonização e
redução vocálica para as vogais pretônicas, a abertura ou não do
timbre tônico e o alçamento das vogais postônicas finais e não
finais possuem o mesmo comportamento encontrado em outras
regiões não fronteiriças do país.
312
ANAIS - 2013
Na fronteira, a inevitável correlação entre línguas,
sociedades e culturas tornam-se mais evidentes na linguagem
exteriorizada pelos falantes. Para exemplificar, a língua falada
nesse espaço sociolinguísticamente complexo, o texto também
fará um breve levantamento de alguns itens lexicais que foram
encontrados na comunidade fronteiriça de Bela Vista-MS com o
intuito mostrar algumas interferências do espanhol e do guarani
no português local e como estes influenciam no comportamento
das vogais médias.
A escola é um ambiente onde se preza a modalidade
elegida como padrão da língua, no entanto, ela não está num
espaço isolado, mas inserida dentro de uma comunidade
culturalmente diversificada por isso, suas práticas têm que ser
repensadas de modo a oferecer aos alunos um ensino padrão,
sem se eximir do fato de estar num contexto peculiar.
As interferências de outras línguas na escola não devem
ser camufladas, já que por traz de cada forma de expressão há
um indivíduo que possui uma história que é exteriorizada por
meio da sua linguagem. A nosso ver, as escolas que se
encontram em ambientes fronteiriços têm que ter o
conhecimento das línguas e dos fenômenos linguísticos em seus
ambientes para melhor compreender os pontos que precisam ser
trabalhos com mais ênfase, a fim de que seja dada a
possibilidade para os alunos fronteiriços competirem em pé de
igualdade com os demais indivíduos na vida adulta, BortoniRicardo (2004).
Diante desse cenário, o modelo teórico-metodológico
utilizado no texto centra-se no trabalho empírico à luz da Teoria
da Variação Linguística ou Sociolinguística Variacionista. Essa
linha de pesquisa não faz qualquer julgamento social de
superioridade ou inferioridade entre as línguas, pois todas
313
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
cumprem o papel de servir de meio de comunicação entre os
indivíduos.
Para exemplificar o linguajar fronteiriço incorporado na
escola estudada, o texto mostra os principais fatores que
favorecem e os que inibem a manutenção de outras línguas na
fala local, assim como a incorporação de léxicos hispânicos e
guarani e as alterações fonéticas no português falado nesse local.
Ressalta-se que este estudo não tem a pretensão de
abordar todos os aspectos linguísticos presentes no linguajar da
escola de fronteiriça, mas analisa os aspectos semânticos e
fonéticos a partir de dez entrevistas realizadas in loco. Dessa
forma, apresenta uma contribuição para a descrição e
entendimento do falar nas fronteiras que delimitam o Brasil e o
Paraguai, em especial, o espaço fronteiriço entre as cidades de
Bela Vista-MS e Bella Vista Norte-PY.
Pressupostos teórico-metodológicos
De acordo com Santos (2009) toda pesquisa segue, pelo
menos, uma teoria científica, uma vez que para cada teoria
existem procedimentos metodológicos adequados a serem
seguidos em busca de resultados mais fidedignos possíveis. Para
analisar os resultados obtidos nesse texto foi adotado o
procedimento de pesquisa in loco seguindo os pressupostos
metodológicos da Sociolinguística Variacionista, cuja intenção é
mostrar o comportamento das vogais médias.
Para Monteiro (2000, p. 83), a linha de pesquisa da
sociolinguística parte do pressuposto de que a heterogeneidade
manifestada na fala pode ser analisada de forma coerente. Para
tanto, o pesquisador deve ser o mais fiel possível na transcrição
dos dados coletados no trabalho de campo, já que esse será o
material submetido à análise qualitativa e quantitativa.
314
ANAIS - 2013
Para demonstrar como se manifesta as vogais médias na
localidade estudada, foram entrevistados 10 informantes sendo,
5 do gênero feminino e 5 do gênero masculino, estudantes do 6º
ano da escola municipal Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,
localizada perto da fronteira com a cidade de BellaVista no lado
Paraguai.
A gravação das entrevistas foi do tipo DID (Diálogo
entre Informante e Documentado). Esse método de entrevista
tem o intuito levar o informante a relatar experiências vividas,
através de narrativas pessoais, fazendo com o informante volte
no tempo e reviva o acontecimento que está sendo narrado,
assim o lado emocional se intensifica de tal ponto que ele se
esqueça de monitorar seu próprio discurso, Tarallo (2007).
Em relação ao gênero, Paiva (2004) comenta que várias
pesquisas na área da sociolinguista aponta que, em geral, o
gênero masculino se destaca na utilização de formas inovadoras,
enquanto o gênero feminino tende a manter um padrão mais
próximo do padrão escrito da língua.
Essa diferença na utilização da linguagem de certa forma
está relacionada ao papel social desempenhado por homens e
mulheres no dia a dia. Parece mais natural admitir na sociedade
atual que determinadas palavras situam-se melhor na boca de
um homem do que na boca de uma mulher, Paiva (2004).
Ao selecionar o mesmo número de informantes do
gênero feminino e masculino para esse estudo pretende-se
verificar se o gênero masculino é mais propenso às inovações
como apontam as pesquisas variacionistas ou, se no caso das
regiões de fronteira, o gênero exerce pouca influência na
utilização das vogais médias [e] e [o] e no uso dos léxicos
oriundos de outras línguas.
A opção de trabalhar, nesse momento, com apenas uma
turma do 6º ano da escola pesquisada, foi pelo fato de que eles
315
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
preservam os hábitos linguísticos de seus familiares, visto que
essa é uma fase da vida que eles ainda são muito dependentes da
ajuda dos pais.
A próxima seção destina-se ao estudo dos aspectos
fonológico-fonéticos das vogais [e] e [o] tanto na língua
portuguesa como na língua espanhola, essa abordagem se faz
necessária para compreender como esses fonemas são realizados
uguê f
c ‘‘ P é u
c
’’
Comparação dos aspectos fonético-fonológicos das vogais
médias no Português e no Espanhol
Os sons da fala são os primeiros aspectos que chamam
atenção quando se depara com uma língua qualquer, ou mesmo,
numa variedade de um mesmo idioma, há peculiaridades que
fazem com que alguns falares pareçam mais cantados do que a
nossa língua ou nosso dialeto.
No Brasil existem algumas marcas linguísticas que
c c z u
gã ,
x
, ‘‘ ’’
f x u
regiões interioranas de São Paulo, Paraná e Minas Gerais, vulgo
‘‘ c
’’ u
ú c
‘‘ ’’ ch
c
c
E, no caso de outras línguas, podem- c
‘‘th’’ do inglês
Americano como em thing
‘‘r’’ b
ú
E
h c
‘‘ropero’’.
O ramo da linguística que estuda os aspectos sonoros da
linguagem é contemplado por duas disciplinas: a fonética e a
fonologia. De acordo com Câmara Jr (2008 p. 14) o que
distingue uma e outra disciplina é o recorte metodológico
empregado, a fonologia é usada para os estudos dos sons e da
elocução de uma determinada língua, enquanto a fonética é
entendida como a ciência geral dos sons da fala.
316
ANAIS - 2013
Desenvolvendo a passagem de Câmara Jr, a fonética
estuda os aspectos sonoros de uma determinada língua, por
x
,
‘‘ ’’ f
gã f
ç
é
possível encontrar diversas variantes desse fon
x : ‘‘ ’’
f x b
u
M ,
‘‘ɾ’’ b
múltiplo influenciado pela língua espanhola na região de
fronteira e a tendê c
g
‘‘ø’’ em finais de
palavras no infinitivo como já constatou pesquisadores como
Bueno (2009).
No caso das vogais na língua oral, têm-se sete
vogais/fonemas vocálicos que estão distribuídos em anterior
baixa /a/, anterior média de 1º grau /é/, anterior média baixa de
2º grau /ê/, anterior alta /i/, posterior média de 1º grau
arredondada /ó/, posterior média de 2º grau arredondada /ô/,
posterior alta arredondada /u/, Câmara Jr (1991 p. 23).
O que nos chama a atenção neste estudo é o
comportamento das vogais médias [e] e [o] no português falado
na escola Perpétuo Socorro, localizada na fronteira entre o
Brasil e o Paraguai. A figura abaixo ilustra as variantes da vogal
média [e] e as possíveis formas de realizações dessas vogais na
língua portuguesa.
Figura-1 aparelho fonador
No uso espontâneo, as vogais médias [e] e [o] em
português podem assumir diferentes variantes, de acordo com a
317
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
posição átona da palavra. Na posição pretônica é comum
ocorrer uma harmonização vocálica onde os fonemas [e] e [o]
ã
z
c
[ ] [u]
x: [ ’
] [bu’ u],
processo tende a acontecer sempre que a tônica for uma vogal
alta [i] ou [u].
Em relação às vogais pretônicas médias, Bagno (2006 p.
98) comenta que a harmonização vocálica dá à língua
portuguesa certa musicalidade, uma variedade sonora que só ela
tem, e que é muito difícil de ser percebida e aprendida por um
estrangeiro. Na região pesquisada espera-se que haja uma
inibição desse processo linguístico, pois muitos alunos que
estudam na escola tem o português como segunda língua.
Quando as vogais médias [e] e [o] se encontram na
sílaba tônica têm-se as variantes abertas [é] e [ɔ]
: [‘ ɛrolə]
e [ɛ ’cɔla], no que se refere às vogais em posição postônica,
Câmara JR (1996) sustenta a ideia de ocorrência do processo de
neutralização das vogais médias e suas variantes, o que reduz o
sistema vocálico do português brasileiro, em outras palavras, as
vogais médias tornam-se vogais altas [i] e [u] sendo realizadas
como gent[i] e menin[u].
Opondo-se a ideia de Câmara Jr, Silva (2009) diz que os
trabalhos realizados no Rio Grande do sul revelam que nas
comunidades de fronteiras e de colonização italiana e alemã há
uma tendência de preservação das vogais médias em posição
postônicas, a autora argumenta que a regra de neutralização que
reduz o sistema vocálico para três vogais na posição postônica
final estaria em seu estágio inicial nessas comunidades.
Nas fronteiras entre Brasil e Paraguai, em especial no
Estado de Mato Grosso do sul, o uso das vogais médias ainda
não foi devidamente estudado. Contudo, as amostras coletadas
na localidade fronteiriça de Bela Vista-MS indicam uma
318
ANAIS - 2013
resistência no processo de alçamento das vogais postônicas
finais.
Isso se deve pela influência do sistema vocálico espanhol
que possui cinco vogais todas orais, o português, por sua vez,
possui doze vogais tônicas, sete orais e cinco nasais. No
espanhol as vogais [e] e [o] são fechadas, o que é imprescindível
para sua pronúncia, Braz (2008). Veja o quadro a seguir:
Fonologia
Fonema
/i/
/e/
/a/
/o/
/u/
Fonética
Sons
i-fechado
i-aberto
i-nasalizado
isem
consonântico
i-consonântico
e- fechado
e-aberto
e-nasalizado
a-meio palatal
a-velar
ã-nasalizado
o-fechado
o-aberto
o-nasalizado
u-fechado
u-aberto
u-nasalizado
w-semiconsonante
u-semivocal
Ortografia
Letras
i, y
i
i
i
i, y
E
/a/
O
U
U, ü, w
U
Exemplos
Pisa, y, Candido
Vil, victor virgen, hijo
Mimo, himno
Nieve, viene
Baile, voy, rey
Mesa, cesse
Reja, perro, acelga
Heno, menos
Casa, paradero
Alto, rato, barro, ajo
Año, maño
Sobre, zozobrar
Ojo, rojo, horror, Olga
Once, mono
Que, guitarra
Puro subir
Muge,rudo,
zurra,
ultra
Uno inmune
Igual, argüir, Williams
Quadro-1 sistema vocálico do espanhol
319
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
O quadro vocálico do espanhol revela que as cinco
vogais não se alteram independe da posição que estiver
diferentemente do português cujo quadro das vogais depende da
tonicidade. A esse respeito Câmara JR (1996, p.39) comenta
que:
Em referência às vogais, a realidade da
língua oral é muito mais complexa do que
dá a entender o uso aparentemente simples e
regular das cinco letras latinas vogais na
escrita. O que há são 7 fonemas vocálicos
multiplicados em muitos alofones. Os
falantes de língua espanhola têm, em regra,
dificuldade de entender o português falado,
apesar da grande semelhança entre as duas
línguas, por causa dessa complexidade em
contraste com a relativa simplicidade e
consistência do sistema vocálico espanhol.
Portugueses e brasileiros, ao contrário,
acompanham razoavelmente bem o espanhol
falado, porque se defrontam com um jogo de
timbres vocálicos menor e menos variável
que o seu próprio.
Diante dessa complexidade, a pesquisa de campo mostra
o uso das vogais médias [e] e [o] na região, assim contribuir
para a descrição do falar fronteiriço, em especial, na escola
P éu
c
’’, qu
u u
ú
x
u
paraguaios ou.
O quadro a seguir mostra as principais variantes em
concorrência nas vogais médias [e] e [o] no português falado no
Brasil.
320
ANAIS - 2013
Indicadores
Variação nas
vogais
Médias [e] e [o]
Transcrição
Fonética
1. Alçamento da vogal
Pretônica
2. Manutenção da vogal
Pretônica
3. Abertura do timbre
tônico
4. Fechamento do timbre
Tônico
5. Alçamento da vogal
Postônica
6. Manutenção da vogal
Postônica final
Segunda
[‘ gu
]
Segunda
[‘
]
gu
Escola
[ ’kᴐla]
Escola
[
’kôla]
Posso
[‘ ᴐsu]
Posso
[‘ ô so]
Quadro-2 principais variações linguísticas que ocorrem nas vogais
médias [e] e [o].
As vogais médias [e] e [o] podem sofrer os seguintes
processos; nas pretônicas as pesquisas variacionistas indicam
que pode ocorre o processo de harmonização ou redução
vocálica, onde as vogais médias [e] e [o] tendem a serem
realizadas como [i] e [u], no caso das tônicas as vogais médias
[e] e [o] são pronunciadas com o timbre aberto [é] e [ó], e nas
postônicas também tendem a sofre um processo de alçamento,
realizando como vogais médias altas [i] e [u].
Por ser tratar de uma localização de fronteiriça, abre-se
um espaço na próxima seção para apresentar algumas
interferências da língua espanhola e da língua guarani no
português oral falado na cidade selecionada para o estudo, às
variações podem atingem os planos; fonético-fonológico,
semântico e lexical.
321
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
As influências lexicais do Espanhol e do Guarani no
Português
Para a linguagem empregada na comunidade escolar
fronteiriça de Bela Vista-MS elegeu-se um recorte sincrônico
das variáveis escolaridade e gênero do falante que frequentam o
6º
Ec
‘‘P é u
c
’’,
u
temas, vários trabalhos poderiam ser feitos nessa comunidade,
onde se percebem variações na forma de pronunciar os sons,
alterações nas construções sintáticas e no uso do vocabulário. Já
que numa região de fronteira, as variáveis linguísticas
ultrapassam até mesmo as fronteiras políticas, Camacho (1989,
p.3).
No entanto, o texto estuda o uso das vogais médias e a
utilização de outros itens lexicais que são usados na região,
assim verifica a interferência do Espanhol e do Guarani através
da análise de entrevistas realizadas na localidade escolar. Tais
interferências são inevitáveis em qualquer contexto em que há
presença de duas ou mais línguas, já que as línguas nascem da
necessidade de intercâmbio entre os indivíduos, Souza (2009, p.
126).
Dessa forma, instala-se nas regiões de fronteiriças desse
E
‘‘
u h ’’, u
c
P uguê
Espanhol, essa linguagem é o resultado do ir e vir das pessoas
de ambos os lados da fronteira que fazem com que a cultura, os
costumes e a língua recebam interferências criadas no encontro
de limites de nações distintas.
Souza (2009) por sua vez, argumenta que a terminologia
‘‘
u h ’’ ã
uz c
c ã
éc
gu
que se desenvolve confortavelmente e a passos largos nas
fronteiras que delimitam Brasil e Paraguai. Ainda citando a
322
ANAIS - 2013
autora, ao se referir à região de Bela Vista-MS e Bella Vista-PY
comenta que:
Esse fenômeno encontra explicação não só
pela proximidade entre as duas cidades,
mas, sobretudo, pela nova composição
territorial que, com a guerra com o Paraguai,
ocorreu
naquela
fronteira,
quando
significativas extensões de terras paraguaias
foram incluídas ao território brasileiro.
Assim, enquanto além da fronteira se
mantém o espanhol e o guarani, com
fidelidade, do lado de cá, a herança
linguística dos paraguaios foi sendo
fortemente incorporada pelos brasileiros. O
verbo sampar (do espanhol zampar), cujo
sentido é arremessar, atirar com força, é de
uso corrente na fronteira de Bela Vista: o
belavistense sampa uma pedra ou um tapa.
Nessa cidade não existem tempestades, mas
tormentas e a sala de jantar é o comedor. É
comum se ouvir expressões do tipo, a cobra
picou pra ele, significando que a cobra o
picou. E as expressões e gírias do dia a dia
são ditas sempre em guarani, como caraí (no
ug
“ u” fu
)
cu hã
ã (
lugar de moça bonita)
Por ter nascida e criada na cidade de Bela Vista-MS, a
autora contribui com algumas expressões típicas dessa região, o
intercâmbio das pessoas que moram nas duas cidades é tão forte
que alguns léxicos do espanhol e do guarani foram incorporados
à fala local e são utilizados pelos falantes de ambos os lados da
fronteira, como citou Souza.
323
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Como contextualização do espaço onde os dados foram
coletados, tem-se na literatura regional um vasto exemplo,
registrados em livros de literatura e revistas da área de Letras
falando sobre o contexto de trilinguismo que impera na região
das fronteiras de Mato Grosso do Sul.
O memorialista Sul-matogrossense Hélio Serejo,
registrou a vida nos ervais durante os fins do século XIX e início
do século XX, em suas obras é possível encontrar expressões
como: Urutau, uma espécie de ave noturna de rapina; changá-y
que em guarani significa ladrão; Caá-Yarí uma espécie da
protetora dos ervais e Ivapareha, mensageira celestial que
acalma os revoltados, Souza (2009, p. 134).
Em entrevista concedida a Teno (2003) Hélio Serejo
esclarece que, nas caminhadas com seu pai pelos ervais, levava
c
g ‘‘c
’’,
qu
g
u qu u
observava. Suas anotações revelam a riqueza não só da região
de fronteira, mas de outras localidades geográficas desse Estado,
assim temos na palavra Caá, que significa erva-mate, e rapó raiz
etimológica que traduz o nome do município de Caarapó para
‘‘ z
’’ b
-se com isso a incorporação de
termos da Língua Guarani presentes em nomes de rios, cidades e
ruas, entre outros.
Na próxima seção, analisam-se os dados coletados com
os informantes da comunidade escolar, verificando quais
variantes estão em concorrência na escola Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro, e apresentam-se alguns léxicos oriundos do
Espanhol e do Guarani coletados através de entrevista com os
dez alunos que frequentam a escola.
Análise e discussão dos dados
324
ANAIS - 2013
Esta parte destina-se à análise e discussão da amostra
c
c
‘‘N
h
P éu
c
’’ c
a intenção de verificar as variáveis linguísticas que estão em
disputa nessa comunidade fronteiriça e qual delas tende a
sobressair, bem como o gênero que é mais propenso ao uso das
formas em destaque, na região pesquisada.
O quadro-3 mostra o uso das vogais médias pretônicas
[e] e [o] no português falado na escolar pesquisada e os
principais fenômenos linguísticos presentes na amostragem
coletada, utilizando o método de pesquisa DID (Diálogo entre
Informante e Documentador), dentro da perspectiva da Teoria
da Mudança e Variação.
Variáveis em concorrência
Vogal
[e] e [o] para
média
[i] e [u]
Pretônica
23,36%
[e] e [o]
76,64%
Quadro-03 Variação versus manutenção das vogais médias
pretônicas.
Após a análise estatística dos fenômenos linguísticos
encontrados na fala dos alunos selecionados, obtiveram-se
alguns porcentuais que revelam o uso das vogais médias no
português fronteiriço que não corrobora com os principais
fenômenos linguísticos, encontrados em outras regiões não
fronteiriças de MS.
Na amostra coletada, as vogais médias pretônicas
obtiveram-se os seguintes percentuais: 23,36% para o processo
linguístico de alçamento contra 76,64% para a manutenção das
325
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
vogais médias pretônicas. Com isso, constata-se que às vogais
pretônicas são mais resistentes à regra da harmonização
vocálica. Onde no restante do Estado há um favorecimento das
f
‘‘ gu ’’ ‘‘bu u’’ c
c
u
qu
Oliveira (2009).
A mesma inibição foi observada em relação ao processo
linguístico de redução vocálica, o fato de muitas palavras não
possuir a tonicidade mais comum na língua portuguesa inibi tal
processo, nos dados analisados não ocorreu nenhuma forma
c
,
x
, ‘‘bu é’’ u ‘‘bu éc ’’,
b é
boneca.
Diante do quadro-3, conclui-se que a preservação nas
pretônicas ocorre pela não abertura do timbre tônico da palavra
o que é bastante comum no quadro vocálico da língua
espanhola, onde o processo de variação de vogal média [e] e [o]
para alta [i] e [u] não acontece.
O próximo quadro mostra o comportamento das vogais
médias tônicas no português falado na escola pesquisada.
Variáveis em concorrência
Vogal
Média
Tônica
Abertura
do Fechamento do
timbre [é] e [ó]
timbre [ê] e [ô]
30,77%
69,23%
Quadro-04 Variação versus manutenção das vogais médias tônicas
Em relação às vogais médias tônicas a amostra
apresentou os seguintes percentuais: para a abertura do timbre p.
ex.: [ɛ] e [ᴐ] o resultado encontrado foi de 30,77%, contrastando
com 69,23 % para o fechamento do timbre p. ex.: [ê] e [ô],
percebe-se que as vogais em posição tônica tende a manter-se
com o timbre fechado:
326
ANAIS - 2013
Com o timbre fechado.
- m[ô]to
- Mandi[ô]ca
-Am[ê]rica
-c[ô]rto3
Ao invés de:
- m[ó]to
- Mandi[ó]ca
-Am[é]rica
-c[u]rto
Constata-se que tais pronúncias se aproximam mais da
Língua Espanhola do que do Português, esse dado vem ao
encontro da afirmação feita por Souza (2009), quando diz que a
fala dos Belavistenses possui muitos elementos do espanhol e do
guarani.
O próximo quadro analisa a vogal média [e] e [o] na
posição postônica final com base, na coleta de uma amostra de
dez entrevistas transcritas usando o modelo desenvolvido pelo
projeto NURC (Norma urbana Culta) com adaptações para a
linguagem popular, a característica principal desse modelo é
transcrever exatamente como a palavra é pronunciada, assim foi
possível observar o comportamento das vogais médias em
posição postônicas .
Variáveis em concorrência
Vogal
Média
Postônica
[e] e [o] para
[i] e [u]
40,97 %
[e] e [o]
59,03%
Quadro-05 Variação versus manutenção das vogais médias postônicas
Com base no quadro-5, observa-se que na localidade
pesquisada há uma tendência, ainda que não tão significativa,
3
f
327
‘‘cu
í gu
’’
h
‘‘c
uguê
’’ f
u
z
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
em relação aos percentuais dos quadros 3 e 4, de preservação
das vogais [e] e [o] postônicas. A realização dessas vogais foi de
40,97% para elevação de [-] médias para altas [+], e de 59,03%
para a manutenção.
As vogais pretônicas apresentaram índices mais
próximos entre as formas de alçamento versus preservação das
vogais médias átonas finais. A esse respeito Câmara JR (2008,
p.58) comenta que basta a ausência da tonicidade para ter a
neutralização da vogal em oposição átona, ou seja, as variantes
[e]; [è] e [ɛ] assim como as [o], [ᴐ] sofrem um processo de
neutralização realizado como uma única variante alta [i] para [e]
e [u] para [o].
No entanto, o resultado da amostra revela que na
fronteira existe uma tendência à manutenção das formas átonas
finais [e] [o], a mesma conclusão chegou Silva (2009) ao
confirma que em comunidades fronteiriças e de descendência
germânica predomina a conservação das postônicas.
De acordo com Bisol (2009), as pesquisas sobre a
variação nas postônicas mostram que o fator geográfico
manifesta-se como determinante na manutenção das vogais
postônicas finais. Isso explica o fato de a regra da neutralização
ainda se encontrar no falar da região Sul em vias de
implementação.
No caso da localidade em estudo, observa-se a mesma
conservação das postônicas finais, o mesmo resultado foi
encontrado nas regiões fronteiriças do Sul do Brasil. Contudo,
no espaço geográfico pesquisado, a análise das entrevistas
revelou peculiaridades como: as vogais não finais de /ando/,
/endo/ sofrem um processo de desnasalação, e são pronunciadas
como a intensidade típica da língua esp h
x : ‘‘
cantando’’ ‘‘ c endo, nesse caso, são menos propensas ao
processo de alçamento.
328
ANAIS - 2013
Observando as análises das entrevistas, percebe-se que
quando a consoante bilabial /m/ estiver seguida de vogal média,
o processo de alçamento tende a não ocorrer. Agora, se for uma
consoante palatal /ɲ/ ou a uvular /N/ o processo de alçamento é
mais propenso.
O próximo quadro analisa o resultado das variações em
relação ao fator extralinguístico gênero do falante.
Indicadores
Masculino
Feminino
1. Alçamento da
vogal Pretônica
2. Manutenção
da vogal
Pretônica
3. Abertura do
timbre tônico
4. Fechamento
do timbre
Tônico
5. Alçamento da
vogal Postônica
6. Manutenção
da vogal
Postônica
Total de vogais
analisadas
22
30
108
68
17
34
64
51
172
171
300
194
683
548
Total de
Ocorrência
52 ou
22,80%
176 ou
77,20%
51ou
30,72%
115 ou
69,28%
343 ou
40, 97%
494 ou
59,03%
1231
Quadro-06 Variação versus manutenção das vogais médias postônicas.
Diante desse último quadro tem-se um breve panorama
das principais variações que ocorrem na locada pesquisa e como
se manifestam na fala oral pelos informantes dos gêneros
329
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
masculino e feminino. Conforme os dados coletados, na região
de fronteira há uma tendência de manutenção dos principais
fatores linguísticos.
Os dados revelaram que em relação às vogais médias
pretônicas que ambos os gêneros tendem a não realizar os
processos de harmonização e redução vocálica, tão comum em
outras localidades do país.
Em relação às vogais tônicas, o número de palavras com
o timbre fechado foi maior do que as de timbre aberto 69,28% e
30,72%, sendo que o gênero masculino manteve o timbre sem o
processo de abertura em 64 palavras/vogais contra 51 palavras
vogais do feminino.
Já nas vogais postônicas o uso foi mais equilibrado,
porém os dados nos revela um dado importante, o gênero
masculino prefere não realizar o processo de alçamento nas
vogais finais das 494 palavras-vogais eles não fizeram a
abertura em 300 palavras, no caso do gênero feminino o uso foi
menos acentuado, no entanto, em geral percebe-se que na escola
estudada há uma preservação das vogais finais. Diferentemente
da afirmação de Câmara JR (1996) que defendia o processo de
neutralização nas vogais finais. E corrobora com outras
pesquisas realizadas no Sul do país pelas autoras Bisol (2009) e
Silva (2009) que defendem a tese de que nas fronteiras há uma
resistência de alçamento das postônicas.
Em relação aos itens lexicais encontrados na localidade
escolar, notou-se que muitas palavras sofreram modificações na
fonética influenciada pelo contato linguístico entre as línguas
presentes na região estudada. Nesse cenário, algumas palavras
que normalmente têm o som aberto na sílaba tônica, são
realizadas com o som fechado aproximando-se do sistema
vocálico da língua espanhola. Como se pode observar nas
gu
: ‘‘ gô ’’, ‘‘bô î ’’ ‘‘b êc ’’
330
ANAIS - 2013
Percebe-se nitidamente a preservação das vogais médias
[e] e [o] tão comum na língua espanhola. Em outras regiões do
país a tendência é que essas palavras sejam pronunciadas com o
timbre aberto. Daí a necessidade de conhecer os vários falares
brasileiros para realmente estudar a língua portuguesa e suas
variedades linguísticas.
Na listagem a seguir é possível observar a presença do
espanhol no português falado na escola Perpetuo Socorro.
1. (AG-M-11) eu nun vi tinha um montón de aluno lá
rondeando lá.
2. (BAC-M-12)já fui dos vezes alla:: é bônito tem todo
dia tem carro passando
3. (LMS-F-12) celular aqui tatrecento i pocola você
compra por noventa
Na linguagem oral, os alunos utilizam algumas palavras
do espanhol durante a comunicação verbal, isso ocorre pela
proximidade entre as duas línguas seja evidente é na fala que se
percebe essa interferência provocada pela mudança de entoação.
Na escola, os alunos preferem utilizar palavras como
‘‘redear’’
‘‘dar volta’’
x : ‘‘ f c u
’’ u
é
‘‘f c u
’’ N
gu
x
listagem, observa-se a presença dos léxicos da língua espanhola
‘‘ ’’ qu
g f c ‘‘
’’ ‘‘ ’’ qu
g f c ‘‘ á’’
português. No exemplo 3 temu
‘‘trecento’’ em
h
ub
‘‘poco’’da língua espanhola.
Considerações finais
Utilizando a metodologia da Teoria da Mudança e
Variação linguística foram analisada dez entrevistas realizadas
331
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
na Escola Municipal Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no
município de Bela Vista-MS. Por meio da abordagem
sociointeracionista foram abordados temas sobre o cotidiano
local, assim pode-se colher dados linguísticos que revelaram o
comportamento das vogais pretônicas [e] e [o] nas posições
pretônica, tônica e postônicas, bem como algumas
características do falar local.
Em relação às vogais médias da língua portuguesa foram
trabalhadas as hipóteses de que se nas zonas fronteiriças entre
Brasil e Paraguai, especialmente, no espaço entre as cidades de
Bela Vista-MS e Bella vista-PY acorre os mesmos fenômenos
linguísticos referentes às vogais médias da língua portuguesa ou
se há fatores que desfavoreça tais fenômenos de se
manifestarem na língua oral.
Aproveitou-se o corpus coletado na cidade para verificar
a presença de outras línguas em contato com o português falado
u
c
‘‘P é u
c
’’
resquícios de outras línguas exercem algum tipo de influência
nos processos linguísticos que normalmente ocorrem com as
vogais.
Em relação às vogais pretônicas, a amostra coletada na
escola revelou que há uma tendência de preservação das vogais
médias [e] e [o] com porcentagens bastante expressivas, 76,64%
da amostra referente à posição pretônica sofreu alteração contra
23,36% que apresentou o processo de harmonização ou de
redução vocálica. Com isso, conclui-se que tais processos ainda
estão em estágio inicial na localidade.
Na posição de tônica da palavra, foi possível perceber
que as vogais médias [e] e [o] tendem a ser realizadas com o
timbre fechado, na localidade pesquisada é mais comum ouvir a
variante mandi[ô]ca ao invés de mandi[ó]ca o mesmo passa com
m[ô]to e m[ó]to. Os índices ficaram assim: 69,23% para o
332
ANAIS - 2013
fechamento do timbre e de 30,77% para abertura da vogal
tônica.
Apesar de ser um estudo inicial sobre as vogais nessa
localidade, os resultados mostrou que o alçamento tende a
ocorrer quando o informante pronuncia a vogal tônica de forma
aberta. Foram poucas as situações em que os informantes
utilizaram as formas [bunîto] com a vogal fechada. É mais
propensa a harmonização ou a redução quando a vogal média
tônica é pronunciada com a abertura do timbre.
Já nas postônica os resultados revelaram uma diferença
menos acentuada em relação às pretônicas e as tônicas. No
entanto, houve um favorecimento da conversação das vogais
finais [e] e [o], com isso é possível concluir que afirmação feita
Câmara Jr (1996) de que ocorre uma neutralização nas variantes
das vogais médias realizando se somente vogais altas [i] e [u]
ainda não atingiu a região pesquisada. A mesma conclusão
chegaram Bisol (2009) e Silva (2009) no português falado no
Sul do país.
Notou-se também que as vogais postônicas são
propensas ao alçamento quando a consoante que acompanha a
vogal média final for uma palatal /n/, quando for uma bilabial
/m/ a probabilidade de alçamento diminui.
Por estar num espaço fronteiriço, apareceram algumas
influências do guarani e do espanhol na fala local, o que não é
novidade, seria anormal se isso não ocorresse, já que há um
forte intercambio cultural nesse espaço as vogais da língua
espanhola manifestam-se no português através da modificação
da entoação das palavras, assim as terminações em /ando/ como
falando e cantando e /endo/ como em fazendo e correndo,
sofrem um processo de desnasalização na penúltima vogal sendo
realizadas como; falándo, cantándo, fazéndo e corréndo o que
333
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
diminui as chances de alçamento já que na fonética espanhola
tal processo não se realiza.
A interferência do espanhol e do guarani não se restringe
apenas à fonética, mas também à semântica, estrutura e ao
léx c ,
c
u
c
‘‘y-rá’’
b
‘‘karú’’
c
, u
h ‘‘ u pregunté’’
‘‘ u perguntei’’ ou com estrutura
h c
‘‘
em P gu ’’
é
no
P gu ’’ c
utros léxicos mais típicos do país vizinho
como os verbos rodear, bailar mais comumente usados na fala
hispânica.
Enfim, ainda que os dados precisem ser trabalhados com
mais detalhes, o texto contribui para a descrição linguística das
regiões de fronteiras do Estado do mato Grosso do Sul e de
outras fronteiras que queiram entender melhor o falar
fronteiriço.
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sul do Brasil: variação fonológica. Porto Alegre: EDIPUCRS,
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materna - a sociolinguística na sala de aula. São Paulo:
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ANAIS - 2013
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Mestrado) Dourados, MS: UFMS, 2003. 171p
336
ANAIS - 2013
Breve história da EJA: uma abordagem
sociolinguística
Josemara da Paz LIMA ¹
Elza Sabino da Silva BUENO ²
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo fazer um
panorama do surgimento da Escola de Jovens e Adultos (EJA)
no Brasil e quais foram os motivos histórico-político e
linguísticos de sua criação, além de relacionar o contexto
histórico à fala de muitos brasileiros que não tiveram
oportunidade de estudar em idade própria. Este estudo faz parte
de um trabalho ainda em andamento e tem por base teóricos dos
estudos sociolinguísticos, um campo da ciência que estuda a
linguagem e a sociedade como elementos inseparáveis e as
diversidades linguísticas existentes no português falados nas
diferentes regiões do país. Procura-se trazer uma reflexão
sociolinguística sobre a linguagem utilizada pelos alunos da
EJA, entendendo os fatores linguísticos e extralinguísticos como
parte do processo de ensino aprendizagem.
PALAVRAS-CHAVE: Linguagem; Sociolinguística; EJA.
Introdução
Com a chegada dos jesuítas ao Brasil, tenta-se a
implantação de uma forma de educar e ensinar jovens e adultos,
porém, por muitos anos buscou-se um método que desse certo,
criando-se instituições, fundações e colocando-se em prática
ideias de pensadores e educadores, para que fosse erradicado o
analfabetismo em nosso país. Criada com o objetivo de dar
337
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
oportunidades educacionais apropriadas aos jovens e adultos
que não puderam realizar os estudos na idade regular, a EJA,
procura resgatar o conhecimento que lhes foi privado, devido à
necessidade de abandonar a escola pelos mais diversos motivos:
precárias condições sócio-econômicas, inadequação da escola e
consequentemente um elevado índice de repetência nas
primeiras séries (PILETTI, 1997, p.125).
O aluno, que volta a uma instituição de ensino básico
depois de muito tempo, traz consigo sua identidade, seus valores
e sua cultura e, inerente a esses, seu próprio modo de se
comunicar e trocar experiências com os demais membros da sua
comunidade linguística (MONTEIRO, 2000, p.16). É,
entretanto, ao entrar na sala de aula, que esse aluno se depara
c
u
í gu
u
c
“
uguê ” qu u
f
uc çã f
f
“c
” D
modo, o aluno, que considera seu modo de falar diferente
daquele imposto pela escola, fica com a sensação de que a
“Lí gu P ugu ” é fíc
qu
ã
b u á-la. Como
afirma Bagno (2003, p. 50):
O próprio nome do idioma – português -,
então, deixa de designar toda e qualquer
manifestação falada e escrita da língua por
parte de todo e qualquer falante nativo, e
passa a designar exclusivamente esse ideal
b
í gu c ,
“
cu ”
que só uns poucos iluminados conseguem
apreender e dominar integralmente.
Entretanto,
c
c
esses
g h
” ê
h
c
,
indivíduos
“ ã f
j
“f
c
que
enfrentam
c
c u c
, f
u
338
ANAIS - 2013
uguê b
”,
é
c
ã
u
c
língua culta, que por sinal é o seu meio natural de comunicação,
o trabalhador braçal, a empregada doméstica, os milhões de
iletrados também o fazem (BORTONI-RICARDO, 2005, p.14).
A dificuldade enfrentada pelos iletrados para entender as
regras gramaticais, contidas na variante padrão da língua
portuguesa e que a sociedade, de forma geral, acredita ser a de
prestígio, não deve ser motivo para não apresentá-la, pois o
conhecimento sobre esta variante não lhes pode ser negado, sob
pena de se fecharem para eles as portas, já estreitas, da ascensão
social. Entretanto, é preciso mostrar a estes alunos que não
existe uma maneira única de falar, que a língua é heterogênea e
pode variar conforme a situação interacional, pois como diz
Stella Maris Bortoni-Ricardo, em sua obra Nós cheguemu na
escola, e agora? (2005, p.15):
A escola não pode ignorar as diferenças
sociolinguísticas. Os professores e, por meio
deles, os alunos têm que estar bem
conscientes de que existem duas ou mais
maneiras de dizer a mesma coisa. E mais,
que essas formas alternativas servem a
propósitos comunicativos distintos e são
recebidas de maneira diferenciada pela
sociedade. Algumas conferem prestígio ao
falante, aumentando-lhe a credibilidade e o
poder de persuasão; outras contribuem para
formar-lhe
uma
imagem
negativa,
diminuindo-lhe as oportunidades. Há que se
ter em conta ainda que essas reações
dependem das circunstâncias que cercam a
interação.
339
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
É importante que a escola reconheça a importância da
variação linguística no ensino de língua materna, tendo em vista
que a língua não é um sistema homogêneo e invariável, mas,
sim, suscetível a mudanças e que, se um mesmo indivíduo pode
alternar diferentes formas linguísticas, de acordo com a variação
das circunstâncias que cercam a interação verbal, os alunos
podem reconhecer que não há uma só forma de se comunicar. É
preciso que esse conhecimento de variação seja passado para a
sociedade em geral, a começar pela escola, pois o indivíduo
necessita ter, interiorizadas em sua competência linguística, as
formas alternativas padrão e não-padrão sobre as quais ele pode
operar a seleção conforme as circunstâncias de interação
(CAMACHO, 2001, p. 61).
O desconhecimento de nossa realidade linguística tem
exigido cada vez mais a realização de pesquisas empíricas, que
tragam benefícios à aprendizagem dos alunos em língua
materna. Ensinar gramática é fundamental, pois é somente na
escola que estes alunos terão o privilégio de conhecê-la, sendo
assim, não se pode negar o que lhes é de direito, porém a escola
brasileira ocupa-se mais em reprimir do que em incentivar o
emprego criativo e competente do português (BORTONIRICARDO, 2005, p.16), ocasionando maiores prejuízos por
dificultar a aprendizagem do aluno em relação à língua padrão.
Faz-se necessário compreender, que alunos da EJA ainda
vivenciam
problemas
como
preconceito,
vergonha,
discriminação, críticas, dentre tantos outros, e que tais questões
são vivenciadas tanto no cotidiano familiar como na vida em
comunidade. Importante se faz salientar que durante anos,
jovens e adultos procuram oportunidades para aprender, se
desenvolver e cada vez têm ganhado mais espaço nas Políticas
Educacionais, sendo assim, é visível que a EJA é uma educação
340
ANAIS - 2013
possível e capaz de mudar significativamente a vida de uma
pessoa, permitindo-lhe reescrever sua história de vida.
1. Aspectos históricos
Com a chegada dos jesuítas ao Brasil em 1549, sob
comando de Manuel da Nóbrega, época do Brasil Colônia, deuse início ao processo de catequização dos índios, que procurava
levá-los à conversão, salvação de suas almas. Observando que
os índios precisavam aprender a ler e escrever para se converter.
(..) os jesuítas dedicaram-se a duas tarefas
principais: a pregação da fé católica e o
trabalho educativo. Com seu trabalho
missionário, procurando salvar as almas,
abriam caminho à penetração dos
colonizadores; com seu trabalho educativo,
ao mesmo tempo em que ensinavam as
primeiras letras e a gramática latina,
ensinavam a doutrina católica e os costumes
europeus. (PILETTI, 1997, p. 33)
Quando os jesuítas foram expulsos do país em 1759 por
Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal de 1750 a
1777, eles já mantinham 36 missões, escolas de ler e escrever
em quase todas as povoações e aldeias por onde se espalhavam
suas 25 residências, além de 18 estabelecimentos de ensino
secundário, entre colégios e seminários (PILETTI, 1997, p. 33).
A educação brasileira, com a expulsão dos jesuítas, vivenciou
uma grande ruptura histórica, a desorganização de um processo
já implantado e consolidado como modelo educacional.
Após a saída dos jesuítas, começa em 1760 o Período
Pombalino que perdura até o ano de 1808. Durante este período,
341
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Pombal criou as aulas régias de Latim, Grego e Retórica, além
da Diretoria de Estudos que funcionou após seu afastamento.
Portugal observou que a educação no Brasil estava estagnada e
que alguma solução precisava ser tomada, instituindo o
“ ub í
á ”
u çã
á
médios. No princípio do século XIX o sistema educacional do
Brasil já estava em declínio e não conseguiam fazer nada
parecido com o trabalho de educação implantado pelos jesuítas.
A vinda da Família Real para o Brasil, no século XIX e a
Independência do país, contribuíram para a instituição de um
modelo de educação centrada na formação das elites dirigentes.
Assim, o ensino secundário e o superior eram os privilegiados,
enquanto o ensino primário e o técnico-profissional eram
marginalizados. O curso normal praticamente só se desenvolveu
a partir do final do Império e, assim mesmo, enfrentando
enormes dificuldades, como a falta de professores qualificados e
condições precárias de ensino. Durante muito tempo, tentou-se
reerguer no Brasil um sistema educacional que desse certo, em
que se buscou vários métodos para que isso fosse possível.
A partir de 1930, com a Revolução, o Brasil passou por
grandes transformações na esfera econômica e social que
exigiam que o país tivesse mão de obra especializada e
investisse na educação. O objetivo era alfabetizar as camadas
baixas da população ensinando a ler e escrever, sem despertá-las
à consciência crítica, pois isso seria prejudicial ao governo. Na
Constituição de 1934 instaura-se um Plano Nacional de
Educação, afirmando que a educação é um direito de todos e é
dever do Estado fornecer ensino primário integral gratuito e de
frequência obrigatória extensivo aos adultos, além de coordenar,
f c z
“ x c
çã u
,
f ç
c á ,
deficiência de iniciativa ou de recursos e estimular a obra
342
ANAIS - 2013
educativa em todo o País, por meio de estudos, inquéritos,
de
çõ
ub çõ ”
Com a nova Constituição de 1937 é enfatizado o ensino
primário, o ensino pré-vocacional profissional e o secundário. O
ensino primário tinha por finalidade a iniciação cultural, o
desenvolvimento da personalidade e a preparação para a vida
familiar, a defesa da saúde e o trabalho. O ensino pré-vocacional
profissional era destinado às classes menos favorecidas, com
aprendizagem das técnicas industriais, comerciais e agrícolas,
atendendo aos interesses dos trabalhadores das empresas e da
Nação. Já o ensino secundário era para as elites dirigentes, que
estudavam Latim, História, Geografia e desenvolviam a
“c c ê c
ó c ” E f , c
u
g
çã
entre o trabalho intelectual, destinado às classes mais
favorecidas e o trabalho manual, que enfatizava o ensino
profissional para as classes mais desfavorecidas, já existente na
época Brasil Império.
A década de 40 foi um período de grandes mudanças na
educação de adultos com iniciativas políticas e pedagógicas
consideráveis como: a criação e regulamentação do Fundo
Nacional do Ensino Primário (FNEP) com o objetivo de ampliar
e melhorar o sistema escolar primário do país, o Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), lançamento da
Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) que
demonstrava grande preocupação com a elaboração de materiais
didáticos para adultos como guias de leituras, matemática, saúde
e alimentação, adentrando também neste contexto o Movimento
de Educação de Base (MEB), criado um pouco mais tarde em
1961, dentre outros. Este conjunto de iniciativas permitiu que a
educação de adultos se firmasse como uma questão nacional.
De 1947 a 1950, o professor Lourenço Filho ficou na
direção da Campanha de Educação de Adultos, que consistia em
343
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
financiar as unidades de ensino instaladas, orientar os trabalhos
de alfabetização e mobilizar a opinião pública e dos governos
estaduais e municipais em favor da campanha. O resultado deu
certo, pois em 1943 as matrículas efetivas no ensino supletivo
eram de 94.291 alunos e em 1950, o número já havia alcançado
720.000 matrículas (PILETTI, 1997, p. 105)
Nos anos 50, realizou-se a Campanha Nacional de
Erradicação do Analfabetismo (CNEA), com discussões sobre a
educação de adultos, mas foi extinta em 1963, juntamente com
as outras campanhas até então existentes. Em 1958, foi realizado
o segundo Congresso Nacional de Educação de Adultos,
objetivando avaliar as ações realizadas na área e visando propor
soluções adequadas para a questão. Foram feitas críticas à
precariedade dos prédios escolares, à inadequação do material
didático pedagógico e à qualificação do professor.
Na década de 60, um novo impulso foi dado às
campanhas de alfabetização de adultos, com o método Paulo
Freire que alcançou repercussão nacional e internacional na
época. Este método tinha como característica centrar-se na
adequação do processo educativo às características do meio.
Nesta mesma época, foi promulgada a primeira lei brasileira
(Lei nº 4024, de 20 de dezembro de 1961) que estabelecia as
diretrizes e bases da educação, em todos os níveis, do préprimário ao superior. Em 1964, com o golpe militar, todos os
movimentos de alfabetização que se vinculavam à ideia de
fortalecimento de uma cultura popular foram reprimidos.
A década de 70, ainda sob a ditadura militar, marca o
início das ações do Movimento Brasileiro de Alfabetização – o
MOBRAL, que era um projeto que visava acabar com o
analfabetismo em apenas dez anos. Após esse período, quando
já deveria ter sido cumprida essa meta, o Censo divulgado pelo
IBGE registrou ainda 25,5% de pessoas analfabetas na
344
ANAIS - 2013
população de 15 anos ou mais, ou seja, não foi possível cumprir
tal meta. O programa passou por diversas alterações em seus
objetivos, ampliando sua área de atuação para campos como
educação comunitária e educação de crianças.
O ensino supletivo, implantado em 1971, foi um marco
importante na história da educação de jovens e adultos do
Brasil. Foram criados os Centros de Estudos Supletivos em todo
o País, com a proposta de ser um modelo de educação do futuro,
atendendo às necessidades de uma sociedade em processo de
modernização. O objetivo era escolarizar um grande número de
pessoas, com um baixo custo operacional, satisfazendo às
necessidades de um mercado de trabalho competitivo, com
exigência de escolarização cada vez maior. A LDB 5692/71 que
contemplava o caráter supletivo da EJA, excluindo as demais
modalidades, não diferia dos objetivos do MOBRAL quanto à
profissionalização para o mercado de trabalho e a visão da
leitura e da escrita apenas como decodificação de signos.
No início da década de 80, a sociedade brasileira viveu
importantes transformações sócio-políticas com o fim dos
governos militares e a retomada do processo de democratização.
Em 1985, o MOBRAL foi extinto, sendo substituído pela
Fundação EDUCAR, cujo objetivo era erradicar totalmente o
analfabetismo, mas, principalmente, preparar mão-de-obra
necessária para atender os interesses capitalistas do Estado.
A nova Constituição de 1988 trouxe importantes avanços
para a EJA: o ensino fundamental, obrigatório e gratuito, passou
a ser garantia constitucional também para os que a ele não
tiveram acesso na idade apropriada, ainda com o objetivo de
erradicar o analfabetismo no país. A partir da década de 1980 e
1990, a educação deixou de ser um ensino voltado para o
tradicionalismo, fazendo com que os educadores buscassem
novas propostas de ensino, com intuito de ajudar no crescimento
345
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
do aluno para um ensino mais qualificado para um futuro
melhor para humanidade.
A partir dos anos 90, com o início do governo Collor, a
Fundação EDUCAR foi extinta e todos os seus funcionários
colocados em disponibilidade. Com a falta de pessoal
qualificado para administrar as políticas educacionais, a União
foi se afastando das atividades da EJA e transferindo a
responsabilidade para os Estados e Municípios.
Somente com a nova LDB nº 9394, promulgada em
1996, art.37 e art.38, é que se passa a contemplar as várias
modalidades de educação de jovens e adultos e uma melhor
adequação às novas exigências sociais. Dentre algumas
alterações significativas podemos citar: redução da idade
mínima (15 anos para o ensino fundamental e 18 para o ensino
médio), supressão de referências sobre o ensino
profissionalizante atrelado à EJA, criando um capítulo único,
capítulo 07, para esta modalidade, defendendo uso de didática
apropriada às características do alunado, condições de vida e
trabalho, incentivando a aplicação de projetos especiais que
proporcionem o alcance dos objetivos desejados.
Em janeiro de 2003, o MEC anunciou que a
alfabetização de jovens e adultos seria uma prioridade do novo
governo federal. Sendo assim, foi criada a Secretaria
Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo, cuja meta era
erradicar o analfabetismo durante o mandato de quatro anos do
governo Lula.
Para cumprir essa meta foi lançado em 2003 e que
perdura até hoje o Programa Brasil Alfabetizado, por meio do
qual o MEC contribui com os órgãos públicos estaduais e
municipais, instituições de ensino superior e organizações sem
fins lucrativos que desenvolvem ações de alfabetização. No
Programa Brasil Alfabetizado, a assistência é direcionada ao
346
ANAIS - 2013
desenvolvimento de projetos com as seguintes ações:
Alfabetização de jovens e adultos e formação de alfabetizadores.
O Brasil Alfabetizado é desenvolvido em todo o território
nacional, com o atendimento prioritário a 1.928 municípios que
apresentam taxa de analfabetismo igual ou superior a 25%.
Esses municípios recebem apoio técnico na implementação das
ações do programa, visando garantir a continuidade dos estudos
aos alfabetizandos.
Durante sua história, a educação de jovens e adultos teve
seus momentos de grandes fracassos e críticas, buscando neste
percurso um ensino de qualidade, propiciando aos alunos o
direito a uma vida mais digna, com perspectivas de um futuro
melhor, livres de preconceitos sociais, com o intuito de mudar
significativamente suas vidas, construindo um Brasil imparcial e
justo ao propiciar educação como um direito de todos os
cidadãos.
2. Analisando os dados
Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) realizado em 2010, entre 1990 e
2010 a taxa de analfabetismo da população com mais de 15 anos
de idade passou de 18,35% para 9,62%, o que podemos
considerar em 20 anos a redução de 50% do analfabetismo em
nosso país. Tal redução deve-se ao empenho do governo e
profissionais da educação, que a partir da década de 90, conferiu
maior atenção à Educação de Jovens e Adultos, principalmente
depois da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação em 1996, que passa a vê-la como primordial para
erradicação do analfabetismo no Brasil, conforme segue.
347
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Tabela 1 – Taxas de analfabetismo no Brasil entre os anos de
1940 e 2010.
Anos
1940
1950
1960
1970
1980
1990
2000
2010
População de Analfabetos de
Taxas de
15 anos ou
15 anos ou
analfabetismo
mais
mais
23.639.769
13.279.899
56,17
30.249.423
15.272.432
50,48
40.187.590
15.815.903
39,35
54.336.606
17.936.887
33,01
74.600.285
19.356.092
25,94
96.647.265
17.731.958
18,35
119.556.675
15.467.262
12,94
144.823.504
13.933.173
9,62
Fontes: IBGE e PILETTI, 1997, p. 124.
Embora tais dados afirmem essa diminuição, tinha-se
ainda em 2010, quase 14 milhões de brasileiros que nunca
frequentaram a escola ou começaram, mas evadiram-se por
diversos motivos, entre eles o trabalho precoce.
A considerável taxa de analfabetismo em nosso país
deve-se também ao fato de que muitos municípios ainda não
foram contemplados com um ensino voltado para jovens e
adultos. Segundo o Censo Demográfico de 2010, 574
municípios não oferecem a EJA, o que pressupõe que muitos
jovens e adultos analfabetos não têm oportunidades de se
desenvolverem na área educacional, ou seja, a ideia de educação
para todos não se conclui de fato. Na declaração de Hamburgo
sobre a Educação de Adultos apresentada na V CONFINTEA
em 1997, diz que:
Educação básica para todos significa dar às
pessoas, independentemente da idade, a
348
ANAIS - 2013
oportunidade de desenvolver seu potencial,
coletiva ou individualmente. Não é apenas
um direito, mas também um dever e uma
responsabilidade para com os outros e com
toda a sociedade.
No ano de 2000, eram 20.290.368 pessoas no Brasil
acima de 15 anos que frequentavam escolas, 15.467.262
consideradas analfabetas e apenas 3.145.338 participavam da
Educação de Jovens e Adultos, ou seja, apenas 20,34% da
população analfabeta do país, decidiram voltar a estudar,
conforme segue:
Organograma 1 – Grau de instrução em 2000.
População Geral brasileira
169.872.856
População de 0 – 14 anos = 50.316.180
119.556.675=
População de 15anos ou
mais
Analfabetos = 15.467.262
Não frequentam escola, mas já frequentaram = 87.794.526
Nunca frequentaram = 11.471.783
Ainda frequentam escola = 20.290.368
EJA = 3.145.338 (20,34% dos analfabetos)
Ensino Fundamental = 2.272.114
Ensino Médio = 873.224
349
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Fonte: MEC e INEP.
Dez anos depois, já em 2010, observa-se um aumento da
população de aproximadamente 11%, com 49.373.869 pessoas
no Brasil acima de 15 anos que frequentavam escolas,
13.933.173 consideradas analfabetas e apenas 4.234.956
participavam da Educação de Jovens e Adultos, ou seja, apenas
30,4% da população analfabeta do país decidiram voltar a
estudar, conforme organograma a seguir.
Organograma 2 - Grau de instrução em 2010.
População Geral brasileira
190 755 799
População de 0 – 14 anos= 45.932.294
144.823.504=
População de 15 anos
ou mais
Analfabetos = 13.933.173
Não frequentam escola, mas já frequentaram = 84.724.186
Nunca frequentaram = 10.725.449
Ainda frequentam escola = 49.373.869
EJA = 4.234.956 (30.4% dos analfabetos)
Ensino Fundamental = 2.846.104
Ensino Médio = 1.388.852
Fonte: MEC e INEP.
350
ANAIS - 2013
No final do século XX, o Brasil enfrentou sérios desafios
no campo educacional, apesar do grande esforço empregado por
educadores, grupos de trabalho e até mesmo do próprio governo.
Deve-se porém encarar tais desafios, para se construir um país
melhor para todos os brasileiros, pois, embora já seja possível
observar vários avanços, muitos ainda continuam excluídos das
oportunidades educacionais.
Diversas iniciativas do governo têm permitido que
milhões de jovens e adultos tenham a oportunidade de voltar a
estudar, aumentando o nível sociocultural destes indivíduos e
propiciando melhores empregos para que as condições de vida,
também sejam elevadas, já que o desejo de retornar a uma
Instituição de Ensino, é motivado, na maioria das vezes, pelo
mercado de trabalho que busca pessoas bem qualificadas e
instruídas, outras vezes, o próprio indivíduo sente vontade de
aprender a ler, escrever, falar bem e fazer contas utilizando as
quatro operações básicas da matemática. Neste sentido, como
foi dito na Declaração de Hamburgo sobre a EJA na V
CONFINTEA em 1997:
A educação de adultos, dentro desse
contexto, torna-se mais que um direito: é a
chave para o século XXI; é tanto
consequência do exercício da cidadania
como condição para uma plena participação
na sociedade. Além do mais, é um poderoso
argumento em favor do desenvolvimento
ecológico sustentável, da democracia, da
justiça, da igualdade entre os sexos, do
desenvolvimento
socioeconômico
e
científico, além de ser um requisito
fundamental para a construção de um
mundo onde a violência cede lugar ao
351
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
diálogo e à cultura de paz baseada na justiça.
A educação de adultos pode modelar a
identidade do cidadão e dar um significado à
sua vida.
3. Aspectos linguísticos
A partir do contexto histórico da EJA é possível perceber
que jovens e adultos oriundos das classes menos favorecidas
socialmente que não tiveram acesso ao ensino em idade própria,
chegam à escola, depois de muitos anos com uma bagagem
linguística marcada pela variante não-padrão em sua fala, pois a
grande maioria não sabe ainda ler e escrever, portanto, não
conhecem a variante padrão da língua portuguesa.
Há na sociedade, que tem como variante de prestígio a
língua padrão, o preconceito de que as pessoas que utilizam a
variante não-padrão da língua são leigos, pessoas sem estudo e
qu “
” í gu
,
causam vergonha nas mais variadas situações de fala.
A sociolinguística, ciência que analisa e descreve a
língua em uso no seio das comunidades de fala e tem como
objeto de estudo a variação, observando linguagem e sociedade
como elementos inseparáveis (MOLLICA e BRAGA, 2003,
p.09) vem procurando mostrar que tratar de variação é
inevitável, pois ela não é o resultado do uso arbitrário e
inconsequente dos falantes, mas sim, um uso sistemático e
regular de uma propriedade inerente aos sistemas linguísticos,
que é a possibilidade de variação, já que ela está ligada a
restrições de natureza linguística e extralinguística
(CAMACHO, 2001, p.50-55).
Nesse sentido, estudos têm sido realizados no âmbito
sociolinguístico, os quais observam a língua como sendo
heterogênea e variável, passível de mudanças, pois todo
352
ANAIS - 2013
linguista indiscriminadamente concorda com o princípio de que
nenhuma língua natural humana é um sistema em si mesmo
homogêneo e invariável. Em todos os níveis de análise, deparase com o fenômeno da variação (CAMACHO, 2001, p. 57). Os
estudos sociolinguísticos são fundamentais, pois auxiliam a
escola a não apresentar a norma padrão como única forma de
comunicação, ou mesmo um objeto de segmentação social.
Sírio Possenti (1996, p.83) afirma também que aprender
uma língua é aprender a dizer a mesma coisa de várias formas,
sendo assim, o papel da escola não é o de ensinar uma variante
no lugar da outra, mas de criar condições para que os alunos
aprendam também as variedades que não conhecem ou com as
quais não têm familiaridade.
Também assinala que, para muitas pessoas, das mais
variadas extrações intelectuais e sociais, ensinar a língua é a
mesma coisa que ensinar gramática (POSSENTI, 1996, p.60).
Porém, conhecer e saber uma língua, é diferente de conhecer sua
gramática, ou seja, analisá-la, simplesmente, não pode ser
tomado como conhecimento linguístico
É importante que na Educação de Jovens e Adultos, seja
observado como a escola tem feito as intervenções sobre o
ensino de língua materna, se tem apresentado a seus alunos as
variantes, ou tem ditado somente as regras gramaticais.
4. Considerações Finais
Diante do exposto, foi possível observar que a Educação
de Jovens e Adultos, no decorrer do tempo, passou por grandes
mudanças, visto que nasceu como uma alternativa à qualificação
de mão-de-obra para atender às demandas do processo de
industrialização e só depois passou a ser parte integrante da
educação para acabar com o analfabetismo no país, dando
353
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
oportunidades de continuidade de estudos para os que não o
tiverem em idade regular.
Com o avanço da tecnologia e da economia brasileira, a
busca por pessoas capacitadas no mercado de trabalho tem
aumentado significativamente, fazendo com que as pessoas
sintam necessidade de retornar à sala de aula para aprimorar
seus conhecimentos ou conseguir um diploma atestando uma
escolarização mais elevada.
Aperfeiçoar o ensino de língua portuguesa para os alunos
da EJA é fundamental, visto que muitos deles a concebem como
sendo um sistema de códigos difícil de aprender, de falar e
escrever, pois muitos já foram em algum momento de suas vidas
ridicularizados por se comunicar fazendo uso da variante nãopadrão da língua.
Ampliar o conhecimento sobre a sociolinguística é dever
de cada professor que leciona nessa modalidade de ensino, bem
como de todas as escolas que a oferecem. Dessa maneira, será
fác ã
c
f
“
”
u
falar, mas sim aceitar que cada aluno possui uma história de
vida que não o permitiu permanecer na escola, propiciando-lhes
também uma bagagem linguística diferente da considerada
padrão em nossa sociedade.
É preciso entender que para se ensinar a língua, não é
necessário ignorar ou substituir a linguagem que o aluno possui,
corrigi-lo em todo o tempo e nem humilhá-lo por falar desse ou
daquele jeito. Que para se ensinar língua é preciso acima de tudo
refletir
primeiramente
sobre
ela,
observando
sua
heterogeneidade e levando em conta todas as situações
interacionais.
Os alunos da EJA precisam mais que simplesmente
aprender a norma padrão da língua portuguesa. Eles precisam
ser compreendidos, saber que as pessoas os compreendem, que
354
ANAIS - 2013
entendem tudo o que passaram na sua vida e ajudá-los a
avançar, a se sobresair, inclusive em um competente uso do
português brasileiro.
Em suma, a EJA desempenha um papel muito importante
em nossa sociedade e para que isso continue ocorrendo, da
melhor maneira possível, é necessário pensar como Lopes e
Sousa ao ressaltarem que é oportuno lembrar que todos podem e
devem contribuir para o desenvolvimento da EJA: os
governantes devem implantar políticas integradas para a EJA, as
escolas devem elaborar um projeto adequado para seus próprios
alunos e não seguir modelos prontos, os professores devem estar
sempre atualizando seus conhecimentos e métodos de ensino, os
alunos devem sentir orgulho da EJA e valorizar a oportunidade
que estão tendo de estudar e ampliar seus conhecimentos. À
sociedade cabe contribuir com a EJA não discriminando essa
modalidade de ensino nem seus alunos, e por fim, as pessoas em
geral que conhecerem um adulto analfabeto deve falar da
importância da educação e incentivá-lo a procurar uma escola de
EJA.
Referências
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históricos e sermões (1534-1597). Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. (Cartas
Jesuíticas 3 – Coleção reconquistada do Brasil. 2 série; v. 149).
BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua e poder na
sociedade brasileira. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
355
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
BELLO, José Luiz de Paiva. Educação no Brasil: a História
das rupturas. Pedagogia em Foco, Rio de Janeiro, 2001.
Disponível
em:
<http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb14.htm>. Acesso em:
25 de setembro de 2012.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua
materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo:
Parábola Editorial, 2004.
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Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 292
p.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.h
tm. Último acesso em: 18 de outubro de 2012, às 19h45.
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adultos – V Conferência Internacional sobre Educação de
Adultos/ V CONFINTEA. 1997.
CAMACHO, Roberto Gomes. Sociolinguística (parte II). In:
MUSSALIM, F.; BENTES, A.C (Orgs.). Introdução à
linguística 1: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001.
P.49-75.
356
ANAIS - 2013
IBGE, 1991. Censo Demográfico de 2000 e 2010. Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dados referentes
ao país Brasil, fornecidos em meio eletrônico. Último acesso
em: 22 de outubro de 2012, às 20h38.
LOPES, Selva Paraguassu; SOUSA, Luzia Silva. EJA: Uma
educação possível ou mera utopia? Disponível em:
http://www.forumeja.org.br/ac/node/61. Último acesso: 08 de
outubro de 2012, às 10h20.
MOLLICA, Maria Cecília e BRAGA, Maria Luiza. (orgs.).
Introdução à sociolinguística – o tratamento da variação.
São Paulo: Contexto, 2003.
MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2000.
PILETTI, Nelson. História da Educação no Brasil. São Paulo:
Ática. 1997.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola.
Campinas, SP: Mercado de Letras: ALB, 1996
.
357
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Brô MC´s: reflexos da identidade indígena na música
Anderson Aparecido PIRES 1
Prof.ª Drª Rita de Cássia Pacheco LIMBERTI2
RESUMO: Orlandi (2012), entende que é por meio da ideologia que
se constituem as noções de sujeito e de sentido; e é a partir da
ideologia que se estabelece uma relação entre linguagem e o mundo.
A ideologia, por sua vez, materializa-se através da linguagem, e é
caucionado pela linguagem que o homem assume a sua condição
imaginária de existência. Assim, podemos depreender que é no
cenário linguístico que o sujeito assimila inconscientemente a(s) sua
(s) formação(ões) discursiva(s) de identidade. É por meio da
c
u çã
óg c
“ ” que o indivíduo faz uso da língua,
manifestada nos mais variados suportes, como: fala, escrita, letra de
música, para projetar a sua interpretação da sociedade e do mundo em
que vive. As reflexões mencionadas e a compreensão de que é na
materialidade do discurso que se observa a relação entre língua e
ideologia (Orlandi,idem.), deram origem à proposta deste trabalho:
“B ô Mc´ R f x
íg
ú c ” V
apresentar, a partir dos aparatos teóricos da (AD) de linha francesa,
os processos de construção da identidade
ú c “ V
qu u
”
ítulo do grupo de rap indígena, Brô Mc´s, cujos
integrantes são jovens indígenas moradores da Aldeia Jaguapiru,
localizada na Reserva Indígena de Dourados, MS.
PALAVRAS–CHAVE: discurso; índio; linguagem
Introdução
1
Acadêmico do 6º semestre do curso de Letras, UFGD. Bolsita do
PIBIC/CNPq 2012/2013. E -mail: [email protected]
2
Professora da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras, UFGD.
Orientadora. E-mail: [email protected]
358
ANAIS - 2013
Considerando o cenário linguístico da cidade de
Dourados, Mato Grosso do Sul, onde se encontram duas aldeias:
Jaguapiru e Bororó, e que no meio dessas aldeias encontram-se
três etnias distintas: Kaiowá, Guarani e Terena, o presente
trabalho intitulado Brô Mc´s: reflexos da identidade indígena na
música, tem como objetivo, por meio das investigações teóricas
do projeto de pesquisa de iniciação científica, apontar um
caminho para a interpretação da identidade do indígena
douradense. Em meio a essa miscigenação étnica, emerge um
grupo de rap indígena – Brô Mc´s- , composto por quatro jovens
indígenas, residentes da aldeia Bororó, que fazem uso do gênero
musical rap, para manifestarem uma interpretação da realidade
indígena. E por meio dessa compreensão do que é, e de como é
a realidade indígena, movemos o nosso olhar para essa pesquisa
e sobre a qual redigimos esse artigo.
Pereira(2008), citando dados do IBGE, sustenta que há
aproximadamente oito mil indígenas no município de Dourados,
agrupados em um espaço territorial pequeno; os indígenas nesse
território vão lentamente perdendo seus costumes, como, por
exemplo, a desvalorização do uso fogo, conforme aponta o
antropólogo Levi Marques Pereira( 2010). Ao reduzir as práticas
sociais de uma cultura, o sujeito não está perdendo elementos
constitutivos da identidade e sim aderindo a outras formações
discursivas que passam a compor a sua concepção de existência.
A primeira parte deste trabalho, intitulada Palavra: tijolo
linguístico que constrói o sentido, abordaremos as concepções
de linguagem estipuladas por Santos (2007), Faraco e Moura
(1998), Leite e Callou (2002) e Santaella (1983) para que,
através dessas apreciações, possamos edificar a ponte que
relaciona a linguagem à palavra, entendendo palavra através
Bakhtin(2006). Após delinearmos uma sustentação teórica sobre
palavra/linguagem, tencionamos, no subitem 2, intitulado A
359
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
condição imaginária de existência traduzida pela da identidade,
refletir sobre os conceitos de identidade preconizados por Stuart
Hall (2000) e relacionar esses com a concepção de identidade
interpretada por Orlandi (2011/2012 ), proposta nos livros As
formas do silêncio – No movimento do sentido e A Análise de
Discurso: Princípios & Procedimentos, em que a autora
defenderá que a identidade do sujeito está associada às suas
formações discursivas e essas emergem das ideologias do
indivíduo.
Em sequência às reflexões desenvolvidas no item 2,
sobre a identidade, propomos, no item seguinte, tecermos
considerações sobre o gênero rap: etimologia, história, grupos
de rap no Mato Grosso do Sul, configurando, dessa forma, um
panorama que permita visualizar melhor esse estilo musical
adotado pelos indígenas de Dourados. Na quarta parte deste
artigo será apresentada uma análise preliminar sobre um
determinado trecho da letra
ú c “
qu u L ”,
do grupo de rap indígena. As palavras finais deste trabalho,
dialogarão com uma fala de Hugo Achugar (2006), a qual
consideramos relevante para nossa temática.
1.
Palavra: tijolo linguístico que constrói o sentido
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
( Fernando Pessoa, Isto.)
Iniciamos o primeiro subtópico do artigo, com uma
estrofe do poema de Fernando Pessoa – Isto-, com o intuito de
refletir sobre as modalidades linguísticas: oral e escrita, que
360
ANAIS - 2013
fazem parte da vida do sujeito e da qual o indivíduo faz uso,
para que, por meio de uma língua, ele possa produzir uma
mensagem. Permeado por essas modalidades da língua, o eu
lírico escreve aquilo que a imaginação permite-lhe produzir,
porém a interpretação social, que aqui podemos depreender que
seja o senso comum, atribui as produções do eu lírico como
mentiras e fingimentos( verso 1), por meio dessa declaração
chega-se à conclusão que aquilo que o eu lírico produz
materializado na escrita pode não corresponder ao que ele
sente, ou seja, a linguagem, em sua materialidade, produz
efeitos de sentido que não correspondem, necessariamente, à
“
”
Interpretando discursivamente essa estrofe, chega-se à
conclusão de que o sujeito só pode imaginar aquilo que é
dizível(Memória) e para isso precisa ter um recurso de muita
importância: a linguagem. Por meio dela o sujeito interage e
produz sentido. Mas afinal, o que é a linguagem? Pretendemos
dar algumas respostas para essa pergunta, considerando aquilo
que Hugo Achugar (2006) depreende em sua experiência como
professor de literatura, sobre o conhecimento verdadeiro e
u á : “ ó qu
“
u ”,
u-se
para mim impossível pensar que possa haver algum tipo de
u
u
qu
j
,
u f
”
(ACHUGAR, 2006, p.10).
Assim, salientamos que as
interpretações de linguagem, propostas neste artigo, não
correspondem a uma única e verdadeira compreensão do que
seja a linguagem; cabe a nós, portanto, filtrarmos acepções para
melhor dialogarmos com aquilo que Bakhtin (2006) entende por
palavra.
Principiamos essas abordagens de linguagem com o
posicionamento de Faraco e Moura (1998):
361
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Linguagem é todo o sistema organizado de
sinais que serve como meio de comunicação
entre os indivíduos. (...) Linguagem e
Sociedade relacionam-se intimamente: uma
não existe sem a outra. O desenvolvimento
humano e o avanço das civilizações
dependem principalmente da utilização da
linguagem. ( FARACO e MOURA, 1998,
15/16)
Conforme lemos em Faraco e Moura (1998), a
linguagem ocupa lugar de destaque na vida do sujeito, de tal
modo que os autores defendem que as civilizações evoluíram
devido ao uso da linguagem. Observamos também que os
autores enaltecem a dicotomia Linguagem/Sociedade. Para
complementarmos esse raciocínio, Santaella (1983) argumenta :
Sem a linguagem seria impossível a vida,
pelo menos como conceituamos agora: algo
que
se
reproduz,
que
tem
um
comportamento
esperado
e
certas
propensões. Nessa medida, não apenas a
vida é uma espécie de linguagem, mas todos
os sistemas e formas de linguagem tendem a
se comportar como sistemas vivos, ou seja,
eles se reproduzem, se readaptam, se
transformam e se regeneram como coisas
vivas. (SANTAELLA, 1983, p.10)
Assim como a língua é viva e passa por transformações,
a linguagem também assume a condição de vida e se reproduz
em diversas ciências, capazes de aspergir os mais variados
sentidos. Dessa forma, a linguagem manifesta-se como o
cimento que une os tijolos linguísticos – palavras- rumo à
362
ANAIS - 2013
construção do sentido, que é efetivado pelo sujeito/arquiteto. A
linguagem então acompanha o ritmo de evolução das palavras,
essas que estão ligadas às correntes da historicidade. E atrelada
à história, as palavras agregam novos significados em seus
significantes.
Podemos corroborar as concepções de linguagem de
Santaella(2009) e Faraco e Moura(1998), em que definem a
linguagem como uma ciência, que se (re)produz, transforma,
regenera, pois os regentes desse recurso – sujeitos- são seres
portadores da capacidade de evolução, através das três
concepções de língua, apresentadas na obra de Ingedore Koch
(2002) intitulada Desvendando os Segredos do texto, na qual a
autora apresenta a evolução da interpretação de língua. Se
linguagem e sociedade estão unidas, Leite e Callou (2002, p.07),
f
qu : “ É
é
gu g
qu u
c
comunica e retrata o conhecimento e o entendimento de si
ó
u
qu c c ”
Nesse sentido, a linguagem :
“( )
-se o instrumento mais eficiente
de ação e interação de que a sociedade
dispõe, pois é por meio dela que o homem
se constitui como sujeito, uma vez que ao
integrar-se a um meio social ele passa a agir
e interagir com os demais elementos de seu
discurso. (SANTOS, 2007, p.128)
Esse veículo social, que permite a comunicação, existe
por meio da língua; e para que ela ocorra são necessárias
palavras, as quais se tornam pontes que unem sentidos variados.
Sobre a palavra enquanto signo Bakhtin destaca:
O signo e a situação social estão
indissoluvelmente ligados. Ora todo signo é
363
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ideológico. Os sistemas semióticos servem
para exprimir a ideologia e são, portanto,
modelados por ela. A palavra é o signo
ideológico por excelência; ela registra as
menores variações das relações sociais, mas
isso não vale somente para os sistemas
óg c c
uí , já qu “
g
c
”, qu
x
corrente, é o cadinho onde se formam e se
renovam as ideologias constituídas. (
BAKHTIN, 2006,p.17)
uí
g ,
: “
palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros.
Se ela apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se
sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do
cu
cu ”
(B KHTIN, 2006,
115)
Depreendemos dessa forma que a palavra é o tijolo linguístico
formado por significados instituídos socialmente e que a
aglomeração de palavras constrói, pelo engendramento da
linguagem, o sentido daquilo que se aprecia, seja um texto,
imagem, exercícios da oralidade.É por meio do alicerçar de
tijolos linguísticos –manifestado pela interação- que o sujeito
edifica a interpretação de realidade.
Fundamentados nessas considerações, podemos observar
que a sociedade indígena, por meio da linguagem, elabora em
seu imaginário de existência a interpretação do que é real e
verdadeiro. pleiteiando uma estrutura provisória de identidade.
2.
A condição imaginária de existência traduzida pela
identidade
Sou índio sim e vou até falar de novo Guarani Kaiowá e
me orgulho do meu povo
364
ANAIS - 2013
( A vida que eu Levo, Brô Mc´s)
Observa-se que nesse trecho da letra da música A vida
que eu Levo, há
u c
: “
u í
”,
qu
compôs essa frase assumiu, em seu imaginário de existência, a
interpretação de que existe em um espaço físico e afirma para si
uma condição de identidade ao afirmar que é indígena e que
á f
u
K wá
f
çã “sou índio
”,
í u qu
c
u
traço da identidade iluminista proposta por Hall(2000), visto que
uj
c
çã f x
x ê c “ uí
”
Essa condição de identidade
corresponde à identidade
iluminista,que consiste em:
O sujeito do iluminismo estava baseado em
uma concepção da pessoa humana como um
indivíduo totalmente centrado, unificado,
dotado das concepções da razão, da
consciência e da ação, cujo centro consistia
um núcleo interior, que emergia pela
primeira vez, quando o sujeito nascia e com
ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo – contínuo ou
idêntico a ele- ao longo da existência do
indivíduo. (HALL, 2000,p.10)
Por meio dessa citação, podemos compreender que ao
sujeito pertencente à identidade do iluminismo, corresponde
aquele que apresenta a sua formação imaginária de existência
fixa, unificada e determinista. A compreensão dessa identidade
tornaí
gu
u c
:“
gu h
meu
”
f
çã
f z
u
qu
g
imaginário social o conceito de ser indígena como sinônimo de
365
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
vergonha. Tal pressuposição decorre da veemente afirmativa,
que produz o efeito de sentido de que o compositor enaltece a
satisfação de ser índio e de pertencer a uma comunidade porque
esse conceito não se encontra naturalizado, é preciso
discursivizá-lo, enfatizá-lo, dizê-lo.
A segunda concepção de identidade para HALL(2000) é
a sociológica, e, este modelo cristaliza-se quando.
o sujeito previamente vivido como tendo
uma identidade unificada e estável, está se
formando fragmentado. Composto não de
uma, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias ou não resolvidas.
(HALL, 2000,p.12)
É importante ressaltar que nesse segundo conceito, não
há mais uma identidade fixa, mas uma costura de várias
identidades. I
b
gu
f
:“ u é
f
u
K wá’ ,
f
c
qu há u
f g
çã
; “
”
u õ
que houve alguma interrupção ou redução de frequência de uso
das línguas indígenas e que isso cessará a partir do momento
que os enunciadores retornarem a falar essas línguas; essas
atitudes a nosso ver, demonstra uma costura de identidades,
entre o ser índio carregando em si as tradições da comunidade
entre elas a língua e o ser falante de língua portuguesa,
mesclando assim duas identidades. A terceira concepção de
identidade para Hall(2000) é a pós moderna, está em que ocorre
quando o sujeito assume conforme o contexto em que se situa,
varias identidades.
A identidade pós moderna é definida
historicamente, e não biologicamente. O
sujeito assume identidades diferentes em
366
ANAIS - 2013
diferentes momentos, identidades que não
são unificadas ao redo
u “ u” c
Dentro de nós há identidades contraditórias
empurrando em diferentes direções, de tal
modo que nossas identificações estão sendo
continuamente
deslocadas.
(HALL,2000,p.13)
Como podemos observar essa tipologia de identidade,
sustenta que o sujeito assume diferentes exemplos de identidade,
a partir do contexto em que encontra-se situado, e esses
f
,
ã
u “ u” c
P
qu
“ u c
”, c
onde a
interpretação que o indígena tem de si próprio. E conforme o
local onde está inserido ele assume uma identidade diferente.
Por exemplo, quando se adere o estilo musical rap, originário
dos Estados Unidos, o indivíduo está agregando para si as
práticas sociais da identidade norte americana e ao participar de
rituais religiosos pertencentes a etnia ideológica que ele adere, o
mesmo estará construindo em seu imaginário de existência uma
identidade indígena da etnia a que pertence. Em ambos os casos
citados há uma costura ( identidade sociológica) e uma
identidade pós moderna( instabilidade). Esse modelo de
identidade pós moderna, será aperfeiçoado no item 4 intitulado
Uma análise .
O papel da ideologia é fundamental para a elaboração da
formações discursivas do sujeito e torna-se relevante apresentar
o função da ideologia para a constituição do ser do sujeito:
Este é o trabalho da ideologia: produzir
evidências, colocando o homem na relação
imaginária com suas condições materiais de
existência. Podemos começar por dizer que
a ideologia faz parte ou melhor, é a condição
367
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
para a constituição do sujeito e dos sentidos.
O indivíduo é interpelado pela ideologia
para que se produza o Dizer. (ORLANDI
,2012,p.46)
Podemos depreender, através dessa citação que o
objetivo da ideologia é produzir no sujeito uma condição de
existência, para que por meio desse estado de existir, ele
produza uma interpretação. Descartes citado por Hall (2000),
f
: “P
, L g x ” , f
c
sujeito ao existir, e isso torna-se explici
ch ; “ u í
”
Como é sabido, o objeto de estudo desse artigo, são
enunciados da letras de musica A Vida que eu levo e essa
música é cantada por meio do gênero musical rap. Mas o que é
o rap? Como surge ? e as raízes desse gênero? Essas questões
serão explanadas no próximo tópico.
3.
O discurso manifestado pelo RAP
Antes de mergulharmos nas águas históricas do rap,
torna-se ser importante tecer algumas considerações sobre
discurso. É preciso ter em mente que não há discurso sem
sujeito e nem sujeito sem ideologia, pois a todo momento o
indivíduo está sendo interpelado pela ideologia. E é na
materialidade do discurso que se pode observar a relação entre
língua e ideologia. Ilustrando essa reflexão, lemos em
Orlandi(2012):
Podemos começar por dizer que a ideologia
faz parte, ou melhor, é a condição para a
constituição do sujeito e dos sentidos. O
indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia para que se produza o dizer.
368
ANAIS - 2013
Partindo da afirmação de que a ideologia e o
inconsciente são estruturas-funcionamentos,
M. Pêcheux diz que sua característica
comum é a de dissimular sua existência no
interior de seu próprio funcionamento,
uz
u
c
ê c
“
ubj
’,
- “ ubj
” ã
como afetam o sujeito, mas mais fortemente
como
nas quais constitui o sujeito.
(ORLANDI, 2012, p.46)
E qual a função da análise de discurso?
Na análise de discurso, procura-se
compreender a língua fazendo sentido,
enquanto trabalho simbólico, parte do
trabalho social geral, constitutivo do homem
e de sua história.(...) A Análise de Discurso
concebe a linguagem como mediação
necessária entre o homem e a realidade
natural e social. Essa mediação, que é o
Discurso, torna-se possível tanto a
permanência e a continuidade quanto o
deslocamento e a transformação do homem
e da realidade em que ele vive. ( ORLANDI,
2012,p.15)
Em outras palavras, a A.D. pretende analisar como o
texto significa, ou seja, produzir um conhecimento a partir do
própri
x ,
qu : “( )
x
ã é c
uí
sentenças, ele é realizado por sentenças, o que de certo modo
c
guí c (ORL NDI, 2012, 18)” E
quais são as sentenças que constroem o texto? São as ideologias;
369
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
então a música A Vida que eu Levo, é edificada por sentenças
ideológicas e que por sua vez materializam-se pelo rap.
No que tange ao discurso, podemos assegurar que o
indígena faz uso do rap para exteriorizar os sentidos
armazenados na formação discursiva. Dessa forma, as
construções linguísticas apresentadas nas letras das músicas
refletem traços de uma memória, materializados na escrita e
quando atingemos que leem ou ouvem, produzem os mais
variados sentidos. Se cada palavra é pertencente a um discurso,
Orlandi (2012) argumenta:
O Discurso se constitui em seu sentido
porque aquilo que o sujeito diz se inscreve
em uma formação discursiva e não em outra
para ter um sentido e não outro. Por aí
podemos perceber que as palavras não têm
um sentido nelas mesmas, elas derivam seus
sentidos das formações discursivas em que
se inserem. (ORLANDI, 2012,p.43)
Enunciar em uma letra de rap, sendo um sujeito
indígena, é analisar a memória discursiva e afirmar para si e
para os que duvidam da identidade indígena ao existência do
indivíduo enquanto ser social, pertencente a uma camada
ideológica, e enquanto indivíduo, individuado pela interpelação
social. Aideologia subjuga o sujeito de modo inconsciente.
Segundo o site Rap na veia3, no Mato Grosso do Sul há
apenas o grupo de rap Brô Mc´s. Analisemos um pouco da
história do rap, conforme afirma o site mencionado:
3
História do Rap. Disponível em: <http://www.rapnaveia.com.br/historiado-rap/ > Acesso em: 22 novembro 2012
370
ANAIS - 2013
Rap (em inglês conhecido como emceeing)
é um discurso rítmico com rimas e poesias,
que surgiu no final do século XX entre as
comunidades negras dos Estados Unidos. É
um dos cinco pilares fundamentais da
cultura hip hop, de modo que se chame
metonimicamente (e de forma imprecisa)
hip hop. Pode ser interpretado a capella bem
como com um som musical de fundo,
chamado beatbox. Os cantores de rap são
conhecidos como rappers ou MCs,
abreviatura para mestre de cerimônias. O
rap, comercializado nos EUA, desenvolveuse tanto por dentro como por fora da cultura
hip hop, e começou com as festas nas
ruas,nos anos 1970 por jamaicanos e outros.
( site: http://www.rapnaveia.com.br/historiado-rap/ )
Assim, como se pode constatar, o rap é um estilo musical
norte-americano, originário das comunidades negras, fundamentado
por rimas e poesias, sendo que essas poesias, representam, pelo olhar
discursivo que assumem, a ideologia daquele que a compõe. Segundo
o site mencionado, o rap é um estilo musical em que o texto é mais
importante que a melodia:
Rap é um estilo musical raro em que o texto
é mais importante que a linha melódica ou a
parte harmônica; sendo um dos dois únicos
estilos musicais da história da música
ocidental em que o texto é mais importante
que a música---o outro sendo o canto
gregoriano, em que a música era uma
monodia, homofônica, marcada pelo ritmo,
e a melodia religiosamente não podia nunca
sobressair o texto litúrgico. O rap não usa
371
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
melodias e motivos decorativos e
harmônicos com arranjos elaborados dos
instrumentos, mas vale-se somente em quão
rápido o cantor narra a sua "fala" com muito
pouca musicalidade adicionada a sua poesia.
Por meio dessas interpretações, veremos que o trecho
que será analisado apresentará mais importância do que o ritmo
da música, pois a mensagem é mais importante que a construção
textual. Nesse sentido, podemos afirmar que a análise do
discurso não visualiza apenas a compreensão da organização
estrutural e sim da voz daquele que escreve, ou seja, objetivos
do texto, os modos de significação. A quarta parte desse artigo
perscrutará algumas reflexões discursivas sobre o grupo de rap
indígena, tendo como objeto o título e um trecho de letra da
música A vida que eu levo.
4.
Uma análise
Principiamos essa análise pelo título do grupo de rap
indígenas. Brô Mc´s. O léxico Brô, pertencente à abreviatura da
Brother em inglês, corresponde ao traço da identidade norteamericana. Em meio a essa observação, o site rap nacional
questiona:
2
–
Por
que
Brô
MC`s?
(Bruno) Vem de irmão né?! Eu e ele (Clemerson e Bruno somos
irmãos), o Kelvin e o Charlie é irmão também, então é isso!
3 – Brô na língua guarani significa irmão?
(Kelvin) Não Brô é inglês, brother é irmão.
4 – E irmão em guarani seria como?
Se for mais velho é Xerykey, se for mais novo é xeryvy.
372
ANAIS - 2013
De acordo com Orlandi (2011), todo dizer relaciona-se
com o não dizer, pois as próprias palavras transpiram silêncio e
nesse silêncio há o sentido. Segundo essa autora primeiro veio o
silêncio, depois a linguagem e isso torna-se claro no seguinte
xc
: “ Qu
h
,
u h ó ,
c b u
silêncio como significação, criou a linguagem para retê-lo.
(ORL NDI, 2011, 27)”
gu
u
,
h
á
condenado a significar, pois ele está inserido no simbólico:
O homem está condenado a significar. Com
ou sem palavras, diante do mundo, há uma
ju çã à “
çã ”: u
f z
sentido (qualquer que ele seja). O homem
está irremediavelmente constituído pela sua
relação com o simbólico. (...) O silêncio não
fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor:
no silêncio, o sentido é. ( ORLANDI, 2011,
p.30/31)
Assim depreendemos que, ao escolhermos determinadas
palavras, apagamos outras palavras, esse modelo de
silenciamento é denominado por M. Pêcheux, citado por Orlandi
(2012), como esquecimento número dois, em que :
“( ) é
u c çã : f
,
o fazemos de uma maneira e não de outra, e,
ao longo de nosso dizer, formam-se famílias
parafrásticas que indicam que o dizer
u
f
“
”
í
z
“c
c g
u
“
” c (ORL NDI, 2012, p.35)
Então devemos pensar o silêncio não como falta e sim
como abundância. Retomando a entrevista, em meio à escolha
373
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
da palavra Brô, questionamos: Ao dizer Brô, é silenciado Irmão
e Xerykey; quais efeitos de sentido são produzidos através desse
silenciamento? Eis abaixo algumas conclusões dessa
observação:
I- Há deslocamento de identidade, o sujeito assume a
identidade nortec ,
gu
“B ô Mc´ ”;
II- a identidade do indígena é mesclada por várias
formações discursivas, dentre elas a norte-americana, e essa
influência ideológica é reproduzida no título do grupo de rap
indígena;
Em relação à primeira conclusão, afirmamos que o
sujeito está em contato com as mais diversas ideologias, visto
qu : “
g
ã
,
c c
ão se controla
c
b
(ORL NDI, 2012, 59)” ,
f
indígenas estão em contato com a língua portuguesa através da
música, da televisão, da internet... e desse contato com a língua
portuguesa também emerge o contato com a língua inglesa.
Interpelado pela ideologia da língua portuguesa, o indivíduo
interpela-se pela língua e pela cultura norte-americana.
Ao constituir um grupo musical de rap, o indígena está
se apropriando da cultura e da estética que modelo musical
oferta e, ao nomear Brô Mc´s, todas essas informações culturais
e estéticas materializam-se. Constatamos que há um
deslocamento de identidade, pois o sujeito esquece o modelo
determinista (primeira concepção de identidade – iluminista) e
assume um modelo de identidade distante geograficamente de
seu local enunciativo, promovendo assim uma instabilidade
identitária – terceira concepção.
Em relação ao segundo modelo da análise proposta,
interpreta-se que o sujeito apresenta muitas formações
cu
,
qu
: “( )
tas como
regionalizações do interdiscurso, configurações específicas dos
374
ANAIS - 2013
discursos em suas relações. O interdiscurso disponibiliza
dizeres, determinando pelo já dito, aquilo que constitui uma
formação discursiva em relação a outra. ( ORLANDI,
2012, 44)”, ssim, pode-se depreender que o título Brô Mc´s,
só pode ser apresentar-se como linguagem porque ele já foi dito
e assim materializado na memória daquele que lhe atribui
sentido.
Ilustremos mais uma mescla dessa identidade.
BRÔ MC´S
Sou índio sim e vou até falar de novo Guarani Kaiowá e me
orgulho do meu povo.
Observa-se nesse trecho da letra de música que o
indígena afirma a identidade à qual pertence e assume o
compromisso de falar outra vez a língua Guarani e Kaiowá, mas
ele silencia em sua fala a ação de falar termos da língua inglesacomo o léxico Brô-, pois, ao ampliar os sentidos da realidade
indígena por meio da música, o compositor também enaltece a
identidade norte- americana. O fato de o indígena fazer uso do
gênero musical rap constitui uma quebra da identidade
iluminista.
Conclusão
As reflexões apresentadas neste trabalho desenham a
condição identitária indígena, a qual não se encontra marcada
pela estabilidade e sim pela instabilidade. O índio situado na
375
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
pós- modernidade amplia o seu espaço de enunciação, visto que
o mesmo adere a novas ideologias, para exteriorizar a sua
interpretação da realidade. E é no espaço situado que ele tem a
liberdade para escrever, cantar, e expor ao mundo quem ele é e
de onde ele veio. Por meio das palavras, o índio interage com o
mundo e o mundo dialoga com ele, seja em língua portuguesa,
guarani ou kaiowá, a linguagem se faz presente. O índio fala de
um lugar, e desse local ele visualiza o ser índio. Façamos uso
das palavras do uruguaio Hugo Achugar, para demonstrar a
importância de falar do local onde se situa. De Achugar, lemos:
Se não tenho a liberdade de escrever o que
me dá vontade, não faz sentido escrever
também isso. Em algum lugar, preciso
defender a escrita como um espaço de
liberdade. Afinal, o território de onde falo
pode ser a vizinhança desterritorizada
daqueles que tentam produzir valor em um
mercado de artesanatos em algum lugar das
múltiplas margens do mundo. (ACHUGAR,
2006,p. )
E onde houver escrita e fala, há a manifestação da
linguagem; e onde esta se encontra emerge a ideologia, em meio
da qual observa-se o discurso regendo a linguagem. O território
de onde falam os indígenas é fundamental para as ciências da
linguagem, dentre elas a análise do discurso, pois a significação
do texto/rap reproduz um discurso de intolerância.
A identidade indígena que é amplamente visualizada nas
letras de músicas do grupo Brô Mc´s, seja ela: iluminista,
sociológica e pós-moderna, só pode ser estudada porque aquele
que escreveu manifestou as formações discursivas por meio da
linguagem. Entre o sujeito do iluminismo e o sujeito pós-
376
ANAIS - 2013
moderno há um indígena que reflete a realidade das aldeias e a
x õ
ú c ,
“( ) gu lugar das múltiplas
g
u
chug (2006)”
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artes, cultura e literatura. Tradução de Lyslei Nascimento.
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378
ANAIS - 2013
Clarice em cena: silêncio, traição e morte em A pecadora
queimada e os anjos harmoniosos
Wagner Corsino ENEDINO1
RESUMO: Ancorando nas contribuições de Pavis (2008), Ryngaert
(1996), Pallottini (1989) no que concerne ao discurso dramático, nos
estudos de Poe (1997) acerca do fazer poético, nos pressupostos de
Baudelaire (1997) sobre o conceito de belo e nas considerações de
Orlandi (2007) no tocante à significação do silêncio, este artigo tem
como escopo analisar a obra A pecadora queimada e os anjos
harmoniosos, de Clarice Lispector, única em gênero dramático que se
tem conhecimento da autora. Torna-se necessário salientar a presença
recorrente do diálogo entre a obra e as tragédias gregas, assim como a
crítica social inscrita no texto dramático clariceano. A protagonista
“ uh ”( ú
),
à
,
c
çã
presente na sociedade e a hipocrisia dos homens os quais pretendem
demarcar território e não são capazes de obedecer às sagradas leis;
fazendo com isto, recair o poder sobre as ações femininas.
PALAVRAS-CHAVE: Teatro brasileiro; silêncio; belo; Clarice
Lispector.
Introdução
A pecadora queimada e os anjos harmoniosos é a única
obra que se tem conhecimento, em gênero dramático, da
escritora Clarice Lispector. Publicado uma única vez na
coletânea de contos, crônicas e fragmentos intitulada A legião
estrangeira, em 1964, o texto ficou em certo obscurecimento,
uma vez que o lançamento da coletânea foi abafado por conta da
grande repercussão de A paixão segundo G.H, o qual foi
1
Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS
– [email protected].
379
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
publicado no mesmo ano. Destaca-se que a obra A legião
estrangeira era dividida em duas partes: a primeira era
composta por uma série de contos; a segunda, batizada pela
u
c
“Fu
g
”, z
gu
cô c ,
soltas e escritos diversos. E era ex
“Fu
g
” qu
c
gé A pecadora queimada.
É
c
qu
uçã
“Fu
g
”,
u
qu
qu ã h
qu
x “
c
qu
”g h
ç
á , is fora
escrito, segundo ela, por diversão enquanto esperava o
c
P
, u
f h P
u
, “O
verdadeiro título desta tragédia em um ato seria para mim
‘
’,
h h
”
(LISPECTOR, 2005, p. 56).
Quando estava na Suíça, em 1948, aguardando o
nascimento de seu primogênito, Clarice descreve ao amigo e
c
F
b
qu “E
,
g , é u
coisa horrível. Mas tive tanta vontade de fazer que fiz contra
[ ]” (LI PE TOR, 2005, p. 55). Ocorre, todavia, que
c
c
c qu : “E u
que você não pode imaginar: comecei a fazer uma cena [...],
uma cena antiga, tipo tragédia Idade Média, com coro,
c
,
,
,
” (LI PE TOR, 2005, p. 55).
No tocante à contribuição cultural da escritora no
compêndio literário nacional, não é forçoso trazer à baila o
pensamento do estudioso Edgar Cézar Nolasco. Para ele:
Não é preciso ser clariceano, basta gostar
da literatura brasileira, ou simplesmente de
literatura, para entender que a intelectual
Clarice Lispector escavou um lugar abissal
na tradição literária brasileira, relegando
aos pósteros uma herança inegável. Se
380
ANAIS - 2013
espectro não for assexuado, diríamos que o
fato de Clarice ser mulher contribuiu para
que a marca de tal herança se inscrevesse
na história de nossa cultura intelectual,
posto que na outra ponta tínhamos ninguém
menos que um Machado de Assis.
(NOLASCO, 2007, p. 10-11).
De acordo com Bosi (1994), Clarice Lispector insere-se
na geração de 45, com o chamado romance introspectivo. Para o
crítico literário
Clarice Lispector se manteria fiel as suas
primeiras conquistas formais. O uso
intensivo da metáfora insólita, a entrega ao
fluxo da consciência, a ruptura como enredo
factual têm sido constantes do seu estilo de
narrar que na sua manifesta heterodoxia,
lembra o modelo batizado por Umberto Eco
“
” (BO I, 1994, 434)
O texto teatral A pecadora queimada foi escrito com
base no contexto da Idade Média, quando mulheres adúlteras
eram queimadas perante a população, num ritual que refletia
u
f
u f c çã
c
N
gé , “[ ]
mulher-pecadora mantém-se silenciosa durante sua condenação
[ ]” ( OME , 2007, 52)
A fábula é aparentemente simples e o leitmotiv gira em
torno de uma relação adúltera. O amante não sabia que sua
c
c
,
, u
“
í ” f
- ,
g
“ c
” E
contraponto, há o esposo traído, que, ironicamente, pensava que
vivia feliz, que sua mulher vivia por ele. Munido de um amor
grandioso, sofre pelo fato de saber que ficará sem a esposa e
381
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ainda deseja tê-la novamente em seus braços. Quer vingar-se,
todavia também deseja possuí-la, o que gera um conflito
interior.
O povo clama por justiça, pois pretendem ver a mulher
sendo destinada à fogueira, para purificação dos pecados. Nesse
g
,
u çã
j “c
c
”
b
,g
qu ê f
,
, f
é “ju ç ”
“ u f c çã ” I
c
qu
u
é
direcionada para toda a sociedade feminina, ou seja, servirá de
exemplo para que nenhuma outra mulher possa ser
“c
”
c
g
f ,
sacerdote precisa cumprir o que preconiza as leis patriarcais,
porém sua matéria carnal masculina não deseja a morte da
mulher pecadora.
O enredo ganha dimensão poética quando os anjos
invisíveis irão nascer à medida que a pecadora for queimada;
pois estes revelam ao leitor/espectador como é estar no caminho
entre dois lugares (no entre-lugar), nem na terra, nem tampouco
no céu. Já os guardas são lutadores pela pátria e obediência ao
rei, porém esclarecem que velam pelo destino de um coração.
Quanto à mulher, demonstra felicidade por saber que
será queimada, pois desfrutou dos seus desejos, e a morte é a
f c
qu
á“ u fc ”
f g N ú
cena, a mulher é queimada e os anjos nascem e felicitam a vida
na terra.
1. Teatro, tragédia e religião
De origem g g , “ theatron [teatro] revela uma
propriedade esquecida, porém fundamental dessa arte: é o local
de onde o público olha uma ação que lhe é apresentada num
u
ug ” (P VI , 2008, 372)
382
ANAIS - 2013
Ainda esclarece Pavis que há outra definição de teatro:
[...] é um ponto de vista sobre um
acontecimento um olhar, um ângulo de visão
e raios ópticos que o constituem. Tão
somente pelo deslocamento da relação entre
olhar e objeto olhado é que ocorre a
construção onde tem que lugar a
representação (PAVIS, 2008, p.372).
Como nosso objeto em si é o texto dramático, devemos
enfocar a definição de teatro articulada por Pascolati (2009, p.
93):
Tem origem no grego theatron que significa
miradouro lugar de onde se vê ou se observa
algo, por isso o termo está associado à arte
da representação cênica, indicando também
o local onde a representação acontece, visão
e observação implicam a ideia de público,
plateia assistência [...] Deste modo, o termo
teatro é associado à dimensão espetacular do
fenômeno teatral [...] Já a palavra drama, em
grego significa ação, remetendo à existência
de uma tensão de um conflito entre as
vontades das personagens e uma
consequente dinâmica de causa e efeito entre
suas ações, de uma tensão, de um conflito
entre as vontades das personagens e uma
consequente dinâmica de causa e efeito entre
suas ações.
Na tragédia A pecadora queimada, o conflito a que
remete Pascolati (2009) surge constantemente: estão em tensão
383
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
“
g ” “u
c
qu
â c
causa e efeito entre u
çõ ”
P
b
qu
ã ug
“
”
homens ao mesmo tempo em plena na Idade Média, e, como
toda causa tem um efeito, a mulher adúltera é condenada pela
sociedade, deslocando“h ó
”
ug
do trágico.
D
, cu
f
qu
cábu “ ág c ”
exibe três classificações principais: tragédia doméstica, tragédia
heroica e tragédia política. Com efeito, Pavis (1999) define a
tragédia domestica como nome do gênero empregado no século
XVIII por Diderot, para designar o drama burguês. Já a tragédia
heroica trata-se de uma imitação da tragédia clássica francesa,
dentro de um estilo elevado e patético, com uma temática
romanesca e idealista. Por fim, define a tragédia política como
tragédia que retoma elementos históricos autênticos.
De acordo com Pascolati (2009) os gêneros literários não
são puros nem estagnados, na maioria das vezes exercendo
funções como classificações didáticas. Partindo pelos princípios
da Poética, de Aristóteles, afirma que a tragédia é a espécie de
poesia merecedora de maior atenção por parte do teórico, e que
o drama caracteriza-se pelo modo de imitação, assim, é possível
compreendermos que:
A tragédia é a representação de uma ação
elevada, de alguma extensão e completa, em
linguagem adornada, distribuídos os adornos
por todas as partes, com atores atuando e
não narrando; e que, despertando a piedade
e temor, tem por resultado a catarse dessas
emoções (ARISTÓTELES, 1999, p.43).
384
ANAIS - 2013
Pavis (1999) discorre sobre alguns elementos
fundamentais que caracterizam a obra trágica, destacando as
purgações das paixões pela produção do terror e da piedade, o
ato do herói que põe em movimento o processo que conduzirá a
perda, o orgulho e teimosia do herói que persevera apesar das
advertências e recusa esquivar-se, e o sofrimento por parte do
herói que é exposto ao publico.
Clarice Lispector utilizou a imitação de uma ação com
uma linguagem diferenciada, o silêncio da personagem que se
expressa apenas por gestos, fazendo surgir no leitor à emoção, a
catarse, provocada pela ação de uma mulher pecadora adúltera
c
à
É
b
qu
“ c
” ã
apresenta nenhuma marcação de voz no texto, ou seja, o silêncio
é a sua única significação. Diante destes fatores, destaca-se que
o trágico está vinculado ao:
[...] fenômeno teatral da Grécia [...] se
prende à circunstância de que os espetáculos
eram a culminação das homenagens
prestadas a Dionísio. Nascido do culto a
essa divindade, o teatro consistia no
programa de festas a ela dedicadas. O
sacerdote
de
Dionísio
presidia
a
representação e um crime cometido no
decurso dela era considerado sacrilégio. Está
implícito aí um compromisso religioso
anterior, em parte estranho ao teatro. Na
tragédia, sentindo o terror e a piedade, como
o castigo divino infligido ao herói, o público
se purgava dos seus males. A catarse não
trazia apenas prazer estético: vinculava-se a
ela conhecimento filosófico, moral e
religioso cumulando de sabedoria o
espectador. Não obstante a laicização
385
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
progressiva, o teatro grego sempre guardou
o caráter religioso de sua origem.
(MAGALDI, 1998, p. 74).
Observamos que, nos espetáculos em homenagem a
Dionísio, insere-se a tragédia: um crime cometido só poderia ser
expurgado por intermédio da morte, um costume moral e
religioso, assim como ocorre no texto teatral em estudo. A
mulher pecadora cometeu adultério, de modo que sua
purificação ou a expurgação de seus pecados só seria possível
“
”,
u
gé ,
qu
u
sat f çã c á c
E
u
, “
” é
observada como elemento necessário para a finalização do
conflito.
Assim, envolta num universo repleto de alegorias
factuais, a escrita de A pecadora queimada surge como um
fantasma que desfia o entendimento absoluto, bem como
qualquer linearidade discursiva e metodológica preconizada
c
çõ
ch
“ ç b -f ” N qu
g
ao espaço diegético, podemos inferir que
[...] sua escrita pode ser tomada como um
grande fantasma (aliás, fantasmática por
excelência) desafiador, tanto quanto sua
própria vida diaspórica, clandestina e
nômade [...]. Sua escrita é desafiadora para
a autora e para seu leitor em vários
sentidos. Enquanto escrita fantasmática, ela
trai a escritora naquilo onde ela mais
procura denegar, fazendo com que uma
imagem espectral da autora se esboce num
desenho, ou traço sutil na escritura
(NOLASCO, 2007, p. 11).
386
ANAIS - 2013
Importa considerar que Lispector evoca o episódio
bíblico do Novo Testamento - em que Cristo perdoa e a morte
da mulher era por apedrejamento2 – e o põe em confronto com
as práticas da Igreja na Idade Média – sem perdão e morte na
fogueira. Ao inscrever, no século XX, a história da mulher
adúltera, evoca, por outro lado, uma questão bem em voga à
época da escritura da obra: as discussões de gênero.
Segundo Louro (2008), o gênero está relacionado ao
campo social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as
relações (desiguais) entre homens e mulheres. Ainda esclarece a
autora que não devemos buscar explicações nas diferenças
biológicas, mas sim na história, na sociedade e nas formas de
representação. Com efeito, na tragédia claricena, notamos a
c
çã
uh , ú c u
“ c ”
Nesse contexto, ainda ressalta Louro (2008, p. 23) que
“
c c çõ
gê
f
ã
sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma
dada sociedade, ao se considerarem os diversos grupos (étnicos,
g
, c , c
) qu c
u ”
2. Personagem e silêncio: modos de significação
De acordo com Jean Pierre Ryngaert (1996, p. 126),
“
é
ác ,
h
,
ã
personagem esboçada pelo autor dramático. O ator é somente
um interprete que não se confunde com a ficção e que o público
2
E os escribas e fariseus trouxeram – lhe uma mulher apanhada em adultério.
E pondo-a no meio, disseram-lhe; Mestre, esta mulher foi apanhada, no
próprio ato, adulterando, e na lei, nos mandou Moisés que as tais sejam
apedrejadas.(JOÃO, 8:3-5).
387
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
não assimila imediatamente a uma encarnação da personagem
xu ”
Na peça, a personagem que Clarice Lispector esboçou
configura a pecadora, uma vez que o ator é apenas o intérprete
da personagem textual, mas quando observamos a ação da
personagem da mulher (pecadora) fica evidente a presença do
ator inserido na personagem.
Importa mencionar que a personagem teatral, no instante
qu
g
úb c , “
çã
A história não nos é contada, mas mostrada como se fosse de
f
ó
” (PR DO, 2009, 85)
Também é relevante destacar que a personagem deverá
“ b c
” (P LLOTTINI, 1989,
69)
texto dramático. Além disso, cumpre destacar que a tragédia
clariceana apr
“[ ]
ê c
f g
á , à
exploração de uma linguagem que aproxima o texto das novas
é c
[ ]” ( OME , 2007, 56) E A pecadora
queimada, a mulher pecadora atua (mostra-se) por meio do
ê c , qu
b
ã
j “
b
á ”, “ ã é
o vazio, mesmo do ponto de vista da percepção: nós sentimos,
á á’” (ORL NDI, 2007, 45), “ c
f
” (ORL NDI, 2007, 32),
, “qu
silêncio, nós não temos marcas formais, m
,
ç ”
(ORLANDI, 2007, p. 46).
Para Anne Ubersfeld (2005), o texto de teatro é
necessariamente composto por duas partes distintas, porém
indissociáveis: o diálogo e as didascálias (grifo nosso).
Segundo a autora, a relação textual diálogo-didascálias é
variável de acordo com as épocas da história do teatro. Em
alguns textos, por opção dos próprios autores, as didascálias são
quase inexistentes ou muito escassas, porém representam um
importante elemento do teatro, especialmente o contemporâneo.
388
ANAIS - 2013
Nesse segmento, o silêncio e a palavra estão em relação
de contraponto nas ações que se desencadeiam em A pecadora
queimada. Com poucas didascálias e raras referências ao
cenário e, por extensão, à indumentária das personagens, a peça
inova: a cenografia ocupa papel secundário, ao passo que a ação
física e verbal das personagens ocupa papel de destaque.
Conforme afirma Rosenfeld (2009), no teatro, é a personagem
que, absorvendo as palavras do texto, passa a ser a fonte delas,
aproximando-se do real.
Assim,
“fu
c
ó
ácu ”,
h
e contemplar, por meio dela, a plenitude de sua condição; no
caso, a de subalternidade.
Traçando o elo entre opressor (sociedade patriarcal) e
( “ c
”),
ilenciamento inscrito na peça, ao
contrário do que pressupõe a própria semântica do da palavra,
ã é uê c ,
g f c çã “
gu g
c
silêncio [...] é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o
nada, não é vazio sem história. É o silêncio
g fc
” (ORL NDI, 2007, 23)
Os traços marcados no texto são o riso da pecadora e o
próprio silêncio que incomoda a sociedade à qual pertence,
produzindo efeito de estranhamento no texto em estudo.
Estranhamento que, segundo Baudelaire (apud GOMES, 1997,
51),
c
z
“ qu qu é
, u á
do desprezo do homem e pela imensa variedade que o Universo
f c ”
T bé é c á
c
qu “b
ó
admitido como tal se contiver em si algo de relativo, de
c cu
c ” ( OME , 1997, 56)
g
c u -se
nesse perfil circunstancial, pois, à época, seria um agravo à
c
u
“ u é ”,
qu
u
389
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
circunstancial foi o silêncio e apenas o riso, que demonstra uma
crítica à sociedade e uma atitude revolucionária para a época.
POVO – Está sorrindo, está sorrindo e está
sorrindo.
ESPOSO – E seus olhos brilham úmidos
como numa glória [...].
MULHER DO POVO – Afinal que sucede
que esta mulher a ser queimada já se torna a
sua própria história?
POVO – A que sorri esta mulher?
1º E 2º GUARDA – Ao pecado
(LISPECTOR, 2005, p. 65).
De acordo com Baudelaire (apud GOMES, 1997, p. 66),
“ c
çã ,
quê c ,
c
,
é
qual o homem entra em c
c c
fu
”
Como se verifica no exemplo acima, o texto sugere que a
mulher pecadora, quando julgada, entra em devaneio3.
Em se tratando do riso da mulher (pecadora), pode-se
compreendê-lo ou interpretá-lo na esteira de Baudelaire (apud
OME , 1997,
82): “O
é
x
ã
superioridade, não mais do homem sobre o homem, mas do
h
b
u z ”
u
c
c
bu
ocasionar um efeito de dissonância, tornando-se até mesmo
bz
E
bz
,
ju çã “c
ág c ,
ã
agradável ao espírito como as dissonâncias o são as pessoas
[ ]” ( OME , 1997, 82)
Importa evocar as palavras de Edgar Alan Poe (apud
MENDES, 1997, p. 913):
3
A faculdade do devaneio é uma faculdade divina e misteriosa; porque é pelo
sonho que o homem comunica com o mundo tenebroso que o envolve
(GOMES, 1997, p.66).
390
ANAIS - 2013
O prazer que seja ao mesmo tempo o mais
intenso, o mais enlevante e o mais puro é,
creio eu, encontrado na contemplação do
belo. Quando, de fato, os homens falam de
beleza querem exprimir, precisamente, não
uma qualidade, como se supõe, mas se
supõe, mas um efeito, referem-se em suma,
precisamente àquela intensa e pura elevação
da alma.
No texto dramático A pecadora queimada, a presença do
prazer surge na pecadora e ocorre a contemplação do belo no
momento em que há elevação de sua alma, um sair de si e
u
“ u
”,
c h c ,
,
imaginação, e essa contemplação as personagens percebem na
face da mulher com o sorriso denotando prazer.
Clarice Lispector, por meio dessa obra, vem desmitificar
a atitude machista da sociedade em que estava inserida, pois
esse texto foi escrito em um momento de pós-guerra e publicado
à época da ditadura militar, quando o Estado e a Igreja detinham
o poder e o discurso machista prevalecia. A mulher não tinha
voz, e a partir do texto observamos a ousadia clariceana em uma
peça cujos personagens são do espaço religioso. Existe o prazer
também com as personagens (povo), cujas falas trazem traços
marcantes:
POVO – Há dias temos fome e aqui estamos
a buscar alimento
POVO – É aquela que na verdade a ninguém
se deu, e agora é toda nossa.[...]
ANJOS INVISÍVEIS – mesmo aquém da
orla do mundo nós mal entendemos quanto
mais vós, os famintos, e vós, os saciados.
391
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Que vos baste a sentença geradora: o que
tem de ser feito será feito, este é o único
princípio perfeito.[...].
POVO – Não compreendemos, temos fome
e temos fome [...].
POVO – Que bela cor de trigo tem a carne
queimada [...] temos fome de carne assada.
(LISPECTOR, 2005, p. 62-63).
O povo (personagem) apresenta no texto uma fome,
contudo a metáfora está permeada nesse trecho, em que o prazer
pela morte da pecadora consiste em um ato (imaginário) de
purificação na sociedade. O canibalismo de comer carne assada,
por sua vez, é uma metáfora que fortalece a criatividade do
x :
h
“c
”
, u j ,
minoria (neste tópico a mulher em pecado), portanto a pecadora
(minoria) sendo devorada pela maioria.
Por intermédio do prazer interno da personagem, há uma
cóg :
c
f “
”
, u
uh
rompeu os obstáculos de uma sociedade com pudores, que
castiga apenas as mulheres.
Lispector traz, para as cenas, no texto, aspectos das
relações de poder versus não poder (grifo nosso) travadas entre
homem e mulher:
[...] a condição da mulher na Era Vitoriana
(1832-1901) foi tenazmente marcada por
diversos
tipos
de
discriminações,
justificadas como o argumento da suposta
inferioridade intelectual das mulheres, cujo
cérebro pesaria 2 libras e 11 onças, contra 3
libras e meia do cérebro masculino. Resulta
disso que a mulher que tentasse usar seu
intelecto, ao invés de explorar sua
392
ANAIS - 2013
delicadeza,
compreensão,
submissão,
afeição ao lar, inocência e ausência de
ambição, estaria violando a ordem natural
das coisas, bem como a tradição religiosa.
(ZOLIN, 2009, p.220).
Na Idade Média, a voz feminina não se fazia ouvir; era
reprimida pela tradição. Na década de 1960, um novo olhar seria
lançado para a voz feminina na literatura e outras áreas.
3. Da alegoria à cena: os anjos harmoniosos
O que poderia ser a harmonia nesse contexto clariceano?
gu
c á H u , “h
” é “[...] combinação
de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma
relação de pertinência, que produz uma sensação agradável e de
prazer [...], coordenação dos componentes imateriais do
universo, as mônadas, que, despeito de sua autonomia
característica foram disposta de maneira complementar a
g
D u
íc
[ ]” (HOU I , 2001,
p.1.506).
Dessa perspectiva, consideramos que esses anjos
harmoniosos seriam imateriais do universo, uma integração de
Deus, representando um estado de ligação entre céu e a terra,
uma combinação de elementos diferentes, ligados em uma
relação de sensação agradável como podemos observar neste
trecho:
ANJOS INVISÍVEIS – Eis-nos aqui quase,
vindos pelo longo caminho que existe antes
de vós. Mas não estamos cansados, tal
estrada não exige força, e, se vigor
reclamasse, nem o de vossa prece nos
393
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ergueria. Só uma vertigem é o que faz
rodopiar aos gritos com as folhas até a
abertura de um nascimento. Basta uma
vertigem que sabemos?[...] Não estamos
cansados, nossos pés jamais foram lavados
Grasnando a esta próxima diversão, viemos
sofrer o que tem que sofrer o que tem que
ser sofrido, nós que ainda não fomos
tocados, nós que ainda não somos o menino
e menina. Eis-nos nas malhas da tragédia
verdadeira, da qual extrairemos a nossa
forma primeira. Quando abrirmos os olhos
para sermos os nascidos, de nada
lembraremos: crianças balbuciantes seremos
e vossas mesmas armas empunharemos.
Cegos no caminho que antecede passos,
cegos prosseguiremos quando de olhos já
vendo nascermos. Também ignoramos a que
viemos. Basta-nos a convicção de que aquilo
a ser feito será feito: queda de anjo é
direção, Nosso verdadeiro começo é anterior
ao visível começo e nosso verdadeiro fim
será posterior ao fim visível. A harmonia, a
terrível harmonia, é nosso único destino
prévio (LISPECTOR, 2005, p.57).
Observamos que os anjos são crianças que ainda não
nasceram e, no instante em que nascerem, não lembrarão a
tragédia presenciada por eles enquanto são anjos. Por isto são
harmoniosos: estão ainda em um local em que não há
sentimento de dores, apenas prazer, contudo, ao nascerem,
f ã qu “
c
” f
4. Entre o amor e o ódio: em cena, o Esposo
394
ANAIS - 2013
Ao nos referirmos ao esposo no texto, notamos a
presença de amor, ódio e vingança, todavia o que fica evidente é
o amor, pois a vingança é concedida pelo julgamento das
pessoas que pertencem àquela região. Aparentemente, o esposo
mostra um amor que pode superar o adultério, contudo o pudor
não lhe permite tal façanha. Embora ame a esposa, quer
assassiná-la, vingar-se da traição, no mesmo instante deseja tê-la
em seus braços. Vejamos alguns fragmentos do texto:
Ei-la, a que será queimada pela minha
cólera. Quem falou através de mim que me
deu tal fatal poder? Fui eu aquele que
incitou a palavra do sacerdote e juntou a
tropa deste povo e despertou a lança dos
guardas, e deu a este pátio tal ar de glória
que abate os seus muros. Ah, esposa ainda
amada, desta invasão eu queria estar livre.
Sonhava estar só contigo e recordar-te nossa
alegria passada.[...] Que sucede a este meu
coração que não reconhece mais o filho vê
sua Vingança? Ah, remorso: eu deveria ter
vibrado o punhal com minha própria mão e
saberia então que, se fora eu o traído era eu
mesmo o vingado. Mas esta cena não é mais
de meu mundo, e esta mulher, que recebi na
modéstia, eu perco ao som das trombetas.
Deixai-me só com a pecadora. Quero
recuperar meu antigo amor, e depois
encher-me de ódio, e depois eu mesmo
assassiná-la, e depois adorá-la de novo, e
depois jamais esquecê-la, deixai-me só com
a pecadora, quero possuir a minha desgraça
e minha vingança e a minha perda, e vós
395
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
todos impedis que seja o senhor deste
incêndio, deixai-me só com a pecadora.
(grifo nosso) (LISPECTOR, 2005, p.60).
E ainda devemos ressaltar que o sentimento de ser
incendiado não foi da pecadora, mas sim do esposo, e ele não se
sente vitorioso com a morte da esposa; somente o povo, o
sacerdote e os guardas:
ESPOSO – Ira impotente: ei-la sorrindo, de
mim ainda mais ausente do que quando era
de um outro. Por que ouve-me este povo tão
mais do que minhas palavras queriam ser
ouvidas? Ah mecanismo cruel que O
incitamento ao incêndio foi meu, mas não
será minha vitória: esta pertence agora ao
povo, ao Sacerdote, aos guardas. Pois vós
infelizes, esconder não podeis que é de meu
infortúnio
que
enfim
vivereis.
(LISPECTOR, 2005, p.64-65).
A beleza poética sucede por meio da morte da mulher
amada, como cita Poe (apud MENDES, 1997, p. 915) em seu
ensaio Filosofia da composição:
De todos os temas melancólicos, qual
segundo a compreensão universal da
hu
, é
có c ? ”
Morte – f
” E qu
–
insisti esse mais melancólico dos temas se
torna o mais poético? Pelo que já explanei,
um tanto prolongamente, a resposta também
aí era evidente: Quando ele se alia mais de
perto à Beleza; a Morte, pois de uma bela
396
ANAIS - 2013
mulher é, inquestionavelmente, o mais capaz
de desenvolver tal tema é a de um amante
despojado de seu amor.
B z
c
èc
à
“[ ]
aspecto de g
, c u
g , qu
[ ]”
(HOUAISS, 2001, p. 2499), a que se agraga
ç h “[ ]
substância venenosa, malícia [...] (HOUAISS, 2001, p. 2161).
Inscreve-se, aqui, a imagem da beleza tentadora: como uma
serpente que domina sua presa, assim a pecadora, com sua
beleza insinuante, envolve não só o esposo, mas também o
amante. Importa salientar que a peçonha, uma característica
atribuída à mulher, também evoca a história de Adão, Eva e a
serpente, com um tom de criatividade e Beleza: a peçonha da
ê c é “
f
” à
uh ,
u
,
metonimicamente, a relação mulher-pecado versus homemí
E “
á
c
é
”, c f
x
bíblico, esta vem para destruir o veneno da serpente,
completando o belo. Destaca-se que para Baudelaire, o belo
u
“c
çã u ”,
f
u “
,
á ”
“
, c cu
c ”, u
seja, na era moderna, já não mais se admite o belo absoluto, à
medida que ele não refletiria a multiplicidade da
época.(GOMES, 1997, p. 55-56).
“E PO O – Mas na transparência de um brilhante ela já
perscrutava a vida de uma amante. Quem vos diz é quem
experimentou a peçonha: acautelai-vos de uma mulher que
h ” (LI PE TOR, 2005, 62) (grifo nosso).
O esposo ferido caracteriza a esposa como peçonhenta,
capaz de envenenar (com amor) os homens.
“POVO – Marcada pela Salamandra” (LI PE TOR,
2005, p. 66) (grifo nosso).
397
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Em se tratando da Salamandra, também é um anfíbio
perigoso cuja principal característica é camuflar-se: conforme o
lugar, sua cor é diferente, confundindo ou enganando sua presa.
Uma espécie de duas personalidades, representando a histórica
equivocidade do feminino marcada nos discursos do senso
comum. Bela imagem, se pensarmos, por exemplo, na
c c çã
“b z ”, u
“B ” f
P (cf
MENDES, 1997, p. 914).
5. Na cena textual, o Amante
O amante sentiu-se também traído pela pecadora porque
não tinha conhecimento de que fazia parte de um triângulo
amoroso. A partir do momento e que descobre, inicia-se a dor
em seu íntimo e sente-se como um esposo traído:
AMANTE – Pois esta mulher nos meus
braços a seu esposo enganava, nos braços do
esposo enganava aquele que o enganava.[...]
AMANTE – Mas eu não rio e por um
momento não sofro. Abro os olhos até agora
fechados pela jactância,e vos pergunto
quem? Quem é esta estrangeira, que é esta
solitária a quem não bastou um coração.[...]
AMANTE – Pois na sua límpida alegria ela
me vinha tão singular que jamais eu a
suporia vida de um lar.[...]
AMANTE – É aquela irrevelada que só a
dor aos meus olhos revelou. Pela primeira
vez, amo, e não à minha paz.[...]
(LISPECTOR, 2005, p.61-62).
398
ANAIS - 2013
Mediante um amor proibido, o amante não demonstra
arrependimento de amar a pecadora; se pudesse, ele a amaria
novamente, sem se importar com os riscos que corria.
Observamos o trecho em negrito abaixo:
AMANTE – Que veio fazer esta gente?
Sozinha comigo, ela amaria de novo, de
novo pecaria, arrepender-se –ia de novo – e
assim num só instante o Amor de novo se
realizaria, aquele em que em si próprio traz
o seu punhal e fim Eu te lembraria dos
recados ao cair da noite...O cavalo
impaciente aguarda, a lanterna no pátio... E
depois... ah terra, teus campos ao amanhecer
, certa janela que já começava no escuro a
madrugar . É o vinho que de alegria eu
depois bebia, até com lágrimas de bêbado
me turvar.(ah então é verdade que mesmo na
felicidade eu já procurava nas lágrimas o
gosto prévio da desgraça experimentar).
(grifo nosso). (LISPECTOR, 2005, p. 6364).
Finalmente o amante conclui que também não vivia, mas
era a pecadora quem vivia nele: foi vivido. Os homens não são,
em sociedades patriarcais ou machistas, castigados. Com isso, o
amante não é queimado; apenas a mulher; é isento do ato do
u é ,
c
gu
c
“
qu
não sou queimado. Estou sob o signo do mesmo fado, mas,
h
gé
ã
áj
” (LI PE TOR, 2005, 66)
Considerações finais
399
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
O cumprimento dos objetivos propostos para este artigo
contribui para compreensão da relação e da pertinência da
tensão, pois segundo Staiger (1975), há duas formas de
expressão do estilo dramático: o pathos (sofrimento, emoção,
circunstâncias que provocam piedade ou tristeza) e o estilo
problemático, ambas organizadas em torno da tensão que ocorre
no texto.
Nesse segmento, a tensão dramática está centralizada na
mulher pecadora, que, por meio do silêncio, acaba por aceitar
(ou desafiar) o tratamento de desigualdade entre homens e
uh
, “ c
”, c
é c
x
teatral, é uma mulher que prefere morrer a ser submissa às leis
que circundam seu meio social.
Com a diminuição do espaço e do tempo diegético em
relação ao leitor/espectador, a Clarice Lispector rompe com
“[ ]
êncio, escreve na tentativa de captar o instante-já [ ]”
(GOMES, 2007, p. 53). Dessa forma, pelo silêncio e pelo riso, a
mulher pecadora ao mesmo tempo aceita a punição e zomba da
sociedade, já que o riso (também) era proibido e passível de
punição na Idade Média.
A mulher pecadora surge como uma alegoria utilizada
pela autora, que bebe na fonte Bíblia, na lei de Moisés (antigo
testamento), e, por intermédio do seu talento individual (para se
fazer menção às palavras de T.S. Elliot), traz à tona, para a
sociedade da época em que se pronuncia, uma reflexão sobre a
submissão da mulher ao homem, à Igreja às convenções sociais.
D
f
, “
çã , c
ç ,
ã
u
tendência criadora, mas também sua tendência crítica de pensar;
e está também mais alheia às falhas e limitações de seus hábitos
cí c
qu à
u gê
c
” (ELLIOT, 1989, 37)
Com efeito, devemos considerar que é na crítica velada e
“ ê c
c
u
”
( ão) dizer da escritora que se
400
ANAIS - 2013
insinua uma proposta para que as mulheres aproveitem a
reflexão e reajam.
Enfim, não é forçoso ponderar que o texto dramático de
Lispector é uma fonte artística inesgotável, que, a partir de
outras leituras, poderá ser explorada por distintas perspectivas
de análise.
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403
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Confissões na poesia de Arlinda Pessoa Morbeck
Lucimeire Batista CAMACHO1
Mário Cézar Silva LEITE2
RESUMO: Este trabalho abordará uma discussão sobre o texto
autobiográfico e a poesia, apresentando traços da escrita confessional
presentes nas poesias da escritora Arlinda Pessoa Morbeck que utiliza
‘ u í c ’
f
é
critora mostra os
fatos de sua vida cotidiana para desabafar o que sente, o que sentiu, o
que pensa e estabeleceu, assim, com um pacto de confidencias. Ao
retratar, fazer um recorte da sua vida, o escritor torna-a ficcional, ao
retornar as memórias para escrever sua autobiografia cria novas
imagens, sensações, sentimentos, recordações. As poesias de Arlinda
Pessoa Morbeck apresentam características da autobiografia: autora e
personagem da própria história que por meio da memória escreve sua
“b g f ”,
im este trabalho apresentará argumentos afim de
mostrar características do texto confessional na poesia desta
escritora.
PALAVRAS-CHAVE:
Memórias;
Poesia;
Confessional;
Autobiografia.
Introdução
A Literatura Confessional trata da escrita do eu, é como
se o autor trocasse um imaterial aperto de mão com o leitor, um
c
,
u qu
f
qu
‘ ’
acreditando ser a história da vida desse autor. Sobre este acordo
entre autor e leitor Philippe Lejeune (2008) fala de pacto1
Mestranda - Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT - E-mail:
[email protected]
2
Prof. Doutor do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT - E-mail: [email protected]
404
ANAIS - 2013
autobiográfico, que ocorre nas narrativas autobiográficas. Assim
este trabalho abordará uma discussão sobre o texto
autobiográfico e a poesia, apresentando traços da escrita
confessional presentes nas poesias da escritora Arlinda Pessoa
M b ck qu u z
‘ u í c ’
f
é
poesia a escritora traz os fatos de sua vida cotidiana para
desabafar o que sente, o que sentiu, o que pensa e estabeleceu,
assim, com um pacto de confidencias. Ao retratar, fazer um
recorte da sua vida, o escritor torna-a ficcional, ao retornar as
memórias para escrever sua autobiografia cria novas imagens,
sensações, sentimentos, recordações.
As poesias de Arlinda Pessoa Morbeck apresentam
características da autobiografia: autora e personagem da própria
h ó , qu
ó
c
u “b g f ”
para isto faz uso da poesia e não da prosa, instaura-se um
conflito pois a poesia não poderia ser considerada autobiografia
por que não preenche todos os elementos característicos deste
tipo de texto, a prosa, portanto neste trabalho apresentar-se-á
argumentos afim de mostrar características do texto confessional
na poesia desta escritora.
1. A Literatura Confessional
O gênero literatura confessional é recente embora seja
uma literatura que sempre existiu, pois o desejo de escrever
b ‘ u’ é c
, qu
hu
c
qu
salvar a sua história da morte (MACIEL, 2004, p. 01) e a
Literatura Confessional era vista como não-ficcional, pelas
características autobiográficas, o que a separava dos demais
gêneros ditos canônicos. De acordo com Dicionário de Termos
L á ,L
u é f cçã “D í
c c u qu L
u é
ficção, ou imaginação. [...] Literatura é a expressão dos
405
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras
, u
áf
” (MOI É , 2004, 269)
Se Literatura é ficção e os textos confessionais não eram
considerados ficção, estes não poderiam ser um gênero da
Literatura. Porém o conceito de ficção fazc
qu “
ficção é um discurso tão digno de crédito como outro qualquer,
porque, como qualquer outro, ela faz uma leitura do real.
Reduplicadora ou contestadora, não importa, mas uma leitura
tão confiável quanto a da c ê c
u
h ó ” (W LTY,
1985, p. 79). A ficção, então, é apenas uma visão de alguma
pessoa que está retratando, imaginando ou criando determinado
f , qu
u ã ‘
f ’
u
U
escritor ao fazer um recorte da realidade e retratar o fato por
uma determinada linguagem transforma essa realidade em
ficção, porque ele vê a partir uma perspectiva seja ela social,
emocional, política e traz isso em seu discurso.
Contudo, não há literatura que não tenha
elementos da realidade, assim como a chamada
literatura intimista ou confessional não está
isenta de desvios da linguagem, posto que é
impossível transpor qualquer realidade fielmente
retratada para a página escrita. Os gêneros
ficcionais, portanto, são como qualquer discurso,
uma produção humana entrecortada de ficção.
(MACIEL, 2004, p. 01)
Deste modo um escritor ao retratar sua vida, em uma
autobiografia por exemplo, está tornando-a ficção. Em suma, o
que não for vida é ficção. A literatura é o registro do que a
história não contou, e, a literatura confessional é o meio termo
entre a literatura e a história. Na Literatura Confessional
u “ u” qu
f
“ ”
u
u “ u”, j
por meio de autobiografias, memórias, romance pessoal, poema
406
ANAIS - 2013
autobiográfico, diário, auto-retrato ou ensaio (LEJEUNE, 2008,
p. 14-15)
Os textos confessionais são narrativos (narrar é sempre
no passado), em prosa, em primeira pessoa, se é um texto
narrativo o autor vai lançar mão das suas memórias (passado)
para escrever, e a memória (máquina mental ativa) é acionada
pelo sujeito do presente3. Este passado pode ser um passado
distante ou um passado recém acabado. O que faz um texto ser
confessional é a recepção da obra, como o leitor se coloca para
receber a obra. É o leitor que completa as expectativas do texto.
“[ ] é
u qu
f z fu c
” (LEJEUNE, 2008, p.
14). É a recepção do leitor, como este se posiciona para receber
o sentido da obra (romance, memória, poesia, aquilo que está
escrito na capa do livro) que faz com que o texto seja
confessional.
Amigos – diz Nelson Rodrigues em certa
crônica -, eu gosto muito de falar de mim
mesmo. Sempre que conto uma experiência
pessoal, sinto que nasce, entre mim e o
leitor, toda uma identificação profunda. É
como se, através do meu texto, trocássemos
um imaterial aperto de mão. (FISHER,
2003, p. 38-39)
A Literatura Confessional trata dessa escrita do eu,
FISHER (2003) cita que é como se o autor trocasse um imaterial
aperto de mão com o leitor, um acordo, entre o autor que vai
f
qu
‘ ’ c
h ória da
3
Fala da Profª. Drª. Rita de Cássia Pacheco Limbert (UFGD), 29/04/2011 às
10h na UFMT, ao falar de Identidade na defesa de Dissertação de mestrado
de Leandro Faustino Polastrini.
407
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
vida desse autor. Sobre este acordo entre autor e leitor Philippe
Lejeune (2008) fala de pacto-autobiográfico, que ocorre nas
narrativas autobiográficas “[ ] O que define a autobiografia
para quem a lê é, antes de tudo, um contrato de identidade que é
ó
” (LEJEUNE, 2008, p. 94). Assim a
autobiografia é caracterizada pelo acordo feito entre autor e
leitor, de que o texto é sobre a vida desse autor, que se confirma
por este ser o personagem da narrativa (apresentado-se com o
n
ó
) “P
qu h j
u b g f
( , u
perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja
çã
u ,
g ”
(LEJEUNE, 2008, p. 15). Philippe Lejeune (2008) acredita que
para haver autobiografia o autor tem que ser o narrador e o
personagem de sua própria história, definindo assim a
autobiografia:
DEFINIÇÃO: narrativa retrospectiva em
prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência, quando focaliza sua história
individual, em particular a história de sua
personalidade. (LEJEUNE, 2008, p. 14)
Philippe Lejeune (2008) trata de alguns elementos que
corroboram para este conceito: A forma da linguagem, que é
sempre narrativa e em prosa; O assunto tratado tem que ser a
vida individual, história de uma personalidade; A situação do
autor, sua identidade como autor e narrador tem que ser a
mesma, o nome deve remeter a pessoa real; A posição do
narrador, a identidade do narrador e do personagem principal e a
perspectiva de retorno ao passado, retrospectiva da narrativa.
2. Confissões nos poemas de Arlinda Pessoa Morbeck
408
ANAIS - 2013
Apresentar-se-á os traços confessionais presentes nas
c
P
M b ck qu u z
‘ u
í c ’
f
P
M rbeck nasceu em 1889,
Salvador-Bahia, casou-se em 1911 e mudou-se para Mato
Grosso acompanhando o marido onde viveu até 1940 depois foi
para o Estado de São Paulo priorizando a educação dos seis
filhos, morou em Valparaíso-SP até sua morte em 19604. A
escritora utiliza-se da poesia para narrar fatos de sua vida
cotidiana e para desabafar o que sente, o que sentiu, o que
:“
ã é
qu
cuu
b
si mesmo na trama do mundo como parte do espetáculo, vendof
” ( NDIDO, 1989,
55),
estabelecendo, assim, com seu caderno de poesias um pacto de
confidencias.
Não é vaidade, é um desejo somente
Que tenho de ti ver encadernado!
Meu fiel companheiro, o confidente
Dos meus segredos! Oh!... Meu Livro
amado!
(...)
Não é orgulho nem também verdade
Meu desejo de ti ver encadernado,
Em cada letra tens uma saudade,
Em cada página lembras o meu passado!
(VERLANGIERI;
MORBECK;
RANDAZZO, 2008, p. 181)
4
FILHO, Milton Pessoa Morbeck. Revolução Morbeck x Carvalinho.
Disponível
em:
<http://www.morbeckxcarvalhinho.com.br/index.php?ver=pagina&titulopoes
ia=Quem%20foi%20Arlinda%20Pessoa%20Morbeck> Acesso em: 06 Set
2010.
409
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
O x é
u ‘ u í c ’ qu f ,
revela seus segredos, como se o caderno de poesias fosse seu
fiel confidente Meu fiel companheiro, o confidente / dos meus
segredos! assemelha-se ao modus operandi do diário intímo
usando o caderno como interlocutor. A autora faz uso do
passado, das memórias e mitologicamente a poesia lírica (Erato)
é filha da memória (Mnemosine)5. A memória, então, está ligada
diretamente à lírica, a expressão dos sentimentos pela da poesia,
como saudade, felicidade são construídos pela memória do
sujeito do presente. Em cada letra tens uma saudade, em cada
página lembras o meu passado!
Em algumas poesias Arlinda utiliza-se de um passado
recente, a medida que os fatos acontecem, e registrando-os:
Chegou o mês de Maio enfeitado de flores
nos jardins as roseiras ficam mais viçosas,
os botões que se abrem transformam-se em
rosas
e as pétalas macias exalam mais ardores!
(VERLANGIERI;
MORBECK;
RANDAZZO, 2008, p. 128)
O cotidiano é a inspiração da escritora, na medida em
que percebe mudanças ela registra-as em seu caderno de
poesias. Esta é uma característica do texto confessional
ch
D á “O á
ã
bé u
,
mas a um passado recém acabado, sem um objetivo preciso de
buscar nada além do que a vontade d
” (M IEL,
2004, p. 10). Segundo Maciel (2004) os diários são relatos
fracionados, com o amparo de datas que criam um elo que une
5
Disponível em: <http://neurociencia.tripod.com/mnemosine.htm> Acesso
em: 05/04/2010
410
ANAIS - 2013
os acontecimentos, aparentemente sem nenhuma ligação entre
si. Os textos de Arlinda Pessoa Morbeck também são
fracionados, mas não há o amparo de datas para unir os
acontecimentos, a escritora dá títulos às poesias e não datas.
Algumas vezes, a escritora volta a um passado distante
para entender o mundo, seus sentimentos como forma de
explicar o que sente, como nos texto
M ó
“
memórias, portanto, são uma busca de recordações por parte do
eu-narrador com o intuito de evocar pessoas e acontecimentos
que sejam representativos para um momento posterior, do qual
este euc
” (M IEL, 2004,
09)
nda
Morbeck busca nas suas recordações pessoas e acontecimentos
que foram representativos para ela.
Foi no lindo mês de Dezembro,
Mês do Natal do Senhor,
Que Benedito e Adezia de uniram
Nos laços de um grande Amor!
(VERLANGIERI;
MORBECK;
RANDAZZO, 2008, p. 131)
Nesta poesia, Arlinda Pessoa Morbeck registra um
acontecimento importante, casamento de Benedito e Adezia,
pessoas que marcaram algum momento de sua vida. Mais uma
vez a escritora utiliza-se da memória para escrever. A memória
nos textos de Arlinda é apenas uma tentativa de trazer o passado
de volta, pois quando a escritora tenta trazer o passado de volta
ela tem outra percepção dessa memória, pois a partir do presente
ela dá outro conceito ao passado.
Meu Deus!... Por que não te esqueço?
Não deixo de recordar,
A luz suave, atraente,
411
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Que tens no ter brando olhar?!
(...)
Perdoa-me se te amo tanto,
Perdoa-me!... Que hei de fazer?
O Destino me castiga,
Vivo em silêncio, a sofrer!
(VERLANGIERI;
MORBECK;
RANDAZZO, 2008, p. 138)
O sofrimento apresentado na poesia é um sentimento
criado a partir da memória do presente e como conseqüência das
escolhas no presente vê-se condenada a viver sofrendo. Há um
“ u” qu
x c
,
sofrimento. Nas memórias de Arlinda Pessoa Morbeck a história
pode ser comprovada fora do texto. Segundo Maciel (2009) esta
é uma característica do gênero confessional:
Os gêneros confessionais contam histórias
de um narrador em primeira pessoa. A voz
do narrador que conta os fatos de dentro da
narrativa e se apresenta com o mesmo nome
do autor, ou sem nome, ou por um apelido
que o represente, costuma ser recebida como
voz testemunhal, ligada aos preceitos
históricos. (MACIEL, 2009, p. 44)
Arlinda Morbeck conta sua história através de um
narrador em primeira pessoa, que relata os fatos e se apresenta
c
u ó
“
,
h
,
ch
/ é
h
, é
h
g , é
u
!”
(VERLANGIERI; MORBECK; RANDAZZO, 2008, p. 190).
Arlinda volta ao passado e registra a declaração de amor, que
um eu apaixonado fez a ela, tornando-se personagem da própria
história. Esta é uma característica do texto confessional,
412
ANAIS - 2013
especificamente do texto autobiográfico, que o autor é narrador
g
“E
f cçã , há
u
çã
eu que faz o laço com a escritura, nela veiculando a existência
da personagem narradora à realidade. A resultante é a relação
entre o passado vivido pela personagem-narradora e a escrita.”
(PALO, 2009, p. 01). A partir do momento que a escritora
insere-se na obra, o leitor passa a vê-la como uma personagem
da realidade, aqui se percebe o acordo autor/leitor, um acordo do
u qu
f
qu
‘ ’ c
história de vida desse autor.
Ph
L j u
(2008)
c
u ‘ u
í c ’:
Por que se gosta dos poemas e as canções?
b u qu
z ‘ u’? P qu
,
bruscamente, são a justa expressão de um
sentimento que em nós procurava suas
palavras e sua música. Por isso os adotamos,
reconhecemo-nos neles. E aquelas palavras
que servem tão bem de roupagem a nossa
experiência, supomos que vêm diretamente
da experiência e do coração do poeta. Há o
prazer da emoção compartilhada, o
sentimento de que alguém nos compreendeu
e um sinal de conivência com os que amam,
citam, cantarolam as mesmas melodias que
nós. (LEJEUNE, 2008, p. 94)
O leitor se reconhece na obra, a experiência do autor
aproxima-se do leitor, como Philippe Lejeune (2008) afirma que
autor e leitor compartilham da mesma emoção, como se o leitor
compreendesse os sentimentos e se identificasse com o autor da
obra.
413
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A ficção, por sua vez se duplica em dobras,
em histórias da vida (romance), fazendo-se
ficção de si mesma ou invenção do eu. A
presença do sujeito que se lembra em sua
própria obra desenha o seu autobiografismo.
Este fala de si como gênero literário e nele
insere suas convenções, horizontes e gênese
histórica. São imagens que sugerem outras
imagens:
sensações,
sentimentos,
recordações, personagens, que preparam o
cenário da obra, tornando rica e profunda a
experiência da leitura. (PALO, 2009, p. 03)
Ao retratar, fazer um recorte da sua vida, o escritor
torna-a ficcional, ao retornar as memórias para escrever sua
autobiografia cria novas imagens, sensações, sentimentos,
recordações. As poesias de Arlinda Pessoa Morbeck apresentam
características da autobiografia: autora e personagem da própria
história, que se utiliza da memória para escrever sua biografia,
mas utiliza-se da poesia e não da prosa, de acordo com ao
definição de autobiografia de Philippe Lejeune (2008) a poesia
não poderia ser considerada autobiografia pois não preenche
todos os elementos característicos deste tipo de texto, como a
linguagem em prosa. No capítulo Autobiografia e Poesia
Philippe Lejeune (2008) aceita que existam textos em poesia
que contém traços autobiográficos, porém não admite poesia em
u b g f “[ ] M
c
u b g f
f g
é ” ( 99) P
e a autobiografia não
deve deixar dúvidas quanto a sua escrita, como acontece nas
poesias com o uso de figuras, metáforas por exemplo.
3. Considerações Finais
414
ANAIS - 2013
A poesia de Arlinda é confessional, possui características
tanto de Autobiografia quanto de Diário e de Memórias. Arrisco
dizer que há, um certo, pacto-autobiográfico em:
Aos meus filhos
Minhas filhas: Nilce – Dirce
E
u L
qu
c
, ‘Ru
’é
o seu nome.
Vocês que são moços, devem compreender
os Rumores de um coração sensível e
isolado, que palpita nos arroubos da
I
çã ! ‘Ru
’é
º 18
u
Livros ainda inéditos. É o meu maior Ideal
vê-los publicados. Faltam-me recursos
pecuniários
para
atingir
este
ideal!(VERLANGIERI;
MORBECK;
RANDAZZO, 2008, p. 180)
Se o que torna um texto ser confessional é a recepção da
obra, como o leitor se coloca para receber esta obra. Neste
desabado às filhas, o leitor compreende que os textos são sobre a
vida de Arlinda e através das poesias em que consta seu nome
como personagem o leitor a identifica como personagem da
própria obra.
Trata-se, por conseguinte, de uma forma de
contrato entre o autor e leitor na qual o
autobiógrafo se compromete explicitamente
não há uma exatidão histórica impossível,
mas a uma apresentação sincera de sua vida.
Quem escreve se compromete a ser sincero e
quem lê passa a buscar revelações que
415
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
possam ser confirmadas extratextualmente.
(MACIEL, 2004, p. 07)
Assim o pacto se estabelece quando o leitor pode
confirmar que Arlinda Morbeck escreveu sobre sua vida,
embora em forma de poesia não de prosa, que ela viveu em
u bá: “Eu u ch
u bá qu
, / qu
fc
,
!”
(VERL N IERI;
MORBE K;
RANDAZZO, 2008, p. 116), em Salvador- B h : “[ ] M
ã
me tirem de minha mente / nem do meu coração, que sempre
sente / as saudades e a lembrança de Arlinda!... (Salvador –
B h )” (VERL N IERI; MORBE K; R ND ZZO, 2008,
182), que escreveu sobre seu esposo, José Morbeck (p. 155), seu
filho Rui Morbeck (p. 159), suas filhas Nilce (p. 180), Dirce
(188), Elce (p. 134, em memória).
Algumas poesias apresentam características de escritas
de Diário, por ser um texto fracionado, poesias, mas não possui
marcação por data e sim por título que é um elemento que fará a
união dos acontecimentos. Retrata um passado recém acabado,
como a chegada do mês de Maio (p. 128), a tarde chuvosa (p.
177). E características de Memórias, onde há a volta a um
, “O Destino me
c g ,/V
ê c ,
f !” ( 138) T bé
c
linguísticas das memórias: lembranças, recordações, sensações,
saudades, portanto há inúmeros traços confessionais presentes
na obra de Arlinda Pessoa Morbeck.
Referências
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Educação pela Noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
416
ANAIS - 2013
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MACIEL, Sheila Dias. A literatura e os gêneros confessionais.
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05/04/2010
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Paulo: Cultrix, 2004.
PALO, Maria José. Formas de memória: um estudo sobre o
autobiografismo.
Disponível
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<http://www.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n4/d
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Letras; Unemat, 2008.
WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
418
ANAIS - 2013
Contribuições iniciais para elaborar o Atlas
Toponímico Mato-grossense
Maria Aparecida de CARVALHO 1
RESUMO: Mato Grosso apresenta expressiva extensão territorial
com 881.001 km². Localiza-se na região Centro-Oeste, possui 05
mesorregiões que subdividem-se em 22 microrregiões. Estas estão
formadas por 141 municípios. Para elaborar a dissertação de mestrado
foi realizada uma pesquisa toponímica para o estudo lexicográficotoponímico dos topônimos da mesorregião Centro-Sul Matogrossense. O corpus foi constituído de 2.233 topônimos que estão
registrados em 17 municípios, com levantamento dos topônimos em
mapas e em cartas topográficas, escala 1:100.000. A classificação dos
topônimos nas taxionomias fundamentou-se na teoria elaborada por
DICK e possibilitou algumas constatações como: riqueza toponímica
da região estudada, predominância de determinadas taxionomias no
processo de nomeação dos acidentes físicos e expressiva variedade
dos acidentes físicos toponimizados. Os topônimos foram coletados
por municípios, classificados por taxionomia e apresentados em
relações, por ordem alfabética dos acidentes e permitem observar a
quantidade de topônimos e de acidentes físicos ou antrópicos.
Palavras-chave:
Topônimos;
Taxionomias;
Mesorregião;
Microrregião.
Introdução
Pretende-se, nesta comunicação, compartilhar alguns
aspectos do projeto toponímico iniciado em 2002, no estado de
Mato Grosso, de modo mais específico em uma de suas
mesorregiões. No início dos estudos toponímicos da
1
Dra Maria Aparecida de Carvalho. Secretaria de Estado de Planejamento e
Coordenação Geral ( SEPLAN – MT). [email protected]
419
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
mesorregião Centro-Sul Mato-grossense, para elaborar minha
dissertação de mestrado, ficou estabelecido o compromisso de
realizar-se uma pesquisa exaustiva, que abrangesse toda área.
Não se discute, aqui, possíveis divergências, que ainda
possam persistir entre autores, sobre o status que a Toponímia
ocupa dentro das ciências da linguagem. É fato evidente:
estudos toponímicos sérios estão aí, realizados ou em fase de
realização, portanto, não podem ser ignorados. Outro fator que
deve ser destacado é que as pesquisas toponímicas concluídas
oferecem ensejos para realizações de outras novas pesquisas
acadêmicas.
Pretende-se, também, apresentar algumas características
gerais e específicas do estado de Mato Grosso, da mesorregião
Centro-Sul Mato-grossense e das microrregiões que a compõem:
Alto Pantanal, Alto Paraguai, Cuiabá e Rosário Oeste.
Proposta para iniciar o Atlas Toponímico do Estado de
Mato Grosso
Mato Grosso, nas áreas socioeconômico-culturais, é um
estado com riquezas expressivas que se refletem também em sua
toponímia. Pode-se, inclusive, dizer que a riqueza toponímica,
está respaldada pela variada gama de acidentes físicos que
existem no Estado. Alguns apresentam aspectos singulares, com
características específicas da região Centro-Oeste do Brasil, tais
como: corixo, cordilheira, furado, volta. Outros, aparentemente,
levam a estabelecer correlação com alguns acidentes físicos do
litoral brasileiro, mas, já nas primeiras análises, demonstram que
possuem características próprias que os diferenciam de seus
homônimos litorâneos: baía, lagoa, vazante. Há também, e em
quantidades significativas, acidentes físicos com características
420
ANAIS - 2013
comuns aos demais acidentes físicos brasileiros: córrego, morro,
ribeirão, rio, serra.
Às vezes, as investigações necessárias para analisar
linguisticamente os topônimos, podem conduzir a resultados
inesperados, e até mesmo surpreendentes. Essas investigações
toponímicas, inclusive, podem constituir-se em um desafio para
quem realiza a pesquisa devido à existência de outros fatores,
como: o isolamento da região, o desconhecimento sobre quem
foi o denominador, a opacidade dos topônimos.
A ação de nomear ou denominar lugares estabelece
relações que denotam aspectos variados de atividades humanas:
sociais, políticos, religiosos, culturais, regionais, econômicos,
entre outros. Esses aspectos podem apresentar-se com
características regionais, mais específicas ou gerais. É certo
também que algumas delas são mais produtivas em acidentes
físicos que em acidentes antrópicos, mas, em geral, isso não
constitui regra; podem se apresentar, diferentemente, em um ou
em outro nível, e até mesmo, observar que são variáveis de
acordo com as especificidades das regiões.
Genericamente, os topônimos dos acidentes físicos são
mais estáveis e mais espontâneos do que os antrópicos,
representando mais o aspecto de anonimato do denominador.
Esses fatores, às vezes, se apresentam como obstáculos às
classificações taxionômicas, pois, como já mencionado,
contribuem para a opacidade dos topônimos.
Características gerais do estado de Mato Grosso
Mato Grosso localiza-se na região Centro-Oeste do
Brasil que está formada por 03 (três) estados: Goiás, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul e pelo Distrito Federal, Brasília.
Sua extensão territorial é de 881.001 km² e corresponde a 54,8
421
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
% da área total da região Centro-Oeste, portanto, é o maior
estado da região Centro-Oeste e o terceiro maior do Brasil, sua
capital é Cuiabá. Estabelece limites com os estados: Rondônia,
Pará, Amazonas, Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul e, com
o país limítrofe: Bolívia.
O estado de Mato Grosso é o limite ocidental do Brasil e
f c qu
, u
h ,c
uí ,
“
c
”
linha imaginária do Tratado de Tordesilhas (acordo firmado
entre Portugal e Espanha) para além do rio Paraguai. Essa
expansão territorial só foi possível pelo destemor, ousadia,
espírito de aventura e busca de riquezas de centenas e centenas
de seres humanos anônimos, em sua maioria, porque poucos
deles são mencionados nominalmente, nas páginas da História.
Mencionamos esses fatos para reforçar a tese da
dificuldade de contextualizar todos os topônimos. Isso ocorre
porque muitos deles já existiam antes mesmo da chegada dos
“
uc
u
”
u
denominados. Esses topônimos constituem um acervo
antropológico-histórico-geográfico, sintetizando, cultural, não
só da conquista dessas terras, como também da manutenção da
posse das terras por eles percorridas, e também, do processo de
reconquista de parte delas como território brasileiro.
O estado de Mato Grosso apresenta aspectos singulares e
particulares, como unidade nacional. Talvez seja oportuno
inserir aqui a observação feita por um estudioso da geografia, da
história e da cultura mato-grossense, Virgílio Corrêa Filho. Para
esse Historiador, há um aspecto geral no Estado que se destaca
mais que a sua riqueza vegetal que é a sua riqueza hidronímica.
O topônimo, na opinião dele, que hoje particulariza o estado de
Mato Grosso e o classifica taxionomicamente, como um
fitotopônimo não demonstra a sua principal característica.
422
ANAIS - 2013
Mais do que as plantas, cuja marca se
gravou, embora impropriamente, no próprio
título da Capitania, quando criada, os rios
desempenham papel preponderante no
devassamento e ocupação do território matogrossense. (CORRÊA FILHO, 1962, p.42).
A principal característica do estado de Mato Grosso,
acima mencionada, está demonstrada pela gama variada e
quantitativa de acidentes hídricos que existem em todo Estado.
As relações dos topônimos, antecedidos pelos respectivos
acidentes físicos, em cada um dos municípios que integram o
corpus desta pesquisa, evidenciam esta inestimável riqueza. O
potencial hídrico de Mato Grosso é resultante do somatório dos
pequenos caudais que se juntam formando grandes rios, que
fazem parte de três bacias hidrográficas e, também, pela grande
quantidade de outros acidentes hídricos como baías, corixos,
lagoas, vazantes, etc.
Mato Grosso está constituído por 22 (vinte e duas)
microrregiões que são ricas em acidentes físicos, algumas com
características especificamente regionais. Essas microrregiões
estão formadas por 141 municípios. Alguns motivos se
destacaram na opção por esses recortes na pesquisa toponímica:
- Mato Grosso, desde os seus primórdios, sempre teve
uma posição geopolítica de grande importância para o Brasil e,
atualmente, tem também destacado valor na economia nacional;
- Mato Grosso é polo aglutinador de pessoas oriundas de
todos os estados brasileiros, assim como, de muitos países
estrangeiros e isso, de certa forma, se reflete na toponímia da
região;
- Com os acentuados desenvolvimentos social e
econômico, ocorridos, principalmente, a partir da segunda
metade do século passado. O estado de Mato Grosso cedeu área
423
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
para a formação de parte do estado de Rondônia e, em 1977,
houve a divisão territorial, com a cessão de parte de sua área
para criar o estado de Mato Grosso do Sul.
Assim, naquela época, o estado de Mato Grosso ficou
com apenas 38 (trinta e oito) municípios. Atualmente Mato
Grosso possui 141 (cento e quarenta e um) municípios. Portanto,
em período de tempo inferior a 03 (três) décadas, o aumento de
municípios em termos absolutos foi de 103 (cento e três)
municípios, correspondendo, em nível percentual, a 271,1%. É
inquestionável que nesses últimos trinta anos ocorreram também
crescimentos em todos os setores da economia mato-grossense.
O Estado, mesmo com de todos os percalços ocorridos
no passado, segue firme seu caminho em direção ao futuro ainda
mais promissor, mantendo-se como unidade federativa que
sempre concedeu sua parcela de colaboração para a manutenção
da integridade territorial brasileira. No decorrer do século XX o
Estado começou a ampliar suas atividades econômicas. As
atividades extrativistas deixaram de ter os destaques dos dois
séculos anteriores. Estabeleceu-se o início de um
redirecionamento das atividades produtivas para os demais
setores econômicos: primário, secundário e terciário e não
apenas para a produção de culturas de subsistência, mas para
grandes produções agrícolas e, logo depois, para o
beneficiamento e comercialização desses produtos. É uma época
tão empolgante que Mato Grosso chegou a receber o cognome
de Celeiro do Brasil.
Com o êxito das atividades agropecuárias que parecem
constituir a grande vocação mato-grossense, as produções de
arroz, milho, feijão, mandioca, pecuária de corte e, mais
recentemente, cana-de-açúcar, soja, algodão são contabilizadas,
em todas as safras, em milhares de toneladas. Isso mostra que
424
ANAIS - 2013
Mato Grosso consolidou, de modo firme, sua posição de estado
produtor de gêneros alimentícios.
O setor secundário, que era quase inexistente no início
do século passado, também ganhou força com a instalação de
agroindústrias e indústrias que vieram atraídas pela expressiva
produção de grãos e de carnes. Estabeleceram-se em várias
regiões do Estado, algumas por perceberem as possibilidades
latentes de produção industrial, outras em busca de incentivos
fiscais. Esses fatores propiciaram renda e geraram empregos
diretos e indiretos, isso já de meados para fim de 1900.
O setor terciário expandiu-se em função das evoluções
apresentadas pelos outros dois setores econômicos, e
atualmente, é um dos que mais cresce e gera empregos em Mato
Grosso.
Atualmente Mato Grosso está dividido em 05 (cinco)
mesorregiões: Norte Mato-grossense, Nordeste Mato-grossense,
Centro-Sul Mato-grossense, Sudoeste Mato-grossense e Sudeste
Mato-grossense. As mesorregiões se subdividem em 22 (vinte e
duas) microrregiões.
A mesorregião Norte Mato-grossense está formada por
08 (oito) microrregiões:
Alta Floresta
Alto Teles Pires
Arinos
Aripuanã
Colíder
Paranatinga
Parecis
Sinop
A mesorregião Nordeste Mato-grossense está formada
por 03 (três) microrregiões:
Canarana
Médio Araguaia
425
Norte Araguaia
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A mesorregião Sudoeste Mato-grossense está formada
por 03 (três) microrregiões:
Alto Guaporé
Jauru
Tangará da Serra
A mesorregião Centro-Sul Mato-grossense está formada
por 04 (quatro) microrregiões:
Alto Pantanal
Alto Paraguai
Cuiabá
Rosário Oeste
A mesorregião Sudeste Mato-grossense está formada por
04 (quatro) microrregiões:
Alto Araguaia
Primavera do Leste
Rondonópolis
Tesouro
Características da mesorregião Centro-Sul Mato-grossense
A mesorregião está formada por 17 (dezessete)
municípios que estão agrupados em 04 (quatro) microrregiões.
A extensão territorial da mesorregião Centro-Sul MatoGrossense é de 99.506 km² que corresponde a 11,3% da área
total do estado de Mato Grosso, colocando-se como a terceira
mesorregião em extensão. Ela é superada apenas pelas
mesorregiões Norte Mato-grossense e Nordeste Mato-grossense.
Mesmo assim sua extensão territorial é superior a de
alguns países europeus: Albânia (28.748 km²), Áustria (83.858
km²), Bélgica (30.510 km²), Croácia (56.542 km²), Hungria
(93.030 km²), Irlanda (70.280 km²), Portugal (91.568 km²),
República Tcheca (78.866 km²), Sérvia (88.361 km²), etc.
426
ANAIS - 2013
De acordo com a Resolução nº 05 de 10 de outubro de
2002 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a
divisão geopolítica desta mesorregião ficou estabelecida assim:
A microrregião Alto Pantanal está formada por 04
(quatro) municípios:
Barão de Melgaço
Cáceres
Curvelândia
Poconé
A microrregião Alto Paraguai está formada por 05
(cinco) municípios:
Alto Paraguai
Arenápolis
Nortelândia
Nova Marilândia
Santo Afonso
A microrregião Cuiabá está formada por 05 (cinco)
municípios:
Chapada dos Guimarães
Cuiabá
Nossa Senhora do Livramento
Santo Antônio de Leverger
Várzea Grande
A microrregião Rosário Oeste está formada por 03 (três)
municípios:
Acorizal
Jangada
Rosário Oeste
Esta mesorregião possui características bastante
peculiares que realçam sua condição de detentora da hegemonia
política do estado de Mato Grosso. É dentro de sua área de
abrangência que se encontram vários rios, o Cuiabá e o rio
Paraguai., que foram os condutores dos bandeirantes e de tantos
427
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
outros exploradores e aventureiros. Foram essas pessoas que
propiciaram as condições - é certo que a seu modo - necessárias
para a expansão territorial do Brasil Colônia. Não se pode deixar
de mencionar o Pantanal Mato-grossense, que por não ser
devassado pelos espanhóis, serviu-lhes de certa forma de
obstáculo e, desse modo, também deu a sua cota de contribuição
para a conquista de toda essa região. Não custava aos espanhóis
atingir aquelas paragens, se nada mais tinham do que subir uma
série de correntes plácidas sem um único acidente que lhes
interrompesse a viagem. Havia porém, obstáculos a temer: as
nações indígenas Paiaguá e Guaicuru.
Os córregos, ribeirões, corixos e rios que formam a bacia
do Alto Paraguai, irrigam com suas águas caudalosas a
mesorregião Centro-Sul Mato-grossense É uma região com
muitas possibilidades sociais e econômicas e, desde o final do
século XVII vem sendo explorada em suas riquezas naturais.
Bases para estabelecer a investigação toponímica
Ao realizar esta pesquisa toponímica, foram tomados
como base os pressupostos teóricos contidos em DICK (1980,
1990 e 1994), para investigar a natureza semântica e a estrutura
dos topônimos, de acordo com as categorias taxionômicas
propostas pela Autora, e também, para desenvolver um estudo
linguístico dos topônimos registrados nos mapas e nas cartas
topográficas.
Assim, estabeleceu-se os seguintes objetivos que
nortearam esta pesquisa: levantar nos mapas e nas cartas
topográficas os acidentes toponimizados, classificá-los
taxionomicamente e analisar a representatividade dos topônimos
indígenas no geral e dos tupis em particular, tanto no que se
428
ANAIS - 2013
refere à estrutura gramatical quanto à acepção específica, por
municípios e por microrregiões.
Para desenvolver a pesquisa toponímica da mesorregião
Centro-Sul Mato-grossense e alcançar os objetivos propostos,
fez-se necessário estabelecer os seguintes recortes, devidos
principalmente, ao volume de topônimos a serem pesquisados:
a. estudar apenas os topônimos que se referem a:
a.1. acidentes físicos: baías, corixos, córregos, estirões,
ilhas, voltas, vazantes, rios, serras, etc.;
a.2. acidentes humanos: agrovilas, distritos, estações
ecológicas, localidades, povoados, municípios e vilas;
b. não incluir nesta pesquisa os topônimos referentes aos
demais acidentes humanos, tais como: escolas, estradas,
fazendas, pontes, retiros, ruas, sítios, etc.;
c. o resultado da pesquisa deve ser apresentado por
municípios, por meio de relações de topônimos e, em seguida, a
análise dos topônimos agrupados por microrregiões, no contexto
geral da mesorregião.
Com base no levantamento inicial, chegou-se à
conclusão de que, apesar do grande volume de topônimos
encontrados, seria possível desenvolver uma pesquisa concisa e
que abrangesse, totalmente, a área de cada um dos municípios
pesquisados. A pesquisa ficaria bastante ampla, porém, passível
de ser realizada e, certamente, proporcionaria resultados
satisfatórios.
Alguns aspectos quantitativos da pesquisa toponímica
centro-sul mato-grossense
Quando foi efetuado o estudo sobre a toponímia da
mesorregião Centro-Sul organizaram-se as relações com os
sintagmas toponímicos (termo genérico + topônimo). Foi
429
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
elaborada uma relação para os acidentes físicos e outra para os
antrópicos. A relação contém quatro colunas:
- na primeira coluna consta a numeração (que permite,
facilmente, verificar quantos topônimos há em cada
município);
- na segunda coluna estão os termos genéricos ou
acidentes físicos (organizados por ordem alfabética);
- na terceira coluna estão os topônimos (organizados
por ordem alfabética, dentro de cada grupo de acidente
físico);
- na quarta coluna estão as taxionomias
correspondentes aos topônimos.
Vale ainda ressaltar que, buscando possibilitar a
localização precisa de cada topônimo, seja nos mapas ou nas
cartas topográficas, ainda foram inseridas notas entre parênteses,
na terceira coluna da tabela, logo após cada topônimo. Essas
notas adicionais são letra(s) e número(s) de quadrícula(s)
quando registrados nos mapas e números de carta topográfica,
letra(s) e número(s) de quadrícula(s), quando coletados nas
cartas topográficas.
Nestas relações constatou-se, como já mencionado,
variada gama de acidentes físicos. A microrregião que
apresentou a maior quantidade diversificada de acidentes físicos
foi a microrregião Alto Pantanal. Por uma questão de economia
de espaço, mas com o propósito de ilustrar esse aspecto, colocase, a seguir as tabelas com os totais de acidentes físicos e com os
totais de acidentes antrópicos por microrregião.
Os acidentes hídricos constituíram a maioria e pode-se
observar a preponderância, inquestionável, dos córregos sobre
os demais. As baías apresentam-se com grande sobrepujança
apenas na microrregião Alto Pantanal, portanto, em
conformidade
com
as
características
locais.
As
430
ANAIS - 2013
representatividades dos rios, lagoas e ribeirões também
merecem destaques. Dentre os acidentes geomorfológicos
destacam-se as serras e, outra vez, com maior incidência na
microrregião Alto Pantanal.
431
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Tabela 1 – Acidentes físicos da mesorregião Centro-Sul Matogrossense.
(continua)
microrregiões
acidentes
N
Nº
físicos
Mesorregião
Alto
Alto
Pantanal Paraguai
Cuiabá
Total
851
327
540
1
baías
216
-
12
2
barras
7
-
3
bocas
2
4
braço
5
Rosário
Centro-Sul
Oeste
354
2.072
-
228
-
-
7
-
-
-
2
1
-
-
-
1
cabeceiras
4
-
12
4
20
6
cachoeira
-
-
1
-
1
7
chapadas
-
4
-
-
4
8
cordilheira
1
-
-
-
1
9
corixão
1
-
-
-
1
10
corredeiras
-
-
-
4
4
11
corixos
55
-
2
-
57
12
córregos
164
276
370
259
1069
13
corregozinho
1
-
-
-
1
432
ANAIS - 2013
14
estirões
10
-
-
-
10
15
furados
19
-
-
-
19
16
ilhas
27
-
-
1
28
17
lagoas
108
-
1
3
112
18
lago
1
-
-
-
1
19
mirante
-
-
1
-
1
20
morros
28
-
24
9
61
21
portos
30
-
1
1
32
22
praias
3
-
5
-
8
23
riachos
2
-
-
-
2
24
ribeirões
6
26
43
47
122
25
rios
46
14
35
14
109
26
riozinhos
3
-
-
-
3
(conclusão)
microrregiões
Nº
acidentes
físicos
Alto
Pantana
l
Mesorregião
Alto
Cuiabá
Paraguai
27
salto
-
-
1
28
serra
75
7
26
433
Rosário
Centro-Sul
Oeste
12
1
120
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
29
vazantes
17
-
30
voltas
24
-
6
-
-
23
-
24
Fonte dos dados: Dissertação de Mestrado de Maria Aparecida de
Carvalho - USP - 2005.
Tabela 2 – Acidentes antrópicos da mesorregião Centro-Sul Matogrossense.
Microrregiões
acidentes
Nº antrópicos
Mesorregião
Alto
Alto
Pantanal Paraguai
Total
Cuiabá
Rosário
Centro-Sul
Oeste
56
16
41
29
142
cidades
4
5
5
3
17
distritos
6
2
18
5
31
agrovilas
8
-
1
-
9
2
-
-
-
2
localidades
30
1
9
21
61
povoados
5
7
2
-
14
vilas
1
1
6
-
8
estações
ecológicas
Fonte dos dados: Dissertação de Mestrado de Maria
Aparecida de Carvalho - USP - 2005.
Os topônimos, após o relacionar dos sintagmas toponímicos
por municípios e em sequência por microrregiões, foram classificados
dentro das taxionomias elaboradas por DICK. Houve, no entanto, a
434
ANAIS - 2013
inclusão de uma taxionomia proposta na dissertação de mestrado com
o intuito de contribuir para uma maior adequação semântica de alguns
topônimos. Considera-se que a taxionomia proposta igneotopônimos,
em
especial
na
região
Centro-Oeste,
possui
relativa
representatividade.
As taxionomias, para este estudo, foram agrupadas por
microrregiões. Acredita-se, no entanto, que mesmo assim elas
apresentam a preponderância dos vocábulos designativos de
elementos da flora e da fauna nas denominações consideradas mais
espontâneas e, no geral, anônimas. Coloca-se a tabela 3, a seguir, com
as taxionomias da mesorregião Centro-Sul Mato-grossense.
435
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Tabela 3 – Taxionomias da mesorregião Centro-Sul Matogrossense.
(continua)
microrregiões
Nº Taxionomias
Alto
Pantanal
Alto
Cuiabá
Paraguai
Mesorregião
Rosário Centro-Sul
Oeste
Total
912
348
584
389
2.233
1 Fitotopônimos
181
61
117
97
2 Zootopônimos
135
44
87
51
317
3 Hidrotopônimos
108
18
44
25
195
4 Sociotopônimos
53
16
54
38
161
5 Litotopônimos
38
32
39
31
140
6 Antropotopônimos
63
16
34
26
139
7 Ergotopônimos
49
24
35
23
131
8 Geomorfotopônimos
40
14
30
18
102
9 Hagiotopônimos
35
31
20
5
91
10 Dimensiotopônimos
33
9
16
20
78
11 Animotopônimos
32
14
20
8
74
12 Etnotopônimos
20
10
10
4
44
13 Dirrematotopônimos
12
9
10
4
35
14 Cromotopônimos
7
11
10
7
35
15 Somatotopônimos
19
1
7
4
31
456
436
ANAIS - 2013
16 Hodotopônimos
8
4
10
5
27
17 Numerotopônimos
12
6
6
1
25
18 Morfotopônimos
12
3
4
6
25
19 Cardinotopônimos
7
7
3
-
17
20 Hierotopônimos
6
1
6
3
16
21 Corotopônimos
4
2
5
3
14
22 Ecotopônimos
3
5
3
3
14
23 Axiotopônimos
11
2
-
-
13
24 Cronotopônimos
8
2
2
1
13
25 S/C
3
1
4
3
11
26 Meteorotopônimos
2
1
5
-
8
(conclusão)
Microrregiões
Nº taxionomias
mesorregião
Alto
Rosário Centro-Sul
Alto Pantanal
Cuiabá
Paraguai
Oeste
27 Igneotopônimos
3
3
1
-
7
28 Mitotopônimos
3
1
-
2
6
29 Historiotopônimos
4
-
1
-
5
30 Astrotopônimos
1
-
1
-
2
31 Poliotopônimo
-
-
-
1
1
Fonte dos dados: Dissertação de Mestrado de Maria Aparecida de
Carvalho - USP - 2005.
437
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Considerações finais
Acredita-se que o estudo desenvolvido para elaborar a
dissertação de mestrado tenha sido possível alcançar um
importante objetivo: estabelecer uma visão toponímica global da
mesorregião Centro-Sul Mato-grossense. Permite, também,
visualizar aspectos particularizados dos sintagmas toponímicos,
de cada município e, consequentemente, de cada microrregião,
por meio da relação de topônimos. É possível saber quais os
tipos de acidentes e quantos existem por município e, se
necessário, saber quantos e quais topônimos por tipo de
acidente, quais as taxionomias existentes, quais as taxionomias
predominantes por município, por microrregião e por
mesorregião.
A etapa final da busca e organização dos dados foi o
preenchimento da ficha lexicográfico-toponímica para cada
topônimo encontrado. Foram elaborados três tipos de fichas: um
para os municípios, um para os acidentes físicos e um terceiro
tipo de ficha para os demais acidentes antrópicos. Destaca-se
ainda, que quando ocorre uma dupla, ou até mesmo, tripla
nomeação foi elaborada, nestes casos, uma ficha lexicográficotoponímica para cada topônimo do acidente. Cada uma delas
com a classificação taxionômica correspondente e devidamente
computada no total de topônimos do município correspondente.
É por isso, como pode ser observado nas três tabelas
apresentadas, que o somatório dos acidentes físicos e antrópicos
é inferior ao total dos topônimos.
Para concluir, pode-se dizer que é bastante provável que
o denominador (anônimo ou não) ao usar os recursos da
toponímia, no momento de nomear algum destaque no espaço
natural em que se encontrava, utilizou sua possibilidade de criar
uma referência nova para o local e, desse modo, ao receber
438
ANAIS - 2013
aquiescência dos demais circundantes ou habitantes da região,
pelo uso cotidiano da denominação, contribuiu para estabelecer
melhores condições de localização. Isso vale tanto para a
toponímia rural quanto para a urbana. E não se pode ignorar que
alterações arbitrárias na toponímia já estabelecida podem gerar
perturbações de ordem social no que se refere à localização
especial e, até mesmo, rejeições para com o novo topônimo.
Nada impede, porém, de que alterações toponímicas surjam,
mas em geral, elas devem ser espontâneas e não arbitrariamente
impostas.
Referências bibliográficas
BARBOSA, Maria Aparecida. Lexicologia, lexicografia,
terminologia, terminografia, identidade científica, objeto,
métodos, campos de atuação. In: Simpósio Latino-Americano
de Terminologia, 2., Brasília: Anais do I Encontro Brasileiro de
Terminologia Técnico-Científica. 1990.
CUNHA, Celso; LINDLEY, Cintra. Nova gramática do
português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
DE CARVALHO, Maria Aparecida. Toponímia da
Mesorregião Centro-Sul Mato-grossense – Contribuições
para o Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso. 2005.
Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2005.
DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Método e
Questões Terminológicas na Onomástica. Estudo de Caso: o
Atlas Toponímico do Estado de São Paulo. Investigações,
439
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Lingüística e Teoria Lliterária. In: Revista do Programa de Pósgraduação em Letras e Linguística da UFPE, v. 9, 1999. p. 119148.
______. Toponímia e Antroponímia no Brasil - Coletânea de
estudos. 3. ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1992.
______. Atlas Toponímico do Brasil. Estudo de Caso: o
Projeto ATESP. In: Acta Semiótica et Lingvistica. v. 6, São
Paulo : SBPL e Plêiade, 1996. p. 27-44.
HOUAISS, Antônio. VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
SACCONI, Luiz Antonio. Nossa Gramática – Teoria 15. ed.
São Paulo: Atual, 1992.
440
ANAIS - 2013
Da palavra à imagem: uma discussão sobre a categoria
temporal na adaptação de O tempo e o vento
Aline Cristina MAZIERO1
RESUMO: Este artigo pretende discutir a adaptação de textos
literários para meios de expressão audiovisual enfocando a categoria
temporal na obra literária e em sua adaptação para a televisão tendo
em vista que tanto o texto escrito como o audiovisual televisivo,
possuem, em alguma medida, encadeamento de ordem temporal,
expresso de maneiras distintas nas diferentes linguagens. Enquanto na
literatura as sequências de tempo se constituem por meio das palavras,
quando uma obra é transposta para a linguagem audiovisual isso é
possível pelo uso de imagens dispostas em determinada sequência. A
ã “
”,
,
g ,
g
qu qu
ó
“ g
”c
x
literários de uma forma geral. Sendo assim, o intuito desde trabalho é
traçar como é feita a constituição da categoria temporal na minissérie
televisiva O Tempo e o Vento adaptada a partir da trilogia homônima
do escritor brasileiro Erico Verissimo, dirigida por Paulo José e
apresentada pela Rede Globo em 1985, a fim de compreender como
tanto a obra literária como a audiovisual abordam a categoria temporal
e de que modo o texto literário é reproposto em linguagem
audiovisual.
PALAVRAS-CHAVE: adaptação; audiovisual; literatura brasileira;
tempo;
Introdução
Os meios de comunicação audiovisual caracterizam-se
pela necessidade de narração. O cinema e a televisão,
especialmente se nos ativermos a programas ficcionais, têm
grande necessidade de contar histórias. Ao mesmo tempo, tais
1
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
441
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
meios lidam com o aspecto da representação, que tem elementos
em comum com outros modos de expressão como o pictórico e
o fotográfico, além de resgatar antigos elementos do teatro,
como a imitação. (SAUBOURAUD, 2010) No entanto, o
audiovisual tem sua forma de expressão feita de
enquadramentos, movimentos, montagem, elementos que são
intrínsecos à linguagem. Ao levar em conta essa especificidade,
compreende-se porque ao se adaptar/traduzir um texto literário
não se deve buscar a simples correspondência de signos, mas
uma maneira diversa de narrar, utilizando os recursos e
potencialidades do meio.
Toda narrativa (literária/fílmica/televisiva) conta uma
história que se constitui por um conjunto de personagens,
localizados no tempo e espaço, sendo esses elementos
indissociáveis para a construção do significado do texto. As
ações que se articulam em uma narrativa, independente do
suporte em que ela é constituída, estão, de alguma forma,
ligadas por sequências temporais, sejam elas lineares, invertidas,
truncadas ou interpoladas. Xavier (2003) afirma que o filme
narrativo-dramático, a peça de teatro, o conto e o romance
possuem em comum uma questão de forma no que tange ao
modo como se dispõem os acontecimentos e ações das
personagens. Para o autor:
Quem narra escolhe o momento em que uma
informação é dada e por meio de que canal
isso é feito. Há uma ordem das coisas no
espaço e no tempo vivido pelas personagens,
e há o que vem antes e o que vem depois ao
nosso olhar de espectadores, seja na tela, no
palco ou no texto. (XAVIER, 2003, p.64)
442
ANAIS - 2013
Na literatura, o escritor utiliza palavras para demonstrar
o transcorrer ou retroceder do tempo através da escrita, com
expressões que indicam o transcorrer do tempo, ou, ainda, pelo
desenrolar das ações dentro da trama que, para constituir-se
como tal, exige tanto um índice temporal como um índice de
causalidade (TOMACHEVSKI, 1970). Partindo dessa premissa,
a discussão do tempo no estudo de obras adaptadas para os
meios audiovisuais é um de seus aspectos relevantes, pois
permite enfocar as transformações – de linguagem e expressão que ocorrem na constituição da obra literária e da obra fílmica.
Lidando com diferentes linguagens e meios de expressão,
escritor e cineasta possuem formas diferentes para demonstrar o
transcorrer da ação, a série de acontecimentos que parte de um
ponto e chega a outro.
Em primeira instância, considera-se que tais diferenças
ocorrem devido à linguagem utilizada por cada meio em que o
texto se encontra. Enquanto que o escritor constrói a sua obra
através das palavras que informam ao leitor que o tempo passou
ou retrocedeu, ou quando os acontecimentos passam lenta ou
aceleradamente, o cineasta utiliza-se do mundo imagético para
traçar o percurso que será representado por meio das ligações
entre as cenas, das elipses espaciais e temporais, da imagem
diurna ou noturna, das lembranças de fatos já ocorridos.
Além disso, com relação às escolhas feitas pelos autores
no que tange ao ponto de partida e de chegada de cada obra, o
adaptador pode optar por fazer o mesmo percurso do texto-fonte
ou subverter a ordem dos acontecimentos, criando outro
percurso de desenvolvimento para a trama. Adicionalmente, no
que se refere às supressões e acréscimos de tempo no texto
adaptado, quando um romance é transportado para um filme, o
cineasta, na maioria das vezes, suprime partes da obra literária,
443
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ao passo que a adaptação de um conto exige acréscimos
temporais.
A partir dessas considerações, o interesse desse artigo é
enfocar a categoria temporal na adaptação de O Tempo e o
Vento em minissérie para a televisão dirigida por Paulo José e
apresentada pela Rede Globo em 1985, em 26 capítulos. Buscase compreender de que modo o texto literário de Erico
Verissimo aborda a temporalidade e como isso é reproposto no
produto midiático.
1.
O tempo narrado: projeções, remissões, interpolações
A questão temporal vem sendo tema recorrente de
reflexão para estudiosos. Santo Agostinho conclui sobre a
b
á c x
f
qu é
:“
nguém
me perguntar eu o sei; se eu quiser explicá-lo a quem me fizer
essa pergunta, já não saberei dizê- ” ( NTO
O TINHO,
2004, p. 322). Nesta assertiva, o pensador indica a sua
concepção de tempo como algo que se sabe que existe, sem que
se precise questionar a respeito.
Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de
contestação, que se nada sobreviesse, não
haveria o tempo futuro, e se agora nada
houvesse, não existiria o tempo presente. De
que modo existem aqueles dois tempos – o
passado e o futuro -, se o passado já não
existe e o futuro ainda não veio? (SANTO
AGOSTINHO, 2004, p. 322)
Paul Ricouer parte das reflexões de Santo Agostinho
sobre o tempo e de Aristóteles sobre a tessitura da intriga para
qu
c
“ c
g ” ã
444
ANAIS - 2013
c
u gu
é “qu
tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de
um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno
significado quando se torna uma condição da existência
” (RICOUER, 1994, p. 85). Como Santo Agostinho,
Ricouer tem dificuldades em definir o que é o tempo, que parece
ser uma aporia sem solução. Como explicar o tempo, se o futuro
ainda não existe, o passado já não é mais e o presente é um
momento fugaz? Pode-se dizer, com base no autor, que as
dimensões do tempo vão além da cronologia, como as
dimensões psicológicas, que se interligam às vivências de
mundo particulares de cada indivíduo. Para Ricouer (1994), o
tempo somente faz sentido se for entendido como realidade da
temporalidade humana, que pode remeter tanto a noções de
eternidade quanto de finitude. Nesse sentido, o tempo tem dupla
possibilidade: ter um papel importante como memória da
humanidade, como aquilo que pode ser resgatado; e também
como aquilo que pode, em alguma medida, ser previsto. E é com
o ato de narrar que podemos distender ou encurtar o tempo,
recuperar o passado e projetar o futuro.
Em nome de que proferir o direito de o
passado e o futuro serem de algum modo?
Ainda uma vez, em nome do que dizemos e
fazemos a propósito deles. Ora, o que
dizemos e fazemos quanto a isso? Narramos
as coisas que consideramos verdadeiras e
predizemos acontecimentos que ocorrem tal
como havíamos antecipado. É pois sempre a
linguagem, assim como a experiência, a
ação, que esta articula, que resiste ao assalto
dos céticos. Ora, predizer é prever e narrar é
445
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
“ c
p. 25-26)
í
” (RI OUER, 1994,
O autor compreende o tempo como algo que somente
pode ser explicado pela memória, e que esta memória precisa
encontrar uma forma de ser recuperada, de manter-se viva. De
acordo com Ricouer, o que permite o tempo ser e o livra da
aporia de Santo Agostinho, independente de sua remissão ao
passado, projeção ao futuro, ou fugacidade presente, é a
narração. Mas para agregar a dimensão temporal ao texto, faz-se
c á ,
, c
, “ c
g ”,
acontecimentos para que eles não se constituam como
fragmentos desconexos. Tomando como referência à Poética de
ó
,Rc u
õ qu
g é “
çã
çã ” (RI OUER, 1994, 59)
cu
çõ
e intriga, nota-se que o tempo não corresponde,
necessariamente, ao do acontecimento, mas passa a ser o da
própria narrativa, e o narrador pode, por exemplo, alongar ações
que ocorreram em pouco tempo, ou encurtar ações que
demoraram mais do que o tempo utilizado para narrá-las, fazer
remissões ao passado ou projeções ao futuro, dentre outras
possibilidades.
Ricouer acredita que há ainda algo mais importante para
a compreensão da tessitura da intriga, algo que é elucidado, em
parte, pelo conceito aristotélico de mimese. Se a intriga é a
çã
çã , “há u
qu se identificação entre as
duas expressões: imitação ou representação da ação e
g c
f
” (RI OUER, 1994, 59)
Está excluída de início, por essa equivalência, toda
interpretação da mimese de Aristóteles em termos de cópia, de
réplica do idêntico. A imitação ou a representação é uma
atividade mimética enquanto produz algo, a saber, precisamente
446
ANAIS - 2013
a disposição dos fatos pela tessitura da intriga. De uma só vez
saímos do emprego platônico da mimese, tanto em seu emprego
metafísico quanto em seu sentido técnico em República III, que
õ
“
mimese” à
“
” ( )
Retenhamos de Platão o sentido metafórico dado à mimese, em
ligação com o conceito de participação, em virtude do qual as
coisas imitam as ideias, e as obras de arte imitam as coisas.
Enquanto a mimese platônica afasta a obra de arte dois graus do
modelo ideal que é seu fundamento último, a mimese de
Aristóteles tem só um espaço de desenvolvimento: o fazer
humano, as artes da composição. (RICOUER, 1994, p. 60)
Portanto, já se sabe que a mimese, como proposta por
Aristóteles e repensada por Ricouer, não diz respeito somente à
imitação, mas à própria ação de tornar concreta a narrativa, por
meio da refiguração do tempo. Ricouer propõe, então, uma
tríplice mimese, que formaria um círculo virtuoso de relações
entre tempo e narrativa. A partir de um mundo pré-configurado,
mimese I representa as dimensões éticas e o mundo social,
mimese II é o ato de configuração, com a presença de um
narrador e também o espaço de mediação entre mimese I e
mimese III, que corresponde ao momento de reconfiguração
produzida por um leitor.
Assim, na proposta de mimese de Ricoueur, é preciso
qu
c
ê
: “ c
g ”
b
u
qu é ua referência e as
pessoas que terão contato com a narrativa. O momento exposto
por mimese III, ou seja, o momento de leitura do texto é também
o momento em que se torna concreta a relação entre tempo e
intriga. Sinteticamente, os três estágios miméticos são para o
u
qu “ gu
,
,
u
prefigurado em um tempo refigurado, pela mediação de um
c f gu
” (RI OUER, 1994, 87)
447
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
2.
O vento e seus circuitos: a temporalidade na
minissérie O Tempo e o Vento
A partir dessas considerações, é possível pensar que a
dimensão temporal é um aspecto muito importante do texto
literário e também de sua tradução/adaptação para o audiovisual.
A questão temporal está posta desde o título das duas obras.
Verissimo, no rom c ,
x
“
” “
”
por meio do uso da metonímia. Na epígrafe bíblica, pode-se
começar a desvendar algumas das suas intenções.
Uma geração vai, e outra geração vem;
porém a terra para sempre permanece. E
nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu
lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e
faz o seu giro para o norte; continuamente
vai girando o vento, e volta fazendo seus
circuitos. (ECLESIASTES – 1 – 4-6, apud
VERISSIMO, 2011)
A associação de ideias une o tempo, pelo qual passamos,
c
, qu
bé
u c
á “
”, qu
qu
retorna ao mesmo ponto de partida, e tematiza
(TOMACHEVSKI, 1970) a narração da trajetória da família
Terra-Cambará. O tempo como categoria narrativa e o vento
como figura de linguagem são também elementos importantes
para a compreensão da estrutura que Verissimo dá a seu
romance, em que narra a saga de uma família de maneira cíclica,
c
, qu “
g
f z
u c cu ”
O tempo merece ser tratado com mais vagar, pois, tanto nos
romances como na adaptação/tradução, ele não transcorre de
forma previsível, ou linear.
448
ANAIS - 2013
Uma característica desse texto literário é a sua estrutura
fragmentária. Composta de sete partes, talvez mais corretamente
c
c
“
ó
”,
arrativa tem natureza cíclica,
tanto como um todo – pois a frase que abre a trilogia em O
Continente é a mesma que a fecha em O Arquipélago –, quanto
na parte que foi adaptada para a televisão. Em O Continente a
ação se inicia com o cerco ao Sobrado, residência da família
Terra-Cambará, e chega ao fim no mesmo Sobrado, três dias
depois, com a rendição da família a seus adversários. Enfim,
esta é a luta que permeia todo o romance: dos Terra-Cambará
com os Amarais, chefes políticos da cidade de Santa Fé. Este
trecho ressalta um traço importante deste episódio em especial:
O Sobrado parece reafirmar a natureza fragmentária do
romance, visto que o próprio segmento se subdivide em partes
menores, que se intercalam com a narração de outros episódios
do romance.
A minissérie condensa os sete episódios do romance em
quatro fases: O Sobrado, que também representa o momento
presente da narrativa, Ana Terra, Um certo capitão Rodrigo e A
Teiniaguá, fases que se caracterizam por serem remissões ao
passado, especial através da memória e das lembranças da velha
Bibiana. Nota-se, portanto, que houve supressão de alguns
episódios do romance na minissérie, que, dentre outras coisas,
suprime a personagem de Ismália Caré, empregada da estância
dos Terra-Cambará, amante de Licurgo e personagem-título de
um dos episódios do romance de Verissimo. A primeira parte da
adaptação é a que conta a história do Sobrado e tem como tema
principal as lutas políticas da região, que acontecem entre o fim
do império e a consolidação da República. O ano é o de 1895.
No sobrado onde vivem, os Terra-Cambará, republicanos, estão
cercados pelos federalistas, que tinham interesse no retorno à
monarquia sob um regime parlamentar. É nesse momento que
449
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Bibiana observa a centenária figueira da janela de sua casa e
volta no tempo, resgatando lembranças de seus antepassados.
A segunda parte diz respeito à Ana Terra. Ana Terra é
avó de Bibiana, que veio do estado de São Paulo para o Rio
Grande do Sul. Ana é introspectiva, quase não fala, se expressa
mais com gestos. Trabalha como lavadeira. A rotina muda com
a chegada do índio Pedro Missioneiro que é encontrado ferido e
medicado por ela.
A terceira parte da narrativa é Um certo capitão Rodrigo.
O capitão é um forasteiro que chega a Santa Fé em um dia de
Finados. Ninguém sabe quem é, ou a que veio, mas conhece
Bibiana e se casa com ela. Apesar de gostar de artes e música,
vive em um Estado em que as batalhas, seja pelo alargamento do
território, seja pela manutenção da soberania, são frequentes.
Quando as tropas de Bento Gonçalves passam por Santa Fé,
Rodrigo junta-se aos farroupilhas.
Por fim, a quarta parte da minissérie chama-se A
Teniaguá. Acompanhamos a história dos descendentes do
Capitão Rodrigo e Bibiana, principalmente o drama vívido por
Luzia, a nora, comparada à lenda da teiniaguá, segundo a qual,
uma princesa moura teria sido transformada em salamandra pelo
diabo. Suas características principais seriam a sedução e a
crueldade. Luzia se casa com Bolívar, filho de Rodrigo e
Bibiana, uma pessoa de personalidade fraca. Logo de início,
Luzia e Bibiana não se entendem e a relação entre as duas se
deteriora.
Durante toda a minissérie ocorrem alternâncias entre o
momento presente e o passado, geralmente evocado por Bibiana,
mas também pode ser uma recordação partilhada por outras
pessoas, ou um objeto encontrado que traz à tona lembranças.
Tendo em vista a circularidade do tempo e o constante jogo que
se estabelece entre o que é presente ou passado, é de interesse
450
ANAIS - 2013
discutir alguns mecanismos de que a narrativa se utiliza para
demonstrar a passagem de tempo, o retorno, a suspensão, dentre
outras possibilidades.
Ao tratar a questão do discurso na narrativa Genette
(1995) destaca cinco aspectos diferentes que interferem no
modo como as histórias são contadas: aspectos de ordenação,
duração, frequência, modo e voz. Os aspectos de ordenação
estão relacionados ao modo como o encadeamento temporal é
percebido, ao estudo da articulação temporal como um processo
de percepção, em lugar de lógica. Aspectos de duração dizem
respeito ao estabelecimento de um ritmo na narrativa,
possibilitando a alternância entre as situações de relato – que
podem ser tônicas ou átonas – através do discurso. Aspectos de
frequência relacionam narrativa e diegese, ou seja, a história na
narrativa: de que maneira a narrativa distende, condensa,
pulveriza, entrecorta ou transcreve a história. Os aspectos de
modo estão relacionados ao ponto de vista condutor, ou seja,
daquele que vê o desenvolvimento da história e o aspecto de voz
se relaciona com as condições de enunciação da instância
narrativa, ou seja, importa-se com quem fala. Notamos,
portanto, que os primeiros três aspectos destacados se referem a
questões de tempo, e os dois últimos a questões de narração.
Nosso interesse neste trabalho recai, com isso, nos primeiros
três aspectos abordados por Genette, embora a temporalidade
não esteja, em nenhum momento, dissociada daquilo que se
narra.
Genette considera que a narrativa é uma sequência duas
vezes temporal, pois há o tempo da coisa-contada, ou seja, seu
significado, e o tempo da narrativa, seu significante e essa
dualidade é o que permite as distorções temporais, já que ainda
um terceiro tempo: o tempo de consumo da narrativa, de leitura.
á,
u ,“
x
ã
outro tempo que
451
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
não seja aquele que toma metonimicamente de empréstimo à
ó
u ” ( ENETTE, 1995,
33), qu
“
” c
qu
“ u ”
Quanto ao primeiro aspecto destacado por Genette, o de
ordenação, a passagem ou retroceder do tempo, pode ser
demonstrado na narrativa com o uso de alguns recursos próprios
como o uso de anacronias, que pela terminologia de Genette, são
denominadas de prolepses e analepses, e constituem-se mediante
os aspectos de alcance e amplitude. Uma anacronia pode ir ao
passado ou ao futuro. As anacronias referem-se à
ordem de disposição dos acontecimentos ou
segmentos temporais no discurso narrativo
com a ordem de sucessão desses mesmos
acontecimentos ou segmentos temporais na
história, na medida em que é indicada
explicitamente pela própria narrativa ou
pode ser inferida deste ou aquele indício
indirecto (GENETTE, 1995, p. 33).
A anacronia para Genette é qualquer alteração na ordem
dos eventos da história, quando mediados pelo discurso, ou seja,
é a confrontação da disposição dos acontecimentos na narrativa
e a sucessão destes acontecimentos na história narrada.
Verissimo faz uso constante da anacronia em seu romance,
como no excerto abaixo, em que Ana Terra, a matriarca da
família Terra-Cambará, recorda um dia importante em sua vida.
Porém, no romance, isso acontece como uma recordação, ela se
lembra desse acontecimento no futuro, causando uma
discrepância entre o tempo da história e o tempo do discurso.
452
ANAIS - 2013
[...] entre todos os dias ventosos de sua vida,
um havia que lhe ficara para sempre na
memória, pois o que sucedera nele tivera
força de mudar-lhe a sorte por completo.
Mas em que dia da semana tinha aquilo
acontecido? Em que mês? Em que ano?
Bom, devia ter sido em 1777: ela se
lembrava bem porque esse fora o ano da
expulsão dos castelhanos do território do
Continente. (VERISSIMO, 2011, p. 99).
Para Genette as anacronias podem ser de dois tipos:
analepses e prolepses. A
é “[ ]
b
consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento
u
” ( ENETTE, 1995,
38) É
antecipação, no discurso, de eventos cuja ocorrência é posterior
ao momento presente da ação. Já as analepses teriam funções
contrárias às prolepses, pois referem“[ ]
u
evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em
qu
á” ( ENETTE, 1995, 38)
,
,é
movimento temporal retrospectivo, destinado a narrar
acontecimentos anteriores ao presente da ação, ou mesmo, em
alguns casos, anteriores ao início da história. Para Genette toda
analepse constitui, em relação à narrativa na qual se insere, uma
narrativa temporalmente segunda, subordinada à primeira.
No romance de Verissimo, a anacronia ocorre nos
momentos em que o narrador do romance suspende, por meio do
recurso da pausa, a narrativa do momento presente – os
segmentos integrantes de O Sobrado, que se passam em junho
de 1895 – e retorna no tempo para contar uma outra parte da
história da família Terra-Cambará. Na minissérie televisiva, as
ã “
” c
cu
flashback e as
453
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
prolepses ocorrem, por exemplo, quando a narrativa de um fato
anterior é interrompida por Bibiana, no momento presente.
Fig. 1 – Bibiana quer abrir as janelas do Sobrado para deixar entrar os
fantasmas do Continente
O segundo aspecto abordado por Genette é o de
duração. Dentre as marcas discursivas que podem indicar
duração, o autor trata das anisocronias, que se relacionam com a
velocidade imprimida à narrativa. É toda alteração, no plano do
discurso, do tempo de duração da história. Essa alteração pode
ser mensurada em termos do tempo de leitura, que, de alguma
forma, concretiza o tempo da narrativa e determina sua duração.
Há quatro procedimentos narrativos que se relacionam às
anisocronias: pausa, sumário, extensão e elipse, recursos que
decorrem de uma atitude intrusiva do narrador, manipulando o
tempo de duração da história. Embora o texto de Verissimo
454
ANAIS - 2013
privilegie a narrativa em cenas, com uso constante de diálogos
entre os personagens, sua narrativa, como qualquer outra, não
prescinde destes momentos de alteração no ritmo da história.
A elipse é um desses recursos, utilizada no texto para
suprimir lapsos temporais, mais ou menos longos. As elipses
podem ser explícitas ou implícitas, inferidas pelo texto, com o
desenrolar da história. No romance de Verissimo, há bastantes
elipses que demonstram a passagem do tempo, mesmo que
algumas vezes sem a demarcação cronológica, como no trecho a
gu : “E
qu
,
c
sumia, a lua passava por todas as fases, as estações iam e
vinham, deixando sua marca nas árvores, na terra, nas coisas e
” (VERI IMO, 2011, 153)
A pausa, por outro lado, de acordo com Genette, indica a
suspensão do tempo da história em benefício do tempo do
discurso, interrompendo momentaneamente o desenrolar do
enredo. É o que ocorre em O continente, quando o episódiomoldura O Sobrado é interrompido para se narrar
acontecimentos anteriores. A essa técnica utilizada no romance,
Nunes (1988) denomina entrelaçamento por alternância do
discurso, cuja finalidade é causar o efeito suspensivo, ou seja,
interromper um episódio em seu momento culminante, para
criar expectativa no leitor, passando a outro episódio utilizando
uma demarcação temporal, e voltar-se, por mecanismo análogo,
ao segmento anterior. No caso do texto de Verissimo, pode-se
inferir que o autor utilizou uma técnica semelhante a essa
proposta por Nunes, pois apesar de haver episódios
cronologicamente demarcados, estes diferem quanto ao modo de
representação – descrição ou diálogos – o que pode
proporcionar a narração de acontecimentos ao longo das
gerações.
455
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Outro recurso destacado por Genette no âmbito da
velocidade da narrativa é o sumário. Para o autor, o sumário é
“[ ]
çã
gu
ág f
u gu
ág
vários dias, meses ou anos de existência, sem pormenores de
cçã u
” ( ENETTE, 1995,
95) u
z é
uma forma de resumir os acontecimentos da história, de forma
que eles correspondam no discurso, a um tempo muito menor do
que aquele que de fato se passou. “E 85 u
u
gafanhotos desceu sobre a lavoura deitando a perder toda a
colheita. Em 86, quando Pedrinho se aproximava dos oito anos,
u
c u g
u
u u
c
”
(VERISSIMO, 2011, p. 153).
O resumo demonstra um distanciamento por parte do
narrador, que opta por uma atitude redutora, que leva à
desvalorização da história narrada, em prol da economia
narrativa. Segundo Genette (1995) as funções mais frequentes
do sumário são a ligação entre os episódios, o resumo de
acontecimentos subalternos – como explicitado pelo excerto
acima – e a rápida preparação para ações relevantes. Na
minissérie, os adaptadores também encontraram maneiras de
sumarizar os acontecimentos: enquanto no romance de
Verissimo a narrativa do episódio dedicado a Ana Terra se
estende até sua morte, estabelecida com o filho e os netos na
cidade de Santa Fé, na minissérie o episódio chega ao fim no
momento em que Ana Terra, depois de ter perdido o pai e os
irmãos em um ataque de castelhanos à sua estância, parte, em
companhia de tropeiros, em direção ao recém-criado povoado de
Santa Fé. A elipse de mais de cinquenta anos de história
acontece com o uso de planos longos, talvez indicativos de uma
longa jornada e do uso do voice-over, que finaliza a história de
Ana Terra e insere as personagens de seus netos, Bibiana e
Juvenal.Já a cena tem função oposta à do sumário, uma tentativa
456
ANAIS - 2013
de imitação da duração da história do discurso. É caracterizada
pelos diálogos e aproxima-se da isocronia.
Fig. 2 – Ana Terra e o filho Pedro partem rumo a Santa Fé
Dentre os aspectos abordados por Genette (1995) está
ainda a frequência, que se refere à narração de acontecimentos
repetitivos. Para o autor, há três tipos de narrativa que podem
ser relacionadas a questões de frequência: a narrativa
singulativa, que narra uma vez aquilo que aconteceu uma vez,
ou narra várias vezes aquilo que aconteceu várias vezes; a
narrativa repetitiva, que diz respeito a contar várias vezes aquilo
que se passou uma única vez; e a narrativa iterativa, que conta
uma vez aquilo que aconteceu várias vezes. Após o exposto,
acreditamos ter destacado algumas maneiras que a narrativa
457
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
literária tem de expressar a passagem ou o retroceder do tempo,
ou seja, compor a história e narrá-la com recursos que lhe são
próprios.
Martin (2005) afirma que o tempo, no cinema, diz
respeito a uma tripla noção: o tempo de projeção (do filme, ou
no caso de uma minissérie), o tempo da ação (tempo da história
contada) e o tempo da percepção (a duração intuída pelo
espectador). Perante um sistema tão arbitrário quanto o tempo, o
autor esclarece que a câmera tem um papel importante, pois
pode acelerar, retardar, inverter ou, até mesmo, parar o tempo.
Além dessa tripla noção, o conceito de tempo evoca os
conceitos de data e duração. Para expressar uma data, um filme
pode recorrer ao uso de intertítulos – como ocorre na minissérie
O Tempo e o Vento - ou pode-se filmar um calendário, por
exemplo. Já a representação da duração é mais complexa, pois,
para expressar duração, são utilizados recursos especificamente
fílmicos, para indicar a passagem do tempo, acontecimentos de
duração indeterminada ou a permanência do tempo - momentos
em que nada se passa, mas a duração é intensamente vivida.
Ao tratar do tempo cinematográfico, Cassetti e Di Chio
(1990) se referem a duas realidades distintas: o tempo-datação,
um tempo que se resolve na determinação pontual de um
acontecimento; e o tempo-porvir, que, ao contrário, se propõe
como fluxo constante, irredutível aos instantes que o constituem.
Esse último tempo é o que mais interessa aos autores, pois se
dispõe de acordo com uma ordem, mostra-se através de uma
duração e se apresenta segundo uma frequência. A partir disso,
percebe-se que ao tratar do tempo cinematográfico, Cassetti e di
Chio (1990) utilizam os mesmos parâmetros utilizados por
Genette (1995) ao abordar a narrativa literária, o que permite
que busquemos uma aproximação no que diz respeito ao
tratamento do tempo nessas duas linguagens.
458
ANAIS - 2013
Independentemente da linguagem que utilize, a narrativa
é a representação de acontecimentos, ações, personagens e
ambientes ao longo do tempo, o que justifica o estudo de tempo
e narrativa de forma interligada. Para Cassetti e Di Chio, a
ordem define a disposição dos acontecimentos no fluxo
temporal e suas relações de sucessão. Quanto à ordem, os
autores destacam quatro formas de temporalidade: o tempo
circular, o tempo cíclico, o tempo linear e o tempo anacrônico.
O tempo circular refere-se a uma sucessão de acontecimentos
dispostos de tal forma que o ponto de chegada é idêntico ao
ponto de partida. Por outro lado, o tempo cíclico refere-se a uma
sucessão de acontecimentos ordenados de forma a que o ponto
de chegada seja análogo ao tempo de partida. Esse tipo de
ordenação é a que ocorre no romance O continente e também
em sua tradução/adaptação audiovisual; isso porque, a narrativa
se inicia com os acontecimentos de O Sobrado e chega ao fim
também no Sobrado, em situação análoga a do início,
demonstrando o estabelecimento de uma narrativa cíclica. A
opção pela narrativa cíclica também na minissérie indica que os
adaptadores mantiveram os mesmos pontos de partida e chegada
do romance de Verissimo.
O tempo linear, por seu turno, determina-se por uma
série de acontecimentos em que o ponto de chegada da narrativa
é sempre distinto do ponto de partida. Pode ser de dois tipos:
vetorial e não vetorial; é vetorial quando segue uma ordem
contínua e homogênea. Nesse sentido, pode haver uma
vetorialidade progressiva, quando os acontecimentos seguem
adiante ou inversa, quando a sucessão dos acontecimentos
acontece para trás. Já o tempo não vetorial é caracterizado por
uma ordem não-homogênea, fraturada, sem soluções de
continuidade. As rupturas podem ocorrer com recordações do
passado – e o recurso do flashback- ou antecipações do futuro –
459
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
e, por consequência, o flashforward. Em alguns casos, de acordo
com os autores é possível perder qualquer sentido de ordenação:
assim, são as representações anacrônicas, sem relações
cronológicas definidas. Não existe, então, um sentido de ordem,
mas sim, de desordem.
A duração é o aspecto que define a extensão do tempo
representado. Cassetti e Di Chio distinguem a duração real, ou
seja, a extensão efetiva do tempo, e a duração aparente, a
sensação perceptiva dessa extensão. Quanto à duração real, um
enquadramento parecerá mais longo quanto mais restrito for o
quadro - como nos casos de representação de detalhes, ou uma
tomada mais próxima - e mais estático o conteúdo representado.
Pelo contrário, parecerá mais breve quanto mais amplo for o
quadro e mais dinâmico e complexo o conteúdo – diálogos,
ação. Além do conteúdo e do suporte utilizado, a duração pode
ser percebida de maneiras diversas, pelo tipo de montagem que
é realizado. Quanto mais a montagem inserir objetos estáticos
ou paisagens, por exemplo, maior será a sensação de que o
tempo transcorre lentamente.
Para os autores, é preciso também distinguir entre o que
denominam de duração normal e duração anormal. A duração
normal ocorre quando a representação de um acontecimento
coincide aproximadamente com a duração real desse
acontecimento. Nesse sentido, Cassetti e Di Chio destacam duas
formas de representação temporal utilizada pelo cinema: o plano
sequência e a cena. O plano-sequência é a narração de um
acontecimento em uma única tomada, sem cortes. Na montagem
narrativa, o tipo mais comum, porém, é a cena, um conjunto de
qu
“
” c
f
c
tempo de representação e o que é representado, e assim
conseguir um efeito de continuidade temporal. As cenas se
constituem pelo trabalho de montagem, que decompõe e
460
ANAIS - 2013
recompõe o tempo, manipulando-o para que a representação seja
o mais realista possível. Há ainda o que os autores denominam
representação anormal do tempo. As representações anormais do
tempo acontecem quando a amplitude temporal da representação
do acontecimento não coincide com a do acontecimento em si.
Cassetti e Di Chio diferenciam as formas representativas em
dois grupos: modos de contração e dilatação do tempo. Entre
as formas de contrair a representação do tempo destacam a
recapitulação e a elipse, enquanto que para expandir essa
representação podem ser utilizadas as pausas e a recapitulação.
Podem ser encontradas recapitulações de dois tipos: ordinária,
quando são feitas durante a montagem, e marcada. Essa última
condensa os acontecimentos, interferindo sensivelmente no
tempo cronológico. Já a pausa se manifesta cada vez que o fluxo
temporal é interrompido, enquanto o tempo de projeção do filme
continua.
A elipse lida com as descontinuidades do produto
u
u , u j , c
c
“ uã
c
u
” u
u
contínuo. Atua em um nível
fílmico mais profundo, e, por isso, influencia a dinâmica
perceptiva e cognitiva do espectador. Martin (2005) afirma que
a elipse é parte integrante do fazer artístico cinematográfico,
uma atividade de escolha do cineasta, que escolhe os elementos
significantes e os ordena numa obra. Martin divide as elipses em
dois grupos: de estrutura e de conteúdo. As elipses de estrutura,
de acordo com o autor, são motivadas por razões de construção
da narrativa, e são usadas, por exemplo, nos filmes policiais, em
que o espectador deve ignorar a identidade do assassino. A
elipse, nesse caso, cria expectativa, gera suspense. Na minissérie
O Tempo e o Vento, uma elipse de estrutura é a que ocorre no
momento de definição do duelo entre o Capitão Rodrigo e Bento
Amaral. O espectador vê Rodrigo usando a adaga para marcar o
461
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
rosto de seu adversário, mas não vê o Capitão sendo ferido. No
decorrer da narrativa, descobre-se o que aconteceu devido às
lembranças de Bento.
As elipses de conteúdo, por outro lado, têm motivações
de censura social, ou seja, acontecimentos ou atitudes que os
tabus sociais impedem que sejam retratados na tela, como por
exemplo, a morte, a dor ou torturas. A elipse, neste caso,
dissimula e sugere o acontecimento. Esse tipo de elipse ocorre
em O Tempo e o Vento em momentos de agressão ou morte,
como no momento da morte de Pedro Missioneiro, em que o
espectador infere que o rapaz foi morto pelos irmãos de Ana
Terra, mas a minissérie dissimula esse acontecimento. Além das
elipses, Martin ainda destaca a importância das ligações e
transições para assegurar a fluidez narrativa de uma obra
audiovisual, e evitar ligações equivocadas.
Por último, Cassetti e Di Chio (1990) abordam a
frequência e destacam cinco modos de expressão da frequência
temporal: simples, múltipla, repetitiva, iterativa ou
frequentativa. Os primeiros dois modos de representação são os
mais comumente utilizados: qualquer produto audiovisual pode
representar uma única vez o que aconteceu uma só vez
(frequência simples) ou várias vezes o que aconteceu várias
vezes (frequência múltipla). Tanto a frequência simples quanto a
frequencia múltipla podem ser associadas ao que Genette (1995)
denomina frquência singulativa, que diz respeito a narrar o
acontecimento sempre que ele ocorrer.
A frequência repetitiva, por outro lado, caracteriza-se
pela repetição de um acontecimento que aconteceu uma única
vez inúmeras vezes, e a frequência iterativa é o tipo de
frequência mais complexo, pois se na literatura, a linguagem
verbal tem suas próprias formas de expressão para indicar a
repetição de um acontecimento cotidiano, como no excerto:
462
ANAIS - 2013
“P
h
gu
todos os dias à hora das refeições contava o que havia
b
” (VERI IMO, 2011, 156, g f nosso), os autores
ressaltam que o cinema ainda não conseguiu encontrar solução
adequada para representar esse tipo de sequência. Na minissérie,
a frequência iterativa ocorre na representação de ações
cotidianas: mostra-se apenas uma vez Ana Terra tirando o leite
das vacas ou lavando roupas, mas sabe-se pela relação da
personagem com o ambiente que a cerca que aquelas são
atividades de todos os dias, as quais o audiovisual não tem
interesse em mostrar. Por isso, as ações cotidianas dos
personagens costumam ser representadas na minissérie apenas
em momentos de quebra de uma rotina pré-estabelecida: Ana
Terra é mostrada lavando roupas apenas quando essa atividade a
levará a encontrar o índio Pedro Missioneiro desacordado no
riacho, e esse acontecimento distancia-se das suas ações
cotidianas.
Conforme esboçado nesse artigo, percebemos que ao
tratar da categoria temporal tanto a narrativa literária quanto a
audiovisual são regidas pelos mesmos parâmetros, ou seja, os
aspectos de duração, ordenação e frequência, porém utilizam
diferentes recursos expressivos para compor os significados
pretendidos. Tanto a linguagem escrita quanto a audiovisual,
buscam formas de narrar determinado acontecimento, já que não
se pode pensar que vá haver correspondência exata entre o que
foi lido e o que foi visto.
Considerações finais
No que se refere à adaptação de obras literárias para
meios de comunicação audiovisual, temos de considerar que
esta é uma prática corrente. Independente dos motivos que
463
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
levam o adaptador a escolher uma determinada obra, seja para
celebrar determinado momento histórico, atualizar uma obra
consagrada ou repropor novos textos, tanto cinema quanto
televisão buscam a literatura como fonte para suas histórias.
Porém, os meios audiovisuais têm características próprias,
formas de se expressar distintas das utilizadas pelo texto
literário.
Em uma breve análise, esse artigo enfocou a constituição
temporal na narrativa, seja ela literária ou televisiva. Buscou-se
demonstrar, com exemplos da minissérie estudada, de que
maneira o produto audiovisual repropõe aspectos presentes na
narrativa literária, ou seja, a partir de que elementos a minissérie
“ c
” h ó
c
E c V
,
por base a constituição temporal.
Tal escolha deve-se, especialmente, ao fato de a questão
temporal estar relacionada ao romance desde o título,
tematizando o texto literário. O tempo também tematiza a
minissérie O Tempo e o Vento, que mantém a circularidade da
obra e estabelece uma intrincada relação entre os planos
passados e presentes da narrativa, por meio da utilização da
memória de uma das protagonistas como fio condutor.
O estudo das adaptações possibilita uma dupla
abordagem sobre o tema, pois requer que se considere tanto o
texto literário quanto o audiovisual como obras distintas,
embora ligadas entre si. Essa abordagem diferenciada permite
que notemos cada uma de suas especificidades, entre as quais
destacamos o tratamento dado à categoria temporal, já que tanto
o texto de partida quanto o de chegada têm formas distintas de
lidar com suporte, gênero, formato e linguagem.
Referências
464
ANAIS - 2013
CASETTI, Francesco; DI CHIO, Federico. Cómo Analizar un
Film. Barcelona: Paidós, 1991.
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega,
1995.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa:
Dinalivro, 2005.
NUNES, Benedito. O Tempo na narrativa. São Paulo: Ática,
1988
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, tomo I. Campinas:
Papirus, 1994.
SANTO AGOSTINHO. Coleção os pensadores. São Paulo:
Nova Cultural, 2004.
SAUBOURAUD, Fréderic. La adaptación: el cine necesita
historias. Barcelona: Paidós, 2010.
TOMACHEVSKI, La Temática. In: TODOROV, Tzvetan
(org.). Teoría de la Literatura de los Formalistas Rusos.
Buenos Aires: Signos, 1970. p. 199-232.
VERISSIMO, Erico. O continente. Vol. I, Companhia das
Letras, 2004.
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a
construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia (org.)
Literatura, cinema, televisão. São Paulo: SENAC, Instituto
Itaú Cultural, 2003. p. 61-89.
465
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
FILMOGRAFIA
JOSÉ, Paulo. O Tempo e o Vento. Rio de Janeiro: Central
Globo de Produções, 1985. 9 DVD. (Aprox. 18h).
466
ANAIS - 2013
Dialogismo em foco: reflexões sobre o material didático
produzido para Educação a Distância
Juçara Zanoni do NASCIMENTO 1
Cleuza Andrea Garcia MUNIZ 2
RESUMO: O Curso de Graduação em Letras – Habilitação
Português, Espanhol e Literaturas, da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, na modalidade Educação a Distância, produz grande
parte do seu material didático impresso, dentre eles, os guias didáticos
das disciplinas do curso, utilizados pelos estudantes. O objetivo é
analisar e comparar dois desses materiais, elaborados para a disciplina
Leitura e Produção de Textos. Nessa análise, o guia didático foi
considerado um gênero textual discursivo, segundo a perspectiva
bakhtiniana. Foram analisadas e comparadas marcas dialógicas sob
dois aspectos: o uso da primeira pessoa do plural como elemento de
proximidade entre os sujeitos envolvidos na prática pedagógica e o
uso do recurso gráfico balão com intuito de provocar interações entre
estudante e autor/professor, bem como mediar o conteúdo e auxiliar o
estudante na construção do conhecimento. Conclui-se que há
significativas diferenças entre os materiais analisados.
PALAVRAS-CHAVE: Educação a Distância; Guia Didático; Marcas
Dialógicas.
Introdução
O oferecimento de cursos de graduação e pós-graduação
a distância pelas instituições públicas de ensino superior é uma
1
Profª Ms. do curso de Letras nas modalidades presencial e a distância da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
2
Profª Ms. do curso de Letras Habilitação Português/Espanhol na
modalidade a distância da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS).
467
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
conquista galgada ao longo de décadas em nosso país. Após a
implantação do primeiro curso de graduação a distância no ano
de 2001 e com as novas políticas de incremento e interiorização
da Educação Superior, a Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul passou a integrar, em 2006, o sistema Universidade
Aberta do Brasil (UAB). Atualmente, o curso de Letras
Licenciatura Plena Habilitação Português, Espanhol e
Literaturas, oferecido pela UFMS, é ofertado nos municípios
mais distantes do estado de Mato Grosso do Sul e também fora
dele. Os primeiros polos de apoio presencial credenciados pelo
Ministério da Educação e Cultura (MEC), já com o sistema
UAB3, estão localizados nos municípios de Água Clara,
Camapuã, Rio Brilhante e São Gabriel do Oeste, em MS, e
também em Apiaí, no estado de São Paulo (SP). Em 2012,
realizou-se a graduação de quatro turmas, atingindo, dessa
forma, uma das metas do MEC que é a formação, com
qualidade, de professores para atuarem no Ensino Fundamental
e Médio no Estado de MS. Com a crescente demanda, novos
polos foram credenciados nos municípios de Bataguassu, Costa
Rica, Miranda e Porto Murtinho, e mais recentemente, em Bela
Vista, no sul do Estado.
Esse breve histórico revela a dimensão e a relevância que
a Educação a Distância (EaD) assumiu no atual contexto
brasileiro. Com a EaD a democratização do ensino tornou-se
í
h
b
xc uí
“
b
c
h
c
c
uí ” (PRETI, 2010, 4)
u lmente, é
grande a produção teórica sobre questões ligadas a esse cenário;
muito se tem discutido, até porque, a inserção das novas
tecnologias da informação e da comunicação é algo novo, que
está revelando suas múltiplas possibilidades no âmbito da
3
Leia-se Universidade Aberta do Brasil.
468
ANAIS - 2013
educação. Porém, ao se fazer menção às novas TICs4, não se
está excluindo outras tecnologias, como por exemplo, o livro
didático.
O referencial para produção de material didático
elaborado pelo MEC considera que na modalidade a distância,
á c
ã “u
c
de socialização do conhecimento e de orientação do processo de
aprendizagem, articulados com outras mídias: vídeo,
videoconferência, telefone, fax e ambiente virtu ” (MEC, 2007,
p. 6). Portanto, a produção desse tipo de material pedagógico
tem na Educação a Distância lugar de destaque, pois,
tradicionalmente, é a tecnologia que todos dominam e, dada a
sua importância, muitas instituições e profissionais da área têm
dedicado relevantes estudos sobre o tema.
Este artigo busca analisar e comparar dois guias
didáticos, elaborados para a disciplina Leitura e Produção de
Textos, do Curso de Graduação em Letras – Habilitação
Português, Espanhol e Literaturas, da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, na modalidade a distância, tendo em vista a
dialogicidade que é, segundo o Ministério da Educação, um dos
princípios que devem estar presentes nos materiais didáticos
dessa modalidade de ensino.
Em um primeiro momento, serão expostas considerações
acerca dos materiais didáticos a distância, seguidas das análises
e comparações realizadas sobre os materiais didáticos
selecionados. Por fim, na conclusão, serão apontadas as
diferenças entre esses materiais no que se refere à dialogicidade,
bem como à relevância de se optar por materiais didáticos que
tragam marcas dialógicas no sentido de se preocupar com o
estudante durante seu processo de ensino e aprendizagem.
4
Leia-se Tecnologias da Informação e da Comunicação.
469
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
1. O Guia Didático para a EaD: desafios
A produção de material impresso para os cursos
ofertados a distância passou por um significativo incremento
com a implantação do Sistema Universidade Aberta do Brasil
em várias instituições públicas de ensino superior. O Curso de
Graduação em Letras – Habilitação Português, Espanhol e
Literaturas, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS), na modalidade a distância, produz grande parte do seu
material didático impresso, dentre eles, os guias didáticos das
disciplinas do curso, utilizados pelos estudantes.
O guia didático utilizado nos cursos a distância é um
, cuj fu çã é, “ ux
u
u
c
u
c
ã
x
u
” (NEDER, 2009,
p.18).
Os guias didáticos, aqui, são compreendidos como um
gê
cu ,
“ qu rer-dizer do locutor se realiza
c
u
c h
gê
cu
” (B KHTIN,
2003, p. 301), nesse sentido, ao escrever o guia didático, os
u
/ f
“ c h
”
c u c
c
estudantes por meio de um guia didático. Na produção desse
guia, selecionaram determinados objetos de ensino com intuito
de fazer com que o estudante construa conhecimentos, portanto,
pode-se afirmar que há produção de um enunciado em um
gênero do discurso, cuja função social é auxiliar o estudante na
leitura e na compreensão do conteúdo da disciplina,
constituindo-se como uma forma de se aproximar do estudante,
diminuindo as distâncias físicas. Todo conteúdo do guia didático
tem um propósito: auxiliar o estudante a compreender o
conteúdo da disciplina.
470
ANAIS - 2013
O guia didático é um desafio para o ensino a distância,
porque ao escrever o autor precisa estabelecer um diálogo
(dialogicidade) com o estudante, como se a distância não
existisse, como se autor/professor e estudante estivessem um ao
lado do outro. Um dos obstáculos mais evidentes para a
produção textual que prioriza uma abordagem dialógica é a falta
de clareza ou compreensão, por parte dos autores/professores,
sobre as características da linguagem escrita que deveriam
predominar nesse processo de elaboração. A linguagem
apropriada para essa modalidade de ensino deve proporcionar a
interação e a proximidade entre os sujeitos, e isso só se alcança
ao manter um estilo dialógico na escrita do material didático,
uma tarefa, sem dúvida, desafiadora.
Nos princípios, nas diretrizes e nos critérios dos
referenciais de qualidade para as instituições que oferecem
cursos a distância,
gc
é f c :“
é
garantia de que o material didático propicie interação entre os
diferentes sujeitos envolvidos” (MEC, 2007, p. 15), pois os
á c
“
uu
gu g
dialógica, de modo a promover autonomia do estudante
desenvolvendo sua capacidade para aprender e controlar o
ó
” (ME , 2007, p. 15).
Essa proposta de linguagem dialógica pode ser
compreendida na perspectiva bakhtiniana, cujo enfoque está
relacionado ao enunciado, que faz parte de um processo de
comunicação ininterrupto, em que se pressupõe a presença do
falante, do ouvinte e dos enunciados anteriores e posteriores à
comunicação. O enunciado pode ser compreendido como uma
grande cadeia dialógica. Nesse sentido, para toda palavra
enunciada, no interior de um processo de compreensão ativo,
espera-se uma resposta. A palavra
471
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
[...] é determinada tanto pelo fato de que
procede de alguém, como pelo fato de que
se dirige para alguém. Ela constitui
justamente o produto da interação do locutor
e do ouvinte. Toda palavra serve de
expressão de um em relação ao outro.
Através da palavra, defino-me em relação ao
outro, isto é, em última análise, à
coletividade (BAKHTIN, 1999, p. 113).
Na elaboração de um guia didático pelo viés da
linguagem dialógica, com enfoque bakhtiniano, é preciso criar
situações pedagógicas em que seja proporcionado ao estudante
um lugar em que ele possa interagir com os autores, com outras
leituras feitas e com o que viveu. Para isso acontecer, é preciso
que o autor provoque um diálogo, que auxilie o estudante a
construir conhecimentos, bem como oriente o seu estudo e o
desenvolvimento do espírito crítico.
Entretanto, não se deve esquecer que por se tratar de um
assunto científico, cada citação, cada referência, deve apresentar
a seriedade necessária para se construir um texto acadêmico.
2. A dialogicidade: comparações
Conforme anunciado anteriormente, foram estudados,
analisados e comparados os dois guias didáticos elaborados para
a disciplina Leitura e Produção de Textos, para o Curso de
Letras da UFMS na modalidade a distância. O primeiro, de
publicação mais antiga, será designado como A e o segundo, de
publicação mais recente, designado como B.
472
ANAIS - 2013
Quadro 01
GUIA A
GUIA B
FERNANDES, José Genésio; DANIEL, Maria
Emília Borges. Leitura e Produção de Textos.
Campo Grande: Ed. UFMS, 2008.
BEZERRIL, Gianka S; PEREIRA, Rodrigo Acosta.
Produção de texto I. Campo Grande: Ed. UFMS,
2011.
Serão estudadas, analisadas e comparadas marcas
dialógicas sob dois aspectos: o uso da primeira pessoa do plural
como elemento de proximidade entre os sujeitos envolvidos na
prática pedagógica e o uso do recurso gráfico balão com intuito
de provocar diálogos e a interação entre estudante e professor,
no sentido de diminuir as diferenças físicas e também mediar o
conteúdo e auxiliar o estudante na construção do conhecimento.
Como os dois Guias são extensos, optou-se por um
recorte. O conceito de recorte compreendido aqui é o da Análise
do Discurso Francesa, que ilustra a relação entre uma sequência
discursiva e uma situação. A concepção de recorte, definida por
Orlandi (1984), é como um fragmento que, em oposição à
concepção de segmentação, relaciona linguagem e situação.
Nesse sentido, não se analisa a materialidade linguística, mas as
condições de produção do corpus analisado.
Nesse recorte, serão analisados no Guia A:
“
çã ”, “P
ç
c
” “U
1”, e,
u B: “
çã ” U
1
No primeiro momento de análise, que compreende o
“u
u
c
proximidade entre os sujeitos envolvidos na prática
pedagógica”, a seção “P
c
ç
c
” só será
analisada no Guia A, pois não consta no Guia B.
473
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Quadro 02
Guia A
Apresentação
Para começo de conversa
Unidade 1
N
gu
u
cu g áf c b ã ”, ó
no Guia B, não há presença deles.
Guia B
Apresentação
Unidade 1
á
, qu c
á
u
,
“o
,
Quadro 03
Guia A
Para começo de conversa
Unidade 1
Guia B
2.1 O uso da primeira pessoa do plural como elemento de
proximidade entre os sujeitos envolvidos na prática
pedagógica
A EaD5 envolve a atuação e a interação de diferentes
sujeitos, além da estruturação e conexão de diversos
componentes, para que o processo de ensino se objetive e o de
aprendizagem se concretize. Entre os diversos componentes que
integram o processo de ensinar na EaD, o material didático
sempre foi considerado de fundamental relevância para aqueles
que estão longe da figura do professor e do espaço físico da sala
5
EAD – Educação Aberta e a Distância/ EaD – Educação a Distância
474
ANAIS - 2013
de aula. Ao tratar do material didático referem-se a um conjunto
cu
c óg c qu
u z
“
”, c
-se na aprendizagem do estudante. Cabe
relembrar que, para a delimitação desta pesquisa e seus
objetivos, o objeto aqui analisado refere-se ao material didático
impresso para a EaD.
O material didático impresso, embora sendo uma
tecnologia tradicional, sempre garantiu um espaço importante
numa sociedade que se encaminha para a consolidação da
cultura midiática. Segundo Preti (2009), há vários aspectos que
corroboram com a posição assumida pelo impresso: a indústria
de material impresso que tem crescido de forma vertiginosa
sinalizando que, em que pesem algumas apocalípticas previsões,
que o fim do livro está longe de acontecer; é a tecnologia que
faz parte de nossa formação escolar; e é a mais acessível e, por
isso, predomina na EaD, já que, em censo realizado no ano de
2010, das instituições que realizaram a pesquisa e que têm
polos de apoio presencial, 91% utilizam material didático
impresso.
Essas considerações permitem avaliar a dimensão
assumida pelo material didático produzido para cursos a
distância e considerá-lo como um elemento didático com a
intenção de ensinar, comunicar, socializar conhecimentos e
promover interação, que são características fundamentais para
esse tipo de produção didática, já que se a atividade de leitura é
f
“c
u
çã
â cia entre leitor e autor”
por meio do texto (KLEIMAN, 2011, p. 65), o material didático
para EaD precisa propiciar não somente ensino, mas também,
essa interação do autor com o estudante por meio do texto, pois
é fundamental pensar sobre o que o aluno irá fazer diante do
texto, já que sua aprendizagem só será concretizada mediante
sua ação.
475
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Ainda sobre a leitura como processo interativo, Kleiman
considera:
É mediante a interação de diversos níveis de
conhecimento de mundo, que o leitor
consegue construir o sentido do texto. E
porque o leitor utiliza justamente diversos
níveis de conhecimento que interagem entre
si, a leitura é considerada um processo
interativo (KLEIMAN, 2011, p. 13).
Dentre as funções que o material didático desempenha
em relação ao estudante, destacamos que manter o diálogo com
ele propicia a relação dele com o professor (autor/leitor),
mediada pelo texto. Essa interação ocorre por meio da
linguagem, portanto, buscar formas de aproximação entre os
sujeitos participantes do processo, significa estabelecer, na
produção escrita, uma mediação pedagógica com o estudante, o
que lhe permite não somente compreender, mas, também,
ressignificar o texto por meio de questionamentos e reflexões.
A possibilidade de estabelecer a interação6 autor/leitor,
mediada pelo texto, torna-se mais efetiva quando certos
elementos atuam na tessitura do material didático impresso, o
que revela também a preocupação com o dialogismo. O uso da
primeira pessoa do plural busca diminuir a distância entre os
sujeitos, produzindo um efeito de sentido caracterizado pela
aproximação e inclusão do outro no discurso.
6
É possível destacar três tipos de interação em EAD: a interação alunoprofessor, a interação aluno-aluno e a interação aluno-conteúdo. O primeiro é
considerado por muitos educadores, o núcleo de todo o processo educacional,
quer seja presencial, semipresencial ou a distância.
476
ANAIS - 2013
Ao analisar os dois guias didáticos, observou-se que os
autores/professores do Guia A (2008), não utilizaram esse
recurso em sua apresentação:
Prezados aprendentes:
Bem vindos ao Curso de Graduação [...].
Vocês estão participando de um curso de
g u çã “
â c ”,
ã
ã
sozinhos,
por
vários
motivos.
(FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 3).
Em um primeiro momento, isso revelaria que os
autores/professores mantiveram em seu material a relação
assimétrica entre professor e estudantes, mas, ao prosseguir com
a análise da apresentação do guia, é possível observar que as
escolhas em relação à construção da linguagem levam a pensar
na condição do estudante como responsável pela construção do
seu conhecimento, condição essa enfatizada como necessária
pelos autores/professores. No entanto, fica evidente que durante
“ j ”
c
uçã
conhecimento, o estudante
não estará só, de acordo com os autores/professores:
[...] mas não estão sozinhos, por vários
motivos. Primeiro, porque não são alunos
confinados em espaço e tempo de sala de
aula presencial, onde o professor tem
posição privilegiada no espaço e comando
absoluto do tempo [...]. Segundo, porque
estão juntos, fazendo parte de um grande
grupo de pessoas no qual só existem mesmo
aprendentes (FERNANDES e DANIEL,
2008, p.3).
477
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Ao longo do texto de apresentação do guia há várias
tentativas de envolver o estudante emocionalmente, de modo
que ele se sinta pessoalmente interessado no novo contexto e
nos assuntos ali tratados. Essas estratégias interativas auxiliam o
professor no estímulo ao estudante para fazer parte do processo
de aprendizagem, e que todos, segundo os autores/professores,
são aprendentes, ou seja, todos aqueles ligados diretamente à
c
qu ã
ã
“
c
u
”
Já o Guia B (2011) faz referência à primeira pessoa do
plural na introdução (parte do primeiro parágrafo) e na
finalização (final do último parágrafo) do texto de apresentação:
Caros alunos,
Estamos começando a estudar mais sobre
como compreender e produzir textos
diversos. [...] Desejamos um excelente
percurso de estudos e pesquisas a todos! [...]
(BEZERRIL e PEREIRA, 2011, p. 5).
Observa-se que o emprego da primeira pessoal do plural
“
c
ç
” remete ao próprio enunciador que fala
de si na primeira pessoal do plural, pois somente ele é o
proponente da proposta, não há envolvimento do outro em tal
situação. Isso fica evidenciado em seguida porque, com a
menção de “nesse manual didático”, podemos inferir que os
u
/ f
“f
”,
íc , b
c
uçã
do material elaborado por eles, o que denota um início para eles
(os autores/professores) e não início com eles (os estudantes).
Verificou-se o uso da primeira pessoa do plural, porém, essa
estratégia interativa não alcançou seu objetivo em estabelecer e
manter um diálogo com os estudantes, não logrou incluí-los no
processo, ao contrário, estabeleceu-se um distanciamento entre
478
ANAIS - 2013
uj
,
“D j
[ ó,
professores] um excelente percurso de estudos e pesquisas a
[ cê , u
]!”
A preocupação do guia A (2008) com o dialogismo, com
a interação,
c
bé
“Para começo de
conversa”, qu
c
U
I Ob
-se o uso
constante da primeira pessoal do plural como forma de amenizar
a distância entre o estudante e o professor. Em muitos
momentos os autores/professores do Guia A (2008) colocam-se
“
” c
u
qu
á
c
cu /
disciplina: “Vamos lá!”, “Em nosso curso, vamos falar muito
da atividade que os homens realizam com a linguagem”. A
preferência pela primeira pessoal do plural também marca o
efeito de sentido de inclusão do estudante na construção do
conhecimento; esse clima de diálogo estabelecido desde o
começo desperta no estudante confiança e autoestima,
motivando-o a sentir-se sujeito da aprendizagem, a dar sentido
ao que está lendo e realizando.
Essa primeira aproximação aos conceitos/temas é
marcada fundamentalmente pela aproximação entre os sujeitos,
os autores/professores se preocuparam em fazê-los acreditar em
sua capacidade de aprender. Embora observado o uso do
pronome você no trecho a seguir, que também deixa uma
sensação de aproximação, há um movimento mais abrangente
no qual um “nós”, referenciado em seguida, provoca um efeito
de sentido de aproximação e inclusão do outro no discurso,
lembrando-o que todos, independentemente do grau de estudos
ou de vivência, aprendemos sempre:
Perguntando e respondendo, você vai fazer o
uc
h
“
”
u c g
e nós, também. Aprendemos a vida inteira e
aprendemos mais quando ninguém nos
479
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
obriga a isso. É ou não é? Como diz o
poema de Antonio Machado, o caminho se
faz
caminhando.
(FERNANDES
e
DANIEL, 2008, p. 8).
Observou-se também no guia B (2011) que há o emprego
da primeira pessoal do plural na Unidade I:
Nesta unidade, estudaremos os pressupostos
teóricos necessários para o trabalho com
análise de gêneros para fins acadêmicos [...].
Para
você
melhor
compreender,
subdividiremos nossa primeira unidade em
cinco partes [...]. Não esgotamos, nesse
Manual, as várias discussões sobre os temas
abordados [...]. (BEZERRIL e PEREIRA,
2011, p. 9).
Repare que os autores/professores do guia B (2011)
utilizam-no como elemento necessário à progressão textual do
enunciado, sem ater-se a sua expansão de uso como estratégia
çã N
, “ ó” f
c
ch c
remete novamente ao próprio enunciador falando de si próprio.
Ao indicar para o estudante a divisão da primeira unidade
utilizando o verbo na primeira pessoa do plural
“ ub
”,
istanciamento ou separação se estabelece
porque deixa clara a ideia de separação de papeis entre os
sujeitos, ou seja, o professor como aquele que detém o
conhecimento e o estudante como aquele que precisa aprender e
que só poderá fazêgu
“
”
c
eles, os professores.
480
ANAIS - 2013
2.2 O uso do recurso gráfico balão com intuito de provocar
diálogos e interações entre estudante e autores/professores.
Nos materiais didáticos da EaD, aparecem vários
recursos gráficos, entretanto, neste trabalho, o enfoque será nos
balões, os mesmos utilizados nas Histórias em Quadrinho para
marcar a fala ou o pensamento das personagens. Há várias
definições para o termo balão, entretanto, para orientar este
artigo adotou-se a definição de Romualdo (2000, p. 29), para
quem, balão é "um texto fechado em um volume delimitado por
uma linha contínua. Esta linha engloba a totalidade dos
caracteres tipográficos que representam as palavras ditas pelos
personagens", e também a definição de Ramos (2009, p. 213),
na qual, o balão "seria uma forma de representação da fala ou do
pensamento, geralmente indicada por um signo de contorno, que
procura recriar um solilóquio, um monólogo ou uma situação de
interação conversacional".
No Guia Didático A, foram encontrados 47 balões, já no
Guia Didático B não há balões.
Foram selecionados quatro balões da parte introdutória
(
ú
),
u
: “P
c
ç
c
”; 4 b õ
U
1(
ú
),
u
: “Fu amentos e pressupostos
c c u
b
x ”
No decorrer do Guia, nota-se que o texto dos balões
surge para suprir a ausência do professor, pois atua como
mediador da aprendizagem (CAZAROTO, 2007, p.1260), ele
representa o discurso, as vozes dos autores/professores do Guia
Didático conversando com o estudante/ouvinte. Ele simula um
discurso na modalidade oral da linguagem, dessa forma, o
leitor/estudante tem a sensação de estar conversando com os
autores/professores. Talvez essa seja a intenção dos
481
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
autores/professores, uma vez que í u
çã “P
c
ç
c
”
c
,
õ
u
conversa, um diálogo com o estudante. Há sempre o uso do
pronome de tratamento “ cê”,
gu c
, na forma
elíptica, que se comporta co
“ u” O
u
b ã é
articulado com o assunto discutido, formando um todo coeso e
coerente.
Os balões são contornados em azul, diferenciando-os do
texto científico, e chamando a atenção do estudante, para que ele
leia e reflita sobre o assunto. A linguagem utilizada é coloquial,
simulando a oralidade e a informatividade, que remete a
contextos interacionais da sala de aula.
No recorte selecionado, foram analisados os balões,
tendo em vista a dialogicidade sob dois aspectos:
1) se há provocação da interação entre o estudante e o
professor/ (eu/tu), no sentido de diminuir as distâncias físicas
dos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem,
focalizando um diálogo, como se o professor estivesse presente,
conversando com o estudante;
2) se há por parte dos autores/professores a mediação do
conteúdo e auxílio na construção do conhecimento, se há uma
espécie de ponte que une o assunto anterior e o posterior ao
balão, ou se há uma retextualização, uma explicação que facilite
a compreensão do leitor/estudante.
Observe o conteúdo do balão:
Está vendo? Com essas perguntas, surgem
respostas e outras perguntas na sua cabeça.
Todo mundo sabe um pouco. Ajuntando
esse pouco com o pouco que os outros
sabem dá uma bolada grande... de sabedoria.
Tente responder a essas questões e anote
suas reflexões. Assim, no final da disciplina,
482
ANAIS - 2013
você poderá verificar se o que já sabe
cresceu com a contribuição das aulas, das
leituras e dos colegas (FERNANDES e
DANIEL, 2008, p. 7).
Esse texto refere-se ao primeiro balão do Guia A. Ele
aparece ao final da primeira página da seção “P
c
ç
c
”
Nota-se a preocupação dos autores/professores com o
estudante ao iniciar o texto, pois iniciam o diálogo com uma
pergunta que chama a atenção do estudante, o que provoca
interação e o leva a refletir sobre os assuntos científicos
questionados
anteriormente.
Posteriormente,
os
autores/professores sinalizam, no sentido de tranquilizar o
estudante, que todos sabem um pouco, que com ele não é
diferente, mas que para aprender mais é preciso refletir, anotar,
ler e trocar conhecimentos com os colegas. Dessa forma, nesse
texto, fica evidente que os autores/professores promovem a
interação e agem como professores em sala de aula, explicando
o assunto, tranquilizando o aluno e orientando o caminho para
se ter sucesso na disciplina.
O texto evidencia, também, a mediação do conteúdo,
pois é construído de forma a fazer com que o leitor reflita sobre
o que leu antes do balão, bem como o que lerá posteriormente.
O balão faz a ponte entre o antes e auxilia o leitor a construir
novas significações para o depois, ao ser orientado sobre o que
já sabe, e o que vai aprender com as aulas, com as leituras e com
os colegas.
Evidencia-se também que o conhecimento a ser
adquirido pelo estudante não está centrado na figura do
professor, mas em um todo, que faz parte do meio do estudante
e que compreende: as leituras, os colegas, as aulas.
483
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
c
O texto seguinte é o do segundo balão do tópico “P
ç
c
”
Quais são essas atividades que tanto o aluno
de matemática quanto o aluno de psicologia
é obrigado a realizar no Curso de
Graduação? (FERNANDES e DANIEL,
2008, p. 08).
Percebe-se que há provocação de interação, quando os
autores/professores questionam sobre quais atividades os
estudantes de diferentes cursos são obrigados a fazer. Isso
acontece porque o Guia A foi escrito para os vários cursos em
que a disciplina Leitura e Produção de Textos faz parte da
matriz curricular. Observa-se que, o lançar a pergunta, os
autores/professores induzem os estudantes a refletir sobre as
atividades a serem feitas E
“c
”
acontecido numa sala de aula, quando o professor justifica o
motivo de o estudante cursar tal disciplina.
Observa-se, que o assunto discutido é relacionado ao
conteúdo anterior ao balão e que, adiante, no Guia, ele é
retomado, utilizando o questionamento feito por meio do balão e
que, nesse sentido, ele aparece propositalmente e não como
mero recurso gráfico.
O texto seguinte aparece no penúltimo balão da parte
“P c
ç
c
”
E o que é ser um bom produtor de texto?
(FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 09).
Para provocar interação, no sentido de fazer o estudante
refletir sobre o assunto, os autores/professores utilizam uma
pergunta retórica, estratégia própria da sala de aula, pois é usual
484
ANAIS - 2013
os professores fazerem perguntas retóricas. Elas servem para
levar o estudante a refletir sobre o assunto. Quando os
autores/professores utilizam-se disso, fazem uma ponte entre o
conhecimento aprendido e levam o estudante a refletir e a
construir novos conhecimentos, que serão explicados e
detalhados posteriormente, a partir do que já sabe.
O texto seguinte aparece no último balão
“P
c
ç
c
”
Desejamos a você boas leituras e ótimas
reflexões. E que o caminhante, aqui e ali,
tenha companhias na viagem de eterno
aprendente (FERNANDES e DANIEL,
2008, p.12).
Nesse diálogo, os autores/professores desejam boas
leituras, reflexões, ao mesmo tempo em que mostram que o
estudante deve ter companhia no percurso, retomando ao
c
ú
b ã
“P
c
ç
c
”
Dessa forma, evidenciam-se remissões contínuas a conteúdos já
vistos, no intuito de tornar a conversa mais clara para o
estudante. Nesse sentido, as distâncias físicas tendem a ficar
ainda menores.
Observa-se,
também,
a
preocupação
dos
autores/professores em mediar o conteúdo, bem como em
relacioná-lo com todo o conteúdo do Guia Didático e também
com outros conhecimentos adquiridos ao longo da vida.
O próximo texto analisado encontra-se no primeiro
b ã ,
u
,
u
“Fu
u
c c u
b
x ”
Não. Não precisa responder agora. Nem
espere que a gente lhe dê a resposta. As
485
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
perguntas são para começar a pensar no
assunto. A gente sempre sabe alguma coisa.
Vamos retomar essas questões ao final da
leitura dessa unidade e conversar sobre isso.
Certo? (FERNANDES e DANIEL, 2008,
p.17).
Nesse diálogo, nota-se que os autores/professores
preveem que o estudante talvez queira responder a
questionamentos feitos no texto anterior ao balão, entretanto,
eles dialogam, dizendo que a reposta não precisa ser dada
naquele momento, mas que, ao longo da unidade, essas questões
serão retomadas. Evidencia-se que foi estabelecido um
simulacro de que já não há mais distâncias físicas entre o
professor e o estudante, a sensação que se tem é que o leitor está
conversando com o professor, parece que o professor está ao
lado do estudante.
Nesse diálogo, evidencia-se a proposta dos
autores/professores com o material elaborado, nota-se que eles
atuam como mediadores do conhecimento, pois,
“N
espere que a gente lhe dê a resposta. As perguntas são para
c
ç
u ”, mostra que é o estudante quem
deverá refletir sobre o conteúdo e que é ele quem vai construir
os conhecimentos. Evidencia-se, também, a mediação entre o
conteúdo que vem antes e o que vem depois do balão, tendo em
vista a afirmação de que ao final da disciplina o conteúdo será
retomado.
O texto seguinte compreende o segundo balão da
U
1 “Fu
u
c c u
b
x ”
Um exemplo! (FERNANDES e DANIEL,
2008, p. 18).
486
ANAIS - 2013
Nesse diálogo os autores/professores continuam a
conversar com o estudante. Nessa fala simples e curta, típica da
linguagem oral, evidencia-se a preocupação em fazer o
estudante compreender o conteúdo, pois, depois do balão, há
uma retextualização do conteúdo, o que facilita a compreensão.
Esse exemplo aparece de forma a simplificar o que foi dito e
fazer o estudante compreender o conteúdo e construir novos
sentidos, por meio dele.
O texto seguinte aparece no penúltimo balão da Unidade
1.
Resumindo... (FERNANDES e DANIEL,
2008, p. 27).
Nota-se que os autores/professores orientam o estudante
no sentido de que o assunto discutido anteriormente será
retomado por meio de um resumo. Evidencia-se, novamente, a
preocupação dos autores/professores com o que foi dito antes,
com a retextualização do assunto para que fique mais claro ao
aprendente. Esse resumo vai ao encontro de um processo de
ensino-aprendizagem coerente, pois o estudante tem a
oportunidade de rever e organizar o conteúdo, aliando o
conhecimento teórico à prática pedagógica.
O texto seguinte aparece no penúltimo balão da Unidade
1.
Então, como resolver essa questão? Que
concepção de língua, de sujeito, de texto e
de leitura é mais adequada para
compreender a atividade linguageira do
homem em sociedade? (FERNANDES e
DANIEL, 2008, p. 29).
487
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Na análise desse balão, é evidenciada a preocupação dos
autores/professores com a questão da construção do
conhecimento, pois, é a partir do conhecimento que o estudante
tem do assunto, que se constrói o conhecimento que ele ainda
não tem, é a partir do que se sabe que se aprende o que não se
sabe. Com esses questionamentos o estudante tem a
oportunidade de refletir sobre todo o conteúdo estudado na
Unidade e, a partir disso, ele, por si só, poderá compreender
algo mais complexo.
Considerações finais
Estabelecer um diálogo que permita a proximidade entre
os sujeitos é fundamental na elaboração do material didático
impresso para a EaD. O princípio da dialogicidade é enfocado
nos referenciais de qualidade produzidos pelo MEC, que são
destinados à elaboração de materiais impressos para cursos a
distância, considerando-se que essa linguagem dialógica garanta
interação entre os diferentes sujeitos envolvidos e, sobretudo a
autonomia do estudante. Alguns elementos efetivam o processo
interativo no interior do texto, portanto, este estudo teve como
objetivo analisar e comparar dois deles: o uso da primeira
pessoa do plural como elemento de proximidade entre os
sujeitos e o uso do recurso gráfico balão com intuito de provocar
diálogos e interações entre estudante e autores/professores.
Dessa forma, apresentam-se a seguir, algumas das conclusões
obtidas:
O uso da primeira pessoal do plural como elemento de
aproximação por meio da linguagem está presente nos dois
guias didáticos analisados nesse estudo. Não obstante, observouqu
f
“
j ” ã c
u de forma
488
ANAIS - 2013
similar em ambos os materiais. No Guia B, embora se tenha
optado em vários momentos pelo uso da primeira pessoa do
plural, observou-se que sua função ficou restrita a uma questão
formal, ou seja, como elemento necessário à progressão textual
do enunciado, sem que houvesse um aproveitamento, por parte
dos autores/professores, de sua expansão de uso como estratégia
de interação e proximidade.
No Guia A, a preferência pela primeira pessoal do plural
proporcionou o efeito de sentido de proximidade e, também, de
inclusão do estudante na construção do conhecimento,
motivando-o como sujeito da aprendizagem. É evidente a
preocupação dos autores/professores com a abordagem dialógica
na elaboração do Guia A, o que indica claramente que ensinar
não significa transmitir, (re) passar conteúdos, significa muito
mais, significa mediar o processo de aprendizagem tendo como
referência o texto. Uma das estratégias didáticas para a
elaboração do material didático impresso em EaD é a de
escrever o texto para alguém e que esse alguém se sinta ao lado
do(s) autor(es)/professor(es), pois isso permite que a atuação do
estudante no processo seja concretizada, porque ele terá a
oportunidade de reconstruir o caminho, questionar, refletir,
ressignificar o que leu.
A análise relativa à(aos) iconografia(balões) se restringiu
ao Guia A, pois os autores do Guia B optaram por não utilizar
dessa estratégia para interagir com o estudante. O Guia A,
sugere que a preferência pelo uso do balão também produziu o
efeito de sentido ao provocar diálogos/interação entre
autores/professores e estudante. Em cinco, dos oito balões
analisados, verifica-se que a utilização de perguntas foi uma
estratégia recorrente para provocar essa interação, pois é por
meio delas que os autores/professores chamam a atenção do
489
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
estudante, para que eles reflitam sobre o que leram e, a partir
daí, construam sentidos.
A preferência pelo uso do balão, ao fazer a mediação do
conteúdo, também leva o estudante a construir novos
conhecimentos. Nota-se que nos balões a figura assumida pelos
professores/autores é a do professor enquanto mediador do
conhecimento, pois os balões não dão respostas prontas,
entretanto induzem à reflexão e à construção de conhecimentos
a partir do que o estudante já sabia, do que ele leu e dos
estímulos provocados pelos autores/professores.
Dessa forma, conclui-se que os balões não aparecem
apenas como um elemento a mais no projeto gráfico, mas sim
com um propósito dialógico, que faz com que os
autores/professores interajam com o estudante, diminuindo as
distâncias físicas entre eles e construindo sentidos, facilitando,
assim, o processo de ensino e aprendizagem.
Este trabalho não tem intenção de findar as discussões
sobre a dialogicidade nos materiais didáticos utilizados pela
EaD, muito pelo contrário, este é apenas um estudo inicial e
têm-se perspectivas de estudos futuros no sentido de contribuir
para o desenvolvimento desses materiais didáticos com intuito
de melhorar o processo de ensino e aprendizagem dos alunos
dessa modalidade de estudo.
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492
ANAIS - 2013
Discurso sobre Vaidade Masculina no século XXI
Soraia Aparecida Roques PEREIRA1
Marlon Leal RODRIGUES2
RESUMO: Trata-se neste trabalho da posição do sujeito homem e do
discurso sobre a beleza masculina no século XXI. A relevância do
estudo configura-se no fato de que os discursos sobre o corpo e beleza
sempre estiveram no palco de discussões. É no e pelo discurso que o
sujeito homem reveste-se dos sentidos estéticos próprios da sua época,
ainda que rotulado conservador quanto à vaidade. Objetiva-se analisar
alguns dos sentidos da vaidade masculina e como está se
reconfigurando essa nova posição do sujeito homem na
contemporaneidade. O referencial teórico adotado é a Análise do
D cu
h F c
( D), qu c
c c
“f
çõ
cu
”
“f
çõ
g á ” c
bu á à
á
enunciados. Com esse estudo espera-se identificar as mudanças do
sujeito homem quanto à questão da vaidade e os cuidados dedicados
ao. Apesar da sociedade reconfigurar os sentidos sobre a vaidade
masculina, ainda é um discurso resistente.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Corpo; vaidade; Linguagem.
Introdução
O corpo surge na atualidade com profundas
transformações do natural ao artificial, o corpo e suas
reconfigurações evidenciam as formações estratégias discursivas
1
Soraia Aparecida Roques Pereira – Mestranda em Letras pela UEMS –
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
2
Orientação Prof. Dr. Marlon Leal Rodrigues – Docente do Curso de
Mestrado da UEMS - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul,
Unidade Universitária de Campo Grande -MS.
493
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
que são formas instauradoras de condição para se tornar objeto
de linguagem.
O “ cu ”
b
c
,
b z
masculina sempre esteve em evidência em vários contextos
históricos como na Renascença, na cultura na Grega e Egípcia,
nas Artes, nas obras de grandes pintores, são valores (re)
construídos pelas sociedades, de maneira que o homem do início
do século XXI, revestido dos sentidos estéticos próprios da sua
época, ainda que rotulado conservador no aspecto vaidade
configura-se ainda alguns do seus significados.
N é c c á c , gu
F uc u (1987, 117), “
soldado era um símbolo de um corpo educ
c
”,
corpo era visto como objeto e alvo do poder. Sendo assim
pode
f
qu
gu
f
“
” (Pêch ux,
1997) sobre beleza corporal não é algo presente apenas na
contemporaneidade. O corpo foi instrumento de culto em todos
os momentos da história. Todavia os processos disciplinadores
eram diferentes e, nesse momento, de acordo com Foucault
(1987, p.117 ), é qu “ c u
arte do corpo humano que
busca aperfeiçoar as habilidades do físico e formar uma relação
que o torne mais b
ú ”
-se todo um trabalho
baseado no comportamento, nos gestos corporais que
determinam até mesmo o nível social das pessoas.
E
çõ
c ,
c
“
”
u
“
g ” (O
, 2002)
cu
f
,
são as bases concretas e reais da ideologia. Dessa forma, em
cada período da história da humanidade agem de modo e forma
diferente, porque tudo é construído historicamente e
ideologicamente reproduzido, nas e pelas práticas sociais.
A intenção aqui é identificar de que modo e forma o
uj
h
c
â , “
c ” (O ndi, 2002),
histórico e ideológico, lida com o próprio corpo. Se em suas
494
ANAIS - 2013
manifestações discursivas evidencia preocupações com o corpo
e quais os sentidos dos cuidados a ele dedicados. Posto que os
enunciados e seus sentidos sejam u
,
ã ,
“práticas
cu
” (Pêcheux) e intervenções de cujo efeito de sentidos
que os constitui e sugestionam uma possível interferência na
“f
çã
óg c ” (O
, 2002)
sujeitos e nos seus
comportamentos.
Pode-se em alguma medida considerar como importante
qu ã
“ á c ”
Discurso (Rodrigues, 2011) sobre os
possíveis sentidos da vaidade masculina. O interesse por essa
temática prende-se ao fato de ser a discursividade que está em
evidência nos meios de comunicação de massa, como internet,
revistas, televisão, e de a beleza ser discutida em vários
momentos da história. O sentido da beleza do corpo é a
çã
“f
çõ
scu
”
“f
çõ
g á ” (O
, 2002) qu ê
x
e inquietações no contexto atual, e essa representação do corpo
belo pode se perceber nas práticas e valores sociais. Essas
características do comportamento marcam as posições ocupadas
pelo público masculino na sociedade e desvelam certas
evidências sobre a forma como a sociedade percebe esses
sujeitos e seus movimentos discursivos.
Como a materialidade discursiva presente nos
enunciados das respostas dos participantes revela as formas de
percepção da estética pelo sujeito masculino na sociedade
contemporânea, a partir da análise dessas respostas discursivas
pretendemos evidenciar, por meio de algumas regularidades
discursivas, como o sujeito masculino se constrói pela e na
Linguagem e como produz efeito os valores da sociedade
contemporânea.
Objetivo do presente trabalho é analisar a vaidade
masculina e, por conseguinte, com vista a identificar nesses
495
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
enunciados o sentido desse ho
“
”
çã à
beleza, vaidade e culto ao corpo.
Justifica-se a realização deste trabalho por tratar do
discurso sobre o homem na contemporaneidade, uma vez que o
sentido da imagem masculina está sendo reconstruída em cada
momento da história, para se verificar a materialidade da
linguagem, que é construída de valores e ideologia, presente no
discurso dos entrevistados, ao responderem o questionário.
Para o desenvolvimento da pesquisa se elaborou
questionário com (16) questões que versam sobre a vaidade
masculina. As questões são do tipo que exigem resposta
dissertativa.
Inicialmente pensamos no corpus composto por maior
número de questionários distribuídos em mãos e via email.
Contudo, em razão de apenas cinco (5) participantes os terem
devolvido, redimensionamos o objeto de pesquisa para os cinco
questionários respondidos e recebidos.
No presente estudo optamos pelo uso do questionário,
por julgarmos ser o instrumento que permitiria colher respostas
(enunciados) à pergunta formulada: Quem é este novo homem
vaidoso? Dessa forma adotamos o questionário composto de
dezesseis questões abertas, em que se utilizou uma linguagem
objetiva e de fácil entendimento, direcionadas a homens de
diversas faixas etárias. No questionário não serão explicitados
os nomes dos participantes ou qualquer peculiaridade que os
identifique, pois serão analisados apenas os enunciados. É
interessante observar a pesquisa de campo com questionário,
porque nos oferece uma quantidade maior de dados em pouco
tempo, apesar de que muitos não irão responder. Outro fator
relevante é que as respostas em alguma medida não será
influenciada pela entrevistadora.
496
ANAIS - 2013
A maioria dos entrevistados alegou a falta de tempo,
outros não se sentiram preparados para responder sobre o tema e
alguns disseram que não ser a pessoa mais indicada para
responder. Logo, julgamos os cinco (5) questionários serem
suficientes para compor o corpus.
1. Brevidade histórica da beleza masculina no decorrer da
história
Reportamo-nos a vários períodos da história para
podermos entender um pouco sobre o corpo e a vaidade
masculina na contemporaneidade. Vamos começar pelo berço da
civilização, de acordo com a história desse povo, o corpo e a
vaidade masculina eram algo preponderante na sociedade grega,
os homens dessa civilização eram muitos vaidosos e viris,
apenas eles (sexo masculino) possuíam uma identidade de
cidadãos (VICENTINO, 1997). A prática de esporte era quase
que uma obrigação, pois fazia parte da educação. O resultado
eram corpos perfeitos. Cultuava-se um corpo escultural e forte
por que neste período havia muitas guerras, além dos jogos
olímpicos. A perfeição do corpo está ligada à pureza da alma,
pois os povos desse período eram muito míticos e cultuavam
deuses. A preferência pelo esporte associava-se à boa saúde
física, à opulência de força e agilidade. Outro ponto que deixa
em evidência a beleza masculina desse período são as obras de
artes como as esculturas, pinturas, uma vez que através dessas
obras observa-se uma junção do equilíbrio e da harmonia, que se
fundem representando assim uma beleza ideal, harmônica entre
corpo e espírito. (VICENTINO, 1997.
Reportamo-nos à Mitologia Grega, em que Narciso de
tão perfeita beleza se apaixonou por si mesmo e acabou se
consumindo tornando-se uma flor. Temos também a estátua de
497
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Apolo do século IV, 350 a.c, da qual Petrus Camper, artista do
séc XVII, fez uso para mostrar sua tão perfeita formosura,
considerada a mais perfeita até o século XV. E ainda temos
Adônis, eleito como o modelo perfeito de beleza masculino.
Já no Egito o ideal de beleza masculina tinha que ter
quadris estreitos, ser magro, possuir cintura fina e ombros
largos. O homem egípcio usava vários acessórios como anéis,
pulseiras e pingentes. As roupas usadas por eles era uma saia
denominada chanti e sandália só era usada em ocasiões
especiais. Faziam uso da pele de animais. (VICENTINO e
DORIGO, 2002; LAVER, 2003). Nessa cultura era comum o
homem raspar a cabeça. O culto ao corpo e à beleza e ainda o
uso de objetos só era permitido para as classes superiores como
os faraós.
O homem dessa época fazia uso de cremes, maquiagem,
depilação e banhos aromáticos, faziam dietas para terem um
abdômen perfeito. Poderíamos dizer que o homem desse período
corresponderia ao metrossexual dos dias atuais.
Já no período da idade média a beleza estava associada
ao poder e ao status, pois a sociedade era separada por classes
como vassalo, cavaleiro e o nobre. Para pertencer à nobreza era
necessário possuir um título. A vaidade masculina estava
associada à honra, ao heroísmo e principalmente à religião, que
determinava de que forma o homem deveria se portar perante a
sociedade, pois o Cristianismo difundiu uma nova concepção da
beleza, tendo como fundamento a identificação de Deus com a
beleza, o bem e a verdade, nesse período a fé cristã e a lealdade
era de fundamental importância.
Quanto à beleza em relação à aparência do homem,
ainda não se tinha um modelo pré-determinado de corpo ideal,
mas sim seus títulos que ocupava um lugar na sociedade em
relação a sua aparência, quanto as suas vestimentas que deveria
498
ANAIS - 2013
ser glamourosas feitas de tecidos nobres como linho, a sarja, o
veludo e o brilho do ouro e da prata e pedrarias presentes nos
tecidos. Devemos lembrar que a sociedade era separada por
classes e só quem pertencia à nobreza tinha condições de usar
tais vestimentas. Mas a partir do momento que o homem passa a
ser o centro do universo, em que ele volta-se para si, há uma
ruptura, segundo Mota (2002), então o homem volta-se para as
ciências, a arte e os problemas sociais, o corpo e o culto ao belo
começa a ter valor, mas o que vai chamar a atenção nesse
período da Renascença é a beleza feminina, sendo representada
nas pinturas, na literatura. Mona Lisa é a mais notável e
conhecida obra do pintor italiano Leonardo da Vinci, a beleza
retratada nesta época é mulher gordinha, rosto alvo como uma
pluma, olhos claros, meiga, delicada, pois ser gorda era
sinônimo de saúde, riqueza enquanto que a magreza era
associada pobreza.
A partir do século XVIII e XIX o homem começa a ter
comportamento não padronizados para a época, ficam mais
evidentes as práticas homossexuais na sociedade, esse
comportamento traz mudanças quanto à separação de classes,
surgindo novos grupos sociais. Brandini (2003) afirma que os
homens desse período usavam maquiagem, acessórios, saltos e
até perucas. Um homem que pode ser citado como representante
dessa época é Luiz XIV, pois era extremamente extravagante.
Engel (ENGELS, apud CARDOSO e VAIFAS, 1997,
P.297), afirma que , após as transformações dos costumes,
iniciada no século XIX, pôde-se observar a sexualidade a partir
de duas possibilidades: a primeira trata da história dos discursos
sobre sexo, tendo em Foucault seu mais importante
representante uma vez que questiona o caráter repressivo dos
discursos, e a segunda volta-se para o cotidiano da sexualidade e
499
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
privilegia o estudo comportamental a partir dos diferentes usos
do corpo.
Foucault (apud CARDOSO e VAIFAS, 1997, P.301)
afirma que o século XVII teria representado o início de um
tempo de repressão das sociedades burguesas. Mas nas
sociedades contemporâneas segundo Engel, (idem, p.301) , a
repressão da sexualidade assume outra dimensão, pois não é
mais elemento essencial para as sociedades se pensar a questão
da sexualidade contemporânea.
Conforme Engel (idem, p.304) a produção
historiográfica, que aborda o
“sexua
”, tem recebido
grandes contribuições, por exemplo, dos
u
“Nova
H ó ”, que traz o diferencial na incorporação de novos
objetos, como: a sexualidade, o corpo, as relações afetivas e
amorosas. Esses estudos produzidos buscam compreender os
comportamentos sexuais tão polêmicos e ainda ocultos.
No Brasil, a partir da década de 60, o interesse pelos
temas relacionados ao sexo cresceu muito, como diz Engel
(
, 309): “É importante assinalar que tal produção tem se
caracterizado por uma busca constante no sentido de
empreender abordagens originais e, portanto, mais adequadas às
especificidades da sociedade b
”
No entanto Engel considera importante, temas como: a
sexualidade, o amor, o corpo, que se incorporaram à história,
revelando mais a vida cotidiana, repleta de divergências e
conflitos, um palco ideal para se aprofundar o conhecimento da
sociedade.
Já quanto à questão identitária em relação ao homem
contemporâneo, percebe-se uma reconfiguração, pois com os
avanços tecnológicos, globalização e intervenção dos meios de
comunicação de massa, esse novo sujeito que antes era
possuidor de uma identidade única e estável, agora se encontra
500
ANAIS - 2013
na atual contemporaneidade Fragmentado, pois já não possui
uma única identidade, em razão das mudanças sociais,
econômicas, culturais e comportamentais, devido as
transformações que a atual sociedade vem sofrendo. Logo quem
retrata bem estas questões é Stuart Hall, que vai dizer:
A identidade
plenamente
unificada,
completa, segura e coerente é uma fantasia.
Ao invés disso, à medida que o sistema de
significação e representação cultural se
multiplica, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis, com cada uma das
quais poderíamos nos identificar ao menos
temporariamente. (HALL, 2005, p.13)
O que se verifica é que o sujeito masculino encontra-se
sem um lugar definido, e essa situação causa certa inquietação
quanto a sua identidade, já que esse sujeito é interpelado e
atravessado pelos discursos ideológicos e historicamente
construídos nos meios sociais e culturais.
2. A linguagem em questão: Análise do Discurso
A análise do discurso, segundo Orlandi (2001, p.15), foi
produzida a partir do momento em que os estudiosos passaram a
se interessar pela linguagem de um modo diferente daquele da
linguística ou da gramática normativa. Por conseguinte, o objeto
de estudo da análise do discurso é o próprio discurso, que se
caracteriza como a palavra em movimento, ou seja, é o estudo
do discurso do homem quando este está falando.
Tenta-se entender a língua como uma composição
sociável do homem e de sua histó , “como uma mediação
501
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
entre o homem e a realidade natural e social” (ORL NDI,
2001). O discurso é o que torna possível ao homem formar uma
nova realidade, pois trabalha com a língua no “ u
”, levando
em consideração a produção de sentidos enquanto parte da vida
de cada ser humano; logo, para se analisar o discurso de
determinado indivíduo na sociedade é preciso entender a
linguagem e seu interior e o que esta fora dela. Sobre isso,
Orlandi (2001, p 16) afirma que:
“D
maneira, os estudos discursivos
visam passar o sentido dimensionado no
tempo e no espaço das práticas do homem,
descentrando a noção de sujeito e
relativizando a autonomia do sujeito do
bj
guí c ” (ORLANDI, 2001,
p.16)
Como a prática da análise do discurso trabalha com a
realidade da linguagem, critica a prática das ciências sociais e da
linguística, porque tratam a linguagem como materializada na
ideologia, além do que, também estuda a maneira como a
ideologia se manifesta na língua.
Consoante Orlandi (2001, p.17), a
çã “ í gu discursog ”
complementa com a tese de Pêcheux de
qu “não há discurso sem uj
”, nem sujeito sem ideologia
Deste modo, o sujeito é interpretado a partir da ideologia e
assim a língua passa a fazer sentido e, por sua vez, o discurso é
onde se processa a relação entre língua e ideologia, entendendo
qu “ língua produz sentidos por / para os uj
”
Diferente da análise do conteúdo, que busca entender o
que o texto quer dizer, de acordo com Orlandi (idem), a análise
do discurso não trata a linguagem como algo transparente, ou
502
ANAIS - 2013
seja, ela não procura encontrar um sentido oculto para o texto,
mas entender o que o texto significa.
A análise do discurso perpassa diferentes campos do
saber, como as teorias da linguística, do Marxismo e da
Psicanálise. A linguística contribuiu para a análise do discurso,
de acordo com a autora, pelo fato de afirmar que a linguagem
não era transparente, tendo a língua como seu objeto próprio:
“E
f
çã é fundamental para a
análise do discurso, que procura mostrar que
a relação linguagem / pensamento / mundo
não é unívoco, não é uma relação direta que
se faz termo - a - termo, isto é, não se passa
diretamente de um a outro. (ORLANDI,
2001, p-19)”
Nos estudos linguísticos, segundo Orlandi (2001, p.19)
forma e conteúdo não se separavam, pois a língua era entendida
como uma estrutura com significante a partir do sujeito da
história: dessa forma, é importante estudar a divisão feita a
respeito da Análise do discurso:
“I- estuda a língua em sua ordem própria e relativamente
autônoma;
II- o quanto o simbólico afeta o real, em nível histórico.
III- o sujeito discursivo funciona através do inconsciente
g ” (ORLANDI, 2001, p.19).
Assim, ainda que receba influência da Psicanálise, da
Linguística e do Marxismo, a Análise do Discurso se afasta
dessas ciências ao questionar o fato de a linguística deixar a
historicidade de lado, de o materialismo não se deter no
simbólico, e também se distingue da Psicanálise porque esta
trabalha a ideologia relacionada ao inconsciente e à linguagem.
503
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Para Pêch ux (1997), “Discurso é o efeito de sentido
entre
cu
”, portanto é importante não confundir
discurso e fala, já que este é regular e tem seu funcionamento
apreendido se não se opuser o social ao histórico; sistema à
realização, o subjetivo ao objetivo. A análise do discurso faz um
recorte diferente de língua e discurso, pois nem o discurso é
visto com liberdade, nem a língua como algo fechado sem erros.
Assim a língua é entendida como condição para que o discurso
ocorra e, conforme a autora (idem, p.25), constitui-se entre a
Filosofia e as Ciências Sociais, reunindo em seu campo de
estudo três diferentes teorias: a teoria da sintaxe e enunciação,
da ideologia e a teoria do discurso, determinada pelos processos
de significação histórica. Em outras palavras, a análise do
Discurso (ORLANDI, 2001) estuda a interpretação, para
compreender o modo que determinados símbolos produzem
sentidos num determinado contexto. A interpretação, segundo a
autora, procura no texto outras significações, para que seja
possível a compreensão das outras vozes do texto. Dessa forma,
resume a Análise do discurso como uma teoria que:
Visa à compreensão de como um objeto
simbólico produz sentidos, como ele está
investido de significância para e por
sujeitos. Essa compreensão, por sua vez,
implica em explicitar como o texto organiza
os gestos de interpretação que relacionam
sujeitos e sentido. (ORLANDI, 2001, p.2627).
Os sentidos, como afirma a autora ,idem, p.30), não se
encontram apenas nas “palavras dos textos, mas em sua relação
com o exterior e nas condições em que eles são produzi ”
(Efeito da posição do sujeito, momento histórico...). E as
504
ANAIS - 2013
condições de produção do discurso envolvem tanto o sujeito
quanto a situação e a memória.
As condições de produção podem ser entendidas de
forma restrita, limitando-se ao contexto imediato ou de forma
ampla, incluindo o contexto social, histórico e ideológico. Já a
memória, segundo Orlandi (idem, p.31), é tratada como
interdiscurso, ou seja, o que fala antes, em outro lugar, o que já
foi pré-construído anteriormente.
Para se compreender o discurso, a autora (2001, p.32)
diz que é preciso levar em consideração a existência de u “já”, qual sustenta a possibilidade de todo discurso. Então há
uma relação entre o já–dito (constituição do discurso) e o que se
diz (formulação do discurso), ou seja, entre o interdiscurso e o
intradiscurso. O interdiscurso é um conjunto de formulações
feitas e esquecidas que determinam o que dizemos.
De acordo com a autora, para pensarmos
discursivamente a linguagem, é necessário entender o conceito
de Paráfrase e Polissemia:
A paráfrase representa assim o retorno ao
mesmo espaço do dizer. Produzem-se
diferentes formulações do mesmo dizer
sedimentado [...] ao passo que, na
polissemia, o que temos é deslocamento,
ruptura de processos de significação.
(ORLANDI, 2001, p.36).
Ao analisar a relação entre paráfrase e polissemia,
compreende-se que o político e o linguístico se inter-relacionam
na constituição dos sujeitos e na produção dos sentidos.
Conforme Orlandi (idem, p.39), as condições de
produção do discurso dependem de certos fatores, quais sejam: a
relação de sentidos, afirmando que os discursos se relacionam
505
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
entre si, pois são vistos como estado de um processo discursivo
mais amplo e contínuo; o mecanismo de antecipação ocorre
quando o sujeito se coloca no lugar de um ouvinte, antecipando
a seu interlocutor quanto ao sentido de suas palavras; a relação
de forças, ou seja, o lugar onde fala o sujeito é parte do que ele
diz, essa relação está baseada no poder que determinados
lugares concebem a pessoa que o ocupa; por fim, o último fator
relaciona-se a formações imaginárias, como diz a autora fazem
parte da linguagem, na medida em que se firmam no modo
como as relações sociais ocorrem na história e são governadas
pelas relações de poder em nossa sociedade.
P
O
(
, 43), “f
çã
cu
ӎ
base para a análise de
cu , “pois permite compreender o
processo de produção dos sentidos, a sua relação com a
g ” É formação discursiva que determina o que pode e
deve ser dito em determinada comunidade, relacionada
estritamente às formações ideológicas. Por isso os sentidos
sempre são determinados ideologicamente.
Um dos grandes pontos de debates da análise do
discurso, para a autora, é a noção de ideologia:
O fato mesmo da interpretação, ou melhor, o
fato de que não há sentido sem
interpretação, atesta a presença da ideologia.
Não há sentido sem interpretação e, além
disso, diante de qualquer objeto simbólico o
homem é levado a interpretar, colocando-se
diante da questão: o que isto quer dizer?
(ORLANDI, 2001, p-45).
A ideologia, segundo Orlandi (idem, p.46), interpreta e
nega essa interpretação e é esse mecanismo ideológico que
transforma as formas materiais em outras, de onde se infere que
506
ANAIS - 2013
o trabalho da ideologia é produzir evidências. É também
condição para a constituição do sujeito e dos sentidos, sendo que
a evidência do sentido apaga seu caráter material, ou seja, faz
ver como transparente, o que se forma através da remissão, a um
conjunto de promoções discursivas que funcionam com uma
dominante.
Já a evidência do sujeito apaga o fato de o indivíduo ser
interpelado pela ideologia, essas evidências que fazem o sujeito
entender a realidade como um sistema de significações
experimentadas.
Dessa forma, a ideologia é uma função necessária da
relação entre a linguagem e o universo, produzindo
interpretação, garantida pela memória sob dois aspectos: a
memória institucionalizada envolve o trabalho social da
interpretação e a memória constitutiva, o trabalho histórico da
constituição do sentido.
De acordo c
O
(2001, 48), “não há realidade
g ”, já que é esta que faz com que haja sujeitos que
só têm acesso a parte do que diz, pois para se constituir e
produzir sentidos é afetado pela língua e pela história.
Ao analisar a relação forma-sujeito atual, depreende-se
de Orlandi (idem, p.50), que o sujeito é livre e submisso ao
mesmo tempo, ou seja, pode dizer tudo desde que se submeta à
língua.
Para se entender essa ambiguidade, é preciso levar em
consideração a historicidade do sujeito que, ao mesmo tempo
em que determina o que diz, é determinado também pela
exterioridade das suas relações de sentido.
Após oferecer alguns dos aspectos metodológicos na
constituição do corpus e no recorte de enunciados constituídos
por alguns discursos, neste tópico efetuaremos a análise dos
dados como segue:
507
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
3.Análise dos dados
(01)
(02)
(16)
(17)
(32)
(33)
(47)
(48)
1.1- “D cu “ b
cu ”
“O h
é
c
u çõ
se cuida pensando em si. A mulher é vaidosa em todas
situações e se cuida pensando no que as outras vão achar. ( q
01, p 01. )
“ h
h j cu
u
u ,
qu ã é
por vaidade, e sim porque ele tem mais tempo para cuidar de
si e talvez por uma exigência da sociedade em que vivemos.
(q.01, p.02)
“
uh
ã
qu
g
c
u ;
é qu
c ” (q 02, 1)
“D
h
M já é
í
u
cu çã ,
por parte dos homens, relacionada à vaidade. (q.02, p.02)
“P
ã c
z
xg
” “Qu
z
bé
qu
gu
u ” “O h
buscam na
uh b z , é c ,
ê c ” “
uh
bu c
u
uc
cu
,
,
gâ c
” (q 03,
p.01)
“T
h
u
c
” “f
cu
c
“b
” “D g -se de passagem, que
f c
f
”, “
poucos foi sendo inserido em nossa sociedade que homens
ã ã
”, u qu
cu
é“ ô
do não cuidado pessoal –
x ” (q 03, 02)
“
cu
é
bá c ”, “
f
é
x
g
”, (q 04, 01)
“
ê c é
çã
”, qu
todo s hu
c
c
“
u
” (q 04, 02)
Nos enunciados (01), (02) e (47), o discurso faz
referência de sentido à mulher para significar a vaidade
508
ANAIS - 2013
masculina, pois ao contrário do discurso sobre a vaidade da
mulher, o discurso do homem se apresenta com sentido de
unidade. Em certos momentos que lhe convêm, ele se cuida para
g fc
“b
” c
g
,
sentido atribuído pelos outros, bem ilustra isso os enunciados
Toma-se o seguinte enunciado, ora citado,
anteriormente:“O h
é
c
u çõ
e somente se cuida pensando em si. A mulher é vaidosa em
todas as situações e se cuida pensando no que as outras vão
ch ” N -se que no enunciado ocorre uma reestruturação do
primeiro período, que pode ser considerada como uma paráfrase
c
á ,
“
c
u çõ ” c
sponde ao
“
u çõ ” A paráfrase, para AD é
discutida por Orlandi ( 2001, 36) c
“o retorno ao
mesmo espaço do dizer. Produzem-se diferentes formulações do
mesmo dizer sedimentado [...] ao passo que, na polissemia, o que
temos é deslocamento, ruptura de processos de significação ”
Logo a posição do sujeito homem representa que o
sentido vaidade não está associado aos valores sociais, (47) “
vaidade masculina ela é mais básica”, porém podemos perceber
que esse comportamento se classifica como ingênuo ou como
u
“ á c ”,
qu
ã
u
qu
assujeitado aos padrões de sentidos ditados pela sociedade atual,
u
, ã
u
qu u “ c h ” ã
pela relação que tem com o outro.
Nesse sentido o enunciado nos permite observar que o
discurso tem uma posição ideológica de que a vaidade cabe à
mulher em qualquer situação, ao contrário do homem, só em
algumas situações. Observa-se também uma ênfase na oposição
de sentidos entre sujeito masculino e sujeito feminino, pois,
tomando como referência de sentido o sujeito feminino _ora
“rotulado vaidoso em todas as situações”,
sujeito masculino
utiliza-se de um discurso já enunciado por outros, que “ u h
509
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
é vaidosa em todas as situaçõe ”. Para formular o seu dizer
produzindo novo sentido, ou seja, o masculino se opõe ao
f
f qüê c já qu é
“
c
u çõ ”
Verifica-se qu
u
éb
“
”
antecedendo os itens lexicais “c
u çõ ” força a ideia
de que o homem não se cuida constantemente, pois o pronome
f
“c
” qu
gu , u
j ,
gu
momento é vaidoso. Enquanto que no “
x c “ todas as
u çõ ”,
“
”,
culino, que também
pode
g
c
éb “
” c
totalmente, inteiramente, de forma que o sujeito feminino é
constantemente vaidoso.
Os discursos contemporâneos ditados pelos meios de
comunicação como Internet, jornais, revistas e televisão são
carregados de significação, onde os sujeitos homens e mulheres
são assujeitados e há uma certa inquietude e cuidados com a
imagem e com a estética corporal, essas mudanças de
comportamento são observadas no consumo de determinados
produtos que surgem no
c
N
u c
(16) “
uh
ã
qu
g
”,
-se do sujeito
masculino se posicionando, pois o ato de consumir torna-se
referência representativa na construção de identidade desse novo
homem. Pois apesar de ele gastar menos não nega a sua posição
de ser vaidoso. Mas reforça o contraste entre sujeito masculino e
feminino ressaltando que as mulheres são mais vaidosas. A
“
é qu
c ”, demanda uma certa dúvida
ao afirmar que as mulheres gastam mais, ou pode ser uma
estratégia do sujeito para tornar o seu discurso como impessoal,
o que faz com que seu discurso pareça verdadeiro.
N
u c
(32)
(48), “
uh
, c
costume, são muito mais exigentes e se cobram muito mais que
510
ANAIS - 2013
h
”,
surge a vaidade como comum ao sujeito
mulher, entretanto, por meio de um vocabulário carregado de
significação religiosa e conser
“ h
bé
ê
u
c
cu
ã c
z
xg
”
atribui-se ao sujeito homem o Discurso de responsabilidade na
adoção das representações dos valores estéticos pelo sujeito
mulher. A oposição entre feminino e masculino é feita por meio
dos adjetivos usados para nomear os aspectos que são buscados
no outro pelo sujeito homem (beleza, estética, aparência) e pelo
sujeito mulher (um pouco mais de cuidado, asseio, elegância e
estilo).
A seleção do léxico usada neste discurso para qualificar
os sujeitos permite entrever algumas formações discursivas
apropriadas pelo sujeito homem para significar a vaidade
feminina e a masculina. Dessa forma, o sujeito mulher é
associado ao vocabulário que remete a sentidos de perfeição de
formas, ilusão, disfarce. Já o Sujeito homem é referenciado
como pensado, apurado no trajar, responsável e com estilo. Se
fizermos a oposição lexical entre adjetivos que representam os
gêneros evidencia-se que o sujeito masculino reporta-se a
mulher de modo conservador, reiterando os valores culturais e
religiosos de que a vaidade do sexo feminino relaciona-se com a
ausência do real, aspecto do iludir e disfarçar, levando a uma
representação de que forma e conteúdo não estão presentes
simultaneamente nas características femininas.
No enunciado (33) percebe- u
c
çã “
f c
f
”, ois sabe-se
que em vários momentos da história o sujeito homem se
mostrou vaidoso 3, e não só nos nossos dias. O comportamento
masculino aparece no discurso como resultado da necessidade
3
Veja em: Brevidade histórica da beleza masculina no decorrer da história
nas referências
511
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
de adequação ao que é exigido do sujeito homem na
c
, “
u
x
cu
f
tendo que se adequar com palavras do tipo: homem não chora;
é c
“boiola”, uma vez que se reprime o
comportamento estético distinto do que se tem como aceitável
x
cu
,
g
c c
,“
cu
uu
éc
c c
”
No enunciado, percebe-se um discurso conflituoso, pois
o sujeito se posiciona como um assujeitado às significações e
representatividade dos valores estéticos utilizados pelo sujeito
feminino e reconhece a influência da mulher, na mudança de
representação dos valores estéticos, desse novo homem, Ainda
que não anunciado de forma objetiva, nota-se presente a crença
de que a vaidade é um valor atribuído ao sexo feminino e, por
isso, os homens que a adotam poderiam ficar confusos entre
identidade masculina e identidade feminina.
Dentro dessa produção, profundamente
diversificada e até mesmo divergente sob
vários aspectos de ordem teórico –
metodológica, a sexualidade afirma-se, cada
vez mais, como um objeto fundamental na
busca da compreensão dos possíveis
significados
das
relações
humanas,
consideradas nos seus mais variados e
complexos sentidos. (ENGEL, Apud
CARDOSO; VAIFAS, 1997, p. 297)
Porque mesmo trabalhando fora, as mulheres não
deixaram de exercer as funções básicas de mãe e de donas de
casa, para as quais tinham sido socializadas e educadas. Logo a
beleza desse sujeito mulher era observada a partir do seu
comportamento na sociedade que na época era conservadora.
512
ANAIS - 2013
Já no final do século XX, os movimentos feministas
trouxeram a representação da Mulher moderna; mas quando
retomamos a história percebemos que este sujeito feminino, já
fazia parte da sociedade Grega Romana, na Grécia, na Idade
Média, contudo não possuía uma identidade própria, por que
ficava restrita aos seus afazeres, a espera do momento ideal para
entrar no campo de batalha. A mulher moderna surge no
mercado de trabalho, após a segunda guerra mundial e da
necessidade, pois muitas mulheres perderam seus maridos
durante a guerra, logo o sujeito mulher necessita trabalhar e
passa a ser de certa forma a provedora do seu lar. E foi assim
que a mulher moderna conseguiu seu espaço, porém este sujeito
feminino,ainda hoje recebe um salário inferior ao do homem.
Contudo também existem mulheres que continuam
vivendo como no passado, pois vivem apenas para a casa,
marido e filhos. Não expõem seu corpo e às vezes até seu rosto,
um exemplo disso são os sujeitos mulheres no Afeganistão,
além desses sujeitos existem outras que continuam sendo
totalmente dependentes de seus maridos. Então é interessante
observamos que nesta sociedade atual ainda temos a
apresentação do sujeito mulher com traços conservadores.
Quanto ao aspecto físico dos relacionamentos, pode-se
dizer que os sujeitos masculinos . estão mais carinhosos e
companheiros, mais participativos, porém mais exigentes
também. Hoje em pleno o século XXI o discurso da mulher
é“ u
” “ u c ig ”, “ u qu ”
f z
várias classes sociais. Este sujeito mulher moderna é organizada,
eficiente, trabalha muito, é vaidosa, tem tempo para zelar da
casa, dos filhos e marido. Há a uma formação discursiva em que
esse sujeito mulher moderna se mostra determinada. Logo
qu
z“ u
”,
b “
”
ó, já é
palavra carregada de significação. Nesse sentido o sujeito
513
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
feminino reforça essa ideia de transformação do comportamento
do sujeito homem. Podemos verificar que o sujeito feminino
procura exercer o seu poder sobre o sujeito masculino, na qual
há uma intenção de moldar o comportamento do sujeito homem.
A questão é que nem todos os sujeitos homens aceitam
que esse sujeito dominador feminino exerça poder sobre o seu
comportamento. Logo esse sujeito também pode se rebelar, o
fato é que muitos acabam se separando da família em
decorrência da atitude dessa nova mulher. Podemos entender
também que esta é uma atitude do homem machista, que para
tentar mostrar que é ele, e não a mulher que impõe regras ou
comanda a situação. Este é um meio, uma tentativa de manter o
poder sobre a mulher. São tantos os discurso sobre a história do
sujeito masculino e feminino, que nos faz observar que está
ocorrendo uma re-configuração desses novos sujeitos,
principalmente quanto ao comportamento do sujeito mulher,
pois n u c cu â c é
qu
“ ”
rmina como
ela quer ser tratada e vista por esse sujeito homem.
O discurso mudou, há uma inversão de valores, quanto à
representação e posição que o sujeito masculino ocupa na vida
de algumas mulheres. Logo é sabido que o sujeito feminino
conquistou seu espaço e tem marcado sua posição de sujeito
independente e dona da sua própria vida. O discurso hoje das
mulheres tidas como modernas quando se trata da questão da
vaidade masculina, elas estão muito mais exigentes com seus
esposos, namorados. A mulher moderna também quer um
homem moderno, não só moderno fisicamente, mas
intelectualmente também. Que seja companheiro que trate o
sujeito feminino com total carinho e respeito; que ajude a
preparar as refeições, que ajude na limpeza da casa e mais que
seja um bom amante. Já que, antes algumas mulheres eram
514
ANAIS - 2013
reprimidas em relação ao sexo, não podiam expor a suas
vontades e desejo.
Diante deste discurso feminista, o sujeito mulher passa a
g
: “Eu
b s , u ã
c
u ” “Eu u
c
,
u
” “E
embora, ele não me
f á f ” “P
u c
u
b h
cu
u f h ” E
scursos causam no sujeito homem sem
uma grande confusão mental, já que esse sujeito masculino
sempre foi tido historicamente como o provedor da mulher e dos
filhos, então essas mudanças comportamentais acabam criando
uma deformação nas identidades desses sujeitos, por que esses
sujeitos homens se sentem vulneráveis e acreditam que não tem
espaço ou utilidade na vida desse sujeito feminina, tão poderosa
que se basta por si só, então acabam se sentido abandonado e
fragilizado, pois perderam o seu lugar de provedor.
Devido a u ç
c
“
”
mulher autossuficiente, o comportamento desse sujeito homem
“
” c
â ,
bé
u u,
eles estão mais
cuidadosos com o corpo, investem mais em produtos de beleza,
praticam mais atividade física e até frequentam salões de beleza
especifico para homens.
4.Considerações finais
Nesta interpretação das representações do novo sujeito
masculino e feminina, nos diferentes discursos enunciativos
sobre sua vaidade, observou-se que os enunciados nos mostram
os novos valores significados pelo sujeito homem do início do
século XXI, que busca se posicionar no seu contexto social em
relação à vaidade, pois se reportarmos aos enunciados veremos
que as representações do gênero masculino estão associada à
515
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
virilidade, enquanto que o gênero feminino está associado à
sedução e beleza de formas.
Assim como na sociedade egípcia, verifica-se nos
questionários recebidos que a posição social dita regras quanto à
vaidade masculina, desse modo percebe-se que com a revolução
feminina e a nova posição da mulher moderna na sociedade,
abandonando velhos comportamentos sociais e culturais, tal
c
“ x f ág ” O fato é que o homem passou a se
sentir inseguro, pois perdeu o comando de chefe de família, até
por que o sujeito mulher não implica necessariamente que
precisa de um homem para sustentá-la, mas sim para amá-la.
Pode-se verificar no decorrer da análise que, apesar de
estarmos no século XXI, o sujeito homem relaciona a vaidade
do sexo masculino à homossexualidade, talvez por que os
acontecimentos produzidos pela história resultam na visão de
que, segundo um imaginário que afeta os sujeitos em suas
posições sobre gêneros, a vaidade é vista como valor positivo
apenas para o sexo feminino. Nas palavras de Rodrigues:
(...) nenhum individuo tem sua existência
por si só, ele se constitui social e
historicamente, o que equivale dizer que é
no seio, e só nele, de grupos quer étnicos ou
sociais que o individuo nasce e se forma. As
características físic , cu u , “
”
etc. são marcas, referencias, traços
desenvolvidos, adquiridos, transformados e
adaptados ao longo da existência social e
das trocas que os grupos e/ou indivíduos são
submetidos ao longo de sua trajetória de
vida. (RODRIGUES, 2011, P.21).
516
ANAIS - 2013
No discurso desses enunciados observa-se que ainda há
resistência em relação ao discurso beleza masculina e que
alguns conceitos machistas continuam, porém devido ao
discurso e as exigência do público feminino, o homem tem
procurado inovar, pelo menos é o que representa nos enunciados
analisados. No entanto, vimos, que o sujeito mulher moderna
vive uma situação dramática, pois apesar ser reconhecida por
sua capacidade intelectual, sofre por não ter a presença de
alguém que lhe carinho e amor o suficiente da forma que
gostaria.
De acordo com as regras estabelecidas e os modelos prédeterminados pela sociedade, o sujeito feminino terá “ uc
”,
em todos os aspectos, incluindo sua aparência física, porém ele
será mais sozinho. Portanto, por mais que o sujeito feminino
tenha conquistado, ao longo dos séculos, muitas vitórias,
sucesso profissional, estético, ele adquiriu a sua liberdade,
espaço e reconhecimento como sujeito pensante, inteligente.
Esse sujeito mesmo com todas as conquistas em pleno século
XXI, ainda se encontra oprimido, agora por questões emocionais
e psicológicas.
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18
janeiro
de
2012.
519
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Educação e inserção profissional de jovens e adultos com
deficiência: os discursos entre escola e trabalho
Glaucimara Lopes Schneider HOVA1
Mirella Villa de A. Tucunduva da FONSECA 2
RESUMO O presente artigo visa apresentar as bases de um processo
de investigação em andamento sobre a evolução dos direitos de jovens
e adultos com deficiência, bem como sobre o aprofundamento teórico
dos determinantes históricos na educação e na consequente
profissionalização desses sujeitos. A partir do movimento
arqueológico, o estudo tem por objetivo investigar a relação entre a
educação, a educação profissional e a realidade que jovens e adultos
com deficiência enfrentam na inserção no mundo do trabalho.
Metodologicamente, por meio dos pressupostos teóricometodológicos de Michel Foucault, propõe-se realizar uma leitura
acerca dos discursos proferidos, explicitados e silenciados em uma
análise do campo epistemológico foucaultiano em relação à produção
discursiva sobre a profissionalização de jovens/adultos, desvelando,
assim, as estratégias e as táticas que formam as unidades discursivas
da atividade profissional no que tange à importância da escolarização
e da profissionalização para pessoas com deficiência.
PALAVRAS-CHAVE: Educação de jovens e adultos; Deficiência;
Profissionalização.
1
Mestre em Educação pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD) e membro do Grupo de Estudos e Investigações acadêmicas nos
Referenciais Foucaultianos (GEIARF) – [email protected].
2
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação PPGedu da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – Orientador Prof Dr
Antonio Osório - Linha de Pesquisa Educação e Trabalho e membro do
Grupo de Estudos e Investigações acadêmicas nos Referenciais
Foucaultianos (GEIARF) - [email protected].
520
ANAIS - 2013
Este artigo parte da avaliação do contexto das políticas
educacionais e de reflexões a partir de investigações
desenvolvidas nas diferentes temáticas da área de educação e do
trabalho, bem como dos processos teórico-metodológicos
utilizados nas produções de pesquisadores que discutem essas
temáticas e suas diferentes implicações para a educação.
Buscamos relacionar escola e trabalho partindo do
pressuposto de que, em geral, os estudos sobre a educação de
jovens e adultos têm apontado a importância, na concretização
do aprendizado da leitura e da escrita, das condições de vida dos
sujeitos, das representações sociais construídas por esses
sujeitos e, recentemente, das hipóteses que formulam esse
aprendizado. No entanto, nos estudos, tais aspectos não são
explicitados como categorias interdependentes de análise para
uma compreensão da problemática e tampouco na
especificidade das necessidades do jovem/adulto com
deficiência.
A partir dos referenciais foucaultianos, antes de
ambicionar a origem exata de uma prática, de um saber, de um
discurso, faz-se necessário localizar os discursos que colocam
em funcionamento uma política, no caso, a política de inclusão
das pessoas com deficiência como um dispositivo de segurança,
constituído de um conjunto de práticas discursivas com que o
poder investe na população.
Nessa perspectiva verificamos que a especificidade do
tema inclusão do jovem/adulto com deficiência vem
contribuindo para uma prática fragmentada da escolarização que
focaliza como dificuldades ora o método de ensino, ora as
carências físicas e psicológicas dos indivíduos, além das
condições socioculturais do sujeito adulto. Na prática, a
fragmentação se dá no método didático-pedagógico, pela ênfase
na alfabetização, no aspecto mecânico e repetitivo do ler e do
521
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
escrever, no uso exclusivo de recursos materiais como a cartilha,
na descaracterização do ato pedagógico e, até mesmo, na
interpretação dos níveis de conceptualização da escrita.
O interesse em abordarmos o tema sobre a inserção de
pessoas com deficiência no mundo do trabalho partiu das
pesquisas realizadas por Villa (2003) e Hova (2008) as quais nos
permitiram observar que as finalidades da escolarização do
jovem/adulto com deficiência mental, como também para
pessoas com outras deficiências, convergem para o objetivo de
inserção no mercado de trabalho. Ao tomar o enfoque da
escolarização, tais trabalhos possibilitaram uma reflexão
particularmente desafiadora acerca dos problemas enfrentados
por pessoas com deficiência em diversos setores sociais.
Possibilitaram, ainda, compreender, por meio dos enunciados
presentes nos depoimentos das pessoas com deficiência, se as
necessidades que determinam a construção do saber escolar se
ampliam e se diferenciam no processo, contribuindo para a
melhoria da vida prática desse aluno.
E “
qu
g
b ”, c
c c çã
de discurso, a partir de Foucault (2007, p. 122) como um
“c ju
u c
qu
u
formação; é assim que poderei falar do discurso clínico, do
discurso econômico, do discurso da história natural, do discurso
qu á c ”
,
cu
respeito da inclusão das pessoas com deficiência, é preciso uma
análise constituída por todos os enunciados efetivamente ditos,
escritos ou silenciados a esse respeito.
Com base nos princípios presentes na Constituição
Federal, o sistema de educação brasileiro é regido pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Lei 9.394/96. A
referida Lei estabelece dois níveis para a educação: a educação
básica e a educação superior; duas modalidades: a educação de
522
ANAIS - 2013
jovens e adultos e a educação especial; e uma modalidade
complementar: a educação profissional.
A educação profissional tem como objetivos não só a
formação de técnicos de nível médio, mas a qualificação, a
requalificação, a reprofissionalização para trabalhadores com
qualquer escolaridade, a atualização tecnológica permanente e a
habilitação nos níveis médio e superior. A educação profissional
deve levar ao permanente desenvolvimento de aptidões para a
vida produtiva.
Por outro lado, Ferreira (1994) afirma que o caráter
embrionário do processo de escolarização da pessoa com
deficiência pode ser ilustrado pela dificuldade de se construir
uma sintonia de pensamentos e ações conjuntas dos diversos
segmentos sociais e/ou instituições envolvidas. Os esforços com
relação à problemática da pessoa com deficiência estiveram
sempre descontextualizados na medida em que não são
correlacionadas nem com o desenvolvimento da educação em
geral, tampouco com as transformações sociais, políticas e
econômicas por que passaram.
Segundo alguns autores (Saviani, 1987; Demo, 1998), a
educação é compreendida como uma forma de reproduzir o
modo de ser e a concepção de mundo de pessoas, grupos e
classes, através da troca de experiências e de conhecimentos.
Essa concepção de mundo inclui crenças, ideias valores, formas
de trabalho e de organização social, cultural, entre outros. A
educação é concebida ainda como uma ação que desemboca
numa série de práticas de produção da vida social, tais como:
preparação dos indivíduos mais jovens para a ação futura na
sociedade, socialização de processos produtivos de bens
materiais, transmissão da herança cultural e de novas formas de
trabalho.
523
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
No Brasil, há um consolidado discurso sobre a
democratização da educação, bandeira dos movimentos sociais,
de longa data. Podem-se identificar em nossa história inúmeros
movimentos, gerados pela sociedade civil, que lutam pela
ampliação do atendimento educacional. Para tais movimentos, o
Estado vem atendendo a essas reivindicações de forma muito
tímida, longe da universalização esperada.
Nas diversas instâncias do poder público – União,
Estados, Distrito Federal e Municípios –o esforço em atender às
demandas sociais por educação básica materializa-se de forma
focalizada e restritiva. Com isso, parcelas dos jovens e adultos
ficam à margem do atendimento no ensino fundamental e têm
atendimento ainda insuficiente pelo Estado. É importante
destacar que a democratização da educação não se limita ao
acesso à instituição educativa. O acesso é, certamente, a porta
inicial para a democratização, mas torna-se necessário, também,
garantir que todos os que ingressam na escola tenham condições
de nela permanecer, com sucesso. Assim, a democratização da
educação faz-se com acesso e permanência de todos no processo
educativo, dentro do qual o sucesso escolar é reflexo da
qualidade. Mas somente essas três características ainda não
completam o sentido amplo da democratização da educação.
A demanda social por educação pública implica, pois,
produzir uma instituição educativa democrática e de qualidade
social, devendo garantir o acesso ao conhecimento e ao
patrimônio cultural historicamente produzido pela sociedade,
por meio da construção de conhecimentos críticos e
emancipadores a partir de contextos concretos. Para tanto,
considerando sua história, suas condições objetivas e sua
especificidade, os sistemas de ensino devem colaborar
intensamente na democratização do acesso e das condições de
permanência adequadas aos estudantes no tocante à diversidade
524
ANAIS - 2013
socioeconômica, étnico-racial, de gênero, cultural e de
acessibilidade, de modo a efetivar o direito a uma aprendizagem
significativa, garantindo maior inserção cidadã e profissional ao
longo da vida. (BRASIL, CONAE, 2010).
Por isso, faz-se necessário construir processos
pedagógicos, curriculares e avaliativos centrados na melhoria
das condições de aprendizagem, tendo em vista a definição e a
reconstrução permanente de padrões adequados de qualidade
educativa.
A democratização do acesso, da permanência e do
sucesso escolar passa, certamente, por uma valoração positiva
da escola. A instituição educativa de boa qualidade é vista
positivamente pelos/as estudantes, pelas mães, pais e/ou
responsáveis e pela comunidade, o que normalmente resulta em
maior empenho dos estudantes no processo de aprendizagem.
Quando percebem e reconhecem que estão aprendendo, que os
seus direitos estão sendo respeitados como sujeitos
socioculturais, históricos e de conhecimento, os estudantes
acabam projetando uma trajetória escolar, acadêmica e
profissional mais significativa, visão que acaba sendo valorizada
pelas mães, pais, familiares e professores.
Quanto à educação profissional, os dados evidenciam
avanços importantes nos indicadores. Em 2007, registrou-se um
total de 693,6 mil estudantes matriculados na educação
profissional de nível técnico e de 86,6 mil estudantes, no ensino
médio integrado (BRASIL, CONAE, 2010).
Destaca-se também a ampliação da rede federal de
educação tecnológica, sobretudo com a criação dos IFET
(Instituto Federal de Educação Tecnológica). A ampliação de
vagas nas instituições federais de educação tecnológica deve
ocorrer de acordo com a demanda de cada município,
contemplando educação profissional para estudantes de EJA
525
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
(Educação de Jovens e Adultos). Deve-se, ainda, promover
convênios entre empresas e instituições de educação profissional
no sentido de garantir estágios, oportunizando aos estudantes
acesso ao mundo do trabalho.
Para Foucault (1987) essas transformações de
comportamentos e de estratégias políticas podem ser chamadas
de requalificação pelo saber. Em outras palavras, a
requalificação faz parte de uma nova estratégia de controle dos
uj
, u j , “ g fc u
tação e harmonia dos
instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento
cotidiano das pessoas [...], significa uma outra política a respeito
dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população
” (FOU ULT, 1987, 66)
Dessa forma, faz-se necessário observar os recentes e
intensos impactos socioeconômicos e culturais que velozmente
se propagam e afetam em diferentes graus, e que as rotinas de
todos os segmentos sociais vêm gerando mudanças cada vez
mais agudas na vida do cidadão, consequentemente, na
educação.
O marco histórico na educação de adultos e as relações
de trabalho se deu com as contribuições de Paulo Freire (1998) a
partir da década de 80. Para o autor, a educação deveria ter
como fundamentos básicos o respeito ao outro e a aceitação das
limitações do outro. Seu método baseia-se na descoberta da
realidade em palavras chaves (geradoras), ou seja, o que é
comum ao contexto; tematização (significação contextualizada)
e problematização (conscientização).
Paulo Freire entendia que a leitura do mundo3 precede a
escrita e a educação pertence ao povo, não aos governos. Suas
3
Sobre leitura do mundo – leitura da palavra – senso comum – conhecimento
exato, aprender, ensinar, ver: Freire, Paulo: Educação como pratica da
526
ANAIS - 2013
contribuições para a educação apontaram o surgimento de novas
relações humanas, baseadas em uma realidade material distinta,
com a superação de antigas dicotomias, com a dicotomia entre o
trabalho manual e o trabalho intelectual, prática e teoria, ensinar
e aprender, conhecer o conhecimento existente e criar o novo
conhecimento, um novo sistema educacional pode então surgir.
Dessa forma, a educação libertadora torna-se o esforço
sistemático a serviço dos ideais de equidade de uma nova
sociedade. Se, na antiga sociedade, o sistema educacional estava
comprometido com a preservação do status quo, agora a
educação deve-se tornar fundamental ao processo de
permanente libertação.
Considerando a temática da inclusão das pessoas com
deficiência no trabalho, existem no Brasil dispositivos legais
muito avançados que buscam garantir o acesso dessas pessoas
ao mercado competitivo de trabalho. Porém, as pesquisas
indicam que existe uma dificuldade histórica no acesso dessas
pessoas ao mercado de trabalho e ainda há uma grande lacuna
na aplicação prática da legislação.
F uc u b
c
“u c ju
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
f óf c ,
,f
ó c ” (FOU ULT, 1987, 244)
O autor ainda acrescenta que o discurso pode aparecer como
elemento que permite justificar e mascarar uma prática que
permanece muda.
Dentre os fatores que podem dificultar o acesso das
pessoas com deficiência ao emprego, destacam-se: a
desinformação e o consequente estigma associado a tais pessoas
liberdade. Educação e mudança – Ação cultural para a liberdade. Pedagogia
do Oprimido – Pedagogia da Esperança – Paz e Terra.
527
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
com falsas crenças de elas serem incapazes, menos produtivas,
mais lentas e necessitarem de cuidados especiais; as condições
estruturais, funcionais e sociais do ambiente de trabalho que irá
recebê-las como funcionárias; e a necessidade de preparo
profissional e social da pessoa com deficiência que está
buscando o mercado de trabalho. (TANAKA; MANZINI, 2005).
Considera-se que a falta de escolaridade e de
qualificação profissional das pessoas com deficiência são
barreiras para sua inserção em postos formais de trabalho, e que
a qualificação, quando é realizada, está distante das
necessidades do mercado de trabalho, visto que as exigências
para contratação nas empresas estão cada dia mais complexas.
As condições dos programas de formação profissional já
foram detectadas em vários estudos que destacam o isolamento
e a desarticulação dos aprendizes com deficiência em relação à
realidade social da comunidade, agravada pela ausência de um
sistema integrado de diferentes serviços voltados para eles. Isso
dificulta o encaminhamento desses aprendizes para o mercado
de trabalho e contribui para a manutenção do estereótipo da
pessoa com deficiência (MIRANDA, 2001; SILVA, 2008).
Considerando a necessidade de vislumbrar processos de
educação profissional para as pessoas com deficiência que, além
de ampliar seus conhecimentos e habilidades para o trabalho,
contribuam para sua efetiva emancipação social, a educação
profissional, ao ser realizada na rede regular de ensino, poderia
proporcionar uma formação mais próxima da realidade social e
potencializar o acesso das pessoas com deficiência ao trabalho.
Segundo a Resolução do Conselho Nacional de
Educação / Câmara de Educação Básica (CNE/ CEB) nº 02, de
11 de fevereiro de 2001, a rede de educação profissional deve
possibilitar o acesso e a permanência do aluno com deficiência
em suas escolas por meio da adequação do espaço físico, do
528
ANAIS - 2013
mobiliário, dos equipamentos utilizados nos laboratórios e da
linguagem, além de promover a flexibilização do currículo, a
capacitação de recursos humanos e o encaminhamento para o
trabalho (BRASIL, 2001).
Ressalta-se que as políticas sociais de atendimento aos
deficientes são criadas na medida em que, na sociedade, eles
foram considerados capazes de integrar a força de trabalho, de
forma direta ou indireta, ou seja, pela liberação daqueles que se
ocupavam em assisti-los.
Como demonstram os estudos de Anache (1997), a
pessoa com deficiência tem que lutar muito por um espaço
compatível com a sua formação, no mercado de trabalho.
Quando não consegue uma colocação, busca alternativas como:
confeccionar vassouras, vender bilhetes de loterias, entre outras
ocupações, o que dificulta sua independência financeira.
A independência financeira era o principal objetivo que
o jovem/adulto com deficiência busca para sua vida em
sociedade, passando pela ansiedade de completar sua
escolarização.
Vem a propósito a tese defendida no estudo e no Parecer
da Câmara de Educação Básica:
A igualdade e a desigualdade continuam a
ter relação imediata ou mediata com o
trabalho. Mas seja para o trabalho, seja para
a multiformidade de inserções sócio–
político–culturais, aqueles que se virem
privados
do
saber
básico,
dos
conhecimentos aplicados e das atualizações
requeridas, podem se ver excluídos das
antigas e novas oportunidades do mercado
de trabalho informal, o subemprego, o
desemprego estrutural, as mudanças no
529
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
processo de produção e o aumento do setor
de serviços geram uma grande instabilidade
e insegurança para todos os que estão na
vida ativa e quanto mais para os que se
vêem desprovidos de bens tão básicos, como
a escrita e a leitura. (CEB/CNE, 2000, p.
16).
A inserção no mercado de trabalho ainda é um desafio
para as pessoas com deficiência. Uma das conquistas nesta
caminhada é a lei federal 8.213, de 1991, que determina que
as empresas destinem cargos a deficientes, seguindo cotas
que chegam até 5% das vagas, dependendo do número de
funcionários. A lei, que veio garantir os direitos dos
deficientes, não é nova, mas a fiscalização aumentou nos
últimos dois anos, e as empresas estão tentando se adequar,
conforme mostra o texto de Lancillotti (2002):
Em decorrência das transformações,
observa-se a expansão do desemprego
estrutural, como movimento de exclusão,
que obriga trabalhadores a buscar e aceitar
alternativas de trabalho muito adversas, se
comparadas àquelas existentes no período
anterior, em que havia a regulamentação de
salários, direitos e condições de trabalho.
Esta é uma problemática que tem marcado
os países ricos e pobres, ainda que, para os
últimos, as conseqüências sejam mais
graves, dadas as limitações do Estado para
fazer frente às demandas sociais.
(LANCILLOTTI, 2002, p.48)
530
ANAIS - 2013
Concordamos com a autora quando ela afirma que a
inclusão só se coloca porque vivemos numa sociedade
excludente. E acrescentamos: por mais que envidemos nossos
esforços no sentido de promover a inclusão, o movimento do
capital estará permanentemente promovendo a exclusão, porque
esta faz parte da lógica de tal movimento. A dificuldade em
encaminhar pessoas com deficiência para o mercado de trabalho
foi sempre reconhecida, e torna-se pertinente analisar as
dimensões que a atividade profissional assume em tempos de
desemprego estrutural.
Nessa perspectiva, instiga-nos a proposta de analisar a
evolução do direito de jovens e adultos com deficiência, bem
como o aprofundamento teórico dos determinantes históricos na
educação destes sujeitos e a consequente profissionalização,
relacionando escola e trabalho.
Metodologicamente, por meio dos pressupostos teóricometodológicos de Michel Foucault, nossa proposta é realizar
uma leitura acerca dos discursos proferidos, explicitados e
silenciados em uma análise do campo epistemológico
Foucaultiano em relação à produção discursiva das políticas
públicas para a profissionalização de jovens/adultos e quais
estratégias, quais táticas formam as unidades discursivas da
atividade profissional no que tange à importância da
escolarização e da profissionalização para pessoas com
deficiência.
Trata-se de uma Pesquisa Arqueológica a partir do
referencial teórico de Michel Foucault, que comumente segue a
periodização dos escritos. Na década de 60, textos arqueológicos
têm por tema o saber; nos anos 70, os genealógicos tematizam o
poder e, por fim, nos anos derradeiros de sua vida os textos
arqueogenealógicos preocupam-se com a questão do sujeito.
531
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Enquanto um dos marcos de renovação do conhecimento
histórico, a arqueologia, segundo Foucault (2007), situa-se na
transformação pela qual a história redefine sua posição, em
relação aos documentos e outras fontes, não mais considerando
apenas o modo de interpretar as fontes, mas
[...] uma tarefa primordial, não interpretá-lo,
não determinar se diz a verdade, nem qual o
seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no
interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta,
distribui, ordena e reparte em níveis,
estabelece séries, distingue o que é
pertinente do que não é, identifica
elementos, define unidades, descreve
relações. [...] ela procura definir, no próprio
tecido documental, unidades, conjuntos,
séries, relações. [...] ela é o trabalho e a
utilização de uma materialidade documental
(livros, textos, narrações, registros, atas,
edifícios,
instituições,
regulamentos,
técnicas, objetos, costumes etc.) que
apresenta sempre e em toda a parte, em
qualquer
sociedade,
formas
de
permanências, quer espontâneas, quer
organizadas. (FOUCAULT, 2007, p. 7)
Nessa perspectiva, o documento não é o único
instrumento de uma história. As fontes de informações,
(sujeitos-jovens e adultos com deficiência), neste caso, até o
momento deste estudo, demonstram que os monumentos do
passado e do presente se transformam em marcos referenciais e
se complementam enquanto subsídios. Para Foucault (2007, p.
8), a história nos dias atuais é dotada de movimentos elaborados
no constructo do passado,
532
ANAIS - 2013
[...] é o que transforma os documentos em
monumentos e que desdobra, onde se
decifravam rastros deixados pelos homens,
onde se tentava reconhecer em profundidade
o que tinham sido, uma massa de elementos
que devem ser isolados, agrupados, tornados
pertinentes, inter-relacionados, organizados
em conjuntos. [...] poderíamos dizer, [...]
que a história, [...] se volta para a
arqueologia – para a descrição intrínseca do
monumento.
Os estudos quantitativos permitem identificar elementos
comuns que só podem ser considerados como parte de um
critério de estabelecimento no processo arqueológico. Segundo
Bogdan e Biklen (1994), a investigação qualitativa é descritiva,
conforme o que segue:
[...] os dados recolhidos são em formas de
palavras ou imagens e não em números. Os
resultados escritos da investigação contêm
citações feitas com base nos dados para
ilustrar e substanciar a apresentação. Os
dados incluem transcrições de entrevistas
[...]. Tentam analisar os dados em toda a sua
riqueza, respeitando, tanto quanto o
possível, a forma em que estes foram
registrados ou transcritos. (BOGDAN &
BIKLEN,1994, p. 48).
Nesse sentido, os investigadores qualitativos estão
interessados em pesquisar o modo como os sujeitos dão sentidos
a sua vida, como criam estratégias e quais as técnicas usadas
533
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
como subjetivação para conseguir sobreviver. O interesse está
no registro rigoroso, no modo como as pessoas interpretam os
significados. Para tanto, estabelecem-se estratégias e
procedimentos que permitirão considerar as experiências do
ponto de vista do entrevistado, para assim poder tornar possível
a reflexão, com maior clareza e profundidade, sobre a condição
humana.
O método arqueológico estuda as descontinuidades no
sentido de compreender a formação de determinado saber em
detrimento de outro. Pode ser aplicado a uma forma de
interpretação da própria modernidade.
As considerações aqui apontadas têm como base latente
as obras História da Loucura (1978) e Vigiar e Punir (1987).
Nelas estão descritas as práticas que nos dias atuais são
consideradas estranhas, entretanto, Foucault mostra serem
respostas internamente coerentes e plausíveis para problemas
identificáveis. Independente de serem as tentativas de tratar a
loucura como uma doença e/ou as reformas humanitárias da
prisão, sempre aparecem com coerência interna. Ambas estão
centradas na análise de sistemas de instituições e práticas
discursivas historicamente situadas de forma binária
(certo/errado; ético/não ético; o bem/o mal). Para Osório (2010),
ao adentramos nas obras foucaultianas:
[...] cada página carrega em suas linhas
pressupostos calcados em processos
históricos
e
sociais.
Logo,
suas
contribuições extrapolam as descrições
factuais, explicitam os porquês das práticas
sociais exercidas, suas contradições,
elaborações e seus limites enquanto
diferentes
processos
que,
quando
recuperados por meio de temáticas
534
ANAIS - 2013
específicas de reflexões, permitem recolocar
novos elementos. Essa dinâmica contribui
para identificar outras causas e razões dos
fenômenos sociais culturalmente impostos,
conferindo-lhe assim novas configurações,
outros significados frente às constantes
mutações das relações impressas no interior
de cada domínio da sociedade. (OSÓRIO,
2010, p. 99-100)
Dessa forma, para se compreender as particularidades da
análise arqueológica, Foucault (2007) revela o início da
contradição que, simultaneamente, tem seu modelo na afirmação
ou negação de uma única proposição. Marca como se forma
uma prática discursiva. Define as formas que essas práticas
assumem as relações que estabelecem entre si e o domínio que
as conduz.
A análise arqueológica faz também surgir as relações
entre as formações discursivas e os domínios não discursivos
entre os acontecimentos políticos, as práticas e os processos
econômicos, as instituições. Entretanto, essas relações não têm
por finalidade revelar grandes continuidades. Elas tentam
determinar como as regras de formação de que dependem
podem estar ligadas a sistemas não discursivos.
Segundo Osório (2010, p. 117), g
g é “[ ]
estudo das formas como os indivíduos se constituíram como
sujeitos em diversos momentos da história, problematizando
suas próprias condutas e, a partir disso, suas relações com a
”
Com o foco apresentado, propomos um estudo
qualitativo. A pesquisa qualitativa possibilita entender a relação
dinâmica e a interdependência que existem entre as pessoas e o
mundo real. Assim, o conhecimento é concebido como produto
535
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
das relações sociais estabelecidas historicamente entre os
homens e entre esses e a natureza.
Essa proximidade com a realidade exige que, no decorrer
da pesquisa e durante o seu desenvolvimento, seja feita,
progressivamente, uma revisão de literatura, buscando os
determinantes históricos da inserção da pessoa com deficiência
no mundo do trabalho.
Uma vez concluída a revisão de literatura, a seleção e a
análise de documentos e referenciais históricos que versem
sobre o mundo do trabalho na relação educação e
profissionalização, passaremos para a realização de entrevistas
semiestruturadas com os sujeitos envolvidos nos programas de
qualificação profissional implantados em Campo Grande/MS,
com o objetivo de verificar os processos dos referidos
programas e, principalmente, analisar a atividade profissional no
que tange ao valor e ao significado do trabalho para pessoas
com deficiência.
A literatura científica sobre a educação e a
profissionalização das pessoas com deficiência é recente. Na
bu c
,
á
uz
“E
h c
” b
ntido de contribuir com
alguns elementos determinantes. Torna-se necessário, então, o
levantamento da produção acadêmica de obras de referência
produzidas nos últimos 10 (dez) anos no país sobre a educação e
a profissionalização de pessoas com deficiência.
Cabe destacar que o estado de conhecimento constitui
um esforço para o pesquisador, pois está voltado para o tema
que se apresenta, o qual considera relevante para a educação.
Entretanto, ele não se configura como um levantamento
exaustivo sobre o tema devido ao tempo do qual se dispõe, tanto
para o levantamento bibliográfico quanto para a leitura das
obras. (CORDEIRO; OLIVEIRA, 2011)
536
ANAIS - 2013
À guisa de conclusão, consideramos a priori, uma vez
que neste artigo apresentamos um processo de investigação em
andamento, que o acúmulo de novas experiências,
conhecimentos e técnicas acarreta, para o presente momento
histórico, a necessidade de uma revisão de soluções assumidas
no passado, no campo educacional.
Uma sociedade que se propõe inclusiva exige, no mundo
contemporâneo, marcado pelo apelo informativo imediato, a
reflexão cada vez mais aprofundada e debatida sobre as relações
sociais que medeiam o exercício da cidadania.
Alunos com deficiência precisam ser considerados a
partir de suas potencialidades de aprendizagem. Sobre esse
aspecto, é facilmente compreensível que a escola não tenha que
consertar o “defeito”, valorizando as habilidades que o
deficiente não possui, mas ao contrário, trabalhar suas condições
cognitivas mais benéficas à sua aprendizagem, com vistas em
seu desenvolvimento.
O interesse no ensino para jovens e adultos com
deficiência e a relação com profissionalização, tem aumentado
substancialmente devido a vários fatores, entre os quais emerge,
na atualidade, a preocupação de oferecer às pessoas com
deficiência suas reais possibilidades, uma vez que os discursos
sociais e políticos estão empenhados na defesa de uma
sociedade inclusiva.
A concepção de sociedade inclusiva exige novas
tendências da Educação apresentando muitas propostas de
avanço em direção à construção de uma concepção de cidadania
voltada para o desenvolvimento pleno da pessoa, seu preparo
para o exercício dessa cidadania e sua qualificação para o
trabalho. Essa concepção encontra-se contemplada na
Constituição de 1988, que reafirma a Educação como direito de
537
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
todos e dever do Estado e da família, a ser promovido e
incentivado com a colaboração da sociedade.
Diante do exposto, Foucault convida-nos a refletir sobre
a legislação vigente como mecanismo de controle e regulação
qu
c
à
c
“[ ] u j g
complexo entre interesses individuais e coletivos, a utilidade
social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e
g
úb c ” (FOU ULT, 2008, p. 61), um
jogo complexo entre direitos fundamentais e independência dos
governados.
As investigações sobre as carências físicas e psicológicas
do sujeito da educação de jovens e adultos revelam, entre outras,
a baixa motivação, o conformismo com a situação de analfabeto,
a autodepreciação, os problemas físicos da idade – deficiências
da visão, audição e de psicomotricidade – além de problemas de
memorização. Considerando as condições socioculturais desse
uj
,
c z
‘ uj
’
‘ uc çã
c ’,
que também são caracterizados com deficiências físicas e
mentais, além da baixa autoestima e depreciação por parte da
sociedade.
Por fim, os estudos sobre a educação de jovens e adultos
indicam que as condições socioculturais do adulto têm permitido
poucos avanços na compreensão do fenômeno, por identificarem
as raízes dessa situação na estrutura social e faltam-lhes
elementos que medeiem a passagem do pedagógico para o
sociocultural. Na verdade, observa-se que pesquisas
relacionadas ao assunto estão pouco acessíveis, inviabilizando a
transformação da prática cotidiana da sala de aula na,
consequentemente, vida em sociedade.
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EDUCAÇÃO, 31, 2008, Caxambu. Constituição brasileira,
direitos
humanos
e
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Disponível
em:
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SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. São Paulo,
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adultos com deficiência mental, 2003. Dissertação de
Mestrado (Pós-graduação Stricto Sensu em Educação).
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Campo Grande,
2003. (Orientadora Alexandra Ayache Anache).
542
ANAIS - 2013
Ensino de língua materna e a heterogeneidade da/na
linguagem
Silvana Cosmo DIAS1
Silvane Aparecida de FREITAS2
RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar as produções dos alunos
de 7º e 8º anos do Ensino Fundamental da rede municipal de Santa Fé
do Sul, participantes da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo
Para o Futuro. A temática dessas produções foi as memórias dos
idosos moradores nessa cidade, para isso, os alunos entrevistaram os
idosos e transcreveram em forma de memórias. Nesta pesquisa,
utilizamos a metodologia da pesquisa interpretativista, uma vez que
visamos produzir sentidos sobre os discursos coletados, no caso, as
memórias dos idosos, levando em consideração
a teoria da
heterogeneidade na/da linguagem (AUTHIER-REVUZ, 1990), ou
seja, os diversos outros que constitui o dizer. Por meio deste estudo,
foi possível refletir sobre a importância de o aluno ter o que dizer e
para quem dizer em suas produções escritas, pois isso é inerente ao
processo interlocutivo no ato de produção textual. Desse modo,
também foi possível verificar o quanto o discurso do outro está
presente nas narrativas coletadas.
PALAVRAS-CHAVE:
Produção
de
texto;
Discurso;
Heterogeneidade.
Introdução
1
Mestranda no Programa de Pós- Graduação em Educação na Área de
Concentração em Educação, Linguagem e Sociedade, da Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS),Unidade Universitária de
Paranaíba.E-mail: [email protected]
2
Pós-doutorado pela UNICAMP/Campinas (2009). Atualmente é docente
dos Mestrados em Letras e Educação da Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul. E-mail: [email protected]
543
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Este estudo visa à reflexão sobre os conceitos teóricos
que são inerentes a uma concepção de linguagem heterogênea a
partir de fundamentos da Análise do Discurso de linha francesa,
para discutir a questão do discurso constituído por meio das
heterogeneidades constitutiva e mostrada, apoiando-se nos
teóricos Authier-Revuz (1990), Bakhtin (1992), Brandão (1998),
Pêcheux (1990), entre outros. Tendo como corpus, fragmentos
retirados das produções textuais elaboradas em 2011, pelos
alunos do 7º e 8º anos do Ensino fundamental da Rede
Municipal de Ensino de Santa Fé do Sul/SP, participantes da
Olimpíada de Língua portuguesa Escrevendo Para o Futuro,
cujo projeto vem sendo desenvolvido todos os anos nas diversas
redes de ensino, particulares, municipais e estaduais e foi
instituído pelo Governo do Estado de São Paulo, visando à
melhoria do ensino nos aspectos linguísticos, da leitura e da
escrita, ou seja, o ensino de língua portuguesa. Para isso, a
Olimpíada realiza um concurso de produção de texto,
envolvendo alunos do 5º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano
do Ensino Médio.
Para viabilizar esse processo, o programa da Olimpíada
traz o caderno do professor com sequência didática
desenvolvida para estimular a vivência de uma metodologia de
ensino de língua que trabalha com os diversos gêneros textuais.
As atividades sugeridas proporcionam o desenvolvimento de
habilidades de leitura e de escrita previstas nos currículos
escolares.
O tema do concurso realizado pela Olimpíada de Língua
portuguesa Escrevendo Para o Futuro é “O ug
”,
mas escrever sobre isso requer leituras, pesquisas e estudos
sobre a realidade local. Para o desenvolvimento dessa temática,
o material é dividido em quatro categorias, e a parte escolhida
z çã
qu
f “M ó ”, qu
544
ANAIS - 2013
alunos do 7º e 8º anos do Ensino Fundamental. Essa categoria
tem como propósito fazer com que os jovens conheçam a
história do lugar onde vivem por meio do olhar dos antigos
moradores e, assim, valorizem as experiências dos mais velhos,
descobrindo-as como parte de sua identidade. Além disso, os
professores são capacitados por ATP (Assistentes do trabalho
Pedagógico) da área de Língua portuguesa, em suas respectivas
Diretorias de Ensino, para desenvolver esse projeto.
Com esse artigo, espera-se contribuir com algumas
reflexões acerca dos estudos da linguagem numa perspectiva
discursiva, como também com o ensino de Língua Portuguesa,
concebendo a linguagem enquanto discurso heterogêneo
constitutivo.
1.
A perspectiva da heterogeneidade: os “já ditos”
No percurso das discussões sobre o discurso, Guerra
(2008) discute as investigações de Authier-Revuz (1990) que
apontam para as manifestações de heterogeneidade enunciativa
no processo de constituição do discurso, tendo a
heterogeneidade mostrada e a constitutiva inerente a todo tipo
de discurso.
Entendemos que a concepção de heterogeneidade
constitutiva de Authier-Revuz corresponde à visão bakhtiniana
de linguagem, a qual se pode afirmar que todo discurso é
óg c
u z D
, gu
F
(2003), “
discurso não constrói sobre si mesmo, mas se elabora em vista
u ,
u
,c
c
cu
u” O qu
corrobora o dizer de Bakhtin
Não existe nem a primeira e nem a última
palavra, não existe fronteiras para um
545
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
contexto dialógico. Inclusive os sentidos
passados, ou seja, gerados nos diálogos dos
séculos anteriores, nunca podem ser
estáveis, sempre vão mudar removendo-se
no processo posterior. (BAKHTIN 1992,
p. 392).
A
heterogeneidade
constitutiva
prevalece
no
funcionamento real do discurso, enquanto a heterogeneidade
mostrada revela a presença do outro no dizer e, dessa forma,
ocorre mudança na heterogeneidade do sujeito. Com relação a
isso, Guerra (2008) afirma que:
A heterogeneidade constitutiva é aquela em
que o outro constitui um, o sujeito, e que
este sujeito nem sabe quem é. São todos que
passaram por sua vida, é tudo que leu,
estudou. Em seu enunciado cruzam os
dizeres de outros. A heterogeneidade
mostrada é a manifestação explícita de
diferentes vozes: sujeito, no momento em
que fala, escreve, traz para o seu dizer
alguns outros que o constituem, marcando
assim distância entre ele e outros que ele
seleciona de acordo com seus interesses.
E
“ u ” ã
,
superfície linguística, por citação, aspas,
comentários, itálicos, metáforas, imitação,
ironia etc. (GUERRA, 2008, p. 45 )
Nesse sentido, a heterogeneidade mostra-se por meio de
diversas vozes que perpassam um dizer, marcando uma
distância entre aquele que diz e os dizeres dos outros presentes
em seu discurso.
546
ANAIS - 2013
O “
interdiscurso é incitar a construir um
sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve
a especificidade de um discurso coincide com a definição das
çõ
cu
c
u Ou ” (PO ENTI, 2003,
p.265). Assim, a formação discursiva não deve ser entendida
como algo fechado impermeável, homogênea. Segundo Cardoso
(2005), a situação discursiva é por natureza heterogênea.
Nesta perspectiva, ressalta-se a reflexão sobre o ensino
de língua materna, orientada por Geraldi (1993), cujo
pensamento foi incontestável, pois, para este autor, a novidade
não está inserida no interior de uma formação discursiva, onde
ocorre apenas a repetição do já dito, mas, está no centro das
discussões, o sujeito, produtor de discursos, aquele que se
relaciona co
u
, qu
cu
“ qu ”
“ g ” qu
“ cu
u
c
f
çã
cu
,
ã é
decorrência mecânica, seu trabalho sendo mais do que uma mera
reprodução; fosse apenas isso, os discursos seriam sempre
idênticos, independentemente d qu
qu
u
”
(GERALDI, 1993, p. 134).
Esse autor defende a criação do novo com referência a
h f
h c
ú , c
,
“f
uj
comprometer-se com a sua palavra e de sua articulação
individual com a formação discursiva de que faz parte, mesmo
qu
ã
ác c
” ( ER LDI, 1993, 134)
Por meio destas proposições, é pertinente refletir sobre
questões inerentes ao ensino de língua materna enfatizando que
nesse processo deve-se considerar o sujeito como elemento
inserido no centro das discussões sobre o ato de ensinar e
D
, gu
M
(2002), “ ã
pensar o ensino de Língua portuguesa a partir de atividades
câ c
çã
c h c
uu ”
(MARTINS, 2002, p. 63). O que faz repensar a relação entre
547
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
aluno/professor, seguindo a orientação de que não deve haver
distanciamento entre quem ensina e quem aprende, pois
considerando a linguagem, na perspectiva da discursividade, a
uçã
x
é “
o de partida e (ponto de chegada)
c
/
z g
í gu ”
(GERALDI, 1993, p. 135).
Na trilha dessa discussão sobre as teorias do ensino de
língua materna encontra-se entre o novo e o velho, a proposta
das teorias modernas da linguística e as práticas em sala de aula.
Nesta reflexão existe uma barreira: a necessidade do professor
“ u
u
f z u
c h
f
u
valores, sua prática, sua vida; de enfrentar no caminho da
incerteza, mas com convicção e maturidade sobre a necessidade
u ç ” (M RTIN , 2002, 63) D
, c c
(1993,
63) qu “
í gu
á
ó
prática da linguagem instalada no plano do desejo de cada
processo, visando à conquista de uma incerteza: a de sua não
çã
qu
qu
ju
c
h c f ”
Nesta linha de raciocínio, é preciso refletir sobre o
processo de produção de textos e discursos, mas para isso é
necessário enfatizar primeiramente sobre língua e discurso.
Sabe-se que os estudos atuais da linguagem, distanciam-se da
perspectiva da dicotomia adotada por Saussure. No âmbito
destas discussões, surge o discurso, e, por meio dele, é possível
realizar uma união indispensável entre o nível linguístico e o
extralinguístico.
Sobre isso, buscamos em Foucault (1996) o conceito de
que o discurso é como um acontecimento histórico e social, um
conjunto de formações discursivas, como também estágio
permanente em construção:
548
ANAIS - 2013
O discurso não é simplesmente aquilo que se
manifesta (ou oculta); é também, aquilo que
é objeto de desejo; é visto que – história não
cessa de nos ensinar – o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou
sistemas de denominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar. (FOUCAULT, 1996, p.
10).
Transportando essas discussões para a perspectiva do
ensino de língua materna, é importante ressaltar que é necessário
que aluno conviva, desde os primeiros anos de escolaridade,
com a diversidade de textos e discursos, para assim, produzir
sentidos tanto no ato de ler como de produzir textos.
Desse modo, observa-se a necessidade de oferecer
u
u
uz
x ,c
qu “é
no texto que, a língua se revela em sua totalidade quer enquanto
conjuntos de formas e de seu reaparecimento, quer enquanto
discurso que a uma relação intersubjetiva construída no
processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas
õ ” ( ER LDI, 1993, 135)
Por meio desse pensamento, Geraldi (1993) ressalta a
importância da produção de texto em detrimento da redação,
evidenciando que ao realizar uma redação, o aluno escreve para
a escola, e esta prática não possibilita ao aluno, ter para quem
dizer e nem para quê dizer, por consistir-se em um processo
marcado por normas pré-estabelecidas. Já em relação a
produção de textos, o aluno produz na escola, apesar desse
processo decorrer por meio das orientações do professor, o
aluno tem para quem produzir e para quê dizer.
Nesse aspecto, em relação à produção de texto, o autor
considera que para produzir um texto em qualquer modalidade
549
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ã
c
çõ : “
h
qu
z ;
tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; se tenha para
quem dizer o que se tem a dizer; o locutor se constitua como tal,
qu
uj
qu
z qu
z
qu
z” ( ER LDI,
1993, p. 137). Podemos dizer que, mediante essas
considerações, no ato de produzir textos, o aluno utiliza a
qu
“c u
u
c
z g ” ( ER LDI, 1993, p. 160).
Estas proposições remetem às práticas discursivas que
envolvem ações efetivas entre professor/aluno no trabalho com
produção de textos, na direção de constituir escritores. Esse
processo ocorre por meio de instâncias de dialogia que envolve
aluno/produtor de textos com vários outros, isto é:
[...] para quem a criança diz, - seus leitores;
o outro de quem toma a palavra para dizer –
seus modelos, o outro sobre quem diz- suas
personagens; o outro que é participante do
processo de produção de texto (pares e
professores que atuam como comentadores,
co-autores, ou co-revisores: a essas
instâncias de dialogia articula-se também a
relação do produtor do texto consigo
mesmo, como escritor e leitor de seu próprio
texto. (MARTINS, 2002, p. 87).
2.
As produções escritas e a questão da heterogeneidade
no dizer
Nessa perspectiva, apresentaremos, neste subitem,
fragmentos retirados das produções dos alunos do 7º e 8º anos
do Ensino Fundamental da rede municipal de Ensino da cidade
de Santa Fé do Sul/SP, elaboradas a partir de um trabalho de
550
ANAIS - 2013
leitura e escrita, partindo das orientações previstas no Projeto
Olimpíada de Língua portuguesa Escrevendo Para o Futuro em
que se pedia para os alunos coletarem a memórias de idosos.
No fragmento que segue, observa-se a presença da
heterogeneidade constitutiva e mostrada no discurso de um
idoso, transcrito em forma de produção de texto/gênero
memórias, por uma aluna do 7º ano do Ensino Fundamental:
Era uma época boa. Depois de alguns anos,
o transporte chegou, graças a minha mãe
que muito lutou para isso. Essa nossa
aventura diária já estava ficando perigosa.
Muitas vezes corríamos de vacas Nelores e
de cachorros bravos, meu irmão caçula foi
inclusive mordido e chegamos a ver uma
Sucuri enorme toda enrolada dentro da lagoa
da mata. A primeira vez que a perua escolar
passou foi uma festa. A garotada não se
cabia de felicidade e ansiedade para andar
de carro. Dentro da perua era o maior
converseiro. O seu Expedito, o motorista,
vivia dando bronca na molecada e irritado
u g
: “Qu
é qu
é h j ”? c
h
O sujeito idoso, na versão transcrita na forma do gênero
memórias por esta aluna, relata sua história de vida, retoma o
cu
“ u
”, já c
do pelo dizer do senso comum
“E u é c b ”,
uz
f
u
,
“
é
b ” N
c ,
-se o exemplo de
heterogeneidade constitutiva, pois a voz saudosista está
íc
cábu “é c ”
bo no pretérito
“ ” Já h
g
é x c
u
z
u
cu
“Qu
é
551
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
que vai a pé hoje?”. O sujeito enunciador ao retomar o discurso
do outro por meio da heterogeneidade mostrada, faz isso de
forma consciente em seu espaço discursivo; pois, por meio desse
recurso, produz como efeito de sentido a separação entre o dizer
que pertence a si e o dizer que pertence ao outro. Esse efeito de
sentido disfarça a condição heterogênea de todo dizer. Desse
modo, pode-se entender que:
[...]
existe
negociação
entre
a
heterogeneidade mostrada na linguagem e a
heterogeneidade constitutiva da linguagem
em que o sujeito, movido pela ilusão do
centro, pela ilusão de ser a fonte do
discurso, por um processo de denegação,
localiza o outro e delimita o seu lugar para
circunscrever o próprio território. Afetado
por um sujeito que divide, ou melhor, que
tem que dividir seu espaço com o outro, o
sentido se subjetiviza, torna-se heterogêneo
bloqueando a tendência natural à
homogeneização do sentido absoluto.
(BRANDÃO 1998, p. 43-44).
Nessa perspectiva de heterogeneidade constitutiva e
heterogeneidade mostrada, Coracini (1995) propõe outra, a
heterogeneidade reconhecida, “
á
u
u :
é aquela em que o outro se mostra apenas para aqueles que
conseguem reconhecê- ” ( UERR , 2008, 58)
,
Guerra, a heterogeneidade reconhecida é a constituição de um
caso intermediário entre a heterogeneidade constitutiva e a
heterogeneidade mostrada. Isso ocorre porque não é explícita a
f
f
u c
, “
c
constitutiva para aqueles que não a reconhecem e representada,
552
ANAIS - 2013
apesar de não constituir um caso explícito, para os que a
c h c ” ( UERR , 2008, 58)
Tal assertiva, defendida pela autora, pode ser
exemplificada com outro fragmento de texto gênero/memória de
outro sujeito idoso, transcrito por outra aluna do 8º ano do
Ensino Fundamental:
Antigamente, quando rodovias ainda eram
estradas de terra, e nem mesmo em sonho
existiam asfaltos cobrindo o chão, eu vivia
na fazenda São José, não muito povoada
nem freqüentada, mas que guardava em si,
toda a beleza do interior do Noroeste
Paulista.
O sujeito enunciador busca em sua formação discursiva
uma ordem, uma determinada regularidade em seu dizer, que
mesmo sem revelar a fonte de seu discurso, têm-se pistas para
sugerir a origem. Observa-se isso, pela escolha da temática
pautada pelo saudosismo que remete às imagens produzidas pelo
discurso presente na música de Nono Basílio e Índio Vago,
Mágoa de boiadeiro “Antigamente nem em sonho exista/ tantas
b
,
f
”
Desse modo, Pêcheux (1990) defende que é a partir do
esquecimento n.1º que se é possível formar a articulação entre o
conceito de sujeito que acredita ser a fonte de seu discurso e o
conceito de heterogeneidade constitutiva, proposto por AuthierRevuz (1990). Isso se justifica pelo fato de que perpassado pela
ilusão de ser o primeiro enunciador de seu discurso, o sujeito
não identifica os limites que separa o dizer do outro com o seu
próprio dizer. Assim, esse dizer passa a ser constitutivo do
discurso do sujeito que enuncia. Na visão de Authier-Revuz,
isso remete a uma:
553
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
[...] heterogeneidade radical, exterioridade
interna ao sujeito e ao discurso, não
localizável e não representável no discurso
que se constitui, aquela do outro do
discurso – onde estão em jogo o
interdiscurso e o inconsciente – se opõe à
representação,
no
discurso,
as
diferenciações,
disjunções,
fronteiras
interior/exterior pelas quais o um - sujeito,
discurso – se delimita na pluralidade dos
outros, e ao mesmo tempo afirma a figura
dum enunciador exterior ao seu discurso.
(AUTHIER-REVUZ 1990, p. 32).
Pode-se dizer que, no discurso do sujeito idoso,
elaborado pelo aluno, este conceito de heterogeneidade de
Authier-Revuz, pode ser observado por meio desse enunciado
“O
h
, g
há c
, é
,
u
,
faculdades, praças, ruas e avenidas onde os carros circulam
constantemente. E apesar de haver tantos carros passando, meus
h
u b
”
Neste enunciado, nota-se que o sujeito do discurso
apresenta em sua memória discursiva, algo que está de certa
forma oculto, submerso, um saber não identificado,
inconsciente, mas qu
u
z f
“já
”,
forma diversa. Assim, o sujeito não percebe a origem de seu
dizer.
Com isso, nota-se o interdiscurso nesse dizer,
manifestado por meio do discurso do texto musical Mágoa de
Boiadeiro, cujo sujeito enunciador lamenta as transformações
c
g
“M h j
u é u
554
ANAIS - 2013
diferente,/ com o progresso nossa gente nem se que faz uma
idéia/ Qu
u
fu ã
b
”
Prosseguindo em rumo à articulação do esquecimento n.
2, na visão de Pêcheux (1990) e de Authier-Revuz (1990), a
heterogeneidade mostrada acontece por meio da ilusão da
realidade, do pensamento transmitido no discurso que leva o
sujeito a definir o outro em seu espaço discursivo. Esse sujeito
dividido apresenta-se de várias formas, entre elas, pode-se
f
“ c
çã
u ,
c
metadiscursivos, as formas de oscilação, as formas de abertura
uj
cu ” ( UERR , 2008, 58)
Nesse sentido, a heterogeneidade mostrada é uma forma
çã qu u “ cu
c
ó
,
sua relação com o outro designando, em meio a um conjunto de
marcas linguísticas, os pontos de heterogeneidades. Poderíamos
relacioná-los c
xu
” ( UERR , 2008, 58)
O que segundo a autora, ao referir-se à heterogeneidade
constitutiva pode-se entendê-la como duplo dialogismo existente
cu , u j , “
cu
f z
“já”
dos outros discursos e, portanto, é conhecido pelo seu
cu ” E
,
c c
qu “
cu
ã x
qu
qu
é
ç ”
Assim, a recepção do destinatário é agregada e produz o
processo de produção do discurso. A autora, ainda, relaciona a
heterogeneidade constitutiva com a interdiscursividade. Nessa
mesma perspectiva, Gregolin (2001, p. 72) ressalta que:
A ordem do discurso é uma ordem
enunciável. A ela deve o sujeito assujeitar-se
para constituir em sujeito de seu discurso.
Por isso, o enunciável é exterior ao sujeito
enunciador e o discurso só pode ser
construído em um espaço de memória, no
555
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
espaço de um interdiscurso, de uma série de
formulações que marcam, cada uma,
enunciações que repetem, se parafraseiam,
opõem-se entre si e se transforma.
Diante do exposto, é pertinente ressaltar que se observa
nos escritos da aluna do 7º ano do Ensino Fundamental, o
discurso de outro idoso, ao remeter a um passado feliz que, por
sua vez é permeado por uma formação discursiva, reconhecida
de um lugar social e institucional, a Escola:
Guardo até hoje uma foto antiga, da minha
formatura da 4ª série da EEPSG Prof. Itael
de Mattos. Esse dia foi inesquecível. A
Colação de Grau aconteceu no Cinema
antigo da cidade. As meninas de vestido
branco. Os meninos de calça preta e camisa
branca. Os pais contentes e orgulhosos. Os
professores e o diretor fiéis e respeituosos
pela missão cumprida. Os amigos de
infância, de escola, a alegria e esperança de
um futuro melhor.
Esse sujeito enunciador, no caso o idoso, estabelece um
diálogo com um discurso já constituído por meio da ideologia
, qu
c
c
“u
u
poderosa dentro de uma sociedade, capaz de formular e definir
opiniões. Sendo assim, é uma forma sutil de pensamento que
leva o homem a pensar sentir e agir de uma maneira conveniente
c
qu
c
” (FREIT , 2010,
157). Desse modo, o sujeito enunciador, no discurso desse
idoso, incorpora o dizer do outro, de forma inconsciente, e
produz o efeito de sentido de ser dele, a origem desse dizer,
556
ANAIS - 2013
revelando um sentimento nacionalista, ao rigor da formalidade
que caracteriza uma época, um sistema de ensino.
Mesmo diante dessa heterogeneidade, propriedade
elementar da constituição de sujeitos e do discurso, por
conseguinte, da linguagem, considerando, sobretudo, aquilo que
lhe é inerente; o processo de mobilidade contínuo de sentidos
determinados pelo processo histórico-social, no qual as pessoas
se apreendem, se interpretam, estudam, ensinam e mantêm a
ilusão de unidade. É na repetição e na circulação do que está na
memória discursiva, que se encontra a condição do
interdiscurso, ou seja, nos já ditos por outros, na abertura, no
deslize, no impreciso; pois, é no mesmo e no antigo que surge o
outro, o novo.
Nesta perspectiva, observa-se nos textos/gênero
memórias de idosos, produzidos/transcritos pelos alunos do
Ensino Fundamental de 7º e 8º anos, as condições necessárias à
produção de texto, que Geraldi (1993) considera essenciais em
qualquer modalidade já que esses alunos ao entrevistar esses
idosos para transcrever/produzir as memórias, eles tinham o quê
dizer em suas produções.
O texto selecionado para esta discussão trata-se de um
trabalho realizado por um aluno 8º ano, sob a orientação do
professor que seguiu a proposta de produção de texto/gênero
memórias apresentada pelo caderno do professor:
.
As lembranças que hoje conto marcou
profundamente a minha vida e meu coração.
Quando contemplo a minha querida cidade
de Santa Fé do Sul, percebo quantas coisas
mudaram desde o meu tempo de infância.
Estância Turística, lindas praças e
monumentos que recordam o seu passado.
Há 60 anos atrás, tudo era diferente. As ruas
557
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
de terra, uma vila pequena, poucos
moradores. Não havia esgoto, mas tínhamos
energia elétrica.
Este fragmento remete ao que diz Geraldi (1993), sobre a
produção textual realizada na escola por apresentar objetivos
incorporados pelo aluno em relação ao que se tenha o que dizer;
se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; se tenha para
quem dizer o que se tem a dizer. Estas considerações fazem
referência ao discurso do sujeito idoso, reescrito pelo aluno e ao
universo de circulação textual, referente ao projeto Olimpíada
de Língua portuguesa, pois existe o posicionamento do
sujeito/aluno que ao enunciar estabelece o processo de
interlocução com outros sujeitos, representado pelo autor
enquanto leitor do próprio texto e com os Outros, a quem se
x ,
,
u
“ u
-se como
locutor, implica estar numa r çã
cu
” ( ER LDI,
1993, p. 161).
Nesta prática de produção textual de gênero memórias,
estão definidos os seus interlocutores, pois destina-se a um
público de leitores como: o professor enquanto co- produtor, que
atua por meio de orientação e revisão textual, a comissão
julgadora do projeto Olimpíada de Língua portuguesa:
Escrevendo para o Futuro, e, principalmente, os sujeitos
inseridos no processo de escritura, ou seja, os interlocutores
inerentes ao ato de registrar os acontecimentos discursivos por
meio das entrevistas com os idosos.
O processo de orientação textual do gênero memórias
proporciona aos alunos o ter o que dizer, ou seja, por meio da
entrevista que os alunos realizaram com o idoso e levou para a
escola, o que el
bé
ã
b ,
b
u u “ bj
f xã , c
”, ( ER LDI, 1993,
163)
558
ANAIS - 2013
para a produção escrita. Como exemplo, tem-se o relato
discursivo do sujeito idoso, reconstruído pelo aluno do 7º ano:
Bons tempos aqueles, pois quanto menor a
cidade, maior a simplicidade e a simpatia
entre as pessoas. Ao entardecer sentávamos
na porta das casas e proseávamos sobre os
acontecimentos cotidianos. Era a melhor
forma de descansar do serviço diário, do
trabalho doméstico e da lida no campo.
Seguindo as orientações de Geraldi (1993), o aluno
precisa ter motivação interna para executar o trabalho, precisa
ter razões para dizer. Desse modo, o aluno não escreve para
cumprir uma tarefa, escreve porque foi seduzido pelos objetivos
do projeto, Olimpíada de Língua portuguesa Escrevendo para o
Futuro: reconstruir a história do lugar onde mora, por meio dos
dizeres de idosos, valorizar a história local e reconhecer-se
como parte dela. O ato de escrever não se restringe apenas a
uma apropriação
g
guí c ,
“
escrita por meio dos processos de atividade mediada, em
instâncias inter-relacionadas: a mediação pelo outro e a
çã
g ” (M RTIN , 2002, 87)
Com isso, pode-se entender que o aluno, ao produzir os
textos do gênero memórias coloca em prática o funcionamento
da língua, cujo processo possibilita aprender a língua materna e
z
“c
ó -se uma imagem da
x
ó
” ( ER LDI,
1993, p. 179).
Esses alunos, ao se inscreverem no discurso do idoso,
por meio de produções textuais de gênero/memórias,
uz
u
cu
h
gê
“
c
u
relação com os outros discursos, diversas vozes perpassaram o
559
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
cu ” (FREITAS, 2011, p.66). Esse processo
discursivo acontece por meio da constituição do sujeito na e pela
linguagem.
Considerações finais
Neste artigo, foram evidenciados conceitos fundamentais
em relação à concepção da linguagem, enquanto seu aspecto
heterogêneo por meio de reflexões sobre o entrecruzamento de
dizeres do outro, que provoca efeitos de sentido capazes de
b
c çã
u “
cu ”
A análise teve como foco principal discutir o Ensino de
Língua Materna a partir da perspectiva da produção de texto,
como recurso fundamental para o ensino da língua portuguesa,
bem como o seu funcionamento discursivo. Essa discussão
levou a observar que a produção de texto concebida como
elemento reflexivo sobre o funcionamento da linguagem é o
ponto de partida para o trabalho do professor em relação ao
compromisso de ensinar a língua materna para falantes de língua
portuguesa. Por meio do discurso dos sujeitos idosos, transcritos
pelos alunos do 7º e do 8º anos do Ensino Fundamental, tivemos
a contribuição para que esses alunos, enquanto indivíduos, se
constituíssem em sujeitos ativos, ao enunciar no processo
interlocutivo.
Assim, esses alunos, ao se posicionarem como sujeitos
que atuam no processo de interlocução, deram vozes a outros
sujeitos, os idosos. Nesse percurso, foi possível compreender
que os sujeitos são históricos, heterogêneos e sociais, como
também são seus discursos, marcados pela exterioridade,
perpassados por outros dizeres, permeados por ideologias que
procederam de formações discursivas heterogêneos por sua
própria natureza.
560
ANAIS - 2013
Referências
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Trad. Celene M. Cruz e João W. Geraldi. Cadernos de Estudos
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UNESP, 1998.
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Autêntica/ FALE-UFMG, 2005.
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1996. 79 p.
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ou deslocamento? Anais do II GELCO, v. 2, 2003, p. 13451355.
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posse do sujeito Lula e a heterogeneidade constitutiva. In:
FREITAS, Silvane Aparecida; CARVALHO, Jacques Elias.
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Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
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CVR, 2011.
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São Paulo: Martins Fontes, 1993. 252 p.
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sonha nossa vã autoria? In: GREGOLIN, M. R. V.; BARONAS,
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São Carlos (SP): Claraluz, 2001, p. 60-80.
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crenças, estratégias e estilos. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2008, p. 45-61.
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texto. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – Universidade Estadual Paulista, 2002.
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F. e HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma
introdução à obra de M. Pêcheux. Campinas: Ed. Da
Unicamp, 1990.
Revista Letras, Curitiba, n. 61, especial, p. 253-269, 2003.
Editora UFPR.
253.
OBSERVAÇÕES
SOBRE
INTERDISCURSO. Sírio Possenti
562
ANAIS - 2013
Entre a análise de discurso e a análise das relações de
poder
Arthur Galvão SERRA1
Thiago Fróes ACOSTA2
RESUMO: Este artigo tem por objetivo situar a trajetória pela qual
Michel Foucault passa de sua análise de discurso para chegar à análise
das relações de poder. Posteriormente aos seus primeiros estudos, os
qu
u
“ qu
g ”,
u
ch
u
qu
genealogia, termo apropriado de Nietzsche. Recorreremos à obra
Genealogia da Moral de Nietzsche e textos do período em que
Foucault passa a priorizar as relações de poder para promover essa
reflexão. A metodologia adotada foi uma investigação coerente com
as reflexões do autor, podendo ser considerada uma análise de
enunciados disponíveis nesses textos. Como resultados, pode-se
concluir que: o tratamento dos discursos de suas primeiras obras não
foram abandonadas e continuaram servindo como base e que a análise
das relações de poder já estava possibilitada pela base que construiu; e
que a concepção de sujeito também esteve centralmente presente em
toda sua obra.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Poder; Sujeito.
Introdução
1
Psicólogo, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), membro do Grupo de
Estudos e Investigações Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos
(GEIARF) fundado em 2001, coordenado pelo Prof. Dr. Antônio Carlos do
Nascimento Osório. E-mail: <[email protected]>
2
Graduado em Filosofia, membro do Grupo de Estudos e Investigações
Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos (GEIARF) fundado em 2001,
coordenado pelo Prof. Dr. Antônio Carlos do Nascimento Osório. E-mail:
[email protected]
563
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Este artigo surge das reflexões, entre compreensões e
dúvidas, realizadas durante as reuniões do Grupo de Estudos e
Investigações Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos
(GEIARF), que ocorrem semanalmente e, é resultado de uma
comunicação apresentada no VI Encontro Nacional do Grupo de
Estudos de Linguagem do Centro-Oeste (GELCO) e IV
Colóquio Regional da Associação Latino-Americano de Estudos
dos Discursos (ALED), no Evento Estudos de Linguagem:
Pesquisa, Ensino e Conhecimento, no Grupo de Trabalho: Os
Referenciais Foucaultianos e as Possibilidades de Análise dos
Discursos3.
Primeira tarefa a que nos propomos foi estabelecer os
critérios utilizados por Foucault para analisar o discurso. Logo
após, analisaremos os elementos que demonstram a transição, se
podemos dizer assim, da sua obra, na qual a análise das relações
de poder passa a ocupar um lugar preponderante em suas
pesquisas. Para, a partir daí, possibilitar uma leitura que não se
assente no discurso sobre o conhecimento de objetos, mas sobre
o sujeito, sem objetivá-lo, não um sujeito explicável, situável,
mas produtor e resistente, uma presença controlada, mas
imprevisível. Ao final deste artigo nos ocuparemos a dizer o que
pode ser entendi c
“
”
á
cu
análise do poder. Trata-se neste caso de falar do sujeito na obra
de Foucault.
Inicialmente, Foucault já se ocupava com a linguagem,
campo que era presente nas obras de Nietzsche que cunhou o
3
GT coordenado pelos Prof. Dr. Antônio Carlos do Nascimento Osório,
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul-UFMS e Prof. Doutorando
Daniel Derrel Santee, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- UFMS.
Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 23 a 26 de outubro de 2012.
564
ANAIS - 2013
termo genealogia, apropriado por Foucault para chamar suas
análises sobre o poder. Ambos os autores se ocuparam com o
discurso, com o intervalo entre as palavras e as coisas. Em suas
pesquisas históricas, Foucault propõe o acontecimento que:
[...] parece que tomou cuidado para que o
discurso aparecesse apenas como um certo
aporte entre pensar e falar; seria um
pensamento revestido de seus signos e
tornado visível pelas palavras, ou, [...]
seriam as estruturas mesmas da língua
postas em jogo e produzindo um efeito de
sentido (FOUCAULT, 2006a, p. 46).
O pensamento se utilizaria então dos signos, os quais são
as palavras que estabeleciam uma relação (ou uma aproximação,
uma equivalência) com um objeto da realidade (com as coisas,
com um referente externo à linguagem, dentro da própria
linguagem). Semelhante afirmação encontraríamos na
Genealogia da moral de Nietzsche (2007, p. 82):
As designações e as coisas coincidem? A
linguagem é expressão adequada de todas as
realidades? É somente graças à sua
capacidade de esquecimento que o homem
ch g
c qu
u u ‘
’
no grau que acabamos de indicar. Se não
quiser se contentar com a verdade na forma
de tautologia, isto é, contentar-se com
invólucros vazios, vai trocar eternamente
ilusões por verdades. O que é uma palavra?
A representação sonora de uma excitação
nervosa nos fonemas. Mas concluir de uma
excitação nervosa para uma causa exterior a
565
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
nós já é o resultado de uma aplicação falsa e
injustificada do princípio de razão.
O tipo de investigação que inicialmente consideramos
relevante é descrito em um enunciado de Foucault sobre sua
própria empresa, encontrado no livro Arqueologia do Saber,
quando f
: “Nã
fundar, de direito, uma teoria
[...] mas sim, no momento, de estabelecer u
b
”
(FOUCAULT, 2009, p. 129-130). Com isso, situamos nossa
proposta não como um trabalho de fundação de uma disciplina,
mas de uma proposta de investigação não acabada e passível de
mudanças.
Nesse livro, o autor propõe como instrumento de análise
o discurso considerado em sua unidade formadora: o enunciado,
o qual se caracteriza pela sua posição com um sujeito específico.
D
u c
, “ ã c
çõ
autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas
em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo o
í u
u uj
” (FOU ULT, 2009,
107
108).
À diferença da proposição (a qual é campo da lógica) e
da frase (campo da gramática), o enunciado encontra-se em um
lugar definido e que extrapola esses ou outros sistemas.
Contudo, o enunciado é irrepetível: ao se tomar o enunciado
para a análise, já lhe estará colocando em uma nova posição e
configurando um novo enunciado, não importa que se mantenha
seu texto ou seu autor, o que é coerente com a posição do autor
sobre falar de sua própria obra, conforme entrevista de 1971,
disponível em Foucault (2006b, p. 32):
Seja como for, não falo de minha obra pela
excelente razão de não me sentir portador de
uma obra virtual. Procurei dizer o que tinha
566
ANAIS - 2013
vontade de dizer, há um certo número de
anos. Isso feito, isso existe ou não existe, é
lido ou não, devo dizer que não é tanto na
direção do que fiz que olho agora. Mas se o
senhor me perguntar em qual direção olho
agora, eu lhe direi que não é tanto do lado
das coisas a escrever. Há o problema que há
muito tempo me interessa, é o do sistema
prisional [...].
Esse trecho retirado de entrevista, a nosso ver, estabelece
a fronteira entre a arqueologia e a genealogia de Foucault, pois o
autor demarca a mudança de ponto de análise das suas obras.
Menos uma continuidade de suas obras do que a mudança do
seu campo de análise, do discurso (arqueologia) para o sistema
prisional, período durante o qual, o autor passa a intitular a sua
produção como genealógica.
1.Entre a arqueologia e a genealogia: as pesquisas feitas por
Foucault
Na entrevista supracitada, intitulada Um problema que
me interessa há muito tempo é o do sistema penal, o autor fala
da mudança de sua atividade de pesquisador. Julgamos relevante
referir este texto para expor um panorama um tanto quanto
didático sobre como as pesquisas foucaultianas utilizam os
discursos: não há como digitar tabelas, escrever descrições,
diários de campo ou delimitar hipóteses apesar de toda e
qualquer teoria. Não trataremos os elementos do trabalho
científico como estruturas a ser impostas à forma do trabalho,
mas como elementos que podem ser pensados, para decidir a
forma de incluí-los.
567
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Essa entrevista nos possibilita um olhar sobre o trabalho
que ora tentamos pôr em movimento: no texto em questão, o
autor afirma estar interessado no sistema prisional, mas nega
estar escrevendo alguma obra sobre seu envolvimento com as
prisões. O autor comenta que posterior a sua escrita da História
da Loucura (obra que fora recebida com desconfiança pelos
médicos, por seu autor não ser um deles), um movimento
surgido na Itália chamado antipsiquiatria teria tomado seu livro
como justificativa de uma crítica epistemológica à medicina. Tal
apropriação do livro foucaultiano por esse grupo italiano
demonstra que um enunciado, mesmo quando mantém sua
escrita, muda seu uso:
[...] e eis que esse livro histórico [sua
História da loucura] está em via de ter uma
espécie de resultado prático. Digamos então
que estou um pouco ciumento, e que agora
eu gostaria muito de fazer as coisas eu
mesmo. Em vez de escrever um livro sobre a
história da justiça que seria, em seguida,
tomado
por
pessoas
que
poriam
praticamente em questão a prática da justiça,
eu gostaria de começar por recolocar em
questão a prática da justiça, depois, palavra
de honra!, se eu ainda estiver vivo, e se não
tiver sido posto na prisão, pois bem,
escreverei o livro (FOUCAULT, 2006b, p.
36).
Com isso, essa mudança de foco pode ser vista de várias
formas. Uma delas é aproximar à Genealogia da moral de
Nietzsche, posto que na medida que foi se ocupando de um novo
grupo de objetos nessa sua investigação, foi passando a usar
568
ANAIS - 2013
“g
g ” qu
“ qu
g ”
ferir
ao seu tipo de investigação. Contudo, sem romper com a
arqueologia, o que se poderia inferir com base na citação
retirada da Arqueologia do saber (FOUCAULT, 2009, p. 156157)
Ora,
a
descrição
arqueológica
é
precisamente [...] tentativa de fazer uma
história inteiramente diferente daquilo que
os homens disseram. [...] A arqueologia
busca definir [...] os próprios discursos,
enquanto práticas que obedecem a regras
[...]. Não se trata de uma disciplina
:
ã
bu c
u
“ u
cu ”
culto. Recusa-se a ser
alegórica.
Recorrendo a trechos desse livro, podemos propor um
conjunto de elementos textuais para abordar essa aproximação
entre arqueologia e genealogia que não é apenas lógica do
conhecimento do ponto de vista de seu objeto, mas também de
seu sujeito. Em outras palavras, a tentativa de fazer história
inteiramente diferente daquilo que os homens disseram, pode ser
compreendida, se recorrermos aos últimos textos de Foucault
(2010c, 2011), menos como uma produção de conhecimento
visando outra abordagem do objeto tendo como critério de
verdade a precisão (tal qual fez a medicina com a loucura), mas
mais outra disposição do interessado na verdade do ponto de
vista dos cínicos. Diferente da verdade científica que se ampara
em métodos estabelecidos e firmados em nome de uma
neutralidade e exclusão da participação do cientista na produção
das suas verdades, indefinidamente repetíveis. Mas sim
amparada na coragem, na vinculação com o conteúdo do que se
diz, diferente do discurso que seduz seu interlocutor,
569
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
selecionando as palavras na medida em que elas os coloquem
em uma posição cômoda em relação àquele que fala
(FOUCAULT, 2011).
Isso se diferencia daquela proposta da transmissão do
conhecimento por parte do cientista que se exclui do processo: a
técnica que independe do sujeito pode ser compreendida como
condição externa de possibilidade para esse moderno uso do
conhecimento universalmente aplicável, modelo que recorre à
mathesis, ou que seus efeitos precisam ser independentes do
sujeito que o coloca em movimento. A referência ao último ano
de cursos de Foucault (2011), publicados sob o título A coragem
da verdade, justifica-se para mostrar do interesse do autor em
pesquisar sobre o problema do sujeito, que já se encontra em
suas preocupações, de certa forma, antes da década de 80 (e
porque não dizer já no início de sua obra), na qual ele passa a
estudar mais explicitadamente. Por exemplo, a análise
arqueológica considera o sujeito não como uma consciência que
f ,u
c
u
c ê c ,
c
“u
çã
que pode ser ocupada, sob certas condições, por indivíduos
f
” (FOU ULT, 2009) T
u
u
u
concepções de sujeito ao longo de sua obra?
b
b qu F uc u ã
b h c
“c c
”
no sentido fechado e imutável, posto que ele problematiza a
partir de noções empíricas e historicamente performadas, em
relação às racionalidades da época, e não com definições, as
quais são insuficientes para apreender aquilo que falam em seu
devir. É fíc f
c c
“ uj
”
F uc u
especialmente porque o sujeito, em seu pensamento, tem um
papel central, mas não o de um objeto central. Não explicável,
mas produtor, uma presença controlada, mas imprevisível.
570
ANAIS - 2013
2 Onde fica o sujeito em séculos de produção de
conhecimento sobre o objeto?
O conhecimento centrado quase que exclusivamente no
objeto, que recebe de Nietzsche a acusação do velho costume de
pensar de maneira essencialmente a-histórica, tem precursores
na Grécia antiga, mas que já sofreu deslocamentos importantes,
mas persiste até hoje (FOUCAULT, 2010c). O autor então
recorre aos períodos nos quais a humanidade não se
envergonhava de sua crueldade. O humanismo moderno,
criticado por Nietzsche e também por Foucault, ao ser analisado
em sua historicidade – “Qu
h
qu
gu há
fu
‘c
b ’!” (NIETZ HE, 2009, P 47) –
se revela como um artifício, ou nasce de uma série de processos
históricos.
Poderíamos pensar as prisões como um território que
atualmente esse tipo de crueldade, banida já há milênios,
persiste? Recentemente se tornaram restritoras de liberdade e
mecanismos de controle de indivíduos que se quer retirar da
sociedade e, posteriormente, ressocializar. Esta última função
atribuída (a ressocialização) é ao mesmo tempo a mais apreciada
e a mais desacreditada de ser possível de ser produzida nesse
espaço precário. Em alguns momentos históricos, a estrutura
física arquitetônica das prisões foi usada de forma a incentivar
visitantes para educá-los a evitar práticas transgressoras sob o
risco de serem postos naquela situação que, por essa mesma
razão pedagógica, convinha ser mantida precarizada
(FOUCAULT, 2010a). Em outros momentos, a estrutura física
(construída para uma finalidade, uma funcionalidade que,
reconheçamos, não tardou para se perder) foi utilizada para
ocultar, fazer esquecer esses indivíduos infames (FOUCAULT,
571
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
2010a). Sobre a finalidade do castigo, encontramos em
Nietzsche (2009, p. 60-61) algumas palavras sobre o assunto:
De modo ingênuo, como sempre -:
descobrem no castigo uma "finalidade"
qualquer, por exemplo a vingança, ou a
intimidação, colocam despreocupadamente
essa finalidade no começo, como
causafiendi [causa da origem] do castigo, e
- é tudo. Mas a "finalidade no direito" é a
última coisa a se empregar na história da
gênese do direito: [...]; de que algo existente,
que de algum modo chegou a se realizar, é
sempre reinterpretado para novos fins,
requisitado de maneira nova, transformado e
redirecionado para urna nova utilidade, por
um poder que lhe é superior; de que todo
acontecimento do mundo orgânico é um
subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e
assenhorear-se é urna nova interpretação,
um ajuste, no qual o "sentido" e a
"finalidade" anteriores são necessariamente
obscurecidos ou obliterados (NIETZSCHE,
1887/2009, p. 60).
Nesse aspecto, colocando os dois autores lado a lado,
pode-se ver uma postura crítica, pelo recurso da história, à
atividade atribuidora de sentido. Contudo, não se trata de uma
crítica epistemológica no sentido de denúncia de uma
imprecisão de suas proposições. Não se trata de acusar, nesses
procedimentos filosófico-científicos, em nome de um
relativismo, a falsidade dos discursos. Segundo Veyne (2011),
embora as verdades sejam provisórias e o dizer-verdadeiro seja
condicionado ao momento histórico e posição de seu proferidor,
572
ANAIS - 2013
as verdades não deixam de produzir e ser produzidos por
múltiplas coerções e, antes de se poder dizer que elas não
x
,
qu
f
é qu
“ x
”
Portanto, podemos considerar o formato do presídio
como um dispositivo, uma inscrição cuja funcionalidade ideal e
originalmente pensada não importa. O que importa é que sua
materialidade serve à orientação de procedimento dada por
Foucault (2006a, p. 53): “a partir do próprio discurso, de sua
aparição e de sua regularidade, passar às suas condições
externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória
desses acontecimentos e f x u f
” Df
mente de
um determinismo, a materialidade da prisão é considerada como
condição externa de possibilidade para os discursos e práticas
que envolvam toda tecnologia disciplinar.
Foucaultexplica o princípio da exterioridade do
procedimento investigativo no livro A ordem do discurso, no
qual o autor se refere a seu tipo de investigação como
genealogia, e não mais arqueologia, ainda que analise
“ cu
” Qu
c
u
u
referenciais sobre ao trato das materialidades, podemos
encontrar uma continuidade entre a genealogia e a arqueologia.
O autor, antes de chamar seu trabalho de genealogia, ao estudar
o enunciado, propõe que ele é formado por, entre outros
elementos, uma materialidade compreendida não apenas como a
“ ub â c
u u
cu çã ,
u status, regras de
c çã ,
b
u
u
u z çã ”
(FOUCAULT, 2009, p. 130). Mais de uma década depois,
encontra-se em uma de suas publicações, o uso dos termos
“ qu
g ” “g
g ”
ju
autor dá um novo enfoque à pesquisa da subjetivação:
573
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
[...] analisar, não os comportamentos, nem
as idéias, não as sociedades, nem suas
‘
g ’,
problematizações
através das quais o ser se dá como podendo
e devendo ser pensado, e as as práticas a
partir das quais essas problematizações se
formam. A dimensão arqueológica da
análise permite analisar as próprias formas
da
problematização;
a
dimensão
genealógica, sua formação a partir das
práticas
e
de
suas
modificações
(FOUCAULT, 2007b, p. 15).
Pensamos que essa aproximação entre textos de
diferentes períodos da obra do autor e a Genealogia da moral de
Nietzsche se faz importante para tratar
“
çã ”
b
de Foucault entre a análise de discurso e a análise das relações
de poder. A partir da citação supracitada, vê-se que o autor não
abandona a questão do discurso, presente na forma das
problematizações. E junto ao discurso, encontramos presentes
em seu pensamento as outras noções que o autor utiliza, como
os dispositivos, as práticas e suas modificações, que são
operadas pelos sujeitos. Esses sujeitos que não são gerais desde
o princípio, são tornados gerais para que os homens possam
dispor do controle dos efeitos das condutas de outros homens,
com os quais exercem relações.
Mas quanta coisa isso não pressupõe! Para
poder dispor de tal modo do futuro, o quanto
não precisou o homem aprender a distinguir
o acontecimento casual do necessário, a
pensar de maneira causal, a ver e antecipar a
coisa distante como sendo presente, a
estabelecer com segurança o fim e os meios
574
ANAIS - 2013
para o fim, a calcular, contar, confiar, - para
isso, quanto não precisou tornar-se ele
próprio confiável, constante, necessário,
também para si, na sua própria
representação, para poder enfim, como faz
quem promete, responder por si como
porvir! Esta é a longa história da origem da
responsabilidade. A tarefa de criar um
animal capaz de fazer promessas, já
percebemos, traz consigo, como condição e
preparação, a tarefa mais imediata de tornar
o homem até certo ponto confiável
(NIETZSCHE, 2009, p. 44).
Na sequência deste artigo, seguiremos, nos utilizando
das obras do período de transição de Foucault, para marcar os
seguintes c
í
“
á
cu
á
çõ
”:
ã , uj
, g
g ,
o aumento da proximidade com Nietzsche, para além da história
e da linguagem.
3. Mecanismos de produção de sujeitos docilizados
A prisão, em sua materialidade, foi apropriada de
diferentes formas. Quando inseriram-se no sistema prisional
ciências para previsão de condutas, os arquivos de tempos
anteriores passaram a ter um uso de dados laboratoriais como
indicadores de eficácia de certos procedimentos em produzir
certos estados ou condutas, da forma que o compreendiam. Mas
antes disso, o mais frequente tratamento desses arquivos era o
esquecimento, os quais passavam pela ocultação de enunciados
– operado dentro das paredes das prisões. Ocultava-se todo
enunciado desses sujeitos, amparando-se em uma racionalidade
575
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
de não permitir o exemplo da revolta ser alvo possível da
curiosidade de sujeitos considerados participantes de camadas
populacionais que representam perigo social. E a criminalidade
não só tem, historicamente, uma relação muito próxima com a
pobreza, como o sistema punitivo serviu para produzir uma nova
forma de crime: os grandes bandos de malfeitores foram
combatidos por dispositivos de segurança, os quais foram
eficazes em produzir criminosos mais desarticulados,
contentando-se com operações mais furtivas, menos
demonstração de força e menores riscos de massacres, para
passar despercebidos. Desaparece a criminalidade de massa, de
classe social oprimida, e cede lugar ao criminoso marginal
(FOUCAULT, 2010a).
Voltando um pouco na trajetória histórica feita por
Foucault (2010a) para abordar a posição do criminoso que por
vezes aparecia como representante da classe social oprimida à
época dos suplícios, a fim de servir de provas póstumas à justiça
soberana, ligada à lei do rei, e para produzir no povo o medo,
circulavam os folhetins sobre a história desse criminoso
pecador. Perceba a ausência aqui, nesse período anterior, da
ocultação e do uso científico de conhecimento da conduta para
regulá-la. Se essas leituras faziam parte das classes populares,
era por função da resistência do povo. Sua curiosidade era o
contraponto, o outro lado da moeda para viabilizar essas
leituras, pois não basta o texto ser escrito para circular. Na
sequência surge uma literatura na qual o crime foi abordado sob
formas aceitáveis, como notáveis obras de seres de exceção. Os
folhetins sumiram, posteriormente, cedendo lugar à literatura
policial:
O homem do povo agora é simples demais
para ser protagonista das verdades sutis.
Nesse novo gênero, não há mais heróis
576
ANAIS - 2013
populares nem grandes execuções; os
criminosos são maus, mas inteligentes; [...]
São os jornais que trarão à luz nas colunas
dos crimes e ocorrências diárias a mornidão
sem epopeia dos delitos e punições
(FOUCAULT, 2010a, p. 67).
De forma semelhante a Foucault, ao inserir o delinquente
em sua gênese histórica, desbiologiciza-o, Nietzsche (2009)
desnaturaliza o esquecimento como uma força natural e o situa
como guardião da ordem psíquica, da paz, sem o qual não é
possível haver felicidade, esperança. Nietzsche então possibilita,
assim como Foucault, não propriamente fazer crítica do
conhecimento do objeto, lógico (FOUCAULT, 1969/2009),
produzido de forma a independer do sujeito que o profira. O que
os dois autores possibilitam é recuperar os homens da
monotonia que foram colocados no modelo do panóptico e da
governamentalidade, reconvocando-os para a luta na qual hoje
ocupam uma posição tornada natural, e não natural por essência,
posto que pode ser alterada cotidianamente, ou mesmo em uma
revolução.
4. Poder e Resistência
É nessa hora, que cabe a reflexão do que o autor entende
“
”
mos o espaço do sujeito em suas
relações. Iniciaremos pela instância do discurso da sociedade
disciplinar que para Foucault pode ser representado por todo um
espaço de controle, em que não há um espaço único de
çã
u “P
”,
â c
c
posições ocupadas por sujeitos nesse social que o constitui e por
ele é constituído. Esses sujeitos, segundo Foucault (2010b), não
serão considerados reprodutores fieis dos códigos, posto que,
577
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
tem também um papel reativo frente às estruturas que os
normatizam e governam sua conduta. Nisso consiste a
resistência: os sujeitos representam papéis num jogo de poder,
mas têm sempre a possibilidade de serem livres, ou segundo
Foucault (1984, p.5):
[...] o que quero dizer quando falo de
relações de poder é que estamos, uns em
relação aos outros, em uma situação
estratégica. [...] Acontece que estamos
sempre de acordo com a situação. O que
quero dizer é que temos a possibilidade de
mudar a situação, que esta possibilidade
existe sempre. Não podemos nos colocar
fora da situação, em nenhum lugar estamos
livres de toda relação de poder. Eu não quis
dizer que somos sempre presos, pelo
contrário, que somos sempre livres. Enfim,
em
poucas
palavras,
há
sempre
possibilidades de mudar as coisas. [...] Veja
que se não há resistência, não há relações de
poder. Porque tudo seria simplesmente uma
questão de obediência. A partir do momento
que o indivíduo está em uma situação de não
fazer o que quer, ele deve utilizar as relações
de poder.
A mudança histórica entre experiências dependem da
resistência do sujeito. A ciência só passa a ter controle quando
os sujeitos são tornados objetos de uma explicação, por
exemplo, funcionalista. A resistência, contudo, nesse tipo de
ciência é o furo da funcionalidade, sobretudo porque os sujeitos
constroem as instituições a todo tempo e não reproduzem
garantidamente a partir de uma certa data e de uma vez por
578
ANAIS - 2013
todas uma única figura, a qual possa sempre ser acessada como
representativa de todo e cada sujeito. Os discursos, contudo,
além de não se referir aos sujeitos levando em conta sua
proveniência, ainda se referem a noções de homem que não são
equivalentes, nunca uma reprodução infinita. Quando se
considera que esse processo não é neutramente acessível por
experimentos repetíveis nos apropriados lugares ascéticos, mas
um sujeito que irá fazer algo com essas descrições que lhes
impõem, e não apenas dizer-lhes sim.
5. Michel Foucault, por uma filosofia do sujeito.
O sujeito, nesse espaço marcado por Foucault, sai da
condição centralizadora e passa a ser um cidadão participativo,
identificando, em setores da sociedade nos quais se envolve
diretamente, possibilidades de inserção que dependa de sua
convicção e que não seja meramente controlada em sua vertente
uj
“ c
c ”, g
,
u
,
do,
incerto de si. Essa possibilidade Foucault (2010c) propõe ao nos
lembrar que uma democracia, sem a convicção pessoal com
aquilo que cada cidadão propõe como o que acredita e se
posiciona como aquilo que deve ser feito, traz uma igualdade de
direitos que transforma o povo em massa, em caos de gritos de
fúria egoística. A partir da igualdade, deve-se ser possível que a
virtude do cidadão seja um diferencial. Deve-se considerar que o
consenso é posterior e não presumido como previamente. Em
nome de um discu
“
c
”, não se deve deixar de
ouvir as falas dos sujeitos individuais. Os sujeitos não têm um
mesmo discurso, nenhum enunciado se repete, vê-se aí um
poder que parte dos sujeitos e não de uma instância reguladora
ou centralizada na mão de um único Soberano. Confiar nos
sujeitos como cidadãos, implica em ouvi-los em sua fala
579
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
empírica e ver nesses saberes possibilidades muitas vezes mais
frutíferas que as das políticas de cima para baixo, especialmente
quando se supõe (ou pior, nem cogita sobre) os sujeitos como
uma massa uniformemente de acordo com o status quo, salvo
aqueles poucos inadequados que serão, nesse sistema,
neutralizados.
É nesse aspecto que a filosofia tem um novo papel, se
incluindo em uma nova funcionalidade. Ao final de sua obra,
Foucault volta-se a textos gregos clássicos para pensar uma
atuação ético-política do sujeito. Esse é um tema que se poderia
recorrer para resgatar a autonomia do sujeito e recolocá-lo em
um plano de autoconstituição. Não uma garantia de
emancipação de todo e qualquer dispositivo controlador de sua
conduta, mas, nas frestas desse sistema coercitivo, encontrar
saídas para a criação e a liberdade, como possibilidade estética
de transgredir – mais que transcender, portanto – as
determinações científicas impositoras de consensos dos quais
não se pode escapar sem quebrar ou burlar as regras de conduta,
de certa forma.
Foucault (2010c) aborda, a partir de uma carta de Platão,
a questão do real para a filosofia, o qual não poderia ser apenas
a razão, mas a razão comprometida com a possibilidade de se
instaurar, politicamente, a cidade real, a cidade da filosofia.
Nessa carta, Platão soubera que deveria retornar a Siracusa para
libertar Dion da prisão que fora colocado. Portanto, se ele não
fosse em socorro do amigo, e ainda com a possibilidade de
instaurar a cidade de suas pregações, seria só logos, o qual, para
ele, não bastaria para constituir o real da filosofia.
Portanto, se distancia da atual noção de natureza
humana, à qual as ciências do homem recorrem para nele
descobrir propriedades para fundamentar sua previsibilidade,
seu controle, ampliando o domínio sobre seu corpo. Trata-se,
580
ANAIS - 2013
então, não de encontrar esse ponto de segurança, de
previsibilidade no homem, mas de promover um
desenvolvimento estético, o qual envolveria um trabalho sobre
si, uma estetização da vida, em uma virtude não garantida, mas
como o resultado do trabalho de uma vida sobre si mesma.
[...] filosofia que não deve ser simplesmente
máthesis mas também áskesis. Se é verdade
que a filosofia não é simplesmente
aprendizado de um conhecimento, mas deve
ser também um modo de vida, uma maneira
de ser, certa relação prática consigo mesmo
pela qual você se elabora a si mesmo e
trabalha sobre si mesmo, se é verdade que a
filosofia deve portanto ser áskesis (ascese),
assim também o filósofo, quando tem de
abordar não somente o problema de si
mesmo mas também o da cidade, não pode
se contentar com ser simplesmente logos,
com ser simplesmente aquele que diz a
verdade, mas deve ser aquele que participa,
que põe mãos ao érgon (FOUCAULT,
1983/2010c, p. 200-201).
Essa virtude não é algo natural, mas produzido em uma
prática ética, pautada por uma filosofia que restitui ao sujeito
sua função criadora de sua autoconstituição. Portanto, segundo
Foucault (2007a), embora o homem tenha se tornado objeto das
ciências da linguagem, da vida e da economia; embora as
propriedades e tendências naturais tenham sido explicadas
cientificamente; se considerarmos o homem como sujeito
produtor de sua própria forma de vida, e não apenas
determinado por processos em posse de certas ciências do
homem, o sujeito extrapola qualquer descrição de sua
581
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
subjetividade que o retire de seu devir e o encaixe em um
recorte da realidade ao qual se referem as ciências para
descobrir regularidades que permitam exercer certos tipos de
relação de poder.
Dessa forma, a possibilidade do sujeito se autoconstituir
ou se autorregular longe das determinações objetivadoras da
ciência moderna, é viabilizada por esse resgate que o Foucault
faz da filosofia para dar ao sujeito sua posição, mas agora
enquanto sujeito de fato, constituinte, e não mais como objeto
controlado, constituído.
Conclusão
Partimos de movimentos realizados por Foucault os
quais apresentamos aqui como o texto Genealogia da moral de
Nietzsche, a entrevistas cedidas por Foucault falando do papel
da resistência nas relações de poder e da prisão como foco de
problematizações que lhe possibilitam um novo campo de
investigações. Esses textos aportaram elementos que nos
permitiram lançar um olhar sobre esse espaço um pouco obscuro
em sua obra entre a arqueologia (tradicionalmente situada como
forma de análise de discurso) e a genealogia (como forma de
análise das relações de poder).
Nossa compilação e reflexão possibilitaram propor
continuidades e descontinuidades em sua obra. Entre as
continuidades encontramos a presença do discurso que não foi
abandonado ou trocado, perdendo apenas a prioridade durante o
período genealógico, e sendo inclusive recurso que voltou a ser
frisado ao analisar as problematizações dos textos gregos
clássicos no final de sua vida. Inclusive, o papel do sujeito, que
passa a aparecer de forma central em suas problematizações na
década de 1980 até sua morte, não estava excluído em seus
582
ANAIS - 2013
textos anteriores. Quando Foucault (2007) é acusado de matar o
homem ou curto-circuitar a possibilidade de assumi-lo como
uma unidade e de como soberano na possibilidade de mudar o
discurso (FOUCAULT, 2009). Mesmo nesses textos, o que
Foucault faz poderia ser melhor descrito como um resgate da
possibilidade de o sujeito transgredir as determinações que se
lhe impõem.
Entre as descontinuidades, situamos o deslocamento dos
campos de análise com os quais Foucault passa a se ocupar,
entre eles: o discurso científico, as prisões, a filosofia grega
clássica, a sexualidade. Cada um desses campos exigiu do autor
uma postura diferente em suas análises, culminando inclusive na
promoção de desconstruções. Não que os objetos determinem a
apreciação que os pesquisadores terão deles a fim de se chegar a
respostas definitivas, mas que esses objetos sejam considerados
condição de possibilidade para certos discursos.
Como Foucault sempre trabalhou com a multiplicidade,
por vezes incoerente, das falas sobre os objetos com os quais se
ocupou, e não com a realidade por trás dessas falas, seu tipo de
investigação nunca se propôs a situar o sujeito em uma posição
que permita um único campo de análise, mas justamente
investigar lugares de onde diversas linhas discursivas puderam
sair e dar o formato de uma obra de arte abstrata.
Referências
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. [trad. Luiz
Felipe Baeta Neves]. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.
______. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros
II: curso no Col1ège de France (1983-1984) / Michel Foucault;
583
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2011.
______. A Ordem do discurso. 13. ed. São Paulo: Loyola,
2006a.
______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes,
2007a.
______. Ditos e Escritos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2006b.
______. História da sexualidade I: a vontade de saber. 20. ed.
Rio de Janeiro: Graal, 2010b.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos
prazeres. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007b.
______. O Governo de si e dos outros: curso no Col1ège de
France (1982-1983) / Michel Foucault; tradução Eduardo
Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010c.
______. Sex, Power and the Politics of Identity; entrevista com
B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; The
Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, p. 26-30 e 58.
Disponível
em:
<http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/sexo.pdf> Acesso
em: 14 fev. 2012.
______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 38 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010a.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica.
São Paulo: Companhia das letras, 2009.
______. . O Livro do Filósofo. São Paulo: Escala, 2007.
584
ANAIS - 2013
Gêneros digitais no ensino de linguagens: a
interdiscursividade nas charges digitais de Maurício
Ricardo e nas notícias políticas do blog Radar on-line
Katia Resende de Assis MACHADO1
Silvane Aparecida de FREITAS2
RESUMO: Partindo dos pressupostos teóricos da AD de linha
francesa e do sócio-interacionismo bakhtiniano, temos como objetivo
principal, neste artigo, analisar os gêneros digitais - charges digitais de
Maurício Ricardo e notícias políticas do blog Radar on-line -, a fim de
evidenciar suas características idiossincráticas e particularidades que
os tornam atrativos e estimulantes para o ensino. Partimos do
pressuposto de que a produção de sentidos desses gêneros, em sala de
aula, contribui para a ampliação da competência discursiva de nossos
alunos e ameniza a artificialidade que, muitas vezes, corrompe as
aulas de língua-materna. A análise desses gêneros digitais mostrou-se
muito produtiva, pois propiciou a possibilidade de relacionar as
características de um gênero com outro que veicula a mesma temática.
Pudemos constatar a interdiscursividade, ou seja, um intercalar de
vozes dialogando entre esses gêneros e evidenciar que a mídia
consegue direcionar os sentidos e transmitir uma imagem totalmente
negativa dos políticos.
1
Mestranda no Programa de Pós-graduação Stricto sensu em Letras da
UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade de Campo
Grande e Especialista em Letras – Área de Concentração Linguística e
Ensino
–
Pós
Graduação
Lato
sensu
(2005).
E-mail:
[email protected].
2
Doutora em Letras (2002) - UNESP/Assis (2002); Pós-doutora em
Linguística Aplicada (2008) - IEL/UNICAMP; docente do Mestrado em
Letras e Mestrado em Educação da UEMS – Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul; líder do grupo de pesquisa Linguística e Ensino. E-mail:
[email protected]; [email protected].
585
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
PALAVRAS-CHAVE: Gêneros discursivos; Gêneros digitais;
Linguagens; Ensino.
Introdução
Atualmente, vivemos numa sociedade altamente
conectada. As inovações tecnológicas têm aumentado
consideravelmente, e, consequentemente, os gêneros do discurso
têm se disseminado e levado as pessoas a interagirem mais,
repassando conhecimentos, ideias, crenças e convicções. A
internet se destaca como um grande instrumento tecnológico na
difusão de novos gêneros, fator que pode ser explicado pela
comodidade e agilidade que a mídia virtual disponibiliza aos
seus diversos usuários.
As novas tecnologias têm invadido as nossas vidas nos
últimos tempos. Em todas as áreas de nossa vida em sociedade,
o avanço tecnológico tem explodido e é impossível fugir dessa
realidade, especialmente, na escola, que é uma instituição
formadora de cidadãos que atuam e atuarão em nossa sociedade.
É difícil olhar para um grupo de jovens e adolescentes de
nossa época e não observar entre eles equipamentos
tecnológicos, como celulares, tablets e computadores que
veiculam, de maneira extremamente rápida, uma diversidade de
novos gêneros. Essas tecnologias se tornam cada vez mais
comuns nas mãos da maioria de nossos alunos de quase todas as
classes sociais.
O estudo dos gêneros do discurso e, consequentemente,
dos gêneros digitais tem se disseminado em grande proporção
nos estudos linguísticos atuais e sua importância tem se
destacado, sobretudo, porque operam como forma de ação
social. Sendo assim, podemos afirmar que os gêneros
586
ANAIS - 2013
discursivos são operadores de transformação social por meio dos
valores que por eles são propagados.
Estamos cientes de que os gêneros do discurso são
inúmeros, quase ilimitados, já que a língua é dinâmica e, à
medida que a tecnologia vai se desenvolvendo, os costumes e
valores vão se modificando, novos gêneros discursivos vamos
(re)criando. Por isso, a necessidade veemente de explorarmos os
gêneros discursivos mais circulados no momento.
1. A linguagem como interação social e o ensino
Atualmente, há uma grande preocupação em trabalhar
a(s) linguagem(ns) nas diversas situações comunicativas em que
nossos alunos estão inseridos. Preferimos utilizar o termo
linguagens (no plural) pelo fato de que temos de considerar não
somente a linguagem verbal, mas também a não-verbal
(imagens, sons, movimentos, gestos, entonação etc.), é
necessário aliar o linguístico ao não-linguístico, para, assim,
produzir os sentidos dos diversos textos circulados socialmente,
principalmente, os divulgados nessa era globalizada e digital em
que vivemos.
A teoria bakhtiniana evidencia a língua como um
produto histórico, cultural e social, apresentando a interação
verbal como mola propulsora para a observação e análise do
funcionamento da linguagem. Trazendo à tona a linguagem com
essas especificidades, ressaltamos a articulação entre o
linguístico e o social, buscando sempre relações entre a
ideologia e a linguagem.
Há um ponto fundamental que resume o pensamento
b kh
: “
çã
verbal constitui a realidade
fu
í gu ”(B KHTIN, 1986,
123) N
perspectiva, é salutar mencionar que o diálogo constitui uma das
587
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
formas mais importantes da interação verbal, por isso a teoria de
Bakhtin e seus seguidores sobre a linguagem e seu
funcionamento é conhecida como sócio-interacionismo
bakhtiniano.
Sabemos que, para ele, a palavra é o signo ideológico
por excelência; além de ser o resultado da interação social,
caracteriza-se por seu caráter múltiplo de sentidos. A palavra
retrata a realidade de diversas formas, sendo assim, facilita a
manifestação da ideologia. São as várias vozes, os diversos
pontos de vista que se refletem nas palavras, tornando-as tão
ricas e polivalentes. A palavra ainda pode ser considerada
dialógica por natureza, pois nela travam-se lutas de vozes que
ecoam e querem ser ouvidas, respondidas, refutadas,
confirmadas, enfim, emanam dos outros que nos constituem
enquanto sujeitos.
Partindo desses pressupostos, a linguagem deve ser
encarada como lugar em que a ideologia, a história, a sociedade,
o poder, a cultura, de um modo geral, e, conjuntamente,
materializam-se na instância que denominamos discurso.
Olhando por essa perspectiva e pensando no estudo do
funcionamento das linguagens, Brandão (1995, p.12) argumenta
que
[...] a linguagem enquanto discurso é
interação, e um modo de produção social;
ela não é neutra, inocente (na medida em
que está engajada numa intencionalidade) e
nem natural, por isso o lugar privilegiado de
manifestação da ideologia. [...] Como
elemento de mediação necessária entre o
homem e sua realidade e como forma de
engajá-lo na própria realidade, a linguagem
é o lugar de conflito, de confronto
ideológico, não podendo ser estudada fora
588
ANAIS - 2013
da sociedade uma vez que os processos que
a constituem são histórico-sociais. Seu
estudo não pode estar desvinculado das
condições de produção.
Com relação à realidade do contexto escolar, sabemos que a
linguagem é essencial no desenvolvimento intelectual de qualquer
indivíduo. Nesse sentido, é interessante mencionar que
[...] a linguagem é condição sine qua non na
apreensão e formação de conceitos que
permitem aos sujeitos compreender o mundo
e nele agir; ela ainda é a mais usual forma
de encontro, desencontro e confronto de
posições porque é através dela que estas
posições se tornam públicas. Por isso é
crucial dar à linguagem o relevo que de fato
tem [...]. (GERALDI, 2010, p. 34).
2. Os gêneros digitais no ensino de linguagens
A necessidade de estudar a linguagem em funcionamento
nas diversas situações comunicativas de nosso cotidiano tem
sido o alvo dos estudos linguísticos e tem levado à verificação
de uma diversidade de gêneros discursivos, bem como suas
propriedades e características.
Os gêneros do discurso não se definem pelos aspectos
formais, estruturais ou linguísticos, mas sim, pelos seus aspectos
funcionais, sociais e comunicativos. Segundo Marcuschi (2002,
p. 25), “
gê
ã
ã
f
,
c u c
” É
ção social que um
determinado gênero se torna significativo, é em sua
concretização que as diversas formas de se comunicar, de
entender, de ser entendido e de significar a realidade são
expressas.
589
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Sendo assim, Bakhtin (2010, p. 262) denomina como
gêneros do discurso os tipos relativamente estáveis de
enunciados elaborados pelos campos de utilização da língua.
Apesar de não serem definidos pelos aspectos formais, Bakhtin
afirma que há uma certa estabilidade nos enunciados de um
mesmo gênero. Ele define os gêneros como relativamente
estáveis considerando três elementos essenciais - conteúdo
temático, estilo da linguagem e construção composicional - que
estão intimamente ligados no todo de cada enunciado e são
determinados
pela
especificidade
de
cada
campo
comunicacional. (BAKHTIN, 2010, p. 262).
É imensa a importância dos gêneros discursivos,
Marcuschi (2002, p.30) os define como “ f
cu u
c
uí
h
c
hu
”, merecem atenção
especial no que se refere aos estudos da linguagem em
funcionamento. Eles não são criados por uma vontade
individual, mas surgem por meio de práticas comunicativas
coletivas que se reiteram e atendem a necessidades específicas
de comunicação da sociedade no decorrer do tempo.
Apesar de existirem tentativas feitas por alguns teóricos,
será sempre muito complicado e difícil classificar, categorizar e
até mesmo catalogar os gêneros discursivos. Afinal, como
f
B z
(2006, 17 18),
“ã
qu
reconhecem como gêneros a cada momento do tempo, seja pela
denominação, institucionalização ou regulamentação, são
rotinas sociais de nosso dia-a- ”
Com relação à diversidade e importância dos gêneros do
discurso, podemos afirmar que são infinitas as suas
possibilidades de uso, assim como são infinitas as formas de
interação das atividades humanas, em cada campo dessas
atividades é riquíssimo o repertório dos gêneros do discurso e
590
ANAIS - 2013
quanto mais se tornam complexos esses campos, mais gêneros
se desenvolvem. (BAKHTIN, 2010, p. 262).
Diante dessa imensa variedade e riqueza dos gêneros,
verificamos que eles refletem a necessidade de comunicação e
se adaptam às inovações tecnológicas, em cada situação
diferenciada, um gênero é desenvolvido, com o intuito de
materializar o discurso adequadamente ao contexto situacional
e, consequentemente, difunde a linguagem de geração a geração.
Com relação ao ensino, podemos apontar que todas as atividades
de linguagem dos aprendizes devem configurar-se em gêneros
discursivos ou textuais. No processo ensino/aprendizagem de
linguagens, os gêneros discursivos devem ocupar lugar central.
Devemos priorizar sua funcionalidade ao invés de enfatizar
características e classificações.
Conforme Schneuwly, traduzido por Rojo e Cordeiro (2004, p.
27), “
c h
gênero se faz em função da definição dos
â
u çã qu gu
çã ” P
qu
alunos ampliem cada vez mais sua competência discursiva, é de
suma importância que tenham contato e produzam sentidos de
uma diversidade de gêneros discursivos. Nesse sentido,
[...] do ponto de vista do uso e da
aprendizagem, o gênero pode, assim, ser
considerado um mega-instrumento que
fornece um suporte para a atividade nas
situações de comunicação e uma referência
para os aprendizes [...] não é mais
instrumento de comunicação somente, mas,
ao
mesmo
tempo,
objeto
de
ensino/aprendizagem.
(DOLZ
;
SCHNEUWLY, 999, p. 7).
591
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A produção de sentidos de um gênero estará sempre
vinculada ao conhecimento dos fatos, situações sociais,
históricas, culturais e ideológicas que seus locutores e
interlocutores estão envolvidos. Por isso é necessário
compreender o funcionamento de todas as condições de
produção de um gênero discursivo.
Diante disso, nessa perspectiva de ensino, sobretudo,
concordando com Saito (2009, p.197), ao afirmar que “ qu
profissionais preocupados com a educação enquanto ação
política de intervenção
c ”, é x
refletirmos sobre a utilização de uma diversidade de gêneros
discursivos na sala de aula, para que nossos alunos ampliem
suas competências discursivas, utilizando a linguagem de modo
efetivo e eficaz, além de propiciar a formação de cidadãos
críticos, capazes de intervir agindo e transformando a sociedade
em que vivem por meio dos gêneros.
2.1
Os gêneros digitais: notícias “políticas” do blog
Radar on-line e as charges digitais de Maurício Ricardo
Inicialmente, propomos a análise do gênero digital
notícia a qual denominamos notícia política pelo fato de que as
selecionadas para esta pesquisa são relacionadas a assuntos
políticos, extraídas do blog jornalístico Radar on-line e, em
seguida, a análise da charge digital do site www.charges.com.br.
Essa sequência se justifica pelo fato de que acreditamos que a
notícia de fatos relacionados à política deve ser analisada,
primeiramente, colocando em evidência todos seus aspectos
linguísticos relevantes à produção de sentidos para que, em
seguida, como forma diferenciada de representar o mesmo
acontecimento discursivo, seja apresentada a charge digital, para
mostrar as diversas formas que uma mesma temática pode ser
592
ANAIS - 2013
trabalhada em sala de aula, com gêneros diferentes e
extremamente estimulantes. A utilização da charge digital
propõe uma análise de como o discurso pode ser carnavalizado e
exposto de uma maneira muito mais dinâmica e humorística.
Nosso principal objetivo com a utilização desses dois
gêneros em sala de aula é que os alunos tenham uma atitude
crítica e reflexiva diante desses textos tão divulgados em nosso
mundo altamente interconectado e produzam os efeitos de
sentidos que eles possibilitam, bem como identifiquem as visões
de mundo que os perpassam.
A respeito da temática dos gêneros que serão analisados,
é interessante mencionar que
[...] o discurso político é, por excelência, o
lugar de um jogo de máscaras. Toda palavra
pronunciada no campo político deve ser
tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e
não diz. Jamais deve ser tomada ao pé da
letra, numa transparência ingênua, mas
como resultado de uma estratégia, cujo
enunciador nem sempre é soberano.
(CHARAUDEAU, 2008, p.8).
Trazemos à baila um novo elemento: a mídia, que tem
papel fundamental na divulgação desses gêneros e na maneira
como manipula a sociedade a produzir alguns sentidos. Vale
salientar que, relacionando a política, o discurso e a mídia e
u “cu u
ácu ” qu
b
í
c
c
â , qu “
f
u
bj
c u
á c ”,
g
qu
[...] numa estranha equação, instaura-se a
política como teatro: de um lado, no palco, a
593
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
í
u
“
”
jogos da política; de outro, na plateia, a
passividade espectadora do (e)leitor imerso
na imensa rotatividade das mensagens que
lhes são dirigidas pelos meios de
comunicação [...] a mídia promete
representar (interceder em favor de) uma
dada coletividade e, ao mesmo tempo,
confrontar-se com os agentes políticos.
(GREGOLIN, 2003, p. 14).
Nessa intensa busca por informações que serão
consumidas por seus leitores, a mídia intenta persuadi-los e
levar a sociedade a uma assimilação da ideologia que essa
instância tão poderosa impõe. Com o intento de mudar esse
c á
c
x
,
“
c
(
)”, f
àqu qu é x
í , bu c
,
com esse trabalho, exemplificar como, no ensino de linguagens,
um tipo de leitura mais significativa e interpretativa, levando a
questionamentos e reflexões, pode evidenciar as linguagens em
funcionamento e mostrar aos alunos como elas (as linguagens)
podem ser utilizadas a fim de atingir uma vasta quantidade de
propósitos nesse jogo de poder em que o discurso político e
midiático se instaura. Nesse sentido, acreditamos ser muito
íc
f
çã
g
(2003,
14)
qu “
discurso não serve apenas para comunicar, mas que ele é, a um
só tempo, um objeto simbólico e político [...] no sentido de que
éu
u
”
É importante ressaltar que nosso intuito não é
caracterizar esses textos como politicamente de direita ou de
esquerda, mas que, por intermédio dessas análises por nós
apresentadas, possam suscitar outras leituras em sala de aula,
tanto pelos professores, como pelos alunos, já que, devido à
594
ANAIS - 2013
opacidade da linguagem, os sentidos a serem produzidos em um
texto nunca são prontos e acabados, a cada leitura que fazemos,
novos significados podemos construir, novos questionamentos
podem surgir. Assim, professor e alunos poderão desempenhar
papel de autênticos leitores, agentes ativos de produção de
sentidos desses textos.
2.2 Condições de produção dos gêneros digitais e o ensino
Antes de iniciar as análises dos gêneros selecionados,
consideramos interessante que o professor proponha aos alunos
um momento de leitura biográfica dos personagens, ou seja,
políticos/governantes que aparecerão nos textos selecionados, a
fim de situá-los com relação às condições de produção do
discurso de tais gêneros. Essa leitura poderá ser feita por
intermédio de biografias e textos disponibilizados na internet,
sempre com a mediação do professor.
Nessa fase inicial, o professor pode evidenciar que a
biografia se constitui num gênero discursivo que nos mostra
como os textos evidenciam a visão de mundo do segmento
social ao qual está inserido e manipulam as informações. Sendo
assim, algumas dessas biografias mostram apenas o lado
positivo da personalidade política pesquisada, outras mostram
apenas seu lado negativo, outras tentam ser um pouco
imparciais, no entanto, todas deixam evidente o posicionamento
de quem as elabora e da formação discursiva a que estão
inscritos os seus autores. Por esse motivo, é necessário pesquisar
várias biografias e textos relacionados a esses políticos para ter
uma visão geral da vida da personalidade pesquisada. É de suma
importância entender o momento histórico em que eles viveram,
o que essas determinações geram no momento de produzir
sentidos.
595
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
É preciso propiciar condições para que nossos alunos
questionem o conteúdo de suas leituras e relacione-as com a
realidade política, econômica, histórica e social a que se
inscrevem. Até que ponto as informações repassadas são
verídicas? Quais são as impressões ideológicas do chargista ou
do jornalista que criam esses gêneros? Enquanto leitores, temos
que aceitar tudo que nos é posto ou podemos refletir, questionar
e criticar? Esses são alguns questionamentos que devem ser
incentivados pelo docente nesse trabalho com os gêneros
digitais.
Diante disso, é imprescindível dar lugar à contrapalavra
do aluno, ao recepcionar esses gêneros, o aluno/leitor deve ter
liberdade para expor suas opiniões, concordar, refutar,
acrescentar dados etc. Nesse sentido, Bakhtin (2010, p. 271)
x õ qu “
c
ã
f
,
u c
é
de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse
ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de
resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o
u
f
” P
,
c
para essas instabilidades que a leitura e compreensão desses
gêneros requerem.
O papel do professor é altamente importante na eficácia
desse trabalho, deve sempre deixar claro aos a u
qu “[ ]
que é dito, há sempre o que é dito e o que não o é, um não-dito
qu ,
,
bé
z” ( H R UDE U, 2008, 8)
Nosso objeto de pesquisa – charges digitais e notícias do
blog Radar on-line - por se relacionarem diretamente com o
discurso político - se constitui num terreno um tanto movediço,
cheio de armadilhas e polêmicas. O senso-comum há tempos
qu “fu b ,
í c
gã ã
cu
”,
é
um dos ditados mais conhecidos da sabedoria popular. No
entanto, acreditamos que retrata uma grande contradição
596
ANAIS - 2013
brasileira, pois esses três assuntos se constituem nos temas mais
presentes e relevantes na memória discursiva de nosso povo.
Sendo assim, ousamos analisar esses textos, cientes de
que muitas leituras divergentes da nossa surgirão e poderão
contribuir para o prosseguimento de nosso trabalho. Afinal, para
que atendamos à necessidade urgente dos multiletramentos 3, a
fim de que o indivíduo seja capaz de compreender as linguagens
em todas as suas instâncias de uso, inserimos a instância
política, partindo do pressuposto de que uma imensa variedade
de gêneros discursivos deve ser utilizada em sala de aula.
2.3
Análise da notícia política do blog Radar on-line
O blog Radar on-line é um ambiente digital de autoria de
Lauro Jardim e possui espaço para a interação com os leitores
por intermédio de postagem de comentários, entre outros
recursos que interagem também com as redes sociais tão usadas
no momento. Está localizado no site da revista Veja que, apesar
de ser um veículo oficial de informação um tanto criticado por
alguns estudiosos, é de grande circulação nacional, e por esse
motivo um grande formador de opiniões, crenças e valores que
poderão ficar cristalizados na memória discursiva da população,
durante gerações. Sendo assim, consideramos importante se
desconstruir certos sentidos veiculados neste suporte textual. A
seguir apresentamos a notícia tal como ela é visualizada no blog:
3
A respeito dos multiletramentos ver:
ROJO, R. MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola,
2012.
597
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
íc
f
í c “N
b ” f postada no
blog Radar on-line no dia 11/11/2011, às 6h 04 min., enquadrase no tópico Congresso, retrata a questão dos políticos que
tiveram de deixar seus cargos no governo, e, posteriormente,
passaram a utilizar seus conhecimentos adquiridos em suas
funções públicas para prestarem consultoria. A palavra
“expertise”, utilizada na notícia, expressa muito bem esses
conhecimentos partilhados por esses atores políticos.
O íu
íc
z
x
ã “
b ”
Trazemos, a seguir, a definição da palavra limbo, retirada do
Dicionário on-line Michaelis (2009):
sm (lat limbu) 1 Fímbria, zona. 2 Rebordo
exterior. 3 AstrRebordo exterior do disco de
um astro. 4 Bot Expansão membranosa que,
a partir do pecíolo, constitui a folha. 5 Bot A
parte livre e expandida das sépalas e das
pétalas. 6 Círculo
de
bordo
graduado. 7 Arco de transferidor, onde são
marcados os graus para medida dos
ângulos. 8 Teol catól Lugar intermediário
598
ANAIS - 2013
entre o céu e o inferno onde, sem a
felicidade celeste, nem as penas infernais, se
encontram as almas das crianças que
morreram
sem
batismo
e
onde
permaneceram as almas dos justos, antes da
ascensão de Jesus Cristo. 9 Lugar para onde
se deita coisa a que não se liga apreço;
cadoz. Pôr
no
limbo: deixar
no
esquecimento.
Partindo da definição 8, referente à teologia católica, os
efeitos de sentido desse título estão em conformidade com o que
a notícia expressa, pois esses políticos desfrutam dos prazeres
financeiros, obtidos, muitas vezes, fora dos padrões de
honestidade e moralidade, partindo daquilo que expressa a visão
midiática. Entretanto, situam-se numa zona intermediária entre o
gozo financeiro e o julgamento das acusações a que estão
submetidos.
Tendo em vista a diversidade de sentidos que uma
x
ã
u ,
x
ã “
b ”,
bé
se referir ao projeto de lei que regulamenta os impedimentos
posteriores ao exercício dos cargos dos políticos e
administrativos do alto escalão do governo, que, em
conformidade com a definição 9, pode significar que o referido
projeto foi deixado no esquecimento.
É interessante mencionar que todos os políticos citados
nessa notícia, José Dirceu, Antônio Palloci e Luiz Antônio
Pagot, deixaram suas funções públicas acusados de suposta
corrupção. Esses três nomes, que repercutiram intensamente na
grande mídia brasileira como símbolos da corrupção política,
são os protagonistas dessa notícia.
No segundo parágrafo da notícia, temos os seguintes
z
: “P
festa já teria acabado há muito tempo se o
599
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
projeto apresentado pelo governo em 27 de outubro de 2006 não
tivesse se perdido pelas gavetas da Câmara (onde está ainda
h j )” Nesse trech ,
“f
”
b
sabemos, as palavras são carregadas de sentidos e, nessa notícia,
de acordo com o que a mídia nos expressa, festa nos remete à
realidade vivida pelos políticos. Nesse caso específico, àqueles
que se beneficiam oferecendo consultorias com informações
privilegiadas por meio do contato que tiveram diretamente com
a máquina pública. Não é por acaso que essa palavra que
significa alegria, regozijo, contentamento, descontração, é
inserida nessa notícia. Há toda uma vontade enunciativa do
jornalista que se evidencia nessa escolha vocabular. Nesse
sentido, Bakhtin (1986, p.122) argumenta que toda enunciação é
c
g
qu “
é
óg c
u z çã
í gu
á g
à
uçã
óg c ”
Ainda nesse trecho, podemos visualizar a expressão
(onde está ainda hoje), colocada entre parênteses no final do
enunciado, o que traduz uma crítica ferrenha ao momento
político de nosso país. Assim, podemos inferir, por meio dessa
observação, que quando o governo propõe um projeto para
tentar diminuir os benefícios exagerados dos governantes e
ocupantes de altos cargos administrativos do país, o que ocorre é
o seu engavetamento por anos e anos.
O restante da notícia esclarece sobre os objetivos do
referido projeto, postulando impedimentos posteriores ao
exercício de cargos do alto escalão do governo, dos que detêm
as tão desejadas informações que podem trazer benefícios
financeiros não só aos que as detêm como também às empresas
que buscam a consultoria deles.
É importante destacar que essa notícia teve um feed-back
de seus leitores, em sua parte inferior, há a informação de que
33 leitores a curtiram e 29 a tweetaram. Esses procedimentos
600
ANAIS - 2013
interativos referem-se às redes sociais facebook (curtir) e
Tweeter (tweetar) e se configuram numa interação
autor/texto/leitor, que pode ser constatada na própria
visualização desse gênero digital. Há ainda, na visualização
inicial do título da notícia, a quantidade de comentários feitos
pelos leitores que também deixam suas marcas no blog e a
possibilidade de acessá-los por meio do link comentários.
Assim, além de podermos verificar na própria notícia a
ideologia de seu autor, bem como de seu suporte, podemos,
ainda, visualizar nos comentários um panorama de opiniões
acerca dessa notícia.
Por trazer à tona esse assunto tão comentado
publicamente que é a corrupção política, essa notícia trava um
diálogo com a charge que será analisada a seguir. Buscaremos
evidenciar a questão da interdiscursividade, ou seja, do diálogo
estabelecido entre as notícias políticas do blog jornalístico Radar
on-line e as charges digitais.
2.4 Análise da charge digital “Conselho de Amigo”
Na primeira tela da charge Conselho de amigo, de
Maurício Ricardo, disponibilizada no site www.charges.com.br
no dia 17/11/2011, há um link denominado sobre a charge,
quando o clicamos aparece
gu
f
çã : “E
íc
é da semana passada: os atrasos nas obras da Copa já vão
representar um prejuízo de R$ 750 milhões para os cofres
públicos. Claro que a Dilma deve estar preocupada!” E
trecho serve para localizar o leitor com relação à temática da
charge e a da situação imediata de comunicação que a gera.
Apresentamos, a seguir, a transcrição dessa charge,
utilizamos a letra D para representar a fala da presidente Dilma
601
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
e a letra Z, para a fala de José Dirceu, mais conhecido como Zé
Dirceu:
D: Zé Dirceu, procurei você porque você é
uma pessoa muito prática e objetiva.
Z: Sou mesmo.
D: Nós dois lutamos na clandestinidade
porque acreditamos que às vezes fazer o que
é certo tem um custo alto.
Z: Concordo, o que eu posso fazer por você?
D: Não tô conseguindo dormir direito, Zé.
Os atrasos nas obras da Copa, pra cumprir
os prazos teremos que gastar R$ 750
milhões só em hora extra de funcionários.
Z: E daí, tem que pagar.
D: É isso o que você tem a me dizer?
Z: Ué, você não queria uma resposta prática
e objetiva? Nós somos o Partido dos
Trabalhadores, hora extra é distribuição de
riqueza, é mais dinheiro no bolso do
operário.
602
ANAIS - 2013
D: Mas o dinheiro não estava previsto, de
onde eu tiro a grana?
Z: ONGs.
D: ONGs?
Z: Dilma, bota pilha na Polícia Federal.
Duas ou três ONGs dessas que ministro usa
pra desviar grana pagam a conta. E você sai
por cima, porque tá combatendo a
corrupção.
D: Zé, você é um gênio, não perdi meu
tempo vindo aqui. Obrigada.
Z:
Obrigada, não. Duzentos
mil,
companheira.
D: O quê?
Z: Sou consultor, você não viu a placa lá
fora. Você não perdeu seu tempo, eu
também não quero perder o meu.
D: Companheiro, como você tem coragem?
Não acredito que você é tão...
Z: Prático e objetivo.
Nesse site, além de podermos assistir as charges com
som e também ouvi-las evidenciando a voz dos personagens,
músicas, além de outros sons para representar outros detalhes,
podemos, ainda, visualizá-las com legenda, com a apresentação
escrita das falas dos personagens.
A charge, que ora analisamos, traz como personagens
principais a atual Presidente da República Dilma Roussef e José
Dirceu, mais conhecido como Zé Dirceu. Essa charge digital
retrata um encontro entre eles, no qual Dilma procura Dirceu
para se aconselhar.
603
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Mediante a leitura de algumas biografias e textos digitais
pesquisados4, pudemos ver que José Dirceu foi um homem de
visibilidade bastante expressiva em nosso cenário político nos
últimos tempos. Foi herói de uma geração de militantes
políticos, porém, nos últimos dias, tem sido julgado pelo
suposto esquema do mensalão. No governo Lula, foi
c
u “
”
B
,
c h c
como o homem forte da administração federal, capaz de tomar
as mais sérias decisões.
Por toda essa influência que José Dirceu teve e por
sabermos que após sair do governo passou a prestar consultorias
é qu
ch g
c
ch g c
f
D
: “Zé,
procurei você porque você é uma pessoa muito prática e
bj
” E c c
f
qu é
Em seguida, Dilma fala que os dois lutaram na
clandestinidade porque acreditavam que, às vezes, fazer o que é
c
u
ç
x
ã “f z
qu é c
” é
muito relativa, se remetermos ao que levou os dois a viverem
clandestinamente no passado, muitos aprovarão a conduta deles,
porém muitos também a reprovarão, vai depender da inscrição
ideológica a que pertence o leitor da charge. Nesse trecho,
irrompem duas formações discursivas, aquela dos militantes
4
As biografias e textos digitais a que nos referimos podem ser acessados por
meio dos seguintes links: <http://educacao.uol.com.br/biografias/josedirceu.jhtm>. Acesso em: 08 out 2012.
<http://www.doutrina.linear.nom.br/historia/Hist%F3ria_Quem%20%E9%20
Jos%E9%20Dirceu.htm>. Acesso em: 09 out 2012.
<http://noticias.terra.com.br/brasil/crisenogoverno/interna/0,,OI778214EI5297,00.html>. Acesso em: 09 out 2012.
<http://exame.abril.com.br/brasil/politica/noticias/entrara-jose-dirceu-para-ahistoria-como-mensaleiro?page=1> Acesso em: 09 out 2012.
<http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/jose-dirceu-mostra-que-ainda-mandaem-brasilia>. Acesso em: 09 out 2012.
604
ANAIS - 2013
políticos, em que esses personagens são considerados heróis na
luta contra a ditadura militar e outra formação discursiva, a dos
conservadores, em que esses mesmos personagens são
considerados terroristas, desordeiros, transgressores da lei.
Resgatando as condições de produção do discurso,
sabemos que Dilma e José Dirceu tiveram seus nomes inscritos
na História do país por terem participado de protestos e
manifestações sociais lutando contra o regime militar no Brasil.
De acordo com o site www.sohistoria.com, a ditadura militar no
Brasil iniciou-se com o golpe militar em 1964 e durou até 1985,
com a eleição de Tancredo Neves. Foi um período marcado
historicamente que se caracterizou na condução do país por
militares. Nesse período, predominava a prática da censura, a
perseguição política, a supressão de direitos constitucionais, a
falta total de democracia e a repressão àqueles que eram
contrários a esse regime militar.
José Dirceu, naquele período, já exercia papéis de
liderança desde os anos escolares. Quando exercia a presidência
da União Estadual de Estudantes, em 1968, participou de um
conflito no qual ele e mais de mil jovens foram presos. Exilouse em Cuba, onde estudou e fez treinamento em guerrilha. Em
1971, voltou ao Brasil clandestinamente, fez cirurgia plástica
para não ser reconhecido e mudou de nome. Após anos, com a
anistia em 1979, voltou a Cuba para desfazer a cirurgia plástica
e retornou definitivamente para o Brasil. Participou da fundação
do PT, foi militante em tempo integral e ocupou cargos
relevantes na estrutura partidária.
A atual presidente Dilma Roussef5 também se destacou
no combate à ditadura militar, atuando na luta armada em
5
Essas informações referentes à vida da presidente Dilma podem ser
acessadas nos seguintes links:
<http://www.e-biografias.net/dilma_rousseff/> Acesso em: 08 out 2012.
605
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
movimentos revolucionários. Em 1969, vivendo na
clandestinidade, Dilma usou vários codinomes para não ser
encontrada pelas forças de repressão aos opositores do regime.
A charge evidencia a prontidão do personagem Zé
Dirceu em atender à Presidente, quando ele pergunta o que pode
fazer por ela. Lendo os não ditos da charge, podemos perceber a
ganância de Dirceu em prestar um serviço à Presidenta Dilma,
uma vez que poderia lhe render altos lucros financeiros.
Por sua vez, a personagem Dilma reclama de sua
angústia relacionada aos atrasos nas obras da copa, revela que o
governo terá que gastar R$ 750 milhões em horas-extras de
funcionários. No contexto da charge, esse problema não está
deixando-a dormir direito. Salientamos que esse assunto estava
altamente em voga nas notícias da época em que essa charge foi
divulgada, muitos brasileiros expressaram suas opiniões
evidenciando que nosso país não teria condições de sediar uma
copa, são diversas as vozes brasileiras que aqui ecoam.
Nesse sentido, podemos verificar a interdiscursividade
presente na charge, pois ela retoma outros textos circulados
concomitantemente a ela, inclusive a notícia política extraída do
blog Radar on-line que analisamos anteriormente. Um discurso
nunca é autônomo, pois como ele se remete sempre a outros
discursos, suas condições de possibilidades semânticas se
concretizam num espaço de trocas, mas jamais enquanto
identidade fechada. O discurso não nasce nele mesmo.
O interdiscurso, gu
c (2007,
9), “ ã
diversas vozes, provenientes de textos, de experiências, enfim,
do outro, que se entrelaçam numa rede em que os fios se
c
c ” N
c ,
fc
<http://educacao.uol.com.br/biografias/dilma-rousseff.jhtm> Acesso em: 08
out 2012.
<http://www2.planalto.gov.br/presidenta/biografia> Acesso em: 08 out 2012.
606
ANAIS - 2013
que, nas situações reais de funcionamento da linguagem, há um
intercalar de discursos, formando, dessa forma, uma troca
discursiva que ocorre quando um discurso é relacionado com
outros ou quando as formações discursivas se relacionam
interdiscursivamente. É essa realidade interdiscursiva que
verificamos nesses dois gêneros que aqui analisamos.
Retomando a análise da charge, diante da reclamação de
Dilma de que o governo teria que pagar R$ 750 milhões em
horas-extras, Zé Dirceu é categórico em afirmar que o governo
tem que pagar. Dilma questiona com semblante decepcionado:
“É
qu
cê
z ?” N
ch ,
u
que esperava outro conselho dele. Então, Zé Dirceu começa a
justificar sua resposta trazendo à tona a ideologia do partido a
que pertencem – o PT, evidenciando, assim, que o pagamento de
horas-extras deve ser considerado distribuição de riquezas, e
esse é um dos lemas desse partido político.
Ressaltamos que entender as ideologias subjacentes aos
discursos é um aspecto relevante para produzir os sentidos dos
textos, que são a materialização do discurso, bem como para
compreender os diversos conflitos entre posicionamentos
sociais, políticos, econômicos e culturais. A produção de
sentidos das charges nos permite um melhor entendimento das
ideologias que permeiam esses textos.
Quando a personagem Dilma diz a Dirceu que estes
valores não estavam previstos para serem gastos, ela pergunta de
“ g
” O c
h qu D c u á
uc
b
é: “D
,b
h
P íc
Federal. Duas ou três ONGs dessas que ministro usa pra desviar
grana pagam a conta. E você sai por cima, porque tá
c b
c u çã ” I
g f c qu
á
aconselhando a presidente do país a pressionar a Polícia Federal
para descobrir algumas ONG que recebem as verbas do
607
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
governo, mas não as utilizam seriamente, desviando para outras
finalidades. Esse conselho é dado porque, na época da criação e
divulgação dessa charge, essa era uma realidade vivida no país,
algumas ONG estavam recebendo os repasses do governo e
esses valores não estavam sendo integralmente aplicados nas
atividades desenvolvidas por essas organizações, de acordo com
o expresso na mídia de um modo geral.
Nesse trecho, Dirceu ainda diz a Dilma que se ela seguir
seu conselho, teria uma reputação pública de que estava
combatendo a corrupção e provocaria mais aceitabilidade de seu
governo junto à população. Assim, mais uma vez, a visão que
nos é repassada por meio do olhar do chargista é que os
interesses pessoais dos políticos estariam acima de qualquer
outra coisa.
P
u
z, D
g Zé D c u z
: “Zé, cê
é u gê , ã
u
qu Ob g ” N
trecho, Dilma demonstra sua gratidão pelo conselho recebido
pelo companheiro que, até aquele momento, considerava-o
amigo. Zé Dirceu, por sua vez, dispensa o agradecimento e
c b
c
h
z
: “Ob g , ã
Duz
,c
h ”
A personagem Dilma fica impressionada com a
c b ç ,
Zé D c u
uc : “ u c u , cê ã
ua
placa lá fora. Você não perdeu seu tempo, eu também não quero
u” Há qu u
á g x íc c
g
c
u z
c
íc “N
b ”,
no blog Radar on-line, que retrata os políticos que saem do
governo e utilizam seus conhecimentos para prestar
consultorias.
F
z
ch g , D
u c : “
h
,
c
cê
c g ? Nã c
qu
cê é ã [ ]”
presidente, ao procurar um adjetivo para qualificá-lo, é
608
ANAIS - 2013
interrompida por Zé Dirceu que z: “ á c
bj
” E
são as qualificações que a própria Dilma dá a Dirceu no início
c
,
,
“ á c
bj
”
mencionados no início da charge denotavam uma característica
positiva, empreendedora, do verdadeiro conselheiro. Já o
“ á c
bj
”
f
ch g
-nos ao fato de que
ele não faz nada gratuitamente e faz questão de não esconder
isso.
Nesse trecho, podemos verificar o emprego da palavra
“c
h
”
g
ch g
bservar o uso
dessa palavra, podemos apontar que é um termo muito utilizado
entre os partidários do PT. De acordo com o Dicionário on-line
M ch
(2009),
f çã
“c
h
” é: “sm
(baixo-lat companariu) 1 Aquele que acompanha. 2 Colega,
condiscípulo. 3 Camarada. 4 Maçon Graduação inferior à de
aprendiz, no rito francês. 5 Esposo, marido. 6 Amásio. adj Que
c
h ”
,
qu “c
h
” ã é u
termo que se emprega com relação a qualquer pessoa, mas sim
àquele que acompanha, que é colega, camarada, amigo. A
palavra dentro de uma situação enunciativa jamais é neutra,
f
,
“c
h
”
á c
g
sentidos que podem ser visualizados na situação em que foi
empregada. Podemos visualizar na utilização dessa palavra, uma
contradição daquilo que se fala sobre o tratamento de
companheiro, com o que realmente se vive, a cobrança
exacerbada por um conselho dado, seria ele (Zé Dirceu) um
companheiro no sentido estrito do termo?
Nessa mesma perspec , í u
ch g “
h
g ”é ô c
f
qu ,
, ã
um conselho de amigo, e sim de um profissional que está
preocupado, tão somente, em receber pelo conselho que não é
609
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
dado, mas sim, vendido. Apesar de se autodenominarem
“c
h
”,
c b
qu
á
íc
ã
de que os políticos, apesar de serem unidos por partilharem de
uma mesma ideologia partidária, dão sempre prioridade às
vantagens pessoais obtidas.
Outro fator interessante que deve ser destacado é a
utilização de expressões da linguagem coloquial, como, por
x
: “g
”, “b
h
P íc F
”, “
c ” Há qu ,
bé , u
u
utilizados no senso comum, em determinadas quadrilhas, o que
expressa a linguagem da contravenção ou da subversão e que
demonstra bem o momento de denúncias de corrupção que o
partido estava passando, tudo isso, no intuito de intensificar os
fatos denunciados.
Além disso, a escolha vocabular do chargista pode
também criar uma proximidade entre os personagens, uma
intimidade entre eles. A utilização desse tipo de linguagem
também pode evidenciar proximidade com os leitores desse
gênero que, em sua maioria, são jovens e adolescentes, que na
maior parte do tempo também a utilizam. Esse efeito também
causa humor e um certo estranhamento, porque, geralmente, não
se espera que uma pessoa que ocupa um cargo tão importante,
como a presidenta, não se expresse utilizando somente a norma
culta da linguagem.
Diante do exposto, outro aspecto que é também muito
interessante analisarmos é a fisionomia dos personagens no
transcorrer da charge que, na maioria das vezes, causa humor,
como, por exemplo, o semblante de desgosto que Dilma faz,
quando Dirceu cobra um valor altíssimo pelo conselho dado. Os
sons como as músicas que fazem fundo das charges e os que
representam a entonação das falas, as hesitações e truncamentos
também complementam os seus sentidos. Todos os aspectos
610
ANAIS - 2013
relacionados à percepção humana aumentam ainda mais a
capacidade de representação desse gênero.
A imagem tem o poder de suscitar, fazer despertar, do
nosso mais íntimo interior, experiências e significados, os quais
contribuirão para a produção dos sentidos dos gêneros,
principalmente das charges digitais. As sensações, no momento
de recepcionarmos uma imagem, despertam experiências
sensíveis e culturais, individuais e coletivas. (FERRARA, 1997,
p.24).
A imagem representada leva-nos a inferir e tem a
capacidade de referência e, por ter essa capacidade, podemos,
até mesmo, ler uma imagem; estamos nos referindo, aqui, a uma
leitura visual das imagens. Além do mais, podemos determinar
uma leitura visual pela posição do olhar. Para Ferrara (1997, p.
26), “
u
ã -verbal é uma maneira peculiar de ler:
visão/leitura, espécie de olhar tátil, multií ,
é c ”
Nesse aspecto visual, podemos apontar nessa charge a
g
u
á
c
“ f c ”,
qu há
dentro e sobre ele algumas roupas, máscaras e perucas. Isso nos
suscita o passado de Dirceu, em que ele fez uma cirurgia
plástica para não ser reconhecido e voltar clandestinamente ao
Brasil após ter sido preso político.
Há também a imagem de um livro sobre a mesa dele em
qu
á c
“ fu c
”
u c ó
em que há
“
u
” T
g
contribuem na produção dos sentidos da charge. De acordo com
o que a charge expressa, podemos perceber que José Dirceu
continua utilizando artimanhas, como se disfarçar, usar técnicas
para influenciar as pessoas com o intuito de prestar consultoria e
obter vantagens. Sua postura, com as pernas em cima da mesa,
diante da presidenta Dilma, evidencia que José Dirceu, apesar
de não estar mais no governo e estar sendo processado por
611
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
supostos esquemas de corrupção, continua se sentindo um
homem de muita influência e poder. Nessa perspectiva,
podemos constatar nas charges digitais a seguinte estratégia
contemporânea, apesar de nelas se constituir um recurso irônico,
de que
[...] as técnicas audiovisuais de comunicação
política promoveram toda uma pedagogia do
gesto, do rosto, da expressão. Elas fizeram
do corpo um objeto-farol, um recurso central
na representação política. É como se se
passasse de uma política do texto, veículo de
ideias, para uma política da aparência,
geradora de emoções. (COURTINE, 2003,
p. 25).
Considerações finais
Por meio da análise dos dois gêneros – charge digital
“
h
g ”
íc
í c
blog jornalístico
Radar on-line “N
b ”– pudemos constatar a
interdiscursividade, ou seja, um intercalar de discursos que os
perpassam, afinal, a mesma temática que é retratada na notícia é
retomada na charge. Pudemos ver que, dissimuladamente, neles
impera a ideologia dominante, denunciando implicitamente uma
desmoralização dos políticos.
Nã é
qu
u
(2003,
21) f
qu “
cu
í c
á
c
c
c
” E
realidade pode ser constatada em nossa situação brasileira, fica
evidente que a mídia, aqui analisada por meio do blog
jornalístico e do site das charges, consegue passar uma imagem
totalmente denegrida dos políticos, deixando-os desacreditados,
ferindo até mesmo a questão da democracia vigente, pelo fato de
612
ANAIS - 2013
expô-los como totalmente indignos de qualquer tipo de
confiança; levando, até mesmo, os (e)leitores brasileiros a não
mais acreditarem no seu direito cidadão de voto.
A disseminação das ideologias é nitidamente verificada
nesses gêneros digitais, e essa percepção ocorre somente quando
é feita uma leitura crítica da realidade social, histórica, política e
cultural que envolve o momento em que esses gêneros são
divulgados. Cremos que muitos outros sentidos podem ser
construídos, pois os sentidos se produzem dependendo da
situação, do leitor e das posições sociais, culturais, econômicas e
políticas que ocupam.
Diante disso, acreditamos que a utilização desses
gêneros digitais na sala de aula pode trazer grandes
contribuições para o ensino, sobretudo o de língua materna.
Tendo em vista a grande dificuldade de escolher material de
leitura que estimule os alunos, propomos o trabalho com esses
gêneros digitais, pois acreditamos que além da riqueza
linguística presente nesses textos, com toda a ironização
presente e não ditos significativos, são gêneros com os quais os
alunos têm contato em seu cotidiano, por isso sua produção de
sentidos em sala, em muito, vai contribuir para a ampliação da
competência discursiva dos alunos.
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<http://www.gazetadopovo.com.br>. Acesso em: 09 out 2012.
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político e advogado brasileiro.
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617
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Ideologia e crença pessoal nas decisões jurídicas: as
marcas da dialética.
Alexandre Luís GONZAGA1
RESUMO: O desdobramento dos conceitos marxistas resulta na
proposição final de que a ideologia surge quando se estabelece
relações sociais desiguais, o que provoca o aparecimento de condições
que legitimam a ideologia, pois que se estabelece o processo de
alienação. A ideologia constitui e padroniza a ação do homem como
ator social consciente dentro de uma noção às vezes intangível do
mundo. A ideologia opera de modo a dirigir o ser humano como
sujeito, ou dentro de um conceito althusseriano, a ideologia interpela o
homem como sujeito. Em uma formação ideológica, seja ela opressiva
ou emancipatória, envolve processos de sujeição e qualificação. Neste
estudo examinou-se os votos de juízes-desembargadores em uma
apelação de sentença. Percebeu-se a presença de discursos
ideologicamente marcados. A partir daí procedeu-se a um estudo
sobre a ideologia marxista e positivista que exercem grande influencia
na ideologia do fazer jurídico. Como base teórica apoiou-se em
Marilena Chauí, Michel Foucault, Louis Althusser, A. Franco
Montoro e Eduardo Lyra.
PALAVRAS-CHAVE: ideologia, Direito, análise do discurso
Introdução
[...] o discurso jurídico é uma
área marginal ao estudo das
estruturas do poder e do
controle social na sociedade
1
Mestrando em Letras – na área de concentração Linguística e
Transculturalidade na Universidade Federal da Grande Dourados- UFGD –
e-mail: [email protected]
618
ANAIS - 2013
contemporânea e como tal pode
ser deixada ao domínio da
especulação filosófica.
Boaventura de Sousa Santos
(1988, p. 5)
A proposta deste estudo é buscar compreender a ação
que a ideologia exerce sobre as decisões jurídicas. Juízesdesembargadores tecem considerações sobre seus votos
construídos mediante uma interpelação em sujeito que se dá
ideologicamente pela sua formação discursiva. Assim, o
discurso de um juiz-desembargador ocupa uma posição no
espaço e no tempo histórico em relação a outros discursos ou em
relação aos discursos do outro.
A noção de ideologia ou a definição discursiva de
g
gu
O
“é c
çã
c
u ção do
uj
” (1999, 46)
,
u
bj
simbólico, o sujeito precisa interpretá-lo para entender seu
sentido. A busca de um sentido mediante interpretação não se dá
sem a presença da ideologia.
A ideologia constitui e padroniza a ação do homem
como ator social consciente dentro de uma noção às vezes
intangível do mundo. A ideologia opera de modo a dirigir o ser
humano como sujeito, ou dentro de um conceito althusseriano, a
ideologia interpela o homem como sujeito.
Preliminarmente, pretende-se deixar claro que se explora
a ideologia sob um aspecto formativo do sujeito humano, pouco
ou nada relacionando com processos de formação de
personalidade, sendo a subjetividade aspecto diferente com
características próprias. Assim, para se discutir ideologia,
sugere-se antes aqui que os efeitos da ideologia, facilmente
observados no âmbito social, individualmente podem não ser tão
619
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
claros, além de não se poderem ignorar outros fatores
intervenientes como personalidade ou estrutura de caráter.
Posto então que se observará uma relação de dualidade
interpelação-reconhecimento consequência da formação
ideológica, seja ela opressiva ou emancipatória, fato é que a
ideologia envolve processos de sujeição e qualificação.
Assim, o processo de assujeitamento e subjetivação abre
espaço para uma discussão dialética, no sentido de que ao se
propor uma análise discursiva em um texto jurídico, se buscará
transcender o caráter dialético indicado pela oposição da
çã
“ uj
”
gu
Thernborn (1980) a
“ uj
” (subject) evoca o sentido de súdito (como em
ser súdito de um rei X ou da ordem social Y) onde o indivíduo
á ubjug
u
f ç
cu
,
“
uj
(subject) h ó ”, o ser realizador de alguma coisa.
Iniciamos as considerações com a ideologia alemã não
porque anteriormente não houvesse ideologias, mas porque
qu
M x,
écu XIX, c
“ I
g
ã”, f
b qu x
u
força
invisível capaz de determinar as ações individuais e sociais,
força cuja ação leva o indivíduo a acreditar que pensa por si só,
quando na verdade, seus desejos e ideias procedem desse poder
que o faz pensar de acordo com o que ele (o poder) quer que o
indivíduo pense. A essa força que age no âmbito social, Marx
chamou de ideologia.
Assim, tece-se considerações sobre o materialismo
histórico e o marxismo como princípio da discussão sobre as
ideologias que permeiam o Direito como fazer jurídico, com a
finalidade de tentar tornar explícita como se dá a formação
discursiva dentro dessa área do conhecimento.
Marx não se dirige ao Direito em sua obra, uma vez que
o pensador foi um economista clássico que atuou no plano do
620
ANAIS - 2013
pensamento teórico da economia. Estabelece em seus princípios
aquilo que acreditava ser adequado para explicar a sociedade
que via à sua volta. O que se pode observar é que houve uma
ressignificação dos princípios marxistas usados para explicar o
Estado e o Direito como expressão social. Contudo, Marx expõe
cí
ju ç
b “I
g
ã”
A ideologia vista a partir do marxismo é concebida como
resultado de uma sociedade estruturada em classes, não tendo
sua origem na sociedade capitalista, mas nela se constituindo em
forma mais elaborada. Na concepção marxista, a ideologia surge
após a divisão do trabalho, entre o intelectual e o material.
Para Marx, a divisão do trabalho também dividiu o
homem, pois que a partir daí viu-se a separação dos homens nas
diversas sociedades através da história. Essa configuração social
onde se dividiu homens pensantes dos homens executores
resultou na possibilidade de apropriação eficaz do controle do
trabalho intelectual e dos meios de produção em detrimento
daqueles a quem sobra somente a execução do trabalho.
O desdobramento dos conceitos marxistas resulta na
proposição final de que a ideologia surge quando se estabelece
relações sociais desiguais, o que provoca o aparecimento de
condições que legitimam a ideologia, pois que se estabelece o
processo de alienação.
Para Marilena Chauí (1984) é preciso entender o sentido
de produção social da ideologia, a autora demonstra a
proposição assim:
a) se inicia como um conjunto sistemático
de ideias de uma classe em ascensão
cuidando para que os interesses desta
legitime a representação de todos os
interesses da sociedade por ela. Neste
621
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
momento se está assim legitimando a luta da
nova classe pelo poder.
b) no segundo momento se espraia no senso
comum, ou seja, passa a se popularizar,
passa a ser um conjunto de ideias e
conceitos aceitos por todos que são
contrários à dominação existente. Neste
momento as ideias e valores da classe
emergente
são
interiorizados
pela
consciência de todos os membros não
dominantes da sociedade.
c) uma vez assim sedimentada a ideologia se
mantém, mesmo após a chegada da nova
classe ao poder, que é então a classe
dominante, os interesses de todos que eram
os não dominantes passam a ser negados
pela realidade da nova dominação.
Assim, quando um segmento da sociedade se estabelece
de modo hegemônico, aparece aí uma ideologia dominante, que
reflete o poder material e espiritual desta classe. Em outras
palavras, a ideologia como pensamento social dominante é tão
somente a expressão das relações materiais dominantes sob a
forma de ideias de seu domínio. Essas ideias agem de modo a
reproduzir as condições de produção.
A disposição de se sujeitar à ideologia dominante, de
acordo com Althusser (1974, p. 14), deve estar de algum modo
dentro da consciência dos agentes de produção, ou estes agentes
“ buí 2”
g
desempenhar socialmente sua função. De fato, o agente
althusseriano, tanto o proletário quanto o capitalista burguês,
2
Na edição de 1985 (Rio de Janeiro: Graal); a versão de 1974 traz o
cábu “
”
622
ANAIS - 2013
não tem plena consciência de estarem interpelados pela
ideologia, esta está impregnada, entranhada em tal grau no
modus pensandi que os impedem de ter um olhar de
estranhamento ou distanciamento ou ainda consciência de si
enquanto não houver alguma ruptura.
As formações ideológicas têm relação direta com a
divisão de classes tendo uma classe favorecida em detrimento de
outra, segundo a reprodução da sua sujeição à ideologia
dominante. Ressaltamos, entretanto que essa dominação não é
permanente visto que as contradições da estrutura acabam
minando a base do poder, abrindo espaço às contestações da
base oprimida para a ideologia oficial. Isso se dá quando a
crença (a natureza das crenças favorece a cristalização de uma
ideologia) numa ideologia arrefece, quando uma classe toma
consciência das deformações sociais provocadas pela classe
dominante. Esta tomada de consciência é favorecida quando as
contradições da estrutura social se agravam e a crise que
sobrevém torna evidente o contraste entre ideologia e a
realidade. Essa conscientização aponta os vícios do sistema e daí
surge um pensamento atualizado capaz de perceber as falhas e
buracos na estrutura social.
Deve-se ressaltar que os indivíduos que pertencem à
classe dominante têm consciência de seu domínio. Segundo
Chauí (2001), além da preocupação com a dominação Marx
critica severamente a vertente ideológica hegeliana com sua
análise das condições materiais da sociedade real, diferente,
portanto, daquela produzida pelas abstrações do idealismo. O
idealismo para Marx era a inversão através da qual o homem
cria ideias, representações da realidade, mas ao mergulhar nesse
cogitum afasta-se do real. Entretanto essa inversão é
aprofundada pelas desigualdades sociais que aprofundam a
inversão, formando um ciclo que desencadeia uma crise de
623
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
representatividade do Estado Moderno. O que se verá é que este
ciclo se instaurou quando a burguesia depois de conquistar o
poder econômico, buscou o poder político contestando a
aristocracia feudal. Isso se deu com a bandeira ideológica do
direito natural, e, tendo conseguido o que pretendia, trocou de
doutrina, passando então, segundo Lyra (1982) a defender o
positivismo e a ordem vigente. O mesmo se deu do ponto de
vista jurídico, com o que Lyra (op. cit.) denomina
ju
u
(
g
u ) qu “ b
seja uma posição antiga, é o positivismo que hoje predomina
ju
”
Marx contribuiu grandemente para o sentido ideológico
do Direito através de sua teoria epistemológica. Não pretende-se
c
c
x
ã “D
c
g ”,
que seria essa uma redução que traria em si diversos equívocos.
Um desses equívocos é que, independentemente de ser definida
c
“c c ê c
c
” u “f
c c ê c ” como
resultado do processo de alienação do sujeito, a ideologia se
expressa, via de regra, pelas relações entre valores, atitudes,
crenças e assemelhados. E estes permeiam o pensamento
jurídico, daí incorre-se no risco reducionista de ver o direito
como ideologia, como integrante da superestrutura social.
B u
u f
qu “ u
b u
f
jurídica em relação ao mundo social, e do instrumentalismo, [...]
concebe o Direito como um reflexo ou um utensílio ao serviço
” (2004, p. 209, grifos do autor). Vê-se que
Bourdieu concebe o Direito (ou ciência jurídica) de modo
ó c , c
u “
f ch
uô
cuj
desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua
â c
”
c
c
quele autor, a
ideologia profissional corporativa sob a forma de doutrina faz
D
ju
u ê c u “ f x
”
624
ANAIS - 2013
relações de força existentes onde os interesses dominantes
prevalecem.
Assim, como invenção humana, logo também um fruto
da linguagem, o Direito é um fenômeno essencialmente
ideológico. E como tal é permeado por ideologias individuais e
de grupos que lhe conferem sentido e que ora opõem-se entre si
dialeticamente. Neste embate entre as forças ideológicas que
pressionam o fazer do Direito, ocorrem distorções e nesse
, Ly (1982)
z qu “ caminho para corrigir as
distorções das ideologias começa no exame não do que o
homem pensa sobre o direito, mas do que juridicamente ele faz”
Montoro (2011) não utiliza o termo ideologia, mas
doutrina para designar o conjunto de ideias que constituem a
á
P
F uc u
u
c
u
“
u
c
cu ” (1999, 41)
qu
c
de discurso se baseia num número de indivíduos que falam,
embora não seja uma quantidade enumerável, é limitado;
Foucault ressalta que só entre eles o discurso poderia circular e
ser transmitido. Ainda segundo aquele autor, a doutrina tendia a
difundir-se pela partilha de um só e mesmo conjunto de
discursos que definia sua pertença recíproca (ibidem, p. 42).
Parece-nos que a condição de reconhecimento mútuo seria então
a aceitação das mesmas verdades dentro de um discurso em
conformidade e validado. Nesse sentido, alinhamo-nos com
Foucault quando diz:
A doutrina questiona os enunciados a partir
dos sujeitos que falam, na medida em que a
doutrina vale sempre como o sinal, a
manifestação e o instrumento de uma
pertença prévia. [...] a doutrina liga os
indivíduos a certos tipos de enunciação e
lhes proíbe, consequentemente, todos os
625
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
outros; mas ela se serve, em contrapartida,
de certos tipos de enunciação para ligar
indivíduos entre si e diferenciá-los, por isso
mesmo, de todos os outros.(1999, p. 43)
Ao tratar da doutrina do Direito, Montoro nos diz que
esta se baseia em um positivismo jurídico, que remonta ao
direito angloc
“
c
ã é
g
,
ju z” (2011, 303)
z qu
o direito emanado do poder legislativo só adquire sentido e
realidade depois de interpretado pelos juízes, ao aplicá-lo aos
casos concretos. Além de significar a aplicação da lei, os
julgamentos geram jurisprudência quando a decisão não era
prevista especificamente em lei.
Dworkim (apud Habermas, 1997, p. 257) se apoia em
casos do direito americano e anglo-saxão para analisar como os
juízes controlam situações jurídicas indeterminadas baseando-se
em finalidades políticas e princípios morais. Tais juízes
conseguiam tomar decisões fundamentadas através de
argumentos extraídos da determinação de objetivos, ou seja, o
juiz chega a uma decisão e a partir daí traça uma linha
argumentativa para fundamentar sua decisão. A jurisprudência
se configura segundo a aplicação de normas jurídicas que
estabilizam a expectativa, em outras palavras, o juiz leva em
conta a determinação do objetivo legislativo à luz de princípios
que justifiquem uma decisão, seja ela política ou que garanta
determinado direito de um indivíduo ou de um grupo.
Habermas nos diz que o direito positivo não pode basearse nas contingências de decisões arbitrárias, geradoras de
jurisprudência, mas:
[...] a positividade do direito significa que,
ao se criar conscientemente uma estrutura de
normas, surge um fragmento de realidade
626
ANAIS - 2013
social produzida artificialmente, a qual só
existe até segunda ordem, porque ela pode
ser modificada ou colocada fora de ação em
qualquer um dos seus singulares (1997, p.
60)
Desse modo, o direito positivo surge como demonstração
de uma vontade que confere duração a determinadas normas
para que se oponham à possibilidade de virem a ser declaradas
sem efeito. Nesse sentido a pretensão de legitimidade dá ao
direito positivo força sob forma de uma aliança.
A importância dada à jurisprudência3 vem do fato de que
“
g
bu
u
í c
u
f
ú
u
” (MONTORO, 2011)
anteriormente, o direito só adquiri sentido quando interpretado
pelo juiz, assim pode-se entender melhor o que Pecheux diz
b
çã
uj
g : “1) ó há á c
através de e sob uma ideologia; 2) Só há ideologia pelo sujeito e
uj
” (PE HEUX, 1997,
149, g f
autor).
Contudo, a ideologia a permear o fazer jurídico esbarra num
exame de coerência, ou seja, o legislador pode utilizar suas
autorizações normalizadoras, desde que se acoplem ao corpus
das leis vigentes para resguardar a unidade do direito, ou pelo
menos é o que se espera também do juiz como sendo quem
aplica a lei.
A jurisprudência deve possuir uma racionalidade tal que
sua aplicação interna tenha fundamentação no plano externo,
que de acordo com Habermas (1997) vai garantir
simultaneamente a segurança jurídica e a correção. Ainda
segundo Habermas (op.cit., p. 251) a segurança jurídica tem
3
O artigo 479 do Código Civil nos diz que: o julgamento, tomado pelo voto
da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de
súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.
627
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
precedência sobre a garantia de correção e se torna clara nos
casos difíceis onde se estabelece a questão da adequação de
decisões específicas. Consequentemente, o juiz preenche o seu
espaço de arbítrio através de preferências não fundamentáveis
juridicamente orientando suas decisões por padrões morais que a
autoridade do direito não cobre. Ainda que os conteúdos morais
sejam traduzidos para o código do direito, Habermas afirma que
passam por uma transformação jurídica de seu significado.
As considerações feitas tomam como objeto para as
discussões uma sentença judicial e um acórdão judicial, embora
ambos sejam produzidos dentro da esfera jurídica, suas origens
se dão em níveis diferentes. As sentenças resultam de um
julgamento e os acórdãos se produzem quando uma das partes
envolvidas no julgamento não concorda com o resultado da
sentença e dela recorre em uma instância superior. Assim, como
resultado do recurso tem-se o acórdão, onde desembargadores
acordam com o provimento ou não de um dado recurso.
Os julgamentos, embora produzidos tecnicamente no
mesmo lugar, o prédio que abriga o aparelho jurídico, são
diferentes em sua origem e em resultados e efeitos, mas que
constituem um conjunto complexo de dispositivos que abrigam
a ideologia do Estado. Nas palavras de Althusser
[...] conjunto complexo, isto é, com
relações
de
contradição-desigualdadeub
çã
u “
”,
ã
uma simples lista de elementos: na verdade,
seria absurdo pensar que, numa conjuntura
dada, todos os aparelhos ideológicos de
Estado contribuem de maneira igual para a
reprodução das relações de produção e para
a transformação. (apud Pecheux, 1997, p.
145)
628
ANAIS - 2013
Queremos dizer aqui que mesmo dentro de um aparelho
de Estado, como o aparelho jurídico, existem relações internas
de poder determinantes de desigualdades cujos efeitos
percebem-se fora do aparelho. Esses efeitos são percebidos nos
discursos que o aparelho produz, e ainda nesse sentido,
Bourdieu (2004, p. 11) nos diz que a estrutura deste sistema
simbólico que é em si o sistema jurídico, cumpre ainda uma
função política de instrumento de imposição ou de legitimação
da dominação de uma classe sobre a outra. E nesse caso
específico, o dominação ocorre também organicamente, onde
uma turma de juízes desembargadores tem o poder de desfazer
uma sentença de instância inferior.
á
ju í c u
ug
“c c ê c
ó
z
” (BOURDIEU 2004,
212), observa-se em alguns momentos, como no texto objeto
deste estudo, que se defrontam atores sociais qualificados
ideológica, social e tecnicamente, para interpretar e fazer
cumprir suas decisões, baseadas, em sua maioria, em decisões
anteriores semelhantes como fundamento de uma visão
consagrada e legítima. E ainda, observa-se que a disciplina é
marcadamente presente no princípio do controle da produção do
discurso no sentido de que a disciplina no controle do discurso
assegura a identidade do enunciador sob a forma de uma
reatualização permanente das regras.
No conteúdo do acórdão, objeto desta análise, tenta-se
aplicar as teorizações à luta cognitiva travadas entre os
desembargadores dentro de seus pareceres, através da análise de
conteúdo e de discurso; o contraste entre os ideários é
evidenciado com excertos.
Pode-se identificar duas ideologias que subjazem àquela
que rege o Direito, também chamada de doutrina do Direito,
doutrina esta abordada brevemente neste estudo. Chamamos de
629
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ideologia subjacente porque acreditamos que dentro do Direito
há diversos entendimentos sobre um mesmo fato, se assim não o
fosse não haveria necessidade de um recurso ser julgado por três
desembargadores. As duas ideologias seriam uma que tem
forma mais estatutária, voltada para o que diz a lei ipsis literis.
A outra seria um em si mesmo reflexivo, no sentido de que se
apoia na lei para defender um ponto de vista pessoal não
necessariamente partilhado pelos pares, mas apoiado na moral
pessoal. E, de acordo com o conceito de Bourdieu (2004, p. 48),
como essas ideologias não aparecem e não se assumem como
tal, é deste desconhecimento que lhe vem a eficácia simbólica.
Não se pode perder de vista que esse desconhecimento ou
esquecimento colabora fortemente na definição das identidades
dos sujeitos pelas ideologias interpelado, como também o diria
Pecheux (1997).
Diz-se isso porque no acórdão estudado, um
desembargador defendeu que a decisão do júri deveria ser
mantida, porque, segundo aquele juiz, sua decisão seria
soberana, tornando aparente uma ideologia baseada em valores
democráticos, não se prendendo ao que diz o ordenamento
jurídico vigente e apontando para a lei maior da nação.
Utilizando os recursos da retórica, o Juiz Vogal levanta alguns
qu
: “Como nós podemos, na técnica, dizer se a
pessoa foi ou não levada ao extremo para matar? Como posso
dizer isso se não sou soberano? Eu exerço a soberania por
deferência dos jurados4.
E ã
ju z f z f ê c à c
g
z: “T
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
[ ]” (
1°,
ág f
u ção Federal). Ainda
4
Ementa: Processo; julgamento: 17.set.2001; Órgão Julgador: Seção
Criminal; Classe: Embargos infringentes. Relator: Exmo. Sr. Des. João
Carlos Brandes Garcia.
630
ANAIS - 2013
nessa linha, o juiz fala sobre quem aplica a lei é o povo e volta a
questionar que se a constituição da nação deu ao júri soberania
não deveria ser condicionada à técnica, sugerindo que a técnica
seria supralegal, ou seja, está acima da lei.
O juiz ainda continua dizendo que individualmente o júri
tem mais capacidade de decidir sobre o assunto, sugere que a
c ã
b
u
“ u z çã
c óg c ,
portanto aceita pela sociedade, para que a pessoa praticasse o
”
O referido Juiz Vogal assume posição polêmica quando
diz que ao votar pela segunda vez pela técnica supralegal o júri
leva os juízes a serem obrigados a aceitarem a decisão, e ainda
ug
qu
“
,
z
”
desta posição assumida, sugere que os doutrinadores da lei o
f z
, “ qu c
-se da soberania do
jú ”
O juiz vogal deixa claro que o direito é dito ou praticado
em um tribunal e que quem diz o direito no caso é o tribunal do
júri. O referido juiz deixa claro não aceitar a tese acatada pelo
júri, ao contrário a repudia, a legítima defesa da honra; mas
reafirma que não pode violar a soberania dos jurados ao
aceitarem a tese supralegal.
Em seguida o Juiz Vogal questiona a soberania dada ao
júri, e consequentemente ao povo.
Como posso agora dizer que ele [o júri] é
soberano em termos? [...] Soberania pela
metade? Quem a tem, porque a exerce, e não
realmente porque a tem, essa é a realidade. É
o Estado que exerce a soberania que
pertence ao povo. Mas nós, dentro de uma
cultura
absolutamente
autoritária
e
631
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
tecnicista, entendemos que a soberania é do
Estado, e ele que a exerce.
Igu
,
hu
z qu “ E
éu
áqu
de repressão que permite às classes dominantes [...] assegurar a
u
çã
b
c
á [ ]” (1974, 31) É
que o Juiz Vogal estava dizendo naquele momento, o Aparelho
Ideológico do Estado através da estrutura jurídica aceitaria a
decisão do júri se esta fosse de acordo com a ideologia do
Aparelho, como não foi assim, o Aparelho desfez a decisão dos
jurados e se impôs sob o argumento de violação à técnica, em
outras palavras, a ação da instância superior jurídica concorreu
para a reprodução das relações de produção a fim de manter a
unidade ideológica.
As decisões então são democráticas em termos,
soberanas pela metade, nas palavras do juiz, só são aceitas
quando concorrem para um resultado único, sujeitando os
indivíduos a uma ideologia democrática indireta.
O Juiz Vogal arrazoa sua tese declarando:
Eu não posso aceitar, e não aceito que
alguém mate em defesa da honra, mas não
posso dizer que os senhores jurados
julgaram de maneira manifestamente
contrária à prova dos autos. Não posso
porque se está mudando a opinião a doutrina
e a técnica é a elite superior deste país, e não
a grande maioria deste país. Será que nós,
pela
técnica,
estamos
efetivamente
entendendo a conduta humana dentro de sua
comunidade, naquela sociedade, daquela
formação? Entendo que não. [...] não
entendo que o júri não possa fazer decisão
supralegal. Se o juiz togado pode, porque o
632
ANAIS - 2013
júri não pode? [...] se o juiz pode aplicar a
lei [...] por que o júri, que é dono da
soberania, não pode?
E por fim em seu voto, o Juiz Vogal discorre brevemente
de um caso em que os réus foram julgados duas vezes, sendo
absolvidos em ambas e que o Tribunal anulou o júri e condenou
os réus, depois se descobriu que os réus eram realmente
inocentes5.
O ordenamento jurídico diz que quando uma decisão do
jú f “
f
c
u 6”
á
ocorrer novo julgamento, se persistir a decisão anterior,
sepultado estará o caso. Assim defenderam os demais juízes
desembargadores que houvesse um novo julgamento.
Dentre os juízes que alinharam-se como votos
vencedores um juiz desembargador apontou uma terceira via,
mesmo votando a favor de um novo julgamento, indica um novo
caminho que poderia ser seguido pela defesa do réu e, assim,
possivelmente, obter-se nova sentença favorável igual à
primeira. Ele diz:
A apelação deste recurso, nós julgamos [...]
e continuo achando que se trata de crime
praticado sob violenta emoção, logo em
seguida à provocação da vítima. Talvez, se a
5
b
ã N
c u
b ” Oc
irmãos
naves: chifre em cabeça de cavalo / por Jean-Claude Bernadet e Luis Sérgio
Person. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo : Cultura – Fu çã P
ch , 2004” D
í
http://aplauso.imprensaoficial.com.br/edicoes/12.0.812.943/12.0.812.943.pdf
acessado em 13.ago.2012, download gratuito.
6
Argumento usado pela promotoria, quando a sentença absolutória é
proferida, para interposição de recurso contra a decisão.
633
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
tese da defesa viesse com a da violenta
emoção, tivesse guarida em sua pretensão.
Em breve descrição, a violenta emoção é prevista no
Código Penal:
São circunstâncias que sempre atenuam a
pena: (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de
11.7.1984)
III - ter o agente:(Redação dada pela Lei nº
7.209 , de 11.7.1984)
c) cometido o crime sob coação a que podia
resistir, ou em cumprimento de ordem de
autoridade superior, ou sob a influência de
violenta emoção, provocada por ato injusto
da vítima.
Este dispositivo legal é utilizado especificamente em
crimes de homicídio e lesões corporais e dá ao juiz autorização
de redução da pena. Ainda sobre a violenta emoção, como um
estado da alma é discutida na área da psicologia forense.
Vê-se que a ideologia hegemônica não é absoluta, outras
ideias a permeiam e vez ou outra transparecem de algum modo.
Chama-se a atenção sobre o discurso democrático, que
“c
u u-se em evidente descompasso com
çã à á c
í c
”
c
buí
àqueles que constituem uma ideologia (LORAUX, p. 21). Ainda
de acordo com Loraux, Heródoto afirma que é no número que
há
É qu
u c
z qu “
cuí
u ,
c
” (b
,
21)
u
ainda lembra que no auge da democracia ateniense a fórmula
liminar dos decretos – “ x
é
” – que quer dizer o
povo decidiu tinha um porém, ou seja, quem decidia eram
aqueles considerados cidadãos atenienses legítimos, excluídos
634
ANAIS - 2013
os escravos, as mulheres, os menores de 18 anos, os estrangeiros
até a segunda e terceira geração. Assim a ideologia da unidade
ateniense vivia e se prevalecia de exclusões, em outras palavras,
a democracia em sua forma pura como o Juiz Vogal preconiza
an passant era utópica mesmo no berço da democracia.
Alinhando-nos a Althusser (1974, p. 54) o Aparelho
Ideológico de Estado desempenha incontestavelmente o papel
dominante. Entretanto o que se pode observar é que em dados
momentos os juízes veem-se em situações dialéticas, entre
defender um posicionamento pessoal ou defender uma posição
no âmbito social.
A ideologia democrática como uma crença pessoal
(defender a soberania dos jurados) pode se chocar com a
doutrina jurídica em determinados momentos (defender o
ordenamento jurídico). Nesse sentido, o pensamento dialético
como modus pensandi dá suporte a todo um processo decisório,
que especificamente levou o Juiz Vogal a embasar seu voto.
Refazendo o percurso trilhado, usando do artifício
retórico, o juiz primeiro chama à razão seus interlocutores
quando diz “ qu é c
?”,
f
ug
que o júri errou na sua decisão sob o ponto de vista da técnica,
mas que mesmo errado aquela foi sua decisão e como tal deveria
ser mantida. Nota-se assim um discurso fundamentado na
“
” f ucaultiana.
[...] o discurso verdadeiro não é mais, com
efeito, desde os gregos, aquele que responde
ao desejo ou aquele que exerce o poder, na
vontade de verdade, na vontade de dizer
esse discurso verdadeiro, o que está em
jogo,
senão
o
desejo
e
o
poder?(FOUCAULT, 1999, P. 20)
635
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Nesse sentido, para se caracterizar um crime a
proposição deve poder inscrever-se em certo horizonte teórico, é
o que se materializa no discurso quando o enunciador define
crime e em seguida opõe a técnica à razão do fato.
Colocou-se assim que no ponto de vista técnico houve
um erro, Foucault nos diz que o erro só pode surgir e ser
decidido no interior de uma prática definida, em seguida propõe:
[...] uma proposição deve preencher
exigências complexas e pesadas para poder
pertencer ao conjunto de uma disciplina;
antes de poder ser declarada verdadeira ou
falsa, deve encontrar-se [...] no verdadeiro.
(1999, p. 35)
Assim, a tese discutida sobre a razão do crime, insere-se
no campo do verdadeiro, logo não deve ser estranha à
concepção da técnica. Foucault também nos diz que é sempre
í
z
ç
u
“ x
g ”,
, ã
á
ã
obedecendo às regras de uma vigilância discursiva ativa em
cada discurso. Assim, quer-se dizer que para o Juiz Vogal estar
e se manter no verdadeiro foucaultiano, primeiro evocou as
regras discursivas de seu meio, obedeceu às regras da
discursividade vigiada e continuamente reativada em cada
tomada de turno e só então expõe sua opinião, só então
expressou sua subjetividade.
Considerações finais
Ao adentramos nesse espaço donde se produz essas
considerações, quer-se deixar claro que longe de conclusão,
abriu-se aqui uma discussão sobre análise de discurso de linha
636
ANAIS - 2013
francesa aplicada ao exame de conteúdo de textos jurídicos ricos
em significação e que apresentam marcas de subjetividade às
vezes claramente, e em outros momentos não.
A ideologia é um todo amorfo como o ar, definível,
experimentável, está em quase todos os lugares (não está no
vácuo, mas o homem não sobrevive no vácuo) influenciando de
algum modo os discursos produzidos. Mesmo ao produzir uma
explicação do que é ideologia, esta se faz pela e sob uma pesada
influência ideológica. Não há discurso neutro.
Afirma-se que é preciso analisar-se os discursos porque
os valores e as instituições que embasam o pensamento que
permeia as sociedades modificam-se a cada dia e numa visão
nietzscheana, decaem dentro de um processo lento, porém
inexorável, que traz como consequência o questionamento sobre
o que ainda é o verdadeiro, confiável e não niilista.
Referências
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Trad. J. J. Moura Ramos. Lisboa: Presença/ Martins Fontes,
1974.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Laura Sampaio.
5. ed. São Paulo: Loyola, 1999.
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jurisprudenciais: elementos teórico-metodológicos. BrasíliaDF: Editora da UnB, 2004.
SANTOS, B. S. O discurso e o poder: ensaio sobre a
sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.
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em
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validade. Vol I. trad. Flavio Siebeneichler. Rio de Janeiro:
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LYRA FILHO, R. O que é Direito. 11. ed. – São Paulo:
Brasiliense, 1982
MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça. Ministério
Público e Manoel Francisco de Araújo. Relator: Des. João
Carlos Brandes Garcia. Mato Grosso do Sul, 17 de setembro de
2001. Disponível em
http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5733232/embargosinfringentes-ei-6655-ms-2001006655-6-tjms/inteiro-teor
acessado em 13.ago.2012
MONTORO, A. F. Introdução à ciência do direito. 29. ed.
rev. atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
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do óbvio. Trad. Eni Orlandi [et. al.]. 3. ed. – Campinas SP:
UNICAMP, 1997.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso.
procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
Princípios
e
638
ANAIS - 2013
THERBORN, G. A formação ideologica dos sujeitos humanos.
In The Ideology of Power and the Power of Ideology. Cap. I.
London: Verso. 1980. Tradução: Jair Pinheiro. Disponível em
www.pucsp.br/neils/downloads/v1_artigo_therborn.pdf
acessado em 27.ago.2012.
639
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Manoel de Barros, o criançamento e a desconstrução:
considerações polifônicas
Paulo Eduardo Benites de MORAES 1
Josemar de Campos MACIEL 2
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo estudar a palavra poética
de Manoel de Barros. Sabe-se que a palavra é o signo mais sensível de
uma poesia por meio da qual podemos identificar todo o trabalho
artístico arquitetado por um poeta que emprega um largo espectro de
seu intelecto. O problema que se apresenta nessa pesquisa surge da
relação entre o "criançamento da palavra" com a desconstrução a fim
de saber se o chamado "criançamento da palavra" de Manoel de
Barros ressoa ou conversa com outras formas de "criançamento". O
atual trabalho propõe-se à equação de abordar essa produção literária
a partir de exercícios de leitura de trechos significativos de sua obra e
de comentadores, bem como centrando nosso olhar crítico, sobretudo,
em autores que se preocupam com a questão da escritura. Manoel de
Barros valoriza o trabalho e o jogo com as palavras como marca de
sua escritura para proferir suas considerações sobre o mundo e a
cultura que o cerca originando uma poesia humanista.
PALAVRAS-CHAVE: Manoel de Barros; Despalavra; Poesia;
Desconstrução;
1
Graduado em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
Atualmente é acadêmico do curso de Filosofia pela mesma instituição e
Mestrando no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de
Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
Brasil na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas. E-mail:
[email protected]
2
Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Professor titular da Universidade Católica Dom Bosco no Programa de PósGraduação Mestrado em Desenvolvimento Local e orientador do presente
trabalho. E-mail: [email protected]
640
ANAIS - 2013
1 A despalavra poética
"A poesia está guardada nas
palavras - é tudo que eu sei"
(BARROS, 2007, p.19).
Como acontece para um artista o revelar de uma
linguagem poética, com características peculiares e
aparentemente simples detalhes que vão descortinando-se de
forma pontual em um ou outro trabalho? Detalhes que saem
sussurrantes e se tornam ecos, imagens muitas vezes embaçadas
que querem dizer algo, vagos rumores que sorrateiramente
roubam a cena e num movimentar-se por entre os versos
ganham tom de alumbramento poético. Tais detalhes podem ser
considerados efeitos encantatórios que desestruturam a
linguagem e concomitantemente o ser, são efeitos que o leitor
encontra na poesia de Manoel de Barros. Nós assim como ele
somos desaprumados pelas palavras, como se vê no poema
abaixo apresentado na íntegra:
Eu estou bem sentado num lugar. Vem uma
palavra e tira o lugar de debaixo de mim.
Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu
não fazia nada para que a palavra me
desalojasse daquele lugar. E eu nem
atrapalhava a passagem de ninguém. Ao
retirar o lugar de debaixo de mim eu
desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua
flauta de couro. O grilo feridava o silêncio.
Os moradores do lugar se queixavam do
grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da
flauta. Agora eu pergunto: quem
desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram
as palavras? E o lugar que retiraram de
641
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
debaixo de mim? Não era para terem
retirado a mim do lugar? Foram as palavras
pois que desestruturaram a linguagem. E não
eu (Manoel de Barros, 2003, p.57).
Partindo do posicionamento deste poema é possível notar
que a palavra é a grande tem força na poesia - em Manoel de
Barros principalmente. Queremos discutir um pouco algumas
considerações sobre a importância da palavra nos estudos de
linguagens, e servimo-nos deste poema como uma espécie de
epígrafe que introduz o tema. Já que estamos falando de palavra,
podemos notar que neste poema há um embate do eu lírico com
as ações das palavras, o que nos remete ao trabalho que se
executará sobre a importância da palavra na literatura de Manoel
de Barros. Para tanto, podemos citar alguns dos grandes
pensadores que irmanam-se a esse posicionamento, M. Bakhtin
foi um desses grandes nomes que estudaram os efeitos das
palavras desde as primeiras décadas do século XX, ele e seu
Círculo começaram a encarar os estudos referente à linguagem
de maneira diferenciada e perceber que a palavra reposiciona-se
ante aos conceitos tradicionais pré-concebidos como um
elemento concreto de feitura ideológica (STELLA, 2008,
p.178), com isso a palavra é caracterizada como um "signo
ideológico". Nesse sentido, a palavra está diretamente ligada à
prática social do discurso, é uma fonte ativa no processo de
interação entre os interlocutores, pois atua como elemento de
intervenção na realidade social. Portanto, a palavra será o
indicador mais sensível das transformações sociais, na palavra
registraram-se as fases transitórias mais íntimas e mais efêmeras
das mudanças sociais (BAKHTIN, 1999).
Seguindo o mesmo modo de pensamento, mas
estendendo a discussão para o espaço literário, encontramos em
Maurice Blanchot um posicionamento análogo ao de Bakhtin.
642
ANAIS - 2013
Este escritor francês ao falar da questão da arte lançou um
posicionamento - que pode ser encarado também como uma
hipótese mais do que uma verdade. Vejamos:
[...] Ela (a arte) tem certamente por objetivo
algo de real, um objeto, mas um belo objeto:
isso quer dizer, o que será objeto de
contemplação, não de uso, o que, ademais,
se bastará, o que repousará em si mesmo,
não remeterá para nenhuma outra coisa, será
o seu próprio fim (segundo as duas acepções
da palavra). É verdadeira. Não um instante
de sonho, um puro sorrido interior, mas uma
ação realizada que é ela mesma atuante, que
informa ou desinforma os outros, os atrai, os
agita, os comove, os impele e há outras
ações que, na maioria das vezes, não
retornam à arte, mas pertencem ao curso do
mundo, ajudam à história e, assim, perdemse talvez na história mas nela se
reencontram, finalmente, na liberdade
convertida em obra concreta: o mundo, o
mundo convertido no todo do mundo
(BLANCHOT, 1987, p.212).
Com essa passagem de Blanchot vimos que a arte é algo
concreto, real, é o próprio mundo, a arte é ela mesma e impõe
um ritmo contundente que guia os rumos da sociedade e ao
mesmo tempo sofre com a interpelação da sociedade seguindo
numa via de mão dupla. A arte da qual estamos falando é a
literatura, pois é a arte da palavra, por excelência, e a arte
exercida por Manoel de Barros. Em Bakhtin, num primeiro
momento, a discussão recai sobre a palavra e a ela é delegada
uma posição real e concreta, ao passo que Blanchot ao falar da
643
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
arte também a define como verdadeira, não simplesmente uma
inspiração de um instante de sonho, e há dois pontos comuns em
ambas as acepções, tanto Bakhtin quanto Blanchot definem - a
palavra e a arte respectivamente - com duas funções
interessantes a serem analisadas.
A primeira diz respeito a função que cada ideia exerce.
Entre as duas acepções, Bakhtin defende que a palavra é um
acúmulo de produtos ideológicos que se manifesta no diálogo
dos interlocutores deflagrando os valores sociais, portanto a
palavra exerce uma função. A palavra como um "signo
ideológico" está apta a exercer a função dos valores sociais de
um sujeito que por meio da palavra expressa seu ponto de vista
acerca desses valores. São esses valores que devem ser
entendidos, apreendidos e confirmados ou não pelo interlocutor
(STELLA, 2008, p.178). Blanchot ao discorrer sobre a arte
também a vê como passível de exercer funções, isto é, a arte
atua com ações que influenciam diretamente a sociedade.
Segundo Blanchot, a arte informa ou desinforma, agita, comove,
impele, enfim, a arte promove reações na sua recepção entre os
sujeitos.
O segundo ponto em comum entre as acepções de
Bakhtin acerca da palavra e Blanchot acerca da arte é que tanto
em uma quanto na outra essas duas fontes estão ligadas a um
posicionamento na história. O "signo ideológico" de Bakhtin
acumula status real e representativo dos valores sociais dos
sujeitos, mas com isso "concentra em seu bojo as lentas
modificações ocorridas na base da sociedade e, ao mesmo
tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais
estabelecidas" (STELLA, 2008, p.178). São essas mudanças que
causam o reposicionamento das palavras frente às estruturas
tradicionais, a palavra constantemente reposiciona-se e ocupa
um lugar na história, pois esta é o eco dos valores de um sujeito
644
ANAIS - 2013
também historicamente localizado que contempla uma cultura,
uma ideologia, uma filosofia de vida, enfim, esse sujeito é um
falante que por meio da palavra se expressa e constrói seus
valores.
Para Blanchot, a arte também tem esta função, a função
de exercer poder sobre a história. Todas as ações e reações
geradas pela arte têm forte impacto no espaço social, isto é, a
arte pertence ao curso do mundo, ajuda a construir a história, se
perde na história e na própria se reencontra, isso a faz concreta e
real, a arte é o próprio mudo e, se estamos falando da arte
literária, do espaço literário, temos grandes perspectivas de
criação do mundo. A arte literária é portanto, uma manifestação
criativa que nos ensina a ver a multiplicidade cultural do
patrimônio humano, que aparece adequada ao contexto em que
está inserida.
Partindo destes posicionamentos, nos convém pensar em
literatura as marcas escriturais dos escritores, pois escrever
apresenta-se como uma atividade de elaboração do trabalho com
a palavra. Não se pode descartar e desconsiderar que a arte está
associada com a razão em certos momentos, e que seus efeitos
provocam reações estéreis no espaço social, é evidente que
cumpre com essa característica, no entanto queremos aqui
resgatar o lado escritural da poesia, o que irá complementar o
que defendemos a pouco. Sendo assim, "a escritura é a relação
que o escritor mantém com a sociedade, de onde sua obra sai e
para a qual se destina" (PERRONE-MOISÈS, 1993, p.35), se
mostra presente e atua como um estado de escrita de
determinado escritor.
A noção de escritura ganha força com os pensadores
ligados à crítica estruturalista, Roland Barthes na década de 50 e
Jaques Derrida nas décadas de 60 e 70 são grandes precursores
que irmanam-se na perspectiva da escritura. Segundo Barthes a
645
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
escritura está situada entre a língua e o estilo e independente de
ambos. A língua é "um corpo de prescrições e de hábitos,
comum a todos os escritores de uma época (PERRONEMOISÉS, 1993, p.35). É imprescindível pensar aqui o estilo
como uma herança individual que cada escritor carrega de suas
experiências, pois essa noção de escritura ganha volume e em
Barthes vemos que a escritura é uma questão de enunciação, isto
é, escritores podem falar a mesma língua, viver a mesma
história, mas apresentam escrituras díspares porque a escritura
varia de acordo com a maneira que o escritor vive sua história e
usa a sua língua (seu estilo). Isso nos parece muito próximo de
uma marca de Manoel de Barros, um poeta dentre tantos outros
com o mesmo prestígio, mas que se destaca por uma linguagem
poética diferenciada, cria seu próprio idioma - o "idioleto
manoelês" - vive sua própria história, enfim, as marcas
escriturais de Manoel de Barros e a sua poiesis necessitam são
marcadas pelo "criançamento da linguagem", isto é, não são
mais as palavras no sentido da razão boa das coisas, sua
escritura é feita a partir da "despalavra". No poema apresentado
na sequência podemos notar esse expediente para pensar a
escritura da poesia de Manoel de Barros:
Agora só espero a despalavra: a palavra
nascida
para o canto - desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma
646
ANAIS - 2013
imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.
(Manoel de Barros, 2009, p.53)
Nota-se neste poema de Manoel de Barros um estilo
assumido. O prefixo "des" acrescido em "palavra" forma uma
nova palavra - característica bastante comum em seus versos, o
neologismo - com um sentido de negação. A poética do "des"
como foi anunciada aqui está ligada a um número extenso de
signos que conotam negatividade, coisa ínfima e insignificante
que nos poemas de Manoel aparecem de forma variegada e
representando inúmeros seres que o poeta cria. A poesia do
"nada", a poesia do "chão", o "deslimite", o "descomeço", o
"desobjeto", aquilo que é rejeitado, enfim, todas essas miudezas
tem lugar garantido na poesia barrense. A poesia portanto, passa
a ser "des" por excelência, nega-se para afirmar a lacuna que
ficou por preencher.
Na perspectiva da escritura podemos dizer que Manoel
de Barros possui uma linguagem própria, sua poesia está antes
do murmúrio, a "despalavra" é uma palavra sem pronúncia,
ágrafa, uma linguagem matreira e genuinamente brasileira. A
poesia do "des", ou a escritura do "des" de Manoel está aquém
de uma literatura formal encerrada nas palavras dicionarizadas,
este é um processo que não se fecha num centro, pelo contrário,
pressupõe um deslocamento, um descentramento que para
Manoel é o modo em que constrói sua visão de mundo, de
cultura, de sociedade, enfim, a "despalavra" também
reposiciona-se, como a palavra defendida por Bakhtin, no
647
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
entanto a "despalavra" apresenta um elemento diferenciador, a
"diferência3".
A "diferência" - em francês é différance - é um conceito
cunhado por Jacques Derrida desde a publicação de suas duas
obras principais - Gramatologia e A escritura e a diferença - em
1967. A obra de Derrida exerceu grande influência na teoria e
crítica literárias a partir da segunda metade do século XX,
principalmente nas décadas de 80 e 90. A repercussão da sua
obra causou efeitos grandiloquentes no pensamento ocidental
com ênfase nos estudos literários e da filosofia sob o nome de
Desconstrução. Essa noção é uma prática de leitura crítica, e em
Derrida uma escritura dessa leitura. A desconstrução não
significa destruição, mas sim um reposicionamento, por meio
"daquilo que foi chamado de desconstrução", como disse
Derrida em um discurso, pois ele próprio não reconhece a
desconstrução como um método, e não o é, nem um método e
nem um sistema filosófico no sentido tradicional da filosofia. A
questão maior da desconstrução é a do sentido na linguagem.
Mas o "sentido" não faz sentido para Derrida, pois cairia num
idealismo redutível falar de sentido no singular (PERRONEMOISÉS, 2000, p. 303). Para a noção da desconstrução a escrita
é que produz sentido, os quais, são múltiplos, plurivalentes, são
sempre relacionais, incertos e não sabidos. Os conceitos
desconstruídos por Derrida são os de significado, verdade, ser,
essência. A esses conceitos ele opõe a noção diferência
(PERRONE-MOISÉS, 2000, p.303).
Em Manoel de Barros podemos perceber essa postura
desconstrucionista, conceitos como os de poesia, ser, palavra
são constantemente desconstruídos e reposicionados. O que
3 A tradução deste termo sofre duas variações: "diferância" e "diferência".
Neste trabalho opta-se por "diferência", termo também usado por Leyla
Perrone-Moisés em Inútil Poesia.
648
ANAIS - 2013
importa nesses conceitos todos não é o próprio conceito em si
mesmo, mas os efeitos que estes podem causar. Como uma
prática reflexiva eles surgem e inculcam no público ledor
dúvidas, aparecem como questionamentos que abalam a
confiabilidade de um conceito, de um dogma. Para Derrida este
reposicionamento dos conceitos pode ser lido como uma prática
reflexiva acerca das relações hierárquicas do pensamento
metafísico ocidental.
Fazer justiça a essa necessidade significa
reconhecer que, em uma oposição filosófica
clássica, nós não estamos lidando com uma
coexistência pacífica de um face a face, mas
com uma hierarquia violenta. Um dos dois
termos
comanda
(axiologicamente,
logicamente, etc.), ocupa o lugar mais alto.
Desconstruir
a
oposição
significa,
primeiramente, em um momento dado,
inverter a hierarquia (DERRIDA, 2001,
p.48).
O que Derrida propõe com essa inversão das hierarquias
não está muito distante do que Manoel propõe em seus poemas.
A poética do "des" quer ser lida não somente como algo que
nega o que existe, vai além, essa marca escritural de Manoel
quer questionar os valores tradicionais. Será que temos um
começo ou um "descomeço? Temos um objeto ou um
"desobjeto"? O que significa para um sujeito ler a poesia
construída e ao mesmo tempo desconstruída pelas palavras? E
por "despalavras"? A poética de Manoel de Barros, suas marcas
escriturais são e acontecem de formas variegadas, estamos neste
momento abordando a questão do prefixo "des" que gera um
"feitiço nas palavras" (BARROS, 2009), é uma marca registrada
649
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
ler neologismos construídos com esse prefixo desestruturando
não só o signo linguístico, mas o pensamento. Suas marcas não
cessam por aí, há talvez uma crítica envolta, se "a desconstrução
é uma prática de leitura crítica dos textos filosóficos e literários
(cujas fronteiras genéricas ela contesta), uma 'estratégia geral
teórica e sistemática' (Positions) de decomposição dos
discursos, revelando seus pressupostos, suas ambiguidades,
contradições e não-ditos" (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.302),
deseja-se fazer uma leitura da escritura de Manoel de Barros.
Num primeiro plano houve o descentramento das palavras, essas
que integram a poesia, a "despalavra mesmo", mas é possível
haver o (des)centramento do ser? E o (des)centramento da
poesia?
2 O (des)centramento do ser
Ao depararmo-nos com a crítica derridiana, aquela na
qual há o acontecimento de ruptura, de disrupção com a
estruturalidade dos signos, conseguimos aos poucos enxergar a
ponta do pensamento da desconstrução. Em um de seus artigos
fundamentais - "A estrutura, o signo, e o jogo nos discursos das
ciências humanas" - o filósofo selou seu posicionamento
abalando de vez os estruturalistas e caiu nas graças do público
que de modo muito breve passou a manifestar essa filosofia num
contexto chamado pós-estruturalista e denominar o pensamento
de Derrida como a desconstrução, ou melhor, a filosofia
desconstrucionista. Toda essa euforia não é sentida com tanta
intensidade ao se ler Derrida, o autor é bastante objetivo e lógico
ao se posicionar. Derrida passa-nos de certo modo um tom
banalização por parte do pensamento estruturalista, segundo ele
650
ANAIS - 2013
A atitude estruturalista e a nossa postura
hoje perante a linguagem ou na linguagem
não são unicamente momentos da história.
Antes espanto pela linguagem como origem
da história. Pela própria historicidade. É
também, perante a possibilidade da palavra,
e sempre já dentro dela, a repetição
finalmente confessada, finalmente alargada
às dimensões da cultura mundial, de uma
surpresa sem medida comum com qualquer
outra e com a qual se agitou aquilo que se
costuma denominar pensamento ocidental,
esse pensamento cujo destino consiste muito
simplesmente em aumentar seu domínio à
medida que o Ocidente diminui o seu
(DERRIDA, 1971, p.13).
Nesse sentido pode-se perceber que a atitude
estruturalista está presa a um ponto fixo, a um determinado
posicionamento e que de certa maneira condiciona o
pensamento humano a se manter sem mudanças, sem criar
outras projeções a respeito daquilo que se lê. Essa postura de se
manter preso às dimensões da cultura mundial, de atender as
demandas do pensamento ocidental, de se confessar a essa
constante repetição das palavras acostumadas ao mesmo tornase um hábito, e o que deixa Derrida intrigado é que este hábito
não deve ser inerente ao ser, não podemos deixar que uma
determinada estrutura opere seus mecanismos condicionando até
mesmo nosso pensamento. Derrida faz a sua advertência em
relação a esta postura: "Como vivemos da fecundidade
estruturalista, é demasiado cedo para chicotear nosso sonho.
Nele é preciso pensar no que poderia significar. Talvez amanhã
o interpretem como um relaxamento, para não dizer um lapso"
(DERRIDA, 1971, p.14). Essa chamada do filósofo é que nos
651
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
fez crer que estamos acostumados ao mesmo, que nos escritos
de Derrida fica essa intensidade de banalização por parte do
pensamento estruturalista que nos deixa presos há um centro
rígido e não quer que nos desprendemos dele.
Então, com este artigo que citamos a pouco e que fora
publicado em seu A escritura e a diferença (1971), Derrida
começa a desenhar uma nova figuração para os rumos das
ciências humanas, anuncia de modo cauteloso o fim do
estruturalismo, como vimos ao dizer que é demasiado cedo para
chicotear nossos sonhos, mas talvez amanhã consigamos ter a
real noção deste lapso. Essa postura crítica derridiana causou
uma reviravolta que acoplou em seu bojo os estudos filosóficos,
literários e uma mudança no pensamento político e ético da
sociedade. Um dos trabalhos do professor Kanavillil
Rajagopalan a respeito de Derrida que mostra esta noção
bastante abrangente da política da desconstrução cita uma
entrevista que Derrida cedeu a Lieven de Cauter, e nessa
entrevista o filósofo discute a transformação que pode ocorrer
no meio social se os estudos da linguagem forem levados a
sério. Derrida defende uma postura de que a filosofia atual deve
"pensar em ação", deve fazer "algo". E esse fazer "algo" nos
remete a pensar no impacto que as palavras podem ocasionar
socialmente falando, pensando como o "signo idelógico" de
Bahktin. Rajagopalan então narra que em certa altura desta
entrevista o filósofo menciona a chamada "crise da soberania", e
fazendo sua análise assim a define: "Acredito que a crise da qual
fala Derrida é sobretudo de ordem ética - uma crise que diz
respeito às nossas crescentes incertezas na esfera ética em um
mundo onde já não há mais incertezas quanto à questão de
soberania" (RAJAGOPALAN, 2005, p.122).
Por certo, o pensamento estruturalista surge como uma
"soberania", mas Derrida aos poucos cria mecanismos para
652
ANAIS - 2013
promover essa "crise da soberania", e isso se dá no "momento
em que, na ausência de centro ou de origem, tudo se torna
discurso" (DERRIDA, 1971, p. 232). A palavra discurso tem em
si a ideia de curso, de percurso, de movimento, logo o discurso é
a palavra em movimento (ORLANDI, 2009), por isso Derrida
compreende que se dá a crise, pois o discurso não se deixa
prender ao centro. Para compreendermos e visualizarmos
melhor essa situação, devemos levar em consideração o
posicionamento da filosofia desconstrucionista hoje. Pautamonos no seguinte: esse posicionamento iniciado na década de 50
com Barthes e tendo seu ápice nas décadas de 60 e 70 com
Derrida tinha um cenário sócio-histórico bastante diferente do
atual cenário social que dispomos. De modo ligeiro podemos
dizer que essa filosofia da desconstrução é lutar contra as
alienações políticas da linguagem, lutar contra a dominação dos
estereótipos, de desvencilhar-se da tirania das normas, de
superar as hegemonias ideológicas, enfim, é um posicionamento
crítico que um cidadão deve se portar. No entanto deve-se levar
em conta a nova paisagem geopolítica e cultural para
"desconstruir" esses valores, pois um posicionamento crítico
implica uma leitura de mundo, uma leitura do cosmo interior e o
real entendimento das condições em que vivemos.
Neste novo cenário sociocultural marcado por grandes
transformações que "libertaram o indivíduo de seus apoios
estáveis nas tradições e nas estruturas" (HALL, 2011, p.25), nos
remete a um novo posicionamento diante do ser. Tais
transformações são oriundas de um fenômeno chamado
globalização, nas palavras de Anthony Giddens
Globalisation can thus be defined as the
intensification of worldwide social relations
which link distant localities in such a way
that local happenings are shaped by events
653
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
occurring many miles and vice versa. This is
a dialetical process because such local
happenings may move in an obverse
direction from the very distanciated relations
that shape them4 (GIDDENS, 1994, p.181).
Logo, este fenômeno que Giddens descreve ocasionou
uma nova postura do indivíduo dentro da sociedade. Hoje não
há mais aquele sujeito preso em tradições ou estruturas, com a
intensificação das relações sociais, esse turbilhão de
acontecimentos que devem ser assimilados de modo muito
rápido trouxe mudanças para nosso convívio. Hoje sustenta-se
que as identidades modernas dos sujeitos estão fragmentadas,
Stuart Hall argumenta que "não houve simplesmente a sua
desagregação, mas seu deslocamento" (2011, p.34). Tal
deslocamento tem a ver com a "crise da soberania" da qual disse
Derrida, esses argumentos coadunam-se em desvencilhar o
pensamento do indivíduo das estruturas fixas. Jacques Derrida
que protagonizou uma das maiores críticas ao trabalho do
linguista Ferdinand de Saussure visa desconstruir a visão de
língua em que não somos os "donos" de nossos discursos, pois
para Saussure apenas podemos produzir significados se nos
posicionarmos dentro das regras da língua obedecendo seu
sistemas linguísticos e culturais. Para Derrida a língua
"enquanto centro, é o ponto em que a substituição dos
conteúdos, dos elementos, dos termos, já não é possível. No
4 Desse modo a globalização pode ser definida como a intensificação das
relações sociais nas quais unem localidades distantes em todo o mundo, de
modo que os acontecimentos locais se formam pelos eventos ocorridos a
longa distância e vice e versa. Este é um processo dialético porque tais
acontecimentos locais podem se deslocar em uma direção reversa devido as
longas distâncias das relações que lhes forma. *Tradução do autor.
654
ANAIS - 2013
centro, é proibida a permuta ou a transformação dos elementos"
(DERRIDA, 1971, p.230).
Nesse sentido, como se dá o descentramento do ser?
Deve-se compreender que nosso cenário sociocultural atual não
nos permite comunicarmos apenas dentro de um sistema
linguístico e cultural estanque, pois essa nova era é marcada
pela dinamicidade dos acontecimentos. Para tanto, Derrida
desabona tamanha importância dada ao logocentrismo ocidental
e aponta para a noção de escritura, que ao nosso ver é um modo
peculiar de escrita, uma maneira específica com traços evidentes
da identidade de cada um ao expressar-se, para nós este ato de
expressar-se muito tem a ver com a força das palavras, com a
linguagem poética. Se pararmos para fazer uma breve análise do
pensamento derridiano talvez pudéssemos considerar seu
trabalho como um "metatexto", isto é, um autor que resgata a
função de um texto, a função de uma palavra, o que muito tem
relação com Manoel de Barros, poderíamos até mencionar
quatro grandes especificidades destes dois grandes nomes, são
elas: a palavra, o verso, o poema, o livro.
Hall ao mencionar o grande filósofo da desconstrução e
ao ressaltar essa "virada linguística" que promoveu, bem como
anunciando a postura desconstrucionista esclarece que "os
significados das palavras não são fixos, numa relação um a um
com os objetos ou eventos no mundo existente fora da língua o
significado surge nas relações de similaridade e diferença que as
palavras têm com outras palavras no interior do código da
língua" (HALL, 2011, p. 40-1). Ao analisar mais de perto a
obra derridiana notamos exatamente isso, sua escrita transparece
esse caráter não fixo, seu texto parece esvoaçante, não se pode
pegá-lo, é difícil achar uma ponta para atar um nó com o texto
que se analisa, é mesmo uma linguagem poética. Tendo esta
noção de deslocamento do ser que foi fragmentado pelo
655
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
acirramento das relações e eventos sociais, vislumbrando o ato
de desconstruir de Derrida, apegando-nos a não fixidez das
palavras e num discurso fluido, rememoremos a poesia de
Manoel de Barros.
Toda essa avalanche de eventos sociais díspares que vem
acontecendo influenciaram a produção artística de Manoel de
Barros. Tais fatos decorrem da chamada modernidade e Manoel
de Barros é um poeta da modernidade, logo fica evidente que de
uma forma ou de outra ele está acoplado a essas transformações.
No entanto, apesar de ser um autor modernista este não se deixa
enquadrar-se, "a poética de Manoel de Barros é singularíssima e
está além de qualquer tentativa de classificação historiográfica
tradicional" (CASTRO, 1991, p.64), é bem certo que ele está em
todas e não cabe em nenhuma. Se por um lado Derrida
fundamenta todos os propósitos de um posicionamento que
denomina-se "desconstrução", mas que não requer
enquadramentos como teoria, é porque este tipo de
escalonamento não condiz com a sua filosofia, portanto seu
pensamento age como um pressuposto para nossas análises e
deixamos a discussão de sua teoria para aqueles que se prendem
em querer enquadrar as coisas, nós preferimos ocuparmos da
poesia, pois esta sim desempenha "papel muito grande na
construção da sociedade, buscando o sentido de humanização
pelo lúdico, pela arte" (CASTRO, 1991, p.73).
Sendo assim, procuraremos verificar como ocorre na
poesia de Barros esse deslocamento, o descentramento do ser, a
desconstrução do ser. Visto que em Manoel de Barros a voz
primária vem das palavras, e para confirmar isso o próprio poeta
em entrevista concedida a José Otávio Guizzo disse que "a
poesia é feita de palavras, palavras, palavras" (BARROS5, 1996,
5 Sobrevier pela Palavra - Revista Grifo - Campo Grande, MS, José Otávio
Guizzo. - (G).
656
ANAIS - 2013
p.309), nós detectamos que a palavra da poesia de Barros na
verdade é a "despalavra", "a palavra arrombada a ponto de
escombro [...] a ponto de entulho ou traste..." (BARROS, 1996,
p.308-9), é uma marca escritural que Manoel encontrou para
"falar dos fragmentos do homem fragmentado que, perdendo
suas crenças, perdeu sua unidade interior" (BARROS, 1996,
p.308-9). Essas características da fragmentação do ser, ou
mesmo de seu descentramento é então artisticamente
representado pelo bardo pantaneiro, e desescrever o ser em suas
poesias tem sido uma marca registrada deste poeta. Mas como
este ser "descentrado" aparece em Manoel de Barros?
Sua produção artístico-literária traz algumas marcas
escriturais. A primeira delas ao nosso ver abrange as três
primeiras produções do poeta que marca o início de uma
trajetória literária. Num primeiro momento de sua produção
Barros recorre ao poema-retrato e ao poema-crônica (CASTRO,
1991, p.11), estes são poemas capazes de expressar o que sua
memória guardou da sua vida em Corumbá, as reminiscências
da infância e sobretudo o Pantanal. Mais adiante o autor entra
numa fulguração bastante acirrada com o trato para com as
palavras. A partir deste segundo momento é que o autor
abandona por completo as formas e dedica-se a descobrir a sua
verdadeira poética e desponta sua produção ampliando cada vez
mais o número de obras publicadas e aperfeiçoando-se em suas
inutilidades. Afonso de Castro faz uma análise bastante
pertinente das três máximas recorrentes em Manoel de Barros,
vejamos:
A poética de Manoel de Barros concilia três
faces: não abandona as raízes de origem; a
configuração geográfica do pantanal
continua como matriz de interpretação
luxuriante das águas, dos répteis, dos
vermes, dos peixes, das aves, das árvores,
657
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
dos animais e dos homens, instaurando
imagens transformacionais de um universo
plurissensorial; o poeta passa a assumir
todas as propriedades e faculdades de cada
ser que habita o pantanal, estabelecendo
uma comunicação direta entre todos os
componentes deste universo (CASTRO,
1991, p.12).
O primeiro item mencionado diz respeito ao não
abandono das raízes de origem, que equipara-se com o primeiro
momento em que mencionamos logo acima. Isso se torna uma
marca escritural de Barros também, no entanto não é a marca
que desejamos analisar neste trabalho. O segundo momento da
poesia de Manoel engloba as outras duas características que
Castro defende, voltar a sua atenção para as águas, os peixes, as
árvores e instaurar imagens transformacionais. Ao propor a
Gramática Expositiva do Chão, talvez Barros quisesse fazer uma
espécie de ironia com a Moderna Gramática Expositiva da
Língua Portuguesa, de autoria do gramático Artur de Almeida
Tôrres, pois seu livro teve sua primeira publicação em 1969,
sete anos depois da publicação da gramática de Artur. Desta
forma sua poesia rejeita a condição da gramática normativa, um
instrumento que pode ser denotado facilmente como um produto
operador de dominação social. Em nosso país as classes sociais
menos favorecidas sempre ficaram relegadas a funções
subalternas pelo fato de não serem detentores de um estudo que
lhes permitam utilizar as normas linguísticas. Conquanto, a
poesia de Manoel de Barros recupera a expressividade do
idioma que permite que a cultura brasileira seja apresentada ao
público (MARINHO, 2009).
Logo de início, a Gramática Expositiva do Chão de
Manoel de Barros estabelece um "Protocolo Vegetal". O leitor
658
ANAIS - 2013
se depara com uma lista de vocabulários excêntricos para a
formalidade dos estudos da língua, tais como: "pente", "muleta",
"capote", "garfo", "corda de enforcar", "travesseiro", "botão"
(BARROS, 2007, p.10), todas essas palavras fazem parte do
cotidiano de uma pessoa e de seus hábitos mais comuns como
pentear o cabelo, uma pessoa com necessidades especiais que
usa uma muleta, um menino que brinca e leva um capote, a
refeição que se faz todos os dias e para isso utilizamos o garfo, o
travesseiro que representa o sono, o descanso, enfim, são
palavras que representam o cotidiano das pessoas, mas a
utilidade desses elementos tornam-se invisíveis para os adultos.
Muitas dessas palavras são encontradas com maior frequência
na linguagem infantil e na poesia de Manoel de Barros tomam
outras proporções, segundo Marinho e Calegari (2010, p.4)
no universo lúdico e doméstico das crianças,
ocorre precisamente o processo inverso: o
objeto e sua designação irrompem de forma
recorrente em várias atividades diárias,
lúdicas ou simplesmente prosaicas, e
conotam igualmente prazer, aspecto
importante para o trato de sua ocorrência na
poesia.
A partir do momento em que o discurso e a palavra
passam a representar as construções de identidades sociais, a
poesia de Manoel de Barros ganha novos limiares. Uma obra em
que se preza e se baseia na identificação do universo e do
cotidiano infantil aponta para uma postura de enxergar o ser de
modo diferenciado, no fundo, a briga é entre um pensamento
organizado segundo perspectivas arquitetônicas, cartesianas,
contra um pensamento em que a imaginação toma as iniciativas
e comanda o trabalho, com o rigor e a liberdade do curso de um
659
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
rio, ou do musgo que cresce no céu da boca. Tal postura onírica
cria o "homem de lata", que segundo Barros
O homem de lata
é um iniciado em abrolhos
e usa desvio de pássaros
nos olhos
[...]
O homem de lata
é uma condição de lata
e morre de lata
(Manoel de Barros, 2007, p.24-5)
Apenas quem consegue se desprender de tudo o que se
impõe como regra no cotidiano e ter uma postura tal qual a
inocência de uma criança terá o privilégio de aproveitar a
criatividade poética de Barros (RAMIRES; RUSSEFF; 2004),
pois ver um homem de lata exige grande poder imaginativo. Um
homem de lata que "usa desvio de pássaros nos olhos" sugere
transfundir-se com um mundo imaginário e torná-lo real, ato ou
efeito prático que uma criança exerce, por força de seu
momento particular de desenvolvimento, descoberta do mundo
que naturalmente enxerga as pessoas e as coisas a partir de
vários ângulos e com conceitos sempre novos. Neste caso, com
percepções e alusões que surgem da imaginação, da
criatividade, do fazer poético, ou seja, de encontrar o inesperado
naquilo que é aparentemente mal-acostumado ao mesmo
(MORAES; MACIEL; 2009).
Em sua história, entre outras atividades, Manoel
conviveu com fazendas e com o seu cotidiano, agarrou-se à
permanência das águas do pantanal, ao seu ciclo de fecundidade
660
ANAIS - 2013
e de irrigação para imaginar um mundo que não seja de
oposição – como entre a tecnologia e a mitologia, entre a cidade
e o campo, entre a ignorância e a ciência, por exemplo
(MORAES; MACIEL; 2009). O mundo de Manoel encontra e
explora a dimensão linguística explorando as palavras a fim de
desinstalar significados e deslocar o cotidiano. Outra variação
encontrada neste mesmo livro do poeta é a representação de
uma territorialidade, isto é, a cultura tem sua mais forte
expressão na língua e portanto, a esta última incumbe-se o papel
de carregar um espectro cultural. Num diálogo poético Manoel
traz marcas da cultura sul-mato-grossense:
— Cumpadre, e longe
é lugar nenhum
ou tem instante?
— Só se porém.
— E agora vancê confirme: pardal
é o esperto? roupa
até usa
dos espantalhos?
— É esperto, cumpadre,
não cai
do galho.
(Manoel de Barros, 2007, p.52-3)
Neste breve diálogo entre dois compadres nota-se a
marca do regionalismo e da fala cotidiano, ou coloquial. Os
vocábulos "cumpadre" e "vancê" são uma variante regional que
representam a fala do pantaneiro, assim verifica-se imagens do
pantaneiro na poesia de Barros. A essa altura a linguagem
reelabora e recria o universo trazendo retratos com alto grau de
simbolismo de uma cultura eminentemente brasileira, cultura
661
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
marcada pela miscigenação que contempla todo o processo
fragmentário da cultura contemporânea. Neste momento de
entrelaçamentos, a literatura passa a manifestar-se também de
modo a representar determinada face de uma cultura, isto
implica numa reelaboração da visão do ser, a poesia humanista
de Manoel de Barros ao mesmo tempo que "descentra" a noção
de ser como se viu no "Homem Lata", ao mesmo tempo elabora
de modo metafórico a visão desconstrucionista que facilita o
entendimento do atual momento, o que equivale dizer o
"criançamento da palavra".
3 O "criançamento" da palavra em Manoel de Barros
Todo o processo de criação de Manoel de Barros dá-se
por meio da palavra. Vimos que a palavra é o elemento sensível
de cunho ideológico que representa as mudanças sociais, que
atribui efeitos para a construção de identidades sociais, que
marca um discurso estável e é a chave central de uma poesia.
Com tais considerações já feitas, o que ocorre com a poesia ao
se propor o "criançamento"? A proposta do chamado
"criançamento" da linguagem de Manoel de Barros ressoa ou
conversa com outras formas de "criançamento"? A hipótese do
trabalho é que não apenas ressoa, como dialoga de perto com a
desconstrução proposta na história do pensamento ocidental, o
que fomenta uma crítica e uma mudança estrutural no âmago
dos estudos que envolvem a linguagem.
Essa postura é análoga a do professor Marcelo Marinho
que conjuntamente com Fábio Mazziotti Pereira escrevem sobre
as marcas do niilismo na obra de Manoel de Barros, mas
niilismo não no sentido de ausência de valores ou negação, mas
como questionamento dos valores estabelecidos, é o propor
novas maneiras de ser ver o mundo esclerosado pelo
662
ANAIS - 2013
convencionalismo do homem. Estes dois pesquisadores apontam
que quando Manoel nega a "palavra acostumada" e põe em
prática o "deslimite da palavra" ocorre a desconstrução do
universo poético e instintivamente a recriação desse universo
por meio da palavra (MARINHO, 2009).
O ápice de Manoel de Barros quanto à recriação do
universo poético para nós vem anunciado em seu Livro Sobre
Nada qu
f
qu
ó
é “ch g
"c
ç
"
” (B RRO , 1996,
47) O
"criançamento" implica, nesse sentido, todas as imaginações,
reinvenções, desconstruções e invenções oriundas das memórias
da infância. Imaginando de novo a infância, Manoel busca
elementos para criar uma nova perspectiva, uma nova forma de
fazer poético. Tematizando esse trabalho, a infância invade e
ilumina a fábrica da poesia, quando desconstrói a perspectiva
segundo a qual o trabalho criativo acontece. Matéria de poesia é,
justamente, o material que ficou excluído da imaginação
adultecida – adoecida pela esclerose do adulto, por isso o "poeta
das águas" anuncia também que "Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia"
(Manoel de Barros, 2001, p.13).
Logo, o poeta transfere para a poesia manifestações
excluídas pelo homem urbano como por exemplo "caco de
vidro", "garampos", "ninho de joão-ferreira" até um "homem
jogado fora" (BARROS, 2001) e isso revela um mundo possível
no universo infantil ainda não pertencente à gramática, isto é, o
"criançamento" da palavra pretende que se recupere a liberdade
inocente de um infante que usa a língua aleatoriamente para
criar seu próprio mundo, para inventar seus próprios conceitos
e/ou maneiras de ver o mundo, o outro, as coisas, os seres, os
bichos e apresentar uma relação experimentada a partir da
663
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
comunhão e da humanização da vida elevando o ser a seu grau
mais pueril.
O "criançamento" além de romper com a estrutura
mesma da poesia, de abordar a palavra por um viés criativo e
desarrumar a cartilha, bem como a volta à infância que surge
com a alquimia dos verbos de Manoel, isto é, o mundo, a
linguagem e a infância permutam-se e se apresentam sob
diversos significados sempre renovadores que vão incidir no
devir dos seres e da vida, o "criançamento" torna-se portanto a
prática de inovação da língua e representa sua característica
dialética, implica numa postura de texto que se firma como um
modo de manifestação sobre o poético. Em suma, é em Derrida
que vamos notar que a verdade do literário decorre do impasse
de uma experiência singular, ou seja, "nessa nova mudança de
perspectiva do ponto de vista da teoria da literatura, é a própria
relação com o saber teórico (com a prática histórica, com a
experiência identitária, etc.) que se encontra transformada"
(SISCAR, 2010, p.210).
A essa postura Marcos Siscar (2005, p.141) diz da
coragem de Derrida em "sua capacidade de recolocar, a cada
vez, tudo em jogo, de acabar para recomeçar, de acabar por
recomeçar". Mas isso não no sentido de abandonar o já sabido e
começar tudo outra vez, é uma postura de reinventar o mesmo e
com isso apregoar a tarefa importante de redefinir as tonalidades
de acontecimento. Recolocar as coisas em jogo não é um hábito
comum em nosso pensamento, e o que Siscar chama de coragem
em Derrida é exatamente quando os discursos "filosóficos" e
"literários" recolocam o problema ao acontecimento (SISCAR,
2005). Do mesmo modo, o "criançamento" conversa de perto
com essa postura derridiana, sua poesia propõe um "imaginar o
mundo que não seja de oposição – como entre a tecnologia e a
mitologia, entre a cidade e o campo, entre a ignorância e a
664
ANAIS - 2013
ciência, por exemplo, o mundo de Manoel é de continuidade, de
ciclos, de comunhão" (MORAES; MACIEL; 2009), e por isso
sua obra procura uma outra forma de pensar a realidade.
Tanto a poesia de Barros, quanto a filosofia de Derrida
impõe uma ruptura com os pensamentos canônicos e
conservadores. Isto para a literatura surge como novos rumos
para seu ensino e aprendizagem, bem como para o tratamento
com a língua. Ambas produções aqui aderidas relacionam-se, a
poesia do "criançamento" de Manoel de Barros – como
sugerimos – e a filosofia desconstrucionista derridiana. O
discurso literário evidencia uma maneira peculiar de escrita,
uma linguagem que chama a atenção sobre si mesma, que utiliza
de recursos estilísticos para criar e inventar imagens
represent
u
c c
P
H
gg , “
interpretação literária não está fundamentada na atividade
humana; em primeiro lugar ela não é alguma coisa que fazemos,
g qu
x qu c
ç ” (in EAGLETON,
2003, p.89). Nesse sentido, notamos que o discurso literário, ou
os gêneros literários num todo, não servem para serem descritos,
e sim descobertos.
Na poesia de Manoel de Barros o leitor se depara
constantemente com a desconstrução, com os "deslimites" das
palavras, isto é, a poesia existe em si mesma e não pede para
que seu leitor a interprete e a descreva, mas sim que na interação
entre leitor e texto haja um momento de edificação de
aprendizagem, da construção da literatura, da construção e o
reconhecimento da presença de uma cultura e estabeleça uma
relação de alteridade com o ser presente dentro do poema
estabelecendo paralelos. Trata-se aqui de uma proposição
universal sobre a natureza da própria escrita. Neste ponto o
665
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
leitor e suas vicissitudes são parte integrante do todo da obra na
(des)construção de sentido do texto. Jacques Derrida defende
qu “
cu
á
á
ç
u
escapar do sentido que tenta limitá-lo (in EAGLETON, p.185),
ou seja, o poema surge e dita o ritmo que deverá seguir a leitura,
este por sua vez pede a reflexão e funciona como um ente
autoconsciente do seu papel interpelando insistentemente pela
descoberta do seu leitor.
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669
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Mediadores de leitura: um estudo do acervo PNBE 2011
Elizangela Tiago da MAIA
Célia Regina Delácio FERNANDES
RESUMO: O artigo pretende provocar uma reflexão sobre o
Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE, uma política
nacional de leitura vigente no Brasil, que oportuniza a milhões de
alunos de escolas públicas municipais, estaduais, federais e do Distrito
Federal o contato com acervos de títulos de diversos gêneros
literários. O trabalho focaliza o acervo adquirido no ano de 2011 pelo
governo, especificamente o acervo destinado aos anos finais do ensino
fundamental, que circula nas escolas públicas municipais de Dourados
– MS. A investigação, centrada na área de leitura e formação de
leitores na perspectiva da História da Leitura (Chartier, 1990, 1996),
adota um percurso metodológico que inicia com uma reflexão
histórica sobre o surgimento da literatura infantojuvenil no Brasil. A
seguir, são destacadas as políticas de leitura efetivadas no país,
inicialmente, o Programa Nacional Salas de Leitura – PNSL, em 1984,
e, na sequência, o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE,
criado em 1997. Ao lado disso, é analisado o edital que trata dos
critérios de avaliação e seleção das obras, dados estatísticos da política
e a composição do acervo de 2011. Por fim, o trabalho consiste na
discussão a respeito da importância do mediador da leitura na
formação do leitor. Com o estudo, pretende-se demonstrar a
importância do programa e a necessidade de investimentos na
formação do professor enquanto mediador da leitura, bem como
contribuir para novas discussões a respeito da necessidade de
melhorias de políticas públicas de popularização da leitura.
PALAVRAS-CHAVE: Mediadores; Leitura Literária; Formação de
Leitores.
Introdução
670
ANAIS - 2013
A expansão da leitura foi, sob vários
aspectos, funcional para a consolidação da
burguesia enquanto classe dominante. [...]
Além disto, propiciou o aumento do público
leitor, cooperando, pois, para a ampliação do
mercado consumidor de bens transmitidos por
escrito, como jornais, revistas, almanaques,
folhetins, livros [...] A divulgação crescente
da literatura de massa relaciona-se de modo
decisivo com a nova situação da leitura e da
educação, beneficiando-se com a difusão do
ensino e, ao mesmo tempo, empurrando a
escola na direção de áreas até então
marginalizadas [...] (ZILBERMAN e SILVA,
2002, p. 14).
Fatores históricos e sociais ocorridos na Europa do
século XVII decretaram o surgimento da Literatura
Infantojuvenil no mundo e depois no Brasil. Segundo Zilberman
(1987, 5), “ Eu
f
écu XVII é
c
profundas transformações no âmbito social, econômico e
artístico, devido à ocorrência de um processo de mudanças que
c
u
f
I
Mé
íc
I
M
”,
com a ascensão da classe burguesa na sociedade europeia em
substituição à estrutura feudal.
Com essa nova classe que emergia, impõe-se a
necessidade da propagação de uma nova visão ideológica. Para
Z b
(1983,
19), “f z-se necessário o surgimento
concomitante de instituições e produtos culturais que não apenas
divulgassem estas novas proposições, mas que igualmente
condic
c
ç
h ”,
de modo que atendesse aos interesses da nova elite.
A escola torna-se responsável em propagar a nova
imagem de infância com objetivos bem específicos e, de acordo
671
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
c
Z b
(2003, 21), “a escola tem nesse processo uma
atuação preponderante, assumindo um duplo papel – o de
introduzir a criança na vida adulta, mas, ao mesmo tempo, o de
protegê- c
g
õ
u
x
” N
concepção de escola imperam as normas e os valores da classe
dominante, que devem ser transmitidos às crianças sem qualquer
questionamento, como forma de manter a ideologia burguesa
que a sustenta e, consequentemente, garantir o funcionamento
do estado e da sociedade.
Com a ênfase dada à escola, surge, também, a
necessidade de produtos culturais, cuja missão é a de reproduzir
o mundo adulto, pela veiculação de conceitos e padrões
comportamentais que estivessem de acordo com os valores
sociais prediletos da classe dominante. Zilberman (1983, p. 20)
complem
qu “
u
f
f
u-se num
instrumento que, aliado à pedagogia nascente, procurou
converter cada menino num ente modelar e útil ao
fu c
g
g
c ”
bj
b
específicos e moralistas presentes nos textos literários voltados
ao público infantil, o modelo educativo a ser seguido, sob a
influência do cristianismo, procurava direcionar o foco para a
catequização popular.
No Brasil, outro fator determinante para o surgimento do
gênero literário se deve ao fato de que no país existia um grande
número de analfabetos. Uma das primeiras iniciativas para
superar a situação grave se deu, como afirmam Lajolo e
Zilberman (1985), com o surgimento da literatura infantojuvenil
no Brasil entre os séculos XIX e XX, devido à constatação da
existência de uma elevada taxa de analfabetismo ocasionada
pelo reduzido poder aquisitivo das camadas menos favorecidas e
da falta de políticas públicas culturais por parte do governo, que
não proporcionava ao povo acesso ao livro em bibliotecas e
672
ANAIS - 2013
escolas como forma de desenvolver o gosto pela leitura. Na
tentativa de superar a baixa qualificação que impedia o
desenvolvimento do país, concluiu-se que havia necessidade de
incentivar a leitura como forma de reverter o quadro desse
déficit.
A saída foi o desenvolvimento de políticas públicas de
incentivo à leitura, objetivando a aquisição e a distribuição de
livros às instituições de ensino públicas, mediante a criação e/ou
ampliação do número de bibliotecas e do acervo escolar, a fim
de facilitar o acesso a livros e, consequentemente, contribuir
para a formação do leitor.
1. Políticas Públicas de Leitura
No final do século XX, foi implantada a primeira
iniciativa governamental efetiva no Brasil com a criação do
Programa Nacional Salas de Leitura – PNSL, em 1984, que teve
sua vigência até o ano de 1996. A Política consistia na
distribuição de obras às escolas públicas do 1º e 2º Grau, com o
bj
“ f c u
u
â
do livro no circuito escolar através da criação de Salas de
L u ” (FERN NDE , 2007, 44)
Na sequência, foi instituído, em um momento de grande
importância, o Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE,
no ano de 1997, cujo propósito era ampliar o acesso ao livro e
fomentar as práticas de leitura. Isso se dá em âmbito nacional,
com um inegável esforço para se consolidar como uma política
governamental, já que o grande índice de analfabetismo obrigou
o país a criar instrumentos e mecanismos que contribuíssem
para avançar na questão.
O PNBE foi criado via Portaria Ministerial nº 584, do
Ministério da Educação, com o objetivo de promover o acesso à
673
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
cultura, à informação e o incentivo à leitura de alunos,
professores e da população em geral, sendo um apoio à
atualização e ao desenvolvimento do cidadão no exercício da
reflexão, da criatividade, ao formar ou ampliar o acervo de
livros de literatura infantojuvenil das bibliotecas das escolas
públicas brasileiras (BRASIL, 2012).
A execução do Programa fica a cargo do Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pela
aquisição e distribuição das obras, em parceria com a Secretaria
de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC),
encarregada de fazer a avaliação e a seleção das coleções e
acervos (BRASIL, 2012).
O Programa tem como fundamento legal o artigo 208 da
Constituição Federal, que garante o direito do educando ao
material de apoio didático e as determinações de universalização
do acesso, e à melhoria da qualidade da educação básica,
respaldados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB.
O PNBE é o maior programa de incentivo à leitura
implantado em nosso país, pois, em uma sociedade de extrema
gu
c
B
, “
u çã é
analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a
g
z
á
à
u ” ( NDIDO, 2004,
9), um programa estatal para a formação de leitores é
imprescindível para o acesso a livros.
Neste sentido, não se pode desconsiderar que, em muitos
casos, crianças oriundas da classe trabalhadora têm contato com
livros somente na escola, sendo este, portanto, um espaço social
fu
F
(2007,
19) f
qu
“à
baixa posse de livros somada ao baixo poder aquisitivo da
maioria dos leitor ” ã
u
de casa, ou seja, o acesso aos livros e à leitura é restrito, como
bem cultural privilegiado, a uma limitada parcela da população.
674
ANAIS - 2013
Com efeito, a política nacional oportuniza a milhões de
alunos de escolas públicas municipais, estaduais, federais e do
Distrito Federal o contato com acervos de títulos de diversos
gêneros literários, como contos, crônicas, romances, poemas e
histórias em quadrinhos, possibilitando a democratização do
acesso às obras literárias. Para compor o acervo, o Ministério da
Educação publica anualmente um edital que tem por objetivo
convocar editoras para a inscrição de obras de literatura para
serem avaliadas, selecionadas e, consequentemente, enviadas às
instituições educacionais públicas no ano subsequente,
existindo, assim, uma programação com antecedência de um
ano.
2. Programa Nacional Biblioteca da Escola: PNBE 2011
Para o PNBE 2011, o edital de convocação para
inscrição de obras de literatura no processo de avaliação e
seleção, documento este que norteia a composição das seleções,
estabelecia em sua composição 6 acervos diferentes: para os
anos finais do ensino fundamental, 3 (três) acervos distintos,
com até 50 (cinquenta) títulos cada, num total de 150 (cento e
cinquenta) títulos; para o ensino médio, 3 (três) acervos
distintos, com até 50 (cinquenta) títulos cada, totalizando 150
(cento e cinquenta) títulos.
As coleções deveriam atender as orientações
estabelecidas no edital, dentre elas a faixa etária das crianças,
dos jovens e adultos, a diversidade de gêneros literários, como
contos, crônicas, romances, poemas e histórias em quadrinhos,
de diferentes níveis de complexidade, para serem lidos com
autonomia, e também obras que exigissem a mediação do
professor.
675
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Os critérios de seleção das obras também abrangem os
aspectos relativos à qualidade do texto, adequação temática e
projeto gráfico. Os princípios considerados versam sobre a
valorização da identidade nacional em suas mais diversas
vertentes, contemplando obras com adequação temática
referente à diversidade em sentido amplo, no que tange aos
diferentes contextos socioeconômicos, culturais, ambientais e
históricos que constituem a sociedade brasileira, assim como
textos eticamente adequados, não se admitindo preconceitos,
moralismos, estereótipos, didatismo ou discriminação de
qualquer ordem. Quanto ao projeto gráfico, foram considerados
aspectos relativos à apresentação da obra, layout, imagens,
interação das ilustrações com o texto, uso do papel adequado e a
adequação aos diferentes públicos.
Consideram-se relevantes tanto os critérios de seleção,
quanto o número de estudantes de faixas etárias diferenciadas
beneficiados com o acesso a diversas obras literárias,
especificamente dos anos finais do ensino fundamental, que é
nosso objeto de estudo, como demonstra o quadro a seguir:
PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA –
PNBE (2011)
Ano de Aquisição
Ano de Atendimento
Ensino Fundamental
Investimento
Alunos atendidos
Escolas beneficiadas
Livros distribuídos
Acervos distribuídos
2010
2011
6º ao 9º ano
R$ 44.906.480,00
12.780.396
50.502
3.861.782
77.754
Fonte: Dados estatísticos do PNBE
676
ANAIS - 2013
O critério de atendimento foi elaborado de acordo com o
censo escolar, ou seja, a distribuição teve como parâmetro o
número de alunos matriculados nas escolas públicas. No ano de
2011 foram contemplados distintos tipos de acervos, sendo 3
diferentes, 2 deles com 50 e 1 com 49 livros.
CRITÉRIOS DE ATENDIMENTO DO PNBE (2011)
Censo
2010
Etapa do ensino
fundamental
6º ao 9º ano
2010
6º ao 9º ano
2010
6º ao 9º ano
Número de
alunos (as)
1 a 250
alunos
251 a 500
alunos
Mais de 500
alunos
Acervos
1 acervo
2 acervos
3 acervos
Fonte: Histórico do PNBE
No entanto, mesmo com a implantação e implementação
de um programa tão significativo como o PNBE, que promove o
acesso a uma diversidade de obras e à leitura, o que ainda se
fc
u
é “ c
í
c
de leitura em grande parcela da população por meio de
pesquisas e avaliação escolar governamental, bem como de
diversos trabalhos científicos divulgados em congressos e
ub c çõ ” (FERN NDE , 2007,
15), qu
bé
apresentam indicadores mínimos de leitores no país.
3. Pesquisa sobre o Índice de Leitura no Brasil
A pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro, criado no
ano de 2006 pelas entidades do livro – Abrelivros, CBL e
677
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
SNEL, é responsável por estudos que mostram a conduta do
leitor, refletindo as mudanças sociais, culturais e da educação
b
P
“ acompanhamento periódico das mudanças
quanto a interesses, representações sobre leitura e livro,
influenciadores, motivações, limitações, preferência por suporte
g
u
u
á
u
qu ”
(INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2011, p. 1), possibilitando traçar
estratégias conforme o perfil da população e, consequentemente,
avaliar as políticas públicas de leitura e ações vigentes.
A pesquisa da 3ª edição, realizada no ano de 2011, por
região e segundo o perfil dos leitores, demonstra impasses e a
necessidade de traçar novos caminhos, com o objetivo de
melhorar os indicadores, uma vez que o nível de leitura decaiu
em relação à pesquisa anterior, mesmo com o alto investimento
de recursos públicos na compra e distribuição de obras às
instituições públicas, que promovem o acesso ao livro:
O índice de penetração de leitores oscilou
negativamente, da 2ª edição, realizada em
2007, para esta, passando de 55% para 50%.
Essa oscilação ocorreu em praticamente
todas as regiões brasileiras, com exceção do
Nordeste, onde permaneceu estável. N 55%
47% NE 50% 51% CO 59% 43% SE 59%
50% S 53% 43% (INSTITUTO PRÓLIVRO, 2011).
O estudo demonstra que as políticas públicas de leitura
não têm efetivamente atingido seus objetivos voltados à
formação de um país de leitores, ou seja, o acesso às obras não
tem sido suficiente para estimular a leitura. Cabe, então, um
repensar sobre as causas do baixo índice de leitura que,
provavelmente, não estão vinculadas ao contato com acervos
678
ANAIS - 2013
literários, já que anualmente são milhões de livros distribuídos
às instituições públicas brasileiras para serem disponibilizados
nas bibliotecas ou para comporem o acervo da instituição.
Dentro deste contexto, faz-se necessária uma reflexão em
relação à prática de mediação literária, que consiste em
“ c
h
j
, c
u
u
u
” (BORTOLIN; JÚNIOR,
2009, p. 210) ao aproximar leitor-texto. Nessa relação
estabelecida entre obra e leitor, é fundamental o papel do
mediador do livro, a quem cabe oportunizar aos jovens o acesso
a universos culturais mais amplos, sugerir leituras, orientar o
leitor no momento da escolha, enfim, dar oportunidade para o
jovem fazer descobertas, possibilitando flexibilidade de leitura
dos acervos, para que este não fique restrito a alguns títulos.
4. Mediadores da Leitura e a Formação de Leitores
O governo tenta solucionar o problema com
seus programas de distribuição de livros,
investindo uma quantidade considerável de
recursos na compra de acervos para serem
enviados às escolas, mas não consegue
resolver a questão da leitura, porque, entre
outros problemas a serem equacionados
nesses programas, não investe na
valorização e na capacitação dos professores
(FERNANDES, 2007, p. 30).
Os problemas educacionais em curso no contexto atual,
em que se atribui grande importância à formação de leitores,
direcionam a abordagem de questões referentes ao acesso à
leitura, aos mediadores da leitura, bem como a importância da
679
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
literatura infantojuvenil no desenvolvimento da competência
leitora do educando, através da mediação da leitura.
Com efeito, as leituras literárias proporcionam, ao
mesmo tempo, prazer e conhecimento, além de contribuir para
despertar o gosto do leitor, o que consiste em um verdadeiro
aprendizado cultural, favorecendo mais a descoberta de sentidos
que outros tipos de texto e, sobretudo, oferecendo condições
para a formação do leitor competente, capaz de atuar em
diversas e variadas frentes de entendimento e de reflexão.
Já o acesso a livros no Brasil é vinculado à importância
dada à leitura na escola. Esta se tornou a principal responsável
pela formação e ampliação do público leitor, por meio da
circulação de livros, principalmente entre as camadas menos
favorecidas da população, competindo também a ela promover o
gosto literário e formar leitores críticos, capazes de compreender
sua situação no mundo e aptos para atuar como instrumento de
mudança social.
Nessa perspectiva, é fundamental oferecer condições
g
u , u “c c
g u ,
qu
x
u
ã
x
bu
”
(COSTA, 2007, p. 105), para, assim, contribuir com a formação
de leitores literários. Contudo, acredita-se que, para transformar
o Brasil em um país de leitores, não basta apenas o acesso a
livros por meio de programas de incentivo à leitura; para
efetivar a formação do leitor crítico, capaz de interagir com os
textos e deles abstrair o conhecimento no processo de fabulação,
é imprescindível o papel do mediador da leitura no contexto das
práticas escolares de leitura literária ou fora dela, para o
funcionamento de estratégias de apoio à leitura na perspectiva
do letramento literário, pois este permite compreender os
significados da escrita e da leitura literária para aqueles que a
680
ANAIS - 2013
utilizam e dela se apropriam nos contextos sociais. (BRASIL,
2006).
A escola, como principal mediadora das relações entre
literatura e seu interlocutor, necessita questionar quanto aos
métodos que têm sido utilizados para a formação do leitor.
P u
(2005,
63), f
qu “
u
á
processada com mais autonomia tendo os estudantes direito de
seguir suas próprias vias de produção de sentidos, sem que estes
deixem, por isso, de serem c ”, u j , f z-se necessária
uma nova didática de leitura literária se quisermos tentar
reverter o quadro caótico da competência de leitura dos
educandos, bem como formar leitores literários.
Nesse sentido, o educador precisa contar com estratégias
orientadoras dos procedimentos, como, por exemplo, a seleção
de obras que deseja compartilhar com os educandos. Para
F
(2007,
31), “
z
f
çã
fortalecimento do leitor, a instituição escolar precisa oferecer
aos estudantes oportunidades para trocar experiências e debater
o que leram, tornando essa atividade plural, instigante e
g fc
,
u
c
f
”,
obrigatoriedade de avaliar a leitura, ou que esta seja feita para
ser demonstrada, comprovada, porque a situação é escolar. Tal
postura muitas vezes contribui para o afastamento do aluno das
práticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou
aversão ao livro e ao ato de ler:
Os objetivos de leitura e estudo de um texto
literário são específicos a este tipo de texto,
devem privilegiar aqueles conhecimentos,
habilidades e atitudes necessários à
formação de um bom leitor de literatura: a
análise do gênero do texto, dos recursos de
expressão e de recriação da realidade, das
681
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
figuras autor-narrador, personagem, ponto
de vista (no caso da narrativa), a
interpretação e analogias, comparações,
metáforas, identificação de recursos
í c ,
é c ,
f ,
“ u ”
daquilo que é textual e daquilo que é
literário (SOARES, 2006, p. 43-44).
Desse ponto de vista, as estratégias de mediação da
leitura envolvem a análise literária que instiga o leitor à leitura.
Parafraseando Costa (2007), sobressai um trabalho voltado para
a leitura literária, em que o educador trabalha mais intensamente
com as reações e as respostas do leitor, mediante sua
participação livre e produtiva tanto na prática de compreensão,
na experiência virtual, na forma como o leitor dialoga com o
texto, quanto na possibilidade de produzir interpretações
diferentes a cada leitura realizada.
Assim, nota-se que cabe ao educador exercer seu
conhecimento nas estratégias e encaminhamentos pedagógicos
e, da mesma forma, na seleção dos livros e na provisão de
atividades, estando estes contemplados em sua proposta
pedagógica com objetivos claros e definidos de como ensinar
1
1 A m
ediação da leitura para Júnior; Bortolin (2009 p. 211) consiste em
“
c
c
x
u c
u
,
quando possível, levá-lo a compartilhar o qu f
c
u
”
2
P
(2008, 149)
f u
u c
“c
frequência um professor, um bibliotecário ou, às vezes, um livreiro, um
assistente social ou um animador voluntário de alguma associação, um
militante s
c u
í c , éu
g u gué c
qu c uz
”
Trata-se, então, de qualquer pessoa que aproxima leitor-texto, em qualquer
contexto social. Na escola, os principais mediadores são o professor e o
bibliotecário.
682
ANAIS - 2013
literatura, trabalhar o texto literário, incentivar e orientar a
leitura de livros, tendo em vista os níveis de dificuldade da
leitura, seja a leitura mediada pelo professor, seja a leitura
autônoma:
O trabalho de mediação do professor para
ligar os acervos à leitura necessita de uma
outra pedagogia. A passagem do
u
çã
“
”
c
h
significações e para o esclarecimento das
razões e da importância da leitura desloca a
ênfase do trabalho docente da perspectiva do
ensino e da aprendizagem (COSTA, 2007, p.
112).
Dessa forma, é preciso que o mediador2 rompa com
modelos preestabelecidos, desmanche rótulos, faça críticas e
reflexões, ao desfazer a cristalização de lugares estabelecidos,
como as imposições de leitura, para outra pedagogia, para outros
modos de ensinar literatura que, fundamentalmente, estimulem a
criança e o jovem à prática da leitura. Contextualizar e
problematizar as leituras segundo uma nova metodologia do
mediador do livro, com foco na sua importância para ajudar a
compreender o mundo de forma a assumir uma visão crítica, são
uma possibilidade de motivação para a leitura.
Constata-se, pois, que é fundamental o papel do
mediador do livro, ao qual cabe oportunizar a crianças e jovens
o acesso a universos culturais mais amplos, sugerir leituras ao
acompanhar o leitor no momento da escolha, orientar, enfim,
criar estratégias para o jovem fazer descobertas, possibilitando
683
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
diversidade de leitura dos acervos, para o leitor não ficar restrito
a alguns títulos. Ou seja, essa intervenção crítica por parte do
mediador em relação às seleções é necessária para entender as
diferenças e especificidades dos títulos, os distintos poderes de
irradiação e as qualidades literárias.
Nessa direção de desenvolvimento do trabalho de
mediação do livro, com enfoque na diversidade de produções, é
possível estabelecer relações, pontes, entre as escolhas dos
estudantes, oportunizando-lhes a possibilidade de ir avançando
no grau de complexidade de leitura para alcançar uma nova
etapa e, ao mesmo tempo, garantir seu direito de escolha, a qual,
por mais subjetiva que seja, deve beneficiá-los, seja na
possibilidade de fruição, seja no acesso à qualidade artística da
obra literária.
Em suma, é fundamental repensar o papel das
instituições e dos agentes educacionais, dar ouvidos à voz dos
alunos, oferecer-lhes oportunidade inclusive de avaliar o
trabalho de leitura literária que está sendo desenvolvido e os
livros que se encontram disponíveis no espaço escolar, para lhes
proporcionar outras alternativas de escolha, pois aqueles que
não têm ânimo e estímulo para ler determinados livros não se
formam enquanto leitores literários.
Considerações Finais
Frente ao exposto, comprova-se que a escola, livros e
mediadores desempenham um papel fundamental na formação
de leitores. Entretanto, na atualidade, evidencia-se a
precariedade na política de difusão da leitura no Brasil, ao
considerarmos questões relevantes como a ausência de formação
continuada aos educadores para atuarem como mediadores da
leitura, abrangendo conhecimentos no âmbito do ensino da
684
ANAIS - 2013
leitura literária, haja vista que, em muitas situações, dentro das
instituições de ensino, a leitura assume contorno de atividade
obrigatória e, logo, vigiada.
Demonstra-se, assim, a necessidade de debates sobre
avanços e impasses que os resultados revelaram, com
proposições de possíveis ações efetivas que visem a melhorias
na política nacional, principalmente em se tratando do mediador
de leitura. Para tanto, investimentos públicos em políticas de
formação continuada e permanente aos educadores que atuam
dentro do contexto escolar são necessários, já que, como
demonstra o estudo, na atualidade, há uma diversidade de obras
presentes nas instituições de ensino, mas não há iniciativas
governamentais efetivas voltadas para a formação de
mediadores de leitura literária, quadro que revela uma grande
contradição: existência de livros e carência de mediadores com
conhecimentos na área de literatura para desenvolverem o
trabalho de mediação, com o objetivo de formar leitores
literários.
Finalmente, ao avaliar o objeto da pesquisa, que consiste
no Programa Nacional Biblioteca da Escola, mais
especificamente, a política de aquisição pelo governo de obras
infantojuvenis, destinadas a todas as escolas públicas do Brasil
no ano de 2011, considera-se bem importante a distribuição de
materiais que estão sendo utilizados como subsídio na formação
dos leitores. No entanto, o trabalho, como uma avaliação inicial,
demonstrou o que deu certo e o que pode ser aperfeiçoado, com
o intuito de contribuir para identificar ações efetivas no fomento
à leitura e acesso ao livro, com o objetivo de traçar novos
caminhos para construir ou melhorar a política de leitura em
estudo, tendo a expectativa de contribuir para orientações e
melhorias e, consequentemente, para a implantação de novas
políticas públicas de leitura.
685
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
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689
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Memórias de leitura: uma história de formação do
leitor no Brasil
Rúbia Aparecida Rodrigues LEAL1
Silvane Aparecida de FREITAS2
RESUMO: O caminho da leitura começa antes mesmo de sermos
alfabetizados, pois não se limita à simples codificação de signos, mas
à leitura de mundo. Para Paulo Freire (2008), precede a leitura da
palavra e desta implica a continuidade daquele. Esse percurso carrega
a biografia do leitor e detecta, por meio de suas memórias, de suas
opiniões, crenças, valores sobre o ambiente em que viveu e vive. O
corpus a ser analisado neste artigo será formado pelas memórias de
leitura de Graciliano Ramos, analisadas por Márcia Cabral (2009), que
abrangem episódios presentes na infância do escritor, marcas dos
primeiros anos de vida, enquanto leitor, e por uma retrospectiva da
leitura e do leitor no Brasil. As diversas leituras da infância do autor
sugerem elementos para compreender a formação de um pequeno
leitor, a vida social, cultural e quais os elementos fundamentais em
sua formação nos séculos XIX e XX. Esses dados indicam que, como,
aos nove anos, Graciliano não era alfabetizado, o papel dos
mediadores de leitura é bem relevante no processo de formação desse
leitor, a ponto de fazê-lo ser reconhecido como um grande escritor em
todas as esferas literárias. Essa trajetória revela que a leitura é
histórica e socialmente construída, conforme apresentaremos, com um
olhar direcionado aos elementos históricos da época. Também será
enfocada a materialidade da leitura na infância, com análise dos
suportes dos textos: formas impressão, ilustrações, formato e volume
1
Mestranda da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) na
área da Educação, sob a orientação da professora Drª Silvane Aparecida de
Freitas.
2
Professora Doutora e Orientadora do curso de mestrado da UEMS
(Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul); atua como pró-reitora da
mesma, em Dourados – MS.
690
ANAIS - 2013
de livros em folhetos. Subsequentemente, abordaremos o conceito de
mediação na formação do pequeno leitor e, por fim, examinaremos a
formação cultural do leitor, seus gestos e modos de leitura, imagens de
leitores pouco letrados e de leitores letrados, além de mapear graus de
letramento da época e os níveis da vida cultural.
PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Memória. Leitor-Mediação
Introdução
Os livros de leitura destinados ao leitor criança no Brasil,
na passagem do século XIX ao XX, tinham dois lados
antagônicos: de um lado a aparência escura, pesada, motivo de
rejeição por parte da criança; de outro, as ideias veiculadas,
sugerindo ensinamentos morais por meio das lições pedagógicas
recebidas pelos personagens, as quais despertavam sinal de
interesse no pequeno leitor.
Outro aspecto importante é a questão da dificuldade da
leitura na época, agravada pela complexidade relacionada aos
conteúdos dos clássicos e pela letra manuscrita, que
impossibilitava a apropriação dos textos, havendo, assim, uma
assimetria entre o desenvolvimento cognitivo da criança e os
u qu h
“ z h -me
dos sete anos, não conseguia ler e os meus rascunhos eram
pavorosos [...]. Foi neste tempo que me infligiram Camões [...].
D u
b
õ [ ]” (R MO , 1993,
p.120). Conforme estudos na área da história da leitura,
paleógrafo, ou livro de leitura manuscrita, consistia em um
material introduzido nas escolas brasileiras da época nas séries
finais do curso elementar.(1)3
3
Para uma genealogia da leitura manuscrita, conferir pesquisa desenvolvida
por
Antônio
Augusto
Gomes
Batista.
disponível
em
http://www.projetomemorialeitura/ensaios Acesso em: 20 out. 2012.
691
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
No que se refere ao ensino de leitura e escrita, a leitura
manuscrita era prevista para ser desenvolvida na segunda classe
do ensino médio das escolas primárias, por meio da 1ª e 2ª
edição do livro A arte de aprender a ler, em que se registrava o
alfabeto em letras manuscritas inclinadas, maiúsculas.)4(?) A
questão da materialidade da leitura torna-se foco de atenção com
vistas à relação física do leitor com o livro - capa, cor, pontas
dos dedos, toque, enfim, elementos que ultrapassassem as
noções a serem construídas em nível cognitivo.
Diante das experiências de Graciliano nos breves trechos
de Infância pudemos concluir que as experiências vividas pelo
leitor, muitas vezes o afastaram da leitura, outras vezes o
aproximaram. Deixa-nos, portanto uma reflexão a respeito do
imaginário dos leitores na passagem do século XIX ao XX, no
interior do Nordeste, onde a leitura proibida queimava as mãos,
perturbava o sono, conduzia ao inferno.
A leitura, portanto, pode significar ato muito poderoso,
pois, por meio dela, é possível desvendar valores morais,
descobrir práticas culturais e históricas pouco conhecidas.
1 A Mediação na Formação Cultural do Pequeno Leitor
Quando nos referimos à formação do leitor criança,
imediatamente vêm-nos hipóteses de toda natureza, dentre elas a
concepção de que o desenvolvimento se dá de forma inata ou
ainda pela influência do meio, como enfatizam; considerando a
segunda hipótese, isso ocorre tanto por questões de espaço,
4
Conforme estudos na área da história da alfabetização no Brasil, a
publicação da cartilha maternal, de autoria do poeta português João de Deus,
em 1876, representou um marco na introdução do método analítico. Ver, a
esse respeito, Mortati, (2000).
692
ANAIS - 2013
quanto por materiais disponíveis e ainda pela convivência com
outros membros mais experientes da cultura.
A criança precisa acelerar o desenvolvimento das
capacidades cognitivas para ler por conta própria e é nessa fase
do desenvolvimento que o gosto se forma. É fundamental a
convivência com materiais de leitura diversificados e é na
família que se consolida o hábito. E mais, professores leitores
formam necessariamente alunos leitores (SILVA, 2009, p.96).
O conceito de mediação revela-se central nas
investigações de Vygotsky (1896-1934), que buscava examinar
o desenvolvimento psicológico nos seres humanos enfatizando
um conjunto de temas, como a formação social da mente, as
relações entre pensamento e linguagem, a gênese social dos
processos psicológicos superiores (atenção voluntária, memória
voluntária, dentre tantos outros que desenvolveu em seu curto
tempo de vida).
Para Vygotsky, as transformações nos processos de
mediação podem ser evidenciadas, tomando-se algumas
observações do cotidiano da criança. Segundo ele, a criança,
pelo fato de ainda não ter internalizado um determinado
conceito, poderá buscar apoio em elementos externos
(VYGOTSKY, 1998 apud SILVA, 2009, p.98).
A mediação da leitura na obra Infância mostra que
Graciliano relembra como foi árdua sua experiência de criança,
nos fins do século XIX e início do século XX- trata-se do
período compreendido entre 1892 e 1906, no interior de
Pernambuco e de Alagoas. As lembranças, fortemente marcadas
pelo ambiente árido e um elevado grau de desafeto, acabam por
desenhar pai e mãe, aqueles que costumam estar mais
próximos,
como embrutecidos sertanejos: casal ríspido,
distante, por quem a criança, ao longo da infância, nutriria
,
u
“M u
h
ã
693
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
conservam-se grandes temerosos, incógnitos, [...] ouço
pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões
no tijolo gasto, retalhos e sons dispersavam. Medo. Foi o medo
que me orient u
;
” (R MO , 1993,
p.11).
Em relação à capacidade de leitura, o menino não nasceu
nem se formou leitor naturalmente. Foi enfrentando obstáculos
que esse processo, lenta e penosamente, desenvolveu-se. Em
meio a tantas adversidades de toda ordem - ambiente cultural
incompreensível, tensas relações familiares, debilidade física
(oftalmia e artrite), tiveram início suas primeiras experiências
com a leitura (SILVA, 2009, p. 102).
A leitura em família centralizava-se na figura da mãe,
não por proximidade, mas por distanciamento de Graciliano em
relação a ela, pelo conteúdo das histórias e pelo modo vagaroso
e desatencioso de ler. Segundo o autor, as histórias contadas por
sua mãe se perdiam em barulhos sem sentido, deteriorados mais
pela m
çã
x
f gu
“M h
ã
devagar, numa toada inexpressiva, fazendo pausas absurdas,
engolindo vírgulas e pontos, abolindo esdrúxulas, alongando ou
encurtando palavras. Não compreendida bem o sentido delas. E,
com tal prosódia e tal pontuação, os textos mais simples se
b cu c
” (R MO , 1993, 63)
Outra possibilidade a ser considerada frente à leitura
realizada pela mãe é a de que talvez ela fosse uma leitora
incipiente, em etapa de decodificação, pelo modo como lia as
histórias, uma leitura sem fluência, inexpressiva. Aqui cabe
observar que assim como em outros lugares do Brasil, no
interior do nordeste o acesso restrito ao desenvolvimento das
habilidades de leitura e da escrita se justificaria pela possível
falta de mediadores, carência de materiais de leitura, condições
694
ANAIS - 2013
menos favoráveis de letramento, enfim, fatores que pudessem
contribuir para a proficiência da leitura.
Nesse contexto, a mediação materna significava foco de
tensão para Graciliano; em vez de protegê-lo, auxiliá-lo a
estabelecer as pontes com o assunto desconhecido, causava-lhe
enorme aflição, por elevar o conteúdo dos folhetos a instâncias
indecifráveis, a dimensões metafísicas. (SILVA, 2009, p.107).
No ambiente familiar, ao lado da figura materna, leitora
pouco proficiente de longos romances e folhetos religiosos,
destacava-se o pai, cuja intervenção pode ser considerada
positiva na formação desse pequeno leitor. Narrador severo e
alfabetizador informal, contava-lhe histórias e iniciou-o na
alfabetização.
Meu pai não tinha vocação para o ensino,
mas quis meter-me o alfabeto na cabeça.
Desisti, ele teimou – e o resultado foi um
desastre. Cedo revelou impaciência e
assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de
letras, ia jogar solo. À tarde pegava um
côvado, levava-me para a sala de visitas – e
çã
u
[ ]” (R MO ,
1993, p. 109)
A inserção do patriarca na formação escolar da criança
oferece algumas pistas para refletir sobre a história da educação
no interior do nordeste na passagem do século XIX ao XX. Os
métodos de ensino em vigor ao longo do século XIX e até a
década de 30 do século XX decorriam, em geral, da necessidade
de o Estado Nacional regulamentar os processos de
escolarização, os quais poderiam garantir a entrada da
população brasileira no mundo civilizado; portanto, foi possível
constatar, nesse período, a existência da sucessão e, por vezes,
695
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
da concomitância dos seguintes métodos: individual - ensino de
aluno por aluno (após a proclamação da república); mútuo - o
aluno mais adiantado ajudava o outro com dificuldade (após a
má funcionalidade do método individual e expansão da
escolarização no Brasil) e intuitivo - dava ênfase à observação
de objetos, à intuição da criança (necessidade de educar os
sentidos, como propunham os teóricos como Pestalozzi)
(SILVA, 2009, p.112).
Infere-se desse contexto que existia um longo
distanciamento entre o discurso pedagógico oficial e as
condições de produção de conhecimento por parte daqueles que
efetivamente ensinavam. Por outro lado, as experiências com o
pai alfabetizador, ou mesmo com sua eventual substituta
domiciliar, a irmã Mocinha, lançam convincentes luzes a essa
hipótese:
Afinal meu pai desesperou de haver gerado
um maluco e deixou- me. Respirei, meti-me
na soletração, guiado por Mocinha [...].
“
u
u
u h í
embuste
naquela
maldita
manhã,
inculcando-me a excelência do papel
” (R MO , 1993, P 99)
Essas lembranças sugerem no percurso de Graciliano
Ramos o que o leitor iniciante encontraria pela frente. De um
lado, a monotonia das sílabas gaguejadas e de outro, a
incompreensão de conceitos sisudos presentes nos materiais de
leitura.
A sociedade na qual se insere o relato de Infância
convivia com níveis consideráveis de sociabilidade entre criados
e senhores reunidos na sala de jantar para o relato de casos, e
alto grau de oralidade presente na transmissão de histórias
696
ANAIS - 2013
curiosas, contadas por José Bahia, pelo tio Serapião e ainda
pelos criados da casa.
É importante ressaltar que, quanto à mediação do avô, a
criança era submetida a um tipo de material de leitura não muito
apropriado para cativar um leitor: o livro de leitura do Barão de
Macaúbas e o catecismo. O primeiro destacava conteúdos
essencialmente didáticos, lições de moral; o segundo visava aos
ensinamentos religiosos, lições de obediência e disciplina
( ILV , 2009,
119, 120) “M u
qu
distanciavam, corriam na caatinga, abandonavam-me ao
capricho de meu avô, que me jungiu à prosa do Barão de
Macaúbas e ao catecismo, trazidos na carona
[ ]”
(RAMOS, 1993, p.124).
A mediação feita pelo avô de Graciliano era rigorosa,
exagerada em relação à aprendizagem de leitura. Para ele, a
aquisição da leitura ocorreria pela transmissão e repetição, já
que sua concepção de leitura baseava-se na mecânica do ato de
ler, passando distante da produção de significado. Mas ainda
não podemos deixar de mencionar também que, para o menino,
nada favorecia o processo de construção da leitura, que, de
acordo com Kleiman (1989, 1993, 1999), envolve alguns
aspectos fundamentais para compreensão do texto, tais como:
espaço interativo, confronto de ideias, formulação de objetivos
para leitura e de hipóteses quanto às características do texto,
intenções do autor, os quais praticamente não existiam.
Partimos agora para a escola, na figura da professora
Maria como mediadora para o processo de construção da leitura.
Para Graciliano, a escola era o espaço reservado ao suplício,
uma verdadeira crucificação; apesar disso, havia alguns
momentos de aproximação da leitura, mediada pelo calor
humano, por gestos afetuosos da professora Maria.
697
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
A mulher gorda chamou-me, deu-me uma
cadeira, examinou-me a roupa, o couro
cabeludo, as unhas, os dentes. Em seguida
abriu a caixinha branca, retirou o folheto: Leia. Não, senhora, respondi confuso. Ainda
não havia estudado as letras finas, menores
que as da carta de ABC. (RAMOS, 1993,
p.122):
Em grande parte das escolas brasileiras na época, em
período de alfabetização, como no caso de Graciliano, esperavase que a criança dominasse as mais complexas habilidades
envolvendo a leitura e a escrita nessa etapa da aprendizagem,
porém acredita-se que o conjunto de habilidades necessárias a
um leitor proficiente seria construído ao longo de um processo
mais amplo, a partir do nível de desenvolvimento real de cada
criança e das condições favoráveis de letramento das quais ela
participa e participou, dentre outros aspectos. O comportamento
afetivo da professora de Graciliano fez com que ele se
mantivesse na escola, e a qualidade da mediação exercida por
ela nos remete ao eixo fundamental da pedagogia defendida por
Paulo Freire (1992, 1996): a morosidade e afetividade. Ele
acredita nesse tipo de relação entre educador e educando, tão
importante quanto o diálogo e o conhecimento de mundo,
elementos fundamentais, segundo ele, para aquele que quer
ensinar e/ ou aprender (SILVA, 2009, p. 123, 124).
A rotina da escola repetia os materiais de leitura que lhe
despertaram tão pouco interesse, introduzidos pelo avô de
Graciliano. Além de todos os mediadores mencionados
anteriormente, ainda passaram na vida do menino outros
mediadores. Com a mudança de escola, o novo professor, que,
segundo o aspecto informal, não lhe acrescentou nada quanto à
aquisição da leitura, nem quanto ao gosto de aprender. Depois
698
ANAIS - 2013
veio D. Angelina, o professor Rijo, a prima Emília; esta, nos
rituais de iniciação à leitura, livrara-o das humilhações sofridas
por ele ainda ser analfabeto. D. Angelina, apesar de pouco
acrescentar ao menino no que tange às habilidades de ler e
escrever, tinha uma grande capacidade, a de narradora de
histórias, talento que provavelmente a tornava uma
incentivadora para a leitura de ficção.
“E
f
uí
histórias de Trancoso. Visitava-nos, prendia-nos até meia-noite
com lendas e romances, que estirava e coloria admiravelmente.
Nada me ensinou, mas transmitia-me afeição às mentiras
” (R MO , 1993, 194)
Já a prima Emília, uma mediação que volta à família, o
processo de aquisição da leitura começa a tomar um rumo mais
positivo, pois o menino percebe que, do meio familiar e escolar
pelos quais passara, teria que encontrar ele próprio outros
caminhos para vencer as dificuldades e, pela primeira vez,
sentiu-se entusiasmado pela figura feminina da prima Emília.
Era necessário que a priminha lesse comigo
o romance e me auxiliasse na decifração
[...]. Emília respondeu com uma pergunta
que me espantou: Por que não me arriscaria
a tentar a leitura sozinho? Longamente
expus a minha fraqueza mental, a
impossibilidade de compreender as palavras
difíceis. Emília combateu a minha
c
cçã [ ]” (R MO , 1993, 138,139)
Observa-se aqui que a prima Emília usou de outros
recursos que até o momento ninguém usara: o resgate da
autoimagem do menino, semidestruída, com a convicção de que
alguns recursos haviam sido construídos, por meio do contato
699
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
com materiais de leitura diversos, conhecimento dos nomes das
letras e relação entre fonemas e grafemas, enfim, ela percebeu
que o menino não sabia era associar tudo isso de forma a ter um
significado juntos (CABRAL, 2009, p.139).
Mais à frente, o menino Graciliano, pequeno leitor,
recorre novamente à mediação da prima Emília, que conhecia
em detalhes os possuidores particulares de bibliotecas. Nessa
fase, longe da palmatória, dos livros didáticos e da soletração, o
menino passou a perseguir os firmes caminhos e sentidos da
leitura, pois ela havia se tornado na vida dele algo de um valor
especial, do qual não desejava afastar-se. Estamos agora frente a
uma transformação, diante de um leitor em crescimento, que não
precisava mais de coletivo, apenas lhe bastava o silêncio. Aqui
começa nascer o escritor.
Invoquei, num desespero, o socorro de
Emília. Eu precisa ler, não os compêndios
escolares, insossos, mas aventuras, justiça,
amor, vinganças, coisas, até então,
desconhecidas [...]. Queria isolar-me [...].
Mergulhava-me numa espreguiçadeira [...]
h
h
[ ]”
(RAMOS, 1993, p.211).
É importante dizer que, além da mediação da prima do
menino, houve ainda uma mediação construída com um membro
da sociedade local, a figura do tabelião Jerônimo Barreto, afinal
Graciliano precisa de um lugar mais apropriado e alguém como
ele, que lhe indicasse leituras e histórias não comuns aos outros
mediadores.
Uma vez mais se reconhece o nascimento de um leitor
proficiente, capaz de formular analogias com materiais ausentes,
de fazer uso de conceitos complexos na memória e acioná-los
700
ANAIS - 2013
diante da leitura com níveis de exigência mais complexos, como
o da ficção. Isso tudo nos permite identificar uma mudança
significativa no que se refere ao processo de aquisição e
construção da leitura.
Diante dessa análise, podemos refletir sobre a entrada de
Graciliano Ramos no universo da leitura, sobre como o processo
de apropriação da leitura, apesar da forma conflitante como seu
percurso foi realizado, pôde contribuir na constituição subjetiva
do menino Graciliano, e isso ainda nos leva a refletir sobre a
linguagem e a subjetividade sustentadas nas memórias,
lembranças e esquecimentos de seu processo de alfabetização.
Márcia Abreu, em sua análise, mostra-nos que nas
lembranças infantis, especialmente, é muito comum que
elementos essenciais de uma experiência sejam representados
por elementos não essenciais da mesma experiência. O menino
Graciliano, por exemplo, quando fala da espreguiçadeira, queria
dizer que tinha interesse pela leitura, mas a dificuldade para ler
fazia com que ele se isolasse.
Freud (1996) diz que as lembranças são resultado de
duas forças contrárias: uma que insiste em lembrar os eventos
por mais dolorosos que sejam, e outra que barraria essas
lembranças, força esta que funcionaria como uma resistência às
lembranças, pois o que rege o sujeito é o inconsciente, embora
aparentemente pareça ser trabalho do consciente.
Em suma, a formação do pequeno leitor retratado em
Infância, aponta para a assertiva de que a leitura é um ato
mediado pela linguagem, pela influência de outros seres
humanos; nesse caso, toda aprendizagem de Graciliano
respondeu a um desejo dele, o de aprender a ler, na idade em
que estava, em período de alfabetização. Ele, assim como todas
as crianças, vive o período em que as motivações intelectuais de
aprendizagem marcadas por motivações afetivas e emocionais,
701
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
estas necessariamente endossadas pelo círculo familiar e pela
escola. Essa fase é inconscientemente tediosa, por isso a criança
se fixa no outro que pode ser a professora, a mãe ou qualquer
outro adulto que ocupe o lugar de ensinante; a leitura com voz
de um adulto, por exemplo, pode servir de estímulo para a
criança querer aprender a ler e escrever e foi isso que aconteceu
com o pequeno
Graciliano, que recorria à prima, à mãe e ao pai. Enfim,
apesar de tantos obstáculos no seu percurso de leitura relatado
pelas memórias, ele conseguiu transformar suas adversidades
em tamanho sucesso, que hoje é considerado um dos cânones da
literatura brasileira.
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704
ANAIS - 2013
Mulheres executivas: depoimentos como efeito de realidade
na reportagem
Milena CRESTANI Neto1
Maria Luceli Faria BATISTOTE 2
RESUMO: O trabalho tem como objetivo analisar a reportagem
u
“
çõ
ch f
”, ub c
R
V j ,
edição de 2 de maio de 2012, utilizando a semiótica francesa, na
tentativa de apresentar a linguagem e técnicas do jornalismo na
construção de significado no texto. Para demonstrar a trajetória das
mulheres na conquista de cargos de chefia, a análise aborda estruturas
do nível narrativo. O estudo mais detalhado do percurso gerativo de
sentido, no entanto, desenvolve-se na sintaxe discursiva, abordando os
recursos jornalísticos aplicados para chamar a atenção dos leitores e
atingir os objetivos da reportagem. Apesar de o enunciador apontar
para mudanças que estariam ajudando a desmitificar preconceitos, o
discurso esbarra em contradições. Surgem várias tentativas com a
finalidade de mostrar a inexistência de tantas diferenças entre homens
e mulheres; no entanto, é possível recuperar por meio de marcas
linguísticas presentes no texto a persistência das dificuldades.
PALAVRAS-CHAVE: semiótica francesa; discurso jornalístico;
mulheres; carreira.
Introdução
Não há como negar o poder de influência dos meios de
comunicação em toda a sociedade. As pessoas dependem dos
1
Mestranda em Comunicação - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) - [email protected]
2
Professora Doutora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) - [email protected]
705
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
jornais, televisão, rádio, revistas ou da internet para manteremse informadas sobre os principais acontecimentos da cidade
onde moram, do Brasil e do mundo. No entanto, essas
informações não estão livres de opiniões, percepções e, na
maioria das vezes, carregam os interesses da ideologia
dominante, os quais caminham em consonância com os
objetivos e até mesmo com o conhecimento de mundo de grande
parte da sociedade.
Para alcançar o objetivo de convencer de que seus pontos
de vista estão corretos, os meios de comunicação utilizam
técnicas que auxiliam neste convencimento. A linguagem, a
diagramação ou até mesmo a escolha do que será publicado
auxiliam nesta influência. Por isso, a relação estabelecida entre
os jornais e o público não pode ser encarada de forma simplória.
Hoje muitas teorias do jornalismo resumem-se a analisar
aspectos estruturais do texto, a exemplo das teorias funcionalista
e pragmática, que tratam principalmente da abordagem da
matéria, construção do texto e produção da notícia. Os grandes
jornais elaboraram manuais ensinando como deve ser escrito o
texto e quais valores devem ser considerados na hora de os
profissionais definirem quais acontecimentos merecem ser
noticiados. No entanto, o processo é bem mais complexo.
A missão de levar informações diariamente à população
não deve ser encarada como algo simples, fácil de executar e até
mesmo inocente, como pode ser caracterizada a opinião de
B ã (1992,
67) “Jornalismo é a informação de fatos
correntes,
devidamente
interpretados
e
transmitidos
periodicamente à sociedade, com objetivo de difundir
conhecimentos e orientar a opinião pública, no sentido de
b c u ”
Os jornalistas têm a capacidade de decidir o que é mais
ou menos importante para ser publicado, escolhem sobre quais
706
ANAIS - 2013
assuntos o público será informado por meio do método da
agenda-setting. Conforme Traquina (2001, p. 30), duas variáveis
parecem ser determinantes para responder a pergunta: quem
determina a agenda jornalística? 1) A atuação dos próprios
jornalistas e os critérios de noticiabilidade que utilizam para
seleção das ocorrências. 2) A ação estratégica dos news
promotores para obter acesso ao campo jornalístico.
Por conta da complexidade da relação entre o meio de
comunicação e o receptor da mensagem, foi feita opção para
utilização da semiótica discursiva ou francesa, derivada de
Greimas e que vem sendo aperfeiçoada por seus seguidores. O
objetivo não é dizer se o viés ideológico do meio de
comunicação está correto ou não, mas resgatar as marcas
linguísticas e os recursos jornalísticos aplicados na tentativa de
atrair o leitor e fazê-lo crer na verdade divulgada.
O percurso gerativo de sentido, incluindo as técnicas de
reportagem e linguagem utilizadas, serão analisados na
g
R
V j ,
u
“
çõ
ch f
”
c ,
“
çõ
”, ub c
edição 2267, do dia 2 de maio de 2012. O objetivo da matéria é
mostrar que as mulheres estão conquistando mais espaço no
mercado de trabalho, principalmente em cargo de chefia,
levando o leitor a crer que está diminuindo a diferença entre
homens e mulheres nas empresas. Por meio de depoimentos de
mulheres bem-sucedidas e especialistas passam dicas ensinando
o caminho a ser seguido para obter o sucesso profissional.
Na sintaxe narrativa o foco da análise será no enunciado
de fazer, organizado pelos critérios tipológicos dos seguintes
programas narrativos: competência, perfórmance, manipulação e
sanção. O enunciador, ou seja, o autor da reportagem menciona
os métodos utilizados pelas mulheres bem-sucedidas,
profissionalmente, com objetivo de transformar o leitor, que até
707
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
então se apresenta como sujeito de estado. O objetivo é também
buscar convencê-lo a tornar-se um sujeito de fazer, adquirindo
as competências da reportagem para agir.
Na sintaxe discursiva, o foco está no efeito de realidade
ou referente da reportagem para que os leitores acreditem que
seguindo as recomendações da reportagem alcançarão altos
postos nas empresas. Nesta etapa, será feita analisa mais
complexa e minuciosa sobre as técnicas de jornalismo
empregadas em busca deste objetivo. A reportagem também
utiliza o efeito de proximidade para garantir que o leitor consiga
mais facilmente se identificar com os aspectos relatados no
texto.
1. Conceitos de objetividade e ideologia
Antes de iniciar a análise da reportagem pela semiótica
francesa, é importante apresentar alguns conceitos que serão
abordados no decorrer do artigo, relacionados à objetividade no
jornalismo e também sobre ideologia. O leitor, na maioria das
vezes, é levado a acreditar na informação veiculada devido às
técnicas utilizadas em busca do efeito de realidade. Entretanto, a
“
” ã é qu
á
N
H
(2006)
que um dos maiores problemas na análise do jornalismo está
relacionado à confusão, à mistificação e até mesmo a discussão
sobre a verdade. Ele avalia a complexidade dos aspectos da
realidade e a influência do conhecimento já adquirido e das
nossas percepções sobre os temas.
Para a manipulação dos jornais funcionar, é
necessário, entre outros aspectos, que o
público partilhe do mesmo sistema de
valores do jornal. Na comunicação, os
participantes se constroem e constroem,
708
ANAIS - 2013
juntos, o objeto jornal. O público é,
portanto, co-autor. Um autor leva em
consideração as expectativas e as prováveis
reações de quem vai receber o texto para
construir um discurso com a eficiência
j
N
,
“ c
”
também
participa
da
comunicação.
(HERNANDES, 2006, p. 18)
Avaliar os possíveis interesses do público-alvo auxilia o
meio de comunicação a definir quais assuntos merecem ser
divulgados e também aqueles que merecem maior destaque. É o
que acontece, por exemplo, com a Revista Veja ao escolher
divulgar uma reportagem sobre mulheres em cargos de chefia. A
revista semanal, que é a maior publicação do gênero no País,
com 1.209.390 exemplares3, é voltada principalmente para os
estratos A e B da sociedade. Por isso, crê que os seus leitores
estarão interessados em saber como melhorar na carreira.
Não há como ignorar que o tema foi escolhido tendo
como base a ideologia do meio de comunicação, que também
está relacionada à ideologia e aos interesses da maioria dos seus
leitores, voltada ao capitalismo e consequentemente ao avanço
econômico. Nem todos que têm acesso às informações refletem
que, na verdade, estão tendo obtendo uma informação que nos
fornece um sentido de realidade, a qual pode ser modificada ou
avaliada sob outro ponto de vista, de acordo com os interesses
de que está veiculando ou até mesmo o conhecimento de mundo
daquele que foi responsável pela apuração dos fatos.
Muitos autores já consideram ultrapassada a noção de
imparcialidade, que provém de uma das mais antigas definições
3
Dados do Instituto Verificador de Circulação de junho de 2012, publicado
no www.ivibrasil.org.br.
709
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
sobre o jornalismo: a Teoria do Espelho. O conceito desta teoria
deixa de considerar várias questões. “
j
como um comunicador sem interesses específicos a defender e
que o desviam de sua missão de informar, procurar a verdade,
c
qu c
c u,
qu
” (T qu , 2005,
47).
Ao fazer o resgate das teorias do jornalismo, Traquina
apresenta uma das definições sobre o que era a Teoria do
Espelho, mostrando o quanto a explicação é insuficiente para
englobar aspectos de uma atividade tão complexa quanto à da
comunicação. Vários estudos consideram a teoria do espelho
impossível de ser aplicada, pois deixa de considerar aspectos
pessoais decorrentes da percepção de cada jornalista que,
inevitavelmente, interferem na hora de relatar o acontecimento,
a influência dos interesses dos meios de comunicação para o
qual trabalham, e até mesmo as condições de produção das
notícias.
Nas instruções gerais do Manual de Redação e Estilo do
Jornal O Estado de São Paulo, Eduardo Martins apresenta nos
itens 20 e 21 o que esperasse com o conceito de objetividade.
Faça textos imparciais e objetivos. Não
exponha opiniões, mas fatos, para que o
leitor tire deles as próprias conclusões. Em
nenhuma hipótese se admitem textos como:
Demonstrando mais uma vez seu caráter
volúvel, o deputado Antônio de Almeida
mudou novamente de partido. Seja direto: O
deputado Antônio de Almeida deixou ontem
o PMT e entrou para o PXN. É a terceira vez
em um ano que muda de partido. O caráter
volúvel do deputado ficará claro pela
simples menção do que ocorreu. Lembre-se
710
ANAIS - 2013
de que o jornal expõe diariamente suas
opiniões nos editoriais, dispensando
comentários
no
material
noticioso.
(MARTINS)
Quando a busca pela objetividade é comparada à
imparcialidade e ao fato de o jornalista não emitir opinião, as
estratégias para construção do discurso e, consequentemente,
para obtenção do efeito de realidade, acabam sendo ignoradas.
Até mesmo os manuais (outros adotam conceitos semelhantes)
buscam construir um efeito do parecer-ser real dos textos
jornalísticos. Os jornalistas, independente do meio de
comunicação onde atuam, precisam fazer escolhas e
julgamentos, algo que parece ter sido esquecido nos manuais.
Outro ponto importante a ser considerado nas notícias
refere-se à ideologia, já mencionada anteriormente, e sua relação
direta com a possibilidade de manipulação das pessoas que já
estão influenciadas pelos conceitos e conhecimentos obtidos da
sociedade onde vivem, a respeito de determinados fatos. Neste
artigo, a referência será em relação ao poder dominante e como
a reportagem visa atender aos interesses do capitalismo,
mostrando certas atitudes como único caminho para obter o
sucesso profissional. Conforme James Lull, a ideologia refere-se
geralmente à relação entre informação e poder social em
contextos políticos e econômicos, mostrando ainda como esses
grupos podem utilizar-se da manipulação para manterem-se
como dominantes.
Neste sentido, aqueles que possuem poder
político e econômico na sociedade
defendem, através de uma quantidade de
canais, formas de pensamentos selecionadas.
A crescente manipulação da informação e
711
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
do pensamento popular constrói uma
poderosa ideologia dominante que ajuda a
sustentar os interesses materiais e culturais
de seus criadores. (LULL, 1995, p. 20).
Tendo em vista tais conceitos de objetividade e também
de ideologia, foi feita a opção por analisar as estratégias
utilizadas pela Revista Veja na reportagem que trata das
carreiras das mulheres. Não se trata de afirmar se as dicas de
especialistas são verdadeiras ou não, mas de analisar os recursos
jornalísticos utilizados para buscar um sentido mais próximo
para conquistar esta veridicção.
2. O caminho para o sucesso
Para analisar a trajetória das mulheres que conquistaram
os cargos de chefia em grandes empresas e, principalmente, o
percurso gerativo de sentido aplicado na reportagem, será
empregada a sintaxe narrativa da semiótica francesa. Também
nesta etapa, será analisada a tentativa do enunciador (no caso o
repórter, que também pode ser avaliado pelo ponto de vista da
Revista Veja) em convencer o leitor de que as mulheres já se
igualaram aos homens no mercado de trabalho.
A semiótica pode ser utilizada para analisar diferentes
tipos de textos. O primeiro passo é determinar o objeto de
u
Of c é
c
ú
“P
c
u
sentido do texto, a semiótica concebe o seu plano do conteúdo
b f
u
cu g
” (B
, 2005, 13) N
percurso são estabelecidas três etapas: fundamental (significação
como oposição semântica), narrativa e discursiva.
No nível fundamental temos a oposição de mulheres x
homens ou sucesso x fracasso, hipóteses apresentadas seguindo
712
ANAIS - 2013
o viés ideológico da Revista Veja. A análise empregada neste
artigo começa na sintaxe narrativa, utilizando um sujeito que
está em relação de conjunção ou disjunção com um objeto. O
percurso narrativo é composto de quatro fases: competência,
perfórmance, manipulação e sanção.
No primeiro programa narrativo, o sujeito 1 analisado
são as mulheres em busca do Objeto Valor que é conquistar o
sucesso na carreira. Para atingir este objetivo, elas utilizam um
enunciado de fazer, buscando uma transformação para alcançar
o sucesso profissional.
Na competência, as mulheres vão realizar o papel central
da narrativa, pois estão dotadas de um poder ou saber fazer para
ocorrer a transformação de estado. Nesta etapa, elas buscam
estado de conjunção com o Objeto Valor, que é o sucesso na
carreira. É importante esclarecer que, nesta análise, a referência
é feita às mulheres de um modo geral, aquelas para qual se
destina a reportagem, as leitoras, e não às entrevistadas
(presidentes e chefonas) que prestaram depoimentos nas páginas
da revista.
A reportagem relata que antes as mulheres estavam em
estado de disjunção com este o objeto valor sucesso na carreira,
fato que a reportagem pretende mostrar como a principal
mudança do sujeito, conforme inferem os trechos abaixo:
Em quinze anos, a revolução foi total.
Na década de 90, as mulheres ainda
representavam 44,5% da força de
trabalho. Poucas ocupavam cargos de
presidência,
vice-presidência
e
diretoria.
As áreas estratégicas das companhias
ainda eram dominadas pelos homens.
713
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Essa realidade começa a ser transformada quando as
mulheres adquirem competências para transformar essa
realidade, favorecidas pela necessidade do mercado de trabalho.
No Brasil, as mulheres são maioria nas
universidades e nas forças de trabalho.
A economia em expansão e ainda
carente de mão de obra qualificada é
outra razão para a existência, no Brasil,
de uma proporção maior de mulheres
em cargos de liderança em relação aos
mercados ricos.
Quando as mulheres conquistam o emprego, o programa
narrativo passa para a etapa da performance, ou seja, quando o
sujeito age para alcançar os resultados esperados. Nesta etapa, o
enunciador esforça-se para tentar revelar aos leitores que as
diferenças entre homens e mulheres acabaram.
A era em que as mulheres buscavam se
igualar aos homens no trabalho acabou.
Em pouco tempo, essa ideia só existirá
na cabeça de antiquadas feministas e de
alguns homens.
Uma pesquisa recente com diretores e
presidentes de empresas de todo o
mundo revelou que, das dezesseis
competências cruciais para exercer uma
função de comando, elas sobressaem em
doze.
714
ANAIS - 2013
Na etapa da manipulação, a análise apresenta um
programa narrativo diferenciado. O sujeito 2, representado pelo
enunciador (o autor da reportagem e a visão capitalista da
Revista Veja), tenta convencer o sujeito 1, as mulheres, de que
elas estão tendo mais espaço no mercado de trabalho. Conforme
Diana Barros (2005, p. 31), o destinador (autor da manipulação)
doa ao destinatário-sujeito os valores modais do querer-fazer, do
dever-fazer, do saber-fazer e do poder-fazer.
Com base em depoimentos de especialistas e pesquisa, o
enunciador utiliza-se de um fazer-persuasivo para convencer as
mulheres de que seu espaço no mercado de trabalho será mais
facilmente garantido, conforme demonstrado nos trechos a
seguir:
Um estudo da consultoria inglesa Grant
Thorton revela que 27% dos cargos de
liderança no Brasil são ocupados por
mulheres.
Das
dezesseis
competências
consideradas cruciais para exercer uma
função de comando, as mulheres
costumam sobressair em doze, de
acordo com uma pesquisa feita pela
consultoria americana Zenger Folkaman
com 7.280 diretores e presidentes de
empresas em todo o mundo, e publicada
pela revista Havard Business Review.
“Quanto mais exemplos femininos em
funções de liderança houver, mais
seguras as mulheres se sentirão em
busca de um caminho parecido”, diz a
economista suíça Iris Bohnet, da
Universidade de Havard.
715
Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento
Os números da pesquisa, depoimento de pesquisadores,
conforme demonstram os exemplos citados acima, juntamente
com as entrevistas de oito mulheres bem sucedidas, auxiliam na
chamada manipulação por tentação. A semiótica francesa prevê
quatro classes de manipulação: a provocação, a sedução, a
tentação e a intimidação.
Diana Barros (2005, p. 31) exemplifica as tipologias que
compõem a fase da manipulação: Tentação: quando o
manipulador oferece uma recompensa; Intimidação: quando o
manipulador faz ameaças; Provocação: quando o manipular
incita uma conduta negativa para tentar convencer; Sedução:
quando o manipular se manifesta de forma positiva para
convencer o manipulado.
No caso do texto que faz parte da análise deste artigo, a
tentação ocorre quando o enunciador tenta convencer o leitor de
que seguindo as recomendações dos especialistas e
acompanhando passos semelhantes aos das mulheres que
prestaram depoimento conseguirá o sucesso profissional. As
dificuldades sociais e até mesmo barreiras que as mulheres
ainda encontram em muitas empresas parecem ter sido
“ qu c
”
g
Por último, o percurso narrativo chega à sanção. Neste
caso, a reportagem tem objetivo de levar o sujeito leitor a crer
que ela será positiva em decorrência das mudanças no mercado
de trabalho nos últimos anos, maior escolaridade das mulheres e
com base nos exemplos das presidentes de grandes companhias.
A revista tenta ensinar a fórmula do sucesso profissional que,
caso não seja devidamente seguida, resultará em uma sanção
negativa: a mulher não alcançará o êxito na profissão.
3. Contradições
716
ANAIS - 2013
Resta saber se baseado em tais conceitos e construção do
discurso, a reportagem ati

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