O CONTEXTO LITÚRGICO DA IGREJA ANTES DO CONCÍLIO

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O CONTEXTO LITÚRGICO DA IGREJA ANTES DO CONCÍLIO
O CONTEXTO LITÚRGICO DA IGREJA ANTES
DO CONCÍLIO VATICANO II
Pe. Antonio Élcio de Souza / Pe. José Humberto Motta
Faculdade Católica de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Ribeirão Preto
Introdução
A proposta de nossa Semana Teológica além de ser uma resposta de
comunhão com a Igreja na celebração do cinquentenário do Concílio Vaticano
II tem uma riqueza acadêmica, no sentido de possibilitar a cada um de,
perscrutarmos os anos de preparação e realização do Concílio para gerar de
forma sólida e cônscia um agir verdadeiramente adequado à renovação
conciliar. Nas palavras do teólogo João Batista Libânio:
“O Concílio Vaticano II foi um terremoto original.
Ao mesmo tempo que destruiu velhos edifícios
religiosos, construídos durante séculos, colocou em febril
trabalho de reconstrução os mais diversos setores da
Igreja Católica. Em pouco tempo, a face da Igreja se
transformara. Os juízos sobre tal mudança variam
1
segundo o ponto de vista”.
Para um juízo adequado também no âmbito da liturgia é importante
buscarmos compreender o contexto que precedeu a aprovação da Constituição
Sacrosanctum Concilium sobre a Liturgia com 2147 votos a favor e somente 4
contra, promulgada em 4 de dezembro de 1963.
É importante notarmos que a renovação litúrgica do Vaticano II tem um
início bem anterior, pois podemos notar um desejo de renovação desde o
Concílio de Trento, passando pelo pontificado de Bento XIV, Pio X, Pio XII e
João XXIII, estes três últimos no contexto do Movimento Litúrgico.
1. A obra de Trento (1545-1563)
O Concílio de Trento, antes de seu encerramento, atribuiu ao papa a
tarefa de revisão dos livros litúrgicos. E os trabalhos de relevância nesse
1
Igreja contemporânea: encontro com a modernidade. p. 77.
sentido se deram com Pio V com a restauração do Missal e do Breviário
Romano.
A situação da liturgia no Ocidente atingiu um estado lamentável. Os
ritos e as cerimônias eram executados sem sentido pastoral e acompanhados
de uma série de abusos e superstições. O povo permaneceu afastado da
liturgia, cumprindo somente com o mínimo de assistência que lhe era exigida
se não quisesse incorrer em sanções canônicas. Neste ambiente, é natural que
surjam vozes de protesto, entre as quais destacam as de Lutero e seus
seguidores.
Os reformadores acusam com muita razão a decadência da liturgia, sua
falta de espírito evangélico. Estes exigem o uso da língua do povo, a
participação efetiva da assembleia, a recitação do cânon em voz alta (recitação
que, desde séculos, por causas não suficientemente explicadas, se fazia em
segredo), a simplificação de muitos ritos, isto é, uma série de coisas que a
Igreja Católica acabará concedendo, mas com quatro séculos de atraso, na
reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.
1.1. Abusos na celebração litúrgica
O próprio Concílio de Trento, que foi convocado para sair ao encalço das
inovações dos reformadores, estudou detidamente a situação das celebrações
litúrgicas, especialmente a Missa, e elaborou uma lista ou catálogo dos
principais abusos que tinham sido introduzidos na nossa maneira de celebrar.
Resulta iluminador repassar alguns destes abusos e defeitos, já que, por um
lado, refletem a situação da época e, por outro, revelam até que contrassenso
pode chegar à prática da liturgia quando se perde de vista sua verdadeira
natureza.
Alguns abusos denunciados pelos padres do Concílio de Trento
manifestam uma perda do sentido autêntico da comunidade ou assembleia.
“É um abuso que, nos Domingos e Festas não se
digam as missas próprias ordenadas pela Igreja, e em
seu lugar se dizem missas votivas ou de defuntos.
Também é um abuso que se celebre, simultaneamente,
duas ou mais missas, tão perto umas das outras que
mutuamente se estorvem. Outro abuso é que, enquanto
se canta a Missa solene se celebrem ao mesmo tempo
outras missas privadas. Há que considerar se não seria
melhor celebrar menos missas, já que a excessiva
abundância faz que os sacerdotes e os sacramentos se
2
envileçam”.
Os padres tridentinos assinalam vários abusos relacionados com o
sentido mágico dos ritos:
“Não está bem que sobre a hóstia consagrada se façam
mais cruzes e sinais do que estão estabelecidos, como se
faltasse algo à consagração. Além disso, alguns executam as
cruzes que devem ser feitas sobre a hóstia e o cálice de tal
maneira que, mais que fazer o sinal da cruz, parece que
gesticulam, provocando assim a hilaridade aos assistentes.
Outros depois da consagração, tomam com ambas as mãos a
hóstia e, mantendo a cabeça inclinada, a erguem levando-a até a
nuca, tocando muitas vezes os cabelos, com o grave perigo de
rompê-la”.3
O Concílio de Trento também considerou abusivas algumas das práticas
que faziam por motivo da festa de Corpus Christi:
“É um abuso que nas procissões de Corpus Christi, se
enfeitem as ruas com ornamentos, que são antes pinturas
lascivas, nada dignas de tão magno espetáculo, e inclusive às
vezes pelas ruas se fazem bailes, danças e representações
teatrais totalmente profanas”.4
2.2 A obra litúrgica do Concílio de Trento
“O Concílio de Trento não foi um Concílio de reforma
litúrgica, mas de defesa da fé expressa pela Liturgia católica.”5
Este Concílio consciente da situação lamentável da liturgia tentou
remediar, mas devido à mudança para o terreno dogmático de muitas das
2
Texto apresentado em apostila de aulas de Frei Ariovaldo da Silva, sobre história da liturgia sobre o
conteúdo da Obra de Trento.
3
Texto apresentado em apostila de aulas de Frei Ariovaldo da Silva, sobre história da liturgia sobre o
conteúdo da Obra de Trento.
4
Texto apresentado em apostila de aulas de Frei Ariovaldo da Silva, sobre história da liturgia sobre o
conteúdo da Obra de Trento.
5
BECKHÄUSER, Alberto. Os fundamentos da Sagrada Liturgia. p. 259.
questões que necessitavam somente de uma reforma disciplinar, as decisões
conciliares não produziram todos os bons efeitos desejados. No dia 17 de
setembro de 1562 foi aprovado um decreto sobre o que era necessário
observar e evitar na Celebração Eucarística, uma vez que o concílio definiu
solenemente o valor sacrifical da missa, bem como a legitimidade dos ritos que
a celebravam, colocando em destaque as duas mesas da assembleia
eucarística: a da Palavra e do Corpo do Senhor, que por si é uma convite à
comunhão dos fiéis toda vez que participarem da missa.6
O Concílio não quis ceder em toda uma série de reivindicações dos
reformadores luteranos e, assim, manteve o latim, mas recomendando
“monições” e explicações que deveriam ser feitas durante a celebração (norma
que, de fato, não chegou a ser colocada em prática), continuou prescrevendo a
recitação do cânon em segredo e, na prática, não favoreceu a participação
direta dos fiéis na celebração litúrgica. De certa maneira, os padres do Concílio
de Trento queriam e temiam, como se podem perceber na norma sobre a
língua popular na missa:
“Mesmo que a missa contenha uma grande instrução
para o povo fiel, não pareceu oportuno aos Padres que se
celebre ordinariamente na língua do povo. Por isso, devem se
manter em todos os lugares o rito antigo de cada Igreja e
aprovado pela Santa Igreja Romana, mãe e mestra de todas as
Igrejas. Mas, para que as ovelhas de Cristo não passem fome e
os pequenos peçam pão e não haja quem lhes dê, o santo
Concílio manda aos pastores e a todos os que têm cura de
almas, por eles mesmos ou por outros, expliquem alguma das
coisas que se leem na missa e, além disso, declarem algum
mistério deste santíssimo sacrifício, especialmente nos
Domingos e Dias Festivos”.7
Podemos dizer que a obra litúrgica do Concílio de Trento apresenta um
aspecto positivo, que são os esclarecimentos teológicos sobre os sacramentos
em geral e a Eucaristia em especial; um aspecto negativo, a saber, a não
aceitação de muitas das reivindicações pastorais dos reformadores e,
finalmente, um aspecto ambivalente, o de reservar ao Papa toda decisão em
matéria litúrgica: isso constituía uma solução de emergência, diante da
6
Cf. MARTIMORT, A.G. Princípios da Liturgia: A Igreja em Oração. Vol. 1. p. 77.
Texto apresentado em apostila de aulas de Frei Ariovaldo da Silva, sobre história da liturgia sobre o
conteúdo da Obra de Trento.
7
anarquia reinante, mas manterá a liturgia romana durante quatro séculos
petrificada.
3. A época do Barroco dos séculos XVI e XVII
O Barroco trás consigo o antropocentrismo da Renascença e do
Humanismo, como a última época do Ocidente em que o religioso influenciou e
informou toda a vida cultural, num enorme florescimento do subjetivismo. Toda
essa mentalidade também influenciou a liturgia, sobretudo na devoção ao
Cristo eucarístico e a devoção a Nossa Senhora. É uma característica desse
período a nova forma de culto: devoção vespertina seguida de bênção
eucarística.
“A cultura Barroca é a cultura da festa, nos jogos, na
música, na alegria, na participação de todos, no triunfo do
subjetivismo coletivo. Por isso, a festa do Barroco, por
excelência, é a festa do Corpo de Cristo, Corpo de Deus, com
sua procissão, com a máxima pompa, com representações
dramáticas, vestes pomposas, estandartes, militares e cônegos.
É, por assim dizer, a época das procissões (...) É a época das
encenações do grande teatro. Representações do Natal, da
Paixão. Sobressaem as encenações sacramentais em Honra do
Santíssimo Sacramento. A vida cristã distingue-se por uma
superabundância de orações, preces, devoções, ladainhas,
confrarias.
Toda esta mentalidade reflete sobre a devoção ao
Cristo Eucarístico e a devoção a Nossa Senhora. Temos a Festa
do Corpo de Cristo com procissão; a exposição do Santíssimo;
as devoções vespertinas; tabernáculo colocado no altar, mais e
mais com o trono majestático e triunfal do Rei. Proclama-se o
Cristo glorificado e triunfante. O Cristo padecente aos poucos
vai sendo realçado na devoção ao Sagrado Coração de Jesus.” 8
A liturgia nesse período fica a serviço da devoção privada. Era realizada
tendo em vista a oração pessoal subjetiva e não como ação participativa na
ação litúrgica. Segundo Beckhäuser o homem do barroco quer experimentar,
participar, brincar e agir. Assim, vão surgir as encenações, as devoções, as
procissões etc.9 Nessa perspectiva podemos afirmar que a liturgia estava a
serviço dos homens e não de Deus.
8
9
BECKHÄUSER, Alberto. Os fundamentos da Sagrada Liturgia. p. 261-262.
Cf. Idem.
4. A Era das Rubricas
A criação da Sagrada Congregação dos Ritos, feita pelo Papa Sisto V,
no dia 22 de janeiro de 1588, marca o início da era das rubricas, durante a
qual, e ao longo de quatro séculos, a liturgia romana, sobretudo no que diz
respeito a Missa, permanece totalmente petrificada.
A mencionada Congregação foi instituída para resolver as dúvidas que a
utilização dos novos livros litúrgicos pudesse apresentar. Não podia mudar nem
textos nem rubricas, senão unicamente dar interpretações autorizadas de seu
sentido; também podia conceder dispensas e privilégios e, no único aspecto
em que tinha algum tipo de criatividade era na redação dos formulários das
novas Festas. Em resumo, sua missão não era de continuar a reforma iniciada
pelo Concílio de Trento, mas velar a fidelidade quanto à sua aplicação.
A Congregação dos Ritos elaborou muitos decretos (uma coleção
autêntica publicada em Roma entre os anos 1898 e 1900 recolhe mais de
4.000). Esta tarefa de casuística detalhada e minuciosa criou na Igreja Católica
o que alguns chamaram “complexo rubricista”, isto é, a obsessão por cumprir
escrupulosamente todas e cada uma das prescrições rituais contidas nos livros
litúrgicos, precisamente com mais fidelidade à “letra” que ao “espírito” da
norma. De modo que as “rubricas” (palavra que provém do latim rubrum –
vermelho -, já que nesta cor figuravam escritas nos livros litúrgicos, em
contraste com o negro dos textos das leituras e orações), que num primeiro
momento eram simplesmente indicações de “como se costuma” realizar um rito
determinado, se converteram finalmente em normas autoritárias e rígidas sobre
“como deve” levá-lo a cabo obrigatoriamente, sob pena de não validade ou
ilicitude do ato ritual.
“Os Romanos Pontífices encetaram uma reforma geral
da Sagrada Liturgia de 1568 a 1614. A reforma pretendia
reformar os ritos, conduzindo-os à „antiga norma dos Santos
Padres‟. Aconteceu, porém, que as fontes patrísticas eram
pouco conhecidas. Conseguiu-se uma notável unidade ritual no
âmbito da Liturgia Romana, que readquiriu dignidade e beleza,
mas acentuando-se ainda mais sua fixidez que derivava mais
dos ordenamentos rubricais que a regulavam do que de sua
natureza. Assim a iniciativa pedida pelo Concílio de Trento não
chegou a uma verdadeira reforma da liturgia por falta de dados
hauridos das fontes. Foi, antes, profundamente influenciada
pela Teologia Escolástica sobre os sacramentos. Em 1688 o
Papa Sisto V criou a Sagrada Congregação dos Ritos para a
Tutela e o ordenamento das celebrações litúrgicas da Igreja
Romana.”10
Esse período foi marcado pelo desenvolvimento do juridicismo litúrgico,
como descrito acima, e ainda, pelo crescimento desmedido do culto dos
santos. Martimort afirma que nenhuma corrente reformista conseguiu
influenciar no sentido de mudar o rumo das coisas.11 Foram acrescentadas as
182 dias de festa do Calendário de 1568 outros 118 dias festivos de 1584 a
1903, sendo que quase na totalidade as festas prevaleciam sobre o domingo.
Mesmo nesse ambiente não faltaram tentativas de reformas. Podemos
citar o papa Bento XIV que consciente da necessidade de renovar a liturgia
romana confiou este encargo a um grupo de peritos (1741-1747), mas não
satisfeito com o resultado recusou-se a ratifica-los e acreditou que pudesse
realizar pessoalmente a reforma que desejava, mas veio a falecer antes de
levá-la a termo.12
5. O período pré Concílio Vaticano II
“A partir da época do Iluminismo do Século XVII,
podemos falar de uma ciência litúrgica. Iniciou-se a pesquisa
histórica do culto cristão, suas fontes e sua evolução através
dos séculos.”13
A reforma litúrgica do Vaticano II não foi um fenômeno aparecido como
por arte de magia, mas um fruto colhido de um ambiente sedento de
renovação: o movimento da “Nova Teologia” na tentativa de dialogar com a
modernidade e a ciência, o movimento bíblico e a encíclica Divino afflante
Spiritu (1943 – Pio XII) abrindo um novo período para o estudo da Escritura, o
movimento de retorno as fontes da patrística e o Movimento litúrgico,
preparado pela obra de dom Guéranger e surgido em princípios do século XX.
10
BECKHÄUSER, Alberto. Op. Cit. p. 18.
Cf. MARTIMORT, A.G. Op. Cit. p. 81.
12
Cf. Ibidem. p. 82.
13
BECKHÄUSER, Alberto. Idem.
11
“O Movimento toma força nos fins do século XIX, foi
incentivado pelo Papa Pio X no início do século XX e se impôs
com grande pujança em todo o mundo até o Concílio Vaticano
II.”14
5.1. O Movimento Litúrgico15
A irradiação dos monges de Solesmes chega à Alemanha com a
fundação da Abadia de Beuron e, mais tarde, à Bélgica, com as Abadias de
Maredsous e Mont César. A restauração do canto gregoriano encontra uma
acolhida favorável no Papa Pio X, que com o motu proprio Tra le sollecitudini
(1903), inaugura a reforma litúrgica do século XX. Esse moto proprio dá
normas sobre o canto que deve usar-se no culto e convida, ao mesmo tempo,
aos fiéis a participar ativamente na celebração da liturgia, que é “a fonte
primeira e indispensável do verdadeiro espírito cristão”. Esta participação é
mais perfeita quando se faz através da comunhão sacramental: por isso Pio X
fixa as condições para a comunhão frequente dos fiéis (1905) e adianta a idade
da recepção da primeira comunhão (1910).
A partir de 1909 desenvolve-se o Movimento
Litúrgico propriamente dito: uma grande cruzada de reforma e
renovação litúrgicas, por meio de investigações históricas e
teológicas, congressos, cursos, conferências e amplo trabalho
de pastoral litúrgica, promovendo a participação do povo nas
celebrações.16
As disposições do papa encontram acolhidas em muitos pastores
preocupados com o fomento da vida litúrgica. Na Bélgica é dom Lambert
Beauduin, monge de Mont César, que lança uma verdadeira cruzada em favor
da participação dos cristãos nas celebrações e, para consegui-lo, publica um
missal popular e organiza cursos e conferências para sacerdotes. Outro
14
BECKHÄUSER, Alberto. Op. Cit. p. 19.
“O ponto-chave do movimento consiste em desenvolver uma espiritualidade comunitária, ressuscitando
a força das celebrações e tempos litúrgicos, em oposição ao individualismo religioso reinante, estribado
em devoções particulares.” (J. B. Libaneo. Igreja contemporânea: encontro com a modernidade. p.
77) Para mais informações sobre este item, ver: BECKHÄUSER, Alberto. Os fundamentos da Sagrada
Liturgia. p. 267-273.
16
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO - CELAM. Manual de Liturgia IV. A
Celebração do Mistério Pascal: outras expressões do Mistério pascal e a liturgia na vida da Igreja.
p.501.
15
monge, Gaspar Lefebre, da abadia de Saint-André, de Bruges, edita também
um missal para os fiéis, que tem uma ampla difusão e é traduzido em diversas
línguas. Na França, o jesuíta Paul Doncoeur inicia os jovens na participação
litúrgica
fomentando
a
prática
da
chamada
“Missa
dialogada”,
que
posteriormente terá muita importância nos movimentos apostólicos da
juventude. Na Alemanha, temos que destacar a obra de Romano Guardini e de
dom Odo Casel, monge de Maria Laach, que tem uma influência importante no
âmbito intelectual.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o Movimento Litúrgico adota uma
finalidade um pouco diferente: se até então se tratava de por a liturgia existente
ao alcance do povo e promover o canto gregoriano, agora se vê mais
claramente a necessidade de uma reforma profunda dos ritos e de uma
introdução, mesmo que parcial, da língua do povo na celebração litúrgica. Um
fato importante é a criação, em Paris, do Centro de Pastoral Litúrgica, que, com
a revista “La Maison-Dieu”, a edição de livros e fascículos e a organização de
sessões e congressos tem uma grande influência em toda a Igreja. Seguindo o
exemplo, em 1958 se criou o Centro de Pastoral Litúrgica de Barcelona.
O Papa Pio XII, sem ser pessoalmente um entusiasta da liturgia, aceita o
papel impulsionador da renovação litúrgica, com uma série de iniciativas que
vão preparando o caminho para uma reforma mais profunda. A Encíclica
Mediator Dei (1947), redigida para sair do encalço de certos exageros
“panliturgistas”, serve de fato para sancionar os resultados positivos do
Movimento Litúrgico e abrir o caminho para um conceito e uma vivência da
liturgia superadores das perspectivas “estética” e “jurídica” em que alguns
corriam o perigo de encerrar-se.
Em 1953, Pio XII simplifica as normas sobre o jejum eucarístico, com a
finalidade de facilitar a celebração vespertina da Missa. Em 1951 restaura a
Vigília Pascal, situando-a outra vez na noite do Sábado Santo e reformando-lhe
alguns ritos, com a grande inovação do uso litúrgico da língua do povo na
renovação das promessas batismais.
Em 1955, fica completa a reforma da Semana Santa com uma
renovação profunda dos ritos e os horários da Quinta e da Sexta-feira Santa.
Também é importante a autorização dos Rituais bilíngues e a simplificação das
rubricas do Breviário, que culmina, já no pontificado de João XXIII, com a
publicação do Código das rubricas (1960).
5.2. A Constituição Sacrosanctum Concilium
Não deixa de ser sintomático que o primeiro resultado do Concílio
Vaticano II (1962-1965) tenha sido a Constituição sobre a Sagrada Liturgia
Sacrosanctum Concilium.17 Mesmo sendo certo que o motivo determinante
desta prioridade foi que, depois da recusa inicial de abordar o esquema
dogmático, os altos dirigentes do Concílio se deram conta que o esquema
litúrgico era o melhor preparado, também é certo que, objetivamente falando, a
reforma da liturgia era muito adequada para cumprir as finalidades essenciais
do Concílio, que, como diz a constituição litúrgica, eram estas quatro:
“fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis;
acomodar melhor às necessidades de nossa época as instituições
que são suscetíveis de mudanças;
favorecer tudo o que possa contribuir para a união dos que creem em
Cristo;
e promover tudo o que conduz ao chamamento de todos ao seio da
Igreja”18.
Efetivamente, a revitalização da existência cristã se encontra, sobretudo,
na revitalização da liturgia “fonte e cume de toda a vida cristã”. E a
Sacrosanctum Concilium expressa a dimensão teológica da liturgia, juntamente
com as aplicações práticas dessa nova concepção, reecontrando-se com as
fontes litúrgicas e abandonando muitas aderências que ao longo dos diversos
momentos culturais foram formando-se. Os Padres Conciliares fiéis à tradição
patrítica, veem toda salvação de Deus concentrada no conceito-chave – “o
mistério pascal” – Páscoa – centro da história da Salvação.19
17
CELAM. Manual de Liturgia IV. p.503.
Sacrosanctum Concilium, n. 1.
19
ARGÁRATE, Pablo. A Igreja celebra Jesus Cristo: introdução à celebração litúrgica. p. 53.
18
Finalmente, o diálogo com o mundo só é possível quando a Igreja se
afirma tal como é autenticamente: o mundo deve saber que a finalidade própria
e específica da Igreja não é de tipo cultural, humanitário ou social, mas
estritamente litúrgico, de glorificação a Deus e de santificação dos seres
humanos.
As diretrizes mais importantes que a Sacrosanctum Concilium dá para a
reforma da liturgia estão em relação com as deficiências mais notáveis
existentes na vida litúrgica dos cristãos: a desconexão com a Palavra de Deus
e a perda do sentido comunitário. Por culpa destes fatores a religiosidade de
muitos católicos tinha perdido contato com a fonte genuína, que é sempre a
Palavra de Deus como expressão de sua vontade e de seu desígnio de
salvação, e se havia refugiado num individualismo egocêntrico e de horizontes
muito limitados. A Igreja deseja agora reformar a liturgia nesta dupla direção:
abrir com maior abundância os tesouros da Palavra de Deus e destacar com
mais intensidade e eficácia o aspecto comunitário das ações litúrgicas,
buscando resgatar a todo o custo a participação plena, ativa e fecunda dos fiéis
nas celebrações.
Uma vez publicada a constituição Sacrosanctum Concilium, o trabalho
reformado da liturgia que se leva a cabo, segue com facilidade as diretrizes
deste importante documento conciliar. No dia 29 de janeiro de 1964 o papa
Paulo VI cria uma comissão encarregada de por em prática a constituição
conciliar. É um organismo composto por cinquenta cardeais e bispos e mais de
duzentos especialistas de todo o mundo católico: seu presidente é o Cardeal
Giacono Lercano, arcebispo de Bolonha, e seu secretário o Pe. Annibale
Bugnini, verdadeiro artífice da reforma. O primeiro fenômeno que produz é a
inigualável invasão da língua do povo em todo o âmbito das celebrações
litúrgicas, de tal modo que em 1971 é autorizado o uso integral dos idiomas
próprios de cada país tanto na celebração do Ofício Divino como da Missa e de
todos os Sacramentos. A introdução da língua do povo suscita o desejo de um
número maior de orações, já que as línguas vivas não suportam o fixismo de
uma língua em como o latim, e assim se chega inclusive a enriquecer a missa
com três novas Orações Eucarísticas, rompendo a tradição multissecular da
liturgia romana de usar um só texto (o cânon).
6. Conclusão
Chegados ao final do resgate histórico da evolução da liturgia, convém
fazer um esforço de visão de futuro, não com a pretensão de vaticinar como
serão as celebrações litúrgicas do século XXI, mas com a intenção de ver
como devem ser então nossas celebrações para que o núcleo essencial que
veiculam – o “memorial” do Senhor – seja transmitido fielmente às gerações
futuras. Dito com outras palavras da própria constituição Sacrosanctum
Concilium (n. 23): é necessário que nós cristãos de hoje saibamos “conservar a
Tradição” e, ao mesmo tempo, “abrir um caminho ao legítimo progresso”.
O futuro da liturgia está, pois, em mãos da existência e da vitalidade das
comunidades cristãs concretas, que têm na assembleia litúrgica o lugar de sua
expressão mais típica e genuína. A importância da comunidade na celebração
litúrgica foi sempre muito grande nas diversas etapas da evolução histórica,
mas foi uma significação diversa segundo o contexto ambiental.
A liturgia do amanhã será, mais do que nunca, o meio imprescindível
para que as comunidades cristãs “anunciem a morte do Senhor até que ele
venha” (1Cor 11, 26).
A liturgia, portanto, é uma ação que procede o Pai,
realiza-se em Cristo pelo Espírito Santo, e mediante o Espírito
nos incorpora ao culto de Cristo para levar-nos ao Pai.
Honramos o Pai por Cristo no Espírito Santo e no interior da
santa Igreja, porque o Pai nos salvou pelo Filho no poder do
Espírito Santo.20
Dentro do espírito de renovação, reestruturação, busca às fontes,
propostos pelo Movimento Litúrgico e pelo Concílio Vaticano II, a América
Latina foi a que respondeu com mais rapidez e agilidade à nova maneira de
viver a liturgia. Isso se deve à extrema necessidade de inculturação incutida no
espírito próprio do povo da América Latina. Esse avançado impulso aconteceu
graças aos encontros de grandes bispos, dentre eles destacamos Helder
20
Francisco Escobar. A Celebração do Mistério de Cristo. In.: CONSELHO EPISCOPAL LATINOAMERICANO - CELAM. Manual de Liturgia II. A Celebração do Mistério Pascal:Fundamentos
teológicos e elementos constitutivos / CELAM. p. 30.
Camara e também à “Teologia da Libertação” que, não obstante seus
exageros, propôs, assumiu e procurou viver tal intuição aqui, na América
Latina.
A seriedade da liturgia na América Latina e no Caribe é explicitada nos
Documentos de Medellín (1968), de Puebla (1979) e de Santo Domingo (1992).
Com esta primeira etapa da nossa Semana Teológica, destacando o
período de preparação para o concilio, temos os elementos necessários para
aprofundar o documento conciliar sobre a liturgia na próxima etapa. Dedicandonos aos aspectos inovadores, a receptividade e aplicação da Constituição
sobre a Liturgia. Pois a Sacrosanctum Concilium qualificou, o Beato João Paulo
II na comemoração dos 25 anos do Concílio, “como o fruto mais visível da obra
conciliar”.21
21
JOÃO PAULO II. Exortação apostólica Vicesimus quintus annus. 1988, n.12.

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