anais 2012
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anais 2012
ISSN: VI ENCONTRO NACIONAL DO GRUPO DE ESTUDOS DE LINGUAGEM DO CENTROOESTE (GELCO) IV COLÓQUIO REGIONAL NO BRASIL DA ASSOCIAÇÃO LATINOAMERICANA DE ESTUDOS DO DISCURSO (ALED) ESTUDOS DE LINGUAGEM: PESQUISA, ENSINO E CONHECIMENTO Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Campo Grande (MS) 23 a 26 de Outubro de 2012 Realização: Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 2 ANAIS - 2013 ISSN: 2176-1256 ANAIS Junho – 2013 Apoio: 3 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE GROSSO DO SUL FEDERAL DE MATO Cidade Universitária n – CEP: 79070-900 MS Reitora: Profª. Drª. Célia Maria Silva Correa Oliveira Vice-reitor: Prof. Dr. João Ricardo Figueiras Tognini Pró-reitores: PRAD – Me. Claodinardo Fragoso da Silva PREAE – Prof. Dr. Valdir Souza Ferreira PREG – Prof. Dr. Henrique Mongelli PROPLAN – Profª. Drª. Marize Lopes Pereira Peres PROPP – Prof. Dr. Dercir Pedro de Oliveira PROINFRA – Prof. Dr. Julio Cesar Gonçalves PROGEP – Prof. Dr. Robert Schiaveto de Souza CCHS – Centro de Ciências Humanas e Sociais Diretora – Profª Drª. Élcia Esnarriaga de Arruda PPGMEL – Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens. Coordenador – Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins 4 ANAIS - 2013 VI ENCONTRO NACIONAL DO GRUPO DE ESTUDOS DE LINGUAGEM DO CENTRO-OESTE (GELCO) IV COLÓQUIO REGIONAL NO BRASIL DA ASSOCIAÇÃO LATINOAMERICANA DE ESTUDOS DO DISCURSO (ALED) ESTUDOS DE LINGUAGEM: PESQUISA, ENSINO E CONHECIMENTO ANAIS Junho – 2013. 5 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DO GELCO E IV COLÓQUIO REGIONAL DA ALED Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ISSN: 2176-1256 GELCO (BIÊNIO 2010 – 2012) Presidente: Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins (UFMS/CCHS) Vice-presidente: Profª. Drª. Solange Maria de Barros (UNEMAT) Secretária (titular): Profª. Drª. Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS/CPTL) Secretária (suplente): Profª. Drª. Claudete Cameschi de Souza (UFMS/CPAQ) Tesoureiro (titular): Prof. Dr. Wagner Corsino Enedino (UFMS/CPTL) Tesoureira (suplente): Profª. Drª. Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (UFMS/CPTL) Conselheiros: Profª. Drª. Maria Luceli Faria Batistote (UFMS/CCHS) Profª Ms. Ana Carolina Nunes da Cunha Vilela-Ardenghi (UFMS/CCHS) Prof. Dr. Dercir Pedro de Oliveira (UFMS/PROPP) 6 ANAIS - 2013 ALED (BIÊNIO 2011 – 2013) Presidente Neyla Graciela Pardo Vice-presidente Denize Elena Garcia da Silva Secretário Teresa Oteiza CFO Maria Cristina Azqueta Delegado regional no Brasil Wander Emediato Realização: GELCO – Grupo de Estudos de Linguagem do Centro-Oeste ALED – Associação Latinoamericana de Estudos do Discurso 7 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Apresentação De 23 a 26 de outubro de 2012, no Câmpus da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande (MS), realizou-se o VI Encontro Nacional do Grupo de Estudos de Linguagem da Região Centro-Oeste – GELCO, cuja organização orbitou em torno dos seguintes objetivos: incentivar o estudo, o ensino e a pesquisa no âmbito das áreas de Linguística, Literatura e Línguas, na região Centro-Oeste; promover a divulgação e o intercâmbio de trabalhos científicos produzidos nas áreas de Linguística e Literatura, realizados por estudiosos integrados à região Centro-Oeste; promover o intercâmbio entre os trabalhos locais e aqueles realizados por pesquisadores advindos de outras regiões do país; e realizar atividades que permitam a professores e pesquisadores o contato com desdobramentos teóricos recentes nas áreas de Linguística e Literatura. Nesse sentido, o evento cumpriu com aquilo a que se propusera, posto que registrou a participação de pesquisadores advindos de instituições de todos os estados da Região CentroOeste (UFMS, UFGD, UEMS, IFMS, UnB, UFG, UFMT, UNEMAT, UCDB), bem como de unidades federativas do Nordeste (UECE, UEMA, UFRPE), do Norte (UNIR, UFT), do Sudeste (USP, UFSCAR, UNESP, UNICAMP, UNISO, UNICSUL,UNIP, UNITAU, UNIBERO, UFMG, UFU, PUC, FMU, FACCAMP) e do Sul (UEL, UEM, UEPG, UNESPR, UFSC, UNIPAMPA, UFFS), o que permitiu, de fato, a discussão de questões atinentes às diversas áreas dos estudos de linguagens, além de justificar o caráter nacional do Encontro, o qual contou, ainda, com a presença de membros da Associação Latinoamericana dos Estudos do Discurso - ALED, entidade que se vinculou ao GELCO para, na oportunidade, realizar o seu IV Colóquio Regional. 8 ANAIS - 2013 Durante os quatro dias de sua realização, o Encontro registrou a realização de duas conferências, sete mesasredondas, 11 minicursos, 35 Grupos Temáticos, que abrigaram cerca de 250 comunicações individuais, e mais de 60 painéis expostos. Tendo em vista tal panorama quantitativo de grande relevância, é preciso considerar que as discussões empreendidas em cada um desses espaços contemplaram pontos atuais das pesquisas que são feitas no país sob as diversas perspectivas que se apresentam para os estudos linguísticos e literários. Com base na amplitude dos temas trazidos à baila ao longo do evento, bem como na importância das discussões efetuadas nas atividades várias que ele abrigou, a comissão organizadora sabe que colocar tais conhecimentos à disposição de um número muito maior de interessados é um dever a que não pode se furtar, razão pela qual apresenta esta publicação dos Anais do VI Encontro Nacional do GELCO, cujos textos oferecem uma visão de conjunto das discussões que se realizaram durante o evento. Que a leitura seja produtiva para tantos quantos tiverem acesso a este material, suscitando reflexões e debates em um campo sempre tão fecundo e motivador como é o da seara linguageira, é o desejo maior dos envolvidos nesta tarefa. E que venham novos encontros do GELCO... A Comissão Organizadora 9 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Sumário Programação geral .............................................................................. 14 Trabalhos ............................................................................................ 20 A aldeia urbana marçal de souza: algumas reflexões subalternas .. 21 A construção do lugar em que se vive: análise semiótica de dois textos poéticos infantis ................................................................... 43 A deficiência na infância: a formação dos discursos e formas de controle ........................................................................................... 63 A linguística aplicada ao teatro no ensino de inglês: do fragmento à uma hiper-realidade ...................................................................... 100 A temática indígena: aspecto social na poética emmanuelina ...... 118 A trajetória da leitura: curiosidades e funções sociais .................. 144 í “ f ”, “ gã” “ g A mais bela história de Adeodata , de Rosane Almeida ................................................ 167 A voz oficial no caderno especial - festival de inverno de Bonito do j “O E M ”................................................................... 199 Análise crítica do discurso: expressões multimodais e contextos 226 á cu c b u j í c : O “c u y” Mato Grosso do Sul ...................................................................... 254 As condições de produção do discurso do professor de Língua P ugu f g c f u “g á c ” “ gu ” ................................................................................... 268 As crônicas de Alice Vaz de Melo: o olhar individual de uma memória coletiva .......................................................................... 291 Aspectos sociolinguísticos das vogais médias no português falado numa escola de fronteira Brasil-Paraguai ..................................... 311 10 ANAIS - 2013 Breve história da EJA: uma abordagem sociolinguística ............. 337 Brô MC´s: reflexos da identidade indígena na música ................. 358 Clarice em cena: silêncio, traição e morte em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos ................................................................ 379 Confissões na poesia de Arlinda Pessoa Morbeck ....................... 404 Contribuições iniciais para elaborar o Atlas Toponímico Matogrossense ...................................................................................... 419 Da palavra à imagem: uma discussão sobre a categoria temporal na adaptação de O tempo e o vento ................................................... 441 Dialogismo em foco: reflexões sobre o material didático produzido para Educação a Distância ............................................................ 467 Discurso sobre Vaidade Masculina no século XXI ...................... 493 Educação e inserção profissional de jovens e adultos com deficiência: os discursos entre escola e trabalho .......................... 520 Ensino de língua materna e a heterogeneidade da/na linguagem . 543 Entre a análise de discurso e a análise das relações de poder ....... 563 Gêneros digitais no ensino de linguagens: a interdiscursividade nas charges digitais de Maurício Ricardo e nas notícias políticas do blog Radar on-line ........................................................................ 585 Ideologia e crença pessoal nas decisões jurídicas: as marcas da dialética. ....................................................................................... 618 Manoel de Barros, o criançamento e a desconstrução: considerações polifônicas .................................................................................... 640 Mediadores de leitura: um estudo do acervo PNBE 2011 ............ 670 Memórias de leitura: uma história de formação do leitor no Brasil ...................................................................................................... 690 11 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Mulheres executivas: depoimentos como efeito de realidade na reportagem .................................................................................... 705 Nova York de Will Eisner: a cidade contada em fragmentos....... 728 O discurso da obrigatoriedade do ensino de Filosofia no Ensino Médio............................................................................................ 750 O escândalo como construção do fato noticioso em jornais paulistanos .................................................................................... 776 O indígena no século xxi: representações e estereótipos .............. 808 O lugar da expressão subjetiva na poesia de Eduardo Martins .... 825 O melodrama no picadeiro da dramaturgia pliniana .................... 846 O português falado na zona rural de MS – aspectos crioulizantes da língua afro- brasileira. .................................................................. 870 O referencial foucaultiano na pesquisa: análise das dissertações e teses produzidas no PPGEDU/UFMS .......................................... 895 O subalterno mostra a cara ........................................................... 924 Produção Discursiva e Regimes de Verdades: proposições de professores sobre a escolarização em Unidades Prisionais .... 944 Romero Britto, consumo e mercado: uma reflexão a partir das teorias culturais contemporâneas.................................................. 963 Semiótica, leitura e temática indígena: uma proposta para a aplicação em sala de aula ............................................................. 980 Subalternas crônicas clariceanas ................................................ 1002 Tango do bidê – Análise semiótica do humor e da crítica à violência doméstica e ao machismo na canção paulistana da década de 1980 .................................................................................................... 1020 12 ANAIS - 2013 Tematização e figurativização e suas correlações com o plano de expressão em A invenção de Hugo Cabret 3D ........................... 1043 T uçã P fác E çã Lí gu I g “As Palavras e as Coisas” M ch F uc u ................................................ 1061 13 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Programação geral 14 ANAIS - 2013 TERÇA-FEIRA – 23 DE OUTUBRO DE 2012 LOCAL: Auditório da Faculdade Estácio de Sá 19:00h CERIMÔNIA DE ABERTURA Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins Presidente do GELCO Prof.ª Dr.ª Denize Elena Garcia da Silva Vice-Presidente da ALED Prof.ª Dr.ª Célia Maria Correa de Oliveira Reitora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Prof. Dr. Dercir Pedro de Oliveira Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Prof.ª Dr.ª Élcia Esnarriaga de Arruda Diretora do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Prof.ª Me. Dagmar Tavares Viana de Queiroz Diretora Geral da Faculdade Estácio de Sá 19:30h ATIVIDADE CULTURAL Apresentação do Grupo Vocal Maria Bonita 20:00h CONFERÊNCIA DE ABERTURA (LITERATURA) Prof.ª Dr.ª Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan (UNESP-Ar) A quem interessa a polêmica entre as teorias e a literatura? 21:30h COQUETEL 15 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento QUARTA-FEIRA – 24 DE OUTUBRO DE 2012 LOCAL: Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCHS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS 7:30h – Entrega de Material e Últimas Inscrições 8:00h – 11:00h – Minicursos 13:30h – 15:30h – Sessões dos Grupos Temáticos 16:00h – 17:30h – Mesas-redondas 18:00h – Sessão de Lançamento de Livros QUINTA FEIRA – 25 DE OUTUBRO DE 2012 LOCAL: Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCHS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS 8:00h – 11:00h – Minicursos 13:30h – 15:30h – Sessões dos Grupos Temáticos 16:00h – 17:30h – Mesas-redondas 18:00h – Assembleia Geral do GELCO (Eleição de Nova Diretoria) SEXTA-FEIRA – 26 DE OUTUBRO DE 2012 LOCAL: Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCHS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS 9:00h – 11:00 – Exposição de Painéis 11:10h – 11:40h – Espaço ALED 13:30h – 15h30h – Sessões dos Grupos Temáticos 16:00h – 17h30 – Conferência de Encerramento (Linguística): Prof.ª Dr.ª Maria José Coracini (UNICAMP) Subjetividade e leitura: (in)scrição de si e do outro 16 ANAIS - 2013 MINICURSOS (24 e 25 de outubro) 1. Transposição didática de gêneros: do objeto às dimensões ensináveis - Prof. Dr. Adair Vieira Gonçalves (UFGD) 2. Michel Foucault e o processo de subjetivação - Prof. Dr. Conrado Neves Sathler (UFGD) 3. Semiótica tensiva: princípios básicos - Prof. Dr. Ivã Carlos Lopes (USP) 4. Discurso, mídia e política: problemáticas contemporâneas Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas (UFSCAR) 5. Transgredindo os gêneros do discurso em sala de aula: leitura e produção – Prof.ª Dr.ª Gláucia Muniz Proença Lara (UFMG) e Prof.ª Dr.ª Aline Saddi Chaves (UEMS) 6. Educação bilingue no contexto indígena - Profª. Dr.ª Daniele Marcelle Granier (UnB) e Prof. Dr. Sinval Martins de Souza Filho(UFG) 7. A sociolinguística e o ensino da língua materna - Prof. Dr. José Leonildo Lima (UNEMAT) 8. Retórica, argumentação e discurso - Prof. Dr. Wander Emediato (UFMG) 9. Lexicografia e ensino: aspectos teóricos e práticos - Prof. Dr. Auri Claudionei Matos Frübel (UFMS) e Prof.ª Me. Isabel Cristina Ratund (UFMS) 10. Toponímia: tendências teórico-metodológicas – Prof.ª Dr.ª 17 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Aparecida Negri Isquerdo (UFMS) e Prof.ª Dr.ª Ana Paula Tribesse Patrício Dargel (UEMS) 11. Poesia brasileira contemporânea I - Prof. Dr. Daniel Abrão (UEMS) e Poesia brasileira contemporânea II – Prof.ª Dr.ª Elaine Cristina Cintra (UFU) MESAS-REDONDAS (24 de outubro) Questões de Análise do Discurso Prof. Dr. Wander Emediato (UFMG) Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas (UFSCAR) Prof.ª Dr.ª Maria Luceli Faria Batistote (UFMS) Pesquisas geolinguísticas no Brasil Central Prof.ª Dr.ª Vanderci de Andrade Aguilera (UEL) Prof. Dr. José Leonildo Lima (UNEMAT) Prof.ª Dr.ª Aparecida Negri Isquerdo (UFMS) Literatura e teatro: diálogos constantes Prof. Dr. Alexandre Flory (UEM) Prof. Dr. André Luís Gomes (UnB) Prof. Dr. Wagner Corsino (UFMS) Literatura e política Prof. Dr. Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT) Prof.ª Dr.ª Elaine Cristina Cintra (UFU) Prof. Dr. José Alonso Torres Freire (UFMS) 18 ANAIS - 2013 MESAS-REDONDAS (25 de outubro) Colonialismo e pós-colonialismo em literaturas de língua portuguesa Prof. Dr. José Antônio de Souza (UEMS) Prof.ª Dr.ª Susylene Dias de Araújo (UEMS) Prof.ª Dr.ª Rosana Cristina Zanelatto dos Santos (UFMS) Funcionalismo e ensino: gramaticalização de marcas de subjetividade Prof.ª Dr.ª Denize Elena Garcia da Silva (UnB) Prof.ª Dr.ª Vânia Casseb-Galvão (UFG) Prof.ª Dr.ª Rita de Cássia Ap. Pacheco Limberti (UFGD) Pesquisas do centro-oeste sobre línguas indígenas Prof. Dr. Dioney Moreira (UnB) Prof. Dr. Sinval Martins de Souza Filho (UFG) Prof.ª Dr.ª Onilda Sanches Nincao (UFMS) 19 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Trabalhos 20 ANAIS - 2013 A aldeia urbana marçal de souza: algumas reflexões subalternas Alessandro Fagundes MATOS1 Edgar Cézar NOLASCO2 RESUMO: A subalternidade é um problema de representação que envolve a questão de quem tem o poder e quem não o tem. O não direito à fala, pois se fala já deixa de ser, é que caracteriza o indvíduo como subalterno. Percebemos aqui uma questão que há muito é discutida na academia. Com base nessas postulações já levantadas, nota-se que é preciso delimitar o locus, o lugar em que esse indivíduo se encontra para, aí sim, fazer uma reflexão sobre a questão social intitulada subalternidade. No Estado de Mato Grosso do Sul, precisamente em sua capital, Campo Grande, encontramos, e podemos pensar como o melhor exemplo de sujeito subalterno, o indígena, especificamente o que vive na aldeia urbana Marçal de Souza. Este trabalho visa refletir sobre algumas considerações dessa condição subalterna do indígena alocado em uma aldeia urbana. Tomaremos como base para nossa discussão os postulados dos estudos subalternos e pós-coloniais. PALAVRAS-CHAVE: Aldeia Urbana; Indígena; Subalternidade. De tanto crescer pelo mundo afora, a cidade global adquire características de muitos lugares. As marcas de outros povos, diferentes culturas, distintos modos de ser podem 1 Alessandro Fagundes Matos é mestrando na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS - E-mail: [email protected] 2 Edgar Cézar Nolasco é Professor Doutor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – E-mail: [email protected] 21 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento concentrar-se e conviver no mesmo lugar, como síntese de todo o mundo. A cidade pode ser um caleidoscópio de padrões e valores culturais, línguas e dialetos, religiões e seitas, modos de vestir e alimentar, etnias e raças, problemas e dilemas, ideologias e utopias. Octávio Ianni, A era do globalismo, p. 58 Caleidoscópio. Na epígrafe apresentada a cidade é metaforizada como um conjunto de objetos, cores, formas, que produzem imagens em constante mutação. A imagem que antes tinha a cidade, de apenas ser um arranha-céu de cimento, com pessoas atravessando ruas frenéticas a todo momento, onde a vida realmente acontecia já não é suficiente. A cidade é muito mais que isso, ela sofreu e continuará sofrendo mutações. É uma mistura de culturas, religiões, fantasias, sonhos, etnias e infindáveis mesclas. Encontramos nesse lugar classificado como urbano: brancos, negros, pardos, indígenas, entre outros; todos vivendo no mesmo espaço, buscando o seu lugar, disseminando a sua cultura, tendo trocas - seja consciente ou não - em maior ou menor escala. Em meio a tantas trocas, quem hoje em dia se questiona como a mandioca foi parar em seu prato? De onde veio o estilo musical intitulado rap que está presente tanto na periferia quanto no centro, tratando de problemáticas que estão no seio de cada classe social? Muito difícil se perguntar sobre isso, mas a verdade é que a mandioca, o rap, e outras coisas mais, estão presentes na vida daqueles que nela vivem. 22 ANAIS - 2013 Já que a cidade é esse lugar em que várias etnias se encontram, talvez a imagem que ainda traga certo tipo de espanto seja a do indígena. Como assim? O indivíduo da floresta compartilhando o mesmo espaço com o não indígena e estabelecendo uma relação de troca – por mais que essa seja de forma desproporcional, pois o indígena é quem mais se apropria de costumes de uma cultura que não é sua. Algo parece estar fora do lugar – muitos pensam – mas não, ele está na cidade e aqui procura o seu espaço. Por que o seu espaço na cidade? E qu qu c u ,“ g ” órgãos específicos, regidos por um estatuto, esses sujeitos ainda c u “ g ” u qu áreas, enfadados em lutas por terras, cheios de promessas, crimes não resolvidos ou que demoram anos para serem concluídos; exemplo pode ser o do líder indígena Marçal de Souza que foi assassinado na década de 80 e o caso só teve um desfecho quase dez anos depois. Essa mudança de lugar, das reservas para a cidade, é um meio, penso, de diminuir, ou tentar pelo menos, essas gritantes diferenças do indígena para com o branco. Por mais que o medo, por parte dos mais velhos, do deslocamento dos indígenas para a cidade acarrete em uma perda de terras ainda maior, os mais jovens continuam saindo do lugar de origem para tentarem a vida na urbe. Mas será que a simples atitude de se deslocar é suficiente para diminuir as diferenças e ter voz? Acredito que a resposta não é tão animadora. O sujeito indígena, não respeitado desde o “ c b ” B , ã z, ã h ó –o pouco que sabemos é contado pelo branco. É subalterno, ou seja, a sua enunciação não é capaz de abalar os discursos do 23 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento poder; se assim conseguisse, já não o seria. (BEVERLEY, 2004) Ser subalterno não é apenas ser classificado como tal, é não ter direito ao grito, não produzir práticas discursivas, não interagir discursivamente, condenado todos os dias pelo outro por antecipação, até mesmo a academia o condena - não de maneira literal (será?) - o condena quando não abre espaço para essa representação. (NOLASCO, 2010) Viver em uma constante desigualdade fez Marçal proferir, em 1950, num discurso, em um culto evangélico, palavras a respeito da esperança. Apesar do tempo transcorrido, suas letras continuam vivas. A fala foi comentada por Schaden. ...assisti a uma dessas reuniões dirigidas por Marçal de Souza, à qual compareceram dezenas de índios, não só Nandeva e Kaiowá, como também alguns dos Terena O g çã “ ç ” “ é ç , para os índios não há mais o que esperar neste mundo. Daqui a uns cinquenta anos estarão reduzidos a uns restos miseráveis. Esperança só no Além, onde se medirão a todos com igual medida, pobres e ricos, ignorantes e instruídos. (TETILA, 1994, 21) Será que o subalterno, em especial o indígena, só será considerado e tratado nas mesmas proporções igualitárias quando chegar ao céu? Se o líder, quase que em palavras proféticas, mencionou que estariam reduzidos a restos miseráveis, o que se pensar para mais daqui cinquenta anos? Serão restos miseráveis na cidade ou em suas reservas? Se daqui a cinquenta anos a pergunta ainda estiver latente e for pertinente à discussão, quem sabe a resposta seja precisa. No atual 24 ANAIS - 2013 momento, e se persistir o modelo de sociedade – acredito que não mude –, a relação de subordinação e dominação continuará. O crítico subalternista latino-americano John Beverley defende que a lógica das lutas sociais se fundamenta na dominação de um que acarreta na subordinação do outro e é justamente por causa da caracterização e modelo de sociedade, relação dominante/subalterno, que as identidades subalternas são reforçadas. (NOLASCO, 2010) Enquanto o tempo não passa, me atentarei ao presente. O indígena está na cidade. Se só em restos mortais eu não sei, mas está reduzido, e muito. Certa vez uma professora relatou a seguinte experiência: Uma criança a procura em pranto. Questionada sobre o que aconteceu, não conseguia falar. Depois de acalmada e já podendo expor o porquê daquele estado emocional abalado, disse que uma outra havia chamado ela de índio. O que espanta logo em seguida, é que a menina intitulada de índio pelo colega realmente pertencia a uma etnia indígena. Diante do acontecido, parece que ser índio para alguns tomou a forma de um problema, e já se nota um conflito de identidade; a g çã u ó u O “x” qu ã b á c apresentada não é ser índio, a maior dificuldade que esses povos enfrentam, independente da etnia que pertence, é não ter representatividade, é viverem condenados ao silêncio, a uma transculturação desnivelada que pende para uma desproporção avassaladora, de não ter espaço nem mesmo na cidade que é o lugar da diferença, do caleidoscópio de várias cores e formas. E qu f z qu ç qu é qu “ c h ” e ao mesmo tempo o exclui? Antes de comentar sobre a aldeia urbana Marçal de Souza, locus da proposta reflexiva aqui apresentada sob a perspectiva da subalternidade, julgo interessante fazer, mesmo que de maneira breve, uma curta apresentação dos indígenas 25 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Terêna em solo brasileiro, embasada por Roberto Cardoso de Oliveira, em seu livro Do índio ao bugre: o processo de assimilação dos Terêna. Darei ênfase à etnia Terêna por ser a maioria residente da aldeia em questão. Informo que os estudos foram feitos na década de cinquenta, na região sul do então estado de Mato Grosso. A pesquisa, de caráter sociológica, realizada por Oliveira, menciona que a etnia Terêna é um subgrupo dos Guaná e que nos mea Aos poucos, em um processo lento, as ondas humanas, ou seja, a migração da sociedade nacional para os lugares em que estavam estabelecidas as aldeias, ou próximo delas, influenciou o engajamento dessas populações a uma relação frequente que permitirá trocas substanciais, propiciando, assim, uma reconfiguração, se é que assim se pode dizer, cultural. Mesmo os Terêna sendo, em todo decorrer de sua história, fechados, eram frequentemente procurados pelos fazendeiros por serem exímios vaqueiros e bons agricultores. Além de suas habilidades com o gado e a terra, eram acionados porque se contentavam com remunerações baixas para simplesmente se vestirem, se alimentarem e satisfazerem os seus vícios. (OLIVEIRA, 1976). Algo que merece ser ressaltado, e que pode fundamentar um dos principais motivos para sua locação na cidade, é que mesmo possuindo algumas terras, os ameríndios não conseguiam tirar dela o sustento necessário para suas famílias, precisando recorrer a serviços, mesmo que em caráter exploratório, para complementar a renda. Dá-se início a migração para espaços urbanos. O que começou com uniões interétnicas e intertribais, e que mais tarde acarretaria em um processo de destribalização de muitos indígenas, teve como consequência o desapego às tradições dos grupos étnicos envolvidos nesses matrimônios. No que tange à destribalização, o efeito foi a constante perda de 26 ANAIS - 2013 terras por parte dos indígenas. O prejuízo da perda de solo fomentou a proximidade com os fazendeiros, pois, os ameríndios, precisavam levantar o sustento para suas famílias deslocadas. Nessa situação, mesmo que algumas indígenas ainda possuíssem pequenos espaços para o plantio, o subsídio alimentar produzido não era suficiente, tendo que recorrer a serviços, muitas vezes, de regime exploratório, já que eram constantemente ludibriados por aqueles que os empregavam. Além desses fatores que contribuíram, mais tarde, para a mudança do campo para cidade, pode-se notar um processo de transculturação por causa do frequente contato com as agências de mudança cultural (Posto do Serviço de Proteção ao Índio localizado nas aldeias, escolas, igrejas católicas e protestantes), com os fazendeiros e a população urbana. Inicialmente, esses grupos destribalizados, ou até mesmo aqueles que mantinham uma proximidade com territórios urbanos, mudaram-se para as cidades de Miranda e Aquidauana. A atitude de ir para a urbe ganha força, e na década de 90 há a implantação da aldeia urbana Marçal de Souza no município de Campo Grande, já capital do Estado de Mato Grosso do Sul. No que concerne à aldeia Marçal de Souza, apresento que após travar lutas para não perder a terra, que fora doada a índios da etnia Terêna, é constituída a aldeia que abriga não somente a etnia supracitada, mas também de outras, assim, como ultimamente tem sido aceito em seu espaço pessoas que não pertencem à etnia alguma, por conta de uniões matrimoniais. A relação entre cidade, seja letrada ou não, com o sujeito subalterno vai trazer mudanças significativas nesse indivíduo deslocado. O contato constante com a cultura do branco ocasiona uma ressignificação de valores, adaptação ao sistema cultural diferenciado, algo já notado nas relações interetnicas e intertribais, tendo que recriar o seu modo de vida, 27 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento se apropriando do discurso alheio para sua sobrevivência. Para os mais velhos que pertencem a qualquer etnia indígena, tal proximidade apresenta um risco a sua cultura, já que os mais jovens estabelecem um contato mais aberto, não tão apegado a tradições de seu determinado grupo, pois elas não perduraram mais em sua memória. Mas qual o papel da memória? Qual a necessidade de preservá-la? A memória tem uma função fixa que a conecta à tradição, é ela que faz o sujeito saber, ou pelo menos tenta, a sua origem, o lugar de onde veio, a sua história, mesmo sendo ela excluída dos discursos hegemônicos, e no caso do subalterno, o seu percurso histórico contado pelo outro; quando narrado. (ACHUGAR, 2006) Paralelamente, o esquecimento que acomete os indígenas presentes na cidade também é necessário para a nova necessidade estrutural. Após a proximidade com a cultura alheia, e passar pelo processo de entrelaçamento, se apropriar das marcas que estão do outro lado, as fissuras criadas precisam superadas, e nesse momento ocorre o esquecimento. É preciso dizer que o caminho do esquecimento é lento, assim como o resgate da memória também o é, tendo muitas vezes resultados nas gerações vindouras que já crescem c c “f u u ”, g u novo momento de resgate memorial e esquecimento marcado pelo seu tempo, sua história e realidade. Oliveira associa a apropriação de novos valores culturais com o conceito de assimilação. O que para ele era o ““processus” pelo qual um grupo étnico se incorpora noutro, perdendo sua peculiaridade cultural e sua identificação étnica ” (OLIVEIR , 1976) Ou j , cu u çã , qu á ideia de apenas recebimento e incorporação de uma cultura alheia, não estabelecendo um processo de troca e adota um perfil colonizador. Para a reflexão aqui proposta, o termo que se orienta em uma via apenas não é suficiente, sendo necessário 28 ANAIS - 2013 recorrer a outro, cunhado inicialmente pelo cubano Fernando Ortiz, vocábulo este que pretende abarcar e significar o processo de movimento constante do encontro de povos e suas culturas, constituindo trocas, mesmo que não sejam niveladas. Segundo Ortiz, o termo que melhor expressa a mudança contínua é transculturação e não a aculturação. Transculturação designa as fases do processo de transição de uma cultura a outra, já que este não consiste somente em adquirir uma cultura diferente, como sugere o sentido estreito do vocábulo anglo-saxão, aculturação, mais implica também necessariamente a perda ou desligamento de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de uma parcial desculturação, e, além disso, significa a consequente criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser denominados neoculturação. (...) No conjunto, o processo é uma transculturação e este vocábulo compreende todas as fases da trajetória. (ORTIZ, 1983, p.90) Um exemplo de troca, recebimento de algo oriundo de outra cultura, pode ser vista na imagem a seguir, extraída de uma matéria feita na Aldeia Urbana Marçal de Souza, pois, nela nota-se o antes, o cocal, uma provável tentativa de resgatar a identidade indígena tão fragilizada, que ao mesmo instante estabelece um contato, e faz uso, de um equipamento tecnológico que é presente na cultura do outro, da sociedade que não compartilha na mesma proporção de seus costumes.dos do século XVIII os grupos Guaná (Chanás, Choarana e Quainoconas, os outros três subgrupos) passam para as margens orientais do Paraguai, estabelecendo ocupação no lugar que hoje 29 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento é conhecido como Triângulo Mineiro. O relato desse grupo em solo brasileiro já é marcado pelo conflito pelas terras. No tempo aqui mencionado, os bandeirantes, com sua ânsia por domínio e exploração, levaram as fronteiras do Brasil até a bacia do P gu N í u c “ u ”, j uí espanhóis pela expansão do império, o indígena esteve sempre em meio ao fogo cruzado, sendo o mais prejudicado, envolvido ora por uns, ora por outros, brigando muitas vezes entre si; foi o mais espoliado de seus bens, terras e de sua gente. (OLIVEIRA, 1976) A respeito dos Terêna, subgrupo que tinha por habilidade o plantio, tem-se muito pouco relato por conta do seu contato mínimo com o branco e até mesmo com as outras etnias indígenas. Oliveira comenta que a bibliografia a seu respeito só começa com Castelnau, em 1844-45, portanto na metado do século passado. Encontramos ligeiras referências no século XVIII através de Sanches Lavrador, Azara e Aguirre, que não vão além de meras indicações sobre localização e estimativas censitárias. Já os séculos XVI e XVII nem sequer os mencionam. As Cartas Ânuas, por exemplo, tão férteis de informações sobre os muitos grupos chaquenhos, quase nada nos dizem sobre a situação dos Terênas no século XVII. E, sobre os Guaná, Schmidel e Cabeça de Vaca, de passagem pelo chaco paraguaio respectivamente em 1535-36 e 1543, limitam-se a umas poucas indicações, de menor importância, excetuando-se, naturalmente, a célebre proposição do primeiro, quando compara as relações 30 ANAIS - 2013 Guaná-Guaikurú com a subordinação existente, na época, entre senhores feudais e camponeses em sua pátria. (OLIVEIRA, 1976, p. 23) Como consequência do distanciamento entre os indígenas da etnia Terêna com as outras, e até mesmo com a sociedade nacional, ela se torna uma nação que procura conservar sua integridade cultural e os costumes herdados de seus antepassados. No decorrer da obra, salta aos olhos o zelo empregado à manutenção de seus valores e práticas culturais que permeava a etnia, mesmo quando os outros subgrupos Guaná já estabeleciam um contato mais corrente com outras etnias e a sociedade; podemos destacar a proximidade com pesquisadores e fazendeiros da região. Fato que tomou força após a Guerra do Paraguai e como fruto das uniões interétnicas e intertribais. Figura 1 Imagem extraída do vídeo http://www.youtube.com/watch?v=ryFw9MH3g2g 31 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A necessidade de reforçar, ou trazer à memória suas origens quando o indígena está inserido e estabelecendo relações c cu u “c z çã ”, c u g f c çã cultural e a base de sua identidade é afetada. Em se tratando da identidade desses grupos ameríndios, vê-se que ela se torna, como qualquer outra, uma celebração móvel, assumindo diferentes formas, sendo elas não definidas. (HALL, 1998). A mudança implica, às vezes, em uma identidade não resolvida, deixando-a com características que a conduzem ao declínio. Para melhor elucidar a questão levantada, apresento uma entrevista cedida pelo presidente do Conselho de Segurança Comunitário da Aldeia Marçal de Souza, Ênio de Oliveira, ao jornal Correio do Estado, extraído do canal Ponto de Cultura na rede de vídeos youtube. Nas palavras do entrevistado é percebido o declínio que essa ressignificação/adaptação traz ao sujeito indígena que está em constante contato com a cultura e os valores que fluem de maneira mais livre na cidade. Nossa vontade é de trazer a comunidade para dentro do ponto de cultura para que não se perca a cultura, porque praticamente já está deixando de existir. A maioria da nossa comunidade não ousa mais falar a língua. Entende, mas tem vergonha talvez até de falar. Então a gente vai trabalhar a autoestima da comunidade para buscar o que ele é, ele ser o que ele é. Porque existe uma frase que diz isso claramente: posso ser o que você é sem deixar o que eu sou. Você pode ser formado em doutor, médico, advogado, grandes profissões, mas você nunca deve deixar de ser índio.3 3 http://www.youtube.com/watch?v=ryFw9MH3g2g 32 ANAIS - 2013 Buscar ser o que ele é. É perceptível a preocupação em dar continuidade às práticas culturais que envolvem o grupo indígena que está alocado em território urbano. Uma característica que marca a identidade do indivíduo que nasceu e cresceu em uma comunidade indígena é a língua. Noto que há uma desvalorização dela por parte do próprio, ele mesmo já não quer mais fazer uso daquilo que faz parte de sua peculiaridade, que caracteriza o seu grupo, que o torna diferente. A vergonha que ronda esse sujeito, como destacada pelo Sr. Ênio, o impossibilita de afirmar o que é, sua origem. Recai sobre seus ombros a imagem de um ser deslocado, o outro, um tipo de doença que corre em suas veias, que o torna tão diferente ao ponto de exclui-lo, de envergonhá-lo pelo que é e sempre será. Sim, sempre será, aceitando ou não. Ainda no ponto que tange à língua, à aprendizagem e o uso dela, em conversas com indígenas que estão na academia, que residem em lugares próximos à cidade, nota-se que o fator econômico pesa quando o assunto é discutido e exposto pelos anciões das aldeias e das famílias. Quando são questionados a respeito, ou até mesmo em situações do cotidiano, o discurso é que aprender a língua nativa, e não a portuguesa, é uma perda de tempo, pois ela não trará condições financeiras favoráveis para o consumo. Os que compartilham essas conversas, e que estão hoje em espaços acadêmicos, dizem que a mudança de mentalidade em relação a sua própria origem mudou após o ingresso em cursos de graduação, pois notou que sua cultura é rica e que sua diferença tem valor. Quando voltam para suas aldeias na condição de professores, encontram barreiras a serem transpostas. O desafio inicial, ou a primeira barreira, é o de resgatar nos mais jovens os valores esquecidos por conta do tempo e da transculturação desnivelada que o acomete. Não 33 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento obstante, além dos jovens estudantes das escolas situadas em reservas ou em aldeias urbanas, a própria família interpela, frequentemente, os docentes a respeito do ensino da língua nativa, que para explicarem sua prática docente, precisam recorrer à LDB para justificarem o porquê ensinar e a necessidade em aprender a língua. Nota-se que precisam se valer do discurso alheio, o do colonizador, para validarem a sua enunciação a partir do outro. A condição de inferior não provém de seu íntimo, não brotou, ela foi difundida, semeada por aquele que não faz parte de seu rol de valores e práticas culturais - o colonizador – o mesmo que estrangulou a sua diferença. O fardo de ser considerado menor veio de fora e é tão forte que atinge de modo tão eficiente os povos primeiros dessa terra chamada América, que os impossibilita, no caso da aldeia urbana em questão, de falarem sua própria língua, de a praticarem. Em um espaço que comporta tantas diferenças, a cidade, a produção desse grupo subalterno parece ser apenas fumaça. (ACHUGAR, 2006). Por essa perspectiva, é algo equiparável à contaminação, que apenas faz mal à saúde daqueles que a inalam ou tem contato com ela – talvez essa seja a concepção sobre si dos próprios indígenas que vivem com a vergonha de sua etnia, de suas raízes e de suas diferenças. A presença dele parece que causa um mal-estar, enfim, certo tipo de desconforto. Quem o vê, classifica-o com um olhar piramidal, situando-o abaixo da base das massas. A impressão que se tem, é que o sentimento da sociedade excludente se assemelha ao que era presente nos corações daqueles aqui habitavam quando tiveram o primeiro contato com colonizadores portugueses. A diferença é que, dificilmente, e atrevo-me a dizer impossível, o processo histórico acontecerá de maneira diferente: o indígena se apropriando das terras e tirando proveito do não índio; uma 34 ANAIS - 2013 reapropriação do solo, com um espírito induzido e motivado a tomar de volta o que lhes pertence. A que ponto a sociedade moderna, pós-moderna, híbrida, como preferir classificar, chegou. O legítimo dono das terras americanas, seja do Norte, Central ou Sul, tem que barganhar, disputar, lutar, sangrar até morrer pelo seu espaço, seja na cidade ou em qualquer outro lugar. Em se tratando de cidade, já que a presença do indígena nela causa desconforto em muitos: Quem disse que aqui, a cidade, não é o lugar dele? Quem está investido de autoridade para dizer onde e quando o indígena deve se alocar, difundir sua cultura, fazer uso de sua língua? De maneira muito simplista, penso, poderia dizer que o lugar urbano está fora de suas coordenadas para se alocar, que o recinto é desconhecido, estranho e perigoso, mas a pergunta retorna de maneira redundante: Quem tem a real autoridade para afirmar tal ideia? A academia com sua prática excludente que nega o espaço para esse sujeito se representar, cristalizando os discursos classificados como hegemônicos? A política elitista carregada de ranços da colonização e que é disseminada como uma corrente de águas para as outras camadas da sociedade que apenas reproduzem o discurso repressor? Como transformar água em vinho, a discussão é belicosa e bem mais profunda do que se imagina. Tentar representar o subalterno pode reforçar ainda mais a subalternidade que o acomete. O erro é justamente esse: tentar representar. O discurso acadêmico já vem carregado dessa condenação antecipada. O certo não é querer falar pelo outro, o subalterno, o indígena da aldeia urbana, mas sim abrir espaços para que ele fale, se represente e seja ouvido. (SPIVAK, 2010). Entendo que falar pelo outrem só reforça o efeito do discurso dominante, uma cópia da modalidade discursiva imperial, já que o subalterno só existe por causa dessa enunciação carregada por 35 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento uma ideologia excludente que gera e difunde uma falsa consciência de sempre ter alguém maior e outro inferior. Um x é c qu “ c b ” Nã há vestígios que perguntaram aos que aqui estavam como eles se denominavam, apenas intitulara-os de índios. Refletindo sobre essa questão de representar o outro e não abrir espaço para ele, dificilmente se vê, na cidade de Campo Grande, lugar onde está localizada a aldeia urbana Marçal de Souza, um espaço para que o indígena que ali mora, vive, pratica sua cultura carregada de valores híbridos – porque já está em contato com a cultura do branco, e dela já se apropriou, houve um processo de transculturação e em seu meio também já está difundido valores de outras etnias indígenas – um lugar para que possa falar e ser ouvido. O que noto é que são produzidos vários discursos sobre o indígena, mas pouco, quase nulo, se não nulo, um espaço para sua representação. Mas por outro lado, só querer apenas abrir um espaço para sua autorepresentação já parece reforçar sua subalternidade. Penso que o correto seria se a sua enunciação fosse de maneira acomodada, sem ser forçada por um ranço de obrigação, sem ter que preparar um lugar, período, momento para dizer: pronto, você tem dez minutos para nos interpelar (academia, centro, periferia, etc.) ou a produção de inumeráveis trabalhos e pesquisas para falar sobre; seria mais proveitosa a espontaneidade, embora tenha a plena consciência que uma atitude similar seja utópica. Instituir uma aldeia urbana não é suficiente, acredito. “Of c ” u ug r, com casa, escola que contemple o ensino da língua nativa – mesmo quando eles, que já sabem ou estão aprendendo, têm vergonha de falar – um espaço denominado memorial cultural – tendo em mente que ali pode ser apenas uma oportunidade de vender seu artesanato – ã é uf c D qu “ g ”, qu 36 ANAIS - 2013 verdade é uma obrigação do Estado para com qualquer pessoa que viva em território nacional - proporcionar as necessidades básicas - quando se é invisível frente a toda uma sociedade? É curioso saber que muitos que moram na capital sul-matogrossense não saibam que há uma aldeia urbana em seu ó b qu há gu “bug ” qu b suas portas oferecendo produtos originados do plantio, e logo depois que são questionados, perguntados sobre quem era, dizem que era apenas mais um índio, intitulando de maneira, muitas vezes pejorativas e banalizadas, aquele que faz parte de um grupo marcado por sua diferença, mas ao mesmo tempo é uf c ã c “u ” A ideia de a cidade ser o lugar das marcas de outros povos, diferentes culturas, distintos modos de ser e que podem concentrar-se e conviver no mesmo lugar (faço menção à epígrafe), parece não valer para o nativo. Um espaço tão diversificado, amplo de/para relações e trocas culturais, dá a impressão de ser tão insuficiente para aceitar em seu meio uma cultura ameríndia. Não somente a questão cultural é problemática, mas a econômica também atinge esse grupo. O processo de inserção dessa população no mercado de trabalho, no que tange a condições igualitárias, ainda é delicada. Segundo Vanderléia Mussi, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), citada por Campos (2006), cerca de 71% dos trabalhadores da Marçal de Souza recebem um salário mínimo ou menos. Para elucidar melhor a desigualdade que ronda os indígenas que na cidade vivem, ainda segundo a pesquisadora, os índios da Água Bonita, outra aldeia que fica na periferia de Campo Grande, são acometidos pelo alto índice de desemprego que chega a 48%. 37 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Mas diante de tantos problemas, desigualdade, invisibilidade, carência de espaços para representação, por que então vir para a cidade? Uma das principais razões para buscar a vida na cidade é a procura por melhores condições de saúde. Mas um fato curioso é que o sistema de saúde urbano nem sempre é receptivo a essas pessoas. Alegam que a responsabilidade do atendimento ao indígena que está alocado na cidade é da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) – órgão que, curiosamente, tem em sua política a prática de não prestar atendimento a índios urbanizados. Percebo, que além da falta de representação que já acomete o grupo indígena que vive em território urbano, o descaso que as políticas públicas têm para com ele. A subalternidade não infere somente no ponto de não poder falar, mas acarreta em consequências que se materializam no cotidiano do sujeito subalterno. Não ter acesso pleno a um atendimento de saúde é uma prova contundente disso. Negar uma necessidade pública é negar o direito à vida. A subalternidade é um problema político e se algum dia a sociedade excludente denominada como branca pensar em mudar essa situação catastrófica, será preciso mudar sua política; cabe salientar que não somente as práticas políticas do branco, mas dos próprios órgãos nacionais instituídos para velar pela sobrevivência - digo sobrevivência, pois as condições que se encontram esses grupos não são dignas de dizer que vivem dos povos indígenas. Enquanto isso não acontece e acredito que demorará ainda muito, se acontecer, o índio estará condenado a continuar vivendo oprimido em sua própria terra, fadado ao b buc , c “ g bu ”, “c ch c ” “bug ” c u qu qu u ug qu reflexões da sociedade se disseminam devem parar de querer 38 ANAIS - 2013 falar pelo subalterno, e sim, estabelecer um diálogo para que as políticas mudem, já que a subalternidade é um problema político, uma questão de poder. Que aqueles que na cidade estão, ou até mesmo em reservas indígenas se encontram, não venham ter a tristeza daquela criança que uma vez chorou por ser chamada de índio. Encerro aqui com as palavras de Joel Pizzino Filho, quando escreveu um poema em homenagem ao líder indígena Marçal de Souza, trabalho que fez parte da semana que homenageou o líder oito anos após a sua morte. O poema trata da relação do indígena com o não indígena, e nos mostra que mesmo depois de estabelecer contato frequente com o outro, aqueles que na cidade vivem e são originados de etnias variadas, ainda são índios. O Banguela dos lábios de mel Apesar de minha roupa, eu ainda sou índio Apesar do gole amargo da caninha no bolicho da esquina, eu ainda sou índio Apesar do colar de nylon, de lã pinguin e das desbotadas penas de galinha – matéria prima que disfarça meu artesanato – eu ainda sou índio Apesar da bíblia em caiuá, da carteira não identidade, daquele jogo de camisa e do troféu que ganhei antes da eleição, eu ainda sou índio Apesar do reumatismo, da sífilis, da prost-instuição, de banhar nas águas envenenadas pela agricultura branca e da tuberculose que se quer meus avós conheciam eu ainda sou índio. Apesar de pedir pão velho nos cerrados portões, caçar nos lixuosos latões das ocas de concreto e de dormir nas frias margens da rodiviária – Apesar da malária – eu ainda sou índio 39 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Apesar de ser vagabundo por opção, incapaz de acumular, de não oferecer o badalado perigo e ser o bandido no faroeste da televisão, eu ainda sou índio Apesar de pedir perdão na catedral, tomar guaraná, balbuciar o gu x “bug ”, eu ainda sou índio Apesar de comer milho e ser humilhado, comer mandioca e ser ensopado, eu ainda sou índio Apesar de vestir jeans, ser deputado, fazer comercial e querer apito no carnaval, eu ainda sou índio Apesar de sacar os grilos e ser grilado, apesar de estar exilado em meu próprio chão, eu sou ainda sou índio Apesar de não apaixonadamente como Peri, estar banguela e me chamarem Marçal, eu ainda sou índio “ c c qu u ã b b u , porque nós índios não guardamos datas como vocês guardam datas e anos no papel. Nosso calendário é o inverno, nosso correr dos meses é a lua, nosso rel... (MS)4 Referências ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Trad. de Lyslei Nascimento. Belo horizonte: Editora UFMG, 2006. BEVERLEY, John. Subalternidad y representación. Trad. de Marlene Beiza y Sergio Villalobos-Ruminott. Madrid: iberoamericana, 2004. 4 FILHO apud TETIL , M ç uz : Tu ã’!, 89 40 ANAIS - 2013 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. IANNI, Octávio. A era do globalismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. MUSSI, Vanderléia apud CAMPOS, André. Aldeias Urbanas – Indígenas que vivem na cidade sofrem preconceito e invisibilidade. In: Problemas Brasileiros, n. 373, jan/fev. 2006. Disponível em:<http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm? Edicao_Id=234&Artigo_ID=3664&IDCategoria=4010&reftype =1> Acesso em: 28 de fevereiro de 2012. NOLASCO, Edgar Cézar. babeLocal: lugares das miúdas culturas. Campo Grande: Life Editora, 2010. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Do índio ao bugre: o processo de assimilação dos Têrena; Rio de Janeiro, F. Alves, 1976, ORTIZ, Fernando. Contrapuento cubano del azúcar y del tabaco. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1983. SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goular Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: UFMG, 2010. TETILA, José Laerte Cecílio. Marçal de Souza Tupã’!: um guarani que não se cala. Campo Grande: UFMS, 1994. 41 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento YOUTUBE. Disponível <http://www.youtube.com/watch?v=ryFw9MH3g2g> em 08 de setembro de 2012. em Acesso 42 ANAIS - 2013 A construção do lugar em que se vive: análise semiótica de dois textos poéticos infantis Andréia Reis Bacha MORININGO1 Geraldo Vicente MARTINS2 RESUMO: Neste trabalho, pretendemos analisar duas produções poéticas (Menina Pequena e Campo Grande hospitaleira), presentes nas coletâneas Poetas da Escola II e III, publicadas nos anos de 2009 e 2010, respectivamente, quando seus autores eram alunos do 5º ano do ensino fundamental, na Escola Municipal Dr. Tertuliano Meirelles, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Para tanto, recorremos ao instrumental teórico-analítico da semiótica discursiva, que procura explicar os mecanismos discursivos de produção dos sentidos no texto, a partir da observação do plano de conteúdo e do plano de expressão. O estudo orienta-se a partir do que a semiótica concebe como percurso gerativo do sentido, instância na qual são estabelecidos três níveis: fundamental, narrativo e discursivo. Verificamos que ambas as produções são revestidas de figuras que recriam o mundo concreto, proporcionando, assim, um efeito de realidade. Outros aspectos considerados relevantes para a análise concernem a estratégias de intertextualidade e de interdisciplinaridade, quando são utilizados conhecimentos de outros ramos do saber, como ciências, geografia e história, sobre o local em que se vive, a fim de se construírem efeitos de verdade nos textos. PALAVRAS-CHAVE: produções poéticas; semiótica discursiva; percurso gerativo do sentido. 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – [email protected] 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – [email protected] 43 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 1. Introdução Compreender um texto poético exige que o leitor considere, além de seu conteúdo, o significado dos elementos de expressão, o que se torna mais claro quando se recorre ao instrumental teórico-analítico da semiótica discursiva. Segundo as concepções de seu iniciador, Algirdas Julien Greimas, o texto resulta de um plano de conteúdo, que pode ser veiculado por diferentes manifestações, e um plano de expressão, que veicula o conteúdo do texto, propriamente dito. Além disso, concebe-se o texto como resultado das relações entre os componentes de níveis diversos. Dessa forma, o texto passa a ser apreendido a partir de diferentes instâncias de abstração e, em decorrência, determinam-se etapas entre a imanência e a aparência e elaboram-se descrições autônomas de cada um dos patamares de profundidade estabelecidos no percurso gerativo. (BARROS, 1998, p. 15). Com base nessa acepção, pretendemos analisar, em dois poemas infantis, alguns procedimentos que o constituem capazes de produzir um efeito de sentido de verdade nos textos. Para tanto, a análise considerará, sobretudo, o plano discursivo, patamar superficial do percurso gerativo do sentido, mais próximo da manifestação textual e enriquecido semanticamente, além dos procedimentos da expressão que produzem tais efeitos. 2. Fundamentação teórica A semiótica discursiva, também denominada francesa ou greimasiana, oferece um instrumental metodológico que 44 ANAIS - 2013 permite estabelecer os sentidos possíveis de um texto, cu c x c “ qu x z c f z z qu z” (B RRO , 2005, 11) x , em primeiro lugar, de seu plano de conteúdo concebido sob a forma de um percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Dito de outro modo, a ó c cu “ qu x z, c z para que o faz, buscando recuperar, no jogo da intertextualidade, a trama ou o enredo da sociedade e da h ó ” (B RRO , 2005, 78). Além disso, determina que o estudo da significação deve obedecer a três condições: ser gerativo, ser sintagmático e ser geral (FIORIN, 2012, p. 17). A primeira condição, a de ser gerativo, impõe ao analista a necessidade de construir o sentido do texto a partir dos investimentos dos conteúdos dispostos em patamares sucessivos e, por conseguinte, progressivos; a segunda condição, a de ser sintagmático, explica a produção e a interpretação do discurso, que passa a ter uma estruturação própria; e a terceira condição, a de ser geral, considera a manifestação do sentido por diferentes planos de expressão ou por vários planos de expressão ao mesmo tempo (FIORIN, 2012, p. 17). Como a teoria semiótica procura examinar a u c çã “ qu â c u elo discurso, em que deixa marcas ou pistas que permitem recuperá- ”, (BARROS, 2005, p. 78), é necessário o estudo do percurso g , qu “ c u hierárquico, em que se correlacionam os níveis de abstração do senti ” (FIORIN, 2012, p.18). No percurso gerativo do sentido verifica-se uma sucessão de patamares, recebendo cada um, uma representação metalinguística explícita. Cada patamar do percurso gerativo 45 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento tem um componente sintáxico e outro semântico e pode ser assim explicado: No nível das estruturas fundamentais, uma sintaxe explica as primeiras articulações da substância e das operações sobre ela efetuadas e uma semântica surge como um inventário das categorias sêmicas com representação sintagmática assegurada pela sintaxe; na instância das estruturas narrativas, uma sintaxe regulamenta o fazer – simulacro do homem no mundo e das suas relações com os outros homens – e uma semântica atribui estatuto de valor aos objetos do fazer; na etapa mais superficial das estruturas discursivas, uma sintaxe organiza as relações entre enunciação e discurso e uma semântica estabelece percursos temáticos e reveste figurativamente os conteúdos da semântica narrativa. (BARROS, 1988, p. 16). Dentre os níveis do percurso gerativo do sentido, o nível discursivo encontra-se mais próximo da manifestação textual, e é por meio do texto que se torna possível compreender o cu “N uu cu u c çã revela e é onde mais facilmente se apreendem os valores sobre qu u qu x f c uí ” (B RRO , 2005, p. 54). A sintaxe discursiva comporta os mecanismos de instauração de pessoas, tempos e espaços no discurso, projetados pela enunciação. Esse mecanismo denomina-se debreagem, que é definida como 46 ANAIS - 2013 a operação pela qual a instância da enunciação disjunge e projeta fora de si, no ato de linguagem, e com vistas à manifestação, certos termos ligados à sua estrutura de base, para assim constituir os elementos que servem de fundação ao enunciado-discurso. (GREIMAS e COURTÈS, s/d, p. 95). Se essa operação trabalha sobre as categorias de pessoa, tempo e espaço, conclui-se que existem três formas de debreagem: actancial, temporal e espacial. Vejamos o que elas significam: a debreagem actancial consistirá, então, num primeiro momento, em disjungir do sujeito da enunciação e em projetar no enunciado um não-eu; a debreagem temporal, em postular um não-agora distinto do tempo da enunciação; a debreagem espacial, em opor ao lugar da enunciação um não-aqui. (GREIMAS e COURTÈS, s/d, p. 95). A debreagem pode ainda ser: enunciativa e enunciva. A debreagem enunciativa ocorre quando o sujeito instala no discurso a pessoa (eu), o tempo (agora) e o espaço (aqui) da enunciação; e a debreagem enunciva, quando o sujeito instala a pessoa (ele), o tempo (então) e o espaço (lá) do enunciado. Essas debreagens produzem dois tipos básicos de discurso: os de primeira e os de terceira pessoa. É preciso compreender que com as debreagens enunciativas e enuncivas criamos a ilusão de que as pessoas, os espaços e os tempos inscritos na linguagem 47 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento são decalques das pessoas, dos tempos e dos espaços do mundo. No entanto, a embreagem desfaz essa ilusão, pois patenteia que eles são criações da linguagem. (FIORIN, 2012, p. 31). Esses mecanismos de debreagem e embreagem pertencem a toda manifestação de linguagem, ou seja, todas as línguas apresentam as categorias de pessoa, de espaço e de tempo, podendo expressar-se distintamente de uma língua para outra, ou de uma linguagem para outra. A embreagem, ao contrário da debreagem, desreferencializa o enunciado que ela afeta. Por exemplo, quando se usa uma terceira pessoa no lugar de uma segunda, é como se o interlocutor não falasse com o interlocutário, mas com os outros sobre ele. Dessa forma, desreferencializa-se a instância do tu. (FIORIN, 2012, p. 30). O componente semântico do nível discursivo apresenta dois procedimentos: a tematização e a figurativização. Enquanto a tematização busca abstrair do texto conceitos que explicam o mundo, a figurativização produz textos concretos com o intuito de simular a realidade enunciada. Portanto, a figurativização e a tematização são operações enunciativas que desvelam os valores, as crenças, as posições do sujeito da enunciação (FIORIN, 2012, p. 32). Quando abordamos, no percurso gerativo do sentido, o nível narrativo, talvez seja importante traçarmos uma distinção entre narratividade e narração. A narratividade é um elemento presente em todos os textos e a narração diz respeito a uma tipologia textual, concernente a uma determinada categoria de textos. A narratividade é uma transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes (FIORIN, 2002, p. 21). 48 ANAIS - 2013 No nível narrativo do percurso gerativo do sentido, depreende-se o enunciado como unidade elementar da sintaxe narrativa. Dependendo da relação que se estabelece entre o sujeito e o objeto-valor, o enunciado pode caracterizar-se por: enunciado de estado ou enunciado de fazer. Isso significa que a relação de junção (conjunção ou disjunção) entre o sujeito e o objeto-valor determina um enunciado de estado. Caso ocorra uma transformação nessa relação, ou seja, se há a passagem de um estado a outro por meio de um fazer, instala-se um enunciado de fazer. Ressalta-se que sujeito e objeto na narrativa não se referem, necessariamente, a pessoa e coisa, mas f “ é qu u í u fc c , u ” (FIORIN, 2002, p. 22). Quando um enunciado de fazer rege um enunciado de estado, integrando estados e transformações, tem-se o programa narrativo (PN), unidade operatória que organiza a narratividade, cuj “c é óg c c c z çã f dois tipos fundamentais de programas, a competência e a performance. A competência é, por conseguinte, uma adoção de valores modais; a performance, uma apropriação de valores c ” (B RRO , 2005, 27) A manipulação, a competência, a performance e a sanção integram a sequência canônica de uma narrativa complexa. Expliquemos cada uma: na fase da manipulação, que pode ser por tentação, intimidação, sedução ou provocação, ocorre a ação de um sujeito sobre outro, na tentativa de manipulá-lo a um querer e/ou dever fazer alguma coisa; na fase da competência, o sujeito é dotado de um saber e/ou poder fazer; na fase da performance, ocorre a mudança de um estado a outro; finalmente, a fase da sanção confirma a realização da 49 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento performance, reconhece, portanto, que o sujeito operou a transformação. A semântica do nível narrativo aborda a relação do(s) sujeito(s) com o(s) objeto(s), que podem ser caracterizados como: objetos modais e objetos de valor. Os primeiros representam a modalização do fazer e a do ser a partir de quatro modalidades: o querer, o dever, o saber e o poder fazer para a realização da performance principal. Os segundos representam os objetos com os quais o sujeito entra em conjunção ou ju çã N , “ bj é qu c á para se obter outro objeto; o objeto-valor é aquele cuja obtenção é f ú u uj ” (FIORIN, 2002, 29) Finalmente, o nível fundamental encontra-se no patamar profundo, mais abstrato do percurso gerativo do sentido. Nele, correlacionam-se dois termos-objetos que operam por negação ou asserção na sintaxe fundamental. Esses termos-objetos se opõem estabelecendo uma relação de contrariedade, na semântica fundamental, a partir dos elementos de base /euforia/ versus /disforia/. A relação eufórica ocorre quando os valores visados pelo sujeito estão em conformidade com o que deseja, e a disfórica, quando estão em discordância. Explicamos, sucintamente, o simulacro metodológico com que opera a semiótica discursiva. Entretanto, no decorrer do trabalho analítico, consideramos outros elementos do conjunto teórico da semiótica discursiva, dada sua natureza abrangente e complexa, tais como os procedimentos expressivos que contribuem para a significação global do texto poético. Nos textos com função estética, as categorias de conteúdo se correlacionam às da expressão (FIORIN, 2012, p. 58), o que nos permite interpretar os efeitos de sentido gerados por alguns recursos fônicos, como aliteração, assonância; por recursos métricos e rítmicos; por determinados recursos 50 ANAIS - 2013 sintáticos; por algumas figuras de construção, como repetição, quiasmo, gradação etc. (FIORIN, 2002, p. 36). Esses efeitos de sentido podem perpassar todos os níveis do percurso gerativo, criando a ilusão de verdade ou de aproximação com a realidade. Surgem, portanto, os sistemas semissimbólicos que, para a semiótica, são aqueles em que a conformidade entre os planos da expressão e do conteúdo não se estabelece a partir de unidades, como nos sistemas simbólicos, mas pela correlação entre categorias (oposição que se fundamenta numa identidade) dos dois planos. (FIORIN, 2012, p. 58). A partir dos sistemas semissimbólicos torna-se possível analisar, além das relações entre expressão e conteúdo, a percepção sensorial na produção do sentido do texto, ou seja, o estudo desses sistemas “ b c çõ í gí ” (FIORIN, 2012, 67) I g f c qu o estudo do semissimbolismo tem um alcance teórico e um analítico. De um lado, permite discutir, com profundidade, o papel da percepção sensorial na produção do sentido; de outro, possibilita o exame acurado das relações entre expressão e conteúdo. (FIORIN, 2012, p. 67). Os sistemas semissimbólicos, portanto, dão base à análise dos textos poéticos, nos quais são estabelecidas diversas homologações entre as categorias da expressão e do conteúdo, que permitem compreendê-los. Ao poeta incumbe a tarefa de 51 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento recriar o mundo nas palavras, articulando um modo expressivo de trazê-lo ao entendimento do leitor. 3. Análise de textos Os dois textos aqui analisados fazem parte da Coletânea Poetas da Escola II e III, organizada pelos alunos do 5º ano do ensino fundamental das turmas A e B da Escola Municipal Dr. Tertuliano Meirelles, nos anos de 2009 e 2010. Na apresentação dos livros, a professora responsável pela idealização desse trabalho, Tânia Mara Dias Gonçalves Brizueña, esclarece que a publicação dos poemas realiza a intenção dos alunos de tornar pública a percepção do lugar onde vivem. É importante esclarecer aos leitores que o trabalho de produção, compilação dos textos e publicação teve inspiração no projeto Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, cuja categoria poesia destinou-se aos alunos do 5º e 6º anos. Passemos à analise dos poemas. Texto I Menina Pequena (Sandy Ferreira Maia) 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Índia pequena, Menina Morena, Calma e serena, É belo seu luar. Amor do caboclo imigrante Nordestinos, paraguaios e japoneses Escolheram viver felizes aqui. Entre prosas e segredos Minha pequena se formou. 52 ANAIS - 2013 10. Campo Grande se destaca 11. Encanta o Pantanal. 12. É fácil poetizar você Campo Grande 13. O céu é azul. 14. Araras, tucanos, bem-te-vis, 15. Joões-de-barro 16. Enfeitam o céu. 17. Que não é raro o tuiuiú 18. Vive feliz no Pantanal. 19. Gosto de você Campo Grande, 20. Sou feliz em te dizer 21. Índia pequena, Menina Morena, 22. Cresci e abraço você. No plano discursivo, no nível sintático, percebe-se a manifestação de dois tipos básicos de discurso: os de primeira e os de terceira pessoa, operando a instalação das debreagens enunciativa e enunciva, no que se refere às três categorias de enunciação: actancial, temporal e espacial. E “É b u u ” (4º ), c f gu -se a instalação de uma debreagem actancial enunciva por meio do u “ u” u b g poral u c , c b “ ” ; “E c h f z qu ” (7º ), -se a instalação de uma debreagem temporal enunciva e de uma debreagem espacial enunciativa. Percebe-se, no poema, que a utilização dos mecanismos de projeção da enunciação permite a obtenção de efeitos de aproximação do sujeito com o conteúdo do enunciado, o que implica esse sujeito da enunciação em seu dizer, criando o efeito de sentido de compromisso com o que enuncia. Portanto, apesar de predominar no discurso o uso da terceira pessoa, isso não 53 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento provoca a ilusão de objetividade, uma vez que a história é u b , u “ u” é c , f z c cu c , ju f c “É fácil poetizar você Ca ”, c fu çã juíz c x ã “É fác ”, qu x g avaliação de um sujeito da enunciação. Em relação à semântica discursiva, ocorre, no poema, uma sequência isotópica figurativa que humaniza Campo Grande. Percebeg x c “Í qu ”, “M M ”, “ c b c g ”, estabelecendo, também, a relação aproximativa do enunciador com elementos da história, da geografia e da cultura da região, fato esse que comprova o emprego de recursos c , ó f gu “í ”, “ ”, “c b c g ”, c c ê c conhecimentos de outros campos do saber no encadeamento de ideias. O enunciador, na verdade, sintetiza um processo de colonização de natureza bastante trivial: o nativo (no caso, o índio, o caboclo), a alusão a algumas etnias que povoaram a região (nordestinos, paraguaios e japoneses), a recorrência aos dois córregos principais (Prosa e Segredo), que cortam a cidade de Campo Grande, em cujas margens os primeiros desbravadores da região fixaram-se; as aves típicas da região do Pantanal (araras, tucanos, bem-te-vis, joões-de-barro, tuiuiú). Com essas considerações, percebe-se que se trata de um poema com orientação bucólica, pois exalta a beleza natural do lugar O íu , “M P qu ”, f partir de um substantivo comum que, ao ser especificado pelo bu “P qu ”, c f u c á cu sujeito visado. Dessa leitura, depreendem-se temas como: 54 ANAIS - 2013 o do relacionamento amoroso, comprovado nos versos: “M h qu f u”, “ cê ”, “ c b ç cê”; o da colonização da região por povos imigrantes: espanhóis, italianos, japoneses, paraguaios, portugueses, e por povos migrantes de diversas regiões do Brasil. Isso se comprova “N , gu j ”; o da erotização da mulher nativa, em que subjazem a pureza, a calmaria, a serenidade e a beleza, presentes nos versos “Í qu ”, M ”, “ ”, “É b u u ”, qu f z c “c b c g ”; : “ , gu , j ” “qu c h f z qu ”, já h f gu indígena; o da exaltação da natureza, que enuncia um modo de viver, o cotidiano tranquilo, contemplativo, o lado bucólico, c : “O céu é zu ” / “ , uc ,b te- ,” / “J õ -de-b ” / “E f céu” / “Qu ã é u u ú” / “V f z P ” Em relação ao plano da manifestação, considerando a correlação entre expressão e conteúdo como ponto central para configuração dos textos poéticos, percebe-se, no nível sonoro, a ocorrência da aliteração do /e/, em sua grande parte, fechado, no cábu g : “ qu ”, “ ”, “ ”, “ ”, “b ”, “ u” Nos três primeiros versos, as rimas apresentam-se paralelas e recaem nas vogais similares tônicas, produzindo um efeito de sentido de estabilidade, de tranquilidade do sujeito em relação ao objeto-valor. Esse mesmo efeito, percebido ao longo de todo o poema, é produzido a partir de outros recursos sonoros e de algumas figuras de linguagem, como: presença da 55 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento â c f ch / / “ c b c g ”, “N , gu j ”; ç f c /z/ cábu “f z qu ” “ g ”, produzindo a aliteração /ze/, /za/, /za/ e /ze/, sucessivamente. N “E g ”, b / /, cábu “ ”, c õ -se ao som fechado do /e/, cábu “ g ” E çã uz u f semântico paralelo ao efeito sonoro (aberto e fechado), podendo significar a relação de comunicação do povo campesino. As prosas e segredos, automaticamente, levavam às criações dos causos contados pelos primeiros habitantes do lugar. No nível narrativo, ocorre uma transformação de estado do sujeito em relação ao objeto-valor. O último verso comprova c ê c : “ c b ç cê”, -se a modalização do ser-fazer, ou seja, o sujeito torna-se competente para ação. Evidencia-se, portanto, a conjunção plena entre sujeito-morador e objeto-c , f gu z “ b ç ” O g c , “ b ç ”, gu ç , “ u é c ” çã bj -cidade e perpassa todo o poema, uma vez que o ato de abraçar alguém requer o estabelecimento de um contato aproximativo. Essa relação proximal do narrador e do objeto-valor perceptível no discurso permite ao poeta atribuir ao el “c ” características construídas a partir da experiência observada. Texto II Campo Grande hospitaleira (Stuart Vieira da Silva) 1. Campo Grande, cidade hospitaleira 2. Um celeiro de cultura, de contraste sem igual, 3. De histórias fascinantes 56 ANAIS - 2013 4. De um povo acolhedor 5. 6. 7. 8. Cidade Morena uma beleza Onde a mãe natureza Nos mostra sua grandeza Através de sua harmonia maravilhosa 9. Há em ti a beleza que alma encanta 10. Vinda do Pantanal, das baías e igarapés. 11. Vindo da sonolência matutina dos jacarés 12. Da sutil leveza do voo3 da garça branca. 13. Dos momentos de descanso prazeroso 14. No sentir da paz que é infinita 15. Nas grutas e nos balneários de Bonito 16. Nas águas cristalinas do rio Formoso. O poema é construído a partir da observação do sujeito em relação à cidade de Campo Grande, evidenciando, nesse contexto, a objetividade do poeta ao descrever o lugar onde se vive. O íu “ h ” z bu existência de um estado permanente, condicionado pelo verbo g çã ( ), í c , qu c c z “ ”c cidade hospitaleira. Trata-se, portanto, de um enunciado de estado. O empr g x c “h ” hu z Campo Grande, conferindo-lhe, supostamente, um caráter altruísta. Na primeira estrofe, o verso inicial retoma o enunciado contido no título; porém, ocorre, na leitura, uma pausa 3 No livro, o vocábulo aparece com acento, pois a publicação foi anterior ao Novo Acordo Ortográfico. 57 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento deliberada em função do uso da í gu , “ ” I qu g z quê c ó c qu hu z : “c h ”, “c cu u , c , h ó , u ” Verifica- , c uçã “h ” “c ”, céc uf x “ ”, segmentos lexicais de significações similares, a competência de u uj qu “ c h ”, “ ú ” “ g g ” N gu f , qu c “ M u b z ”, enta, do mesmo modo, a mesma isotopia. Mais uma vez, percebe-se um enunciado de estado ao longo dessa estrofe. O sujeito posiciona-se como observador, instalando-se a debreagem actancial enunciva, abstraída a partir do uso do verbo e do pronome (sua). No plano da manifestação, verifica-se o uso de rimas, quando se utiliza a sibilante /z/, na sequência: beleza, natureza, grandeza, maravilhosa, para u f u c b “ ã u z ” Apresenta-se, portanto, o objeto“ u z ” c m o qual o uj “ ” á c ju çã , c u , c natureza-mãe, que, também, executa a função hospitaleira. Na terceira estrofe, o primeiro verso apresenta-se, c , : “Há b z qu c ” O poeta utilizou essa construção como estratégia para uçã :“ c ” “b c ” P c b -se que a organização das rimas acontece com o auxílio do recurso de interdisciplinaridade, ou seja, com o conhecimento a respeito da geografia e da ciência do local onde vive. Inclusive, explora-se bastante esse recurso estilístico, produzindo um efeito musical ainda maior, em relação à estrofe anterior. As rimas encontramse interpoladas e no interior dos versos, como acontece com “b z ” “ z ” O conteúdo construído, com base em informações advindas de outras áreas do conhecimento, permite 58 ANAIS - 2013 a organização mais expressiva daquilo que se pretende enunciar. Instala-se, dessa vez, a debreagem temporal e actancial u c , c b “há” “ c ” u “ ” Ex qu f bj -valores com os quais o sujeito entra em conjunção. A última estrofe, na realidade, está interrelacionada c à f O “D c z ” ác nuidade à sequência enunciativa do último verso da 3ª estrofe. Utiliza-se a mesma estrutura de ,c z , “N z qu é f ”, “N g u b á B ”, “N águ c F ”, o enunciador estabelece çã c “b z ” qu c “ ” N -se que não se trata de uma beleza comum, mas de uma beleza transcendental, provida de gratuidade, de generosidade, o que comprova a significação do título do poema. O enunciador organiza as ideias recorrendo aos conhecimentos que tem da geografia do local onde se vive. O texto nos permite abstrair alguns temas, como: o do bucolismo: no percurso de todo o texto, exaltam-se os elementos naturais que potencializam a cidade de Campo Grande e servem como atrativos para que ela se torne hospitaleira; o do do acolhimento, como característica tanto da cidade qu u u çã : “ ,c h ”, “D u c h ”; o da relação mãe – filho simbolizada pela natureza – mãe. Podemos, finalmente, verificar que o poema cria um efeito musical a partir dos recursos empregados para sua elaboração. Percebe-se a organização estética do texto por meio de estrofes e versos distribuídos em números iguais. Essa 59 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento construção torna evidente a recorrência às convencionais do poema clássico. estruturas 4. Considerações finais Podemos traçar algumas conclusões a partir do que observamos na análise dos textos: os dois poemas referem-se à mesma temática: os atrativos da cidade de Campo Grande que a tornam uma cidade acolhedora e boa para viver. O enunciador, nos dois textos, transpõe para o discurso elementos lexicais que dependem de uma capacidade de abstração; ambos os textos exploram recursos de expressão, como rimas, musicalidade e ritmo das palavras, imagens, figuras de linguagem, criando efeitos de sentido, em que predomina a função poética da linguagem. Portanto, há poesia nos textos; recorre-se ao mecanismo da interdisciplinaridade para manifestar a beleza natural e a história de Campo Grande. Encerramos este trabalho com o pensamento de Ferreira u : “O x c ç , qu ê u c olhos virgens e que, por quase nada saber, está aberta ao mistério das coisas. Para criança – como para o poeta – viver é u c c b ” As crianças, autoras desses poemas, imprimem nos textos a percepção do lugar onde moram. Para elas, viver em Campo Grande é prazeroso, pois o lugar apresenta diferentes atrativos naturais que agregam valores como liberdade, beleza, bem-estar, prazer etc. Elas criam um efeito de verdade sobre os fatos narrados, a partir dos julgamentos, das considerações e dos juízos que estabelecem nos textos. Embora possam ter convivido com o aprendizado formal da geografia e da história da região, ambas 60 ANAIS - 2013 evidenciam, no texto, um modo particular de assimilação desse aprendizado. Isso significa que a poesia, ao agregar um conjunto de experiências, de conceitos, de valores, além de utilizar-se do jogo com os sons, com os ritmos, com as rimas, manifesta a realidade interior (eu poético) associada à realidade exterior (contexto socio-histórico vivenciado). Por isso, a poesia deve ser trabalhada na escola, uma vez que desafia a criança a investir na expressão do conteúdo e dos sentimentos que emanam a partir da construção do c h c N c , c c qu “ b ã éu , g qu cu ” , , c c u “ g á c discurso, para que eles possam, com mais eficácia, interpretar e g x ” (FIORIN, 2002, 9) Referências BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática. (Série Fundamentos, 72). 2005. ______. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual. 1988. FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido discursivos). São Paulo: Contexto. 2012. (estudos ______. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto. 2002. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, s/d. 61 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento LOPES, Ivã Carlos; HERNANDES, Nilton (orgs.). Semiótica (objetos e práticas). São Paulo: Contexto. 2005. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Poetas da escola II. Campo Grande: Prefeitura Municipal. 2009. ______. Poetas da escola III. Campo Grande: Prefeitura Municipal. 2010. 62 ANAIS - 2013 A deficiência na infância: a formação dos discursos e formas de controle Marina Cezaria da SILVA1 RESUMO: Busca-se explorar, por intermédio dos discursos, as relações possíveis entre a educação infantil e a deficiência, tomando como fontes de análise e subsídios empíricos, entrevistas com os g qu E uc çã I f ( EINF’ ), coordenadores pedagógicos e professores. Além dos documentos produzidos sobre os bairros Cidade Morena, Moreninha I, II e III, lócus da pesquisa. Foi realizada também, uma entrevista com o presidente da Associação das Moreninhas para obter a história e as condições sociais dos bairros, no sentido de compreender os discursos produzidos por intermédio da prática pedagógica sobre a deficiência; visando a um modo de análise arqueológico postulado por Michel Foucault em que foram trabalhados alguns conceitos do referido autor. Os resultados indicam que a deficiência na educação infantil é produtora de discursos que adquirem diferentes formas de controle, constroem verdades, cerceando o que deve ser dito ou não. PALAVRAS-CHAVE: EINF’ D f c ê c ; I c u ã ; social. Introdução Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado apresentada, com o mesmo título, ao Programa de Pós Graduação Stricto Senso da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, apresenta-se a análise das entrevistas realizadas com as quatro gestoras,duas coordenadoras pedagógicas e 1 Professora, Mestre em Educação, Diretora do Centro de Educação Infantil – Uirapuru, Campo Grande-MS e membro do Grupo de Estudos e Investigação Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 63 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento dezesseis professoras dos quatro Centros de Educação Infantil localizados nos bairros das Moreninhas em Campo Grande, MS, e com as famílias das três crianças deficientes matriculadas nos EINF’ A finalidade é a compreensão de como foi possível aparecer na ordem do saber o pano de fundo que compõe a inclusão de alunos com deficiência na educação infantil. No intuito de localizar o discurso da inclusão na educação infantil, o modo de análise arqueológico em Foucault será utilizado para localizar as raízes históricas entre o sujeito e o domínio de objetos como parte da prática discursiva para se chegar ao saber de uma época. Na ordem do saber, como foi possível aparecer a produção desse discurso (FOUCAULT, 2005b). Procuramos olhar o outro lado do discurso, o das participantes, sem considerar o exterior, o que ele poderia ter de singular, terrível ou talvez maléfico? Foucault diz que o discurso não está essencialmente na ordem das leis que o honra; ele, ao mesmo tempo, desarma, mas contém um poder que é concedido pelas pessoas, procurando desvelar a inquietação diante do que o discurso é em sua realidade material, o não dito (FOUCAULT, 2005b). De acordo com Foucault (2005b), há de se ter cuidado para analisar o discurso em virtude de sua existência transitória, com duração que não pertence a ninguém e que pode se esquivar da materialidade. Com esses deslocamentos, ele vai tomando outras formas; vai exercendo controles, construindo verdades e com isso vai cerceando o que deve ser dito ou não. Antes das análises dos discursos relatados pelas á uc f EINF’ Moreninhas, houve a intenção de mostrar um breve relato de informações levantadas nos bairros onde estão localizados os 64 ANAIS - 2013 Centros de Educação escolhidos para esta pesquisa, como segue abaixo. 1. As Moreninhas Localizados na região sul, a 15 km de distância do centro do município de Campo Grande, MS, os bairros que integram a região das Moreninhas compõem um dos maiores conjuntos populacionais da cidade. A escolha para esta pesquisa ocorreu pelo fato de esse conglomerado habitacional possuir características de município. São formados pelos bairros da Santa Felicidade, Nova Jerusalém, Nova Capital, Novo Brasil e Novo Século, além da Cidade Morena, Moreninha I, II, III e IV. Foram criados no início da década de 1980, com o intuito de proporcionar moradias às pessoas com alto índice de pobreza que margeavam a região central da cidade. Com levantamento realizado para este estudo, constatouse que os bairros atualmente contam com boa infraestrutura, comércio local e seus moradores não precisam se deslocar até o centro da cidade para comprar calçados, vestuário, gêneros alimentícios, produtos veterinários, medicamentos, móveis e utensílios domésticos. Também contam com serviços médicos, clínicas, laboratórios para exames médicos, serviços de psicologia, odontologia e fisioterapia. Quanto a serviços públicos, a região dispõe de delegacia de polícia civil (4º distrito); grupamento do corpo de bombeiros; polícia militar; serviços de pequenas causas; cartório do 4º Ofício de Notas; Posto de Saúde 24 horas, junto de uma maternidade; terminal de transbordo; praça; o Parque Jacques da Luz; á fu b “T c L ã ”; f ; c c escolas estaduais e duas municipais; duas agências dos Correios; duas agências bancárias; três caixas automáticos de todas as 65 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento agências bancárias; uma casa lotérica da Caixa Econômica F qu EINF’ , qu f z qu Há também um cemitério e a prestação de serviços póstumos. O EINF’ c qu c z , respectivamente, na Cidade Morena, Moreninha I, Moreninha II e Moreninha III, juntos contam com cerca de oitocentos e setenta (870) crianças matrículas. São distribuídas pela forma de organização institucional entre as faixas etárias: Berçário, crianças de quatro (4) meses a dois (2) anos; Nível I (dois (2) e três (3) anos); Nível II (três (3) e quatro (4) anos) e Nível III (quatro (4) e cinco (5) anos), em regime integral, das seis horas e trinta minutos às dezessete horas. Porém, como já relatado na introdução deste trabalho, essas nomenclaturas mudaram para o funcionamento no ano de dois mil e doze (2012). Para apropriar e analisar os discursos das diretoras, coordena góg c f EINF’ selecionados, foram marcadas as entrevistas individuais, de acordo com suas disponibilidades. Esse agendamento ocorreu no mês de junho de dois mil e onze (2011). O Termo de Consentimento foi assinado antes de cada entrevista e depois de aprovado pelo Comitê de Ética da UFMS. O roteiro foi estabelecido a partir dos dispositivos reguladores já analisados neste estudo em relação essencialmente aos princípios e orientações, visando à perspectiva de inclusão escolar, embora a convivência desta autora em uma das instituições, como professora, já viesse demonstrando os limites de sua operatividade nesse processo propositivo de incluir. Em função da perspectiva teórico-metodológica adotada, o objetivo do processo empírico veio ao encontro da busca em c c u u c qu “ fu ” qu cu ã c é u c 66 ANAIS - 2013 acontecimentos discursivos que se recortam em si, sendo detentores de uma mesma base – a escolarização. Compreendendo que são, também, processos de investigação, tentativas de detectar as possíveis relações entre as práticas discursivas e os poderes que as permeiam, dinâmicas do mesmo fenômeno – a educação infantil e a deficiência, que levou à necessidade de realizar a entrevista como uma das fontes desta pesquisa. Os depoimentos foram gravados e digitados individualmente. Todos foram enviados aos entrevistados eletronicamente para que fizessem as considerações ou ajustes u “f ”, c h u c , cada pergunta formulada. Nem todos os sujeitos fizeram uma devolutiva; posteriormente, todas as entrevistas foram impressas e levadas a cada um para assinatura. 2. Formação das participantes e tempo de atuação na educação As professoras, as coordenadoras e três diretoras possuem formação em Pedagogia, licenciatura Plena, e uma das diretoras, além da Pedagogia, também é formada em Letras. Elas possuem licenciatura tanto na Educação Infantil como no Ensino Fundamental. Das vinte e duas (22) participantes da entrevista, dezoito (18) já concluíram a pós-graduação ou ainda estão cursando e quatro (4) declararam não ter uma especialização. Referente ao tempo de atuação, somente as diretoras (D) e duas professoras (Prof) relataram nas suas falas o seu tempo de atuação: D1 tem dezessete (17) anos em sala de aula e está há quatro anos como diretora; D2 tem três anos como diretora, não tem experiência em sala de aula; D3 tem trinta e cinco (35) anos 67 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento na educação, destes, onze (11) anos são como diretora; D4 tem trinta (30) anos na educação e um ano como diretora; a Prof 1, com onze (11) anos na profissão e a Prof 12, com dez (10) anos, cinco (5) como recreadora e cinco (5) como professora. Os depoimentos foram agrupados por segmentos de atividades escolares em que cada sujeito entrevistado é á g z çã EINF’ f c fc seguinte forma: professores - representados pela abreviatura “P f”; quê c u é c P f 1; P f 2; é P f 16; diretoras - c f c “D”, D1; D2; D3 D4, e coordenadoras pedagógicas “ P”, sequência CP1 e CP2. 3. Conceitos foucaultianos para a análise do discurso Para facilitar a compreensão, são esclarecidos alguns conceitos trabalhados por Foucault em suas obras, que foram apoderados para melhor esclarecer as análises das entrevistas. U é “ c c ”, qu , u , é qu c época pode dizer na esfera do saber, o que estava presente no pensamento de cada período; o que é provisório, muda a época, muda o pensamento, e o acontecimento é outro ou pode ser o mesmo, mas se mostra com outra roupagem. Assim, para Foucault (2005a), como uma das possibilidades de análise, a arqueologia é uma descrição dos acontecimentos discursivos, da forma que vem se configurando no desenvolvimento dos discursos. Esses discursos se modificam como práticas sociais e seu posicionamento na sociedade. O que antes era escondido, não era dito, era velado, passa a ser dito, institucionalizado. Nas palavras de Foucault (2005b, 60): “[ ] já ã é u c c 68 ANAIS - 2013 oculto do qual as práticas seriam as manifestações; elas agora definem o campo das transformações, da novidade, das relações f ç ” O acontecimento em Foucault também esclarece o surgimento do homem como objeto do saber. Discorre sobre ele em sua disposição manifesta, com regularidades, dependências e transformação na ordem de um discurso. Para Foucault (2005b), é um fato para o qual algumas análises históricas se concentram. Porém, por trás desses fatos se buscam as redes discursivas, surgimentos de outros discursos, estabelecendo uma nova ordem do saber. Conforme o autor, eles se mostram como uma série de acontecimentos discursivos, descrevendo esses discursos em sua materialidade própria do enunciado constituindo dessa forma uma irrupção de singularidades históricas, muitas das vezes sem o conhecimento do que elas efetivamente tratam, ou seja, repetem-se discursos legitimados pela sociedade. Dessa forma, a noção de acontecimento de deficiente nos EINF’ , f , c c z -se pelos enunciados como: ausência, necessitado, imperfeito, incompleto, limitado, problemático, não adaptável, inacabado, trabalhoso e anormal, o que Foucault (2002) cha “ c ”, c c b f qu : Descrevem-se em geral os efeitos e os mecanismos de poder que se exercem sobre eles como mecanismos e efeitos de exclusão, de desqualificação, de exílio, de rejeição, de privação, de recusa, de desconhecimento; ou seja, todo o arsenal dos conceitos e mecanismos negativos da exclusão. (FOUCAULT, 2002, p. 54). 69 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento M c cu qu “ ã u ” c f desconhecimento, e o que é desconhecido provoca estranhamento e rejeição. Essa prática, segundo o autor, não está restrita apenas ao deficiente se aplica ao pobre, ao negro, ao indígena, ao preso, ao doente e a outros. Quanto ao conceito de acontecimento de família, foram recolhidos das entrevistas os enunciados que a caracterizam como: ausente, displicente, tem medo, omissa, desconhece a deficiência, não apoia, deficiente, doente, precisa de ajuda, despreparada, desestruturada, tem vergonha do deficiente, insegura, despreocupada e resistente. A noção de acontecimento de prática pedagógica na educação infantil com as crianças deficientes presentes nos enunciados das entrevistadas na pergunta se havia alguma limitação ou dificuldade para trabalhar com crianças deficientes no CEINF, as respostas foram: a) fazem o acolhimento: [...] acho assim que é o nosso papel mesmo da sociedade a gente enquanto educadores de estar acolhendo, de estar também buscando, e a gente fazer o nosso papel passar isso pra frente porque tem gente que não tem conhecimento, a gente não tem muito, mas o pouquinho que a gente tem você tem que esta instruindo (D2) [...] se chegar uma criança hoje, numa cadeira de roda aqui eu vou recebê-la sem saber o que fazer, vai ser o cuidar só, nos vamos ter cuidado pra não cair, cuidado esse tipo de cuidado, como lidar profissionalmente a gente não sabe, porque nos não temos esse preparo. (D3). [...] qual é o básico que eu creio que hoje é possível pra ser feito é 70 ANAIS - 2013 acolher, é o acolhimento emocional porque eu só fiz isso eu acho que nem conhecia como fazer, bom enquanto não chegam vamos dizer a parte teórica, a parte curricular eu vou fazer o básico eu vou acolher emocionalmente. (D4). [...] a gente tenta o professor tem que fazer peripécia malabarismo pra agradar mas a gente sabe que em turmas grandes a gente não agrada todo mundo, você ta as vezes a gente propõem uma atividade e pra gente tem esse resultado aqui mas pra criança não tem e aí você tem que usar o jogo de cintura e tentar driblar, ver, porque nem todo mundo gosta da mesma historia, então a minha preocupação maior seria com o bem estar da criança. (Prof 6). [...] falta de conhecimento do grupo em relação a esse trabalho de inclusão como no CEINF não basta o professor ter conhecimento sobre a inclusão é um todo é um grupo, existe Direção, em alguns existe o Professor de apoio, existe a Cozinha, as crianças vão dormir, então aí se você for pensar cada situação dessas tem limitações porque a criança vai passar mais ou menos de seis a oito horas no CEINF e o professor trabalha quatro horas com ele, e depois? Como é que vão atender essas crianças, como é que essas crianças serão atendidas, com certeza de uma forma precária. (Prof 9). b) não sabem o que ensinar: 71 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento [...] você não sabe diretamente o que fazer na hora lá dentro da sala de aula, o que você vai fazer com essa criança, o que vai fazer? Você fica sem um norte, sem uma direção e ao ver é isso. (Prof 1). [...], por exemplo, teria que estar buscando como que eu vou, a maneira que eu vou introduzir pra ela a atividade que eu dou pro os outros não posso estar separando ela né, eu tenho que incluir ela ali as vezes eu vou usar um suporte diferente né, mas ela tem que saber. (Prof 4). [...] essa criança ela como todos os outros tem direitos ta a educação, o direito de estar no meio de outras crianças tem direito de aprender diante de suas limitações mas ela tem o direito acho que qualquer coisa que ela aprender a mais pra vida dela ela já vai ser uma pessoa diferente. (Prof 10). c) precisam de professor itinerante: [...] Aí eu falo deveria ter uma professora só pra ela, itinerante né, então eu tenho que dar conta das outras crianças e dela, então eu acho que não sai uma coisa assim, de qualidade né, não adianta ter o conhecimento especifico pro problema dela a gente lidar com isso é difícil né. (Prof 2). [...] você precisa ter tempo pra isso dedicar, ter tempo, precisa muito de apoio, não adianta pegar um aluno com deficiência e deixar lá como se fosse uma samambaia tem que trabalhar o tempo todo com ele. (Prof 3). [...] vou precisar de alguém pra me 72 ANAIS - 2013 ajudar mas a questão do pedagógico de ensinar de correr atrás de recursos de ajudar essa criança aprender? Pra mim não tem diferença nenhuma dos outros, eu faria meu papel pedagógico do mesmo jeito, já trabalhei com criança assim, mas dependendo do grau que a criança precisa mais eu acho que 15 alunos teria que ser pra ter um bom trabalho, no máximo 20 pra fazer um bom trabalho. (Prof 11). d) formação continuada: [...] como largar 20 para cuidar de 1? Qual a formação enquanto professora eu tenho para lidar com qualquer tipo de deficiência? Eu respondo, nenhuma.Os cursos de capacitação da secretaria d educação não abordam esse assunto, é preciso capacitar os professores para que estes conduzam as aulas, amparados nos princípios da educação especial que são a preservação da dignidade humana, a busca da identidade e o exercício da cidadania. (Prof 15). Nessas falas, trazidas para mostrar a relação professor/aluno com deficiência, aparece a concepção de prática pedagógica atrelada à transmissão de conhecimentos, como precisa de material de apoio, profissional de apoio, suporte para ensinar e a concepção de que o professor desenvolve a criança. Isto faz emergir que o entendimento de ensino e aprendizagem é centrado no professor que ensina e não na criança que aprende, faltando a compreensão do que é o conhecimento, implícito nesses discursos. 73 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Nessas regularidades discursivas, observa-se, no entanto, que esses acontecimentos se constituem de uma multiplicidade de processos legais, institucionais e normativos, sem contar com seus efeitos ou conceitos, bons ou ruins. Nas entrevistas nota-se que esses acontecimentos discursivos constituem as verdades que revelam a necessária presença da inclusão na educação infantil, para o cuidar, fazer a guarda enquanto os pais trabalham. De certa forma, neste estudo, percebe-se como a fcê c c u c f EINF’ ócu desta pesquisa. Além disso, os sujeitos deficientes constituídos como objetos do conhecimento, estabelecendo os espaços onde esses objetos se transformam e onde é possível se falar deles (FOUCAULT, 2005a). O autor propõe que sejam organizados os conceitos que formam o campo de aparecimento desses enunciados, determinando a sua materialidade, controlando o discurso, determinando as condições de seu funcionamento. Observa-se que o discurso da inclusão dos deficientes está atrelado ao discurso social, cultural, que estabelece os padrões de normalidade em uma sociedade. Os discursos da educação dispõem quem deve ser incluído ou não, e a regra que define as condições históricas para o surgimento da deficiência como objeto de seletividade social. Enfim, sobre as condições de possibilidades discursivas, Foucault diz que será sempre na materialidade desse discurso que sua visibilidade é possível. Há sempre uma vontade de verdade. Assim, nas entrevistas, o que foi entendido é que houve uma apropriação social do discurso da inclusão, e cada sociedade tem seu regime de verdade, quando aparecem falas como: [...] se deve buscar políticas públicas para melhorar a situação deles. (Prof4; Prof12). [...] é preciso ter estruturas adequadas para 74 ANAIS - 2013 atender as necessidades dos deficientes. (Prof7; Prof9; Prof10). [...] é preciso suporte, apoio, mais atenção da sociedade. (CP2; Prof2; Prof3; Prof8; Prof14). [...] eles são iguais a nós, todos temos deficiências. (D1; Prof13). [...] eles podem se desenvolver. (CP1; Prof6). [...] eles tem potencial. (Prof1). [...] Não temos orientação certa, não temos a formação certa. (D2; Prof15; Prof16).[...] a criança tinha que ter informação, um laudo mesmo, pra saber se essa criança tem a possibilidade de fazer isso ou aquilo. (D3; Prof11). 4. Procedimentos de análises dos discursos A análise do discurso para Foucault (2005a) está centrada em alguns procedimentos que ele intitula de “ f çã ”, “ çã ”, “ çã ” “ xc u ã ” Seguindo esse delineamento de análise, houve o cuidado de trazer as falas das entrevistadas isentas de qualquer forma de julgamento, mostrando onde os procedimentos de análises foucaultianos permitem entender o presente, dentro de um discurso legalizado em que é necessária a inclusão na educação infantil e de que forma os EINF’ ã cb c ç . P “ f çã ” de um discurso, entende-se a unidade de origem discursiva, não como um autor, mas do que é aceito dizer, do que circula nas falas das professoras, como não se aceita que na educação se exclua, sob pena de ter que prestar conta do que se diz. Todas as professoras aceitam em suas salas de aulas crianças com deficiência. Porém, no não dito, não é isso que se quer dizer. Observa-se que quando questionadas a respeito de receberem crianças com deficiência em sua sala de aula, respondem da seguinte maneira: 75 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Sim, eu receberia porque, eu recebo até um filho, se Deus mandasse um filho eu receberia porque já trabalhava com educação especial, eu tenho essa facilidade, eu gosto. (D1). Com certeza, com certeza, expondo pra mãe todas as nossas dificuldades é por que a mãe tem que estar ciente disso, que a gente esta recebendo porque tem que receber. (D3). Sim receberia, pelo fato de eu ter trabalhado com as crianças antes de toda essa movimentação legal, vamos dizer assim, porque à medida que a Lei foi implantada foi surgindo já, olha a gente vai ter que receber. (D4). Sim, porque a gente não pode ter discriminação com a criança. (CP1). Sim, porque não é o discurso que a gente faz? Que tem que incluir, agora cabe ao professor incluir da melhor maneira possível. (CP2). No caso eu já tenho, eu não tenho problema nenhum em receber assim em questão, seria um preconceito meu, dizer que não trabalharia com essa criança porque não tenho suporte. (Prof2). Com certeza, porque eu acho que ela um cidadão comum igual aos outros, ela tem direito, como um normal tem. (Prof4). Sim, receberia, porque eu acredito que eu tenho que fazer a diferença se eu escolhi essa profissão eu tenho que não deixar essa criança a mercê eu tenho que fazer algo porque eu acredito que só a educação vai mudar e eu acredito que eu não posso deixar essa criança a mercê o que eu faço para os não deficientes eu tenho que 76 ANAIS - 2013 fazer buscando atividades complementares e buscando sempre o melhor. (Prof5). Receberia, por que eu não posso dizer não, eu como educadora eu não posso dizer não pra nenhuma criança, nenhum aluno. (Prof8). Com certeza, porque eu acho que essa criança ela como todos os outros tem direitos a educação, o direito de estar no meio de outras crianças tem direito de aprender diante de suas limitações. (Prof10). Claro, com certeza nossa porque se eu me negar receber uma criança dessa eu estou negando tudo; eu estou negando como educadora eu estou negando a transformação da sociedade, eu estou negando tudo. (Prof11). Não só receberia como tenho em minha sala, há sim receberia sim, com prazer, por que acho que a gente tem que trabalhar com eles, porque como qualquer uma criança normal, não vai ter nenhuma discriminação, normal. (Prof13). Sim, aliás c qu EINF’ ã tornando um depósito de deficientes, físicos, psíquicos, deficientes sociais, deficientes de família, deficientes de educação, limites, e deficiência vergonhosa dos prédios que são cedidos para prefeitura onde funcionam gu EINF’ (P f15) Depende do apoio e se eu tivesse preparo pra isso, dependendo da deficiência também. (Prof 16). Esses dizeres parecem não condizerem com a prática, justamente porque o falante não é seu autor, eles estão postos na lei. Isso se confirma em outro momento deste estudo quando 77 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento questionadas as entrevistadas sobre suas dificuldades em trabalhar com deficientes em sua sala de aula: elas se mostram despreparadas, sem apoio, estrutura, formação, mas receberiam os deficientes. Algumas já trabalharam em instituições direcionadas a deficientes e acham um ganho para suas carreiras profissionais. No entanto, segundo Foucault (2005a), esse discurso está na ordem da lei. Ele é legitimado pela ciência, então aceito como verdade. Ou cí cu é “ çã ”, apropriação social do discurso, um jogo de leitura que não é a percepção do pensamento. O papel do sujeito será o de reproduzir a ordem dada, que é pré-existente ao próprio sujeito e, independente dele, ou seja, entre o ser e o pensamento existe um nexo a ser estabelecido pelo discurso (FOUCAULT, 2005a). A representação de uma verdade, da vontade do saber e da sua aplicação em uma sociedade, que procura contornar essa vontade de verdade, difundida em várias instituições inclusive as educacionais, é explícita na fala das entrevistadas sobre como a sociedade vê o deficiente que na verdade representa o pensamento delas, o que não se desloca do social, todos são parte dele e reproduzem seus discursos: [...] é polemico, polemico num sentido bem amplo. (D1). [...] a sociedade ainda trata desse tema com muita discriminação por mais que fala que tem que ter a inclusão é tudo muito bonito você falando no papel; agora eu acho assim que vai estar melhor isso na próxima geração. (D2). [...] Eu acho que precisa melhorar mais, precisa de mais atenção. (D4). [...] há muito preconceito, muito preconceito, Eu tenho varias resistências, e eu acho uma falácia, é uma 78 ANAIS - 2013 mentira, a sociedade vê isso com receio, com preconceito, não por que é inclusão, as pessoas só têm um probleminha, mas ela vê diferente ela trata diferente, e ela tem medo, a sociedade tem medo. (CP1). [...] eu vejo que a sociedade ainda tem muito preconceito com a deficiência, os percentuais de deficientes estão aumentando bastante, antigamente não se via tanto, ou eles eram escondidos não sei não se via tanto, hoje em dia eles estão saindo pra trabalhar, eles estão saindo pra estudar, a sociedade eu acho que precisa buscar políticas publicas pra tentar melhorar a situação deles, principalmente nas escolas, acho que hoje a palavra deficiência esta em todos os lugares que a gente vê. (Prof 1). [...] com preconceito eu sinto muito preconceito. (Prof2). [...] tratam como se fossem uma arvore, um banco de praça. (Prof3). [...] esta deixando muito a desejar, se fala muito em ajudar as pessoas que se encontra com deficiência, mas fica mais nas palavras, então falta muito, a sociedade deixa muito a desejar o poder público, tudo. (Prof4). [...] a própria sociedade não esta preparada para estas pessoas. (Prof7). [...] acho que tem mudado um pouco, mas ainda precisa mudar mais por que, muitas das vezes são esquecidos, por exemplo, estão querendo fazer inclusão das crianças que tem algum tipo de deficiência seja ela física u c óg c EINF’ , ó qu estão dando é... suporte pra isso? Eles vão colocar pessoas capacitadas pra isso? Pelo 79 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento que eu tenho visto não, então é tratado de uma forma muito superficial, muito assim... a deficiência...é assim então você se vira, sabe. (Prof8). [...] esse tema da deficiência esta na moda, mas é pura moda, porque na realidade ninguém se importa muito com o deficiente, está aí na mídia se fala muito, mas na pratica se faz pouco pelo deficiente desde sala de aula até fora, na calçada, no mercado, no banco, tudo, ainda falta muita coisa para que o deficiente tenha um acesso melhor as coisas. (Prof9). [...] a própria sociedade exclui por ser diferente. (Prof13). [...] como uma hipocrisia sem vergonha. (Prof15). [...] hipócrita, muita hipocrisia, muito projeto aleatório, utópico, a sociedade é muito hipócrita. (Prof16). Diante das falas, nota-se que não há como se eximir de responsabilidade. A sociedade não é o outro, há a presença de cada um dentro dela, o que é difícil compreender. Nas falas há uma representação do real, do social, com todo o resquício cultural herdado e que é passado para as outras gerações. São os discursos de verdades que ela acolhe, faz funcionar como verdade e traz à tona o próprio regime de verdade. A sociedade, nas palavras de Foucault, é excludente, ou seja, organiza-se pela seleção, pela exclusão (FOUCAULT, 1987). “ çã ”, u cí á discurso, segundo o qual não se pode falar de tudo, existe o lugar de quem fala e a qualificação do sujeito que fala. Assim, ficam diferenciadas as falas das diretoras em relação às das professoras quanto à inclusão das crianças deficientes nos CEINFs, que por elas é visto da seguinte forma: 80 ANAIS - 2013 Então, é.. cada dia que passa está vindo crianças com necessidades especiais cada dia que passa, vem uma serie de necessidades especiais de deficientes, entre aspas, o que é deficientes também né? O que é e o que não é? Mas assim, as mães, elas vem fazer as matrículas e elas não falam pra gente, a gente descobre no dia a dia, e quando descobre, fala pra mãe. Mãezinha será que o fulano esta assim, será que o fulano não está com problema, tem isso, tem aquilo, mas não, há eu percebi mas já levei no médico e não é nada não. então, assim é complicado, tem que pensar muito na questão do professor itinerante, tem que ter uma formação, tem que ter uma pósgraduação em educação especial tem que ter uma experiência de pelo menos um ano numa instituição, conhecer, tudo né? Ver como é a realidade deve propor atividades para essa criança se não vai ficar fingindo, entre aspas, que está trabalhando, também não é inclusão isso, é uma exclusão. (D1). Olha eu acho legal, a gente tem que ter mesmo, tem que incluir e é assim, a gente tem que começar o nosso trabalho agora pra realmente ele ser incluso, estar aí na sociedade trabalhando, constituindo família que nem já tem. Mais assim, a longo prazo, futuramente, acho muito bacana, por mais da dificuldade que a gente tem mas eu acho que tem que ter mesmo eu acho que na educação infantil, na escola, na vida social, no trabalho, qualquer canto né, eu acho que 81 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ele é um ser humano só tem alguma deficiência mais é um ser humano igual a gente, que garante que nós não temos né, quem garante que nós não temos uma deficiência, você fala normais, normal entre aspas, não é verdade? Então assim, eu acho, que graças a Deus hoje em dia eu fico pensando eu não tenho na minha família, mas se tivesse como seria o tratamento né, como que seria? A gente, eu acho assim, muito bacana, na verdade, a gente só sente quando esta na pele, você tem que ser próximo, você tem que agir melhor, mas eu acho muito bacana, que nem por enquanto só tenho uma mas eu falo para as meninas se vim mais a gente tem que aceitar e a gente esta aí pra isso, pra trabalhar com essas crianças, incluir.. (D2). Pergunta difícil, porque a gente tem que aceitar, porque é uma Lei que esta aí, nos temos que cumprir, mas ao mesmo tempo cumprir como? De que jeito? Então realmente nos temos que incluir crianças no meio das nossas crianças, mas nos não temos profissionais pra isso, nos não temos acessibilidade, não temos preparo nenhum. Na verdade, nos não temos desde o profissional até o próprio espaço, nós não temos espaço para cadeirante, que na EINF’ os que estão construindo eles já tem, por exemplo o banheiro com acessibilidade tem a rampa, nos não temos, no nosso CEINF aqui nos não temos nem rampa pra eles subirem, 82 ANAIS - 2013 estou lutando, já pedi, inclusive nós temos uma rampa pequenininha ali, foi eu quem fiz, eu mandei fazer, nós não tínhamos, mas já pedi pra secretaria, então a gente está lutando pra isso. (D3). De educação infantil especificamente? é, ele não tem assistência devida, devida não olhando assim ao pé da letra mas o mínimo que tem se buscado por aí, ele não tem assistência individualizada, eles tem simplesmente chegado, eles só chegaram vejo que eles estão na fase inicial, que as escolas já deram um passo a mais, c í EINF’ ã (D4) Diante desses depoimentos, nota-se que as diretoras procuram eximir de que não receberiam os alunos com deficiência, todas recebem, o que comprova o discurso vinculado na sociedade em que o preconceito é algo já superado, mesmo sendo este de base cultural; afinal, os cargos de diretora são preenchidos por indicação política e são pessoas que exercem, de certa forma, influencia em seu local de atuação. Entretanto, a responsabilidade recai sobre as famílias, que não têm conhecimento, não aceitam a deficiência e são resistentes. Ela também é depositada no professor, que não é qualificado, não tem interesse, não busca e não tem experiências. É í b qu cu qu “ ” deve ser afastado, precisa ser vigiado por laudos, por conversas com a família para que o mantenha o mais docilizado possível, porque ele é o diferente e não se sabe trabalhar com o diferente. Isto mostra o não dito do discurso, porque esse não dito não é condizente com a legalidade. É “ çã ” ch F uc u (2005b), u j , foi interditado nas falas das diretoras, porque foi fixado um 83 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento limite até onde elas deveriam falar. Existe um lugar de onde elas falam e as reconduz ao silêncio. O autor ressalta que não é fácil dizer alguma coisa nova, diferente daquilo que se espera, porque o discurso situa-se em um feixe de relações sociais, culturais e econômicas, que vai limitar esses discursos, mostrando a superfície de uma inclusão que não acontece. “ çã ” bé f professoras quando usam outros termos para dizer que não querem deficientes em suas salas de aula, por não saberem como lidar; de não ter uma desculpa para dar; não ter formação específica ou que eles deveriam ter um lugar apropriado. Quando questionadas sobre como elas viam a inclusão dos deficientes nos CEINF’ , : É uma situação muito preocupante, porque pela estrutura que a gente tem aqui dentro do CEINF a gente não tem uma estrutura especifica até mesmo para os que estão aqui que não tem dificuldade nenhuma, falta um apoio, um profissional de apoio que sabe lidar com esse tipo as salas geralmente são lotadas, material pra uma pessoa que eu acredito com deficiência precisa de um material diferenciado, e agente não tem isso aqui nos CEINF. (Prof1). É porque é Lei, que a criança esteja incluída né, mas dentro da sala de aula o professor não tem especialização nenhuma não tem suporte nenhum pra isso. (Prof2). Olha, é imposto pra gente, que devemos receber essas crianças né, mas não temos acessibilidade. (Prof4). 84 ANAIS - 2013 eu não tenho preparação para trabalhar com essa criança, eu acho que essa criança precisa dependendo do tipo de deficiência ela precisa de uma fono, precisa de um T. O. ela precisa de uma Fisioterapeuta, pra ela ter essa inclusão, pra ela ser inclusa realmente, e não tem isso, nem na escolas, não tem, então o que acontece geralmente é uma classe numerosa, com duas pessoas ou três, o certo é três, mas tem sala que tem só duas e daí? Como é que essa criança vai ficar? Eu fico me perguntando, será que realmente ela vai ser inclusa ou vai ser excluída de vez. (Prof8). Na realidade é assim bastante precária, quase inexistente, se você for pensar em inclusão como manda a Lei, nos podemos dizer que não existe porque na realidade o que existe hoje nos CEINFs é você abrir a porta e colocar uma criança a mais, sem levar em conta as necessidades dessa pessoa, como vai ser atendido, qual a formação do professor do profissional que vai estar perto dessa criança, não tem nada hoje, nada mesmo. (Prof9). Eu queria estar preparada para receber apesar de já ter recebido e sem ser questionada se eu queria ou não, a gente tem que receber, só que eu não tenho um preparo pra estar trabalhando, não sei como trabalhar com essa criança a gente tem assim aquele, o que a gente vai adquirindo com a pratica, 85 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento mas a fundo o que trabalhar com uma criança com deficiência, dependendo da deficiência que ela tenha eu não tenho uma qualificação assim especifica pra isso.(Prof14). Ainda que as professoras entendam que a inclusão é um direito da criança, elas confessam que as recebem em virtude da lei, ou seja, por serem obrigadas. Mas, quanto ao trabalho educativo, nada está dito, mas se observa que ele não acontece em consequência de fatores alocados pelas professoras como externos ao seu trabalho. O principal deles é a falta de estrutura. Com isso, verifica-se que a inclusão ainda é um fator legal, dito, prescrito nos aparatos que regem e governam o discurso. Não fazem parte de uma prática discursiva da inclusão, que remete a outro princípio discursivo citado por Foucault (2005b) c “ xc u ã ”, qu c separação, rejeição. Foi apontado por todas as entrevistadas que é c qu f cu ã , “ c ” ã quer por perto, porque não sabem o que fazer com eles. A técnica da escolarização de ensinar tudo a todos se aplica a todos que consigam responder a ela, o que foge disso é excluído. Quando questionadas sobre as condições que os EINF’ f c c b c ç c deficiências, nota-se outro fator que revela o princípio da “ xc u ã ”. Então outra forma de exclusão é desenhada, a histórica. Na sociedade não há espaço para o que não se encaixa dentro dos padrões que ela estabelece. Mesmo que para efetivar essa exclusão são usados outros termos, outras formas de dizer como: [...] nem mesmo quem faz uma pósgraduação está preparado, a pessoa não está 86 ANAIS - 2013 preparada. (D1). [...] nós temos que abrir as EINF’ (D3) [ ] EINF’ ã ã , na questão física de acessibilidade nem na questão profissional; a parte curricular do próprio centro não está adequado pra isso. (D4). [...] além da acessibilidade que não tem eu acredito assim, que essa lei, pelo que já me informaram o CEINF não tem direito a uma professora auxiliar. (CP1). [...] não tem estrutura pra receber um deficiente, cadeirante, não tem rampa não tem banheiro adaptados. (CP2). [...] é um assunto muito novo. (Prof1). [...] não porque eu tenho uma aluna e eu não tenho nada direcionado de como trabalhar com aquela criança. (Prof2). [...] a parte pedagógica tem, o que as crianças tem, não tem fisioterapeuta no CEINF, não tem psicólogo, não tem psiquiatra, não tem um terapeuta ocupacional, então como essa criança vai ficar dentro do CEINF, não tem nem banheiro adequado, e as salas mesmos, que espaço que ela vai estar o tempo todo. (Prof8). [...] se for esperar estar preparado a inclusão não chega, vai demorar muito. (Prof9). [...] h uc çã f EINF ‘ não estão preparado porque eu acho que é nem tanto lugar, são os profissionais, que 87 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento nós não temos profissionais preparados. (Prof12). [ ] ã ch qu EINF’ ã preparados não, eu acho que a gente teria que ter um acompanhamento de um profissional da área da saúde para nos dar noções de como trabalhar com essas crianças, e na maioria das vezes nem um laudo a gente tem. E outra coisa é o espaço físico que às vezes não atende as necessidades das crianças, mobílias próprias, porque é tudo na aparência. (Prof14). [...] não. Professores sem informação CEINF’ cu f c , envolvidos em um contexto onde a sobrevivência é a principal luta, os portadores de deficiência ficam esquecidos num canto pela própria instituição, pela família, pela comunidade e pelas autoridades. Ficam marginalizados do convívio social, sem cidadania, sem dignidade. (Prof15). [...] não estamos preparados. (Prof14, D2, Prof3, Prof4, Prof11, Prof13, Prof16). Esses enunciados estão ligados ao discurso da exclusão com suas regularidades, crenças, sem serem incoerentes, porque eles aparecem na mesma formação discursiva da inclusão. Para Foucault (2005a, p. 73), são pontos de equivalência. Nas u , “[ ] u -se num mesmo nível; e ao invés de constituírem uma pura e simples falta de 88 ANAIS - 2013 c ê c ,f u ” D f , ju f c -se a inclusão estar restrita a um contingente de mais ou menos 70 matrículas, em todos os Centros de Educação Infantil do município de Campo Grande, MS, que no total são 96 Centros. 5. Discursos das participantes inclusão, educação e família sobre deficiência, Nas entrevistas, uma das perguntas era sobre a ã fcê c c ã u “ c ” qu f EINF’ “ participante ” qu f í fz c u respostas da F2 serem respondidas pelo pai da aluna: c [...] pessoa que tem algum tipo de limitação. (Prof1). [...] é ter dificuldade em alguma coisa. (Prof2). [...] limitado. (Prof4). [...] toda pessoa que necessita de um cuidado especial. (Prof7). [...] é a pessoa que tem algo que não é considerado normal pelos padrões da sociedade. (Prof8). [...] incapaz, é aquela em que a pessoa não consegue, é ir até onde a gente vai. (D3). [...] falta de alguma coisa. (Prof9); (D1); (D4).[...] é necessitar de ajuda para executar algumas funções ou atividade. (Prof11). [...] sem habilidades. (Prof12). [...] não ter domínio de algumas habilidades. (Prof14). [...] anormal. (Prof16). [...] precisa de um cuidado a mais. (CP1). [...] ausência de uma estrutura mental, visual. (CP2). Segundo o Decreto Federal n.º 914, de 6 de setembro de 1993 (BRASIL, 1993a), deficiente é a "[...] pessoa que 89 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento apresenta, em caráter permanente, perdas ou anomalias de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividades, dentro do padrão considerado normal para o ser humano". Observa-se que as falas das entrevistadas e o que está disposto no documento legal são discursos que se afinam. Já as famílias entrevistadas dos alunos deficientes responderam, mesmo não gostando da palavra deficiente por achar muito pesada, que: [...] disfunção de uma estrutura psíquica, fisiológica ou anatômica. (F1). [...] pessoas que nascem com alguma coisa assim, como cegas, surdas, que a gente vai precisar ter muitos cuidados (F2). [...] tem atraso no desenvolvimento; são diferentes das outras que tem idade certa, normais. (F3). Ao contrário do que foi relatado em algumas falas das c EINF’ , a família sabe o que é deficiência, mesmo atrelando em algumas vezes à doença, porém não como limitação para a educação destes. Com exceção da F3, as outras duas famílias não veem o processo educativo nos Centros de Educação Infantil como possibilidade e nem que estes estejam preparados para a inclusão, o que relatam em suas falas: Não, as faltas de estruturas no ambiente dificulta as limitações que eles precisa condições de acessibilidades são visto em b EINF’ , f adaptadas,banheiros,refeitórios, rampas de acesso e sem falar no grande números de crianças que são assistidas por um pequeno grupo de funcionários.(F1). 90 ANAIS - 2013 [...] não, porque tem que ter uma pessoa pra ele lá, e o pessoal da SEMED falou que ele precisa de uma pessoa só pra ele, mas até agora não veio ninguém, e ele está lá desde 8 meses e agora que falou que ele tem direito de ter uma pessoa só pra ele mas não tem, tem a C. né, mas ela direto pega atestado, não sei inclusive o dia que ela não vai pedem pra não levar ele, toda sexta ela não está e não é pra levar ele, é muito complicado, a diretora tem muita boa vontade mas não depende só dela né, depende de uma equipe né, pra mim está tudo despreparado. (F3). Foucault (2002) relata que a figura do deficiente surgiu na sociedade no lugar do monstro, representando uma violação das leis dos homens e da natureza, não respondendo por sua incapacidade. Será o monstro cotidiano, banalizado, sem vida, incorrigível, mas que terá que ser colocado em instituições para a sua correção. Foi observado que não há nada de novo nas respostas das entrevistadas, pois o individuo anormal foi constituído na prática e no saber do séc. XVIII. Desde então vem sendo alvo dos discursos dos saberes institucionais, que por elas foram confiscados e absorvidos na tentativa de correção. Quanto a isso, Foucault (2002, p. 72) esclarece que: O contexto de referência do individuo a ser corrigido é muito mais limitado: é a família mesma, no exercício de seu poder interno ou na gestão da sua economia; ou, no máximo, é a família na sua relação com as instituições que lhe são vizinhas ou que a 91 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento apoiam. O individuo a ser corrigido vai aparecer nesse jogo, nesse conflito, nesse sistema de apoio que existe entre a família e, depois a escola, a oficina, a rua, o bairro, a paróquia, a igreja, a policia, etc. Esse contexto, portanto, é o campo de aparecimento do individuo a ser corrigido. Mas quando perguntadas quais seriam seus limites para trabalhar com alunos deficientes, elas respondem: Ainda segundo o autor, o que define um indivíduo a ser corrigido é justamente o fato de ele ser incorrigível. Há sempre a questão de que é preciso fazer algo para amenizar. É certo que essas crianças não ocuparão o mesmo espaço que as normais em virtude do estabelecimento de um padrão de normalidade. O que não se enquadra nesse padrão é excluído, pois isto se institui nas práticas culturais e se adapta nas práticas pedagógicas. Para esclarecer esses pontos reporta-se a Foucault (2005b), que classifica os discursos nos princípios da inversão, descontinuidade, especificidade, exterioridade, para fazer com que apareçam os procedimentos de classificação, ordenação, distribuição e interdição. O autor trabalha com a noção de acontecimento, série, regularidade e condição de possibilidade. Como o discurso é controlado e existe um padrão b c , F uc u z qu é c h u u “ bu bj ”, u j , ã f u qu qu circunstância. Não se tem o direito de dizer tudo. É preciso seguir um ritual mesmo que não se concorde. Nas falas das entrevistadas não há a hipótese de não aceitar o deficiente. Todas aceitam e defendem a inclusão, a necessidade de formação contínua para melhor atender o deficiente. Defendem o direito e a aceitação dos deficientes em salas de aula comuns 92 ANAIS - 2013 para conviver com seus iguais, mas em que operatividades são postulados, revelam outros elementos. [...] salas de aulas cheias, necessidade de professor auxiliar, o tempo em sala de aula é muito pouco, má formação, falta de acessibilidade do aluno. (D1; D4; CP2; Prof1; Prof2; Prof3; Prof4; Prof5; Prof8; Prof10; Prof11; Prof12; Prof13; Prof14; Prof15; Prof16). [...] a família não informar o que a criança tem. (D2; D3). [...] não tenho limites em trabalhar com o deficiente. (CP1). [...] a questão pedagógica, não sei o que trabalhar. (Prof6, Prof7). [...] uma equipe preparada (Prof9). Porém, como o autor bem esclarece, esse procedimento à “ j çã ”, f c c qu ã qu EINF’ ã ã s; o corpo docente não está preparado, precisa de um professor de apoio; não tem material adequado; as salas são cheias e que não têm conhecimento sobre a deficiência. É o que se percebe nos dizeres de Foucault (2005b, p. 43-44): Sabe-se que educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo o individuo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distancia, pela oposição e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira 93 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento política de manter ou modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que eles trazem consigo. As falas das entrevistadas mostram essa ideia do autor. Os sujeitos que participaram da pesquisa reconhecem que os deficientes infantis têm o direito de estar nos espaços de educação para receber o devido cuidado. Por outro lado, eles são negados quando os professores revelam que o espaço físico não oferece condições de inclusão, ao mostrar o despreparo para o exercício da função e até ao considerar a obrigação de aceitar u fc “ qu ã u j ” ( P1) Quanto à posição das famílias em relação ao processo inclusivo como limite e possibilidade, elas relatam que: Possibilidade existe a inclusão no ambiente comum de aprendizagem claro oferecendo as condições de acessibilidades possibilita o preparo para a inserção nos espaços sociais. A inclusão é extremamente favorável á eliminação de posturas excludentes, pois a partir da convivência com portadores de necessidades especiais as crianças aprendem desde cedo a não discriminar valores como a solidariedade e o respeito a diferença.(F1). [...] porque desde que nós descobrimos que ela tinha baixa visão nós procuramos o ISMAC, e lá ela desenvolveu bastante, eles fazem estimulação, ensina postura, ajuda a ficar independente, essas coisas e, foram eles que mandaram a gente colocar ela num CEINF, eles falaram que ia ser bom pra ela 94 ANAIS - 2013 conviver com outras crianças da idade dela. (F2). Não, não vai desenvolver nada porque a professora não vai poder dar atenção pra ela, só pra ela, não vai dar, quando eu fazia normal médio e fui fazer estágio na escola eram tantas crianças problemática que tinham na sala, que eu falei gente, cadê o pai, a mãe dessas crianças pra correr fazer um exame né, não é pra estar excluída daquela sala, mas que deveria ter um especialista tratando deles né, isso pra mim não é eles serem excluídos né, isso seria um tratamento melhor pra eles, como essas crianças vão desenvolver? Elas lá no meio daquelas crianças que não tem problema nenhum? Eu penso assim o meu não vai desenvolver, como que eu vou colocar o L. numa sala com um monte de criancinhas a professora não vai dar a atenção que ele merece, até já me falaram, L. não vai colocar ele nessas escolas, vai procurar uma particular que é melhor, não dá como que eu vou jogar meu filho lá, não dá, ele é um bebe gigante com aquelas crianças que tem uma evolução diferente dele. (F3). Não que a família mostra resistência; ela matricula a criança com outras possibilidades, que não é a educativa, mas como meio de sociabilidade e convivência, vendo o direito de seus filhos serem inseridos nesse processo. O fato de dizerem que a escola não está preparada, não ter pessoas qualificadas para acompanhar o desenvolvimento de seus filhos é parte do 95 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento processo de culpabilização que a sociedade nas suas instituições procuram se eximir, em um processo em que a legislação passa a responsabilidade para a escola e a escola à família e esta, em um processo de superação, faz o caminho inverso. O mesmo dito visto nos aparatos normativos nacionais que colocam a educação como direito de todos, dever do Estado e obrigação da família, o que Foucault (2002) ressalta que a família surge no cenário da modernidade como um dos instrumentos importantes na direção das condutas alheias, que, no entanto, estas passaram a serem regidas por uma série de obrigações, principalmente em relação à infância. Algumas considerações Reafirma-se desse modo que não houve a intenção de mensurar, nas entrevistas, se as verdades ditas são boas ou ruins, certas ou erradas, verdadeiras ou falsas, mas esclarecer quais enunciados de verdades estão contidos nos discursos da inclusão nos CEINFs, o que fez reportar a uma localidade da cidade de Campo Grande, MS. Porém, mesmo esses discursos expressos nas falas dos participantes serem localizados, não são fatos isolados, não são privilégios de uma localidade, o que fica comprovado nos dados do INEP (2011), apenas 70 matrículas de crianças com fcê c EINF’ u cí M qu esses discursos estão vinculados ao desejo de ser aceito pelo outro e de reproduzir o que é dito socialmente. As verdades ditas são produções sociais, dentro de uma cultura de padrões de normalidades, centradas no discurso da inclusão que vem permeando as legislações nacionais e produzindo subjetividades, mesmo não falando que o anormal 96 ANAIS - 2013 deve ser recolhido, mantido afastado dos outros, tem-se esse comportamento de excluí-los de outras formas. z c uj EINF’ das Moreninhas reafirmam o conceito de deficiente na sociedade, como o incapaz, e evidencia, mais uma vez, as tantas mazelas enfrentadas por eles e suas famílias nos serviços públicos essenciais, como saúde e educação, que, como foi analisado, o conceito de educação não faz sentido para quem é deficiente; basta fazer a guarda destes por algumas horas do dia, então o EINF’ cu u Pensar em uma educação que não reforça as contradições sociais, respeitando os deficientes ou não, como sujeitos de suas próprias construções históricas, passa pela mudança de vontade e envolvimento político de quem lida com o deficiente, despojado de uma preocupação com a ordem de seus discursos, como possibilidade de entendimento da realidade e dos problemas referentes à inclusão de deficientes nas escolas comuns, sem buscar para eles soluções definitivas ou respostas reveladoras, mas podendo evidenciar como foram produzidos e constituídos como tais. A educação passa mais pela forma de como se concebe o aluno com deficiência ou não, e não com a destreza em se lidar com a deficiência. Constitui na forma como ele é visto, um ser humano limitado e diferente como qualquer outro, sendo respeitado como gente, e tratado com a mesma dignidade que toda pessoa gostaria de ser tratada. Assim, a questão da inclusão passa ao conjunto de relações impostas à realidade social brasileira, o que leva a concluir que o discurso da inclusão dos deficientes em sala de aula comum é uma estratégia sedutora de apaziguamento dos conflitos sociais, mesmo que isso provoque o processo inverso, que é a fragmentação para que se estabeleça o controle. 97 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Diante disso, a palavra da família é ouvida na manutenção da cesura; sua escuta é investida pelo desejo de saber sustentado sobre um suporte institucional, como coerção, utopia ou angústia e que permite construir novos discursos, defendido e apropriado pelo discurso econômico e político. Enfim, como já dito neste trabalho, a sociedade se organiza pela exclusão, quando estão presentes os mecanismos de rejeição que entram em jogo quando um sujeito que fala, sejam os professores ou a família, formula um ou vários enunciados de uma pertença de classe, de uma apropriação social do discurso, a separação permanece. Referências FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro; Forense-Universitária, 2005a. ______. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 12. ed. São Paulo: Loyola, 2005b. ______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 3 ed. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 22. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006. ______. Os anormais. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 98 ANAIS - 2013 ______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. GLAT, Rosana (Org.). Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007. (Questões Atuais em Educação Especial). INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo escolar – 2006. Brasília: INEP, 2006. Disponível em: <http://www.inep.gov.br>. Acesso em: 3 mar. 2010. ______. Censo escolar – 2009. Brasília: INEP, 2009. Disponível em: <http://www.inep.gov.br>. Acesso em: 3 mar. 2010. ______. Censo escolar – 2010. Brasília: INEP, 2010. Disponível em: <http://www.inep.gov.br>. Acesso em: 3 mar. 2010. ______. Censo escolar - 2011. Brasília, 2011. Disponível em: <http://www.inep.gov.br>. Acesso em: 3 mar. 2010. JORNAL FOLHA DE S. PAULO. Pais barram filho deficiente na escola. FOCO, São Paulo, ano 50, 16 ago. 2010. C1. LOPES, Maura Corcini; HATTGE, Morgana Domenica (Orgs.). Inclusão escolar: conjunto de práticas que governam. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 99 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A linguística aplicada ao teatro no ensino de inglês: do fragmento à uma hiper-realidade Lindomar Cavalcante de Lacerda LIMA1 “T x é b ção e transformação de uma u c u x ” (KRISTEVA, 1969, p. 146) RESUMO: A aproximação entre disciplinas tornou-se uma constante nas discussões relativas às interdisciplinaridades. Assim, este artigo apresenta proposta que vai muito além de um cruzamento entre disciplinas, algo que se apropria da ideia de interdisciplinaridade e consegue, num movimento autofágico, ir além, inserindo conhecimentos das áreas da linguística e da semiótica, utilizando como pano de fundo a teoria literária e a teoria teatral. Como aporte teórico foram utilizados os conceitos de Rygaert, Pallotini e Rosenfeld e as teorias para o aprendizado de Línguas de Thornbury, Batstone e Malley e Duff, juntamente, com as teorias de estudo da linguagem de Eco, Kristeva, Bauman e Baudrillard. Assim, demonstra-se o efeito metodológico que uma abordagem teatral causa no ensino de uma segunda língua. PALAVRAS-CHAVE: Inglês; Teatro; Hipertexto;Escola Pública Introdução Vivemos, hoje, o que Bauman chama de sociedade de consumidores, estruturada em forma de rede de informações, criada apenas para o consumo e que configura o novo espaço global. A economia mundial segue a tendência de uma nova 1 Professor de Língua Inglesa da rede Estadual e Municipal de Ensino de Campo Grande-MS. Mestre em Estudos de Linguagens. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected] 100 ANAIS - 2013 mercadoria: a informação e a comunicação, mediada por computador, além de influenciar o andamento do mercado mundial, possibilita o desenvolvimento de novas formas de leitura e, com isso, a configuração de uma nova morfologia genérica, o hipertexto. A sociedade da comunicação tenta formar sua identidade nas possíveis e instáveis mudanças acarretadas pelo seu próprio processo de desenvolvimento cyber-cultural e pós-moderno, considerando que o homem moderno, como vemos assinalado nos livros de história, carregou consigo a descrença de uma perspectiva pessimista acenada pelo seu próprio processo de industrialização. O Homem pós-moderno, por conseguinte, aprendeu a viver com esse falso otimismo, vinculando-o agora a um racionalismo informatizador. Essa perspectiva pós-modernizadora de simulação é assinalada por pensadores como, por exemplo, Baudrillard e à“ da comunicação que induz esta sobrevalorização no simulacro, com fins dissuasivos, os de curto-circuitar, antecipadamente, toda a possibilidade de comunicação (precessã qu õ f )” (BAUDRILLARD, 1981, p. 105). Tal perspectiva atinge, na era da cultura de massa, o seu ponto de sombria exaustão, com a reprodução em massa de realidades criadas pelo cinema e pela televisão, para entorpecer o senso crítico e satisfazer ao mesmo tempo o desejo de mudança, frustrando o homem pós-moderno, que parece ter assumido a passividade do conformismo. Preocupado com isso, já em 1818, Samuel Taylor Coleridge buscava demonstrar os princípios pelos quais o pensamento humano era organizado. Em sua introdução à Encyclopaedia Metropolitana Treatise on Method, ele já demonstrava aversão ao sistema de classificação alfabética e 101 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento propunha princípios mais significativos de organização da informação. A busca crescente de todos esses teóricos e escritores, em criar outra forma narrativa que pudesse ser mais veloz e dinâmica e que deixasse o leitor livre para seguir suas próprias escolhas, sem um direcionamento linear pré-determinado pelo autor, nos permite entender que temos aí um proto-hipertexto. O termo hipertexto, entretanto, só apareceu em primeira mão, quando Theodor H. Nelson (1965) em uma apresentação à Conferência Nacional da Association for Computing Machinery, nos Estados Unidos, revelou-o como um novo vocábulo para se referir a uma escrita/leitura não sequencial, não linear. Partindo das concepções desses pensadores, surgiu a ideia de explorar esses simulacros em sala de aula e, como o teatro nada mais é que puro simulacro, ou seja, representação de uma realidade, as peças foram enriquecidas com o novo conceito e desenvolvidas pelos alunos. Saímos dos teatrinhos que simulavam situações de datas comemorativas, mobilizando vocabulários usados em restaurante, hospital ou aeroporto, para criar verdadeiras adaptações de outros textos como Romeo and Juliet, de Shakespeare ou Sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Entretanto, o ponto crucial em sala de aula foi a adaptação da peça Macbeth, de Shakespeare e Corpse Bride 2 (Noiva Cadáver), de Tim Burton, sendo a última mais complexa, tendo em vista que, montar uma peça com um texto originalmente escrito para o teatro como Macbeth é bem mais fácil do que selecionar recortes de cenas de um filme e adaptálos para serem encenados. 2 http://www.youtube.com/watch?v=_AHOXEdD46s&feature=mfu_in_order &list=UL, 102 ANAIS - 2013 É reconhecido que as artes têm o poder de antecipar muitas invenções da ciência e prever vários avanços tecnológicos, nesse caso, com a arte-educação, não foi diferente. Autores como Landow, Bolter e Murray são unânimes em afirmar que essas tentativas de rompimento dos padrões "lineares" da escrita teriam sido precursoras do conceito do hipertexto. Portanto, considera-se os teatros produzidos pelos alunos, metaforicamente, de hipertextuais, algo parecido com uma intertextualidade de caráter genérico, porque se referem a muitos outros textos por meio de conexões e associações que podem ou não ficar a cargo do leitor. São obras que, de certa forma, subvertem a noção de texto tradicional, apontando para a atividade do leitor em seguir caminhos variados em histórias multiformes. Jorge Luis Borges, no seu conto O jardim dos caminhos que se bifurcam, apresenta uma história repleta de alusões e associações dentro dela mesma, como se fosse um labirinto, num exercício de narrativa que assume formas diferentes de tempo e de espaço, realizando uma verdadeira reconceituação desses aspectos na forma literária: - Antes de exumar esta carta, eu tinha me perguntado de que maneira um livro pode ser infinito. Não conjeturei outro processo que o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar indefinidamente. Recordei também aquela noite que está no centro das Mil e Uma Noites, quando a Rainha Scherazade (por uma mágica distração do copista) põe-se a f xu h ó ‘1001 N ’, c c ch g u zà 103 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento noite na qual está fazendo o relato, e assim até o infinito. Imaginei também uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai a filho, na qual cada novo indivíduo aditasse um capítulo ou corrigisse com piedoso cuidado a página dos antepassados (BORGES, 1997, p.100, grifos do autor). Borges ilustra mais especificamente no fragmento descrito acima, um exemplo do que seria uma hiperficção, narrativa comum veiculada pela Web, que tem um texto com várias opções de continuação (bifurcações), por meio de links à escolha do leitor que, assim, cria sua própria história. A teoria literária, a semiótica e a linguística são de uma importância teórica- metodológica essencial em sala de aula, pois essas teorias ampliam o horizonte de criatividade do professor e quem ganha com isso no aprendizado é o aluno. As aulas deixam de ser interdisciplinares e passam a ser hiperdisciplinares, ou seja, quando o hipertexto é usado numa prática cênica, ele se torna um simulacro de si mesmo, e não vemos mais os alunos, mas os atores dando forma e vida às palavras. O interessante é que, mesmo as encenações sendo em inglês, temos aí uma outra característica semiótica do teatro, a desconstrução da compreensão por signos verbais, dando lugar a recursos corporais, algo como um semissimbolismo, ou seja, recursos gestuais que dizem mais que as próprias palavras. Hipertexto: outra forma de intertextualidade? O hipertexto é uma forma de organização da informação e, como elucidado anteriormente, nasceu com a literatura nos meios impressos. Poetas e escritores como James Joyce, Jorge 104 ANAIS - 2013 Luis Borges, Marcel Proust, Julio Cortazar, Umberto Eco, Roland Barthes, Ítalo Calvino, entre muitos outros, tiveram a oportunidade de experimentar formas alternativas de organização da informação e dos caminhos de escrita e leitura. Outro exemplo, porém mais recente, é do escritor B ég ’ u c Simulacros, que possibilita ao leitor múltiplas direções em sua narrativa, com jogos teatrais e performances, inserindo um coautor na própria obra, tendo assim, uma participação ativa. Sant´Anna propõe uma construção intencional que relaciona/cruza teatro e narrativa, jogando com questões que dizem respeito à realidade e à ficção. Compreendendo as restrições temporais e curriculares do componente curricular Língua Inglesa, buscou-se criar mecanismos para gerar uma relação diferente do aluno/ator com a obra estudada para a encenação. Foram realizadas várias experiências, como: construção da história com mais de um fim, apresentação de um evento sob diversos pontos de vista e até cruzar fragmentos de romances e teatro ou cinema e teatro dando a possibilidade ao aluno de escolher o caminho mais adequado para construir a sua narrativa. Buscou-se, enfim, mecanismos que tornassem os teatros múltiplos, mais próximos de um mosaico, com novos ritmos para o fluxo do texto. Ou seja, como o tempo das aulas é curto e não se pode usar o teatro como um fim em si mesmo, o trabalho com fragmentos foi a melhor opção. Os alunos foram separados em grupos e tomaram conhecimento dos resumos das peças selecionadas, da trama e das personagens. Os teatros são construídos com base na hipertextualidade, como percebemos pela definição do termo hipertexto: 105 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento [...] técnica de armazenamento e apresentação da informação baseada num sistema de referências cruzadas que formam uma rede de associações (à semelhança da forma como se processa o pensamento humano, baseado em associações de idéias num percurso não seqüencial) Originalmente, como o próprio nome sugere, hipertexto estava baseado na apresentação textual de informações de forma não-linear (FERREIRA, 1999, p. 332). As referências cruzadas, característica de toda escrita hipertextual, constituem o foco da construção dos teatros em sala de aula e fazem os alunos seguirem caminhos pré-definidos por meio de uma grande coleção de informações textuais. Então, o uso do hipertexto, como teoria de suporte para a utilização do teatro, como aporte metodológico para o ensino de língua inglesa, apesar de permitir liberdade de ação, tanto numa superfície cênica como textual, pode, mediante desdobramentos e variantes, utilizar-se de montagens textuais, tais como recorte de falas de um filme, parafraseando e adaptando essas falas ao tema de cada teatro. Assim, os alunos aprendem a adequar o limite físico e temporal das peças pré-definidas pelo próprio espaço da sala de aula e tempo das aulas. Dessa maneira, o teatro em hipertexto, por não ser linear, funciona aos saltos de um ponto para outro, baseado tanto nas necessidades dos atores/ alunos e alunos/espectadores, quanto nos padrões de relações explicitamente definidos pelo regimento escolar. Os teatros produzidos durante as aulas têm como base as técnicas do teatro escolar do oprimido de Augusto Boal. 106 ANAIS - 2013 Destacam-se assim, as técnicas de Boal, porque entre tantas outras as suas possuem relações explícitas entre teatro e educação, técnicas que visam alfabetizar em todas as linguagens possíveis, especialmente artísticas, como o teatro, a fotografia, o c , c é , qu “ são linguagens, mas que nem todas as linguagens são á c !” ( BO L, 1991, 137) Embora as artes ainda sejam contempladas sem a atenção necessária, por parte dos responsáveis pela elaboração dos conteúdos programáticos, os objetivos da educação formal contemporânea são direcionados de acordo com Demerval Saviani para a formação omnilateral, quer dizer, em todas as direções do ser humano . O prazer que os alunos celebram por se verem observados falando em inglês e a interferência dessa lucidez no seu modo de agir como ator faz com que eles se tornem mais críticos e, amiúde, mais exigentes nas dramatizações e caracterização das personagens. A intertextualidade, quase sempre, permite apenas uma leitura conduzida e linear, diferente do hipertexto que aceita ordenações pouco usuais para os retalhos que o constituem. Todo hipertexto é intertextual, mas, quase sempre, a intertextualidade não é um fenômeno hipertextual, que é marcado por permitir ao aluno a montagem de um texto próprio, sem guias. O hipertexto nos meios da informática tem sido definido como uma abordagem para o gerenciamento de informações: hipertexto é um texto não-linear: apresenta uma flexibilidade desenvolvida na forma de ligações permitidas/ sugeridas entre nós que constituem redes que permitem a elaboração de vias navegáveis (Nelson, 1991); a não- 107 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento linearidade é tida como a característica central do hipertexto. (MARCUSCHI, 2011, p. 14). Assim, hipertexto é uma rede de conceitos conectados por ligações. Uma unidade mínima, usualmente, representa um único conceito contido em uma/ou mais superfícies de informação. Embora uma estrutura hipertextual, geralmente, ilustre somente informações textuais, pode conter outros meios de comunicação, como, sons e imagens, sendo esses a base do teatro. Escrevendo as peças por fragmentos Ressalta-se que um texto verbal se distingue de outras formas de expressão porque se vale unicamente de processos linguísticos. Ao escrever um romance, o autor seleciona uma série de fragmentos e referências lexicais para que seu texto seja coerente. O tipo de personagem, o ambiente, sua personalidade, notas, citações, divisão em capítulos, tudo visa a produzir um determinado contexto para o entendimento do texto literário. O escritor se vale de estratégias enunciativas verbais para que o leitor consiga atualizar o texto. Cria-se uma espécie de movimento que engloba essas estratégias e a absorção delas por parte do leitor. Essa cooperação textual se realiza quando o leitor (enunciatário) consegue interagir com os códigos do texto. Uma escrita hipertextual pode contribuir para melhorar a compreensão da narratividade de um romance, mas, pode também, pela falta de linearidade, desorientar o leitor, que talvez não esteja habituado com esse formato de texto. No caso do teatro escolar, os alunos devem disponibilizar pistas sobre possíveis direções que os espectadores poderão seguir, mas sem nunca guiar a sua leitura, 108 ANAIS - 2013 pois, mesmo que a plateia não tenha conhecimento de língua inglesa, sua leitura terá de ser livre. O teatro escolar desenvolvido pelos alunos, por meio de hipertexto, cria um ambiente propenso a essas discussões, jogando com as possibilidades de criação de um mundo regido, não por leis físicas, mas apenas a partir de jogos teatrais. Jogos esses que transformam a narrativa em um conjunto de encenações não sequenciais, ou seja, uma escrita em hipertexto - um texto com vários caminhos que permitem que os leitores façam escolhas, como se as peças fossem vistas e lidas melhor de uma tela interativa, pois permite-se dessa maneira, que os espectadores/alunos interfiram nas encenações, pedindo para os colegas que repitam trechos onde o entendimento não ficou claro. Os teatros criados pelos alunos são concebidos por meio de uma série de pedaços de textos conectados por links narrativos que oferecem ao leitor diferentes caminhos, como um bosque de narrativas que se bifurcam. Cada encenação estabelece ligações com outros textos. zB u ,“ á c çã x c b da comunicação, os mass media, a informação em forcing gu u u u çã ” (B UDRILL RD, 1981, p.106, grifos do autor), através da representação e do simulacro, misturando a narrativa que também é um simulacro. A confiança positivista na observação e na experimentação vem sendo cada vez mais questionada. O texto, desde Machado de Assis, não oferece uma posição confortável. No discurso narrativo contemporâneo, o uso declarado de muitos hipertextos sugere uma recusa textualizada em referendar a subjetividade singular; o hipertexto pós-moderno soa como uma ironia, pluralizando essa subjetividade e 109 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento atribuindo outras funções ao leitor que, além de ler a narrativa, deve tentar estabelecer certas ligações. A imagem da escrita transformou-se, deixando de ser a da inserção única e passando a ser a imagem de um conjunto de textos paralelos, numa perversão que revela um quadro referencial distintamente pós-estruturalista, no qual o sujeito é sempre considerado em processo e como local de contradições sem fim. Em La révolution du language poétique, Julia Kristeva, já afirmava que os textos de vanguarda de Lautréamont e de Mallarmé revelavam o sujeito em crise. A ficção pós-moderna mais atual é a herdeira dessa crise, condicionando a narrativa, inevitavelmente, a uma potencial fragmentalidade. O múltiplo e o heterogêneo investem diretamente contra a ordem totalizante do discurso e, por isso, estilhaçam e fragmentam o texto: Estaremos, agora, diante de um novo realismo na literatura brasileira? Um novo realismo que assume uma forma fragmentária? Pois está difícil, hoje em dia, não escrever em fragmentos. Porque a realidade, cada vez mais complexa, também se estilhaçou (SANT´ANNA, 1997, p. 307). No teatro escolar, o autor e os atores performatizam esses mesmos fragmentos. Podemos dizer até, que isso coloca em prática, dentro da ficção, aquilo que alguns teóricos reivindicam na teoria narrativa: a necessidade de considerar que um sujeito é constituído material, histórica e experimentalmente pela linguagem, isto é, um sujeito gerado, pode-se dizer, precisamente pelo processo de seu envolvimento nos gêneros narrativos. 110 ANAIS - 2013 Isso fica bem claro durante as performances apresentadas pelos alunos, em que cada aluno assume, de fato, seu papel atoral e cumpre o seu contrato ficcional com fidelidade. Cada teatro, realizado pelos alunos, cada história é uma digressão de todas as outras histórias. Essa poética de leitura/encenação encontra a sua justificativa teórica nos textos de Derrida: Mas se ela não se abrisse para todos estes discursos, se ela não se abrisse para quaisquer daqueles discursos, não seria nem mesmo literatura. Não há literatura sem uma suspensa com significado e referência. Suspensa significa suspense, mas também dependência, condição, condicionalidade. Em sua condição suspensa, a literatura pode exceder apenas a si mesma. Sem dúvida, toda linguagem refere-se a algo além de si mesma, ou à linguagem como alguma outra coisa (DERRIDA, 1992, p. 48, grifos do autor). Considerações finais A partir dessas colocações, podemos dizer que o teatro escolar apresenta uma natureza hipertextual, dadas as seguintes características: a. não-linearidade: é tida como a característica central do hipertexto; b. volatilidade: não tem a mesma estabilidade dos textos de livros; 111 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento c. topografismo: não é hierárquico nem tópico, por isso ele é topográfico, ou seja, um espaço de escritura e leitura que não tem limites definidos para se desenvolver, essa é a característica inovadora do Teatro Escolar. d. fragmentariedade: consiste na constante ligação de porções em geral de breves fragmentos ocasionando com isso uma nãolinearidade, já que o autor não tem mais controle do tópico; f. multissemióticidade: caracteriza-se pela possibilidade de interconectar simultaneamente a linguagem verbal com a não-verbal (musical, cinematográfica, visual e teatral) de forma integrativa; g. interatividade: procede pela interconexão interativa que, por um lado, é propiciada pela multissemiose e, por outro lado, pela contínua relação de um leitor. (MARCUSCHI, 2011, p. 15). É válido ressaltar que essas relações, apresentadas no teatro escolar, como dito anteriormente, assemelham-se a links, já que eles são constituídos, parcialmente, por fragmentos de outros textos que criam as ligações, e parcialmente pelos alunos/atores que escolhem os caminhos a seguir. Esse tipo de narrativa não é prerrogativa de nossos dias, como o leitor já percebeu ao longo desse artigo. No teatro escolar, vislumbra-se o exercício da hipertextualidade, ou seja, um novo tipo de leitura, mais dinâmica e fragmentada, sem as demarcações nítidas do começo, meio e fim do modo convencional. 112 ANAIS - 2013 Afirma-se então, que a linguística aplicada ao ensino de línguas e a teoria literária, hoje em dia, estão presentes em vários campos do saber humano e não poderiam estar ausentes no ambiente escolar e que seu auxílio é mais necessário à sala de aula. Por meio de interrupções e interrogações que permitem a inserção no seu próprio trabalho – a peça teatral criada por ele mesmo - o aluno passa a exercer um papel ativo no comando da história e percebe que seu aprendizado não saiu de uma mera recepção e reprodução de conhecimento passivo, mas que constitui a produção de algo verdadeiramente significativo, o conhecimento: Já seria tempo de notar que o que está ocorrendo no domínio das letras é algo mais importante do que uma simples inversão qu àf ‘ çã ’ u ‘f ç c ’, u à c ê cia de ‘ gê c cí c ’ E u çõ precedem de uma obstinação em pensar a literatura do ponto de vista dos gêneros tradicionais, sem levar em conta um acontecimento capital no domínio literário, a b , ‘ c u ’ (PERRONEMOISÉS, 2005, p. XI). A linguística aplicada ao teatro para o ensino de inglês, ao fazer de sua especificidade narrativa seu próprio referente e objeto de autocrítica, torna-se exploração crítica da linguagem, pois trabalha com a produção textual. Isso permite concluir que as atividades desenvolvidas em sala de aula vão mais além, pois não é explorada uma produção 113 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento textual simples, mas sim uma produção em língua inglesa, acrescida de conhecimento literário. Ao mesmo tempo, à medida que os cruzamentos realizados entre ensino de línguas e teatro assumem nosso papel, possibilitam ao aluno estabelecer interconexões em sua memória para ir, assim, construindo a coerência textual. Nessas c xõ , é L “ f qu c f gu h x ” (LEMO 1996, p. 35). O texto se torna pretexto para uma nova aventura de linguagem, ou seja, o discurso teatral sobre o texto torna-se, ele próprio, outro texto, permitindo ligações/links aos leitores, que vão construindo o seu próprio entendimento e, assim, sucessivamente, estabelecendo uma coerência, ao todo fragmentada do teatro escolar: Atingimos então o momento do encontro, o qu ‘c í c ’ ‘ u ’, adotando diante da linguagem a mesma atitude e os mesmos meios, correndo os mesmos riscos e alcançando o mesmo prazer, fundir-se-ão finalmente na escritura [teatral] (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. XIII). O fragmento/hipertexto, no ensino de língua inglesa pelo teatro, instaura-se, inicialmente, nas possibilidades do ficcional como gerador de pseudo-mundos, em que tudo passa a ser gerado e idealizado pelas performances realizadas pelos alunos. Nessas performances, os alunos, inconscientemente, acabam desenvolvendo outra percepção de leitura e começam a questionar a relação entre ensino de língua inglesa e prática teatral, gramática e escritura: “M qu , c é sério. Por que a cada livro que você lê – 114 ANAIS - 2013 bom ou mau – você se modifica, nunca mais será o mesmo homem. Todas aquelas idéias brilhantes ou estúpidas que começaram a penetrar em seu cérebro. Se você pega um autor russo do final do século passado, por exemplo. É provável que uma nova inquietação tome conta de sua alma, para não deixá-la até o final de seus dias. Uma inquietação que o fará ver o mundo com novos olhos - os olhos da angústia e do medo. Angústia e medo, no entanto, que se levados ao seu último extremo, podem apressar em você o salto liberador que é o bj g h ” ( NT’ NN , 1992, 40) Referências BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulações. Trad. Maria João da Costa Pereira, Lisboa: Relógio d´Água, 1981. 201 p. ______. De um fragmento ao outro. Trad. 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A resistência ativa contra a nova lei de diretrizes e bases da educação, Princípios, n. 47, 1998. 117 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A temática indígena: aspecto social na poética emmanuelina Jorgina Espindola Ortega de LIMA1 Rita de Cassia Pacheco LIMBERTI2 RESUMO: Num contexto em que se encontram diversas etnias e, consequentemente, diversidade de ideiasde conhecimentos e de costumes, a convivência se estabelece por meio de uma inter-relação cultural, observadacomo o novo espaço em que os povos indígenas os descendentes de tribos de outras regiões- hoje estão alocados na Reserva Indígenas de Dourados. O poeta douradense Emmanuel M h , cfc “ cí ” “O Í T ”, T (1984) ”Í V h “, ub c Livro Margem de Papel, e 1994, c b “c ê c ” A proposta é realizar uma leitura analítica embasada na teoria semiótica greimasiana, identificando os aspectos de resistência e de subalternidade na relação do povo indígena com a cultura da sociedade não-indígena, por meio da análise das estruturas narrativodiscursivas, partindo das estruturas fundamentais para chegar ao sentido do texto no aspecto discursivo. PALAVRAS-CHAVE: indígena; discurso; poesia. Introdução Buscando-se compreender a semiotização do sujeito, por meio da semiótica da linha francesa, na poética emmanuelina, verificou-se um posicionamento crítico- social voltado à temática indígena, que aponta a degradação social quesofrem os povos indígenas, em especial os que vivem em Dourados, 1 Mestranda em Letras Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)[email protected] 2 Professora Doutora na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)[email protected] 118 ANAIS - 2013 Mato Grosso do Sul, local berço poético e natal de Emmanuel Marinho. Em seus poemas Índia Velha, publicado no Livro Margem de Papel, em 1994 e Genocíndio e O Índio e Trator, publicados no livro Canto de Terra (1984), com voz de veludo, há gritos que ecoam a penúria que sofrem os povos indígenas em relação, sua impossibilidade de inserção na vida social douradense, lugar em que se produz e se reproduz cultural e ideologicamente, sua miséria, sua segregação e sua marginalidade. Para a semiótica, teoria que ampara esta análise, a vida é como uma grande narrativa, compreendida como um mundo espetacular em que os sujeitos são actantes (destinador/destinatário) que se relacionam com esse mundo e com os objetos de valor, por conjunção e/ou disjunção, num jogo de transformações de seus estados (dos sujeitos). A narrativa, então, é pensada como o lugar em que se simula o fazer do homem que transforma o mundo e a narratividade, por sua vez, apresenta-se como componente presente em todos os tipos de texto, observável pela abordagem analítica da sintaxe e da semântica. As temáticas relacionadas às causas sociais nos poemas de Emmanuel Marinho serão apontadas no poema A poesia é suja de som. 1. A temática indígena, uma questão social na poética emmanoelina Dizer, mas não dizer de forma que afronte a sociedade, mas que a alerte, que a denuncie, que inverta os seus valores, está para a linguagem poética, sonora e singular, que diz, melodicamente, o tudo e a todos, assim como nos diz a letra do :“ é uj ”: 119 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A poesia é suja de som... "A poesia é suja de som de sonhos de sangue e de signos. atravessa o universo das coisas se veste nas cores das palavras. acalanta. grita. pede pão no morno das manhãs faz manha pelo papel rola nas páginas brancas brinca conta o espelho da história em sete frases finge a letra verde das matas E em metáforas se reparte pelos séculos de tinta e boca a poesia a poesia dá de beber aos bêbados escorre pela barba dos poetas anda descalça nos ônibus nos bares Vê através das portas come pétalas e passa fome a poesia lê o mundo 120 ANAIS - 2013 inventa outros mofa nas gavetas arranha paredes perturba a ordem pública e protesta nas praças pela paz (MARINHO, 1994, p. ) A poesia é um espaço privilegiado em que se pode discutir qualquer tema, desde o próprio fazer poético até as mais intrigantes questões sociais, tornando-se, assim, um objeto muito rico para pesquisas voltadas aos estudos da significação. Por sua natureza metafórica, já apresenta, numa primeira abordagem, o dilema da depreensão do sentido primeiro, c f u ubj c (“ u c ”) b u j b qu õ c “ é uj ” é u g ó f z poético e seu universo. As palavras, como mariposas, orbitam os sentidos, os tocam e recuam, voltam e fogem. Analisar semioticamente um poema é um desafio intelectual que requer um labor constante, considerando que o fazer poético é e está para além de uma compreensão temporal, para além de uma primeira leitura. O sentido da poesia não está apenas circunscrito ao contexto predeterminado porque ela conta o espelho da história e em metáforas se reparte pelos séculos. Não podemos tomá-la num tabuleiro de compreensões que estariam didaticamente a serviço de uma simples forma de interpretação, mesmo porque a história, a cultura, os devaneios, os gritos e as angústias, os sonhos, as lutas são todos registrados na poesia. Esse universo em que se insere a poesia (ou que a poesia concebe), além da nuance metafórica, é ressignificado a cada leitura, a cada momento da história, a cada fato novo e similar que acontece. 121 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A presença polissêmica dos signos linguísticos que atravessa o universo das coisas e se veste nas cores das palavras faz com que o texto poético seja um campo ressemantizado a cada leitura, exercendo uma função de espelho da sociedade porque reflete a cultura, a política, os anseios, os sonhos e as transformações sociais de uma época. No caso da poética emmanuelina, temos que a poesia atravessa o universo das coisas, atravessa também o nosso mundo, recaindo no mundo dos outros, procurando sensibilizar nossos sentidos, fazendo-nos ver e sentir que temos o outro3 que está lá, como uma mazela social. Nessa vertente, as ressonâncias procuram diluir as fronteiras relacionais, os limites entre humanos, impostos pela sociedade, esta que contribui para que se esqueçam da gênese humana, dos homens enquanto indivíduos. Ao dar de beber aos bêbados, a poesia exerce seu poder inebriante, entorpecente, algo que altera a consciência. É um convite a uma nova percepção da realidade que nos cerca e que nos alimenta. Mergulhados em nossa cegueira social poderíamos perfeitamente nos perguntar quem é o bêbado, nós os lúcidos que enxergam uma realidade emoldurada e presumível, 3 É à medida que tenho que responder não só pelo Rosto de outro homem, mas que, ao lado dele, abordo o terceiro, que surge a necessidade mesma da atitude teorética. O encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade por ele. A responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o nome grave do que chama amor ao próximo, amor em Eros, caridade, amor em que o momento ético domina o momento passional, amor sem concupiscência. Não gosto muito da palavra amor, que está gasta e u F u u çã u É , “ ã ” do Rosto, e se aplica ao primeiro que aparece. Se ele fosse meu único interlocutor, eu só teria tido obrigações! Mas não vivo num mundo onde só há u “ ch g ” há u u c : bé é meu outro, meu próximo. (LEVINAS, 2005, p. 143-144) 122 ANAIS - 2013 confortável e conveniente. A sobriedade deveria fazer-nos enxergar a quem nos rodeia, quem faz parte da nossa vida e, sobretudo, ter uma visão global do cenário em que estamos inseridos, mas se a poesia lê o mundo, essa faculdade parece ter ficado para ela enquanto nos mantemos míopes diante dos problemas que não estão contidos na dimensão ideológica em que nos movemos. Os significados nos apontam que temos uma visão plural e superficial do mundo, pois já não andamos descalças nos ônibus nos bares como anda a poesia e não nos despimos dos dogmas sociais que nos direcionam o olhar, um olhar que não vê através das portas O “ u í c ” c obstáculos que existem entre as pessoas para que não enxerguem umas às outras, não se deem conta de seu espaço e de sua capacidade de movência. A poesia nos aponta essa visão condicionada, descortina visões inusitadas, leva à reflexão. O saber que vem pela poesia vem enlevado pela fruição, nos toca por uma percepção sinestésica, na medida em que ela lê o mundo e inventa outros. Se a poesia lê o mundo e o mundo somos nós mesmos, estamos, então, circunscritos nas sete frases, o que não nos garante que nelas vamos nos encontrar. Se a poesia conta o espelho da história, ela nos apresenta uma imagem invertida e menor, que é a propriedade que as superfícies espelhadas possuem, de não se deixarem atravessar, de refletir, de negar. Ver pelo espelho pode ser uma oportunidade de reflexão e de autoconhecimento, mas as imagens espelhadas sempre trazem o risco de projeções imaginárias e de ilusão: “ g z çã u fíc fí c ” é matéria significante do poema com todos os seus jogos de figuras e retornos, é o conjunto dos procediment “ u u fíc ” é qu á qu 123 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento apreendemos o sentido pleno do texto. Mas então, será preservado, no nível da memoria e da sensibilidade, também aquele primeiro e volteante co-sentido. (BOSI, 1977, p. 28) A proposta da poesia emmanuelina caracteriza-se, sobretudo, por perturbar a ordem pública e protestar nas praças pela paz. Seu perturbador descortinamento de uma realidade triste, crua e invisibilizada, incomodam posições sociais e políticas que, reacionárias, vendo na poesia um eloquente desestabilizador do status quo, preferem que ela mofe nas gavetas e não venha arranha(r) as paredes. Após se terem dado a conhecer, no entanto, mesmo mofando nas gavetas, os simulacros construídos por seus signos já não podem ser desfeitos; ainda que negados, sua existência ressuma na própria negação. A poesia possui, assim, além do álibi de ser ficção, o escudo e a lança das metáforas: escudo que dissimula e camufla sentidos, lança e desnuda verdades, recrudesce revoltas, desvanece quimeras. A poesia emmanuelina trava essa batalha de atravessar o espelho da história e alcançar, com sua lança, o âmago da significação: o que se coloca atrás das representações, onde as imagens já não são invertidas, nem menores, são reais. Este lugar que Emmanuel atinge é o espaço do indígena na sociedade, o qual, tal qual o que se tem através dos espelhos, parece não existir. Mesmo sendo espaço utópico, no entanto, a poesia o constrói e o sustenta em seus simulacros, que reverberam sentidos em outras direções, orientando a c f gu çã “ u ” E éu ég tessitura poética: atingir lugares insondáveis da significação. Observe-se o que Bosi aponta: 124 ANAIS - 2013 De qualquer modo, só por metáfora redutora á qu é “c cu ” u há ressonância e retorno. Frases não são linhas. São complexos de signos verbais que se vão expandindo e desdobrando, opondo e relacionando, cada vez mais lastreados de som-significante. (BOSI, 1977, p. 27) De estrutura textual totalmente livre, a poesia se elabora de tal forma que sua composição, embora na superfície pareça ser simples, quer por um número reduzido de palavras, quer pela desordenação da forma linear, muito diferentemente de um texto não poético, é capaz de, em sete frases, construir e conter um universo de narrativas. A tessitura poética se apresenta de forma singular, um arranjo textual único, plurissemântico. O fato de Emanuel Marinho discutir a situação do indígena em suas poesias faz ressignificar os sujeitos índios, com todos os seus desejos, seus quereres, seus prazeres, e o mais importante: os seus desprazeres, produzindo, assim, um eco das questões sociais, uma lente aos olhares, um grito de dor que dói. A voz que grita não é indígena, é a voz do ser social que exclui a vida digna dos índios, reiterando a ideia de que, de fato, as sete frases são muito mais que palavras no papel, mais que rimas, mais que frases é o sangue de índios nas ruas. Nessa ótica, temos que as palavras, as frases, a poesia não são palavras, não são frases, não são arranjos poéticos, são ressonâncias mais profundas, sejam no plano do conteúdo (do significante), sejam no plano da expressão (do significado). Com os signos linguísticos, os poetas, por meio do eu lírico, vão conta(ndo) o espelho da história, trazendo à memória fatos que queremos esquecer, ou que foram adormecidos por c ê c h ó c N “Í h b 125 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento primeiro do segundo do terceiro branco que chegou, se lembra?” Tem-se uma exortação à memória, uma crítica ao fechar de olhos para as questões sociaisque estarão eternizadas nas sete frases(obra) emmanuelinas. O fato de não haver uma memória instituída a respeito da dizimação dos povos indígenas da época da colonização, de não haver um reconhecimento de que os atos praticados contra esses povos, àquela época, trazem consequências negativas até hoje, é contradito e denunciado porque, a todo tempo, nos arredores de nossa cidade, Dourados - Mato Grosso do Sul, estão acontecen f “O í ”, em que prevalecem atitudes avassaladoras contra os índios. A u çã é í “ h u”, u j , qu j c apontar: há problemas de moradia, de fome, de miséria, de educação, de saúde, ou seja, dos Direitos e Garantias Fundamentais4 do cidadão. Realmente se nota o índio indo sumindo e a sociedade, como um trator, traaaaaaaaindo a esperança do indígena: se lembra? Esse questionamento é pertinente porque quer retomar a memória adormecida, não “Í h ”, mas de todos, dos brancos e dos indígenas que sobrevivem bravamente aos maus tratos sofridos ao longo da história. 4 Conforme o Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil (CF) A Assembleia Nacional Constituinte esteve reunida para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Todos esses Direitos e Garantias Fundamentais estão preservados no Artigo 5º. da referida Constituição, cujo caput, assim f “T ã gu , çã qu qu u z , garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à , gu ” (VADE MECUM SARAIVA, 2010 p. 7). 126 ANAIS - 2013 2. O lugar do sujeito na poética de Emmanuel Marinho O trabalho poético é às vezes acusado de ignorar ou suspender a praxis. Na verdade, é uma suspensão momentânea e, bem pesadas as coisas, uma suspensão aparente. Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela. E aproximando o sujeito do objeto, e o sujeito de si mesmo, o poema exerce a alta função de suprir o intervalo que isola os seres. Outro alvo não tem na mira a ação mais enérgica ou mais ousada. A poesia traz, sob as espécies, da figura e do som, aquela realidade pela qual ou contra a qual, vale a pena lutar. (BOSI, 1977, p. 192) A obra literária(o poema)é uma criação artístico-cultural que veicula, também, uma realidade social por meio dos signos linguísticos. Nessa concepção, a poética emmanuelina toma o curso que aproxima o objeto das coisas e o sujeito de si mesmo, exerce a função de suprir o intervalo que isola os seres, traz, sob a forma da figura e do som, a realidade pela qual ou contra a qual vale a pena lutar, como bem aponta a epígrafe acima. Os á “ cí ”, “Í V h ” “O Í ” ã c f qu c cu õ b espaço e o lugar social que o sujeito indígena ocupa e desnudam,, com notável eloquência, a realidade de exclusão social patente dos povos indígenas. N ,“ cí ”, -se uma estrutura de texto dramático, com duas personagens (um menino e um 127 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento adulto), como uma cena teatral, que na verdade reproduz uma cena do cotidiano da cidade de Dourados: GENOCÍNDIO (crianças batem palmas nos portões) Tem pão velho? Não, criança tem o pão que o diabo amassou tem sangue de índios nas ruas e quando é noite a lua geme aflita por seus filhos mortos Tem pão velho? Não, criança temos comida farta em nossas mesas abençoada de toalhas de linho, talheres temos mulheres servis, geladeiras automóveis, fogão mas não temos pão. Tem pão velho? Não, criança temos asfalto, água encanada supermercados, edifícios temos pátria, pinga, prisões armas e ofícios mas não temos pão. Tem pão velho? Não, criança tem sua fome travestida de trapos nas calçadas 128 ANAIS - 2013 que tragam seus pezinhos de anjo faminto e frágil pedindo pão velho pela vida temos luzes sem almas pelas avenidas temos índias suicidas mas não temos pão velho Tem pão velho? Não, criança temos mísseis, satélites computadores, radares temos canhões, navios e usinas nucleares mas não temos pão. Tem pão velho? Não, criança tem o pão que o diabo amassou tem sangue de índio nas ruas e quando é noite a lua geme aflita por seus filhos mortos. Tem pão velho? (MARINHO, 1994) O texto se apresenta em forma de diálogo em que uma criança pergunta e um adulto responde. Uma mesma pergunta, que está repetida por seis vezes no poema, inicia e encerra o á g : “T ã h ?” “ cí ”, í u ,é um neologismo, uma mistura da palavra genocídio com índio que realmente designa um paratexto-título. O aspecto 5 sociológico do significado do termo genocídio, definido como 5 Ge.no.cí.dio sm (geno+cidio) 1. Sociol. Delito contra a humanidade, definido pela ONU. Consiste no emprego deliberado da força, visando ao extermínio ou à desintegração de grupos humanos, por motivos raciais, 129 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento o extermínio ou a desintegração de um grupo de humanos éevocado por uma analogia imediata e direta, ou seja, em “ cí ”é íg qu á x e o poema desenha esse extermínio, esse massacre velado. O jogo entre o ter e o não ter revela claramente a estrutura fundamental do texto: fartura versus miséria. Na narrativa há uma luta entre classes sociais: a criança representando a classe íg , u j , qu qu c “ ã h ”, e o adulto, representando a classe da comunidade não indígena, c qu “c f b ç de toalhas de linho, h ”, u , indígenas, ocasionada pela situação de miséria – “ ã qu o diabo amassou/ tem sangue de índios nas ruas e quando é noite u g f u f h ” – até a potência bélica “ í , satélites computadores, radares/ temos canhões, u uc / ã ã ” Tu qu ã pode ser dito diretamente, é dito no poema. A oposição ter/não ter está muito clara entre as duas classes representadas no poema. Ao mesmo tempo em que diz “Nã , c ç , ã ã ”, uj c u que tem. O enunciador chega a incluir a própria cena que ele compõe, qual seja, crianças que batem palmas nos portões e : “T ã h ?” E ã c uí microuniversos semânticos da narrativa, construindo-se o “ ã h ”c , f z -se a ausência de vida na ausência do pão. Assim, encontra-se, no nível profundo do poema, sua oposição de base, /vida/ versus/ morte/ , a qual se reveste, no nível das estruturas narrativas, pela indigência e a mendicância indígena. religiosos ou político, etc. 2. Dir. crime de quem mata o seu próprio pai ou mãe. (MICHAELIS, 2000, p. 1026) 130 ANAIS - 2013 vida morte não-morte não-vida O bj “ ”é “ ã h ” a ausência do pão – e a consequente negação ao pedido do indígena - é a própria negação da inserção dos indígenas na sociedade não indígena. Observa-se que estes não possuem a vida, embora pareçam ter, porque possuem todos os outros objetos de valor, mas não possuem o pão, que figurativiza exatamente a vida (de que ele é alimento) e, metaforicamente, o alimento do espírito; então o que realmente têm é a morte. Ao mesmo tempo, no poema, o objeto valor deveria pertencer ao que tem fartura, mas não pertence, o abastado não comeu do pão que daria a vida aos menos favorecidos, mas possuem apenas o pão que o diabo amassou, o pão do Judas, daquele que os g à é , u “ ã ” c çã moral da sociedade não –índia teria de oferecê-lo e, assim, simbolicamente, abrir ao menos uma fresta para o indígena adentrar a comunidade não indígena. À medida que se nega o pão, nega-se o espaço ao índio; à medida que se admite não possuí-lo, declaram-se as limitações das relações interculturais e da própria sociedade não-índia. 131 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento O segundo poem , “O í ”, P , “ çõ ” b h qu seus avanços tecnológicos, trouxe para os índios: b M g g ,c O ÍNDIO E O TRATOR o índio e o trator o trato ao índio o trator indo e o índio rindo o índio e o trator o trato ao índio o índio indo sumindo só indo e o trator traaaaaaaa indo (MARINHO, 1994, p....) No poema, tem-se uma aparência benéfica de início, mas que engana visto que o que parece beneficiar também o indígena constitui-se em poderosa arma de aniquilação de sua identidade e de sua existência. O trator, que num primeiro momento apresenta-se como um benefício, figurativiza a ação da c c , qu “ g ” qu , relações humanas, torna os sujeitos números, traindo e tragando o trabalhador sem levar em conta sua depauperação. . As relações de sobrevivência do indígena com a modernização é explanada no poema de forma a produzir o efeito de sentido da traição: o eu lírico vai descrevendo a modernização - como de fato ocorreu na vida dos trabalhadores na agricultura - que, ao desenvolver-se, ao afirmar-se como sendo algo inovador e 132 ANAIS - 2013 produtivo, trouxe resultado aparentemente positivo por um lado, porém aniquilador por outro, porque foi engolindo a mão-deobra da agricultura, obrigando muitos dos trabalhadores rurais a abandonar a vida do campo, vindo morar na cidade. Destaca-se “í u ó ” malefício real na atual configuração da pequena produção em que, antes, contratava-se mão-de-obra dos povos indígenas e, hoje, resultou em relações capitalistas de trabalho, seja pelo “ g á ” f c c c , ch “b f ”, j g çã íg processos mecâ c g u , “b fíc ” qu z u qu uçã g íc E processo de industrialização acelerada da agricultura motivou a expansão de terras destinadas a esse fim. O processo de extensão de terras acabou por engolir as pequenas produções agrícolas e não garantiu mais emprego, justamente por conta da mecanização do trabalho no campo, cujo objetivo capitalista visava a investimentos financeiros em maquinário e produções em grande escala, com menor quantidade de trabalhadores. Esse cenário subjaz ao poema que tem claramente as duas oposições: a aparência (trato ao índio e o índio rindo) versus essência (trato ao índio e o índio sumindo). O mundo rural modificado pelo desenvolvimento mecânico, pelas novas tecnologias, pelo avanço da engenharia genética, da biotecnologia , esqueceu-se que homem vivia no campo. Com relação aos indígenas, a invasão foi de traição propriamente dita: , adentraram suas terras de uma forma devastadora, substituíram o indígena que capinava a braquiária pelo uso de máquinas. Todo esse cenário da agroindustrialização propiciou uma grande transformação na interação social entre trabalho, pessoas e culturas; as pessoas que trabalhavam no campo migravam para 133 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento as cidades, mas quanto ao índio, ele ia sumindo, sendo traído, tragado pelo trator. Já c , u “Í V h ”, c no livro Cantos da terra (1981), segue na mesma linha de apontamento da destruição de um povo, de uma cultura, mas que pode ser retomada pela memória, fazendo uma comparação , c é “Í h , b ”, ã f gu uh íg , u ,“ u c h ” u que ficou guardado na memória: ÍNDIA VELHA Índia velha se lembra do cheiro verde na fonte limpa onde se matava a sede água boa de beber Índia velha se lembra do primeiro do segundo do terceiro branco que chegou se lembra? Se lembra Quando tu andavas nua olha a cor de teu vestido encardido Quando andas pela rua Se lembra se lembra de teus colares teus amores a lua cheia 134 ANAIS - 2013 lençóis de flores na aldeia se lembra? Índia Velha se lembra dos pés pisando no mato olha a cor de teus sapatos pisando asfalto e areia Índia Velha Se lembra tantos brancos que chegaram tantos Que até perdestes as contas e as contas de teus colares (MARINHO, 1981) aqui não está faltando pedaço do poema¿ Um jogo temporal entre um presente e um passado, ainda que seja uma situação aparentemente natural, sempre oferece uma lacuna, um intervalo, como se fatos fossem suprimidos com o tempo. O que realmente subjaz aos fatos são os sentimentos, às vezes nostálgicos, principal razão de existência, nos povos indígenas, de uma forte sensação de perda e de, ao mesmo tempo, de necessidade de preservação. Essa oscilação de sensações é de ordem tímica, é um intervalo que não é físico, é sentimental. A marca deste sentimento é sufocante por conta do sentimento de perda que daquilo que era bom, por isso mesmo, nostálgico. E “Í V h ” há u uê c , constatada no presente, sendo, então, mais que uma condição de , qu u í c z c “Í V h ” O “j g ” b -se na existência de uma vida passada melhor, mais feliz em relação que se tem no presente, mas que matem laços que a ligam à vida do tempo passado, assim vai resignando a existência de ambas. 135 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A relação entre o passado (o vivido, que se apresenta, no presente, como condição de virtualidade) e o presente (a vida) configura-se, semioticamente, como uma eterna busca por algo que nunca virá a ser (por isso, virtualizada), ou seja, o sentimento de perda sobrevive ao próprio objeto de desejo de uma vida feliz. Sob esse aspecto, a comunidade indígena ou a mulher indígena sofre a dor da perda, mas também tenta recuperar sua origem perdida através de seu deslocamento como observadora. Neste estado conjuntivo temos a seguinte distribuição: Conjunção vida digna/ no passado não-disjunção não memória disjunção memória não-conjunção não vida digna/no presente Trazer à memória a vida digna dos indígenas é veicularse por meio dos programas narrativos em e que vai enumerando, a cada momento, cada item que estaria guardado na memória da g “Í V h ” O narrador-questionador apresenta olhar nostálgico e reflexivo no presente, capta o sentido de ambos os tempos, tornando-os descentralizados, e vai preenchendo o espaço vazio da perda, conferindo- h gu quíc : “ h c u c /Qu u ” Emmanuel recorre à expressividade pela palavra, recriando o “Í V h , b ”, como se a história em si não contasse os fatos, mas os vivenciasse. Não foi preciso se ter vivenciado, ter-se vivido aquela época (como a índia que 136 ANAIS - 2013 está velha) para recordar6 o que está adormecido. A recorrência, a própria expressividade recria o tempo passado, preenchendo a lacuna, o intervalo, relatando as perdas sofridas pelas condições sociais que lhes foram impostas com a chegada dos outros, dos brancos. O passado, agora recordado, expressa um penoso conflito: trazer à lembrança é como abrir portas de um passado presente e que se ausenta. O poema manifesta uma luta temporal em que o eu lírico é incitado a pronunciar-se frente a sua c çã qu c u “fug ”, -se um desafio ao tempo cronológico que, na condição humana, tem o papel constatador de perdas e de esquecimento daquilo que é meritório e benéfico. Destaque-se que, na construção do sentido do poema, o esquecimento vai sendo desarticulado por meio das qu ,à ó , u :“ b ” Há clara intenção de dar ritmo às lembranças através de uma linguagem que manifesta o desejo de recuperação do tempo/fatos ausentes, que modificam o tempo presente. São, por isso, produtos de sentidos que remetem explicitamente à árdua tarefa de recuperar um passado não retornável, além de mostrarem seu objetivo de perturbação do tempo presente desconstituinte. Em todo o poema está tecida uma densa relação entre presente e passado (Índia Velha/Se lembra/tantos brancos que chegaram tantos/Que até perdestes as contas/ e as contas de teus colares/) a índia que é velha, que se esqueceu do passado, que não lhes restou lembranças, apenas uma cegueira memorialística qu c “ b ”, fragmento os fatos e desfragmentando o esquecimento, junta-se 6 Re (cor)dar a natureza é, etmologicamente, repô-la no coração do homem, socializando-a no mesmo passo em que o homem se naturaliza. (BOSI, 1977, p.155) 137 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento u cu é c : çã “ b ”u maneira de dar consciência à memoria de recordar o já perdido, aproximando o passado e o presente, trazendo o ausente para presente, paralelamente. Nessa busca incessante, de relembrar, de concretizar o passado, vai também constatando a afirmação de que a memória é frágil, que se deteriora com o passar dos tempos em que presentificar o passado é garantir o direito à vida digna do indígena na atualidade. Considerações finais A poética emanuelina, sem dúvida, em toda sua estrutura, em todo o seu sentido, é um trabalho artístico-cultural merecedor de análise. Quando se trata de poemas voltados às temáticas sociais, o berço é a grande região de Dourados, Mato Grosso do Sul, a cidade de muitos povos de culturas diversas: seus habitantes nativos, culturas brasileiras paulista, sulista, mineira, nordestina, e de países europeus (como Itália e Portugal) e orientais (como Síria, Líbano e Japão) com ressalvas à cultura do país vizinho, o Paraguai. O sujeito social, no caso específico, o indígena na poética de Emmanuel está inserido neste contexto de diversas etnias, pensamentos, conhecimentos, costumes e sabores, cuja convivência se estabelece por meio de uma inter-relação cultural. Esse sujeito representado no texto poético, é alocado nas reservas indígenas de Dourados, sendo obrigado a inserirse, interagindo com a comunidade não indígena, como bem descreve o poeta douradense Emmanuel Marinho em seus qu ã qu c “I V h ” f gu z çã cu u “Í ” c “ cí ” 138 ANAIS - 2013 Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4ª ed, 9ª impressão São Paulo: Ática, 2010. ______. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3 ed. São Paulo: Humanitas/FFCLH/USP, 2001. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. São Paulo: Edusc, 2003 BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 15 ed. 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Nesse aspecto, faz-se importante compreender a história da leitura a fim de reconhecer as nossas possibilidades de atuação, como promotores, sujeitos ativos dessa mesma trajetória. PALAVRAS-CHAVE: História da leitura; Função social da leitura; Hipersentido. Introdução A leitura começa a ser elaborada por volta de 5.700 anos atrás, na Mesopotâmia. Desde então, ela passou a compor e a se constituir como uma prática cada vez mais necessária, considerando as transformações que a sociedade sofria a cada período. Entre o repúdio à sua supervalorização, muitos fatos construíram e continuam a construir sua trajetória. Este trabalho tem o 1 Mestranda - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS – [email protected] 2 Prof.ª Dr ª. - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS – [email protected] 144 ANAIS - 2013 objetivo de analisar a leitura, considerando trechos de sua história e alguns fatos curiosos que a compõe, além de reconhecer novas possibilidades de atuação tendo em vista as novas perspectivas nas quais ela se insere, principalmente por meio das transformações tecnológicas. A cultura e a língua mudam porque elas sobrevivem num mundo que muda: o sentido de um verso, de uma máxima, ou de uma obra muda pelo simples fato de que mudou o universo das máximas, dos versos ou das obras simultaneamente propostos àqueles que o aprendem, o que se pode chamar de copossíveis. (Bourdieu, apud GERALDI, 2010, p. 112) Corroborando com as palavras de Bourdieu, é interessante observar que como a cultura, a língua, até mesmo o suporte material de todo o objeto de leitura muda de acordo com as necessidades criadas a partir das transformações sociais. As tabuletas de argila cabiam na palma da mão. As folhas de papiro podiam ser unidas formando rolos portáteis. Ambos os materiais atenderam às necessidades dos leitores durante milhares de anos – quase perfeitamente ajustados, de fato, às respectivas exigências da sociedade. (FISCHER, 2006, p.76). Do mesmo modo, o conceito de leitura também sofreu grandes modificações, já que, ao longo da história, teve 145 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento significados diferentes para vários povos: reconhecimento de códigos, declamação, capacidade de extrair sentido de símbolos, bem como a compreensão de seu significado, entre outros. Essa definição continua a se expandir. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, por exemplo, postulam que a leitura [...] é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo e construção do significado do texto, a partir de seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto [...] não se trata simplesmente de extrair informações da escrita, decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica, necessariamente, compreensão. (BRASIL, 1998, p. 41) 1. A trajetória da leitura: trechos de sua história e alguns fatos curiosos Das tabuletas de argila, do couro, do papiro e do pergaminho, na antiguidade, às telas digitais, a trajetória da leitura foi marcada por diversos fatos curiosos dignos de serem recontados. Sabemos, por exemplo, que na Antiguidade Clássica, poucas eram as pessoas que aprendiam ler e escrever. A escrita e a leitura estavam relacionadas, basicamente, aos registros administrativos, ligados exclusivamente ao trabalho, desse modo, as pessoas que desenvolviam essas habilidades tornavam-se profissionais dessa atividade. Esses eram chamados de escribas, únicos leitores e escritores oficiais. 146 ANAIS - 2013 Pouquíssimos na Mesopotâmia podiam alcançar essa aptidão. Por volta de 2000 a.C., em Ur, a maior metrópole da região com uma população de aproximadamente 12 mil pessoas apenas uma pequena parcela – talvez uma em cada cem ou cerca de 120 pessoas, no máximo – era capaz de ler e escrever. (FISCHER, 2006, p.17). Profissão promissora, mas que dependia de longos anos de dedicação. Para se tornar um escriba, a criança tinha de frequentar a escola de formação de escribas dos seis aos dezoito anos, “desde o início do período matutino até o final do vespertino durante 24 dias de cada trinta” (FISCHER, 2006, p.20). Como mencionado anteriormente, o número de alfabetizados era mínimo, uma cidade com cerca de dez mil habitantes tinha 185 escribas aproximadamente, dos quais apenas dez eram mulheres. Esse dado chama atenção, pois embora o número de mulheres fosse inexpressivo, comparado aos escribas do sexo masculino, foi uma mulher, Enheduanna, a primeira pessoa a assinar a autoria de um trabalho escrito: uma série de canções em louvor à deusa do amor e da guerra. Nesse mesmo período (2500-2350 a.C.), no Egito, iniciou-se o uso do papiro em detrimento das tabuletas de argila, o que facilitava muitíssimo a leitura e o que possibilitou, provavelmente, a escrita do livro mais antigo do mundo: o Pruss Papyrus. Antes disso, poucos trabalhos mais extensos foram escritos. O papiro – planta que crescia em abundância às margens do rio Nilo – se transformava, então, em mercadoria de extrema importância, e em consequência, a leitura era difundida e os livros comercializados amplamente. “[...] os livros estavam entre as posses mais estimadas de gregos e romanos instruídos, 147 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento sendo objetos de uma paixão outrora dedicada apenas à família, ao cônjuge ou aos amantes. Para muitos, os livros eram ainda mais estimados” (FISCHER, 2006, p.46). Para os judeus, a leitura também tinha grande importância na Antiguidade, mas por motivos comerciais; por essa razão, muitos deles escreviam e liam em grego, embora fossem analfabetos em hebraico e aramaico, línguas nas quais estavam escritos os textos sagrados, por isso, o trabalho dos escribas do templo ainda era bastante valorizado. Na maioria dos lugares, nos séculos VII e VIII, por exemplo, o assassinato de um escriba tinha a mesma repercussão que o assassinato de um bispo, inclusive cabia a mesma punição. Em Roma, as livrarias já se faziam populares. Os vendedores expunham cartazes divulgando as obras, excertos de textos eram distribuídos gratuitamente para despertar o interesse dos leitores, que aumentavam de quantidade visivelmente. Enquanto isso, equipes de escravos eram mantidas para copiar livros em grego e latim. No Império Romano, assim como na Grécia, outra forma de divulgação das novas obras expandia-se com intensa profusão: eram as leituras públicas, que serviam não apenas de entretenimento, mas principalmente como um pré-lançamento, momento em que os futuros leitores podiam, inclusive, fazer interferências na obra. Os autores apresentavam seus versos, histórias e lendas mais recentes, e seus amigos literatos, companheiros eruditos ou poetas, bem como sua família, mecenas e o público em geral participavam gritando em sinal de aprovação, batendo palmas em intervalos regulares e levantando-se e aclamando em passagens particularmente 148 ANAIS - 2013 excitantes. Essa reação do público não era apenas um gesto respeitoso em relação a um membro da família ou colega; era, na verdade, parte da etiqueta tradicional, um protocolo a ser seguido. (Na realidade, a ausência manifesta de qualquer parte poderia ser tomada como grave ofensa.) Todos os bons escritores esperavam críticas construtivas em uma leitura pública. Após escutarem essas críticas, refinavam então sua obra para que esta se adequasse ao gosto do público. Esperava-se que o público chegasse pontualmente e permanecesse no local durante toda a leitura. (FISCHER, 2006, p.67-68) Apenas no final da Antiguidade é que a leitura se torna mais silenciosa e introspectiva, antes disso, ler era sinônimo de declamar, não se concebia a leitura se não fosse para a prática da oralidade. A partir daí, mostra-se mais voltada para o indivíduo, para sua procura e busca interna. “Assim como os gregos e romanos antigos experimentaram a ‘fala do papiro’, que transformou a leitura em uma popular ferramenta oral para o acesso à informação, seus descendentes conheceriam a ‘visão do pergaminho’, que divulgou a própria fé em um solitário silêncio” (FISCHER, 2006, p.89). Isso não quer dizer que, nesse momento, houvesse uma ruptura da oralidade para a leitura individual. A leitura particular, até o século XIV, jamais foi uma constante. O que ocorreu, na verdade, foi a legitimação dessa prática. A mudança que ocorreu na prática da leitura deu-se de forma lenta e gradativa, mas visível. Já no começo do século IX era possível perceber que essa nova prática estava mudando a rotina nos scriptoria, locais onde os copistas trabalhavam, de 149 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento um local extremamente barulhento, afinal todos os copistas liam em voz alta os textos que copiavam; para um lugar silencioso, já que a oralidade, a partir dessa transição, começou a perder espaço para a leitura silenciosa. Com isso, modificava-se também a relação dos leitores com a leitura, antes pública, agora privada; e até mesmo a escolha de temas que despertavam interesse começava a ser respeitada, já que essa prática agora se tornava individual e silenciosa. Os livros passavam a ser cada vez mais valorizados. Tanto que os agiotas da época, ao emprestar dinheiro, recebiam obras literárias como garantia. No século XV, as feiras mais importantes passavam a comercializar livros, tornando esse, um negócio altamente lucrativo. Como ainda era artigo raro, a posse de um livro era comparada a bens como cavalos ou gado, por isso, seu roubo muitas vezes era punido até mesmo com a pena de morte. A representação social do leitor também era valorizadíssima, a ponto de pessoas comprarem encadernações vazias para serem consideradas leitoras. A representação do leitor era mais importante que a própria ação da leitura. Na Rússia, durante o reinado da alemã Catarina, a Grande (no poder entre 17621796), Herr Klosterman enriqueceu vendendo metros de encadernações enganosas. Eram capas vazias recheadas com jornal imitando volumes autênticos. Esses “livros” vazios preenchiam as paredes das casas dos cortesãos que desejavam impressionar a imperatriz bibliófila. De certa forma, isso era um sintoma do desconforto em relação à leitura no país, 150 ANAIS - 2013 nessa época em que ser visto como um leitor era, muitas vezes, mais importante que de fato ler. (FISCHER, 2006, p.248) Embora muito valorizado, o ato de ler era extremamente penoso. Basta imaginar as letras miúdas escritas no pergaminho sendo lidas à luz de velas, lampiões ou tochas. Parte das dificuldades acabou quando, em 1450, foi impressa a primeira página com tipo móvel de metal, e o pergaminho – feito da pele de cabra ou de carneiro – deixava o palco para a entrada triunfante do papel, que tinha sido desenvolvido na China muito antes, por volta de 100 d.C., e com a prensa, tornou-se essencial. E tudo começou com Gutenberg em Mainz. A inovação causou um impacto muito mais imediato do que, em geral, se imagina. Em 1450, apenas uma prensa estava em operação em toda a Europa. Em 1500, cerca de 1700 prensas em mais de 250 centros de impressão já haviam publicado por volta de 27 mil títulos em mais de dez milhões de cópias. Em apenas duas gerações, o número de leitores na Europa passou de dezenas de milhares para centenas de milhares. Nos últimos quinhentos anos, nada contribuiu mais para o avanço da sociedade que a invenção da imprensa. (FISCHER, 2006, p.190). Com relação à iluminação adequada para os leitores noturnos, foi apenas no século XIX que houve progressos no sistema. De qualquer forma, o livro impresso foi, por algum tempo, objeto de profunda adoração. Beijava-se o livro antes de 151 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento iniciar a leitura, mais que isso, vestia-se roupa de gala para tal ato. No entanto, aos poucos as atitudes dos leitores foram mudando, afinal os livros não tinham mais o toque pessoal do autor ou do copista, a relação do leitor para com o livro foi, da mesma forma, tornando-se impessoal, porém altamente rentável. O século que havia começado com editores de grande potencial intelectual, os quais aproveitavam a contribuição de célebres eruditos e contavam com seu apoio em projetos, terminou com livreiros-editores priorizando objetos comerciais, já não se preocupando em favorecer o mundo das letras, mas apenas buscando publicar livros cuja venda fosse garantida. Os mais ricos fizeram fortuna com livros cujo mercado era garantido, reedições de antigos best-sellers, obras religiosas tradicionais [...]. (FISCHER, 2006, p.190) No final do século XVII, além da representação do livro estar sofrendo alterações, o próprio conceito acerca da principal função da leitura se modificava: da concentração (leitura intensa) para o acesso a mais informações (leitura extensa). Críticas a essa mudança eram comuns, pois a leitura intensa abria caminho para um tipo de leitura que se preocupava com a quantidade, a extensão, o aumento do número de informações repassadas aos leitores, que também se multiplicavam. Uma boa forma para comprovarmos o aumento considerável do número de alfabetizados era comparar ao número de certidões de casamento, já que em alguns reinos, a Suécia, por exemplo, os iletrados sofriam punições severas, além de não participar da comunhão, a ponto de se sentirem 152 ANAIS - 2013 totalmente excluídos, também eram proibidos de se casarem. Por isso, o aumento do número de certidões atesta o aumento das pessoas alfabetizadas. No entanto, se os alfabetizados aumentavam em número, as mulheres, principalmente depois das núpcias, tinham de deixar de lado a paixão pelos livros. Ler na cama era considerado depravação, para as mulheres a única maneira de tomar conhecimento pelo que estava sendo lido era a possibilidade do marido fazer a leitura. Elas podiam tão somente ouvir a leitura, desde que essa fosse feita pelo marido. Claro que existiam algumas exceções, Fischer (2006) nos conta que Diderot, por exemplo, descreveu detalhadamente como tentou curar a beatice literária de sua esposa, inicialmente, lendo obras diversas para ela ouvir, já que ela havia afirmado que só tocaria em livros religiosos. Com o passar do tempo, essa literatura religiosa começa a declinar, por causa do Iluminismo. A emancipação do c hu f z í “ écu ” N entanto, algo estava por desestabilizar a crescente construção dessa sociedade letrada: o século do livro era também o século das revoluções. E com elas, um número enorme de iletrados saía do campo para as fábricas. Desse modo, a alfabetização teve de ser disseminada em uma escala ainda maior. Chegou ao ponto da leitura receber críticas mordazes no que se refere a se constituir como um entretenimento individualizado, em detrimento das longas conversas que antes existiam. Crítica que a televisão sofreu desde 1970 (período de sua inserção nos lares do nosso país) e que, da mesma forma, a internet sofre atualmente. O tempo transcorria, mas as leituras públicas ainda permaneciam como prática de entretenimento, de busca de 153 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento informação e de conhecimento, além das praças e salões, as leituras públicas também ganhavam o chão das fábricas. É o caso ocorrido com os imigrantes cubanos. Surgiram também outros tipos de leitura pública. O costume monástico do lector ou clérigo leitor das Escrituras na igreja foi restabelecido nas fábricas cubanas de charutos, em 1865, por exemplo, sendo mais tarde proibido pelo governo por ser considerado subversivo. Os imigrantes cubanos levaram esse costume para Key West, Nova Orleans e Nova York, praticando-o nessas cidades de 1869 até a década de 1920: de manhã até a noite, enquanto estivessem trabalhando, escutavam a leitura de histórias, romances, jornais, poesias, ensaios políticos e muitos outros textos. Não se sabe se isso incentivou os trabalhadores analfabetos a aprender a ler, mas a leitura em grupo transformou as horas que de outra forma seriam de puro tédio em oportunidades de obter instrução e até inspiração: com as mãos ocupadas, a mente estava livre para aprender e se desenvolver. Operários das fábricas de cigarros com muitos anos de casa eram capazes até de recitar obras completas de cor. (FISCHER, 2006, p.190) Com a população letrada crescendo e essa compondo o segmento dos trabalhadores, os livros se tornaram ainda mais 154 ANAIS - 2013 populares. Dessa forma, atendia-se essa parcela da sociedade que compunha o novo público-alvo do mercado editorial. Consequentemente, essa indústria do livro aprimorava-se cada vez mais, tanto na produção em maior escala, quanto nos preços ainda mais baixos. Se por um lado esse mercado se desenvolvia por causa dos novos leitores, por outro, esse desenvolvimento colaborava para que outras pessoas se tornassem letradas. É certo que a capacidade de ler também torna a pessoa mais capaz em outros aspectos e isso, de certa forma como hoje, incomodava a classe que detinha o domínio político. Por essa razão, tantas bibliotecas foram queimadas, destruídas, saqueadas. O principal foco da censura do século XX estava nos textos de cunho político. A queima de mais de vinte mil livros em Berlim [...] enquanto os telejornais registravam o acontecimento, a fogueira engolia obras de Bertolt Brecht, Thomas Mann, Albert Einstein, Karl Marx, Sigmund Freud, Émile Zola, Marcel Proust, H.G. Wells, Upton Sinclair, Ernest Hemingway, entre centenas de outros. Depois de 12 anos, a maior parte da Alemanha estava em ruínas, ao passo que esses autores conquistavam muito mais leitores alemães que em qualquer outra época. (FISCHER, 2006, p.190) As bibliotecas se reerguiam na Alemanha, mas a censura relacionada com a escolha dos textos que podiam ou não ser lidos permaneceu por muito tempo, afinal, a ideia era a de que a 155 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento restrição da leitura ou a destruição literal dos livros dariam maior estabilidade ao poder político. Mesmo com essas restrições, nos países desenvolvidos, no final do século XX, o analfabetismo era combatido veementemente, Fischer trata do analfabetismo nesse período como um exílio interno, algo mais grave que uma deficiência física. Passado o tempo, atualmente não são apenas os índices de analfabetismo que preocupam, mas em que nível pode-se considerar uma pessoa realmente alfabetizada. Daí emerge uma das questões recorrentes a respeito dos problemas educacionais, especificamente no Brasil: a precária condição da leitura do aluno brasileiro. Nesse sentido, faz-se importante uma análise sobre as funções sociais do ato de ler e as perspectivas que podem ser consideradas. 2. A trajetória da leitura: funções sociais e o leitor Faz-se importante retomarmos o caráter evangelizador da leitura, principalmente em se tratando de Idade Média, período no qual a igreja era o centro da cultura letrada. No início dessa prática, era ela que se prestava a alfabetizar àqueles que desejavam seguir carreira religiosa. Provavelmente por isso, passou a monopolizar e censurar toda e qualquer produção escrita. Ironicamente, mas não ingenuamente, a Igreja organizava campanhas de alfabetização. Já que negar a cultura letrada era impossível, o objetivo era utilizar essa prática a favor de sua ideologia, tolhendo, de certa forma, a população de estudar textos religiosos por conta própria. Quando, no final do século XVII, a leitura intensa, que exigia essencialmente grande concentração, deixava de ser privilegiada, visando uma quantidade maior de informações, na 156 ANAIS - 2013 verdade, era para atender uma necessidade da sociedade. Afinal, de puro deleite e entretenimento, o ato de ler diminuía a grande responsabilidade que, até então, a memória humana detinha, ou seja, a de armazenar informações. Essa função, a leitura abarcou, pelo menos inicialmente. Além da diferença de competências, existem outras que provêm do próprio estilo da leitura e engendram as relações mais contrastadas entre o leitor e o objeto lido. A hipótese fundamental, construída a partir das situações da Alemanha na segunda metade do Século XVIII e da Nova Inglaterra na primeira metade do século XIX, constata a passagem de uma leitura dita intensiva a uma outra, dita extensiva. [...] Inicialmente, o leitor é aí confrontado com um número reduzido de livros (a Bíblia, as obras de piedade, o almanaque), que perpetuam os mesmos textos ou as mesmas formas, que fornecem às gerações sucessivas referências idênticas. Por outro lado, a leitura pessoal encontra-se situado em uma rede de práticas culturais apoiada sobre o livro: a escuta de textos lidos e relidos em voz, na família ou na igreja; a memorização desses textos ouvidos, mais reconhecidos do que lidos, sua recitação para si ou para outros. (CHARTIER, 2001, p.86) O número de informações aumentou podendo ser comparado ao progressivo aumento de materiais impressos. A interação existente, até então, era do leitor com a escrita, com o texto impresso que, de certa forma, era interpretado sem que 157 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento outras relações fossem observadas, o que para Chartier é impossível. Contra a representação (...) segundo a qual o texto existe em si mesmo, separado de qualquer materialidade, devemos lembrar que não existe texto fora do suporte que permite sua leitura (ou da escuta), fora da circunstância na qual é lido (ou ouvido). Os autores não escrevem livro: escrevem textos que se tornam objetos escritos – manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados – manejados de diferentes formas por leitores de carne e osso cujas maneiras de ler variam de acordo com as épocas, os lugares e os ambientes. (CAVALLO, CHARTIER, 2002: 09) Uma nova maneira de ler vai se impor, então: a leitura de numerosos textos, lidos em uma relação de intimidade, silenciosa e individualmente. Ela é, também, leitura laica, porque as ocasiões de ler se tornam independentes das celebrações religiosas, já que a igreja nesse momento começa a enfraquecer-se em detrimento do desenvolvimento e fortalecimento do comércio. Desse modo, também a leitura começa a se expandir e ganhar outra roupagem, instrumento de conscientização e conhecimento ao invés de instrumento de evangelização. Em pouco tempo o público leitor já não lia o que era indicado pelas instituições religiosas e autoridades, mas o que era de seu interesse, seja emocional, profissional, enfim, ler passava a ser uma escolha pessoal. 158 ANAIS - 2013 As mudanças não param nesse aspecto da escolha do que realmente se tem interesse em ler. Como dissemos anteriormente, novos suportes modificam as práticas de leitura e escrita de uma sociedade. Em se tratando de leitor, podemos observar um distanciamento entre ele e o texto, já que passa a ter menos contato físico com o que lê. O leitor do material impresso manuseia as páginas, coloca o livro no colo, lê na cama, leva-o a vários lugares. Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem. Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua compreensão. (CHARTIER, 1998: 77) Quanto à compreensão, Eco (2002) afirma que a elaboração de um texto pressupõe a previsão das estratégias e o movimento interpretativo do leitor. Ao produzir um texto, o autor faz uma hipótese sobre como este será lido, como o leitor percorrerá cada linha e então, prevê como será esse leitor, que o autor denomina leitor modelo. Considerando essa previsão, estratégias são tomadas. Para organizá-las, o autor "deve assumir que o conjunto de competências a que se refere é o mesmo de seu leitor" (p. 58). Umberto Eco ressalta que não se trata de esperar que esse leitor realmente exista, mas desenvolver o texto de forma a construí- , , b z u c ã “O significado, no entanto, constrói-se pelo esforço de interpretação 159 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento do leitor, a partir não só do que está escrito, mas do c h c qu z x ” (BR IL, 1998, 44) Desse modo, a ideia do leitor modelo parte do público-alvo que o autor pensa alcançar. Voltando a questão corporal no que tange à leitura, Manguel (1997: 180) enfatiza o caráter intimista do ato de ler na cama, uma atividade autocentrada, invisível ao mundo, que traz, mais do que , “u qu c c ” 3. A trajetória da leitura: perspectivas Parece-nos que estamos caminhando cada vez mais por esses campos privados, de que falava Manguel, principalmente quando pensamos na leitura junto aos suportes mais atuais, que favorecem ao , qu “c c -se de toda forma de ç c u á ” ( H RTIER,1998:144). Em contrapartida, o texto pode assumir uma postura coletiva nunca vista anteriormente. Afinal, as mídias digitais possibilitam essa participação do leitor que pode intervir no c x , qu u “ u , manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais numerosos e mais livres do que qualquer uma das formas g ” ( H RTIER, 1998: 88) Na verdade, é importante destacar que não é só a interação dos sujeitos no ato de leitura (autor, texto, leitor) que sofre modificações ao analisarmos a leitura do texto digital. Outros aspectos como a pluralidade de representações que permite integrar texto, imagem e som no mesmo suporte, o chamamos de hipersentido; ou ainda, o fato do leitor poder reunir textos que tratam do mesmo tema ou do mesmo campo de interesse, num vai e volta contínuo (hipertexto); a barra de rolagem do texto na tela, que lembra os rolos da Antiguidade 160 ANAIS - 2013 apesar daquele ser horizontal e atualmente ter a sequência vertical. Podemos inferir, nessa feita, o caráter subjetivo que essa u f f L B ff, “c u ê com os olhos que tem. E interpreta onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender o que alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isto faz da leitura sempre um releitura. [...] Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co- u ” (BOFF, 1997). A diferença, imediatamente visível, no livro impresso, entre a escrita e a leitura, entre o autor do texto e o leitor do livro, desaparece em proveito de uma realidade diferente: o leitor diante da tela torna-se um dos atores de uma escrita a várias mãos ou, pelo menos, encontra-se tem posição de constituir um texto novo a partir de fragmentos livremente recortados e reunidos. (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p.31). Todos os envolvidos no ato de ler, de certa forma, estão vivenciando uma prática nova de leitura. Desse modo, essas mudanças fazem com que Chartier considere que estamos vivendo uma verdadeira rev uçã c : “( ) revolução, fundada sobre a ruptura da continuidade e sobre a necessidade de aprendizagens radicalmente novas, e, portanto, um distanciamento com relação aos hábitos, tem muito poucos precedentes tão violentos na longa históri cu u c ” (CHARTIER, 1998: 93) 161 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Algumas mudanças já são palpáveis, confirmando a revolução defendida por Chartier, como a leitura de jornais impressos que migrou fortemente para a Internet causando até o fechamento de jornais aqui no Brasil, bem como em várias partes do planeta. O livro impresso e, em especial o livro de literatura, ainda convive muito bem com os dois formatos: impresso e digital. Constata-se, assim, a leitura como um processo de interação entre leitor e texto, promovendo-se a atitude ativa do sujeito diante daquilo que lê, o que possibilita a formação e o desenvolvimento do leitor competente. Esse leitor é quem constrói o significado de um texto, por meio de seu conhecimento linguístico-textual e de mundo, seja no suporte impresso ou hipertextual. Coloco-os lado a lado – impresso e hipertextual – intencionalmente, afinal, o hipertexto nada mais é que é um novo formato de texto, e como todo texto, exige envolvimento, conhecimento da intencionalidade discursiva do autor, objetivos do leitor, familiaridade com o gênero, conhecimento do suporte, do tema e, sem dúvida, motivação. Dessa maneira, a concepção de interação que a leitura implica é outra, afinal, um texto não existe em si mesmo, como os estruturalistas acreditavam: texto pressupõe interação. Nesse momento, cabe a seguinte ponderação de Orlandi “[ ] ã g c x ( çã uj / bj ), mas com outro (s) sujeito (s) (leitor virtual, auto, etc.). [...] Ficar na objetividade do texto, no entanto é fixar-se na mediação, absolutizando-a, perdendo sua historicidade, logo, sua g f câ c ” (O , 1988, 09) Por isso, é importante dizer que o texto, a construção de seu significado, depende de como é constituído seu leitor, pois a leitura, nessa sociedade midiática, cada vez mais recebe interferências desse leitor. Nesse sentido, segundo Chartier 162 ANAIS - 2013 (2001), a ação do leitor na internet é maior porque no texto virtual desaparece a hierarquia. Nele os dois, autor e leitor, são construtores do texto. Uma vez que a preponderância passe para a leitura na tela, o que sem dúvida acontecerá, o mundo da leitura, notadamente a cultural, mais uma vez terá a sua essência modificada. O leitor passivo terá a possibilidade, caso escolha, de se tornar o leitor ativo à medida que ingressar na narrativa ficcional para co-planejar enredo e final. (FISCHER, 2006, p.190) Podemos retomar, nesse momento, o conceito de hipersentido, e inclusive arriscar na perspectiva que o ato de ler estará cada vez mais próximo dele. Considerando-o como possibilidade de uma leitura polissêmica, superando o mito da interpretação única, fruto do pressuposto de que o significado está dado no texto. Pelo contrário, o suporte virtual, à medida que instiga os sentidos, possibilita o aguçar de muitas interpretações. Entendemos, então, que não existe a leitura, existem várias; em momentos e circunstâncias distintas. Conclusão Embora haja a necessidade de retomarmos a história da leitura, por meio de trechos e de fatos curiosos, o aspecto mais relevante é refletirmos sobre a função social da leitura e sobre o papel do leitor, como sujeito ativo na construção de sentido no texto e principalmente, as perspectivas do ato de ler, considerando o hipertexto e o hipersentido. Afinal, 163 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento […] c c b -se a leitura como uma prática social, um meio de possibilitar a realização de novos diálogos entre os sujeitos envolvidos no processo: o autor, representado pelo texto, e o leitor, uma resposta a uma necessidade, em práticas de letramentos socialmente determinadas. Logo, fora da escola, não se lê só para aprender a ler, não se lê de uma única forma, não se decodifica palavra por palavra, não se responde a perguntas de verificação do entendimento preenchendo fichas exaustivas, não se faz desenho sobre o que mais gostou e raramente se lê em voz alta. (BRASIL, 1998, p.44). Vivemos numa sociedade da cultura letrada, ou seja, estamos cercados por palavras e textos escritos a todo o momento. Inicialmente, temos uma necessidade social da leitura, que é aquela que nos aproxima da nossa sociedade, da maneira como o mundo contemporâneo está organizado. Por isso, o ato de ler tem realmente sofrido mudanças, pois não é uma prática isolada da sociedade, que também sofre mudanças. […] u c u b c – como bem deveria – a panóplia da experiência humana. À medida que a leitura continua a se desenvolver nas sociedades que exaltam, de fato, a palavra escrita, incluindo cada vez mais subgêneros, tecnologias e ideias inovadoras, ela reflete a transformação genuína da própria humanidade. (FISCHER, 2006, p.285) 164 ANAIS - 2013 O livro já foi de pedra, de madeira, de couro, de tecido. Seu futuro não poderia ser diferente. O que importa é pensarmos que são suportes diferentes, porque as necessidades e as condições de leitura sofreram alterações, isso porque, o sujeito que constrói o sentido dessa prática, o leitor, também é diferente relacionado àquele que deu início ao ato de leitura. Por isso, as habilidades e os comportamentos dos leitores também são distintos. Sabemos que não se lê da mesma forma que se lia na Idade Média, ou antes; muito menos, como se lê no computador e no livro aberto sobre a mesa ou o colo. Colocamos em evidência práticas diferentes de se relacionar com a leitura, considerando inclusive, as perspectivas do mundo tecnológico. Afinal, os leitores aprenderão a transitar sobre a leitura impressa e digital e quantas mais surgirem. Referências BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. CAVALLO, Guglielmo, CHARTIER, Roger (Organizadores). História da Leitura no Mundo Ocidental. [Trad. Fulvia M. L. Moretto, Guacira Marcondes Machado, José Antônio de Macedo Soares]. 1ª ed. São Paulo: Ática, 2002. CHARTIER, Roger (Org). Práticas da Leitura. [Trad. Cristiane Nascimento]. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. ECO, Umberto. Entre autor e texto. In: ECO, Umberto (Org.). Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins 165 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Fontes, 1997. P.79 -104. FISCHER, Steven Roger. . História da leitura. [Trad. Claudia Freire]. São Paulo: Editora UNESP, 2006. GERALDI, J. W. (org.). A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. In BOURDIEU, 1987. Choses Dites. Paris, Minuit. LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2003. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988. 166 ANAIS - 2013 A tríade “a profana”, “a pagã” e “a sagrada em A mais bela história de Adeodata , de Rosane Almeida Adriana Patrícia Sena CORDEIRO1 Wagner Corsino ENEDINO2 RESUMO: Ancorados nos estudos Ryngaert (1996), Pavis (1999), Magaldi (1991), Guinsburg (2009), Prado (2002), Pallottini (1989) acerca de modo de estruturação do texto teatral, este trabalho tem como objetivo analisar, sob o viés da cultura/ e cultura popular do Nordeste (ARAÚJO, 2007; ORTIZ, 2002; CANCLINI, 2011) e dos estudos de gênero (COSTA; BRUSCHINI, 1992; LOURO, 1997), regularidades e dispersões na construção das três mulherespersonagens que ancoram a representação do feminino, em constituição ao longo da história da Humanidade, no texto teatral A mais bela história de Adeodata, da dramaturga contemporânea brasileira Rosane Almeida. As vozes inscritas no texto e na história contada, atravessadas da/pela cultura popular nordestina, pela memória e pela História, orquestram a representação da mulher na sociedade, evidenciando que, apesar das transformações sociais promovidas a partir do século XX, quanto aos papéis sociais vinculados ao gênero, a maioria dos estigmas e traços inscritos no patriarcalismo permanecem, estabelecendo distinções entre o sagrado, o pagão e o profano. PALAVRAS-CHAVE: cultura popular; gênero; teatro brasileiro contemporâneo; A mais bela história de Adeodata 1 Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Letras (Áreas de Concentração em Estudos Literários), em nível de Mestrado, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Três Lagoas, e-mail: [email protected] 2 Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Três Lagoas e-mail: [email protected] 167 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Introdução O texto A mais bela história de Adeodata, da dramaturga Rosane Almeida, é explorado, quanto aos fios do discurso sobre/de gênero entrelaçados na obra e ecoados nas/pelas vozes femininas das personagens. A opressão feminina é um fato histórico, que se estende desde a Antiguidade e percorre todos os espaços da atuação humana. A história da luta pela libertação feminina é, por sua vez, algo relativamente recente e inscrito, sobretudo no Ocidente e, na busca de direitos, a mulher conquistou direito ao voto, engajou-se na vida econômico-social e política, constituindo uma problemática em que está engendrado o estudo do gênero. O objetivo do trabalho é analisar, sob o viés da cultura popular e dos estudos de gênero, a configuração das personagens femininas no texto teatral A mais bela história de Adeodata, da dramaturga contemporânea brasileira Rosane Almeida. Visando a uma aproximação entre a dramaturgia e o texto literário, por meio de uma abordagem técnica e metodológica consistente, as análises empreendidas fundamentam-se nos pressupostos de Pavis (1999), Guinsburg (2009), Ryngaert (1996), Prado (2002), Magaldi (1991) e Pallottini (1989). A esses construtos aliam-se outros, pertinentes às temáticas inscritas na obra, quais sejam: cultura e cultura popular (ARAÚJO, 2007; ORTIZ, 2002; CANCLINI, 2011) e gênero (COSTA; BRUSCHINI, 1992; LOURO, 1997). 1. Cultura: em torno de uma definição Para Hall (2004, p. 50), 168 ANAIS - 2013 As culturas nacionais, ao produzir sentidos b “ çã ”, c qu podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Nesse diapasão, podemos afirmar que o texto em estudo está permeado de traços culturais, inscritos no cotidiano dos personagens e marcados em sua indumentária, suas danças, seus costumes e sua religião. Quando Rosane Almeida valoriza Dedé, que é vista como sujeito da margem pelo discurso da intelectual, ela faz emergir daí a vivência da autora, trazendo para o palco a representação de uma sociedade em plena transformação. Tratando de questões mais recentes e dos avanços c óg c , O z (2003, 106) c qu : “ c [...] leva a uma unificação do espaço, fazendo com que os lugares se globalizem. Cada local, não importa onde se encontre, u [ ]” P é dança, da poesia, da b u cê c , u“ c ” pelas personagens que coexistem num único espaço cênico, bem como pelo jogo polifônico entre as vozes e as configurações das personagens Dona Dedé e Doutora Déo, a autora provoca reflexões sobre as relações entre vida e arte, sobre transformações sociais (locais, universais ou até atópicas) ocorridas na sociedade, com destaque para a sociedade nordestina. É como se o local interagisse com o restante do mundo por intermédio da arte e da cultura, e não apenas pelos avanços tecnológicos, ainda não tão familiares à cientista pesquisadora em cena, que usa o computador para 169 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento registrar/divulgar dados culturais coletados por meio de fontes orais. Na obra A mais bela história de Adeodata, é notório que a personagem Doutora Deó, por não possuir o conhecimento da cultura nordestina, recorre à personagem Dona Dedé, para selecionar dados para sua pesquisa acadêmica. Dedé, por sua vez, obteve seus conhecimentos culturais por herança paterna, mas sabe que, ao longo do tempo, há as diásporas (HALL, 2003), os deslocamentos, remetendo a um processo de (des)identificação: DEDÉ (começa a recitar) Eu nasci num pé de serra, e quem nasce em minha terra, não existe outra saída: ou vira escravo da fome, ou sai e vai ganhar nome, longe da terra querida [...] (ALMEIDA, 2006, p. 51) O poema recitado são versos heptassílabos, concebidos új (2007) c “ á c c ,h j , ú c ” No texto em estudo, percebemos que “ u ” da personagem Dedé é construída no cenário nordestino; seu passado, marcado pelas tradições culturais que aprendeu com seu pai ainda na adolescência, renasce em seu presente: [...] hoje em dia a poesia é minha lavoura. Isso era pai que dizia. Olhe, pai tinha vocação para que tanta coisa nesse mundo: era mestre de maracatu, capitão de cavalomarinho, poeta violeiro, cantava que era uma coisa maravilhosa, tinha uma voz linda! (ALMEIDA, 2006, p. 28) 170 ANAIS - 2013 Saudade eu tenho de Nazaré da Mata: a feira, as sambadas, o cavalo-marinho, o çu E b !!! ” ( LMEID , 2006, p. 24). Tanto em Dedé quanto em Dora o saber popular reside na memória: Dora canta e dança os costumes do povo nordestino enquanto Dona Dedé conta sua história, seus hábitos, suas tradições. Significativo também o convite de Dedé para que Adeodata venha unir-se a ela em um número de telepatia: “ b f zê”; “ z h , !” ( LMEID , 2006, p. 52). É dessa maneira e por meio desse texto que Almeida (2006) globaliza as danças, os detalhes, os costumes, que acionam a memória dos leitores e aproximam o Nordeste do restante do país ou do mundo pela cultura da internet. Mostra-se o dia a dia do povo num piscar de olhos ou num clicar no computador e, assim, leva-se a cultura popular para o país inteiro e para o mundo. Essa globalização social pode ser observada na dramaturgia de Almeida: Claro que não sou eu, é que a tecnologia veio para resolver todos os problemas que nós não tínhamos! Como é? (Apertando duas teclas com uma mão e outra com o telefone que está no ouvido.) Control, Alt?Tudo junto? Control, Alt Del, sei... bom... foi... Graças a Deus! Tudo ok. (Pára e ouve assustada ao telefone.) O quê Apolônio? para eu deletar o seu nome do meu chip? (ALMEIDA, 2006, p. 31). 171 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 1.1. Cultura popular Para Canclini (2011), que analisa a situação da cultura popular na America Latina, existe uma hierarquia entre os capitais culturais: a arte vale mais que o artesanato, e a cultura escrita, mais que a transmitida oralmente. Mesmo nos países em que os saberes e práticas culturais populares, como as dos indígenas ou dos camponeses, foram considerados como expressões nacionais, esses capitais simbólicos possuem uma posição secundária, de subordinação. Ao refletir sobre a cultura popular, Martin Barbero (2003, p.119) destaca que ela se faz e refaz na contradição entre c f b c ú :“ algo nos ensinou é a prestar atenção à trama: que nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e que nem u qu ‘ c ’ ã c , pois há coisas que vindo de lá respondem a outras lógicas que não são as da dominação. No Brasil, Renato Ortiz é quem estuda em profundidade a questão da cultura popular. Em sua obra Românticos e folcloristas, o autor propõez u “ qu g c c ”, c “ íz h ó c ” N u bu c , século XIX é considerado um momento de suma importância: a “cu u u ” , “ g te lapidada pelos diferentes grupos c u ” (ORTIZ,1992, 6) Para Ortiz (1992, p. 66-7), cu u u “é elemento simbólico que permite aos intelectuais tomar consciência e expressar a situação periférica que seus países c ” 172 ANAIS - 2013 Roger Chartier, em uma revisão do conceito h g áf c cu u u , c qu é “cu u u ” qu b z u “u práticas que nunca são designadas pelos seus atores como c à ‘cu u u ’” ( H RTIER, 1995, p. 179). Segundo o pensador, hoje só é possível conceber o popular como espaço híbrido de trocas culturais, para além de categorias eruditas ou populares. Em A mais bela história de Adeodata, percebemos uma tensão entre a cultura erudita e cultura popular. A Doutora Déo, mulher com conhecimento intelectual, em busca de concluir sua tese, está inserida na cultura erudita; em contraponto, Dedé é uma trambiqueira que possui riqueza de conhecimentos provindos da sua história, do seu passado, logo cultura popular. N “c á hu ” ç , c x ligados ao âmbito rural e componentes urbanos e “ u z ” N qu z à cu u u , processo de coexistência representa um cruzamento de elementos de raízes folclóricas com elementos relacionados ao espaço urbano das novas massas de trabalho. Por conseguinte, a "cultura de elite", envolta no tradicionalismo do século XX, também buscou mecanismos artístico-culturais modernos e cosmopolitas. Na peça, Dona Dedé menciona o cavalo-marinho e destaca o amor do seu pai pelo maracatu, manifestações culturais de diferentes lugares, que se unem formando a identidade nacional: Olhe, pai tinha tanta vocação para tanta coisa nesse mundo: era mestre de maracatu, capitão de cavalo-marinho, poeta violeiro, cantava que era uma coisa maravilhosa, 173 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento tinha uma voz linda! (ALMEIDA, 2006, p. 28). Dra. Deo, em suas leituras no computador e nos livros usados em suas pesquisas acadêmicas, evoca também a mitologia: DOUTORA DÉO: Porque você não fala como James Frazzer, Mário de Andrade... Que o homem, na sua ignorância, para explicar a natureza, criou deuses e deusas?...porque ignorância é ignorar algo, e toda a mitologia é só outra maneira de explicar as coisas. Você não vai explicar isso, porque isso não é cientificamente comprovado, você não tem estatísticas. [...] Nesse fragmento, observamos que Doutora Déo sabe que “ çã cu u ” ã é uf c O mito, entre os povos , u f u u ; “u ingênuo, fantasioso, anterior a toda reflexão e não crítico de b c gu ” qu ã ó x c “ f ô u u c uçã cu u ”, qu , bé , “ f çã hu ” ( R NH ; MARTINS 1992, p. 62). Hoje, ela precisa de paradigmas , qu , “ í c ” c çã c íf c , b u qu “qu õ h j ” ã u , entre as quais a da preservação ambiental: DOUTORA DÉO: [...] Mas você não vai escrever isso, que é tudo muito pesado. Isso não, mas eu vou escrever que as florestas tropicais são queimadas e derrubadas tão depressa que poderão sumir nos próximos 174 ANAIS - 2013 trinta anos, que cem milhões de mulheres já passaram pelo ritual de mutilação e que cada ano acontecem dois milhões de mutilação porque tudo isso é cientificamente comprovado e eu tenho as estatísticas. (ALMEIDA, 2006, p.-32-33-40). Doutora Déo representa esse conhecimento da academia partindo da universidade, mas, para que ocorra o sucesso em sua carreira, ela vai depender da contribuição da personagem Dedé, que, apesar de ter poucos estudos, tem uma vasta vivência e experiência da cultura nordestina. A personagem Dedé, com seus medicamentos caseiros (manipulados pelo cacique), tenta sobreviver. De acordo com sua fala, os remédios poderão curar todas as enfermidades do corpo e até da alma. Vejamos o trecho a seguir: Esse pajé não extinto, minha gente, ele lha para o peixe-boi e capta o que o peixe-boi e ele transfere pelo poder da mente para uma banha de porco natural orgânica cem por cento derretida. Contra todos os males que afetam a alma, o espírito ou o juízo [...]BPBA3. Isso é bom pra tudo... CAGANEIRA ARRITIMIA DOR DE DENTE REUMATISMO FRIEIRA PEREBA CÂIBRA SONAMBULISMO BUCHO INCHADO ESPINHA CALO CRAVO UNHA ENCRAVADA RESFRIADO GRIPE HÉRNIA DOR DE CORNO [...] (ALMEIDA, 2006, p. 21-22). 3 BPBA vem a ser banha de peixe-boi da Amazônia. 175 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 1.2. Cultura popular brasileira Importa mencionar que a sociedade brasileira (mas não apenas ela) conheceu, a partir de 1930, o crescimento industrial, que a vem transformando até hoje, sob o signo do capital e da expansão da miséria pelo mundo. P é O z (2006, 71), “ çã cu u é f xc u f çã ”, o que se pode visualizar na obra em análise, sobretudo quando Dona Dedé relata: DONA DEDÉ: Eu tô bem , tô muito bem ... Pra quem andava descalça no mato, caçando tatu... eu tô bem demais...[...]É tudo gente trabalhadora, tudo sai de casa às quatro horas da manhã e só volta agora. [...] Agora está essa confusão porque é a hora do “ uch ’ ( LMEID 2006, 23) Ao longo da peça em análise, compõem o cenário e a linguagem, artefatos, dizeres do povo e ensinamentos de medicina popular, sobretudo por intermédio das personagens Dora e Dedé. g D éu b qu “ ç dos caboclinhos, com uma máscara que lembra antigos rituais íg ” ( LMEID , 2006, 32): 2. Raízes culturais nordestinas em A mais bela história de Adeodata Tomamos como apoio, para a estruturação deste item, a obra de Alceu Maynard Araújo, Cultura popular brasileira (2007), buscando, em A mais bela história de Adeodata, de 176 ANAIS - 2013 Rosane Almeida, algumas das raízes culturais que concorrem para a construção do texto dramático em análise. Segundo o Dicionário do Folclore, de Câmara Cascudo (1984), o reisado é um auto popular, que aparece para alegrar o povo nordestino em época natalina. Na região de São Francisco, ocorreu uma mistura desse gênero com outros tipos de danças, como congos. Ressalta Araújo (2007, p. 60) que esse sincretismo, atinge vários ritmos, como o próprio bumba-meu-boi, que o admite como um dos seus entremeios, isto é, as representações, as peças que são as danças cantadas, narrativas de assuntos e motivos os mais variados em que misturam amor e guerra, religião e história local, representando a guerra com o vibrar de espadas e toques de maracás. Suas indumentárias são as mais variadas, os trajes são c u f ,c ç “espelhinhos, vidrilhos, lentejoulas, aljôfares, que enchem os saiotes axadrezados e c c ” ( R UJO, 2007, 60) Quanto às falas da personagem Dedé, são recheadas da linguagem popular e das gírias. Ela narra a história do seu pai, um homem que vivia para o brinquedo, fazia o bem a todos que passavam pela sua casa e era apaixonado pelos bailados ou danças nordestinos: [...] pai era besta demais. Trabalhava feito um condenado; os outros ficavam com o lucro, e pai com a experiência. Todo dinheirinho que ganhava era pro brinquedo; 177 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ora era um chapéu, ora era um manto, ora era um instrumento... Na casa da gente, chegasse quem chegasse tinha comida e dormido. (ALMEIDA, 2006, p. 29). Nesse trecho, constatamos que a cultura popular está entranhada na pele do povo nordestino. A felicidade “ ”c f z gu c cuj cu u está impregnada no seu cotidiano. Como afirma Frederik Antal (apud BURKE, 2002, p. 28), a cultura é expressão ou mesmo “ f x ” c , x ão, a obra literária não pode ser desvinculada das condições em que foi produzida. 2.1. Em torno do feminino Destaca Heloisa Buarque de Hollanda (1992, p. 60), o conceito de sujeito do feminismo: O sistema sexual de gênero deixa de ser visto, portanto, como constituinte de uma esfera autônoma e passa a ser considerado como uma posição da vida social em geral. É neste sentido que Laurentis elabora o c c “ uj f ” tanto da ideia de mulher essência inerente a todas as mulheres, quanto da noção de gênero que define a mulher enquanto ser histórico, gerado pelas relações sociais. A mulher está inserida no meio social, como parte intrínseca da história, como ser em evolução, sempre em movimento com as relações da sociedade. P L u (2008, 17): “ g g çã c í c a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como 178 ANAIS - 2013 consequência a sua ampla invisibilidade como sujeito, inclusive c uj ê c ” 4. Por isso, Rosane Almeida atribuiu à personagem Doutora Déo – valorizada moral e intelectualmente como sujeito feminino – a responsabilidade de falar de ações sociais e políticas e de opressão feminina: todos esses temas permeiam a sua voz e vão entrelaçar-se para culminar, indireta ou diretamente, na questão do gênero: Quando o homem estabelece a propriedade, ele cria a hereditariedade. E vai atacar a mulher naquilo que sempre foi o pivô da idolatria, e também da inveja, do respeito e também do medo, a sua sexualidade. (ALMEIDA, 2006, p. 38). No fragmento, insinua-se um diálogo com discursos segundo os quais o homem, com o intuito de preservação da propriedade, desejou a sua função paternal, pois só assim transformaria a sociedade em um sistema patriarcal, em que os homens exerceriam papéis importantes e acabariam sendo os chefes ou mantedores das famílias, como também da propriedade. À mulher, caberia cuidar dos filhos. V íg “ â c ” g c ç emergir a partir do conflito familiar vivido por ela: em uma sociedade repleta de preconceitos, Doutora Déo enfrenta problemas com a filha, cujo namorado é drogado; a garota é sustentada pela mãe, cujo ex-marido, pai da menina, não dá apoio para sanar os problemas familiares; a Doutora luta pela conquista da independência feminina. 4 Do movimento feminista, participaram acadêmicas como Simone Beauvoir, Betty Friedman e Kate Millet (cf . LOURO, 2008, p.17). 179 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Observemos, por outro lado, o comentário da g D D é D u : “E que vai entrar para uma tal de Academia Brasileira de Letras e qu í u ‘ í ’” ( LMEID , 2006, 35) Aqui, ironicamente, a voz da personagem rude, do sertão, dialoga com o que escreveu Heloisa Buarque de Hollanda (1992, p. 57) sobre a importância da mulher no cânone á , b “ f u qu g literária para resgatar os trabalhos das mulheres, que de diversas formas, foram silenciadas ou excluídas da história da u ” 2.2. Teatro personagens e representações da mulher A “ ” c u significações fundamentais: o local em que se realizam espetáculos e uma arte específica, transmitida ao público por intermédio do ator. (MAGALDI, 1991, p. 7). Nessa perspectiva, P (2007, 372), “[ ] é c úb c h u çã qu h é u u ug ” Quanto a personagens teatrais, Ryngaert (1996 p. 126) ensina que: Para o teatro grego, a persona é a mascara, o papel desempenhado pelo ator, e não a personagem esboçada pelo autor dramático. O ator é somente um intérprete que não se confunde com a ficção e que o público não assimila imediatamente a uma encarnação da personagem textual. Na maior parte do tempo, utilizamos essa mesma palavra, personagem, para designar os diferentes 180 ANAIS - 2013 avatares da partitura textual prevista para ser representada em cena por um ator. é ,“ g ã x no texto, ela só se realiza no palco, mas ainda assim é preciso partir do potencial textual e ativách g c ” (RYNGAERT, 2006, p. 129). Segundo Pallottini (1989, p. 9-10), cabe à personagem fazer de conta que é outra pessoa e, por meio de falas ficcionais, veicular o conteúdo de uma peça de teatro, papel que cabe às três personagens encarnadas, na peça, por Rosane Almeida. Explicamos: No âmbito do espetáculo, cabe a Rosane Almeida-atriz representar o papel das três mulheres que a Rosane Almeida-dramaturga criou e que mostram as experiências femininas a partir de diferentes sentidos de “cu u ” ( çã , , , b , c h c , status e poder), marcando o texto dramático. Num jogo entre o é , u , ç , “ ub g transgredir front ” b “ c c ”, çã á c -se com/pelas falas de dona Dedé, Retirante, paupérrima, trambiqueira assumida e sábia, seu saber contrapõe- “ b u ” u Dé , uma professora universitária às voltas com sua tese sobre a â c f “ u c ã fu h ó hu ”, qu ê ju z , silêncios e atributos de Dora, a artista, marcados por discursos da sabedoria popular. Para Ryngaert (2006, p.129): O ator geralmente continua, em seu trabalho sobre o sensível, a pensar na unidade de seu papel através do conceito de personagem, mesmo que não se prenda a uma estética da 181 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento identificação. O público, enfim, receptor sem o qual a representação teatral não pode ocorrer, sempre se apoia na personagem para entrar na ficção. Prado (2002, p. 97-98), u “ g f cçã ”, c c z çã à g , sempre encarnada por um ator no processo de representação teatral: A personagem não perde, portanto, a sua independência não abdica de suas características pessoais; mas quando canta, quando vem à ribalta e encara corajosamente a plateia, admitindo que está no palco, que se trata de uma representação teatral, passa por assim dizer a outro modo de existência: se não é propriamente o autor , também já não é ela mesma. Importante salientar que, para Mary G. Castro e Lena Lavinas (1992, p. 221), ainda vivemos [...] a mesma forma de hierarquia social característica do patriarcado, onde as mulheres se encontram sob domínio direto (chefias) dos homens. Como diria Saffoti (1984), podemos reconhecer nessa formulação a prática combinada do capitalismo com o patriarcado na construção social da submissão feminino a necessária a reprodução da sociedade de classes. 182 ANAIS - 2013 No texto dramático A mais bela história de Adeodata, percebemos que a personagem Doutora Déo não representa a submissão feminina, e sim a ruptura com essa prática: do cu g c c “ u ”, emergem representações – as visíveis e as não visíveis – do jogo de poder entre masculino e feminino: DOUTORA DÉO: Quando o homem estabelece a propriedade, ele cria a hereditariedade. E vai atacar a mulher naquilo que sempre foi o pivô da idolatria, e também da inveja, do respeito e também do medo, a sua sexualidade. E isso Freud nunca explicou. A partir desse momento, o homem não quer mais idolatrar a natureza, não a vê como um receptáculo, sua única idéia é dominar a natureza, dominar a mulher. (ALMEIDA, 2006, p. -39). Falando pelo viés psicanalítico freudiano e usando o presente do indicativo (que, entre outros sentidos, representa verdades absolutas), a personagem reconhece (mesmo querendo negar ou tentando silenciar) a superioridade ou domínio masculino: é o homem quem ataca; é o homem quem domina. É como se o servilismo feminino começasse a ser posto em xeque, porém a dominação masculina assume sutil e silenciosamente um outro discurso, a partir de outro ponto de referência, conforme analisou Chartier (apud SOIHET, 1998, p. 77-87): ela emerge de dentro de um esquema de consentimento, quando, para marcar resistência, reemprega o discurso da dominação, pois há, contra o próprio dominador, uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos instituintes da dominação masculina. A mulher conquista o 183 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento território da fala, da expressão, o que ainda não significa, todavia, romper com a dominação masculina; pelo contrário, esta acontece pelo argumento e pela autopermissão por parte das mulheres. É por meio das falas da personagem Doutora Déo que parece esboçar-se um processo de (re)constituição da identidade do sujeito mulher. Conforme destaca Orlandi (1987, p.17): a linguagem é ação, transformação; é como um trabalho bó c : “ éu social com todas as suas implicações, conflitos, reconhecimentos, relações de poder, c u çã ” Entendemos que é pela palavra que a Doutora Déo articula sua contribuição na luta pela libertação feminina, nos embates ou relações de poder masculino versus feminino, e, sobretudo, pela união de homens e mulheres em favor de uma nova história da humanidade: E, nesse sentido, o que o povo construiu para o engrandecimento da alma e das relações humanas, mesmo à margem do mundo oficial, ao longo das eras, é maior que qualquer império que o homem já ergue. A obra do povo vem da vida e do prazer, da graça de seu compromisso com o Belo. Quem sabe se esse tão anunciado tempo novo é o início de uma nova era na história da humanidade, na qual homens e mulheres entusiasmados, exaltados com o seu potencial, não precisarão mais de impérios, de ídolos , não precisarão mais idolatrar uma Deusa nem temer a um Deus, poderão sim , comungar com forças que nos empurram para o verdadeiro destino humano. Destino 184 ANAIS - 2013 esse eternamente marcado pelo sonho de cada um. (ALMEIDA, 2006, p.58-59). Na fala da Doutora Déo, emergem novamente as ponderações de Heloisa Buarque de Hollanda (1992, p. 59): çõ “ gu g f ” u “ f ”, qu construções sociais, exigem a avaliação das condições particulares e dos contextos sociais e históricos em que foram estruturadas. Os sistemas de interpretação feminista teriam como tarefa fundamental a reflexão sobre a noção de identidade e sujeito, levando em consideração a multiplicidade de posições cabíveis que a noção de sujeito sugere, tendo por base um claro compromisso com uma perspectiva historicizante em suas análises. Já na voz de Dedé fica visível o discurso da inferioridade feminina, de sua subjugação ao homem, de sua condição de objeto, silenciando completamente, em pleno século XXI, o discurso da libertação feminina: Adeodata Cruz, já foi dona de três casas de zona, mas perdeu tudinho para um cafetão safado [...] Aquela lá é Adeodata das Dores, uma sofredora: o marido fugiu com a irmã, e dos doze filhos que tinha só restou dois, um não deu pra nada e o outro nem para isso deu.[...] A outra bonitona é Adeodata das Flores: não é brilhantina, mas vive na cabeça de tudo que é homem. Parece o mar: todo macho vai na onda [...]E tem mais a 185 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento menininha do lado, é filha dela, Adeodatinha... E eu vou dizer uma coisa: a fruta nunca cai muito longe do pé. Logo, g , x “f z ” c cc c ç “f z ” c ç ( LMEID , 2006, 36). No conjunto discursivo, é visível a manutenção dos c u f çã “ é ” h uh âmbito da sexualidade, naturalizados pela voz de uma mulher, confirmando a relação de submissão e a desvalorização do feminino, inscritas no imaginário social. Observamos que a g f í é f g ; “ ” “ h ” é c u bj , c u qu imagético-discursivo não só da mulher, mas da região (também estigmatizada) de onde provém a personagem que fala e as personagens sobre as quais se pronuncia: o Nordeste. Também na voz da doutora Déo se apresentam, no texto dramático em análise, fragmentos em que a mulher é caracterizada como submissa ao homem, seja por preconceito, seja por meio da violência: DOUTORA DÉO: Em pleno século XXI, na Índia, em alguns países asiáticos e em vinte e oito países africanos quando as meninas entram na adolescência, os pais exigem a extirpação do clitóris e, às vezes, até dos lábios da vagina, usando tesoura, lâminas e até mesmo pedaços de vidro. Numa cerimônia banhada de sangue e dor, costuram tudo, deixando só um buraquinho 186 ANAIS - 2013 para a urina e para a menstruação. (ALMEIDA, 2006, p. 40). DOUTORA DEO: Seiscentas mulheres foram queimadas por ano, em Toulouse quatrocentas em um único dia, em algumas aldeias queimaram todas as mulheres, e ninguém se pergunta qual o tamanho da escuridão deixada por esse clarão dessas fogueiras????????? E sua voz fica incomodando na Terra... (ALMEIDA, 2006, p.45). Z (2009, 220), c b “ b çã u h ”, c qu b gê c c “ se dos matriarcados neolíticos ao feminismo radical c â [ ]” qu f é “u político bastante amplo [...], alicerçado na crença de que, consciente e coletivamente, as mulheres podem mudar a posição f qu cu c ” É na voz da Doutora Déo com os posicionamentos c “ ” c uí g experiência adquirida por meio das pesquisas científicas, seja no plano do discurso religioso (numa espécie de carnavalização), seja na discussão do cotidiano humano, do intelectual ou do avanço tecnológico que começam a emergir vozes e discursos de/sobre a superioridade feminina no meio social: Como é que eu vou escrever que naquele momento o homem não tinha compreensão do papel dele na fecundação, principalmente diante dos atributos que a natureza confere às mulheres? O mistério da maternidade, da amamentação, do sangue... [...] Você 187 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento deveria escrever sobre um tema mais conhecido mais divertido, inserido no contexto atual e, principalmente, de fácil assimilação. Hoje em dia, a biodiversidade está em alta. (ALMEIDA, 2006, p. 32-33). [...] nesses anos todos convivendo com artistas populares, estudando a trajetória da espécie humana, chego à conclusão de que esta sociedade que esta aí clama por transformações, e como não é uma sociedade administrada por elefantes, abelhas, jacarés ou peixe-boi, mas sim por seres humanos, as transformações têm que se dar é na qualidade do ser humano. (p.58). Na construção do elemento feminino, Almeida compara a Terra à mulher: assim como a Terra, a mulher alimenta o ser humano: Que o momento do ser humano que não tem a referência nenhuma objetivo dele é a sobrevivência. Essa sobrevivência está atrelada a Terra que ele pode colher dali. (né) O ser humano enquanto nômade vivia de caça e da colheita antes do período agrário. Ele tem um respeito por esta Terra porque a Terra é o elemento feminino, ela dá a vida. No ser humano, não cabia entender quanto a figura masculina contribuía para essa vida. Hoje a gente. Essa associação que o ser humano fez a associação sempre fez do macro para o micro essa figura muito próxima da figura feminina a mulher também dava a vida e também alimentava 188 ANAIS - 2013 sua cria e era uma coisa que o bicho homem não fazia durante milhões de anos. Durante milhões de anos o homem teve muito respeito pela mulher. Por isso tem a estátua de Vênus...5 Almeida constrói seu texto na voz da personagem D u Dé : “E qu c J u, qu J ã B c h c D u ” ( LMEID , 2006, 43) Almeida tem como fios condutores a bíblia e o texto de B (2004), çã , qu g g u “ u ”: “u ã é z h u g fc c , é u í u ; “ ã qu qu ó b ”, u u çã reveladora, singular, ao mesclar tradição e linguagem ao f c : çã ” (ELIOT, 1989 apud ENEDINO; SÃO JOSÉ, 2011, p. 105). 2.3. A Profana, a Sagrada e a Pagã Percorrendo a história da humanidade, cujos fios se alinhavam nos contornos e vozes das personagens femininas postas em cena em A mais bela história de Adeodata, Rosane Almeida não focaliza o homem, mas a mulher, ou melhor: diferentes representações ou imagens do feminino que se constituíram ao longo dessa história: a sagrada, a profana e pagã. A primeira mulher representada é a virgem Maria, caracterizada como sagrada, que, por obediência, pureza e santidade, foi escolhida por Deus para a concepção do Seu filho, Jesus, o Messias, que viria dar a vida pela humanidade. Em 5 E 189 g 14/3/2012 “Voz de Rosane Almeida. Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento contraponto, temos Eva, a profana, causadora da queda do homem e culpada pelo pecado: a parte imunda da criação; enfim, a perdição da humanidade, conforme pondera Barros (2004), ao estabelecer a dicotomia sagrada versus profana: Eva tornava-se objeto de repulsa, dos piores insultos, este mesmo século XI promovia Maria, e impulsionava seu culto. Eva, estigmatizada como diabólica era a causadora das desgraças que se abatiam sobre a humanidade, da queda, da culpa, do pecado. De matriz da vida, de repente, ela passou a representar a via direta para a Porta do Inferno, reunindo em seu seio todo o mal, associando-se ao Diabo. Maria surgia como a esperança de salvação, exemplo sem par da pureza e da maternidade, certeza para seio da qual o filho indigno pode vir esconder sua vergonha. Maria, pela obediência, pureza, virgindade, santidade, foi promovida ao Paraíso, guardiã da Porta do Céu, detentora e dispensadora de todo o bem. Completamente dicotomizadas, Eva assumia o profano, o Imundo, diabólica; Mara idealizada, dessexualizada. (BARROS, 2004, p. 162-163). É pela voz da personagem Dora que a história bíblica de E g c h ó “c ” ç , b se que Rosane Almeida desterritorializa Eva e a serpente para reterritorializáu g f , “ u ”: Sobre a terra, a raça humana vive uma vida tirana vive uma vida tirana, Pisando a 190 ANAIS - 2013 suçuarana que corre em torno do sol,Entra o homem distraído num jardim todo florido,Morde o fruto proibido e sente o puxão do anzol. (ALMEIDA, 2006, p.33) Na avaliação de Barros (2004 p. 332): [...] a serpente passou a ser a encarnação de Satã, assim como foi também neste momento que se atribuiu a ela ter demonstrado desejo em relação à mulher. Não foi difícil associar Eva a serpente e a Satã e apresentá-la como personificação do Mal. Foi essa a herança que Eva deixou às mulheres e ao cristianismo. De acordo com Caillois (apud BARROS, 2004), as deusas pagãs estão em dois polos, o sagrado e o profano, e apresentam as duas faces da moeda, com o polo positivo e o negativo: este está ligado à força de destruição e morte; o outro é instrumento de purificação, benção. A Igreja coloca Eva como impura e Maria torna-se o símbolo do bem. V f qu “E M c características de oposição e complementaridade, mas não atendem mais às necessidades do imaginário coletivo, que se c u cu u u g ” (BARROS, 2004, p.164). Na peça, emerge a representação da mulher como polo do mal, avesso à santidade: As mulheres têm mais conivência com o demônio porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher pode ser reta [...] Uma vez obtida a 191 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento intimidade com o demônio, elas são capazes de desencadear todos os males: impotência masculina, estragos nas colheitas... (ALMEIDA, 2006, p.45). [grifo nosso] Devemos apontar que, no relato de Dona Dedé sobre as prostitutas, inscrevem-se, além dela, que também se pronuncia do lugar profano, Adeodata Flores e Adeodatinha: Adeodata Cruz, já foi dona de três casas de zona, mas perdeu tudinho para um cafetão safado [...] Aquela lá é Adeodata das Dores, uma sofredora: o marido fugiu com a irmã, e dos doze filhos que tinha só restou dois, um não deu pra nada e o outro nem para isso deu.[...] A outra bonitona é Adeodata das Flores: não é brilhantina, mas vive na cabeça de tudo que é homem. Parece o mar: todo macho vai na onda [...]E tem mais a menininha do lado, é filha dela, Adeodatinha... E eu vou dizer uma coisa: a fruta nunca cai muito longe do pé. Logo , logo, de x “f z ” c cc c ç “f z ” c ç ( LMEID , 2006, 36).(grifos nosso) Ainda acerca dessas representações femininas, vale mencionar o comentário de Barros (2004, p. 30) sobre a virgindade: [...] A virgindade era puramente moral, significando apenas que a mulher não dependia, não estava sob o poder, ou autoridade, de nenhum homem. [...]a virgem pagã era aquela que possuía liberdade 192 ANAIS - 2013 sexual, estava disponível, aquela que podia ser disputada pelos homens como detentora de uma soberania que lhe outorgava a Deusa e que a tornava responsável pela maternidade, pela renovação da natureza, pelo renascimento dos mortos. Constatamos esse olhar na obra de Rosane Almeida quando retrata a pagã por meio da personagem Dona Dedé, que não se preocupa com o casamento: embora houvesse morado com um homem, não se sente presa e o meio social em que vive está povoado de prostitutas ou adultérios. Assim, Dona Dedé naturaliza sua condição e vangloria-se de seu poder de sedução junto aos homens: Não teve do qu ã u ‘ ç ’ coco comigo de umbigada e tudo...Eh! doideira! Meu ibope no hospício foi tão grande que o vigia se apaixonou por mim e fugiu comigo de noite e me trouxe “ qu ” [ ] ( LMEID , 2006, 50) Quanto ao sagrado, é caracterizado por Rosane Almeida c c ê c : qu á c , “ possibilidade da transcendência, de você sair desse seu corpo e se colocar a serviço de outras coisas, de outros estágios de c cê c , u ê c fí c , u c ” (DEL PICCHIA; BALIEIRO, 2010, p. 214). Reforça Ramos (2010,p. 204-205) o conceito de sagrado: “O g é c xã c u z É c xã c É viver o dia a dia. É não colocar Deus em cima e nós aqui b x ‘ g é, , u ã espírito e a é ” 193 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Assim, podemos afirmar que a personagem Dora é o instrumento do sagrado na obra de Rosane Almeida: quando a dançarina demonstra a cultura popular por intermédio das danças, ela faz a transcendência, produzindo um momento sagrado: E nesse cenário de tudo e de nada, milhões de nãos-luz de vida que tenho, com toda energia que em mim está guardada, Juntei a profana, a pagã e a sagrada, e fiz um alicerce lá na vastidão, Depois dele pronto rumei direção Para um mundo tão belo e tão desolado; Se fosse preciso eu teria jurado Que o centro do céu é o vasto sertão [...] (ALMEIDA, 2006, p. 56). 3. Considerações O artigo apresentado tem como objeto de análise uma obra ainda inexplorada no universo acadêmico: o texto dramático de Rosane Almeida, atriz nas artes circenses e nova dramaturga Rosane Almeida, A mais bela história de Adeodata, que traz à ribalta a cultura nordestina e questões de gênero. A autora traz à baila a cultura popular nordestina – marcada pela relação com o sensível, com o simbólico, com o mítico e com a transcendência – com um olhar diferenciado, representado nas indumentárias, nos bailados, nas falas e nas didascálias, procurando evidenciar que é por meio da cultura que o ser humano se realiza como tal e que se identifica. Devemos esclarecer que a cultura popular é um instrumento de conservação, mas também de transformação 194 ANAIS - 2013 social. Nesse sentido, podemos afirmar que há, nas falas de Dedé, um amálgama de presente e passado, imbricados em um só contexto histórico. Talvez aqui possamos mencionar as palavras de T.S Eliot em seu ensaio de Tradição e Talento Individual “o presente consciente constitui de certo modo uma consciência do passado, num sentido e numa extensão que a consciência que o passado tem de si mesmo não pod ” (ELIOT, 1989, 41). Compreendemos que necessitamos das raízes culturais do passado para acrescentar ao novo, e Almeida o faz com riqueza de detalhes quando põe em cena outra mulher, a personagem intelectual Doutora Déo, cujas ferramentas são, do “ í c ”, f çõ f c ; “ ó c ”, x “c íf c ” h ó c qu Portanto, a doutora Déo representa a academia, e Dona Dedé, a experiência, unidas numa só história. A terceira mulher representada na peça é Dora (possivelmente o alter ego u , c “ f uê c ” Nelson Rodrigues): uma personagem dançarina que entra em cena para dançar e recitar poemas; para descrever e dançar bailados típicos da cultura nordestina. No âmbito do texto da peça, construído na confluência da tríade feminina, podemos afirmar que as vozes vêm emanharadas umas nas outras, produzindo-se o jogo da intertextualidade e do dialogismo. Relatam-se aspectos da história da humanidade, em especial a questão do gênero como construção cultural. Referências 195 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ALMEIDA, Rosane. A mais bela história de Adeodata. São Paulo: Salamandra, 2006. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. São Paulo: Moderna, 1992. ARAÚJO, Alceu Maynard. Cultura Popular Brasileira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BARROS, Maria Nazaré de. As deusas, as bruxas e a igreja, Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2004. CÂMARA CASCUDO, Luis da. Dicionário do folclore brasileiro. 5. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade Trad. Luiz Sérgio Henriques. 2. ed. 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O discurso jornalístico revela ainda, intrínseco em seu processo de produção, a seleção e interpretação de fatos noticiáveis ou não, ou seja, direciona os assuntos discutidos pela sociedade. Assume-se, dessa forma, a compreensão de crítica como julgamento, interpretação fundamentada em argumentação comprovada por alguma autoridade em assuntos específicos. A crítica no jornalismo é um elemento chave que deve agregar sua função informativa e de opinião. Os textos selecionados serão analisados na perspectiva teórica da Semiótica francesa, focalizando e desvendando a semântica discursiva sob o prisma da tematização e da figurativização. PALAVRAS-CHAVE: semiótica francesa; discurso jornalístico; cultura. 1 Mestranda em Comunicação - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - [email protected] 2 Professora Doutora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - [email protected] 199 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Introdução Em 30 de julho de 2012, o jornal O Estado MS fez a distribuição em Campo Grande (MS) do Caderno Especial Festival de Inverno de Bonito, um evento3 que é considerado pelo governo estadual como um dos mais representativos para a divulgação da cultura regional sul-mato-grossense. Ao buscar analisar nosso córpus, observa-se de forma evidente a difusão do discurso oficial. Sendo o esperado o discurso jornalístico crítico, essa constatação contraria uma das características do jornalismo. Para Gadini (2009), o jornalismo já traz em sua essência a perspectiva crítica. Assim como a História, ele não pode estar dissociado da crítica, em face dessa configurar-se em referência permanente a um sistema de valores sócio-históricos compartilhados, além de possuir caráter educativo. O autor afirma que, Ao legitimar o olhar/análise do crítico, o jornal se revela como meio, espaço e dispositivo; como um cenário em aberto, onde se presentifica e visualiza sua força na u çã u “c ê c ” complexo, plural e em permanente construção: o campo cultural (GADINI, 2009, p.246). No jornalismo brasileiro, geralmente a abordagem crítica das matérias informativas persiste como forma de manter maior influência e credibilidade frente ao público leitor. Ainda segundo Gadini (2009) os cadernos culturais assumem a prática e a referência de reportagens mais interpretativas e evidenciadas pela crítica e/ou orientação ao leitor. Isso porque, no âmbito cultural, a análise e a interpretação crítica são mais admitidas e publicamente aceitas, demonstrando que o leitor busca mais do 3 Evento denominado Festival de Inverno de Bonito. 200 ANAIS - 2013 que informação (no sentido estrito do termo). Ele está predisposto à interpretação crítica e à apreciação cultural. O leitor brasileiro de cadernos culturais, segundo o autor, tem predisposição ao interesse pela interpretação crítica e apreciação cultural e, constatando que o jornal, nosso objeto de análise, apresenta um direcionamento contrário a essa tendência na cobertura jornalística do Festival de Inverno de Bonito, houve a motivação para uma breve reflexão do jornalismo cultural campo-grandense, examinando a linguagem jornalísticacultural enquanto discurso. Pretendemos, pois, verificar a existência ou não da representação da pluralidade de discursos que demarcam o território ideológico cultural local e a abordagem de cultura difundida naquela ocasião. Tomamos como pressupostos teóricos e metodológicos a Semiótica francesa, que em seus procedimentos analíticos desvendam a sintaxe e a semântica discursiva sob o prisma da discursivização (actorialização, temporalização, espacialização), da tematização e da figurativização. Em nossas análises, daremos enfoque à semântica discursiva. 1. Campo Cultural: demarcando territórios ideológicos Para iniciar nossa reflexão, buscamos entender o campo cultural como um território cultural ideológico, no qual os indivíduos e grupos humanos se identificam com modos de ver, pensar, agir e se expressar. Nesse sentido, o território não deve ser entendido como sinônimo de espaço nem lugar. Andrade (1996) aponta que esse termo deve ser associado à idéia de domínio, poder e gestão de um espaço específico. Ao habitarem um território, as pessoas passam a se conscientizar que fazem parte dele, confraternizando-se umas com as outras, gerando, 201 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento com isso, o sentimento da territorialidade. Um país pode possuir um grande espaço, mas não possuir um território. Para territorializar este espaço, é necessário promover a sua gestão. Por outro lado, a territorialidade também deve ser vista como um processo subjetivo de conscientização da população de se integrarem ao território. Ao mesmo tempo que um grupo de pessoas, com interesses ideológicos específicos, podem promover a territorialização, é possível também que aconteça a desterritorialidade. Ou seja, a resistência à territorialização pelos grupos que se sentem lesados com a ampliação do domínio de grupos externos, afetivando-se assim choques culturais. Em resumo, as concepções de território, territorialidade e desterritorialidade têm conotações tanto econômicas quanto antropológicas e sociais. Para o pesquisador Edgar Aparecido da Costa (2009), do mesmo modo que é construído, o território é destruído e depois reconstruído. Neste processo os sujeitos territoriais perdem e ganham novas identidades. Ratifica a f çã M c ué qu (2007, 163), “há , recriação, novas territorialidades, novas identidades, novos arranjos territoriais, redefinições, novos significados, com desc u ” Mu z ã ê c cê c completa do território que integra. Não conhecem os interesses, o jogo e os conflitos de forças ideológicas, as normas que os compõe, apesar de senti-las, segui-las e respeitá-las. (...) o território tem um forte traço de imaterialidade, tanto que não é preciso que sua regulamentação seja materializada em formato de Lei para que seja respeitada, obedecida pelos seus componentes, a exemplo de muitos territórios das guangues, 202 ANAIS - 2013 dos traficantes, das milícias (APARECIDO DA COSTA, 2009, p. 63). Conforme o autor nos apresenta, ele resulta do relacionamento humano, social, cultural e político de um ambiente físico que se transforma e é transformado pela sociedade. O uso do território é uma maneira de se compreender “ é u a terra, organizarem o espaço e de dar significado aos lugares, u x ã g g áf c c ”(b , 66) Para compreender um território e integrar-se, é preciso conhecer os conceitos de ideologia, consciência e hegemonia. P Lu (1995, 20), ( )“ g organizado: complementos de valores, orientaciones y predisposiciones que forman perspectivas ideacionales expresadas a través de la comunicación mediada c gc ” O autor defende que algumas ideologias podem sofrer grande resistência dos receptores ou serem absorvidas com êxito. O pensamento organizado nunca tem como característica a inocência, pois refletem ideias de indivíduos, grupos de pessoas e instituições, mesmo que não seja possível percebê-las claramente. O termo ideologia retrata ainda, a relação entre a informação e o poder social sob uma contextualização política, econômica e cultural. Quem na sociedade detém em suas mãos o poder político e econômico acaba por definir, através de diversos meios de comunicação, ideias específicas, manipuladas para construir a informação pública e o imaginário social, fixando dessa forma a ideologia dominante que representa os interesses materiais e culturais de seus criadores. Lull (op.cit., p.20) afirma, 203 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Quienes construyem esas ideologias g f u ‘ f có ’ u u có procede directamente de la capacidad que tienen para articular públicamente sus sistemas de ideas preferidos. Por consiguiente, la ideologia tiene fuerza cuando puede ser representada y comunicada. Nota-se que as elites informacionais impregnam a sociedade com seu pensamento organizado dominante pelo fato de controlarem as instituições que distribuem as formas simbólicas de comunicação, inclusive os meios de comunicação. Estes últimos difundem e legitimam tendências ideológicas entre o público de forma persuasiva, fortalecendo seus significados e ampliando seu impacto social. A mídia de forma geral tem a capacidade de distribuir representações e promover no público a aceitação e a circulação de temas dominantes. O autor (op. cit.) defende ainda que a ideologia não só é integrada por representações simbólicas particulares, mas também é transmitida por meio de uma gramática de produção por meio da qual a mídia universaliza um estilo de vida. f qu “ presentación repetida de esferas ideológicas partidistas persiste f ‘ c ’ cu u , cu g uy x u é ” ( 25) A ideologia nos parece familiar e é normalizada da mesma forma que na relação social cotidiana, na qual a linguagem e outros códigos de comunicação são aprendidos e reforçam o contexto da interação social do dia-a-dia. Isso explica o processo de mediação social, no qual o público reconhece, interpreta, edita e utiliza as representações ideológicas dos meios de comunicação de massa na sua 204 ANAIS - 2013 construção social da vida diária. Ao remeterem as informações da mídia em suas conversações diárias, as pessoas articulam e revalidam socialmente os temas oferecidos. O imaginário social mediado torna-se referência para o mundo real, o que resulta em análises sociais extremamente complexas. O domínio que a transmissão da ideologia exerce sobre a consciência é tão expressivo que aqueles que estão no poder têm a capacidade de penetrar no pensamento e influenciar as ações humanas. Por mais que o público crie resistências para aceitar as ideias transmitidas pelos meios de comunicação de massa, isso só acontece depois de ter recebido os temas dominantes difundidos pela mídia. Os meios de comunicação e outras fontes de informação visam modelar a consciência tanto individual quanto a coletiva, de modo que elas reverberem os temas oferecidos pela mídia que representa a corrente ideológica dominante e incorpore uma forma de pensamento e uma conduta social que harmonize com estas idéias. As pessoas geralmente não percebem que os meios de comunicação modelam seus pensamentos, pois a persuasão acontece não somente no momento em que estão expostas à informação. Apesar da forte influência dos meios de comunicação na vida cotidiana das pessoas, nenhum indivíduo, grupo social ou instituição consegue difundir uma ideologia de forma tão eficaz que não encontre resistência da reflexão do público. A transmissão ideológica da mídia não é perfeita e as pessoas não são apáticas imitadoras. Os emissores precisam conquistar sua hegemonia ideológica, ou seja, encontrar um método com o fim de obter e manter o poder. , gu Lu ( c ), “h y la influencia ideológica es esencial en el ejercicio del poder c ” Nesse sentido, concorda com Gramsci e Stuart Hall, que afirmam que a mídia é um instrumento utilizado pelas elites dirigentes para perpetuar seu poder difundindo sua filosofia, 205 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento cultura, moral e pontos de vista. A classe dominante estabelece os limites mentais e estruturais do território em que vivem as classes subordinadas, oferecendo significados que sustentem a subordinação. A hegemonia está intimamente ligada com a representação ideológica da cultura. Ela persegue que suas propostas ideológicas se transformem em crenças culturais autoevidentes, onde as pessoas subordinadas admitam a ideologia dominante como sua realidade normal traduzida em experiências físicas e de consciência cotidianas. Assim, a h g c b “E c social puede llegar a ser um médio de control más eficaz que la c có fu z ” (Lu , cit. p. 53). Entretanto, a hegemonia é na realidade muito frágil e tem que ser reafirmada constantemente por meio de um trabalho ideológico contínuo dos indivíduos e grupos de interesse. A hegemonia fracassa quando sua ideologia não consegue deter a resistência social, reconhecida como contrahegemônica, revelada em pessoas que representam a independência de pensamento e a criatividade em estilos de vida e valores. Propomos que a integração com o espaço territorial acontece por meio de uma tomada de consciência cultural, que pode ser difundida e fortalecida pelos meios de comunicação de massa locais. No entanto, essa consciência cultural somente torna-se possível, se o público passa a estabelecer contato com um discurso ideológico que conceitue e direcione qual é a cultura que representa os indivíduos de uma determinada comunidade, para que possam adquirir consciência de sua identidade cultural. 206 ANAIS - 2013 2. Conceituando o termo “Cultura” No g “Reconsidering Culture, Counterculture, and N h ugh T cá L ”, qu I State University, Baldwin (2012) traz luz à pesquisa cultural e b f xõ b f çã “cu u ” c desse fenômeno na sociedade pós-moderna. Segundo Baldwin (2012), pesquisadores têm questionado o que significa precisamente a cultura como um vocábulo acadêmico. Ele defende que é de fundamental importância esse raciocínio, pois a forma como as pessoas interpretam a cultura vai influenciar o que os pesquisadores irão estudar, como estudarão suas definições e o que farão com o conhecimento adquirido para depois implementá-lo de forma prática. Acredita, ainda, que a dificuldade aumenta quando se considera no estudo a cultura popular e a influência do Estado na própria definição de cultura, pois são escassos os locais que promovem esse diálogo. O autor discorre que no mundo acadêmico existem diversas definições concorrentes do termo cultura. Sugere que é um termo polivalente, assumindo junto com outros pensadores uma visão crítica ou pós-moderna da cultura. Assim como, Donald e Rattansi (1992), afirma que a cultura não deve mais ser compreendida de forma simplificada, caracterizada como crenças religiosas ou rituais culturais, mas da maneira como estas expressões são produzidas por meio de sistemas de significados, inseridos em estruturas de poder, e disseminados pelas instituições em que estes são implantados. Referenda ainda a visão de Moon (2002), caracterizando-a como uma zona de contestação em que grupos diversos lutam para determinarem assuntos de interesses próprios. Levando em consideração a noção de cultura como "estrutura dominante ou hegemônica", 207 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento defende que a conceituação de cultura é em si política e deve ser inserida num contexto, sem deixar-se de lado um compromisso ético/moral. Raymond Williams, escritor de estudos culturais, citado por Baldwin, a define como "um modo de vida particular, que expressa certos significados e valores não apenas na arte e na aprendizagem, mas também nas instituições e comportamentos ordinários". Autores como O' Sullivan e seus colegas em Fiske (1992), desdobraram esse foco nas instituições e incluíram os significados que socialmente "produzem e reproduzem", adicionando, mas não limitando a reprodução através de cultura de massa. A cultura é agora vista como uma parte determinante da atividade social e, portanto, é uma esfera importante para a reprodução das desigualdades de poder. Percebemos que para Baldwin (2012, p.54) esse vocábulo é multi-discursivo, e pode ser mobilizado em inúmeros discursos, de maneira que os estudiosos não podem apresentar uma definição fixa de cultura em todo e qualquer contexto e esperar que ela faça sentido. É preciso identificar o contexto discursivo em si. A definição é determinada pelo próprio termo em seu contexto discursivo. É preciso conhecer as conceituações modernas de cultura para se construir uma abordagem sobre a realidade da vivência cultural sul-mato-grossense. Pois a nossa interpretação de cultura implicará nos métodos que escolheremos em nossa investigação social, nas intervenções que implementaremos em nossa esfera social, e na ética de nossa comunicação dentro e por meio das culturas. Importa também considerar que antigas definições de cultura predominaram por muitos anos. Entre elas a de Kroeber e Kluckhohn (1952), apontadas por Baldwin (2012): 208 ANAIS - 2013 Cultura consiste de padrões, explícitos e implícitos, de e para o comportamento adquirido e transmitido por símbolos, constituindo as realizações distintas de grupos humanos, incluindo as suas personificações em artefatos. O núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais (isto é, historicamente derivado e selecionado) e, especialmente, seus valores anexados; sistemas de cultura podem, por um lado, ser considerados como produtos de ação, por outro, como elementos condicionantes da ação. Olhando-se para o desenvolvimento da noção de cultura, é possível observar que as definições de cultura estão relacionadas com o sentido de "cultivo" (baseadas sobre a noção de cultivo, do latim colere, muitas vezes traduzido como um elevado sentido de classe ou de desenvolvimento moral e educacional. Baldwin (op. cit.) afirma que alguns cientistas sociais denunciaram esta definição como elitista, afirmando que todos os grupos de pessoas possuem cultura. A partir de nossas análises, percebemos que alguns pesquisadores sul-mato-grossenses ainda possuem como referência essa definição que se encontra enraizada nas práticas culturais disseminadas no âmbito do governo estadual. A Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, representante do governo estadual, figura como uma das principais instituições que estabelece o discurso ideológico da cultura nos territórios local e regional. Dessa forma, apresenta-se uma situação que precisa ser repensada. Deve-se selecionar e defender definições que representem a identidade cultural de Mato Grosso do Sul e os habitantes de seu território com coerência e que estejam 209 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento harmonizadas e consoantes com a realidade histórica e sóciocultural deste território, contemplando as identidades e etnias diversas que nele habitam. Mas vale mencionar, também, que alguns estudiosos de comunicação locais, já têm visto a cultura em termos de padrões de símbolos e significados, como um processo contínuo de comunicativo co-construção. Destacamos que o caráter estadual sobre a representação da identidade deve estar na agenda da pesquisa acadêmica, pois assim como Adorno (1991) argumenta, citado em Baldwin (2012), a face comercial da cultura faz com que a diferença entre cultura e vida prática desapareçam. Não é possível refletir sobre cultura sem voltar os olhos à sua administração, ao papel da economia, do Estado e das empresas na formulação dessa cultura. Afinal, assim como acredita Fiske (1992), a cultura do dia-a-dia é aquela de práticas concretas que representam e executam diferenças. Estas diferenças constroem uma esfera de luta entre os indivíduos que constituem a disciplina social e a popularidade. Essas diferenças produzidas têm a capacidade de preencher e ampliar os espaços e poder do povo. 3. O jornalismo na formação de consciência e opinião pública Ao entender notícia como sinônimo de jornalismo, Park (1972, p. 174) sustenta que esta registra acontecimentos isolados à medida que eles ocorrem. Como forma de conhecimento, dá atenção ao presente, e somente depois da publicação e do reconhecimento público de sua significação, é que a notícia se transforma em história. De acordo com esse autor (op. cit. p.175) 210 ANAIS - 2013 (...) o relato de uma notícia é um mero “ j ” u c qu u c c ocorreu. Se o ocorrido tiver real importância, o interesse por ele acarretará novas indagações e um conhecimento mais completo das circunstâncias em que se verificou. (...) o conhecimento não chega ao público, como chega ao indivíduo, em forma de percepção, mas em forma de c u c çã , é, íc ” Em consonância com essas ideias, destacamos que a função da notícia e, consequentemente, do jornalismo, é informar e orientar os indivíduos oferecendo os contextos de acontecimentos relatados por meio de interpretações compreensíveis e que têm a intenção de serem interessantes. A notícia evoca no indivíduo a vontade de repeti-la a outra pessoa, gerando assim conversações, comentários, discussões e outras interpretações. O choque de ideias acaba se transformando em consenso ou opinião da coletividade. É o que Park (ibidem, 182) ã úb c “É çã acontecimentos presentes, ou seja, da notícia, que se funda a opinião pública. Essa atenção pública tende a aumentar a influência da pessoa ou das pessoas dominantes na c u ” A notícia tende a circular numa área que se amplia cada vez mais, à medidade que se multiplicam os meios de comunicação. Na sociedade a notícia fundamenta suas discussões formando a opinião pública. Ela orienta ideias, consciência e atitudes do homem e da sociedade num mundo real. Sua importância aumenta constantemente com a expansão dos meios de comunicação, afinal ela coopera com a acumulação de conhecimentos na sociedade tornando possível 211 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento uma interpretação mais rápida e completa dos acontecimentos à medida que ocorrem. As pessoas, que hoje têm a possibilidade de formar opiniões utilizando-se dos meio de comunicação, participando dos acontecimentos sociais, fundamentando assim a opinião pública, ao menos esperam que o jornal diário publique em suas páginas a interação das diversas vozes (discursos) que integram o território social simbólico. E no caso do jornalismo cultural, a interpretação simbólica dos fatos e acontecimentos culturais não pode abster-se da crítica. E gc , “c í c ” g g “k ”, qu g f c “ju g ” (2009) c qu L y Perrone-Moisés (1998), a crítica explica-se como um julgamento reflexivo e não determinante, que admite valores por meio de consenso, ainda que estes sejam provisórios. Ao estabelecer-se o consenso fixam-se critérios que sustentam valores estéticos, reconhecidos e legitimados pelos sujeitos sociais. A seguir, apresentamos ao nosso leitor, de forma breve, algumas noções sobre a perspectiva teórica utilizada para análise do córpus. 4. O discurso A análise do discurso considerada como um estudo da linguagem, segundo Barros (2003), supera o âmbito da palavra ou da frase e volta o olhar científico para a organização z x ux x “ çõ enunciação e o discurso enunciado e entre o discurso enunciado e os fatores sócio-históricos que o constr ” N , perspectiva da semiótica francesa, busca a explicação do sentido do texto incluindo-se os mecanismos e procedimentos que constroem esses sentidos. A autora esclarece que, 212 ANAIS - 2013 (...) o texto se organiza e produz sentidos, como um objeto de significação, e também se constrói na relação com os demais objetos culturais, pois está inserido em uma sociedade, em um dado momento histórico e é determinado por formações ideológicas específicas, como um objeto de comunicação (p. 88). No entanto, cabe ressaltar que há, nesta perspectiva teórica, uma distinção entre texto e discurso, sendo que este último se configura na última etapa da construção dos sentidos no percurso gerativo da significação, apresentando-se de maneira mais concreta e complexa e inserindo-se no plano de conteúdo dos textos. O percurso gerativo dos sentidos é o mecanismo metodológico que vai examinar o plano de conteúdo de um texto. O percurso gerativo de sentido é um fluxo de categorias passíveis de serem descritas de forma adequada e que atuando c u “ u c óg c ”, uçã a interpretação do sentido, numa sequência que percorre do nível mais simples ao nível mais complexo. Fiorin (2002, p.17) apresenta como três estas categorias do percurso: o nível fundamental (ou profundo), o narrativo e o discursivo. Cada nível é integrado por um componente sintáxico e um semântico. O nível narrativo no percurso gerativo de sentido está relacionado com a transformação do conteúdo, em que a narratividade atua como um elemento da teoria do discurso. Na classe de discurso, a narração liga os personagens individualizados a estados e transformações por meio de enunciados. Os enunciados de estado determinam uma relação 213 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento de disjunção ou conjunção entre um sujeito e um objeto e os enunciados de fazer demonstram as transformações. A análise feita neste artigo dará atenção ao nível discursivo, no qual as formas abstratas do nível narrativo aparecem revestidas de termos que lhe dão concretude. Nesta categoria a narrativa é, segundo Barros (2005, p.191), situada no tempo e no espaço e os atores do discurso (sujeitos, objetos, destinadores e destinatários) são desvendados em termos semânticos de pessoa, em temas que configuram os valores dos objetos e que posteriormente são transformados em figuras. Segundo Fiorin (op. cit. p. 69), na relação entre temas e figuras, desencadeia-se um processo de simbolização, estabelecendo-se para uma figura apresentada, uma interpretação temática específica. Assim o símbolo define-se como uma figura em que a interpretação temática é fixa. Ele atua sempre como um elemento concreto que veicula um conteúdo abstrato. O nível f gu é “ ug g f çã g ” (b , 75), c c z ores semânticos. Somente neste nível é possível demonstrar que o nível narrativo pode manifestar universos ideológicos variados. O discurso é a matéria-prima do jornalismo. Na perspectiva da semiótica francesa, a enunciação configura-se por meio dos esquemas narrativos assumidos por sujeitos que converte-os em discurso. Quando a enunciação é efetivada, ela apresenta marcas no discurso construído, apesar de que nem sempre seus elementos encontram-se manifestados claramente no enunciado.O sujeito da enunciação é sempre um eu que manifesta-se na produção discursiva, situado num espaço e num tempo. Para se realizar a análise de um discurso, em sua sintaxe, é preciso estudar as marcas da enunciação no enunciado. Isso é possível por meio dos procedimentos da discursivização, da actorialização, da espacialização e da temporalização. Um 214 ANAIS - 2013 enunciado não existe sem a prerrogativa de existência de um receptor, conceituado pela semiótica francesa como enunciatário. O enunciador tema função de persuadir o enunciatário com procedimentos argumentativos e este vai interpretar a mensagem. Estabelecem-se assim as projeções da instância da enunciação no enunciado e as relações entre enunciador e enunciatário. Considerando a comunicação não como um ato de informar e sim de persuadir, a linguagem, ao ser um instrumento de produção de sentidos, tem como finalidade convencer o enunciatário a crer na mensagem transmitida. Nesse sentido, a argumentação aparece como um conjunto de procedimentos linguísticos e lógicos usados pelo enunciador para convencer o enunciatário. Todos os discursos possuem procedimentos argumentativos. Um deles é a ilustração, que por meio de um caso particular busca comprovar a verdade geral enunciada. Por mostrar diversos modos de ser ou de fazer, notamos que o jornalismo cultural utiliza fortemente este procedimento para persuadir o leitor a concordar com suas afirmações acerca das questões culturais. A tematização e a figurativização também são níveis de concretização de sentido semânticos encontrados no discurso jornalístico cultural. A figura é o termo que remete a algo do mundo natural, que se fundamenta em um sistema de representação que tem um correspondente perceptível no mundo natural existente ou construído (Fiorin, op. cit. p. 65). Os temas têm uma natureza conceitual que não remete ao mundo natural, porém funciona como categorias que organizam, categorizam e ordenam os elementos do mundo natural. Existem dois tipos de textos: os figurativos e os temáticos. Os figurativos criam um efeito de realidade construindo um simulacro da realidade para representar o mundo. Os temáticos explicam a realidade 215 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento classificando e ordenando a realidade significante configurando relações e dependências. Os discursos figurativos têm uma função descritiva ou representativa, enquanto os temáticos têm uma função predicativa ou interpretativa. A classificação que se dá a discursos como temáticos ou figurativos resulta da análise dos elementos abstratos ou concretos que dominam o texto. O autor (op. cit. p. 76) afirma também que diferentes textos podem tratar do mesmo tema, contudo a abordagem é que se apresenta de diferentes formas. Os percursos temáticos que tornam explícitos o tema geral são diferentes e os percursos figurativos que os revestem também. Esse tema geral encontrado em diversos discursos constitui não necessariamente um tema, mas demonstra uma configuração discursiva que apresenta diversos percursos temáticos. 5. As análises Essa configuração discursiva somente pode ser apreendida confrontando-se os diversos discursos. Percebemos, assim, que num caderno cultural existe uma configuração cu P x , “cu u ”, desdobrau “ ub ” cu u Bu c , então, estudar essas proposições por meio das análises do nosso córpus. O Caderno Especial - Festival de Inverno de Bonito do j “O E M ”, u c ( ág F1) chamada Mergulho Cultural. Segundo maior encontro de artes E , “F I B ” é u g espetáculo. No nível narrativo o texto convida o leitor a passar de um estado de disjunção com a cultura para um estado de conjunção com as manifestações culturais, por meio de um mergulho em um grande espetáculo. O que é o espetáculo? 216 ANAIS - 2013 Conforme apresentado no dicionário é “ u que atrai a vista u çã ”, “ g u á ”, “qu qu representação pública que impressiona ou é destinada a impressionar a vista por sua grandeza, cores ou outras qu ”, “representação teatral, cinematográfica, circense" e “ x b çã b h í c ” (M ch , 2001, 134) Nesse enunciado subjaz todas essas definições que apresentam o Festival de Inverno de Bonito como um evento que atrai e prende a atenção, que é grandioso e notável pelas qualidades auditivas e visuais da manifestações culturais que no local acontecem, entre elas as representações teatrais, cinematográficas, circences e, também, exibições de outros trabalhos artísticos. A ideia do enunciado da capa é reforçada no artigo presente na página F2, de autoria do presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, enunciador representante da voz/ fala do Governo do Estado que busca persuadir o leitor enunciatário de que o evento merece sua atenção. Além disso, o discurso sobre a cultura no evento Festival de Inverno de Bonito busca gerar paixões empáticas eufóricas de prazer na conjunção sujeito-objeto. A ilustração é o procedimento argumentativo u z u z qu u fc f qu “ ácu c u ”, c discurso apresenta uma série de exemplos que irão confirmar a afirmativa inicial. No enunciado deste artigo, o esquema narrativo básico: mergulho num espetáculo cultural é tematizado como um evento grandioso. A partir de então o enunciador descreve como exemplo de manifestação desta grandiosidade, a bênção do poeta consagrado nacional e internacionalmente, Manoel de Barros, o coro de um público de mais de dez mil pessoas que presenciaram emoções palpáveis, uma multidão encantada com um show na grande tenda do festival, mais de trinta mil turistas 217 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento presentes, um recorde de público de 60 mil pessoas e o aporte de cinco milhões de reais na economia local no período do festival, a difusão do potencial turístico incomensurável da bela e encantadora cidade de Bonito. O festival também tem de tudo para todos, até para as crianças com sua inesgotável energia. As diversas atividades ofertadas mais o público fazem uma festa! Os artistas plásticos engrandecem o evento, os grupos de dança e os espetáculos teatrais e de comédia têm sucesso com a circulação permanente das pessoas por todos os espaços. Os artistas que atuam em Mato Grosso do Sul são orgulho para todos que moram no Estado e os artistas nacionais fazem tributos pujantes, põem o povo para dançar, galvanizam os espectadores, renovam a música popular e causam adrenalina pura. A assinatura de todo esse espetáculo grandioso é hierarquicamente apresentada como a grande ação do governo do estadual, seguida pela da prefeitura de Bonito e outros parceiros que não são nomeados que recebem a aprovação com aplausos de quem ama a arte, a cultura, a cidade de Bonito que é puro frisson e o que é bonito. Quem vai ao festival são as pessoas bonitas e interessantes e que aprovam o grande espetáculo. Neste artigo o representante oficial fala diretamente ao leitor criando um efeito de sentido de intimidade. De modo geral, todo o caderno especial faz uma cobertura escrita com forte apelo emocional, criando um efeito x c c qu I é f “ importância de Manoel de Barros para Mato Grosso do Sul está no carinho do escritor pelo estado e principalmente pela u z P ” c c çã de sua trajetória de vida desde o nascimento e na confissão de que o escritor prefere permanecer ao lado de sua família, enaltecendo o sentimento familiar e de amizade, expondo a 218 ANAIS - 2013 relação do poeta sul-mato-grossense com o escritor Carlos Du O íu é ág 3 “O u Águ ” f gu z b h do personagem homenageado, poeta Manoel de Barros. A água simboliza o movimento da vida traduzido na poesia do escritor. O texto busca demonstrar que quem percorreu o caminho de Manoel de Barros, localizado na rua Pilad Rebuá, entrou em conjunção com o prazer que a leitura da poesia pantaneira proporciona. A temática da humildade e delicadeza do poeta é proposta pelo jornal, que cria um efeito de realidade por meio da citação do túnel de painéis com inscrições da simplicidade e generosidade das coisas da natureza presentes nos escritos de Manoel de Barros que segundo o enunciador tinha um design chamativo. é u “ f ú c ”, páginas F4 e F5 traz a temática do sucesso da integração das pessoas na grande festa promovida durante esse festival. As apresentações musicais que aconteceram nos dias 27 e 28 de julho de 2012 apareceram como argumento ilustrativo da concretização do encontro cultural de pessoas no Palco Fala Bonito e na Grande Tenda, que vinham de diversos municípios de Mato Grosso do Sul. O apresentador também representava um reforço do argumento inicial exaltando a integração de forma lúdica e dando destaque ao aumento do público no evento no fim de semana, segundo a matéria. Outros argumentos ilustrativos são percebidos na citação do sucesso de público com o destaque dos números oficiais de espectadores dos shows e da f c F cã qu “É ã u ju ” O cu c R b á f ch integração cultural dizendo que finalmente teve a oportunidade de participar da grande festa que o festival realiza. I u “Mú c R g c ç gu f E ”, é bé ub c 219 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento páginas F4 e F5 traz a temática da territorialização da música regional produzida pelos artistas sul-mato-grossenses. A conquista do território aparece figurativamente com a descrição dos músicos presentes e a popularidade dos estilos apresentados: “ c K M qu b J y E í Pétalas de Pixe, Os Beatles Maníacos, Naip e os Músicos Maria Cláudia e Marcos Mendes concederam charme ao encontro e f ç ç g ” f çã sentimento de territorialidade aparece de forma indireta, sugestionando a objetividade jornalística na fala da estudante Isabela Corsini e de seu filho Enzo que elogiaram os artistas e a g çã “( ) u , há oito anos aqui e a gente sempre vem para o Festival de Inverno g ( )” A maté c íu “ ê c c c u b ”, u ág F6, z c tema o encantamento do público com as apresentações artísticas cênicas do evento. O discurso do texto apresentado pela jornalista Tatiana Pires é mais objetivo no sentido jornalístico, ug c c çõ “ livre no Palco das Águas e no Centro de Convenções da cidade) e descreve os tipos de manifestações artísticas (teatro, dança, circo) e o número de público. Esse discurso apresenta recursos que transmitem a simulação de distanciamento e fidelidade à realidade do evento, sendo utilizados como estratégias de enunciação. A objetividade é vista pelos jornalistas como um dos recursos para desviar a atenção do leitor dos filtros da realidade construídos a partir do sistema de valores do jornal não se mostra como um sujeito social que atua representando determinados interesses sócio-políticos no que noticia. No cu x x c çã u “ u” é a utilização da terceira pessoa na reportagem, transmitindo ao 220 ANAIS - 2013 leitor a ideia de que o próprio assunto se auto-apresenta. O jornal também persuade o leitor de que o recorte da realidade que fazem ao produzir a notícia é a própria realidade, apresentando diálogos. Neste contexto, os adjetivos são evitados e o texto é caracterizado como temático porque ele apresenta as sinopses dos espetáculos nas quais descrevem sentimentos dos personagens e explicações sobre os temas apresentados. Ao conceder voz aos entrevistados, cria-se a ilusão de situações “ ” á g cu u , c / z diversos grupos de artes cênicas que participaram do evento. N ág F6, í u “M c ã g z ç ”, um tom mais interpretativo à matéria que discorre sobre o tema competência das companhias de dança de Mato Grosso do Sul. Neste texto, o discurso interpretativo é predominante. Para produzir o efeito de objetividade, a autora mostra envolvimento com a história narrada por meio do uso de adjetivos e advérbios, sendo que a subjetividade do texto é demonstrada pelo público como resultado de dados apresentados. Nesta situação, o enunciatário é conduzido a acreditar que o julgamento realizado pelo enunciador fic f “P c g f , f , c ” “ ê companhias de dança do Estado vidraram os olhos dos c ” x fc ju g u c b o trabalho executado pelos grupos de dança que atuam em Mato Grosso do Sul. A excelência do trabalho aparece figurativizados f “ gu I Y D ç u movimentos que remetiam a asas e a conexão do corpo com a ” í u “O qu bé ç espec ”, é c z ág F7 z uma voz que representa o discurso oficial com a afirmação da 221 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento gestora de artes e cultura da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Cristina Moura. O tema apresentado é a conscientização ambiental, figurativizado pela literatura regional, jogos e oficinas práticas com a utilização de materiais reciclados. A linguagem do texto é objetiva apresentando dados c “ 100 c ç c estímulo pelo interesse de ações cu u ” ã u z u adjetivos. é “V k M T c f ”, z c çã í c expressão audiovisual. Ela também apresenta como procedimento argumentativo a ilustração discorrendo sobre a experiência dos produtores audiovisuais na captação de vídeos de situações corriqueiras e absurdas sob um novo olhar. No texto predomina a objetividade, produzindo um efeito de sentido de distanciamento, com a utilização da 3ª pessoa e explicitando a voz dos videomakers e do público, representada pela f uzy új f : “É b b c b h ” Na página F8, o consumismo foi o tema explorado na g “Mu Mx f u á ”, apontando o consumo de produtos culturais diversificados e sustentáveis. A questão das diversas opções de consumo foi figurativizado pela descrição dos artigos como tapetes, bijuterias, roupas, luminárias, entre outros. O tema da sustentabilidade configura-se na opinião do público, e dos c c c c u V é D’ á u artesão Raul Menezes. O texto da matéria em questão é apresentado de forma predominantemente objetiva e a utilização da 3ª pessoa na reportagem cria junto ao enunciatário um efeito de distanciamento, reafirmada na voz dos entrevistados, representados pelos artesãos e comerciantes presentes no evento. 222 ANAIS - 2013 O intercâmbio cultural entre produtores é tema da é “P hã câ b ”, qu ser depreendido por meio de citações das manifestações culturais como artes plásticas, artesanato, literatura, música e moda. O discurso é opinativo apesar de produzir efeitos de f ã L D’Á e Deonilda Miller. Entretanto a matéria não consegue abranger o intercâmbio sugerido inicialmente das diversas manifestações, pois as outras expressões culturais apontadas não possuem representações nas vozes de outros produtores. Já a reportagem “Of c f x cc ”, exemplificam o tema integração e intercâmbio cultural de forma mais abrangente, mantendo o discurso objetivo e dando voz à artista plástica Fernanda Castro nas explicações da importância do seu trabalho, à educadora Lira Delquech que discorreu sobre a finalidade das oficinas de artes pláticas no evento e descrevendo o trabalho do artista plástico Cláudio Tozzi com o uso da 3ª pessoa. (IN) CONCLUSÕES Nossa análise do Caderno Especial - Festival de Inverno B j “O E M ” , meio das figuras e temas apreendidos, a ausência da crítica cultural ao apresentar predominantemente uma perspectiva eufórica do Festival de Inverno de Bonito, dando destaque às afirmações positivas dos sujeitos participantes do evento e à opinião de sujeitos que representam a voz oficial. As argumentações ilustrativas do conteúdo do discurso reforçam a conceituação de grandiosidade do evento e o posicionamento conceitual de cultura é diverso, denominada como manifestações artísticas, compartilhamento de identidades, produto de atividades significativas (expressões 223 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento artísticas), produto de representações e significações (texto, literatura) e domínio ideológico. Referências APARECIDO DA COSTA, Edgar. Ordenamento territorial em áreas de fronteira. In: APARECIDO DA COSTA, Edgar ; MACHADO DE OLIVEIRA, Marco Aurélio. Seminário de Estudos Fronteiriços. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2009. BALDWIN, John R. Reconsidering Culture, Counterculture, and Nation through a Tropicália Lens. In: Virgínia Moreira, Sonia (org). Geografias da comunicação : espaço de observação de mídia e de culturas. São Paulo: INTERCOM, 2012. BARROS, Diana Luz P. Estudos do Discurso. In: FIORIN, José Luiz (org). 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Dessa forma, a vertente Semiótica Social da ACD tem objetivado encontrar novas perspectivas para analisar de forma crítica a multimodalidade textual, a partir das categorias Sociedade e Discurso. Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, inserindo a categoria Cognição para tratar dos contextos selecionados para a construção multimodal de anúncios publicitários. PALAVRAS-CHAVE: anúncios publicitários; contextos e texto multimodal; sociedade, discurso e cognição; análise crítica do discurso. Este texto está situado na área da Análise Crítica do Discurso e tem por tema a contribuição da categoria Cognição para analisar, de forma crítica, textos multimodais, anúncios 1 Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1974); professora titular do Departamento de Português da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected] 226 ANAIS - 2013 publicitários, a partir dos contextos selecionados para a construção textual. Tem-se por objetivos: - geral: contribuir com a análise de textos multimodais; - específicos: 1. Rever a noção de contexto, a partir das categorias analíticas Sociedade, Cognição e Discurso; 2. Examinar a seleção e a combinação de cognições sociais, expressas em anúncios publicitários, com seus respectivos contextos. Entende-se que toda construção textual e a produção de sentidos são elaboradas cognitivamente pelo processamento da informação, na memória de trabalho das pessoas. Sendo assim, entende-se que para analisar os discursos, de forma crítica, é necessário inserir a categoria Cognição junto às categorias Sociedade e Discurso. O material analisado é constituído de anúncios publicitários multimodais impressos, publicados em revistas brasileiras, nos anos 2011 e 2012. As análises realizadas foram orientadas pela inter-relação das categorias Sociedade, Cognição e Discurso e objetivaram examinar as relações cotextuais entre imagens, cores e expressões verbais, assim como os contextos de sua produção discursiva. 1. Análise Crítica do Discurso A Análise Crítica do Discurso (ACD) está relacionada à escola de Frankfurt e busca analisar o discurso para encontrar as estratégias utilizadas pelo poder, a fim de impor ideologias que passam a guiar a conduta das pessoas em sociedade, de forma a discriminar grupos, conforme as decisões do poder. Nesse sentido, a ACD tem por objetivo denunciar o domínio das 227 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento mentes das pessoas pela dialética entre os discursos públicos e os eventos discursivos particulares. De forma geral, a ACD é multi e transdisciplinar e postula uma dialética entre o social e o individual, ou seja, o social guia o individual e este modifica o social. Sendo assim, centra-se em problemas sociais e busca analisar tanto os elementos das práticas sociais quanto os das práticas discursivas; logo, analisar o discurso de forma crítica requer teorização e descrição tanto dos processos e das estruturas sociais que dão lugar à produção de um texto quanto das estruturas sociais e os processos com os quais os indivíduos ou os grupos sociais, como sujeitos históricos, criam sentidos em sua iteração com os textos. Para uma visão crítica, três conceitos são importantes, a saber: poder, história e ideologia. De forma geral, a ACD reconhece a contribuição de todos os aspectos do contexto comunicativo ao significado do texto. (cf. Wodak, 2003) A ACD apresenta-se com diferentes vertentes, entre elas, a social, a histórica, a semiótica social e a sócio-cognitiva. A pesquisa realizada está situada entre a vertente semiótica social e a sócio-cognitiva. 1.1. Vertente semiótica social Segundo a semiótica social, há uma inter-relação, perpassada pela ideologia, entre Sociedade e Discurso, de forma que as mudanças sociais produzem mudanças nos discursos e vice-versa. Com a pós-modernidade e a globalização, ocorre uma mudança na sociedade, devido à descoberta e ao uso das altas tecnologias: anteriormente, o acesso exclusivo ao público era pela mídia e por outros veículos do poder; atualmente, o 228 ANAIS - 2013 acesso ao público é também individual e preferencialmente realizado pelas redes sociais, devido à rapidez e por estarem fora da censura. Assim, a partir da década de 90 do século passado, com as mudanças sociais e as altas tecnologias, ocorre o privilégio dos textos multimodais para a interação comunicativa. Tais textos modificaram-se. Anteriormente, ao se articular modalidades diferentes com o verbal, aquelas apresentavam significações fixas para seus significantes, como por exemplo, as placas de trânsito, as indicações de direção, a venda de produtos; dessa forma, a produção de sentidos focalizava o verbal, para os letrados. Com as mudanças sociais, ocorrem mudanças no discurso e os textos multimodais, passam a ser construídos com diferentes semioses inter-relacionadas, de forma que uma se projeta na outra, modificando-se. Consequentemente, os textos multimodais atuais apresentam dificuldades para a produção/compreensão discursiva. Fairclough (2001) distingue três elementos que são relativos aos efeitos constitutivos do texto, decorrentes do discurso: - a construção de identidades sociais e de posições para os sujeitos sociais e o eu; - a construção das relações sociais entre as pessoas; - a construção de sistemas de conhecimento e crenças. Esses três elementos correspondem respectivamente às funções da linguagem postuladas por Halliday (1985): - identitária, relativa aos modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso; - relacional, que diz respeito a como as relações sociais entre os participantes do discurso são representadas e negociadas; e 229 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento - ideacional, relativa ao modo pelo qual os textos significam o mundo e seus processos, entidades e relações. A essas três funções é acrescida a função textual que diz respeito a como as informações são trazidas ao primeiro plano ou relegadas a segundo, apresentadas como conhecidas ou como novas e selecionadas como tema ou como comentário. A semiótica social, embora apresente diferenças para seus pesquisadores, segundo Kress e van Leeuwen (2001), deve satisfazer a três requisitos, para ter uma visão crítica, ou seja: a. representar e comunicar aspectos relevantes das relações sociais que intervêm na comunicação; b. representar e comunicar os feitos, estados de coisas e de percepções que o produtor quer comunicar; e c. tornar possível a produção de mensagens que tenham coerência, internamente no texto, e, externamente, com aspectos relevantes do entorno semiótico, também designado “c x ” Dessa forma, poder-se-á analisar os elementos verbais com os não verbais e, para tanto, é necessário considerar como a linguagem verbal e os elementos não verbais articulam-se em uma peça discursiva, já que as imagens e as cores, a partir da pós-modernidade, passam a ter certas funções, anteriormente só desempenhadas por expressões verbais. Já Faircloud (2001) propõe três dimensões para se analisar o discurso de forma crítica: texto, prática discursiva e prática social. A dimensão do texto é analisada por uma série de categorias, a saber: léxico, gramática, coesão e estrutura textual. A dimensão da prática discursiva é focalizada pela produção, distribuição e consumo de textos; nelas é abordada a força dos enunciados, a coerência dos textos, a intertextualidade, a representação do discurso, a pressuposição e o controle 230 ANAIS - 2013 interacional. A dimensão da prática social analisa a matriz social e as ordens do discurso, assim como seus efeitos ideológicos e políticos. O discurso é visto como uma prática social que produz textos diferenciados em gêneros, dependendo do uso social deles. O texto é entendido como um produto enunciado por diferentes semioses, inclusive a verbal. Em síntese, os textos são analisados em seus elementos construtivos; a prática discursiva, no uso de seus gêneros textuais; e a prática social, em função dos participantes nas funções e ações específicas de suas interações sociais, tais como, por exemplo, o professor e seus alunos, em sala de aula; o padre, os noivos, padrinhos, família e convidados, em um casamento. 1.2 Vertente sócio-cognitiva Conforme a vertente sócio-cognitiva, é necessário postular três categorias para uma análise crítica do discurso: Sociedade, Cognição e Discurso. Van Dijk é o maior representante desta vertente. Segundo o autor (1997), há uma inter-relação entre essas categorias analíticas, de tal forma que uma se define pela outra, pois todas as definições necessárias para uma análise crítica do discurso decorrem das cognições seja as individuais, memória autobiográfica, seja as sociais, memória social. Dessa forma, segundo a vertente sócio-cognitiva, tem-se por pressuposto que a interação comunicativa pelo discurso decorre das formas individuais e sociais de representação mental do que acontece no mundo, ou seja, formas de conhecimento construídas nos e pelos discursos públicos institucionalizados e por eventos discursivos particulares. 231 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Logo, toda a produção/compreensão discursiva perpassa pela cognição. Sendo assim, entende-se que: A Sociedade é definida por grupos sociais, sendo que cada qual é uma reunião de pessoas que têm os mesmos objetivos, interesses e propósitos em comum. Dessa forma, a estrutura social é formada por um conjunto de papéis sociais selecionados, para serem representados, dependendo dos interesses do grupo. Por exemplo, há grupos sociais ancorados no trabalho que selecionam os papéis, entre outros, do professor-aluno, do padre-fiel, do empresário-funcionários, do industrial-empregado. Mas, há grupos sociais ancorados na exploração do outro, apresentando-se pela marginalidade das leis que regem a sociedade atual, de forma a selecionar, por exemplo, os papéis de traficante-drogado, prostituta-cliente, assaltante-vítima. Logo, as práticas sociais variam a sua estrutura social devido aos papéis sociais selecionados pelos objetivos, interesses e propósitos do grupo social. Estes guiam o ponto de vista para focalizar o mundo e, a partir daí, representálo mentalmente. Como os grupos sociais diferem entre si por terem pontos de vista diferentes, esses grupos estão em constante conflito, pois suas condutas sociais decorrem de suas próprias crenças, em um determinado momento histórico. A Cognição compreende as formas de conhecimento do grupo social, que em seu conjunto formam o marco das cognições sociais, que são construídas mentalmente, a partir do ponto de vista selecionado pelo grupo, para focalizar o que acontece no mundo. O ponto de vista decorre dos objetivos, interesses e propósitos do grupo social e ao ser projetado para focalizar o que acontece no mundo, projeta ao mesmo tempo um conjunto de valores que passam a compor a representação 232 ANAIS - 2013 cognitiva, como forma de conhecimento avaliativa. Sendo assim, é a partir do que é focalizado pelo ponto de vista que se maximizam ou minimizam e até se cancelam certas propriedades do que é focalizado, de forma a construir conhecimentos que são crenças sociais (valores culturais e ideológicos). Estas guiam a construção de formas de conhecimento individuais, decorrentes de experiências pessoais. Dessa forma, todas as formas de conhecimento são crenças por serem construídas com valores culturais e ideológicos, decorrentes do ponto de vista projetado. Logo, os grupos sociais diferenciam-se entre si por terem crenças diferentes. Todavia, os discursos públicos institucionalizados, constroem crenças extragrupais, ou seja, uma unidade imaginária, também designada memória social, que identifica uma nação, em seu contexto histórico. Desde que as formas de conhecimento são construções mentais, elas são produzidas e armazenadas na memória das pessoas. Kintsch e van Dijk (1983) tratam das estratégias de compreensão discursiva, a partir do modelo de memória por armazéns que diferencia a memória de curto prazo, a de médio prazo e a de longo prazo. A memória de curto prazo é sensorial e dá entrada para a informação que será processada pela memória de trabalho, situada entre a memória de curto prazo e de médio prazo. A memória de trabalho transforma as expressões textuais em sentidos secundários e globais, de forma recursiva. Para tanto, recorre a conhecimentos armazenados na memória de longo prazo, ativando-os para a memória de trabalho, fazendo inferências e explicitando implícitos. A memória de longo prazo comporta dois armazéns: o social e o individual. O armazém social, também designado 233 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento memória semântica, arquiva as representações construídas socialmente em sistemas de conhecimentos distintos. Há pelo menos três sistemas gerais de conhecimento: o enciclopédico, conhecimentos de mundo, perpassados pela cultura e pela ideologia; o simbólico, conhecimentos de códigos semióticos, tais como os visuais, os de cores e os de línguas; e o interacional, conhecimento de esquemas interacionais comunicativos, tais como atos de fala, gêneros textuaisdiscursivos e quadros enunciativos. Esses sistemas de conhecimento organizam as representações mentais tanto do armazém social quanto do individual. A memória de longo prazo social armazena as formas de conhecimento construídas socialmente, por discursos públicos e institucionais, tais como os da família, da igreja, do Estado, da empresa. Tais discursos são perpassados pela ideologia dos grupos de poder, construindo valores que compõem as crenças, cujos interesses são do próprio poder, de forma a impor a dominação das mentes das pessoas, para a discriminação, por exemplo, de raças, sexo, nações. Tais discursos, também, são perpassados pela cultura seja grupal seja extra-grupal. Segundo Silveira (2009), a cultura compreende um conjunto de crenças, cujos valores são definidos pelo vivido e experienciado pelas pessoas em sociedade, como por exemplo, formas de se alimentar, dormir, vestir, festejar datas. Sendo assim, tanto as ideologias como as culturas são conjunto de valores que guiam o comportamento das pessoas e seus hábitos sociais. Ambas compõem as crenças: as ideologias, transmitidas e impostas pelo poder, porque ele tem acesso ao público com facilidade; as culturas são transmitidas de pai para filho na vida cotidiana e não objetivam discriminação. As ideologias nascem nas culturas, para satisfazerem interesses do poder; as culturas 234 ANAIS - 2013 têm raízes históricas e dinamicamente se modificam a cada problema novo a ser resolvido, no cotidiano da vida das pessoas. A memória de longo prazo individual armazena as formas de conhecimento construídas por experiências individuais, sendo, portanto, autobiográfica. Os conhecimentos sociais guiam os individuais, mas estes, progressivamente, modificam os sociais, devido as modificações sofridas para resolver problemas novos. Segundo Kintsch e van Dijk (1983), é a ativação dos conhecimentos sociais e dos individuais que explica as razões de nenhum texto ter a mesma leitura nem para o mesmo leitor, em momentos diferentes, nem para leitores diferentes, ainda que haja um certo consenso de leitura entre eles. A memória de médio prazo armazena, durante certo período de tempo, os sentidos produzidos durante o processamento da informação, modificando-os até construir os sentidos mais globais que serão armazenados na memória de longo prazo, como formas de conhecimento social ou individual. O Discurso é definido como uma prática social, selecionada pelo grupo social, cujos textos produtos estão em uso. Van Dijk (1997), ao inserir a categoria Cognição na inter-relação das categorias Sociedade e Discurso, afirma que todas as formas de conhecimento são construídas no e pelo discurso. Há discursos públicos e eventos discursivos particulares. Os discursos públicos são definidos como prática social e diferenciam-se entre si por um contexto discursivo mental: os participantes, suas funções e suas ações. Segundo van Dijk, há três categorias para analisar de forma crítica os discursos públicos: Poder, Controle e Acesso. 235 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Cada uma dessas categorias está relacionada extratextualmente a contextos. Estes se diferenciam dos textos, cuja c uçã c xu é g “c x ” O “c x ” c f quê c dos elementos presentes no produto textual. Cada uma das categorias Sociedade, Cognição e Discurso agrupam seus próprios contextos, que são selecionados pelo produtor do texto para combiná-los no produto textual. 2. Expressões multimodais e contextos Segundo a teoria da multimodalidade, os textos multimodais produzem sentidos múltiplos, pois são produzidos com diferentes semioses. Neste texto, a multimodalidade é tratada pela combinação de imagens, cores e expressões lingüísticas. Os estudiosos da multimodalidade apresentam diferenças entre si. Neste item, são analisadas as expressões multimodais de um anúncio publicitário, apresentado a título de exemplificação, tendo por ponto de partida a gramática visual, proposta de Kress e van Leewen (1996). Estes autores asseveram que a comunicação não ocorre apenas entre pessoas de um mesmo grupo social e, por essa razão, é preciso que uma teoria da multimodalidade forneça explicações no caso das mensagens que exprimem valores e crenças dos outros grupos. Ao tratarem das imagens, os autores entendem que elas baseiam-se em padrões de realidade construídos cultural e historicamente e não na correspondência objetiva entre imagem visual e o mundo. Sendo assim, as imagens representam as relações entre pessoas, lugares e as coisas em um complexo conjunto de relações que possam existir entre as imagens e aqueles que as observam. 236 ANAIS - 2013 a. b. c. d. Para se analisar esse conjunto complexo de relações, Kress e van Leewen propõem quatro estratos: o discurso: são conhecimentos socialmente construídos, ou seja, os discursos desenvolvem-se em contextos sociais específicos que podem ser públicos ou não, como, por exemplo, contexto familiar e contextos explicitamente institucionalizados (publicidade, jornal, etc.). Os discursos podem ser realizados de diferentes maneiras, por exemplo, um discurso de guerra sobre conflito étnico pode ser realizado como parte de uma conversa em um café, um documentário de TV, uma coluna de jornal; o design: são maneiras de realizar discursos em contextos determinados, de forma a conceituar a forma dos produtos e dos eventos semióticos, conforme os propósitos e a concepção de quem será a audiência. Por essa razão, um mesmo um mesmo design pode ser realizado de formas diferentes dependendo do contexto de produção; a produção: é a articulação na forma material dos produtos ou eventos para a produção real do texto produto. Outros conjuntos complexos de habilidades são requeridos, como habilidades técnicas, artísticas, manuais e visuais. Neste estrato, a preocupação está situada nas fontes que possibilitam a produção semiótica; a distribuição: é o acesso ao público pela reprodução dos produtos e dos eventos semióticos. A distribuição não acrescenta nenhum sentido ao produto multimodal, mas é o facilitador das funções pragmáticas de preservação e distribuição. A distribuição importa na medida em que quanto maior e mais eficientes forem os meios de difusão, maior será o consumo pela audiência e, assim, maior disseminação ideológica. Para Kress e van Leewen (2001), o grau em que a intenção e a interpretação serão compatíveis, dependerá do 237 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento contexto. Para van Dijk (2012), o contexto cognitivo por ser composto por inferências e explicitações realizadas com conhecimentos sociais e individuais armazenados na memória de longo prazo das pessoas, varia de pessoa para pessoa e para a mesma pessoa conforme modelos de situação, projetados pelo produtor dos sentidos. 2.1 A título de exemplificação: um anúncio publicitário multimodal Fonte: revista Veja. Edição 2192, ano 43, n. 47, tiragem 1 235597, Editora Abril, 24 de novembro de 2010, p.37. Segundo Kress e van Leewen (1996), ao tratarem da semiose visual, os sentidos podem ser realizados pelas línguas e pela comunicação visual. Essas realizações, necessariamente, não se sobrepõem, pois algumas coisas podem ser expressas tanto pelo visual quanto pelo verbal; mas, outras, só pelo visual ou pelo verbal. 238 ANAIS - 2013 No texto exemplificado: - o verbal expressa crenças do marco das cognições c (cf D jk, 1997): “ N u c c u ã N , c u ” Ex , bém, o que foi selecionado das cognições sociais como valores positivos, para caracterizar individualizando um caminhão da Ford, que metonimicamente (a parte pelo todo) representa todos os demais produzidos por ela e que estão em campanha publicitária, a fim de seduzir o interlocutor para se tornar o seu consumidor: “P ê c R bu z É qu cê c c , é qu cê c F ” E, , “ performance do motor trabalha a seu favor e a robustez garante uma viagem tra qü N ” - o visual expressa a velocidade, de forma a explicitar a x ã b “ c ” í u c hã Ford, ou seja, por um flash que recorta o lado dianteiro do caminhão, salientando pela focalização a roda em movimento de ida ou volta, pela estrada sem movimento, conservada, tranqüila e livre para deslocamento. Expressa ainda o cenário: céu claro de um amanhecer, montes sombreados e entrecortados por uma estrada de pista simples e bem conservada no piso e nas linhas demarcadoras. O caminhão é de cor vermelha que culturalmente para o brasileiro representa emoções fortes como o amor, o perigo, a atração, a paixão. O recorte de um caminhão Ford vermelho sugere que ele enfrenta os perigos, vencendo-os com “ ê c bu z” 2.2 Distribuição espacial do texto exemplificado A distribuição espacial das expressões, no texto multimodal, segue a diagramação dada ao texto. Kress e van Leewen (1996) têm por ponto de partida a gramática sistêmico- 239 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento funcional de Halliday (1985) e, assim, propõem as seguintes categorias para se analisar a composição de textos multimodais: “ ” “ ”: x , qu u posicionamento das fontes selecionadas no eixo horizontal, consideram espacialmente a direita e a esquerda. Os elementos qu ã c “ ” ( c h c c ) ,c “ ”( c h c ) N x x fc , “ ” á u à qu u representação, no texto, é pelo verbal que expressa a ida e a volt (“c ”) c h , , c : “ ã ” “ ”; x , bé , c ç c respeito de uma viagem tranqüila e segura. O verbal está projetado sobre o visual (estrada de dupla mão, desimpedida e bem conserv ) O “ ” á u à , flash metonímico de um caminhão da Ford, representado em sua metade (parte inferior da cabine do motorista e a roda em movimento veloz, respeitando as linhas demarcatórias da estrada. - o real e o ideal: os textos que usam o posicionamento das fontes selecionadas consideram espacialmente, no eixo vertical, o real (embaixo) e o ideal (em cima). No texto exemplificado, o ideal está situado em cima, ou seja, um céu tranquilo do amanhecer o dia, um céu sem limites. O real está situado em baixo: a roda do caminhão em movimento sobre uma estrada bem sinalizada e tranqüila e o verbal, projetado sobre o u : “F ç õ u ícu gu ” - o valor da informação no centro ou na margem: quando essa seleção ocorre, esse tipo de composição significa que aquilo que é representado no centro é o núcleo da informação a que todos os outros elementos, em algum sentido, estão dependentes e, por isso, os elementos que ficam às margens são dependentes do central. No texto exemplificado não foi 240 ANAIS - 2013 selecionado esse tipo para dar saliência à sua composição. No centro do referido texto está situada a estrada de duas mãos, em baixo; em cima a elevação de um monte e o céu límpido e tranquilo sem limites. - a saliência: dar saliência a elementos cria uma hierarquia de importância entre eles. No texto exemplificado, à direita há saliência de parte do caminhão da Ford, de modo a focalizar em tamanho maior a roda em movimento de ida ou (“ c c ê c bu z”) uma estrada de mão dupla. Sendo assim, essa saliência hierarquicamente ancora os demais elementos que compõe o texto na velocidade segura para ir e voltar (rapidez devido à potência e robustez dos caminhões Ford). A saliência é considerada a função principal para a integração dos elementos selecionados, para compor um texto multimodal, de forma a representar o tema textual. 2.3 Seleção das fontes e combinação semiótica do verbal com o visual As fontes são selecionadas de paradigmas que compõem as partes do texto multimodal e podem ser vistas como interagindo e afetando umas às outras, conforme elas são combinadas para compor o todo do texto produto. É interessante observar que a noção de seleção, para a ACD, não implica a consciência do sujeito-produtor, devido à disseminação da ideologia, que instaura a dominação pelo Poder. No texto exemplificado, as fontes são selecionadas de um paradigma social e de um paradigma mercadológico de produtos industrializados, além de um paradigma geográfico: 241 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento - paradigma social: dois grupos sociais foram selecionados: um familiar (marido-mulher) e um empresarial (patrão-empregado); - paradigma de produtos industrializados: é selecionada a imagem recortada de um caminhão da Ford (à direita), para de modo hiperonicamente representar, pelo verbal, todos os c hõ uz : (à qu ) “F , c hõ g ” - paradigma geográfico: é selecionado o elemento qu g ug “ qu - á”, b “ ” A estrada selecionada é secundária, pois se trata de uma estrada de mão dupla interiorana brasileira que possibilita o tráfico de mercadorias de grandes centros para pequenos centros urbanos e rurais. A paisagem recortada pela estrada representa o distanciamento dos grandes centros urbanos, pois não existem habitantes e propriedades, mesmo as rurais. Os elementos selecionados são combinados no eixo horizontal e vertical da composição semiótica do texto. 2.4 A composição textual Os textos diferenciam entre si pelos gêneros discursivos, decorrentes dos usos que esses textos têm em sociedade. Dessa forma, os gêneros textuais são vistos como formas discursivas, ligadas às esferas da vida social. Segundo estudiosos do gênero, as pesquisas devem ser realizadas para responder a seguinte pergunta: Por que os membros discursivos constroem textos da maneira como são feitos? A inserção da categoria Cognição para o exame de contextos na produção de sentidos e para a composição do 242 ANAIS - 2013 produto textual indica que o anúncio publicitário é um gênero textual construído com uma sequência textual explicativa incrustada em uma sequência argumentativa, de forma a seguir o esquema mental que formaliza a lexia de designação. Por essa razão, compõe, textualmente, o anúncio publicitário, seguindo a organização lingüística da expressão e do seu conteúdo: significante, área semântica e área sintática (cf. Pottier, 1974). Dessa forma, o texto traz explicitados, para o interlocutor, os semas selecionados para estarem contidos em uma lexia nova, relativa à designação do produto anunciado. Logo, o referente xu , x x f c , é “c hõ F ” A área semântica dessa designação é composta por pelo conjunto de predições com valor positivo selecionadas das c g çõ c : “ ê c bu z” Ex c çõ : “ ê c = f c ” ( çã b ); “ bu z”=g u g qu na volta (representação pelo visual e cores). Os argumentos são selecionados das necessidades que um caminhoneiro tem e tornam-se legítimos por participarem das cognições sociais do gu : “ ê c bu z: é qu cê c c ; é qu cê c F ”, satisfazer a su c z, u j , “ u c c u ã N , c u ” A área sintática desse esquema textual da lexia de designação formaliza o produto anunciado como substantivo, caracterizado pela relação produtor-produto: implícita na g çã “c hõ F ” , x h z vertical além da saliência, a composição do verbal com as imagens e cores. O tema do texto (rapidez e segurança no deslocamento) preenche o sema categorial da lexia textual e os comentários textuais (explicitações) preenchem os seus semas específicos. 243 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Para responder a pergunta proposta pelos estudiosos do gênero, ter-se-ia: - Por que os membros discursivos da publicidade constroem anúncios publicitários da maneira como são feitos? - os publicitários constroem seus anúncios publicitários, seguindo o esquema de uma lexia, vista como uma unidade mental, porque têm por objetivo (macroato de fala) construir para seu auditório o conteúdo e a forma de uma designação que não é vocabular (lexia em estado de dicionário) da língua, pois é desse paradigma que se seleciona os elementos verbais para compor as expressões linguísticas do texto. As designações lexicais adquirem conteúdo para os falantes a partir de seu uso efetivo pelo discurso. A tarefa do publicitário é construir um texto que tem a função social de divulgar o produto que não é conhecido do auditório e, para tanto, apresenta-o por um esquema já conhecido (designação com conteúdo e expressão), a fim de ser de uso discurso frequente, como o é a lexia em estado de palavra nos textos. 2.5 Os contextos no anúncio publicitário Desde que se insira a categoria Cognição às categorias Sociedade e Discurso, todos os contextos são entorno do texto produto, enquanto formas de representação mental, ou seja, formas de conhecimento das cognições sociais e individuais. Dessa forma, os sentidos produzidos são dependentes dos contextos ativados da memória de longo prazo para a memória de trabalho, a partir da percepção de como o texto multimodal está composto. No texto exemplificado, são prováveis pela sua composição, os seguintes contextos: 244 ANAIS - 2013 - contexto social: dois grupos sociais são selecionados das cognições sociais: um familiar e outro empresarial. As identidades dos papéis sociais são estabelecidas pelas relações sociais entre marido-mulher e patrão-empregado. No grupo social familiar, o marido-caminhoneiro tem a sua função identitária fora do ambiente doméstico (representada pelo recorte visual do caminhão vermelho da Ford) e a mulherdona de casa tem a sua função dentro do lar. As ações que o marido-caminhoneiro pratica são relativas, na ida, ao transporte de mercadorias de cá para lá com segurança e rapidez (representado pela roda do caminhão com movimento veloz, em uma estrada desimpedida); é, assim que atende às ordens do patrão, sendo, dessa forma, eficiente para ser digno do emprego e do salário; na volta, as suas ações atendem aos desejos da esposa, trazendo o dinheiro para o sustento de seu lar. As ações praticadas pela esposa são relativas ao gerenciamento do salário do marido, de forma a garantir o abastecimento, a ordem e a saúde dos que participam da família. Tais identidades são perpassadas pela cultura e pela ideologia. Pela cultura, pela representação avaliativa de uma sociedade familiar matriarcal brasileira; pela ideologia, pela discriminação do feminino, na produção econômica do país. No grupo social empresarial, patrão-empregado, ambos têm suas funções fora do lar, na empresa. As ações que o patrão pratica são relativas às ordens que dá ao empregado para o cumprimento de tarefas, transportando mercadorias que atendam a seus interesses de lucro da empresa (representação visual e em cores do caminhão, com saliência na roda em velocidade, movimentando-se em uma estrada muito bem conservada, sob um céu iluminado do amanhecer); para tanto, negocia e toma decisões, representando a autoridade do Poder. As ações que o empregado pratica são relativas à obediência ao patrão, de forma 245 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento a atendem suas decisões com eficiência e segurança, indo de cá para lá (ida) e vindo de lá para cá (volta). Tais identidades sociais são perpassadas pela ideologia do Poder, ou seja, o patrão é sujeito agente e empregado, sujeito obediente que para ser digno do seu emprego precisa executar as decisões do patrão com eficiência e segurança. Tais identidades, também são perpassadas pela história, pois com a pósmodernidade e as altas tecnologias, o valor positivo das crenças sociais é atribuído à rapidez e segurança. Além disso, as imagens de uma estrada secundária (pista dupla), muito bem conservada sob um céu azul e límpido do amanhecer é uma fantasia no Brasil atual, onde as estradas são esburacadas, devido ao desgaste, excesso de carga pesada e trânsito carregado, estradas antigas e mal conservadas, além disso, com a mudança climática, o período das chuvas é freqüentado por violentos temporais destrutivos. Dessa forma, o produto anunciado (caminhões Ford) é representado ideologicamente como a solução para os problemas de transporte da carga pesada, no Brasil. - contexto discursivo: o discurso publicitário, visto como uma prática social institucionalizada, defini-se por um esquema cognitivo, organizado pelas categorias Poder, Controle e Acesso, cada qual com seus participantes, funções e ações. O Poder é representado pelos donos da empresa que tomam a decisão de anunciar seus produtos. No texto exemplificado, os donos da empresa Ford que decidem anunciar os seus caminhões, para vender mais no mercado. Para tanto, contratam uma agência de publicidade. O Controle é representado pelos participantes da agência de publicidade que têm por propósito produzir o anúncio publicitário que propicie a maior venda do produto anunciado. 246 ANAIS - 2013 Para tanto, recorrem à pesquisa de mercado (marketing) a fim de saber o que falta para os consumidores do produto anunciado. Dessa forma, os participantes especialistas que executam as ordens do dono da agência publicitária produzem o anúncio, de forma a atender a três exigências: criar a necessidade de consumo, prometer que o consumo do produto anunciado satisfaz a necessidade com pouco gasto e em pouco tempo. O Acesso é representado pelos participantes que distribuem o anúncio para que ele tenha acesso ao auditório selecionado pela agência (auditório universal ou particular). É o acesso ao público que garante a realização das funções pragmáticas de preservação e distribuição, de forma a garantir maior disseminação ideológica. O discurso publicitário tem seu contexto discursivo ancorado no propósito de transformar o interlocutor em consumidor. - contexto cognitivo: as crenças sociais (conhecimentos avaliativos) compõem o contexto cognitivo, de forma a produzir um entorno relativo às identidades sociais e suas relações entre as pessoas. Nas cognições sociais, o grupo familiar selecionado, marido-caminhoneiro e esposa, é caracterizado por baixa renda e pouca escolaridade, com sobrevivência salarial. Como o marido tem suas funções fora de casa, a mulher é responsável pelo lar e pelo gerenciamento do salário do marido, assim, é g “ c ” O gu ã empregado, o patrão é caracterizado por alta renda e escolaridade; já o empregado, baixa renda e escolaridade, dependendo do emprego e para tanto precisa, ideologicamente, ser rápido, eficaz e garantir segurança com a sua atuação. Dessa forma, o contexto cognitivo cria o entorno para definir os modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no 247 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento discurso, de forma a construir a função textual de tema e comentário. L g , c “c h ” ideologicamente é representada por <<aquele que trabalha no transporte de mercadorias, obedecendo ao representante do Poder da empresa e à representante do Poder familiar, deslocando-se com rapidez e segurança pelas estradas brasileiras, pois dirige caminhões Ford>>. Nesse sentido, no texto exemplificado, os caminhões Ford são tematizados pela rapidez e eficiência tendo por comentário a potência e a robustez do veículo e a performance do motor. O que é tematizado e comentado está de acordo com as cognições sociais, cujos valores culturais e ideológicos guiam os desejos do caminhoneiro e de seu patrão. - contexto de linguagem: o contexto de linguagem decorre do conhecimento que se tem a respeito dos diferentes usos da linguagem, a partir de variedades e variações lingüísticas, selecionadas para a composição do texto. Nos grupos sociais de baixa escolaridade, devido ao baixo poder aquisitivo, a mulher é quem fica em casa e sua função é garantir o bem-estar dos membros de sua família; dessa forma, suas ações estão ancoradas no gerenciamento do salário do marido, para a manutenção da ordem no lar, segundo uma cultura matriarcal. De forma geral, o vocábulo (lexia em estado de dicionário) que designa o papel representado p é“ c ” u çõ , “ é c ” N lingüística nativa, usada por esses grupos sociais, ocorre a z çã cábu “ ã ” = << qu qu decisões, emprega e paga o salário>> e o vocábulo com a forma f “ ” c << , ã família, dona de casa e dona do lar>>. 248 ANAIS - 2013 Nos grupos sociais de mais escolaridade devido a uma melhor renda, são usadas as variedades: padrão real (oral) e padrão normativo (escrito) segundo as quai “ ã , ”= << u u góc u >>; “ ”= <<mulher casada>>. Assim sendo, devido ao conhecimento dessas variedades, o anúncio traz representado em língua duas sequências dialógicas: - a primeira sequência dialógica: diálogo do caminhoneiro e os interlocutores textuais-discursivos, leitores da revista Veja (“ u”- quem fala para o interlocutor: o uso das x õ é c guí c : “N ida eu (caminheiro) acelero por causa do patrão. Na volta, (euc h ) c u ” E x õ b contêm implícitos ideológicos. - a segunda sequência dialógica: diálogo dos fabricantes da Ford com os interlocutores textuais-discursivos, os caminhoneiros e os leitores da revista Veja (“ u”- quem fala cu (“ cê” = c h u caminhão que são meus interlocutores); o uso das expressões é c ã : “P ê c bu z; gu c u ícu : “É que você precisa para encarar a estrada, é isso que você encontra na Ford. A performance do motor trabalha a seu favor e a robustez g u g qu ”; - “ g ( ó, f b c F , u ó ) ” s çã “ ”éc uí c gu caminhoneiros: << muitos quilômetros percorridos para transporte de carga>>; mas, ressemantizada no texto passa a conter <<há muitos anos, a Ford tem o hábito de produzir bons veículos para conduzir cargas pesadas, com eficiência, pelas rodovias principais e secundárias>>. 249 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento - contexto histórico: o contexto histórico é construído com a ativação de conhecimentos que situam cronologicamente os eventos no mundo. Para o texto exemplificado, podem ocorrer dois tempos cronológicos: tempo anterior-tempo posterior. - no tempo anterior: o Brasil foi regido por uma política de transporte ferroviário, sendo este o meio mais eficiente e barato para o transporte de carga pesada. Segundo o que é ensinado, na escola brasileira, em aulas de Geografia do Brasil, nossa primeira ferrovia foi inaugurada em 1854, construída pela Imperial Companhia de Estradas de Ferro, para ligar o porto de Mauá à Serra da Estrela, a caminho de Petrópolis. A partir daí foram construídas outras ferrovias, para o transporte do café e de outras economias agrícolas para exportação. De 1870 a 1920, c u “ f ”, 14 k 28 556 k de extensão. Em 1960, havia 38.339 km de ferrovias. - no tempo posterior: o Brasil é regido por uma política de transporte rodoviário para o transporte de passageiros e carga leve e pesada. Com isso, as ferrovias foram diminuindo a extensão até quase se anularem. A composição do texto exemplificado é feita com a política de transporte rodoviário. Este é representado ideologicamente como seguro, eficaz e rápido, apagando o valor negativo atribuído ao preço alto de seu custo e as dificuldades brasileiras para a conservação e produção energética, além do desequilíbrio ecológico, devido à dependência energética do petróleo e do álcool, para a locomoção em rodovias. Para concluir, acredita-se que os objetivos propostos tenham sido cumpridos, pois os resultados apresentados indicam que tratar de textos multimodais (anúncios publicitários), pelo enfoque dos contextos, de forma a considerar a categoria 250 ANAIS - 2013 Cognição, com as categorias Sociedade e Discurso, contribui para descrever tanto aspectos da composição textual da modalidade verbal e visual, assim como estratégias de compreensão, aplicadas para a produção de sentidos. Logo, os sentidos produzidos são representações mentais que constroem socialmente as crenças contidas nas cognições sociais grupais e extra-grupais, perpassadas historicamente pela cultura e pela ideologia. Tais crenças são construídas no e pelo discurso, cujo produto é o texto. Os resultados apresentados indicam, também, que os elementos selecionados pelo produtor participam de sistemas de conhecimento (semiótico, interacional e enciclopédico), armazenados na memória de longo prazo das pessoas após terem sido processados por elas. Todavia, é necessário considerar que esse armazenamento nem sempre é consciente e, por razão, a ideologia do Poder, que tem acesso ao público por discursos públicos e institucionalizados, passa a dominar a mente das pessoas, levando-as a sustentar essa ideologia por sua reprodução textual, no e pelo discurso. Nesse sentido, conclui-se que, na interação comunicativa entre as pessoas, todas as práticas sociais e os textos estão interrelacionados, de algum modo, às formas de conhecimento, representações mentais sociais e individuais que são crenças originadas no social. Logo, são elas que guiam as ações das pessoas no mundo, tanto para manter quanto para modificar, dinamicamente, a memória social. Os resultados apresentados abrem novas perspectivas de pesquisa para se tratar de outros tipos de contextos implicados nos textos multimodais publicitários e de textos multimodais de outros discursos. Referências 251 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento FAIRCLOUD, Norman. Language and globalization. London: Routledge, 2006. ______ Discurso e mudança social. [Trad. Izabel Magalhães]. Brasília-DF: Edunb, 2001. HALLIDAY, Michel. An introduction Grammar. Baltimore: Edward Arnold, 1985. to funcional KINTSCH, Walther e VAN DIJK, Teun. Strategies discoursive comprehension. 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Tomás Fernandez Aúz e Beatriz Eguibar], Barcelona:GEDISA, 2003. 253 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Análise de discurso da cobertura jornalística: O “caso Guaiviry” em Mato Grosso do Sul Tatiane QUEIROZ1 Maria Luceli Faria BATISTOTE2 RESUMO: Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena do país. Grande parte dos índios, das etnias Guarani e Kaiowá, está concentrada no sul do estado. Na mesma região, localizam-se grandes propriedades rurais que sustentam a principal atividade econômica do estado: o agronegócio. Essa situação tem g c f “ u ”, cuj ê c tem sido noticiada pela imprensa regional e nacional. Em 2011, notícias do ataque ao acampamento indígena Guaiviry e a morte do cacique Nísio Gomes permearam as manchetes de portais de notícias de todo país. Neste artigo, propomos a análise do sentido produzido por matérias da cobertura jornalística sobre este acontecimento, que fc uc h c c “ u y” b u teóricos da semiótica francesa, pretende-se recorrer aos conceitos pertencentes à semântica discursiva para analisar os relatos que compõem o córpus deste trabalho. PALAVRAS-CHAVE: semiótica francesa; índio; discurso; imprensa. Introdução Mato Grosso do Sul abriga 73.295 índios, a segunda maior população indígena do país, de acordo com dados do último Censo Demográfico divulgado pelo Instituto Brasileiro 1 Mestranda em Comunicação - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - [email protected] 2 Professora Doutora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - [email protected]. 254 ANAIS - 2013 de Geografia e Estatística (IBGE). No estado, há 74 aldeias e 11 acampamentos indígenas, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e, o mesmo levantamento, aponta que 66,5% dos índios são das etnias Guarani e Kaiowá e estão concentrados nas regiões denominadas de Grande Dourados, Cone sul e Sul fronteira. Também nestas regiões, estão concentradas grandes propriedades rurais que movimentam uma das principais atividades econômicas do estado: o agronegócio. Relatórios divulgados mensalmente pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) apontam que a produção de soja, milho, cana-de-açúcar e a pecuária são responsáveis por grande parte do Produto Interno Bruto (PIB) gerado por Mato Grosso do Sul. Esta área vem sendo palco de conflitos motivados por “ u ” D u , u f ndem que as propriedades foram adquiridas dentro dos preceitos de legalidade, do outro, índios afirmam que foram expulsos de suas terras tradicionais e defendem a retomada do território. O processo de ocupação de territórios tradicionalmente indígenas por não indígenas iniciou-se a partir da década de 1890, quando se instalou, no território ocupado pelos Guaranis e Kaiowás, a Cia Matte Laranjeiras. Mais tarde, a partir da década de 1950, iniciou-se a implantação das fazendas de gado que resultou em um desmatamento sistemático da região. A atividade provocou a dispersão de dezenas de aldeias indígenas tradicionais (BRAND, 1997). A violência resultante desses conflitos vem sendo noticiada há anos pela imprensa regional, nacional e até internacional. Um dos casos de grande repercussão na mídia foi o assassinato do cacique Marcos Verón. Ele foi morto durante um ataque ao acampamento indígena que morava, na cidade de 255 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Juti, na madrugada do dia 13 de janeiro de 2003. O cacique foi agredido com socos, pontapés e coronhadas e morreu em decorrência de traumatismo craniano, aos 73 anos (MORONI, 2011). Fatos mais recentes também tiveram grande repercussão na imprensa. Em 2011, as notícias do ataque ao acampamento indígena Guaiviry, localizado na fronteira do Brasil com o Paraguai, em Mato Grosso do Sul, permearam as manchetes de jornais impressos, portais de notícias na internet e telejornais de todo o país. O ataque, que ocorreu no dia 18 de novembro, resultou na morte do cacique Nísio Gomes, de 55 anos. O caso também repercutiu na mídia internacional. No mesmo dia do ataque, o portal de notícias do The New York Times editou uma nota sobre o assunto com o título “Brazil: Chief Killed in Land Dispute”. A repercussão do caso gerou novas pautas que abasteceram a imprensa durante semanas. A invasão ao acampamento Guaiviry motivou a visita de autoridades do Governo Federal a Mato Grosso do Sul e trouxe novamente à tona a discussão sobre a questão fundiária e a miséria em que vivem milhares de famílias indígenas no estado. Bennetti (2007, p.108) lembra que a notícia é um modo de conhecimento e constrói sentidos sobre a realidade: A Notícia é um dos eixos ‘c ’ â sociais de normalidade e anormalidade. Ao lidar essencialmente com o que é inesperado, incomum ou perigoso, o jornalismo acaba indicando o que seria socialmente desejável, normal ou adequado. De forma mais ampla, o jornalismo constrói 256 ANAIS - 2013 sentidos sobre a realidade em um processo de contínua e mútua interferência. Partindo-se da premissa de que é por meio da imprensa que os fatos públicos são conhecidos pelo público em geral e chegam aos telespectadores, ouvintes, internautas como “ íc ”, b h õ uz pela cobertura jornalística sobre este acontecimento, que ficou c h c c “ u y” b u teóricos da Semiótica francesa, desenvolvida por Algirdas Julien Greimas, e em seus seguidores, tais como Fiorin e Barros, recorremos aos conceitos de tematização e figurativização, pertencentes à semântica do nível discursivo, para analisar os relatos que compõem nosso córpus. 1. Notícias sobre o “Caso Guaiviry” Como mencionamos, as notícias sobre o ataque ao acampamento indígena Guaiviry permearam manchetes de jornais impressos, portais de notícias na internet e telejornais de todo o país. Para a organização de nosso córpus, selecionamos apenas matérias publicadas em alguns portais de notícias na internet, tais como: G1, Folha de São Paulo e Campo Grande News, por terem sidos os que publicaram as maiores quantidades de notícias sobre o caso. Para este trabalho, em face da grande extensão de matérias, fizemos um recorte e selecionamos três textos publicados no dia 18 de novembro de 2011, dia em que ocorreu o ataque ao acampamento Guaiviry, nos portais de notícias. São eles: 257 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Figura 1: Publicada no portal 1, c qu c í c íu u “P íc M ” g 258 ANAIS - 2013 A matéria é composta de três parágrafos, além de título, subtítulos3 e indicações de data e horário em que ela foi publicada, além de indicação do autor. O texto possui ainda um infográfico4, que pode ser visualizado como um mapa, que indica a localização do acampamento atacado. 3 O subtítulo completa o que está no título ao acrescentar mais dados. Juntamente com o título, o subtítulo tem ainda a função de atrair o leitor para o texto. 4 São ilustrações, que podem ser gráficos, tabelas, mapas, ou simulações, que têm a função de informar visualmente o que está escrito no texto. 259 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento “Lí Figura 2: Publicada no portal Folha de São Paulo com o título íg é c uz M ” 260 ANAIS - 2013 A matéria é composta por sete parágrafos, além de título e indicações de data e horário em que ela foi publicada e editada, indicações do autor e do local em que foi escrita. O texto conta ainda com uma fotografia, que funciona como uma complementação das informações escritas. A imagem possui legenda5 e créditos que indicam o nome de um fotógrafo ou de uma agência. 5 Tem a função de explicar ou complementar a informação que consta na fotografia. Geralmente aparece em apenas uma linha de texto, logo abaixo da fotografia. 261 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 262 ANAIS - 2013 Figura 3: Pub c g 263 c c N w c íg íu “MPF b ” Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A matéria é composta de 19 parágrafos curtos, com dois intertítulos, além de título, subtítulo e indicações de data e horário em que ela foi publicada. Também há a indicação do autor. O texto possui ainda uma fotografia com legenda e créditos que indicam o nome de um fotógrafo ou de uma agência. 2. A produção de sentido nas matérias jornalísticas Recorremos aos conceitos de tematização e figurativização, pertencentes à semântica do nível discursivo, para analisar os relatos que compõem o córpus apresentado neste artigo. Fiorin (2002) destaca que a semiótica não se interessa pela verdade dos enunciados, mas por sua veridicção, isto é, pelos efeitos de sentido de verdade com os quais um discurso se apresenta como verdadeiro, falso, mentiroso, etc. Segundo Barros (2000), a semiótica tem por objeto o texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e o que ele faz para dizer o que diz. Em sua conceituação de x , u f qu “ x ó x qu c c b na dualidade que o define – objeto de significação e objeto de c u c çã ” Tematização e figurativização são os dois procedimentos semânticos do nível discursivo. Fiorin conceitua os dois elementos e aponta que, na análise do texto, eles são complementares: A figura é o termo que remete a algo do mundo natural: árvore, vagalume, sol, correr, brincar, vermelho, quente e etc. Assim, a figura é todo conteúdo de qualquer língua natural ou de qualquer sistema de 264 ANAIS - 2013 representação que tem um correspondente perceptível no mundo natural. (...). Tema é um investimento semântico, de natureza puramente conceptual, que não remete ao mundo natural. Temas são categorias que organizam, categorizam, ordenam os elementos do mundo natural: elegância, vergonha, raciocinar, calculista, orgulhoso, etc (FIORIN, 2002, p.65). Barros destaca que a recorrência de traços semânticos no texto se constitui em percursos que podem ser organizados por temas e recobertos por figuras: Tematizar um discurso é formular os valores de modo abstrato e organiza-los em percursos. (...). Pelo procedimento de figurativização, figuras do conteúdo recobrem os percursos temáticos abstratos e atribuem-lhes traços de revestimento sensorial (BARROS, 2000, p. 68-72). é j í c b “ u y”, apresentadas neste artigo, descrevem o dia em que ocorreu o ataque ao acampamento indígena e dão indicativos ao leitor da localização do cenário onde se passou o fato, na região sul de Mato Grosso do Sul, na faixa de fronteira do Brasil com o Paraguai. Na notícia publicada pelo portal G1, as figuras utilizadas para a descrição qu ã : “í ”, “f ”, “ c ”, “ ”, “ ”, “c ” E figuras indicam um clima de tensão, de apreensão e de dúvida, recobrindo, pois, o tema conflito. 265 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento No segundo texto, publicado no portal Folha de São Paulo, é possível depreender temas como criminalidade e é , qu ã f gu : “ ”, “h c uz ”, “u mulher e uma criança de cinco anos bé f ”, “ c ” Na matéria publicada no portal Campo Grande News, surgem f gu c : “ ”, “ f ”, “ x cu ”, “ ”, “ gu ” , qu u f c á a essas figuras é o da violência. Considerações finais Os conflitos advi “ u ”, um lado, ruralistas defendendo propriedades adquiridas, segundo eles, dentro dos preceitos de legalidade e do outro, índios afirmando que foram expulsos de suas terras tradicionais acabaram gerando situações desastrosas. Como já mencionado, o ataque ao acampamento indígena Guaiviry e a morte do cacique Nísio Gomes permearam as manchetes e, com isso, um enfoque maior foi dado às questões indígenas, dando relevância e visibilidade às situações assustadoras vivenciadas por essa etnia. Os índios não se configuram como sujeitos, mas apenas como objetos. E, como tais, sofrem as ações de outros sujeitos ou antissujeitos. Os preconceitos e as discriminações são apreendidos pela hostilidade tematizada nas matérias em análise. Considerando o exercício de análise realizado, depreende-se que as figuras e os temas são culturais. Dessa forma, torna-se evidente o confronto existente e a marginalização sofrida pelo sujeito indígena. Esses recursos abordados permitem reconhecer a imagem daquele que na memória, na história, e não apenas em um determinado momento histórico, por desobediência ou por 266 ANAIS - 2013 não querer ceder às imposições que lhes são impostas, precisa ser excluído ou apagado. Referências BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo, Ática, 2000. BENETTI, Márcia. Análise do Discurso em jornalismo: estudo de vozes e sentidos. In: LAGO, Claudia; BENETTI, Márcia. Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 107-122. BRAND, A. J. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da Palavra. Tese de doutorado, História da PUC/RS, 1997. BRASIL, Ministério da Saúde. Relatório Anual de Gestão 2010. Secretaria Especial de Saúde Indígena, Mato Grosso do Sul, 2010. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 1996. _______. Enunciação e Semiótica. Letras: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, n. 33, p.69-98, 2006. MORONI, J. Caso Verón e Caso Passo Piraju: analogias quanto à cobertura midiática e suas implicações no Tribunal do Júri. Campo Grande: UCDB, 2011. 267 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento As condições de produção do discurso do professor de Língua Portuguesa frente a ideologias conflituosas entre “gramáticos” e “linguistas” Elisângela Leal da Silva AMARAL 1 Maria Leda PINTO 2 RESUMO: Este projeto, que está sendo desenvolvido por meio do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Letras, tem como bj á “ cu ” f í gu ugu f à “ á c cu ” uz u , novas abordagens linguísticas, inclusive nos livros didáticos. Com base na Análise de Discurso de linha francesa, objetiva-se observar e analisar as construções desse sujeito e seu posicionamento no ato da linguagem como trabalho, em um momento em que o lugar de onde se pronuncia encontra-se abalado por tantas instabilidades e transformações. Não pretendemos, com esta pesquisa, apontar as soluções para esses fatores, no entanto, é papel do analista investigar as condições de produção de um sujeito atravessado por ideologias tão divergentes em tempo de conflito, ou talvez até mesmo de revolução. Nosso objetivo, portanto, é conhecer os novos discursos formados nesse contexto, a fim de melhor compreender seus sentidos. Como nossa pesquisa se encontra em fase inicial, não há ainda dados analisados, o que possuímos advém de reflexões embasadas no levantamento das fontes, especialmente das leituras realizadas até o momento de autores como Pêcheux (1969/1997), Foucault (1986), Orlandi (2012), Rodrigues, Silva e Faïta (2011), entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; conflito; linguagem como trabalho. Introdução 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. 2 Professora orientadora Dra. Maria Leda Pinto. 268 ANAIS - 2013 Em meio a tantas transformações sociais por que passa nossa era, abre-se espaço para conflitos, reflexões buscas e reinvenções. Nesse contexto, observa-se o homem, afetado pelas transformações, e o mundo sendo transformado. Entre os dois, a linguagem significa toda a realidade vivenciada e transforma um animal racional em ser humano, em sujeito e/ou sujeitando-o. Para compreender esse fenômeno, ou os fenômenos que surgem a partir daí, um elemento se torna indispensável: o discurso. Realizado por meio de palavras, que pairam sobre a atmosfera perpétua das vivências humanas, tal qual satélites que absorvem a luz de toda essa história ganhando, assim, significação, renovando-se em cada mudança de fase, elas, as palavras, vão sendo ditas organizadas em frases, orações e períodos; fazendo a história, transformando os homens em uma dialogia constante. Esse espetáculo carece de cenário para ser produzido. Não é simples, mas complexo. Nesse sentido, para vir a ser e/ou por vir a ser, reclama as condições de produção. Pensadas por Pêcheux, são elas que permitem ao analista examinar o discurso sob os parâmetros da cientificidade da Análise do Discurso de linha francesa. As condições de produção fazem com que o discurso não seja apenas um texto produzido por um homem qualquer, mas uma discursividade realizada por um sujeito situado em um lugar social para desempenhar um determinado papel social. Ao analista, nesse sentido, cabe ter noção de cada uma dessas condições a fim de melhor poder investigar o sentido, ou os sentidos, possíveis de se identificar/em no momento da fala de um sujeito. Das relações entre o sujeito e seu interlocutor, em um ug , b c u “j g g ”, irromper-se-á o a identidade do sujeito, que a Análise do Discurso de linha francesa, (doravante AD) aponta como alguém que é afetado pela linguagem, atua na construção da 269 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento história e pelas duas se constitui. Este artigo traz um pouco mais de reflexão sobre as condições de produção de um discurso que não é apenas mais um: é o discurso do professor de Língua Portuguesa em meio a tantas transformações sociais e conflitos. Considerações sobre o estudo e as transformações do discurso Em momentos anteriores ao evento que marca o lançamento do Curso de Linguística Geral, o estudo de língua, que sempre foi uma preocupação de estudiosos e pesquisadores, seguia outros cursos, o enunciado já era estudado, porém sua principal linha de estudo se restringia a questões de compreensão de texto, uma interpretação pautada em aspectos formais, mais precisamente relacionados às regras da gramática normativa. Desse modo, o campo sobre o qual a AD veio a se estabelecer não era novo, no entanto funcionava sob as perspectivas da então filologia. É relevante que se faça uma abordagem sobre essa fase anterior à AD para que se perceba que o enfoque dessa nova disciplina ou método de análise é outro. Nesse sentido, antes de 1960, o discurso se intitulava “texto”, seu estudo se dava de maneira particularmente escolar, “enfim, a prática escolar referida é a explicação de textos, presente sob múltiplas formas em todo aparelho de ensino, da escola à universidade ” (M IN UENE U, 1993) D modo, a missão de interpretar textos fazia da filologia, ciência u é c , “ u cê c ” (M IN UENE U, 1993), uma vez que sua finalidade se restringia a desvendar o que os autores das diversas 270 ANAIS - 2013 á “qu z ”, u çã c u Eu época. Assim, Maingueneau (1993) descreve a filologia. qu f g f ch “ fíc ” Ou j , o papel da filologia consiste em determinar o conteúdo de um documento lavrado em língua humana. O filólogo quer conhecer a significação (sic) ou a intenção daquele cuja fala é conservada através da escrita. Deseja captar a cultura e o meio no interior dos quais este documento nasceu e compreender as condições que permitiram sua existência (...). Para o filólogo, a ciência da linguagem propriamente dita (...) é apenas um conjunto de meios para atingir o sentido contido na palavra escrita ou falada. (...) Se a filologia se aplica a problemas verdadeiramente lingüísticos, como a fonética, a morfologia, a sintaxe ou a semântica, é apenas para assegurar uma interpretação exata (MAINGUENEAU,1993, p.10). Como pudemos perceber, os estudos filológicos de então se assemelham muito ao que ainda hoje é estudado em língua portuguesa e até mesmo nas outras diversas disciplinas escolares em que se pretende alcançar uma interpretação rasa ou apenas captação das informações conteudistas de cada área específica, algo que passa bem perto da decodificação por parte daquele que contém informações básicas sobre determinado assunto. Como exemplos desse tipo de leitura e interpretação, poderíamos citar uma lista de problemas matemáticos ou um exercício de interpretação de texto presente em provas de Língua Portuguesa ou mesmo em questões de múltipla escolha 271 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento de História ou Geografia na escola ou em concursos diversos.Antes de Maingueneau, Pêcheux já se ocupara de justificar Filologia: Faz-se necessária uma abordagem, ainda que um tanto sintetizada, da filologia devido ao fato de que ela seja a antepassada direta á D cu h f c ,‘ as questões concernentes aos usos semânticos e sintáticos colocados em evidência pelo texto ajudavam a responder as questões que diziam respeito ao sentido x ( qu u “qu z ”) ’ (PÊCHEUX, 1990, p. 61) Percebemos, nesse sentido, que as informações textuais eram, praticamente, reduzidas às informações explícitas, restringindo o que houvesse de implícito apenas ao conhecimento referente ao que cerceasse o assunto em questão. O papel do sujeito, tal qual a Análise do Discurso concebe hoje, ainda não havia sido despertado, o autor era tão somente um transmissor de informações veiculadas a determinados conteúdos dentro de suas especificidades, aquele que quando falava ou escrevia, produzia um texto que falava por si, organizado dentro dos conjuntos de normas estruturais de determinada língua. Parte daí a observação de Maingueneau (1993.p.9) qu D “o encontro de uma conjuntura intelectual e de uma prática escolar ” Conforme profere, em concordância com Maingueneau, Pêcheux (1990): Até os recentes desenvolvimentos da ciência linguística, cuja origem pode ser marcada com o Curso de Linguística Geral, estudar 272 ANAIS - 2013 uma língua era, na maior parte das vezes, estudar textos, e colocar a seu respeito questões de natureza variada provenientes ao mesmo tempo, da prática escolar que ainda é chamada de compreensão de texto, e da atividade do gramático sob modalidades normativas ou descritivas (... )(PÊCHEUX, 1990, p. 61) Nesse sentido, é notório que o estudo de língua e o estudo de texto se fundem ou se confundem, uma vez que, até Sausseaure, o protagonista era o texto e sua informatividade, o que queria dizer aquele ajuntamento de palavras e frases organizadas em torno das regras de determinada língua. Mesmo tendo em vista a existência de um autor, era o conjunto estrutural do texto que se responsabilizava pelo sentido ou pelo que o autor tenha se proposto a dizer. Em contrapartida, a conjuntura intelectual se compõe de estudiosos que viam no texto algo além da estrutura inicial ou microtextual, vista aqui como estruturas gramaticais de uma í gu cu “em torno de uma reflexão sobre a “escritura”, a linguística, o marxismo e a psicanálise”, os novos estudiosos da linguagem passam a defender que a “ í gu u ó ” (ORL NDI, 2012); f passam a visualizar o texto a partir de um sujeito histórico, elemento que, nesse sentido, se constitui por meio de atos discursivos em uma historicidade de permanente transformação, da qual, dialogicamente; nele habita uma consciência materializada, sobre a qual ele não tem domínio, seu dizer é atravessado por outros dizeres que já foram ditos se alternando num jogo de poder presente em uma sociedade organizada em classes. 273 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Esse processo é complexo, como não poderia deixar de ser no caso de uma disciplina que nasce no entremeio de outras ê, c f f O : “ a análise do discurso se constitui no espaço de questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares” (ORLANDI, 2012). Para que seja compreendido com maior profundidade, é necessário que se recorra ao referencial teórico da história do nascimento da AD, bem como às teorias de cada disciplina que a circunda mais : “a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise” (ORLANDI, 2012). Sob esse dispositivo teórico, a linguística ocupa o espaço da Filologia apresentando novas perspectivas para buscar alcançar a interpretação, não apenas do texto, porém agora do discurso. Nesse sentido, o texto não é mais apenas um enunciado linguístico resultado de uma determinada autoria, não é objeto de estudo limitado por parâmetros estruturais linguísticos, não g fc h c , u j , “para a análise do discurso, o que interessa não é a organização linguística do texto, mas como o texto organiza a relação da língua com a história no trabalho significante do sujeito em sua relação com o mundo.” (ORL NDI, 2012) Da mesma forma, a Análise do Discurso não concebe um autor elemento individual, constituído em si mesmo, consciente de suas atitudes, ou capaz de organizar um enunciado baseado apenas em suas convicções, tendo como interesse a intenção de remeter uma dada mensagem a fim de alcançar algum objetivo particular. Para a AD, a relação existente entre o discurso produzido num dado momento e a produção de sentido está totalmente ligada ao lugar de onde esse discurso ressoa, da mesma forma em que o sujeito que o profere é definido pela çã qu cu qu “Aí entra então a 274 ANAIS - 2013 contribuição da Psicanálise, com o deslocamento da noção de homem para a de sujeito” (ORL NDI, 2012) O analista do discurso precisa estar atento a toda essa formação discursiva, ou seja, existe um contexto históricoideológico que faz parte do discurso, e sem o qual é impossível se chegar a um significado condizente com a realidade discursiva. “O analista do discurso, vem dessa forma trazer sua contribuição às hermenêuticas contemporâneas. Como todo hermeneuta, ele supõe que um sentido oculto deve ser captado, o qual, sem uma técnica apropriada, permanece inacessível ” (MAINGUENEAU, 1993). Os elementos da comunicação segundo Pêcheux e a constituição desses elementos Durante a época em que se estudava apenas o texto e sob bj c b qu “ qu z ”, gu elementos não exerciam os papéis que passam a exercer a partir de Pêucheux. A nós, como analistas, interessa a compreensão daquilo que o mestre passa a apresentar a partir de então. Não estamos dizendo que as teorias anteriores não sejam relevantes, seria incoerência, mesmo porque foram elas os primeiros passos, sem os quais não teríamos os avanços que agora conhecemos. Nesse sentido, cabe-nos tão somente argumentar que, com gratidão, damo-nos ao privilégio de construir sobre as bases sólidas que outros outrora construíram, reconhecendo sim sua importância sem nos prendermos agora a elas, uma vez que, gu O , “ çã curso, em sua definição, distancia-se do modo como o esquema elementar da comunicação dispõe seus elementos, definindo o que é g ” (ORL NDI 2012) 275 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A autora faz referência ao esquema elementar formado por um emissor que codifica a mensagem, um código linguístico, uma mensagem transmitida, um referente conhecido como o contexto, e um receptor que decodifica a mensagem. Obviamente, esse esquema reduz a comunicação a uma estaticidade extremamente distante da realidade compreendida pela AD, que nem concebe a linguagem como pura comunicação, mas entende que os mecanismos de linguagem humana vão muito além de pura transmissão de informações: (...) diremos que não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos, e não meramente ã f çã ” (ORL NDI, 2012, p.20). Eis o esquema. Usá-lo-emos com o propósito de demarcar a mudança proposta por Michel Pêcheux: (L) D A B R (...) a teoria da informação, subjacente a este esquema, leva a falar de mensagem como transmissão de informação: o que dissemos precedentemente nos faz preferir aqui o termo discurso, que implica que não se trata 276 ANAIS - 2013 necessariamente de transmissão de informação entre A e B, mas, de modo mais g , u “ f ” pontos A e B. (PÊCHEUX, 1990, p.82) Pêcheux, a partir de então, apresenta uma reformulação dos elementos envolvidos no uso/manifestação da linguagem. Trata-se de uma nova leitura do papel do homem no universo, bem como dos processos que configuram a existência e as possibilidades desse universo, materializado a partir de elementos antes não vistos como materialidade. É a contribuição da filosofia marxista transformando, ou reformulando, as formas e as formas impostas ao mudo. D c c Pêch ux, “F c bem claro, já de início que os elementos A e B designam algo diferente da presença fí c g hu u ” (Pêch ux 1990, p.82) Assim sendo, se anteriormente, concebia-se um homem emitindo uma mensagem a outro homem, agora poderíamos inqu : “Qu é h ?”; u, g fc , “O qu é h ?” c uz h D, qual um espelho côncavo, faz refletir novas imagens, e num jogo de polissemia, faz nos refletir acerca das mesmas. Desse modo se antes o homem era visto como um agente consciente de seus direitos, deveres e potencialidades, no entanto, olhando mais a fundo, o que ilusoriamente era visto como um elemento pronto não revela seu início e nem seu fim; verdadeiramente certo é dizer que o homem não é, mas ele está. E explorando as duas predicações destinadas a esse verbo, notarse-á, que, em um caso e em outro, a oração se formulará apresentando informações relevantes, ainda que uma delas seja considerada pela gramática normativa como acessória, na prática não é bem assim. 277 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Aparecerá o predicativo que poderia ser preenchido por um título qualquer, ou um lugar determinado. Em ambos os casos, percebeu qu é h , c b qu “ g c P ã ”: à b u b -se uma imagem, à luz do conhecimento, outra; apenas um recorte histórico de um elemento eterno, ou seja, o homem de hoje, nada mais é do que um fragmento do que foi ontem e do que será amanhã. Quando se diz sobre o predicativo, é para ilustrar que o antigo emissor não é aquele que transmite uma mensagem própria, mas é um representante sob um título imposto por um período de tempo, representando a expressão de uma ideologia que emerge de uma determinada instituição. A AD reconhece o discurso como Assim se identifica o sujeito que é sujeito por um espaço limitado de tempo, não há sujeito sempre sujeito, essa posição é dura apenas enquanto ocupa o lugar reservado a ele, no jogo de g c çõ uçã , “o discurso significa entre locutores” (ORL NDI 2012). Portanto, esse sujeito divide o seu espaço com o outro, já que nenhum discurso provém de um sujeito como fonte única do seu dizer, pois conforme afirma Orlandi (2012) Dessa forma, um A e alguém aqui designado B. Quem é A e quem é B depende do lugar de onde se fala. Trataqu O x c :“ ê c sujeito - a de que somos sempre já sujeitos apaga o fato de que o í u é uj g ” (ORL NDI 2012). 278 ANAIS - 2013 Reflexões sobre o “jogo de imagens” Dentro do estudo das condições de produção, uma teoria, em particular, requer um espaço substancial: a teoria do Pêcheux u “j g g ” Todo sujeito, ao proferir uma fala, passa pelo processo de atribuição de identidades, a si mesmo, ao seu interlocutor. Essa identidade não é algo simples, mas se constitui de uma c x çã N f Pêch ux, “o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro ” (Pêch ux 1990, 82) N , f se analisa dentro de uma determinada situação, não de forma cristalizada, visto saber que não é um ser único e cristalizado, mas que vivencia papéis predeterminados na historicidade do mundo e do discurso. A fala vem, nesse sentido, a ser construída sob condições que determinam o que deve ser falado a partir daquele lugar, desse modo, não é algo individual, mas institucional. É importante visualizar novamente o quadro das formações imaginárias, segundo Pêcheux (1990, p. 83), para uma melhor compreensão dos fatos mencionados até então: 279 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Expressões designam formações imaginárias que Significação as expressão I A I A I B I B (A) A (B) (B) B (B) da Questão implícita cuja “ ” subentende a formação imaginária correspondente IA(A): Imagem do Quem sou eu para lugar de A para o lhe falar assim? sujeito colocado em A IA(B): Imagem do Quem é ele para que lugar de B para o eu lhe fale assim? sujeito colocado em A IB(B): Imagem do Quem sou eu para lugar de B para o que ele me fale sujeito colocado assim? em B IB(A): Imagem do Quem é ele para que lugar de A para o me fale assim? sujeito colocado em B Ao tratar desse esboço, o estudioso ainda acrescenta: é g c c qu “ f ” (R qu c , “c x ”, “ u çã ” qu c cu pertence igualmente às condições de produção. Sublinhemos mais uma vez que se trata de um objeto imaginário (a saber o ponto de vista do sujeito) e não da realidade física. 280 ANAIS - 2013 Colocaremos pois: Expressões que Significação designam as expressão formações imaginárias A I A (R) B I B (R) “P de A sobre R “P de B sobre R da Questão implícita cuja “ ” subentende a formação imaginária correspondente ” “D qu h f ?” ” “D qu f ?” Nesse sentido, as identidades, que não são fixas, mas tornam-se igualmente imaginárias, como toda a composição do qu g á é, ã c uí b “ é c h c ” qu ç c u qu ,b c “c h c é ” qu A pressupõe per c B é , “Já” adormecidos sinalizam a formação discursiva3 adequada para cada situação. Assim a identidade de A passa a ser formulada por quem ele pensa ser somada a quem ele acredita esperarem que seja, e a força de seu discurso dependerá do resultado que ele imagine obter. Como esse processo, além de complexo, se movimenta, ou seja, foge à estaticidade, o discurso de A motivará um posicionamento de B, o interlocutor, nesse sentido, B poderá 3 Para este trabalho, adotamos o conceito de formação discursivo de Orlandi: “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito.” (ORL NDI, 2012) 281 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento construir um próximo discurso e remetê-lo a A dando vida a outro aspecto da dialogia da linguagem, que se move enquanto é atravessada pela história movimentando a própria história. E por falar em história, na história das teorias, que também não param, Pinto retoma a fala de Osakabe (Pinto. 2010, p.125): (...) analisando o esquema de formações imaginárias criado por Pêcheux, , vai propor uma reformulação das perguntas que c õ ch “j g g ” por entender que carecem de outro elemento igualmente importante e que se fundamenta sobre a relação atuacional e pragmática entre A e B. Para Osakabe, a pergunta central não se localiza mais em A ou B, mas sobre A e B, podendo ser assim construída: O que A pretende falando dessa forma? Duas outras perguntas podem surgir do desdobramento desta questão. São elas: O que A pretende de B falando dessa forma? O que A pretende de f f ?” um ap A primeira parte do desdobramento vai ao encontro de ó Pêch ux b “ çõ ” : (...) a antecipação de B por A depende da “ â c ” qu u õ B: encontram-se assim diferenciados os discursos em que se trata para o orador de transformar o ouvinte (tentativa de persuasão, por exemplo) e aqueles em que o orador e seu ouvinte se identificam (f ô cu c cu u , “ c 282 ANAIS - 2013 h ” f (PÊCHEUX, 1990, p.85). c , c) Esse detalhe é suficiente para que se perceba que, embora a história continue fazendo de todos apenas os atuais personagens, posteriores a uns e antecedentes de outros, cada um é único em sua existência. Nesse sentido, há uma unicidade b ç qu u h é c “ ug ” contracenem, em uma mesma época, sujeitos que, apesar de constituídos a partir de hipotéticas mesmas ideologias, sejam sujeitos diferentes. Apesar de a AD não tratar o sujeito como um indivíduo qu c u , u c c , “tentativa de persuasão” (PÊCHEUX, 1990), em algumas situações é perceptível, desse modo as intenções, embora seja um vocábulo que pareça não fazer parte da AD, podem ser fundamentadas por meio do jogo de imagens de Pêcheux, quando aborda o princípio “ c çõ ” (PÊ HEUX, 1990) entre A e B. Nesse sentido, cabe a reflexão sobre o fato de, por parte de A, haver intenções sociais, coletivas. A absorve as ideologias, no entanto também as filtra, seleciona e transforma, no momento em que faz suas leituras. O que não poderia ser observado na primeira f D, qu uj c “um espaço discursivo supostamente dominado por condições de produção estáveis e homogêneas ” (PÊ HEUX, 1990) Já c f D, discurso se constitui entre forças conflitantes, o outro ganha x ã ch “discurso-outro” u “discurso heterogêneo” (PÊ HEUX, 1990), u qu qu c forças conflituosas, diferente da fase inicial da AD. Seria por isso que no mundo observamos diferentes organizações sociais, não únicas, diferentes atuações políticas, não as mesmas, 283 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento diversos níveis de posturas frente a relações econômicas, não apenas a ganância. Dessa forma os elementos das condições de produção são inesgotáveis em suas complexidades sem que isso torne o trabalho do analista impossível, apenas requer dele uma atitude de alguém que analisa algo vivo e tenha ciência de que, frente a isso, não lhe cabe uma postura enrijecida, ao contrário precisa estar sempre atento à formação discursiva. Do lugar (escola): uma instituição sujeito “P , c c , u h óg c Estado desempenha o papel dominante, muito embora não escutemos sua música a tal ponto, ela é silenciosa! Trata-se da c ” ( hu , 2012) N c á u qu ideologia se materializa trazendo à existência a historicidade da vida humana por meio do discurso, um aparelho, especialmente, se destaca. Desde o seu nascimento, vem se comportando como instituição que visa ao atendimento da formação daqueles que constituem a sustentação do Estado enquanto força dominante, aqueles que suprirão as necessidades da produção e devem aprender a desempenhar bem esse papel. De nossa parte, surgem outras possibilidades de reflexões, ainda que considerando toda a historicidade desse aparelho definido por Althusser como o ocupante do papel dominante dentre os demais aparelhos ideológicos, se há uma ‘ çã ’ uj cu , ã considerar também a possibilidade de haver sujeitos diferentes, com motivações persuasivas diferentes a fim de alcançar objetivos diferentes? Não negamos que a escola continue gerando mão de obra para a produção; mas de onde saíram aqueles nomes que fizeram – e alguns que ainda fazem- a 284 ANAIS - 2013 diferença no rumo da nossa História? É bem verdade que a escola continua exercendo o papel de força motriz para o funcionamento do Estado de produção, no entanto também é ela que movimenta nossa sociedade de classes e transfere ou mobiliza alguns. Apesar de forte representante da ideologia do Estado, não há de se negar que a escola é também um aparelho que funciona como uma ponte de mão dupla, uma vez que por um lado é via de acesso da mão de obra daqueles que atenderão às necessidades de produção do capitalismo, por outra via, direciona aqueles que tomam um rumo diferente do que estava aparentemente predestinado, ou seja, gera rupturas nos sistemas até então solidificados de alguns grupos. Nesse sentido, a escola tem incorporado, até certo ponto, o papel de aparelho ideológico de Estado inculcando a ideologia dominante, preparando o aluno para que vá ao encontro da demanda social empregatícia produtiva, há, por conta disso, uma identidade preconcebida desse sujeito institucional. Entretanto, se Osakabe tem razão em seu questionamento, abre-se outro gancho, visto que a escola não fala por meio de si mesma, mas por meio de outros sujeitos, que a transformam em lugar. É óbvio que esses também trazem consigo, na dialogia da historicidade, discursos interpelados pela ideologia dominante, c uí ‘já’, ã b , ao pensarmos sujeito-direção e sujeito-corpo- c ; qu ‘ ’ c u ‘ ’ g ‘B ’? Qu dessa materialidade pode atuar como força de ruptura? Considerações sobre a identidade do sujeito/professor de LP c 285 Sendo o professor de língua portuguesa um sujeito que u ç ‘ c ’, h b g Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento uz u cu , u ‘ gu g c b h ’, c g g ‘B’, u , á á atender às necessidades impostas pela sociedade atual. Desse modo, toda a fala do docente precisa convergir para a preparação do aluno na direção das exigências do mercado de trabalho, seja no sentido instrucional da tecnicidade, seja no conhecimento intelectual para os concursos profissionalizantes ou demais concorrências nas diversas disputas pelas melhores vagas. Há sempre essa exigência. P u , qu b u ‘B ’, ‘ ’ c uj à z qu ju c u identidade da escola, ou mais claramente, sujeito a quem qu ‘é b ’ h j N c , há ainda uma disputa por ser a melhor voz, a mais acertada. Esse fator pode desencadear conflitos e recriar discurso, afinal como dizia Pêcheux: “O surgimento de um acontecimento discursivo não é um fato rotineiro, nem intencional e nem mesmo elaborado, mas constituído no bojo das relações de produção/transformação das relações de produção” (1997, p. 191) O professor é um trabalhador do intelecto, sujeito à instituição escola, que por sua vez está sujeita ao Estado e, concomitantemente é dirigida por vozes que se constituíram poder, até para justificar e motivar a aceitação da instituição, mediante exigências da sociedade moderna. No momento em que essas vozes se dividem, obviamente, surgem, em meio aos conflitos, novos discursos. Então, diante das abordagens da AD, para que o professor de í gu ugu j c uj , ‘já ’, da imagem feita da escola, que também tem força de sujeito, da demanda da organização social, das necessidades impostas aos alunos, e até mesmo das exigidas por alguns que sofreram 286 ANAIS - 2013 u u , qu qu ‘ ’ c qu transforma pelo discurso e também o transforma, e ainda pelo que ele, profissional, vê em si mesmo somado ao que pretende. É o resultado de toda essa soma de fatores que estabelecerá a identidade do professor. A dúvida que surge é em relação à complexidade da relação: se as parcelas podem ser tão diferenciadas por circunstâncias tão diversas, teríamos uma identidade ou identidades diferenciadas de um mesmo sujeito? Se a resposta for negativa, o sujeito será constituído classe; no entanto se for afirmativa, estará ocorrendo fragmentação ou multiplicação do que era uma classe. Recorrendo a Análise do Discurso, na concepção de Orlandi, quando diz que: Análise de Discurso concebe a linguagem como mediação entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em qu ” (ORL NDI, 2003, 15 ) qu uj bé é ‘ h ’, cabe investigar se o que se dá é continuidade, deslocamento ou transformação do sujeito professor de Língua Portuguesa nessa formação de identidade e na atuação do agente da linguagem ‘c b h ’ u f çã cu , local de trabalho. E Lugar do linguista e o lugar do gramático suj 287 Como abordamos anteriormente, a AD pressupõe um f c c , , “clivado” (ORL NDI, Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 1998); é dessa forma que se constitui o professor de língua portuguesa da atualidade, entre correntes ideológicas diferentes: “Em outros termos, a ciência clássica da linguagem pretendia ser ao mesmo tempo ciência da expressão e ciência dos meios desta expressão, e o estudo gramatical e semântico era um meio a serviço de um fim, a saber, a compreensão do texto...” (PÊCHEUX, 1990). A fala do mestre francês vem resumir o objeto de estudo e preocupação do gramático, aquele que durante muito tempo trabalhava a linguagem metalinguisticamente. Apesar de cada língua, ou cada variação, apresentar sua respectiva gramática, por questões de demandas sociais que contribuem para a determinação do papel da escola, como já mencionado anteriormente, apenas o funcionamento da gramática da língua portuguesa considerada culta é preocupação da escola. Assim, gramático continua sendo o estudioso da gramática da língua considerada oficial. Para ele, em nome da demanda social, conhecer e preservar a composição das estruturas convencionais do idioma é extremamente necessário. Pêcheux, como linguista, demonstra o qu O c c “deslocamento e a transformação do homem” (ORL NDI, 2003) ( ) gu á : ‘D qu f x ?’, ‘Qu ã c c x ?’ ‘E x á conformidade com as normas da língua na qual ?’, u ã ‘Qu ã próprias a x ?’ (Pêch ux, 1990, 61) Nesse sentido, alguns gramáticos se transformaram em lingüistas, ou seja, estudiosos da linguagem sob outros aspectos. Dentre as inúmeras teorias, Benveniste esclarece: 288 ANAIS - 2013 a língua permite que o homem se situe na u z c ; h ‘ u necessariamente em uma classe, seja uma classe u u c uçã ’ E consequência, a língua sendo uma prática hu ,‘ u qu g u uc h f z [ ] ” (B , apud Alkmim. 2001, p. 27-grifos da autora). Dessa maneira, se o gramático se preocupa com a forma com a qual a língua se constitui, o linguista se preocupa com seu uso, em suas diversas maneiras. Percebe-se então dois diferentes campos de atuação. Considerações finais Em meio às complexidades da linguagem, um profissional se manifesta no entremeio de diversos conflitos impostos pelas demandas sociais, entretanto um conflito se evidencia em proporções mais desafiadoras: são as divergências u í gu B : “g á c ” “ guí c ” “g á c ” “ gu ” Há aqueles que reconhecem a mútua importância, mas têm se destacado alguns de discursos agressivos e incisivos. Na historicidade do homem, a realidade se materializa na capacidade do uso da linguagem, é na relação com o outro que c u, c f Pêch u: “( ) se o homem entende seu semelhante é porque eles são um e outro, em algum grau, “gramáticos”, enquanto que o especialista da linguagem só pode fazer ciência porque, já de início, ele é, como qualquer homem, apto a se exprimir ” (PÊ HEUX, 1990) E b h do professor atravessa essa capacidade de se expressar, vai além na medida em que a escola o concebe como responsável por aprimorar essa aptidão. 289 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Além de a língua humana ser um objeto de infindáveis reflexões e descobertas, de notáveis riquezas, dois extremos conflituosos têm delimitado a ação do professor de língua portuguesa. Nesse sentido, surge a necessidade de conhecer o discurso produzido em meio às condições de produção que o cercam. Referências MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da Obra Literária. Trad. Marina Appenzeller. Martins Fontes, São Paulo, 1995. __________. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 1993. Trad. de Freda Indursky. MUSSALLIM, F. e BENTES, A. C. Introdução à linguística – domínios e fronteiras1. São Paulo. Cortez, 2000. ORLANDI, E.P. Análise de Discurso: procedimentos. Campinas: Pontes, 2012. princípios e PÊCHEUX, M. A análise automática do discurso (1969). In: GADET, F. e HAK,T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: UNICAMP. SILVA, M. C. P.S. e FAÏTA, D. (Orgs.) Linguagem e trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na França. São Paulo: Cortez, 2002. 290 ANAIS - 2013 As crônicas de Alice Vaz de Melo: o olhar individual de uma memória coletiva Marta Roque BRANCO1 Paulo BUNGART NETO2 RESUMO: Este trabalho visa observar traços das crônicas de Alice V z M ub c ã “U Ou ” j O Grito entre os anos de 1970 e 1971. Esses textos relatam, por intermédio da memória, os acontecimentos que envolvem a formação e o desenvolvimento da cidade de Ivinhema – uma pequena cidade do interior de Mato Grosso do Sul em seus primeiros anos de emancipação. A autora traz em suas narrativas literárias as representações do espaço e dos costumes de uma época. São textos que apresentam um recorte histórico coletivo a partir do olhar individual de um figura atenta e preocupada com o meio social em que vive. São escritos que se constituem como um rico material sobre a formação da cidade de Ivinhema e, consequentemente, de Mato Grosso do Sul. Os textos serão analisados pelo viés dos estudos memorialísticos, com o auxílio de autores como Halbwachs, Zilberman e Souza. PALAVRAS-CHAVE: Memórias de Alice Vaz de Melo; jornal O grito; registros sobre Ivinhema. 1. Introdução Apesar de vasta, a produção memorialística do Mato Grosso do Sul permanece, de modo geral, desconhecida do público leitor e até mesmo da comunidade acadêmica. Em todas 1 Marta Roque Branco, Mestranda. Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. [email protected] 2 Paulo Bungart Neto, Prof. Dr. Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. [email protected]. 291 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento as regiões do estado podemos encontrar interessantes autores e b gê , c c í c qu j “ í c no Mato Grosso do Sul como gênero representativo da cu u f ç ”, c lo Prof. Dr. Paulo Bungart Neto, pretende demonstrar, contribuindo para tirar do anonimato as mais diversas obras do gênero confessional. Assim, no sudeste do estado, temos, por exemplo, as Memórias de Jardim e Senhorinha Barbosa Lopes, de Samuel Xavier Medeiros; da região sul, obras como Só as doces... uns ‘causos’ por aí, de Elpídio Reis (Ponta Porã); e Chão do Apa: Contos e memórias da fronteira, de Brígido Ibanhes (nascido em Bella Vista, Paraguai, e radicado em Dourados); de Ribas do Rio Pardo, a obra Onde cantam as seriemas, de Otávio Gonçalves Gomes; da região do Pantanal, O pescador de sonhos, do exgovernador de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul Pedro Pedrossian (nascido em Miranda), bem como diversas obras do corumbaense Renato Báez (por exemplo: Corumbá: Memórias & notícias e Corumbá: Lembranças e tradições); da capital Campo Grande, os registros de Maria da Glória Sá Rosa, cearense de nascimento e campograndense por adoção (Deus quer o homem sonha a cidade nasce: Campo Grande – Cem anos de história; e Crônicas de fim de século, dentre outras); e as memórias dos irmãos Barros, nascidos em Cuiabá, criados em Corumbá e há muitos anos habitantes da capital sul-matogrossense (Manoel de Barros e suas Memórias inventadas, escritas em verso; e Abílio Leite de Barros, Histórias de muito antes, coletânea de contos e memórias). Nota-se, portanto, somente dentre os autores citados acima (há vários outros, não mencionados) que a produção memorialística no Mato Grosso do Sul é vasta e diversificada, nada ficando a dever aos outros estados ou regiões do Brasil. 292 ANAIS - 2013 Do Vale do Ivinhema, compondo o conjunto de obras confessionais dos escritores sul-mato-grossenses podemos citar os escritos de Alice Vaz de Melo, dos quais este artigo visa, como se percebe a partir do título, destacar algumas das crônicas ub c ã “U Ou ”, j O Grito, entre os anos de 1970 e 1971, principalmente as que discutem aspectos culturais e históricos do desenvolvimento de Ivinhema. Tais textos se fazem pertinentes à medida que revelam a complexidade de obras literárias ricas em aspectos históricoidentitários sobre a formação e desenvolvimento de uma pequena cidade do interior de Mato Grosso de Sul, fato que se deve ao envolvimento sócio, histórico e cultural da autora com seu tempo e seu lugar, preocupações estas que a fizeram destacar-se e ser ouvida dentro de um espaço ainda desconhecido e com poucos recursos, especialmente por ser mulher em um tempo e local em que as mulheres ocupam espaços limitados. 2. Aporte Teórico Antes de atermos à discussão dos textos de Alice, um aspecto precisa ser abordado: o caráter memorialístico recorrente nos textos da autora, já que estes narram fatos acontecidos durante o desenvolvimento de Ivinhema e que são reconstruídos por meio de registros que ficaram gravados em sua memória. 2.1. O caráter memorialístico das crônicas de Alice Devido à complexidade dos estudos memorialísticos, tomemos como definição de memória aqui o conceito registrado 293 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento por Regina Zilberman em seu or ó ”: x “P á c , Memória constitui, por definição, uma faculdade humana, encarregada de reter conhecimentos adquiridos previamente. Seu bj é u “ ” x indivíduo, que o armazena em algum lugar do cérebro, recorrendo a ele quando necessário. Esse objeto pode ter valor sentimental, intelectual ou profissional, de modo que a memória pode remeter a uma lembrança ou recordação; mas não se limita a isso, porque compete àquela faculdade o acúmulo de um determinado saber, a que se recorre quando necessário. (ZILBERMAN, 2010, p. 17) Para a adequada compreensão de textos envolvendo lembranças, é indispensável que essas análises estejam associadas a um estudo mais aprofundado sobre memorialismo. Essa abordagem se torna inevitável porque aproxima memória (passado) e consciência (presente), cabendo a esta última o ponto de união entre passado e futuro. Tal noção é de suma importância para se perceber que o texto memorialístico é construído por uma concepção individual. É o que ressalta Tânia Regina de Souza: Uma narrativa de memórias construída através da concepção individual que o narrador possui a respeito daquilo que viveu ou testemunhou é suficiente para revestir a verdade com uma visão singular e individual. Lembranças de experiências 294 ANAIS - 2013 vividas, contidas na interioridade da consciência humana, quando exteriorizadas, representam um passado já reelaborado nas asas de um tempo sem rédeas e, por que não, com asas. (SOUZA, 2001, p. 17) Textos pertencentes ao gênero memorialístico são, pois, resultados de impressões passadas que trazem em si marcas da convivência com um determinado grupo social e da experiência dessa relação. Falar de memória é olhar para além de um conceito de armazenamento de informações passadas. É c b qu “c ó u é u b ó c ” (H LBW H , 2006, 69) c uí é u “c c çã u ”, dizer de Souza, as lembranças que essa concepção evocam são, para Maurice Halbwachs, coletivas, uma vez que não há recordações exclusivamente individuais, pois pertencemos necessariamente a grupos sociais e vivemos em comunidade (família, ambiente escolar ou profissional, etc.), e, como tal, b ç ã bé “ u ”, u seja, coletivas. Essa ideia é muito clara no capítulo inaugural de sua obra A memória coletiva, u “M ó u ó c ”, qu c u f cê f qu “( ) Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós bj qu ó ” (H LBW H , 2006, 30) é , “( ) R c testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas ç b cu ó ” (2006, 29) Nesse sentido, os textos de Alice Vaz de Melo se constituem como importante testemunho do período de 295 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento formação de sua cidade, uma vez que trazem as marcas da convivência do grupo social daquele lugar e as experiências dessa relação por meio das impressões da autora dentro da memória coletiva, e se enriquece à medida que aproxima o passado do momento presente – memória e consciência – para uni-lo ao futuro e, assim, construir uma identidade histórica que traga em si as marcas construídas por cada contexto sócio, histórico e cultural. 2.2. Memória e consciência na construção de uma identidade histórica A relação entre história e literatura nem sempre apresentou convergências discursivas. Por muito tempo, acreditou-se que seus caminhos e fins eram opostos, apresentavam discursos divergentes: para a história, cabia a verdade científica, enquanto a literatura restringia-se a formas artísticas alicerçadas na ficção, no fantástico, no maravilhoso. Constituíam, portanto, polos antagônicos: verdade e ficção. Os paradigmas de verdade e ficção, no entanto, sofreram um rompimento com a contestação da história como verdade, que ocorreu desde o século XIX e, de forma mais sistemática, no século XX com a Escola dos Anais, que passou a questionar a historiografia tradicional segundo a qual a história era relatada como uma crônica de acontecimentos. “c g ”, o discurso histórico sofreu um grande abalo e, aos poucos, foi perdendo sua condição de pensamento autônomo e autolegitimador, o que desestabiliza o distanciamento até então existentes entre as duas possibilidades de narrativa, a histórica e a literária. Assim, os laços entre ambos os discursos se estreitam e vários estudiosos passam a dedicar-se aos estudos de tais 296 ANAIS - 2013 relações e a discutir o diálogo da história com a literatura. É o caso, por exemplo, da historiadora Sandra Pesavento. Para ela, “ u história são narrativas que tem o real como referente para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrativa, são representações que se referem à vida e que a x c ” (2006, 14) Dentro dessa concepção, o historiador e o literato comungam de um mesmo trajeto, ambos caminham na trilha do imaginário, já que este caminho aceita as duas formas de apreensão do mundo: a lógica, que compõe o conhecimento científico, e a conceitual, correspondente ao conhecimento sensível, e se constitui, segundo Pesavento, como um sistema de representação sobre o mundo que, sem se confundir com a realidade, coloca-se em seu lugar e tem nela seu referente. Dessa forma, a história que antes era vista como verdade científica, passa agora à construção de uma experiência, que reconstrói uma temporalidade e a transfere em narrativa. A literatura, por sua vez, de uma simples ficção, passa a ser uma impressão da vida, que revela e insinua verdades, tornando-se capaz de reconstruir a história e dar significado aos acontecimentos por meio de representações do que poderia ter sido. Ambas trabalham com a interpretação da realidade, mas enquanto a história tem a intenção de se aproximar da verdade, a literatura não apresenta essa preocupação. Tendo em vista esse novo olhar voltado para os possíveis traços convergentes e até mesmo complementares entre história e literatura, as crônicas de Alice Vaz de Melo se constituem como importantes representações históricas na medida em que revela a complexidade de textos literários ricos em aspectos histórico-identitários sobre a formação e desenvolvimento de Ivinhema e até mesmo de Mato Grosso do Sul. 297 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Essa nova possibilidade de produção da história aproxima o trabalho histórico do fazer literário, pois as narrativas ficcionais apresentam suporte para direcionar o olhar do historiador para caminhos não percebidos em outras fontes. Por meio de fatos criados pela ficção, as narrativas literárias revelam e insinuam as verdades da representação ou do simbólico, constituem formas de pensar e de agir, registram a vida e, por isso, mostram-se como um notório e recorrente testemunho de seu tempo e podem ser analisadas como fontes documentais. Como aponta Pesavento: A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por vezes cifrada, as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma indireta, metafórica e alegoricamente. Por vezes, a coerência de sentido que o texto literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu (PESAVENTO, 2006, p. 22). A literatura não se constitui como fonte enquanto dados acontecidos, mas como representação de uma sensibilidade, como registro dos sonhos, medos, costumes individuais e coletivos, enfim, da vivência em certo momento histórico. Ela 298 ANAIS - 2013 permite pensar com mais liberdade, pensar as pistas, as possibilidades. Assim, as crônicas de Alice Vaz de Melo mostram-se como exemplo de um contexto onde as fronteiras entre o literário e o histórico perdem os seus limites. Vaz de Melo traz em suas narrativas literárias as representações do espaço, dos costumes, dos anseios da realidade de uma época. Conta os acontecimentos gerados pelo desenvolvimento de Ivinhema – uma pequena cidade do interior de Mato Grosso do Sul ainda em seus primeiros anos de emancipação – e aponta para as causas e consequências dessas transformações. São textos que apresentam um recorte histórico coletivo a partir do olhar individual de uma figura atenta ao seu tempo, preocupada com o meio social em que vive e com perspectivas de um futuro promissor. 3. Memórias do Vale do Ivinhema nas crônicas de Alice Vaz de Melo Tendo em vista a vasta produção literária de Alice Vaz de Melo, sua contribuição e importância para a formação cultural de Ivinhema e, consequentemente, de Mato Grosso do Sul, passemos a observar algumas das crônicas de Alice Vaz de Melo publicadas no jornal O Grito. O objetivo é o de perceber a participação de tais textos na formação histórica e cultural de Ivinhema através, por exemplo, da interação da autora com os leitores do jornal. Esses trabalhos se constituem também como um rico material sobre a formação e desenvolvimento da cidade de Ivinhema e, consequentemente, de Mato Grosso do Sul. 3. 1. Sobre a autora 299 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento É indispensável, para a análise das crônicas de Alice Vaz de Melo, a construção de uma breve biografia da autora a fim de contextualizar seus escritos, situá-la no tempo e no espaço para, assim, compreender a relevância de sua obra dentro da construção histórica da pequena cidade por ela retratada. Também é relevante mencionar sua vasta produção e as contribuições e importância das mesmas para a formação cultural de Ivinhema e, consequentemente, de Mato Grosso do Sul, visto que suas produções, especialmente as crônicas publicadas em O grito narram fatos ocorridos antes de um período de transição histórica para a região, isto é, o desmembramento de Mato Grosso, ocorrido em 1977, com a consequente criação do estado de Mato Grosso do Sul. P u Bu g N “O no Mato Grosso do Sul como testemunho da formação do ”: [...] alguns dos principais volumes de memórias de autores pertencentes à região foram redigidos e publicados justamente neste período, fase de transição histórica que pressupõe a compreensão e a afirmação de uma nova identidade a partir de referenciais culturais distintos daqueles existentes na porção norte do estado. É óbvio que as cenas recordadas e mesmo a redação de muitos destes capítulos dizem respeito a fatos passados antes da separação, mas, por outro lado, também é evidente que, referindo-se a episódios ocorridos em cidades, vilarejos e fazendas que viriam a fazer parte do território criado sob a designação de Mato Grosso do Sul, tais fatos, ocorridos em certo 300 ANAIS - 2013 tempo e espaço definidos, atuam como prenúncio de características culturais marcantes e servem como importante testemunho do período de formação e consolidação deste recente estado brasileiro. (BUNGART NETO, 2009, p. 112) Filha de Etelvina e Sebastião Vaz de Melo, Alice Vaz de Melo viveu no Vale do Ivinhema nos anos 60, mais precisamente no distrito de Amandina, onde atuou diretamente na formação cultural da cidade, fundada em 1964, trabalhando como professora. Seu pai, descendente de italianos, era proprietário de um armazém e o irmão viria a ser mais tarde grande proprietário de terras naquele local. Sua mãe, portuguesa de nascimento, era de tradição religiosa, o que não foi suficiente para fazer de Alice pessoa fiel às tradições e ao moralismo da época. Prova disso foi seu casamento que durou cerca de três meses e os romances que vivenciou com importantes personalidades daquele lugar, um deles retratado em seu diário Em busca da mais gelada. Até sua morte, em 1996, Alice produziu uma obra relativamente vasta para a época e até hoje desconhecida do público leitor sul-mato-grossense. Sua produção literária abarca gêneros como romance (A dama da morte, de 1968, já esgotado, e O enterro, descoberto há pouco), conto (inédito e assinados com pseudônimos, motivo que os tornaram desconhecidos até mesmo da própria família), diário (Em busca da mais gelada, com textos datados de 1962 e 1963, inéditos e incompletos, porque boa parte da obra se perdeu em um incêndio), crônicas ( ã “U Ou ” j O grito, do qual participou como colunista entre os anos de 1970 e 1971 – parte do jornal também se perdeu devido à ação do tempo, mas o restante se encontra nos arquivos da Fundação Nelito Câmara, 301 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento em Ivinhema). Além da literatura, dedicou-se à pintura (realizou trabalhos nas artes visuais, pinturas em telas de Brin, produções que se acabaram, visto que seus trabalhos eram repintados até se deteriorarem). Passemos à discussão de algumas crônicas publicadas por Alice no jornal O grito, principalmente as que discutem aspectos culturais e históricos do desenvolvimento de Ivinhema, aspectos estes ligados à vida comunitária, como a conservação dos cinemas e de outros bens públicos. 3. 2. O olhar individual de uma memória coletiva As crônicas de Alice Vaz de Melo publicadas na coluna “U u ” j O grito, de um modo geral, relatam os acontecimentos que envolvem a formação e o desenvolvimento da cidade de Ivinhema. Nelas, é possível encontrar dados que sugerem as origens dos grupos que ali se estabeleceram antes mesmo da emancipação daquele lugar quando ainda os primeiros colonos fixaram residência e as transformações por que passou a região até o momento da narração dos fatos. Descrevem também os costumes, alguns hábitos da sociedade da região à época, a paisagem e até mesmo os problemas enfrentados e as vitórias conquistadas por seus moradores. Podemos destacar como exemplo dos relatos sobre as transformações ocorridas no decorrer do tempo o texto publicado no do dia 11 de novembro de 1970, data em que se festejavam sete anos da emancipação da cidade. As comemorações do aniversário do município dão ensejo a uma inspirada crôn c qu f z u “b ç ” do que teria mudado ao longo dos sete anos de emancipação política de Ivinhema (entre novembro de 1963, data da 302 ANAIS - 2013 autonomia, e novembro de 1970, data da publicação da crônica). Vejamos como o texto se inicia: Parece que foi ontem... O ruído dos machados, o grito aflitivo das araras, a algaravia dos peões paraguaios, os ranchos junto ao Ponta Porã, a estrada para a Gleba Azul que era apenas um nome e nada mais. E quem não se lembra ainda de quando a chaminé da Serraria Piravevê se tornou um marco em meio aos troncos calcinados? Motivo de orgulho para uns e de escárnio e desgraça para outros? [...] Sete anos... Fazem sete anos que nos trouxeram notícia de sua emancipação política à 11 de novembro de 1963. E quantos não acreditaram na sua sobrevivência? Para esses é a lição viva de uma terra bendita da terra prometida! Esta crônica sobre o aniversário e emancipação da cidade relembra fatos do passado e compara Ivinhema em duas épocas diferentes: os trabalhos iniciais e após sete anos de c c c çã c uçã (“ uí ch ”) ug ( “ ch ” “ õ gu ”, ch é , c) á g questionamentos relativos não apenas ao passado e à forma como esta ocupação e desenvolvimento se deram, mas também a preocupações quanto ao presente e ao futuro de um lugar que, em sua visão, constitui“ g ” u “ ” qu , , c , é h g sugestionada pela data comemorativa, uma reflexão profunda da comunidade em relação a tudo que se podia/pode esperar da 303 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento cidade e dos habitantes, características presentes na importância dada à conservação da memória coletiva e social de Ivinhema. A sugestão de reflexão sobre o progresso da cidade é direcionada especialmente àqueles que não acreditaram no sucesso de suas atividades iniciais, como se pode notar na sequência da mesma crônica: Nós que a conhecemos sem armazéns, sem escolas, sem ônibus, sem correio, sem conforto algum, nós a saudamos hoje, como coração cheio de alegria e embevecimento, com a alma repleta do justo orgulho daqueles que a viram crescer ou que estão crescendo juntos. [...] Foram sete anos de trabalho, de luta, de esperança. E para aqueles que com seu pessimismo pretenderam abafar a nossa fé em Ivinhema, o exame de consciência, e balanço obrigatório: Ginásio, ACARMAT, cinema, cafeeiros produzindo, soja, trigais, Banco, estradas! E as glebas que eram apenas nomes e mapas que não convenciam? Elas estão aí para provar que somos o que seremos, para provar que aqui só ficam as pessoas de fibra, de coragem, de brio! A menção às conquistas de Ivinhema (Ginásio, cinema, cafeeiros, soja, Banco, etc.) aparece não apenas como evidência de que o descrédito de alguns pe qu “ b f fé” ã b u h qu qu lutaram/lutam pelo progresso da cidade, mas também como demonstração da esperança na construção de um lugar que traga orgulho àqueles que se empenham e festejam seu crescimento. O louvor aos responsáveis por essas conquistas é indício do 304 ANAIS - 2013 afeto, envolvimento e preocupação de Alice com o meio em que , ug “qu ó f c fb , c g , b ” Percebe-se também, neste trecho, a formação da população: peões paraguaios. A ideia da diversidade das origens dos colonizadores aparece também em um trecho da crônica do dia 25 de agosto do mesmo ano: Ninguém pode negar que, quase todos os moradores adultos de Ivinhema, vieram de outras cidades, outros ambientes, outras plagas... E sabe o que aconteceu com todos nós, através dos anos? Nós estamos transformando em verdadeiras ostras! Sim, podemos nos vangloriar de que estamos construindo um magnífico arquipélago. Uma ilha aqui, outra ali, etc... Aqui temos a noção de uma cidade formada por forasteiros, povos de outros lugares, de vários lugares e que, por isso, trazem costumes e experiências diferentes, formando um ambiente cultural diversificado, heterogêneo. Experiências estas que precisam ser compartilhadas e adaptadas para que a u çã ã f “ ” f ch u c ch u “ h ” u Outro exemplo desse envolvimento fica visível também na preocupação com a conservação de patrimônios e bens públicos (como quando fala, por exemplo, dos buracos das ruas), ou na crítica aos atos de vandalismos despendidos aos espaços de lazer, fato este que mostra a exata noção de Alice de que estes pertencem à memória e à história de toda a região, portanto, são bens comuns a todos os moradores, conscientes ou 305 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento não disso, como podemos observar nesta outra crônica do dia 14 de agosto de 1970: Continuando; as cadeiras do nosso cinema estão sem assento... de quem é a culpa? Dos proprietários? Não. A culpa é dos próprios ivinhemenses que, talvez tenham sangue de índio, de bugre, sei lá, pois que vantagem existe em depredar uma coisa que é nossa? E não é só no cinema não. Em toda parte se evidencia o vandalismo, uma falta de educação e escrúpulos que precisa ser corrigida: árvores decepadas, torneiras arrebentadas... é o máximo! [...] Não queremos generalizar, pois os ivinhemenses em sua maioria são pacatos e ordeiros, mas perguntamos: o que sucederá quando for inaugurado o novo cinema? Vai ser um cinema moderno, uma casa de espetáculos que poucas cidades interioranas se gabarão de ter... Teremos classe para frequentá-lo? [...] Aos proprietários e dirigentes das coisas novas, que vão surgindo em Ivinhema, a nossa sugestão: severidade, muita severidade. Que os culpados da destruição e arruaças sejam vigiados e punidos, para que aprendam a conservar e dar valor àquilo que é nosso, pois servirá como cartão de visita ao nosso querido Ivinhema, ou então jamais teremos nada limpo e novo. O texto traz consigo as inquietações de uma jovem intelectual preocupada com a preservação do seu lugar, dos bens comunitários que constituem o patrimônio histórico e que serão 306 ANAIS - 2013 heranças para as próximas gerações. As denúncias realizadas por Alice às depredações mostram, além da consciência de conservação do patrimônio já existente, o seu engajamento com as necessidades daquele povo, com o descaso de alguns, com as possibilidades de melhorias por meio da contribuição e empenho de todos. É interessante observar também como Alice considera importantes alguns aspectos diretamente voltados para a compreensão e assimilação da cultura e do desenvolvimento histórico e sócio-econômico de Ivinhema. Exemplo disso são os destaques que dá aos eventos sociais, tais como bailes dançantes e outras festividades coletivas. Outro aspecto que desperta preocupação e denúncia é o descaso com a juventude, com a falta de incentivos e apoio das pessoas para com estes que poderiam ser os provedores da vivacidade com a realização de eventos onde seriam beneficiados não apenas os jovens, mas toda a população com diversão e alegria. É o que podemos ver no texto que segue: A juventude de Ivinhema, justiça haja, sempre esteve jogada às traças, sem um plano sadio de divertimento, sem alguém que se interessasse por elas, dando-lhe um pouquinho de alegria e incentivo. Senão vejamos: alguém se lembra de mencionar u f h ; qu c c ? “Lá ã u”, “Nã á é”, fu ã ác u ”, “ ô, ã qu é c h g ”, Vocês sabem o que aconteceu na sexta feira? A juventude fez um simulacro de reunião, xingou, discutiu, discordou, concordou, tornou a discordar e a discutir... 307 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento e sabe qual foi o resultado? Duas festas boas, alegres, onde todo mundo se divertiu, cantou e dançou. Então vocês não acham que a juventude deveria se reunir mais vezes? Se for preciso brigar para que aconteçam festinhas similares, vamos discutir e brigar, minha gente! Assim provamos que a mocidade ivinhemense existe, vibra e quer aparecer, com a graça de Deus. Publicada no dia 07 de julho de 1970, esta crônica é mais um exemplo de que a autora apresenta um olhar voltado para os problemas dos diversos setores daquela pequena cidade, o que a torna uma das principais vozes e representante da escrita do município. As inquietações motivadoras que permeiam o universo de Alice é característica de sua atitude transgressora dentro de seu contexto, um mundo ainda em formação, marcado por duras rotinas de um lugar com poucos recursos onde, em especial, à mulher não era dada voz ativa. Alice foi expectadora de todos esses acontecimentos, já que se estabeleceu na região desde 1960 e fez-se ouvir, participou ativamente da história e se tornou uma figura única para a época com seus registros, denúncias, preocupação, incentivo. Foi uma figura antenada com seu tempo e que ajudou a moldar os costumes dos moradores daquela região. As crônicas de Alice são, assim, uma fonte de conhecimento, o retrato de um determinado tempo e lugar que, por meio do olhar individual da autora, capta a essência de sua época. São textos que trazem as marcas da vida de uma sociedade e os costumes da região, representam o espaço histórico da colonização e desenvolvimento de sua cidade. São, portanto, textos literários que, por meio da memória coletiva 308 ANAIS - 2013 retratada pelo ponto de vista de uma memória individual, servem de suporte/fonte aos registros históricos de uma região. 4. Considerações finais As crônicas de Alice Vaz de Melo, publicadas no jornal O grito, narram os acontecimentos históricos e os costumes do período de colonização e desenvolvimento da cidade de Ivinhema, fato este que vem comprovar que os textos literários podem ser fontes riquíssimas para o historiador, que dá acesso privilegiado a possibilidades de leitura que outras fontes não dariam. Alice, com seu olhar crítico, revela verdades e possibilidades do contexto de sua época. Seus textos expressam formas de pensar e agir, exprimem uma postura de comportamento e sensibilidade que torna possível pensar a literatura na relação com a história como um evidente testemunho de seu tempo. É notório, dentro dessas representações, o papel fundamental que a memória exerce, recurso que, mesmo embebido por impressões particulares de um acontecimento coletivo, é responsável por trazer presente os conhecimentos adquiridos previamente. Nas crônicas de Alice, a memória se destaca com mais visibilidade no texto sobre o aniversário da cidade onde a autora relembra os acontecimentos ao longo de sete anos de transformação. Em suma, a literatura pode ser utilizada, como percebemos no decorrer deste trabalho, como possibilidade de conhecimento do mundo, como configuração dos costumes, comportamentos, sonhos, angústias dos homens sempre em movimento dentro de um certo momento da história. Possibilidades estas que se deve ao fato de a literatura trazer em si o privilégio de pensar o passado e anunciar o futuro. 309 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 5. Referências bibliográficas BUNGART NETO, Paulo. O memorialismo no Mato Grosso do Sul como testemunho da formação do estado. In: SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos (Org.). Literatura e práticas culturais. Dourados: Editora UFGD, 2009, p. 111-127. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. Trad. de Beatriz Sidou. MELO, Alice Vaz de. Umas e Outras (crônicas). In: O grito. Ivinhema: 1970-1971. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e Literatura: uma velhanova história. In: COSTA, Cléria Botelho & MACHADO, Maria Clara Tomaz (org). História e Literatura: identidades e fronteiras. Uberlândia: EDUFU, 2006, p.11-27. SOUZA, Tânia Regina de. A infância do velho Graciliano: Memórias em letras de forma. Florianópolis: Editora da UFSC, 2001. ZILBERMAN, Regina. Práticas narrativas, oralidade e memória. In: TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato et al. Sobre as poéticas do dizer. São Paulo: Letras e Voz, 2010, p. 28-41. 310 ANAIS - 2013 Aspectos sociolinguísticos das vogais médias no português falado numa escola de fronteira BrasilParaguai Márcio Palácios de CARVALHO 1 Elza Sabino da Silva BUENO 2 Resumo: O estudo apresenta informações iniciais acerca da influência e situação de contato linguístico numa escola municipal localizada na cidade de Bela Vista-MS, no texto aborda o uso das vogais médias [e] e [o] da língua portuguesa nas posições pretônicas, tônicas e postônicas e verifica-se também se os fenômenos relacionados às vogais médias atingem as zonas fronteiriças do Estado de Mato Grosso do Sul. Já que pesquisas sociolinguísticas realizadas em outras regiões fronteiriças do país apontam que os processos de harmonização vocálica no caso das pretônicas, a abertura do timbre nas vogais tônicas e o processo de alçamento das vogais postônicas finais e não finais tendem a manter um padrão mais conservador, devido a fatores linguísticos, extralinguísticos e geográficos. Ainda, abordando o espaço fronteiriço, pelo viés da Sociolinguística Variacionista, constata-se se há interferência fonético-morfológica na modalidade oral da língua portuguesa falada na localidade pesquisada. Para tanto, utiliza-se como aporte teórico pesquisadores como: Tarallo (2007); Labov (2008); Câmara Jr (1991-2008) entre outros. Palavras-chave: Contato linguístico; Português falado e bilinguismo. 1 . Graduado em Letras habilitação Português/Espanhol pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. M (Campus de Dourados). Atualmente é Mestrando em Letras pela mesma instituição, na Unidade Universitária de Campo Grande – MS, bolsista da CAPES. 2 . Doutora em Letras pela UNESP/ASSIS - Docente da Graduação e da PósGraduação em Letras na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da UEMS e Pesquisadora da FUNDECT. 311 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Introdução O presente texto discute uma situação de influência e contato linguístico entre as línguas portuguesa, espanhola e guarani que são faladas em uma escola pública localizada no município de Bela Vista-MS a 342 quilômetros de Campo Grande, capital do Estado de Mato Grosso do Sul. Nessa comunidade escolar os alunos utilizam as línguas espanhola e guarani para se comunicar, principalmente, nos momentos informais, o mesmo acontece na entrada e saída do turno escolar, quando os país ou responsáveis pelos alunos vão levá-los ou buscá-los. Há nessas ocasiões a preferência pelas línguas faladas no Paraguai, isso acontece porque muitos dos estudantes que frequentam a escola moram no Paraguai. Além da forte influência do Paraguai na cidade. As cidades fronteiriças de Bela Vista- MS e Bella Vista Norte-PY são dependentes uma da outra. Na parte comercial muitos brasileiros vão ao Paraguai fazer compras ou morar, visto que nesse país o custo de vida é mais baixo. Por outro lado, muitos paraguaios vêm ao Brasil para trabalhar ou estudar, assim as populações de ambas as nações transitam livremente de um lado para o outro, o que torna o espaço uma zona de interpenetração de costumes, culturas e línguas. Levando em conta o espaço geográfico onde a comunicação oral acontece, o texto analisa o comportamento das vogais médias [e] e [o] nas posições que pode ocupar na palavra, a saber; pretônica, tônica e postônica, com isso pretende-se saber se os processos linguísticos de harmonização e redução vocálica para as vogais pretônicas, a abertura ou não do timbre tônico e o alçamento das vogais postônicas finais e não finais possuem o mesmo comportamento encontrado em outras regiões não fronteiriças do país. 312 ANAIS - 2013 Na fronteira, a inevitável correlação entre línguas, sociedades e culturas tornam-se mais evidentes na linguagem exteriorizada pelos falantes. Para exemplificar, a língua falada nesse espaço sociolinguísticamente complexo, o texto também fará um breve levantamento de alguns itens lexicais que foram encontrados na comunidade fronteiriça de Bela Vista-MS com o intuito mostrar algumas interferências do espanhol e do guarani no português local e como estes influenciam no comportamento das vogais médias. A escola é um ambiente onde se preza a modalidade elegida como padrão da língua, no entanto, ela não está num espaço isolado, mas inserida dentro de uma comunidade culturalmente diversificada por isso, suas práticas têm que ser repensadas de modo a oferecer aos alunos um ensino padrão, sem se eximir do fato de estar num contexto peculiar. As interferências de outras línguas na escola não devem ser camufladas, já que por traz de cada forma de expressão há um indivíduo que possui uma história que é exteriorizada por meio da sua linguagem. A nosso ver, as escolas que se encontram em ambientes fronteiriços têm que ter o conhecimento das línguas e dos fenômenos linguísticos em seus ambientes para melhor compreender os pontos que precisam ser trabalhos com mais ênfase, a fim de que seja dada a possibilidade para os alunos fronteiriços competirem em pé de igualdade com os demais indivíduos na vida adulta, BortoniRicardo (2004). Diante desse cenário, o modelo teórico-metodológico utilizado no texto centra-se no trabalho empírico à luz da Teoria da Variação Linguística ou Sociolinguística Variacionista. Essa linha de pesquisa não faz qualquer julgamento social de superioridade ou inferioridade entre as línguas, pois todas 313 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento cumprem o papel de servir de meio de comunicação entre os indivíduos. Para exemplificar o linguajar fronteiriço incorporado na escola estudada, o texto mostra os principais fatores que favorecem e os que inibem a manutenção de outras línguas na fala local, assim como a incorporação de léxicos hispânicos e guarani e as alterações fonéticas no português falado nesse local. Ressalta-se que este estudo não tem a pretensão de abordar todos os aspectos linguísticos presentes no linguajar da escola de fronteiriça, mas analisa os aspectos semânticos e fonéticos a partir de dez entrevistas realizadas in loco. Dessa forma, apresenta uma contribuição para a descrição e entendimento do falar nas fronteiras que delimitam o Brasil e o Paraguai, em especial, o espaço fronteiriço entre as cidades de Bela Vista-MS e Bella Vista Norte-PY. Pressupostos teórico-metodológicos De acordo com Santos (2009) toda pesquisa segue, pelo menos, uma teoria científica, uma vez que para cada teoria existem procedimentos metodológicos adequados a serem seguidos em busca de resultados mais fidedignos possíveis. Para analisar os resultados obtidos nesse texto foi adotado o procedimento de pesquisa in loco seguindo os pressupostos metodológicos da Sociolinguística Variacionista, cuja intenção é mostrar o comportamento das vogais médias. Para Monteiro (2000, p. 83), a linha de pesquisa da sociolinguística parte do pressuposto de que a heterogeneidade manifestada na fala pode ser analisada de forma coerente. Para tanto, o pesquisador deve ser o mais fiel possível na transcrição dos dados coletados no trabalho de campo, já que esse será o material submetido à análise qualitativa e quantitativa. 314 ANAIS - 2013 Para demonstrar como se manifesta as vogais médias na localidade estudada, foram entrevistados 10 informantes sendo, 5 do gênero feminino e 5 do gênero masculino, estudantes do 6º ano da escola municipal Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, localizada perto da fronteira com a cidade de BellaVista no lado Paraguai. A gravação das entrevistas foi do tipo DID (Diálogo entre Informante e Documentado). Esse método de entrevista tem o intuito levar o informante a relatar experiências vividas, através de narrativas pessoais, fazendo com o informante volte no tempo e reviva o acontecimento que está sendo narrado, assim o lado emocional se intensifica de tal ponto que ele se esqueça de monitorar seu próprio discurso, Tarallo (2007). Em relação ao gênero, Paiva (2004) comenta que várias pesquisas na área da sociolinguista aponta que, em geral, o gênero masculino se destaca na utilização de formas inovadoras, enquanto o gênero feminino tende a manter um padrão mais próximo do padrão escrito da língua. Essa diferença na utilização da linguagem de certa forma está relacionada ao papel social desempenhado por homens e mulheres no dia a dia. Parece mais natural admitir na sociedade atual que determinadas palavras situam-se melhor na boca de um homem do que na boca de uma mulher, Paiva (2004). Ao selecionar o mesmo número de informantes do gênero feminino e masculino para esse estudo pretende-se verificar se o gênero masculino é mais propenso às inovações como apontam as pesquisas variacionistas ou, se no caso das regiões de fronteira, o gênero exerce pouca influência na utilização das vogais médias [e] e [o] e no uso dos léxicos oriundos de outras línguas. A opção de trabalhar, nesse momento, com apenas uma turma do 6º ano da escola pesquisada, foi pelo fato de que eles 315 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento preservam os hábitos linguísticos de seus familiares, visto que essa é uma fase da vida que eles ainda são muito dependentes da ajuda dos pais. A próxima seção destina-se ao estudo dos aspectos fonológico-fonéticos das vogais [e] e [o] tanto na língua portuguesa como na língua espanhola, essa abordagem se faz necessária para compreender como esses fonemas são realizados uguê f c ‘‘ P é u c ’’ Comparação dos aspectos fonético-fonológicos das vogais médias no Português e no Espanhol Os sons da fala são os primeiros aspectos que chamam atenção quando se depara com uma língua qualquer, ou mesmo, numa variedade de um mesmo idioma, há peculiaridades que fazem com que alguns falares pareçam mais cantados do que a nossa língua ou nosso dialeto. No Brasil existem algumas marcas linguísticas que c c z u gã , x , ‘‘ ’’ f x u regiões interioranas de São Paulo, Paraná e Minas Gerais, vulgo ‘‘ c ’’ u ú c ‘‘ ’’ ch c c E, no caso de outras línguas, podem- c ‘‘th’’ do inglês Americano como em thing ‘‘r’’ b ú E h c ‘‘ropero’’. O ramo da linguística que estuda os aspectos sonoros da linguagem é contemplado por duas disciplinas: a fonética e a fonologia. De acordo com Câmara Jr (2008 p. 14) o que distingue uma e outra disciplina é o recorte metodológico empregado, a fonologia é usada para os estudos dos sons e da elocução de uma determinada língua, enquanto a fonética é entendida como a ciência geral dos sons da fala. 316 ANAIS - 2013 Desenvolvendo a passagem de Câmara Jr, a fonética estuda os aspectos sonoros de uma determinada língua, por x , ‘‘ ’’ f gã f ç é possível encontrar diversas variantes desse fon x : ‘‘ ’’ f x b u M , ‘‘ɾ’’ b múltiplo influenciado pela língua espanhola na região de fronteira e a tendê c g ‘‘ø’’ em finais de palavras no infinitivo como já constatou pesquisadores como Bueno (2009). No caso das vogais na língua oral, têm-se sete vogais/fonemas vocálicos que estão distribuídos em anterior baixa /a/, anterior média de 1º grau /é/, anterior média baixa de 2º grau /ê/, anterior alta /i/, posterior média de 1º grau arredondada /ó/, posterior média de 2º grau arredondada /ô/, posterior alta arredondada /u/, Câmara Jr (1991 p. 23). O que nos chama a atenção neste estudo é o comportamento das vogais médias [e] e [o] no português falado na escola Perpétuo Socorro, localizada na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. A figura abaixo ilustra as variantes da vogal média [e] e as possíveis formas de realizações dessas vogais na língua portuguesa. Figura-1 aparelho fonador No uso espontâneo, as vogais médias [e] e [o] em português podem assumir diferentes variantes, de acordo com a 317 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento posição átona da palavra. Na posição pretônica é comum ocorrer uma harmonização vocálica onde os fonemas [e] e [o] ã z c [ ] [u] x: [ ’ ] [bu’ u], processo tende a acontecer sempre que a tônica for uma vogal alta [i] ou [u]. Em relação às vogais pretônicas médias, Bagno (2006 p. 98) comenta que a harmonização vocálica dá à língua portuguesa certa musicalidade, uma variedade sonora que só ela tem, e que é muito difícil de ser percebida e aprendida por um estrangeiro. Na região pesquisada espera-se que haja uma inibição desse processo linguístico, pois muitos alunos que estudam na escola tem o português como segunda língua. Quando as vogais médias [e] e [o] se encontram na sílaba tônica têm-se as variantes abertas [é] e [ɔ] : [‘ ɛrolə] e [ɛ ’cɔla], no que se refere às vogais em posição postônica, Câmara JR (1996) sustenta a ideia de ocorrência do processo de neutralização das vogais médias e suas variantes, o que reduz o sistema vocálico do português brasileiro, em outras palavras, as vogais médias tornam-se vogais altas [i] e [u] sendo realizadas como gent[i] e menin[u]. Opondo-se a ideia de Câmara Jr, Silva (2009) diz que os trabalhos realizados no Rio Grande do sul revelam que nas comunidades de fronteiras e de colonização italiana e alemã há uma tendência de preservação das vogais médias em posição postônicas, a autora argumenta que a regra de neutralização que reduz o sistema vocálico para três vogais na posição postônica final estaria em seu estágio inicial nessas comunidades. Nas fronteiras entre Brasil e Paraguai, em especial no Estado de Mato Grosso do sul, o uso das vogais médias ainda não foi devidamente estudado. Contudo, as amostras coletadas na localidade fronteiriça de Bela Vista-MS indicam uma 318 ANAIS - 2013 resistência no processo de alçamento das vogais postônicas finais. Isso se deve pela influência do sistema vocálico espanhol que possui cinco vogais todas orais, o português, por sua vez, possui doze vogais tônicas, sete orais e cinco nasais. No espanhol as vogais [e] e [o] são fechadas, o que é imprescindível para sua pronúncia, Braz (2008). Veja o quadro a seguir: Fonologia Fonema /i/ /e/ /a/ /o/ /u/ Fonética Sons i-fechado i-aberto i-nasalizado isem consonântico i-consonântico e- fechado e-aberto e-nasalizado a-meio palatal a-velar ã-nasalizado o-fechado o-aberto o-nasalizado u-fechado u-aberto u-nasalizado w-semiconsonante u-semivocal Ortografia Letras i, y i i i i, y E /a/ O U U, ü, w U Exemplos Pisa, y, Candido Vil, victor virgen, hijo Mimo, himno Nieve, viene Baile, voy, rey Mesa, cesse Reja, perro, acelga Heno, menos Casa, paradero Alto, rato, barro, ajo Año, maño Sobre, zozobrar Ojo, rojo, horror, Olga Once, mono Que, guitarra Puro subir Muge,rudo, zurra, ultra Uno inmune Igual, argüir, Williams Quadro-1 sistema vocálico do espanhol 319 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento O quadro vocálico do espanhol revela que as cinco vogais não se alteram independe da posição que estiver diferentemente do português cujo quadro das vogais depende da tonicidade. A esse respeito Câmara JR (1996, p.39) comenta que: Em referência às vogais, a realidade da língua oral é muito mais complexa do que dá a entender o uso aparentemente simples e regular das cinco letras latinas vogais na escrita. O que há são 7 fonemas vocálicos multiplicados em muitos alofones. Os falantes de língua espanhola têm, em regra, dificuldade de entender o português falado, apesar da grande semelhança entre as duas línguas, por causa dessa complexidade em contraste com a relativa simplicidade e consistência do sistema vocálico espanhol. Portugueses e brasileiros, ao contrário, acompanham razoavelmente bem o espanhol falado, porque se defrontam com um jogo de timbres vocálicos menor e menos variável que o seu próprio. Diante dessa complexidade, a pesquisa de campo mostra o uso das vogais médias [e] e [o] na região, assim contribuir para a descrição do falar fronteiriço, em especial, na escola P éu c ’’, qu u u ú x u paraguaios ou. O quadro a seguir mostra as principais variantes em concorrência nas vogais médias [e] e [o] no português falado no Brasil. 320 ANAIS - 2013 Indicadores Variação nas vogais Médias [e] e [o] Transcrição Fonética 1. Alçamento da vogal Pretônica 2. Manutenção da vogal Pretônica 3. Abertura do timbre tônico 4. Fechamento do timbre Tônico 5. Alçamento da vogal Postônica 6. Manutenção da vogal Postônica final Segunda [‘ gu ] Segunda [‘ ] gu Escola [ ’kᴐla] Escola [ ’kôla] Posso [‘ ᴐsu] Posso [‘ ô so] Quadro-2 principais variações linguísticas que ocorrem nas vogais médias [e] e [o]. As vogais médias [e] e [o] podem sofrer os seguintes processos; nas pretônicas as pesquisas variacionistas indicam que pode ocorre o processo de harmonização ou redução vocálica, onde as vogais médias [e] e [o] tendem a serem realizadas como [i] e [u], no caso das tônicas as vogais médias [e] e [o] são pronunciadas com o timbre aberto [é] e [ó], e nas postônicas também tendem a sofre um processo de alçamento, realizando como vogais médias altas [i] e [u]. Por ser tratar de uma localização de fronteiriça, abre-se um espaço na próxima seção para apresentar algumas interferências da língua espanhola e da língua guarani no português oral falado na cidade selecionada para o estudo, às variações podem atingem os planos; fonético-fonológico, semântico e lexical. 321 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento As influências lexicais do Espanhol e do Guarani no Português Para a linguagem empregada na comunidade escolar fronteiriça de Bela Vista-MS elegeu-se um recorte sincrônico das variáveis escolaridade e gênero do falante que frequentam o 6º Ec ‘‘P é u c ’’, u temas, vários trabalhos poderiam ser feitos nessa comunidade, onde se percebem variações na forma de pronunciar os sons, alterações nas construções sintáticas e no uso do vocabulário. Já que numa região de fronteira, as variáveis linguísticas ultrapassam até mesmo as fronteiras políticas, Camacho (1989, p.3). No entanto, o texto estuda o uso das vogais médias e a utilização de outros itens lexicais que são usados na região, assim verifica a interferência do Espanhol e do Guarani através da análise de entrevistas realizadas na localidade escolar. Tais interferências são inevitáveis em qualquer contexto em que há presença de duas ou mais línguas, já que as línguas nascem da necessidade de intercâmbio entre os indivíduos, Souza (2009, p. 126). Dessa forma, instala-se nas regiões de fronteiriças desse E ‘‘ u h ’’, u c P uguê Espanhol, essa linguagem é o resultado do ir e vir das pessoas de ambos os lados da fronteira que fazem com que a cultura, os costumes e a língua recebam interferências criadas no encontro de limites de nações distintas. Souza (2009) por sua vez, argumenta que a terminologia ‘‘ u h ’’ ã uz c c ã éc gu que se desenvolve confortavelmente e a passos largos nas fronteiras que delimitam Brasil e Paraguai. Ainda citando a 322 ANAIS - 2013 autora, ao se referir à região de Bela Vista-MS e Bella Vista-PY comenta que: Esse fenômeno encontra explicação não só pela proximidade entre as duas cidades, mas, sobretudo, pela nova composição territorial que, com a guerra com o Paraguai, ocorreu naquela fronteira, quando significativas extensões de terras paraguaias foram incluídas ao território brasileiro. Assim, enquanto além da fronteira se mantém o espanhol e o guarani, com fidelidade, do lado de cá, a herança linguística dos paraguaios foi sendo fortemente incorporada pelos brasileiros. O verbo sampar (do espanhol zampar), cujo sentido é arremessar, atirar com força, é de uso corrente na fronteira de Bela Vista: o belavistense sampa uma pedra ou um tapa. Nessa cidade não existem tempestades, mas tormentas e a sala de jantar é o comedor. É comum se ouvir expressões do tipo, a cobra picou pra ele, significando que a cobra o picou. E as expressões e gírias do dia a dia são ditas sempre em guarani, como caraí (no ug “ u” fu ) cu hã ã ( lugar de moça bonita) Por ter nascida e criada na cidade de Bela Vista-MS, a autora contribui com algumas expressões típicas dessa região, o intercâmbio das pessoas que moram nas duas cidades é tão forte que alguns léxicos do espanhol e do guarani foram incorporados à fala local e são utilizados pelos falantes de ambos os lados da fronteira, como citou Souza. 323 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Como contextualização do espaço onde os dados foram coletados, tem-se na literatura regional um vasto exemplo, registrados em livros de literatura e revistas da área de Letras falando sobre o contexto de trilinguismo que impera na região das fronteiras de Mato Grosso do Sul. O memorialista Sul-matogrossense Hélio Serejo, registrou a vida nos ervais durante os fins do século XIX e início do século XX, em suas obras é possível encontrar expressões como: Urutau, uma espécie de ave noturna de rapina; changá-y que em guarani significa ladrão; Caá-Yarí uma espécie da protetora dos ervais e Ivapareha, mensageira celestial que acalma os revoltados, Souza (2009, p. 134). Em entrevista concedida a Teno (2003) Hélio Serejo esclarece que, nas caminhadas com seu pai pelos ervais, levava c g ‘‘c ’’, qu g u qu u observava. Suas anotações revelam a riqueza não só da região de fronteira, mas de outras localidades geográficas desse Estado, assim temos na palavra Caá, que significa erva-mate, e rapó raiz etimológica que traduz o nome do município de Caarapó para ‘‘ z ’’ b -se com isso a incorporação de termos da Língua Guarani presentes em nomes de rios, cidades e ruas, entre outros. Na próxima seção, analisam-se os dados coletados com os informantes da comunidade escolar, verificando quais variantes estão em concorrência na escola Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e apresentam-se alguns léxicos oriundos do Espanhol e do Guarani coletados através de entrevista com os dez alunos que frequentam a escola. Análise e discussão dos dados 324 ANAIS - 2013 Esta parte destina-se à análise e discussão da amostra c c ‘‘N h P éu c ’’ c a intenção de verificar as variáveis linguísticas que estão em disputa nessa comunidade fronteiriça e qual delas tende a sobressair, bem como o gênero que é mais propenso ao uso das formas em destaque, na região pesquisada. O quadro-3 mostra o uso das vogais médias pretônicas [e] e [o] no português falado na escolar pesquisada e os principais fenômenos linguísticos presentes na amostragem coletada, utilizando o método de pesquisa DID (Diálogo entre Informante e Documentador), dentro da perspectiva da Teoria da Mudança e Variação. Variáveis em concorrência Vogal [e] e [o] para média [i] e [u] Pretônica 23,36% [e] e [o] 76,64% Quadro-03 Variação versus manutenção das vogais médias pretônicas. Após a análise estatística dos fenômenos linguísticos encontrados na fala dos alunos selecionados, obtiveram-se alguns porcentuais que revelam o uso das vogais médias no português fronteiriço que não corrobora com os principais fenômenos linguísticos, encontrados em outras regiões não fronteiriças de MS. Na amostra coletada, as vogais médias pretônicas obtiveram-se os seguintes percentuais: 23,36% para o processo linguístico de alçamento contra 76,64% para a manutenção das 325 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento vogais médias pretônicas. Com isso, constata-se que às vogais pretônicas são mais resistentes à regra da harmonização vocálica. Onde no restante do Estado há um favorecimento das f ‘‘ gu ’’ ‘‘bu u’’ c c u qu Oliveira (2009). A mesma inibição foi observada em relação ao processo linguístico de redução vocálica, o fato de muitas palavras não possuir a tonicidade mais comum na língua portuguesa inibi tal processo, nos dados analisados não ocorreu nenhuma forma c , x , ‘‘bu é’’ u ‘‘bu éc ’’, b é boneca. Diante do quadro-3, conclui-se que a preservação nas pretônicas ocorre pela não abertura do timbre tônico da palavra o que é bastante comum no quadro vocálico da língua espanhola, onde o processo de variação de vogal média [e] e [o] para alta [i] e [u] não acontece. O próximo quadro mostra o comportamento das vogais médias tônicas no português falado na escola pesquisada. Variáveis em concorrência Vogal Média Tônica Abertura do Fechamento do timbre [é] e [ó] timbre [ê] e [ô] 30,77% 69,23% Quadro-04 Variação versus manutenção das vogais médias tônicas Em relação às vogais médias tônicas a amostra apresentou os seguintes percentuais: para a abertura do timbre p. ex.: [ɛ] e [ᴐ] o resultado encontrado foi de 30,77%, contrastando com 69,23 % para o fechamento do timbre p. ex.: [ê] e [ô], percebe-se que as vogais em posição tônica tende a manter-se com o timbre fechado: 326 ANAIS - 2013 Com o timbre fechado. - m[ô]to - Mandi[ô]ca -Am[ê]rica -c[ô]rto3 Ao invés de: - m[ó]to - Mandi[ó]ca -Am[é]rica -c[u]rto Constata-se que tais pronúncias se aproximam mais da Língua Espanhola do que do Português, esse dado vem ao encontro da afirmação feita por Souza (2009), quando diz que a fala dos Belavistenses possui muitos elementos do espanhol e do guarani. O próximo quadro analisa a vogal média [e] e [o] na posição postônica final com base, na coleta de uma amostra de dez entrevistas transcritas usando o modelo desenvolvido pelo projeto NURC (Norma urbana Culta) com adaptações para a linguagem popular, a característica principal desse modelo é transcrever exatamente como a palavra é pronunciada, assim foi possível observar o comportamento das vogais médias em posição postônicas . Variáveis em concorrência Vogal Média Postônica [e] e [o] para [i] e [u] 40,97 % [e] e [o] 59,03% Quadro-05 Variação versus manutenção das vogais médias postônicas Com base no quadro-5, observa-se que na localidade pesquisada há uma tendência, ainda que não tão significativa, 3 f 327 ‘‘cu í gu ’’ h ‘‘c uguê ’’ f u z Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento em relação aos percentuais dos quadros 3 e 4, de preservação das vogais [e] e [o] postônicas. A realização dessas vogais foi de 40,97% para elevação de [-] médias para altas [+], e de 59,03% para a manutenção. As vogais pretônicas apresentaram índices mais próximos entre as formas de alçamento versus preservação das vogais médias átonas finais. A esse respeito Câmara JR (2008, p.58) comenta que basta a ausência da tonicidade para ter a neutralização da vogal em oposição átona, ou seja, as variantes [e]; [è] e [ɛ] assim como as [o], [ᴐ] sofrem um processo de neutralização realizado como uma única variante alta [i] para [e] e [u] para [o]. No entanto, o resultado da amostra revela que na fronteira existe uma tendência à manutenção das formas átonas finais [e] [o], a mesma conclusão chegou Silva (2009) ao confirma que em comunidades fronteiriças e de descendência germânica predomina a conservação das postônicas. De acordo com Bisol (2009), as pesquisas sobre a variação nas postônicas mostram que o fator geográfico manifesta-se como determinante na manutenção das vogais postônicas finais. Isso explica o fato de a regra da neutralização ainda se encontrar no falar da região Sul em vias de implementação. No caso da localidade em estudo, observa-se a mesma conservação das postônicas finais, o mesmo resultado foi encontrado nas regiões fronteiriças do Sul do Brasil. Contudo, no espaço geográfico pesquisado, a análise das entrevistas revelou peculiaridades como: as vogais não finais de /ando/, /endo/ sofrem um processo de desnasalação, e são pronunciadas como a intensidade típica da língua esp h x : ‘‘ cantando’’ ‘‘ c endo, nesse caso, são menos propensas ao processo de alçamento. 328 ANAIS - 2013 Observando as análises das entrevistas, percebe-se que quando a consoante bilabial /m/ estiver seguida de vogal média, o processo de alçamento tende a não ocorrer. Agora, se for uma consoante palatal /ɲ/ ou a uvular /N/ o processo de alçamento é mais propenso. O próximo quadro analisa o resultado das variações em relação ao fator extralinguístico gênero do falante. Indicadores Masculino Feminino 1. Alçamento da vogal Pretônica 2. Manutenção da vogal Pretônica 3. Abertura do timbre tônico 4. Fechamento do timbre Tônico 5. Alçamento da vogal Postônica 6. Manutenção da vogal Postônica Total de vogais analisadas 22 30 108 68 17 34 64 51 172 171 300 194 683 548 Total de Ocorrência 52 ou 22,80% 176 ou 77,20% 51ou 30,72% 115 ou 69,28% 343 ou 40, 97% 494 ou 59,03% 1231 Quadro-06 Variação versus manutenção das vogais médias postônicas. Diante desse último quadro tem-se um breve panorama das principais variações que ocorrem na locada pesquisa e como se manifestam na fala oral pelos informantes dos gêneros 329 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento masculino e feminino. Conforme os dados coletados, na região de fronteira há uma tendência de manutenção dos principais fatores linguísticos. Os dados revelaram que em relação às vogais médias pretônicas que ambos os gêneros tendem a não realizar os processos de harmonização e redução vocálica, tão comum em outras localidades do país. Em relação às vogais tônicas, o número de palavras com o timbre fechado foi maior do que as de timbre aberto 69,28% e 30,72%, sendo que o gênero masculino manteve o timbre sem o processo de abertura em 64 palavras/vogais contra 51 palavras vogais do feminino. Já nas vogais postônicas o uso foi mais equilibrado, porém os dados nos revela um dado importante, o gênero masculino prefere não realizar o processo de alçamento nas vogais finais das 494 palavras-vogais eles não fizeram a abertura em 300 palavras, no caso do gênero feminino o uso foi menos acentuado, no entanto, em geral percebe-se que na escola estudada há uma preservação das vogais finais. Diferentemente da afirmação de Câmara JR (1996) que defendia o processo de neutralização nas vogais finais. E corrobora com outras pesquisas realizadas no Sul do país pelas autoras Bisol (2009) e Silva (2009) que defendem a tese de que nas fronteiras há uma resistência de alçamento das postônicas. Em relação aos itens lexicais encontrados na localidade escolar, notou-se que muitas palavras sofreram modificações na fonética influenciada pelo contato linguístico entre as línguas presentes na região estudada. Nesse cenário, algumas palavras que normalmente têm o som aberto na sílaba tônica, são realizadas com o som fechado aproximando-se do sistema vocálico da língua espanhola. Como se pode observar nas gu : ‘‘ gô ’’, ‘‘bô î ’’ ‘‘b êc ’’ 330 ANAIS - 2013 Percebe-se nitidamente a preservação das vogais médias [e] e [o] tão comum na língua espanhola. Em outras regiões do país a tendência é que essas palavras sejam pronunciadas com o timbre aberto. Daí a necessidade de conhecer os vários falares brasileiros para realmente estudar a língua portuguesa e suas variedades linguísticas. Na listagem a seguir é possível observar a presença do espanhol no português falado na escola Perpetuo Socorro. 1. (AG-M-11) eu nun vi tinha um montón de aluno lá rondeando lá. 2. (BAC-M-12)já fui dos vezes alla:: é bônito tem todo dia tem carro passando 3. (LMS-F-12) celular aqui tatrecento i pocola você compra por noventa Na linguagem oral, os alunos utilizam algumas palavras do espanhol durante a comunicação verbal, isso ocorre pela proximidade entre as duas línguas seja evidente é na fala que se percebe essa interferência provocada pela mudança de entoação. Na escola, os alunos preferem utilizar palavras como ‘‘redear’’ ‘‘dar volta’’ x : ‘‘ f c u ’’ u é ‘‘f c u ’’ N gu x listagem, observa-se a presença dos léxicos da língua espanhola ‘‘ ’’ qu g f c ‘‘ ’’ ‘‘ ’’ qu g f c ‘‘ á’’ português. No exemplo 3 temu ‘‘trecento’’ em h ub ‘‘poco’’da língua espanhola. Considerações finais Utilizando a metodologia da Teoria da Mudança e Variação linguística foram analisada dez entrevistas realizadas 331 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento na Escola Municipal Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no município de Bela Vista-MS. Por meio da abordagem sociointeracionista foram abordados temas sobre o cotidiano local, assim pode-se colher dados linguísticos que revelaram o comportamento das vogais pretônicas [e] e [o] nas posições pretônica, tônica e postônicas, bem como algumas características do falar local. Em relação às vogais médias da língua portuguesa foram trabalhadas as hipóteses de que se nas zonas fronteiriças entre Brasil e Paraguai, especialmente, no espaço entre as cidades de Bela Vista-MS e Bella vista-PY acorre os mesmos fenômenos linguísticos referentes às vogais médias da língua portuguesa ou se há fatores que desfavoreça tais fenômenos de se manifestarem na língua oral. Aproveitou-se o corpus coletado na cidade para verificar a presença de outras línguas em contato com o português falado u c ‘‘P é u c ’’ resquícios de outras línguas exercem algum tipo de influência nos processos linguísticos que normalmente ocorrem com as vogais. Em relação às vogais pretônicas, a amostra coletada na escola revelou que há uma tendência de preservação das vogais médias [e] e [o] com porcentagens bastante expressivas, 76,64% da amostra referente à posição pretônica sofreu alteração contra 23,36% que apresentou o processo de harmonização ou de redução vocálica. Com isso, conclui-se que tais processos ainda estão em estágio inicial na localidade. Na posição de tônica da palavra, foi possível perceber que as vogais médias [e] e [o] tendem a ser realizadas com o timbre fechado, na localidade pesquisada é mais comum ouvir a variante mandi[ô]ca ao invés de mandi[ó]ca o mesmo passa com m[ô]to e m[ó]to. Os índices ficaram assim: 69,23% para o 332 ANAIS - 2013 fechamento do timbre e de 30,77% para abertura da vogal tônica. Apesar de ser um estudo inicial sobre as vogais nessa localidade, os resultados mostrou que o alçamento tende a ocorrer quando o informante pronuncia a vogal tônica de forma aberta. Foram poucas as situações em que os informantes utilizaram as formas [bunîto] com a vogal fechada. É mais propensa a harmonização ou a redução quando a vogal média tônica é pronunciada com a abertura do timbre. Já nas postônica os resultados revelaram uma diferença menos acentuada em relação às pretônicas e as tônicas. No entanto, houve um favorecimento da conversação das vogais finais [e] e [o], com isso é possível concluir que afirmação feita Câmara Jr (1996) de que ocorre uma neutralização nas variantes das vogais médias realizando se somente vogais altas [i] e [u] ainda não atingiu a região pesquisada. A mesma conclusão chegaram Bisol (2009) e Silva (2009) no português falado no Sul do país. Notou-se também que as vogais postônicas são propensas ao alçamento quando a consoante que acompanha a vogal média final for uma palatal /n/, quando for uma bilabial /m/ a probabilidade de alçamento diminui. Por estar num espaço fronteiriço, apareceram algumas influências do guarani e do espanhol na fala local, o que não é novidade, seria anormal se isso não ocorresse, já que há um forte intercambio cultural nesse espaço as vogais da língua espanhola manifestam-se no português através da modificação da entoação das palavras, assim as terminações em /ando/ como falando e cantando e /endo/ como em fazendo e correndo, sofrem um processo de desnasalização na penúltima vogal sendo realizadas como; falándo, cantándo, fazéndo e corréndo o que 333 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento diminui as chances de alçamento já que na fonética espanhola tal processo não se realiza. A interferência do espanhol e do guarani não se restringe apenas à fonética, mas também à semântica, estrutura e ao léx c , c u c ‘‘y-rá’’ b ‘‘karú’’ c , u h ‘‘ u pregunté’’ ‘‘ u perguntei’’ ou com estrutura h c ‘‘ em P gu ’’ é no P gu ’’ c utros léxicos mais típicos do país vizinho como os verbos rodear, bailar mais comumente usados na fala hispânica. Enfim, ainda que os dados precisem ser trabalhados com mais detalhes, o texto contribui para a descrição linguística das regiões de fronteiras do Estado do mato Grosso do Sul e de outras fronteiras que queiram entender melhor o falar fronteiriço. Referências BISOL, Leda e COLLISCHOM, Gisela (Orgs). Português do sul do Brasil: variação fonológica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. BRAZ et alii. A fonética no processo de ensino e aprendizagem da língua espanhola. In: Anais do 7º seminário de pesquisa em ciências humanas. Londrina Pr: Eduel, 2008 artigo disponível em <<http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/anais_capa.htm> > acesso em 05/07/12. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna - a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. 334 ANAIS - 2013 BUENO, Elza Sabino da Silva e SAMPAIO, Emílio Davi (Orgs.). Estudos da linguagem e de literatura - um olhar para o lato sensu. 1ª. ed. Dourados-MS: Editora UEMS, 2009. CAMACHO, Roberto G. A variação linguística. Em Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o 1º e 2º graus. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação / SP, 1988. V.I. CÂMARA JR, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 28º ed. Petrópolis – RJ: Vozes, 1996. __________. Problemas de linguística descritiva. 14º ed. Petrópolis – RJ: Vozes, 1991. __________. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Petrópolis – RJ: Vozes, 2008. LABOV, William et alii. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008. MONTEIRO, José Lemos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000. Para compreender Labov. OLIVEIRA, Beatrice Graciella Azevedo Motta de, A linguagem em Paranhos: Aspectos Sociolinguísticos. Três Lagoas – MS: UFMS, 2009. (tese de Mestrado) PAIVA, Maria da Conceição. Sexo. In: MOLLICA, Maria Cecília e BRAGA, Maria Luisa (orgs.). Introdução à sociolinguística – o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2004. SANTOS, Renata Lívia de Araújo. A metodologia da pesquisa em sociolinguística variacionista. Revista Espaço Acadêmico, nº 97, junho de 2009. Endereço para acesso http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/index. Acesso em 06.07.12 335 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento SILVA, Susiele Machry. Elevação das vogais médias átonas finais e não finais no português falado em Rincão Vermelho –RS. Porto Alegre, 2009. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. SOUZA Ana Aparecida Arguelho de. O balaio de bugre: História, memória e linguagem. UNESP – FCLAs – CEDAP, v5, n.2 p123-141- dez. 2009. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 2007. TENO, Neide Araújo de Castilho. O estudo do Vocabulário da erva-mate em obras de Hélio Serejo. (dissertação de Mestrado) Dourados, MS: UFMS, 2003. 171p 336 ANAIS - 2013 Breve história da EJA: uma abordagem sociolinguística Josemara da Paz LIMA ¹ Elza Sabino da Silva BUENO ² RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo fazer um panorama do surgimento da Escola de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil e quais foram os motivos histórico-político e linguísticos de sua criação, além de relacionar o contexto histórico à fala de muitos brasileiros que não tiveram oportunidade de estudar em idade própria. Este estudo faz parte de um trabalho ainda em andamento e tem por base teóricos dos estudos sociolinguísticos, um campo da ciência que estuda a linguagem e a sociedade como elementos inseparáveis e as diversidades linguísticas existentes no português falados nas diferentes regiões do país. Procura-se trazer uma reflexão sociolinguística sobre a linguagem utilizada pelos alunos da EJA, entendendo os fatores linguísticos e extralinguísticos como parte do processo de ensino aprendizagem. PALAVRAS-CHAVE: Linguagem; Sociolinguística; EJA. Introdução Com a chegada dos jesuítas ao Brasil, tenta-se a implantação de uma forma de educar e ensinar jovens e adultos, porém, por muitos anos buscou-se um método que desse certo, criando-se instituições, fundações e colocando-se em prática ideias de pensadores e educadores, para que fosse erradicado o analfabetismo em nosso país. Criada com o objetivo de dar 337 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento oportunidades educacionais apropriadas aos jovens e adultos que não puderam realizar os estudos na idade regular, a EJA, procura resgatar o conhecimento que lhes foi privado, devido à necessidade de abandonar a escola pelos mais diversos motivos: precárias condições sócio-econômicas, inadequação da escola e consequentemente um elevado índice de repetência nas primeiras séries (PILETTI, 1997, p.125). O aluno, que volta a uma instituição de ensino básico depois de muito tempo, traz consigo sua identidade, seus valores e sua cultura e, inerente a esses, seu próprio modo de se comunicar e trocar experiências com os demais membros da sua comunidade linguística (MONTEIRO, 2000, p.16). É, entretanto, ao entrar na sala de aula, que esse aluno se depara c u í gu u c “ uguê ” qu u f uc çã f f “c ” D modo, o aluno, que considera seu modo de falar diferente daquele imposto pela escola, fica com a sensação de que a “Lí gu P ugu ” é fíc qu ã b u á-la. Como afirma Bagno (2003, p. 50): O próprio nome do idioma – português -, então, deixa de designar toda e qualquer manifestação falada e escrita da língua por parte de todo e qualquer falante nativo, e passa a designar exclusivamente esse ideal b í gu c , “ cu ” que só uns poucos iluminados conseguem apreender e dominar integralmente. Entretanto, c c esses g h ” ê h c , indivíduos “ ã f j “f c que enfrentam c c u c , f u 338 ANAIS - 2013 uguê b ”, é c ã u c língua culta, que por sinal é o seu meio natural de comunicação, o trabalhador braçal, a empregada doméstica, os milhões de iletrados também o fazem (BORTONI-RICARDO, 2005, p.14). A dificuldade enfrentada pelos iletrados para entender as regras gramaticais, contidas na variante padrão da língua portuguesa e que a sociedade, de forma geral, acredita ser a de prestígio, não deve ser motivo para não apresentá-la, pois o conhecimento sobre esta variante não lhes pode ser negado, sob pena de se fecharem para eles as portas, já estreitas, da ascensão social. Entretanto, é preciso mostrar a estes alunos que não existe uma maneira única de falar, que a língua é heterogênea e pode variar conforme a situação interacional, pois como diz Stella Maris Bortoni-Ricardo, em sua obra Nós cheguemu na escola, e agora? (2005, p.15): A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas. Os professores e, por meio deles, os alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas servem a propósitos comunicativos distintos e são recebidas de maneira diferenciada pela sociedade. Algumas conferem prestígio ao falante, aumentando-lhe a credibilidade e o poder de persuasão; outras contribuem para formar-lhe uma imagem negativa, diminuindo-lhe as oportunidades. Há que se ter em conta ainda que essas reações dependem das circunstâncias que cercam a interação. 339 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento É importante que a escola reconheça a importância da variação linguística no ensino de língua materna, tendo em vista que a língua não é um sistema homogêneo e invariável, mas, sim, suscetível a mudanças e que, se um mesmo indivíduo pode alternar diferentes formas linguísticas, de acordo com a variação das circunstâncias que cercam a interação verbal, os alunos podem reconhecer que não há uma só forma de se comunicar. É preciso que esse conhecimento de variação seja passado para a sociedade em geral, a começar pela escola, pois o indivíduo necessita ter, interiorizadas em sua competência linguística, as formas alternativas padrão e não-padrão sobre as quais ele pode operar a seleção conforme as circunstâncias de interação (CAMACHO, 2001, p. 61). O desconhecimento de nossa realidade linguística tem exigido cada vez mais a realização de pesquisas empíricas, que tragam benefícios à aprendizagem dos alunos em língua materna. Ensinar gramática é fundamental, pois é somente na escola que estes alunos terão o privilégio de conhecê-la, sendo assim, não se pode negar o que lhes é de direito, porém a escola brasileira ocupa-se mais em reprimir do que em incentivar o emprego criativo e competente do português (BORTONIRICARDO, 2005, p.16), ocasionando maiores prejuízos por dificultar a aprendizagem do aluno em relação à língua padrão. Faz-se necessário compreender, que alunos da EJA ainda vivenciam problemas como preconceito, vergonha, discriminação, críticas, dentre tantos outros, e que tais questões são vivenciadas tanto no cotidiano familiar como na vida em comunidade. Importante se faz salientar que durante anos, jovens e adultos procuram oportunidades para aprender, se desenvolver e cada vez têm ganhado mais espaço nas Políticas Educacionais, sendo assim, é visível que a EJA é uma educação 340 ANAIS - 2013 possível e capaz de mudar significativamente a vida de uma pessoa, permitindo-lhe reescrever sua história de vida. 1. Aspectos históricos Com a chegada dos jesuítas ao Brasil em 1549, sob comando de Manuel da Nóbrega, época do Brasil Colônia, deuse início ao processo de catequização dos índios, que procurava levá-los à conversão, salvação de suas almas. Observando que os índios precisavam aprender a ler e escrever para se converter. (..) os jesuítas dedicaram-se a duas tarefas principais: a pregação da fé católica e o trabalho educativo. Com seu trabalho missionário, procurando salvar as almas, abriam caminho à penetração dos colonizadores; com seu trabalho educativo, ao mesmo tempo em que ensinavam as primeiras letras e a gramática latina, ensinavam a doutrina católica e os costumes europeus. (PILETTI, 1997, p. 33) Quando os jesuítas foram expulsos do país em 1759 por Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal de 1750 a 1777, eles já mantinham 36 missões, escolas de ler e escrever em quase todas as povoações e aldeias por onde se espalhavam suas 25 residências, além de 18 estabelecimentos de ensino secundário, entre colégios e seminários (PILETTI, 1997, p. 33). A educação brasileira, com a expulsão dos jesuítas, vivenciou uma grande ruptura histórica, a desorganização de um processo já implantado e consolidado como modelo educacional. Após a saída dos jesuítas, começa em 1760 o Período Pombalino que perdura até o ano de 1808. Durante este período, 341 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Pombal criou as aulas régias de Latim, Grego e Retórica, além da Diretoria de Estudos que funcionou após seu afastamento. Portugal observou que a educação no Brasil estava estagnada e que alguma solução precisava ser tomada, instituindo o “ ub í á ” u çã á médios. No princípio do século XIX o sistema educacional do Brasil já estava em declínio e não conseguiam fazer nada parecido com o trabalho de educação implantado pelos jesuítas. A vinda da Família Real para o Brasil, no século XIX e a Independência do país, contribuíram para a instituição de um modelo de educação centrada na formação das elites dirigentes. Assim, o ensino secundário e o superior eram os privilegiados, enquanto o ensino primário e o técnico-profissional eram marginalizados. O curso normal praticamente só se desenvolveu a partir do final do Império e, assim mesmo, enfrentando enormes dificuldades, como a falta de professores qualificados e condições precárias de ensino. Durante muito tempo, tentou-se reerguer no Brasil um sistema educacional que desse certo, em que se buscou vários métodos para que isso fosse possível. A partir de 1930, com a Revolução, o Brasil passou por grandes transformações na esfera econômica e social que exigiam que o país tivesse mão de obra especializada e investisse na educação. O objetivo era alfabetizar as camadas baixas da população ensinando a ler e escrever, sem despertá-las à consciência crítica, pois isso seria prejudicial ao governo. Na Constituição de 1934 instaura-se um Plano Nacional de Educação, afirmando que a educação é um direito de todos e é dever do Estado fornecer ensino primário integral gratuito e de frequência obrigatória extensivo aos adultos, além de coordenar, f c z “ x c çã u , f ç c á , deficiência de iniciativa ou de recursos e estimular a obra 342 ANAIS - 2013 educativa em todo o País, por meio de estudos, inquéritos, de çõ ub çõ ” Com a nova Constituição de 1937 é enfatizado o ensino primário, o ensino pré-vocacional profissional e o secundário. O ensino primário tinha por finalidade a iniciação cultural, o desenvolvimento da personalidade e a preparação para a vida familiar, a defesa da saúde e o trabalho. O ensino pré-vocacional profissional era destinado às classes menos favorecidas, com aprendizagem das técnicas industriais, comerciais e agrícolas, atendendo aos interesses dos trabalhadores das empresas e da Nação. Já o ensino secundário era para as elites dirigentes, que estudavam Latim, História, Geografia e desenvolviam a “c c ê c ó c ” E f , c u g çã entre o trabalho intelectual, destinado às classes mais favorecidas e o trabalho manual, que enfatizava o ensino profissional para as classes mais desfavorecidas, já existente na época Brasil Império. A década de 40 foi um período de grandes mudanças na educação de adultos com iniciativas políticas e pedagógicas consideráveis como: a criação e regulamentação do Fundo Nacional do Ensino Primário (FNEP) com o objetivo de ampliar e melhorar o sistema escolar primário do país, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), lançamento da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) que demonstrava grande preocupação com a elaboração de materiais didáticos para adultos como guias de leituras, matemática, saúde e alimentação, adentrando também neste contexto o Movimento de Educação de Base (MEB), criado um pouco mais tarde em 1961, dentre outros. Este conjunto de iniciativas permitiu que a educação de adultos se firmasse como uma questão nacional. De 1947 a 1950, o professor Lourenço Filho ficou na direção da Campanha de Educação de Adultos, que consistia em 343 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento financiar as unidades de ensino instaladas, orientar os trabalhos de alfabetização e mobilizar a opinião pública e dos governos estaduais e municipais em favor da campanha. O resultado deu certo, pois em 1943 as matrículas efetivas no ensino supletivo eram de 94.291 alunos e em 1950, o número já havia alcançado 720.000 matrículas (PILETTI, 1997, p. 105) Nos anos 50, realizou-se a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA), com discussões sobre a educação de adultos, mas foi extinta em 1963, juntamente com as outras campanhas até então existentes. Em 1958, foi realizado o segundo Congresso Nacional de Educação de Adultos, objetivando avaliar as ações realizadas na área e visando propor soluções adequadas para a questão. Foram feitas críticas à precariedade dos prédios escolares, à inadequação do material didático pedagógico e à qualificação do professor. Na década de 60, um novo impulso foi dado às campanhas de alfabetização de adultos, com o método Paulo Freire que alcançou repercussão nacional e internacional na época. Este método tinha como característica centrar-se na adequação do processo educativo às características do meio. Nesta mesma época, foi promulgada a primeira lei brasileira (Lei nº 4024, de 20 de dezembro de 1961) que estabelecia as diretrizes e bases da educação, em todos os níveis, do préprimário ao superior. Em 1964, com o golpe militar, todos os movimentos de alfabetização que se vinculavam à ideia de fortalecimento de uma cultura popular foram reprimidos. A década de 70, ainda sob a ditadura militar, marca o início das ações do Movimento Brasileiro de Alfabetização – o MOBRAL, que era um projeto que visava acabar com o analfabetismo em apenas dez anos. Após esse período, quando já deveria ter sido cumprida essa meta, o Censo divulgado pelo IBGE registrou ainda 25,5% de pessoas analfabetas na 344 ANAIS - 2013 população de 15 anos ou mais, ou seja, não foi possível cumprir tal meta. O programa passou por diversas alterações em seus objetivos, ampliando sua área de atuação para campos como educação comunitária e educação de crianças. O ensino supletivo, implantado em 1971, foi um marco importante na história da educação de jovens e adultos do Brasil. Foram criados os Centros de Estudos Supletivos em todo o País, com a proposta de ser um modelo de educação do futuro, atendendo às necessidades de uma sociedade em processo de modernização. O objetivo era escolarizar um grande número de pessoas, com um baixo custo operacional, satisfazendo às necessidades de um mercado de trabalho competitivo, com exigência de escolarização cada vez maior. A LDB 5692/71 que contemplava o caráter supletivo da EJA, excluindo as demais modalidades, não diferia dos objetivos do MOBRAL quanto à profissionalização para o mercado de trabalho e a visão da leitura e da escrita apenas como decodificação de signos. No início da década de 80, a sociedade brasileira viveu importantes transformações sócio-políticas com o fim dos governos militares e a retomada do processo de democratização. Em 1985, o MOBRAL foi extinto, sendo substituído pela Fundação EDUCAR, cujo objetivo era erradicar totalmente o analfabetismo, mas, principalmente, preparar mão-de-obra necessária para atender os interesses capitalistas do Estado. A nova Constituição de 1988 trouxe importantes avanços para a EJA: o ensino fundamental, obrigatório e gratuito, passou a ser garantia constitucional também para os que a ele não tiveram acesso na idade apropriada, ainda com o objetivo de erradicar o analfabetismo no país. A partir da década de 1980 e 1990, a educação deixou de ser um ensino voltado para o tradicionalismo, fazendo com que os educadores buscassem novas propostas de ensino, com intuito de ajudar no crescimento 345 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento do aluno para um ensino mais qualificado para um futuro melhor para humanidade. A partir dos anos 90, com o início do governo Collor, a Fundação EDUCAR foi extinta e todos os seus funcionários colocados em disponibilidade. Com a falta de pessoal qualificado para administrar as políticas educacionais, a União foi se afastando das atividades da EJA e transferindo a responsabilidade para os Estados e Municípios. Somente com a nova LDB nº 9394, promulgada em 1996, art.37 e art.38, é que se passa a contemplar as várias modalidades de educação de jovens e adultos e uma melhor adequação às novas exigências sociais. Dentre algumas alterações significativas podemos citar: redução da idade mínima (15 anos para o ensino fundamental e 18 para o ensino médio), supressão de referências sobre o ensino profissionalizante atrelado à EJA, criando um capítulo único, capítulo 07, para esta modalidade, defendendo uso de didática apropriada às características do alunado, condições de vida e trabalho, incentivando a aplicação de projetos especiais que proporcionem o alcance dos objetivos desejados. Em janeiro de 2003, o MEC anunciou que a alfabetização de jovens e adultos seria uma prioridade do novo governo federal. Sendo assim, foi criada a Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo, cuja meta era erradicar o analfabetismo durante o mandato de quatro anos do governo Lula. Para cumprir essa meta foi lançado em 2003 e que perdura até hoje o Programa Brasil Alfabetizado, por meio do qual o MEC contribui com os órgãos públicos estaduais e municipais, instituições de ensino superior e organizações sem fins lucrativos que desenvolvem ações de alfabetização. No Programa Brasil Alfabetizado, a assistência é direcionada ao 346 ANAIS - 2013 desenvolvimento de projetos com as seguintes ações: Alfabetização de jovens e adultos e formação de alfabetizadores. O Brasil Alfabetizado é desenvolvido em todo o território nacional, com o atendimento prioritário a 1.928 municípios que apresentam taxa de analfabetismo igual ou superior a 25%. Esses municípios recebem apoio técnico na implementação das ações do programa, visando garantir a continuidade dos estudos aos alfabetizandos. Durante sua história, a educação de jovens e adultos teve seus momentos de grandes fracassos e críticas, buscando neste percurso um ensino de qualidade, propiciando aos alunos o direito a uma vida mais digna, com perspectivas de um futuro melhor, livres de preconceitos sociais, com o intuito de mudar significativamente suas vidas, construindo um Brasil imparcial e justo ao propiciar educação como um direito de todos os cidadãos. 2. Analisando os dados Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado em 2010, entre 1990 e 2010 a taxa de analfabetismo da população com mais de 15 anos de idade passou de 18,35% para 9,62%, o que podemos considerar em 20 anos a redução de 50% do analfabetismo em nosso país. Tal redução deve-se ao empenho do governo e profissionais da educação, que a partir da década de 90, conferiu maior atenção à Educação de Jovens e Adultos, principalmente depois da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996, que passa a vê-la como primordial para erradicação do analfabetismo no Brasil, conforme segue. 347 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Tabela 1 – Taxas de analfabetismo no Brasil entre os anos de 1940 e 2010. Anos 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 População de Analfabetos de Taxas de 15 anos ou 15 anos ou analfabetismo mais mais 23.639.769 13.279.899 56,17 30.249.423 15.272.432 50,48 40.187.590 15.815.903 39,35 54.336.606 17.936.887 33,01 74.600.285 19.356.092 25,94 96.647.265 17.731.958 18,35 119.556.675 15.467.262 12,94 144.823.504 13.933.173 9,62 Fontes: IBGE e PILETTI, 1997, p. 124. Embora tais dados afirmem essa diminuição, tinha-se ainda em 2010, quase 14 milhões de brasileiros que nunca frequentaram a escola ou começaram, mas evadiram-se por diversos motivos, entre eles o trabalho precoce. A considerável taxa de analfabetismo em nosso país deve-se também ao fato de que muitos municípios ainda não foram contemplados com um ensino voltado para jovens e adultos. Segundo o Censo Demográfico de 2010, 574 municípios não oferecem a EJA, o que pressupõe que muitos jovens e adultos analfabetos não têm oportunidades de se desenvolverem na área educacional, ou seja, a ideia de educação para todos não se conclui de fato. Na declaração de Hamburgo sobre a Educação de Adultos apresentada na V CONFINTEA em 1997, diz que: Educação básica para todos significa dar às pessoas, independentemente da idade, a 348 ANAIS - 2013 oportunidade de desenvolver seu potencial, coletiva ou individualmente. Não é apenas um direito, mas também um dever e uma responsabilidade para com os outros e com toda a sociedade. No ano de 2000, eram 20.290.368 pessoas no Brasil acima de 15 anos que frequentavam escolas, 15.467.262 consideradas analfabetas e apenas 3.145.338 participavam da Educação de Jovens e Adultos, ou seja, apenas 20,34% da população analfabeta do país, decidiram voltar a estudar, conforme segue: Organograma 1 – Grau de instrução em 2000. População Geral brasileira 169.872.856 População de 0 – 14 anos = 50.316.180 119.556.675= População de 15anos ou mais Analfabetos = 15.467.262 Não frequentam escola, mas já frequentaram = 87.794.526 Nunca frequentaram = 11.471.783 Ainda frequentam escola = 20.290.368 EJA = 3.145.338 (20,34% dos analfabetos) Ensino Fundamental = 2.272.114 Ensino Médio = 873.224 349 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Fonte: MEC e INEP. Dez anos depois, já em 2010, observa-se um aumento da população de aproximadamente 11%, com 49.373.869 pessoas no Brasil acima de 15 anos que frequentavam escolas, 13.933.173 consideradas analfabetas e apenas 4.234.956 participavam da Educação de Jovens e Adultos, ou seja, apenas 30,4% da população analfabeta do país decidiram voltar a estudar, conforme organograma a seguir. Organograma 2 - Grau de instrução em 2010. População Geral brasileira 190 755 799 População de 0 – 14 anos= 45.932.294 144.823.504= População de 15 anos ou mais Analfabetos = 13.933.173 Não frequentam escola, mas já frequentaram = 84.724.186 Nunca frequentaram = 10.725.449 Ainda frequentam escola = 49.373.869 EJA = 4.234.956 (30.4% dos analfabetos) Ensino Fundamental = 2.846.104 Ensino Médio = 1.388.852 Fonte: MEC e INEP. 350 ANAIS - 2013 No final do século XX, o Brasil enfrentou sérios desafios no campo educacional, apesar do grande esforço empregado por educadores, grupos de trabalho e até mesmo do próprio governo. Deve-se porém encarar tais desafios, para se construir um país melhor para todos os brasileiros, pois, embora já seja possível observar vários avanços, muitos ainda continuam excluídos das oportunidades educacionais. Diversas iniciativas do governo têm permitido que milhões de jovens e adultos tenham a oportunidade de voltar a estudar, aumentando o nível sociocultural destes indivíduos e propiciando melhores empregos para que as condições de vida, também sejam elevadas, já que o desejo de retornar a uma Instituição de Ensino, é motivado, na maioria das vezes, pelo mercado de trabalho que busca pessoas bem qualificadas e instruídas, outras vezes, o próprio indivíduo sente vontade de aprender a ler, escrever, falar bem e fazer contas utilizando as quatro operações básicas da matemática. Neste sentido, como foi dito na Declaração de Hamburgo sobre a EJA na V CONFINTEA em 1997: A educação de adultos, dentro desse contexto, torna-se mais que um direito: é a chave para o século XXI; é tanto consequência do exercício da cidadania como condição para uma plena participação na sociedade. Além do mais, é um poderoso argumento em favor do desenvolvimento ecológico sustentável, da democracia, da justiça, da igualdade entre os sexos, do desenvolvimento socioeconômico e científico, além de ser um requisito fundamental para a construção de um mundo onde a violência cede lugar ao 351 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento diálogo e à cultura de paz baseada na justiça. A educação de adultos pode modelar a identidade do cidadão e dar um significado à sua vida. 3. Aspectos linguísticos A partir do contexto histórico da EJA é possível perceber que jovens e adultos oriundos das classes menos favorecidas socialmente que não tiveram acesso ao ensino em idade própria, chegam à escola, depois de muitos anos com uma bagagem linguística marcada pela variante não-padrão em sua fala, pois a grande maioria não sabe ainda ler e escrever, portanto, não conhecem a variante padrão da língua portuguesa. Há na sociedade, que tem como variante de prestígio a língua padrão, o preconceito de que as pessoas que utilizam a variante não-padrão da língua são leigos, pessoas sem estudo e qu “ ” í gu , causam vergonha nas mais variadas situações de fala. A sociolinguística, ciência que analisa e descreve a língua em uso no seio das comunidades de fala e tem como objeto de estudo a variação, observando linguagem e sociedade como elementos inseparáveis (MOLLICA e BRAGA, 2003, p.09) vem procurando mostrar que tratar de variação é inevitável, pois ela não é o resultado do uso arbitrário e inconsequente dos falantes, mas sim, um uso sistemático e regular de uma propriedade inerente aos sistemas linguísticos, que é a possibilidade de variação, já que ela está ligada a restrições de natureza linguística e extralinguística (CAMACHO, 2001, p.50-55). Nesse sentido, estudos têm sido realizados no âmbito sociolinguístico, os quais observam a língua como sendo heterogênea e variável, passível de mudanças, pois todo 352 ANAIS - 2013 linguista indiscriminadamente concorda com o princípio de que nenhuma língua natural humana é um sistema em si mesmo homogêneo e invariável. Em todos os níveis de análise, deparase com o fenômeno da variação (CAMACHO, 2001, p. 57). Os estudos sociolinguísticos são fundamentais, pois auxiliam a escola a não apresentar a norma padrão como única forma de comunicação, ou mesmo um objeto de segmentação social. Sírio Possenti (1996, p.83) afirma também que aprender uma língua é aprender a dizer a mesma coisa de várias formas, sendo assim, o papel da escola não é o de ensinar uma variante no lugar da outra, mas de criar condições para que os alunos aprendam também as variedades que não conhecem ou com as quais não têm familiaridade. Também assinala que, para muitas pessoas, das mais variadas extrações intelectuais e sociais, ensinar a língua é a mesma coisa que ensinar gramática (POSSENTI, 1996, p.60). Porém, conhecer e saber uma língua, é diferente de conhecer sua gramática, ou seja, analisá-la, simplesmente, não pode ser tomado como conhecimento linguístico É importante que na Educação de Jovens e Adultos, seja observado como a escola tem feito as intervenções sobre o ensino de língua materna, se tem apresentado a seus alunos as variantes, ou tem ditado somente as regras gramaticais. 4. Considerações Finais Diante do exposto, foi possível observar que a Educação de Jovens e Adultos, no decorrer do tempo, passou por grandes mudanças, visto que nasceu como uma alternativa à qualificação de mão-de-obra para atender às demandas do processo de industrialização e só depois passou a ser parte integrante da educação para acabar com o analfabetismo no país, dando 353 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento oportunidades de continuidade de estudos para os que não o tiverem em idade regular. Com o avanço da tecnologia e da economia brasileira, a busca por pessoas capacitadas no mercado de trabalho tem aumentado significativamente, fazendo com que as pessoas sintam necessidade de retornar à sala de aula para aprimorar seus conhecimentos ou conseguir um diploma atestando uma escolarização mais elevada. Aperfeiçoar o ensino de língua portuguesa para os alunos da EJA é fundamental, visto que muitos deles a concebem como sendo um sistema de códigos difícil de aprender, de falar e escrever, pois muitos já foram em algum momento de suas vidas ridicularizados por se comunicar fazendo uso da variante nãopadrão da língua. Ampliar o conhecimento sobre a sociolinguística é dever de cada professor que leciona nessa modalidade de ensino, bem como de todas as escolas que a oferecem. Dessa maneira, será fác ã c f “ ” u falar, mas sim aceitar que cada aluno possui uma história de vida que não o permitiu permanecer na escola, propiciando-lhes também uma bagagem linguística diferente da considerada padrão em nossa sociedade. É preciso entender que para se ensinar a língua, não é necessário ignorar ou substituir a linguagem que o aluno possui, corrigi-lo em todo o tempo e nem humilhá-lo por falar desse ou daquele jeito. Que para se ensinar língua é preciso acima de tudo refletir primeiramente sobre ela, observando sua heterogeneidade e levando em conta todas as situações interacionais. Os alunos da EJA precisam mais que simplesmente aprender a norma padrão da língua portuguesa. Eles precisam ser compreendidos, saber que as pessoas os compreendem, que 354 ANAIS - 2013 entendem tudo o que passaram na sua vida e ajudá-los a avançar, a se sobresair, inclusive em um competente uso do português brasileiro. Em suma, a EJA desempenha um papel muito importante em nossa sociedade e para que isso continue ocorrendo, da melhor maneira possível, é necessário pensar como Lopes e Sousa ao ressaltarem que é oportuno lembrar que todos podem e devem contribuir para o desenvolvimento da EJA: os governantes devem implantar políticas integradas para a EJA, as escolas devem elaborar um projeto adequado para seus próprios alunos e não seguir modelos prontos, os professores devem estar sempre atualizando seus conhecimentos e métodos de ensino, os alunos devem sentir orgulho da EJA e valorizar a oportunidade que estão tendo de estudar e ampliar seus conhecimentos. À sociedade cabe contribuir com a EJA não discriminando essa modalidade de ensino nem seus alunos, e por fim, as pessoas em geral que conhecerem um adulto analfabeto deve falar da importância da educação e incentivá-lo a procurar uma escola de EJA. Referências ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões (1534-1597). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. (Cartas Jesuíticas 3 – Coleção reconquistada do Brasil. 2 série; v. 149). BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. 355 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento BELLO, José Luiz de Paiva. Educação no Brasil: a História das rupturas. Pedagogia em Foco, Rio de Janeiro, 2001. Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb14.htm>. Acesso em: 25 de setembro de 2012. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. ______. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP. Disponível em: : www. inep.gov.br. Último acesso em: 20 de outubro de 2012, às 21h25. BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 292 p. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.h tm. Último acesso em: 18 de outubro de 2012, às 19h45. BRASIL. Declaração de Hamburgo sobre Educação de adultos – V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos/ V CONFINTEA. 1997. CAMACHO, Roberto Gomes. Sociolinguística (parte II). In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.C (Orgs.). Introdução à linguística 1: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001. P.49-75. 356 ANAIS - 2013 IBGE, 1991. Censo Demográfico de 2000 e 2010. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dados referentes ao país Brasil, fornecidos em meio eletrônico. Último acesso em: 22 de outubro de 2012, às 20h38. LOPES, Selva Paraguassu; SOUSA, Luzia Silva. EJA: Uma educação possível ou mera utopia? Disponível em: http://www.forumeja.org.br/ac/node/61. Último acesso: 08 de outubro de 2012, às 10h20. MOLLICA, Maria Cecília e BRAGA, Maria Luiza. (orgs.). Introdução à sociolinguística – o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003. MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. PILETTI, Nelson. História da Educação no Brasil. São Paulo: Ática. 1997. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras: ALB, 1996 . 357 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Brô MC´s: reflexos da identidade indígena na música Anderson Aparecido PIRES 1 Prof.ª Drª Rita de Cássia Pacheco LIMBERTI2 RESUMO: Orlandi (2012), entende que é por meio da ideologia que se constituem as noções de sujeito e de sentido; e é a partir da ideologia que se estabelece uma relação entre linguagem e o mundo. A ideologia, por sua vez, materializa-se através da linguagem, e é caucionado pela linguagem que o homem assume a sua condição imaginária de existência. Assim, podemos depreender que é no cenário linguístico que o sujeito assimila inconscientemente a(s) sua (s) formação(ões) discursiva(s) de identidade. É por meio da c u çã óg c “ ” que o indivíduo faz uso da língua, manifestada nos mais variados suportes, como: fala, escrita, letra de música, para projetar a sua interpretação da sociedade e do mundo em que vive. As reflexões mencionadas e a compreensão de que é na materialidade do discurso que se observa a relação entre língua e ideologia (Orlandi,idem.), deram origem à proposta deste trabalho: “B ô Mc´ R f x íg ú c ” V apresentar, a partir dos aparatos teóricos da (AD) de linha francesa, os processos de construção da identidade ú c “ V qu u ” ítulo do grupo de rap indígena, Brô Mc´s, cujos integrantes são jovens indígenas moradores da Aldeia Jaguapiru, localizada na Reserva Indígena de Dourados, MS. PALAVRAS–CHAVE: discurso; índio; linguagem Introdução 1 Acadêmico do 6º semestre do curso de Letras, UFGD. Bolsita do PIBIC/CNPq 2012/2013. E -mail: [email protected] 2 Professora da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras, UFGD. Orientadora. E-mail: [email protected] 358 ANAIS - 2013 Considerando o cenário linguístico da cidade de Dourados, Mato Grosso do Sul, onde se encontram duas aldeias: Jaguapiru e Bororó, e que no meio dessas aldeias encontram-se três etnias distintas: Kaiowá, Guarani e Terena, o presente trabalho intitulado Brô Mc´s: reflexos da identidade indígena na música, tem como objetivo, por meio das investigações teóricas do projeto de pesquisa de iniciação científica, apontar um caminho para a interpretação da identidade do indígena douradense. Em meio a essa miscigenação étnica, emerge um grupo de rap indígena – Brô Mc´s- , composto por quatro jovens indígenas, residentes da aldeia Bororó, que fazem uso do gênero musical rap, para manifestarem uma interpretação da realidade indígena. E por meio dessa compreensão do que é, e de como é a realidade indígena, movemos o nosso olhar para essa pesquisa e sobre a qual redigimos esse artigo. Pereira(2008), citando dados do IBGE, sustenta que há aproximadamente oito mil indígenas no município de Dourados, agrupados em um espaço territorial pequeno; os indígenas nesse território vão lentamente perdendo seus costumes, como, por exemplo, a desvalorização do uso fogo, conforme aponta o antropólogo Levi Marques Pereira( 2010). Ao reduzir as práticas sociais de uma cultura, o sujeito não está perdendo elementos constitutivos da identidade e sim aderindo a outras formações discursivas que passam a compor a sua concepção de existência. A primeira parte deste trabalho, intitulada Palavra: tijolo linguístico que constrói o sentido, abordaremos as concepções de linguagem estipuladas por Santos (2007), Faraco e Moura (1998), Leite e Callou (2002) e Santaella (1983) para que, através dessas apreciações, possamos edificar a ponte que relaciona a linguagem à palavra, entendendo palavra através Bakhtin(2006). Após delinearmos uma sustentação teórica sobre palavra/linguagem, tencionamos, no subitem 2, intitulado A 359 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento condição imaginária de existência traduzida pela da identidade, refletir sobre os conceitos de identidade preconizados por Stuart Hall (2000) e relacionar esses com a concepção de identidade interpretada por Orlandi (2011/2012 ), proposta nos livros As formas do silêncio – No movimento do sentido e A Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos, em que a autora defenderá que a identidade do sujeito está associada às suas formações discursivas e essas emergem das ideologias do indivíduo. Em sequência às reflexões desenvolvidas no item 2, sobre a identidade, propomos, no item seguinte, tecermos considerações sobre o gênero rap: etimologia, história, grupos de rap no Mato Grosso do Sul, configurando, dessa forma, um panorama que permita visualizar melhor esse estilo musical adotado pelos indígenas de Dourados. Na quarta parte deste artigo será apresentada uma análise preliminar sobre um determinado trecho da letra ú c “ qu u L ”, do grupo de rap indígena. As palavras finais deste trabalho, dialogarão com uma fala de Hugo Achugar (2006), a qual consideramos relevante para nossa temática. 1. Palavra: tijolo linguístico que constrói o sentido Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. ( Fernando Pessoa, Isto.) Iniciamos o primeiro subtópico do artigo, com uma estrofe do poema de Fernando Pessoa – Isto-, com o intuito de refletir sobre as modalidades linguísticas: oral e escrita, que 360 ANAIS - 2013 fazem parte da vida do sujeito e da qual o indivíduo faz uso, para que, por meio de uma língua, ele possa produzir uma mensagem. Permeado por essas modalidades da língua, o eu lírico escreve aquilo que a imaginação permite-lhe produzir, porém a interpretação social, que aqui podemos depreender que seja o senso comum, atribui as produções do eu lírico como mentiras e fingimentos( verso 1), por meio dessa declaração chega-se à conclusão que aquilo que o eu lírico produz materializado na escrita pode não corresponder ao que ele sente, ou seja, a linguagem, em sua materialidade, produz efeitos de sentido que não correspondem, necessariamente, à “ ” Interpretando discursivamente essa estrofe, chega-se à conclusão de que o sujeito só pode imaginar aquilo que é dizível(Memória) e para isso precisa ter um recurso de muita importância: a linguagem. Por meio dela o sujeito interage e produz sentido. Mas afinal, o que é a linguagem? Pretendemos dar algumas respostas para essa pergunta, considerando aquilo que Hugo Achugar (2006) depreende em sua experiência como professor de literatura, sobre o conhecimento verdadeiro e u á : “ ó qu “ u ”, u-se para mim impossível pensar que possa haver algum tipo de u u qu j , u f ” (ACHUGAR, 2006, p.10). Assim, salientamos que as interpretações de linguagem, propostas neste artigo, não correspondem a uma única e verdadeira compreensão do que seja a linguagem; cabe a nós, portanto, filtrarmos acepções para melhor dialogarmos com aquilo que Bakhtin (2006) entende por palavra. Principiamos essas abordagens de linguagem com o posicionamento de Faraco e Moura (1998): 361 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Linguagem é todo o sistema organizado de sinais que serve como meio de comunicação entre os indivíduos. (...) Linguagem e Sociedade relacionam-se intimamente: uma não existe sem a outra. O desenvolvimento humano e o avanço das civilizações dependem principalmente da utilização da linguagem. ( FARACO e MOURA, 1998, 15/16) Conforme lemos em Faraco e Moura (1998), a linguagem ocupa lugar de destaque na vida do sujeito, de tal modo que os autores defendem que as civilizações evoluíram devido ao uso da linguagem. Observamos também que os autores enaltecem a dicotomia Linguagem/Sociedade. Para complementarmos esse raciocínio, Santaella (1983) argumenta : Sem a linguagem seria impossível a vida, pelo menos como conceituamos agora: algo que se reproduz, que tem um comportamento esperado e certas propensões. Nessa medida, não apenas a vida é uma espécie de linguagem, mas todos os sistemas e formas de linguagem tendem a se comportar como sistemas vivos, ou seja, eles se reproduzem, se readaptam, se transformam e se regeneram como coisas vivas. (SANTAELLA, 1983, p.10) Assim como a língua é viva e passa por transformações, a linguagem também assume a condição de vida e se reproduz em diversas ciências, capazes de aspergir os mais variados sentidos. Dessa forma, a linguagem manifesta-se como o cimento que une os tijolos linguísticos – palavras- rumo à 362 ANAIS - 2013 construção do sentido, que é efetivado pelo sujeito/arquiteto. A linguagem então acompanha o ritmo de evolução das palavras, essas que estão ligadas às correntes da historicidade. E atrelada à história, as palavras agregam novos significados em seus significantes. Podemos corroborar as concepções de linguagem de Santaella(2009) e Faraco e Moura(1998), em que definem a linguagem como uma ciência, que se (re)produz, transforma, regenera, pois os regentes desse recurso – sujeitos- são seres portadores da capacidade de evolução, através das três concepções de língua, apresentadas na obra de Ingedore Koch (2002) intitulada Desvendando os Segredos do texto, na qual a autora apresenta a evolução da interpretação de língua. Se linguagem e sociedade estão unidas, Leite e Callou (2002, p.07), f qu : “ É é gu g qu u c comunica e retrata o conhecimento e o entendimento de si ó u qu c c ” Nesse sentido, a linguagem : “( ) -se o instrumento mais eficiente de ação e interação de que a sociedade dispõe, pois é por meio dela que o homem se constitui como sujeito, uma vez que ao integrar-se a um meio social ele passa a agir e interagir com os demais elementos de seu discurso. (SANTOS, 2007, p.128) Esse veículo social, que permite a comunicação, existe por meio da língua; e para que ela ocorra são necessárias palavras, as quais se tornam pontes que unem sentidos variados. Sobre a palavra enquanto signo Bakhtin destaca: O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados. Ora todo signo é 363 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ideológico. Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas óg c c uí , já qu “ g c ”, qu x corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas. ( BAKHTIN, 2006,p.17) uí g , : “ palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do cu cu ” (B KHTIN, 2006, 115) Depreendemos dessa forma que a palavra é o tijolo linguístico formado por significados instituídos socialmente e que a aglomeração de palavras constrói, pelo engendramento da linguagem, o sentido daquilo que se aprecia, seja um texto, imagem, exercícios da oralidade.É por meio do alicerçar de tijolos linguísticos –manifestado pela interação- que o sujeito edifica a interpretação de realidade. Fundamentados nessas considerações, podemos observar que a sociedade indígena, por meio da linguagem, elabora em seu imaginário de existência a interpretação do que é real e verdadeiro. pleiteiando uma estrutura provisória de identidade. 2. A condição imaginária de existência traduzida pela identidade Sou índio sim e vou até falar de novo Guarani Kaiowá e me orgulho do meu povo 364 ANAIS - 2013 ( A vida que eu Levo, Brô Mc´s) Observa-se que nesse trecho da letra da música A vida que eu Levo, há u c : “ u í ”, qu compôs essa frase assumiu, em seu imaginário de existência, a interpretação de que existe em um espaço físico e afirma para si uma condição de identidade ao afirmar que é indígena e que á f u K wá f çã “sou índio ”, í u qu c u traço da identidade iluminista proposta por Hall(2000), visto que uj c çã f x x ê c “ uí ” Essa condição de identidade corresponde à identidade iluminista,que consiste em: O sujeito do iluminismo estava baseado em uma concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das concepções da razão, da consciência e da ação, cujo centro consistia um núcleo interior, que emergia pela primeira vez, quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou idêntico a ele- ao longo da existência do indivíduo. (HALL, 2000,p.10) Por meio dessa citação, podemos compreender que ao sujeito pertencente à identidade do iluminismo, corresponde aquele que apresenta a sua formação imaginária de existência fixa, unificada e determinista. A compreensão dessa identidade tornaí gu u c :“ gu h meu ” f çã f z u qu g imaginário social o conceito de ser indígena como sinônimo de 365 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento vergonha. Tal pressuposição decorre da veemente afirmativa, que produz o efeito de sentido de que o compositor enaltece a satisfação de ser índio e de pertencer a uma comunidade porque esse conceito não se encontra naturalizado, é preciso discursivizá-lo, enfatizá-lo, dizê-lo. A segunda concepção de identidade para HALL(2000) é a sociológica, e, este modelo cristaliza-se quando. o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se formando fragmentado. Composto não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. (HALL, 2000,p.12) É importante ressaltar que nesse segundo conceito, não há mais uma identidade fixa, mas uma costura de várias identidades. I b gu f :“ u é f u K wá’ , f c qu há u f g çã ; “ ” u õ que houve alguma interrupção ou redução de frequência de uso das línguas indígenas e que isso cessará a partir do momento que os enunciadores retornarem a falar essas línguas; essas atitudes a nosso ver, demonstra uma costura de identidades, entre o ser índio carregando em si as tradições da comunidade entre elas a língua e o ser falante de língua portuguesa, mesclando assim duas identidades. A terceira concepção de identidade para Hall(2000) é a pós moderna, está em que ocorre quando o sujeito assume conforme o contexto em que se situa, varias identidades. A identidade pós moderna é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em 366 ANAIS - 2013 diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redo u “ u” c Dentro de nós há identidades contraditórias empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (HALL,2000,p.13) Como podemos observar essa tipologia de identidade, sustenta que o sujeito assume diferentes exemplos de identidade, a partir do contexto em que encontra-se situado, e esses f , ã u “ u” c P qu “ u c ”, c onde a interpretação que o indígena tem de si próprio. E conforme o local onde está inserido ele assume uma identidade diferente. Por exemplo, quando se adere o estilo musical rap, originário dos Estados Unidos, o indivíduo está agregando para si as práticas sociais da identidade norte americana e ao participar de rituais religiosos pertencentes a etnia ideológica que ele adere, o mesmo estará construindo em seu imaginário de existência uma identidade indígena da etnia a que pertence. Em ambos os casos citados há uma costura ( identidade sociológica) e uma identidade pós moderna( instabilidade). Esse modelo de identidade pós moderna, será aperfeiçoado no item 4 intitulado Uma análise . O papel da ideologia é fundamental para a elaboração da formações discursivas do sujeito e torna-se relevante apresentar o função da ideologia para a constituição do ser do sujeito: Este é o trabalho da ideologia: produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência. Podemos começar por dizer que a ideologia faz parte ou melhor, é a condição 367 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado pela ideologia para que se produza o Dizer. (ORLANDI ,2012,p.46) Podemos depreender, através dessa citação que o objetivo da ideologia é produzir no sujeito uma condição de existência, para que por meio desse estado de existir, ele produza uma interpretação. Descartes citado por Hall (2000), f : “P , L g x ” , f c sujeito ao existir, e isso torna-se explici ch ; “ u í ” Como é sabido, o objeto de estudo desse artigo, são enunciados da letras de musica A Vida que eu levo e essa música é cantada por meio do gênero musical rap. Mas o que é o rap? Como surge ? e as raízes desse gênero? Essas questões serão explanadas no próximo tópico. 3. O discurso manifestado pelo RAP Antes de mergulharmos nas águas históricas do rap, torna-se ser importante tecer algumas considerações sobre discurso. É preciso ter em mente que não há discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia, pois a todo momento o indivíduo está sendo interpelado pela ideologia. E é na materialidade do discurso que se pode observar a relação entre língua e ideologia. Ilustrando essa reflexão, lemos em Orlandi(2012): Podemos começar por dizer que a ideologia faz parte, ou melhor, é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. 368 ANAIS - 2013 Partindo da afirmação de que a ideologia e o inconsciente são estruturas-funcionamentos, M. Pêcheux diz que sua característica comum é a de dissimular sua existência no interior de seu próprio funcionamento, uz u c ê c “ ubj ’, - “ ubj ” ã como afetam o sujeito, mas mais fortemente como nas quais constitui o sujeito. (ORLANDI, 2012, p.46) E qual a função da análise de discurso? Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e de sua história.(...) A Análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o Discurso, torna-se possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. ( ORLANDI, 2012,p.15) Em outras palavras, a A.D. pretende analisar como o texto significa, ou seja, produzir um conhecimento a partir do própri x , qu : “( ) x ã é c uí sentenças, ele é realizado por sentenças, o que de certo modo c guí c (ORL NDI, 2012, 18)” E quais são as sentenças que constroem o texto? São as ideologias; 369 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento então a música A Vida que eu Levo, é edificada por sentenças ideológicas e que por sua vez materializam-se pelo rap. No que tange ao discurso, podemos assegurar que o indígena faz uso do rap para exteriorizar os sentidos armazenados na formação discursiva. Dessa forma, as construções linguísticas apresentadas nas letras das músicas refletem traços de uma memória, materializados na escrita e quando atingemos que leem ou ouvem, produzem os mais variados sentidos. Se cada palavra é pertencente a um discurso, Orlandi (2012) argumenta: O Discurso se constitui em seu sentido porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não em outra para ter um sentido e não outro. Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inserem. (ORLANDI, 2012,p.43) Enunciar em uma letra de rap, sendo um sujeito indígena, é analisar a memória discursiva e afirmar para si e para os que duvidam da identidade indígena ao existência do indivíduo enquanto ser social, pertencente a uma camada ideológica, e enquanto indivíduo, individuado pela interpelação social. Aideologia subjuga o sujeito de modo inconsciente. Segundo o site Rap na veia3, no Mato Grosso do Sul há apenas o grupo de rap Brô Mc´s. Analisemos um pouco da história do rap, conforme afirma o site mencionado: 3 História do Rap. Disponível em: <http://www.rapnaveia.com.br/historiado-rap/ > Acesso em: 22 novembro 2012 370 ANAIS - 2013 Rap (em inglês conhecido como emceeing) é um discurso rítmico com rimas e poesias, que surgiu no final do século XX entre as comunidades negras dos Estados Unidos. É um dos cinco pilares fundamentais da cultura hip hop, de modo que se chame metonimicamente (e de forma imprecisa) hip hop. Pode ser interpretado a capella bem como com um som musical de fundo, chamado beatbox. Os cantores de rap são conhecidos como rappers ou MCs, abreviatura para mestre de cerimônias. O rap, comercializado nos EUA, desenvolveuse tanto por dentro como por fora da cultura hip hop, e começou com as festas nas ruas,nos anos 1970 por jamaicanos e outros. ( site: http://www.rapnaveia.com.br/historiado-rap/ ) Assim, como se pode constatar, o rap é um estilo musical norte-americano, originário das comunidades negras, fundamentado por rimas e poesias, sendo que essas poesias, representam, pelo olhar discursivo que assumem, a ideologia daquele que a compõe. Segundo o site mencionado, o rap é um estilo musical em que o texto é mais importante que a melodia: Rap é um estilo musical raro em que o texto é mais importante que a linha melódica ou a parte harmônica; sendo um dos dois únicos estilos musicais da história da música ocidental em que o texto é mais importante que a música---o outro sendo o canto gregoriano, em que a música era uma monodia, homofônica, marcada pelo ritmo, e a melodia religiosamente não podia nunca sobressair o texto litúrgico. O rap não usa 371 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento melodias e motivos decorativos e harmônicos com arranjos elaborados dos instrumentos, mas vale-se somente em quão rápido o cantor narra a sua "fala" com muito pouca musicalidade adicionada a sua poesia. Por meio dessas interpretações, veremos que o trecho que será analisado apresentará mais importância do que o ritmo da música, pois a mensagem é mais importante que a construção textual. Nesse sentido, podemos afirmar que a análise do discurso não visualiza apenas a compreensão da organização estrutural e sim da voz daquele que escreve, ou seja, objetivos do texto, os modos de significação. A quarta parte desse artigo perscrutará algumas reflexões discursivas sobre o grupo de rap indígena, tendo como objeto o título e um trecho de letra da música A vida que eu levo. 4. Uma análise Principiamos essa análise pelo título do grupo de rap indígenas. Brô Mc´s. O léxico Brô, pertencente à abreviatura da Brother em inglês, corresponde ao traço da identidade norteamericana. Em meio a essa observação, o site rap nacional questiona: 2 – Por que Brô MC`s? (Bruno) Vem de irmão né?! Eu e ele (Clemerson e Bruno somos irmãos), o Kelvin e o Charlie é irmão também, então é isso! 3 – Brô na língua guarani significa irmão? (Kelvin) Não Brô é inglês, brother é irmão. 4 – E irmão em guarani seria como? Se for mais velho é Xerykey, se for mais novo é xeryvy. 372 ANAIS - 2013 De acordo com Orlandi (2011), todo dizer relaciona-se com o não dizer, pois as próprias palavras transpiram silêncio e nesse silêncio há o sentido. Segundo essa autora primeiro veio o silêncio, depois a linguagem e isso torna-se claro no seguinte xc : “ Qu h , u h ó , c b u silêncio como significação, criou a linguagem para retê-lo. (ORL NDI, 2011, 27)” gu u , h á condenado a significar, pois ele está inserido no simbólico: O homem está condenado a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma ju çã à “ çã ”: u f z sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico. (...) O silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é. ( ORLANDI, 2011, p.30/31) Assim depreendemos que, ao escolhermos determinadas palavras, apagamos outras palavras, esse modelo de silenciamento é denominado por M. Pêcheux, citado por Orlandi (2012), como esquecimento número dois, em que : “( ) é u c çã : f , o fazemos de uma maneira e não de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer u f “ ” í z “c c g u “ ” c (ORL NDI, 2012, p.35) Então devemos pensar o silêncio não como falta e sim como abundância. Retomando a entrevista, em meio à escolha 373 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento da palavra Brô, questionamos: Ao dizer Brô, é silenciado Irmão e Xerykey; quais efeitos de sentido são produzidos através desse silenciamento? Eis abaixo algumas conclusões dessa observação: I- Há deslocamento de identidade, o sujeito assume a identidade nortec , gu “B ô Mc´ ”; II- a identidade do indígena é mesclada por várias formações discursivas, dentre elas a norte-americana, e essa influência ideológica é reproduzida no título do grupo de rap indígena; Em relação à primeira conclusão, afirmamos que o sujeito está em contato com as mais diversas ideologias, visto qu : “ g ã , c c ão se controla c b (ORL NDI, 2012, 59)” , f indígenas estão em contato com a língua portuguesa através da música, da televisão, da internet... e desse contato com a língua portuguesa também emerge o contato com a língua inglesa. Interpelado pela ideologia da língua portuguesa, o indivíduo interpela-se pela língua e pela cultura norte-americana. Ao constituir um grupo musical de rap, o indígena está se apropriando da cultura e da estética que modelo musical oferta e, ao nomear Brô Mc´s, todas essas informações culturais e estéticas materializam-se. Constatamos que há um deslocamento de identidade, pois o sujeito esquece o modelo determinista (primeira concepção de identidade – iluminista) e assume um modelo de identidade distante geograficamente de seu local enunciativo, promovendo assim uma instabilidade identitária – terceira concepção. Em relação ao segundo modelo da análise proposta, interpreta-se que o sujeito apresenta muitas formações cu , qu : “( ) tas como regionalizações do interdiscurso, configurações específicas dos 374 ANAIS - 2013 discursos em suas relações. O interdiscurso disponibiliza dizeres, determinando pelo já dito, aquilo que constitui uma formação discursiva em relação a outra. ( ORLANDI, 2012, 44)”, ssim, pode-se depreender que o título Brô Mc´s, só pode ser apresentar-se como linguagem porque ele já foi dito e assim materializado na memória daquele que lhe atribui sentido. Ilustremos mais uma mescla dessa identidade. BRÔ MC´S Sou índio sim e vou até falar de novo Guarani Kaiowá e me orgulho do meu povo. Observa-se nesse trecho da letra de música que o indígena afirma a identidade à qual pertence e assume o compromisso de falar outra vez a língua Guarani e Kaiowá, mas ele silencia em sua fala a ação de falar termos da língua inglesacomo o léxico Brô-, pois, ao ampliar os sentidos da realidade indígena por meio da música, o compositor também enaltece a identidade norte- americana. O fato de o indígena fazer uso do gênero musical rap constitui uma quebra da identidade iluminista. Conclusão As reflexões apresentadas neste trabalho desenham a condição identitária indígena, a qual não se encontra marcada pela estabilidade e sim pela instabilidade. O índio situado na 375 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento pós- modernidade amplia o seu espaço de enunciação, visto que o mesmo adere a novas ideologias, para exteriorizar a sua interpretação da realidade. E é no espaço situado que ele tem a liberdade para escrever, cantar, e expor ao mundo quem ele é e de onde ele veio. Por meio das palavras, o índio interage com o mundo e o mundo dialoga com ele, seja em língua portuguesa, guarani ou kaiowá, a linguagem se faz presente. O índio fala de um lugar, e desse local ele visualiza o ser índio. Façamos uso das palavras do uruguaio Hugo Achugar, para demonstrar a importância de falar do local onde se situa. De Achugar, lemos: Se não tenho a liberdade de escrever o que me dá vontade, não faz sentido escrever também isso. Em algum lugar, preciso defender a escrita como um espaço de liberdade. Afinal, o território de onde falo pode ser a vizinhança desterritorizada daqueles que tentam produzir valor em um mercado de artesanatos em algum lugar das múltiplas margens do mundo. (ACHUGAR, 2006,p. ) E onde houver escrita e fala, há a manifestação da linguagem; e onde esta se encontra emerge a ideologia, em meio da qual observa-se o discurso regendo a linguagem. O território de onde falam os indígenas é fundamental para as ciências da linguagem, dentre elas a análise do discurso, pois a significação do texto/rap reproduz um discurso de intolerância. A identidade indígena que é amplamente visualizada nas letras de músicas do grupo Brô Mc´s, seja ela: iluminista, sociológica e pós-moderna, só pode ser estudada porque aquele que escreveu manifestou as formações discursivas por meio da linguagem. Entre o sujeito do iluminismo e o sujeito pós- 376 ANAIS - 2013 moderno há um indígena que reflete a realidade das aldeias e a x õ ú c , “( ) gu lugar das múltiplas g u chug (2006)” Referências ACHUGAR, H. Planetas sem Boca: escritos efêmeros sobre artes, cultura e literatura. Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: UFMG,2006. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. Brô Mc´s. A Vida que eu Levo. Disponível em:< http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/bro-mcs/a-vidaque-eu-levo/2443981 > Acesso em: 26 set. 2012 FARACO,C . E.; MOURA, F. M . Gramática.Ed. Ática. 11 ed. São Paulo,1998. HALL, S. A identidade Cultural na Pós – Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000. ORLANDI, E. P. A Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. Campinas: Pontes, 10ª edição, 2012. ______. As formas do silêncio: No movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,6 ª edição, 2011. KOCH, I.G.V. Desvendando os Segredos do texto. 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A Gramática e sua Diversidade. Dourados, Ed. UFGD, 2007. 378 ANAIS - 2013 Clarice em cena: silêncio, traição e morte em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos Wagner Corsino ENEDINO1 RESUMO: Ancorando nas contribuições de Pavis (2008), Ryngaert (1996), Pallottini (1989) no que concerne ao discurso dramático, nos estudos de Poe (1997) acerca do fazer poético, nos pressupostos de Baudelaire (1997) sobre o conceito de belo e nas considerações de Orlandi (2007) no tocante à significação do silêncio, este artigo tem como escopo analisar a obra A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, de Clarice Lispector, única em gênero dramático que se tem conhecimento da autora. Torna-se necessário salientar a presença recorrente do diálogo entre a obra e as tragédias gregas, assim como a crítica social inscrita no texto dramático clariceano. A protagonista “ uh ”( ú ), à , c çã presente na sociedade e a hipocrisia dos homens os quais pretendem demarcar território e não são capazes de obedecer às sagradas leis; fazendo com isto, recair o poder sobre as ações femininas. PALAVRAS-CHAVE: Teatro brasileiro; silêncio; belo; Clarice Lispector. Introdução A pecadora queimada e os anjos harmoniosos é a única obra que se tem conhecimento, em gênero dramático, da escritora Clarice Lispector. Publicado uma única vez na coletânea de contos, crônicas e fragmentos intitulada A legião estrangeira, em 1964, o texto ficou em certo obscurecimento, uma vez que o lançamento da coletânea foi abafado por conta da grande repercussão de A paixão segundo G.H, o qual foi 1 Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – [email protected]. 379 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento publicado no mesmo ano. Destaca-se que a obra A legião estrangeira era dividida em duas partes: a primeira era composta por uma série de contos; a segunda, batizada pela u c “Fu g ”, z gu cô c , soltas e escritos diversos. E era ex “Fu g ” qu c gé A pecadora queimada. É c qu uçã “Fu g ”, u qu qu ã h qu x “ c qu ”g h ç á , is fora escrito, segundo ela, por diversão enquanto esperava o c P , u f h P u , “O verdadeiro título desta tragédia em um ato seria para mim ‘ ’, h h ” (LISPECTOR, 2005, p. 56). Quando estava na Suíça, em 1948, aguardando o nascimento de seu primogênito, Clarice descreve ao amigo e c F b qu “E , g , é u coisa horrível. Mas tive tanta vontade de fazer que fiz contra [ ]” (LI PE TOR, 2005, p. 55). Ocorre, todavia, que c c c qu : “E u que você não pode imaginar: comecei a fazer uma cena [...], uma cena antiga, tipo tragédia Idade Média, com coro, c , , , ” (LI PE TOR, 2005, p. 55). No tocante à contribuição cultural da escritora no compêndio literário nacional, não é forçoso trazer à baila o pensamento do estudioso Edgar Cézar Nolasco. Para ele: Não é preciso ser clariceano, basta gostar da literatura brasileira, ou simplesmente de literatura, para entender que a intelectual Clarice Lispector escavou um lugar abissal na tradição literária brasileira, relegando aos pósteros uma herança inegável. Se 380 ANAIS - 2013 espectro não for assexuado, diríamos que o fato de Clarice ser mulher contribuiu para que a marca de tal herança se inscrevesse na história de nossa cultura intelectual, posto que na outra ponta tínhamos ninguém menos que um Machado de Assis. (NOLASCO, 2007, p. 10-11). De acordo com Bosi (1994), Clarice Lispector insere-se na geração de 45, com o chamado romance introspectivo. Para o crítico literário Clarice Lispector se manteria fiel as suas primeiras conquistas formais. O uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao fluxo da consciência, a ruptura como enredo factual têm sido constantes do seu estilo de narrar que na sua manifesta heterodoxia, lembra o modelo batizado por Umberto Eco “ ” (BO I, 1994, 434) O texto teatral A pecadora queimada foi escrito com base no contexto da Idade Média, quando mulheres adúlteras eram queimadas perante a população, num ritual que refletia u f u f c çã c N gé , “[ ] mulher-pecadora mantém-se silenciosa durante sua condenação [ ]” ( OME , 2007, 52) A fábula é aparentemente simples e o leitmotiv gira em torno de uma relação adúltera. O amante não sabia que sua c c , , u “ í ” f - , g “ c ” E contraponto, há o esposo traído, que, ironicamente, pensava que vivia feliz, que sua mulher vivia por ele. Munido de um amor grandioso, sofre pelo fato de saber que ficará sem a esposa e 381 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ainda deseja tê-la novamente em seus braços. Quer vingar-se, todavia também deseja possuí-la, o que gera um conflito interior. O povo clama por justiça, pois pretendem ver a mulher sendo destinada à fogueira, para purificação dos pecados. Nesse g , u çã j “c c ” b ,g qu ê f , , f é “ju ç ” “ u f c çã ” I c qu u é direcionada para toda a sociedade feminina, ou seja, servirá de exemplo para que nenhuma outra mulher possa ser “c ” c g f , sacerdote precisa cumprir o que preconiza as leis patriarcais, porém sua matéria carnal masculina não deseja a morte da mulher pecadora. O enredo ganha dimensão poética quando os anjos invisíveis irão nascer à medida que a pecadora for queimada; pois estes revelam ao leitor/espectador como é estar no caminho entre dois lugares (no entre-lugar), nem na terra, nem tampouco no céu. Já os guardas são lutadores pela pátria e obediência ao rei, porém esclarecem que velam pelo destino de um coração. Quanto à mulher, demonstra felicidade por saber que será queimada, pois desfrutou dos seus desejos, e a morte é a f c qu á“ u fc ” f g N ú cena, a mulher é queimada e os anjos nascem e felicitam a vida na terra. 1. Teatro, tragédia e religião De origem g g , “ theatron [teatro] revela uma propriedade esquecida, porém fundamental dessa arte: é o local de onde o público olha uma ação que lhe é apresentada num u ug ” (P VI , 2008, 372) 382 ANAIS - 2013 Ainda esclarece Pavis que há outra definição de teatro: [...] é um ponto de vista sobre um acontecimento um olhar, um ângulo de visão e raios ópticos que o constituem. Tão somente pelo deslocamento da relação entre olhar e objeto olhado é que ocorre a construção onde tem que lugar a representação (PAVIS, 2008, p.372). Como nosso objeto em si é o texto dramático, devemos enfocar a definição de teatro articulada por Pascolati (2009, p. 93): Tem origem no grego theatron que significa miradouro lugar de onde se vê ou se observa algo, por isso o termo está associado à arte da representação cênica, indicando também o local onde a representação acontece, visão e observação implicam a ideia de público, plateia assistência [...] Deste modo, o termo teatro é associado à dimensão espetacular do fenômeno teatral [...] Já a palavra drama, em grego significa ação, remetendo à existência de uma tensão de um conflito entre as vontades das personagens e uma consequente dinâmica de causa e efeito entre suas ações, de uma tensão, de um conflito entre as vontades das personagens e uma consequente dinâmica de causa e efeito entre suas ações. Na tragédia A pecadora queimada, o conflito a que remete Pascolati (2009) surge constantemente: estão em tensão 383 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento “ g ” “u c qu â c causa e efeito entre u çõ ” P b qu ã ug “ ” homens ao mesmo tempo em plena na Idade Média, e, como toda causa tem um efeito, a mulher adúltera é condenada pela sociedade, deslocando“h ó ” ug do trágico. D , cu f qu cábu “ ág c ” exibe três classificações principais: tragédia doméstica, tragédia heroica e tragédia política. Com efeito, Pavis (1999) define a tragédia domestica como nome do gênero empregado no século XVIII por Diderot, para designar o drama burguês. Já a tragédia heroica trata-se de uma imitação da tragédia clássica francesa, dentro de um estilo elevado e patético, com uma temática romanesca e idealista. Por fim, define a tragédia política como tragédia que retoma elementos históricos autênticos. De acordo com Pascolati (2009) os gêneros literários não são puros nem estagnados, na maioria das vezes exercendo funções como classificações didáticas. Partindo pelos princípios da Poética, de Aristóteles, afirma que a tragédia é a espécie de poesia merecedora de maior atenção por parte do teórico, e que o drama caracteriza-se pelo modo de imitação, assim, é possível compreendermos que: A tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos os adornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; e que, despertando a piedade e temor, tem por resultado a catarse dessas emoções (ARISTÓTELES, 1999, p.43). 384 ANAIS - 2013 Pavis (1999) discorre sobre alguns elementos fundamentais que caracterizam a obra trágica, destacando as purgações das paixões pela produção do terror e da piedade, o ato do herói que põe em movimento o processo que conduzirá a perda, o orgulho e teimosia do herói que persevera apesar das advertências e recusa esquivar-se, e o sofrimento por parte do herói que é exposto ao publico. Clarice Lispector utilizou a imitação de uma ação com uma linguagem diferenciada, o silêncio da personagem que se expressa apenas por gestos, fazendo surgir no leitor à emoção, a catarse, provocada pela ação de uma mulher pecadora adúltera c à É b qu “ c ” ã apresenta nenhuma marcação de voz no texto, ou seja, o silêncio é a sua única significação. Diante destes fatores, destaca-se que o trágico está vinculado ao: [...] fenômeno teatral da Grécia [...] se prende à circunstância de que os espetáculos eram a culminação das homenagens prestadas a Dionísio. Nascido do culto a essa divindade, o teatro consistia no programa de festas a ela dedicadas. O sacerdote de Dionísio presidia a representação e um crime cometido no decurso dela era considerado sacrilégio. Está implícito aí um compromisso religioso anterior, em parte estranho ao teatro. Na tragédia, sentindo o terror e a piedade, como o castigo divino infligido ao herói, o público se purgava dos seus males. A catarse não trazia apenas prazer estético: vinculava-se a ela conhecimento filosófico, moral e religioso cumulando de sabedoria o espectador. Não obstante a laicização 385 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento progressiva, o teatro grego sempre guardou o caráter religioso de sua origem. (MAGALDI, 1998, p. 74). Observamos que, nos espetáculos em homenagem a Dionísio, insere-se a tragédia: um crime cometido só poderia ser expurgado por intermédio da morte, um costume moral e religioso, assim como ocorre no texto teatral em estudo. A mulher pecadora cometeu adultério, de modo que sua purificação ou a expurgação de seus pecados só seria possível “ ”, u gé , qu u sat f çã c á c E u , “ ” é observada como elemento necessário para a finalização do conflito. Assim, envolta num universo repleto de alegorias factuais, a escrita de A pecadora queimada surge como um fantasma que desfia o entendimento absoluto, bem como qualquer linearidade discursiva e metodológica preconizada c çõ ch “ ç b -f ” N qu g ao espaço diegético, podemos inferir que [...] sua escrita pode ser tomada como um grande fantasma (aliás, fantasmática por excelência) desafiador, tanto quanto sua própria vida diaspórica, clandestina e nômade [...]. Sua escrita é desafiadora para a autora e para seu leitor em vários sentidos. Enquanto escrita fantasmática, ela trai a escritora naquilo onde ela mais procura denegar, fazendo com que uma imagem espectral da autora se esboce num desenho, ou traço sutil na escritura (NOLASCO, 2007, p. 11). 386 ANAIS - 2013 Importa considerar que Lispector evoca o episódio bíblico do Novo Testamento - em que Cristo perdoa e a morte da mulher era por apedrejamento2 – e o põe em confronto com as práticas da Igreja na Idade Média – sem perdão e morte na fogueira. Ao inscrever, no século XX, a história da mulher adúltera, evoca, por outro lado, uma questão bem em voga à época da escritura da obra: as discussões de gênero. Segundo Louro (2008), o gênero está relacionado ao campo social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre homens e mulheres. Ainda esclarece a autora que não devemos buscar explicações nas diferenças biológicas, mas sim na história, na sociedade e nas formas de representação. Com efeito, na tragédia claricena, notamos a c çã uh , ú c u “ c ” Nesse contexto, ainda ressalta Louro (2008, p. 23) que “ c c çõ gê f ã sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerarem os diversos grupos (étnicos, g , c , c ) qu c u ” 2. Personagem e silêncio: modos de significação De acordo com Jean Pierre Ryngaert (1996, p. 126), “ é ác , h , ã personagem esboçada pelo autor dramático. O ator é somente um interprete que não se confunde com a ficção e que o público 2 E os escribas e fariseus trouxeram – lhe uma mulher apanhada em adultério. E pondo-a no meio, disseram-lhe; Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando, e na lei, nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas.(JOÃO, 8:3-5). 387 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento não assimila imediatamente a uma encarnação da personagem xu ” Na peça, a personagem que Clarice Lispector esboçou configura a pecadora, uma vez que o ator é apenas o intérprete da personagem textual, mas quando observamos a ação da personagem da mulher (pecadora) fica evidente a presença do ator inserido na personagem. Importa mencionar que a personagem teatral, no instante qu g úb c , “ çã A história não nos é contada, mas mostrada como se fosse de f ó ” (PR DO, 2009, 85) Também é relevante destacar que a personagem deverá “ b c ” (P LLOTTINI, 1989, 69) texto dramático. Além disso, cumpre destacar que a tragédia clariceana apr “[ ] ê c f g á , à exploração de uma linguagem que aproxima o texto das novas é c [ ]” ( OME , 2007, 56) E A pecadora queimada, a mulher pecadora atua (mostra-se) por meio do ê c , qu b ã j “ b á ”, “ ã é o vazio, mesmo do ponto de vista da percepção: nós sentimos, á á’” (ORL NDI, 2007, 45), “ c f ” (ORL NDI, 2007, 32), , “qu silêncio, nós não temos marcas formais, m , ç ” (ORLANDI, 2007, p. 46). Para Anne Ubersfeld (2005), o texto de teatro é necessariamente composto por duas partes distintas, porém indissociáveis: o diálogo e as didascálias (grifo nosso). Segundo a autora, a relação textual diálogo-didascálias é variável de acordo com as épocas da história do teatro. Em alguns textos, por opção dos próprios autores, as didascálias são quase inexistentes ou muito escassas, porém representam um importante elemento do teatro, especialmente o contemporâneo. 388 ANAIS - 2013 Nesse segmento, o silêncio e a palavra estão em relação de contraponto nas ações que se desencadeiam em A pecadora queimada. Com poucas didascálias e raras referências ao cenário e, por extensão, à indumentária das personagens, a peça inova: a cenografia ocupa papel secundário, ao passo que a ação física e verbal das personagens ocupa papel de destaque. Conforme afirma Rosenfeld (2009), no teatro, é a personagem que, absorvendo as palavras do texto, passa a ser a fonte delas, aproximando-se do real. Assim, “fu c ó ácu ”, h e contemplar, por meio dela, a plenitude de sua condição; no caso, a de subalternidade. Traçando o elo entre opressor (sociedade patriarcal) e ( “ c ”), ilenciamento inscrito na peça, ao contrário do que pressupõe a própria semântica do da palavra, ã é uê c , g f c çã “ gu g c silêncio [...] é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é vazio sem história. É o silêncio g fc ” (ORL NDI, 2007, 23) Os traços marcados no texto são o riso da pecadora e o próprio silêncio que incomoda a sociedade à qual pertence, produzindo efeito de estranhamento no texto em estudo. Estranhamento que, segundo Baudelaire (apud GOMES, 1997, 51), c z “ qu qu é , u á do desprezo do homem e pela imensa variedade que o Universo f c ” T bé é c á c qu “b ó admitido como tal se contiver em si algo de relativo, de c cu c ” ( OME , 1997, 56) g c u -se nesse perfil circunstancial, pois, à época, seria um agravo à c u “ u é ”, qu u 389 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento circunstancial foi o silêncio e apenas o riso, que demonstra uma crítica à sociedade e uma atitude revolucionária para a época. POVO – Está sorrindo, está sorrindo e está sorrindo. ESPOSO – E seus olhos brilham úmidos como numa glória [...]. MULHER DO POVO – Afinal que sucede que esta mulher a ser queimada já se torna a sua própria história? POVO – A que sorri esta mulher? 1º E 2º GUARDA – Ao pecado (LISPECTOR, 2005, p. 65). De acordo com Baudelaire (apud GOMES, 1997, p. 66), “ c çã , quê c , c , é qual o homem entra em c c c fu ” Como se verifica no exemplo acima, o texto sugere que a mulher pecadora, quando julgada, entra em devaneio3. Em se tratando do riso da mulher (pecadora), pode-se compreendê-lo ou interpretá-lo na esteira de Baudelaire (apud OME , 1997, 82): “O é x ã superioridade, não mais do homem sobre o homem, mas do h b u z ” u c c bu ocasionar um efeito de dissonância, tornando-se até mesmo bz E bz , ju çã “c ág c , ã agradável ao espírito como as dissonâncias o são as pessoas [ ]” ( OME , 1997, 82) Importa evocar as palavras de Edgar Alan Poe (apud MENDES, 1997, p. 913): 3 A faculdade do devaneio é uma faculdade divina e misteriosa; porque é pelo sonho que o homem comunica com o mundo tenebroso que o envolve (GOMES, 1997, p.66). 390 ANAIS - 2013 O prazer que seja ao mesmo tempo o mais intenso, o mais enlevante e o mais puro é, creio eu, encontrado na contemplação do belo. Quando, de fato, os homens falam de beleza querem exprimir, precisamente, não uma qualidade, como se supõe, mas se supõe, mas um efeito, referem-se em suma, precisamente àquela intensa e pura elevação da alma. No texto dramático A pecadora queimada, a presença do prazer surge na pecadora e ocorre a contemplação do belo no momento em que há elevação de sua alma, um sair de si e u “ u ”, c h c , , imaginação, e essa contemplação as personagens percebem na face da mulher com o sorriso denotando prazer. Clarice Lispector, por meio dessa obra, vem desmitificar a atitude machista da sociedade em que estava inserida, pois esse texto foi escrito em um momento de pós-guerra e publicado à época da ditadura militar, quando o Estado e a Igreja detinham o poder e o discurso machista prevalecia. A mulher não tinha voz, e a partir do texto observamos a ousadia clariceana em uma peça cujos personagens são do espaço religioso. Existe o prazer também com as personagens (povo), cujas falas trazem traços marcantes: POVO – Há dias temos fome e aqui estamos a buscar alimento POVO – É aquela que na verdade a ninguém se deu, e agora é toda nossa.[...] ANJOS INVISÍVEIS – mesmo aquém da orla do mundo nós mal entendemos quanto mais vós, os famintos, e vós, os saciados. 391 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Que vos baste a sentença geradora: o que tem de ser feito será feito, este é o único princípio perfeito.[...]. POVO – Não compreendemos, temos fome e temos fome [...]. POVO – Que bela cor de trigo tem a carne queimada [...] temos fome de carne assada. (LISPECTOR, 2005, p. 62-63). O povo (personagem) apresenta no texto uma fome, contudo a metáfora está permeada nesse trecho, em que o prazer pela morte da pecadora consiste em um ato (imaginário) de purificação na sociedade. O canibalismo de comer carne assada, por sua vez, é uma metáfora que fortalece a criatividade do x : h “c ” , u j , minoria (neste tópico a mulher em pecado), portanto a pecadora (minoria) sendo devorada pela maioria. Por intermédio do prazer interno da personagem, há uma cóg : c f “ ” , u uh rompeu os obstáculos de uma sociedade com pudores, que castiga apenas as mulheres. Lispector traz, para as cenas, no texto, aspectos das relações de poder versus não poder (grifo nosso) travadas entre homem e mulher: [...] a condição da mulher na Era Vitoriana (1832-1901) foi tenazmente marcada por diversos tipos de discriminações, justificadas como o argumento da suposta inferioridade intelectual das mulheres, cujo cérebro pesaria 2 libras e 11 onças, contra 3 libras e meia do cérebro masculino. Resulta disso que a mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua 392 ANAIS - 2013 delicadeza, compreensão, submissão, afeição ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas, bem como a tradição religiosa. (ZOLIN, 2009, p.220). Na Idade Média, a voz feminina não se fazia ouvir; era reprimida pela tradição. Na década de 1960, um novo olhar seria lançado para a voz feminina na literatura e outras áreas. 3. Da alegoria à cena: os anjos harmoniosos O que poderia ser a harmonia nesse contexto clariceano? gu c á H u , “h ” é “[...] combinação de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relação de pertinência, que produz uma sensação agradável e de prazer [...], coordenação dos componentes imateriais do universo, as mônadas, que, despeito de sua autonomia característica foram disposta de maneira complementar a g D u íc [ ]” (HOU I , 2001, p.1.506). Dessa perspectiva, consideramos que esses anjos harmoniosos seriam imateriais do universo, uma integração de Deus, representando um estado de ligação entre céu e a terra, uma combinação de elementos diferentes, ligados em uma relação de sensação agradável como podemos observar neste trecho: ANJOS INVISÍVEIS – Eis-nos aqui quase, vindos pelo longo caminho que existe antes de vós. Mas não estamos cansados, tal estrada não exige força, e, se vigor reclamasse, nem o de vossa prece nos 393 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ergueria. Só uma vertigem é o que faz rodopiar aos gritos com as folhas até a abertura de um nascimento. Basta uma vertigem que sabemos?[...] Não estamos cansados, nossos pés jamais foram lavados Grasnando a esta próxima diversão, viemos sofrer o que tem que sofrer o que tem que ser sofrido, nós que ainda não fomos tocados, nós que ainda não somos o menino e menina. Eis-nos nas malhas da tragédia verdadeira, da qual extrairemos a nossa forma primeira. Quando abrirmos os olhos para sermos os nascidos, de nada lembraremos: crianças balbuciantes seremos e vossas mesmas armas empunharemos. Cegos no caminho que antecede passos, cegos prosseguiremos quando de olhos já vendo nascermos. Também ignoramos a que viemos. Basta-nos a convicção de que aquilo a ser feito será feito: queda de anjo é direção, Nosso verdadeiro começo é anterior ao visível começo e nosso verdadeiro fim será posterior ao fim visível. A harmonia, a terrível harmonia, é nosso único destino prévio (LISPECTOR, 2005, p.57). Observamos que os anjos são crianças que ainda não nasceram e, no instante em que nascerem, não lembrarão a tragédia presenciada por eles enquanto são anjos. Por isto são harmoniosos: estão ainda em um local em que não há sentimento de dores, apenas prazer, contudo, ao nascerem, f ã qu “ c ” f 4. Entre o amor e o ódio: em cena, o Esposo 394 ANAIS - 2013 Ao nos referirmos ao esposo no texto, notamos a presença de amor, ódio e vingança, todavia o que fica evidente é o amor, pois a vingança é concedida pelo julgamento das pessoas que pertencem àquela região. Aparentemente, o esposo mostra um amor que pode superar o adultério, contudo o pudor não lhe permite tal façanha. Embora ame a esposa, quer assassiná-la, vingar-se da traição, no mesmo instante deseja tê-la em seus braços. Vejamos alguns fragmentos do texto: Ei-la, a que será queimada pela minha cólera. Quem falou através de mim que me deu tal fatal poder? Fui eu aquele que incitou a palavra do sacerdote e juntou a tropa deste povo e despertou a lança dos guardas, e deu a este pátio tal ar de glória que abate os seus muros. Ah, esposa ainda amada, desta invasão eu queria estar livre. Sonhava estar só contigo e recordar-te nossa alegria passada.[...] Que sucede a este meu coração que não reconhece mais o filho vê sua Vingança? Ah, remorso: eu deveria ter vibrado o punhal com minha própria mão e saberia então que, se fora eu o traído era eu mesmo o vingado. Mas esta cena não é mais de meu mundo, e esta mulher, que recebi na modéstia, eu perco ao som das trombetas. Deixai-me só com a pecadora. Quero recuperar meu antigo amor, e depois encher-me de ódio, e depois eu mesmo assassiná-la, e depois adorá-la de novo, e depois jamais esquecê-la, deixai-me só com a pecadora, quero possuir a minha desgraça e minha vingança e a minha perda, e vós 395 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento todos impedis que seja o senhor deste incêndio, deixai-me só com a pecadora. (grifo nosso) (LISPECTOR, 2005, p.60). E ainda devemos ressaltar que o sentimento de ser incendiado não foi da pecadora, mas sim do esposo, e ele não se sente vitorioso com a morte da esposa; somente o povo, o sacerdote e os guardas: ESPOSO – Ira impotente: ei-la sorrindo, de mim ainda mais ausente do que quando era de um outro. Por que ouve-me este povo tão mais do que minhas palavras queriam ser ouvidas? Ah mecanismo cruel que O incitamento ao incêndio foi meu, mas não será minha vitória: esta pertence agora ao povo, ao Sacerdote, aos guardas. Pois vós infelizes, esconder não podeis que é de meu infortúnio que enfim vivereis. (LISPECTOR, 2005, p.64-65). A beleza poética sucede por meio da morte da mulher amada, como cita Poe (apud MENDES, 1997, p. 915) em seu ensaio Filosofia da composição: De todos os temas melancólicos, qual segundo a compreensão universal da hu , é có c ? ” Morte – f ” E qu – insisti esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético? Pelo que já explanei, um tanto prolongamente, a resposta também aí era evidente: Quando ele se alia mais de perto à Beleza; a Morte, pois de uma bela 396 ANAIS - 2013 mulher é, inquestionavelmente, o mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor. B z c èc à “[ ] aspecto de g , c u g , qu [ ]” (HOUAISS, 2001, p. 2499), a que se agraga ç h “[ ] substância venenosa, malícia [...] (HOUAISS, 2001, p. 2161). Inscreve-se, aqui, a imagem da beleza tentadora: como uma serpente que domina sua presa, assim a pecadora, com sua beleza insinuante, envolve não só o esposo, mas também o amante. Importa salientar que a peçonha, uma característica atribuída à mulher, também evoca a história de Adão, Eva e a serpente, com um tom de criatividade e Beleza: a peçonha da ê c é “ f ” à uh , u , metonimicamente, a relação mulher-pecado versus homemí E “ á c é ”, c f x bíblico, esta vem para destruir o veneno da serpente, completando o belo. Destaca-se que para Baudelaire, o belo u “c çã u ”, f u “ , á ” “ , c cu c ”, u seja, na era moderna, já não mais se admite o belo absoluto, à medida que ele não refletiria a multiplicidade da época.(GOMES, 1997, p. 55-56). “E PO O – Mas na transparência de um brilhante ela já perscrutava a vida de uma amante. Quem vos diz é quem experimentou a peçonha: acautelai-vos de uma mulher que h ” (LI PE TOR, 2005, 62) (grifo nosso). O esposo ferido caracteriza a esposa como peçonhenta, capaz de envenenar (com amor) os homens. “POVO – Marcada pela Salamandra” (LI PE TOR, 2005, p. 66) (grifo nosso). 397 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Em se tratando da Salamandra, também é um anfíbio perigoso cuja principal característica é camuflar-se: conforme o lugar, sua cor é diferente, confundindo ou enganando sua presa. Uma espécie de duas personalidades, representando a histórica equivocidade do feminino marcada nos discursos do senso comum. Bela imagem, se pensarmos, por exemplo, na c c çã “b z ”, u “B ” f P (cf MENDES, 1997, p. 914). 5. Na cena textual, o Amante O amante sentiu-se também traído pela pecadora porque não tinha conhecimento de que fazia parte de um triângulo amoroso. A partir do momento e que descobre, inicia-se a dor em seu íntimo e sente-se como um esposo traído: AMANTE – Pois esta mulher nos meus braços a seu esposo enganava, nos braços do esposo enganava aquele que o enganava.[...] AMANTE – Mas eu não rio e por um momento não sofro. Abro os olhos até agora fechados pela jactância,e vos pergunto quem? Quem é esta estrangeira, que é esta solitária a quem não bastou um coração.[...] AMANTE – Pois na sua límpida alegria ela me vinha tão singular que jamais eu a suporia vida de um lar.[...] AMANTE – É aquela irrevelada que só a dor aos meus olhos revelou. Pela primeira vez, amo, e não à minha paz.[...] (LISPECTOR, 2005, p.61-62). 398 ANAIS - 2013 Mediante um amor proibido, o amante não demonstra arrependimento de amar a pecadora; se pudesse, ele a amaria novamente, sem se importar com os riscos que corria. Observamos o trecho em negrito abaixo: AMANTE – Que veio fazer esta gente? Sozinha comigo, ela amaria de novo, de novo pecaria, arrepender-se –ia de novo – e assim num só instante o Amor de novo se realizaria, aquele em que em si próprio traz o seu punhal e fim Eu te lembraria dos recados ao cair da noite...O cavalo impaciente aguarda, a lanterna no pátio... E depois... ah terra, teus campos ao amanhecer , certa janela que já começava no escuro a madrugar . É o vinho que de alegria eu depois bebia, até com lágrimas de bêbado me turvar.(ah então é verdade que mesmo na felicidade eu já procurava nas lágrimas o gosto prévio da desgraça experimentar). (grifo nosso). (LISPECTOR, 2005, p. 6364). Finalmente o amante conclui que também não vivia, mas era a pecadora quem vivia nele: foi vivido. Os homens não são, em sociedades patriarcais ou machistas, castigados. Com isso, o amante não é queimado; apenas a mulher; é isento do ato do u é , c gu c “ qu não sou queimado. Estou sob o signo do mesmo fado, mas, h gé ã áj ” (LI PE TOR, 2005, 66) Considerações finais 399 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento O cumprimento dos objetivos propostos para este artigo contribui para compreensão da relação e da pertinência da tensão, pois segundo Staiger (1975), há duas formas de expressão do estilo dramático: o pathos (sofrimento, emoção, circunstâncias que provocam piedade ou tristeza) e o estilo problemático, ambas organizadas em torno da tensão que ocorre no texto. Nesse segmento, a tensão dramática está centralizada na mulher pecadora, que, por meio do silêncio, acaba por aceitar (ou desafiar) o tratamento de desigualdade entre homens e uh , “ c ”, c é c x teatral, é uma mulher que prefere morrer a ser submissa às leis que circundam seu meio social. Com a diminuição do espaço e do tempo diegético em relação ao leitor/espectador, a Clarice Lispector rompe com “[ ] êncio, escreve na tentativa de captar o instante-já [ ]” (GOMES, 2007, p. 53). Dessa forma, pelo silêncio e pelo riso, a mulher pecadora ao mesmo tempo aceita a punição e zomba da sociedade, já que o riso (também) era proibido e passível de punição na Idade Média. A mulher pecadora surge como uma alegoria utilizada pela autora, que bebe na fonte Bíblia, na lei de Moisés (antigo testamento), e, por intermédio do seu talento individual (para se fazer menção às palavras de T.S. Elliot), traz à tona, para a sociedade da época em que se pronuncia, uma reflexão sobre a submissão da mulher ao homem, à Igreja às convenções sociais. D f , “ çã , c ç , ã u tendência criadora, mas também sua tendência crítica de pensar; e está também mais alheia às falhas e limitações de seus hábitos cí c qu à u gê c ” (ELLIOT, 1989, 37) Com efeito, devemos considerar que é na crítica velada e “ ê c c u ” ( ão) dizer da escritora que se 400 ANAIS - 2013 insinua uma proposta para que as mulheres aproveitem a reflexão e reajam. Enfim, não é forçoso ponderar que o texto dramático de Lispector é uma fonte artística inesgotável, que, a partir de outras leituras, poderá ser explorada por distintas perspectivas de análise. Referências ARISTÓTELES. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. BIBLIA SAGRADA PENTECOSTAL. [Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida]. Revista e Atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura Brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 1970. ELLIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: _______. Ensaios. [Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira]. São Paulo: Art Editora, 1989, p. 37-48. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. [Trad. Dora F. da Silva]. 2.ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991. GOMES, Álvaro Cardoso. A santidade do alquimista: ensaios sobre Poe e Baudelaire. São Paulo: Unimarco Ed., 1997. GOMES, André Luis. Esboço das adaptações teatrais de textos clariceanos. 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Maringá: EDUEM, 2009, p.217-242. 403 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Confissões na poesia de Arlinda Pessoa Morbeck Lucimeire Batista CAMACHO1 Mário Cézar Silva LEITE2 RESUMO: Este trabalho abordará uma discussão sobre o texto autobiográfico e a poesia, apresentando traços da escrita confessional presentes nas poesias da escritora Arlinda Pessoa Morbeck que utiliza ‘ u í c ’ f é critora mostra os fatos de sua vida cotidiana para desabafar o que sente, o que sentiu, o que pensa e estabeleceu, assim, com um pacto de confidencias. Ao retratar, fazer um recorte da sua vida, o escritor torna-a ficcional, ao retornar as memórias para escrever sua autobiografia cria novas imagens, sensações, sentimentos, recordações. As poesias de Arlinda Pessoa Morbeck apresentam características da autobiografia: autora e personagem da própria história que por meio da memória escreve sua “b g f ”, im este trabalho apresentará argumentos afim de mostrar características do texto confessional na poesia desta escritora. PALAVRAS-CHAVE: Memórias; Poesia; Confessional; Autobiografia. Introdução A Literatura Confessional trata da escrita do eu, é como se o autor trocasse um imaterial aperto de mão com o leitor, um c , u qu f qu ‘ ’ acreditando ser a história da vida desse autor. Sobre este acordo entre autor e leitor Philippe Lejeune (2008) fala de pacto1 Mestranda - Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT - E-mail: [email protected] 2 Prof. Doutor do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT - E-mail: [email protected] 404 ANAIS - 2013 autobiográfico, que ocorre nas narrativas autobiográficas. Assim este trabalho abordará uma discussão sobre o texto autobiográfico e a poesia, apresentando traços da escrita confessional presentes nas poesias da escritora Arlinda Pessoa M b ck qu u z ‘ u í c ’ f é poesia a escritora traz os fatos de sua vida cotidiana para desabafar o que sente, o que sentiu, o que pensa e estabeleceu, assim, com um pacto de confidencias. Ao retratar, fazer um recorte da sua vida, o escritor torna-a ficcional, ao retornar as memórias para escrever sua autobiografia cria novas imagens, sensações, sentimentos, recordações. As poesias de Arlinda Pessoa Morbeck apresentam características da autobiografia: autora e personagem da própria h ó , qu ó c u “b g f ” para isto faz uso da poesia e não da prosa, instaura-se um conflito pois a poesia não poderia ser considerada autobiografia por que não preenche todos os elementos característicos deste tipo de texto, a prosa, portanto neste trabalho apresentar-se-á argumentos afim de mostrar características do texto confessional na poesia desta escritora. 1. A Literatura Confessional O gênero literatura confessional é recente embora seja uma literatura que sempre existiu, pois o desejo de escrever b ‘ u’ é c , qu hu c qu salvar a sua história da morte (MACIEL, 2004, p. 01) e a Literatura Confessional era vista como não-ficcional, pelas características autobiográficas, o que a separava dos demais gêneros ditos canônicos. De acordo com Dicionário de Termos L á ,L u é f cçã “D í c c u qu L u é ficção, ou imaginação. [...] Literatura é a expressão dos 405 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras , u áf ” (MOI É , 2004, 269) Se Literatura é ficção e os textos confessionais não eram considerados ficção, estes não poderiam ser um gênero da Literatura. Porém o conceito de ficção fazc qu “ ficção é um discurso tão digno de crédito como outro qualquer, porque, como qualquer outro, ela faz uma leitura do real. Reduplicadora ou contestadora, não importa, mas uma leitura tão confiável quanto a da c ê c u h ó ” (W LTY, 1985, p. 79). A ficção, então, é apenas uma visão de alguma pessoa que está retratando, imaginando ou criando determinado f , qu u ã ‘ f ’ u U escritor ao fazer um recorte da realidade e retratar o fato por uma determinada linguagem transforma essa realidade em ficção, porque ele vê a partir uma perspectiva seja ela social, emocional, política e traz isso em seu discurso. Contudo, não há literatura que não tenha elementos da realidade, assim como a chamada literatura intimista ou confessional não está isenta de desvios da linguagem, posto que é impossível transpor qualquer realidade fielmente retratada para a página escrita. Os gêneros ficcionais, portanto, são como qualquer discurso, uma produção humana entrecortada de ficção. (MACIEL, 2004, p. 01) Deste modo um escritor ao retratar sua vida, em uma autobiografia por exemplo, está tornando-a ficção. Em suma, o que não for vida é ficção. A literatura é o registro do que a história não contou, e, a literatura confessional é o meio termo entre a literatura e a história. Na Literatura Confessional u “ u” qu f “ ” u u “ u”, j por meio de autobiografias, memórias, romance pessoal, poema 406 ANAIS - 2013 autobiográfico, diário, auto-retrato ou ensaio (LEJEUNE, 2008, p. 14-15) Os textos confessionais são narrativos (narrar é sempre no passado), em prosa, em primeira pessoa, se é um texto narrativo o autor vai lançar mão das suas memórias (passado) para escrever, e a memória (máquina mental ativa) é acionada pelo sujeito do presente3. Este passado pode ser um passado distante ou um passado recém acabado. O que faz um texto ser confessional é a recepção da obra, como o leitor se coloca para receber a obra. É o leitor que completa as expectativas do texto. “[ ] é u qu f z fu c ” (LEJEUNE, 2008, p. 14). É a recepção do leitor, como este se posiciona para receber o sentido da obra (romance, memória, poesia, aquilo que está escrito na capa do livro) que faz com que o texto seja confessional. Amigos – diz Nelson Rodrigues em certa crônica -, eu gosto muito de falar de mim mesmo. Sempre que conto uma experiência pessoal, sinto que nasce, entre mim e o leitor, toda uma identificação profunda. É como se, através do meu texto, trocássemos um imaterial aperto de mão. (FISHER, 2003, p. 38-39) A Literatura Confessional trata dessa escrita do eu, FISHER (2003) cita que é como se o autor trocasse um imaterial aperto de mão com o leitor, um acordo, entre o autor que vai f qu ‘ ’ c h ória da 3 Fala da Profª. Drª. Rita de Cássia Pacheco Limbert (UFGD), 29/04/2011 às 10h na UFMT, ao falar de Identidade na defesa de Dissertação de mestrado de Leandro Faustino Polastrini. 407 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento vida desse autor. Sobre este acordo entre autor e leitor Philippe Lejeune (2008) fala de pacto-autobiográfico, que ocorre nas narrativas autobiográficas “[ ] O que define a autobiografia para quem a lê é, antes de tudo, um contrato de identidade que é ó ” (LEJEUNE, 2008, p. 94). Assim a autobiografia é caracterizada pelo acordo feito entre autor e leitor, de que o texto é sobre a vida desse autor, que se confirma por este ser o personagem da narrativa (apresentado-se com o n ó ) “P qu h j u b g f ( , u perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja çã u , g ” (LEJEUNE, 2008, p. 15). Philippe Lejeune (2008) acredita que para haver autobiografia o autor tem que ser o narrador e o personagem de sua própria história, definindo assim a autobiografia: DEFINIÇÃO: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade. (LEJEUNE, 2008, p. 14) Philippe Lejeune (2008) trata de alguns elementos que corroboram para este conceito: A forma da linguagem, que é sempre narrativa e em prosa; O assunto tratado tem que ser a vida individual, história de uma personalidade; A situação do autor, sua identidade como autor e narrador tem que ser a mesma, o nome deve remeter a pessoa real; A posição do narrador, a identidade do narrador e do personagem principal e a perspectiva de retorno ao passado, retrospectiva da narrativa. 2. Confissões nos poemas de Arlinda Pessoa Morbeck 408 ANAIS - 2013 Apresentar-se-á os traços confessionais presentes nas c P M b ck qu u z ‘ u í c ’ f P M rbeck nasceu em 1889, Salvador-Bahia, casou-se em 1911 e mudou-se para Mato Grosso acompanhando o marido onde viveu até 1940 depois foi para o Estado de São Paulo priorizando a educação dos seis filhos, morou em Valparaíso-SP até sua morte em 19604. A escritora utiliza-se da poesia para narrar fatos de sua vida cotidiana e para desabafar o que sente, o que sentiu, o que :“ ã é qu cuu b si mesmo na trama do mundo como parte do espetáculo, vendof ” ( NDIDO, 1989, 55), estabelecendo, assim, com seu caderno de poesias um pacto de confidencias. Não é vaidade, é um desejo somente Que tenho de ti ver encadernado! Meu fiel companheiro, o confidente Dos meus segredos! Oh!... Meu Livro amado! (...) Não é orgulho nem também verdade Meu desejo de ti ver encadernado, Em cada letra tens uma saudade, Em cada página lembras o meu passado! (VERLANGIERI; MORBECK; RANDAZZO, 2008, p. 181) 4 FILHO, Milton Pessoa Morbeck. Revolução Morbeck x Carvalinho. Disponível em: <http://www.morbeckxcarvalhinho.com.br/index.php?ver=pagina&titulopoes ia=Quem%20foi%20Arlinda%20Pessoa%20Morbeck> Acesso em: 06 Set 2010. 409 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento O x é u ‘ u í c ’ qu f , revela seus segredos, como se o caderno de poesias fosse seu fiel confidente Meu fiel companheiro, o confidente / dos meus segredos! assemelha-se ao modus operandi do diário intímo usando o caderno como interlocutor. A autora faz uso do passado, das memórias e mitologicamente a poesia lírica (Erato) é filha da memória (Mnemosine)5. A memória, então, está ligada diretamente à lírica, a expressão dos sentimentos pela da poesia, como saudade, felicidade são construídos pela memória do sujeito do presente. Em cada letra tens uma saudade, em cada página lembras o meu passado! Em algumas poesias Arlinda utiliza-se de um passado recente, a medida que os fatos acontecem, e registrando-os: Chegou o mês de Maio enfeitado de flores nos jardins as roseiras ficam mais viçosas, os botões que se abrem transformam-se em rosas e as pétalas macias exalam mais ardores! (VERLANGIERI; MORBECK; RANDAZZO, 2008, p. 128) O cotidiano é a inspiração da escritora, na medida em que percebe mudanças ela registra-as em seu caderno de poesias. Esta é uma característica do texto confessional ch D á “O á ã bé u , mas a um passado recém acabado, sem um objetivo preciso de buscar nada além do que a vontade d ” (M IEL, 2004, p. 10). Segundo Maciel (2004) os diários são relatos fracionados, com o amparo de datas que criam um elo que une 5 Disponível em: <http://neurociencia.tripod.com/mnemosine.htm> Acesso em: 05/04/2010 410 ANAIS - 2013 os acontecimentos, aparentemente sem nenhuma ligação entre si. Os textos de Arlinda Pessoa Morbeck também são fracionados, mas não há o amparo de datas para unir os acontecimentos, a escritora dá títulos às poesias e não datas. Algumas vezes, a escritora volta a um passado distante para entender o mundo, seus sentimentos como forma de explicar o que sente, como nos texto M ó “ memórias, portanto, são uma busca de recordações por parte do eu-narrador com o intuito de evocar pessoas e acontecimentos que sejam representativos para um momento posterior, do qual este euc ” (M IEL, 2004, 09) nda Morbeck busca nas suas recordações pessoas e acontecimentos que foram representativos para ela. Foi no lindo mês de Dezembro, Mês do Natal do Senhor, Que Benedito e Adezia de uniram Nos laços de um grande Amor! (VERLANGIERI; MORBECK; RANDAZZO, 2008, p. 131) Nesta poesia, Arlinda Pessoa Morbeck registra um acontecimento importante, casamento de Benedito e Adezia, pessoas que marcaram algum momento de sua vida. Mais uma vez a escritora utiliza-se da memória para escrever. A memória nos textos de Arlinda é apenas uma tentativa de trazer o passado de volta, pois quando a escritora tenta trazer o passado de volta ela tem outra percepção dessa memória, pois a partir do presente ela dá outro conceito ao passado. Meu Deus!... Por que não te esqueço? Não deixo de recordar, A luz suave, atraente, 411 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Que tens no ter brando olhar?! (...) Perdoa-me se te amo tanto, Perdoa-me!... Que hei de fazer? O Destino me castiga, Vivo em silêncio, a sofrer! (VERLANGIERI; MORBECK; RANDAZZO, 2008, p. 138) O sofrimento apresentado na poesia é um sentimento criado a partir da memória do presente e como conseqüência das escolhas no presente vê-se condenada a viver sofrendo. Há um “ u” qu x c , sofrimento. Nas memórias de Arlinda Pessoa Morbeck a história pode ser comprovada fora do texto. Segundo Maciel (2009) esta é uma característica do gênero confessional: Os gêneros confessionais contam histórias de um narrador em primeira pessoa. A voz do narrador que conta os fatos de dentro da narrativa e se apresenta com o mesmo nome do autor, ou sem nome, ou por um apelido que o represente, costuma ser recebida como voz testemunhal, ligada aos preceitos históricos. (MACIEL, 2009, p. 44) Arlinda Morbeck conta sua história através de um narrador em primeira pessoa, que relata os fatos e se apresenta c u ó “ , h , ch / é h , é h g , é u !” (VERLANGIERI; MORBECK; RANDAZZO, 2008, p. 190). Arlinda volta ao passado e registra a declaração de amor, que um eu apaixonado fez a ela, tornando-se personagem da própria história. Esta é uma característica do texto confessional, 412 ANAIS - 2013 especificamente do texto autobiográfico, que o autor é narrador g “E f cçã , há u çã eu que faz o laço com a escritura, nela veiculando a existência da personagem narradora à realidade. A resultante é a relação entre o passado vivido pela personagem-narradora e a escrita.” (PALO, 2009, p. 01). A partir do momento que a escritora insere-se na obra, o leitor passa a vê-la como uma personagem da realidade, aqui se percebe o acordo autor/leitor, um acordo do u qu f qu ‘ ’ c história de vida desse autor. Ph L j u (2008) c u ‘ u í c ’: Por que se gosta dos poemas e as canções? b u qu z ‘ u’? P qu , bruscamente, são a justa expressão de um sentimento que em nós procurava suas palavras e sua música. Por isso os adotamos, reconhecemo-nos neles. E aquelas palavras que servem tão bem de roupagem a nossa experiência, supomos que vêm diretamente da experiência e do coração do poeta. Há o prazer da emoção compartilhada, o sentimento de que alguém nos compreendeu e um sinal de conivência com os que amam, citam, cantarolam as mesmas melodias que nós. (LEJEUNE, 2008, p. 94) O leitor se reconhece na obra, a experiência do autor aproxima-se do leitor, como Philippe Lejeune (2008) afirma que autor e leitor compartilham da mesma emoção, como se o leitor compreendesse os sentimentos e se identificasse com o autor da obra. 413 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A ficção, por sua vez se duplica em dobras, em histórias da vida (romance), fazendo-se ficção de si mesma ou invenção do eu. A presença do sujeito que se lembra em sua própria obra desenha o seu autobiografismo. Este fala de si como gênero literário e nele insere suas convenções, horizontes e gênese histórica. São imagens que sugerem outras imagens: sensações, sentimentos, recordações, personagens, que preparam o cenário da obra, tornando rica e profunda a experiência da leitura. (PALO, 2009, p. 03) Ao retratar, fazer um recorte da sua vida, o escritor torna-a ficcional, ao retornar as memórias para escrever sua autobiografia cria novas imagens, sensações, sentimentos, recordações. As poesias de Arlinda Pessoa Morbeck apresentam características da autobiografia: autora e personagem da própria história, que se utiliza da memória para escrever sua biografia, mas utiliza-se da poesia e não da prosa, de acordo com ao definição de autobiografia de Philippe Lejeune (2008) a poesia não poderia ser considerada autobiografia pois não preenche todos os elementos característicos deste tipo de texto, como a linguagem em prosa. No capítulo Autobiografia e Poesia Philippe Lejeune (2008) aceita que existam textos em poesia que contém traços autobiográficos, porém não admite poesia em u b g f “[ ] M c u b g f f g é ” ( 99) P e a autobiografia não deve deixar dúvidas quanto a sua escrita, como acontece nas poesias com o uso de figuras, metáforas por exemplo. 3. Considerações Finais 414 ANAIS - 2013 A poesia de Arlinda é confessional, possui características tanto de Autobiografia quanto de Diário e de Memórias. Arrisco dizer que há, um certo, pacto-autobiográfico em: Aos meus filhos Minhas filhas: Nilce – Dirce E u L qu c , ‘Ru ’é o seu nome. Vocês que são moços, devem compreender os Rumores de um coração sensível e isolado, que palpita nos arroubos da I çã ! ‘Ru ’é º 18 u Livros ainda inéditos. É o meu maior Ideal vê-los publicados. Faltam-me recursos pecuniários para atingir este ideal!(VERLANGIERI; MORBECK; RANDAZZO, 2008, p. 180) Se o que torna um texto ser confessional é a recepção da obra, como o leitor se coloca para receber esta obra. Neste desabado às filhas, o leitor compreende que os textos são sobre a vida de Arlinda e através das poesias em que consta seu nome como personagem o leitor a identifica como personagem da própria obra. Trata-se, por conseguinte, de uma forma de contrato entre o autor e leitor na qual o autobiógrafo se compromete explicitamente não há uma exatidão histórica impossível, mas a uma apresentação sincera de sua vida. Quem escreve se compromete a ser sincero e quem lê passa a buscar revelações que 415 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento possam ser confirmadas extratextualmente. (MACIEL, 2004, p. 07) Assim o pacto se estabelece quando o leitor pode confirmar que Arlinda Morbeck escreveu sobre sua vida, embora em forma de poesia não de prosa, que ela viveu em u bá: “Eu u ch u bá qu , / qu fc , !” (VERL N IERI; MORBE K; RANDAZZO, 2008, p. 116), em Salvador- B h : “[ ] M ã me tirem de minha mente / nem do meu coração, que sempre sente / as saudades e a lembrança de Arlinda!... (Salvador – B h )” (VERL N IERI; MORBE K; R ND ZZO, 2008, 182), que escreveu sobre seu esposo, José Morbeck (p. 155), seu filho Rui Morbeck (p. 159), suas filhas Nilce (p. 180), Dirce (188), Elce (p. 134, em memória). Algumas poesias apresentam características de escritas de Diário, por ser um texto fracionado, poesias, mas não possui marcação por data e sim por título que é um elemento que fará a união dos acontecimentos. Retrata um passado recém acabado, como a chegada do mês de Maio (p. 128), a tarde chuvosa (p. 177). E características de Memórias, onde há a volta a um , “O Destino me c g ,/V ê c , f !” ( 138) T bé c linguísticas das memórias: lembranças, recordações, sensações, saudades, portanto há inúmeros traços confessionais presentes na obra de Arlinda Pessoa Morbeck. Referências CANDIDO, Antonio. "Poesia e Ficção na Autobiografia". In: A Educação pela Noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. 416 ANAIS - 2013 FILHO, Milton Pessoa Morbeck. Revolução Morbeck x Carvalinho. Disponível em: <http://www.morbeckxcarvalhinho.com.br/index.php?ver=pagin a&titulopoesia=Quem%20foi%20Arlinda%20Pessoa%20Morbe ck> Acesso em: 06 Set 2010. FI HER, Lu ugu “L h g ó ” I : Literatura Brasileira. São Paulo: Abril, 2003. (Super interessante, 11) LEJEUNE, Ph “O c u b g áf c ” I : O pacto autobiográfico: De Rousseau à Internet. Tradução de Jovita M. G. Noronha. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008. LEJEUNE, Ph “ u b b f P ” I : O pacto autobiográfico: De Rousseau à Internet. Tradução de Jovita M. G. Noronha. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008. MACIEL, Sheila Dias. A formação do Professor de Literatura e os Gêneros confessionais. Revista Polifonia (UFMT), v. I, p. 41-50, 2009. MACIEL, Sheila Dias. A literatura e os gêneros confessionais. Disponível em: <http://www.ceul.ufms.br/pgletras/docentes/sheila/A%20Literat ura%20e%20os%20g%EAneros%20confessionais.pdf > Acesso em: 03/04/2011 M IEL, h D “ u gê c f ” I : BELON, Antonio Rodrigues; MACIEL, Sheila Dias. (Org.). Em Diálogo - Estudos Literários e Lingüísticos. 2004, p. 75-91. 417 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento MNEMOSINE - Deusa Grega - Personificação da Memória. Disponível em: <http://neurociencia.tripod.com/mnemosine.htm> Acesso em: 05/04/2010 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004. PALO, Maria José. Formas de memória: um estudo sobre o autobiografismo. Disponível em: <http://www.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n4/d ownload/> Acesso em: 03/04/2011 PALO, Maria José. Estudos sobre a trajetória autobiográfica. Revista Fronteiraz, v. 4, p. 4, 2009. VERLANGIERI, Amália; MORBECK, Arlinda; RANDAZZO, Vera. Vozes femininas. Cuiabá: Academia Mato-Grossense de Letras; Unemat, 2008. WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção. São Paulo: Brasiliense, 1989. 418 ANAIS - 2013 Contribuições iniciais para elaborar o Atlas Toponímico Mato-grossense Maria Aparecida de CARVALHO 1 RESUMO: Mato Grosso apresenta expressiva extensão territorial com 881.001 km². Localiza-se na região Centro-Oeste, possui 05 mesorregiões que subdividem-se em 22 microrregiões. Estas estão formadas por 141 municípios. Para elaborar a dissertação de mestrado foi realizada uma pesquisa toponímica para o estudo lexicográficotoponímico dos topônimos da mesorregião Centro-Sul Matogrossense. O corpus foi constituído de 2.233 topônimos que estão registrados em 17 municípios, com levantamento dos topônimos em mapas e em cartas topográficas, escala 1:100.000. A classificação dos topônimos nas taxionomias fundamentou-se na teoria elaborada por DICK e possibilitou algumas constatações como: riqueza toponímica da região estudada, predominância de determinadas taxionomias no processo de nomeação dos acidentes físicos e expressiva variedade dos acidentes físicos toponimizados. Os topônimos foram coletados por municípios, classificados por taxionomia e apresentados em relações, por ordem alfabética dos acidentes e permitem observar a quantidade de topônimos e de acidentes físicos ou antrópicos. Palavras-chave: Topônimos; Taxionomias; Mesorregião; Microrregião. Introdução Pretende-se, nesta comunicação, compartilhar alguns aspectos do projeto toponímico iniciado em 2002, no estado de Mato Grosso, de modo mais específico em uma de suas mesorregiões. No início dos estudos toponímicos da 1 Dra Maria Aparecida de Carvalho. Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral ( SEPLAN – MT). [email protected] 419 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento mesorregião Centro-Sul Mato-grossense, para elaborar minha dissertação de mestrado, ficou estabelecido o compromisso de realizar-se uma pesquisa exaustiva, que abrangesse toda área. Não se discute, aqui, possíveis divergências, que ainda possam persistir entre autores, sobre o status que a Toponímia ocupa dentro das ciências da linguagem. É fato evidente: estudos toponímicos sérios estão aí, realizados ou em fase de realização, portanto, não podem ser ignorados. Outro fator que deve ser destacado é que as pesquisas toponímicas concluídas oferecem ensejos para realizações de outras novas pesquisas acadêmicas. Pretende-se, também, apresentar algumas características gerais e específicas do estado de Mato Grosso, da mesorregião Centro-Sul Mato-grossense e das microrregiões que a compõem: Alto Pantanal, Alto Paraguai, Cuiabá e Rosário Oeste. Proposta para iniciar o Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso Mato Grosso, nas áreas socioeconômico-culturais, é um estado com riquezas expressivas que se refletem também em sua toponímia. Pode-se, inclusive, dizer que a riqueza toponímica, está respaldada pela variada gama de acidentes físicos que existem no Estado. Alguns apresentam aspectos singulares, com características específicas da região Centro-Oeste do Brasil, tais como: corixo, cordilheira, furado, volta. Outros, aparentemente, levam a estabelecer correlação com alguns acidentes físicos do litoral brasileiro, mas, já nas primeiras análises, demonstram que possuem características próprias que os diferenciam de seus homônimos litorâneos: baía, lagoa, vazante. Há também, e em quantidades significativas, acidentes físicos com características 420 ANAIS - 2013 comuns aos demais acidentes físicos brasileiros: córrego, morro, ribeirão, rio, serra. Às vezes, as investigações necessárias para analisar linguisticamente os topônimos, podem conduzir a resultados inesperados, e até mesmo surpreendentes. Essas investigações toponímicas, inclusive, podem constituir-se em um desafio para quem realiza a pesquisa devido à existência de outros fatores, como: o isolamento da região, o desconhecimento sobre quem foi o denominador, a opacidade dos topônimos. A ação de nomear ou denominar lugares estabelece relações que denotam aspectos variados de atividades humanas: sociais, políticos, religiosos, culturais, regionais, econômicos, entre outros. Esses aspectos podem apresentar-se com características regionais, mais específicas ou gerais. É certo também que algumas delas são mais produtivas em acidentes físicos que em acidentes antrópicos, mas, em geral, isso não constitui regra; podem se apresentar, diferentemente, em um ou em outro nível, e até mesmo, observar que são variáveis de acordo com as especificidades das regiões. Genericamente, os topônimos dos acidentes físicos são mais estáveis e mais espontâneos do que os antrópicos, representando mais o aspecto de anonimato do denominador. Esses fatores, às vezes, se apresentam como obstáculos às classificações taxionômicas, pois, como já mencionado, contribuem para a opacidade dos topônimos. Características gerais do estado de Mato Grosso Mato Grosso localiza-se na região Centro-Oeste do Brasil que está formada por 03 (três) estados: Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e pelo Distrito Federal, Brasília. Sua extensão territorial é de 881.001 km² e corresponde a 54,8 421 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento % da área total da região Centro-Oeste, portanto, é o maior estado da região Centro-Oeste e o terceiro maior do Brasil, sua capital é Cuiabá. Estabelece limites com os estados: Rondônia, Pará, Amazonas, Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul e, com o país limítrofe: Bolívia. O estado de Mato Grosso é o limite ocidental do Brasil e f c qu , u h ,c uí , “ c ” linha imaginária do Tratado de Tordesilhas (acordo firmado entre Portugal e Espanha) para além do rio Paraguai. Essa expansão territorial só foi possível pelo destemor, ousadia, espírito de aventura e busca de riquezas de centenas e centenas de seres humanos anônimos, em sua maioria, porque poucos deles são mencionados nominalmente, nas páginas da História. Mencionamos esses fatos para reforçar a tese da dificuldade de contextualizar todos os topônimos. Isso ocorre porque muitos deles já existiam antes mesmo da chegada dos “ uc u ” u denominados. Esses topônimos constituem um acervo antropológico-histórico-geográfico, sintetizando, cultural, não só da conquista dessas terras, como também da manutenção da posse das terras por eles percorridas, e também, do processo de reconquista de parte delas como território brasileiro. O estado de Mato Grosso apresenta aspectos singulares e particulares, como unidade nacional. Talvez seja oportuno inserir aqui a observação feita por um estudioso da geografia, da história e da cultura mato-grossense, Virgílio Corrêa Filho. Para esse Historiador, há um aspecto geral no Estado que se destaca mais que a sua riqueza vegetal que é a sua riqueza hidronímica. O topônimo, na opinião dele, que hoje particulariza o estado de Mato Grosso e o classifica taxionomicamente, como um fitotopônimo não demonstra a sua principal característica. 422 ANAIS - 2013 Mais do que as plantas, cuja marca se gravou, embora impropriamente, no próprio título da Capitania, quando criada, os rios desempenham papel preponderante no devassamento e ocupação do território matogrossense. (CORRÊA FILHO, 1962, p.42). A principal característica do estado de Mato Grosso, acima mencionada, está demonstrada pela gama variada e quantitativa de acidentes hídricos que existem em todo Estado. As relações dos topônimos, antecedidos pelos respectivos acidentes físicos, em cada um dos municípios que integram o corpus desta pesquisa, evidenciam esta inestimável riqueza. O potencial hídrico de Mato Grosso é resultante do somatório dos pequenos caudais que se juntam formando grandes rios, que fazem parte de três bacias hidrográficas e, também, pela grande quantidade de outros acidentes hídricos como baías, corixos, lagoas, vazantes, etc. Mato Grosso está constituído por 22 (vinte e duas) microrregiões que são ricas em acidentes físicos, algumas com características especificamente regionais. Essas microrregiões estão formadas por 141 municípios. Alguns motivos se destacaram na opção por esses recortes na pesquisa toponímica: - Mato Grosso, desde os seus primórdios, sempre teve uma posição geopolítica de grande importância para o Brasil e, atualmente, tem também destacado valor na economia nacional; - Mato Grosso é polo aglutinador de pessoas oriundas de todos os estados brasileiros, assim como, de muitos países estrangeiros e isso, de certa forma, se reflete na toponímia da região; - Com os acentuados desenvolvimentos social e econômico, ocorridos, principalmente, a partir da segunda metade do século passado. O estado de Mato Grosso cedeu área 423 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento para a formação de parte do estado de Rondônia e, em 1977, houve a divisão territorial, com a cessão de parte de sua área para criar o estado de Mato Grosso do Sul. Assim, naquela época, o estado de Mato Grosso ficou com apenas 38 (trinta e oito) municípios. Atualmente Mato Grosso possui 141 (cento e quarenta e um) municípios. Portanto, em período de tempo inferior a 03 (três) décadas, o aumento de municípios em termos absolutos foi de 103 (cento e três) municípios, correspondendo, em nível percentual, a 271,1%. É inquestionável que nesses últimos trinta anos ocorreram também crescimentos em todos os setores da economia mato-grossense. O Estado, mesmo com de todos os percalços ocorridos no passado, segue firme seu caminho em direção ao futuro ainda mais promissor, mantendo-se como unidade federativa que sempre concedeu sua parcela de colaboração para a manutenção da integridade territorial brasileira. No decorrer do século XX o Estado começou a ampliar suas atividades econômicas. As atividades extrativistas deixaram de ter os destaques dos dois séculos anteriores. Estabeleceu-se o início de um redirecionamento das atividades produtivas para os demais setores econômicos: primário, secundário e terciário e não apenas para a produção de culturas de subsistência, mas para grandes produções agrícolas e, logo depois, para o beneficiamento e comercialização desses produtos. É uma época tão empolgante que Mato Grosso chegou a receber o cognome de Celeiro do Brasil. Com o êxito das atividades agropecuárias que parecem constituir a grande vocação mato-grossense, as produções de arroz, milho, feijão, mandioca, pecuária de corte e, mais recentemente, cana-de-açúcar, soja, algodão são contabilizadas, em todas as safras, em milhares de toneladas. Isso mostra que 424 ANAIS - 2013 Mato Grosso consolidou, de modo firme, sua posição de estado produtor de gêneros alimentícios. O setor secundário, que era quase inexistente no início do século passado, também ganhou força com a instalação de agroindústrias e indústrias que vieram atraídas pela expressiva produção de grãos e de carnes. Estabeleceram-se em várias regiões do Estado, algumas por perceberem as possibilidades latentes de produção industrial, outras em busca de incentivos fiscais. Esses fatores propiciaram renda e geraram empregos diretos e indiretos, isso já de meados para fim de 1900. O setor terciário expandiu-se em função das evoluções apresentadas pelos outros dois setores econômicos, e atualmente, é um dos que mais cresce e gera empregos em Mato Grosso. Atualmente Mato Grosso está dividido em 05 (cinco) mesorregiões: Norte Mato-grossense, Nordeste Mato-grossense, Centro-Sul Mato-grossense, Sudoeste Mato-grossense e Sudeste Mato-grossense. As mesorregiões se subdividem em 22 (vinte e duas) microrregiões. A mesorregião Norte Mato-grossense está formada por 08 (oito) microrregiões: Alta Floresta Alto Teles Pires Arinos Aripuanã Colíder Paranatinga Parecis Sinop A mesorregião Nordeste Mato-grossense está formada por 03 (três) microrregiões: Canarana Médio Araguaia 425 Norte Araguaia Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A mesorregião Sudoeste Mato-grossense está formada por 03 (três) microrregiões: Alto Guaporé Jauru Tangará da Serra A mesorregião Centro-Sul Mato-grossense está formada por 04 (quatro) microrregiões: Alto Pantanal Alto Paraguai Cuiabá Rosário Oeste A mesorregião Sudeste Mato-grossense está formada por 04 (quatro) microrregiões: Alto Araguaia Primavera do Leste Rondonópolis Tesouro Características da mesorregião Centro-Sul Mato-grossense A mesorregião está formada por 17 (dezessete) municípios que estão agrupados em 04 (quatro) microrregiões. A extensão territorial da mesorregião Centro-Sul MatoGrossense é de 99.506 km² que corresponde a 11,3% da área total do estado de Mato Grosso, colocando-se como a terceira mesorregião em extensão. Ela é superada apenas pelas mesorregiões Norte Mato-grossense e Nordeste Mato-grossense. Mesmo assim sua extensão territorial é superior a de alguns países europeus: Albânia (28.748 km²), Áustria (83.858 km²), Bélgica (30.510 km²), Croácia (56.542 km²), Hungria (93.030 km²), Irlanda (70.280 km²), Portugal (91.568 km²), República Tcheca (78.866 km²), Sérvia (88.361 km²), etc. 426 ANAIS - 2013 De acordo com a Resolução nº 05 de 10 de outubro de 2002 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a divisão geopolítica desta mesorregião ficou estabelecida assim: A microrregião Alto Pantanal está formada por 04 (quatro) municípios: Barão de Melgaço Cáceres Curvelândia Poconé A microrregião Alto Paraguai está formada por 05 (cinco) municípios: Alto Paraguai Arenápolis Nortelândia Nova Marilândia Santo Afonso A microrregião Cuiabá está formada por 05 (cinco) municípios: Chapada dos Guimarães Cuiabá Nossa Senhora do Livramento Santo Antônio de Leverger Várzea Grande A microrregião Rosário Oeste está formada por 03 (três) municípios: Acorizal Jangada Rosário Oeste Esta mesorregião possui características bastante peculiares que realçam sua condição de detentora da hegemonia política do estado de Mato Grosso. É dentro de sua área de abrangência que se encontram vários rios, o Cuiabá e o rio Paraguai., que foram os condutores dos bandeirantes e de tantos 427 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento outros exploradores e aventureiros. Foram essas pessoas que propiciaram as condições - é certo que a seu modo - necessárias para a expansão territorial do Brasil Colônia. Não se pode deixar de mencionar o Pantanal Mato-grossense, que por não ser devassado pelos espanhóis, serviu-lhes de certa forma de obstáculo e, desse modo, também deu a sua cota de contribuição para a conquista de toda essa região. Não custava aos espanhóis atingir aquelas paragens, se nada mais tinham do que subir uma série de correntes plácidas sem um único acidente que lhes interrompesse a viagem. Havia porém, obstáculos a temer: as nações indígenas Paiaguá e Guaicuru. Os córregos, ribeirões, corixos e rios que formam a bacia do Alto Paraguai, irrigam com suas águas caudalosas a mesorregião Centro-Sul Mato-grossense É uma região com muitas possibilidades sociais e econômicas e, desde o final do século XVII vem sendo explorada em suas riquezas naturais. Bases para estabelecer a investigação toponímica Ao realizar esta pesquisa toponímica, foram tomados como base os pressupostos teóricos contidos em DICK (1980, 1990 e 1994), para investigar a natureza semântica e a estrutura dos topônimos, de acordo com as categorias taxionômicas propostas pela Autora, e também, para desenvolver um estudo linguístico dos topônimos registrados nos mapas e nas cartas topográficas. Assim, estabeleceu-se os seguintes objetivos que nortearam esta pesquisa: levantar nos mapas e nas cartas topográficas os acidentes toponimizados, classificá-los taxionomicamente e analisar a representatividade dos topônimos indígenas no geral e dos tupis em particular, tanto no que se 428 ANAIS - 2013 refere à estrutura gramatical quanto à acepção específica, por municípios e por microrregiões. Para desenvolver a pesquisa toponímica da mesorregião Centro-Sul Mato-grossense e alcançar os objetivos propostos, fez-se necessário estabelecer os seguintes recortes, devidos principalmente, ao volume de topônimos a serem pesquisados: a. estudar apenas os topônimos que se referem a: a.1. acidentes físicos: baías, corixos, córregos, estirões, ilhas, voltas, vazantes, rios, serras, etc.; a.2. acidentes humanos: agrovilas, distritos, estações ecológicas, localidades, povoados, municípios e vilas; b. não incluir nesta pesquisa os topônimos referentes aos demais acidentes humanos, tais como: escolas, estradas, fazendas, pontes, retiros, ruas, sítios, etc.; c. o resultado da pesquisa deve ser apresentado por municípios, por meio de relações de topônimos e, em seguida, a análise dos topônimos agrupados por microrregiões, no contexto geral da mesorregião. Com base no levantamento inicial, chegou-se à conclusão de que, apesar do grande volume de topônimos encontrados, seria possível desenvolver uma pesquisa concisa e que abrangesse, totalmente, a área de cada um dos municípios pesquisados. A pesquisa ficaria bastante ampla, porém, passível de ser realizada e, certamente, proporcionaria resultados satisfatórios. Alguns aspectos quantitativos da pesquisa toponímica centro-sul mato-grossense Quando foi efetuado o estudo sobre a toponímia da mesorregião Centro-Sul organizaram-se as relações com os sintagmas toponímicos (termo genérico + topônimo). Foi 429 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento elaborada uma relação para os acidentes físicos e outra para os antrópicos. A relação contém quatro colunas: - na primeira coluna consta a numeração (que permite, facilmente, verificar quantos topônimos há em cada município); - na segunda coluna estão os termos genéricos ou acidentes físicos (organizados por ordem alfabética); - na terceira coluna estão os topônimos (organizados por ordem alfabética, dentro de cada grupo de acidente físico); - na quarta coluna estão as taxionomias correspondentes aos topônimos. Vale ainda ressaltar que, buscando possibilitar a localização precisa de cada topônimo, seja nos mapas ou nas cartas topográficas, ainda foram inseridas notas entre parênteses, na terceira coluna da tabela, logo após cada topônimo. Essas notas adicionais são letra(s) e número(s) de quadrícula(s) quando registrados nos mapas e números de carta topográfica, letra(s) e número(s) de quadrícula(s), quando coletados nas cartas topográficas. Nestas relações constatou-se, como já mencionado, variada gama de acidentes físicos. A microrregião que apresentou a maior quantidade diversificada de acidentes físicos foi a microrregião Alto Pantanal. Por uma questão de economia de espaço, mas com o propósito de ilustrar esse aspecto, colocase, a seguir as tabelas com os totais de acidentes físicos e com os totais de acidentes antrópicos por microrregião. Os acidentes hídricos constituíram a maioria e pode-se observar a preponderância, inquestionável, dos córregos sobre os demais. As baías apresentam-se com grande sobrepujança apenas na microrregião Alto Pantanal, portanto, em conformidade com as características locais. As 430 ANAIS - 2013 representatividades dos rios, lagoas e ribeirões também merecem destaques. Dentre os acidentes geomorfológicos destacam-se as serras e, outra vez, com maior incidência na microrregião Alto Pantanal. 431 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Tabela 1 – Acidentes físicos da mesorregião Centro-Sul Matogrossense. (continua) microrregiões acidentes N Nº físicos Mesorregião Alto Alto Pantanal Paraguai Cuiabá Total 851 327 540 1 baías 216 - 12 2 barras 7 - 3 bocas 2 4 braço 5 Rosário Centro-Sul Oeste 354 2.072 - 228 - - 7 - - - 2 1 - - - 1 cabeceiras 4 - 12 4 20 6 cachoeira - - 1 - 1 7 chapadas - 4 - - 4 8 cordilheira 1 - - - 1 9 corixão 1 - - - 1 10 corredeiras - - - 4 4 11 corixos 55 - 2 - 57 12 córregos 164 276 370 259 1069 13 corregozinho 1 - - - 1 432 ANAIS - 2013 14 estirões 10 - - - 10 15 furados 19 - - - 19 16 ilhas 27 - - 1 28 17 lagoas 108 - 1 3 112 18 lago 1 - - - 1 19 mirante - - 1 - 1 20 morros 28 - 24 9 61 21 portos 30 - 1 1 32 22 praias 3 - 5 - 8 23 riachos 2 - - - 2 24 ribeirões 6 26 43 47 122 25 rios 46 14 35 14 109 26 riozinhos 3 - - - 3 (conclusão) microrregiões Nº acidentes físicos Alto Pantana l Mesorregião Alto Cuiabá Paraguai 27 salto - - 1 28 serra 75 7 26 433 Rosário Centro-Sul Oeste 12 1 120 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 29 vazantes 17 - 30 voltas 24 - 6 - - 23 - 24 Fonte dos dados: Dissertação de Mestrado de Maria Aparecida de Carvalho - USP - 2005. Tabela 2 – Acidentes antrópicos da mesorregião Centro-Sul Matogrossense. Microrregiões acidentes Nº antrópicos Mesorregião Alto Alto Pantanal Paraguai Total Cuiabá Rosário Centro-Sul Oeste 56 16 41 29 142 cidades 4 5 5 3 17 distritos 6 2 18 5 31 agrovilas 8 - 1 - 9 2 - - - 2 localidades 30 1 9 21 61 povoados 5 7 2 - 14 vilas 1 1 6 - 8 estações ecológicas Fonte dos dados: Dissertação de Mestrado de Maria Aparecida de Carvalho - USP - 2005. Os topônimos, após o relacionar dos sintagmas toponímicos por municípios e em sequência por microrregiões, foram classificados dentro das taxionomias elaboradas por DICK. Houve, no entanto, a 434 ANAIS - 2013 inclusão de uma taxionomia proposta na dissertação de mestrado com o intuito de contribuir para uma maior adequação semântica de alguns topônimos. Considera-se que a taxionomia proposta igneotopônimos, em especial na região Centro-Oeste, possui relativa representatividade. As taxionomias, para este estudo, foram agrupadas por microrregiões. Acredita-se, no entanto, que mesmo assim elas apresentam a preponderância dos vocábulos designativos de elementos da flora e da fauna nas denominações consideradas mais espontâneas e, no geral, anônimas. Coloca-se a tabela 3, a seguir, com as taxionomias da mesorregião Centro-Sul Mato-grossense. 435 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Tabela 3 – Taxionomias da mesorregião Centro-Sul Matogrossense. (continua) microrregiões Nº Taxionomias Alto Pantanal Alto Cuiabá Paraguai Mesorregião Rosário Centro-Sul Oeste Total 912 348 584 389 2.233 1 Fitotopônimos 181 61 117 97 2 Zootopônimos 135 44 87 51 317 3 Hidrotopônimos 108 18 44 25 195 4 Sociotopônimos 53 16 54 38 161 5 Litotopônimos 38 32 39 31 140 6 Antropotopônimos 63 16 34 26 139 7 Ergotopônimos 49 24 35 23 131 8 Geomorfotopônimos 40 14 30 18 102 9 Hagiotopônimos 35 31 20 5 91 10 Dimensiotopônimos 33 9 16 20 78 11 Animotopônimos 32 14 20 8 74 12 Etnotopônimos 20 10 10 4 44 13 Dirrematotopônimos 12 9 10 4 35 14 Cromotopônimos 7 11 10 7 35 15 Somatotopônimos 19 1 7 4 31 456 436 ANAIS - 2013 16 Hodotopônimos 8 4 10 5 27 17 Numerotopônimos 12 6 6 1 25 18 Morfotopônimos 12 3 4 6 25 19 Cardinotopônimos 7 7 3 - 17 20 Hierotopônimos 6 1 6 3 16 21 Corotopônimos 4 2 5 3 14 22 Ecotopônimos 3 5 3 3 14 23 Axiotopônimos 11 2 - - 13 24 Cronotopônimos 8 2 2 1 13 25 S/C 3 1 4 3 11 26 Meteorotopônimos 2 1 5 - 8 (conclusão) Microrregiões Nº taxionomias mesorregião Alto Rosário Centro-Sul Alto Pantanal Cuiabá Paraguai Oeste 27 Igneotopônimos 3 3 1 - 7 28 Mitotopônimos 3 1 - 2 6 29 Historiotopônimos 4 - 1 - 5 30 Astrotopônimos 1 - 1 - 2 31 Poliotopônimo - - - 1 1 Fonte dos dados: Dissertação de Mestrado de Maria Aparecida de Carvalho - USP - 2005. 437 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Considerações finais Acredita-se que o estudo desenvolvido para elaborar a dissertação de mestrado tenha sido possível alcançar um importante objetivo: estabelecer uma visão toponímica global da mesorregião Centro-Sul Mato-grossense. Permite, também, visualizar aspectos particularizados dos sintagmas toponímicos, de cada município e, consequentemente, de cada microrregião, por meio da relação de topônimos. É possível saber quais os tipos de acidentes e quantos existem por município e, se necessário, saber quantos e quais topônimos por tipo de acidente, quais as taxionomias existentes, quais as taxionomias predominantes por município, por microrregião e por mesorregião. A etapa final da busca e organização dos dados foi o preenchimento da ficha lexicográfico-toponímica para cada topônimo encontrado. Foram elaborados três tipos de fichas: um para os municípios, um para os acidentes físicos e um terceiro tipo de ficha para os demais acidentes antrópicos. Destaca-se ainda, que quando ocorre uma dupla, ou até mesmo, tripla nomeação foi elaborada, nestes casos, uma ficha lexicográficotoponímica para cada topônimo do acidente. Cada uma delas com a classificação taxionômica correspondente e devidamente computada no total de topônimos do município correspondente. É por isso, como pode ser observado nas três tabelas apresentadas, que o somatório dos acidentes físicos e antrópicos é inferior ao total dos topônimos. Para concluir, pode-se dizer que é bastante provável que o denominador (anônimo ou não) ao usar os recursos da toponímia, no momento de nomear algum destaque no espaço natural em que se encontrava, utilizou sua possibilidade de criar uma referência nova para o local e, desse modo, ao receber 438 ANAIS - 2013 aquiescência dos demais circundantes ou habitantes da região, pelo uso cotidiano da denominação, contribuiu para estabelecer melhores condições de localização. Isso vale tanto para a toponímia rural quanto para a urbana. E não se pode ignorar que alterações arbitrárias na toponímia já estabelecida podem gerar perturbações de ordem social no que se refere à localização especial e, até mesmo, rejeições para com o novo topônimo. Nada impede, porém, de que alterações toponímicas surjam, mas em geral, elas devem ser espontâneas e não arbitrariamente impostas. Referências bibliográficas BARBOSA, Maria Aparecida. Lexicologia, lexicografia, terminologia, terminografia, identidade científica, objeto, métodos, campos de atuação. In: Simpósio Latino-Americano de Terminologia, 2., Brasília: Anais do I Encontro Brasileiro de Terminologia Técnico-Científica. 1990. CUNHA, Celso; LINDLEY, Cintra. Nova gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. DE CARVALHO, Maria Aparecida. Toponímia da Mesorregião Centro-Sul Mato-grossense – Contribuições para o Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso. 2005. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Método e Questões Terminológicas na Onomástica. Estudo de Caso: o Atlas Toponímico do Estado de São Paulo. Investigações, 439 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Lingüística e Teoria Lliterária. In: Revista do Programa de Pósgraduação em Letras e Linguística da UFPE, v. 9, 1999. p. 119148. ______. Toponímia e Antroponímia no Brasil - Coletânea de estudos. 3. ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1992. ______. Atlas Toponímico do Brasil. Estudo de Caso: o Projeto ATESP. In: Acta Semiótica et Lingvistica. v. 6, São Paulo : SBPL e Plêiade, 1996. p. 27-44. HOUAISS, Antônio. VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. SACCONI, Luiz Antonio. Nossa Gramática – Teoria 15. ed. São Paulo: Atual, 1992. 440 ANAIS - 2013 Da palavra à imagem: uma discussão sobre a categoria temporal na adaptação de O tempo e o vento Aline Cristina MAZIERO1 RESUMO: Este artigo pretende discutir a adaptação de textos literários para meios de expressão audiovisual enfocando a categoria temporal na obra literária e em sua adaptação para a televisão tendo em vista que tanto o texto escrito como o audiovisual televisivo, possuem, em alguma medida, encadeamento de ordem temporal, expresso de maneiras distintas nas diferentes linguagens. Enquanto na literatura as sequências de tempo se constituem por meio das palavras, quando uma obra é transposta para a linguagem audiovisual isso é possível pelo uso de imagens dispostas em determinada sequência. A ã “ ”, , g , g qu qu ó “ g ”c x literários de uma forma geral. Sendo assim, o intuito desde trabalho é traçar como é feita a constituição da categoria temporal na minissérie televisiva O Tempo e o Vento adaptada a partir da trilogia homônima do escritor brasileiro Erico Verissimo, dirigida por Paulo José e apresentada pela Rede Globo em 1985, a fim de compreender como tanto a obra literária como a audiovisual abordam a categoria temporal e de que modo o texto literário é reproposto em linguagem audiovisual. PALAVRAS-CHAVE: adaptação; audiovisual; literatura brasileira; tempo; Introdução Os meios de comunicação audiovisual caracterizam-se pela necessidade de narração. O cinema e a televisão, especialmente se nos ativermos a programas ficcionais, têm grande necessidade de contar histórias. Ao mesmo tempo, tais 1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul 441 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento meios lidam com o aspecto da representação, que tem elementos em comum com outros modos de expressão como o pictórico e o fotográfico, além de resgatar antigos elementos do teatro, como a imitação. (SAUBOURAUD, 2010) No entanto, o audiovisual tem sua forma de expressão feita de enquadramentos, movimentos, montagem, elementos que são intrínsecos à linguagem. Ao levar em conta essa especificidade, compreende-se porque ao se adaptar/traduzir um texto literário não se deve buscar a simples correspondência de signos, mas uma maneira diversa de narrar, utilizando os recursos e potencialidades do meio. Toda narrativa (literária/fílmica/televisiva) conta uma história que se constitui por um conjunto de personagens, localizados no tempo e espaço, sendo esses elementos indissociáveis para a construção do significado do texto. As ações que se articulam em uma narrativa, independente do suporte em que ela é constituída, estão, de alguma forma, ligadas por sequências temporais, sejam elas lineares, invertidas, truncadas ou interpoladas. Xavier (2003) afirma que o filme narrativo-dramático, a peça de teatro, o conto e o romance possuem em comum uma questão de forma no que tange ao modo como se dispõem os acontecimentos e ações das personagens. Para o autor: Quem narra escolhe o momento em que uma informação é dada e por meio de que canal isso é feito. Há uma ordem das coisas no espaço e no tempo vivido pelas personagens, e há o que vem antes e o que vem depois ao nosso olhar de espectadores, seja na tela, no palco ou no texto. (XAVIER, 2003, p.64) 442 ANAIS - 2013 Na literatura, o escritor utiliza palavras para demonstrar o transcorrer ou retroceder do tempo através da escrita, com expressões que indicam o transcorrer do tempo, ou, ainda, pelo desenrolar das ações dentro da trama que, para constituir-se como tal, exige tanto um índice temporal como um índice de causalidade (TOMACHEVSKI, 1970). Partindo dessa premissa, a discussão do tempo no estudo de obras adaptadas para os meios audiovisuais é um de seus aspectos relevantes, pois permite enfocar as transformações – de linguagem e expressão que ocorrem na constituição da obra literária e da obra fílmica. Lidando com diferentes linguagens e meios de expressão, escritor e cineasta possuem formas diferentes para demonstrar o transcorrer da ação, a série de acontecimentos que parte de um ponto e chega a outro. Em primeira instância, considera-se que tais diferenças ocorrem devido à linguagem utilizada por cada meio em que o texto se encontra. Enquanto que o escritor constrói a sua obra através das palavras que informam ao leitor que o tempo passou ou retrocedeu, ou quando os acontecimentos passam lenta ou aceleradamente, o cineasta utiliza-se do mundo imagético para traçar o percurso que será representado por meio das ligações entre as cenas, das elipses espaciais e temporais, da imagem diurna ou noturna, das lembranças de fatos já ocorridos. Além disso, com relação às escolhas feitas pelos autores no que tange ao ponto de partida e de chegada de cada obra, o adaptador pode optar por fazer o mesmo percurso do texto-fonte ou subverter a ordem dos acontecimentos, criando outro percurso de desenvolvimento para a trama. Adicionalmente, no que se refere às supressões e acréscimos de tempo no texto adaptado, quando um romance é transportado para um filme, o cineasta, na maioria das vezes, suprime partes da obra literária, 443 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ao passo que a adaptação de um conto exige acréscimos temporais. A partir dessas considerações, o interesse desse artigo é enfocar a categoria temporal na adaptação de O Tempo e o Vento em minissérie para a televisão dirigida por Paulo José e apresentada pela Rede Globo em 1985, em 26 capítulos. Buscase compreender de que modo o texto literário de Erico Verissimo aborda a temporalidade e como isso é reproposto no produto midiático. 1. O tempo narrado: projeções, remissões, interpolações A questão temporal vem sendo tema recorrente de reflexão para estudiosos. Santo Agostinho conclui sobre a b á c x f qu é :“ nguém me perguntar eu o sei; se eu quiser explicá-lo a quem me fizer essa pergunta, já não saberei dizê- ” ( NTO O TINHO, 2004, p. 322). Nesta assertiva, o pensador indica a sua concepção de tempo como algo que se sabe que existe, sem que se precise questionar a respeito. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que se nada sobreviesse, não haveria o tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente. De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro -, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? (SANTO AGOSTINHO, 2004, p. 322) Paul Ricouer parte das reflexões de Santo Agostinho sobre o tempo e de Aristóteles sobre a tessitura da intriga para qu c “ c g ” ã 444 ANAIS - 2013 c u gu é “qu tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da existência ” (RICOUER, 1994, p. 85). Como Santo Agostinho, Ricouer tem dificuldades em definir o que é o tempo, que parece ser uma aporia sem solução. Como explicar o tempo, se o futuro ainda não existe, o passado já não é mais e o presente é um momento fugaz? Pode-se dizer, com base no autor, que as dimensões do tempo vão além da cronologia, como as dimensões psicológicas, que se interligam às vivências de mundo particulares de cada indivíduo. Para Ricouer (1994), o tempo somente faz sentido se for entendido como realidade da temporalidade humana, que pode remeter tanto a noções de eternidade quanto de finitude. Nesse sentido, o tempo tem dupla possibilidade: ter um papel importante como memória da humanidade, como aquilo que pode ser resgatado; e também como aquilo que pode, em alguma medida, ser previsto. E é com o ato de narrar que podemos distender ou encurtar o tempo, recuperar o passado e projetar o futuro. Em nome de que proferir o direito de o passado e o futuro serem de algum modo? Ainda uma vez, em nome do que dizemos e fazemos a propósito deles. Ora, o que dizemos e fazemos quanto a isso? Narramos as coisas que consideramos verdadeiras e predizemos acontecimentos que ocorrem tal como havíamos antecipado. É pois sempre a linguagem, assim como a experiência, a ação, que esta articula, que resiste ao assalto dos céticos. Ora, predizer é prever e narrar é 445 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento “ c p. 25-26) í ” (RI OUER, 1994, O autor compreende o tempo como algo que somente pode ser explicado pela memória, e que esta memória precisa encontrar uma forma de ser recuperada, de manter-se viva. De acordo com Ricouer, o que permite o tempo ser e o livra da aporia de Santo Agostinho, independente de sua remissão ao passado, projeção ao futuro, ou fugacidade presente, é a narração. Mas para agregar a dimensão temporal ao texto, faz-se c á , , c , “ c g ”, acontecimentos para que eles não se constituam como fragmentos desconexos. Tomando como referência à Poética de ó ,Rc u õ qu g é “ çã çã ” (RI OUER, 1994, 59) cu çõ e intriga, nota-se que o tempo não corresponde, necessariamente, ao do acontecimento, mas passa a ser o da própria narrativa, e o narrador pode, por exemplo, alongar ações que ocorreram em pouco tempo, ou encurtar ações que demoraram mais do que o tempo utilizado para narrá-las, fazer remissões ao passado ou projeções ao futuro, dentre outras possibilidades. Ricouer acredita que há ainda algo mais importante para a compreensão da tessitura da intriga, algo que é elucidado, em parte, pelo conceito aristotélico de mimese. Se a intriga é a çã çã , “há u qu se identificação entre as duas expressões: imitação ou representação da ação e g c f ” (RI OUER, 1994, 59) Está excluída de início, por essa equivalência, toda interpretação da mimese de Aristóteles em termos de cópia, de réplica do idêntico. A imitação ou a representação é uma atividade mimética enquanto produz algo, a saber, precisamente 446 ANAIS - 2013 a disposição dos fatos pela tessitura da intriga. De uma só vez saímos do emprego platônico da mimese, tanto em seu emprego metafísico quanto em seu sentido técnico em República III, que õ “ mimese” à “ ” ( ) Retenhamos de Platão o sentido metafórico dado à mimese, em ligação com o conceito de participação, em virtude do qual as coisas imitam as ideias, e as obras de arte imitam as coisas. Enquanto a mimese platônica afasta a obra de arte dois graus do modelo ideal que é seu fundamento último, a mimese de Aristóteles tem só um espaço de desenvolvimento: o fazer humano, as artes da composição. (RICOUER, 1994, p. 60) Portanto, já se sabe que a mimese, como proposta por Aristóteles e repensada por Ricouer, não diz respeito somente à imitação, mas à própria ação de tornar concreta a narrativa, por meio da refiguração do tempo. Ricouer propõe, então, uma tríplice mimese, que formaria um círculo virtuoso de relações entre tempo e narrativa. A partir de um mundo pré-configurado, mimese I representa as dimensões éticas e o mundo social, mimese II é o ato de configuração, com a presença de um narrador e também o espaço de mediação entre mimese I e mimese III, que corresponde ao momento de reconfiguração produzida por um leitor. Assim, na proposta de mimese de Ricoueur, é preciso qu c ê : “ c g ” b u qu é ua referência e as pessoas que terão contato com a narrativa. O momento exposto por mimese III, ou seja, o momento de leitura do texto é também o momento em que se torna concreta a relação entre tempo e intriga. Sinteticamente, os três estágios miméticos são para o u qu “ gu , , u prefigurado em um tempo refigurado, pela mediação de um c f gu ” (RI OUER, 1994, 87) 447 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 2. O vento e seus circuitos: a temporalidade na minissérie O Tempo e o Vento A partir dessas considerações, é possível pensar que a dimensão temporal é um aspecto muito importante do texto literário e também de sua tradução/adaptação para o audiovisual. A questão temporal está posta desde o título das duas obras. Verissimo, no rom c , x “ ” “ ” por meio do uso da metonímia. Na epígrafe bíblica, pode-se começar a desvendar algumas das suas intenções. Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos. (ECLESIASTES – 1 – 4-6, apud VERISSIMO, 2011) A associação de ideias une o tempo, pelo qual passamos, c , qu bé u c á “ ”, qu qu retorna ao mesmo ponto de partida, e tematiza (TOMACHEVSKI, 1970) a narração da trajetória da família Terra-Cambará. O tempo como categoria narrativa e o vento como figura de linguagem são também elementos importantes para a compreensão da estrutura que Verissimo dá a seu romance, em que narra a saga de uma família de maneira cíclica, c , qu “ g f z u c cu ” O tempo merece ser tratado com mais vagar, pois, tanto nos romances como na adaptação/tradução, ele não transcorre de forma previsível, ou linear. 448 ANAIS - 2013 Uma característica desse texto literário é a sua estrutura fragmentária. Composta de sete partes, talvez mais corretamente c c “ ó ”, arrativa tem natureza cíclica, tanto como um todo – pois a frase que abre a trilogia em O Continente é a mesma que a fecha em O Arquipélago –, quanto na parte que foi adaptada para a televisão. Em O Continente a ação se inicia com o cerco ao Sobrado, residência da família Terra-Cambará, e chega ao fim no mesmo Sobrado, três dias depois, com a rendição da família a seus adversários. Enfim, esta é a luta que permeia todo o romance: dos Terra-Cambará com os Amarais, chefes políticos da cidade de Santa Fé. Este trecho ressalta um traço importante deste episódio em especial: O Sobrado parece reafirmar a natureza fragmentária do romance, visto que o próprio segmento se subdivide em partes menores, que se intercalam com a narração de outros episódios do romance. A minissérie condensa os sete episódios do romance em quatro fases: O Sobrado, que também representa o momento presente da narrativa, Ana Terra, Um certo capitão Rodrigo e A Teiniaguá, fases que se caracterizam por serem remissões ao passado, especial através da memória e das lembranças da velha Bibiana. Nota-se, portanto, que houve supressão de alguns episódios do romance na minissérie, que, dentre outras coisas, suprime a personagem de Ismália Caré, empregada da estância dos Terra-Cambará, amante de Licurgo e personagem-título de um dos episódios do romance de Verissimo. A primeira parte da adaptação é a que conta a história do Sobrado e tem como tema principal as lutas políticas da região, que acontecem entre o fim do império e a consolidação da República. O ano é o de 1895. No sobrado onde vivem, os Terra-Cambará, republicanos, estão cercados pelos federalistas, que tinham interesse no retorno à monarquia sob um regime parlamentar. É nesse momento que 449 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Bibiana observa a centenária figueira da janela de sua casa e volta no tempo, resgatando lembranças de seus antepassados. A segunda parte diz respeito à Ana Terra. Ana Terra é avó de Bibiana, que veio do estado de São Paulo para o Rio Grande do Sul. Ana é introspectiva, quase não fala, se expressa mais com gestos. Trabalha como lavadeira. A rotina muda com a chegada do índio Pedro Missioneiro que é encontrado ferido e medicado por ela. A terceira parte da narrativa é Um certo capitão Rodrigo. O capitão é um forasteiro que chega a Santa Fé em um dia de Finados. Ninguém sabe quem é, ou a que veio, mas conhece Bibiana e se casa com ela. Apesar de gostar de artes e música, vive em um Estado em que as batalhas, seja pelo alargamento do território, seja pela manutenção da soberania, são frequentes. Quando as tropas de Bento Gonçalves passam por Santa Fé, Rodrigo junta-se aos farroupilhas. Por fim, a quarta parte da minissérie chama-se A Teniaguá. Acompanhamos a história dos descendentes do Capitão Rodrigo e Bibiana, principalmente o drama vívido por Luzia, a nora, comparada à lenda da teiniaguá, segundo a qual, uma princesa moura teria sido transformada em salamandra pelo diabo. Suas características principais seriam a sedução e a crueldade. Luzia se casa com Bolívar, filho de Rodrigo e Bibiana, uma pessoa de personalidade fraca. Logo de início, Luzia e Bibiana não se entendem e a relação entre as duas se deteriora. Durante toda a minissérie ocorrem alternâncias entre o momento presente e o passado, geralmente evocado por Bibiana, mas também pode ser uma recordação partilhada por outras pessoas, ou um objeto encontrado que traz à tona lembranças. Tendo em vista a circularidade do tempo e o constante jogo que se estabelece entre o que é presente ou passado, é de interesse 450 ANAIS - 2013 discutir alguns mecanismos de que a narrativa se utiliza para demonstrar a passagem de tempo, o retorno, a suspensão, dentre outras possibilidades. Ao tratar a questão do discurso na narrativa Genette (1995) destaca cinco aspectos diferentes que interferem no modo como as histórias são contadas: aspectos de ordenação, duração, frequência, modo e voz. Os aspectos de ordenação estão relacionados ao modo como o encadeamento temporal é percebido, ao estudo da articulação temporal como um processo de percepção, em lugar de lógica. Aspectos de duração dizem respeito ao estabelecimento de um ritmo na narrativa, possibilitando a alternância entre as situações de relato – que podem ser tônicas ou átonas – através do discurso. Aspectos de frequência relacionam narrativa e diegese, ou seja, a história na narrativa: de que maneira a narrativa distende, condensa, pulveriza, entrecorta ou transcreve a história. Os aspectos de modo estão relacionados ao ponto de vista condutor, ou seja, daquele que vê o desenvolvimento da história e o aspecto de voz se relaciona com as condições de enunciação da instância narrativa, ou seja, importa-se com quem fala. Notamos, portanto, que os primeiros três aspectos destacados se referem a questões de tempo, e os dois últimos a questões de narração. Nosso interesse neste trabalho recai, com isso, nos primeiros três aspectos abordados por Genette, embora a temporalidade não esteja, em nenhum momento, dissociada daquilo que se narra. Genette considera que a narrativa é uma sequência duas vezes temporal, pois há o tempo da coisa-contada, ou seja, seu significado, e o tempo da narrativa, seu significante e essa dualidade é o que permite as distorções temporais, já que ainda um terceiro tempo: o tempo de consumo da narrativa, de leitura. á, u ,“ x ã outro tempo que 451 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento não seja aquele que toma metonimicamente de empréstimo à ó u ” ( ENETTE, 1995, 33), qu “ ” c qu “ u ” Quanto ao primeiro aspecto destacado por Genette, o de ordenação, a passagem ou retroceder do tempo, pode ser demonstrado na narrativa com o uso de alguns recursos próprios como o uso de anacronias, que pela terminologia de Genette, são denominadas de prolepses e analepses, e constituem-se mediante os aspectos de alcance e amplitude. Uma anacronia pode ir ao passado ou ao futuro. As anacronias referem-se à ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história, na medida em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou pode ser inferida deste ou aquele indício indirecto (GENETTE, 1995, p. 33). A anacronia para Genette é qualquer alteração na ordem dos eventos da história, quando mediados pelo discurso, ou seja, é a confrontação da disposição dos acontecimentos na narrativa e a sucessão destes acontecimentos na história narrada. Verissimo faz uso constante da anacronia em seu romance, como no excerto abaixo, em que Ana Terra, a matriarca da família Terra-Cambará, recorda um dia importante em sua vida. Porém, no romance, isso acontece como uma recordação, ela se lembra desse acontecimento no futuro, causando uma discrepância entre o tempo da história e o tempo do discurso. 452 ANAIS - 2013 [...] entre todos os dias ventosos de sua vida, um havia que lhe ficara para sempre na memória, pois o que sucedera nele tivera força de mudar-lhe a sorte por completo. Mas em que dia da semana tinha aquilo acontecido? Em que mês? Em que ano? Bom, devia ter sido em 1777: ela se lembrava bem porque esse fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente. (VERISSIMO, 2011, p. 99). Para Genette as anacronias podem ser de dois tipos: analepses e prolepses. A é “[ ] b consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento u ” ( ENETTE, 1995, 38) É antecipação, no discurso, de eventos cuja ocorrência é posterior ao momento presente da ação. Já as analepses teriam funções contrárias às prolepses, pois referem“[ ] u evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em qu á” ( ENETTE, 1995, 38) , ,é movimento temporal retrospectivo, destinado a narrar acontecimentos anteriores ao presente da ação, ou mesmo, em alguns casos, anteriores ao início da história. Para Genette toda analepse constitui, em relação à narrativa na qual se insere, uma narrativa temporalmente segunda, subordinada à primeira. No romance de Verissimo, a anacronia ocorre nos momentos em que o narrador do romance suspende, por meio do recurso da pausa, a narrativa do momento presente – os segmentos integrantes de O Sobrado, que se passam em junho de 1895 – e retorna no tempo para contar uma outra parte da história da família Terra-Cambará. Na minissérie televisiva, as ã “ ” c cu flashback e as 453 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento prolepses ocorrem, por exemplo, quando a narrativa de um fato anterior é interrompida por Bibiana, no momento presente. Fig. 1 – Bibiana quer abrir as janelas do Sobrado para deixar entrar os fantasmas do Continente O segundo aspecto abordado por Genette é o de duração. Dentre as marcas discursivas que podem indicar duração, o autor trata das anisocronias, que se relacionam com a velocidade imprimida à narrativa. É toda alteração, no plano do discurso, do tempo de duração da história. Essa alteração pode ser mensurada em termos do tempo de leitura, que, de alguma forma, concretiza o tempo da narrativa e determina sua duração. Há quatro procedimentos narrativos que se relacionam às anisocronias: pausa, sumário, extensão e elipse, recursos que decorrem de uma atitude intrusiva do narrador, manipulando o tempo de duração da história. Embora o texto de Verissimo 454 ANAIS - 2013 privilegie a narrativa em cenas, com uso constante de diálogos entre os personagens, sua narrativa, como qualquer outra, não prescinde destes momentos de alteração no ritmo da história. A elipse é um desses recursos, utilizada no texto para suprimir lapsos temporais, mais ou menos longos. As elipses podem ser explícitas ou implícitas, inferidas pelo texto, com o desenrolar da história. No romance de Verissimo, há bastantes elipses que demonstram a passagem do tempo, mesmo que algumas vezes sem a demarcação cronológica, como no trecho a gu : “E qu , c sumia, a lua passava por todas as fases, as estações iam e vinham, deixando sua marca nas árvores, na terra, nas coisas e ” (VERI IMO, 2011, 153) A pausa, por outro lado, de acordo com Genette, indica a suspensão do tempo da história em benefício do tempo do discurso, interrompendo momentaneamente o desenrolar do enredo. É o que ocorre em O continente, quando o episódiomoldura O Sobrado é interrompido para se narrar acontecimentos anteriores. A essa técnica utilizada no romance, Nunes (1988) denomina entrelaçamento por alternância do discurso, cuja finalidade é causar o efeito suspensivo, ou seja, interromper um episódio em seu momento culminante, para criar expectativa no leitor, passando a outro episódio utilizando uma demarcação temporal, e voltar-se, por mecanismo análogo, ao segmento anterior. No caso do texto de Verissimo, pode-se inferir que o autor utilizou uma técnica semelhante a essa proposta por Nunes, pois apesar de haver episódios cronologicamente demarcados, estes diferem quanto ao modo de representação – descrição ou diálogos – o que pode proporcionar a narração de acontecimentos ao longo das gerações. 455 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Outro recurso destacado por Genette no âmbito da velocidade da narrativa é o sumário. Para o autor, o sumário é “[ ] çã gu ág f u gu ág vários dias, meses ou anos de existência, sem pormenores de cçã u ” ( ENETTE, 1995, 95) u z é uma forma de resumir os acontecimentos da história, de forma que eles correspondam no discurso, a um tempo muito menor do que aquele que de fato se passou. “E 85 u u gafanhotos desceu sobre a lavoura deitando a perder toda a colheita. Em 86, quando Pedrinho se aproximava dos oito anos, u c u g u u u c ” (VERISSIMO, 2011, p. 153). O resumo demonstra um distanciamento por parte do narrador, que opta por uma atitude redutora, que leva à desvalorização da história narrada, em prol da economia narrativa. Segundo Genette (1995) as funções mais frequentes do sumário são a ligação entre os episódios, o resumo de acontecimentos subalternos – como explicitado pelo excerto acima – e a rápida preparação para ações relevantes. Na minissérie, os adaptadores também encontraram maneiras de sumarizar os acontecimentos: enquanto no romance de Verissimo a narrativa do episódio dedicado a Ana Terra se estende até sua morte, estabelecida com o filho e os netos na cidade de Santa Fé, na minissérie o episódio chega ao fim no momento em que Ana Terra, depois de ter perdido o pai e os irmãos em um ataque de castelhanos à sua estância, parte, em companhia de tropeiros, em direção ao recém-criado povoado de Santa Fé. A elipse de mais de cinquenta anos de história acontece com o uso de planos longos, talvez indicativos de uma longa jornada e do uso do voice-over, que finaliza a história de Ana Terra e insere as personagens de seus netos, Bibiana e Juvenal.Já a cena tem função oposta à do sumário, uma tentativa 456 ANAIS - 2013 de imitação da duração da história do discurso. É caracterizada pelos diálogos e aproxima-se da isocronia. Fig. 2 – Ana Terra e o filho Pedro partem rumo a Santa Fé Dentre os aspectos abordados por Genette (1995) está ainda a frequência, que se refere à narração de acontecimentos repetitivos. Para o autor, há três tipos de narrativa que podem ser relacionadas a questões de frequência: a narrativa singulativa, que narra uma vez aquilo que aconteceu uma vez, ou narra várias vezes aquilo que aconteceu várias vezes; a narrativa repetitiva, que diz respeito a contar várias vezes aquilo que se passou uma única vez; e a narrativa iterativa, que conta uma vez aquilo que aconteceu várias vezes. Após o exposto, acreditamos ter destacado algumas maneiras que a narrativa 457 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento literária tem de expressar a passagem ou o retroceder do tempo, ou seja, compor a história e narrá-la com recursos que lhe são próprios. Martin (2005) afirma que o tempo, no cinema, diz respeito a uma tripla noção: o tempo de projeção (do filme, ou no caso de uma minissérie), o tempo da ação (tempo da história contada) e o tempo da percepção (a duração intuída pelo espectador). Perante um sistema tão arbitrário quanto o tempo, o autor esclarece que a câmera tem um papel importante, pois pode acelerar, retardar, inverter ou, até mesmo, parar o tempo. Além dessa tripla noção, o conceito de tempo evoca os conceitos de data e duração. Para expressar uma data, um filme pode recorrer ao uso de intertítulos – como ocorre na minissérie O Tempo e o Vento - ou pode-se filmar um calendário, por exemplo. Já a representação da duração é mais complexa, pois, para expressar duração, são utilizados recursos especificamente fílmicos, para indicar a passagem do tempo, acontecimentos de duração indeterminada ou a permanência do tempo - momentos em que nada se passa, mas a duração é intensamente vivida. Ao tratar do tempo cinematográfico, Cassetti e Di Chio (1990) se referem a duas realidades distintas: o tempo-datação, um tempo que se resolve na determinação pontual de um acontecimento; e o tempo-porvir, que, ao contrário, se propõe como fluxo constante, irredutível aos instantes que o constituem. Esse último tempo é o que mais interessa aos autores, pois se dispõe de acordo com uma ordem, mostra-se através de uma duração e se apresenta segundo uma frequência. A partir disso, percebe-se que ao tratar do tempo cinematográfico, Cassetti e di Chio (1990) utilizam os mesmos parâmetros utilizados por Genette (1995) ao abordar a narrativa literária, o que permite que busquemos uma aproximação no que diz respeito ao tratamento do tempo nessas duas linguagens. 458 ANAIS - 2013 Independentemente da linguagem que utilize, a narrativa é a representação de acontecimentos, ações, personagens e ambientes ao longo do tempo, o que justifica o estudo de tempo e narrativa de forma interligada. Para Cassetti e Di Chio, a ordem define a disposição dos acontecimentos no fluxo temporal e suas relações de sucessão. Quanto à ordem, os autores destacam quatro formas de temporalidade: o tempo circular, o tempo cíclico, o tempo linear e o tempo anacrônico. O tempo circular refere-se a uma sucessão de acontecimentos dispostos de tal forma que o ponto de chegada é idêntico ao ponto de partida. Por outro lado, o tempo cíclico refere-se a uma sucessão de acontecimentos ordenados de forma a que o ponto de chegada seja análogo ao tempo de partida. Esse tipo de ordenação é a que ocorre no romance O continente e também em sua tradução/adaptação audiovisual; isso porque, a narrativa se inicia com os acontecimentos de O Sobrado e chega ao fim também no Sobrado, em situação análoga a do início, demonstrando o estabelecimento de uma narrativa cíclica. A opção pela narrativa cíclica também na minissérie indica que os adaptadores mantiveram os mesmos pontos de partida e chegada do romance de Verissimo. O tempo linear, por seu turno, determina-se por uma série de acontecimentos em que o ponto de chegada da narrativa é sempre distinto do ponto de partida. Pode ser de dois tipos: vetorial e não vetorial; é vetorial quando segue uma ordem contínua e homogênea. Nesse sentido, pode haver uma vetorialidade progressiva, quando os acontecimentos seguem adiante ou inversa, quando a sucessão dos acontecimentos acontece para trás. Já o tempo não vetorial é caracterizado por uma ordem não-homogênea, fraturada, sem soluções de continuidade. As rupturas podem ocorrer com recordações do passado – e o recurso do flashback- ou antecipações do futuro – 459 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento e, por consequência, o flashforward. Em alguns casos, de acordo com os autores é possível perder qualquer sentido de ordenação: assim, são as representações anacrônicas, sem relações cronológicas definidas. Não existe, então, um sentido de ordem, mas sim, de desordem. A duração é o aspecto que define a extensão do tempo representado. Cassetti e Di Chio distinguem a duração real, ou seja, a extensão efetiva do tempo, e a duração aparente, a sensação perceptiva dessa extensão. Quanto à duração real, um enquadramento parecerá mais longo quanto mais restrito for o quadro - como nos casos de representação de detalhes, ou uma tomada mais próxima - e mais estático o conteúdo representado. Pelo contrário, parecerá mais breve quanto mais amplo for o quadro e mais dinâmico e complexo o conteúdo – diálogos, ação. Além do conteúdo e do suporte utilizado, a duração pode ser percebida de maneiras diversas, pelo tipo de montagem que é realizado. Quanto mais a montagem inserir objetos estáticos ou paisagens, por exemplo, maior será a sensação de que o tempo transcorre lentamente. Para os autores, é preciso também distinguir entre o que denominam de duração normal e duração anormal. A duração normal ocorre quando a representação de um acontecimento coincide aproximadamente com a duração real desse acontecimento. Nesse sentido, Cassetti e Di Chio destacam duas formas de representação temporal utilizada pelo cinema: o plano sequência e a cena. O plano-sequência é a narração de um acontecimento em uma única tomada, sem cortes. Na montagem narrativa, o tipo mais comum, porém, é a cena, um conjunto de qu “ ” c f c tempo de representação e o que é representado, e assim conseguir um efeito de continuidade temporal. As cenas se constituem pelo trabalho de montagem, que decompõe e 460 ANAIS - 2013 recompõe o tempo, manipulando-o para que a representação seja o mais realista possível. Há ainda o que os autores denominam representação anormal do tempo. As representações anormais do tempo acontecem quando a amplitude temporal da representação do acontecimento não coincide com a do acontecimento em si. Cassetti e Di Chio diferenciam as formas representativas em dois grupos: modos de contração e dilatação do tempo. Entre as formas de contrair a representação do tempo destacam a recapitulação e a elipse, enquanto que para expandir essa representação podem ser utilizadas as pausas e a recapitulação. Podem ser encontradas recapitulações de dois tipos: ordinária, quando são feitas durante a montagem, e marcada. Essa última condensa os acontecimentos, interferindo sensivelmente no tempo cronológico. Já a pausa se manifesta cada vez que o fluxo temporal é interrompido, enquanto o tempo de projeção do filme continua. A elipse lida com as descontinuidades do produto u u , u j , c c “ uã c u ” u u contínuo. Atua em um nível fílmico mais profundo, e, por isso, influencia a dinâmica perceptiva e cognitiva do espectador. Martin (2005) afirma que a elipse é parte integrante do fazer artístico cinematográfico, uma atividade de escolha do cineasta, que escolhe os elementos significantes e os ordena numa obra. Martin divide as elipses em dois grupos: de estrutura e de conteúdo. As elipses de estrutura, de acordo com o autor, são motivadas por razões de construção da narrativa, e são usadas, por exemplo, nos filmes policiais, em que o espectador deve ignorar a identidade do assassino. A elipse, nesse caso, cria expectativa, gera suspense. Na minissérie O Tempo e o Vento, uma elipse de estrutura é a que ocorre no momento de definição do duelo entre o Capitão Rodrigo e Bento Amaral. O espectador vê Rodrigo usando a adaga para marcar o 461 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento rosto de seu adversário, mas não vê o Capitão sendo ferido. No decorrer da narrativa, descobre-se o que aconteceu devido às lembranças de Bento. As elipses de conteúdo, por outro lado, têm motivações de censura social, ou seja, acontecimentos ou atitudes que os tabus sociais impedem que sejam retratados na tela, como por exemplo, a morte, a dor ou torturas. A elipse, neste caso, dissimula e sugere o acontecimento. Esse tipo de elipse ocorre em O Tempo e o Vento em momentos de agressão ou morte, como no momento da morte de Pedro Missioneiro, em que o espectador infere que o rapaz foi morto pelos irmãos de Ana Terra, mas a minissérie dissimula esse acontecimento. Além das elipses, Martin ainda destaca a importância das ligações e transições para assegurar a fluidez narrativa de uma obra audiovisual, e evitar ligações equivocadas. Por último, Cassetti e Di Chio (1990) abordam a frequência e destacam cinco modos de expressão da frequência temporal: simples, múltipla, repetitiva, iterativa ou frequentativa. Os primeiros dois modos de representação são os mais comumente utilizados: qualquer produto audiovisual pode representar uma única vez o que aconteceu uma só vez (frequência simples) ou várias vezes o que aconteceu várias vezes (frequência múltipla). Tanto a frequência simples quanto a frequencia múltipla podem ser associadas ao que Genette (1995) denomina frquência singulativa, que diz respeito a narrar o acontecimento sempre que ele ocorrer. A frequência repetitiva, por outro lado, caracteriza-se pela repetição de um acontecimento que aconteceu uma única vez inúmeras vezes, e a frequência iterativa é o tipo de frequência mais complexo, pois se na literatura, a linguagem verbal tem suas próprias formas de expressão para indicar a repetição de um acontecimento cotidiano, como no excerto: 462 ANAIS - 2013 “P h gu todos os dias à hora das refeições contava o que havia b ” (VERI IMO, 2011, 156, g f nosso), os autores ressaltam que o cinema ainda não conseguiu encontrar solução adequada para representar esse tipo de sequência. Na minissérie, a frequência iterativa ocorre na representação de ações cotidianas: mostra-se apenas uma vez Ana Terra tirando o leite das vacas ou lavando roupas, mas sabe-se pela relação da personagem com o ambiente que a cerca que aquelas são atividades de todos os dias, as quais o audiovisual não tem interesse em mostrar. Por isso, as ações cotidianas dos personagens costumam ser representadas na minissérie apenas em momentos de quebra de uma rotina pré-estabelecida: Ana Terra é mostrada lavando roupas apenas quando essa atividade a levará a encontrar o índio Pedro Missioneiro desacordado no riacho, e esse acontecimento distancia-se das suas ações cotidianas. Conforme esboçado nesse artigo, percebemos que ao tratar da categoria temporal tanto a narrativa literária quanto a audiovisual são regidas pelos mesmos parâmetros, ou seja, os aspectos de duração, ordenação e frequência, porém utilizam diferentes recursos expressivos para compor os significados pretendidos. Tanto a linguagem escrita quanto a audiovisual, buscam formas de narrar determinado acontecimento, já que não se pode pensar que vá haver correspondência exata entre o que foi lido e o que foi visto. Considerações finais No que se refere à adaptação de obras literárias para meios de comunicação audiovisual, temos de considerar que esta é uma prática corrente. Independente dos motivos que 463 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento levam o adaptador a escolher uma determinada obra, seja para celebrar determinado momento histórico, atualizar uma obra consagrada ou repropor novos textos, tanto cinema quanto televisão buscam a literatura como fonte para suas histórias. Porém, os meios audiovisuais têm características próprias, formas de se expressar distintas das utilizadas pelo texto literário. Em uma breve análise, esse artigo enfocou a constituição temporal na narrativa, seja ela literária ou televisiva. Buscou-se demonstrar, com exemplos da minissérie estudada, de que maneira o produto audiovisual repropõe aspectos presentes na narrativa literária, ou seja, a partir de que elementos a minissérie “ c ” h ó c E c V , por base a constituição temporal. Tal escolha deve-se, especialmente, ao fato de a questão temporal estar relacionada ao romance desde o título, tematizando o texto literário. O tempo também tematiza a minissérie O Tempo e o Vento, que mantém a circularidade da obra e estabelece uma intrincada relação entre os planos passados e presentes da narrativa, por meio da utilização da memória de uma das protagonistas como fio condutor. O estudo das adaptações possibilita uma dupla abordagem sobre o tema, pois requer que se considere tanto o texto literário quanto o audiovisual como obras distintas, embora ligadas entre si. Essa abordagem diferenciada permite que notemos cada uma de suas especificidades, entre as quais destacamos o tratamento dado à categoria temporal, já que tanto o texto de partida quanto o de chegada têm formas distintas de lidar com suporte, gênero, formato e linguagem. Referências 464 ANAIS - 2013 CASETTI, Francesco; DI CHIO, Federico. Cómo Analizar un Film. Barcelona: Paidós, 1991. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 1995. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005. NUNES, Benedito. O Tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, tomo I. Campinas: Papirus, 1994. SANTO AGOSTINHO. Coleção os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004. SAUBOURAUD, Fréderic. La adaptación: el cine necesita historias. Barcelona: Paidós, 2010. TOMACHEVSKI, La Temática. In: TODOROV, Tzvetan (org.). Teoría de la Literatura de los Formalistas Rusos. Buenos Aires: Signos, 1970. p. 199-232. VERISSIMO, Erico. O continente. Vol. I, Companhia das Letras, 2004. XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia (org.) Literatura, cinema, televisão. São Paulo: SENAC, Instituto Itaú Cultural, 2003. p. 61-89. 465 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento FILMOGRAFIA JOSÉ, Paulo. O Tempo e o Vento. Rio de Janeiro: Central Globo de Produções, 1985. 9 DVD. (Aprox. 18h). 466 ANAIS - 2013 Dialogismo em foco: reflexões sobre o material didático produzido para Educação a Distância Juçara Zanoni do NASCIMENTO 1 Cleuza Andrea Garcia MUNIZ 2 RESUMO: O Curso de Graduação em Letras – Habilitação Português, Espanhol e Literaturas, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, na modalidade Educação a Distância, produz grande parte do seu material didático impresso, dentre eles, os guias didáticos das disciplinas do curso, utilizados pelos estudantes. O objetivo é analisar e comparar dois desses materiais, elaborados para a disciplina Leitura e Produção de Textos. Nessa análise, o guia didático foi considerado um gênero textual discursivo, segundo a perspectiva bakhtiniana. Foram analisadas e comparadas marcas dialógicas sob dois aspectos: o uso da primeira pessoa do plural como elemento de proximidade entre os sujeitos envolvidos na prática pedagógica e o uso do recurso gráfico balão com intuito de provocar interações entre estudante e autor/professor, bem como mediar o conteúdo e auxiliar o estudante na construção do conhecimento. Conclui-se que há significativas diferenças entre os materiais analisados. PALAVRAS-CHAVE: Educação a Distância; Guia Didático; Marcas Dialógicas. Introdução O oferecimento de cursos de graduação e pós-graduação a distância pelas instituições públicas de ensino superior é uma 1 Profª Ms. do curso de Letras nas modalidades presencial e a distância da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). 2 Profª Ms. do curso de Letras Habilitação Português/Espanhol na modalidade a distância da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). 467 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento conquista galgada ao longo de décadas em nosso país. Após a implantação do primeiro curso de graduação a distância no ano de 2001 e com as novas políticas de incremento e interiorização da Educação Superior, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul passou a integrar, em 2006, o sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Atualmente, o curso de Letras Licenciatura Plena Habilitação Português, Espanhol e Literaturas, oferecido pela UFMS, é ofertado nos municípios mais distantes do estado de Mato Grosso do Sul e também fora dele. Os primeiros polos de apoio presencial credenciados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), já com o sistema UAB3, estão localizados nos municípios de Água Clara, Camapuã, Rio Brilhante e São Gabriel do Oeste, em MS, e também em Apiaí, no estado de São Paulo (SP). Em 2012, realizou-se a graduação de quatro turmas, atingindo, dessa forma, uma das metas do MEC que é a formação, com qualidade, de professores para atuarem no Ensino Fundamental e Médio no Estado de MS. Com a crescente demanda, novos polos foram credenciados nos municípios de Bataguassu, Costa Rica, Miranda e Porto Murtinho, e mais recentemente, em Bela Vista, no sul do Estado. Esse breve histórico revela a dimensão e a relevância que a Educação a Distância (EaD) assumiu no atual contexto brasileiro. Com a EaD a democratização do ensino tornou-se í h b xc uí “ b c h c c uí ” (PRETI, 2010, 4) u lmente, é grande a produção teórica sobre questões ligadas a esse cenário; muito se tem discutido, até porque, a inserção das novas tecnologias da informação e da comunicação é algo novo, que está revelando suas múltiplas possibilidades no âmbito da 3 Leia-se Universidade Aberta do Brasil. 468 ANAIS - 2013 educação. Porém, ao se fazer menção às novas TICs4, não se está excluindo outras tecnologias, como por exemplo, o livro didático. O referencial para produção de material didático elaborado pelo MEC considera que na modalidade a distância, á c ã “u c de socialização do conhecimento e de orientação do processo de aprendizagem, articulados com outras mídias: vídeo, videoconferência, telefone, fax e ambiente virtu ” (MEC, 2007, p. 6). Portanto, a produção desse tipo de material pedagógico tem na Educação a Distância lugar de destaque, pois, tradicionalmente, é a tecnologia que todos dominam e, dada a sua importância, muitas instituições e profissionais da área têm dedicado relevantes estudos sobre o tema. Este artigo busca analisar e comparar dois guias didáticos, elaborados para a disciplina Leitura e Produção de Textos, do Curso de Graduação em Letras – Habilitação Português, Espanhol e Literaturas, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, na modalidade a distância, tendo em vista a dialogicidade que é, segundo o Ministério da Educação, um dos princípios que devem estar presentes nos materiais didáticos dessa modalidade de ensino. Em um primeiro momento, serão expostas considerações acerca dos materiais didáticos a distância, seguidas das análises e comparações realizadas sobre os materiais didáticos selecionados. Por fim, na conclusão, serão apontadas as diferenças entre esses materiais no que se refere à dialogicidade, bem como à relevância de se optar por materiais didáticos que tragam marcas dialógicas no sentido de se preocupar com o estudante durante seu processo de ensino e aprendizagem. 4 Leia-se Tecnologias da Informação e da Comunicação. 469 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 1. O Guia Didático para a EaD: desafios A produção de material impresso para os cursos ofertados a distância passou por um significativo incremento com a implantação do Sistema Universidade Aberta do Brasil em várias instituições públicas de ensino superior. O Curso de Graduação em Letras – Habilitação Português, Espanhol e Literaturas, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), na modalidade a distância, produz grande parte do seu material didático impresso, dentre eles, os guias didáticos das disciplinas do curso, utilizados pelos estudantes. O guia didático utilizado nos cursos a distância é um , cuj fu çã é, “ ux u u c u c ã x u ” (NEDER, 2009, p.18). Os guias didáticos, aqui, são compreendidos como um gê cu , “ qu rer-dizer do locutor se realiza c u c h gê cu ” (B KHTIN, 2003, p. 301), nesse sentido, ao escrever o guia didático, os u / f “ c h ” c u c c estudantes por meio de um guia didático. Na produção desse guia, selecionaram determinados objetos de ensino com intuito de fazer com que o estudante construa conhecimentos, portanto, pode-se afirmar que há produção de um enunciado em um gênero do discurso, cuja função social é auxiliar o estudante na leitura e na compreensão do conteúdo da disciplina, constituindo-se como uma forma de se aproximar do estudante, diminuindo as distâncias físicas. Todo conteúdo do guia didático tem um propósito: auxiliar o estudante a compreender o conteúdo da disciplina. 470 ANAIS - 2013 O guia didático é um desafio para o ensino a distância, porque ao escrever o autor precisa estabelecer um diálogo (dialogicidade) com o estudante, como se a distância não existisse, como se autor/professor e estudante estivessem um ao lado do outro. Um dos obstáculos mais evidentes para a produção textual que prioriza uma abordagem dialógica é a falta de clareza ou compreensão, por parte dos autores/professores, sobre as características da linguagem escrita que deveriam predominar nesse processo de elaboração. A linguagem apropriada para essa modalidade de ensino deve proporcionar a interação e a proximidade entre os sujeitos, e isso só se alcança ao manter um estilo dialógico na escrita do material didático, uma tarefa, sem dúvida, desafiadora. Nos princípios, nas diretrizes e nos critérios dos referenciais de qualidade para as instituições que oferecem cursos a distância, gc é f c :“ é garantia de que o material didático propicie interação entre os diferentes sujeitos envolvidos” (MEC, 2007, p. 15), pois os á c “ uu gu g dialógica, de modo a promover autonomia do estudante desenvolvendo sua capacidade para aprender e controlar o ó ” (ME , 2007, p. 15). Essa proposta de linguagem dialógica pode ser compreendida na perspectiva bakhtiniana, cujo enfoque está relacionado ao enunciado, que faz parte de um processo de comunicação ininterrupto, em que se pressupõe a presença do falante, do ouvinte e dos enunciados anteriores e posteriores à comunicação. O enunciado pode ser compreendido como uma grande cadeia dialógica. Nesse sentido, para toda palavra enunciada, no interior de um processo de compreensão ativo, espera-se uma resposta. A palavra 471 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento [...] é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão de um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, à coletividade (BAKHTIN, 1999, p. 113). Na elaboração de um guia didático pelo viés da linguagem dialógica, com enfoque bakhtiniano, é preciso criar situações pedagógicas em que seja proporcionado ao estudante um lugar em que ele possa interagir com os autores, com outras leituras feitas e com o que viveu. Para isso acontecer, é preciso que o autor provoque um diálogo, que auxilie o estudante a construir conhecimentos, bem como oriente o seu estudo e o desenvolvimento do espírito crítico. Entretanto, não se deve esquecer que por se tratar de um assunto científico, cada citação, cada referência, deve apresentar a seriedade necessária para se construir um texto acadêmico. 2. A dialogicidade: comparações Conforme anunciado anteriormente, foram estudados, analisados e comparados os dois guias didáticos elaborados para a disciplina Leitura e Produção de Textos, para o Curso de Letras da UFMS na modalidade a distância. O primeiro, de publicação mais antiga, será designado como A e o segundo, de publicação mais recente, designado como B. 472 ANAIS - 2013 Quadro 01 GUIA A GUIA B FERNANDES, José Genésio; DANIEL, Maria Emília Borges. Leitura e Produção de Textos. Campo Grande: Ed. UFMS, 2008. BEZERRIL, Gianka S; PEREIRA, Rodrigo Acosta. Produção de texto I. Campo Grande: Ed. UFMS, 2011. Serão estudadas, analisadas e comparadas marcas dialógicas sob dois aspectos: o uso da primeira pessoa do plural como elemento de proximidade entre os sujeitos envolvidos na prática pedagógica e o uso do recurso gráfico balão com intuito de provocar diálogos e a interação entre estudante e professor, no sentido de diminuir as diferenças físicas e também mediar o conteúdo e auxiliar o estudante na construção do conhecimento. Como os dois Guias são extensos, optou-se por um recorte. O conceito de recorte compreendido aqui é o da Análise do Discurso Francesa, que ilustra a relação entre uma sequência discursiva e uma situação. A concepção de recorte, definida por Orlandi (1984), é como um fragmento que, em oposição à concepção de segmentação, relaciona linguagem e situação. Nesse sentido, não se analisa a materialidade linguística, mas as condições de produção do corpus analisado. Nesse recorte, serão analisados no Guia A: “ çã ”, “P ç c ” “U 1”, e, u B: “ çã ” U 1 No primeiro momento de análise, que compreende o “u u c proximidade entre os sujeitos envolvidos na prática pedagógica”, a seção “P c ç c ” só será analisada no Guia A, pois não consta no Guia B. 473 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Quadro 02 Guia A Apresentação Para começo de conversa Unidade 1 N gu u cu g áf c b ã ”, ó no Guia B, não há presença deles. Guia B Apresentação Unidade 1 á , qu c á u , “o , Quadro 03 Guia A Para começo de conversa Unidade 1 Guia B 2.1 O uso da primeira pessoa do plural como elemento de proximidade entre os sujeitos envolvidos na prática pedagógica A EaD5 envolve a atuação e a interação de diferentes sujeitos, além da estruturação e conexão de diversos componentes, para que o processo de ensino se objetive e o de aprendizagem se concretize. Entre os diversos componentes que integram o processo de ensinar na EaD, o material didático sempre foi considerado de fundamental relevância para aqueles que estão longe da figura do professor e do espaço físico da sala 5 EAD – Educação Aberta e a Distância/ EaD – Educação a Distância 474 ANAIS - 2013 de aula. Ao tratar do material didático referem-se a um conjunto cu c óg c qu u z “ ”, c -se na aprendizagem do estudante. Cabe relembrar que, para a delimitação desta pesquisa e seus objetivos, o objeto aqui analisado refere-se ao material didático impresso para a EaD. O material didático impresso, embora sendo uma tecnologia tradicional, sempre garantiu um espaço importante numa sociedade que se encaminha para a consolidação da cultura midiática. Segundo Preti (2009), há vários aspectos que corroboram com a posição assumida pelo impresso: a indústria de material impresso que tem crescido de forma vertiginosa sinalizando que, em que pesem algumas apocalípticas previsões, que o fim do livro está longe de acontecer; é a tecnologia que faz parte de nossa formação escolar; e é a mais acessível e, por isso, predomina na EaD, já que, em censo realizado no ano de 2010, das instituições que realizaram a pesquisa e que têm polos de apoio presencial, 91% utilizam material didático impresso. Essas considerações permitem avaliar a dimensão assumida pelo material didático produzido para cursos a distância e considerá-lo como um elemento didático com a intenção de ensinar, comunicar, socializar conhecimentos e promover interação, que são características fundamentais para esse tipo de produção didática, já que se a atividade de leitura é f “c u çã â cia entre leitor e autor” por meio do texto (KLEIMAN, 2011, p. 65), o material didático para EaD precisa propiciar não somente ensino, mas também, essa interação do autor com o estudante por meio do texto, pois é fundamental pensar sobre o que o aluno irá fazer diante do texto, já que sua aprendizagem só será concretizada mediante sua ação. 475 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Ainda sobre a leitura como processo interativo, Kleiman considera: É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. E porque o leitor utiliza justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo (KLEIMAN, 2011, p. 13). Dentre as funções que o material didático desempenha em relação ao estudante, destacamos que manter o diálogo com ele propicia a relação dele com o professor (autor/leitor), mediada pelo texto. Essa interação ocorre por meio da linguagem, portanto, buscar formas de aproximação entre os sujeitos participantes do processo, significa estabelecer, na produção escrita, uma mediação pedagógica com o estudante, o que lhe permite não somente compreender, mas, também, ressignificar o texto por meio de questionamentos e reflexões. A possibilidade de estabelecer a interação6 autor/leitor, mediada pelo texto, torna-se mais efetiva quando certos elementos atuam na tessitura do material didático impresso, o que revela também a preocupação com o dialogismo. O uso da primeira pessoa do plural busca diminuir a distância entre os sujeitos, produzindo um efeito de sentido caracterizado pela aproximação e inclusão do outro no discurso. 6 É possível destacar três tipos de interação em EAD: a interação alunoprofessor, a interação aluno-aluno e a interação aluno-conteúdo. O primeiro é considerado por muitos educadores, o núcleo de todo o processo educacional, quer seja presencial, semipresencial ou a distância. 476 ANAIS - 2013 Ao analisar os dois guias didáticos, observou-se que os autores/professores do Guia A (2008), não utilizaram esse recurso em sua apresentação: Prezados aprendentes: Bem vindos ao Curso de Graduação [...]. Vocês estão participando de um curso de g u çã “ â c ”, ã ã sozinhos, por vários motivos. (FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 3). Em um primeiro momento, isso revelaria que os autores/professores mantiveram em seu material a relação assimétrica entre professor e estudantes, mas, ao prosseguir com a análise da apresentação do guia, é possível observar que as escolhas em relação à construção da linguagem levam a pensar na condição do estudante como responsável pela construção do seu conhecimento, condição essa enfatizada como necessária pelos autores/professores. No entanto, fica evidente que durante “ j ” c uçã conhecimento, o estudante não estará só, de acordo com os autores/professores: [...] mas não estão sozinhos, por vários motivos. Primeiro, porque não são alunos confinados em espaço e tempo de sala de aula presencial, onde o professor tem posição privilegiada no espaço e comando absoluto do tempo [...]. Segundo, porque estão juntos, fazendo parte de um grande grupo de pessoas no qual só existem mesmo aprendentes (FERNANDES e DANIEL, 2008, p.3). 477 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Ao longo do texto de apresentação do guia há várias tentativas de envolver o estudante emocionalmente, de modo que ele se sinta pessoalmente interessado no novo contexto e nos assuntos ali tratados. Essas estratégias interativas auxiliam o professor no estímulo ao estudante para fazer parte do processo de aprendizagem, e que todos, segundo os autores/professores, são aprendentes, ou seja, todos aqueles ligados diretamente à c qu ã ã “ c u ” Já o Guia B (2011) faz referência à primeira pessoa do plural na introdução (parte do primeiro parágrafo) e na finalização (final do último parágrafo) do texto de apresentação: Caros alunos, Estamos começando a estudar mais sobre como compreender e produzir textos diversos. [...] Desejamos um excelente percurso de estudos e pesquisas a todos! [...] (BEZERRIL e PEREIRA, 2011, p. 5). Observa-se que o emprego da primeira pessoal do plural “ c ç ” remete ao próprio enunciador que fala de si na primeira pessoal do plural, pois somente ele é o proponente da proposta, não há envolvimento do outro em tal situação. Isso fica evidenciado em seguida porque, com a menção de “nesse manual didático”, podemos inferir que os u / f “f ”, íc , b c uçã do material elaborado por eles, o que denota um início para eles (os autores/professores) e não início com eles (os estudantes). Verificou-se o uso da primeira pessoa do plural, porém, essa estratégia interativa não alcançou seu objetivo em estabelecer e manter um diálogo com os estudantes, não logrou incluí-los no processo, ao contrário, estabeleceu-se um distanciamento entre 478 ANAIS - 2013 uj , “D j [ ó, professores] um excelente percurso de estudos e pesquisas a [ cê , u ]!” A preocupação do guia A (2008) com o dialogismo, com a interação, c bé “Para começo de conversa”, qu c U I Ob -se o uso constante da primeira pessoal do plural como forma de amenizar a distância entre o estudante e o professor. Em muitos momentos os autores/professores do Guia A (2008) colocam-se “ ” c u qu á c cu / disciplina: “Vamos lá!”, “Em nosso curso, vamos falar muito da atividade que os homens realizam com a linguagem”. A preferência pela primeira pessoal do plural também marca o efeito de sentido de inclusão do estudante na construção do conhecimento; esse clima de diálogo estabelecido desde o começo desperta no estudante confiança e autoestima, motivando-o a sentir-se sujeito da aprendizagem, a dar sentido ao que está lendo e realizando. Essa primeira aproximação aos conceitos/temas é marcada fundamentalmente pela aproximação entre os sujeitos, os autores/professores se preocuparam em fazê-los acreditar em sua capacidade de aprender. Embora observado o uso do pronome você no trecho a seguir, que também deixa uma sensação de aproximação, há um movimento mais abrangente no qual um “nós”, referenciado em seguida, provoca um efeito de sentido de aproximação e inclusão do outro no discurso, lembrando-o que todos, independentemente do grau de estudos ou de vivência, aprendemos sempre: Perguntando e respondendo, você vai fazer o uc h “ ” u c g e nós, também. Aprendemos a vida inteira e aprendemos mais quando ninguém nos 479 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento obriga a isso. É ou não é? Como diz o poema de Antonio Machado, o caminho se faz caminhando. (FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 8). Observou-se também no guia B (2011) que há o emprego da primeira pessoal do plural na Unidade I: Nesta unidade, estudaremos os pressupostos teóricos necessários para o trabalho com análise de gêneros para fins acadêmicos [...]. Para você melhor compreender, subdividiremos nossa primeira unidade em cinco partes [...]. Não esgotamos, nesse Manual, as várias discussões sobre os temas abordados [...]. (BEZERRIL e PEREIRA, 2011, p. 9). Repare que os autores/professores do guia B (2011) utilizam-no como elemento necessário à progressão textual do enunciado, sem ater-se a sua expansão de uso como estratégia çã N , “ ó” f c ch c remete novamente ao próprio enunciador falando de si próprio. Ao indicar para o estudante a divisão da primeira unidade utilizando o verbo na primeira pessoa do plural “ ub ”, istanciamento ou separação se estabelece porque deixa clara a ideia de separação de papeis entre os sujeitos, ou seja, o professor como aquele que detém o conhecimento e o estudante como aquele que precisa aprender e que só poderá fazêgu “ ” c eles, os professores. 480 ANAIS - 2013 2.2 O uso do recurso gráfico balão com intuito de provocar diálogos e interações entre estudante e autores/professores. Nos materiais didáticos da EaD, aparecem vários recursos gráficos, entretanto, neste trabalho, o enfoque será nos balões, os mesmos utilizados nas Histórias em Quadrinho para marcar a fala ou o pensamento das personagens. Há várias definições para o termo balão, entretanto, para orientar este artigo adotou-se a definição de Romualdo (2000, p. 29), para quem, balão é "um texto fechado em um volume delimitado por uma linha contínua. Esta linha engloba a totalidade dos caracteres tipográficos que representam as palavras ditas pelos personagens", e também a definição de Ramos (2009, p. 213), na qual, o balão "seria uma forma de representação da fala ou do pensamento, geralmente indicada por um signo de contorno, que procura recriar um solilóquio, um monólogo ou uma situação de interação conversacional". No Guia Didático A, foram encontrados 47 balões, já no Guia Didático B não há balões. Foram selecionados quatro balões da parte introdutória ( ú ), u : “P c ç c ”; 4 b õ U 1( ú ), u : “Fu amentos e pressupostos c c u b x ” No decorrer do Guia, nota-se que o texto dos balões surge para suprir a ausência do professor, pois atua como mediador da aprendizagem (CAZAROTO, 2007, p.1260), ele representa o discurso, as vozes dos autores/professores do Guia Didático conversando com o estudante/ouvinte. Ele simula um discurso na modalidade oral da linguagem, dessa forma, o leitor/estudante tem a sensação de estar conversando com os autores/professores. Talvez essa seja a intenção dos 481 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento autores/professores, uma vez que í u çã “P c ç c ” c , õ u conversa, um diálogo com o estudante. Há sempre o uso do pronome de tratamento “ cê”, gu c , na forma elíptica, que se comporta co “ u” O u b ã é articulado com o assunto discutido, formando um todo coeso e coerente. Os balões são contornados em azul, diferenciando-os do texto científico, e chamando a atenção do estudante, para que ele leia e reflita sobre o assunto. A linguagem utilizada é coloquial, simulando a oralidade e a informatividade, que remete a contextos interacionais da sala de aula. No recorte selecionado, foram analisados os balões, tendo em vista a dialogicidade sob dois aspectos: 1) se há provocação da interação entre o estudante e o professor/ (eu/tu), no sentido de diminuir as distâncias físicas dos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, focalizando um diálogo, como se o professor estivesse presente, conversando com o estudante; 2) se há por parte dos autores/professores a mediação do conteúdo e auxílio na construção do conhecimento, se há uma espécie de ponte que une o assunto anterior e o posterior ao balão, ou se há uma retextualização, uma explicação que facilite a compreensão do leitor/estudante. Observe o conteúdo do balão: Está vendo? Com essas perguntas, surgem respostas e outras perguntas na sua cabeça. Todo mundo sabe um pouco. Ajuntando esse pouco com o pouco que os outros sabem dá uma bolada grande... de sabedoria. Tente responder a essas questões e anote suas reflexões. Assim, no final da disciplina, 482 ANAIS - 2013 você poderá verificar se o que já sabe cresceu com a contribuição das aulas, das leituras e dos colegas (FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 7). Esse texto refere-se ao primeiro balão do Guia A. Ele aparece ao final da primeira página da seção “P c ç c ” Nota-se a preocupação dos autores/professores com o estudante ao iniciar o texto, pois iniciam o diálogo com uma pergunta que chama a atenção do estudante, o que provoca interação e o leva a refletir sobre os assuntos científicos questionados anteriormente. Posteriormente, os autores/professores sinalizam, no sentido de tranquilizar o estudante, que todos sabem um pouco, que com ele não é diferente, mas que para aprender mais é preciso refletir, anotar, ler e trocar conhecimentos com os colegas. Dessa forma, nesse texto, fica evidente que os autores/professores promovem a interação e agem como professores em sala de aula, explicando o assunto, tranquilizando o aluno e orientando o caminho para se ter sucesso na disciplina. O texto evidencia, também, a mediação do conteúdo, pois é construído de forma a fazer com que o leitor reflita sobre o que leu antes do balão, bem como o que lerá posteriormente. O balão faz a ponte entre o antes e auxilia o leitor a construir novas significações para o depois, ao ser orientado sobre o que já sabe, e o que vai aprender com as aulas, com as leituras e com os colegas. Evidencia-se também que o conhecimento a ser adquirido pelo estudante não está centrado na figura do professor, mas em um todo, que faz parte do meio do estudante e que compreende: as leituras, os colegas, as aulas. 483 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento c O texto seguinte é o do segundo balão do tópico “P ç c ” Quais são essas atividades que tanto o aluno de matemática quanto o aluno de psicologia é obrigado a realizar no Curso de Graduação? (FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 08). Percebe-se que há provocação de interação, quando os autores/professores questionam sobre quais atividades os estudantes de diferentes cursos são obrigados a fazer. Isso acontece porque o Guia A foi escrito para os vários cursos em que a disciplina Leitura e Produção de Textos faz parte da matriz curricular. Observa-se que, o lançar a pergunta, os autores/professores induzem os estudantes a refletir sobre as atividades a serem feitas E “c ” acontecido numa sala de aula, quando o professor justifica o motivo de o estudante cursar tal disciplina. Observa-se, que o assunto discutido é relacionado ao conteúdo anterior ao balão e que, adiante, no Guia, ele é retomado, utilizando o questionamento feito por meio do balão e que, nesse sentido, ele aparece propositalmente e não como mero recurso gráfico. O texto seguinte aparece no penúltimo balão da parte “P c ç c ” E o que é ser um bom produtor de texto? (FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 09). Para provocar interação, no sentido de fazer o estudante refletir sobre o assunto, os autores/professores utilizam uma pergunta retórica, estratégia própria da sala de aula, pois é usual 484 ANAIS - 2013 os professores fazerem perguntas retóricas. Elas servem para levar o estudante a refletir sobre o assunto. Quando os autores/professores utilizam-se disso, fazem uma ponte entre o conhecimento aprendido e levam o estudante a refletir e a construir novos conhecimentos, que serão explicados e detalhados posteriormente, a partir do que já sabe. O texto seguinte aparece no último balão “P c ç c ” Desejamos a você boas leituras e ótimas reflexões. E que o caminhante, aqui e ali, tenha companhias na viagem de eterno aprendente (FERNANDES e DANIEL, 2008, p.12). Nesse diálogo, os autores/professores desejam boas leituras, reflexões, ao mesmo tempo em que mostram que o estudante deve ter companhia no percurso, retomando ao c ú b ã “P c ç c ” Dessa forma, evidenciam-se remissões contínuas a conteúdos já vistos, no intuito de tornar a conversa mais clara para o estudante. Nesse sentido, as distâncias físicas tendem a ficar ainda menores. Observa-se, também, a preocupação dos autores/professores em mediar o conteúdo, bem como em relacioná-lo com todo o conteúdo do Guia Didático e também com outros conhecimentos adquiridos ao longo da vida. O próximo texto analisado encontra-se no primeiro b ã , u , u “Fu u c c u b x ” Não. Não precisa responder agora. Nem espere que a gente lhe dê a resposta. As 485 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento perguntas são para começar a pensar no assunto. A gente sempre sabe alguma coisa. Vamos retomar essas questões ao final da leitura dessa unidade e conversar sobre isso. Certo? (FERNANDES e DANIEL, 2008, p.17). Nesse diálogo, nota-se que os autores/professores preveem que o estudante talvez queira responder a questionamentos feitos no texto anterior ao balão, entretanto, eles dialogam, dizendo que a reposta não precisa ser dada naquele momento, mas que, ao longo da unidade, essas questões serão retomadas. Evidencia-se que foi estabelecido um simulacro de que já não há mais distâncias físicas entre o professor e o estudante, a sensação que se tem é que o leitor está conversando com o professor, parece que o professor está ao lado do estudante. Nesse diálogo, evidencia-se a proposta dos autores/professores com o material elaborado, nota-se que eles atuam como mediadores do conhecimento, pois, “N espere que a gente lhe dê a resposta. As perguntas são para c ç u ”, mostra que é o estudante quem deverá refletir sobre o conteúdo e que é ele quem vai construir os conhecimentos. Evidencia-se, também, a mediação entre o conteúdo que vem antes e o que vem depois do balão, tendo em vista a afirmação de que ao final da disciplina o conteúdo será retomado. O texto seguinte compreende o segundo balão da U 1 “Fu u c c u b x ” Um exemplo! (FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 18). 486 ANAIS - 2013 Nesse diálogo os autores/professores continuam a conversar com o estudante. Nessa fala simples e curta, típica da linguagem oral, evidencia-se a preocupação em fazer o estudante compreender o conteúdo, pois, depois do balão, há uma retextualização do conteúdo, o que facilita a compreensão. Esse exemplo aparece de forma a simplificar o que foi dito e fazer o estudante compreender o conteúdo e construir novos sentidos, por meio dele. O texto seguinte aparece no penúltimo balão da Unidade 1. Resumindo... (FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 27). Nota-se que os autores/professores orientam o estudante no sentido de que o assunto discutido anteriormente será retomado por meio de um resumo. Evidencia-se, novamente, a preocupação dos autores/professores com o que foi dito antes, com a retextualização do assunto para que fique mais claro ao aprendente. Esse resumo vai ao encontro de um processo de ensino-aprendizagem coerente, pois o estudante tem a oportunidade de rever e organizar o conteúdo, aliando o conhecimento teórico à prática pedagógica. O texto seguinte aparece no penúltimo balão da Unidade 1. Então, como resolver essa questão? Que concepção de língua, de sujeito, de texto e de leitura é mais adequada para compreender a atividade linguageira do homem em sociedade? (FERNANDES e DANIEL, 2008, p. 29). 487 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Na análise desse balão, é evidenciada a preocupação dos autores/professores com a questão da construção do conhecimento, pois, é a partir do conhecimento que o estudante tem do assunto, que se constrói o conhecimento que ele ainda não tem, é a partir do que se sabe que se aprende o que não se sabe. Com esses questionamentos o estudante tem a oportunidade de refletir sobre todo o conteúdo estudado na Unidade e, a partir disso, ele, por si só, poderá compreender algo mais complexo. Considerações finais Estabelecer um diálogo que permita a proximidade entre os sujeitos é fundamental na elaboração do material didático impresso para a EaD. O princípio da dialogicidade é enfocado nos referenciais de qualidade produzidos pelo MEC, que são destinados à elaboração de materiais impressos para cursos a distância, considerando-se que essa linguagem dialógica garanta interação entre os diferentes sujeitos envolvidos e, sobretudo a autonomia do estudante. Alguns elementos efetivam o processo interativo no interior do texto, portanto, este estudo teve como objetivo analisar e comparar dois deles: o uso da primeira pessoa do plural como elemento de proximidade entre os sujeitos e o uso do recurso gráfico balão com intuito de provocar diálogos e interações entre estudante e autores/professores. Dessa forma, apresentam-se a seguir, algumas das conclusões obtidas: O uso da primeira pessoal do plural como elemento de aproximação por meio da linguagem está presente nos dois guias didáticos analisados nesse estudo. Não obstante, observouqu f “ j ” ã c u de forma 488 ANAIS - 2013 similar em ambos os materiais. No Guia B, embora se tenha optado em vários momentos pelo uso da primeira pessoa do plural, observou-se que sua função ficou restrita a uma questão formal, ou seja, como elemento necessário à progressão textual do enunciado, sem que houvesse um aproveitamento, por parte dos autores/professores, de sua expansão de uso como estratégia de interação e proximidade. No Guia A, a preferência pela primeira pessoal do plural proporcionou o efeito de sentido de proximidade e, também, de inclusão do estudante na construção do conhecimento, motivando-o como sujeito da aprendizagem. É evidente a preocupação dos autores/professores com a abordagem dialógica na elaboração do Guia A, o que indica claramente que ensinar não significa transmitir, (re) passar conteúdos, significa muito mais, significa mediar o processo de aprendizagem tendo como referência o texto. Uma das estratégias didáticas para a elaboração do material didático impresso em EaD é a de escrever o texto para alguém e que esse alguém se sinta ao lado do(s) autor(es)/professor(es), pois isso permite que a atuação do estudante no processo seja concretizada, porque ele terá a oportunidade de reconstruir o caminho, questionar, refletir, ressignificar o que leu. A análise relativa à(aos) iconografia(balões) se restringiu ao Guia A, pois os autores do Guia B optaram por não utilizar dessa estratégia para interagir com o estudante. O Guia A, sugere que a preferência pelo uso do balão também produziu o efeito de sentido ao provocar diálogos/interação entre autores/professores e estudante. Em cinco, dos oito balões analisados, verifica-se que a utilização de perguntas foi uma estratégia recorrente para provocar essa interação, pois é por meio delas que os autores/professores chamam a atenção do 489 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento estudante, para que eles reflitam sobre o que leram e, a partir daí, construam sentidos. A preferência pelo uso do balão, ao fazer a mediação do conteúdo, também leva o estudante a construir novos conhecimentos. Nota-se que nos balões a figura assumida pelos professores/autores é a do professor enquanto mediador do conhecimento, pois os balões não dão respostas prontas, entretanto induzem à reflexão e à construção de conhecimentos a partir do que o estudante já sabia, do que ele leu e dos estímulos provocados pelos autores/professores. Dessa forma, conclui-se que os balões não aparecem apenas como um elemento a mais no projeto gráfico, mas sim com um propósito dialógico, que faz com que os autores/professores interajam com o estudante, diminuindo as distâncias físicas entre eles e construindo sentidos, facilitando, assim, o processo de ensino e aprendizagem. Este trabalho não tem intenção de findar as discussões sobre a dialogicidade nos materiais didáticos utilizados pela EaD, muito pelo contrário, este é apenas um estudo inicial e têm-se perspectivas de estudos futuros no sentido de contribuir para o desenvolvimento desses materiais didáticos com intuito de melhorar o processo de ensino e aprendizagem dos alunos dessa modalidade de estudo. Referências BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _____. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira, 9 ed. São Paulo: 1999. 490 ANAIS - 2013 BEZERRIL, Gianka S; PEREIRA, Rodrigo Acosta. Produção de texto I. Campo Grande: Ed. UFMS, 2011. BRASIL. MINISTERIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA. Referenciais de Qualidade para a Educação Superior a Distância. Brasília, 2007. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/legislacao/refead1.p df>, acesso em 14 de out de 2012. _____. Referenciais para elaboração de material didático para EaD no Ensino Profissional e Tecnológico. Brasília, 2007. Disponível em: http://www.etecbrasil.mec.gov.br/, acesso em 20 de nov. de 2012. CAZAROTO, Cláudia. A interação a distância: recursos textuais empregados em EAD. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais. Maringá, 2009, p. 1257-1266. FERNANDES, José Genésio. DANIEL, Maria Emília Borges. Leitura e Produção de Textos. Campo Grande: Ed. UFMS, 2008. KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 14ª edição, Pontes Editores, Campinas: 2011. ORLANDI, Eni P. Segmentar ou recortar. Série Estudos. Nº 10. Faculdades Integradas de Uberaba (linguística: Questões e Controvérsias). 1984. PRETI, Oreste. Material didático impresso na ead: experiências e lições apre(e)ndidas. In: III Encontro Nacional de Coordenadores UAB - I Encontro Internacional do Sistema 491 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Universidade Aberta do Brasil - Brasília, 23 a 25 de novembro de 2009. ___________. Material didático impresso: orientações técnicas e pedagógicas. Cuiabá: EDO UFMT, 2010. RAMOS, Paulo Eduardo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009. ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de São Paulo. Maringá: EDUEM, 2000. NEDER, Maria Lucia Cavalli. Planejando o texto didático Específico ou o Guia Didático para a EAD. In: POSSARI, Maria Helena Vendrúsculo. NEDER, Maria Lucia Cavalli. Material Didático para a EaD: Processo de Produção. Cuiabá: 2009. Disponível em: < http://www.uab.ufmt.br/uab/images/livros_download/material_d idatico_para_ead_processo_de_producao.pdf >, acesso em 10 de novembro de 2012. 492 ANAIS - 2013 Discurso sobre Vaidade Masculina no século XXI Soraia Aparecida Roques PEREIRA1 Marlon Leal RODRIGUES2 RESUMO: Trata-se neste trabalho da posição do sujeito homem e do discurso sobre a beleza masculina no século XXI. A relevância do estudo configura-se no fato de que os discursos sobre o corpo e beleza sempre estiveram no palco de discussões. É no e pelo discurso que o sujeito homem reveste-se dos sentidos estéticos próprios da sua época, ainda que rotulado conservador quanto à vaidade. Objetiva-se analisar alguns dos sentidos da vaidade masculina e como está se reconfigurando essa nova posição do sujeito homem na contemporaneidade. O referencial teórico adotado é a Análise do D cu h F c ( D), qu c c c “f çõ cu ” “f çõ g á ” c bu á à á enunciados. Com esse estudo espera-se identificar as mudanças do sujeito homem quanto à questão da vaidade e os cuidados dedicados ao. Apesar da sociedade reconfigurar os sentidos sobre a vaidade masculina, ainda é um discurso resistente. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Corpo; vaidade; Linguagem. Introdução O corpo surge na atualidade com profundas transformações do natural ao artificial, o corpo e suas reconfigurações evidenciam as formações estratégias discursivas 1 Soraia Aparecida Roques Pereira – Mestranda em Letras pela UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. 2 Orientação Prof. Dr. Marlon Leal Rodrigues – Docente do Curso de Mestrado da UEMS - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Campo Grande -MS. 493 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento que são formas instauradoras de condição para se tornar objeto de linguagem. O “ cu ” b c , b z masculina sempre esteve em evidência em vários contextos históricos como na Renascença, na cultura na Grega e Egípcia, nas Artes, nas obras de grandes pintores, são valores (re) construídos pelas sociedades, de maneira que o homem do início do século XXI, revestido dos sentidos estéticos próprios da sua época, ainda que rotulado conservador no aspecto vaidade configura-se ainda alguns do seus significados. N é c c á c , gu F uc u (1987, 117), “ soldado era um símbolo de um corpo educ c ”, corpo era visto como objeto e alvo do poder. Sendo assim pode f qu gu f “ ” (Pêch ux, 1997) sobre beleza corporal não é algo presente apenas na contemporaneidade. O corpo foi instrumento de culto em todos os momentos da história. Todavia os processos disciplinadores eram diferentes e, nesse momento, de acordo com Foucault (1987, p.117 ), é qu “ c u arte do corpo humano que busca aperfeiçoar as habilidades do físico e formar uma relação que o torne mais b ú ” -se todo um trabalho baseado no comportamento, nos gestos corporais que determinam até mesmo o nível social das pessoas. E çõ c , c “ ” u “ g ” (O , 2002) cu f , são as bases concretas e reais da ideologia. Dessa forma, em cada período da história da humanidade agem de modo e forma diferente, porque tudo é construído historicamente e ideologicamente reproduzido, nas e pelas práticas sociais. A intenção aqui é identificar de que modo e forma o uj h c â , “ c ” (O ndi, 2002), histórico e ideológico, lida com o próprio corpo. Se em suas 494 ANAIS - 2013 manifestações discursivas evidencia preocupações com o corpo e quais os sentidos dos cuidados a ele dedicados. Posto que os enunciados e seus sentidos sejam u , ã , “práticas cu ” (Pêcheux) e intervenções de cujo efeito de sentidos que os constitui e sugestionam uma possível interferência na “f çã óg c ” (O , 2002) sujeitos e nos seus comportamentos. Pode-se em alguma medida considerar como importante qu ã “ á c ” Discurso (Rodrigues, 2011) sobre os possíveis sentidos da vaidade masculina. O interesse por essa temática prende-se ao fato de ser a discursividade que está em evidência nos meios de comunicação de massa, como internet, revistas, televisão, e de a beleza ser discutida em vários momentos da história. O sentido da beleza do corpo é a çã “f çõ scu ” “f çõ g á ” (O , 2002) qu ê x e inquietações no contexto atual, e essa representação do corpo belo pode se perceber nas práticas e valores sociais. Essas características do comportamento marcam as posições ocupadas pelo público masculino na sociedade e desvelam certas evidências sobre a forma como a sociedade percebe esses sujeitos e seus movimentos discursivos. Como a materialidade discursiva presente nos enunciados das respostas dos participantes revela as formas de percepção da estética pelo sujeito masculino na sociedade contemporânea, a partir da análise dessas respostas discursivas pretendemos evidenciar, por meio de algumas regularidades discursivas, como o sujeito masculino se constrói pela e na Linguagem e como produz efeito os valores da sociedade contemporânea. Objetivo do presente trabalho é analisar a vaidade masculina e, por conseguinte, com vista a identificar nesses 495 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento enunciados o sentido desse ho “ ” çã à beleza, vaidade e culto ao corpo. Justifica-se a realização deste trabalho por tratar do discurso sobre o homem na contemporaneidade, uma vez que o sentido da imagem masculina está sendo reconstruída em cada momento da história, para se verificar a materialidade da linguagem, que é construída de valores e ideologia, presente no discurso dos entrevistados, ao responderem o questionário. Para o desenvolvimento da pesquisa se elaborou questionário com (16) questões que versam sobre a vaidade masculina. As questões são do tipo que exigem resposta dissertativa. Inicialmente pensamos no corpus composto por maior número de questionários distribuídos em mãos e via email. Contudo, em razão de apenas cinco (5) participantes os terem devolvido, redimensionamos o objeto de pesquisa para os cinco questionários respondidos e recebidos. No presente estudo optamos pelo uso do questionário, por julgarmos ser o instrumento que permitiria colher respostas (enunciados) à pergunta formulada: Quem é este novo homem vaidoso? Dessa forma adotamos o questionário composto de dezesseis questões abertas, em que se utilizou uma linguagem objetiva e de fácil entendimento, direcionadas a homens de diversas faixas etárias. No questionário não serão explicitados os nomes dos participantes ou qualquer peculiaridade que os identifique, pois serão analisados apenas os enunciados. É interessante observar a pesquisa de campo com questionário, porque nos oferece uma quantidade maior de dados em pouco tempo, apesar de que muitos não irão responder. Outro fator relevante é que as respostas em alguma medida não será influenciada pela entrevistadora. 496 ANAIS - 2013 A maioria dos entrevistados alegou a falta de tempo, outros não se sentiram preparados para responder sobre o tema e alguns disseram que não ser a pessoa mais indicada para responder. Logo, julgamos os cinco (5) questionários serem suficientes para compor o corpus. 1. Brevidade histórica da beleza masculina no decorrer da história Reportamo-nos a vários períodos da história para podermos entender um pouco sobre o corpo e a vaidade masculina na contemporaneidade. Vamos começar pelo berço da civilização, de acordo com a história desse povo, o corpo e a vaidade masculina eram algo preponderante na sociedade grega, os homens dessa civilização eram muitos vaidosos e viris, apenas eles (sexo masculino) possuíam uma identidade de cidadãos (VICENTINO, 1997). A prática de esporte era quase que uma obrigação, pois fazia parte da educação. O resultado eram corpos perfeitos. Cultuava-se um corpo escultural e forte por que neste período havia muitas guerras, além dos jogos olímpicos. A perfeição do corpo está ligada à pureza da alma, pois os povos desse período eram muito míticos e cultuavam deuses. A preferência pelo esporte associava-se à boa saúde física, à opulência de força e agilidade. Outro ponto que deixa em evidência a beleza masculina desse período são as obras de artes como as esculturas, pinturas, uma vez que através dessas obras observa-se uma junção do equilíbrio e da harmonia, que se fundem representando assim uma beleza ideal, harmônica entre corpo e espírito. (VICENTINO, 1997. Reportamo-nos à Mitologia Grega, em que Narciso de tão perfeita beleza se apaixonou por si mesmo e acabou se consumindo tornando-se uma flor. Temos também a estátua de 497 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Apolo do século IV, 350 a.c, da qual Petrus Camper, artista do séc XVII, fez uso para mostrar sua tão perfeita formosura, considerada a mais perfeita até o século XV. E ainda temos Adônis, eleito como o modelo perfeito de beleza masculino. Já no Egito o ideal de beleza masculina tinha que ter quadris estreitos, ser magro, possuir cintura fina e ombros largos. O homem egípcio usava vários acessórios como anéis, pulseiras e pingentes. As roupas usadas por eles era uma saia denominada chanti e sandália só era usada em ocasiões especiais. Faziam uso da pele de animais. (VICENTINO e DORIGO, 2002; LAVER, 2003). Nessa cultura era comum o homem raspar a cabeça. O culto ao corpo e à beleza e ainda o uso de objetos só era permitido para as classes superiores como os faraós. O homem dessa época fazia uso de cremes, maquiagem, depilação e banhos aromáticos, faziam dietas para terem um abdômen perfeito. Poderíamos dizer que o homem desse período corresponderia ao metrossexual dos dias atuais. Já no período da idade média a beleza estava associada ao poder e ao status, pois a sociedade era separada por classes como vassalo, cavaleiro e o nobre. Para pertencer à nobreza era necessário possuir um título. A vaidade masculina estava associada à honra, ao heroísmo e principalmente à religião, que determinava de que forma o homem deveria se portar perante a sociedade, pois o Cristianismo difundiu uma nova concepção da beleza, tendo como fundamento a identificação de Deus com a beleza, o bem e a verdade, nesse período a fé cristã e a lealdade era de fundamental importância. Quanto à beleza em relação à aparência do homem, ainda não se tinha um modelo pré-determinado de corpo ideal, mas sim seus títulos que ocupava um lugar na sociedade em relação a sua aparência, quanto as suas vestimentas que deveria 498 ANAIS - 2013 ser glamourosas feitas de tecidos nobres como linho, a sarja, o veludo e o brilho do ouro e da prata e pedrarias presentes nos tecidos. Devemos lembrar que a sociedade era separada por classes e só quem pertencia à nobreza tinha condições de usar tais vestimentas. Mas a partir do momento que o homem passa a ser o centro do universo, em que ele volta-se para si, há uma ruptura, segundo Mota (2002), então o homem volta-se para as ciências, a arte e os problemas sociais, o corpo e o culto ao belo começa a ter valor, mas o que vai chamar a atenção nesse período da Renascença é a beleza feminina, sendo representada nas pinturas, na literatura. Mona Lisa é a mais notável e conhecida obra do pintor italiano Leonardo da Vinci, a beleza retratada nesta época é mulher gordinha, rosto alvo como uma pluma, olhos claros, meiga, delicada, pois ser gorda era sinônimo de saúde, riqueza enquanto que a magreza era associada pobreza. A partir do século XVIII e XIX o homem começa a ter comportamento não padronizados para a época, ficam mais evidentes as práticas homossexuais na sociedade, esse comportamento traz mudanças quanto à separação de classes, surgindo novos grupos sociais. Brandini (2003) afirma que os homens desse período usavam maquiagem, acessórios, saltos e até perucas. Um homem que pode ser citado como representante dessa época é Luiz XIV, pois era extremamente extravagante. Engel (ENGELS, apud CARDOSO e VAIFAS, 1997, P.297), afirma que , após as transformações dos costumes, iniciada no século XIX, pôde-se observar a sexualidade a partir de duas possibilidades: a primeira trata da história dos discursos sobre sexo, tendo em Foucault seu mais importante representante uma vez que questiona o caráter repressivo dos discursos, e a segunda volta-se para o cotidiano da sexualidade e 499 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento privilegia o estudo comportamental a partir dos diferentes usos do corpo. Foucault (apud CARDOSO e VAIFAS, 1997, P.301) afirma que o século XVII teria representado o início de um tempo de repressão das sociedades burguesas. Mas nas sociedades contemporâneas segundo Engel, (idem, p.301) , a repressão da sexualidade assume outra dimensão, pois não é mais elemento essencial para as sociedades se pensar a questão da sexualidade contemporânea. Conforme Engel (idem, p.304) a produção historiográfica, que aborda o “sexua ”, tem recebido grandes contribuições, por exemplo, dos u “Nova H ó ”, que traz o diferencial na incorporação de novos objetos, como: a sexualidade, o corpo, as relações afetivas e amorosas. Esses estudos produzidos buscam compreender os comportamentos sexuais tão polêmicos e ainda ocultos. No Brasil, a partir da década de 60, o interesse pelos temas relacionados ao sexo cresceu muito, como diz Engel ( , 309): “É importante assinalar que tal produção tem se caracterizado por uma busca constante no sentido de empreender abordagens originais e, portanto, mais adequadas às especificidades da sociedade b ” No entanto Engel considera importante, temas como: a sexualidade, o amor, o corpo, que se incorporaram à história, revelando mais a vida cotidiana, repleta de divergências e conflitos, um palco ideal para se aprofundar o conhecimento da sociedade. Já quanto à questão identitária em relação ao homem contemporâneo, percebe-se uma reconfiguração, pois com os avanços tecnológicos, globalização e intervenção dos meios de comunicação de massa, esse novo sujeito que antes era possuidor de uma identidade única e estável, agora se encontra 500 ANAIS - 2013 na atual contemporaneidade Fragmentado, pois já não possui uma única identidade, em razão das mudanças sociais, econômicas, culturais e comportamentais, devido as transformações que a atual sociedade vem sofrendo. Logo quem retrata bem estas questões é Stuart Hall, que vai dizer: A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que o sistema de significação e representação cultural se multiplica, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao menos temporariamente. (HALL, 2005, p.13) O que se verifica é que o sujeito masculino encontra-se sem um lugar definido, e essa situação causa certa inquietação quanto a sua identidade, já que esse sujeito é interpelado e atravessado pelos discursos ideológicos e historicamente construídos nos meios sociais e culturais. 2. A linguagem em questão: Análise do Discurso A análise do discurso, segundo Orlandi (2001, p.15), foi produzida a partir do momento em que os estudiosos passaram a se interessar pela linguagem de um modo diferente daquele da linguística ou da gramática normativa. Por conseguinte, o objeto de estudo da análise do discurso é o próprio discurso, que se caracteriza como a palavra em movimento, ou seja, é o estudo do discurso do homem quando este está falando. Tenta-se entender a língua como uma composição sociável do homem e de sua histó , “como uma mediação 501 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento entre o homem e a realidade natural e social” (ORL NDI, 2001). O discurso é o que torna possível ao homem formar uma nova realidade, pois trabalha com a língua no “ u ”, levando em consideração a produção de sentidos enquanto parte da vida de cada ser humano; logo, para se analisar o discurso de determinado indivíduo na sociedade é preciso entender a linguagem e seu interior e o que esta fora dela. Sobre isso, Orlandi (2001, p 16) afirma que: “D maneira, os estudos discursivos visam passar o sentido dimensionado no tempo e no espaço das práticas do homem, descentrando a noção de sujeito e relativizando a autonomia do sujeito do bj guí c ” (ORLANDI, 2001, p.16) Como a prática da análise do discurso trabalha com a realidade da linguagem, critica a prática das ciências sociais e da linguística, porque tratam a linguagem como materializada na ideologia, além do que, também estuda a maneira como a ideologia se manifesta na língua. Consoante Orlandi (2001, p.17), a çã “ í gu discursog ” complementa com a tese de Pêcheux de qu “não há discurso sem uj ”, nem sujeito sem ideologia Deste modo, o sujeito é interpretado a partir da ideologia e assim a língua passa a fazer sentido e, por sua vez, o discurso é onde se processa a relação entre língua e ideologia, entendendo qu “ língua produz sentidos por / para os uj ” Diferente da análise do conteúdo, que busca entender o que o texto quer dizer, de acordo com Orlandi (idem), a análise do discurso não trata a linguagem como algo transparente, ou 502 ANAIS - 2013 seja, ela não procura encontrar um sentido oculto para o texto, mas entender o que o texto significa. A análise do discurso perpassa diferentes campos do saber, como as teorias da linguística, do Marxismo e da Psicanálise. A linguística contribuiu para a análise do discurso, de acordo com a autora, pelo fato de afirmar que a linguagem não era transparente, tendo a língua como seu objeto próprio: “E f çã é fundamental para a análise do discurso, que procura mostrar que a relação linguagem / pensamento / mundo não é unívoco, não é uma relação direta que se faz termo - a - termo, isto é, não se passa diretamente de um a outro. (ORLANDI, 2001, p-19)” Nos estudos linguísticos, segundo Orlandi (2001, p.19) forma e conteúdo não se separavam, pois a língua era entendida como uma estrutura com significante a partir do sujeito da história: dessa forma, é importante estudar a divisão feita a respeito da Análise do discurso: “I- estuda a língua em sua ordem própria e relativamente autônoma; II- o quanto o simbólico afeta o real, em nível histórico. III- o sujeito discursivo funciona através do inconsciente g ” (ORLANDI, 2001, p.19). Assim, ainda que receba influência da Psicanálise, da Linguística e do Marxismo, a Análise do Discurso se afasta dessas ciências ao questionar o fato de a linguística deixar a historicidade de lado, de o materialismo não se deter no simbólico, e também se distingue da Psicanálise porque esta trabalha a ideologia relacionada ao inconsciente e à linguagem. 503 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Para Pêch ux (1997), “Discurso é o efeito de sentido entre cu ”, portanto é importante não confundir discurso e fala, já que este é regular e tem seu funcionamento apreendido se não se opuser o social ao histórico; sistema à realização, o subjetivo ao objetivo. A análise do discurso faz um recorte diferente de língua e discurso, pois nem o discurso é visto com liberdade, nem a língua como algo fechado sem erros. Assim a língua é entendida como condição para que o discurso ocorra e, conforme a autora (idem, p.25), constitui-se entre a Filosofia e as Ciências Sociais, reunindo em seu campo de estudo três diferentes teorias: a teoria da sintaxe e enunciação, da ideologia e a teoria do discurso, determinada pelos processos de significação histórica. Em outras palavras, a análise do Discurso (ORLANDI, 2001) estuda a interpretação, para compreender o modo que determinados símbolos produzem sentidos num determinado contexto. A interpretação, segundo a autora, procura no texto outras significações, para que seja possível a compreensão das outras vozes do texto. Dessa forma, resume a Análise do discurso como uma teoria que: Visa à compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos. Essa compreensão, por sua vez, implica em explicitar como o texto organiza os gestos de interpretação que relacionam sujeitos e sentido. (ORLANDI, 2001, p.2627). Os sentidos, como afirma a autora ,idem, p.30), não se encontram apenas nas “palavras dos textos, mas em sua relação com o exterior e nas condições em que eles são produzi ” (Efeito da posição do sujeito, momento histórico...). E as 504 ANAIS - 2013 condições de produção do discurso envolvem tanto o sujeito quanto a situação e a memória. As condições de produção podem ser entendidas de forma restrita, limitando-se ao contexto imediato ou de forma ampla, incluindo o contexto social, histórico e ideológico. Já a memória, segundo Orlandi (idem, p.31), é tratada como interdiscurso, ou seja, o que fala antes, em outro lugar, o que já foi pré-construído anteriormente. Para se compreender o discurso, a autora (2001, p.32) diz que é preciso levar em consideração a existência de u “já”, qual sustenta a possibilidade de todo discurso. Então há uma relação entre o já–dito (constituição do discurso) e o que se diz (formulação do discurso), ou seja, entre o interdiscurso e o intradiscurso. O interdiscurso é um conjunto de formulações feitas e esquecidas que determinam o que dizemos. De acordo com a autora, para pensarmos discursivamente a linguagem, é necessário entender o conceito de Paráfrase e Polissemia: A paráfrase representa assim o retorno ao mesmo espaço do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado [...] ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. (ORLANDI, 2001, p.36). Ao analisar a relação entre paráfrase e polissemia, compreende-se que o político e o linguístico se inter-relacionam na constituição dos sujeitos e na produção dos sentidos. Conforme Orlandi (idem, p.39), as condições de produção do discurso dependem de certos fatores, quais sejam: a relação de sentidos, afirmando que os discursos se relacionam 505 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento entre si, pois são vistos como estado de um processo discursivo mais amplo e contínuo; o mecanismo de antecipação ocorre quando o sujeito se coloca no lugar de um ouvinte, antecipando a seu interlocutor quanto ao sentido de suas palavras; a relação de forças, ou seja, o lugar onde fala o sujeito é parte do que ele diz, essa relação está baseada no poder que determinados lugares concebem a pessoa que o ocupa; por fim, o último fator relaciona-se a formações imaginárias, como diz a autora fazem parte da linguagem, na medida em que se firmam no modo como as relações sociais ocorrem na história e são governadas pelas relações de poder em nossa sociedade. P O ( , 43), “f çã cu ”é base para a análise de cu , “pois permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua relação com a g ” É formação discursiva que determina o que pode e deve ser dito em determinada comunidade, relacionada estritamente às formações ideológicas. Por isso os sentidos sempre são determinados ideologicamente. Um dos grandes pontos de debates da análise do discurso, para a autora, é a noção de ideologia: O fato mesmo da interpretação, ou melhor, o fato de que não há sentido sem interpretação, atesta a presença da ideologia. Não há sentido sem interpretação e, além disso, diante de qualquer objeto simbólico o homem é levado a interpretar, colocando-se diante da questão: o que isto quer dizer? (ORLANDI, 2001, p-45). A ideologia, segundo Orlandi (idem, p.46), interpreta e nega essa interpretação e é esse mecanismo ideológico que transforma as formas materiais em outras, de onde se infere que 506 ANAIS - 2013 o trabalho da ideologia é produzir evidências. É também condição para a constituição do sujeito e dos sentidos, sendo que a evidência do sentido apaga seu caráter material, ou seja, faz ver como transparente, o que se forma através da remissão, a um conjunto de promoções discursivas que funcionam com uma dominante. Já a evidência do sujeito apaga o fato de o indivíduo ser interpelado pela ideologia, essas evidências que fazem o sujeito entender a realidade como um sistema de significações experimentadas. Dessa forma, a ideologia é uma função necessária da relação entre a linguagem e o universo, produzindo interpretação, garantida pela memória sob dois aspectos: a memória institucionalizada envolve o trabalho social da interpretação e a memória constitutiva, o trabalho histórico da constituição do sentido. De acordo c O (2001, 48), “não há realidade g ”, já que é esta que faz com que haja sujeitos que só têm acesso a parte do que diz, pois para se constituir e produzir sentidos é afetado pela língua e pela história. Ao analisar a relação forma-sujeito atual, depreende-se de Orlandi (idem, p.50), que o sujeito é livre e submisso ao mesmo tempo, ou seja, pode dizer tudo desde que se submeta à língua. Para se entender essa ambiguidade, é preciso levar em consideração a historicidade do sujeito que, ao mesmo tempo em que determina o que diz, é determinado também pela exterioridade das suas relações de sentido. Após oferecer alguns dos aspectos metodológicos na constituição do corpus e no recorte de enunciados constituídos por alguns discursos, neste tópico efetuaremos a análise dos dados como segue: 507 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 3.Análise dos dados (01) (02) (16) (17) (32) (33) (47) (48) 1.1- “D cu “ b cu ” “O h é c u çõ se cuida pensando em si. A mulher é vaidosa em todas situações e se cuida pensando no que as outras vão achar. ( q 01, p 01. ) “ h h j cu u u , qu ã é por vaidade, e sim porque ele tem mais tempo para cuidar de si e talvez por uma exigência da sociedade em que vivemos. (q.01, p.02) “ uh ã qu g c u ; é qu c ” (q 02, 1) “D h M já é í u cu çã , por parte dos homens, relacionada à vaidade. (q.02, p.02) “P ã c z xg ” “Qu z bé qu gu u ” “O h buscam na uh b z , é c , ê c ” “ uh bu c u uc cu , , gâ c ” (q 03, p.01) “T h u c ” “f cu c “b ” “D g -se de passagem, que f c f ”, “ poucos foi sendo inserido em nossa sociedade que homens ã ã ”, u qu cu é“ ô do não cuidado pessoal – x ” (q 03, 02) “ cu é bá c ”, “ f é x g ”, (q 04, 01) “ ê c é çã ”, qu todo s hu c c “ u ” (q 04, 02) Nos enunciados (01), (02) e (47), o discurso faz referência de sentido à mulher para significar a vaidade 508 ANAIS - 2013 masculina, pois ao contrário do discurso sobre a vaidade da mulher, o discurso do homem se apresenta com sentido de unidade. Em certos momentos que lhe convêm, ele se cuida para g fc “b ” c g , sentido atribuído pelos outros, bem ilustra isso os enunciados Toma-se o seguinte enunciado, ora citado, anteriormente:“O h é c u çõ e somente se cuida pensando em si. A mulher é vaidosa em todas as situações e se cuida pensando no que as outras vão ch ” N -se que no enunciado ocorre uma reestruturação do primeiro período, que pode ser considerada como uma paráfrase c á , “ c u çõ ” c sponde ao “ u çõ ” A paráfrase, para AD é discutida por Orlandi ( 2001, 36) c “o retorno ao mesmo espaço do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado [...] ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação ” Logo a posição do sujeito homem representa que o sentido vaidade não está associado aos valores sociais, (47) “ vaidade masculina ela é mais básica”, porém podemos perceber que esse comportamento se classifica como ingênuo ou como u “ á c ”, qu ã u qu assujeitado aos padrões de sentidos ditados pela sociedade atual, u , ã u qu u “ c h ” ã pela relação que tem com o outro. Nesse sentido o enunciado nos permite observar que o discurso tem uma posição ideológica de que a vaidade cabe à mulher em qualquer situação, ao contrário do homem, só em algumas situações. Observa-se também uma ênfase na oposição de sentidos entre sujeito masculino e sujeito feminino, pois, tomando como referência de sentido o sujeito feminino _ora “rotulado vaidoso em todas as situações”, sujeito masculino utiliza-se de um discurso já enunciado por outros, que “ u h 509 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento é vaidosa em todas as situaçõe ”. Para formular o seu dizer produzindo novo sentido, ou seja, o masculino se opõe ao f f qüê c já qu é “ c u çõ ” Verifica-se qu u éb “ ” antecedendo os itens lexicais “c u çõ ” força a ideia de que o homem não se cuida constantemente, pois o pronome f “c ” qu gu , u j , gu momento é vaidoso. Enquanto que no “ x c “ todas as u çõ ”, “ ”, culino, que também pode g c éb “ ” c totalmente, inteiramente, de forma que o sujeito feminino é constantemente vaidoso. Os discursos contemporâneos ditados pelos meios de comunicação como Internet, jornais, revistas e televisão são carregados de significação, onde os sujeitos homens e mulheres são assujeitados e há uma certa inquietude e cuidados com a imagem e com a estética corporal, essas mudanças de comportamento são observadas no consumo de determinados produtos que surgem no c N u c (16) “ uh ã qu g ”, -se do sujeito masculino se posicionando, pois o ato de consumir torna-se referência representativa na construção de identidade desse novo homem. Pois apesar de ele gastar menos não nega a sua posição de ser vaidoso. Mas reforça o contraste entre sujeito masculino e feminino ressaltando que as mulheres são mais vaidosas. A “ é qu c ”, demanda uma certa dúvida ao afirmar que as mulheres gastam mais, ou pode ser uma estratégia do sujeito para tornar o seu discurso como impessoal, o que faz com que seu discurso pareça verdadeiro. N u c (32) (48), “ uh , c costume, são muito mais exigentes e se cobram muito mais que 510 ANAIS - 2013 h ”, surge a vaidade como comum ao sujeito mulher, entretanto, por meio de um vocabulário carregado de significação religiosa e conser “ h bé ê u c cu ã c z xg ” atribui-se ao sujeito homem o Discurso de responsabilidade na adoção das representações dos valores estéticos pelo sujeito mulher. A oposição entre feminino e masculino é feita por meio dos adjetivos usados para nomear os aspectos que são buscados no outro pelo sujeito homem (beleza, estética, aparência) e pelo sujeito mulher (um pouco mais de cuidado, asseio, elegância e estilo). A seleção do léxico usada neste discurso para qualificar os sujeitos permite entrever algumas formações discursivas apropriadas pelo sujeito homem para significar a vaidade feminina e a masculina. Dessa forma, o sujeito mulher é associado ao vocabulário que remete a sentidos de perfeição de formas, ilusão, disfarce. Já o Sujeito homem é referenciado como pensado, apurado no trajar, responsável e com estilo. Se fizermos a oposição lexical entre adjetivos que representam os gêneros evidencia-se que o sujeito masculino reporta-se a mulher de modo conservador, reiterando os valores culturais e religiosos de que a vaidade do sexo feminino relaciona-se com a ausência do real, aspecto do iludir e disfarçar, levando a uma representação de que forma e conteúdo não estão presentes simultaneamente nas características femininas. No enunciado (33) percebe- u c çã “ f c f ”, ois sabe-se que em vários momentos da história o sujeito homem se mostrou vaidoso 3, e não só nos nossos dias. O comportamento masculino aparece no discurso como resultado da necessidade 3 Veja em: Brevidade histórica da beleza masculina no decorrer da história nas referências 511 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento de adequação ao que é exigido do sujeito homem na c , “ u x cu f tendo que se adequar com palavras do tipo: homem não chora; é c “boiola”, uma vez que se reprime o comportamento estético distinto do que se tem como aceitável x cu , g c c ,“ cu uu éc c c ” No enunciado, percebe-se um discurso conflituoso, pois o sujeito se posiciona como um assujeitado às significações e representatividade dos valores estéticos utilizados pelo sujeito feminino e reconhece a influência da mulher, na mudança de representação dos valores estéticos, desse novo homem, Ainda que não anunciado de forma objetiva, nota-se presente a crença de que a vaidade é um valor atribuído ao sexo feminino e, por isso, os homens que a adotam poderiam ficar confusos entre identidade masculina e identidade feminina. Dentro dessa produção, profundamente diversificada e até mesmo divergente sob vários aspectos de ordem teórico – metodológica, a sexualidade afirma-se, cada vez mais, como um objeto fundamental na busca da compreensão dos possíveis significados das relações humanas, consideradas nos seus mais variados e complexos sentidos. (ENGEL, Apud CARDOSO; VAIFAS, 1997, p. 297) Porque mesmo trabalhando fora, as mulheres não deixaram de exercer as funções básicas de mãe e de donas de casa, para as quais tinham sido socializadas e educadas. Logo a beleza desse sujeito mulher era observada a partir do seu comportamento na sociedade que na época era conservadora. 512 ANAIS - 2013 Já no final do século XX, os movimentos feministas trouxeram a representação da Mulher moderna; mas quando retomamos a história percebemos que este sujeito feminino, já fazia parte da sociedade Grega Romana, na Grécia, na Idade Média, contudo não possuía uma identidade própria, por que ficava restrita aos seus afazeres, a espera do momento ideal para entrar no campo de batalha. A mulher moderna surge no mercado de trabalho, após a segunda guerra mundial e da necessidade, pois muitas mulheres perderam seus maridos durante a guerra, logo o sujeito mulher necessita trabalhar e passa a ser de certa forma a provedora do seu lar. E foi assim que a mulher moderna conseguiu seu espaço, porém este sujeito feminino,ainda hoje recebe um salário inferior ao do homem. Contudo também existem mulheres que continuam vivendo como no passado, pois vivem apenas para a casa, marido e filhos. Não expõem seu corpo e às vezes até seu rosto, um exemplo disso são os sujeitos mulheres no Afeganistão, além desses sujeitos existem outras que continuam sendo totalmente dependentes de seus maridos. Então é interessante observamos que nesta sociedade atual ainda temos a apresentação do sujeito mulher com traços conservadores. Quanto ao aspecto físico dos relacionamentos, pode-se dizer que os sujeitos masculinos . estão mais carinhosos e companheiros, mais participativos, porém mais exigentes também. Hoje em pleno o século XXI o discurso da mulher é“ u ” “ u c ig ”, “ u qu ” f z várias classes sociais. Este sujeito mulher moderna é organizada, eficiente, trabalha muito, é vaidosa, tem tempo para zelar da casa, dos filhos e marido. Há a uma formação discursiva em que esse sujeito mulher moderna se mostra determinada. Logo qu z“ u ”, b “ ” ó, já é palavra carregada de significação. Nesse sentido o sujeito 513 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento feminino reforça essa ideia de transformação do comportamento do sujeito homem. Podemos verificar que o sujeito feminino procura exercer o seu poder sobre o sujeito masculino, na qual há uma intenção de moldar o comportamento do sujeito homem. A questão é que nem todos os sujeitos homens aceitam que esse sujeito dominador feminino exerça poder sobre o seu comportamento. Logo esse sujeito também pode se rebelar, o fato é que muitos acabam se separando da família em decorrência da atitude dessa nova mulher. Podemos entender também que esta é uma atitude do homem machista, que para tentar mostrar que é ele, e não a mulher que impõe regras ou comanda a situação. Este é um meio, uma tentativa de manter o poder sobre a mulher. São tantos os discurso sobre a história do sujeito masculino e feminino, que nos faz observar que está ocorrendo uma re-configuração desses novos sujeitos, principalmente quanto ao comportamento do sujeito mulher, pois n u c cu â c é qu “ ” rmina como ela quer ser tratada e vista por esse sujeito homem. O discurso mudou, há uma inversão de valores, quanto à representação e posição que o sujeito masculino ocupa na vida de algumas mulheres. Logo é sabido que o sujeito feminino conquistou seu espaço e tem marcado sua posição de sujeito independente e dona da sua própria vida. O discurso hoje das mulheres tidas como modernas quando se trata da questão da vaidade masculina, elas estão muito mais exigentes com seus esposos, namorados. A mulher moderna também quer um homem moderno, não só moderno fisicamente, mas intelectualmente também. Que seja companheiro que trate o sujeito feminino com total carinho e respeito; que ajude a preparar as refeições, que ajude na limpeza da casa e mais que seja um bom amante. Já que, antes algumas mulheres eram 514 ANAIS - 2013 reprimidas em relação ao sexo, não podiam expor a suas vontades e desejo. Diante deste discurso feminista, o sujeito mulher passa a g : “Eu b s , u ã c u ” “Eu u c , u ” “E embora, ele não me f á f ” “P u c u b h cu u f h ” E scursos causam no sujeito homem sem uma grande confusão mental, já que esse sujeito masculino sempre foi tido historicamente como o provedor da mulher e dos filhos, então essas mudanças comportamentais acabam criando uma deformação nas identidades desses sujeitos, por que esses sujeitos homens se sentem vulneráveis e acreditam que não tem espaço ou utilidade na vida desse sujeito feminina, tão poderosa que se basta por si só, então acabam se sentido abandonado e fragilizado, pois perderam o seu lugar de provedor. Devido a u ç c “ ” mulher autossuficiente, o comportamento desse sujeito homem “ ” c â , bé u u, eles estão mais cuidadosos com o corpo, investem mais em produtos de beleza, praticam mais atividade física e até frequentam salões de beleza especifico para homens. 4.Considerações finais Nesta interpretação das representações do novo sujeito masculino e feminina, nos diferentes discursos enunciativos sobre sua vaidade, observou-se que os enunciados nos mostram os novos valores significados pelo sujeito homem do início do século XXI, que busca se posicionar no seu contexto social em relação à vaidade, pois se reportarmos aos enunciados veremos que as representações do gênero masculino estão associada à 515 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento virilidade, enquanto que o gênero feminino está associado à sedução e beleza de formas. Assim como na sociedade egípcia, verifica-se nos questionários recebidos que a posição social dita regras quanto à vaidade masculina, desse modo percebe-se que com a revolução feminina e a nova posição da mulher moderna na sociedade, abandonando velhos comportamentos sociais e culturais, tal c “ x f ág ” O fato é que o homem passou a se sentir inseguro, pois perdeu o comando de chefe de família, até por que o sujeito mulher não implica necessariamente que precisa de um homem para sustentá-la, mas sim para amá-la. Pode-se verificar no decorrer da análise que, apesar de estarmos no século XXI, o sujeito homem relaciona a vaidade do sexo masculino à homossexualidade, talvez por que os acontecimentos produzidos pela história resultam na visão de que, segundo um imaginário que afeta os sujeitos em suas posições sobre gêneros, a vaidade é vista como valor positivo apenas para o sexo feminino. Nas palavras de Rodrigues: (...) nenhum individuo tem sua existência por si só, ele se constitui social e historicamente, o que equivale dizer que é no seio, e só nele, de grupos quer étnicos ou sociais que o individuo nasce e se forma. As características físic , cu u , “ ” etc. são marcas, referencias, traços desenvolvidos, adquiridos, transformados e adaptados ao longo da existência social e das trocas que os grupos e/ou indivíduos são submetidos ao longo de sua trajetória de vida. (RODRIGUES, 2011, P.21). 516 ANAIS - 2013 No discurso desses enunciados observa-se que ainda há resistência em relação ao discurso beleza masculina e que alguns conceitos machistas continuam, porém devido ao discurso e as exigência do público feminino, o homem tem procurado inovar, pelo menos é o que representa nos enunciados analisados. No entanto, vimos, que o sujeito mulher moderna vive uma situação dramática, pois apesar ser reconhecida por sua capacidade intelectual, sofre por não ter a presença de alguém que lhe carinho e amor o suficiente da forma que gostaria. De acordo com as regras estabelecidas e os modelos prédeterminados pela sociedade, o sujeito feminino terá “ uc ”, em todos os aspectos, incluindo sua aparência física, porém ele será mais sozinho. Portanto, por mais que o sujeito feminino tenha conquistado, ao longo dos séculos, muitas vitórias, sucesso profissional, estético, ele adquiriu a sua liberdade, espaço e reconhecimento como sujeito pensante, inteligente. Esse sujeito mesmo com todas as conquistas em pleno século XXI, ainda se encontra oprimido, agora por questões emocionais e psicológicas. Referências BRANDINI, V. Moda, comunicação e modernidade no século XIX. A fabricação sociocultural da imagem pública pela moda na era da industrialização. 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A partir do movimento arqueológico, o estudo tem por objetivo investigar a relação entre a educação, a educação profissional e a realidade que jovens e adultos com deficiência enfrentam na inserção no mundo do trabalho. Metodologicamente, por meio dos pressupostos teóricometodológicos de Michel Foucault, propõe-se realizar uma leitura acerca dos discursos proferidos, explicitados e silenciados em uma análise do campo epistemológico foucaultiano em relação à produção discursiva sobre a profissionalização de jovens/adultos, desvelando, assim, as estratégias e as táticas que formam as unidades discursivas da atividade profissional no que tange à importância da escolarização e da profissionalização para pessoas com deficiência. PALAVRAS-CHAVE: Educação de jovens e adultos; Deficiência; Profissionalização. 1 Mestre em Educação pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e membro do Grupo de Estudos e Investigações acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos (GEIARF) – [email protected]. 2 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação PPGedu da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – Orientador Prof Dr Antonio Osório - Linha de Pesquisa Educação e Trabalho e membro do Grupo de Estudos e Investigações acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos (GEIARF) - [email protected]. 520 ANAIS - 2013 Este artigo parte da avaliação do contexto das políticas educacionais e de reflexões a partir de investigações desenvolvidas nas diferentes temáticas da área de educação e do trabalho, bem como dos processos teórico-metodológicos utilizados nas produções de pesquisadores que discutem essas temáticas e suas diferentes implicações para a educação. Buscamos relacionar escola e trabalho partindo do pressuposto de que, em geral, os estudos sobre a educação de jovens e adultos têm apontado a importância, na concretização do aprendizado da leitura e da escrita, das condições de vida dos sujeitos, das representações sociais construídas por esses sujeitos e, recentemente, das hipóteses que formulam esse aprendizado. No entanto, nos estudos, tais aspectos não são explicitados como categorias interdependentes de análise para uma compreensão da problemática e tampouco na especificidade das necessidades do jovem/adulto com deficiência. A partir dos referenciais foucaultianos, antes de ambicionar a origem exata de uma prática, de um saber, de um discurso, faz-se necessário localizar os discursos que colocam em funcionamento uma política, no caso, a política de inclusão das pessoas com deficiência como um dispositivo de segurança, constituído de um conjunto de práticas discursivas com que o poder investe na população. Nessa perspectiva verificamos que a especificidade do tema inclusão do jovem/adulto com deficiência vem contribuindo para uma prática fragmentada da escolarização que focaliza como dificuldades ora o método de ensino, ora as carências físicas e psicológicas dos indivíduos, além das condições socioculturais do sujeito adulto. Na prática, a fragmentação se dá no método didático-pedagógico, pela ênfase na alfabetização, no aspecto mecânico e repetitivo do ler e do 521 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento escrever, no uso exclusivo de recursos materiais como a cartilha, na descaracterização do ato pedagógico e, até mesmo, na interpretação dos níveis de conceptualização da escrita. O interesse em abordarmos o tema sobre a inserção de pessoas com deficiência no mundo do trabalho partiu das pesquisas realizadas por Villa (2003) e Hova (2008) as quais nos permitiram observar que as finalidades da escolarização do jovem/adulto com deficiência mental, como também para pessoas com outras deficiências, convergem para o objetivo de inserção no mercado de trabalho. Ao tomar o enfoque da escolarização, tais trabalhos possibilitaram uma reflexão particularmente desafiadora acerca dos problemas enfrentados por pessoas com deficiência em diversos setores sociais. Possibilitaram, ainda, compreender, por meio dos enunciados presentes nos depoimentos das pessoas com deficiência, se as necessidades que determinam a construção do saber escolar se ampliam e se diferenciam no processo, contribuindo para a melhoria da vida prática desse aluno. E “ qu g b ”, c c c çã de discurso, a partir de Foucault (2007, p. 122) como um “c ju u c qu u formação; é assim que poderei falar do discurso clínico, do discurso econômico, do discurso da história natural, do discurso qu á c ” , cu respeito da inclusão das pessoas com deficiência, é preciso uma análise constituída por todos os enunciados efetivamente ditos, escritos ou silenciados a esse respeito. Com base nos princípios presentes na Constituição Federal, o sistema de educação brasileiro é regido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Lei 9.394/96. A referida Lei estabelece dois níveis para a educação: a educação básica e a educação superior; duas modalidades: a educação de 522 ANAIS - 2013 jovens e adultos e a educação especial; e uma modalidade complementar: a educação profissional. A educação profissional tem como objetivos não só a formação de técnicos de nível médio, mas a qualificação, a requalificação, a reprofissionalização para trabalhadores com qualquer escolaridade, a atualização tecnológica permanente e a habilitação nos níveis médio e superior. A educação profissional deve levar ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva. Por outro lado, Ferreira (1994) afirma que o caráter embrionário do processo de escolarização da pessoa com deficiência pode ser ilustrado pela dificuldade de se construir uma sintonia de pensamentos e ações conjuntas dos diversos segmentos sociais e/ou instituições envolvidas. Os esforços com relação à problemática da pessoa com deficiência estiveram sempre descontextualizados na medida em que não são correlacionadas nem com o desenvolvimento da educação em geral, tampouco com as transformações sociais, políticas e econômicas por que passaram. Segundo alguns autores (Saviani, 1987; Demo, 1998), a educação é compreendida como uma forma de reproduzir o modo de ser e a concepção de mundo de pessoas, grupos e classes, através da troca de experiências e de conhecimentos. Essa concepção de mundo inclui crenças, ideias valores, formas de trabalho e de organização social, cultural, entre outros. A educação é concebida ainda como uma ação que desemboca numa série de práticas de produção da vida social, tais como: preparação dos indivíduos mais jovens para a ação futura na sociedade, socialização de processos produtivos de bens materiais, transmissão da herança cultural e de novas formas de trabalho. 523 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento No Brasil, há um consolidado discurso sobre a democratização da educação, bandeira dos movimentos sociais, de longa data. Podem-se identificar em nossa história inúmeros movimentos, gerados pela sociedade civil, que lutam pela ampliação do atendimento educacional. Para tais movimentos, o Estado vem atendendo a essas reivindicações de forma muito tímida, longe da universalização esperada. Nas diversas instâncias do poder público – União, Estados, Distrito Federal e Municípios –o esforço em atender às demandas sociais por educação básica materializa-se de forma focalizada e restritiva. Com isso, parcelas dos jovens e adultos ficam à margem do atendimento no ensino fundamental e têm atendimento ainda insuficiente pelo Estado. É importante destacar que a democratização da educação não se limita ao acesso à instituição educativa. O acesso é, certamente, a porta inicial para a democratização, mas torna-se necessário, também, garantir que todos os que ingressam na escola tenham condições de nela permanecer, com sucesso. Assim, a democratização da educação faz-se com acesso e permanência de todos no processo educativo, dentro do qual o sucesso escolar é reflexo da qualidade. Mas somente essas três características ainda não completam o sentido amplo da democratização da educação. A demanda social por educação pública implica, pois, produzir uma instituição educativa democrática e de qualidade social, devendo garantir o acesso ao conhecimento e ao patrimônio cultural historicamente produzido pela sociedade, por meio da construção de conhecimentos críticos e emancipadores a partir de contextos concretos. Para tanto, considerando sua história, suas condições objetivas e sua especificidade, os sistemas de ensino devem colaborar intensamente na democratização do acesso e das condições de permanência adequadas aos estudantes no tocante à diversidade 524 ANAIS - 2013 socioeconômica, étnico-racial, de gênero, cultural e de acessibilidade, de modo a efetivar o direito a uma aprendizagem significativa, garantindo maior inserção cidadã e profissional ao longo da vida. (BRASIL, CONAE, 2010). Por isso, faz-se necessário construir processos pedagógicos, curriculares e avaliativos centrados na melhoria das condições de aprendizagem, tendo em vista a definição e a reconstrução permanente de padrões adequados de qualidade educativa. A democratização do acesso, da permanência e do sucesso escolar passa, certamente, por uma valoração positiva da escola. A instituição educativa de boa qualidade é vista positivamente pelos/as estudantes, pelas mães, pais e/ou responsáveis e pela comunidade, o que normalmente resulta em maior empenho dos estudantes no processo de aprendizagem. Quando percebem e reconhecem que estão aprendendo, que os seus direitos estão sendo respeitados como sujeitos socioculturais, históricos e de conhecimento, os estudantes acabam projetando uma trajetória escolar, acadêmica e profissional mais significativa, visão que acaba sendo valorizada pelas mães, pais, familiares e professores. Quanto à educação profissional, os dados evidenciam avanços importantes nos indicadores. Em 2007, registrou-se um total de 693,6 mil estudantes matriculados na educação profissional de nível técnico e de 86,6 mil estudantes, no ensino médio integrado (BRASIL, CONAE, 2010). Destaca-se também a ampliação da rede federal de educação tecnológica, sobretudo com a criação dos IFET (Instituto Federal de Educação Tecnológica). A ampliação de vagas nas instituições federais de educação tecnológica deve ocorrer de acordo com a demanda de cada município, contemplando educação profissional para estudantes de EJA 525 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento (Educação de Jovens e Adultos). Deve-se, ainda, promover convênios entre empresas e instituições de educação profissional no sentido de garantir estágios, oportunizando aos estudantes acesso ao mundo do trabalho. Para Foucault (1987) essas transformações de comportamentos e de estratégias políticas podem ser chamadas de requalificação pelo saber. Em outras palavras, a requalificação faz parte de uma nova estratégia de controle dos uj , u j , “ g fc u tação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas [...], significa uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população ” (FOU ULT, 1987, 66) Dessa forma, faz-se necessário observar os recentes e intensos impactos socioeconômicos e culturais que velozmente se propagam e afetam em diferentes graus, e que as rotinas de todos os segmentos sociais vêm gerando mudanças cada vez mais agudas na vida do cidadão, consequentemente, na educação. O marco histórico na educação de adultos e as relações de trabalho se deu com as contribuições de Paulo Freire (1998) a partir da década de 80. Para o autor, a educação deveria ter como fundamentos básicos o respeito ao outro e a aceitação das limitações do outro. Seu método baseia-se na descoberta da realidade em palavras chaves (geradoras), ou seja, o que é comum ao contexto; tematização (significação contextualizada) e problematização (conscientização). Paulo Freire entendia que a leitura do mundo3 precede a escrita e a educação pertence ao povo, não aos governos. Suas 3 Sobre leitura do mundo – leitura da palavra – senso comum – conhecimento exato, aprender, ensinar, ver: Freire, Paulo: Educação como pratica da 526 ANAIS - 2013 contribuições para a educação apontaram o surgimento de novas relações humanas, baseadas em uma realidade material distinta, com a superação de antigas dicotomias, com a dicotomia entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, prática e teoria, ensinar e aprender, conhecer o conhecimento existente e criar o novo conhecimento, um novo sistema educacional pode então surgir. Dessa forma, a educação libertadora torna-se o esforço sistemático a serviço dos ideais de equidade de uma nova sociedade. Se, na antiga sociedade, o sistema educacional estava comprometido com a preservação do status quo, agora a educação deve-se tornar fundamental ao processo de permanente libertação. Considerando a temática da inclusão das pessoas com deficiência no trabalho, existem no Brasil dispositivos legais muito avançados que buscam garantir o acesso dessas pessoas ao mercado competitivo de trabalho. Porém, as pesquisas indicam que existe uma dificuldade histórica no acesso dessas pessoas ao mercado de trabalho e ainda há uma grande lacuna na aplicação prática da legislação. F uc u b c “u c ju decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições f óf c , ,f ó c ” (FOU ULT, 1987, 244) O autor ainda acrescenta que o discurso pode aparecer como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda. Dentre os fatores que podem dificultar o acesso das pessoas com deficiência ao emprego, destacam-se: a desinformação e o consequente estigma associado a tais pessoas liberdade. Educação e mudança – Ação cultural para a liberdade. Pedagogia do Oprimido – Pedagogia da Esperança – Paz e Terra. 527 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento com falsas crenças de elas serem incapazes, menos produtivas, mais lentas e necessitarem de cuidados especiais; as condições estruturais, funcionais e sociais do ambiente de trabalho que irá recebê-las como funcionárias; e a necessidade de preparo profissional e social da pessoa com deficiência que está buscando o mercado de trabalho. (TANAKA; MANZINI, 2005). Considera-se que a falta de escolaridade e de qualificação profissional das pessoas com deficiência são barreiras para sua inserção em postos formais de trabalho, e que a qualificação, quando é realizada, está distante das necessidades do mercado de trabalho, visto que as exigências para contratação nas empresas estão cada dia mais complexas. As condições dos programas de formação profissional já foram detectadas em vários estudos que destacam o isolamento e a desarticulação dos aprendizes com deficiência em relação à realidade social da comunidade, agravada pela ausência de um sistema integrado de diferentes serviços voltados para eles. Isso dificulta o encaminhamento desses aprendizes para o mercado de trabalho e contribui para a manutenção do estereótipo da pessoa com deficiência (MIRANDA, 2001; SILVA, 2008). Considerando a necessidade de vislumbrar processos de educação profissional para as pessoas com deficiência que, além de ampliar seus conhecimentos e habilidades para o trabalho, contribuam para sua efetiva emancipação social, a educação profissional, ao ser realizada na rede regular de ensino, poderia proporcionar uma formação mais próxima da realidade social e potencializar o acesso das pessoas com deficiência ao trabalho. Segundo a Resolução do Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Básica (CNE/ CEB) nº 02, de 11 de fevereiro de 2001, a rede de educação profissional deve possibilitar o acesso e a permanência do aluno com deficiência em suas escolas por meio da adequação do espaço físico, do 528 ANAIS - 2013 mobiliário, dos equipamentos utilizados nos laboratórios e da linguagem, além de promover a flexibilização do currículo, a capacitação de recursos humanos e o encaminhamento para o trabalho (BRASIL, 2001). Ressalta-se que as políticas sociais de atendimento aos deficientes são criadas na medida em que, na sociedade, eles foram considerados capazes de integrar a força de trabalho, de forma direta ou indireta, ou seja, pela liberação daqueles que se ocupavam em assisti-los. Como demonstram os estudos de Anache (1997), a pessoa com deficiência tem que lutar muito por um espaço compatível com a sua formação, no mercado de trabalho. Quando não consegue uma colocação, busca alternativas como: confeccionar vassouras, vender bilhetes de loterias, entre outras ocupações, o que dificulta sua independência financeira. A independência financeira era o principal objetivo que o jovem/adulto com deficiência busca para sua vida em sociedade, passando pela ansiedade de completar sua escolarização. Vem a propósito a tese defendida no estudo e no Parecer da Câmara de Educação Básica: A igualdade e a desigualdade continuam a ter relação imediata ou mediata com o trabalho. Mas seja para o trabalho, seja para a multiformidade de inserções sócio– político–culturais, aqueles que se virem privados do saber básico, dos conhecimentos aplicados e das atualizações requeridas, podem se ver excluídos das antigas e novas oportunidades do mercado de trabalho informal, o subemprego, o desemprego estrutural, as mudanças no 529 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento processo de produção e o aumento do setor de serviços geram uma grande instabilidade e insegurança para todos os que estão na vida ativa e quanto mais para os que se vêem desprovidos de bens tão básicos, como a escrita e a leitura. (CEB/CNE, 2000, p. 16). A inserção no mercado de trabalho ainda é um desafio para as pessoas com deficiência. Uma das conquistas nesta caminhada é a lei federal 8.213, de 1991, que determina que as empresas destinem cargos a deficientes, seguindo cotas que chegam até 5% das vagas, dependendo do número de funcionários. A lei, que veio garantir os direitos dos deficientes, não é nova, mas a fiscalização aumentou nos últimos dois anos, e as empresas estão tentando se adequar, conforme mostra o texto de Lancillotti (2002): Em decorrência das transformações, observa-se a expansão do desemprego estrutural, como movimento de exclusão, que obriga trabalhadores a buscar e aceitar alternativas de trabalho muito adversas, se comparadas àquelas existentes no período anterior, em que havia a regulamentação de salários, direitos e condições de trabalho. Esta é uma problemática que tem marcado os países ricos e pobres, ainda que, para os últimos, as conseqüências sejam mais graves, dadas as limitações do Estado para fazer frente às demandas sociais. (LANCILLOTTI, 2002, p.48) 530 ANAIS - 2013 Concordamos com a autora quando ela afirma que a inclusão só se coloca porque vivemos numa sociedade excludente. E acrescentamos: por mais que envidemos nossos esforços no sentido de promover a inclusão, o movimento do capital estará permanentemente promovendo a exclusão, porque esta faz parte da lógica de tal movimento. A dificuldade em encaminhar pessoas com deficiência para o mercado de trabalho foi sempre reconhecida, e torna-se pertinente analisar as dimensões que a atividade profissional assume em tempos de desemprego estrutural. Nessa perspectiva, instiga-nos a proposta de analisar a evolução do direito de jovens e adultos com deficiência, bem como o aprofundamento teórico dos determinantes históricos na educação destes sujeitos e a consequente profissionalização, relacionando escola e trabalho. Metodologicamente, por meio dos pressupostos teóricometodológicos de Michel Foucault, nossa proposta é realizar uma leitura acerca dos discursos proferidos, explicitados e silenciados em uma análise do campo epistemológico Foucaultiano em relação à produção discursiva das políticas públicas para a profissionalização de jovens/adultos e quais estratégias, quais táticas formam as unidades discursivas da atividade profissional no que tange à importância da escolarização e da profissionalização para pessoas com deficiência. Trata-se de uma Pesquisa Arqueológica a partir do referencial teórico de Michel Foucault, que comumente segue a periodização dos escritos. Na década de 60, textos arqueológicos têm por tema o saber; nos anos 70, os genealógicos tematizam o poder e, por fim, nos anos derradeiros de sua vida os textos arqueogenealógicos preocupam-se com a questão do sujeito. 531 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Enquanto um dos marcos de renovação do conhecimento histórico, a arqueologia, segundo Foucault (2007), situa-se na transformação pela qual a história redefine sua posição, em relação aos documentos e outras fontes, não mais considerando apenas o modo de interpretar as fontes, mas [...] uma tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade, nem qual o seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. [...] ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações. [...] ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental (livros, textos, narrações, registros, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc.) que apresenta sempre e em toda a parte, em qualquer sociedade, formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas. (FOUCAULT, 2007, p. 7) Nessa perspectiva, o documento não é o único instrumento de uma história. As fontes de informações, (sujeitos-jovens e adultos com deficiência), neste caso, até o momento deste estudo, demonstram que os monumentos do passado e do presente se transformam em marcos referenciais e se complementam enquanto subsídios. Para Foucault (2007, p. 8), a história nos dias atuais é dotada de movimentos elaborados no constructo do passado, 532 ANAIS - 2013 [...] é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. [...] poderíamos dizer, [...] que a história, [...] se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento. Os estudos quantitativos permitem identificar elementos comuns que só podem ser considerados como parte de um critério de estabelecimento no processo arqueológico. Segundo Bogdan e Biklen (1994), a investigação qualitativa é descritiva, conforme o que segue: [...] os dados recolhidos são em formas de palavras ou imagens e não em números. Os resultados escritos da investigação contêm citações feitas com base nos dados para ilustrar e substanciar a apresentação. Os dados incluem transcrições de entrevistas [...]. Tentam analisar os dados em toda a sua riqueza, respeitando, tanto quanto o possível, a forma em que estes foram registrados ou transcritos. (BOGDAN & BIKLEN,1994, p. 48). Nesse sentido, os investigadores qualitativos estão interessados em pesquisar o modo como os sujeitos dão sentidos a sua vida, como criam estratégias e quais as técnicas usadas 533 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento como subjetivação para conseguir sobreviver. O interesse está no registro rigoroso, no modo como as pessoas interpretam os significados. Para tanto, estabelecem-se estratégias e procedimentos que permitirão considerar as experiências do ponto de vista do entrevistado, para assim poder tornar possível a reflexão, com maior clareza e profundidade, sobre a condição humana. O método arqueológico estuda as descontinuidades no sentido de compreender a formação de determinado saber em detrimento de outro. Pode ser aplicado a uma forma de interpretação da própria modernidade. As considerações aqui apontadas têm como base latente as obras História da Loucura (1978) e Vigiar e Punir (1987). Nelas estão descritas as práticas que nos dias atuais são consideradas estranhas, entretanto, Foucault mostra serem respostas internamente coerentes e plausíveis para problemas identificáveis. Independente de serem as tentativas de tratar a loucura como uma doença e/ou as reformas humanitárias da prisão, sempre aparecem com coerência interna. Ambas estão centradas na análise de sistemas de instituições e práticas discursivas historicamente situadas de forma binária (certo/errado; ético/não ético; o bem/o mal). Para Osório (2010), ao adentramos nas obras foucaultianas: [...] cada página carrega em suas linhas pressupostos calcados em processos históricos e sociais. Logo, suas contribuições extrapolam as descrições factuais, explicitam os porquês das práticas sociais exercidas, suas contradições, elaborações e seus limites enquanto diferentes processos que, quando recuperados por meio de temáticas 534 ANAIS - 2013 específicas de reflexões, permitem recolocar novos elementos. Essa dinâmica contribui para identificar outras causas e razões dos fenômenos sociais culturalmente impostos, conferindo-lhe assim novas configurações, outros significados frente às constantes mutações das relações impressas no interior de cada domínio da sociedade. (OSÓRIO, 2010, p. 99-100) Dessa forma, para se compreender as particularidades da análise arqueológica, Foucault (2007) revela o início da contradição que, simultaneamente, tem seu modelo na afirmação ou negação de uma única proposição. Marca como se forma uma prática discursiva. Define as formas que essas práticas assumem as relações que estabelecem entre si e o domínio que as conduz. A análise arqueológica faz também surgir as relações entre as formações discursivas e os domínios não discursivos entre os acontecimentos políticos, as práticas e os processos econômicos, as instituições. Entretanto, essas relações não têm por finalidade revelar grandes continuidades. Elas tentam determinar como as regras de formação de que dependem podem estar ligadas a sistemas não discursivos. Segundo Osório (2010, p. 117), g g é “[ ] estudo das formas como os indivíduos se constituíram como sujeitos em diversos momentos da história, problematizando suas próprias condutas e, a partir disso, suas relações com a ” Com o foco apresentado, propomos um estudo qualitativo. A pesquisa qualitativa possibilita entender a relação dinâmica e a interdependência que existem entre as pessoas e o mundo real. Assim, o conhecimento é concebido como produto 535 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento das relações sociais estabelecidas historicamente entre os homens e entre esses e a natureza. Essa proximidade com a realidade exige que, no decorrer da pesquisa e durante o seu desenvolvimento, seja feita, progressivamente, uma revisão de literatura, buscando os determinantes históricos da inserção da pessoa com deficiência no mundo do trabalho. Uma vez concluída a revisão de literatura, a seleção e a análise de documentos e referenciais históricos que versem sobre o mundo do trabalho na relação educação e profissionalização, passaremos para a realização de entrevistas semiestruturadas com os sujeitos envolvidos nos programas de qualificação profissional implantados em Campo Grande/MS, com o objetivo de verificar os processos dos referidos programas e, principalmente, analisar a atividade profissional no que tange ao valor e ao significado do trabalho para pessoas com deficiência. A literatura científica sobre a educação e a profissionalização das pessoas com deficiência é recente. Na bu c , á uz “E h c ” b ntido de contribuir com alguns elementos determinantes. Torna-se necessário, então, o levantamento da produção acadêmica de obras de referência produzidas nos últimos 10 (dez) anos no país sobre a educação e a profissionalização de pessoas com deficiência. Cabe destacar que o estado de conhecimento constitui um esforço para o pesquisador, pois está voltado para o tema que se apresenta, o qual considera relevante para a educação. Entretanto, ele não se configura como um levantamento exaustivo sobre o tema devido ao tempo do qual se dispõe, tanto para o levantamento bibliográfico quanto para a leitura das obras. (CORDEIRO; OLIVEIRA, 2011) 536 ANAIS - 2013 À guisa de conclusão, consideramos a priori, uma vez que neste artigo apresentamos um processo de investigação em andamento, que o acúmulo de novas experiências, conhecimentos e técnicas acarreta, para o presente momento histórico, a necessidade de uma revisão de soluções assumidas no passado, no campo educacional. Uma sociedade que se propõe inclusiva exige, no mundo contemporâneo, marcado pelo apelo informativo imediato, a reflexão cada vez mais aprofundada e debatida sobre as relações sociais que medeiam o exercício da cidadania. Alunos com deficiência precisam ser considerados a partir de suas potencialidades de aprendizagem. Sobre esse aspecto, é facilmente compreensível que a escola não tenha que consertar o “defeito”, valorizando as habilidades que o deficiente não possui, mas ao contrário, trabalhar suas condições cognitivas mais benéficas à sua aprendizagem, com vistas em seu desenvolvimento. O interesse no ensino para jovens e adultos com deficiência e a relação com profissionalização, tem aumentado substancialmente devido a vários fatores, entre os quais emerge, na atualidade, a preocupação de oferecer às pessoas com deficiência suas reais possibilidades, uma vez que os discursos sociais e políticos estão empenhados na defesa de uma sociedade inclusiva. A concepção de sociedade inclusiva exige novas tendências da Educação apresentando muitas propostas de avanço em direção à construção de uma concepção de cidadania voltada para o desenvolvimento pleno da pessoa, seu preparo para o exercício dessa cidadania e sua qualificação para o trabalho. Essa concepção encontra-se contemplada na Constituição de 1988, que reafirma a Educação como direito de 537 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento todos e dever do Estado e da família, a ser promovido e incentivado com a colaboração da sociedade. Diante do exposto, Foucault convida-nos a refletir sobre a legislação vigente como mecanismo de controle e regulação qu c à c “[ ] u j g complexo entre interesses individuais e coletivos, a utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e g úb c ” (FOU ULT, 2008, p. 61), um jogo complexo entre direitos fundamentais e independência dos governados. As investigações sobre as carências físicas e psicológicas do sujeito da educação de jovens e adultos revelam, entre outras, a baixa motivação, o conformismo com a situação de analfabeto, a autodepreciação, os problemas físicos da idade – deficiências da visão, audição e de psicomotricidade – além de problemas de memorização. Considerando as condições socioculturais desse uj , c z ‘ uj ’ ‘ uc çã c ’, que também são caracterizados com deficiências físicas e mentais, além da baixa autoestima e depreciação por parte da sociedade. Por fim, os estudos sobre a educação de jovens e adultos indicam que as condições socioculturais do adulto têm permitido poucos avanços na compreensão do fenômeno, por identificarem as raízes dessa situação na estrutura social e faltam-lhes elementos que medeiem a passagem do pedagógico para o sociocultural. Na verdade, observa-se que pesquisas relacionadas ao assunto estão pouco acessíveis, inviabilizando a transformação da prática cotidiana da sala de aula na, consequentemente, vida em sociedade. Referências 538 ANAIS - 2013 ANACHE, A. A. O deficiente e o mercado de trabalho: concessão ou conquista. In: Revista Brasileira de Educação Especial. 1997. BOGDAN, Roberto C. e BIKLEN, Sari knopp. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução a teoria e aos métodos. (trad. Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista – Qualitative Research for Education, 1991). Porto, PT: Porto Editora, 1994. BRASIL. 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VII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 08 a 10 novembro de 2011 - ISSN 2175-960X . Disponível em:< http://www.uel.br/eventos/congressomultidisciplinar/ > Acesso em: 05 jun. 2012. DEMO, Pedro. Charme da exclusão social. Editora Autores Associados, 1998. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo, nº 61) FERREIRA, Julio Romero. A exclusão da diferença. Piracicaba: Unimep, 1994. FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. _____. A arqueologia do saber [trad. Luiz Felipe Baeta Neves; L’Archéologie du Savoir, de 1969]. 7. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. _____. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987. _____. História da loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978. FREIRE, Paulo. CD Paulo Freire: O andarilho da Utopia. IPF, São Paulo, 1998. HOVA, G. L. S. A política de inclusão das pessoas com deficiência no mundo do trabalho: o dito e o escrito, 2008, 540 ANAIS - 2013 45f. Trabalho de conclusão de curso de especialização (Pósgraduação Latu Sensu em Educação). Universidade Federal da Grande Dourados. Dourados, 2008. (Orientadora Marilda Moraes Garcia Bruno). LANCILLOTTI, Samira Saad Pulchério. A Integração pelo Trabalho na Sociedade da Exclusão. Disponível no site: <http://www.educacaoonline.pro.br/art_rs_e_educacao_especial .asp>. Acesso em: 05 jun. 2012. MIRANDA, T. G. Educação Profissional de pessoas portadoras de necessidades especiais. Cadernos do CRH (UFBA), Salvador, v. 14, n. 34, p. 99-123, 2001. OSÓRIO, Antônio Carlos do Nascimento. (Org.). As Instituições: discursos, significados e significantes, buscando subsídios teóricos e metodológicos.... In: ______. Diálogos em Foucault. 1. Ed. Campo Grande, MS: Editora Oeste, 2010. SILVA, I.M.A. Políticas de Educação Profissional para a pessoa com deficiência. 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(Orientadora Alexandra Ayache Anache). 542 ANAIS - 2013 Ensino de língua materna e a heterogeneidade da/na linguagem Silvana Cosmo DIAS1 Silvane Aparecida de FREITAS2 RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar as produções dos alunos de 7º e 8º anos do Ensino Fundamental da rede municipal de Santa Fé do Sul, participantes da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo Para o Futuro. A temática dessas produções foi as memórias dos idosos moradores nessa cidade, para isso, os alunos entrevistaram os idosos e transcreveram em forma de memórias. Nesta pesquisa, utilizamos a metodologia da pesquisa interpretativista, uma vez que visamos produzir sentidos sobre os discursos coletados, no caso, as memórias dos idosos, levando em consideração a teoria da heterogeneidade na/da linguagem (AUTHIER-REVUZ, 1990), ou seja, os diversos outros que constitui o dizer. Por meio deste estudo, foi possível refletir sobre a importância de o aluno ter o que dizer e para quem dizer em suas produções escritas, pois isso é inerente ao processo interlocutivo no ato de produção textual. Desse modo, também foi possível verificar o quanto o discurso do outro está presente nas narrativas coletadas. PALAVRAS-CHAVE: Produção de texto; Discurso; Heterogeneidade. Introdução 1 Mestranda no Programa de Pós- Graduação em Educação na Área de Concentração em Educação, Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS),Unidade Universitária de Paranaíba.E-mail: [email protected] 2 Pós-doutorado pela UNICAMP/Campinas (2009). Atualmente é docente dos Mestrados em Letras e Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected] 543 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Este estudo visa à reflexão sobre os conceitos teóricos que são inerentes a uma concepção de linguagem heterogênea a partir de fundamentos da Análise do Discurso de linha francesa, para discutir a questão do discurso constituído por meio das heterogeneidades constitutiva e mostrada, apoiando-se nos teóricos Authier-Revuz (1990), Bakhtin (1992), Brandão (1998), Pêcheux (1990), entre outros. Tendo como corpus, fragmentos retirados das produções textuais elaboradas em 2011, pelos alunos do 7º e 8º anos do Ensino fundamental da Rede Municipal de Ensino de Santa Fé do Sul/SP, participantes da Olimpíada de Língua portuguesa Escrevendo Para o Futuro, cujo projeto vem sendo desenvolvido todos os anos nas diversas redes de ensino, particulares, municipais e estaduais e foi instituído pelo Governo do Estado de São Paulo, visando à melhoria do ensino nos aspectos linguísticos, da leitura e da escrita, ou seja, o ensino de língua portuguesa. Para isso, a Olimpíada realiza um concurso de produção de texto, envolvendo alunos do 5º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio. Para viabilizar esse processo, o programa da Olimpíada traz o caderno do professor com sequência didática desenvolvida para estimular a vivência de uma metodologia de ensino de língua que trabalha com os diversos gêneros textuais. As atividades sugeridas proporcionam o desenvolvimento de habilidades de leitura e de escrita previstas nos currículos escolares. O tema do concurso realizado pela Olimpíada de Língua portuguesa Escrevendo Para o Futuro é “O ug ”, mas escrever sobre isso requer leituras, pesquisas e estudos sobre a realidade local. Para o desenvolvimento dessa temática, o material é dividido em quatro categorias, e a parte escolhida z çã qu f “M ó ”, qu 544 ANAIS - 2013 alunos do 7º e 8º anos do Ensino Fundamental. Essa categoria tem como propósito fazer com que os jovens conheçam a história do lugar onde vivem por meio do olhar dos antigos moradores e, assim, valorizem as experiências dos mais velhos, descobrindo-as como parte de sua identidade. Além disso, os professores são capacitados por ATP (Assistentes do trabalho Pedagógico) da área de Língua portuguesa, em suas respectivas Diretorias de Ensino, para desenvolver esse projeto. Com esse artigo, espera-se contribuir com algumas reflexões acerca dos estudos da linguagem numa perspectiva discursiva, como também com o ensino de Língua Portuguesa, concebendo a linguagem enquanto discurso heterogêneo constitutivo. 1. A perspectiva da heterogeneidade: os “já ditos” No percurso das discussões sobre o discurso, Guerra (2008) discute as investigações de Authier-Revuz (1990) que apontam para as manifestações de heterogeneidade enunciativa no processo de constituição do discurso, tendo a heterogeneidade mostrada e a constitutiva inerente a todo tipo de discurso. Entendemos que a concepção de heterogeneidade constitutiva de Authier-Revuz corresponde à visão bakhtiniana de linguagem, a qual se pode afirmar que todo discurso é óg c u z D , gu F (2003), “ discurso não constrói sobre si mesmo, mas se elabora em vista u , u ,c c cu u” O qu corrobora o dizer de Bakhtin Não existe nem a primeira e nem a última palavra, não existe fronteiras para um 545 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento contexto dialógico. Inclusive os sentidos passados, ou seja, gerados nos diálogos dos séculos anteriores, nunca podem ser estáveis, sempre vão mudar removendo-se no processo posterior. (BAKHTIN 1992, p. 392). A heterogeneidade constitutiva prevalece no funcionamento real do discurso, enquanto a heterogeneidade mostrada revela a presença do outro no dizer e, dessa forma, ocorre mudança na heterogeneidade do sujeito. Com relação a isso, Guerra (2008) afirma que: A heterogeneidade constitutiva é aquela em que o outro constitui um, o sujeito, e que este sujeito nem sabe quem é. São todos que passaram por sua vida, é tudo que leu, estudou. Em seu enunciado cruzam os dizeres de outros. A heterogeneidade mostrada é a manifestação explícita de diferentes vozes: sujeito, no momento em que fala, escreve, traz para o seu dizer alguns outros que o constituem, marcando assim distância entre ele e outros que ele seleciona de acordo com seus interesses. E “ u ” ã , superfície linguística, por citação, aspas, comentários, itálicos, metáforas, imitação, ironia etc. (GUERRA, 2008, p. 45 ) Nesse sentido, a heterogeneidade mostra-se por meio de diversas vozes que perpassam um dizer, marcando uma distância entre aquele que diz e os dizeres dos outros presentes em seu discurso. 546 ANAIS - 2013 O “ interdiscurso é incitar a construir um sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição das çõ cu c u Ou ” (PO ENTI, 2003, p.265). Assim, a formação discursiva não deve ser entendida como algo fechado impermeável, homogênea. Segundo Cardoso (2005), a situação discursiva é por natureza heterogênea. Nesta perspectiva, ressalta-se a reflexão sobre o ensino de língua materna, orientada por Geraldi (1993), cujo pensamento foi incontestável, pois, para este autor, a novidade não está inserida no interior de uma formação discursiva, onde ocorre apenas a repetição do já dito, mas, está no centro das discussões, o sujeito, produtor de discursos, aquele que se relaciona co u , qu cu “ qu ” “ g ” qu “ cu u c f çã cu , ã é decorrência mecânica, seu trabalho sendo mais do que uma mera reprodução; fosse apenas isso, os discursos seriam sempre idênticos, independentemente d qu qu u ” (GERALDI, 1993, p. 134). Esse autor defende a criação do novo com referência a h f h c ú , c , “f uj comprometer-se com a sua palavra e de sua articulação individual com a formação discursiva de que faz parte, mesmo qu ã ác c ” ( ER LDI, 1993, 134) Por meio destas proposições, é pertinente refletir sobre questões inerentes ao ensino de língua materna enfatizando que nesse processo deve-se considerar o sujeito como elemento inserido no centro das discussões sobre o ato de ensinar e D , gu M (2002), “ ã pensar o ensino de Língua portuguesa a partir de atividades câ c çã c h c uu ” (MARTINS, 2002, p. 63). O que faz repensar a relação entre 547 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento aluno/professor, seguindo a orientação de que não deve haver distanciamento entre quem ensina e quem aprende, pois considerando a linguagem, na perspectiva da discursividade, a uçã x é “ o de partida e (ponto de chegada) c / z g í gu ” (GERALDI, 1993, p. 135). Na trilha dessa discussão sobre as teorias do ensino de língua materna encontra-se entre o novo e o velho, a proposta das teorias modernas da linguística e as práticas em sala de aula. Nesta reflexão existe uma barreira: a necessidade do professor “ u u f z u c h f u valores, sua prática, sua vida; de enfrentar no caminho da incerteza, mas com convicção e maturidade sobre a necessidade u ç ” (M RTIN , 2002, 63) D , c c (1993, 63) qu “ í gu á ó prática da linguagem instalada no plano do desejo de cada processo, visando à conquista de uma incerteza: a de sua não çã qu qu ju c h c f ” Nesta linha de raciocínio, é preciso refletir sobre o processo de produção de textos e discursos, mas para isso é necessário enfatizar primeiramente sobre língua e discurso. Sabe-se que os estudos atuais da linguagem, distanciam-se da perspectiva da dicotomia adotada por Saussure. No âmbito destas discussões, surge o discurso, e, por meio dele, é possível realizar uma união indispensável entre o nível linguístico e o extralinguístico. Sobre isso, buscamos em Foucault (1996) o conceito de que o discurso é como um acontecimento histórico e social, um conjunto de formações discursivas, como também estágio permanente em construção: 548 ANAIS - 2013 O discurso não é simplesmente aquilo que se manifesta (ou oculta); é também, aquilo que é objeto de desejo; é visto que – história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de denominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 1996, p. 10). Transportando essas discussões para a perspectiva do ensino de língua materna, é importante ressaltar que é necessário que aluno conviva, desde os primeiros anos de escolaridade, com a diversidade de textos e discursos, para assim, produzir sentidos tanto no ato de ler como de produzir textos. Desse modo, observa-se a necessidade de oferecer u u uz x ,c qu “é no texto que, a língua se revela em sua totalidade quer enquanto conjuntos de formas e de seu reaparecimento, quer enquanto discurso que a uma relação intersubjetiva construída no processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas õ ” ( ER LDI, 1993, 135) Por meio desse pensamento, Geraldi (1993) ressalta a importância da produção de texto em detrimento da redação, evidenciando que ao realizar uma redação, o aluno escreve para a escola, e esta prática não possibilita ao aluno, ter para quem dizer e nem para quê dizer, por consistir-se em um processo marcado por normas pré-estabelecidas. Já em relação a produção de textos, o aluno produz na escola, apesar desse processo decorrer por meio das orientações do professor, o aluno tem para quem produzir e para quê dizer. Nesse aspecto, em relação à produção de texto, o autor considera que para produzir um texto em qualquer modalidade 549 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ã c çõ : “ h qu z ; tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; o locutor se constitua como tal, qu uj qu z qu z qu z” ( ER LDI, 1993, p. 137). Podemos dizer que, mediante essas considerações, no ato de produzir textos, o aluno utiliza a qu “c u u c z g ” ( ER LDI, 1993, p. 160). Estas proposições remetem às práticas discursivas que envolvem ações efetivas entre professor/aluno no trabalho com produção de textos, na direção de constituir escritores. Esse processo ocorre por meio de instâncias de dialogia que envolve aluno/produtor de textos com vários outros, isto é: [...] para quem a criança diz, - seus leitores; o outro de quem toma a palavra para dizer – seus modelos, o outro sobre quem diz- suas personagens; o outro que é participante do processo de produção de texto (pares e professores que atuam como comentadores, co-autores, ou co-revisores: a essas instâncias de dialogia articula-se também a relação do produtor do texto consigo mesmo, como escritor e leitor de seu próprio texto. (MARTINS, 2002, p. 87). 2. As produções escritas e a questão da heterogeneidade no dizer Nessa perspectiva, apresentaremos, neste subitem, fragmentos retirados das produções dos alunos do 7º e 8º anos do Ensino Fundamental da rede municipal de Ensino da cidade de Santa Fé do Sul/SP, elaboradas a partir de um trabalho de 550 ANAIS - 2013 leitura e escrita, partindo das orientações previstas no Projeto Olimpíada de Língua portuguesa Escrevendo Para o Futuro em que se pedia para os alunos coletarem a memórias de idosos. No fragmento que segue, observa-se a presença da heterogeneidade constitutiva e mostrada no discurso de um idoso, transcrito em forma de produção de texto/gênero memórias, por uma aluna do 7º ano do Ensino Fundamental: Era uma época boa. Depois de alguns anos, o transporte chegou, graças a minha mãe que muito lutou para isso. Essa nossa aventura diária já estava ficando perigosa. Muitas vezes corríamos de vacas Nelores e de cachorros bravos, meu irmão caçula foi inclusive mordido e chegamos a ver uma Sucuri enorme toda enrolada dentro da lagoa da mata. A primeira vez que a perua escolar passou foi uma festa. A garotada não se cabia de felicidade e ansiedade para andar de carro. Dentro da perua era o maior converseiro. O seu Expedito, o motorista, vivia dando bronca na molecada e irritado u g : “Qu é qu é h j ”? c h O sujeito idoso, na versão transcrita na forma do gênero memórias por esta aluna, relata sua história de vida, retoma o cu “ u ”, já c do pelo dizer do senso comum “E u é c b ”, uz f u , “ é b ” N c , -se o exemplo de heterogeneidade constitutiva, pois a voz saudosista está íc cábu “é c ” bo no pretérito “ ” Já h g é x c u z u cu “Qu é 551 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento que vai a pé hoje?”. O sujeito enunciador ao retomar o discurso do outro por meio da heterogeneidade mostrada, faz isso de forma consciente em seu espaço discursivo; pois, por meio desse recurso, produz como efeito de sentido a separação entre o dizer que pertence a si e o dizer que pertence ao outro. Esse efeito de sentido disfarça a condição heterogênea de todo dizer. Desse modo, pode-se entender que: [...] existe negociação entre a heterogeneidade mostrada na linguagem e a heterogeneidade constitutiva da linguagem em que o sujeito, movido pela ilusão do centro, pela ilusão de ser a fonte do discurso, por um processo de denegação, localiza o outro e delimita o seu lugar para circunscrever o próprio território. Afetado por um sujeito que divide, ou melhor, que tem que dividir seu espaço com o outro, o sentido se subjetiviza, torna-se heterogêneo bloqueando a tendência natural à homogeneização do sentido absoluto. (BRANDÃO 1998, p. 43-44). Nessa perspectiva de heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada, Coracini (1995) propõe outra, a heterogeneidade reconhecida, “ á u u : é aquela em que o outro se mostra apenas para aqueles que conseguem reconhecê- ” ( UERR , 2008, 58) , Guerra, a heterogeneidade reconhecida é a constituição de um caso intermediário entre a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada. Isso ocorre porque não é explícita a f f u c , “ c constitutiva para aqueles que não a reconhecem e representada, 552 ANAIS - 2013 apesar de não constituir um caso explícito, para os que a c h c ” ( UERR , 2008, 58) Tal assertiva, defendida pela autora, pode ser exemplificada com outro fragmento de texto gênero/memória de outro sujeito idoso, transcrito por outra aluna do 8º ano do Ensino Fundamental: Antigamente, quando rodovias ainda eram estradas de terra, e nem mesmo em sonho existiam asfaltos cobrindo o chão, eu vivia na fazenda São José, não muito povoada nem freqüentada, mas que guardava em si, toda a beleza do interior do Noroeste Paulista. O sujeito enunciador busca em sua formação discursiva uma ordem, uma determinada regularidade em seu dizer, que mesmo sem revelar a fonte de seu discurso, têm-se pistas para sugerir a origem. Observa-se isso, pela escolha da temática pautada pelo saudosismo que remete às imagens produzidas pelo discurso presente na música de Nono Basílio e Índio Vago, Mágoa de boiadeiro “Antigamente nem em sonho exista/ tantas b , f ” Desse modo, Pêcheux (1990) defende que é a partir do esquecimento n.1º que se é possível formar a articulação entre o conceito de sujeito que acredita ser a fonte de seu discurso e o conceito de heterogeneidade constitutiva, proposto por AuthierRevuz (1990). Isso se justifica pelo fato de que perpassado pela ilusão de ser o primeiro enunciador de seu discurso, o sujeito não identifica os limites que separa o dizer do outro com o seu próprio dizer. Assim, esse dizer passa a ser constitutivo do discurso do sujeito que enuncia. Na visão de Authier-Revuz, isso remete a uma: 553 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento [...] heterogeneidade radical, exterioridade interna ao sujeito e ao discurso, não localizável e não representável no discurso que se constitui, aquela do outro do discurso – onde estão em jogo o interdiscurso e o inconsciente – se opõe à representação, no discurso, as diferenciações, disjunções, fronteiras interior/exterior pelas quais o um - sujeito, discurso – se delimita na pluralidade dos outros, e ao mesmo tempo afirma a figura dum enunciador exterior ao seu discurso. (AUTHIER-REVUZ 1990, p. 32). Pode-se dizer que, no discurso do sujeito idoso, elaborado pelo aluno, este conceito de heterogeneidade de Authier-Revuz, pode ser observado por meio desse enunciado “O h , g há c , é , u , faculdades, praças, ruas e avenidas onde os carros circulam constantemente. E apesar de haver tantos carros passando, meus h u b ” Neste enunciado, nota-se que o sujeito do discurso apresenta em sua memória discursiva, algo que está de certa forma oculto, submerso, um saber não identificado, inconsciente, mas qu u z f “já ”, forma diversa. Assim, o sujeito não percebe a origem de seu dizer. Com isso, nota-se o interdiscurso nesse dizer, manifestado por meio do discurso do texto musical Mágoa de Boiadeiro, cujo sujeito enunciador lamenta as transformações c g “M h j u é u 554 ANAIS - 2013 diferente,/ com o progresso nossa gente nem se que faz uma idéia/ Qu u fu ã b ” Prosseguindo em rumo à articulação do esquecimento n. 2, na visão de Pêcheux (1990) e de Authier-Revuz (1990), a heterogeneidade mostrada acontece por meio da ilusão da realidade, do pensamento transmitido no discurso que leva o sujeito a definir o outro em seu espaço discursivo. Esse sujeito dividido apresenta-se de várias formas, entre elas, pode-se f “ c çã u , c metadiscursivos, as formas de oscilação, as formas de abertura uj cu ” ( UERR , 2008, 58) Nesse sentido, a heterogeneidade mostrada é uma forma çã qu u “ cu c ó , sua relação com o outro designando, em meio a um conjunto de marcas linguísticas, os pontos de heterogeneidades. Poderíamos relacioná-los c xu ” ( UERR , 2008, 58) O que segundo a autora, ao referir-se à heterogeneidade constitutiva pode-se entendê-la como duplo dialogismo existente cu , u j , “ cu f z “já” dos outros discursos e, portanto, é conhecido pelo seu cu ” E , c c qu “ cu ã x qu qu é ç ” Assim, a recepção do destinatário é agregada e produz o processo de produção do discurso. A autora, ainda, relaciona a heterogeneidade constitutiva com a interdiscursividade. Nessa mesma perspectiva, Gregolin (2001, p. 72) ressalta que: A ordem do discurso é uma ordem enunciável. A ela deve o sujeito assujeitar-se para constituir em sujeito de seu discurso. Por isso, o enunciável é exterior ao sujeito enunciador e o discurso só pode ser construído em um espaço de memória, no 555 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento espaço de um interdiscurso, de uma série de formulações que marcam, cada uma, enunciações que repetem, se parafraseiam, opõem-se entre si e se transforma. Diante do exposto, é pertinente ressaltar que se observa nos escritos da aluna do 7º ano do Ensino Fundamental, o discurso de outro idoso, ao remeter a um passado feliz que, por sua vez é permeado por uma formação discursiva, reconhecida de um lugar social e institucional, a Escola: Guardo até hoje uma foto antiga, da minha formatura da 4ª série da EEPSG Prof. Itael de Mattos. Esse dia foi inesquecível. A Colação de Grau aconteceu no Cinema antigo da cidade. As meninas de vestido branco. Os meninos de calça preta e camisa branca. Os pais contentes e orgulhosos. Os professores e o diretor fiéis e respeituosos pela missão cumprida. Os amigos de infância, de escola, a alegria e esperança de um futuro melhor. Esse sujeito enunciador, no caso o idoso, estabelece um diálogo com um discurso já constituído por meio da ideologia , qu c c “u u poderosa dentro de uma sociedade, capaz de formular e definir opiniões. Sendo assim, é uma forma sutil de pensamento que leva o homem a pensar sentir e agir de uma maneira conveniente c qu c ” (FREIT , 2010, 157). Desse modo, o sujeito enunciador, no discurso desse idoso, incorpora o dizer do outro, de forma inconsciente, e produz o efeito de sentido de ser dele, a origem desse dizer, 556 ANAIS - 2013 revelando um sentimento nacionalista, ao rigor da formalidade que caracteriza uma época, um sistema de ensino. Mesmo diante dessa heterogeneidade, propriedade elementar da constituição de sujeitos e do discurso, por conseguinte, da linguagem, considerando, sobretudo, aquilo que lhe é inerente; o processo de mobilidade contínuo de sentidos determinados pelo processo histórico-social, no qual as pessoas se apreendem, se interpretam, estudam, ensinam e mantêm a ilusão de unidade. É na repetição e na circulação do que está na memória discursiva, que se encontra a condição do interdiscurso, ou seja, nos já ditos por outros, na abertura, no deslize, no impreciso; pois, é no mesmo e no antigo que surge o outro, o novo. Nesta perspectiva, observa-se nos textos/gênero memórias de idosos, produzidos/transcritos pelos alunos do Ensino Fundamental de 7º e 8º anos, as condições necessárias à produção de texto, que Geraldi (1993) considera essenciais em qualquer modalidade já que esses alunos ao entrevistar esses idosos para transcrever/produzir as memórias, eles tinham o quê dizer em suas produções. O texto selecionado para esta discussão trata-se de um trabalho realizado por um aluno 8º ano, sob a orientação do professor que seguiu a proposta de produção de texto/gênero memórias apresentada pelo caderno do professor: . As lembranças que hoje conto marcou profundamente a minha vida e meu coração. Quando contemplo a minha querida cidade de Santa Fé do Sul, percebo quantas coisas mudaram desde o meu tempo de infância. Estância Turística, lindas praças e monumentos que recordam o seu passado. Há 60 anos atrás, tudo era diferente. As ruas 557 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento de terra, uma vila pequena, poucos moradores. Não havia esgoto, mas tínhamos energia elétrica. Este fragmento remete ao que diz Geraldi (1993), sobre a produção textual realizada na escola por apresentar objetivos incorporados pelo aluno em relação ao que se tenha o que dizer; se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; se tenha para quem dizer o que se tem a dizer. Estas considerações fazem referência ao discurso do sujeito idoso, reescrito pelo aluno e ao universo de circulação textual, referente ao projeto Olimpíada de Língua portuguesa, pois existe o posicionamento do sujeito/aluno que ao enunciar estabelece o processo de interlocução com outros sujeitos, representado pelo autor enquanto leitor do próprio texto e com os Outros, a quem se x , , u “ u -se como locutor, implica estar numa r çã cu ” ( ER LDI, 1993, p. 161). Nesta prática de produção textual de gênero memórias, estão definidos os seus interlocutores, pois destina-se a um público de leitores como: o professor enquanto co- produtor, que atua por meio de orientação e revisão textual, a comissão julgadora do projeto Olimpíada de Língua portuguesa: Escrevendo para o Futuro, e, principalmente, os sujeitos inseridos no processo de escritura, ou seja, os interlocutores inerentes ao ato de registrar os acontecimentos discursivos por meio das entrevistas com os idosos. O processo de orientação textual do gênero memórias proporciona aos alunos o ter o que dizer, ou seja, por meio da entrevista que os alunos realizaram com o idoso e levou para a escola, o que el bé ã b , b u u “ bj f xã , c ”, ( ER LDI, 1993, 163) 558 ANAIS - 2013 para a produção escrita. Como exemplo, tem-se o relato discursivo do sujeito idoso, reconstruído pelo aluno do 7º ano: Bons tempos aqueles, pois quanto menor a cidade, maior a simplicidade e a simpatia entre as pessoas. Ao entardecer sentávamos na porta das casas e proseávamos sobre os acontecimentos cotidianos. Era a melhor forma de descansar do serviço diário, do trabalho doméstico e da lida no campo. Seguindo as orientações de Geraldi (1993), o aluno precisa ter motivação interna para executar o trabalho, precisa ter razões para dizer. Desse modo, o aluno não escreve para cumprir uma tarefa, escreve porque foi seduzido pelos objetivos do projeto, Olimpíada de Língua portuguesa Escrevendo para o Futuro: reconstruir a história do lugar onde mora, por meio dos dizeres de idosos, valorizar a história local e reconhecer-se como parte dela. O ato de escrever não se restringe apenas a uma apropriação g guí c , “ escrita por meio dos processos de atividade mediada, em instâncias inter-relacionadas: a mediação pelo outro e a çã g ” (M RTIN , 2002, 87) Com isso, pode-se entender que o aluno, ao produzir os textos do gênero memórias coloca em prática o funcionamento da língua, cujo processo possibilita aprender a língua materna e z “c ó -se uma imagem da x ó ” ( ER LDI, 1993, p. 179). Esses alunos, ao se inscreverem no discurso do idoso, por meio de produções textuais de gênero/memórias, uz u cu h gê “ c u relação com os outros discursos, diversas vozes perpassaram o 559 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento cu ” (FREITAS, 2011, p.66). Esse processo discursivo acontece por meio da constituição do sujeito na e pela linguagem. Considerações finais Neste artigo, foram evidenciados conceitos fundamentais em relação à concepção da linguagem, enquanto seu aspecto heterogêneo por meio de reflexões sobre o entrecruzamento de dizeres do outro, que provoca efeitos de sentido capazes de b c çã u “ cu ” A análise teve como foco principal discutir o Ensino de Língua Materna a partir da perspectiva da produção de texto, como recurso fundamental para o ensino da língua portuguesa, bem como o seu funcionamento discursivo. Essa discussão levou a observar que a produção de texto concebida como elemento reflexivo sobre o funcionamento da linguagem é o ponto de partida para o trabalho do professor em relação ao compromisso de ensinar a língua materna para falantes de língua portuguesa. Por meio do discurso dos sujeitos idosos, transcritos pelos alunos do 7º e do 8º anos do Ensino Fundamental, tivemos a contribuição para que esses alunos, enquanto indivíduos, se constituíssem em sujeitos ativos, ao enunciar no processo interlocutivo. Assim, esses alunos, ao se posicionarem como sujeitos que atuam no processo de interlocução, deram vozes a outros sujeitos, os idosos. Nesse percurso, foi possível compreender que os sujeitos são históricos, heterogêneos e sociais, como também são seus discursos, marcados pela exterioridade, perpassados por outros dizeres, permeados por ideologias que procederam de formações discursivas heterogêneos por sua própria natureza. 560 ANAIS - 2013 Referências AUTHIER-REVUZ, J. 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Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de M. Pêcheux. Campinas: Ed. Da Unicamp, 1990. Revista Letras, Curitiba, n. 61, especial, p. 253-269, 2003. Editora UFPR. 253. OBSERVAÇÕES SOBRE INTERDISCURSO. Sírio Possenti 562 ANAIS - 2013 Entre a análise de discurso e a análise das relações de poder Arthur Galvão SERRA1 Thiago Fróes ACOSTA2 RESUMO: Este artigo tem por objetivo situar a trajetória pela qual Michel Foucault passa de sua análise de discurso para chegar à análise das relações de poder. Posteriormente aos seus primeiros estudos, os qu u “ qu g ”, u ch u qu genealogia, termo apropriado de Nietzsche. Recorreremos à obra Genealogia da Moral de Nietzsche e textos do período em que Foucault passa a priorizar as relações de poder para promover essa reflexão. A metodologia adotada foi uma investigação coerente com as reflexões do autor, podendo ser considerada uma análise de enunciados disponíveis nesses textos. Como resultados, pode-se concluir que: o tratamento dos discursos de suas primeiras obras não foram abandonadas e continuaram servindo como base e que a análise das relações de poder já estava possibilitada pela base que construiu; e que a concepção de sujeito também esteve centralmente presente em toda sua obra. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Poder; Sujeito. Introdução 1 Psicólogo, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), membro do Grupo de Estudos e Investigações Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos (GEIARF) fundado em 2001, coordenado pelo Prof. Dr. Antônio Carlos do Nascimento Osório. E-mail: <[email protected]> 2 Graduado em Filosofia, membro do Grupo de Estudos e Investigações Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos (GEIARF) fundado em 2001, coordenado pelo Prof. Dr. Antônio Carlos do Nascimento Osório. E-mail: [email protected] 563 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Este artigo surge das reflexões, entre compreensões e dúvidas, realizadas durante as reuniões do Grupo de Estudos e Investigações Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos (GEIARF), que ocorrem semanalmente e, é resultado de uma comunicação apresentada no VI Encontro Nacional do Grupo de Estudos de Linguagem do Centro-Oeste (GELCO) e IV Colóquio Regional da Associação Latino-Americano de Estudos dos Discursos (ALED), no Evento Estudos de Linguagem: Pesquisa, Ensino e Conhecimento, no Grupo de Trabalho: Os Referenciais Foucaultianos e as Possibilidades de Análise dos Discursos3. Primeira tarefa a que nos propomos foi estabelecer os critérios utilizados por Foucault para analisar o discurso. Logo após, analisaremos os elementos que demonstram a transição, se podemos dizer assim, da sua obra, na qual a análise das relações de poder passa a ocupar um lugar preponderante em suas pesquisas. Para, a partir daí, possibilitar uma leitura que não se assente no discurso sobre o conhecimento de objetos, mas sobre o sujeito, sem objetivá-lo, não um sujeito explicável, situável, mas produtor e resistente, uma presença controlada, mas imprevisível. Ao final deste artigo nos ocuparemos a dizer o que pode ser entendi c “ ” á cu análise do poder. Trata-se neste caso de falar do sujeito na obra de Foucault. Inicialmente, Foucault já se ocupava com a linguagem, campo que era presente nas obras de Nietzsche que cunhou o 3 GT coordenado pelos Prof. Dr. Antônio Carlos do Nascimento Osório, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul-UFMS e Prof. Doutorando Daniel Derrel Santee, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- UFMS. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 23 a 26 de outubro de 2012. 564 ANAIS - 2013 termo genealogia, apropriado por Foucault para chamar suas análises sobre o poder. Ambos os autores se ocuparam com o discurso, com o intervalo entre as palavras e as coisas. Em suas pesquisas históricas, Foucault propõe o acontecimento que: [...] parece que tomou cuidado para que o discurso aparecesse apenas como um certo aporte entre pensar e falar; seria um pensamento revestido de seus signos e tornado visível pelas palavras, ou, [...] seriam as estruturas mesmas da língua postas em jogo e produzindo um efeito de sentido (FOUCAULT, 2006a, p. 46). O pensamento se utilizaria então dos signos, os quais são as palavras que estabeleciam uma relação (ou uma aproximação, uma equivalência) com um objeto da realidade (com as coisas, com um referente externo à linguagem, dentro da própria linguagem). Semelhante afirmação encontraríamos na Genealogia da moral de Nietzsche (2007, p. 82): As designações e as coisas coincidem? A linguagem é expressão adequada de todas as realidades? É somente graças à sua capacidade de esquecimento que o homem ch g c qu u u ‘ ’ no grau que acabamos de indicar. Se não quiser se contentar com a verdade na forma de tautologia, isto é, contentar-se com invólucros vazios, vai trocar eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? A representação sonora de uma excitação nervosa nos fonemas. Mas concluir de uma excitação nervosa para uma causa exterior a 565 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento nós já é o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio de razão. O tipo de investigação que inicialmente consideramos relevante é descrito em um enunciado de Foucault sobre sua própria empresa, encontrado no livro Arqueologia do Saber, quando f : “Nã fundar, de direito, uma teoria [...] mas sim, no momento, de estabelecer u b ” (FOUCAULT, 2009, p. 129-130). Com isso, situamos nossa proposta não como um trabalho de fundação de uma disciplina, mas de uma proposta de investigação não acabada e passível de mudanças. Nesse livro, o autor propõe como instrumento de análise o discurso considerado em sua unidade formadora: o enunciado, o qual se caracteriza pela sua posição com um sujeito específico. D u c , “ ã c çõ autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo o í u u uj ” (FOU ULT, 2009, 107 108). À diferença da proposição (a qual é campo da lógica) e da frase (campo da gramática), o enunciado encontra-se em um lugar definido e que extrapola esses ou outros sistemas. Contudo, o enunciado é irrepetível: ao se tomar o enunciado para a análise, já lhe estará colocando em uma nova posição e configurando um novo enunciado, não importa que se mantenha seu texto ou seu autor, o que é coerente com a posição do autor sobre falar de sua própria obra, conforme entrevista de 1971, disponível em Foucault (2006b, p. 32): Seja como for, não falo de minha obra pela excelente razão de não me sentir portador de uma obra virtual. Procurei dizer o que tinha 566 ANAIS - 2013 vontade de dizer, há um certo número de anos. Isso feito, isso existe ou não existe, é lido ou não, devo dizer que não é tanto na direção do que fiz que olho agora. Mas se o senhor me perguntar em qual direção olho agora, eu lhe direi que não é tanto do lado das coisas a escrever. Há o problema que há muito tempo me interessa, é o do sistema prisional [...]. Esse trecho retirado de entrevista, a nosso ver, estabelece a fronteira entre a arqueologia e a genealogia de Foucault, pois o autor demarca a mudança de ponto de análise das suas obras. Menos uma continuidade de suas obras do que a mudança do seu campo de análise, do discurso (arqueologia) para o sistema prisional, período durante o qual, o autor passa a intitular a sua produção como genealógica. 1.Entre a arqueologia e a genealogia: as pesquisas feitas por Foucault Na entrevista supracitada, intitulada Um problema que me interessa há muito tempo é o do sistema penal, o autor fala da mudança de sua atividade de pesquisador. Julgamos relevante referir este texto para expor um panorama um tanto quanto didático sobre como as pesquisas foucaultianas utilizam os discursos: não há como digitar tabelas, escrever descrições, diários de campo ou delimitar hipóteses apesar de toda e qualquer teoria. Não trataremos os elementos do trabalho científico como estruturas a ser impostas à forma do trabalho, mas como elementos que podem ser pensados, para decidir a forma de incluí-los. 567 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Essa entrevista nos possibilita um olhar sobre o trabalho que ora tentamos pôr em movimento: no texto em questão, o autor afirma estar interessado no sistema prisional, mas nega estar escrevendo alguma obra sobre seu envolvimento com as prisões. O autor comenta que posterior a sua escrita da História da Loucura (obra que fora recebida com desconfiança pelos médicos, por seu autor não ser um deles), um movimento surgido na Itália chamado antipsiquiatria teria tomado seu livro como justificativa de uma crítica epistemológica à medicina. Tal apropriação do livro foucaultiano por esse grupo italiano demonstra que um enunciado, mesmo quando mantém sua escrita, muda seu uso: [...] e eis que esse livro histórico [sua História da loucura] está em via de ter uma espécie de resultado prático. Digamos então que estou um pouco ciumento, e que agora eu gostaria muito de fazer as coisas eu mesmo. Em vez de escrever um livro sobre a história da justiça que seria, em seguida, tomado por pessoas que poriam praticamente em questão a prática da justiça, eu gostaria de começar por recolocar em questão a prática da justiça, depois, palavra de honra!, se eu ainda estiver vivo, e se não tiver sido posto na prisão, pois bem, escreverei o livro (FOUCAULT, 2006b, p. 36). Com isso, essa mudança de foco pode ser vista de várias formas. Uma delas é aproximar à Genealogia da moral de Nietzsche, posto que na medida que foi se ocupando de um novo grupo de objetos nessa sua investigação, foi passando a usar 568 ANAIS - 2013 “g g ” qu “ qu g ” ferir ao seu tipo de investigação. Contudo, sem romper com a arqueologia, o que se poderia inferir com base na citação retirada da Arqueologia do saber (FOUCAULT, 2009, p. 156157) Ora, a descrição arqueológica é precisamente [...] tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram. [...] A arqueologia busca definir [...] os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras [...]. Não se trata de uma disciplina : ã bu c u “ u cu ” culto. Recusa-se a ser alegórica. Recorrendo a trechos desse livro, podemos propor um conjunto de elementos textuais para abordar essa aproximação entre arqueologia e genealogia que não é apenas lógica do conhecimento do ponto de vista de seu objeto, mas também de seu sujeito. Em outras palavras, a tentativa de fazer história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram, pode ser compreendida, se recorrermos aos últimos textos de Foucault (2010c, 2011), menos como uma produção de conhecimento visando outra abordagem do objeto tendo como critério de verdade a precisão (tal qual fez a medicina com a loucura), mas mais outra disposição do interessado na verdade do ponto de vista dos cínicos. Diferente da verdade científica que se ampara em métodos estabelecidos e firmados em nome de uma neutralidade e exclusão da participação do cientista na produção das suas verdades, indefinidamente repetíveis. Mas sim amparada na coragem, na vinculação com o conteúdo do que se diz, diferente do discurso que seduz seu interlocutor, 569 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento selecionando as palavras na medida em que elas os coloquem em uma posição cômoda em relação àquele que fala (FOUCAULT, 2011). Isso se diferencia daquela proposta da transmissão do conhecimento por parte do cientista que se exclui do processo: a técnica que independe do sujeito pode ser compreendida como condição externa de possibilidade para esse moderno uso do conhecimento universalmente aplicável, modelo que recorre à mathesis, ou que seus efeitos precisam ser independentes do sujeito que o coloca em movimento. A referência ao último ano de cursos de Foucault (2011), publicados sob o título A coragem da verdade, justifica-se para mostrar do interesse do autor em pesquisar sobre o problema do sujeito, que já se encontra em suas preocupações, de certa forma, antes da década de 80 (e porque não dizer já no início de sua obra), na qual ele passa a estudar mais explicitadamente. Por exemplo, a análise arqueológica considera o sujeito não como uma consciência que f ,u c u c ê c , c “u çã que pode ser ocupada, sob certas condições, por indivíduos f ” (FOU ULT, 2009) T u u u concepções de sujeito ao longo de sua obra? b b qu F uc u ã b h c “c c ” no sentido fechado e imutável, posto que ele problematiza a partir de noções empíricas e historicamente performadas, em relação às racionalidades da época, e não com definições, as quais são insuficientes para apreender aquilo que falam em seu devir. É fíc f c c “ uj ” F uc u especialmente porque o sujeito, em seu pensamento, tem um papel central, mas não o de um objeto central. Não explicável, mas produtor, uma presença controlada, mas imprevisível. 570 ANAIS - 2013 2 Onde fica o sujeito em séculos de produção de conhecimento sobre o objeto? O conhecimento centrado quase que exclusivamente no objeto, que recebe de Nietzsche a acusação do velho costume de pensar de maneira essencialmente a-histórica, tem precursores na Grécia antiga, mas que já sofreu deslocamentos importantes, mas persiste até hoje (FOUCAULT, 2010c). O autor então recorre aos períodos nos quais a humanidade não se envergonhava de sua crueldade. O humanismo moderno, criticado por Nietzsche e também por Foucault, ao ser analisado em sua historicidade – “Qu h qu gu há fu ‘c b ’!” (NIETZ HE, 2009, P 47) – se revela como um artifício, ou nasce de uma série de processos históricos. Poderíamos pensar as prisões como um território que atualmente esse tipo de crueldade, banida já há milênios, persiste? Recentemente se tornaram restritoras de liberdade e mecanismos de controle de indivíduos que se quer retirar da sociedade e, posteriormente, ressocializar. Esta última função atribuída (a ressocialização) é ao mesmo tempo a mais apreciada e a mais desacreditada de ser possível de ser produzida nesse espaço precário. Em alguns momentos históricos, a estrutura física arquitetônica das prisões foi usada de forma a incentivar visitantes para educá-los a evitar práticas transgressoras sob o risco de serem postos naquela situação que, por essa mesma razão pedagógica, convinha ser mantida precarizada (FOUCAULT, 2010a). Em outros momentos, a estrutura física (construída para uma finalidade, uma funcionalidade que, reconheçamos, não tardou para se perder) foi utilizada para ocultar, fazer esquecer esses indivíduos infames (FOUCAULT, 571 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento 2010a). Sobre a finalidade do castigo, encontramos em Nietzsche (2009, p. 60-61) algumas palavras sobre o assunto: De modo ingênuo, como sempre -: descobrem no castigo uma "finalidade" qualquer, por exemplo a vingança, ou a intimidação, colocam despreocupadamente essa finalidade no começo, como causafiendi [causa da origem] do castigo, e - é tudo. Mas a "finalidade no direito" é a última coisa a se empregar na história da gênese do direito: [...]; de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformado e redirecionado para urna nova utilidade, por um poder que lhe é superior; de que todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é urna nova interpretação, um ajuste, no qual o "sentido" e a "finalidade" anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados (NIETZSCHE, 1887/2009, p. 60). Nesse aspecto, colocando os dois autores lado a lado, pode-se ver uma postura crítica, pelo recurso da história, à atividade atribuidora de sentido. Contudo, não se trata de uma crítica epistemológica no sentido de denúncia de uma imprecisão de suas proposições. Não se trata de acusar, nesses procedimentos filosófico-científicos, em nome de um relativismo, a falsidade dos discursos. Segundo Veyne (2011), embora as verdades sejam provisórias e o dizer-verdadeiro seja condicionado ao momento histórico e posição de seu proferidor, 572 ANAIS - 2013 as verdades não deixam de produzir e ser produzidos por múltiplas coerções e, antes de se poder dizer que elas não x , qu f é qu “ x ” Portanto, podemos considerar o formato do presídio como um dispositivo, uma inscrição cuja funcionalidade ideal e originalmente pensada não importa. O que importa é que sua materialidade serve à orientação de procedimento dada por Foucault (2006a, p. 53): “a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e f x u f ” Df mente de um determinismo, a materialidade da prisão é considerada como condição externa de possibilidade para os discursos e práticas que envolvam toda tecnologia disciplinar. Foucaultexplica o princípio da exterioridade do procedimento investigativo no livro A ordem do discurso, no qual o autor se refere a seu tipo de investigação como genealogia, e não mais arqueologia, ainda que analise “ cu ” Qu c u u referenciais sobre ao trato das materialidades, podemos encontrar uma continuidade entre a genealogia e a arqueologia. O autor, antes de chamar seu trabalho de genealogia, ao estudar o enunciado, propõe que ele é formado por, entre outros elementos, uma materialidade compreendida não apenas como a “ ub â c u u cu çã , u status, regras de c çã , b u u u z çã ” (FOUCAULT, 2009, p. 130). Mais de uma década depois, encontra-se em uma de suas publicações, o uso dos termos “ qu g ” “g g ” ju autor dá um novo enfoque à pesquisa da subjetivação: 573 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento [...] analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não as sociedades, nem suas ‘ g ’, problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as as práticas a partir das quais essas problematizações se formam. A dimensão arqueológica da análise permite analisar as próprias formas da problematização; a dimensão genealógica, sua formação a partir das práticas e de suas modificações (FOUCAULT, 2007b, p. 15). Pensamos que essa aproximação entre textos de diferentes períodos da obra do autor e a Genealogia da moral de Nietzsche se faz importante para tratar “ çã ” b de Foucault entre a análise de discurso e a análise das relações de poder. A partir da citação supracitada, vê-se que o autor não abandona a questão do discurso, presente na forma das problematizações. E junto ao discurso, encontramos presentes em seu pensamento as outras noções que o autor utiliza, como os dispositivos, as práticas e suas modificações, que são operadas pelos sujeitos. Esses sujeitos que não são gerais desde o princípio, são tornados gerais para que os homens possam dispor do controle dos efeitos das condutas de outros homens, com os quais exercem relações. Mas quanta coisa isso não pressupõe! Para poder dispor de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios 574 ANAIS - 2013 para o fim, a calcular, contar, confiar, - para isso, quanto não precisou tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir! Esta é a longa história da origem da responsabilidade. A tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas, já percebemos, traz consigo, como condição e preparação, a tarefa mais imediata de tornar o homem até certo ponto confiável (NIETZSCHE, 2009, p. 44). Na sequência deste artigo, seguiremos, nos utilizando das obras do período de transição de Foucault, para marcar os seguintes c í “ á cu á çõ ”: ã , uj , g g , o aumento da proximidade com Nietzsche, para além da história e da linguagem. 3. Mecanismos de produção de sujeitos docilizados A prisão, em sua materialidade, foi apropriada de diferentes formas. Quando inseriram-se no sistema prisional ciências para previsão de condutas, os arquivos de tempos anteriores passaram a ter um uso de dados laboratoriais como indicadores de eficácia de certos procedimentos em produzir certos estados ou condutas, da forma que o compreendiam. Mas antes disso, o mais frequente tratamento desses arquivos era o esquecimento, os quais passavam pela ocultação de enunciados – operado dentro das paredes das prisões. Ocultava-se todo enunciado desses sujeitos, amparando-se em uma racionalidade 575 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento de não permitir o exemplo da revolta ser alvo possível da curiosidade de sujeitos considerados participantes de camadas populacionais que representam perigo social. E a criminalidade não só tem, historicamente, uma relação muito próxima com a pobreza, como o sistema punitivo serviu para produzir uma nova forma de crime: os grandes bandos de malfeitores foram combatidos por dispositivos de segurança, os quais foram eficazes em produzir criminosos mais desarticulados, contentando-se com operações mais furtivas, menos demonstração de força e menores riscos de massacres, para passar despercebidos. Desaparece a criminalidade de massa, de classe social oprimida, e cede lugar ao criminoso marginal (FOUCAULT, 2010a). Voltando um pouco na trajetória histórica feita por Foucault (2010a) para abordar a posição do criminoso que por vezes aparecia como representante da classe social oprimida à época dos suplícios, a fim de servir de provas póstumas à justiça soberana, ligada à lei do rei, e para produzir no povo o medo, circulavam os folhetins sobre a história desse criminoso pecador. Perceba a ausência aqui, nesse período anterior, da ocultação e do uso científico de conhecimento da conduta para regulá-la. Se essas leituras faziam parte das classes populares, era por função da resistência do povo. Sua curiosidade era o contraponto, o outro lado da moeda para viabilizar essas leituras, pois não basta o texto ser escrito para circular. Na sequência surge uma literatura na qual o crime foi abordado sob formas aceitáveis, como notáveis obras de seres de exceção. Os folhetins sumiram, posteriormente, cedendo lugar à literatura policial: O homem do povo agora é simples demais para ser protagonista das verdades sutis. Nesse novo gênero, não há mais heróis 576 ANAIS - 2013 populares nem grandes execuções; os criminosos são maus, mas inteligentes; [...] São os jornais que trarão à luz nas colunas dos crimes e ocorrências diárias a mornidão sem epopeia dos delitos e punições (FOUCAULT, 2010a, p. 67). De forma semelhante a Foucault, ao inserir o delinquente em sua gênese histórica, desbiologiciza-o, Nietzsche (2009) desnaturaliza o esquecimento como uma força natural e o situa como guardião da ordem psíquica, da paz, sem o qual não é possível haver felicidade, esperança. Nietzsche então possibilita, assim como Foucault, não propriamente fazer crítica do conhecimento do objeto, lógico (FOUCAULT, 1969/2009), produzido de forma a independer do sujeito que o profira. O que os dois autores possibilitam é recuperar os homens da monotonia que foram colocados no modelo do panóptico e da governamentalidade, reconvocando-os para a luta na qual hoje ocupam uma posição tornada natural, e não natural por essência, posto que pode ser alterada cotidianamente, ou mesmo em uma revolução. 4. Poder e Resistência É nessa hora, que cabe a reflexão do que o autor entende “ ” mos o espaço do sujeito em suas relações. Iniciaremos pela instância do discurso da sociedade disciplinar que para Foucault pode ser representado por todo um espaço de controle, em que não há um espaço único de çã u “P ”, â c c posições ocupadas por sujeitos nesse social que o constitui e por ele é constituído. Esses sujeitos, segundo Foucault (2010b), não serão considerados reprodutores fieis dos códigos, posto que, 577 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento tem também um papel reativo frente às estruturas que os normatizam e governam sua conduta. Nisso consiste a resistência: os sujeitos representam papéis num jogo de poder, mas têm sempre a possibilidade de serem livres, ou segundo Foucault (1984, p.5): [...] o que quero dizer quando falo de relações de poder é que estamos, uns em relação aos outros, em uma situação estratégica. [...] Acontece que estamos sempre de acordo com a situação. O que quero dizer é que temos a possibilidade de mudar a situação, que esta possibilidade existe sempre. Não podemos nos colocar fora da situação, em nenhum lugar estamos livres de toda relação de poder. Eu não quis dizer que somos sempre presos, pelo contrário, que somos sempre livres. Enfim, em poucas palavras, há sempre possibilidades de mudar as coisas. [...] Veja que se não há resistência, não há relações de poder. Porque tudo seria simplesmente uma questão de obediência. A partir do momento que o indivíduo está em uma situação de não fazer o que quer, ele deve utilizar as relações de poder. A mudança histórica entre experiências dependem da resistência do sujeito. A ciência só passa a ter controle quando os sujeitos são tornados objetos de uma explicação, por exemplo, funcionalista. A resistência, contudo, nesse tipo de ciência é o furo da funcionalidade, sobretudo porque os sujeitos constroem as instituições a todo tempo e não reproduzem garantidamente a partir de uma certa data e de uma vez por 578 ANAIS - 2013 todas uma única figura, a qual possa sempre ser acessada como representativa de todo e cada sujeito. Os discursos, contudo, além de não se referir aos sujeitos levando em conta sua proveniência, ainda se referem a noções de homem que não são equivalentes, nunca uma reprodução infinita. Quando se considera que esse processo não é neutramente acessível por experimentos repetíveis nos apropriados lugares ascéticos, mas um sujeito que irá fazer algo com essas descrições que lhes impõem, e não apenas dizer-lhes sim. 5. Michel Foucault, por uma filosofia do sujeito. O sujeito, nesse espaço marcado por Foucault, sai da condição centralizadora e passa a ser um cidadão participativo, identificando, em setores da sociedade nos quais se envolve diretamente, possibilidades de inserção que dependa de sua convicção e que não seja meramente controlada em sua vertente uj “ c c ”, g , u , do, incerto de si. Essa possibilidade Foucault (2010c) propõe ao nos lembrar que uma democracia, sem a convicção pessoal com aquilo que cada cidadão propõe como o que acredita e se posiciona como aquilo que deve ser feito, traz uma igualdade de direitos que transforma o povo em massa, em caos de gritos de fúria egoística. A partir da igualdade, deve-se ser possível que a virtude do cidadão seja um diferencial. Deve-se considerar que o consenso é posterior e não presumido como previamente. Em nome de um discu “ c ”, não se deve deixar de ouvir as falas dos sujeitos individuais. Os sujeitos não têm um mesmo discurso, nenhum enunciado se repete, vê-se aí um poder que parte dos sujeitos e não de uma instância reguladora ou centralizada na mão de um único Soberano. Confiar nos sujeitos como cidadãos, implica em ouvi-los em sua fala 579 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento empírica e ver nesses saberes possibilidades muitas vezes mais frutíferas que as das políticas de cima para baixo, especialmente quando se supõe (ou pior, nem cogita sobre) os sujeitos como uma massa uniformemente de acordo com o status quo, salvo aqueles poucos inadequados que serão, nesse sistema, neutralizados. É nesse aspecto que a filosofia tem um novo papel, se incluindo em uma nova funcionalidade. Ao final de sua obra, Foucault volta-se a textos gregos clássicos para pensar uma atuação ético-política do sujeito. Esse é um tema que se poderia recorrer para resgatar a autonomia do sujeito e recolocá-lo em um plano de autoconstituição. Não uma garantia de emancipação de todo e qualquer dispositivo controlador de sua conduta, mas, nas frestas desse sistema coercitivo, encontrar saídas para a criação e a liberdade, como possibilidade estética de transgredir – mais que transcender, portanto – as determinações científicas impositoras de consensos dos quais não se pode escapar sem quebrar ou burlar as regras de conduta, de certa forma. Foucault (2010c) aborda, a partir de uma carta de Platão, a questão do real para a filosofia, o qual não poderia ser apenas a razão, mas a razão comprometida com a possibilidade de se instaurar, politicamente, a cidade real, a cidade da filosofia. Nessa carta, Platão soubera que deveria retornar a Siracusa para libertar Dion da prisão que fora colocado. Portanto, se ele não fosse em socorro do amigo, e ainda com a possibilidade de instaurar a cidade de suas pregações, seria só logos, o qual, para ele, não bastaria para constituir o real da filosofia. Portanto, se distancia da atual noção de natureza humana, à qual as ciências do homem recorrem para nele descobrir propriedades para fundamentar sua previsibilidade, seu controle, ampliando o domínio sobre seu corpo. Trata-se, 580 ANAIS - 2013 então, não de encontrar esse ponto de segurança, de previsibilidade no homem, mas de promover um desenvolvimento estético, o qual envolveria um trabalho sobre si, uma estetização da vida, em uma virtude não garantida, mas como o resultado do trabalho de uma vida sobre si mesma. [...] filosofia que não deve ser simplesmente máthesis mas também áskesis. Se é verdade que a filosofia não é simplesmente aprendizado de um conhecimento, mas deve ser também um modo de vida, uma maneira de ser, certa relação prática consigo mesmo pela qual você se elabora a si mesmo e trabalha sobre si mesmo, se é verdade que a filosofia deve portanto ser áskesis (ascese), assim também o filósofo, quando tem de abordar não somente o problema de si mesmo mas também o da cidade, não pode se contentar com ser simplesmente logos, com ser simplesmente aquele que diz a verdade, mas deve ser aquele que participa, que põe mãos ao érgon (FOUCAULT, 1983/2010c, p. 200-201). Essa virtude não é algo natural, mas produzido em uma prática ética, pautada por uma filosofia que restitui ao sujeito sua função criadora de sua autoconstituição. Portanto, segundo Foucault (2007a), embora o homem tenha se tornado objeto das ciências da linguagem, da vida e da economia; embora as propriedades e tendências naturais tenham sido explicadas cientificamente; se considerarmos o homem como sujeito produtor de sua própria forma de vida, e não apenas determinado por processos em posse de certas ciências do homem, o sujeito extrapola qualquer descrição de sua 581 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento subjetividade que o retire de seu devir e o encaixe em um recorte da realidade ao qual se referem as ciências para descobrir regularidades que permitam exercer certos tipos de relação de poder. Dessa forma, a possibilidade do sujeito se autoconstituir ou se autorregular longe das determinações objetivadoras da ciência moderna, é viabilizada por esse resgate que o Foucault faz da filosofia para dar ao sujeito sua posição, mas agora enquanto sujeito de fato, constituinte, e não mais como objeto controlado, constituído. Conclusão Partimos de movimentos realizados por Foucault os quais apresentamos aqui como o texto Genealogia da moral de Nietzsche, a entrevistas cedidas por Foucault falando do papel da resistência nas relações de poder e da prisão como foco de problematizações que lhe possibilitam um novo campo de investigações. Esses textos aportaram elementos que nos permitiram lançar um olhar sobre esse espaço um pouco obscuro em sua obra entre a arqueologia (tradicionalmente situada como forma de análise de discurso) e a genealogia (como forma de análise das relações de poder). Nossa compilação e reflexão possibilitaram propor continuidades e descontinuidades em sua obra. Entre as continuidades encontramos a presença do discurso que não foi abandonado ou trocado, perdendo apenas a prioridade durante o período genealógico, e sendo inclusive recurso que voltou a ser frisado ao analisar as problematizações dos textos gregos clássicos no final de sua vida. Inclusive, o papel do sujeito, que passa a aparecer de forma central em suas problematizações na década de 1980 até sua morte, não estava excluído em seus 582 ANAIS - 2013 textos anteriores. Quando Foucault (2007) é acusado de matar o homem ou curto-circuitar a possibilidade de assumi-lo como uma unidade e de como soberano na possibilidade de mudar o discurso (FOUCAULT, 2009). Mesmo nesses textos, o que Foucault faz poderia ser melhor descrito como um resgate da possibilidade de o sujeito transgredir as determinações que se lhe impõem. Entre as descontinuidades, situamos o deslocamento dos campos de análise com os quais Foucault passa a se ocupar, entre eles: o discurso científico, as prisões, a filosofia grega clássica, a sexualidade. Cada um desses campos exigiu do autor uma postura diferente em suas análises, culminando inclusive na promoção de desconstruções. Não que os objetos determinem a apreciação que os pesquisadores terão deles a fim de se chegar a respostas definitivas, mas que esses objetos sejam considerados condição de possibilidade para certos discursos. Como Foucault sempre trabalhou com a multiplicidade, por vezes incoerente, das falas sobre os objetos com os quais se ocupou, e não com a realidade por trás dessas falas, seu tipo de investigação nunca se propôs a situar o sujeito em uma posição que permita um único campo de análise, mas justamente investigar lugares de onde diversas linhas discursivas puderam sair e dar o formato de uma obra de arte abstrata. Referências FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. [trad. Luiz Felipe Baeta Neves]. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. ______. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: curso no Col1ège de France (1983-1984) / Michel Foucault; 583 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. ______. A Ordem do discurso. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2006a. ______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007a. ______. Ditos e Escritos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006b. ______. História da sexualidade I: a vontade de saber. 20. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2010b. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007b. ______. O Governo de si e dos outros: curso no Col1ège de France (1982-1983) / Michel Foucault; tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010c. ______. Sex, Power and the Politics of Identity; entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, p. 26-30 e 58. Disponível em: <http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/sexo.pdf> Acesso em: 14 fev. 2012. ______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 38 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010a. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das letras, 2009. ______. . O Livro do Filósofo. São Paulo: Escala, 2007. 584 ANAIS - 2013 Gêneros digitais no ensino de linguagens: a interdiscursividade nas charges digitais de Maurício Ricardo e nas notícias políticas do blog Radar on-line Katia Resende de Assis MACHADO1 Silvane Aparecida de FREITAS2 RESUMO: Partindo dos pressupostos teóricos da AD de linha francesa e do sócio-interacionismo bakhtiniano, temos como objetivo principal, neste artigo, analisar os gêneros digitais - charges digitais de Maurício Ricardo e notícias políticas do blog Radar on-line -, a fim de evidenciar suas características idiossincráticas e particularidades que os tornam atrativos e estimulantes para o ensino. Partimos do pressuposto de que a produção de sentidos desses gêneros, em sala de aula, contribui para a ampliação da competência discursiva de nossos alunos e ameniza a artificialidade que, muitas vezes, corrompe as aulas de língua-materna. A análise desses gêneros digitais mostrou-se muito produtiva, pois propiciou a possibilidade de relacionar as características de um gênero com outro que veicula a mesma temática. Pudemos constatar a interdiscursividade, ou seja, um intercalar de vozes dialogando entre esses gêneros e evidenciar que a mídia consegue direcionar os sentidos e transmitir uma imagem totalmente negativa dos políticos. 1 Mestranda no Programa de Pós-graduação Stricto sensu em Letras da UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade de Campo Grande e Especialista em Letras – Área de Concentração Linguística e Ensino – Pós Graduação Lato sensu (2005). E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Letras (2002) - UNESP/Assis (2002); Pós-doutora em Linguística Aplicada (2008) - IEL/UNICAMP; docente do Mestrado em Letras e Mestrado em Educação da UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul; líder do grupo de pesquisa Linguística e Ensino. E-mail: [email protected]; [email protected]. 585 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento PALAVRAS-CHAVE: Gêneros discursivos; Gêneros digitais; Linguagens; Ensino. Introdução Atualmente, vivemos numa sociedade altamente conectada. As inovações tecnológicas têm aumentado consideravelmente, e, consequentemente, os gêneros do discurso têm se disseminado e levado as pessoas a interagirem mais, repassando conhecimentos, ideias, crenças e convicções. A internet se destaca como um grande instrumento tecnológico na difusão de novos gêneros, fator que pode ser explicado pela comodidade e agilidade que a mídia virtual disponibiliza aos seus diversos usuários. As novas tecnologias têm invadido as nossas vidas nos últimos tempos. Em todas as áreas de nossa vida em sociedade, o avanço tecnológico tem explodido e é impossível fugir dessa realidade, especialmente, na escola, que é uma instituição formadora de cidadãos que atuam e atuarão em nossa sociedade. É difícil olhar para um grupo de jovens e adolescentes de nossa época e não observar entre eles equipamentos tecnológicos, como celulares, tablets e computadores que veiculam, de maneira extremamente rápida, uma diversidade de novos gêneros. Essas tecnologias se tornam cada vez mais comuns nas mãos da maioria de nossos alunos de quase todas as classes sociais. O estudo dos gêneros do discurso e, consequentemente, dos gêneros digitais tem se disseminado em grande proporção nos estudos linguísticos atuais e sua importância tem se destacado, sobretudo, porque operam como forma de ação social. Sendo assim, podemos afirmar que os gêneros 586 ANAIS - 2013 discursivos são operadores de transformação social por meio dos valores que por eles são propagados. Estamos cientes de que os gêneros do discurso são inúmeros, quase ilimitados, já que a língua é dinâmica e, à medida que a tecnologia vai se desenvolvendo, os costumes e valores vão se modificando, novos gêneros discursivos vamos (re)criando. Por isso, a necessidade veemente de explorarmos os gêneros discursivos mais circulados no momento. 1. A linguagem como interação social e o ensino Atualmente, há uma grande preocupação em trabalhar a(s) linguagem(ns) nas diversas situações comunicativas em que nossos alunos estão inseridos. Preferimos utilizar o termo linguagens (no plural) pelo fato de que temos de considerar não somente a linguagem verbal, mas também a não-verbal (imagens, sons, movimentos, gestos, entonação etc.), é necessário aliar o linguístico ao não-linguístico, para, assim, produzir os sentidos dos diversos textos circulados socialmente, principalmente, os divulgados nessa era globalizada e digital em que vivemos. A teoria bakhtiniana evidencia a língua como um produto histórico, cultural e social, apresentando a interação verbal como mola propulsora para a observação e análise do funcionamento da linguagem. Trazendo à tona a linguagem com essas especificidades, ressaltamos a articulação entre o linguístico e o social, buscando sempre relações entre a ideologia e a linguagem. Há um ponto fundamental que resume o pensamento b kh : “ çã verbal constitui a realidade fu í gu ”(B KHTIN, 1986, 123) N perspectiva, é salutar mencionar que o diálogo constitui uma das 587 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento formas mais importantes da interação verbal, por isso a teoria de Bakhtin e seus seguidores sobre a linguagem e seu funcionamento é conhecida como sócio-interacionismo bakhtiniano. Sabemos que, para ele, a palavra é o signo ideológico por excelência; além de ser o resultado da interação social, caracteriza-se por seu caráter múltiplo de sentidos. A palavra retrata a realidade de diversas formas, sendo assim, facilita a manifestação da ideologia. São as várias vozes, os diversos pontos de vista que se refletem nas palavras, tornando-as tão ricas e polivalentes. A palavra ainda pode ser considerada dialógica por natureza, pois nela travam-se lutas de vozes que ecoam e querem ser ouvidas, respondidas, refutadas, confirmadas, enfim, emanam dos outros que nos constituem enquanto sujeitos. Partindo desses pressupostos, a linguagem deve ser encarada como lugar em que a ideologia, a história, a sociedade, o poder, a cultura, de um modo geral, e, conjuntamente, materializam-se na instância que denominamos discurso. Olhando por essa perspectiva e pensando no estudo do funcionamento das linguagens, Brandão (1995, p.12) argumenta que [...] a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. [...] Como elemento de mediação necessária entre o homem e sua realidade e como forma de engajá-lo na própria realidade, a linguagem é o lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora 588 ANAIS - 2013 da sociedade uma vez que os processos que a constituem são histórico-sociais. Seu estudo não pode estar desvinculado das condições de produção. Com relação à realidade do contexto escolar, sabemos que a linguagem é essencial no desenvolvimento intelectual de qualquer indivíduo. Nesse sentido, é interessante mencionar que [...] a linguagem é condição sine qua non na apreensão e formação de conceitos que permitem aos sujeitos compreender o mundo e nele agir; ela ainda é a mais usual forma de encontro, desencontro e confronto de posições porque é através dela que estas posições se tornam públicas. Por isso é crucial dar à linguagem o relevo que de fato tem [...]. (GERALDI, 2010, p. 34). 2. Os gêneros digitais no ensino de linguagens A necessidade de estudar a linguagem em funcionamento nas diversas situações comunicativas de nosso cotidiano tem sido o alvo dos estudos linguísticos e tem levado à verificação de uma diversidade de gêneros discursivos, bem como suas propriedades e características. Os gêneros do discurso não se definem pelos aspectos formais, estruturais ou linguísticos, mas sim, pelos seus aspectos funcionais, sociais e comunicativos. Segundo Marcuschi (2002, p. 25), “ gê ã ã f , c u c ” É ção social que um determinado gênero se torna significativo, é em sua concretização que as diversas formas de se comunicar, de entender, de ser entendido e de significar a realidade são expressas. 589 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Sendo assim, Bakhtin (2010, p. 262) denomina como gêneros do discurso os tipos relativamente estáveis de enunciados elaborados pelos campos de utilização da língua. Apesar de não serem definidos pelos aspectos formais, Bakhtin afirma que há uma certa estabilidade nos enunciados de um mesmo gênero. Ele define os gêneros como relativamente estáveis considerando três elementos essenciais - conteúdo temático, estilo da linguagem e construção composicional - que estão intimamente ligados no todo de cada enunciado e são determinados pela especificidade de cada campo comunicacional. (BAKHTIN, 2010, p. 262). É imensa a importância dos gêneros discursivos, Marcuschi (2002, p.30) os define como “ f cu u c uí h c hu ”, merecem atenção especial no que se refere aos estudos da linguagem em funcionamento. Eles não são criados por uma vontade individual, mas surgem por meio de práticas comunicativas coletivas que se reiteram e atendem a necessidades específicas de comunicação da sociedade no decorrer do tempo. Apesar de existirem tentativas feitas por alguns teóricos, será sempre muito complicado e difícil classificar, categorizar e até mesmo catalogar os gêneros discursivos. Afinal, como f B z (2006, 17 18), “ã qu reconhecem como gêneros a cada momento do tempo, seja pela denominação, institucionalização ou regulamentação, são rotinas sociais de nosso dia-a- ” Com relação à diversidade e importância dos gêneros do discurso, podemos afirmar que são infinitas as suas possibilidades de uso, assim como são infinitas as formas de interação das atividades humanas, em cada campo dessas atividades é riquíssimo o repertório dos gêneros do discurso e 590 ANAIS - 2013 quanto mais se tornam complexos esses campos, mais gêneros se desenvolvem. (BAKHTIN, 2010, p. 262). Diante dessa imensa variedade e riqueza dos gêneros, verificamos que eles refletem a necessidade de comunicação e se adaptam às inovações tecnológicas, em cada situação diferenciada, um gênero é desenvolvido, com o intuito de materializar o discurso adequadamente ao contexto situacional e, consequentemente, difunde a linguagem de geração a geração. Com relação ao ensino, podemos apontar que todas as atividades de linguagem dos aprendizes devem configurar-se em gêneros discursivos ou textuais. No processo ensino/aprendizagem de linguagens, os gêneros discursivos devem ocupar lugar central. Devemos priorizar sua funcionalidade ao invés de enfatizar características e classificações. Conforme Schneuwly, traduzido por Rojo e Cordeiro (2004, p. 27), “ c h gênero se faz em função da definição dos â u çã qu gu çã ” P qu alunos ampliem cada vez mais sua competência discursiva, é de suma importância que tenham contato e produzam sentidos de uma diversidade de gêneros discursivos. Nesse sentido, [...] do ponto de vista do uso e da aprendizagem, o gênero pode, assim, ser considerado um mega-instrumento que fornece um suporte para a atividade nas situações de comunicação e uma referência para os aprendizes [...] não é mais instrumento de comunicação somente, mas, ao mesmo tempo, objeto de ensino/aprendizagem. (DOLZ ; SCHNEUWLY, 999, p. 7). 591 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A produção de sentidos de um gênero estará sempre vinculada ao conhecimento dos fatos, situações sociais, históricas, culturais e ideológicas que seus locutores e interlocutores estão envolvidos. Por isso é necessário compreender o funcionamento de todas as condições de produção de um gênero discursivo. Diante disso, nessa perspectiva de ensino, sobretudo, concordando com Saito (2009, p.197), ao afirmar que “ qu profissionais preocupados com a educação enquanto ação política de intervenção c ”, é x refletirmos sobre a utilização de uma diversidade de gêneros discursivos na sala de aula, para que nossos alunos ampliem suas competências discursivas, utilizando a linguagem de modo efetivo e eficaz, além de propiciar a formação de cidadãos críticos, capazes de intervir agindo e transformando a sociedade em que vivem por meio dos gêneros. 2.1 Os gêneros digitais: notícias “políticas” do blog Radar on-line e as charges digitais de Maurício Ricardo Inicialmente, propomos a análise do gênero digital notícia a qual denominamos notícia política pelo fato de que as selecionadas para esta pesquisa são relacionadas a assuntos políticos, extraídas do blog jornalístico Radar on-line e, em seguida, a análise da charge digital do site www.charges.com.br. Essa sequência se justifica pelo fato de que acreditamos que a notícia de fatos relacionados à política deve ser analisada, primeiramente, colocando em evidência todos seus aspectos linguísticos relevantes à produção de sentidos para que, em seguida, como forma diferenciada de representar o mesmo acontecimento discursivo, seja apresentada a charge digital, para mostrar as diversas formas que uma mesma temática pode ser 592 ANAIS - 2013 trabalhada em sala de aula, com gêneros diferentes e extremamente estimulantes. A utilização da charge digital propõe uma análise de como o discurso pode ser carnavalizado e exposto de uma maneira muito mais dinâmica e humorística. Nosso principal objetivo com a utilização desses dois gêneros em sala de aula é que os alunos tenham uma atitude crítica e reflexiva diante desses textos tão divulgados em nosso mundo altamente interconectado e produzam os efeitos de sentidos que eles possibilitam, bem como identifiquem as visões de mundo que os perpassam. A respeito da temática dos gêneros que serão analisados, é interessante mencionar que [...] o discurso político é, por excelência, o lugar de um jogo de máscaras. Toda palavra pronunciada no campo político deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e não diz. Jamais deve ser tomada ao pé da letra, numa transparência ingênua, mas como resultado de uma estratégia, cujo enunciador nem sempre é soberano. (CHARAUDEAU, 2008, p.8). Trazemos à baila um novo elemento: a mídia, que tem papel fundamental na divulgação desses gêneros e na maneira como manipula a sociedade a produzir alguns sentidos. Vale salientar que, relacionando a política, o discurso e a mídia e u “cu u ácu ” qu b í c c â , qu “ f u bj c u á c ”, g qu [...] numa estranha equação, instaura-se a política como teatro: de um lado, no palco, a 593 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento í u “ ” jogos da política; de outro, na plateia, a passividade espectadora do (e)leitor imerso na imensa rotatividade das mensagens que lhes são dirigidas pelos meios de comunicação [...] a mídia promete representar (interceder em favor de) uma dada coletividade e, ao mesmo tempo, confrontar-se com os agentes políticos. (GREGOLIN, 2003, p. 14). Nessa intensa busca por informações que serão consumidas por seus leitores, a mídia intenta persuadi-los e levar a sociedade a uma assimilação da ideologia que essa instância tão poderosa impõe. Com o intento de mudar esse c á c x , “ c ( )”, f àqu qu é x í , bu c , com esse trabalho, exemplificar como, no ensino de linguagens, um tipo de leitura mais significativa e interpretativa, levando a questionamentos e reflexões, pode evidenciar as linguagens em funcionamento e mostrar aos alunos como elas (as linguagens) podem ser utilizadas a fim de atingir uma vasta quantidade de propósitos nesse jogo de poder em que o discurso político e midiático se instaura. Nesse sentido, acreditamos ser muito íc f çã g (2003, 14) qu “ discurso não serve apenas para comunicar, mas que ele é, a um só tempo, um objeto simbólico e político [...] no sentido de que éu u ” É importante ressaltar que nosso intuito não é caracterizar esses textos como politicamente de direita ou de esquerda, mas que, por intermédio dessas análises por nós apresentadas, possam suscitar outras leituras em sala de aula, tanto pelos professores, como pelos alunos, já que, devido à 594 ANAIS - 2013 opacidade da linguagem, os sentidos a serem produzidos em um texto nunca são prontos e acabados, a cada leitura que fazemos, novos significados podemos construir, novos questionamentos podem surgir. Assim, professor e alunos poderão desempenhar papel de autênticos leitores, agentes ativos de produção de sentidos desses textos. 2.2 Condições de produção dos gêneros digitais e o ensino Antes de iniciar as análises dos gêneros selecionados, consideramos interessante que o professor proponha aos alunos um momento de leitura biográfica dos personagens, ou seja, políticos/governantes que aparecerão nos textos selecionados, a fim de situá-los com relação às condições de produção do discurso de tais gêneros. Essa leitura poderá ser feita por intermédio de biografias e textos disponibilizados na internet, sempre com a mediação do professor. Nessa fase inicial, o professor pode evidenciar que a biografia se constitui num gênero discursivo que nos mostra como os textos evidenciam a visão de mundo do segmento social ao qual está inserido e manipulam as informações. Sendo assim, algumas dessas biografias mostram apenas o lado positivo da personalidade política pesquisada, outras mostram apenas seu lado negativo, outras tentam ser um pouco imparciais, no entanto, todas deixam evidente o posicionamento de quem as elabora e da formação discursiva a que estão inscritos os seus autores. Por esse motivo, é necessário pesquisar várias biografias e textos relacionados a esses políticos para ter uma visão geral da vida da personalidade pesquisada. É de suma importância entender o momento histórico em que eles viveram, o que essas determinações geram no momento de produzir sentidos. 595 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento É preciso propiciar condições para que nossos alunos questionem o conteúdo de suas leituras e relacione-as com a realidade política, econômica, histórica e social a que se inscrevem. Até que ponto as informações repassadas são verídicas? Quais são as impressões ideológicas do chargista ou do jornalista que criam esses gêneros? Enquanto leitores, temos que aceitar tudo que nos é posto ou podemos refletir, questionar e criticar? Esses são alguns questionamentos que devem ser incentivados pelo docente nesse trabalho com os gêneros digitais. Diante disso, é imprescindível dar lugar à contrapalavra do aluno, ao recepcionar esses gêneros, o aluno/leitor deve ter liberdade para expor suas opiniões, concordar, refutar, acrescentar dados etc. Nesse sentido, Bakhtin (2010, p. 271) x õ qu “ c ã f , u c é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o u f ” P , c para essas instabilidades que a leitura e compreensão desses gêneros requerem. O papel do professor é altamente importante na eficácia desse trabalho, deve sempre deixar claro aos a u qu “[ ] que é dito, há sempre o que é dito e o que não o é, um não-dito qu , , bé z” ( H R UDE U, 2008, 8) Nosso objeto de pesquisa – charges digitais e notícias do blog Radar on-line - por se relacionarem diretamente com o discurso político - se constitui num terreno um tanto movediço, cheio de armadilhas e polêmicas. O senso-comum há tempos qu “fu b , í c gã ã cu ”, é um dos ditados mais conhecidos da sabedoria popular. No entanto, acreditamos que retrata uma grande contradição 596 ANAIS - 2013 brasileira, pois esses três assuntos se constituem nos temas mais presentes e relevantes na memória discursiva de nosso povo. Sendo assim, ousamos analisar esses textos, cientes de que muitas leituras divergentes da nossa surgirão e poderão contribuir para o prosseguimento de nosso trabalho. Afinal, para que atendamos à necessidade urgente dos multiletramentos 3, a fim de que o indivíduo seja capaz de compreender as linguagens em todas as suas instâncias de uso, inserimos a instância política, partindo do pressuposto de que uma imensa variedade de gêneros discursivos deve ser utilizada em sala de aula. 2.3 Análise da notícia política do blog Radar on-line O blog Radar on-line é um ambiente digital de autoria de Lauro Jardim e possui espaço para a interação com os leitores por intermédio de postagem de comentários, entre outros recursos que interagem também com as redes sociais tão usadas no momento. Está localizado no site da revista Veja que, apesar de ser um veículo oficial de informação um tanto criticado por alguns estudiosos, é de grande circulação nacional, e por esse motivo um grande formador de opiniões, crenças e valores que poderão ficar cristalizados na memória discursiva da população, durante gerações. Sendo assim, consideramos importante se desconstruir certos sentidos veiculados neste suporte textual. A seguir apresentamos a notícia tal como ela é visualizada no blog: 3 A respeito dos multiletramentos ver: ROJO, R. MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012. 597 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento íc f í c “N b ” f postada no blog Radar on-line no dia 11/11/2011, às 6h 04 min., enquadrase no tópico Congresso, retrata a questão dos políticos que tiveram de deixar seus cargos no governo, e, posteriormente, passaram a utilizar seus conhecimentos adquiridos em suas funções públicas para prestarem consultoria. A palavra “expertise”, utilizada na notícia, expressa muito bem esses conhecimentos partilhados por esses atores políticos. O íu íc z x ã “ b ” Trazemos, a seguir, a definição da palavra limbo, retirada do Dicionário on-line Michaelis (2009): sm (lat limbu) 1 Fímbria, zona. 2 Rebordo exterior. 3 AstrRebordo exterior do disco de um astro. 4 Bot Expansão membranosa que, a partir do pecíolo, constitui a folha. 5 Bot A parte livre e expandida das sépalas e das pétalas. 6 Círculo de bordo graduado. 7 Arco de transferidor, onde são marcados os graus para medida dos ângulos. 8 Teol catól Lugar intermediário 598 ANAIS - 2013 entre o céu e o inferno onde, sem a felicidade celeste, nem as penas infernais, se encontram as almas das crianças que morreram sem batismo e onde permaneceram as almas dos justos, antes da ascensão de Jesus Cristo. 9 Lugar para onde se deita coisa a que não se liga apreço; cadoz. Pôr no limbo: deixar no esquecimento. Partindo da definição 8, referente à teologia católica, os efeitos de sentido desse título estão em conformidade com o que a notícia expressa, pois esses políticos desfrutam dos prazeres financeiros, obtidos, muitas vezes, fora dos padrões de honestidade e moralidade, partindo daquilo que expressa a visão midiática. Entretanto, situam-se numa zona intermediária entre o gozo financeiro e o julgamento das acusações a que estão submetidos. Tendo em vista a diversidade de sentidos que uma x ã u , x ã “ b ”, bé se referir ao projeto de lei que regulamenta os impedimentos posteriores ao exercício dos cargos dos políticos e administrativos do alto escalão do governo, que, em conformidade com a definição 9, pode significar que o referido projeto foi deixado no esquecimento. É interessante mencionar que todos os políticos citados nessa notícia, José Dirceu, Antônio Palloci e Luiz Antônio Pagot, deixaram suas funções públicas acusados de suposta corrupção. Esses três nomes, que repercutiram intensamente na grande mídia brasileira como símbolos da corrupção política, são os protagonistas dessa notícia. No segundo parágrafo da notícia, temos os seguintes z : “P festa já teria acabado há muito tempo se o 599 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento projeto apresentado pelo governo em 27 de outubro de 2006 não tivesse se perdido pelas gavetas da Câmara (onde está ainda h j )” Nesse trech , “f ” b sabemos, as palavras são carregadas de sentidos e, nessa notícia, de acordo com o que a mídia nos expressa, festa nos remete à realidade vivida pelos políticos. Nesse caso específico, àqueles que se beneficiam oferecendo consultorias com informações privilegiadas por meio do contato que tiveram diretamente com a máquina pública. Não é por acaso que essa palavra que significa alegria, regozijo, contentamento, descontração, é inserida nessa notícia. Há toda uma vontade enunciativa do jornalista que se evidencia nessa escolha vocabular. Nesse sentido, Bakhtin (1986, p.122) argumenta que toda enunciação é c g qu “ é óg c u z çã í gu á g à uçã óg c ” Ainda nesse trecho, podemos visualizar a expressão (onde está ainda hoje), colocada entre parênteses no final do enunciado, o que traduz uma crítica ferrenha ao momento político de nosso país. Assim, podemos inferir, por meio dessa observação, que quando o governo propõe um projeto para tentar diminuir os benefícios exagerados dos governantes e ocupantes de altos cargos administrativos do país, o que ocorre é o seu engavetamento por anos e anos. O restante da notícia esclarece sobre os objetivos do referido projeto, postulando impedimentos posteriores ao exercício de cargos do alto escalão do governo, dos que detêm as tão desejadas informações que podem trazer benefícios financeiros não só aos que as detêm como também às empresas que buscam a consultoria deles. É importante destacar que essa notícia teve um feed-back de seus leitores, em sua parte inferior, há a informação de que 33 leitores a curtiram e 29 a tweetaram. Esses procedimentos 600 ANAIS - 2013 interativos referem-se às redes sociais facebook (curtir) e Tweeter (tweetar) e se configuram numa interação autor/texto/leitor, que pode ser constatada na própria visualização desse gênero digital. Há ainda, na visualização inicial do título da notícia, a quantidade de comentários feitos pelos leitores que também deixam suas marcas no blog e a possibilidade de acessá-los por meio do link comentários. Assim, além de podermos verificar na própria notícia a ideologia de seu autor, bem como de seu suporte, podemos, ainda, visualizar nos comentários um panorama de opiniões acerca dessa notícia. Por trazer à tona esse assunto tão comentado publicamente que é a corrupção política, essa notícia trava um diálogo com a charge que será analisada a seguir. Buscaremos evidenciar a questão da interdiscursividade, ou seja, do diálogo estabelecido entre as notícias políticas do blog jornalístico Radar on-line e as charges digitais. 2.4 Análise da charge digital “Conselho de Amigo” Na primeira tela da charge Conselho de amigo, de Maurício Ricardo, disponibilizada no site www.charges.com.br no dia 17/11/2011, há um link denominado sobre a charge, quando o clicamos aparece gu f çã : “E íc é da semana passada: os atrasos nas obras da Copa já vão representar um prejuízo de R$ 750 milhões para os cofres públicos. Claro que a Dilma deve estar preocupada!” E trecho serve para localizar o leitor com relação à temática da charge e a da situação imediata de comunicação que a gera. Apresentamos, a seguir, a transcrição dessa charge, utilizamos a letra D para representar a fala da presidente Dilma 601 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento e a letra Z, para a fala de José Dirceu, mais conhecido como Zé Dirceu: D: Zé Dirceu, procurei você porque você é uma pessoa muito prática e objetiva. Z: Sou mesmo. D: Nós dois lutamos na clandestinidade porque acreditamos que às vezes fazer o que é certo tem um custo alto. Z: Concordo, o que eu posso fazer por você? D: Não tô conseguindo dormir direito, Zé. Os atrasos nas obras da Copa, pra cumprir os prazos teremos que gastar R$ 750 milhões só em hora extra de funcionários. Z: E daí, tem que pagar. D: É isso o que você tem a me dizer? Z: Ué, você não queria uma resposta prática e objetiva? Nós somos o Partido dos Trabalhadores, hora extra é distribuição de riqueza, é mais dinheiro no bolso do operário. 602 ANAIS - 2013 D: Mas o dinheiro não estava previsto, de onde eu tiro a grana? Z: ONGs. D: ONGs? Z: Dilma, bota pilha na Polícia Federal. Duas ou três ONGs dessas que ministro usa pra desviar grana pagam a conta. E você sai por cima, porque tá combatendo a corrupção. D: Zé, você é um gênio, não perdi meu tempo vindo aqui. Obrigada. Z: Obrigada, não. Duzentos mil, companheira. D: O quê? Z: Sou consultor, você não viu a placa lá fora. Você não perdeu seu tempo, eu também não quero perder o meu. D: Companheiro, como você tem coragem? Não acredito que você é tão... Z: Prático e objetivo. Nesse site, além de podermos assistir as charges com som e também ouvi-las evidenciando a voz dos personagens, músicas, além de outros sons para representar outros detalhes, podemos, ainda, visualizá-las com legenda, com a apresentação escrita das falas dos personagens. A charge, que ora analisamos, traz como personagens principais a atual Presidente da República Dilma Roussef e José Dirceu, mais conhecido como Zé Dirceu. Essa charge digital retrata um encontro entre eles, no qual Dilma procura Dirceu para se aconselhar. 603 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Mediante a leitura de algumas biografias e textos digitais pesquisados4, pudemos ver que José Dirceu foi um homem de visibilidade bastante expressiva em nosso cenário político nos últimos tempos. Foi herói de uma geração de militantes políticos, porém, nos últimos dias, tem sido julgado pelo suposto esquema do mensalão. No governo Lula, foi c u “ ” B , c h c como o homem forte da administração federal, capaz de tomar as mais sérias decisões. Por toda essa influência que José Dirceu teve e por sabermos que após sair do governo passou a prestar consultorias é qu ch g c ch g c f D : “Zé, procurei você porque você é uma pessoa muito prática e bj ” E c c f qu é Em seguida, Dilma fala que os dois lutaram na clandestinidade porque acreditavam que, às vezes, fazer o que é c u ç x ã “f z qu é c ” é muito relativa, se remetermos ao que levou os dois a viverem clandestinamente no passado, muitos aprovarão a conduta deles, porém muitos também a reprovarão, vai depender da inscrição ideológica a que pertence o leitor da charge. Nesse trecho, irrompem duas formações discursivas, aquela dos militantes 4 As biografias e textos digitais a que nos referimos podem ser acessados por meio dos seguintes links: <http://educacao.uol.com.br/biografias/josedirceu.jhtm>. Acesso em: 08 out 2012. <http://www.doutrina.linear.nom.br/historia/Hist%F3ria_Quem%20%E9%20 Jos%E9%20Dirceu.htm>. Acesso em: 09 out 2012. <http://noticias.terra.com.br/brasil/crisenogoverno/interna/0,,OI778214EI5297,00.html>. Acesso em: 09 out 2012. <http://exame.abril.com.br/brasil/politica/noticias/entrara-jose-dirceu-para-ahistoria-como-mensaleiro?page=1> Acesso em: 09 out 2012. <http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/jose-dirceu-mostra-que-ainda-mandaem-brasilia>. Acesso em: 09 out 2012. 604 ANAIS - 2013 políticos, em que esses personagens são considerados heróis na luta contra a ditadura militar e outra formação discursiva, a dos conservadores, em que esses mesmos personagens são considerados terroristas, desordeiros, transgressores da lei. Resgatando as condições de produção do discurso, sabemos que Dilma e José Dirceu tiveram seus nomes inscritos na História do país por terem participado de protestos e manifestações sociais lutando contra o regime militar no Brasil. De acordo com o site www.sohistoria.com, a ditadura militar no Brasil iniciou-se com o golpe militar em 1964 e durou até 1985, com a eleição de Tancredo Neves. Foi um período marcado historicamente que se caracterizou na condução do país por militares. Nesse período, predominava a prática da censura, a perseguição política, a supressão de direitos constitucionais, a falta total de democracia e a repressão àqueles que eram contrários a esse regime militar. José Dirceu, naquele período, já exercia papéis de liderança desde os anos escolares. Quando exercia a presidência da União Estadual de Estudantes, em 1968, participou de um conflito no qual ele e mais de mil jovens foram presos. Exilouse em Cuba, onde estudou e fez treinamento em guerrilha. Em 1971, voltou ao Brasil clandestinamente, fez cirurgia plástica para não ser reconhecido e mudou de nome. Após anos, com a anistia em 1979, voltou a Cuba para desfazer a cirurgia plástica e retornou definitivamente para o Brasil. Participou da fundação do PT, foi militante em tempo integral e ocupou cargos relevantes na estrutura partidária. A atual presidente Dilma Roussef5 também se destacou no combate à ditadura militar, atuando na luta armada em 5 Essas informações referentes à vida da presidente Dilma podem ser acessadas nos seguintes links: <http://www.e-biografias.net/dilma_rousseff/> Acesso em: 08 out 2012. 605 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento movimentos revolucionários. Em 1969, vivendo na clandestinidade, Dilma usou vários codinomes para não ser encontrada pelas forças de repressão aos opositores do regime. A charge evidencia a prontidão do personagem Zé Dirceu em atender à Presidente, quando ele pergunta o que pode fazer por ela. Lendo os não ditos da charge, podemos perceber a ganância de Dirceu em prestar um serviço à Presidenta Dilma, uma vez que poderia lhe render altos lucros financeiros. Por sua vez, a personagem Dilma reclama de sua angústia relacionada aos atrasos nas obras da copa, revela que o governo terá que gastar R$ 750 milhões em horas-extras de funcionários. No contexto da charge, esse problema não está deixando-a dormir direito. Salientamos que esse assunto estava altamente em voga nas notícias da época em que essa charge foi divulgada, muitos brasileiros expressaram suas opiniões evidenciando que nosso país não teria condições de sediar uma copa, são diversas as vozes brasileiras que aqui ecoam. Nesse sentido, podemos verificar a interdiscursividade presente na charge, pois ela retoma outros textos circulados concomitantemente a ela, inclusive a notícia política extraída do blog Radar on-line que analisamos anteriormente. Um discurso nunca é autônomo, pois como ele se remete sempre a outros discursos, suas condições de possibilidades semânticas se concretizam num espaço de trocas, mas jamais enquanto identidade fechada. O discurso não nasce nele mesmo. O interdiscurso, gu c (2007, 9), “ ã diversas vozes, provenientes de textos, de experiências, enfim, do outro, que se entrelaçam numa rede em que os fios se c c ” N c , fc <http://educacao.uol.com.br/biografias/dilma-rousseff.jhtm> Acesso em: 08 out 2012. <http://www2.planalto.gov.br/presidenta/biografia> Acesso em: 08 out 2012. 606 ANAIS - 2013 que, nas situações reais de funcionamento da linguagem, há um intercalar de discursos, formando, dessa forma, uma troca discursiva que ocorre quando um discurso é relacionado com outros ou quando as formações discursivas se relacionam interdiscursivamente. É essa realidade interdiscursiva que verificamos nesses dois gêneros que aqui analisamos. Retomando a análise da charge, diante da reclamação de Dilma de que o governo teria que pagar R$ 750 milhões em horas-extras, Zé Dirceu é categórico em afirmar que o governo tem que pagar. Dilma questiona com semblante decepcionado: “É qu cê z ?” N ch , u que esperava outro conselho dele. Então, Zé Dirceu começa a justificar sua resposta trazendo à tona a ideologia do partido a que pertencem – o PT, evidenciando, assim, que o pagamento de horas-extras deve ser considerado distribuição de riquezas, e esse é um dos lemas desse partido político. Ressaltamos que entender as ideologias subjacentes aos discursos é um aspecto relevante para produzir os sentidos dos textos, que são a materialização do discurso, bem como para compreender os diversos conflitos entre posicionamentos sociais, políticos, econômicos e culturais. A produção de sentidos das charges nos permite um melhor entendimento das ideologias que permeiam esses textos. Quando a personagem Dilma diz a Dirceu que estes valores não estavam previstos para serem gastos, ela pergunta de “ g ” O c h qu D c u á uc b é: “D ,b h P íc Federal. Duas ou três ONGs dessas que ministro usa pra desviar grana pagam a conta. E você sai por cima, porque tá c b c u çã ” I g f c qu á aconselhando a presidente do país a pressionar a Polícia Federal para descobrir algumas ONG que recebem as verbas do 607 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento governo, mas não as utilizam seriamente, desviando para outras finalidades. Esse conselho é dado porque, na época da criação e divulgação dessa charge, essa era uma realidade vivida no país, algumas ONG estavam recebendo os repasses do governo e esses valores não estavam sendo integralmente aplicados nas atividades desenvolvidas por essas organizações, de acordo com o expresso na mídia de um modo geral. Nesse trecho, Dirceu ainda diz a Dilma que se ela seguir seu conselho, teria uma reputação pública de que estava combatendo a corrupção e provocaria mais aceitabilidade de seu governo junto à população. Assim, mais uma vez, a visão que nos é repassada por meio do olhar do chargista é que os interesses pessoais dos políticos estariam acima de qualquer outra coisa. P u z, D g Zé D c u z : “Zé, cê é u gê , ã u qu Ob g ” N trecho, Dilma demonstra sua gratidão pelo conselho recebido pelo companheiro que, até aquele momento, considerava-o amigo. Zé Dirceu, por sua vez, dispensa o agradecimento e c b c h z : “Ob g , ã Duz ,c h ” A personagem Dilma fica impressionada com a c b ç , Zé D c u uc : “ u c u , cê ã ua placa lá fora. Você não perdeu seu tempo, eu também não quero u” Há qu u á g x íc c g c u z c íc “N b ”, no blog Radar on-line, que retrata os políticos que saem do governo e utilizam seus conhecimentos para prestar consultorias. F z ch g , D u c : “ h , c cê c g ? Nã c qu cê é ã [ ]” presidente, ao procurar um adjetivo para qualificá-lo, é 608 ANAIS - 2013 interrompida por Zé Dirceu que z: “ á c bj ” E são as qualificações que a própria Dilma dá a Dirceu no início c , , “ á c bj ” mencionados no início da charge denotavam uma característica positiva, empreendedora, do verdadeiro conselheiro. Já o “ á c bj ” f ch g -nos ao fato de que ele não faz nada gratuitamente e faz questão de não esconder isso. Nesse trecho, podemos verificar o emprego da palavra “c h ” g ch g bservar o uso dessa palavra, podemos apontar que é um termo muito utilizado entre os partidários do PT. De acordo com o Dicionário on-line M ch (2009), f çã “c h ” é: “sm (baixo-lat companariu) 1 Aquele que acompanha. 2 Colega, condiscípulo. 3 Camarada. 4 Maçon Graduação inferior à de aprendiz, no rito francês. 5 Esposo, marido. 6 Amásio. adj Que c h ” , qu “c h ” ã é u termo que se emprega com relação a qualquer pessoa, mas sim àquele que acompanha, que é colega, camarada, amigo. A palavra dentro de uma situação enunciativa jamais é neutra, f , “c h ” á c g sentidos que podem ser visualizados na situação em que foi empregada. Podemos visualizar na utilização dessa palavra, uma contradição daquilo que se fala sobre o tratamento de companheiro, com o que realmente se vive, a cobrança exacerbada por um conselho dado, seria ele (Zé Dirceu) um companheiro no sentido estrito do termo? Nessa mesma perspec , í u ch g “ h g ”é ô c f qu , , ã um conselho de amigo, e sim de um profissional que está preocupado, tão somente, em receber pelo conselho que não é 609 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento dado, mas sim, vendido. Apesar de se autodenominarem “c h ”, c b qu á íc ã de que os políticos, apesar de serem unidos por partilharem de uma mesma ideologia partidária, dão sempre prioridade às vantagens pessoais obtidas. Outro fator interessante que deve ser destacado é a utilização de expressões da linguagem coloquial, como, por x : “g ”, “b h P íc F ”, “ c ” Há qu , bé , u u utilizados no senso comum, em determinadas quadrilhas, o que expressa a linguagem da contravenção ou da subversão e que demonstra bem o momento de denúncias de corrupção que o partido estava passando, tudo isso, no intuito de intensificar os fatos denunciados. Além disso, a escolha vocabular do chargista pode também criar uma proximidade entre os personagens, uma intimidade entre eles. A utilização desse tipo de linguagem também pode evidenciar proximidade com os leitores desse gênero que, em sua maioria, são jovens e adolescentes, que na maior parte do tempo também a utilizam. Esse efeito também causa humor e um certo estranhamento, porque, geralmente, não se espera que uma pessoa que ocupa um cargo tão importante, como a presidenta, não se expresse utilizando somente a norma culta da linguagem. Diante do exposto, outro aspecto que é também muito interessante analisarmos é a fisionomia dos personagens no transcorrer da charge que, na maioria das vezes, causa humor, como, por exemplo, o semblante de desgosto que Dilma faz, quando Dirceu cobra um valor altíssimo pelo conselho dado. Os sons como as músicas que fazem fundo das charges e os que representam a entonação das falas, as hesitações e truncamentos também complementam os seus sentidos. Todos os aspectos 610 ANAIS - 2013 relacionados à percepção humana aumentam ainda mais a capacidade de representação desse gênero. A imagem tem o poder de suscitar, fazer despertar, do nosso mais íntimo interior, experiências e significados, os quais contribuirão para a produção dos sentidos dos gêneros, principalmente das charges digitais. As sensações, no momento de recepcionarmos uma imagem, despertam experiências sensíveis e culturais, individuais e coletivas. (FERRARA, 1997, p.24). A imagem representada leva-nos a inferir e tem a capacidade de referência e, por ter essa capacidade, podemos, até mesmo, ler uma imagem; estamos nos referindo, aqui, a uma leitura visual das imagens. Além do mais, podemos determinar uma leitura visual pela posição do olhar. Para Ferrara (1997, p. 26), “ u ã -verbal é uma maneira peculiar de ler: visão/leitura, espécie de olhar tátil, multií , é c ” Nesse aspecto visual, podemos apontar nessa charge a g u á c “ f c ”, qu há dentro e sobre ele algumas roupas, máscaras e perucas. Isso nos suscita o passado de Dirceu, em que ele fez uma cirurgia plástica para não ser reconhecido e voltar clandestinamente ao Brasil após ter sido preso político. Há também a imagem de um livro sobre a mesa dele em qu á c “ fu c ” u c ó em que há “ u ” T g contribuem na produção dos sentidos da charge. De acordo com o que a charge expressa, podemos perceber que José Dirceu continua utilizando artimanhas, como se disfarçar, usar técnicas para influenciar as pessoas com o intuito de prestar consultoria e obter vantagens. Sua postura, com as pernas em cima da mesa, diante da presidenta Dilma, evidencia que José Dirceu, apesar de não estar mais no governo e estar sendo processado por 611 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento supostos esquemas de corrupção, continua se sentindo um homem de muita influência e poder. Nessa perspectiva, podemos constatar nas charges digitais a seguinte estratégia contemporânea, apesar de nelas se constituir um recurso irônico, de que [...] as técnicas audiovisuais de comunicação política promoveram toda uma pedagogia do gesto, do rosto, da expressão. Elas fizeram do corpo um objeto-farol, um recurso central na representação política. É como se se passasse de uma política do texto, veículo de ideias, para uma política da aparência, geradora de emoções. (COURTINE, 2003, p. 25). Considerações finais Por meio da análise dos dois gêneros – charge digital “ h g ” íc í c blog jornalístico Radar on-line “N b ”– pudemos constatar a interdiscursividade, ou seja, um intercalar de discursos que os perpassam, afinal, a mesma temática que é retratada na notícia é retomada na charge. Pudemos ver que, dissimuladamente, neles impera a ideologia dominante, denunciando implicitamente uma desmoralização dos políticos. Nã é qu u (2003, 21) f qu “ cu í c á c c c ” E realidade pode ser constatada em nossa situação brasileira, fica evidente que a mídia, aqui analisada por meio do blog jornalístico e do site das charges, consegue passar uma imagem totalmente denegrida dos políticos, deixando-os desacreditados, ferindo até mesmo a questão da democracia vigente, pelo fato de 612 ANAIS - 2013 expô-los como totalmente indignos de qualquer tipo de confiança; levando, até mesmo, os (e)leitores brasileiros a não mais acreditarem no seu direito cidadão de voto. A disseminação das ideologias é nitidamente verificada nesses gêneros digitais, e essa percepção ocorre somente quando é feita uma leitura crítica da realidade social, histórica, política e cultural que envolve o momento em que esses gêneros são divulgados. Cremos que muitos outros sentidos podem ser construídos, pois os sentidos se produzem dependendo da situação, do leitor e das posições sociais, culturais, econômicas e políticas que ocupam. Diante disso, acreditamos que a utilização desses gêneros digitais na sala de aula pode trazer grandes contribuições para o ensino, sobretudo o de língua materna. Tendo em vista a grande dificuldade de escolher material de leitura que estimule os alunos, propomos o trabalho com esses gêneros digitais, pois acreditamos que além da riqueza linguística presente nesses textos, com toda a ironização presente e não ditos significativos, são gêneros com os quais os alunos têm contato em seu cotidiano, por isso sua produção de sentidos em sala, em muito, vai contribuir para a ampliação da competência discursiva dos alunos. Referências A vida política de Antonio Palocci. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br>. Acesso em: 09 out 2012. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara F. Vieira com a colaboração de Lúcia T. Wisnik e Carlos Henrique D. 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A ideologia constitui e padroniza a ação do homem como ator social consciente dentro de uma noção às vezes intangível do mundo. A ideologia opera de modo a dirigir o ser humano como sujeito, ou dentro de um conceito althusseriano, a ideologia interpela o homem como sujeito. Em uma formação ideológica, seja ela opressiva ou emancipatória, envolve processos de sujeição e qualificação. Neste estudo examinou-se os votos de juízes-desembargadores em uma apelação de sentença. Percebeu-se a presença de discursos ideologicamente marcados. A partir daí procedeu-se a um estudo sobre a ideologia marxista e positivista que exercem grande influencia na ideologia do fazer jurídico. Como base teórica apoiou-se em Marilena Chauí, Michel Foucault, Louis Althusser, A. Franco Montoro e Eduardo Lyra. PALAVRAS-CHAVE: ideologia, Direito, análise do discurso Introdução [...] o discurso jurídico é uma área marginal ao estudo das estruturas do poder e do controle social na sociedade 1 Mestrando em Letras – na área de concentração Linguística e Transculturalidade na Universidade Federal da Grande Dourados- UFGD – e-mail: [email protected] 618 ANAIS - 2013 contemporânea e como tal pode ser deixada ao domínio da especulação filosófica. Boaventura de Sousa Santos (1988, p. 5) A proposta deste estudo é buscar compreender a ação que a ideologia exerce sobre as decisões jurídicas. Juízesdesembargadores tecem considerações sobre seus votos construídos mediante uma interpelação em sujeito que se dá ideologicamente pela sua formação discursiva. Assim, o discurso de um juiz-desembargador ocupa uma posição no espaço e no tempo histórico em relação a outros discursos ou em relação aos discursos do outro. A noção de ideologia ou a definição discursiva de g gu O “é c çã c u ção do uj ” (1999, 46) , u bj simbólico, o sujeito precisa interpretá-lo para entender seu sentido. A busca de um sentido mediante interpretação não se dá sem a presença da ideologia. A ideologia constitui e padroniza a ação do homem como ator social consciente dentro de uma noção às vezes intangível do mundo. A ideologia opera de modo a dirigir o ser humano como sujeito, ou dentro de um conceito althusseriano, a ideologia interpela o homem como sujeito. Preliminarmente, pretende-se deixar claro que se explora a ideologia sob um aspecto formativo do sujeito humano, pouco ou nada relacionando com processos de formação de personalidade, sendo a subjetividade aspecto diferente com características próprias. Assim, para se discutir ideologia, sugere-se antes aqui que os efeitos da ideologia, facilmente observados no âmbito social, individualmente podem não ser tão 619 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento claros, além de não se poderem ignorar outros fatores intervenientes como personalidade ou estrutura de caráter. Posto então que se observará uma relação de dualidade interpelação-reconhecimento consequência da formação ideológica, seja ela opressiva ou emancipatória, fato é que a ideologia envolve processos de sujeição e qualificação. Assim, o processo de assujeitamento e subjetivação abre espaço para uma discussão dialética, no sentido de que ao se propor uma análise discursiva em um texto jurídico, se buscará transcender o caráter dialético indicado pela oposição da çã “ uj ” gu Thernborn (1980) a “ uj ” (subject) evoca o sentido de súdito (como em ser súdito de um rei X ou da ordem social Y) onde o indivíduo á ubjug u f ç cu , “ uj (subject) h ó ”, o ser realizador de alguma coisa. Iniciamos as considerações com a ideologia alemã não porque anteriormente não houvesse ideologias, mas porque qu M x, écu XIX, c “ I g ã”, f b qu x u força invisível capaz de determinar as ações individuais e sociais, força cuja ação leva o indivíduo a acreditar que pensa por si só, quando na verdade, seus desejos e ideias procedem desse poder que o faz pensar de acordo com o que ele (o poder) quer que o indivíduo pense. A essa força que age no âmbito social, Marx chamou de ideologia. Assim, tece-se considerações sobre o materialismo histórico e o marxismo como princípio da discussão sobre as ideologias que permeiam o Direito como fazer jurídico, com a finalidade de tentar tornar explícita como se dá a formação discursiva dentro dessa área do conhecimento. Marx não se dirige ao Direito em sua obra, uma vez que o pensador foi um economista clássico que atuou no plano do 620 ANAIS - 2013 pensamento teórico da economia. Estabelece em seus princípios aquilo que acreditava ser adequado para explicar a sociedade que via à sua volta. O que se pode observar é que houve uma ressignificação dos princípios marxistas usados para explicar o Estado e o Direito como expressão social. Contudo, Marx expõe cí ju ç b “I g ã” A ideologia vista a partir do marxismo é concebida como resultado de uma sociedade estruturada em classes, não tendo sua origem na sociedade capitalista, mas nela se constituindo em forma mais elaborada. Na concepção marxista, a ideologia surge após a divisão do trabalho, entre o intelectual e o material. Para Marx, a divisão do trabalho também dividiu o homem, pois que a partir daí viu-se a separação dos homens nas diversas sociedades através da história. Essa configuração social onde se dividiu homens pensantes dos homens executores resultou na possibilidade de apropriação eficaz do controle do trabalho intelectual e dos meios de produção em detrimento daqueles a quem sobra somente a execução do trabalho. O desdobramento dos conceitos marxistas resulta na proposição final de que a ideologia surge quando se estabelece relações sociais desiguais, o que provoca o aparecimento de condições que legitimam a ideologia, pois que se estabelece o processo de alienação. Para Marilena Chauí (1984) é preciso entender o sentido de produção social da ideologia, a autora demonstra a proposição assim: a) se inicia como um conjunto sistemático de ideias de uma classe em ascensão cuidando para que os interesses desta legitime a representação de todos os interesses da sociedade por ela. Neste 621 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento momento se está assim legitimando a luta da nova classe pelo poder. b) no segundo momento se espraia no senso comum, ou seja, passa a se popularizar, passa a ser um conjunto de ideias e conceitos aceitos por todos que são contrários à dominação existente. Neste momento as ideias e valores da classe emergente são interiorizados pela consciência de todos os membros não dominantes da sociedade. c) uma vez assim sedimentada a ideologia se mantém, mesmo após a chegada da nova classe ao poder, que é então a classe dominante, os interesses de todos que eram os não dominantes passam a ser negados pela realidade da nova dominação. Assim, quando um segmento da sociedade se estabelece de modo hegemônico, aparece aí uma ideologia dominante, que reflete o poder material e espiritual desta classe. Em outras palavras, a ideologia como pensamento social dominante é tão somente a expressão das relações materiais dominantes sob a forma de ideias de seu domínio. Essas ideias agem de modo a reproduzir as condições de produção. A disposição de se sujeitar à ideologia dominante, de acordo com Althusser (1974, p. 14), deve estar de algum modo dentro da consciência dos agentes de produção, ou estes agentes “ buí 2” g desempenhar socialmente sua função. De fato, o agente althusseriano, tanto o proletário quanto o capitalista burguês, 2 Na edição de 1985 (Rio de Janeiro: Graal); a versão de 1974 traz o cábu “ ” 622 ANAIS - 2013 não tem plena consciência de estarem interpelados pela ideologia, esta está impregnada, entranhada em tal grau no modus pensandi que os impedem de ter um olhar de estranhamento ou distanciamento ou ainda consciência de si enquanto não houver alguma ruptura. As formações ideológicas têm relação direta com a divisão de classes tendo uma classe favorecida em detrimento de outra, segundo a reprodução da sua sujeição à ideologia dominante. Ressaltamos, entretanto que essa dominação não é permanente visto que as contradições da estrutura acabam minando a base do poder, abrindo espaço às contestações da base oprimida para a ideologia oficial. Isso se dá quando a crença (a natureza das crenças favorece a cristalização de uma ideologia) numa ideologia arrefece, quando uma classe toma consciência das deformações sociais provocadas pela classe dominante. Esta tomada de consciência é favorecida quando as contradições da estrutura social se agravam e a crise que sobrevém torna evidente o contraste entre ideologia e a realidade. Essa conscientização aponta os vícios do sistema e daí surge um pensamento atualizado capaz de perceber as falhas e buracos na estrutura social. Deve-se ressaltar que os indivíduos que pertencem à classe dominante têm consciência de seu domínio. Segundo Chauí (2001), além da preocupação com a dominação Marx critica severamente a vertente ideológica hegeliana com sua análise das condições materiais da sociedade real, diferente, portanto, daquela produzida pelas abstrações do idealismo. O idealismo para Marx era a inversão através da qual o homem cria ideias, representações da realidade, mas ao mergulhar nesse cogitum afasta-se do real. Entretanto essa inversão é aprofundada pelas desigualdades sociais que aprofundam a inversão, formando um ciclo que desencadeia uma crise de 623 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento representatividade do Estado Moderno. O que se verá é que este ciclo se instaurou quando a burguesia depois de conquistar o poder econômico, buscou o poder político contestando a aristocracia feudal. Isso se deu com a bandeira ideológica do direito natural, e, tendo conseguido o que pretendia, trocou de doutrina, passando então, segundo Lyra (1982) a defender o positivismo e a ordem vigente. O mesmo se deu do ponto de vista jurídico, com o que Lyra (op. cit.) denomina ju u ( g u ) qu “ b seja uma posição antiga, é o positivismo que hoje predomina ju ” Marx contribuiu grandemente para o sentido ideológico do Direito através de sua teoria epistemológica. Não pretende-se c c x ã “D c g ”, que seria essa uma redução que traria em si diversos equívocos. Um desses equívocos é que, independentemente de ser definida c “c c ê c c ” u “f c c ê c ” como resultado do processo de alienação do sujeito, a ideologia se expressa, via de regra, pelas relações entre valores, atitudes, crenças e assemelhados. E estes permeiam o pensamento jurídico, daí incorre-se no risco reducionista de ver o direito como ideologia, como integrante da superestrutura social. B u u f qu “ u b u f jurídica em relação ao mundo social, e do instrumentalismo, [...] concebe o Direito como um reflexo ou um utensílio ao serviço ” (2004, p. 209, grifos do autor). Vê-se que Bourdieu concebe o Direito (ou ciência jurídica) de modo ó c , c u “ f ch uô cuj desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua â c ” c c quele autor, a ideologia profissional corporativa sob a forma de doutrina faz D ju u ê c u “ f x ” 624 ANAIS - 2013 relações de força existentes onde os interesses dominantes prevalecem. Assim, como invenção humana, logo também um fruto da linguagem, o Direito é um fenômeno essencialmente ideológico. E como tal é permeado por ideologias individuais e de grupos que lhe conferem sentido e que ora opõem-se entre si dialeticamente. Neste embate entre as forças ideológicas que pressionam o fazer do Direito, ocorrem distorções e nesse , Ly (1982) z qu “ caminho para corrigir as distorções das ideologias começa no exame não do que o homem pensa sobre o direito, mas do que juridicamente ele faz” Montoro (2011) não utiliza o termo ideologia, mas doutrina para designar o conjunto de ideias que constituem a á P F uc u u c u “ u c cu ” (1999, 41) qu c de discurso se baseia num número de indivíduos que falam, embora não seja uma quantidade enumerável, é limitado; Foucault ressalta que só entre eles o discurso poderia circular e ser transmitido. Ainda segundo aquele autor, a doutrina tendia a difundir-se pela partilha de um só e mesmo conjunto de discursos que definia sua pertença recíproca (ibidem, p. 42). Parece-nos que a condição de reconhecimento mútuo seria então a aceitação das mesmas verdades dentro de um discurso em conformidade e validado. Nesse sentido, alinhamo-nos com Foucault quando diz: A doutrina questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na medida em que a doutrina vale sempre como o sinal, a manifestação e o instrumento de uma pertença prévia. [...] a doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, consequentemente, todos os 625 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento outros; mas ela se serve, em contrapartida, de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros.(1999, p. 43) Ao tratar da doutrina do Direito, Montoro nos diz que esta se baseia em um positivismo jurídico, que remonta ao direito angloc “ c ã é g , ju z” (2011, 303) z qu o direito emanado do poder legislativo só adquire sentido e realidade depois de interpretado pelos juízes, ao aplicá-lo aos casos concretos. Além de significar a aplicação da lei, os julgamentos geram jurisprudência quando a decisão não era prevista especificamente em lei. Dworkim (apud Habermas, 1997, p. 257) se apoia em casos do direito americano e anglo-saxão para analisar como os juízes controlam situações jurídicas indeterminadas baseando-se em finalidades políticas e princípios morais. Tais juízes conseguiam tomar decisões fundamentadas através de argumentos extraídos da determinação de objetivos, ou seja, o juiz chega a uma decisão e a partir daí traça uma linha argumentativa para fundamentar sua decisão. A jurisprudência se configura segundo a aplicação de normas jurídicas que estabilizam a expectativa, em outras palavras, o juiz leva em conta a determinação do objetivo legislativo à luz de princípios que justifiquem uma decisão, seja ela política ou que garanta determinado direito de um indivíduo ou de um grupo. Habermas nos diz que o direito positivo não pode basearse nas contingências de decisões arbitrárias, geradoras de jurisprudência, mas: [...] a positividade do direito significa que, ao se criar conscientemente uma estrutura de normas, surge um fragmento de realidade 626 ANAIS - 2013 social produzida artificialmente, a qual só existe até segunda ordem, porque ela pode ser modificada ou colocada fora de ação em qualquer um dos seus singulares (1997, p. 60) Desse modo, o direito positivo surge como demonstração de uma vontade que confere duração a determinadas normas para que se oponham à possibilidade de virem a ser declaradas sem efeito. Nesse sentido a pretensão de legitimidade dá ao direito positivo força sob forma de uma aliança. A importância dada à jurisprudência3 vem do fato de que “ g bu u í c u f ú u ” (MONTORO, 2011) anteriormente, o direito só adquiri sentido quando interpretado pelo juiz, assim pode-se entender melhor o que Pecheux diz b çã uj g : “1) ó há á c através de e sob uma ideologia; 2) Só há ideologia pelo sujeito e uj ” (PE HEUX, 1997, 149, g f autor). Contudo, a ideologia a permear o fazer jurídico esbarra num exame de coerência, ou seja, o legislador pode utilizar suas autorizações normalizadoras, desde que se acoplem ao corpus das leis vigentes para resguardar a unidade do direito, ou pelo menos é o que se espera também do juiz como sendo quem aplica a lei. A jurisprudência deve possuir uma racionalidade tal que sua aplicação interna tenha fundamentação no plano externo, que de acordo com Habermas (1997) vai garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção. Ainda segundo Habermas (op.cit., p. 251) a segurança jurídica tem 3 O artigo 479 do Código Civil nos diz que: o julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência. 627 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento precedência sobre a garantia de correção e se torna clara nos casos difíceis onde se estabelece a questão da adequação de decisões específicas. Consequentemente, o juiz preenche o seu espaço de arbítrio através de preferências não fundamentáveis juridicamente orientando suas decisões por padrões morais que a autoridade do direito não cobre. Ainda que os conteúdos morais sejam traduzidos para o código do direito, Habermas afirma que passam por uma transformação jurídica de seu significado. As considerações feitas tomam como objeto para as discussões uma sentença judicial e um acórdão judicial, embora ambos sejam produzidos dentro da esfera jurídica, suas origens se dão em níveis diferentes. As sentenças resultam de um julgamento e os acórdãos se produzem quando uma das partes envolvidas no julgamento não concorda com o resultado da sentença e dela recorre em uma instância superior. Assim, como resultado do recurso tem-se o acórdão, onde desembargadores acordam com o provimento ou não de um dado recurso. Os julgamentos, embora produzidos tecnicamente no mesmo lugar, o prédio que abriga o aparelho jurídico, são diferentes em sua origem e em resultados e efeitos, mas que constituem um conjunto complexo de dispositivos que abrigam a ideologia do Estado. Nas palavras de Althusser [...] conjunto complexo, isto é, com relações de contradição-desigualdadeub çã u “ ”, ã uma simples lista de elementos: na verdade, seria absurdo pensar que, numa conjuntura dada, todos os aparelhos ideológicos de Estado contribuem de maneira igual para a reprodução das relações de produção e para a transformação. (apud Pecheux, 1997, p. 145) 628 ANAIS - 2013 Queremos dizer aqui que mesmo dentro de um aparelho de Estado, como o aparelho jurídico, existem relações internas de poder determinantes de desigualdades cujos efeitos percebem-se fora do aparelho. Esses efeitos são percebidos nos discursos que o aparelho produz, e ainda nesse sentido, Bourdieu (2004, p. 11) nos diz que a estrutura deste sistema simbólico que é em si o sistema jurídico, cumpre ainda uma função política de instrumento de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre a outra. E nesse caso específico, o dominação ocorre também organicamente, onde uma turma de juízes desembargadores tem o poder de desfazer uma sentença de instância inferior. á ju í c u ug “c c ê c ó z ” (BOURDIEU 2004, 212), observa-se em alguns momentos, como no texto objeto deste estudo, que se defrontam atores sociais qualificados ideológica, social e tecnicamente, para interpretar e fazer cumprir suas decisões, baseadas, em sua maioria, em decisões anteriores semelhantes como fundamento de uma visão consagrada e legítima. E ainda, observa-se que a disciplina é marcadamente presente no princípio do controle da produção do discurso no sentido de que a disciplina no controle do discurso assegura a identidade do enunciador sob a forma de uma reatualização permanente das regras. No conteúdo do acórdão, objeto desta análise, tenta-se aplicar as teorizações à luta cognitiva travadas entre os desembargadores dentro de seus pareceres, através da análise de conteúdo e de discurso; o contraste entre os ideários é evidenciado com excertos. Pode-se identificar duas ideologias que subjazem àquela que rege o Direito, também chamada de doutrina do Direito, doutrina esta abordada brevemente neste estudo. Chamamos de 629 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ideologia subjacente porque acreditamos que dentro do Direito há diversos entendimentos sobre um mesmo fato, se assim não o fosse não haveria necessidade de um recurso ser julgado por três desembargadores. As duas ideologias seriam uma que tem forma mais estatutária, voltada para o que diz a lei ipsis literis. A outra seria um em si mesmo reflexivo, no sentido de que se apoia na lei para defender um ponto de vista pessoal não necessariamente partilhado pelos pares, mas apoiado na moral pessoal. E, de acordo com o conceito de Bourdieu (2004, p. 48), como essas ideologias não aparecem e não se assumem como tal, é deste desconhecimento que lhe vem a eficácia simbólica. Não se pode perder de vista que esse desconhecimento ou esquecimento colabora fortemente na definição das identidades dos sujeitos pelas ideologias interpelado, como também o diria Pecheux (1997). Diz-se isso porque no acórdão estudado, um desembargador defendeu que a decisão do júri deveria ser mantida, porque, segundo aquele juiz, sua decisão seria soberana, tornando aparente uma ideologia baseada em valores democráticos, não se prendendo ao que diz o ordenamento jurídico vigente e apontando para a lei maior da nação. Utilizando os recursos da retórica, o Juiz Vogal levanta alguns qu : “Como nós podemos, na técnica, dizer se a pessoa foi ou não levada ao extremo para matar? Como posso dizer isso se não sou soberano? Eu exerço a soberania por deferência dos jurados4. E ã ju z f z f ê c à c g z: “T poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes [ ]” ( 1°, ág f u ção Federal). Ainda 4 Ementa: Processo; julgamento: 17.set.2001; Órgão Julgador: Seção Criminal; Classe: Embargos infringentes. Relator: Exmo. Sr. Des. João Carlos Brandes Garcia. 630 ANAIS - 2013 nessa linha, o juiz fala sobre quem aplica a lei é o povo e volta a questionar que se a constituição da nação deu ao júri soberania não deveria ser condicionada à técnica, sugerindo que a técnica seria supralegal, ou seja, está acima da lei. O juiz ainda continua dizendo que individualmente o júri tem mais capacidade de decidir sobre o assunto, sugere que a c ã b u “ u z çã c óg c , portanto aceita pela sociedade, para que a pessoa praticasse o ” O referido Juiz Vogal assume posição polêmica quando diz que ao votar pela segunda vez pela técnica supralegal o júri leva os juízes a serem obrigados a aceitarem a decisão, e ainda ug qu “ , z ” desta posição assumida, sugere que os doutrinadores da lei o f z , “ qu c -se da soberania do jú ” O juiz vogal deixa claro que o direito é dito ou praticado em um tribunal e que quem diz o direito no caso é o tribunal do júri. O referido juiz deixa claro não aceitar a tese acatada pelo júri, ao contrário a repudia, a legítima defesa da honra; mas reafirma que não pode violar a soberania dos jurados ao aceitarem a tese supralegal. Em seguida o Juiz Vogal questiona a soberania dada ao júri, e consequentemente ao povo. Como posso agora dizer que ele [o júri] é soberano em termos? [...] Soberania pela metade? Quem a tem, porque a exerce, e não realmente porque a tem, essa é a realidade. É o Estado que exerce a soberania que pertence ao povo. Mas nós, dentro de uma cultura absolutamente autoritária e 631 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento tecnicista, entendemos que a soberania é do Estado, e ele que a exerce. Igu , hu z qu “ E éu áqu de repressão que permite às classes dominantes [...] assegurar a u çã b c á [ ]” (1974, 31) É que o Juiz Vogal estava dizendo naquele momento, o Aparelho Ideológico do Estado através da estrutura jurídica aceitaria a decisão do júri se esta fosse de acordo com a ideologia do Aparelho, como não foi assim, o Aparelho desfez a decisão dos jurados e se impôs sob o argumento de violação à técnica, em outras palavras, a ação da instância superior jurídica concorreu para a reprodução das relações de produção a fim de manter a unidade ideológica. As decisões então são democráticas em termos, soberanas pela metade, nas palavras do juiz, só são aceitas quando concorrem para um resultado único, sujeitando os indivíduos a uma ideologia democrática indireta. O Juiz Vogal arrazoa sua tese declarando: Eu não posso aceitar, e não aceito que alguém mate em defesa da honra, mas não posso dizer que os senhores jurados julgaram de maneira manifestamente contrária à prova dos autos. Não posso porque se está mudando a opinião a doutrina e a técnica é a elite superior deste país, e não a grande maioria deste país. Será que nós, pela técnica, estamos efetivamente entendendo a conduta humana dentro de sua comunidade, naquela sociedade, daquela formação? Entendo que não. [...] não entendo que o júri não possa fazer decisão supralegal. Se o juiz togado pode, porque o 632 ANAIS - 2013 júri não pode? [...] se o juiz pode aplicar a lei [...] por que o júri, que é dono da soberania, não pode? E por fim em seu voto, o Juiz Vogal discorre brevemente de um caso em que os réus foram julgados duas vezes, sendo absolvidos em ambas e que o Tribunal anulou o júri e condenou os réus, depois se descobriu que os réus eram realmente inocentes5. O ordenamento jurídico diz que quando uma decisão do jú f “ f c u 6” á ocorrer novo julgamento, se persistir a decisão anterior, sepultado estará o caso. Assim defenderam os demais juízes desembargadores que houvesse um novo julgamento. Dentre os juízes que alinharam-se como votos vencedores um juiz desembargador apontou uma terceira via, mesmo votando a favor de um novo julgamento, indica um novo caminho que poderia ser seguido pela defesa do réu e, assim, possivelmente, obter-se nova sentença favorável igual à primeira. Ele diz: A apelação deste recurso, nós julgamos [...] e continuo achando que se trata de crime praticado sob violenta emoção, logo em seguida à provocação da vítima. Talvez, se a 5 b ã N c u b ” Oc irmãos naves: chifre em cabeça de cavalo / por Jean-Claude Bernadet e Luis Sérgio Person. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura – Fu çã P ch , 2004” D í http://aplauso.imprensaoficial.com.br/edicoes/12.0.812.943/12.0.812.943.pdf acessado em 13.ago.2012, download gratuito. 6 Argumento usado pela promotoria, quando a sentença absolutória é proferida, para interposição de recurso contra a decisão. 633 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento tese da defesa viesse com a da violenta emoção, tivesse guarida em sua pretensão. Em breve descrição, a violenta emoção é prevista no Código Penal: São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984) III - ter o agente:(Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984) c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima. Este dispositivo legal é utilizado especificamente em crimes de homicídio e lesões corporais e dá ao juiz autorização de redução da pena. Ainda sobre a violenta emoção, como um estado da alma é discutida na área da psicologia forense. Vê-se que a ideologia hegemônica não é absoluta, outras ideias a permeiam e vez ou outra transparecem de algum modo. Chama-se a atenção sobre o discurso democrático, que “c u u-se em evidente descompasso com çã à á c í c ” c buí àqueles que constituem uma ideologia (LORAUX, p. 21). Ainda de acordo com Loraux, Heródoto afirma que é no número que há É qu u c z qu “ cuí u , c ” (b , 21) u ainda lembra que no auge da democracia ateniense a fórmula liminar dos decretos – “ x é ” – que quer dizer o povo decidiu tinha um porém, ou seja, quem decidia eram aqueles considerados cidadãos atenienses legítimos, excluídos 634 ANAIS - 2013 os escravos, as mulheres, os menores de 18 anos, os estrangeiros até a segunda e terceira geração. Assim a ideologia da unidade ateniense vivia e se prevalecia de exclusões, em outras palavras, a democracia em sua forma pura como o Juiz Vogal preconiza an passant era utópica mesmo no berço da democracia. Alinhando-nos a Althusser (1974, p. 54) o Aparelho Ideológico de Estado desempenha incontestavelmente o papel dominante. Entretanto o que se pode observar é que em dados momentos os juízes veem-se em situações dialéticas, entre defender um posicionamento pessoal ou defender uma posição no âmbito social. A ideologia democrática como uma crença pessoal (defender a soberania dos jurados) pode se chocar com a doutrina jurídica em determinados momentos (defender o ordenamento jurídico). Nesse sentido, o pensamento dialético como modus pensandi dá suporte a todo um processo decisório, que especificamente levou o Juiz Vogal a embasar seu voto. Refazendo o percurso trilhado, usando do artifício retórico, o juiz primeiro chama à razão seus interlocutores quando diz “ qu é c ?”, f ug que o júri errou na sua decisão sob o ponto de vista da técnica, mas que mesmo errado aquela foi sua decisão e como tal deveria ser mantida. Nota-se assim um discurso fundamentado na “ ” f ucaultiana. [...] o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder?(FOUCAULT, 1999, P. 20) 635 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Nesse sentido, para se caracterizar um crime a proposição deve poder inscrever-se em certo horizonte teórico, é o que se materializa no discurso quando o enunciador define crime e em seguida opõe a técnica à razão do fato. Colocou-se assim que no ponto de vista técnico houve um erro, Foucault nos diz que o erro só pode surgir e ser decidido no interior de uma prática definida, em seguida propõe: [...] uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se [...] no verdadeiro. (1999, p. 35) Assim, a tese discutida sobre a razão do crime, insere-se no campo do verdadeiro, logo não deve ser estranha à concepção da técnica. Foucault também nos diz que é sempre í z ç u “ x g ”, , ã á ã obedecendo às regras de uma vigilância discursiva ativa em cada discurso. Assim, quer-se dizer que para o Juiz Vogal estar e se manter no verdadeiro foucaultiano, primeiro evocou as regras discursivas de seu meio, obedeceu às regras da discursividade vigiada e continuamente reativada em cada tomada de turno e só então expõe sua opinião, só então expressou sua subjetividade. Considerações finais Ao adentramos nesse espaço donde se produz essas considerações, quer-se deixar claro que longe de conclusão, abriu-se aqui uma discussão sobre análise de discurso de linha 636 ANAIS - 2013 francesa aplicada ao exame de conteúdo de textos jurídicos ricos em significação e que apresentam marcas de subjetividade às vezes claramente, e em outros momentos não. A ideologia é um todo amorfo como o ar, definível, experimentável, está em quase todos os lugares (não está no vácuo, mas o homem não sobrevive no vácuo) influenciando de algum modo os discursos produzidos. Mesmo ao produzir uma explicação do que é ideologia, esta se faz pela e sob uma pesada influência ideológica. Não há discurso neutro. Afirma-se que é preciso analisar-se os discursos porque os valores e as instituições que embasam o pensamento que permeia as sociedades modificam-se a cada dia e numa visão nietzscheana, decaem dentro de um processo lento, porém inexorável, que traz como consequência o questionamento sobre o que ainda é o verdadeiro, confiável e não niilista. Referências ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Trad. J. J. Moura Ramos. Lisboa: Presença/ Martins Fontes, 1974. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Laura Sampaio. 5. ed. São Paulo: Loyola, 1999. GUIMARÃES, J. A. C. 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Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5733232/embargosinfringentes-ei-6655-ms-2001006655-6-tjms/inteiro-teor acessado em 13.ago.2012 MONTORO, A. F. Introdução à ciência do direito. 29. ed. rev. atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. PECHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi [et. al.]. 3. ed. – Campinas SP: UNICAMP, 1997. ORLANDI, E. P. Análise de discurso. procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. Princípios e 638 ANAIS - 2013 THERBORN, G. A formação ideologica dos sujeitos humanos. In The Ideology of Power and the Power of Ideology. Cap. I. London: Verso. 1980. Tradução: Jair Pinheiro. Disponível em www.pucsp.br/neils/downloads/v1_artigo_therborn.pdf acessado em 27.ago.2012. 639 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Manoel de Barros, o criançamento e a desconstrução: considerações polifônicas Paulo Eduardo Benites de MORAES 1 Josemar de Campos MACIEL 2 RESUMO: Este trabalho tem por objetivo estudar a palavra poética de Manoel de Barros. Sabe-se que a palavra é o signo mais sensível de uma poesia por meio da qual podemos identificar todo o trabalho artístico arquitetado por um poeta que emprega um largo espectro de seu intelecto. O problema que se apresenta nessa pesquisa surge da relação entre o "criançamento da palavra" com a desconstrução a fim de saber se o chamado "criançamento da palavra" de Manoel de Barros ressoa ou conversa com outras formas de "criançamento". O atual trabalho propõe-se à equação de abordar essa produção literária a partir de exercícios de leitura de trechos significativos de sua obra e de comentadores, bem como centrando nosso olhar crítico, sobretudo, em autores que se preocupam com a questão da escritura. Manoel de Barros valoriza o trabalho e o jogo com as palavras como marca de sua escritura para proferir suas considerações sobre o mundo e a cultura que o cerca originando uma poesia humanista. PALAVRAS-CHAVE: Manoel de Barros; Despalavra; Poesia; Desconstrução; 1 Graduado em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Atualmente é acadêmico do curso de Filosofia pela mesma instituição e Mestrando no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas. E-mail: [email protected] 2 Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Professor titular da Universidade Católica Dom Bosco no Programa de PósGraduação Mestrado em Desenvolvimento Local e orientador do presente trabalho. E-mail: [email protected] 640 ANAIS - 2013 1 A despalavra poética "A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei" (BARROS, 2007, p.19). Como acontece para um artista o revelar de uma linguagem poética, com características peculiares e aparentemente simples detalhes que vão descortinando-se de forma pontual em um ou outro trabalho? Detalhes que saem sussurrantes e se tornam ecos, imagens muitas vezes embaçadas que querem dizer algo, vagos rumores que sorrateiramente roubam a cena e num movimentar-se por entre os versos ganham tom de alumbramento poético. Tais detalhes podem ser considerados efeitos encantatórios que desestruturam a linguagem e concomitantemente o ser, são efeitos que o leitor encontra na poesia de Manoel de Barros. Nós assim como ele somos desaprumados pelas palavras, como se vê no poema abaixo apresentado na íntegra: Eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar o lugar de debaixo de mim eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de 641 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu (Manoel de Barros, 2003, p.57). Partindo do posicionamento deste poema é possível notar que a palavra é a grande tem força na poesia - em Manoel de Barros principalmente. Queremos discutir um pouco algumas considerações sobre a importância da palavra nos estudos de linguagens, e servimo-nos deste poema como uma espécie de epígrafe que introduz o tema. Já que estamos falando de palavra, podemos notar que neste poema há um embate do eu lírico com as ações das palavras, o que nos remete ao trabalho que se executará sobre a importância da palavra na literatura de Manoel de Barros. Para tanto, podemos citar alguns dos grandes pensadores que irmanam-se a esse posicionamento, M. Bakhtin foi um desses grandes nomes que estudaram os efeitos das palavras desde as primeiras décadas do século XX, ele e seu Círculo começaram a encarar os estudos referente à linguagem de maneira diferenciada e perceber que a palavra reposiciona-se ante aos conceitos tradicionais pré-concebidos como um elemento concreto de feitura ideológica (STELLA, 2008, p.178), com isso a palavra é caracterizada como um "signo ideológico". Nesse sentido, a palavra está diretamente ligada à prática social do discurso, é uma fonte ativa no processo de interação entre os interlocutores, pois atua como elemento de intervenção na realidade social. Portanto, a palavra será o indicador mais sensível das transformações sociais, na palavra registraram-se as fases transitórias mais íntimas e mais efêmeras das mudanças sociais (BAKHTIN, 1999). Seguindo o mesmo modo de pensamento, mas estendendo a discussão para o espaço literário, encontramos em Maurice Blanchot um posicionamento análogo ao de Bakhtin. 642 ANAIS - 2013 Este escritor francês ao falar da questão da arte lançou um posicionamento - que pode ser encarado também como uma hipótese mais do que uma verdade. Vejamos: [...] Ela (a arte) tem certamente por objetivo algo de real, um objeto, mas um belo objeto: isso quer dizer, o que será objeto de contemplação, não de uso, o que, ademais, se bastará, o que repousará em si mesmo, não remeterá para nenhuma outra coisa, será o seu próprio fim (segundo as duas acepções da palavra). É verdadeira. Não um instante de sonho, um puro sorrido interior, mas uma ação realizada que é ela mesma atuante, que informa ou desinforma os outros, os atrai, os agita, os comove, os impele e há outras ações que, na maioria das vezes, não retornam à arte, mas pertencem ao curso do mundo, ajudam à história e, assim, perdemse talvez na história mas nela se reencontram, finalmente, na liberdade convertida em obra concreta: o mundo, o mundo convertido no todo do mundo (BLANCHOT, 1987, p.212). Com essa passagem de Blanchot vimos que a arte é algo concreto, real, é o próprio mundo, a arte é ela mesma e impõe um ritmo contundente que guia os rumos da sociedade e ao mesmo tempo sofre com a interpelação da sociedade seguindo numa via de mão dupla. A arte da qual estamos falando é a literatura, pois é a arte da palavra, por excelência, e a arte exercida por Manoel de Barros. Em Bakhtin, num primeiro momento, a discussão recai sobre a palavra e a ela é delegada uma posição real e concreta, ao passo que Blanchot ao falar da 643 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento arte também a define como verdadeira, não simplesmente uma inspiração de um instante de sonho, e há dois pontos comuns em ambas as acepções, tanto Bakhtin quanto Blanchot definem - a palavra e a arte respectivamente - com duas funções interessantes a serem analisadas. A primeira diz respeito a função que cada ideia exerce. Entre as duas acepções, Bakhtin defende que a palavra é um acúmulo de produtos ideológicos que se manifesta no diálogo dos interlocutores deflagrando os valores sociais, portanto a palavra exerce uma função. A palavra como um "signo ideológico" está apta a exercer a função dos valores sociais de um sujeito que por meio da palavra expressa seu ponto de vista acerca desses valores. São esses valores que devem ser entendidos, apreendidos e confirmados ou não pelo interlocutor (STELLA, 2008, p.178). Blanchot ao discorrer sobre a arte também a vê como passível de exercer funções, isto é, a arte atua com ações que influenciam diretamente a sociedade. Segundo Blanchot, a arte informa ou desinforma, agita, comove, impele, enfim, a arte promove reações na sua recepção entre os sujeitos. O segundo ponto em comum entre as acepções de Bakhtin acerca da palavra e Blanchot acerca da arte é que tanto em uma quanto na outra essas duas fontes estão ligadas a um posicionamento na história. O "signo ideológico" de Bakhtin acumula status real e representativo dos valores sociais dos sujeitos, mas com isso "concentra em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da sociedade e, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais estabelecidas" (STELLA, 2008, p.178). São essas mudanças que causam o reposicionamento das palavras frente às estruturas tradicionais, a palavra constantemente reposiciona-se e ocupa um lugar na história, pois esta é o eco dos valores de um sujeito 644 ANAIS - 2013 também historicamente localizado que contempla uma cultura, uma ideologia, uma filosofia de vida, enfim, esse sujeito é um falante que por meio da palavra se expressa e constrói seus valores. Para Blanchot, a arte também tem esta função, a função de exercer poder sobre a história. Todas as ações e reações geradas pela arte têm forte impacto no espaço social, isto é, a arte pertence ao curso do mundo, ajuda a construir a história, se perde na história e na própria se reencontra, isso a faz concreta e real, a arte é o próprio mudo e, se estamos falando da arte literária, do espaço literário, temos grandes perspectivas de criação do mundo. A arte literária é portanto, uma manifestação criativa que nos ensina a ver a multiplicidade cultural do patrimônio humano, que aparece adequada ao contexto em que está inserida. Partindo destes posicionamentos, nos convém pensar em literatura as marcas escriturais dos escritores, pois escrever apresenta-se como uma atividade de elaboração do trabalho com a palavra. Não se pode descartar e desconsiderar que a arte está associada com a razão em certos momentos, e que seus efeitos provocam reações estéreis no espaço social, é evidente que cumpre com essa característica, no entanto queremos aqui resgatar o lado escritural da poesia, o que irá complementar o que defendemos a pouco. Sendo assim, "a escritura é a relação que o escritor mantém com a sociedade, de onde sua obra sai e para a qual se destina" (PERRONE-MOISÈS, 1993, p.35), se mostra presente e atua como um estado de escrita de determinado escritor. A noção de escritura ganha força com os pensadores ligados à crítica estruturalista, Roland Barthes na década de 50 e Jaques Derrida nas décadas de 60 e 70 são grandes precursores que irmanam-se na perspectiva da escritura. Segundo Barthes a 645 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento escritura está situada entre a língua e o estilo e independente de ambos. A língua é "um corpo de prescrições e de hábitos, comum a todos os escritores de uma época (PERRONEMOISÉS, 1993, p.35). É imprescindível pensar aqui o estilo como uma herança individual que cada escritor carrega de suas experiências, pois essa noção de escritura ganha volume e em Barthes vemos que a escritura é uma questão de enunciação, isto é, escritores podem falar a mesma língua, viver a mesma história, mas apresentam escrituras díspares porque a escritura varia de acordo com a maneira que o escritor vive sua história e usa a sua língua (seu estilo). Isso nos parece muito próximo de uma marca de Manoel de Barros, um poeta dentre tantos outros com o mesmo prestígio, mas que se destaca por uma linguagem poética diferenciada, cria seu próprio idioma - o "idioleto manoelês" - vive sua própria história, enfim, as marcas escriturais de Manoel de Barros e a sua poiesis necessitam são marcadas pelo "criançamento da linguagem", isto é, não são mais as palavras no sentido da razão boa das coisas, sua escritura é feita a partir da "despalavra". No poema apresentado na sequência podemos notar esse expediente para pensar a escritura da poesia de Manoel de Barros: Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o canto - desde os pássaros. A palavra sem pronúncia, ágrafa. Quero o som que ainda não deu liga. Quero o som gotejante das violas de cocho. A palavra que tenha um aroma ainda cego. Até antes do murmúrio. Que fosse nem um risco de voz. Que só mostrasse a cintilância dos escuros. A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma 646 ANAIS - 2013 imagem. O antesmente verbal: a despalavra mesmo. (Manoel de Barros, 2009, p.53) Nota-se neste poema de Manoel de Barros um estilo assumido. O prefixo "des" acrescido em "palavra" forma uma nova palavra - característica bastante comum em seus versos, o neologismo - com um sentido de negação. A poética do "des" como foi anunciada aqui está ligada a um número extenso de signos que conotam negatividade, coisa ínfima e insignificante que nos poemas de Manoel aparecem de forma variegada e representando inúmeros seres que o poeta cria. A poesia do "nada", a poesia do "chão", o "deslimite", o "descomeço", o "desobjeto", aquilo que é rejeitado, enfim, todas essas miudezas tem lugar garantido na poesia barrense. A poesia portanto, passa a ser "des" por excelência, nega-se para afirmar a lacuna que ficou por preencher. Na perspectiva da escritura podemos dizer que Manoel de Barros possui uma linguagem própria, sua poesia está antes do murmúrio, a "despalavra" é uma palavra sem pronúncia, ágrafa, uma linguagem matreira e genuinamente brasileira. A poesia do "des", ou a escritura do "des" de Manoel está aquém de uma literatura formal encerrada nas palavras dicionarizadas, este é um processo que não se fecha num centro, pelo contrário, pressupõe um deslocamento, um descentramento que para Manoel é o modo em que constrói sua visão de mundo, de cultura, de sociedade, enfim, a "despalavra" também reposiciona-se, como a palavra defendida por Bakhtin, no 647 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento entanto a "despalavra" apresenta um elemento diferenciador, a "diferência3". A "diferência" - em francês é différance - é um conceito cunhado por Jacques Derrida desde a publicação de suas duas obras principais - Gramatologia e A escritura e a diferença - em 1967. A obra de Derrida exerceu grande influência na teoria e crítica literárias a partir da segunda metade do século XX, principalmente nas décadas de 80 e 90. A repercussão da sua obra causou efeitos grandiloquentes no pensamento ocidental com ênfase nos estudos literários e da filosofia sob o nome de Desconstrução. Essa noção é uma prática de leitura crítica, e em Derrida uma escritura dessa leitura. A desconstrução não significa destruição, mas sim um reposicionamento, por meio "daquilo que foi chamado de desconstrução", como disse Derrida em um discurso, pois ele próprio não reconhece a desconstrução como um método, e não o é, nem um método e nem um sistema filosófico no sentido tradicional da filosofia. A questão maior da desconstrução é a do sentido na linguagem. Mas o "sentido" não faz sentido para Derrida, pois cairia num idealismo redutível falar de sentido no singular (PERRONEMOISÉS, 2000, p. 303). Para a noção da desconstrução a escrita é que produz sentido, os quais, são múltiplos, plurivalentes, são sempre relacionais, incertos e não sabidos. Os conceitos desconstruídos por Derrida são os de significado, verdade, ser, essência. A esses conceitos ele opõe a noção diferência (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.303). Em Manoel de Barros podemos perceber essa postura desconstrucionista, conceitos como os de poesia, ser, palavra são constantemente desconstruídos e reposicionados. O que 3 A tradução deste termo sofre duas variações: "diferância" e "diferência". Neste trabalho opta-se por "diferência", termo também usado por Leyla Perrone-Moisés em Inútil Poesia. 648 ANAIS - 2013 importa nesses conceitos todos não é o próprio conceito em si mesmo, mas os efeitos que estes podem causar. Como uma prática reflexiva eles surgem e inculcam no público ledor dúvidas, aparecem como questionamentos que abalam a confiabilidade de um conceito, de um dogma. Para Derrida este reposicionamento dos conceitos pode ser lido como uma prática reflexiva acerca das relações hierárquicas do pensamento metafísico ocidental. Fazer justiça a essa necessidade significa reconhecer que, em uma oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos comanda (axiologicamente, logicamente, etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia (DERRIDA, 2001, p.48). O que Derrida propõe com essa inversão das hierarquias não está muito distante do que Manoel propõe em seus poemas. A poética do "des" quer ser lida não somente como algo que nega o que existe, vai além, essa marca escritural de Manoel quer questionar os valores tradicionais. Será que temos um começo ou um "descomeço? Temos um objeto ou um "desobjeto"? O que significa para um sujeito ler a poesia construída e ao mesmo tempo desconstruída pelas palavras? E por "despalavras"? A poética de Manoel de Barros, suas marcas escriturais são e acontecem de formas variegadas, estamos neste momento abordando a questão do prefixo "des" que gera um "feitiço nas palavras" (BARROS, 2009), é uma marca registrada 649 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento ler neologismos construídos com esse prefixo desestruturando não só o signo linguístico, mas o pensamento. Suas marcas não cessam por aí, há talvez uma crítica envolta, se "a desconstrução é uma prática de leitura crítica dos textos filosóficos e literários (cujas fronteiras genéricas ela contesta), uma 'estratégia geral teórica e sistemática' (Positions) de decomposição dos discursos, revelando seus pressupostos, suas ambiguidades, contradições e não-ditos" (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.302), deseja-se fazer uma leitura da escritura de Manoel de Barros. Num primeiro plano houve o descentramento das palavras, essas que integram a poesia, a "despalavra mesmo", mas é possível haver o (des)centramento do ser? E o (des)centramento da poesia? 2 O (des)centramento do ser Ao depararmo-nos com a crítica derridiana, aquela na qual há o acontecimento de ruptura, de disrupção com a estruturalidade dos signos, conseguimos aos poucos enxergar a ponta do pensamento da desconstrução. Em um de seus artigos fundamentais - "A estrutura, o signo, e o jogo nos discursos das ciências humanas" - o filósofo selou seu posicionamento abalando de vez os estruturalistas e caiu nas graças do público que de modo muito breve passou a manifestar essa filosofia num contexto chamado pós-estruturalista e denominar o pensamento de Derrida como a desconstrução, ou melhor, a filosofia desconstrucionista. Toda essa euforia não é sentida com tanta intensidade ao se ler Derrida, o autor é bastante objetivo e lógico ao se posicionar. Derrida passa-nos de certo modo um tom banalização por parte do pensamento estruturalista, segundo ele 650 ANAIS - 2013 A atitude estruturalista e a nossa postura hoje perante a linguagem ou na linguagem não são unicamente momentos da história. Antes espanto pela linguagem como origem da história. Pela própria historicidade. É também, perante a possibilidade da palavra, e sempre já dentro dela, a repetição finalmente confessada, finalmente alargada às dimensões da cultura mundial, de uma surpresa sem medida comum com qualquer outra e com a qual se agitou aquilo que se costuma denominar pensamento ocidental, esse pensamento cujo destino consiste muito simplesmente em aumentar seu domínio à medida que o Ocidente diminui o seu (DERRIDA, 1971, p.13). Nesse sentido pode-se perceber que a atitude estruturalista está presa a um ponto fixo, a um determinado posicionamento e que de certa maneira condiciona o pensamento humano a se manter sem mudanças, sem criar outras projeções a respeito daquilo que se lê. Essa postura de se manter preso às dimensões da cultura mundial, de atender as demandas do pensamento ocidental, de se confessar a essa constante repetição das palavras acostumadas ao mesmo tornase um hábito, e o que deixa Derrida intrigado é que este hábito não deve ser inerente ao ser, não podemos deixar que uma determinada estrutura opere seus mecanismos condicionando até mesmo nosso pensamento. Derrida faz a sua advertência em relação a esta postura: "Como vivemos da fecundidade estruturalista, é demasiado cedo para chicotear nosso sonho. Nele é preciso pensar no que poderia significar. Talvez amanhã o interpretem como um relaxamento, para não dizer um lapso" (DERRIDA, 1971, p.14). Essa chamada do filósofo é que nos 651 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento fez crer que estamos acostumados ao mesmo, que nos escritos de Derrida fica essa intensidade de banalização por parte do pensamento estruturalista que nos deixa presos há um centro rígido e não quer que nos desprendemos dele. Então, com este artigo que citamos a pouco e que fora publicado em seu A escritura e a diferença (1971), Derrida começa a desenhar uma nova figuração para os rumos das ciências humanas, anuncia de modo cauteloso o fim do estruturalismo, como vimos ao dizer que é demasiado cedo para chicotear nossos sonhos, mas talvez amanhã consigamos ter a real noção deste lapso. Essa postura crítica derridiana causou uma reviravolta que acoplou em seu bojo os estudos filosóficos, literários e uma mudança no pensamento político e ético da sociedade. Um dos trabalhos do professor Kanavillil Rajagopalan a respeito de Derrida que mostra esta noção bastante abrangente da política da desconstrução cita uma entrevista que Derrida cedeu a Lieven de Cauter, e nessa entrevista o filósofo discute a transformação que pode ocorrer no meio social se os estudos da linguagem forem levados a sério. Derrida defende uma postura de que a filosofia atual deve "pensar em ação", deve fazer "algo". E esse fazer "algo" nos remete a pensar no impacto que as palavras podem ocasionar socialmente falando, pensando como o "signo idelógico" de Bahktin. Rajagopalan então narra que em certa altura desta entrevista o filósofo menciona a chamada "crise da soberania", e fazendo sua análise assim a define: "Acredito que a crise da qual fala Derrida é sobretudo de ordem ética - uma crise que diz respeito às nossas crescentes incertezas na esfera ética em um mundo onde já não há mais incertezas quanto à questão de soberania" (RAJAGOPALAN, 2005, p.122). Por certo, o pensamento estruturalista surge como uma "soberania", mas Derrida aos poucos cria mecanismos para 652 ANAIS - 2013 promover essa "crise da soberania", e isso se dá no "momento em que, na ausência de centro ou de origem, tudo se torna discurso" (DERRIDA, 1971, p. 232). A palavra discurso tem em si a ideia de curso, de percurso, de movimento, logo o discurso é a palavra em movimento (ORLANDI, 2009), por isso Derrida compreende que se dá a crise, pois o discurso não se deixa prender ao centro. Para compreendermos e visualizarmos melhor essa situação, devemos levar em consideração o posicionamento da filosofia desconstrucionista hoje. Pautamonos no seguinte: esse posicionamento iniciado na década de 50 com Barthes e tendo seu ápice nas décadas de 60 e 70 com Derrida tinha um cenário sócio-histórico bastante diferente do atual cenário social que dispomos. De modo ligeiro podemos dizer que essa filosofia da desconstrução é lutar contra as alienações políticas da linguagem, lutar contra a dominação dos estereótipos, de desvencilhar-se da tirania das normas, de superar as hegemonias ideológicas, enfim, é um posicionamento crítico que um cidadão deve se portar. No entanto deve-se levar em conta a nova paisagem geopolítica e cultural para "desconstruir" esses valores, pois um posicionamento crítico implica uma leitura de mundo, uma leitura do cosmo interior e o real entendimento das condições em que vivemos. Neste novo cenário sociocultural marcado por grandes transformações que "libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas" (HALL, 2011, p.25), nos remete a um novo posicionamento diante do ser. Tais transformações são oriundas de um fenômeno chamado globalização, nas palavras de Anthony Giddens Globalisation can thus be defined as the intensification of worldwide social relations which link distant localities in such a way that local happenings are shaped by events 653 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento occurring many miles and vice versa. This is a dialetical process because such local happenings may move in an obverse direction from the very distanciated relations that shape them4 (GIDDENS, 1994, p.181). Logo, este fenômeno que Giddens descreve ocasionou uma nova postura do indivíduo dentro da sociedade. Hoje não há mais aquele sujeito preso em tradições ou estruturas, com a intensificação das relações sociais, esse turbilhão de acontecimentos que devem ser assimilados de modo muito rápido trouxe mudanças para nosso convívio. Hoje sustenta-se que as identidades modernas dos sujeitos estão fragmentadas, Stuart Hall argumenta que "não houve simplesmente a sua desagregação, mas seu deslocamento" (2011, p.34). Tal deslocamento tem a ver com a "crise da soberania" da qual disse Derrida, esses argumentos coadunam-se em desvencilhar o pensamento do indivíduo das estruturas fixas. Jacques Derrida que protagonizou uma das maiores críticas ao trabalho do linguista Ferdinand de Saussure visa desconstruir a visão de língua em que não somos os "donos" de nossos discursos, pois para Saussure apenas podemos produzir significados se nos posicionarmos dentro das regras da língua obedecendo seu sistemas linguísticos e culturais. Para Derrida a língua "enquanto centro, é o ponto em que a substituição dos conteúdos, dos elementos, dos termos, já não é possível. No 4 Desse modo a globalização pode ser definida como a intensificação das relações sociais nas quais unem localidades distantes em todo o mundo, de modo que os acontecimentos locais se formam pelos eventos ocorridos a longa distância e vice e versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar em uma direção reversa devido as longas distâncias das relações que lhes forma. *Tradução do autor. 654 ANAIS - 2013 centro, é proibida a permuta ou a transformação dos elementos" (DERRIDA, 1971, p.230). Nesse sentido, como se dá o descentramento do ser? Deve-se compreender que nosso cenário sociocultural atual não nos permite comunicarmos apenas dentro de um sistema linguístico e cultural estanque, pois essa nova era é marcada pela dinamicidade dos acontecimentos. Para tanto, Derrida desabona tamanha importância dada ao logocentrismo ocidental e aponta para a noção de escritura, que ao nosso ver é um modo peculiar de escrita, uma maneira específica com traços evidentes da identidade de cada um ao expressar-se, para nós este ato de expressar-se muito tem a ver com a força das palavras, com a linguagem poética. Se pararmos para fazer uma breve análise do pensamento derridiano talvez pudéssemos considerar seu trabalho como um "metatexto", isto é, um autor que resgata a função de um texto, a função de uma palavra, o que muito tem relação com Manoel de Barros, poderíamos até mencionar quatro grandes especificidades destes dois grandes nomes, são elas: a palavra, o verso, o poema, o livro. Hall ao mencionar o grande filósofo da desconstrução e ao ressaltar essa "virada linguística" que promoveu, bem como anunciando a postura desconstrucionista esclarece que "os significados das palavras não são fixos, numa relação um a um com os objetos ou eventos no mundo existente fora da língua o significado surge nas relações de similaridade e diferença que as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua" (HALL, 2011, p. 40-1). Ao analisar mais de perto a obra derridiana notamos exatamente isso, sua escrita transparece esse caráter não fixo, seu texto parece esvoaçante, não se pode pegá-lo, é difícil achar uma ponta para atar um nó com o texto que se analisa, é mesmo uma linguagem poética. Tendo esta noção de deslocamento do ser que foi fragmentado pelo 655 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento acirramento das relações e eventos sociais, vislumbrando o ato de desconstruir de Derrida, apegando-nos a não fixidez das palavras e num discurso fluido, rememoremos a poesia de Manoel de Barros. Toda essa avalanche de eventos sociais díspares que vem acontecendo influenciaram a produção artística de Manoel de Barros. Tais fatos decorrem da chamada modernidade e Manoel de Barros é um poeta da modernidade, logo fica evidente que de uma forma ou de outra ele está acoplado a essas transformações. No entanto, apesar de ser um autor modernista este não se deixa enquadrar-se, "a poética de Manoel de Barros é singularíssima e está além de qualquer tentativa de classificação historiográfica tradicional" (CASTRO, 1991, p.64), é bem certo que ele está em todas e não cabe em nenhuma. Se por um lado Derrida fundamenta todos os propósitos de um posicionamento que denomina-se "desconstrução", mas que não requer enquadramentos como teoria, é porque este tipo de escalonamento não condiz com a sua filosofia, portanto seu pensamento age como um pressuposto para nossas análises e deixamos a discussão de sua teoria para aqueles que se prendem em querer enquadrar as coisas, nós preferimos ocuparmos da poesia, pois esta sim desempenha "papel muito grande na construção da sociedade, buscando o sentido de humanização pelo lúdico, pela arte" (CASTRO, 1991, p.73). Sendo assim, procuraremos verificar como ocorre na poesia de Barros esse deslocamento, o descentramento do ser, a desconstrução do ser. Visto que em Manoel de Barros a voz primária vem das palavras, e para confirmar isso o próprio poeta em entrevista concedida a José Otávio Guizzo disse que "a poesia é feita de palavras, palavras, palavras" (BARROS5, 1996, 5 Sobrevier pela Palavra - Revista Grifo - Campo Grande, MS, José Otávio Guizzo. - (G). 656 ANAIS - 2013 p.309), nós detectamos que a palavra da poesia de Barros na verdade é a "despalavra", "a palavra arrombada a ponto de escombro [...] a ponto de entulho ou traste..." (BARROS, 1996, p.308-9), é uma marca escritural que Manoel encontrou para "falar dos fragmentos do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior" (BARROS, 1996, p.308-9). Essas características da fragmentação do ser, ou mesmo de seu descentramento é então artisticamente representado pelo bardo pantaneiro, e desescrever o ser em suas poesias tem sido uma marca registrada deste poeta. Mas como este ser "descentrado" aparece em Manoel de Barros? Sua produção artístico-literária traz algumas marcas escriturais. A primeira delas ao nosso ver abrange as três primeiras produções do poeta que marca o início de uma trajetória literária. Num primeiro momento de sua produção Barros recorre ao poema-retrato e ao poema-crônica (CASTRO, 1991, p.11), estes são poemas capazes de expressar o que sua memória guardou da sua vida em Corumbá, as reminiscências da infância e sobretudo o Pantanal. Mais adiante o autor entra numa fulguração bastante acirrada com o trato para com as palavras. A partir deste segundo momento é que o autor abandona por completo as formas e dedica-se a descobrir a sua verdadeira poética e desponta sua produção ampliando cada vez mais o número de obras publicadas e aperfeiçoando-se em suas inutilidades. Afonso de Castro faz uma análise bastante pertinente das três máximas recorrentes em Manoel de Barros, vejamos: A poética de Manoel de Barros concilia três faces: não abandona as raízes de origem; a configuração geográfica do pantanal continua como matriz de interpretação luxuriante das águas, dos répteis, dos vermes, dos peixes, das aves, das árvores, 657 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento dos animais e dos homens, instaurando imagens transformacionais de um universo plurissensorial; o poeta passa a assumir todas as propriedades e faculdades de cada ser que habita o pantanal, estabelecendo uma comunicação direta entre todos os componentes deste universo (CASTRO, 1991, p.12). O primeiro item mencionado diz respeito ao não abandono das raízes de origem, que equipara-se com o primeiro momento em que mencionamos logo acima. Isso se torna uma marca escritural de Barros também, no entanto não é a marca que desejamos analisar neste trabalho. O segundo momento da poesia de Manoel engloba as outras duas características que Castro defende, voltar a sua atenção para as águas, os peixes, as árvores e instaurar imagens transformacionais. Ao propor a Gramática Expositiva do Chão, talvez Barros quisesse fazer uma espécie de ironia com a Moderna Gramática Expositiva da Língua Portuguesa, de autoria do gramático Artur de Almeida Tôrres, pois seu livro teve sua primeira publicação em 1969, sete anos depois da publicação da gramática de Artur. Desta forma sua poesia rejeita a condição da gramática normativa, um instrumento que pode ser denotado facilmente como um produto operador de dominação social. Em nosso país as classes sociais menos favorecidas sempre ficaram relegadas a funções subalternas pelo fato de não serem detentores de um estudo que lhes permitam utilizar as normas linguísticas. Conquanto, a poesia de Manoel de Barros recupera a expressividade do idioma que permite que a cultura brasileira seja apresentada ao público (MARINHO, 2009). Logo de início, a Gramática Expositiva do Chão de Manoel de Barros estabelece um "Protocolo Vegetal". O leitor 658 ANAIS - 2013 se depara com uma lista de vocabulários excêntricos para a formalidade dos estudos da língua, tais como: "pente", "muleta", "capote", "garfo", "corda de enforcar", "travesseiro", "botão" (BARROS, 2007, p.10), todas essas palavras fazem parte do cotidiano de uma pessoa e de seus hábitos mais comuns como pentear o cabelo, uma pessoa com necessidades especiais que usa uma muleta, um menino que brinca e leva um capote, a refeição que se faz todos os dias e para isso utilizamos o garfo, o travesseiro que representa o sono, o descanso, enfim, são palavras que representam o cotidiano das pessoas, mas a utilidade desses elementos tornam-se invisíveis para os adultos. Muitas dessas palavras são encontradas com maior frequência na linguagem infantil e na poesia de Manoel de Barros tomam outras proporções, segundo Marinho e Calegari (2010, p.4) no universo lúdico e doméstico das crianças, ocorre precisamente o processo inverso: o objeto e sua designação irrompem de forma recorrente em várias atividades diárias, lúdicas ou simplesmente prosaicas, e conotam igualmente prazer, aspecto importante para o trato de sua ocorrência na poesia. A partir do momento em que o discurso e a palavra passam a representar as construções de identidades sociais, a poesia de Manoel de Barros ganha novos limiares. Uma obra em que se preza e se baseia na identificação do universo e do cotidiano infantil aponta para uma postura de enxergar o ser de modo diferenciado, no fundo, a briga é entre um pensamento organizado segundo perspectivas arquitetônicas, cartesianas, contra um pensamento em que a imaginação toma as iniciativas e comanda o trabalho, com o rigor e a liberdade do curso de um 659 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento rio, ou do musgo que cresce no céu da boca. Tal postura onírica cria o "homem de lata", que segundo Barros O homem de lata é um iniciado em abrolhos e usa desvio de pássaros nos olhos [...] O homem de lata é uma condição de lata e morre de lata (Manoel de Barros, 2007, p.24-5) Apenas quem consegue se desprender de tudo o que se impõe como regra no cotidiano e ter uma postura tal qual a inocência de uma criança terá o privilégio de aproveitar a criatividade poética de Barros (RAMIRES; RUSSEFF; 2004), pois ver um homem de lata exige grande poder imaginativo. Um homem de lata que "usa desvio de pássaros nos olhos" sugere transfundir-se com um mundo imaginário e torná-lo real, ato ou efeito prático que uma criança exerce, por força de seu momento particular de desenvolvimento, descoberta do mundo que naturalmente enxerga as pessoas e as coisas a partir de vários ângulos e com conceitos sempre novos. Neste caso, com percepções e alusões que surgem da imaginação, da criatividade, do fazer poético, ou seja, de encontrar o inesperado naquilo que é aparentemente mal-acostumado ao mesmo (MORAES; MACIEL; 2009). Em sua história, entre outras atividades, Manoel conviveu com fazendas e com o seu cotidiano, agarrou-se à permanência das águas do pantanal, ao seu ciclo de fecundidade 660 ANAIS - 2013 e de irrigação para imaginar um mundo que não seja de oposição – como entre a tecnologia e a mitologia, entre a cidade e o campo, entre a ignorância e a ciência, por exemplo (MORAES; MACIEL; 2009). O mundo de Manoel encontra e explora a dimensão linguística explorando as palavras a fim de desinstalar significados e deslocar o cotidiano. Outra variação encontrada neste mesmo livro do poeta é a representação de uma territorialidade, isto é, a cultura tem sua mais forte expressão na língua e portanto, a esta última incumbe-se o papel de carregar um espectro cultural. Num diálogo poético Manoel traz marcas da cultura sul-mato-grossense: — Cumpadre, e longe é lugar nenhum ou tem instante? — Só se porém. — E agora vancê confirme: pardal é o esperto? roupa até usa dos espantalhos? — É esperto, cumpadre, não cai do galho. (Manoel de Barros, 2007, p.52-3) Neste breve diálogo entre dois compadres nota-se a marca do regionalismo e da fala cotidiano, ou coloquial. Os vocábulos "cumpadre" e "vancê" são uma variante regional que representam a fala do pantaneiro, assim verifica-se imagens do pantaneiro na poesia de Barros. A essa altura a linguagem reelabora e recria o universo trazendo retratos com alto grau de simbolismo de uma cultura eminentemente brasileira, cultura 661 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento marcada pela miscigenação que contempla todo o processo fragmentário da cultura contemporânea. Neste momento de entrelaçamentos, a literatura passa a manifestar-se também de modo a representar determinada face de uma cultura, isto implica numa reelaboração da visão do ser, a poesia humanista de Manoel de Barros ao mesmo tempo que "descentra" a noção de ser como se viu no "Homem Lata", ao mesmo tempo elabora de modo metafórico a visão desconstrucionista que facilita o entendimento do atual momento, o que equivale dizer o "criançamento da palavra". 3 O "criançamento" da palavra em Manoel de Barros Todo o processo de criação de Manoel de Barros dá-se por meio da palavra. Vimos que a palavra é o elemento sensível de cunho ideológico que representa as mudanças sociais, que atribui efeitos para a construção de identidades sociais, que marca um discurso estável e é a chave central de uma poesia. Com tais considerações já feitas, o que ocorre com a poesia ao se propor o "criançamento"? A proposta do chamado "criançamento" da linguagem de Manoel de Barros ressoa ou conversa com outras formas de "criançamento"? A hipótese do trabalho é que não apenas ressoa, como dialoga de perto com a desconstrução proposta na história do pensamento ocidental, o que fomenta uma crítica e uma mudança estrutural no âmago dos estudos que envolvem a linguagem. Essa postura é análoga a do professor Marcelo Marinho que conjuntamente com Fábio Mazziotti Pereira escrevem sobre as marcas do niilismo na obra de Manoel de Barros, mas niilismo não no sentido de ausência de valores ou negação, mas como questionamento dos valores estabelecidos, é o propor novas maneiras de ser ver o mundo esclerosado pelo 662 ANAIS - 2013 convencionalismo do homem. Estes dois pesquisadores apontam que quando Manoel nega a "palavra acostumada" e põe em prática o "deslimite da palavra" ocorre a desconstrução do universo poético e instintivamente a recriação desse universo por meio da palavra (MARINHO, 2009). O ápice de Manoel de Barros quanto à recriação do universo poético para nós vem anunciado em seu Livro Sobre Nada qu f qu ó é “ch g "c ç " ” (B RRO , 1996, 47) O "criançamento" implica, nesse sentido, todas as imaginações, reinvenções, desconstruções e invenções oriundas das memórias da infância. Imaginando de novo a infância, Manoel busca elementos para criar uma nova perspectiva, uma nova forma de fazer poético. Tematizando esse trabalho, a infância invade e ilumina a fábrica da poesia, quando desconstrói a perspectiva segundo a qual o trabalho criativo acontece. Matéria de poesia é, justamente, o material que ficou excluído da imaginação adultecida – adoecida pela esclerose do adulto, por isso o "poeta das águas" anuncia também que "Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia" (Manoel de Barros, 2001, p.13). Logo, o poeta transfere para a poesia manifestações excluídas pelo homem urbano como por exemplo "caco de vidro", "garampos", "ninho de joão-ferreira" até um "homem jogado fora" (BARROS, 2001) e isso revela um mundo possível no universo infantil ainda não pertencente à gramática, isto é, o "criançamento" da palavra pretende que se recupere a liberdade inocente de um infante que usa a língua aleatoriamente para criar seu próprio mundo, para inventar seus próprios conceitos e/ou maneiras de ver o mundo, o outro, as coisas, os seres, os bichos e apresentar uma relação experimentada a partir da 663 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento comunhão e da humanização da vida elevando o ser a seu grau mais pueril. O "criançamento" além de romper com a estrutura mesma da poesia, de abordar a palavra por um viés criativo e desarrumar a cartilha, bem como a volta à infância que surge com a alquimia dos verbos de Manoel, isto é, o mundo, a linguagem e a infância permutam-se e se apresentam sob diversos significados sempre renovadores que vão incidir no devir dos seres e da vida, o "criançamento" torna-se portanto a prática de inovação da língua e representa sua característica dialética, implica numa postura de texto que se firma como um modo de manifestação sobre o poético. Em suma, é em Derrida que vamos notar que a verdade do literário decorre do impasse de uma experiência singular, ou seja, "nessa nova mudança de perspectiva do ponto de vista da teoria da literatura, é a própria relação com o saber teórico (com a prática histórica, com a experiência identitária, etc.) que se encontra transformada" (SISCAR, 2010, p.210). A essa postura Marcos Siscar (2005, p.141) diz da coragem de Derrida em "sua capacidade de recolocar, a cada vez, tudo em jogo, de acabar para recomeçar, de acabar por recomeçar". Mas isso não no sentido de abandonar o já sabido e começar tudo outra vez, é uma postura de reinventar o mesmo e com isso apregoar a tarefa importante de redefinir as tonalidades de acontecimento. Recolocar as coisas em jogo não é um hábito comum em nosso pensamento, e o que Siscar chama de coragem em Derrida é exatamente quando os discursos "filosóficos" e "literários" recolocam o problema ao acontecimento (SISCAR, 2005). Do mesmo modo, o "criançamento" conversa de perto com essa postura derridiana, sua poesia propõe um "imaginar o mundo que não seja de oposição – como entre a tecnologia e a mitologia, entre a cidade e o campo, entre a ignorância e a 664 ANAIS - 2013 ciência, por exemplo, o mundo de Manoel é de continuidade, de ciclos, de comunhão" (MORAES; MACIEL; 2009), e por isso sua obra procura uma outra forma de pensar a realidade. Tanto a poesia de Barros, quanto a filosofia de Derrida impõe uma ruptura com os pensamentos canônicos e conservadores. Isto para a literatura surge como novos rumos para seu ensino e aprendizagem, bem como para o tratamento com a língua. Ambas produções aqui aderidas relacionam-se, a poesia do "criançamento" de Manoel de Barros – como sugerimos – e a filosofia desconstrucionista derridiana. O discurso literário evidencia uma maneira peculiar de escrita, uma linguagem que chama a atenção sobre si mesma, que utiliza de recursos estilísticos para criar e inventar imagens represent u c c P H gg , “ interpretação literária não está fundamentada na atividade humana; em primeiro lugar ela não é alguma coisa que fazemos, g qu x qu c ç ” (in EAGLETON, 2003, p.89). Nesse sentido, notamos que o discurso literário, ou os gêneros literários num todo, não servem para serem descritos, e sim descobertos. Na poesia de Manoel de Barros o leitor se depara constantemente com a desconstrução, com os "deslimites" das palavras, isto é, a poesia existe em si mesma e não pede para que seu leitor a interprete e a descreva, mas sim que na interação entre leitor e texto haja um momento de edificação de aprendizagem, da construção da literatura, da construção e o reconhecimento da presença de uma cultura e estabeleça uma relação de alteridade com o ser presente dentro do poema estabelecendo paralelos. Trata-se aqui de uma proposição universal sobre a natureza da própria escrita. Neste ponto o 665 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento leitor e suas vicissitudes são parte integrante do todo da obra na (des)construção de sentido do texto. Jacques Derrida defende qu “ cu á á ç u escapar do sentido que tenta limitá-lo (in EAGLETON, p.185), ou seja, o poema surge e dita o ritmo que deverá seguir a leitura, este por sua vez pede a reflexão e funciona como um ente autoconsciente do seu papel interpelando insistentemente pela descoberta do seu leitor. Referências Obras de Manoel de Barros BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1996. ___________.Retrato do Artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 2009. ___________.Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2003. ___________.Memórias Inventadas: a infância. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006. ___________.Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. __________. Arranjos para assobio. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. Suporte Metodológico BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. 666 ANAIS - 2013 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 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O trabalho focaliza o acervo adquirido no ano de 2011 pelo governo, especificamente o acervo destinado aos anos finais do ensino fundamental, que circula nas escolas públicas municipais de Dourados – MS. A investigação, centrada na área de leitura e formação de leitores na perspectiva da História da Leitura (Chartier, 1990, 1996), adota um percurso metodológico que inicia com uma reflexão histórica sobre o surgimento da literatura infantojuvenil no Brasil. A seguir, são destacadas as políticas de leitura efetivadas no país, inicialmente, o Programa Nacional Salas de Leitura – PNSL, em 1984, e, na sequência, o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE, criado em 1997. Ao lado disso, é analisado o edital que trata dos critérios de avaliação e seleção das obras, dados estatísticos da política e a composição do acervo de 2011. Por fim, o trabalho consiste na discussão a respeito da importância do mediador da leitura na formação do leitor. Com o estudo, pretende-se demonstrar a importância do programa e a necessidade de investimentos na formação do professor enquanto mediador da leitura, bem como contribuir para novas discussões a respeito da necessidade de melhorias de políticas públicas de popularização da leitura. PALAVRAS-CHAVE: Mediadores; Leitura Literária; Formação de Leitores. Introdução 670 ANAIS - 2013 A expansão da leitura foi, sob vários aspectos, funcional para a consolidação da burguesia enquanto classe dominante. [...] Além disto, propiciou o aumento do público leitor, cooperando, pois, para a ampliação do mercado consumidor de bens transmitidos por escrito, como jornais, revistas, almanaques, folhetins, livros [...] A divulgação crescente da literatura de massa relaciona-se de modo decisivo com a nova situação da leitura e da educação, beneficiando-se com a difusão do ensino e, ao mesmo tempo, empurrando a escola na direção de áreas até então marginalizadas [...] (ZILBERMAN e SILVA, 2002, p. 14). Fatores históricos e sociais ocorridos na Europa do século XVII decretaram o surgimento da Literatura Infantojuvenil no mundo e depois no Brasil. Segundo Zilberman (1987, 5), “ Eu f écu XVII é c profundas transformações no âmbito social, econômico e artístico, devido à ocorrência de um processo de mudanças que c u f I Mé íc I M ”, com a ascensão da classe burguesa na sociedade europeia em substituição à estrutura feudal. Com essa nova classe que emergia, impõe-se a necessidade da propagação de uma nova visão ideológica. Para Z b (1983, 19), “f z-se necessário o surgimento concomitante de instituições e produtos culturais que não apenas divulgassem estas novas proposições, mas que igualmente condic c ç h ”, de modo que atendesse aos interesses da nova elite. A escola torna-se responsável em propagar a nova imagem de infância com objetivos bem específicos e, de acordo 671 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento c Z b (2003, 21), “a escola tem nesse processo uma atuação preponderante, assumindo um duplo papel – o de introduzir a criança na vida adulta, mas, ao mesmo tempo, o de protegê- c g õ u x ” N concepção de escola imperam as normas e os valores da classe dominante, que devem ser transmitidos às crianças sem qualquer questionamento, como forma de manter a ideologia burguesa que a sustenta e, consequentemente, garantir o funcionamento do estado e da sociedade. Com a ênfase dada à escola, surge, também, a necessidade de produtos culturais, cuja missão é a de reproduzir o mundo adulto, pela veiculação de conceitos e padrões comportamentais que estivessem de acordo com os valores sociais prediletos da classe dominante. Zilberman (1983, p. 20) complem qu “ u f f u-se num instrumento que, aliado à pedagogia nascente, procurou converter cada menino num ente modelar e útil ao fu c g g c ” bj b específicos e moralistas presentes nos textos literários voltados ao público infantil, o modelo educativo a ser seguido, sob a influência do cristianismo, procurava direcionar o foco para a catequização popular. No Brasil, outro fator determinante para o surgimento do gênero literário se deve ao fato de que no país existia um grande número de analfabetos. Uma das primeiras iniciativas para superar a situação grave se deu, como afirmam Lajolo e Zilberman (1985), com o surgimento da literatura infantojuvenil no Brasil entre os séculos XIX e XX, devido à constatação da existência de uma elevada taxa de analfabetismo ocasionada pelo reduzido poder aquisitivo das camadas menos favorecidas e da falta de políticas públicas culturais por parte do governo, que não proporcionava ao povo acesso ao livro em bibliotecas e 672 ANAIS - 2013 escolas como forma de desenvolver o gosto pela leitura. Na tentativa de superar a baixa qualificação que impedia o desenvolvimento do país, concluiu-se que havia necessidade de incentivar a leitura como forma de reverter o quadro desse déficit. A saída foi o desenvolvimento de políticas públicas de incentivo à leitura, objetivando a aquisição e a distribuição de livros às instituições de ensino públicas, mediante a criação e/ou ampliação do número de bibliotecas e do acervo escolar, a fim de facilitar o acesso a livros e, consequentemente, contribuir para a formação do leitor. 1. Políticas Públicas de Leitura No final do século XX, foi implantada a primeira iniciativa governamental efetiva no Brasil com a criação do Programa Nacional Salas de Leitura – PNSL, em 1984, que teve sua vigência até o ano de 1996. A Política consistia na distribuição de obras às escolas públicas do 1º e 2º Grau, com o bj “ f c u u â do livro no circuito escolar através da criação de Salas de L u ” (FERN NDE , 2007, 44) Na sequência, foi instituído, em um momento de grande importância, o Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE, no ano de 1997, cujo propósito era ampliar o acesso ao livro e fomentar as práticas de leitura. Isso se dá em âmbito nacional, com um inegável esforço para se consolidar como uma política governamental, já que o grande índice de analfabetismo obrigou o país a criar instrumentos e mecanismos que contribuíssem para avançar na questão. O PNBE foi criado via Portaria Ministerial nº 584, do Ministério da Educação, com o objetivo de promover o acesso à 673 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento cultura, à informação e o incentivo à leitura de alunos, professores e da população em geral, sendo um apoio à atualização e ao desenvolvimento do cidadão no exercício da reflexão, da criatividade, ao formar ou ampliar o acervo de livros de literatura infantojuvenil das bibliotecas das escolas públicas brasileiras (BRASIL, 2012). A execução do Programa fica a cargo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pela aquisição e distribuição das obras, em parceria com a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC), encarregada de fazer a avaliação e a seleção das coleções e acervos (BRASIL, 2012). O Programa tem como fundamento legal o artigo 208 da Constituição Federal, que garante o direito do educando ao material de apoio didático e as determinações de universalização do acesso, e à melhoria da qualidade da educação básica, respaldados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB. O PNBE é o maior programa de incentivo à leitura implantado em nosso país, pois, em uma sociedade de extrema gu c B , “ u çã é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a g z á à u ” ( NDIDO, 2004, 9), um programa estatal para a formação de leitores é imprescindível para o acesso a livros. Neste sentido, não se pode desconsiderar que, em muitos casos, crianças oriundas da classe trabalhadora têm contato com livros somente na escola, sendo este, portanto, um espaço social fu F (2007, 19) f qu “à baixa posse de livros somada ao baixo poder aquisitivo da maioria dos leitor ” ã u de casa, ou seja, o acesso aos livros e à leitura é restrito, como bem cultural privilegiado, a uma limitada parcela da população. 674 ANAIS - 2013 Com efeito, a política nacional oportuniza a milhões de alunos de escolas públicas municipais, estaduais, federais e do Distrito Federal o contato com acervos de títulos de diversos gêneros literários, como contos, crônicas, romances, poemas e histórias em quadrinhos, possibilitando a democratização do acesso às obras literárias. Para compor o acervo, o Ministério da Educação publica anualmente um edital que tem por objetivo convocar editoras para a inscrição de obras de literatura para serem avaliadas, selecionadas e, consequentemente, enviadas às instituições educacionais públicas no ano subsequente, existindo, assim, uma programação com antecedência de um ano. 2. Programa Nacional Biblioteca da Escola: PNBE 2011 Para o PNBE 2011, o edital de convocação para inscrição de obras de literatura no processo de avaliação e seleção, documento este que norteia a composição das seleções, estabelecia em sua composição 6 acervos diferentes: para os anos finais do ensino fundamental, 3 (três) acervos distintos, com até 50 (cinquenta) títulos cada, num total de 150 (cento e cinquenta) títulos; para o ensino médio, 3 (três) acervos distintos, com até 50 (cinquenta) títulos cada, totalizando 150 (cento e cinquenta) títulos. As coleções deveriam atender as orientações estabelecidas no edital, dentre elas a faixa etária das crianças, dos jovens e adultos, a diversidade de gêneros literários, como contos, crônicas, romances, poemas e histórias em quadrinhos, de diferentes níveis de complexidade, para serem lidos com autonomia, e também obras que exigissem a mediação do professor. 675 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Os critérios de seleção das obras também abrangem os aspectos relativos à qualidade do texto, adequação temática e projeto gráfico. Os princípios considerados versam sobre a valorização da identidade nacional em suas mais diversas vertentes, contemplando obras com adequação temática referente à diversidade em sentido amplo, no que tange aos diferentes contextos socioeconômicos, culturais, ambientais e históricos que constituem a sociedade brasileira, assim como textos eticamente adequados, não se admitindo preconceitos, moralismos, estereótipos, didatismo ou discriminação de qualquer ordem. Quanto ao projeto gráfico, foram considerados aspectos relativos à apresentação da obra, layout, imagens, interação das ilustrações com o texto, uso do papel adequado e a adequação aos diferentes públicos. Consideram-se relevantes tanto os critérios de seleção, quanto o número de estudantes de faixas etárias diferenciadas beneficiados com o acesso a diversas obras literárias, especificamente dos anos finais do ensino fundamental, que é nosso objeto de estudo, como demonstra o quadro a seguir: PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA – PNBE (2011) Ano de Aquisição Ano de Atendimento Ensino Fundamental Investimento Alunos atendidos Escolas beneficiadas Livros distribuídos Acervos distribuídos 2010 2011 6º ao 9º ano R$ 44.906.480,00 12.780.396 50.502 3.861.782 77.754 Fonte: Dados estatísticos do PNBE 676 ANAIS - 2013 O critério de atendimento foi elaborado de acordo com o censo escolar, ou seja, a distribuição teve como parâmetro o número de alunos matriculados nas escolas públicas. No ano de 2011 foram contemplados distintos tipos de acervos, sendo 3 diferentes, 2 deles com 50 e 1 com 49 livros. CRITÉRIOS DE ATENDIMENTO DO PNBE (2011) Censo 2010 Etapa do ensino fundamental 6º ao 9º ano 2010 6º ao 9º ano 2010 6º ao 9º ano Número de alunos (as) 1 a 250 alunos 251 a 500 alunos Mais de 500 alunos Acervos 1 acervo 2 acervos 3 acervos Fonte: Histórico do PNBE No entanto, mesmo com a implantação e implementação de um programa tão significativo como o PNBE, que promove o acesso a uma diversidade de obras e à leitura, o que ainda se fc u é “ c í c de leitura em grande parcela da população por meio de pesquisas e avaliação escolar governamental, bem como de diversos trabalhos científicos divulgados em congressos e ub c çõ ” (FERN NDE , 2007, 15), qu bé apresentam indicadores mínimos de leitores no país. 3. Pesquisa sobre o Índice de Leitura no Brasil A pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro, criado no ano de 2006 pelas entidades do livro – Abrelivros, CBL e 677 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento SNEL, é responsável por estudos que mostram a conduta do leitor, refletindo as mudanças sociais, culturais e da educação b P “ acompanhamento periódico das mudanças quanto a interesses, representações sobre leitura e livro, influenciadores, motivações, limitações, preferência por suporte g u u á u qu ” (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2011, p. 1), possibilitando traçar estratégias conforme o perfil da população e, consequentemente, avaliar as políticas públicas de leitura e ações vigentes. A pesquisa da 3ª edição, realizada no ano de 2011, por região e segundo o perfil dos leitores, demonstra impasses e a necessidade de traçar novos caminhos, com o objetivo de melhorar os indicadores, uma vez que o nível de leitura decaiu em relação à pesquisa anterior, mesmo com o alto investimento de recursos públicos na compra e distribuição de obras às instituições públicas, que promovem o acesso ao livro: O índice de penetração de leitores oscilou negativamente, da 2ª edição, realizada em 2007, para esta, passando de 55% para 50%. Essa oscilação ocorreu em praticamente todas as regiões brasileiras, com exceção do Nordeste, onde permaneceu estável. N 55% 47% NE 50% 51% CO 59% 43% SE 59% 50% S 53% 43% (INSTITUTO PRÓLIVRO, 2011). O estudo demonstra que as políticas públicas de leitura não têm efetivamente atingido seus objetivos voltados à formação de um país de leitores, ou seja, o acesso às obras não tem sido suficiente para estimular a leitura. Cabe, então, um repensar sobre as causas do baixo índice de leitura que, provavelmente, não estão vinculadas ao contato com acervos 678 ANAIS - 2013 literários, já que anualmente são milhões de livros distribuídos às instituições públicas brasileiras para serem disponibilizados nas bibliotecas ou para comporem o acervo da instituição. Dentro deste contexto, faz-se necessária uma reflexão em relação à prática de mediação literária, que consiste em “ c h j , c u u u ” (BORTOLIN; JÚNIOR, 2009, p. 210) ao aproximar leitor-texto. Nessa relação estabelecida entre obra e leitor, é fundamental o papel do mediador do livro, a quem cabe oportunizar aos jovens o acesso a universos culturais mais amplos, sugerir leituras, orientar o leitor no momento da escolha, enfim, dar oportunidade para o jovem fazer descobertas, possibilitando flexibilidade de leitura dos acervos, para que este não fique restrito a alguns títulos. 4. Mediadores da Leitura e a Formação de Leitores O governo tenta solucionar o problema com seus programas de distribuição de livros, investindo uma quantidade considerável de recursos na compra de acervos para serem enviados às escolas, mas não consegue resolver a questão da leitura, porque, entre outros problemas a serem equacionados nesses programas, não investe na valorização e na capacitação dos professores (FERNANDES, 2007, p. 30). Os problemas educacionais em curso no contexto atual, em que se atribui grande importância à formação de leitores, direcionam a abordagem de questões referentes ao acesso à leitura, aos mediadores da leitura, bem como a importância da 679 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento literatura infantojuvenil no desenvolvimento da competência leitora do educando, através da mediação da leitura. Com efeito, as leituras literárias proporcionam, ao mesmo tempo, prazer e conhecimento, além de contribuir para despertar o gosto do leitor, o que consiste em um verdadeiro aprendizado cultural, favorecendo mais a descoberta de sentidos que outros tipos de texto e, sobretudo, oferecendo condições para a formação do leitor competente, capaz de atuar em diversas e variadas frentes de entendimento e de reflexão. Já o acesso a livros no Brasil é vinculado à importância dada à leitura na escola. Esta se tornou a principal responsável pela formação e ampliação do público leitor, por meio da circulação de livros, principalmente entre as camadas menos favorecidas da população, competindo também a ela promover o gosto literário e formar leitores críticos, capazes de compreender sua situação no mundo e aptos para atuar como instrumento de mudança social. Nessa perspectiva, é fundamental oferecer condições g u , u “c c g u , qu x u ã x bu ” (COSTA, 2007, p. 105), para, assim, contribuir com a formação de leitores literários. Contudo, acredita-se que, para transformar o Brasil em um país de leitores, não basta apenas o acesso a livros por meio de programas de incentivo à leitura; para efetivar a formação do leitor crítico, capaz de interagir com os textos e deles abstrair o conhecimento no processo de fabulação, é imprescindível o papel do mediador da leitura no contexto das práticas escolares de leitura literária ou fora dela, para o funcionamento de estratégias de apoio à leitura na perspectiva do letramento literário, pois este permite compreender os significados da escrita e da leitura literária para aqueles que a 680 ANAIS - 2013 utilizam e dela se apropriam nos contextos sociais. (BRASIL, 2006). A escola, como principal mediadora das relações entre literatura e seu interlocutor, necessita questionar quanto aos métodos que têm sido utilizados para a formação do leitor. P u (2005, 63), f qu “ u á processada com mais autonomia tendo os estudantes direito de seguir suas próprias vias de produção de sentidos, sem que estes deixem, por isso, de serem c ”, u j , f z-se necessária uma nova didática de leitura literária se quisermos tentar reverter o quadro caótico da competência de leitura dos educandos, bem como formar leitores literários. Nesse sentido, o educador precisa contar com estratégias orientadoras dos procedimentos, como, por exemplo, a seleção de obras que deseja compartilhar com os educandos. Para F (2007, 31), “ z f çã fortalecimento do leitor, a instituição escolar precisa oferecer aos estudantes oportunidades para trocar experiências e debater o que leram, tornando essa atividade plural, instigante e g fc , u c f ”, obrigatoriedade de avaliar a leitura, ou que esta seja feita para ser demonstrada, comprovada, porque a situação é escolar. Tal postura muitas vezes contribui para o afastamento do aluno das práticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou aversão ao livro e ao ato de ler: Os objetivos de leitura e estudo de um texto literário são específicos a este tipo de texto, devem privilegiar aqueles conhecimentos, habilidades e atitudes necessários à formação de um bom leitor de literatura: a análise do gênero do texto, dos recursos de expressão e de recriação da realidade, das 681 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento figuras autor-narrador, personagem, ponto de vista (no caso da narrativa), a interpretação e analogias, comparações, metáforas, identificação de recursos í c , é c , f , “ u ” daquilo que é textual e daquilo que é literário (SOARES, 2006, p. 43-44). Desse ponto de vista, as estratégias de mediação da leitura envolvem a análise literária que instiga o leitor à leitura. Parafraseando Costa (2007), sobressai um trabalho voltado para a leitura literária, em que o educador trabalha mais intensamente com as reações e as respostas do leitor, mediante sua participação livre e produtiva tanto na prática de compreensão, na experiência virtual, na forma como o leitor dialoga com o texto, quanto na possibilidade de produzir interpretações diferentes a cada leitura realizada. Assim, nota-se que cabe ao educador exercer seu conhecimento nas estratégias e encaminhamentos pedagógicos e, da mesma forma, na seleção dos livros e na provisão de atividades, estando estes contemplados em sua proposta pedagógica com objetivos claros e definidos de como ensinar 1 1 A m ediação da leitura para Júnior; Bortolin (2009 p. 211) consiste em “ c c x u c u , quando possível, levá-lo a compartilhar o qu f c u ” 2 P (2008, 149) f u u c “c frequência um professor, um bibliotecário ou, às vezes, um livreiro, um assistente social ou um animador voluntário de alguma associação, um militante s c u í c , éu g u gué c qu c uz ” Trata-se, então, de qualquer pessoa que aproxima leitor-texto, em qualquer contexto social. Na escola, os principais mediadores são o professor e o bibliotecário. 682 ANAIS - 2013 literatura, trabalhar o texto literário, incentivar e orientar a leitura de livros, tendo em vista os níveis de dificuldade da leitura, seja a leitura mediada pelo professor, seja a leitura autônoma: O trabalho de mediação do professor para ligar os acervos à leitura necessita de uma outra pedagogia. A passagem do u çã “ ” c h significações e para o esclarecimento das razões e da importância da leitura desloca a ênfase do trabalho docente da perspectiva do ensino e da aprendizagem (COSTA, 2007, p. 112). Dessa forma, é preciso que o mediador2 rompa com modelos preestabelecidos, desmanche rótulos, faça críticas e reflexões, ao desfazer a cristalização de lugares estabelecidos, como as imposições de leitura, para outra pedagogia, para outros modos de ensinar literatura que, fundamentalmente, estimulem a criança e o jovem à prática da leitura. Contextualizar e problematizar as leituras segundo uma nova metodologia do mediador do livro, com foco na sua importância para ajudar a compreender o mundo de forma a assumir uma visão crítica, são uma possibilidade de motivação para a leitura. Constata-se, pois, que é fundamental o papel do mediador do livro, ao qual cabe oportunizar a crianças e jovens o acesso a universos culturais mais amplos, sugerir leituras ao acompanhar o leitor no momento da escolha, orientar, enfim, criar estratégias para o jovem fazer descobertas, possibilitando 683 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento diversidade de leitura dos acervos, para o leitor não ficar restrito a alguns títulos. Ou seja, essa intervenção crítica por parte do mediador em relação às seleções é necessária para entender as diferenças e especificidades dos títulos, os distintos poderes de irradiação e as qualidades literárias. Nessa direção de desenvolvimento do trabalho de mediação do livro, com enfoque na diversidade de produções, é possível estabelecer relações, pontes, entre as escolhas dos estudantes, oportunizando-lhes a possibilidade de ir avançando no grau de complexidade de leitura para alcançar uma nova etapa e, ao mesmo tempo, garantir seu direito de escolha, a qual, por mais subjetiva que seja, deve beneficiá-los, seja na possibilidade de fruição, seja no acesso à qualidade artística da obra literária. Em suma, é fundamental repensar o papel das instituições e dos agentes educacionais, dar ouvidos à voz dos alunos, oferecer-lhes oportunidade inclusive de avaliar o trabalho de leitura literária que está sendo desenvolvido e os livros que se encontram disponíveis no espaço escolar, para lhes proporcionar outras alternativas de escolha, pois aqueles que não têm ânimo e estímulo para ler determinados livros não se formam enquanto leitores literários. Considerações Finais Frente ao exposto, comprova-se que a escola, livros e mediadores desempenham um papel fundamental na formação de leitores. Entretanto, na atualidade, evidencia-se a precariedade na política de difusão da leitura no Brasil, ao considerarmos questões relevantes como a ausência de formação continuada aos educadores para atuarem como mediadores da leitura, abrangendo conhecimentos no âmbito do ensino da 684 ANAIS - 2013 leitura literária, haja vista que, em muitas situações, dentro das instituições de ensino, a leitura assume contorno de atividade obrigatória e, logo, vigiada. Demonstra-se, assim, a necessidade de debates sobre avanços e impasses que os resultados revelaram, com proposições de possíveis ações efetivas que visem a melhorias na política nacional, principalmente em se tratando do mediador de leitura. Para tanto, investimentos públicos em políticas de formação continuada e permanente aos educadores que atuam dentro do contexto escolar são necessários, já que, como demonstra o estudo, na atualidade, há uma diversidade de obras presentes nas instituições de ensino, mas não há iniciativas governamentais efetivas voltadas para a formação de mediadores de leitura literária, quadro que revela uma grande contradição: existência de livros e carência de mediadores com conhecimentos na área de literatura para desenvolverem o trabalho de mediação, com o objetivo de formar leitores literários. Finalmente, ao avaliar o objeto da pesquisa, que consiste no Programa Nacional Biblioteca da Escola, mais especificamente, a política de aquisição pelo governo de obras infantojuvenis, destinadas a todas as escolas públicas do Brasil no ano de 2011, considera-se bem importante a distribuição de materiais que estão sendo utilizados como subsídio na formação dos leitores. No entanto, o trabalho, como uma avaliação inicial, demonstrou o que deu certo e o que pode ser aperfeiçoado, com o intuito de contribuir para identificar ações efetivas no fomento à leitura e acesso ao livro, com o objetivo de traçar novos caminhos para construir ou melhorar a política de leitura em estudo, tendo a expectativa de contribuir para orientações e melhorias e, consequentemente, para a implantação de novas políticas públicas de leitura. 685 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 30. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2009. BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação (Lei nº 9.394/1996). BRASIL. Ministério da Educação. Programa Nacional Biblioteca da Escola. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/>. Acesso em: 5 de nov. 2012. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Linguagens, códigos e suas tecnologias. In: Orientações curriculares para o ensino médio. Brasília: 2006. 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Para Paulo Freire (2008), precede a leitura da palavra e desta implica a continuidade daquele. Esse percurso carrega a biografia do leitor e detecta, por meio de suas memórias, de suas opiniões, crenças, valores sobre o ambiente em que viveu e vive. O corpus a ser analisado neste artigo será formado pelas memórias de leitura de Graciliano Ramos, analisadas por Márcia Cabral (2009), que abrangem episódios presentes na infância do escritor, marcas dos primeiros anos de vida, enquanto leitor, e por uma retrospectiva da leitura e do leitor no Brasil. As diversas leituras da infância do autor sugerem elementos para compreender a formação de um pequeno leitor, a vida social, cultural e quais os elementos fundamentais em sua formação nos séculos XIX e XX. Esses dados indicam que, como, aos nove anos, Graciliano não era alfabetizado, o papel dos mediadores de leitura é bem relevante no processo de formação desse leitor, a ponto de fazê-lo ser reconhecido como um grande escritor em todas as esferas literárias. Essa trajetória revela que a leitura é histórica e socialmente construída, conforme apresentaremos, com um olhar direcionado aos elementos históricos da época. Também será enfocada a materialidade da leitura na infância, com análise dos suportes dos textos: formas impressão, ilustrações, formato e volume 1 Mestranda da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) na área da Educação, sob a orientação da professora Drª Silvane Aparecida de Freitas. 2 Professora Doutora e Orientadora do curso de mestrado da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul); atua como pró-reitora da mesma, em Dourados – MS. 690 ANAIS - 2013 de livros em folhetos. Subsequentemente, abordaremos o conceito de mediação na formação do pequeno leitor e, por fim, examinaremos a formação cultural do leitor, seus gestos e modos de leitura, imagens de leitores pouco letrados e de leitores letrados, além de mapear graus de letramento da época e os níveis da vida cultural. PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Memória. Leitor-Mediação Introdução Os livros de leitura destinados ao leitor criança no Brasil, na passagem do século XIX ao XX, tinham dois lados antagônicos: de um lado a aparência escura, pesada, motivo de rejeição por parte da criança; de outro, as ideias veiculadas, sugerindo ensinamentos morais por meio das lições pedagógicas recebidas pelos personagens, as quais despertavam sinal de interesse no pequeno leitor. Outro aspecto importante é a questão da dificuldade da leitura na época, agravada pela complexidade relacionada aos conteúdos dos clássicos e pela letra manuscrita, que impossibilitava a apropriação dos textos, havendo, assim, uma assimetria entre o desenvolvimento cognitivo da criança e os u qu h “ z h -me dos sete anos, não conseguia ler e os meus rascunhos eram pavorosos [...]. Foi neste tempo que me infligiram Camões [...]. D u b õ [ ]” (R MO , 1993, p.120). Conforme estudos na área da história da leitura, paleógrafo, ou livro de leitura manuscrita, consistia em um material introduzido nas escolas brasileiras da época nas séries finais do curso elementar.(1)3 3 Para uma genealogia da leitura manuscrita, conferir pesquisa desenvolvida por Antônio Augusto Gomes Batista. disponível em http://www.projetomemorialeitura/ensaios Acesso em: 20 out. 2012. 691 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento No que se refere ao ensino de leitura e escrita, a leitura manuscrita era prevista para ser desenvolvida na segunda classe do ensino médio das escolas primárias, por meio da 1ª e 2ª edição do livro A arte de aprender a ler, em que se registrava o alfabeto em letras manuscritas inclinadas, maiúsculas.)4(?) A questão da materialidade da leitura torna-se foco de atenção com vistas à relação física do leitor com o livro - capa, cor, pontas dos dedos, toque, enfim, elementos que ultrapassassem as noções a serem construídas em nível cognitivo. Diante das experiências de Graciliano nos breves trechos de Infância pudemos concluir que as experiências vividas pelo leitor, muitas vezes o afastaram da leitura, outras vezes o aproximaram. Deixa-nos, portanto uma reflexão a respeito do imaginário dos leitores na passagem do século XIX ao XX, no interior do Nordeste, onde a leitura proibida queimava as mãos, perturbava o sono, conduzia ao inferno. A leitura, portanto, pode significar ato muito poderoso, pois, por meio dela, é possível desvendar valores morais, descobrir práticas culturais e históricas pouco conhecidas. 1 A Mediação na Formação Cultural do Pequeno Leitor Quando nos referimos à formação do leitor criança, imediatamente vêm-nos hipóteses de toda natureza, dentre elas a concepção de que o desenvolvimento se dá de forma inata ou ainda pela influência do meio, como enfatizam; considerando a segunda hipótese, isso ocorre tanto por questões de espaço, 4 Conforme estudos na área da história da alfabetização no Brasil, a publicação da cartilha maternal, de autoria do poeta português João de Deus, em 1876, representou um marco na introdução do método analítico. Ver, a esse respeito, Mortati, (2000). 692 ANAIS - 2013 quanto por materiais disponíveis e ainda pela convivência com outros membros mais experientes da cultura. A criança precisa acelerar o desenvolvimento das capacidades cognitivas para ler por conta própria e é nessa fase do desenvolvimento que o gosto se forma. É fundamental a convivência com materiais de leitura diversificados e é na família que se consolida o hábito. E mais, professores leitores formam necessariamente alunos leitores (SILVA, 2009, p.96). O conceito de mediação revela-se central nas investigações de Vygotsky (1896-1934), que buscava examinar o desenvolvimento psicológico nos seres humanos enfatizando um conjunto de temas, como a formação social da mente, as relações entre pensamento e linguagem, a gênese social dos processos psicológicos superiores (atenção voluntária, memória voluntária, dentre tantos outros que desenvolveu em seu curto tempo de vida). Para Vygotsky, as transformações nos processos de mediação podem ser evidenciadas, tomando-se algumas observações do cotidiano da criança. Segundo ele, a criança, pelo fato de ainda não ter internalizado um determinado conceito, poderá buscar apoio em elementos externos (VYGOTSKY, 1998 apud SILVA, 2009, p.98). A mediação da leitura na obra Infância mostra que Graciliano relembra como foi árdua sua experiência de criança, nos fins do século XIX e início do século XX- trata-se do período compreendido entre 1892 e 1906, no interior de Pernambuco e de Alagoas. As lembranças, fortemente marcadas pelo ambiente árido e um elevado grau de desafeto, acabam por desenhar pai e mãe, aqueles que costumam estar mais próximos, como embrutecidos sertanejos: casal ríspido, distante, por quem a criança, ao longo da infância, nutriria , u “M u h ã 693 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento conservam-se grandes temerosos, incógnitos, [...] ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto, retalhos e sons dispersavam. Medo. Foi o medo que me orient u ; ” (R MO , 1993, p.11). Em relação à capacidade de leitura, o menino não nasceu nem se formou leitor naturalmente. Foi enfrentando obstáculos que esse processo, lenta e penosamente, desenvolveu-se. Em meio a tantas adversidades de toda ordem - ambiente cultural incompreensível, tensas relações familiares, debilidade física (oftalmia e artrite), tiveram início suas primeiras experiências com a leitura (SILVA, 2009, p. 102). A leitura em família centralizava-se na figura da mãe, não por proximidade, mas por distanciamento de Graciliano em relação a ela, pelo conteúdo das histórias e pelo modo vagaroso e desatencioso de ler. Segundo o autor, as histórias contadas por sua mãe se perdiam em barulhos sem sentido, deteriorados mais pela m çã x f gu “M h ã devagar, numa toada inexpressiva, fazendo pausas absurdas, engolindo vírgulas e pontos, abolindo esdrúxulas, alongando ou encurtando palavras. Não compreendida bem o sentido delas. E, com tal prosódia e tal pontuação, os textos mais simples se b cu c ” (R MO , 1993, 63) Outra possibilidade a ser considerada frente à leitura realizada pela mãe é a de que talvez ela fosse uma leitora incipiente, em etapa de decodificação, pelo modo como lia as histórias, uma leitura sem fluência, inexpressiva. Aqui cabe observar que assim como em outros lugares do Brasil, no interior do nordeste o acesso restrito ao desenvolvimento das habilidades de leitura e da escrita se justificaria pela possível falta de mediadores, carência de materiais de leitura, condições 694 ANAIS - 2013 menos favoráveis de letramento, enfim, fatores que pudessem contribuir para a proficiência da leitura. Nesse contexto, a mediação materna significava foco de tensão para Graciliano; em vez de protegê-lo, auxiliá-lo a estabelecer as pontes com o assunto desconhecido, causava-lhe enorme aflição, por elevar o conteúdo dos folhetos a instâncias indecifráveis, a dimensões metafísicas. (SILVA, 2009, p.107). No ambiente familiar, ao lado da figura materna, leitora pouco proficiente de longos romances e folhetos religiosos, destacava-se o pai, cuja intervenção pode ser considerada positiva na formação desse pequeno leitor. Narrador severo e alfabetizador informal, contava-lhe histórias e iniciou-o na alfabetização. Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Desisti, ele teimou – e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-me para a sala de visitas – e çã u [ ]” (R MO , 1993, p. 109) A inserção do patriarca na formação escolar da criança oferece algumas pistas para refletir sobre a história da educação no interior do nordeste na passagem do século XIX ao XX. Os métodos de ensino em vigor ao longo do século XIX e até a década de 30 do século XX decorriam, em geral, da necessidade de o Estado Nacional regulamentar os processos de escolarização, os quais poderiam garantir a entrada da população brasileira no mundo civilizado; portanto, foi possível constatar, nesse período, a existência da sucessão e, por vezes, 695 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento da concomitância dos seguintes métodos: individual - ensino de aluno por aluno (após a proclamação da república); mútuo - o aluno mais adiantado ajudava o outro com dificuldade (após a má funcionalidade do método individual e expansão da escolarização no Brasil) e intuitivo - dava ênfase à observação de objetos, à intuição da criança (necessidade de educar os sentidos, como propunham os teóricos como Pestalozzi) (SILVA, 2009, p.112). Infere-se desse contexto que existia um longo distanciamento entre o discurso pedagógico oficial e as condições de produção de conhecimento por parte daqueles que efetivamente ensinavam. Por outro lado, as experiências com o pai alfabetizador, ou mesmo com sua eventual substituta domiciliar, a irmã Mocinha, lançam convincentes luzes a essa hipótese: Afinal meu pai desesperou de haver gerado um maluco e deixou- me. Respirei, meti-me na soletração, guiado por Mocinha [...]. “ u u u h í embuste naquela maldita manhã, inculcando-me a excelência do papel ” (R MO , 1993, P 99) Essas lembranças sugerem no percurso de Graciliano Ramos o que o leitor iniciante encontraria pela frente. De um lado, a monotonia das sílabas gaguejadas e de outro, a incompreensão de conceitos sisudos presentes nos materiais de leitura. A sociedade na qual se insere o relato de Infância convivia com níveis consideráveis de sociabilidade entre criados e senhores reunidos na sala de jantar para o relato de casos, e alto grau de oralidade presente na transmissão de histórias 696 ANAIS - 2013 curiosas, contadas por José Bahia, pelo tio Serapião e ainda pelos criados da casa. É importante ressaltar que, quanto à mediação do avô, a criança era submetida a um tipo de material de leitura não muito apropriado para cativar um leitor: o livro de leitura do Barão de Macaúbas e o catecismo. O primeiro destacava conteúdos essencialmente didáticos, lições de moral; o segundo visava aos ensinamentos religiosos, lições de obediência e disciplina ( ILV , 2009, 119, 120) “M u qu distanciavam, corriam na caatinga, abandonavam-me ao capricho de meu avô, que me jungiu à prosa do Barão de Macaúbas e ao catecismo, trazidos na carona [ ]” (RAMOS, 1993, p.124). A mediação feita pelo avô de Graciliano era rigorosa, exagerada em relação à aprendizagem de leitura. Para ele, a aquisição da leitura ocorreria pela transmissão e repetição, já que sua concepção de leitura baseava-se na mecânica do ato de ler, passando distante da produção de significado. Mas ainda não podemos deixar de mencionar também que, para o menino, nada favorecia o processo de construção da leitura, que, de acordo com Kleiman (1989, 1993, 1999), envolve alguns aspectos fundamentais para compreensão do texto, tais como: espaço interativo, confronto de ideias, formulação de objetivos para leitura e de hipóteses quanto às características do texto, intenções do autor, os quais praticamente não existiam. Partimos agora para a escola, na figura da professora Maria como mediadora para o processo de construção da leitura. Para Graciliano, a escola era o espaço reservado ao suplício, uma verdadeira crucificação; apesar disso, havia alguns momentos de aproximação da leitura, mediada pelo calor humano, por gestos afetuosos da professora Maria. 697 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento A mulher gorda chamou-me, deu-me uma cadeira, examinou-me a roupa, o couro cabeludo, as unhas, os dentes. Em seguida abriu a caixinha branca, retirou o folheto: Leia. Não, senhora, respondi confuso. Ainda não havia estudado as letras finas, menores que as da carta de ABC. (RAMOS, 1993, p.122): Em grande parte das escolas brasileiras na época, em período de alfabetização, como no caso de Graciliano, esperavase que a criança dominasse as mais complexas habilidades envolvendo a leitura e a escrita nessa etapa da aprendizagem, porém acredita-se que o conjunto de habilidades necessárias a um leitor proficiente seria construído ao longo de um processo mais amplo, a partir do nível de desenvolvimento real de cada criança e das condições favoráveis de letramento das quais ela participa e participou, dentre outros aspectos. O comportamento afetivo da professora de Graciliano fez com que ele se mantivesse na escola, e a qualidade da mediação exercida por ela nos remete ao eixo fundamental da pedagogia defendida por Paulo Freire (1992, 1996): a morosidade e afetividade. Ele acredita nesse tipo de relação entre educador e educando, tão importante quanto o diálogo e o conhecimento de mundo, elementos fundamentais, segundo ele, para aquele que quer ensinar e/ ou aprender (SILVA, 2009, p. 123, 124). A rotina da escola repetia os materiais de leitura que lhe despertaram tão pouco interesse, introduzidos pelo avô de Graciliano. Além de todos os mediadores mencionados anteriormente, ainda passaram na vida do menino outros mediadores. Com a mudança de escola, o novo professor, que, segundo o aspecto informal, não lhe acrescentou nada quanto à aquisição da leitura, nem quanto ao gosto de aprender. Depois 698 ANAIS - 2013 veio D. Angelina, o professor Rijo, a prima Emília; esta, nos rituais de iniciação à leitura, livrara-o das humilhações sofridas por ele ainda ser analfabeto. D. Angelina, apesar de pouco acrescentar ao menino no que tange às habilidades de ler e escrever, tinha uma grande capacidade, a de narradora de histórias, talento que provavelmente a tornava uma incentivadora para a leitura de ficção. “E f uí histórias de Trancoso. Visitava-nos, prendia-nos até meia-noite com lendas e romances, que estirava e coloria admiravelmente. Nada me ensinou, mas transmitia-me afeição às mentiras ” (R MO , 1993, 194) Já a prima Emília, uma mediação que volta à família, o processo de aquisição da leitura começa a tomar um rumo mais positivo, pois o menino percebe que, do meio familiar e escolar pelos quais passara, teria que encontrar ele próprio outros caminhos para vencer as dificuldades e, pela primeira vez, sentiu-se entusiasmado pela figura feminina da prima Emília. Era necessário que a priminha lesse comigo o romance e me auxiliasse na decifração [...]. Emília respondeu com uma pergunta que me espantou: Por que não me arriscaria a tentar a leitura sozinho? Longamente expus a minha fraqueza mental, a impossibilidade de compreender as palavras difíceis. Emília combateu a minha c cçã [ ]” (R MO , 1993, 138,139) Observa-se aqui que a prima Emília usou de outros recursos que até o momento ninguém usara: o resgate da autoimagem do menino, semidestruída, com a convicção de que alguns recursos haviam sido construídos, por meio do contato 699 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento com materiais de leitura diversos, conhecimento dos nomes das letras e relação entre fonemas e grafemas, enfim, ela percebeu que o menino não sabia era associar tudo isso de forma a ter um significado juntos (CABRAL, 2009, p.139). Mais à frente, o menino Graciliano, pequeno leitor, recorre novamente à mediação da prima Emília, que conhecia em detalhes os possuidores particulares de bibliotecas. Nessa fase, longe da palmatória, dos livros didáticos e da soletração, o menino passou a perseguir os firmes caminhos e sentidos da leitura, pois ela havia se tornado na vida dele algo de um valor especial, do qual não desejava afastar-se. Estamos agora frente a uma transformação, diante de um leitor em crescimento, que não precisava mais de coletivo, apenas lhe bastava o silêncio. Aqui começa nascer o escritor. Invoquei, num desespero, o socorro de Emília. Eu precisa ler, não os compêndios escolares, insossos, mas aventuras, justiça, amor, vinganças, coisas, até então, desconhecidas [...]. Queria isolar-me [...]. Mergulhava-me numa espreguiçadeira [...] h h [ ]” (RAMOS, 1993, p.211). É importante dizer que, além da mediação da prima do menino, houve ainda uma mediação construída com um membro da sociedade local, a figura do tabelião Jerônimo Barreto, afinal Graciliano precisa de um lugar mais apropriado e alguém como ele, que lhe indicasse leituras e histórias não comuns aos outros mediadores. Uma vez mais se reconhece o nascimento de um leitor proficiente, capaz de formular analogias com materiais ausentes, de fazer uso de conceitos complexos na memória e acioná-los 700 ANAIS - 2013 diante da leitura com níveis de exigência mais complexos, como o da ficção. Isso tudo nos permite identificar uma mudança significativa no que se refere ao processo de aquisição e construção da leitura. Diante dessa análise, podemos refletir sobre a entrada de Graciliano Ramos no universo da leitura, sobre como o processo de apropriação da leitura, apesar da forma conflitante como seu percurso foi realizado, pôde contribuir na constituição subjetiva do menino Graciliano, e isso ainda nos leva a refletir sobre a linguagem e a subjetividade sustentadas nas memórias, lembranças e esquecimentos de seu processo de alfabetização. Márcia Abreu, em sua análise, mostra-nos que nas lembranças infantis, especialmente, é muito comum que elementos essenciais de uma experiência sejam representados por elementos não essenciais da mesma experiência. O menino Graciliano, por exemplo, quando fala da espreguiçadeira, queria dizer que tinha interesse pela leitura, mas a dificuldade para ler fazia com que ele se isolasse. Freud (1996) diz que as lembranças são resultado de duas forças contrárias: uma que insiste em lembrar os eventos por mais dolorosos que sejam, e outra que barraria essas lembranças, força esta que funcionaria como uma resistência às lembranças, pois o que rege o sujeito é o inconsciente, embora aparentemente pareça ser trabalho do consciente. Em suma, a formação do pequeno leitor retratado em Infância, aponta para a assertiva de que a leitura é um ato mediado pela linguagem, pela influência de outros seres humanos; nesse caso, toda aprendizagem de Graciliano respondeu a um desejo dele, o de aprender a ler, na idade em que estava, em período de alfabetização. Ele, assim como todas as crianças, vive o período em que as motivações intelectuais de aprendizagem marcadas por motivações afetivas e emocionais, 701 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento estas necessariamente endossadas pelo círculo familiar e pela escola. Essa fase é inconscientemente tediosa, por isso a criança se fixa no outro que pode ser a professora, a mãe ou qualquer outro adulto que ocupe o lugar de ensinante; a leitura com voz de um adulto, por exemplo, pode servir de estímulo para a criança querer aprender a ler e escrever e foi isso que aconteceu com o pequeno Graciliano, que recorria à prima, à mãe e ao pai. Enfim, apesar de tantos obstáculos no seu percurso de leitura relatado pelas memórias, ele conseguiu transformar suas adversidades em tamanho sucesso, que hoje é considerado um dos cânones da literatura brasileira. Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosogia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1981. ______ . Estética da criação verbal. São Paulo, Hucitec, 1982. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores. 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Surgem várias tentativas com a finalidade de mostrar a inexistência de tantas diferenças entre homens e mulheres; no entanto, é possível recuperar por meio de marcas linguísticas presentes no texto a persistência das dificuldades. PALAVRAS-CHAVE: semiótica francesa; discurso jornalístico; mulheres; carreira. Introdução Não há como negar o poder de influência dos meios de comunicação em toda a sociedade. As pessoas dependem dos 1 Mestranda em Comunicação - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - [email protected] 2 Professora Doutora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - [email protected] 705 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento jornais, televisão, rádio, revistas ou da internet para manteremse informadas sobre os principais acontecimentos da cidade onde moram, do Brasil e do mundo. No entanto, essas informações não estão livres de opiniões, percepções e, na maioria das vezes, carregam os interesses da ideologia dominante, os quais caminham em consonância com os objetivos e até mesmo com o conhecimento de mundo de grande parte da sociedade. Para alcançar o objetivo de convencer de que seus pontos de vista estão corretos, os meios de comunicação utilizam técnicas que auxiliam neste convencimento. A linguagem, a diagramação ou até mesmo a escolha do que será publicado auxiliam nesta influência. Por isso, a relação estabelecida entre os jornais e o público não pode ser encarada de forma simplória. Hoje muitas teorias do jornalismo resumem-se a analisar aspectos estruturais do texto, a exemplo das teorias funcionalista e pragmática, que tratam principalmente da abordagem da matéria, construção do texto e produção da notícia. Os grandes jornais elaboraram manuais ensinando como deve ser escrito o texto e quais valores devem ser considerados na hora de os profissionais definirem quais acontecimentos merecem ser noticiados. No entanto, o processo é bem mais complexo. A missão de levar informações diariamente à população não deve ser encarada como algo simples, fácil de executar e até mesmo inocente, como pode ser caracterizada a opinião de B ã (1992, 67) “Jornalismo é a informação de fatos correntes, devidamente interpretados e transmitidos periodicamente à sociedade, com objetivo de difundir conhecimentos e orientar a opinião pública, no sentido de b c u ” Os jornalistas têm a capacidade de decidir o que é mais ou menos importante para ser publicado, escolhem sobre quais 706 ANAIS - 2013 assuntos o público será informado por meio do método da agenda-setting. Conforme Traquina (2001, p. 30), duas variáveis parecem ser determinantes para responder a pergunta: quem determina a agenda jornalística? 1) A atuação dos próprios jornalistas e os critérios de noticiabilidade que utilizam para seleção das ocorrências. 2) A ação estratégica dos news promotores para obter acesso ao campo jornalístico. Por conta da complexidade da relação entre o meio de comunicação e o receptor da mensagem, foi feita opção para utilização da semiótica discursiva ou francesa, derivada de Greimas e que vem sendo aperfeiçoada por seus seguidores. O objetivo não é dizer se o viés ideológico do meio de comunicação está correto ou não, mas resgatar as marcas linguísticas e os recursos jornalísticos aplicados na tentativa de atrair o leitor e fazê-lo crer na verdade divulgada. O percurso gerativo de sentido, incluindo as técnicas de reportagem e linguagem utilizadas, serão analisados na g R V j , u “ çõ ch f ” c , “ çõ ”, ub c edição 2267, do dia 2 de maio de 2012. O objetivo da matéria é mostrar que as mulheres estão conquistando mais espaço no mercado de trabalho, principalmente em cargo de chefia, levando o leitor a crer que está diminuindo a diferença entre homens e mulheres nas empresas. Por meio de depoimentos de mulheres bem-sucedidas e especialistas passam dicas ensinando o caminho a ser seguido para obter o sucesso profissional. Na sintaxe narrativa o foco da análise será no enunciado de fazer, organizado pelos critérios tipológicos dos seguintes programas narrativos: competência, perfórmance, manipulação e sanção. O enunciador, ou seja, o autor da reportagem menciona os métodos utilizados pelas mulheres bem-sucedidas, profissionalmente, com objetivo de transformar o leitor, que até 707 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento então se apresenta como sujeito de estado. O objetivo é também buscar convencê-lo a tornar-se um sujeito de fazer, adquirindo as competências da reportagem para agir. Na sintaxe discursiva, o foco está no efeito de realidade ou referente da reportagem para que os leitores acreditem que seguindo as recomendações da reportagem alcançarão altos postos nas empresas. Nesta etapa, será feita analisa mais complexa e minuciosa sobre as técnicas de jornalismo empregadas em busca deste objetivo. A reportagem também utiliza o efeito de proximidade para garantir que o leitor consiga mais facilmente se identificar com os aspectos relatados no texto. 1. Conceitos de objetividade e ideologia Antes de iniciar a análise da reportagem pela semiótica francesa, é importante apresentar alguns conceitos que serão abordados no decorrer do artigo, relacionados à objetividade no jornalismo e também sobre ideologia. O leitor, na maioria das vezes, é levado a acreditar na informação veiculada devido às técnicas utilizadas em busca do efeito de realidade. Entretanto, a “ ” ã é qu á N H (2006) que um dos maiores problemas na análise do jornalismo está relacionado à confusão, à mistificação e até mesmo a discussão sobre a verdade. Ele avalia a complexidade dos aspectos da realidade e a influência do conhecimento já adquirido e das nossas percepções sobre os temas. Para a manipulação dos jornais funcionar, é necessário, entre outros aspectos, que o público partilhe do mesmo sistema de valores do jornal. Na comunicação, os participantes se constroem e constroem, 708 ANAIS - 2013 juntos, o objeto jornal. O público é, portanto, co-autor. Um autor leva em consideração as expectativas e as prováveis reações de quem vai receber o texto para construir um discurso com a eficiência j N , “ c ” também participa da comunicação. (HERNANDES, 2006, p. 18) Avaliar os possíveis interesses do público-alvo auxilia o meio de comunicação a definir quais assuntos merecem ser divulgados e também aqueles que merecem maior destaque. É o que acontece, por exemplo, com a Revista Veja ao escolher divulgar uma reportagem sobre mulheres em cargos de chefia. A revista semanal, que é a maior publicação do gênero no País, com 1.209.390 exemplares3, é voltada principalmente para os estratos A e B da sociedade. Por isso, crê que os seus leitores estarão interessados em saber como melhorar na carreira. Não há como ignorar que o tema foi escolhido tendo como base a ideologia do meio de comunicação, que também está relacionada à ideologia e aos interesses da maioria dos seus leitores, voltada ao capitalismo e consequentemente ao avanço econômico. Nem todos que têm acesso às informações refletem que, na verdade, estão tendo obtendo uma informação que nos fornece um sentido de realidade, a qual pode ser modificada ou avaliada sob outro ponto de vista, de acordo com os interesses de que está veiculando ou até mesmo o conhecimento de mundo daquele que foi responsável pela apuração dos fatos. Muitos autores já consideram ultrapassada a noção de imparcialidade, que provém de uma das mais antigas definições 3 Dados do Instituto Verificador de Circulação de junho de 2012, publicado no www.ivibrasil.org.br. 709 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento sobre o jornalismo: a Teoria do Espelho. O conceito desta teoria deixa de considerar várias questões. “ j como um comunicador sem interesses específicos a defender e que o desviam de sua missão de informar, procurar a verdade, c qu c c u, qu ” (T qu , 2005, 47). Ao fazer o resgate das teorias do jornalismo, Traquina apresenta uma das definições sobre o que era a Teoria do Espelho, mostrando o quanto a explicação é insuficiente para englobar aspectos de uma atividade tão complexa quanto à da comunicação. Vários estudos consideram a teoria do espelho impossível de ser aplicada, pois deixa de considerar aspectos pessoais decorrentes da percepção de cada jornalista que, inevitavelmente, interferem na hora de relatar o acontecimento, a influência dos interesses dos meios de comunicação para o qual trabalham, e até mesmo as condições de produção das notícias. Nas instruções gerais do Manual de Redação e Estilo do Jornal O Estado de São Paulo, Eduardo Martins apresenta nos itens 20 e 21 o que esperasse com o conceito de objetividade. Faça textos imparciais e objetivos. Não exponha opiniões, mas fatos, para que o leitor tire deles as próprias conclusões. Em nenhuma hipótese se admitem textos como: Demonstrando mais uma vez seu caráter volúvel, o deputado Antônio de Almeida mudou novamente de partido. Seja direto: O deputado Antônio de Almeida deixou ontem o PMT e entrou para o PXN. É a terceira vez em um ano que muda de partido. O caráter volúvel do deputado ficará claro pela simples menção do que ocorreu. Lembre-se 710 ANAIS - 2013 de que o jornal expõe diariamente suas opiniões nos editoriais, dispensando comentários no material noticioso. (MARTINS) Quando a busca pela objetividade é comparada à imparcialidade e ao fato de o jornalista não emitir opinião, as estratégias para construção do discurso e, consequentemente, para obtenção do efeito de realidade, acabam sendo ignoradas. Até mesmo os manuais (outros adotam conceitos semelhantes) buscam construir um efeito do parecer-ser real dos textos jornalísticos. Os jornalistas, independente do meio de comunicação onde atuam, precisam fazer escolhas e julgamentos, algo que parece ter sido esquecido nos manuais. Outro ponto importante a ser considerado nas notícias refere-se à ideologia, já mencionada anteriormente, e sua relação direta com a possibilidade de manipulação das pessoas que já estão influenciadas pelos conceitos e conhecimentos obtidos da sociedade onde vivem, a respeito de determinados fatos. Neste artigo, a referência será em relação ao poder dominante e como a reportagem visa atender aos interesses do capitalismo, mostrando certas atitudes como único caminho para obter o sucesso profissional. Conforme James Lull, a ideologia refere-se geralmente à relação entre informação e poder social em contextos políticos e econômicos, mostrando ainda como esses grupos podem utilizar-se da manipulação para manterem-se como dominantes. Neste sentido, aqueles que possuem poder político e econômico na sociedade defendem, através de uma quantidade de canais, formas de pensamentos selecionadas. A crescente manipulação da informação e 711 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento do pensamento popular constrói uma poderosa ideologia dominante que ajuda a sustentar os interesses materiais e culturais de seus criadores. (LULL, 1995, p. 20). Tendo em vista tais conceitos de objetividade e também de ideologia, foi feita a opção por analisar as estratégias utilizadas pela Revista Veja na reportagem que trata das carreiras das mulheres. Não se trata de afirmar se as dicas de especialistas são verdadeiras ou não, mas de analisar os recursos jornalísticos utilizados para buscar um sentido mais próximo para conquistar esta veridicção. 2. O caminho para o sucesso Para analisar a trajetória das mulheres que conquistaram os cargos de chefia em grandes empresas e, principalmente, o percurso gerativo de sentido aplicado na reportagem, será empregada a sintaxe narrativa da semiótica francesa. Também nesta etapa, será analisada a tentativa do enunciador (no caso o repórter, que também pode ser avaliado pelo ponto de vista da Revista Veja) em convencer o leitor de que as mulheres já se igualaram aos homens no mercado de trabalho. A semiótica pode ser utilizada para analisar diferentes tipos de textos. O primeiro passo é determinar o objeto de u Of c é c ú “P c u sentido do texto, a semiótica concebe o seu plano do conteúdo b f u cu g ” (B , 2005, 13) N percurso são estabelecidas três etapas: fundamental (significação como oposição semântica), narrativa e discursiva. No nível fundamental temos a oposição de mulheres x homens ou sucesso x fracasso, hipóteses apresentadas seguindo 712 ANAIS - 2013 o viés ideológico da Revista Veja. A análise empregada neste artigo começa na sintaxe narrativa, utilizando um sujeito que está em relação de conjunção ou disjunção com um objeto. O percurso narrativo é composto de quatro fases: competência, perfórmance, manipulação e sanção. No primeiro programa narrativo, o sujeito 1 analisado são as mulheres em busca do Objeto Valor que é conquistar o sucesso na carreira. Para atingir este objetivo, elas utilizam um enunciado de fazer, buscando uma transformação para alcançar o sucesso profissional. Na competência, as mulheres vão realizar o papel central da narrativa, pois estão dotadas de um poder ou saber fazer para ocorrer a transformação de estado. Nesta etapa, elas buscam estado de conjunção com o Objeto Valor, que é o sucesso na carreira. É importante esclarecer que, nesta análise, a referência é feita às mulheres de um modo geral, aquelas para qual se destina a reportagem, as leitoras, e não às entrevistadas (presidentes e chefonas) que prestaram depoimentos nas páginas da revista. A reportagem relata que antes as mulheres estavam em estado de disjunção com este o objeto valor sucesso na carreira, fato que a reportagem pretende mostrar como a principal mudança do sujeito, conforme inferem os trechos abaixo: Em quinze anos, a revolução foi total. Na década de 90, as mulheres ainda representavam 44,5% da força de trabalho. Poucas ocupavam cargos de presidência, vice-presidência e diretoria. As áreas estratégicas das companhias ainda eram dominadas pelos homens. 713 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Essa realidade começa a ser transformada quando as mulheres adquirem competências para transformar essa realidade, favorecidas pela necessidade do mercado de trabalho. No Brasil, as mulheres são maioria nas universidades e nas forças de trabalho. A economia em expansão e ainda carente de mão de obra qualificada é outra razão para a existência, no Brasil, de uma proporção maior de mulheres em cargos de liderança em relação aos mercados ricos. Quando as mulheres conquistam o emprego, o programa narrativo passa para a etapa da performance, ou seja, quando o sujeito age para alcançar os resultados esperados. Nesta etapa, o enunciador esforça-se para tentar revelar aos leitores que as diferenças entre homens e mulheres acabaram. A era em que as mulheres buscavam se igualar aos homens no trabalho acabou. Em pouco tempo, essa ideia só existirá na cabeça de antiquadas feministas e de alguns homens. Uma pesquisa recente com diretores e presidentes de empresas de todo o mundo revelou que, das dezesseis competências cruciais para exercer uma função de comando, elas sobressaem em doze. 714 ANAIS - 2013 Na etapa da manipulação, a análise apresenta um programa narrativo diferenciado. O sujeito 2, representado pelo enunciador (o autor da reportagem e a visão capitalista da Revista Veja), tenta convencer o sujeito 1, as mulheres, de que elas estão tendo mais espaço no mercado de trabalho. Conforme Diana Barros (2005, p. 31), o destinador (autor da manipulação) doa ao destinatário-sujeito os valores modais do querer-fazer, do dever-fazer, do saber-fazer e do poder-fazer. Com base em depoimentos de especialistas e pesquisa, o enunciador utiliza-se de um fazer-persuasivo para convencer as mulheres de que seu espaço no mercado de trabalho será mais facilmente garantido, conforme demonstrado nos trechos a seguir: Um estudo da consultoria inglesa Grant Thorton revela que 27% dos cargos de liderança no Brasil são ocupados por mulheres. Das dezesseis competências consideradas cruciais para exercer uma função de comando, as mulheres costumam sobressair em doze, de acordo com uma pesquisa feita pela consultoria americana Zenger Folkaman com 7.280 diretores e presidentes de empresas em todo o mundo, e publicada pela revista Havard Business Review. “Quanto mais exemplos femininos em funções de liderança houver, mais seguras as mulheres se sentirão em busca de um caminho parecido”, diz a economista suíça Iris Bohnet, da Universidade de Havard. 715 Estudos de linguagem: pesquisa, ensino e conhecimento Os números da pesquisa, depoimento de pesquisadores, conforme demonstram os exemplos citados acima, juntamente com as entrevistas de oito mulheres bem sucedidas, auxiliam na chamada manipulação por tentação. A semiótica francesa prevê quatro classes de manipulação: a provocação, a sedução, a tentação e a intimidação. Diana Barros (2005, p. 31) exemplifica as tipologias que compõem a fase da manipulação: Tentação: quando o manipulador oferece uma recompensa; Intimidação: quando o manipulador faz ameaças; Provocação: quando o manipular incita uma conduta negativa para tentar convencer; Sedução: quando o manipular se manifesta de forma positiva para convencer o manipulado. No caso do texto que faz parte da análise deste artigo, a tentação ocorre quando o enunciador tenta convencer o leitor de que seguindo as recomendações dos especialistas e acompanhando passos semelhantes aos das mulheres que prestaram depoimento conseguirá o sucesso profissional. As dificuldades sociais e até mesmo barreiras que as mulheres ainda encontram em muitas empresas parecem ter sido “ qu c ” g Por último, o percurso narrativo chega à sanção. Neste caso, a reportagem tem objetivo de levar o sujeito leitor a crer que ela será positiva em decorrência das mudanças no mercado de trabalho nos últimos anos, maior escolaridade das mulheres e com base nos exemplos das presidentes de grandes companhias. A revista tenta ensinar a fórmula do sucesso profissional que, caso não seja devidamente seguida, resultará em uma sanção negativa: a mulher não alcançará o êxito na profissão. 3. Contradições 716 ANAIS - 2013 Resta saber se baseado em tais conceitos e construção do discurso, a reportagem ati