O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Uma coletânea de Rafael Nova. Este livro não possui fins comerciais sua distribuição é gratuita! Dedicatória Ofereço esta incrível obra, como forma de apreço e símbolo de minha cordialidade, a você, _____________________________________ (insira o nome da vítima) que é objeto de meu total bem querer e devoção! Com este pequeno regalo, espero eu, sua vida se torne mais aprazível e colorida, ao passo que o felicito pelo _____________________________________ (insira a data comemorativa ou ocasião imaginária) no qual só posso agradecer pela sua notável presença em minha vida. Aproveito a ocasião para confessar humildemente meu apreço pela suas maravilhosas qualidades de _____________________________________ (hora de assoprar e passar a mão no ego alheio) - ah se todos as tivessem! O mundo seria muito melhor! Como encerramento deste breve, porém sincero dizer, peço-lhe gentilmente caso seja de seu desejo, retribuir-me do seguinte modo: _____________________________________ (hora da facada! aproveite! valorize seu investimento!) Com o carinho infinito e incondicional, _____________________________________ (insira seu nome e título de nobreza) ___________________, ____/____/____ (local e data! dica: passe corretivo nos parênteses) O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova À memória de Gustavo. Que aí no céu, amigo, você possa saboreá-lo! Obrigado por alimentar meus sonhos. Menu ENTRADA Introdução ______________________________________ 7 Oração ao leitor desconhecido. Que assim seja. PRATOS QUENTES A Última Oração _________________________________ 9 Todo mundo já sofreu (e até ficou sem tomar banho) por um amor perdido. E quase todo mundo pensou em recorrer a Deus, mesmo sem saber direito como fazer isso. Por Elise _______________________________________ 13 Elise não precisou morrer para que sua vida anterior fosse totalmente desfigurada. As lembranças de uma amiga especial lhe acompanham diante da possível morte real. O Gordo Profeta ________________________________ 17 O gordo das nossas vidas sempre está à espreita para nos detonar ou trazer bons momentos. Voltar das férias de trabalho nunca é fácil, especialmente quando o gordo em questão é seu colega "querido". Garoto do Mercado ______________________________ 21 Algo um pouquinho diferente pode acontecer na sua vida e te fazer sentir um milionário. Mesmo quando você é um professor numa pequena cidade, o inusitado pode surpreender. Ponte de Vidro __________________________________ 26 Ele nunca soube escrever, mas ele devia isso a ela. O nome dela era Leandro. A Fantástica Lésbica de Taba-K ____________________ 35 Num planeta não muito distante os homens foram extintos e uma raça inteira de mulheres espaciais corre perigo. Sua última esperança é Mika, do setor K, encarregada de uma missão nada confortável no planeta Terra. Diário de Camila ________________________________ 43 Ser adolescente nunca foi fácil, ainda mais agora quando tudo parece conspirar contra você para lhe afastar do seu grande amor. Camila, contudo, não deixará barato! A Batalha de Campos ____________________________ 49 A chapa esquenta nessa tremenda luta entre fanchonas no Mercado Público. Presentes Sob a Árvore ___________________________ 56 Não há neve no Brasil, mas o Natal pode ser mágico. No caos de Florianópolis em véspera da Boa Festa, Luan espera ansiosamente por Cauê. Um Pássaro ____________________________________ 63 Quando um gay idoso perde seu companheiro de uma vida, vê-se tentando conseguir um meio de se comunicar com ele. Uma doce e espiritual história onde nada parece fazer sentido. Reencontrado Minha Cidade ______________________ 74 Um futuro alternativo onde Anjo, personagem principal de Cidade do Anjo, e André, se defrontam com as consequências de suas escolhas num dia tempestuoso ao casarão da Praça da Consolação. Vento Triste ____________________________________ 82 Um mundo alternativo onde Anjo, personagem principal de Cidade do Anjo, e André, vivem como personagens de uma aventura de fantasia e tentam sobreviver aos ameaçadores dragões de areia. A Noite Histórica ________________________________ 94 Quando você pensa que já passou por tudo na vida, o gordo da sua vida pode te botar numa noite maluca, da segurança do RPG de mesa atirado à pista de uma boate gay . Pequenos e Curtos ______________________________ 103 O caminhoneiro. Alerta. Conselhos de Shangri-la. A Mansão Ideal. Faroeste Brilhante. SOBREMESAS Desintrodução _________________________________ 107 Um singelo "até breve" aos desbravadores. Extras #1 _____________________________________ 108 Autoentrevista com o Autor. Extras #2 _____________________________________ 112 Guia rápido de frases de Monsieur Nova. Extras #3 _____________________________________ 117 Certificado de leitura. O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Introdução Oração ao Leitor Desconhecido Ao deitar tua gorda mão sobre as páginas deste livro, que elas estejam puras e livres de vestígios de alimentos hipercalóricos ou saborosas bebidas gasosas; que manuseiem e folheiem avidamente seu conteúdo em busca de entretenimento total e orgástico. Se tiverdes pedido emprestado o poderoso trabalho, que tua consciência seja lembrada de devolvê-lo e jamais passar adiante; se assim ocorrer, teus dias serão curtos diante das maldições lançadas pelo teu credor bibliográfico. Quando te puseres diante de relatos cômicos, que tua boca gargalheie sem censuras, a despeito dos olhares que te perseguirão em locais públicos ou ambientes familiares. Que tu possas chorar de rir, fazer xixi de tanto rir, e finalmente ter um troço de tanto rir e cair de alma lavada sobre o editado camalhaço. Se por acaso encarardes o mistério, o drama ou o romance, brote de teu coração inspirações doidivanas de sair a passo pelas ruas gritando e proclamando a excelência deste autor. E que serenatas e declamações inspiradas por ele abrilhantem tua jornada profissional e pessoal nas rodinhas de conversação. Mas se porventura a ira se apoderar de ti e desejardes queimar e destruir tudo que aqui está contido, possa esta fogueira servir para o mais nobre dos fins: um belo churrasco gaúcho, acompanhado de polentas fritas e salada. Que seja fotografado o ritual e compartilhado em redes sociais, onde amigos sádicos curtirão a tortura literária. [7] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Possa tua jornada ser leve, e teu voo sobre as páginas acolher vosso coração em alegria e boa companhia. Mas ai daquele que dormir, levando para a cama este livro, pois sobre ele recairá a minha cólera e seu sono será recheado de atividades oníricas insanas e torturantes! Sentado sobre vossas nádegas, guardai estas palavras e proclamai esta obra a revolução do entretenimento do novo tempo! Que Assim Seja. [8] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. A Última Oração Quando dei por mim eu estava sentado na rede da minha casa. Uma rede azul, um tanto quanto surrada, pendurada em dois ganchos que me custaram alguns machucados nas mãos. Eu levei muito tempo até chegar a esse momento que parece pateticamente simples, mas estava testando minha paciência há anos. Vinha lutando contra uma série de marés turbulentas que teimavam me arrastar, e eu, náufrago, me agarrei a tudo o que pude. Boiei dias sem comida, bebida, ou bola de vôlei com quem conversar. Era apenas eu lutando contra o inevitável. Então eu respirei fundo, olhei o céu da tarde nublada e quente pra caralho, e acendi um delicioso cigarro Eu tinha prometido que ia parar, mas era só mais um, e afinal eu merecia. Fazia tempo que eu precisava ter essa conversa, e eu já estava nervoso pelo desespero ou por parecer meio ridículo. Sabe como é. Um tipo como eu, sei lá, não está acostumado a “rezar”. Porém, diante das três noites maldormidas, do cinzeiro cheio, do monte de lixo espalhado pelo meu quarto, eu sabia que eu tinha que fazer alguma coisa! Não podia ser encontrado morto pelos meus amigos idiotas, ou pela minha mãe uma semana depois (ou quando quer que ela resolvesse vir me ver), por afogamento em cerveja ou qualquer outra coisa ainda mais bizarra. Daí eu traguei mais uma vez o meu santo cigarro, olhei pra ele, apaguei – porque parecia um tanto infame falar com Deus fumando cigarro. E daí eu simplesmente parei tudo. Tem muita coisa que acontece na vida da gente, isso é fato. Mas pouca coisa é tão tenebrosa quanto encarar um pé na bunda que acerta em cheio onde você não quer. Não é como a pobreza, a fome, ou essas tragédias medonhas... E eu sei, sei que tem um [9] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. monte de gente em situações piores do que a minha, blá blá blá e etc. Só que a minha dignidade de homem precisava ser mantida enquanto eu ia defender perante o Criador alguma coisa que eu ainda precisava que Ele – se Ele existisse – podia me dar. Igual a um furacão ruidoso, soprando sem parar, vi os olhos escuros e selvagens dele em minha mente mais uma vez. O modo como saiu da minha casa, dois anos depois, dizendo que não me amava mais e que estava gostando de outro cara. Aquela falta de sentimento... As sobrancelhas arqueadas e desenhadas emoldurando um olhar vazio. Era impossível dizer que ele um dia tinha sequer me amado, que tinha sequer me conhecido... E o mais odioso é que eu tinha caído nisso, eu tinha me apaixonado de novo e me fodido de novo. De repente tô sendo meio injusto, na real eu não tinha vivido nada assim antes. Esse trauma foi o meu primeiro. Já tinha desistido de ficar com alguém, mas porra, esse era o primeiro cara que eu quis mesmo namorar! Por um segundo antes de abrir a boca e cruzar as mãos (pode rir, só lembrava do meu pai fazendo isso, não tive outra referência), daí me veio uma coisa: Deus podia não gostar dos homossexuais. Provavelmente tinha um desprezo ainda maior pelos que de vez em quando tinham tesão por mulher, igual eu. Se era assim, tava muito claro que antes de morrer eu já estava saboreando uma amostra grátis do inferno. Na dúvida, resolvi acender outro cigarro e ponderar melhor sobre o assunto. Confesso aqui uma coisa um tanto nojenta: eu estava precisando tomar um banho. E desse pensamento tolo, logo lembrei dele, de novo. O destino parece que tinha feito a coisa bem armada pra me ferrar. Ele era daquele jeitinho, aquele jeito de moleque de cursinho pré-vestibular e da puta que pariu, com uma plaquinha de “me coma” pendurada no pescoço. Eu até me senti meio leão quando [10] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. pus o olho nele... A calça apertada, unhas pintadas, franjinha preta descendo pelo rosto, e o principal: ele era pequeno. Um corpinho branco, liso, pequeninho e perigoso como um frasco de veneno. Só sei que o que magoou mesmo é que quando olhei pra trás, eu vi que no fundo ele realmente nunca tinha gostado de mim. E isso me apertava o peito... Eu tinha sido muito burro! Ajeitei meu calção cinza de dormir, e me alonguei pra trás. Soltei a fumaça, observando o movimento dela em cima de mim. O gato miou lá na cozinha, pedindo comida. Eu devia ter confiado nele – o gato, que era só um gato, nunca chegou nem perto do meu “ex”. Pelo sim e pelo não, levantei... Pedi licença a Deus como se ele fosse um cliente parado diante da minha mesa no trabalho, cocei o saco, e fui até o banheiro. Precisava mijar, olhar pra minha cara de trinta e dois anos com aparência de sessenta, pro meu cabelo já num comprimento inaceitável pedindo pra voltar a ser raspado, e pra cor esquisita na minha pele. Um lixo humano. Mexi na barba (é, eu esqueci de lavar a mão)... Os pelos castanhos e claros espalhados pelo rosto, peito, pernas. Eu costumava me achar razoável. Voltei à rede, joguei o cigarro longe. Bastava de me sentir assim! Eu tava sozinho já há mais de meio ano, cada vez pior. Não ia pras boates, faltei quase todos os aniversários dos meus amigos, comecei a deixar de treinar, e ainda por cima não podia suportar ir a shopping e ver aquele bando de jovenzinhos quase iguais ao “outro”. Se era pra acabar sozinho, nessa merda, ia ser com a cabeça erguida e de banho tomado! - Deus... – falei, sussurrando de dor, meio cortado – Se tem algum cara legal por aí, eu nem sei. Não quero mais saber! Só quero que você me ajude a sair dessa... Me ajuda a esquecer! Se você me quer sozinho, tá beleza. Se me quer com alguém, me traz alguém que vale a pena. [11] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Porque se fosse pra ter alguém de novo... O gato ia ter que gostar da pessoa. [12] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Por Elise O sangue escorre à frente do meu rosto formando uma pequena poça. - Abra os olhos, Elise! Meus olhos estão abertos. Apenas estou deitada, e não tenho mais a noção do espaço... Eu recém havia chegado à cozinha de casa quando o ladrão me viu, e assustado me atingiu com algo que nem sei o que era. O barulho seco do objeto sobre meu ouvido direito e a tontura, pá! Eu ali já caindo e ficando até onde estou agora, uma dor lancinante em meu canal auditivo. É horrível, mas não tenho medo. Estou apenas esperando. Nessa vida sou uma dona de casa, tenho quase 43 anos. Não me cuido como deveria, não pareço uma das moças de Sex And The City, nem de Desperate Housewives. Visto-me mal, sem vaidade alguma, cumpro meu dever. Na vida anterior eu era uma moça, os cabelos avermelhados me cobriam as costas - generosos. Minha pele era branca como porcelana... As meninas tinham inveja de mim e inveja do meu dom de tocar piano como ninguém. E foi durante uma das aulas no conservatório que a conheci, uma amiga especial, do tipo rebelde. Naquele outro tempo eu usava roupas adequadas à moda e não sobreviveria sem sorvete de pistache. Não imaginaria meu mundo sem saber o nome de todas as cores da estação, nem dos filmes e peças de teatro em cartaz. Já no tempo atual, não tenho qualquer cultura. Debruço-me apenas sobre os deveres de casa da minha pequena, ou então dos relatos de noticiário que meu marido geralmente me traz a conhecer. Meu marido me ama, e isso parece bastar a ele. [13] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Em outra vida meu sonho era ser uma grande musicista. Cheguei a dar aulas... Morava com meus pais e tinha outras irmãs. E havia Beth, a amiga. A que andava de motocicleta e fumava como os garotos, parecendo-se uma versão atrevida e imortal de James Dean. Um doce de pessoa, a quem os meus rejeitavam veementemente. Nesta vida casei com Gerard, um contabilista. Homem sério, afeito a suspensórios e de hábitos modestos. Um senso de organização nato. Um tipo de homem que traz flores no aniversário de casamento, e ainda é capaz de lembrar-se do aniversário de namoro. O que cuida da casa, dos filhos, que troca o carro, que dá dinheiro para as roupas e sorri. E ainda um tipo que não se importa de não acontecer sexo entre ele e a esposa, pelo menos na maior parte do tempo. Em ambas as vidas já muito cedo eu sofri nos períodos que antecediam a menstruação. Doía-me o ventre... Tive muitos problemas ao longo dos anos. Fui acometida de síndrome do ovário policístico. Tratamentos longos, eu cheguei a perder uma gestação com três meses, quase quatro. Até hoje me pergunto como seria a menina de 9 anos, a qual nem pude conhecer. Meu ouvido dói, o sangue forma um pequeno mar vermelho. Espalho-me pelo chão nesta gloriosa manhã. - Abra os olhos, Elise! Meus olhos estão abertos. Recordo-me um verão onde Beth e eu tocamos num festival. Foi lindo... Ela era exímia no violino. Seu talento talvez fosse um dos motivos pelo qual a respeitassem tanto, enquanto outras como ela recebiam apenas os olhares de reprovação, nojo, afastamento, da sociedade. Íamos a festas que as famílias ricas organizavam para as celebridades locais... Ríamos, nós, o grupo. Seu sorriso era encantador. Mas sou injusta. [14] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Lamento-me pela vida de agora... Queria voltar no tempo. Tão cedo conheci Gerard, e logo do namoro veio os filhos. Beth se afastou... Foi um alívio para todos, exceto para mim. E eu já não podia dar conta do piano. Minha amiga foi ficando distante e todas as coisas foram perdendo sua razão de ser... Já não me importava tanto. Minha falecida mãe me dizia que estraguei meu casamento e minha família porque eu simplesmente só pensava em mim. Agora, de olhos abertos, consigo enxergar que ela tinha absoluta razão. Quase posso ver - paradas à sala de jantar - as imagens da menina e de Beth. A minha filha que eu perdi, suas mãos ao alcance dos meus cabelos. E Beth, escorada próxima ao relógio antigo. Permanece tão jovem como na época em que a vi pela última vez. Se ainda tivesse meu útero, eu tentaria novamente dar uma chance a esta menininha vir ao mundo. Isto é, se eu já não estivesse indo de encontro a ela. Gostaria de ser tão forte como Moisés, para abrir este Mar Vermelho. Passam pela minha mente os encontros de família aos domingos. Já não reconhecia meus pais nem irmãs, nem ninguém. Parada à beira da piscina, olhando as crianças, limitando-me a fumar um cigarro, beber um pouco de uísque... Ouvindo os risos de satisfação, as gargalhadas, as vozes incessantes. Naqueles momentos, tudo o que eu desejava eram os aplausos das salas de concerto. Quisera também sentir a mão de minha amiga sobre a minha. Trocaria tudo por isso. Nosso tempo foi tão curto... O que é uma vida? O estranho é que fui perdendo tantas coisas e partes de mim. Você se adapta ao fim da carreira, à perda da filha, ao inexistente útero e ovários, à amada amizade que se foi... Você aceita como manda a Bíblia, e passa pelas provações. E no final [15] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. vai sobrando uma coisa, que não é mais você. Um retrato desfigurado. Quem teria sido Elisabeth? Se eu tivesse a coragem de confessar a ela meu desejo, e ela para mim, teria tido a coragem para estar com ela? Ela nunca disse nada a mim, e eu nunca disse a ela, ainda que nossos olhares de cumplicidade o esfregassem não apenas na cara uma da outra, mas na cara de toda a sociedade. Nas noites com meu marido, ele mesmo às vezes evocava a presença de Beth em nossa cama, imaginando nós duas juntas... E eu negava, mas no íntimo imaginava-me com ela. Sem ele. Ele teria aceitado qualquer situação para continuar comigo. Uma mãe assim, uma esposa assim, uma filha assim. Eu não aceitaria. - Abra os olhos, Elise! Meus olhos estão abertos. Quase posso imaginar meus dedos tocando uma sonata de Beethoven: Moonlight. Meus lábios não se movem, mas eu estou sorrindo. A dor em meu ouvido, essa fonte se derramando, e eu ali pensando em mim mesma jovem, tocando. Eu poderia tocar ainda, se quisesse. Apenas estou velha e magoada... E já não tenho mais o que eu quero. Como disse, sou injusta; escolhi por mim mesma o caminho da amargura. Pensei nos acordes, meus dedos se movimentaram. A mão de minha filha não nascida mexeu e brincou com eles... E Beth pôs suas mãos sobre meus ombros. - Você acordou, Elise, você acordou! Por Beth, por Elise. Finalmente fechei meus olhos e toquei como nunca o havia feito. Ouça a Moonlight Sonata de Beethoven: clique aqui. [16] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. O Gordo Profeta Eu tenho um azar que me acompanha desde moleque: quando o relógio tá quase despertando, eu me acordo antes. Às vezes uns 10 minutos antes, às vezes cinco, e na maioria das vezes uns dois ou três. É uma droga... Fico meio aflito olhando pras horas, desligo o alarme, e sei que não posso mais dormir. Na noite antes de voltar para o trabalho, pós-final de merecidas férias, eu bati meu recorde: acordei uma hora antes. Daí eu escovei os dentes, aparei a barba (e me cortei no pescoço - caralho), tomei um banho frio pra acordar bem. E pra passar o tempo passei a minha camisa e a minha gravata de um jeito tão meticuloso que pareciam folhas gigantes de papel recortadas em formato de roupa. Achei isso um pouco veado da minha parte, mas que se foda. Peguei o carro, que tá sempre com o tanque na reserva, mas que pelo menos é meu, e cheguei cedo. Fiquei ali: olhando apavorado pra pilha de planilhas feias que eu tinha que passar pra relatórios estúpidos e transformar em gráficos... E quis invadir a sala do meu chefe, encher a cadeira dele de tachinhas, pra quando ele fosse sentar eu pudesse ouvir o berro e depois sorrir na tranquilidade maliciosa da minha estação de trabalho. Se eu tivesse um dom paranormal, isso certamente teria sido arranjado com a força do ódio brotando ali no meu pensamento. De qualquer jeito eu nem podia reclamar muito. Tinha tirado férias no pior mês de movimento da empresa, e ainda por cima férias que eu nem pude aproveitar porque eu estava ocupado demais lembrando o meu ex e sujando todas as louças e roupas que tinha no apartamento. O engraçado de trabalhar com números é que eles são legais com você. Eles estão ali, supostamente corretos. Acontece que uma vez ou outra, por culpa de um imbecil do setor lá de [17] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. baixo eles até venham errados, nada fecha, eu levo uma mijada e depois dou outra nos estagiários filhos da puta. Por sinal, um grande prazer na minha vida era arruinar a vida deles sempre que possível. Nada na vida se compara à visão de um estagiário recolhendo dinheiro, todo atrapalhado, pra comprar um monte de coisas na rua, e depois voltando e sendo achincalhado porque não conseguiu se lembrar dos trocos corretos e nem acertar o que cada um pediu pro café. Todos já passamos por isso, todos passaremos. É a lei da selva. Soquei meus fones no ouvido e enfiei um Linkin Park pra quebrar tudo. É impressionante a merda que é voltar pro trabalho porque não basta os colegas te verem, eles simplesmente têm que comentar com boca mole: “apareceu!”, “oh, sumido!”, “e aí turista!”. Vontade de pegar os clipes coloridos da minha frente e enfiar no rabo deles. Quando foi por perto das onze meu celular vibrou. Cheguei a gelar. Peguei-o, olhei pras outras mesas ao redor e atendi discretamente, usando ainda os fones. - Fala... - Ressuscitou, hein, Rodrigo. Abre teu e-mail. - Vai se foder gordo, tô cheio de trabalho aqui. Não vou ficar vendo tuas fotos escrotas... - Não desliga! Como ele sabia que eu ia desligar?! Desconfiado, olhei ao redor. No canto do bebedouro, do lado do vaso de samambaia mais feio do mundo, Fábio Capetão estava me encarando. Ele é alto, com uma eterna barriga de grávida de nove meses, barba preta, entradas proeminentes, e cara de sonso... A camisa xadrez desvalorizando o quanto podia sua já falta de beleza. O nariz [18] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. pontudo pra baixo, no conjunto, parecia um daqueles óculos de disfarce que vendem em loja de fantasia. - Estou olhando pra você... Que delícia de gravata... – ele forçou a voz pra ficar grave e rouca, imitando o telessexo que ele com certeza muito aproveitou durante a adolescência. - Vai se foder, já falei... – mostrei o dedo só pra ele ver. - Olha seu e-mail, agora. E se prepara. Balancei a cabeça em dúvida... Bom, já tava quase na hora do almoço mesmo. Fiquei puto. Era uma tirinha de Memes. O gordo tava sempre com aquilo, eu até gostava, mas porra, vinte e-mails por dia de tirinhas! Olhei pra ele com cara de quem ia pegar o grampeador e enfiar no rabo dele (porque era maior que os clipes). Ele fez sinal com as sobrancelhas pra eu olhar de novo. Assunto: “seu cu”. Meu cu? Nada a ver. Era um folder de festa... Uma festa gay, que ele sabia muito bem que eu não frequentava há pelo menos um ano. Festas que ele avacalhava porque dizia que ele não era gay. Festas que meus outros amigos idiotas frequentavam porque precisavam catar alguém pra comer, ou pra comer eles (no caso do Tales), ou os dois. Respirei fundo... Daí eu ouvi a voz sacana soprando quase profética: - “Open”... “Bar”... O gordo sabia das coisas. Eu ergui as costas como se uma força mística e misteriosa tivesse entrado em mim e reestruturado meu corpo. Eu era o rei do trago, desde a época da faculdade! Eu ainda tinha esse dom em algum lugar dentro de mim, no meio de todas as batidinhas de fruta irritantes que o meu ex me fez tomar. Com expressão de [19] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. vitória em meu rosto, girei a cadeira e abri os braços para ele, saudando o mestre. O Fábio Capetão só fez uma mesura com a cabeça e deslizou para o elevador atrás dele, desaparecendo como apareceu, lembrando uma versão tamanho elefante do Mestre dos Magos. No meio do almoço, enquanto eu ainda lutava com o bife, ele disse: - Você tem que dar esse rabo, Rodrigo. - Vai se foder, capeta... Você sabe que eu nunca dei o meu rabo, e nunca vou dar, e ainda vou comer o seu um dia. Ele riu. As risadas do Fábio eram de dar vergonha em qualquer um... Diz a lenda que a mãe dele colocou ele por um ano numa fonoaudióloga quando ele tinha dezesseis, pra ver se ele melhorava. Não funcionou, e ele ainda perdeu a virgindade com ela. [20] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Garoto do Mercado Faz muitos anos que vou ao mesmo mercado. Moro numa cidade pequena, então quase todo mundo se conhece. Sabem que eu sou Pedagogo, sabem que eu trabalho numa das duas escolas do (mini) município litorâneo, e conhecem toda a história de quando me pegaram beijando o “amigo” do colégio - foi assunto de todas as fofocas e burburinhos na época. Durou o natal, o ano novo, e por pouco não chegou ao carnaval se não fosse o flagra de um marido em sua mulher cometendo um adultério lésbico (e até segundo versões pouco ortodoxas, zoófilo). Eu devia ter aproveitado meus 15 minutos de fama e criado um livro ou uma franquia de produtos, teria sido um sucesso comercial. E isso que eu nem dava pinta na época! Agora nem me importo. Moro sozinho, pago minhas contas. Só não imaginava que a minha vida ia ser passar num concurso pra ficar morando no mesmo lugar de onde eu saí. No fim de tudo, é a grana que fala mais alto mesmo. Vida de gado. Agora um aviso: se você um dia tiver o “prazer” de virar professor, vai descobrir que o buraco é bem mais embaixo. Quando você é aluno você estuda, vai às aulas, conversa com as amigas, passa bilhetinho, come o lanche no recreio. Ou então faz o trabalho de faculdade uma madrugada antes (como sempre), e paga pro colega inteligente formatar o artigo nas normas da ABNT. O caldo engrossa é quando de repente você passa é pro lado de lá - aí sim o bicho pega. Pega de jeito, pega firme, pega pelas ancas! No começo tudo é ótimo, você inventa as aulas mais criativas... Imagina que vai ser igual àqueles filmes americanos [21] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. onde o professor muda a vida da comunidade e todo mundo chora no final. Mas a realidade é que depois a rotina te deixa igual àquela sua professora vaca de matemática. Isso é a mesma coisa quando dizem que você tem filhos e faz com eles a mesma coisa que os seus pais fizeram com você. (Só acho que no meu caso não vestiria meu filho de Elvis pro carnaval – dificilmente vou me recuperar desse trauma, e até hoje não consigo usar costeletas). Foi num dia de sol desses que o calor chega a embaçar os óculos da gente, que eu saí pra comprar tomate. Nada mais tropical... Eu, raquítico e branco, do tamanho de um anão quase, de regata e bermudas, passando pela rua das figueiras e entrando no mercado que tinha a duas quadras da minha casa. Gastei dez minutos olhando as tintas de cabelo e depois pegando pelo menos uns quatro tipos de chocolate diferentes. Sozinho e cheio de provas e trabalhos pra corrigir, além dos cadernos de classe pra pôr em dia, tudo o que eu queria era a companhia fiel do sempre amável chocolate pra me ajudar a enfrentar essa labuta. Pensando no molho vermelho que eu ia fazer no almoço - e também no meu crediário da televisão nova - nem percebi que a seção de frutas e verduras estava uma confusão dos infernos! Eu ia levar horas pra conseguir pesar as coisas. E o tempo passou... Estava ali eu e meu saquinho plástico, olhando distraídos para trás, esperando a nossa vez, quando comecei a reparar no menino que estava trabalhando na balança. Ele estava conversando com a velha na minha frente, e tinha um maço de cebolinha verde nas mãos... E vi ele me olhar. Não daquele jeito de olhar desejando o outro. Simplesmente passou os olhos por mim, só isso. Uma vez eu lembro que tava saindo do dentista e a van de entrega do mercado passou por mim. E esse mesmo menino tava dirigindo e olhando pra alguma coisa. Eu fiquei curioso e olhei, [22] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. né, em volta pra ver o que era (tenho crédito de sobra pra comentar a vida dos outros depois que a minha se esgotou na boca do povo). Não tinha nada. Fiquei decepcionado. Não sei por que cargas d’água justamente ali com o tomate na mão eu fui querer pensar em ver ele com outros olhos. Ele não tinha o menor jeito de gay! Então esperei a minha vez, secando o rapazote. Ele era o típico alemão: cabelo loiro arrepiadinho meio moicano, pele branca e aparentemente carnuda; ele era um tanto mais alto que eu e usava o uniforme medonho verde que era impossível ser mais brega. Com aquelas calças de ginástica e conjunto de camiseta, ele mostrava uma barriguinha leve e convidativa que me chamou muito a atenção. Todavia, na minha vez de pesar ele praticamente nem me olhou, não disse uma só palavra, e em seguida já foi pegando as coisas da outra pessoa na fila. De longe quando fui pegar pão, pareceu que ele tinha olhado – só pareceu. Mas nessa hora já não dei a menor bola e fui pro caixa, pra casa, e pro meu trabalho que não me pagava as horas extras de escravidão fora da escola. No dia seguinte dei as aulas das malditas sextas séries, confiscando pelo menos seis celulares durante os períodos da tarde. E antes de ir pra casa, exausto, fui pegar um suco ali no “meu” mercado (me senti a atacadista agora) porque essa vida de mestre tava acabando comigo. Encontrei umas aluninhas no caixa, e tive que explicar pela centésima vez que o tema de casa ia valer um ponto na prova, e finalmente fui lá nas geladeiras catar a minha caixinha de marca. O menino não tava na fruteira (conferi por curiosidade). Assim que coloquei as coisas na passada pra pagar, comecei logo a contar as moedas, pois sou quase pobre (salário de professor né). Minha vontade seria derramar ali mesmo um cardume de garoupas de notas de cem, mas... Na falta iam as moedas de dez e vinte e cinco se somando até dar o valor que [23] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. precisava. Eu devia estar com uma cara muito horrível porque a menina abriu um pouco a boca e até bocejou, meio desgostosa em me ver - isso que a pequena piranha foi praticamente minha colega de aula quando na ocasião dos meus 15 minutos de (má) fama. Olhei o recibo porque tenho mania de sempre ver, dobrei e guardei na carteira, e daí vi a mão larga com dobrinhas meio rosadas colocando minha caixinha de suco na sacola plástica verde. Era o garoto, aquele... Por sinal tão garoto quanto eu exceto pelo fato de eu parecer senil uma vez que cada turma de sexta série e cada TCC te acrescentam 1 e 5 anos de envelhecimento precoce à sua aparência, respectivamente. Voltei pela parte da praia pra ver o sol indo embora e depois desse momento de bucolismo despropositado entrei na minha humilde residência. Ali eu botei minha Katy Perry pra tocar no computador e dei graças a Deus por ter corrigido todos os acúmulos na noite anterior. Ia poder respirar um pouco e quem sabe usar o Facebook como sonífero. Tomei meu banho, botei meu shortinho de ficar em casa, minha tradicional camiseta velha de escravo, e fui levar o lixo na rua. A noite tava linda! Todas as estrelas do mundo estavam aparecendo por cima da figueira gigante que tinha logo em frente. Achei graça daquilo tudo... Lá fora não tinha som de nada. Os quatro mil habitantes já deviam estar olhando novela ou fornicando. Nisso, parado e sonhador (fazendo a princesa), esqueci da vida. Quando dei por mim, o garoto do mercado tava vindo pela rua. Estampei na cara meu descontentamento e não saí dali na hora pra justamente não parecer o antipático que sai na hora que alguém passa. Revirei meus olhos. Assim que ele chegou perto da minha casa, veio na direção da grade do portão onde eu estava escorado. - Oi... – ele falou. [24] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. - Oi? – eu perguntei. Tipo... “Alô? O que você quer aqui?!”. - Você esqueceu o troco! – ele deu um sorrisinho sem graça. Puta que pariu, de novo! Eu devia ter recebido um diploma extra de bacharel em esquecer coisas em lugares públicos. Isso uma vez me custou um celular recém-comprado com fotos comprometedoras. Sorte que foi na cidade que me formei se não ia ter outro momento de apreciação pública por ali. - Bah... – eu falei – Que bom que você trouxe. Como sabe que eu moro aqui? - Eu não sabia. - Como não? Então... – eu quis começar a saber. Tarde demais! Ele me puxou pelos ombros e me deu um beijo. Um beijo quente e molhado, sem língua. Inesperado, surpreendente, um acontecimento digno de uma cena de filme. A respiração ofegante varrendo meu rosto. Naquele momento, senti dentro de mim todas as garoupas do mundo nadando desvairadas – notas de cem se derramando num mar de valiosidade. Não precisava de mais nada... Eu estava rico. [25] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Ponte de Vidro Eu não sei escrever, eu nunca soube. Mas eu devo isso a ela. O nome dela era Leandro. Eu era moleque de 13 anos quando meus pais se mudaram pro Bairro dos Jardins, na Zona Leste. Na época ela era um menino. Vivia com a avó, a mãe e uma tia, todas com aspecto de pessoas transtornadas e grandes olheiras hereditárias e escuras sob os olhos. Elas diziam que o menino era parecido com o pai, que cresceria e seria um canalha como ele, que tinha abandonado a namorada de três meses, grávida, sem nunca ter dado um tostão a ela. Pra nós, que ainda éramos quase crianças, tudo era ainda pouco relevante. Como sempre fui amigável, logo me enturmei na rua de chão batido e muitas árvores. Naquela época tinham surgido os primeiros videogames que eram ruins o suficiente pra enjoar fácil. O negócio era brincar de esconder, polícia e ladrão, futebol... E não sei se foi porque a gente era vizinho de casa, mas eu fiquei bem mais amigo dela. Às vezes os meninos zoavam o Leandro, comentando que ela brincava de boneca com as meninas. Eu não me importava com isso... E ela também não, tanto que continuava com a gente e assim como zoavam dela, assim ela zoava deles, e no fim do dia estava tudo bem. Foi só no colégio que as coisas começaram a complicar. O espaço entre o final do primeiro grau e do segundo (que hoje são ensino médio e fundamental), deixou uma marca pesada na vida dela. E nesse tempo de adolescentes já dava pra começar a enxergar o mundo com outros olhos. [26] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. A avó de Leandro era realmente a única mulher que tinha alguma sensatez. Recebia uma aposentadoria e costurava pra fora, junto com a filha mais velha. A mais nova - mãe da minha amiga - não parava em emprego nenhum porque vivia bêbada. Porres de dar pena do estado em que ficava. Porém, o mesmo talento para vítima, ela tinha pra ser carrasca. Teve tardes de estudo, que via várias vezes Leandro apanhar, ser chamada de frouxo, de bonequinha, e levar cintadas. Ela se defendia, dormia na minha casa. Uma vez ficou uma semana inteira comigo e com minha família. O conselho tutelar era uma realidade distante, e por isso ela estava presa às dificuldades de sua casa. Não havia o que se fazer. Meu pai aconselhou que ela estudasse, e que relevasse. Um dia ia passar. E afinal, os homens tinham que ser fortes. Mas enquanto eu e a turma começávamos a sair, ir pras festinhas, e eu ficar com as meninas, Leandro começou a ser mais quieta e se isolar mais. Nunca ficava com ninguém. E os caras do colégio detonavam a voz fina dela, o rebolado, o gestual. E eu que nunca me importei com nada disso, realmente então me dei conta do que nunca tinha percebido muito bem: Leandro tinha mesmo jeito de mulher. Isso me pesou. Comecei a evitar ser visto com ela, apesar de ainda estudarmos juntos e sermos amigos fora do tempo de aula. A avó de Leandro morreu de um infarto fulminante no terceiro ano. O dinheiro dela não ficou pra ninguém, e daí a coisa piorou porque a tia não tinha paciência com a irmã, e não admitia o que falavam do sobrinho nas ruas. Tentou castigar, não adiantou. Em seguida, como a mãe tinha se entregado pra vida meio fácil, Leandro logo arranjou um emprego, e nessas andanças foi parar de office boy pra um salão de beleza importante. Num curto espaço de tempo ela começou a fazer as unhas, comprar roupas mais justas e deixou o cabelo preto crescer. Às [27] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. vezes eu tinha impressão que ela estava de maquiagem. Entrou em uma aula de canto, que eu acho foi seu melhor investimento: de fato, desde pequeno, lembro que Leandro cantava muito e tinha um dom ali. Sua mãe batia na boca dela sempre que estava cantando, porque o pai era um boêmio, e ela não podia vir a ser igual ao cara que arruinou a vida dela com “um filho inútil”. Na época em que eu perdi a virgindade e estávamos já no fim do colégio, Leandro me visitou chorando numa noite. Contou que na verdade o pai não era tão desaparecido assim, e um punhado de vezes a mãe o obrigou a ir junto “visita-lo”. Mesmo dizendo pras outras em casa que o odiava, ela dizia que “precisava” dele e que o amava. Ele era casado agora, e se encontravam num hotelzinho barato da cidade baixa. Leandro cantava dentro do banheiro pra tentar não ouvir o que faziam no quarto, com as mãos nos ouvidos, enquanto esperava aquilo terminar. Em uma dessas vezes a mãe saiu porta a fora depois de mais uma briga, e foi aí que o próprio pai abusou dela. Foram cinco vezes em dias diferentes... Ela não tinha coragem de falar pra ninguém, mas agora a mãe estava batendo nela pra tentar obriga-la a visitar o pai de novo e ela queria sair de casa. Aos soluços, confessou-me o que no fundo eu já imaginava: “ele” era uma mulher por dentro. E contou que a cada ano que passava, sentia-se como uma, e sofria porque estava no corpo errado. Engoli a seco. Ofereci um abraço. Na época da universidade, eu entrei para o curso de Engenharia Civil. Leandro saiu de casa e foi morar com uma amiga do salão. Mesmo assim, como se sentisse dever alguma coisa, às vezes ia até a Zona Leste e levava dinheiro pra ajudar a tia e aproveitava para ver a mãe. [28] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. A cada visita, embora eu também estivesse morando fora, nas poucas vezes em que pude conversar com ela naquele ano, vi-a se transformando devagar. Nos raros encontros entre nós, contou-me das roupas novas, das cartelas de anticoncepcional indicada por travestis na noite, e de como os hormônios iam ajudar ela. Falava-me animada do curso de francês e do amor pelos livros e discos antigos. E me doía um pouco saber que ela não entraria no curso de música, sua paixão, porque não tinha dinheiro e nem existia possibilidade de bolsa na época para a instituição particular - na universidade federal que eu estudava, não tinha esta área de artes. Mesmo assim ela sorria, um sorriso raso. Eu confesso aqui que apesar do apoio dos meus pais e irmãos, Leandro era a única pessoa que realmente olhava meus projetos da faculdade com olhos de admiração. Diferente de todos, parecia que ela via em mim coisas que as outras pessoas não viam. Nas ocasiões em que eu contava das minhas namoradas, mostrava algum novo trabalho, ou até ideias de trabalho, eu via o sorriso que na infância era fácil, reaparecer ali em meio à sua expressão crescentemente melancólica de agora. Chegava a apontar e dizer o que achava dos detalhes, comentar o que julgava poderia me ajudar e inspirar, sempre sem graça por se achar ignorante ou inferior. Eu ria, porque não via as coisas desse modo. Minha família não comentava nada sobre o fato de eu ser amigo da falada “bicha da rua”, e tive sorte por minhas namoradas nunca se importaram também, pois eu não a deixaria. Leandro me contou que seu maior sonho era viver numa casa de praia, igual vira num filme dos anos 80 na televisão. Era uma família que morava em um tipo de ilha ao lado da cidade, cheia de pontes numa vila charmosa e bastante europeia. Eu dizia que ela ia precisar de mim, do meu serviço, se quisesse construir todas aquelas pontes cafonas. [29] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. E enquanto eu ia às festas da turma, tomava porres, passava noites em claro estudando, ou viajava a congressos, eu via em minha amiga um universo parado que de certo modo me tranquilizava. Esse pensamento egoísta gostava de saber que ela estava sempre lá, quando eu precisasse “voltar”. No final do curso de Engenharia Civil perdemos bastante o contato. Só sabia que agora tinha um nome novo: “Laila”, e que estava se apresentando como cantora em boates alternativas. Havia ficado com uns caras, que nunca passaram de alguns. E certa vez que tocamos neste assunto, ela me disse chorando que não tinha direito de enganá-los. Eles esperavam que ela fosse apenas um homem travestido que transaria com eles ou então realmente se iludiam achando que fosse uma mulher “de verdade”. Não era uma coisa nem outra. Pra ela, sua vida era amaldiçoada. Quando me formei, ela não foi à minha formatura porque não queria estragar a festa. Porém, foi dela que recebi o cartão mais bonito de felicidades, e o mais sincero. Da minha parte, eu também nunca fui vê-la se apresentar. Sobre diversos assuntos mantínhamos um silêncio respeitoso e de entendimento mútuo. Este era um deles. Quando a tia de Laila morreu, em virtude de um atropelamento, eu estava viajando e não acompanhei nada. Estava formado há dois anos e tinha amigos do escritório de construção que inclusive eram bi/homossexuais. Ouvia alguns falando sobre Laila e sua música maravilhosa... Que ela se apresentava em vestidos elegantes e sempre pretos, os cabelos presos e luvas longas e escuras. Cantava ao vivo, nunca “dublava”, com instrumental de fundo. Comentavam que era fascinante. Quando eu disse que era amigo de infância dela, me fizeram prometer de um dia leva-la a um de nossos churrascos e encontros. [30] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Infelizmente, em questão de meses, sua luz foi se apagando. Ela mantinha um pequeno apartamento no centro, que eu não conhecia, e agora se esforçava para sustentar a casa em que a mãe ainda vivia - aquela que a essa altura já nem saía senão para comprar cigarros e bebidas. Do pai jamais quis ter qualquer ajuda ou novo contato além daqueles, os quais tinham sido suficientes para carregar marcas e decepção pelo resto da vida. Era difícil saber que Laila não era mesmo uma mulher. Os seios pequenos, o cabelo longo e preto bastante volumoso... Até um pouco de quadril a natureza lhe tinha dado de nascença. E ainda assim, por mais que tentasse, não conseguia ser feliz. Os hormônios, as roupas, a música, não a libertaram. Na época em que terminei meu noivado, afastei-me das pessoas e me joguei no mundo do cálculo estrutural, da resistência dos materiais, tipos de fundações, armaduras, concreto armado. E só depois de semanas, meses, saindo do mergulho total em meu serviço, lentamente comecei a pensar em minha família, amigos, e em especial na minha amiga, notando sua ausência... Sentia sua falta, por isso a convidei para ir comigo ao cinema numa certa noite. Estava precisando esquecer os problemas e relembrar os velhos tempos... Não com colegas e conhecidos, e sim com quem realmente acompanhou minha vida e sabia, por exemplo, que eu tinha mania de tomar café sem açúcar, fechar a torneira duas vezes, ou tinha quebrado um galho com meu peso e com isso ganho uma fratura no braço esquerdo. Diferente das outras vezes que saiu comigo em público, Laila estava usando suas roupas femininas – sempre pretas. Tinha os olhos curiosamente molhados e, durante o filme, chorou talvez mais do que o suficiente diante das cenas. Imerso na história, eu não esperava que quando Laila saísse para ir ao banheiro ela não voltaria mais. Constatei que algo estava mesmo errado quando virei no acender da luz e em seu lugar havia um [31] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. pequeno pingente de vidro, o qual costumava usar preso a um brinco – o item de “menina” que foi a primeira coisa realmente de mulher que tinha usado na vida, aos quatorze anos. Meu irmão mais velho contou que um dia “a vizinha louca” tinha sido removida para um leito hospitalar num hospital psiquiátrico. Doeu bastante ver que a placa de “aluga-se” estava fixada ali em frente ao muro baixo onde comíamos laranja na época em que a fruta aparecia pra nos alegrar. E sabia que quando fosse à casa de meus pais, ali não seria mais o lugar de Laila. Era passado agora, como o nome Leandro e as bonecas das amigas; como o chão de terra da rua, sepultado sob a manta de asfalto escuro. Eu não tinha mais para onde voltar. Sem conseguir parar de pensar nela, eu fui ao tal apartamento. Abriu-me a porta espantada e fechou-a no mesmo instante em que me viu. Pedi que abrisse... Insisti, na verdade. O local estava virado num amontoado de coisas antigas, maquiagens e peças de roupa. Fazia mais ou menos duas semanas que ela não conseguia sair de casa. Havia cortado por si mesma os próprios cabelos bem curtos. As roupas de “homem” que estava tentando usar pareciam realmente impossíveis de combinar com seu corpo. Estava tentando voltar a ser Leandro, ou melhor, a virar um Leandro que nunca existiu, e estava ridícula daquele jeito... Nunca, em todo o tempo que convivemos, senti tanta aversão instintiva quanto naquele momento em que a vi tão distante do que realmente era. Acho que ela entendeu isso somente pelo meu jeito de olhar, pois começou a chorar. Oferecilhe o abraço de sempre. Laila confessou que queria morrer porque tinha certeza absoluta que jamais seria capaz de ter uma vida normal, de ser feliz como as outras pessoas conseguiam ser mesmo por breves instantes. Confessou que não conseguia mais cantar. E que naquele dia no cinema só aceitara me ver porque queria se [32] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. despedir, porém não teve coragem e deixou o pingente como uma recordação, um presente de despedida. Levantei seu rosto... E sem querer meu coração bateu mais rápido. Não sei o que deu em mim, mas simplesmente limpei suas lágrimas, como fiz algumas vezes às meninas e mulheres que tive. Fiz menção de beijar o rosto dela, do meu melhor amigo de infância, a mulher mais delicada que conhecera até ali. Ela, assustada, afastou-me com força. Olhamo-nos surpresos por alguns instantes, e depois pedi perdão. Esquecemos. O meu coração não. E isso começou a me perturbar nos dias seguintes. Três semanas depois, quando fui resolver um problema no escritório da filial, passei por acaso diante de uma famosa boate LGBT da minha cidade. Naquela noite, fiquei na fila enorme só para poder ver a moça anunciada no cartaz... Meus amigos estavam genuinamente felizes por acompanha-los, e pra ser sincero eu não me incomodei como pensava que iria, com o ambiente ou em ver caras se beijando, ou meninas. Preferi ficar de costas no bar, escorado ao balcão, separado do palco por uma multidão de gente dançando e depois aguardando na escuridão em expectativa. Vi quando a luz iluminou-a e tudo ficou em silêncio. Laila ia cantar, mas sua voz não saiu, embargada pela emoção. Anunciaram antes que entrasse no palco, que esta seria sua última apresentação. Se cantasse, seria o canto do cisne. Eu queria enormemente vê-la cantar, mas diante disso eu bem no fundo torci para que não conseguisse, por ela, porque não queria que fosse a última vez. Contudo, ela conseguiu, e cantou... De uma maneira que jamais vi igual, impressionante! Fui embora sem que ela soubesse que eu estive lá. Laila se mudou no outro dia, e rompeu o contato comigo. [33] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Um dia ao sair do trabalho, parei no sinal fechado. A luz do fim de tarde refletiu em algo no console do carro, atingindo minha visão em cheio... Franzi a testa e logo localizei o pingente, que eu carregava sempre comigo. Peguei-o, brilhando em minhas mãos, e por um minuto eu não estava no trânsito e sim na nossa vizinhança, brincando de esconder. Ouvi as buzinas reclamando e logo acelerei de novo. Eu, que só havia chorado poucas vezes quando era pequeno, tinha uma lágrima escorrendo pelo meu rosto. O mundo em meu lugar havia construído pontes para Laila, pontes de vidro, finas demais e incapazes de suportar sem quebrar o peso de sua vida. Em sua ilha, estava sozinha, sem ter como sair, sem ter como alguém entrar. Numa chuvosa tarde de inverno no ano seguinte eu saía da casa dos meus pais depois de uma visita, quando vi uma mulher parada olhando para a casa velha do lado. Parei e pus a mão em seu ombro. Ela olhou para mim com seus longos cílios, seus olhos imaculados, e sem dizer nada me concedeu um sorriso triste. Sua mãe tinha morrido e o preto estava finalmente justificado. Conforme busquei sua mão, entrelaçando meus dedos aos seus, frios, ela baixou o rosto e em silêncio a puxei para ir comigo até o meu carro. Então a beijei. Se Laila descobrira ser mulher ainda cedo, foi apenas naquele instante que eu tive certeza de me sentir homem. Descobri o que era o amor naquele sábado de chuva. E depois, Leandro e Laila desapareceram. [34] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. A Fantástica Lésbica de Taba-K Planeta Taba. Setor K. Mika. Cabelos curtos e roxos, roupa espacial colada em branco numa minissaia interessante, pistola para emergências, e maquiagem (claro). Mika nasceu com o destino de se tornar uma exploradora - uma das complexas ocupações niveladas pelo setor K do planeta. Aquele era um mundo peculiar onde apenas mulheres existiam e conviviam em harmonia sob o comando daquela conhecida como “Orientadora”. Tudo corria tranquilamente: naves indo e vindo, cuidados com os campos, desenvolvimento de novas tecnologias. No planeta Taba todos os setores trabalhavam pelo contínuo aprimoramento da tecnologia e da natureza. Exímias cientistas, as engenheiras do setor E há muito dominaram todo o processo de mapeamento e manipulação genética. Por esse motivo, em algum momento já há grandes idos dos milênios, os homens foram condenados à extinção – não que isso tenha gerado um genocídio; por argumentação lógica aceitaram, e foi uma questão de tempo até que eles se desmaterializassem por desgaste natural do corpo (um modo muito saudável de morrer: indolor, eficiente e tranquilo). Mas numa manhã do décimo mês, o alarme mundial soou. Esse alarme só havia tocado uma vez em toda sua história. Mulheres de todos os setores, e mesmo aquelas em viagens exploratórias, diplomáticas e de estudo, pararam imediatamente suas atividades à espera de comandos do setor A – responsável em repassar os pedidos da Orientadora. Acontecera uma tragédia que se intercruzaria à vida de Mika! Os nascimentos em Taba eram produzidos por efeito de um processo chamado “combinação gênica”. O material genético [35] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. das duas mães, às vezes três ou mais, eram combinados e mais tarde produziam um embrião gerado artificialmente. Por efeito de avançada tecnologia, o equipamento conseguia não só gerir o feto, mas sintonizar a consciência que o animaria e assim as mães podiam conversar com as futuras filhas, antes que nascessem. Claro, apenas em algumas ocasiões que não prejudicassem o desenvolvimento do pequeno ser. A geração de filhas era uma tradição familiar em Taba. Porém, a Orientadora atual havia entrado em processo de desmaterialização. Isolada em uma câmara especial para retardar isso ao máximo, o alarme foi ativado porque era preciso encontrar uma possibilidade genética equivalente ao corpo da atual líder, para iniciar a rematerialização de seu envoltório físico. Uma vez que não havia sido gerado um novo embrião passível de vir a ser Orientadora, e pelo Banco Mundial de Genes, não seria possível gerar um com base na população atual, essa era a única solução temporária possível. Até porque as mães originais da Orientadora já não existiam mais e o DNA sintético não sustentava energia vital suficiente para criar um corpo. Logicamente, as engenheiras não brincavam em serviço: elas já haviam pesquisado e os resultados indicaram Mika e sua companheira Mina para a honra de perpetuar a existência da líder. Era a única possibilidade. Todas ficaram aliviadas ao cubo. Não durou muito. Enquanto tudo isso acontecia, Mina – que era loira e pesquisadora do setor F - estava trabalhando na exploração de minérios de um planeta afastado e acabou se expondo por acidente a uma pesada radiação. Isto produziu alterações profundas instantâneas em ligações-chave de seu material genético que o inviabilizariam de ser suficiente para contornar a tragédia planetária. Aquela porção danificada do código precisaria ser encontrada em algum lugar! [36] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Mika foi chamada em missão ao Alfa-Ômega, a capital, e lá lhe foi confiado sua destinação, até então desconhecida. Intrigada, ordenaram-lhe então que partisse em direção à Terra, um planeta no sistema solar vizinho a elas e cujos dados indicavam abundância de material orgânico símile aos de seu planeta – isto é, humanos. Mika ficou irritadíssima! O planeta Terra era conhecido nas aulas de exploração como a “lixeira da via láctea”. Qualquer criança do setor K sabia e fazia piadas sobre isso, e a situação dos seres da Terra era tão pouco evoluída e precária que a Aliança da Galáxia impediu que os terráqueos pudessem se comunicar ou visualizar quaisquer formas de vida fora de seu mundo – inclusive nos planetas próximos. Com isso, não raro as engenheiras de Taba se deliciavam em adulterar todas as informações captadas pelos rudimentares equipamentos espaciais dos terráqueos que eram lançados em órbita, tudo para isolar “a lixeira” de qualquer recepção de sinais de via extraterrena. Aqui ou ali, timidamente, ainda se permitia que recebessem visitas de reavaliação e então aconteciam avistamentos. Normalmente sinais nas plantações eram enviados como testes de inteligência e receptividade, todos sempre burramente interpretados e calorosamente atestados como fraude. Não houvesse misericórdia no Universo a Terra já teria sido varrida. Mas se sabia que isso já estava encaminhado... Seria mais fácil limpar a atmosfera depois do fim da civilização terrena do que educar um bando de ignorantes. E afinal, ordens eram ordens. Mina ficou preocupadíssima com a partida de Mika, mas poderiam ainda se comunicar pelos dispositivos portáteis. E revirando os olhos, a moça de cabelos roxos embarcou em sua nave e se dirigiu à Terra, onde localizou uma cidade apta à descida. Preparou-se para a noite, pesquisou um pouco sobre a [37] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. arquitetura local, deixou a nave oculta no céu e desceu. Tão logo respirou o ar do planeta, sentiu o peso da poluição. Mas até que enfim uma boa notícia: matéria orgânica abundante que praticamente entupia o ar e as lixeiras que existiam na cidade. Localizou um lote vago e implantou ali uma pequena caixinha, o famoso “organizador de matéria programável”. É claro, programado para criar uma bela casa de paredes amarelas e um jardim viçoso. Com espantável rapidez, o aparelhinho “imprimiu” o pedido em questão de meia hora – móveis inclusos. A noite foi dura, com pouco tempo para estudar o comportamento dos cidadãos. O localizador gênico foi ativado e sua varredura confirmou a excelente investigação prévia: um rapaz de dezessete anos, estudante do secundário. Ele era o alvo. Na manhã seguinte, como aluna disfarçada, Mika estava matriculada e pronta para frequentar as aulas de Gustavo. Seguiu-o por toda parte antes do início dos períodos. Assim que o sinal foi dado, e o professor entrou em sala, por instinto Mika se ergueu com a mão posta para frente e fez a “Saudação à Aliança da Galáxia”! Todos riram e ela ficou imediatamente conhecida como nerd da turma. O que mais provocou o ódio dela era não apenas que ninguém conhecesse a saudação, mas a terem achado ridícula. Teve vontade de abrir sua mochila e atirar em todos, mas ficou quieta. Os presunçosos da Terra acreditavam mesmo que não existia vida fora dali e isso era insuportável. Uns metidos! O dia todo Mika procurou fazer contato com Gustavo, que se esquivou da pessoa mais esquisita que ele já tinha visto. Porém, com satisfação, ela começou a notar que as garotas terráqueas eram muito bonitas. Também pôde observar de perto dois fenômenos que só conhecera na teoria: o envelhecimento celular, impossível de não acontecer nas condições atmosféricas dali, e a gravidez natural – algo do qual sentiu uma absoluta repulsa, mas parecia comum entre adolescentes incautos. [38] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Conversando com a equipe de saúde do setor N, foi resolvido que Mika deveria seduzir Gustavo. Porém - e sempre havia um maldito porém - ele era apaixonado e estava prestes a namorar com Vica, uma rapariga ruiva do último ano. Era preciso separá-los e convencer Gustavo a participar de uma viagem para coleta... Ou então, precisaria de um Plano B bem menos louvável que passou por sua genial, e maliciosa, mente. Na saída da escola, a moça espacial o esperou. Ele concordara em conversar e ela revelou toda a história pra ele. Coçando a cabeça (oca) de cabelos cor de amêndoa, ele riu e perguntou se Mika fazia algum tipo de tratamento psiquiátrico ou estava treinando para eventos de cosplay (ela teve de procurar o termo no comunicador). Ao entender a ironia, puniu o audacioso idiota com um belo tapa na cara. Desnecessário dizer que as tentativas de soluções diplomáticas estavam oficialmente encerradas ali. Na mesma noite, Mika entrou pela janela do quarto de Gustavo. Era madrugada... Certificou-se de trancar a porta, e depois se dirigiu ao menino que dormia. O quarto era organizado, mas o cheiro de homem era repugnante. Ela já havia visto modelos deles, mas nunca um de perto, nem em outros planetas que visitara onde existiam criaturas afins. Aquele ali, certamente era um dos piores exemplares. Pegou a pistola, apontou à cabeça de Gustavo e puxou o gatilho. “Fu!”, fez a arma. Um pó azul e cintilante caiu e imediatamente foi aspirado por ele. Alguns minutos, e ela então retirou o cobertor e virou-o de barriga para cima. Arriou as calças, puxou a cueca e olhou para a parte que o sol não costuma tocar. Era com imenso desgosto que iria fazer aquilo, mas repetiu a si mesma que era em nome da salvação de seu planeta. Seria a masturbação que impediria toda sua raça de ir à decadência! [39] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Sem a luva, tocou o órgão genital movimentando-o de cima para baixo (encontrou instruções sobre isso no Manual do Homem, um arquivo que foi obrigada a consultar). Gustavo gemeu e Mika revirou os olhos... Conforme foi ficando em ponto de bala, pegou um tubo transparente que armazenaria o esperma. Para sua surpresa, o órgão não mudou muito no tamanho. Conforme o rapaz dopado suava e seu corpo produzia espasmos, ele abriu a boca, a expectativa no ar, gemidos mais e mais fortes! - Porra! O que é isso?! – ele gritou de repente. Deu um pontapé instintivo que jogou Mika na cadeira do computador. - Eu quero seu esperma! – ela gritou. - Você tá louca, vou chamar a polícia agora! De novo com isso! Como entrou aqui? Ela foi até ele e apontou sua arma. - Fica quieto... Podemos fazer isso do jeito mais difícil ou mais fácil. O mais fácil é eu pegar seu material genético, e dar o fora daqui. E é isso. - Por que não podia ser um fio de cabelo, saliva? Por que tá fazendo isso? – ele escondeu o órgão genital. - Seu burro! Vocês são todos uns burros! Não são só elementos químicos que compõem o melhor material para dar origem à vida... Nesse seu esperma há elementos próprios organizados numa vibração específica pela sua alma estúpida, que precisa ser usado para gerar ela. Então se você preferir, faz você mesmo logo isso nesse seu trocinho ultrapassado! - Nunca! Sai daqui! Mãe, pai! – ele começou gritar, e depois falou baixo e com raiva – Meu pau não é ultrapassado e você estava gostando de mexer nele, eu vi! - O quê?! Ora seu moleque! Mika não se segurou, avançou e lhe deu um tapa... Gustavo atônito com tudo aquilo devolveu o tapa e começaram uma [40] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. lutinha patética. As batidas na porta começaram. Pararam ao mesmo tempo olhando na direção do som. - Você vai se ferrar, sua louca! – ele falou baixinho, tentando se arrastar enquanto ela o prendia pelos pés e desviava dos chutes. - Se você abrir a porta, eu conto que você tirou zero na prova de inglês e levou uma assinatura falsificada para o professor. Bingo. - Como sabe... - Eu filmei, homenzinho! – ela falou e fez sinal para o órgão genital do menino. - Sua... – não completou a frase. A moça se levantou, saiu correndo e pulou pela janela. Um clarão fez com que desaparecesse dos olhos dele. Mika voltou à nave e comunicou todo o ocorrido para suas superioras, que lamentaram o incidente. A despeito da boa intenção dela, era preciso que o terráqueo produzisse material genético consentido com as oscilações energéticas próprias do prazer, ou tudo aquilo seria em vão. Até o momento, apesar do exaustivo rastreamento, nenhum outro planeta com humanos oferecia material específico de que precisavam, e a Organizadora já estava ficando com o corpo translúcido. Ademais, a burocracia era clara, portanto sem autorização da alma terráquea doadora, não seria mesmo possível transportar aquilo para Taba – era uma lei da Aliança e ainda mais forte em se tratando do plano físico da Terra. O respeito à integridade não podia ser rompido nem pela melhor das intenções. Mika tinha se esquecido desse detalhe no seu plano B. Simplesmente não acreditava que isso estava acontecendo. Ela foi pra sua casa base, deitou na cama e deu socos no colchão. Se não era possível seduzir Gustavo, então ela seduziria sua namorada, e aí seria mais fácil conquistar a simpatia de [41] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. ambos. E também, se conseguisse gerar um momento de provocação sexual entre os três, deixaria o rapaz mais propício a concordar e até mesmo realizar o ato por si mesmo. Quer ele a achasse louca, ou não. É claro, Mina aprovou a ideia em nome da continuidade de sua nação e ficou muito animada. Então a exploradora uniria o útil ao agradável, exceto pela parte masculina da equação. Mas isso é uma outra e fantástica história. [42] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Diário de Camila Segunda-feira, 13 de fevereiro. Querido diário! Hoje as aulas começaram e eu tive que ir pro colégio com a falsa da Karine (eu não suporto ela)! Ela se acha muito só porque usa calça 36. Um dia vou enforcar ela com minha bandeira 42. Ela vai ver só! Puta! Odeio a oitava série, odeio! Terça-feira, 14 de fevereiro. Não aguentava mais de vontade de escrever porque quando cheguei no colégio dei de cara com o Bernardo, o menino novo da turma. Ele é loirinho e parece o Justin Bieber! Fiquei louca pra conversar com ele, mas eu nunca tenho assunto! A Jéssica minha BFF finalmente voltou das férias na Disney e eu fiz ela prometer que vai me ajudar. Tiramos fotos fazendo beicinho usando o chapeuzinho com orelha do Mickey que ela trouxe pra mim! Tô doida pra postar no Face! Todo mundo vai se rasgar de inveja! Huahuahua! Sexta-feira, 17 de fevereiro. Tô tão irritada que eu podia partir esse computador no meio. Porra, tá todo mundo me chamando de rata no colégio agora por causa da foto no Face! Vai tomar no cu! E ainda por cima a Karine foi fazer trabalho de dupla com o Bê! Ele não conhece ela! Ele vai se dar muito mal eu tenho certeza! Já pedi pra Jé abrir os olhos dele! Quinta-feira, 23 de fevereiro. Não tinha quase ninguém no colégio porque todo mundo foi pro carnaval. Eu odeio carnaval! Mentira! Gosto tanto que me pintei de têmpera antes de tomar banho e fiquei sambando pra [43] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. imitar a vinheta da Globeleza! Meu pai chutou a porta e me xingou de louca. Aqui nessa casa a gente não pode fazer nada que sempre tem um recalcado pra estragar tudo! Mas a notícia boa foi que o Bê tava sozinho e eu tomei coragem e fui falar com ele. A notícia ruim é que eu tava tão envergonhada que eu fiquei vermelha e me engasguei, ele começou a bater nas minhas costas e todo mundo riu de mim perguntando se eu tinha me entalado com um tijolo de queijo só porque acham que eu sou gorda e porque agora sou rata também! Saco!!! Sábado, 25 de fevereiro. Eu e a Jé saímos pra ir no shopping porque eu precisava muito comprar a Capricho desse mês. Aproveitei e olhei 32 cores de esmaltes diferentes e não comprei nenhuma. Quando a gente tava indo pro Mac, eu vi ele! PERFEITO! Tava conversando com os menininhos emos que devem ser amiguinhos dele. Eles tavam tomando Coca-Cola Zero! Eu acho Zero muito ruim, mas se for pra ficar com o Bê eu tomo até Fanta Uva! Domingo, 26 de fevereiro. Notícia urgente! A Jé conversou com a Karine puta pelo Skype e ela falou que tinha ficado com o Bê. Tô super desapontada, mas não vou deixar aquela desgraçada me ganhar. Quarta que vem de tarde ela vai ver só na educação física. Vaca! Quarta-feira, 29 de fevereiro. Assinei uma advertência. Tudo porque na hora que a gente tava jogando vôlei eu fui dar uma cortada e acabei acertando a Karine (adoro!). Ela chorou, e eu ri tanto que acabei peidando sem querer! Vergonha! Sorte que ninguém ouviu... Ainda fiz questão de passar por ela e abanar a minha calça pra ela ficar intoxicada. Tô muito poderosa! PRE-PA-RA! [44] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Segunda-feira, 5 de março. Na hora da saída o Bê falou comigo... Tô louca por ele! Fiquei pensando na gente casado e eu acho que ele gosta de mim. Ele disse que o meu esmalte cereja é o mais bonito que ele já viu. Falou que a gente tipo precisa muito estudar junto essa semana! Eu já tô pronta pra pegar aquele corpo! Segura peão! A rata vai fazer a festa! No final da aula a falsa voltou comigo. Sexta-feira, 9 de março. Cacete, hoje na aula fizeram a gente assistir um filme idiota porque a professora de português faltou porque de certo passou a noite dando a pomba e esqueceu da hora! Sentei do lado do Bê antes que a Karine sentasse e eu tivesse que sentar em cima dela e quebrar ela toda. Odeio ela, agora todo dia ela acha de vir comigo pro colégio. O Bê chegou a chorar vendo o filme. A Jéssica disse que é só eu querer que ele já é meu! Domingo, 11 de março. Minha mãe não podia inventar reunião de parente aqui em casa num dia pior! Era hoje que o Bê vinha aqui em casa, e agora tenho que aguentar meus primos chatos mexendo nas minha coisas e no meu computador. Eu juro que eu vou sair de casa e nunca mais vou voltar, eles vão se arrepender de ter feito isso comigo! Terça-feira, 14 de março. Já anunciaram o show de talentos e eu tô cheia de ideias porque sou MUITO artística. Tô pensando de convidar o Bê pra encenar uma cena do Crepúsculo comigo. Só não sei se quero ele de Edward ou de Jacob! Eu sou muito a Bella, nossa! A Jéssica disse que me ajuda porque ela conhece tudo da saga! Eu amo ela!!! [45] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Quarta-feira, 15 de março. O Bê me ligou e pediu se o Roberto podia participar, ele ficou de fora de todos os outros grupos e é o melhor amigo dele. Eu deixei, claro! Já pensei de ajeitar ele pra Jéssica, e daí a gente pode casar os quatro juntos. Minha madrinha hoje teve aqui em casa e falou que eu tô comendo muito... Fiquei triste, mas depois eu vim pro meu quarto e devorei a barra de chocolate que eu tinha escondido na minha gaveta das calcinhas. Homem gosta é de carne! Sexta-feira, 17 de março. Hoje eles vieram e a gente ensaiou. O Bê quis ser o Edward porque ele é mais bonito e deu a ideia de usar purpurina na pele no dia. Ele é artístico que nem eu! Já o Rô tava tímido... Ele pediu se podia ficar sozinho com o Bê no meu quarto pra se acalmar. Não perdi tempo e fui na locadora tirar Amanhecer pra gente assistir junto. Sábado, 18 de março. Os meninos não vieram aqui em casa. Fui descer a escada correndo e a minha calça rasgou atrás... Meu irmão ficou me chamando de cu de canhão. Peguei uma fôrma de gelo e saí correndo atrás e enfiei na calça dele. Ele chorou muito e meu pai me botou de castigo. Não consigo parar de rir! Sou uma diaba! P.S.: Fui atualizar meu relacionamento no Face pra “amizade colorida” e vi que o Bê tava postando umas fotos dele do book que a minha sogra deu pra ele. LINDO! Sexta-feira, 23 de março. Caralho! O nosso teatro foi o melhor e mesmo assim a gente perdeu pra Karine que fez a gaiola das popozudas com as amigas dela. O Rô disse pra mim não chorar e me deu um abraço, [46] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. e depois abraçou muito o Bê que não se aguentou e chorou. Aquela putinha falsa vai ver só na próxima educação física! Quinta-feira, 1 de abril. Hoje é dia da mentira. Aproveitei pra falar pro Bê que eu era a fim dele porque se ele não quisesse nada eu dizia que era mentira porque sou esperta. O Rô chegou antes e fez a mesma brincadeira, quase morri de rir. O Bê disse que vai pensar no que eu falei, mas que ele tem uma coisa pra me contar amanhã. Convidei ele pra tomar banho de piscina na minha casa! Sexta-feira, 2 de abril. Veio o Bê, o Rô e a Jé. O Bê me chamou no quarto e eu achei que ele ia me beijar, mas ele ficou louco quando viu minha Barbie Daphne do Scooby Doo. Ficamos brincando e ele pegou na minha mão várias vezes. Depois a gente desceu pra piscina. O Rô precisou ir no banheiro e pediu pro Bê levar ele, e a Jé me contou que viu o pinto do Rô sem querer! Morri! Quarta-feira, 2 de maio. Jurei que nunca mais ia escrever! O Bê me convidou pra ir na casa dele umas semanas atrás e começou muito mal: ele me ofereceu Fanta Uva. Mas meu amor por ele era tão forte que eu tomei. Depois ele me levou pro quarto e mostrou o DVD da Lady GaGa que recém tinha chego pra ele. Eu tava curtindo tanto, quando ele virou pra mim e disse que ele é gay. Eu fiquei muito puta! Fui pra casa correndo e rasguei a foto dele, e depois excluí ele do Skype e bloqueei no Face e não segui mais no Twitter e apaguei o Instagram dele dos meus favoritos. A gente ficou sem falar! Super NÃO CURTI isso! Daí depois de um tempo ele me disse que era mentira da Karine que eles tinham ficado. Hoje eu na educação física fui chutar a bola e torci o pé. Odeio educação física! Odeio os frios, esses vampiros gays malditos!!! [47] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Quinta-feira, 3 de maio. Tô super feliz. Fiz as pazes com o Bê e ele saiu depois da aula comigo e com a Jé pra ir no shopping. O Rô apareceu, e o Bê me falou no ouvido que o Rô é super a fim de mim. Eu sempre soube que a Bella tinha que ficar com o Jacob! No final da tarde ele me deu um sorvete e eu falei obrigada e ele falou que queria uma coisa em troca e me pediu um beijo! Sexta-feira, 4 de maio. A Karine apareceu com um moletom de pelúcia preto e a bandida da Jéssica apelidou ela de macaca (adoro)! LOL! (6) Sábado, 6 de maio. Querido diário! De tardezinha eu tava comendo sorvete e daí abri o Face e o Rô disse que tava com saudade. Oin! Ele me confessou que é bi e quis saber se eu queria namorar com ele, e se eu deixava o Bê namorar com a gente... Aceitei na hora! Sempre achei que a Bella tinha mais era que aproveitar e pegar geral, passar muito o rodo. BFF gay foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida! O Bê disse que a Karine macaca mora num cabaré-árvore do Avatar! Eu AMO os gays!!! [48] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. A Batalha de Campos Jeito de mulher arrogante, prepotente, com direito a faixa de Miss Vaca Universo. A preocupação maior de Paula era se manter com as unhas aparadas para não ferir as parceiras num momento de maior emoção, e pelo mesmo motivo portar sempre dentro da bolsa algum objeto passível de ser utilizado como arma. Era como se diz por aí, uma “fancha de respeito”... Dessas lésbicas de categoria com quem não se deve mexer e nem brincar, espirrando fogo pelas ventas quando fosse necessário. Ela namorava uma mocinha mais feminina e considerada de pouca confiança. Neila, como era conhecida, já gozava em sua curta vida de 18 anos de uma fama quase internacional de corrimão de escada – todos colocavam a mão (entre outros) nela. Porém, na manhã em que estava saindo de uma loja, Paula passou um lenço em sua pele negra para retirar um pouco do suor e sentiu um tipo de intuição nefasta. Imediatamente o aparelho celular tocando mostrou “Fernanda Chamando”. Não pensou duas vezes e atendeu, enquanto desfilava seu terninho feminino embalado pelos estalos do salto agulha Dolce & Gabanna sobre a calçada de nobre região no centro. - Paula? É a Nandona. Senta. - Que foi, Nandona? O que manda? - Tua mina recém entrou com a Vera no motelzinho que tem aqui no mercado público de Campos. Se eu fosse você vinha agora pra cá – falou, a voz grossa em tom de alerta. - Contou isso pra mais alguém? – queria se certificar. - Claro. - Ótimo. Em 10 minutos eu tô chegando aí. Enterrou o pé no Renault quase saído da fábrica, e ziguezagueou atrevida pelas ruas da cidade. Os palavrões que [49] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. ouvia por trás dos vidros escuros eram música nos seus ouvidos gelados pela força do ar condicionado. Contudo, seu sangue estava fervendo! Vera era sua pior inimiga. Executiva rival, desafeto das saídas nas melhores boates... Havia uma constante luta contra essa vagaranha venenosa, cujo nome provocava revirar de olhos e torcidas de boca em pelo menos metade da comunidade lésbica local. Sua (má) reputação lhe precedia onde quer que fosse, mas ela tinha seus contatos. Era dura na queda. Estacionou, saiu com seus óculos escuros e se misturou na multidão como se isso fosse possível. O longo rabo de cavalo caía liso sobre suas costas. Em pouco tempo chegou à barraca de verduras e legumes de Nandona. A amiga era gorda e usava um colete curto de brim sobre a camiseta branca desgastada. O suor lhe corria pelos braços brancos e inchados, recheado com tatuagens sugestivas no lado esquerdo. Os cabelos caídos e lisos lhe deixavam com um ar de Patty Pimentinha das tirinhas do Snoopy, contudo com consideráveis quilos e anos a mais. Espiaram ao mesmo tempo para os lados. Tânia Perigo chegou com ar decidido... Ladeada por Claudete Trovão (caminhoneira das antigas), e até mesmo pela pequena, porém eficaz, Ladina Dedos. Paula assentiu com semblante grave, a banca foi fechada, e se encaminharam para a pocilga de 20 reais a hora. Era nauseante saber que a cadelinha que esteve ainda ontem em sua cama de lençóis de linho egípcio, agora devia estar rolando no algodão vagabundo daquele antro. A sorte estava com elas: a boa e velha travesti Sheila estava de turno na recepção. Ela entendeu a jogada e logo fez que nada viu, distraída com sua Fazenda Feliz no falecido Orkut. No corredor estreito e cheirando a mofo a única porta fechada era a de número 6. [50] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Nandona abriu os braços como se fosse uma águia pronta para o voo e depois num grito agudo digno da ave de fato voou e arrebentou a porta ao meio com a destreza de uma artista marcial. Cacos de madeira voaram por todo lado, enquanto o esquadrão entrou chefiado por Paula, que logo berrou “que porra é essa?!”. A porra era Neila com cara de chapada, provavelmente de tanto dar todas as suas partes à tutela orgástica de Vera, que deitada de barriga pra cima, exibia sua falta de seios e o cabelo curto suado grudado na testa, enquanto ainda gemia e usava seus braços para fazer sua vadiazinha gemer sem sentir dor. Uma cena digna de um belo filme ou site pornô, capaz de render milhões de acessos, dinheiro, e inveja. Mas aquilo era nada perto da astúcia da ousada Paula. Os olhos arregalados das duas traidoras foram pouco perto da fincada de salto agulha que meteu na perna estirada e musculosa de Vera. O esguicho de sangue foi instantâneo assim como seu curvar de corpo e o modo como jogou Neila – por reflexo, porém merecidamente - sobre a mesinha de canto, onde quebrou um vaso de planta e arrebentou levando ao chão consigo a frágil peça de madeira. - Agora você vai saber com quantos paus se faz uma canoa! – Paula rugiu ameaçadora. Tânia Perigo, com seu cabelo escuro trabalhado no permanente, mascava um chiclete quando caçou Neila pelos cabelos loiros oxigenados e lisos, e a arrastou pelo corredor jogando-a escada abaixo diante do sorriso cínico da invejosa Sheila (também loira). Nunca tivera apreço pela namoradinha nova da melhor amiga, e foi ela quem ardilosamente interceptou uma série de mensagens de celular, as quais foram explicadas de modo objetivo, sem entrar na sordidez dos termos (o que poupou Paula de algum sofrimento). Infelizmente, a amiga à época estava [51] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. ocupada demais com os executivos chineses e não tinha tempo para pensar em acreditar que podia ser traída. O povo na rua fez um círculo ao redor da mulher nua que gemia no chão, tentando se levantar. A segunda a voar foi Vera, que caiu com mais dignidade e ares de lutadora, usando uma cueca feminina cinza. O grito atraiu a atenção de suas comparsas as quais eram tão antipáticas que não merecem ter seus nomes mencionados. Elas estavam de tocaia já esperando o pior. Nandona veio deslizando pelo ar e acertou um chute giratório que também serviu para atingir o pasteleiro Fred, antigo desafeto, um cara por quem nutria certo nojo sem motivo. A banca do pastel por pouco não veio ao chão, e o povo aproveitou para furtar uma revoada de pasteis fresquinhos de carne – o que tapou a boca da multidão e os distraiu da ação. Nisso, Paula foi imobilizada por duas das piranhas amigas de Vera. Contudo, o ato durou pouco... A habilidosa Ladina fez jus ao codinome Dedos e acertou uma dedilhada fatal na chavasca das algozes que não a tinham visto chegar devido à extrema baixa estatura. Enquanto apertavam as xanas de dor, Paula deu um joelhaço aprendido na literatura do Analista de Bagé que pôs uma delas no chão, e a outra foi derrubada pelo braço sempre bronzeado de Claudete Trovão – admiradora eterna de Paula Fernandes, sua musa (“vai se entregar pra mim...”). Vera recuou, sacando um canivete... Ouviu-se “oh!” na multidão. Uma das piranhas de guarda veio correndo e gritando de modo exótico (talvez oriental) para desferir um golpe em Paula, mas não viu quando Tânia Perigo usou Neila de taco de beisebol arremessando as duas sobre a venda de peixes. Não conseguiu com isso descarregar sua ira (que por sinal andava tentando manter sob controle à custa de um grupo de apoio), e aproveitou aquele momento em que seus dois dias limpa sem violência [52] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. estavam mesmo ferrados para pegar o maior peixe que achou – um bacalhau – e começar a golpeá-las, espalhando um odor infame ao seu redor. O peixeiro estava tão atônito que simplesmente começou a anotar apostas e ali mesmo fazer uma fezinha, acreditando que no fim da luta arrecadaria o suficiente para pagar sua puta preferida na casa de Tia Roma. Na confusão as mulheres da igreja aproveitaram para também achincalhar as mulheres da outra igreja... A puxação de cabelo começou. Uma cotovelada errada despertou o moto boy do Fluminense, e este achou que tinha sido acertado pelo ex de sua namorada. Instaurou-se um verdadeiro circo e numa série de enganos o povo caiu numa pancadaria tão profissional que faria inveja a Kill Bill. Vera, muito matreira, já ia lá adiante ligando de seu celular para a imprensa, a fim de denunciar Paula – uma manobra inteligente. Foi quando o impensável aconteceu! Paula havia corrido por dentro da galeria e chegado antes à esquina. Fabulosamente atirou seu salto agulha em direção à mão calejada da inimiga, o que fez o iPhone de última geração voar e cair no colo de um mendigo que o pegou e saiu batendo canelas de feliz. Agora, mexer nos gadgets era tocar na ferida de Vera! Ela franziu a cara de tal modo que se fosse pintada de verde ficaria igual ao Incrível Hulk. Desferiu um soco que acertou a barriga torneada de Paula, fazendo-a encolher-se... E outro em gancho que a jogou por cima de dois meninos meio afetados. Não satisfeita, ajoelhou-se sobre a vítima: - Quem mandou não dar conta do recado? Macho aqui você sabe que sou eu, sua desgraçada! Paula cruzou os braços. Os golpes atingiam seus músculos trabalhados com ardor na academia do prédio de alto padrão no qual morava às vezes – quando não estava passeando no pequeno iate pela baía. [53] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Do nada, e muito alto, começou a tocar o som do anúncio de alguma cantora de MPB de sexualidade duvidosa. Era a distração perfeita! Todas as fanchas num raio de 100 metros viraram automaticamente o rosto na direção do carro de som, saindo todas de seus esconderijos para saber a data do show e o horário. Lutando contra seu instinto, Paula resistiu ao encanto, e aproveitou para meter uma canhota na cara de Vera. Num pulo, logo ficou em pé e emendou um chute com a ponta do salto bico fino de metal, arrancando o piercing de sobrancelha da inimiga. Sem se fazer de rogada, quis enfim dar o golpe de misericórdia: agarrou sua vítima e correu com ela na direção da lata de lixo mais próxima. Vera conheceu de perto o significado de reaproveitamento de recursos naturais. A fim de fechar com chave de ouro, Nandona trouxe a bolsa Valentino da amiga de onde ela tirou um pequeno vibrador com controle remoto e em formato oval. Paula o deixou ali na lixeira, devidamente acoplado à sapata abatida, e deu o controle aos moleques de rua que brincavam de carrinho. Ela disse: “quem apertar mais ganha”, balançando uma nota de 100 reais de sua rica carteira. A diversão foi garantida. Cansadas de rir e fatigadas da luta, Paula, Nandona, Tânia Perigo, Claudete Trovão e Ladina Dedos, reuniram-se no meio da destruição no mercado público de Santos. As sirenes já soando ao fundo... Elas se abraçaram em círculo e riram por alguns minutos. - A cobra vai fumar, negada... – Sheila retocou o batom. Achou por bem fechar o motel antes que algum animadinho lhe danificasse o patrimônio. - Como você adivinhou? – Paula piscou e tirou um isqueiro do bolso pra acender um cigarro. Todas riram. À noite, no bar com música ao vivo, Paula fumegava um gostoso charuto cubano, degustando conhaque e comendo [54] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. petiscos de boteco com as companheiras. Ao longe, Leninha surgiu e foi se aproximando: ela era a fancha mais velha, no alto da posição hierárquica. Se alguém podia dar a palavra de ordem era ela... Com seu terno branco e os cabelos brancos tingidos de prata besuntados de gel e colados para trás, aproximou-se da mesa com Sheila a tiracolo (enrolada num marabu). A música parou e todos gelaram. Ela escorou o corpo na bengala, e sua expressão carrancuda provavelmente condenava o episódio da tarde que arriscara o nome de toda sua comunidade na região. Ela franziu a testa – péssimo sinal... E depois gargalhou, riu, riu tanto que chegou a pôr a mão na barriga. - Boa luta meninas! – ela ergueu a bengala e todas riram erguendo copos e canecos, estalando brindes. Mais tarde, Ladina Dedos escreveria um hino (em voz e violão obviamente) que eternizou aquela memorável tarde: “A Batalha de Campos”. E Paula... Bem, Paula encontraria um novo amor. Porque antes de tudo, sua paixão era o calor da conquista e da vitória. Levantou-se da cadeira e foi até lá, à mesa da vergonha ao canto, e estendeu a mão e cumprimentou (o que sobrou de) Vera. Naquele momento as duas tinham a certeza de que outros dias de fortes emoções ainda viriam. Elas sorriram e fizeram um brinde de tequila. Inimigas para sempre. Amém. [55] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Presentes Sob a Árvore No Brasil não tem neve no Natal. Faz calor, e muito. Em Florianópolis, por exemplo, há uma correria intensa de carros e pedestres, preenchendo as grandes vias da ilha como a Avenida Beira Mar Norte. Uma maré de carros indo e vindo ao lado das águas tranquilas do oceano. O barulho do tráfego, passos, vozes. Pessoas que estão indo para casa, ou em busca do presente de última hora, ou ainda viajando para aproveitar as Festas em um lugar diferente. Pouco atento aos especiais de fim de ano na televisão, Luan se sentiu mais desanimado ao perceber que já eram quase nove horas da noite. Saiu de perto da sacada e sentou. - Filho, você tem que ver o forno, eu já terminei a salada. Tá quase tudo pronto... - Eu sei, mãe – respondeu olhando para o céu noturno, através do vidro da janela - Tô tentando ligar pro Cauê desde cedo da tarde, ele não responde. As mensagens não vão... Não sei o que fazer. Eu avisei ele que a gente sempre janta antes da meia-noite, não entendo! Ela balançou a cabeça e limpou as mãos sobre um avental que cobria apenas o colo. Pôs a mão no ombro do filho e o abraçou. - Quem sabe ele não quis vir, filho. Ficou sem graça... O ano tinha sido particularmente próspero para Luan. Tinha finalmente terminado de ajeitar o apartamento próprio, estava num emprego estável com pouco tempo de formado, e além de tudo tinha conhecido Cauê. A história dos dois remontava a uma noite de carnaval de Floripa, o famoso Pop Gay. Luan na época estava com os cabelos bem curtos, pretos, e andava com seus amigos um pouco bêbados pela tarde de folia. [56] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Tinham saído da avenida e da concentração para ir à Concorde – uma boate gay do centro, e assim continuar a noite. Entre gringos e tanta gente de fora, logo na rua, perto do posto de gasolina enquanto aguardava na fila, ele viu o outro grupo. Um amigo acenou pra um dos caras que era seu conhecido, todos se aproximaram. Sorrisos, apertos de mão, alguns num abraço tímido, um comentário, uma olhada sem querer... Todos se conhecendo, e, no entanto, quem chamou sua atenção permanecia retraído, quase destoando totalmente daquele cenário com seu boné preto pra trás, bermudão, camisa grande demais, mãos nos bolsos. Simpático até, mas completamente mudo, inaudível. Apenas os olhos, aqui e ali, às vezes encontrando com os seus. Cauê era assim. Não era gente de fora, ele era dali mesmo, do morro do mocotó, manezinho da ilha. Não era gringo, e nem branco. Tinha a pele num tom mulato provocante, e nos seus vinte e alguma coisa anos, já trazia no corpo as marcas de quem começou a ralar muito cedo. Os braços fortes não à custa da série tripla na academia, e sim aos exercícios inerentes ao dia a dia. Estudou com muito custo até terminar o colégio, e em relação a estudos estava fechado este capítulo da sua vida. Não fosse a insistência dos amigos, não teria ido. Aliás, nunca teria ido – ele não gostava de boates. Preferia as rodas de samba, ou o pagode e o funk das festinhas no morro. E de gays, conheceu só algumas pessoas que moravam aqui e ali, todas de sua comunidade, nenhuma experiência relevante – poucas aliás. - Filho? Ele não ouviu, continuava pensando. Luan era o menino branco que estudou no Colégio Energia, passou no vestibular, subiu aos céus da Universidade Federal de Santa Catarina. Formou-se sem muito sofrimento, estagiou e trabalhou já durante o curso e com isso ganhava para si, e mais [57] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. tarde, para o apartamento. Tinha um carro, pai e mãe, irmãos, além de um generoso número de tios, tias, primos. Os avós ainda vivos. No final de semana curtia as baladas, ou viajava para alguma das praias, especialmente a Mole – sua preferida. Namorou algumas vezes, todas sem muito sucesso. Quando, contudo, seus olhos castanhos se encontraram com os olhos negros do rapaz mulato, parecia que havia sofrido um choque. Uma deliciosa sensação de atração mútua... E em alguns gestos, cuidadosas perguntas, danças, logo a mão de Cauê esbarrou e pegou a sua, e depois foi parar em sua cintura – segurando-o igual segurasse um bibelô e ao mesmo tempo estivesse marcando território. Aquele contraste entre o cara sério e o cara divertido, aquela provocação, aquele entendimento mútuo dos iguais e diferentes, tudo isso antes do primeiro e incrível beijo – podia senti-lo, luminoso, até hoje. Naquelas desculpas para continuar mais tempo perto, Luan cedeu caronas para alguns amigos chegarem ao terminal central de ônibus, o TICEN... E então a sós, parados quase na Praça XV, perto da Catedral e do Mercado Público, beijaram-se de novo, e dessa vez transbordando carinho, afeto. - Luan! O rapaz deu um pulo. - Vamos, filho... Volta pra Terra e vamos pra cozinha, a mãe tem que se arrumar ainda. - Mãe... – ele falou enquanto caminhava com ela de mãos dadas, passando pela árvore de Natal, o pisca-pisca, o presépio com todos os seus personagens – Obrigado por a senhora ter vindo. Será que a senhora não quer mesmo ir pra lá com o meu pai, e toda família? Ela se virou para ele, e dessa vez foi sua vez de pensar. Diante dos olhos meio tristes de Luan, pôs a mão em seu rosto. [58] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. - Filho, eu estou adorando vir passar o primeiro Natal aqui contigo, na tua casinha. Mas acho que você também queria que a gente tivesse lá, não queria? Eu te conheço, filho... Ele baixou a cabeça. - Queria, mãe... Mas eu tô feliz! Ano que vem quem sabe? Márcia não sabia. O pai de Luan não aceitou a homossexualidade do filho, e quanto menos se falasse nisso melhor... Os irmãos também não levaram da melhor maneira possível, e com isso só sobrou a mãe. Não que o resto da família não soubesse, porém o ideal para eles era que não se comentasse o assunto. Receber um estranho então, para as Festas, e quem sabe ainda ter de testemunhar um beijo gay, isso estava fora de cogitação. Mas ela não podia mentir... Seu coração de mãe também apertou diante da revelação que veio logo após a saída do filho de casa. Não veria os netos imaginários, nem as noras... E ainda assim, por mais que isso fosse novidade, em seu íntimo ela sabia. Desde que ele era um menino pequeno, desde tudo... Alguma coisa a tinha dito, só não queria pensar na hipótese, mesmo quando os namoros não duravam com as meninas, ou mesmo quando o jeito dele não era nem de perto parecido com o do pai ou dos manos. Ademais, sentia medo da violência e da maldade do mundo. Claro que era estranho também para ela passar um primeiro Natal longe de todos... Ainda assim, ali ela estava se sentindo mais à vontade. Sem obrigações diante dos parentes, que alívio! E pelas poucas vezes que viu Cauê, percebia que ele era mesmo uma pessoa incrível, apesar de bastante fechado e cuidadoso, e da origem diferente. Respirou fundo. Lavaram a louça, colocaram os pratos na mesa... Espiaram a televisão, e o tempo ia passando. E os ponteiros foram lentamente se arrastando até que já era quase onze e quinze. [59] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Sentindo-se derrotado, Luan pegou um prato e se serviu. Não conseguia parar de pensar em Cauê. Ao pegar a colher do arroz, o interfone tocou. Num pulo ele foi tão rápido atender que a mãe não pôde deixar de sorrir. Em minutos, o namorado apareceu, constrangido, sorrindo desajeitadamente... Luan o abraçou com força, e sentiu seu perfume. - Desculpa, amor, hoje aconteceu de tudo... – ele confessou num sussurro. - Tudo bem, o importante é que você chegou... Foram à cozinha, “boa noite, Dona Márcia”. - Boa noite, Cauê! A gente estava preocupado, mas que bom que você veio! - A senhora me desculpa, eu me atrasei muito. Mas isso é pra senhora – ele retirou da mochila um pequeno arranjo de flores com um bombom junto. A vida de auxiliar de serviços gerais não era fácil... Saiu super tarde do Shopping Iguatemi. O trânsito terrível... Depois até chegar em casa, até conseguir tomar banho, tudo estava demorando demais. Uma ligação da mãe e do pai, que não conseguia ver há tanto tempo, ambos morando no interior de São Paulo há dois anos. Saudade, choro, solidão. Depois o sinal começou a falhar, nem tinha como avisar Luan que ia se atrasar – e pelo visto, muito. Os irmãos menores, a avó paciente arrumando a pequena mesa... Ele percebeu que estavam faltando coisas, que ele podia ajudar: foi ao mercado, uma fila gigante. Refrigerantes, um pote de sorvete, carrinhos pra molecada. Ele não costumava expressar sentimentos, manifestar. Porém, por trás de seu rosto sério, ele estava contente de estar ali! É claro, era um pouco difícil se sentir à vontade numa realidade tão diferente. Dona Márcia era tão linda! Ela e Luan pareciam artistas... O apartamento tão arrumado, tão legal, que [60] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. ele tinha até vergonha de estar ali no meio. Gostava mais quando Luan ia na casa dele, era mais fácil. À meia-noite, abraçaram-se todos e comemoraram. Márcia deu uma camiseta muito bonita, de marca, para o genro. Para o filho ela decidiu dar uma coletânea de livros. Luan presentou a mãe com o show da Adele, e ao namorado com um perfume que ele um dia experimentou numa loja – uma destas tardes preguiçosas de feriado, passeando perto do cinema. E aí, Cauê se sentiu de novo um tanto embaraçado: seu presente para a sogra foi só as flores mesmo. Ele também tinha avisado antes a Luan que, se ele não se importasse, ia dar algo a ele mais adiante, algo bom. O namorado e a mãe não tinham o mínimo problema com essas coisas, se importavam mais com a presença e a atenção dele. Fizeram de tudo para fazê-lo rir, e ela até pediu ajuda para ver uma música do show que gostava... E depois, com muito carinho, despediu-se do casal e pegou seu carro para ir então à festa de família para juntar-se aos demais. Como gostaria que estivessem todos indo juntos, mas não podia forçar ninguém. Melhor que fosse assim... Com tudo a seu tempo, quem sabe esse dia ainda ia chegar? Quem sabe... Cauê e Luan se beijaram próximos à Árvore de Natal. O sorriso de Luan era sincero e feliz. Enquanto estava no banheiro, escovando os dentes, Luan se sentiu grato demais por tudo aquilo. Entrou no quarto e se enfiou sob o lençol, aconchegando-se ao corpo conhecido de seu amor – o ar condicionado despejando o inverno ao redor. As luzes já estavam apagadas, e mesmo assim uma certa luminosidade vinha dos postes lá embaixo, da rua, se fazendo presente. Um novo beijo mais intenso veio, e se continuasse, sabiam onde aquilo iria parar. - Espera... – Cauê pediu, acendeu a luminária, levantou. - Que foi? [61] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Ele sentou na cama. - Me desculpa por não ter trazido um presente de verdade pra tua mãe. Eu tive muito gasto nesse final de ano, ficou apertado lá em casa também. Cê sabe, minha avó, os moleques. - Cauê, não precisa falar nisso... A minha mãe ama flores! E ela adorou que você veio, tolo! Ela tava super alegre aqui com a gente, isso que foi o melhor presente pra ela. - Eu sei, mas... – ele fez uma pausa – E... Eu trouxe algo pra ti, que eu queria te dar faz muito tempo. Os olhos incrédulos de Luan acompanharam o movimento da mão de Cauê, tirando do bolso da bermuda de dormir uma caixinha preta. Se fosse apenas uma caixinha inofensiva, nada demais, mas era um tipo de caixinha específico. Daquelas que guardam algumas das promessas mais bonitas e sinceras que às vezes embalam os corações da humanidade. - Eu já te pedi em namoro... Mas tô pedindo de novo, me aceita? – Cauê pediu, os olhos negros um tanto quanto apreensivos. Tinha economizado um bocado praquilo. Luan derramou algumas lágrimas de emoção depois do “sim”, enquanto a aliança de prata ia morar em sua mão e na mão do namorado. Aí então aquele beijo pôde continuar e se prolongar na melhor noite de amor que eles haviam tido até então. Se isso não era celebrar o amor, não sabiam o que seria. Mas aquela certamente era a melhor noite para isso. Com a bênção do aniversariante da Festa e da ilha da magia. [62] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Um Pássaro - Pai, o senhor vai ficar bem mesmo? - Vou, filho... – pronunciou sem ânimo – Pega a Celinha, as crianças, e vão pra casa. Vocês já fizeram demais, e a viagem de vocês ainda é longa. Tá bom? - Então qualquer coisa o senhor já sabe. Sim, ele sabia. A qualquer momento a contar deste primeiro dia, estava convidado a fazer parte da casa da família do filho. Quase duas horas dali. Ele deu um abraço forte no rapaz, mantendo suas emoções sob controle para não chorar. Não havia necessidade de intensificar o que já estava difícil o suficiente. Limitou-se a dar um beijo na nora e se ajoelhar para abraçar o corpo pequeno de seus dois netinhos. Todos trajavam roupas em preto e isso lhe pareceu uma pena, quase o aborreceu. Assim que fechou a porta e acompanhou com os olhos o carro vermelho virar a esquina da despedida naquele dia cinzento, por pouco não perdeu o fôlego: estava só. Era a primeira vez que via sozinho o filho indo embora, e a primeira vez em longos quarenta e três anos de casamento em que enfrentaria a certeza, definitiva, de que não haveria alguém com quem dividiria a cama... Em que a companhia de brigas e risadas não lhe facilitaria a rotina pelo simples fato de existir. Fosse há só uma semana atrás, estaria agora ali naquela mesma janela a consolar o companheiro - ele sempre chorava a cada vez que o filho deles voltava pra sua casa na outra cidade. Passou a mão pela testa fria e enrugada, e depois olhou ao redor. Nada além de um berrante vazio. Seria possível continuar morando ali? Michel, o filho, achava que não. Que se o pai não quisesse ficar com ele e Celinha, Eduardo deveria vender o apartamento e [63] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. ir pra um lugar menor, de preferência mais perto deles. Talvez, apenas talvez, fosse a coisa mais sensata a ser feita, mas nesse momento a perspectiva era a de muitas decisões duras a serem tomadas ainda. Se fosse mais jovem isso seria mais fácil, tinha certeza. Buscou conforto na poltrona da televisão. Sentou-se e suspirou longamente. - Boris... – chamou com a voz embargada – Estamos só nós, meu velho! O cachorro de orelhas caídas e pesadas não se demorou a sentar ao lado das pernas de seu dono, apoiando a cabeça em seu colo. Os olhos vermelhos e caídos do cãozinho queriam dizer que era claro que ele também sabia: Adriel tinha ido embora. Não iria mais voltar. Então sem precisar mais parecer forte e seguro diante do que o destino havia lhe reservado, Eduardo chorou abraçado ao corpo de manchas marrons do sabujo de estimação. Passou as mãos pela pelagem áspera e esbranquiçada, pensando na intragável morte. Embora isso passasse pela sua cabeça, com cada vez mais frequência desde o aniversário de setenta anos há quase um ano e meio atrás, ele não acreditava que o dia em que um deles morresse, seu marido seria o primeiro. Para ele, Adriel era a parte boa da relação; no ônibus, se os bancos reservados pra idosos estivessem ocupados, ele não diria nada em protesto. Quando lhe sobrasse algum troco de qualquer compra, e alguém pedisse na rua, ele daria sem hesitar e ainda sorriria. Se os antigos alunos da universidade surgissem, ele não se preocuparia em gastar parte de seu tempo, não importa o que estivesse prestes a fazer, para saber do rumo de suas vidas e lhes encorajar a seguir adiante. Se as crianças ficassem doentes, lá iria ele ajudar Celinha... E se ele estivesse num dia bom, faria o almoço nos [64] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. domingos com um tradicional cuidado que chegava a ser comovente. Ao menos para Eduardo, era. Nas paredes, os quadros dele estavam pendurados por tudo... Obras que retratavam cenas do campo ou então do cotidiano. E enfim, quando a artrose começou a machucar as articulações dele, um tipo de impressionismo que surgiu como improviso, virou estilo, e renovou seu ânimo na arte... Ainda que nas demais tarefas de casa, a doença lhe alternasse dias melhores e piores. Eduardo ergueu a vista às fotos emolduradas das viagens pelo mundo: Itália, França, Alemanha, Austrália, México, Canadá, Chile, entre outros. Nelas era possível verificar as pegadas através do tempo, o caminho que seus pés percorreram juntos. Adriel ia querer que em seu enterro todos tivessem usado roupas coloridas. Ele era amante das cores. Quase seis meses depois, Eduardo estava habituado ao novo clima silencioso do apartamento. Teve de aprender a regar as plantas. Mesmo assim tinha dado crédito ao pensamento de seu filho: o apartamento estava devidamente avaliado e colocado na imobiliária. Disseram que não tardaria surgir algum jovem casal interessado porque o bairro era ótimo e o espaço muito amplo, do tipo que não se faz mais hoje em dia. “Algum jovem casal”. Um pensamento, porém, às vezes martelava a mente do idoso. Sua irmã Francisca dizia que conseguia sentir nitidamente a presença do marido, já falecido. A ferrenha crença católica que mantinha, contudo, não era flexível o suficiente pra fazê-lo acreditar nela. Já havia sido uma abnegação grande demais e às vezes ainda sofrida, ter finalmente se assumido homossexual e depois realizado o casamento civil com um homem. Contudo, agora ele até queria acreditar que alguma coisa nesse misterioso [65] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. mundo vazio das partidas pro além poderia querer dizer alguma coisa – que palavras pudessem florescer do puro invisível. Afinal... O que dizer da morte da pessoa que você amou tanto? Que compartilhou sua cama; com quem você criou um filho, netos; discutiu e quase se divorciou por coisas estúpidas; teve a grandeza de perdoar sem quase pensar, quando nada além da separação era previsível diante de um suposto caso; que te viu nu em todas as posições possíveis, compartilhou prazer e vitórias, amargou derrotas; esteve presente, testemunhando sua existência como ninguém. Palavras aqui são só palavras. O maior desejo agora era que Michel ou qualquer neto, e a nora, não morressem antes dele. Isso seria ainda pior. Foi por indicação de um conhecido, da época em que cuidou da Biblioteca do Museu Municipal, que chegou a um prédio meio descuidado e suspeito. Estacionou o carro e ajeitou o boné azul-marinho sobre os cabelos brancos. Seus olhos azuis estavam completamente incertos por trás das lentes dos óculos. A mulher que atendeu no interfone e depois abriu a porta do apartamento 309 era tão velha quanto ele: os cabelos curtinhos e brancos, e um irritante sorrisinho constante. - O senhor nunca fez nada disso, não é... Seu Edivaldo? - Eduardo – ele corrigiu. Tinha agendado antecipadamente sua hora, mas pelo visto ela não se dera o trabalho de anotar ou verificar seu nome. - Sim, sim... Sente-se. Ela explicou que tentaria um contato com o espírito de Adriel. Depois fechou os olhos, e puxou um maço de cartas esquisitas. Eduardo teve o primeiro ímpeto de fugir dali - ele tinha total aversão a adivinhações desse tipo. E antes que pudesse começar sua fuga, ela puxou algumas das cartas e as colocou viradas para cima. Depois levou um bom tempo ora [66] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. gemendo e balançando a cabeça, ora fechando os olhos e respirando fundo e soltando o ar devagar. - Você perdeu alguém há muito tempo... – ela disse, em tom mais de dúvida do que de afirmação – E essa mulher, ela foi muito importante na sua vida! Segundo ímpeto de fugir, e agora o primeiro de não pagar por nada aquilo. Velha trambiqueira! - Você parou de atuar muito cedo... - Chega – ok, agora tinha ultrapassado o limite da irritação. Ele tinha trabalhado duro até depois de se aposentar, e faltado ao serviço apenas em casos de extrema necessidade. Tinha paixão por se ocupar, e se tivesse parado cedo, ele estaria morto bem antes de ter perdido o marido. Sentiu seu rosto vermelho, e se não fosse seu remédio para o controle da pressão arterial, já teria tido um colapso nervoso. Ele não devia ter sequer cogitado acreditar que seria possível contatar uma pessoa morta! - A senhora me desculpe, não vou pagar por isso. Isso é uma invenção estúpida, um desrespeito com a dor das pessoas. Tenha uma boa tarde! A mulher ficou visivelmente perturbada enquanto ele se ergueu num rompante, vestiu seus sobretudo bege e disparou porta a fora. Desceu as escadas apressado embora os joelhos lhe doessem. Assim que chegou à rua ouviu seu nome ser chamado, e virou-se para se deparar com a vidente. Que raios aquela louca ainda queria dele? O dinheiro, é claro. Começou a abrir a carteira, enquanto a figura miúda de passos curtos se aproximava rapidamente a galope. - Tem um homem se comunicando! – ela teve de gritar, até que chegou ao lado dele já sem fôlego – Ele diz que você tem que voltar a ser feliz e que se preocupa com você. E ele mostra um pássaro guardado... Que você precisa deixar sair! Deve ser algum bichinho – ela sorriu sem graça – pra você libertar? Eduardo revirou os olhos. [67] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Retirou uma quantia de notas de dinheiro acima do valor do pagamento e pôs na mão dela. - Adriel ia querer que eu pagasse a senhora, porque ele ia ter pena de uma velha desonesta que ganha a vida falando mentiras. Espero que a sua consciência esteja sempre tranquila porque eu não ia conseguir dormir depois de ter inventado tanta sandice. Estou pagando duas sessões, a minha e outra pra poupar um infeliz de ter que vir até aqui para se decepcionar. Pegue sua criatividade e escreva um livro. Passar bem! O companheiro tinha pavor de pássaros enjaulados e ficava horrorizado com o hábito de quem os colecionava. Jamais seria possível que tivessem um, e o basset hound só entrou no apartamento depois de muita insistência – Eduardo sempre fora pouco afeito à ideia de ter animais em casa. Entretanto, quem diria que justamente o cachorro indesejado o salvaria de não ter qualquer outra forma de vida circulando em seu lar? A única coisa que realmente poderia ajuda-lo neste instante era sua religião. Saiu da missa, cumprimentou os conhecidos. Fazia questão de que o nome de Adriel estivesse sempre nas intenções. Alguns colegas de igreja não aceitavam a ideia do casal homossexual. Todavia, até mesmo o padre estava ciente e fazia vista grossa, e costumava incluí-los dentro do possível nos eventos. Adriel não era tão religioso, talvez se pudesse defini-lo como espiritualista, porém participava das atividades e gostava de ajudar pelo amor que tinha ao companheiro. Já para Eduardo a ideia de não poderem ter se casado diante do altar, recebendo o sacramento do matrimônio, e nem participado como casal dos encontros e outros projetos era uma vergonha, e uma mágoa. Tentava confiar em Deus diante dessas injustiças, já que porventura Ele o tinha feito um homem singular em seus desejos diversos. [68] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Àquela altura, já estava prestes a fechar a venda do apartamento. Conseguiu deixar mais ou menos esquematizada a compra de uma casinha próxima à de Michel. Ia ter de se habituar a uma nova vizinhança, novos bancos, novos rostos... Deixar pra trás o mundo em que tinha vivido. Se isso não dava uma boa ideia do que era morrer, ele não sabia o que mais daria. Apesar da terrível experiência que lhe dera ainda mais certeza de que nada dessas coisas de adivinhação funcionavam, ele continuava a ter uma pontada de inveja quando ouvia alguém se gabar de ter sentido a presença de fulano ou cicrana. Ou pior: dizer que receberam uma mensagem. Procurava se convencer de que isso era uma coisa do diabo, ou do que quer que exista por aí entre mundos, além de charlatanismo misturado a muita vontade de se enganar com pouco. Caminhou pela calçada arborizada. Tentava gravar consigo os detalhes de tudo, para levar. Podia ver como se fosse ontem: seu falecido marido, ainda vivo, com seus vinte e alguns anos, jogando folhas secas nele... Os dias de verão em que corriam atrás da carrocinha de sorvetes. E se forçasse um pouquinho, daria até pra sentir o cheiro de tinta fresca na entrada do apartamento recém-comprado. Respirou fundo, voltando à realidade no giro da maçaneta. Passou pelo amontoado de caixas organizadas e foi para o quarto. Queria guardar os objetos pessoais ele mesmo... O resto ia ficar por conta do pessoal da mudança. O que o sono curto da idade lhe liberou de tempo livre, ironicamente tirou na disposição pra poder aproveitar. E pelo visto, na companhia também. O sabujo entrou no quarto abanando o rabo e latindo. - Quietinho, Neco... – pediu em tom sério – Já vou lá pôr tua comida. O cachorro deitou na porta e ganiu, apoiando a cabeça nas patas. Eduardo foi até ele e afagou sua cabeça. [69] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. - Eu sei, eu sei... Mas a gente vai se adaptar. Depois começou a arrumar malas, separar alguns livros de cabeceira indispensáveis, e enfim a remexer no armário de canto pra pegar os documentos importantes. Foi exatamente então que sentiu uma pressão forte na cabeça, igual como se estivesse prestes a desmaiar. Apoiou-se na parede e sentou-se depressa, ainda trêmulo, ao banco da escrivaninha de madeira mogno. Aos poucos a visão foi recuperando o foco e ele arfou. Sob a dura realidade do medo sobreveio uma pergunta: quanto tempo ainda ele poderia morar sozinho? Adriel se foi aos oitenta, sem poder fazer muita coisa devido à sua saúde frágil perto do fim, mas ao menos ele teve sua companhia todo o tempo. Não se entregaria nessas divagações. Tratou logo de afastar a ideia sombria. E por falar nela, tinha esquecido o que estava procurando. Olhou para o cachorro e foi à porta do roupeiro do lado que era de Adriel, puxou seu casaco preferido e o cheirou – ainda tinha o cheiro dele. Neco latiu novamente, talvez por ter sentido o perfume do outro dono, e lacrimejou. Eduardo também. Assim que pegou a caixa das fotos de viagem, não imaginava que seria peso demais para seus braços: elas caíram esparramando-se num jardim de imagens e com isso derrubando também a caixa com materiais dos cursos de pintura do falecido esposo. Um amontoado caótico de revistas e anotações surgiu, o que fazia parecer que um furacão havia estado por ali. Levaria uma eternidade pra arrumar aquilo tudo, lamentou. Horas mais tarde finalmente acabou, estava prestes a pôr a tampa estampada para fechar a caixa quando uma pequena palavra lhe chamou atenção. Não era uma palavra qualquer, era um nome... “Eduardo”. Tampouco era uma caligrafia qualquer. Assuou o nariz, fungando, e limpou os olhos visivelmente cansados de ter chorado tanto no passeio pelas recordações, o [70] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. casaco vermelho-escuro de lã ainda jazia sobre seu colo querendo que seu amor ali estivesse em seu lugar. Afastou cuidadosamente a tampa e puxou o papel meio amarelado, intitulado com seu nome, onde uma série de linhas formava um pequeno poema: Os olhos azuis de Eduardo, Lembram-me sempre do céu. Quando sinto falta do sol, Encosto-me a seu coração. Se perco as horas e não sei quais são, Seu abraço me ajuda a esquecê-las de novo. Mas se fico triste, Porque não posso voar, Meu homem pássaro me ergue. E faço parte do infinito. - Adriel Lopes Rosenberg 12 de Junho de 1979 Eduardo nunca tinha lido aquilo! Seus olhos se encheram de lágrimas embora isso parecesse improvável depois da quantidade que havia derramado só nos últimos momentos ali. Virou a folha e em seu verso estava o croqui para a pintura de um quadro com a revoada de um pássaro, a qual nunca foi executada. Era muito bonito e tocante – um oceano de fundo, com um casal de mãos dadas na praia. Inevitavelmente relembrou as noites em que o marido, acanhado, buscava seu peito para adormecer. Sentia-se pleno ao ofertar-lhe isso, era sua realização, e sequer poderia desconfiar que aquele simples gesto pudesse representar tanto para o outro, como todas as pequenas coisas ali descritas: a cor de seus olhos, seu coração. [71] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Subitamente, o maldito telefone toca: é Tereza, a irmã mais velha. Ela distrai (entedia) um pouco o irmão, e depois começa a comentar coisas alheias: - Você se lembra quando mamãe preparava as tortas de ação de graças? Este ano quero fazer uma parecida. No seu primeiro dia de trabalho, nunca vou esquecer, ela fez uma especialmente pra comemorar... Como era mesmo aquele lugar que você trabalhou? O nome? - O nome... – forçou a memória, tinha esquecido completamente disso – Editora Gráfica Mundo? - Sim... Olha só. Quem diria que depois você ia virar historiador! Mas no fundo, mamãe sempre pensou que você ia virar um escritor famoso. Até antes de falecer, coitada, ela guardava suas historinhas... Eram lindas! Uma fofura! Acho que o neto teu e do Adriel puxou mais por ti do que por ele, porque ele também inventa coisas que são uma gracinha! - Preciso desligar... – ele engasgou. Mais claro, impossível! Um ano depois, Eduardo bateu à porta da vidente. Antes que ela pudesse abrir a boca, ele tirou de sua bolsa um livro - “O Mundo Colorido” era o título, e depositou-o nas mãos dela. Curiosa, ela o abriu, revelando uma longa história que em alguns momentos era ilustrada por imagens em cores de quadros pintados por Adriel e fotos de viagens. Era um livro que estava alcançando relativo sucesso de crítica e encantando os amigos, familiares, e todos aqueles que conheciam o casal, assim como tantos outros gays que não acreditavam fosse possível ter existido uma história de amor tão longa como aquela, de modo sincero e tocante, entre dois homens. Ela apenas sorriu, imóvel, e depois balançou a cabeça afirmativamente. [72] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. O fato é que Eduardo tinha encontrado o pássaro guardado - era ele na figura do croqui, teve total certeza quando o viu, e podia se arrepiar só de lembrar. Igualmente, na época em que esteve ali ele não pensou além da dor da perda de seu marido, por isso esquecera momentaneamente o quanto sofrera pela morte de sua mãe, aquela que sempre o incentivou, e o aceitou antes de todos, às vezes mais do que ele próprio. Assim também, não fosse a ligação de sua irmã, nem teria recordado do maior prazer de sua juventude: inventar histórias, o que trocou pelo ingresso na vida profissional e posteriormente pela bem-sucedida carreira como historiador no mundo dos adultos. Em resumi, perdera uma mulher muito importante, deixara de “atuar” muito cedo (na literatura), encontrara o pássaro e o deixara sair de sua caixa, libertando-o. A idosa fez um sinal com a mão, contendo as lágrimas. Foi-se até o interior do apartamento e voltou com um outro livro bem mais simples, sem fotos. Tratava-se de um relato sobre suas experiências como psíquica. Dentro dele estava uma mensagem de dedicatória escrita à mão para Eduardo, e as mesmas notas de dinheiro que lhe foram entregues naquele encontro anterior. Ele não pôde deixar de soltar uma risada sonora, e ficar sem graça. Eles tomaram um chá, conversaram, trocaram números de telefone e praticamente ficaram amigos. Ao final ele agradeceu com um abraço e depois já estava se despedindo quando ela falou, depois de olhar para o nada: - Naquele dia... – ela tornou a fita-lo - Ele disse que deu um tapa na sua cabeça, pra você encontrar a... Caixa. Duas horas depois, na nova casa, quando fechou os olhos para dormir ainda escutando o ronco de Neco a seu lado no chão, Eduardo teve uma deliciosa sensação: a de que seus cabelos eram alisados tal qual como Adriel fazia nele até dormir. Ele estava lá. Seu sono chegou em paz com um sorriso de satisfação. [73] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Reencontrado Minha Cidade Os raios riscavam o céu em incomuns matizes avermelhados. Estacionei o carro na parte mais alta, próxima ao farol, para poder ver melhor. A confusão que o vento provocava jogando água nas pessoas desprevenidas era familiar, o som tormentoso dos trovões inundando os ouvidos sem pedir licença. Os pedaços de galhos secos brincando de bater em tamborins invisíveis, e eu parado. Estava tão tranquilo que sentia ter desaparecido. O ar frio soprava violento contra a massa de ar quente, que até então havia feito de nossa região sua morada. Tornei a acelerar e virei a esquina, precisava ir para casa. Não a casa do meu pai, que a esta hora devia estar no trabalho ou em vias de pensar no que seria sua janta. Eu queria ir para o casarão... Aquele deixado a mim por Dona Glória, o qual fora primorosamente reformado por Diego e seus amigos. O qual me serviu de lar e ainda me serve a todos os momentos em que simplesmente sinto a falta de algo... De uma substância emocional que preencha as lacunas dolorosas que vez ou outra despertam em meu peito, tais quais pequeninos vazios adormecidos. Era isso. Enquanto as pesadas gotas se chocavam contra o vidro do para-brisa, tornando impossível distinguir qualquer coisa além de manchas coloridas à frente, dirigi o suficiente para parar em frente à Praça da Consolação. Peguei meu casaco, a mochila, as chaves... Passei a mão pelo vidro molhado, tentando desembaçar a ponto de calcular o trajeto (como se fosse preciso). Num golpe abri a porta e corri. Corri até sentir frio e uma manta pesada cobrindo meu corpo em um molhado gradativo, inundando minhas calças, minha cabeça. [74] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. O barulho da grade ficou para trás enquanto me esforcei para subir na entrada, ganhando os degraus em pulos. A salvo no átrio, virei para trás e contemplei aquele espetáculo: a cidade coberta por uma grossa tempestade. Um tipo especial de chuva que só conseguia encontrar ali e que servia não só para preencher a terra de vida, nutrindo, mas também purificar tudo que encontrasse em seu caminho. Incluindo a mim. Abracei meu próprio corpo... Estava tremendo! Peguei a chave e abri a porta verde, revelando a entrada e o charmoso tema de art déco que se espalhava na decoração. Aspirei o ar o quanto pude e agradeci por estar ali... Então tirei o celular de dentro da mochila e enviei uma mensagem para ele. Precisava vê-lo. Ir até ali e não o ver seria como ter atravessado toda aquela chuva sem ter me molhado. Era vital, natural. Subi depressa as escadas, fui até meu quarto, apanhei toalhas e depois entrei no banheiro... O banho não poderia ser longo, mas o contato da água quente fez meu corpo relaxar e minhas dores diminuírem. Elas eram flutuantes, como pétalas ao sabor do vento, sem nunca saber onde vão parar ou quando chegarão. E hoje era meu dia de sorte: eu estava livre. Torci meus cabelos loiros e examinei o espelho rapidamente. Ainda sentia um relativo desconforto diante da minha imagem... O corpo que sempre achei muito magro, os quadris largos demais. Foi inevitável observar as cicatrizes nos meus pulsos, um atestado de que um dia eu tivera dezesseis anos. Coloquei o pijama de algodão mais leve que eu tinha, calcei minhas sandálias brancas, e enfim me pus a descer. Nessa época, já quase não tinha mais fome. Senti um desejo de ir até a porta – isso era comum: eu adivinhava quando André estava próximo. Abri a janelinha e seu carro estacionou na calçada... Tratei logo de liberar o portão. Seu corpo alto, grande, músculos proeminentes, cabelos pretos... [75] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Moveu-se abrindo caminho na parede d’água entre nós, e enfim parou diante da porta que a esta altura eu já tinha aberto. - Anjo... – falou meu nome. Música para mim. - André... – sorri, sem querer, sem pensar. Ele sorriu também. Os olhos cinzentos que sempre admirei, sob suas sobrancelhas pretas e grossas, vieram de encontro aos meus... Azuis. Eu não poderia descrever o que meus próprios olhos estariam manifestando, mas senti que estavam úmidos. Em silêncio, peguei a maleta dele, de médico. Ele estava saindo do hospital. - Como tu conseguiu chegar sozinho aqui? – ele riu – Só com muita chuva mesmo, né? Ultimamente ninguém te deixa mais em paz. Sim. Nem me fale, eu estou cansado, pensei. Entrevistas, matérias, documentários, os militares... Em alguns momentos eu não queria ser nada daquilo. Para o mundo eu era o curador, o médium, o rapaz das fotos. Aquele cuja cruz era ser visto através dos efeitos que eu nem podia controlar. Ser pedido, suplicado... Ser perseguido. Ouvir as críticas, ficar quieto. - Eu tava precisando vir aqui... – respondi. Ele se aproximou e deu um beijo em minha testa, seus lábios mornos. Demorou-se por alguns instantes. Era suficiente para fazer meu corpo recuperar a vitalidade, tornar-se ainda mais quente, disposto. André era minha cura. Aquilo que eu tanto ajudava a entregar aos outros, eu encontrava na presença deste antigo amigo. Deste antigo amor. Ele se afastou um pouco e colocou a mão em meu rosto, tão sério. - Toma um banho... – pedi – Logo vai estar escuro. Seu sorriso torto surgiu, e então ele desapareceu – conhecia o caminho. Eu fui para o quarto, terminando de retirar minhas roupas da mochila... Pensando em quando fomos colegas de ensino [76] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. médio, em suas vitórias no time do futebol, em nossas aventuras... Em todo tempo que se passou aqui, e quando fui embora para Sagrado Coração... Quando a vida nos tirou pessoas importantes... O momento que ele estava separado de sua noiva, e eu separado de meu quase marido... Quando enfim confessamos a nós mesmos que nos amávamos. E ainda assim, diante de todo esse amor, era difícil. Para ele, por ser “homem”... Para mim, por nunca ter dado chance a esta entrega. No fundo, sempre tive medo de entregar meu coração e meu corpo. E isso doía. Literalmente... Em meus músculos, em meus ossos, em minha alma. Não tinha aprendido a me deixar tocar. Aguardei pacientemente, ouvindo as trovoadas... A interessante presença da chuva sempre que eu e André acabávamos muito próximos de algo importante. Era assim. Ele voltou, com sua calça de moletom cinza, logo fazendo peso sobre o lado direito da cama de casal... Eu sorri de novo sem querer, olhando em sua direção. Ele deitou apoiado ao cotovelo, e olhou para meu corpo... Enfim pôs a mão sobre minha perna e eu sabia o que isso queria dizer: fiquei de costas e esperei. Ele veio por trás, abraçando-me tão forte que senti seu coração bater em minhas costas, acelerado. - Tu faz falta nessa cidade, Anjo... - Eu queria poder ficar mais. Mas não posso. Tenho o trabalho. Precisava olhar em seu rosto, e por isso apoiei a cabeça em seu ombro. Ficamos próximos um do outro, o lençol sobre nós. Até quando seria assim? Tão próximos, tão distantes, sempre trocando posições como sol e lua, encontrando-se raramente. André suspirou. Então tão logo o fez, beijou novamente minha testa... Depois meu rosto... Depois meus lábios. Senti um frio na barriga, e timidamente toquei seu ombro, seu peito tão largo e bem [77] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. maior que o meu. A sua mão por sua vez deslizou sobre mim, indo parar em minha cintura. Não era suficiente, claro que não era. Não aquela noite. Precisávamos de mais... Sempre era preciso mais e cada vez o mais ficava insuficiente. Um passo adiante. Ele tirou o que nos cobria, e puxou a camiseta, revelando seu tórax. Virei o rosto. - Anjo... – ele suplicou – Me olha. Eu olhei. Era perfeito pra mim. Os pelos sob o umbigo, o desenho de seu corpo. Ele era tudo o que eu admirava num homem... E ainda não entendia como depois de todas as meninas e mulheres, que eu sabia ele havia amado, o seu amor por mim era capaz de existir, de sobreviver, ou mesmo de ter nascido. Por mais que ele me explicasse várias vezes, por algum defeito, alguma parte quebrada na minha estima, era sempre preciso ouvir de novo, confirmar que ainda era verdade. Ele avançou em minha direção, pondo-me de joelhos diante dele, e tirou minha camiseta. Levei logo os braços ao peito, escondendo meu corpo... Ele balançou a cabeça. - A gente já se viu pelado antes... Por que tem tanta vergonha? - Não sei... – respondi com honestidade – Eu tenho vergonha do meu corpo. E eu não sou... Mulher. Ele se deitou um pouco e tirou as calças, a cueca preta. Desviei meu olhar de novo. - Tu também já viu isso – a voz jocosa me tranquilizou. Sim, eu já tinha visto. Sob o jeans, sob o calção de jogador, sob suas mãos... E quando transamos pela primeira vez – o momento que dividimos um com o outro, que marcou o final de nossa adolescência antes que seguíssemos outros caminhos. Ainda assim, eu tremi. Porque apesar de ter vivido com outro homem por anos, diante de André [78] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. eu me sentia um menino. Meu corpo era sempre virgem do amor que ele podia me dar. Ele diminuiu a luz, eu tirei o resto de minha roupa. Começamos a nos beijar... Aquela primeira e única vez que transamos passou pela minha mente. Dormimos juntos noutras vezes, abraçados ali neste casarão, mas sem jamais atravessar esse limite que estávamos prestes a cruzar de novo. O sangue correu acelerado por minhas veias. O toque firme e seguro de André me trouxe de novo ao presente. Seu beijo me envolveu... Seus braços. Rolamos sobre o colchão, deixando escapar sopros... O vento lá fora, a chuva batendo contra as janelas. Seu rosto estampava um tipo de dor, como se a qualquer momento eu pudesse desaparecer dali. Como se quisesse me fazer ficar para sempre... E em mim eu também sentia essa dor, essa ressonância. Em pouco tempo, pela pressa, pelo desejo, ele colocou a proteção... Veio sobre mim, entre minhas pernas, e se pôs dentro de mim. Cada vez mais fundo. Seus olhos atentos em mim a todo o tempo... Meus lábios abertos, e seus dedos apertando meu mamilo. Ele beijou meu pescoço, sentiu meu cheiro, forçou mais. Fechei meus olhos, abraçando suas costas. E conforme moveu seus quadris e eu os meu, as sensações tomavam conta do meu corpo, e ele – tenho certeza – sentia o mesmo. Quisera eu durasse para sempre o prazer de tê-lo em mim, de sentir o modo como me tocou num carinho quase devocional, onde sou necessário por mim mesmo. Quando tudo acabou, e enfim eu senti cada centímetro de minha pele formigando... Comecei a chorar. Desejava que tivéssemos tido mais... Houvéssemos percorrido um caminho sem que tantos obstáculos nos ferissem. E ele também derramou lágrimas. - Eu preciso de ti... – ele falou baixo – É mais forte que eu. Eu não sinto isso com ninguém... Eu já falei... Eu gosto de [79] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. mulheres, não sinto nada por outros caras, só contigo. É uma necessidade. Tu é diferente... Eu preciso te cuidar, estar contigo. Por que tu não vem de uma vez? Não aguento mais... Essa ausência. Não tinha resposta para aquilo. Em seguida dormimos. Na manhã seguinte quando entrei no carro, sentia como se fosse um condenado. Era maior que eu, do que minha vontade: eu precisava voltar a meu trabalho, a ajudar aquelas pessoas. Seriam mais semanas assim, percorrendo a região, o mundo... Fotos, testemunhos, palavras sem fim. Apertos de mão, hotéis e o pôr-do-sol em tantos lugares diferentes. Cruzei os braços sobre a direção e apoiei a cabeça. Batidas no vidro. Olhei e abri a porta do carro... André em sua roupa branca se abaixou para me juntar num abraço apertado. Ele sabia que eu não queria sair dali. Eu ainda visitaria meu pai, claro, mas logo ganharia a estrada, partiria. Em seus braços eu era o Anjo, aquele Anjo. O menino que perdera a mãe no acidente de carro... O que apanhava do pai bêbado. O que havia sido salvo por ele. Aquele que amava comer bolo, e que era preguiçoso. O garoto que escrevia num diário, e cuidava de seu gato Momo. O menino dos olhos que ele comparava a lagos. O simples e bobo Anjo. Ainda recostado em seu ombro, pude ver a cidade despertando com uma fina garoa sobre ela. E a glória com a qual as pessoas não sonham: poder viver em sua anônima rotina. Para mim, isso seria tudo. Os raios de sol procurando brechas entre as nuvens e o ar maravilhoso, úmido, exalando o perfume de plantas e pedras. Ele beijou minha testa. Eu sorri. Ele sorriu. [80] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Anjo e André são personagens do livro Cidade do Anjo (Editora Escândalo, 2012) – uma história gay adolescente. Clique aqui e conheça! [81] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Vento Triste Caminhamos durante dias encarando a claridade do deserto. A luminosidade intensa das areias machucou e queimou nossos rostos; meus olhos e minha boca secavam diante do sol implacável, e não encontravam alívio no frio congelante da noite. Estávamos assim há muitos dias, perdidos do grupo, sem esperança de que ainda conseguíssemos cumprir nossa missão. Tudo dera errado, e não sei se poderia dizer que era “sorte” o fato de termos encontrado aquela caverna. As pedras ao redor cheiravam a couro de réptil, e provavelmente amanheceria em algumas poucas horas. A luz das luas era suficiente para trazer uma claridade suave e angustiante: não tínhamos água, nem comida, meu estômago doía e minha garganta já estava arranhada. Não duraríamos por muito mais, é claro. Contudo, eu morreria com honra, do modo como sempre fui: um guerreiro. Anjo tossiu. Quando meu clã me enviou pra tomar a liderança da missão eu logo bati o olho nele e meu instinto gritou que ele causaria problemas. Ali estava ele, obviamente, em condição bem pior do que a minha. Eu treinei árduo, encarei batalhas, aprendi a usar armas, a sobreviver até o último minuto. Ele não... Ele era a escória da sociedade, tão reles quanto um escravo. - Seus pensamentos estão altos... – ele murmurou e se virou para mim; seus olhos brilhavam, acompanhando o tremor do seu corpo. Não podia culpa-lo disso: o deserto em que nos enfiamos era um dos mais perigosos do nosso mundo porque durante o dia era terrivelmente quente, e à noite se você caminhasse lá fora, congelaria. Nas noites anteriores, foi a única vez que vi uma magia da Luz ser útil, pois ela serviu pra nos aquecer um pouco (bem pouco, pra ser sincero). Pra variar os [82] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. clérigos da Luz sempre conseguiam ferrar com tudo o que eles tocassem, e graças àquilo fomos emboscados por mariposas gigantes. - Vá se ferrar, Anjo – grunhi trincando os dentes, eu estava puto. - Vá você... – ele teve coragem de responder. Se eu pudesse eu teria cortado a cabeça dele já, mas pior do que caminhar com um clérigo da Luz é matar um. Dizem que até mesmo eles são proibidos de se matarem. Uma lenda antiga conta de uma cidade inteira que se dissipou porque um deles foi martirizado, e com isso foi amaldiçoada e toda a vida nela se extinguiu. Lógico, isso era só uma lenda, mas nunca se sabe. Algumas lendas são mais do que mitos: são avisos. Eu estava resistindo ao sono porque estava com medo de ficar inconsciente. A água tinha terminado no dia anterior, a comida também. Os animais desse deserto, em específico, possuem sangue venenoso, por isso nem bebê-lo nos afastaria da morte. Tomar urina não era um panorama animador. Comecei, então, a tentar lembrar onde tudo aquilo tinha começado. Um cara misterioso veio em nome da Velha Cinzenta. Ele reuniu um grupo, pagou bem pelas pessoas que iam participar, nos mandou recuperar um suposto artefato. A princípio se tratava de uma ruína além da Floresta Escura, mas quando chegamos nas proximidades fomos atacados por criaturas das sombras. Foi impossível que não nos dividíssemos, e logo com quem fui parar? Nos dias que seguimos, tivemos que fugir, e além de tudo descobri observando das montanhas, que os bárbaros estavam se reunindo de novo com os trolls, o que significava uma guerra no porvir. Nuvens espessas de fumaça estavam atingindo nossas terras há semanas já, e então ali eu percebi que eram eles. As tribos estavam bem mais organizadas do que antese e como se não bastasse, caímos numa armadilha besta de ladrões [83] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. iniciantes, tivemos nossos pertences roubados, e cercados de inimigos por todos os lados, só nos restou o deserto. Termos colocado o pé naquela areia foi um modo politicamente correto de concordarmos que estávamos condenados à morte, porque até aquele momento não existiu um ser humano que tivesse saído de lá que não fosse invenção de histórias pra agradar crianças antes de dormir. Lá fora uma brisa começou a soprar. - É verdade que vocês não fodem? – eu precisava me distrair com algo, pois ouvi um som de metal arranhando e isso era sinal de que minha sanidade morreria antes de mim. - O quê? – Anjo franziu os olhos. - Os seguidores da Luz... – murmurei – Que vocês não fodem. São virgens. Achei que não teria resposta, mas ela veio do amontoado de roupas brancas, manchadas de terra preta e sangue seco. - É... – ele desviou o rosto. - Que merda. Não tem nada como uma noite num bordel, com muita cerveja e mulher. - Que bom pra você, André. Eu não sinto falta de nada disso. - Vocês são loucos. Por que raios tu foi se meter nessa ordem? Todo mundo sabe que não tem nada mais vergonhoso pra um macho do que vestir o branco. Tu com certeza manchou a honra da tua família. Anjo encontrou forças pra erguer um pouco o corpo. Ele estava cansado... Sem o amuleto e sem um templo ou oratório, ele não conseguiria recuperar naturalmente a graça da Luz. Restava-lhe bem pouco, e era possível ver em seu rosto magro as olheiras fundas. Seus cabelos eram completamente brancos como os de um idoso, e os olhos, quando os vi, eram violáceos. Era bem estranho pra falar a verdade, eles eram todos assim, não parecia natural – parecia que eram todos cópias uns dos outros. [84] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. - Eu quase não lembro deles mais... – falou em tom de tristeza – Quando a gente veste o branco, a gente muda. Eu não fui sempre assim... – apontou pra si mesmo – Meu cabelo era da cor do trigo, e meus olhos eram da cor do céu da primavera. Eu escrevi pra não esquecer, todos escrevemos... Que eu estava ali porque eu havia trazido desgraça à minha gente. Eu ainda sei... – hesitou – Na verdade eu acho... Que tinha um pai, uma mãe, uma avó, e uma irmã. Eu não sei o que eu fiz... Só sei que lembro da palavra “diferente”. E eu tenho escrito que eu era diferente, e tinha amaldiçoado a minha família por causa disso. - Isso é... – eu refleti por um instante – Horrível. O que tu fez? - Não sei... E cada dia que passar vou lembrar menos deles, e vou esquecer. Um dia, se eu tiver sorte, vou me esquecer do meu nome também. Na verdade, eu não sei se Anjo é o meu nome. Mas pra mim... Eu sempre penso que é uma sorte ter encontrado um lugar. Sorte, de novo. O conceito de sorte não andava muito confiável por esses tempos. As virgens da Luz eram as mulheres mais bonitas do mundo, mas não podiam casar. Quem deitasse com uma, morreria. Não se sabe se antes ou depois de consumar o ato... E ela também. Os poderes dos homens nunca são como os das mulheres... Eles são bem mais fracos. Portanto, se ser uma seguidora da Luz já não era lá bom negócio, ser homem nisso... Porra, era pra servir de chacota! Eles não eram aceitos, exceto se fossem doados... O que quer dizer, Anjo era diferente e vergonhoso pra família dele muito antes de ele mesmo entender quem era. - É um fardo lembrar de certas coisas – ele ponderou – mas a Sacerdotisa diz que quando eu tiver cumprido meu aprendizado a Luz vai me abençoar com o esquecimento. Meu papel vai ser [85] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. rasgado, junto com meu nome... – ele se encolheu – Não sei o que fiz, só sei que dói. Balancei a cabeça. Anjo era outro mundo. Olhei meus braços: eu tinha cicatrizes, grandes, pequenas. Tinha lutado pela minha vida desde cedo pra honrar meus ancestrais. De onde eu vinha, a história e a sua vida eram os bens mais preciosos, o maior orgulho de um homem. Esquecer, mesmo que fosse uma tragédia, era considerado fraqueza. Não ter uma história... Era impensável, ela era tão preciosa quanto o ouro para nós. Mas uma coisa eu entendia: a dor de ser doado. - Eu... – demorei algum tempo para recobrar as forças e falar – Minha tribo me doou pro clã de guerreiros do leste. - Por que, André? – foi a vez dele querer saber. - Quando nasci matei meu irmão gêmeo. Um xamã previu que eu traria a morte pra tudo que me amasse... E que eu amasse. Então eu fui criado pra ser um guerreiro... Porque a morte sempre ia me acompanhar. E quanto mais aprender a ser forte, e não sentir... – demorei um novo tempo pra dizer – Amor... Eu vou vencer ela. Aliás, iria vencer. Agora eu ia morrer de qualquer jeito, mesmo sem ter amado. Por um segundo, achei que o clérigo da Luz tinha derramado uma lágrima, mas ele passou a mão sobre o rosto rápido demais pra que eu pudesse ter certeza. Isso era ridículo. Eu nunca chorei, nem de dor. - Sabe o que eu queria agora? – ele deitou e pareceu relaxar – Uma boa comida, e um litro de vinho. - Tu deseja pouco... – eu deitei também, ao lado – Eu queria duas dançarinas de Tulipa, elas são as mais sensuais. Ia tomar cerveja até vomitar... E comer elas até o fim da noite. - Você é desprezível – a voz dele falou. - Eu... – meu pensamento falhou. [86] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Confesso que eu achei que tinha morrido, porque pra mim morrer era isso: um estalo e o nada. Não acreditava muito nessas coisas de fantasma ou de mundo dos mortos, apesar de que depois do encontro com as criaturas da floresta eu comecei a duvidar um pouco disso. Tudo ficou preto e abafado... E então um estrondo forte fez tremer as pedras e um ganido agudo me alertou. Meu corpo não respondia direito, e lá fora já era dia alto. Eu estava suado e Anjo também. Levei a mão ao cinto e puxei a adaga que tinha encontrado na entrada do deserto, era uma arma de mulheres e ladrões, mas teria que servir. - Socorro! – Anjo me assustou, ele acordou num salto. - Quieto... – eu pedi. - Eu tive um sonho... – ele estava aterrorizado – O mesmo pesadelo. Eu estava no corredor de vidro e metal, com vários tronos alinhados... Eu usava roupas diferentes, calças... E eu estava arrependido de alguma coisa. E aí depois eu lembro do vidro... A minha mão estendida num vidro, e do outro lado eu não podia ver, não podia! - balbuciou – Tinha alguém lá, e eu não conseguia tirar a mão. Era só o que me faltava agora, mais uma vez essa droga de história de pesadelo. - Se acalma, é só um sonho estúpido... – disse perto dele. - Dessa vez foi diferente... Ele me mostrou a mão direita: ela estava vermelha, queimada. - Que bruxaria é essa? – me afastei cauteloso. - Eu tenho alergia a vidro – ele parecia estar tão assustado quanto eu, depois se tornou distante – eu não posso tocar vidros ou espelhos. Eles queimam a minha pele. Eu acho que isso é uma maldição e que esse sonho tem a ver com isso... - A Luz não te cura dessas coisas? – estranhei. Um novo estrondo e agora outro ganido alto. Fiz sinal que ele não se movesse. A conversa teria de esperar. [87] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Respirei fundo e me movi cautelosamente até a entrada da caverna. Quando vi a sombra desenhando círculos nas dunas eu pensei que aquilo era fantástico. Em outras épocas, a visão de um dragão de areia teria sido um fato e tanto pra contar nas rodas de fogueira à noite. Mas a proximidade com um era perigosa, ainda mais ali – ele devia estar tão faminto quanto nós. Seu voo circular significava que ele já nos tinha farejado e logo desceria para nos espreitar e devorar o quanto antes. - André, o que foi isso? – ouvi a voz perguntar baixinho, vinda de trás. - Um dragão de areia – respondi, e voltei ao interior. - O que faremos? Eu não sabia nem como a gente continuava vivo. Eu sentei e olhei ao redor, o furor e o reflexo de sair e caçar o dragão era muito forte pra mim. Meus olhos estavam dilatados e eu ouvia os ganidos com raiva. Não tínhamos uma arma decente, não tinha outro guerreiro com quem contar pra uma estratégia. Eu tinha comigo apenas um fracote, e uma lâmina de má qualidade que eu nem sabia se chegaria a arranhar a pele do animal. - Tu fica aqui, e eu vou lá fora enfrenta-lo. Anjo pareceu inconformado... Percebi seu olhar alarmado à procura de algo, a mesmo ação que eu tinha feito em poucos segundos. Ele sabia que era limitado e que não ia ter como ajudar. Meu coração já pulsava e minha mão apertava a bainha da adaga. Que se fodesse tudo, eu ia morrer lutando, eu ia honrar meu clã. - Vou lutar com você. Eu tenho que te ajudar. - Tu já ajudou. Além disso, tu está com pouca graça – respondi. Isso significava que qualquer bobagem de Luz que ele tentasse poderia sugar a energia vital do corpo dele pra funcionar. Eu não estava disposto a contar com a morte de um [88] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. inútil pra me ajudar, até porque não me ajudaria em nada. Duvido muito que uma faísca ou uma oração de cura de arranhões leves ia explodir a besta. E além disso, eu era o líder, e o líder nunca pode sacrificar ninguém além de si mesmo. Lembrei-me das lições do Pai Velho – nosso chefe. Dragões de areia respondem rápido se você sibilar como cobra – eles amam devorar serpentes do deserto, o que era um pouco irônico porque é como comer seus primos. Na entrada imitei o som, lento e baixo, mas o suficiente pra alertar o inimigo. Ele abanou as longas asas e desceu rapidamente de sua dancinha aérea. Quando o vi, majestoso, queria logo pular nele e tentar mata-lo do jeito que fosse. Seus olhos espertos e dourados me observaram enquanto fungava, ele parecia sorrir (se isso fosse possível). Sem alimento ele não usaria o sopro de areia porque estava visivelmente fraco. Sem um escudo, e mesmo com um, um sopro de areia seria como ser varrido por lâminas. Tratei de correr e ele automaticamente mudou de posição, mantendo contato visual comigo. Ele parecia um filhote porque suas garras afiadas ainda eram curtas... Ele abriu a boca, o hálito de pântano me nauseou no mesmo instante. Quando ele tentou me morder, pulei sobre sua cauda, desviando do ataque e de suas garras implacáveis me perseguindo. Por pouco seus dentes não me fizeram perder a perna direita e eu tentava a todo custo encontrar a abertura no peito onde eu pudesse lhe apunhalar o coração – tarefa impossível. Ao longe na entrada da caverna, Anjo, em sua túnica branca curta me observava lutar. Meus cabelos pretos se cobriram de poeira, e a falta da armadura me trouxe novos cortes que com “sorte” iriam virar cicatrizes. Eu sentia urgência em matar o dragão, e não sei exatamente como, mas quando ele tentou se lançar sobre mim, eu girei no ar e enfiei metade da adaga no peito da fera. O dragão de areia recuou e gritou, urrou – [89] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. isso foi apavorante - e então rapidamente ergue-se num voo para longe, em fuga. Exausto, revirei os olhos, arrastei os pés até a entrada da caverna e caí de olhos fechados. Já desidratado, eu suava e sangrava, então, isso era péssimo. Senti que a mão do clérigo se colocou sobre meu cabelo... Meus olhos cinzentos deviam estar sem direção, porque eu não conseguia ver direito, só ouvia o som da voz de Anjo ao longe. Eu estava sentindo um sono diferente, e agora sim eu simplesmente sabia que assim que ele parasse de me chamar eu iria dormir para sempre. Ele me balançou e eu vi como uma luz tenra passar por mim. Lutei comigo mesmo, abri os olhos. Precisava ser forte mais uma vez. - André, eles estão vindo... – Anjo estava fraco, exausto. O desgraçado tinha usado o resto de graça pra me acordar. Eu não queria agradecer isso, parecia errado. Quando fitei o horizonte, foi então que visualizei uma revoada de dragões de areia, provavelmente a família daquele a quem eu havia ferido. Ok, já estava cansativo adivinhar qual seria o momento em que iríamos morrer, mas isso agora era demais. Eu apenas estiquei a mão ferida, com sangue escorrendo, formando uma mistura com a areia. O pequeno clérigo olhou angustiado para as sombras se aproximando no chão à frente. - Vamos morrer, Anjo... – murmurei - Obrigado. - Não, André, você viverá! – ele derramou uma lágrima – Você esqueceu que precisa dominar três armas pra ter distinção de guerreiro chefe? Que bobagem! Eu não sei como ele sabia disso, mas esse era mesmo meu sonho. Quando eu contei? Será que antes do meu pensamento apagar na madrugada? Eu não sei... Só sei que não consegui ficar [90] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. em pé. E inesperadamente, Anjo me tocou e beijou meu rosto. Em circunstâncias normais um homem teria morrido por muito menos, mas aquilo foi diferente. Aqueles lábios... Era como se os conhecesse, algo familiar, misterioso e errado ao mesmo tempo. Antes de correr até o círculo de sombras, o clérigo olhou pra trás e estava chorando e sorrindo. Quando chegou ao centro, pôs logo as mãos sobre o peito. Entre os sons dos dragões, ouvi sua voz bradando: - Luz da Vida, conceda-me o Favor! Vinde a mim, pela força da minha ordem – ergueu o braço – Seu poder a meu comando, traga-me sua fúria... Ele estava conjurando um Favor, ele não podia fazer isso! Um Favor é uma das técnicas mais poderosas que um clérigo pode usar, e todos aqueles os quais conheci e a executaram, em situações extremas, haviam morrido. Eu não sei exatamente como, porém eu corri, com os joelhos falhando, mesmo caindo, 4 fui em sua direção. Era meu instinto de novo. - Anjo, não! Ele me viu e esticou um dos braços com a mão aberta para mim, sua força de intenção me paralisou – isso era ruim também porque lhe exigia uma carga ainda maior de energia. - Não, André... Se tiver que te parar não vou ter força suficiente, fique aí! Ele olhou pra cima, eu estava vendo que ele estava com medo, e o círculo estava se fechando acima dele. Era insuportável vê-lo com medo e não fazer nada, esse não era eu! Sua mão queimada que me barrava cedeu, mas eu não consegui recuar. Os dragões começaram a ficar revoltados e atiçados pela presa logo abaixo. Percebi quando o maior, o líder da serpentária, fez menção de mergulhar. Eu não ia deixar isso acontecer! Eu corri, mesmo sabendo que nada nos salvaria... E meus joelhos de novo falhavam. A quase cinquenta metros, era lindo e terrível assistir os dragões de areia dançando para baixo em direção à [91] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. terra, à Anjo. Porém, tão logo o envolveram e eu gritei, buscando minha adaga, um estrondo novo foi ouvido, muito maior, como se a ponte de ferro do rio de lama tivesse sido rasgada ao meio. Um raio vindo sabe-se lá de onde atingiu cinco deles, que caíram espalhados. Um tornado surgiu e começou a causar problemas às asas dos dragões – ele vinha de baixo para cima. Trovões ressoaram, e numa explosão branca que eu sei que nunca vou esquecer mesmo que viva até a velhice, clareou o céu e se refletiu na areia abaixo. Se eu não tivesse tapado os olhos, eu estaria cego. Com o estrondo, corpos de dragões despencaram inertes... Era incrível a magia que o preço de uma vida podia realizar em conjunto à graça. Anjo caiu, e a poeira formou uma nuvem ao seu redor. Fui até ele, ele não devia ter feito aquilo! Eu morreria com ele ali, era o mínimo que eu podia fazer. - Você vai viver... – ouvi ele soprando, a poeira ainda no ar, branca. Seus olhos se fecharam, e eu entendi. Assim que ele expirou uma gota de água caiu em sua testa... Depois outra, mais outra... E na boca semiaberta. Olhei para cima e vi as nuvens grossas e brancas, cinzas como meu olhar, despejando água. De tranquila, ela se tornou forte, feroz... O céu estava chorando porque Anjo morrera. A Luz iria me amaldiçoar por isso? Eu bebi, juntei as mãos e bebi, arfando. Eu estava bebendo e me salvando na morte de Anjo, isso era uma covardia brutal. Eu nem podia imaginar como seria viver carregando essa vergonha. E era impossível que estivesse chovendo naquele deserto. Eu puxei Anjo, e o abracei. Com um solavanco, coloquei-o sobre meus ombros, e marchei para o sudoeste, sabendo que ali teríamos chance de chegar até a cidade de onde saíramos. As forças me faltavam, mas a chuva me acompanhava, e por ser água abençoada, estava [92] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. me curando. Eu honraria o sacrifício dele, ele teria o enterro de um herói, mesmo sendo um clérigo da Luz. Então, tardiamente, percebi que de algum modo incômodo eu me importava com ele. Caminhei sem parar com a ajuda da natureza. Um vento triste se espalhou pela campina ao entardecer assim que cheguei ao posto vazio da fronteira e ali parei... A força das águas diminuíra e eu me sentia mais e mais cansado. Depositei o corpo no chão e sentei a seu lado, escondendo o rosto com as mãos. Meus olhos estavam úmidos... Por quê? Num pulo saquei minha adaga em direção à velha que me olhava. Ela surgira vinda do nada, e se escondia na sombra do prédio abandonado. As tradicionais vestes negras falavam por si: era uma necromante. Estava à espera, como um corvo. - Eu ouvi um coração batendo na porta da morte – ela sorriu, os dentes podres. - Do que está falando? - O menino da Luz ainda vive... Eu posso tirá-lo das mãos da morte, eu tenho esse poder. “Você está disposto a dar sua vida pela dele?” – seus olhos brilharam, maliciosos. Olhei o rosto sem cor de Anjo. Só então, consegui me sentir aliviado; mesmo com os dragões de areia trucidados eu não senti o alívio que senti ali. Eu assenti com a cabeça, sério. Um negócio com uma necromante, contudo, nunca era o que parecia; seguidores da morte sempre querem algo de nós. Ela entrou na sombra, e uma porta surgiu na parede. “Está pronto para viajar?”. Eu estava. Anjo e André são personagens do livro Cidade do Anjo (Editora Escândalo, 2012) – uma história gay adolescente. Clique aqui e conheça! [93] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. A Noite Histórica Os guris sabem que eu sou passivo, que eu não como, que eu não gosto de comer. E por isso mesmo eles me infernizam, ficam fazendo piadinha o tempo todo. O pior de todos é o Fábio, que vive como se um dia tivesse sofrido uma overdose de drogas e nunca mais tivesse voltado da viagem. E o que eles fizeram pra mim naquela noite eu tenho anotado na minha lista negra. Estava eu em minha casa, descompromissadamente jogando RPG com meus amigos da rua, num seleto grupo que se reúne todo sábado pra tomar Coca-Cola e interpretar personagens medievais. Eu sempre sou o guerreiro. Não sei por quê. As pessoas quando acham que eu sou gay logo esperam que eu vá ser uma elfa prostituta nível 100. Engano delas. O maldito me ligou uma vez, duas vezes, vinte e duas vezes no celular. Todo mundo já começou me xingar e eu tive que sair do meio da batalha contra o dragão zumbi pra atender a porra do telefone de casa, porque minha mãe invadiu o quarto e disse que se eu não falasse com o Fábio ela ia denunciar ele pra polícia. E por um minuto eu fiquei com vontade de ver a polícia levando ele, colocando ele num camburão (se coubesse ali dentro), mas eu fiquei com pena dos outros presos. Pedi licença, fiz a egípcia, fechei a porta e deslizei com toda a minha educação até a sala. - Que é? Não me diz que você tá sem carro e precisa de carona porque eu não vou sair de novo! Eu prometi a mim mesmo que nunca mais ia dar qualquer tipo de carona pra ele depois que numa madrugada ele mentiu que precisava de remédio pra asma e eu era a pessoa que ele mais amava no mundo. E na verdade o remédio dele foi um lanche do Drive-Thru que levou uma hora pra ficar pronto porque [94] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. todos os gordos desgraçados dessa cidade resolveram comer ao mesmo tempo. - Sossega, biba. - Não me chama de biba! - Bora balada de bicha. Hoje vai todo mundo. E você também. - Não, eu não vou! – falei com firmeza. - Vai sim, tem esquema. Um amigo meu de São Paulo tá aqui, ele tá louco pra te conhecer. Aí a coisa muda de figura. - Amigo? – perguntei, já deixando amolecer um pouco meu vigor. - É... Ele é advogado, sabe. Tá vindo pra cá, é gay bem do teu tipo. Meio oriental. É aí que eu me refiro. - Às onze e meia tô passando aí – sentenciei. Voltei pro quarto, ainda tinha quinze minutos de jogo antes da sessão de filmes. Como eu ainda tinha opção de usar duas espadas fiz uma chacina rápida, contei meus pontos de experiência e pedi desculpa pro pessoal por encerrar ali. A maratona do Senhor dos Anéis ia ter que ficar pra outro dia porque naquela noite o precioso era só meu. Tomei banho, gritei umas duas vezes fazendo a porra da sobrancelha, passei lápis no olho e na porra da sobrancelha, coloquei um pouco de corretivo, vesti a camiseta xadrez, uma calça apertada (que o Rodrigo uma vez apelidou de “clausura”), penteei a porra da sobrancelha, me lavei de perfume. Estava no melhor possível praquele momento memorável aonde eu ia com certeza conhecer o futuro pai dos meus filhos. Eu estava digno de atualizar minha foto do perfil! Cheguei na frente da casa do Fábio, buzinei uma vez. Duas. Ansioso enfiei a mão na buzina, caralho! Ô gordo filho da puta esse, cara! [95] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Ele saiu sozinho e aí eu entendi: aquilo só podia ser mais uma artimanha do obeso pra me fazer sair. Na mesma hora pensei em Frodo e pedi perdão mentalmente. Se voltasse naquele instante pra casa eu ainda podia ligar o computador e passar uma bela noite jogando MMORPG. - Tô aqui! – ele cantarolou imitando uma menininha e depois me deu um beijinho melado no rosto que limpei com a mão na mesma hora. Afundou com gosto o banco do carona. - Era mentira, né? – fulminei-o. - Bora pegar Rodrigo e o Alexandre? - Não acredito que eles vão! Sério? – isso era histórico. Bom... Vou pular a parte em que passamos na avenida e o Fábio TEVE que colocar a bunda na janela. Daí todo mundo se encontrou, aquela merda toda. Chegamos na boate e eu, como sempre, sou o mais rejeitado. O Fábio tirou uma travesti pra dançar que ainda passava a mão na barriga dele como se fosse um pote de ouro. E nisso outra travesti que parecia uma pirata com perna de pau porque tinha uma perna mais fina que a outra, se esfregava nele e ele nem aí. Revirei os olhos. - Tem um cara te olhando! – o Rodrigo falou. - Sério? Deve ser engano! - Não é, olha ali discretamente pro lado do banheiro. Que discretamente o quê, cacete. Se tá me olhando eu vou ficar fazendo fita? O mar já não tá pra peixe. Olhei na cara dura e o Rodrigo quis se enfiar pro outro lado do balcão do bar. O “cara” era um menino que aparentava doze anos de idade, com cabelo loiro e tão cacheado que parecia um ninho de pombo. A calça dele era ainda mais apertada que a minha e se alguém não fosse lá e cortasse aquilo, tenho certeza que a circulação dele parava em questão de minutos. Fiz o carão pra ele e o apelidei mentalmente de “mini biba”. [96] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. - Que foi? Não gostou? – o Rodrigo ainda teve a cara de pau de perguntar! Fingi não ter ouvido. Peguei o celular. Twittei. Começou a tocar a Rainha Madonna e eu fui correndo pra pista. Na hora que toca Madonna, ou uma diva qualquer, as bicha vira tudo amiga! Eu mesmo viro a supersociável! Até aceitei subir no pole dance com o Fábio e a pirata. Só não topei o beijo triplo porque isso é muito anos 2000, e Give Me All Your Luvin’ não pede esse tipo de coisa. E do alto do meu posto, matreira como sou, no meio da luz negra enxerguei o Alexandre, que nunca dança, socializando com um grupinho suspeito de pseudointelectuais que parecem aqueles estudantes de filosofia, que sempre resolvem se enfiar sabe-se lá por qual motivo em festas LGBT. Fui até lá e já um pouco alto que estava de ter bebido do copo do Fábio (inconsequência total isso), abracei o Alexandre pela cintura e dei um oi como se estivesse chegando no auge da animação em quadra de escola de samba. Só não ouvi os grilos cantando porque estava tocando um remix podre, mas vi que a conversa cessou na mesma hora. - Ah... Esse é o Tales... – o Alexandre me apresentou. Todos levantaram as sobrancelhas. Porém, tinha um ali com potencial! Ele era da minha altura e tinha uma cara de inexperiente que me seduziu! Fazendo o tímido, voltei pra pista, e encontrei Rodrigo voltando com um copo amigo. Virei o copo amigo na minha boca. Ele me xingou de uma dúzia de nomes. Com raiva, peguei uma nota de vinte e coloquei na mão dele dando um tapa em cima: - Tá aqui, meu bem! Sou rica, tá? Vai comprar teu leite neném. Exu! Avarento. Aquilo tudo tava me dando uma loucura, uma vontade de tudo! [97] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. De repente eu estava dançando igual Britney até o mundo acabar, e nisso eu via os olhares cravando em mim. Eu estava grudado na barra que separava a pista do bar, rebolando até o chão. Foi quando meu baixinho inexperiente veio pro meu lado sem saber dançar porra nenhuma, e eu virei pra ele e grudei ele já no beijo. - Ai, eu tava muito a fim de ti! – escutei. Quando ele disse isso eu juro que nunca tinha ouvido uma voz tão de pintosa como aquela! Na hora me deu um nojo, que eu nem dei desculpa, só larguei fora o mais rápido que pude. Só vi de longe o Alexandre rindo com aquela boca cheia de dentes, e mostrei o dedo médio pra ele. Tava virando aprendiz do Fábio, né? Deixa que o que era dele tava guardado. Fui pro banheiro, meio tonto, e lá o gordo estava conversando e fumando com uma rodinha de “amigas”. - Ai, a gente não é lésbica! – uma falou. - Que pena... – ele riu – E vocês são o quê? - A gente estuda! Psicologia! - Eu também! O quê?! Eu não acreditei naquilo. Só se fosse Psicologia na universidade do meu cu! Tive que esperar alguém se foder dentro do banheiro e depois sair pra eu poder usar. O vaso entupido de papel como sempre, a porta sem trava como sempre, e eu lutando com o zíper como sempre. E quando eu finalmente consigo mijar, a porta abre. - Aproveita povo, que tá 10 reais esse rabo moreno! – o Fábio gritou. Os caras no mictório riram de mim, e as meninas amiguinhas dele também. Quando eu acabei, passei e meti um soco em sua barriga obscena. Avistei o Alexandre no bar, fui lá e roubei a bebida que ele tava segurando. [98] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. - Por que você tá pegando a minha? Hoje é open bar cara! – ele respondeu já indignado. - Ah é? – retribuí antipático. O garçom repôs a dele então a roubei na mesma hora e saí me sentindo a Rainha da Antipatia. Só aí lembrei que eu tinha dado vinte na mão do puto do Rodrigo. Eu juro que até hoje eu não entendi e nunca vi isso acontecer outra vez: algum dos DJs deve ter se enganado, eu não sei! Começou do nada a rolar um remix daquela, pasmem, exapresentadora infantil do Xis! Aquela boate parecia que ia vir abaixo... Eu só vi o Fábio jogando bicha pra tudo que era lado igual pino de boliche, abrindo caminho pra chegar na pista. E até o Alexandre veio com nós, e o Rodrigo, e a gente se abraçou e foi um vuco vuco... Passei a mão na bunda de uns cinco caras enquanto tava na parte do nheco-nheco, xique-xique, balancê! Já suado, tive de recorrer à área dos fumantes onde um pessoal muito estranho com cara de chapado estava divagando. Fui ali, tentei me secar na frente de um ventilador, e depois voltei. Nessa volta a mini biba vinha na minha direção pra falar comigo, então prontamente desviei o caminho - foi quando aconteceu. Um holofote branco veio em cima de mim e foi igual tivessem me dado um soco na cara. - Pessoal, meu amigo tá de aniversário hoje! O Fábio tinha aprontado essa comigo. Toda a boate cantou parabéns pra mim... Eu bêbado, com o olho borrado, a cara tão suada que minha chapinha já tinha ido pra puta que pariu, não ia dar pra ser simpático, ah não ia. E no fim o Fábio ainda trocou o verso: “muitas felicidades / muitos anos de passiva!”. - Passiva, passiva, passiva! Tales! Tales! Tales! E quem disse que eu conseguia andar depois? Todo mundo veio me dar parabéns. E como eu ia explicar que meu aniversário era no outro mês ainda? Ah que se fodesse. Comecei a beijar, [99] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. abraçar, imaginei que todo mundo era íntimo. Tirei foto, bebi do copo da bicharada toda, e no final ainda passei pelo barman que eu sempre achei um gato e dei um selinho na boca dele, antes de sair correndo. A essa altura vejo um cara que eu ficava há eras, ficando com a mini biba! Eu sabia que o cabeça de ninho tinha uma energia ruim, eu senti que ele era perigoso! - A gente tava te procurando! – o Rodrigo me puxou. - Que foi? Não me diz que você viu aquele teu ex também? O das frutinhas? – debochei com classe. - Ah cala boca. O Alexandre que ir embora, ele tá bêbado, passando mal... - Ai não, não me diz que ele tá chorando de novo. Apertei “Esc” e fui lá. Consolamos o Alexandre e o Fábio voltou com uma meia-calça nos ombros (don’t ask, don’t tell). Nisso fomos pra rua. Agradeci aos deuses LGBT por voltar a respirar ar puro. E nisso, um cara chegou perto de mim, pegando na minha mão. - Ei, parabéns... – ele disse – Não te dei um abraço. - Tudo bem, amor. Meu aniversário não é hoje mesmo... Virei: de terno preto, olhinho puxado, pouco mais alto que eu. Só pela voz grossa já valia a pena, mas ele conseguia ser estupidamente lindo e oriental (meu ponto fraco). Olhei pro Fábio que fez carinha de Ursinho Pooh (ele tinha mesmo um amigo advogado!), um sinal de positivo (curti), e na mesma hora respondi de novo pro cara: - Mas você pode me dar os parabéns agora, é claro! Ele abriu um sorriso perfeito e me abraçou. E depois ele me beijou. E depois a gente ficou enquanto o Alexandre vomitava e o Fábio oferecia um copo de vodca pra ele, pra ele melhorar. O Rodrigo discutia com o ex (o emo-das-frutinhas como nós o chamávamos), e eu ali pairando nas nuvens. Fiquei imaginando se [100] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. no RPG o oriental advogado seria meu parceiro, desbravando masmorras, correndo pelas montanhas. Mais faceiro que o Gollum, tomei posse do meu precioso. - Eu tenho que ir – ele falou, rápido demais. - Mas já? Você não vai com nós? - Não posso. Não sou daqui, e daqui a pouco quase pego o avião já. Sabe como é, né? “Sim, eu sei”. Ali naquela hora eu saberia tudo o que ele quisesse. Imaginava nossos filhotes de olhos puxados. Imaginava aquilo na cama, que só pela pegada devia ser um espécime ativo perfeito. Ouvi o Alexandre regurgitar mais uma vez. Um táxi chegou e notei que ele estava realmente com pressa. - Anota meu número? – ele pediu. - Capaz, vai lá, eu sou amigo do teu amigo! - Sério? – ele fez cara de dúvida, tão fofo. “Lógico que vou te add e curtir todas as tuas fotos”, pensei. Ele balançou a cabeça, feliz. Me deu um último beijo e depois entrou no carro com outro carinha que me acenou muito simpático, e eu suspirei. Fui até o Fábio, bebi a vodca num gole só e abracei aquela imitação de Hagrid do Harry Potter. Ele me abraçou também e o Rodrigo também nos abraçou chorando, dizendo que nunca mais ia falar com o ex das frutinhas, e o Alexandre que estava sentado na calçada só conseguiu se escorar em nós pra ser solidário. Era um momento de regozijo, algo quase bíblico, como se o Senhor tivesse nos dado toda a nossa merecida Vitória. Depois do ritual do lanche cheguei em casa e dormi. No dia seguinte minha cabeça doía, e alguns fatos eram inexplicáveis: por que eu estava usando uma camisa branca? Por que eu estava com três notas de dez e uma de cinco enroladas dentro da minha cueca? E por que meu celular tinha um papel de parede da Hannah Montana? Puro mistério. O dia todo o puto gordo não me atendeu. [101] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Quando foi segunda-feira, subi no departamento de publicidade e encontrei ele com os pés pra cima e a mão enfiada dentro da calça, mexendo no saco. Ele parecia um leão marinho. Com as mãos na cintura, avancei toda diva e dei um soco na mesa, que ele chegou pular. - Quero o número do teu amigo advogado. Agora! – intimidei. - Que amigo? - O amigo advogado oriental, de outra cidade, que ficou comigo, seu burro! - O do terno preto? - É. - Eu nunca vi aquele cara na minha vida! – riu. E riu, riu tanto que chegou a pôr as mãos no pinto pra segurar o xixi. Eu não acreditava naquilo... As pessoas ao redor começaram a rir também, e eu me senti um idiota, ainda tentando tirar o refrão da Xuxa da cabeça, vendo meu kamikaze explodindo levando junto com ele nossos filhos de olhos puxados. Fosse teatro a cortina fechava ali mesmo. As lágrimas escorriam pelo rosto rechonchudo e vermelho na minha frente! Com vontade de matar alguém, cruzei o corredor ao som mental da festa do estica e puxa e fui ver as fotos da minha falsa festa de aniversário. “Parabéns” pra mim! [102] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Pequenos e Curtos O Caminhoneiro Talvez eu vire um caminhoneiro heterossexual que aparece de vez em quando em casa e é traído pela mulher, e tem um filho com inclinações afeminadas. Ficarei obeso também e terei um braço mais bronzeado que o outro. Usarei calças jeans resistentes... Um lado do zíper terá o tecido mais gasto pelas mexidas e pegadas que darei quase todo o tempo. Algumas vezes irei para a boleia do caminhão com travestis exóticos asiáticos. Já pensei em escrever minhas aventuras, mas não teria tempo. Sempre tenho prazos a cumprir na estrada. Infelizmente. Meu filho é quem gosta muito de escrever, está sempre no computador. Gosta tanto que às vezes vai para a casa do nosso vizinho que está na faculdade, só para ter aulas extras de matemática e passa a noite lá. Volta sempre sorridente - o menino adora aprender! Eu acho graça dele, meu filho é muito divertido. Às vezes imita cantoras... Ele falou que as meninas adoram isso. Ele é muito pegador. Puxou o papai ursão. Eu adoro os travestis exóticos asiáticos. Especialmente quando usam roupa de baixo imitando pele de onça. Não sei se existem onças na Ásia, mas deveria existir, porque caem muito bem naqueles corpos. Alerta As imagens do satélite mostram uma onda de tédio que se movimenta com velocidade e deve chegar na tarde deste [103] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. domingo. Os meteorologistas alertam para que a população se prepare estocando filmes, seriados, amigos engraçados e alimentos calóricos. A massa de tédio deve se dissipar no início da segunda-feira com a chegada de uma nova frente fresca com risco de festas gay open bar. Conselhos de Shangri-La Não pareça que está pedindo um encontro. Já chega largando a barbada pronta, tipo: “Vamos no Shangri-La amanhã à noite” (inventei um nome de restaurante temático psicodélico). Dizem que eles servem caldos ótimos com pitadas de LSD. Eu acho que sempre é bom manter a pose pra pessoa não ficar se achando. Vai que ela não te quer – seria loucura isso, não te querer, mas vai que não te quer. Se você parecer que tá pedindo um encontro ela vai ainda sair com a impressão: “ai, coitado, ele tá requisitando uma saída, quer meu corpo nu.” Quando na verdade ela tem que sair pensando: “ele quer meu corpo nu e eu não quis, sou tão idiota”, e depois te ligar às seis da manhã após uma noite chorando e pensando no seu cheiro de macho-alfa. É porque eu conheço a psicologia dos passivos e semipassivos. Aliás, eu detesto os semipassivos. Especialmente quando eles tentam parecer que são semiativos ou ativos. E na hora H lançam aquela bunda na sua direção, igual a uma voadora. Isso é sempre uma surpresa muito desagradável. A Mansão Ideal Perguntei pra ele: por que você não namora com dois passivos? [104] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Ele respondeu: seria uma boa para mim porque eles iam se odiar nas noites que tivessem que se revezar! Eu acho deliciosas estas cenas dantescas e já fico a me imaginar supervisionando tudo, como se eu fosse um tipo de fiscal da casa usando espartilho de couro e com uma chibata na mão. Lógico, eu ia puxar os cabelos do primeiro passivo indisciplinado ou revoltado com sua sina bígama involuntária. - Você não tá ouvindo que o seu macho quer comer o outro agora?! Como castigo, ele seria obrigado e manipular e satisfazer o segundo passivo, de modo a pagar pela petulância. Consideraria também privá-lo de alguns seriados favoritos, ou mesmo de refrigerantes de baixa caloria. Nessas doces divagações descobri minha verdadeira vocação: governanta erótica. - Eu daria uma ótima governanta erótica! – sugeri, tentando imaginar que tipo de salário receberia. Claro, provavelmente incluiria insalubridade. - Ah daria sim, daria... – meu amigo riu – Você tem noção de que eu consigo imaginar tudo o que você fala? Certamente eu seria odiado. - Mas com você nas rédeas eu poderia finalmente montar o meu harém – admitiu. Por algum motivo obscuro, sem nem o conhecer, eu já detestava o primeiro passivo imaginário. Fiquei pensando eu adentrando seu quarto, machucando-o com tortura psicológica: “Hoje o mestre não vai usar você, pode ir tomar seu banho logo, e dormir. Ele vai jantar com o segundo na cozinha. Se eu ouvir qualquer barulho vindo daqui – qualquer barulho – você sabe o que o espera, vou trancar a porta agora.” - Vou jantar na cozinha? Não podia ser um café colonial na sala de inverno? - É pra isso que eu sou sua governanta, bebê. Eu organizo. [105] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Suspirei satisfeito e já realizado por antecipação com o sucesso do meu desempenho no hipotético cargo. Faroeste Brilhante Algum dia ainda serei internado por causa das minhas ideias mirabolantes, mas antes disso hei de viajar no tempo e pelo menos uma vez irei a um Saloon – um autêntico reduto de baristas, antigos e másculos cowboys, cavalos puro-sangue, muita música, tiros e bebida! Quiçá até mesmo uma bola de feno rolando no meio da rua... Eu seria capaz de correr atrás de uma para trazer como souvenir ao século XXI. Quase vejo a mim mesmo com colete, camisa com franjinhas, chapéu, lindas botas e esporas brilhantes, adentrando aquela portinha vai-e-vem clássica. Daria um soco sobre o balcão e ordenaria que me fosse servido um copo da digna Coca-Cola! Na falta dela, uma Smirnoff. A seguir olharia a todos com cara de mau, e na primeira oportunidade de olhada feia, não pensaria duas vezes em arrebentar uma garrafa na cabeça do meu algoz. Para mim, não bastaria só isso... Seria necessária também ao menos 01 (uma) briga daquelas de atirar o camarada no local onde os animais tomam água! E depois eu sapatearia com minhas esporas lindas, antes de ser levado por um bandido com cara de Alejandro. Vejo a mim mesmo entrando para as lendas da história americana ao fazer contato com uma tribo perdida de índios homossexuais bonitos e carentes. Os ensinaria a plantar e amar, e então largaria a vida de cowboy para virar algum tipo de divindade xamã. Mas jamais abandonaria as botas com pequenos diamantes incrustados! Isso, jamais! [106] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Desintrodução Aos bravos exploradores que ao final deste livro chegarem, recebam minhas graças e venham comigo para o Reino dos Satisfeitos – o lugar destinado a todos os que conseguem desbravar até mesmo as maiores nabas da literatura! Bemaventurados todos vós, e que um dia possamos celebrar este feito ao som do estalar da abertura de garrafas e de música ruim de bares suspeitos, com sua comida decididamente venenosa. Convido-o a compartilhar esta saga com todos aqueles que tiverem forte o coração, sem esquecer-se de tirar todas as crianças da sala! De modo subversivo e secreto, passai a obra de mão a mão, como modo de conquistar galanteios, simpatia, e favores daqueles a quem teus desejos íntimos quiserem tocar. Escrevei uma cartinha, uma mensagem, enviai um sinal de fumaça... Fazei um desenho colorido, e celebrai a diversidade e a alegria, postando-os para mim e para todos aqueles que ainda não descobriram a dádiva de sair de um mundo pequeno e cinzento, para um delicioso e colorido além. Dê asas à tua arte. E quando a noite chegar, ou o momento de nossos encontros, e nada de inédito houver para ler, ganhes tu a fama de mentalmente desequilibrado por traçar entusiásticas representações e interpretações destas histórias. Sede corajoso e não choramingai agora, no triste momento de nossa separação. Porém, se o coração apertar e a saudade ameaçar matarte, preencha um copo de refrigerante, sirva uma travessa de salgados e coloquei boa música pop atual a tocar. Eu estarei entre vós. O acima descrito é verdade e dou Fé! Rafael, Monsieur Nova [107] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Extras #1 Autoentrevista com o Autor Numa gloriosa manhã de sol a equipe parou diante da casa de praia em Arambaré – Rio Grande do Sul, na expectativa de conversar com o badalado e megalomaníaco autor Rafael Nova. Num lugar exótico rodeado de figueiras, eucalipto, e o doce som das ondas da verde praia da Lagoa dos Patos, ele concordou em dispor de um pouco de seu tempo para conversar conosco e fazer revelações bombásticas. A seguir, o estranho fruto deste adorável encontro que se antecipou ao lançamento de “O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova”. Bom dia, Rafael. As pessoas o conhecem como Rafael Nova. Qual a origem deste sobrenome? (silêncio) Bem, Nova não é meu sobrenome oficial. Na realidade “Rafael Nova” é um tipo de nome artístico que eu adotei como modo de parecer mais interessante e impactante. Creio que meu nome completo como está em meu documento de nascença não se prestaria a tal feito. Além disso, foi em 2006 que utilizei pela primeira vez - e com sucesso - o pseudônimo na criação de um endereço de mensagens instantâneas, que a bem da verdade não trouxe êxito nem nas mensagens e nem no instantâneo. Você acaba de escrever mais um livro, certo? (beberica um pouco de chá) Há alguns meses eu fiz uma grande amizade, cujo nome desejo preservar, mas que me inspirou a escrever as primeiras histórias rápidas via um endereço de mensagens instantâneas (não o mesmo da outra vez, e sim um mais frutífero). Nunca havia pensado em compor algo do gênero seleção de contos ou pequenas [108] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. histórias, e foi ali que tive um vislumbre. Mas logo abandonei a ideia. Em meados do ano de 2012, retomei por hobby a escrita, pois já fazia muito tempo que tinha terminado o último trabalho, havia acabado de revisar Cidade do Anjo e precisava sair dessa atmosfera; então decidi experimentar esse mundo das histórias curtas. O que o inspirou? Em primeiro lugar foi a conversa com o amigo. Em segundo, conforme estava já escrevendo, travei contato com o livro “Homossilábicas” da Editora Escândalo, que reunia uma série de contos de autores diferentes sob a temática homoafetiva. Era muito parecido com o tipo de trabalho que eu estava com vontade de realizar, e isso só me incentivou. Criar as histórias foi diferente dos grandes romances, porque me permitiu trilhar entre paisagens, temas, personagens e narrativas diversas. Foi muito gostoso experimentar (beberica e sorri de modo suspeito). A quem não está familiarizado com seu trabalho, quais seriam estes “grandes romances” os quais você acabou de citar? (risos irônicos) Bom, querido, como é seu nome mesmo? (pausa) Esqueci. (silêncio e ponderação) Acho muito difícil que alguém realmente não tenha lido ou ouvido falar na série Cidade do Anjo, por exemplo, que é um grande bestseller, um hit. Mas sendo sincero, criei algumas séries que exploram universos diferentes. A série do Anjo onde os livros envolvem drama, espiritualidade, e são sempre muito desgastantes pra escrever, no sentido emocional. A série da Imperatriz e do Cavalheiro que se passa em outro mundo e tem elementos de fantasia e se foca na aventura. E por fim a série Sem Nome que explora jornadas de cura e muita [109] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. ironia com a vida de um famoso colunista de jornal que é gay. Sem falar no curto, e profundo, A Rainha Branca. O que este novo trabalho traz ao seu “grande” (entonação de voz irônica) público? Meu “grande público” (inflexão de raiva) vai poder conhecer situações novas e algumas vezes hilárias, outras tristes, outras misteriosas, outras reflexivas. Como eu disse antes, foi muito gostoso experimentar vários ângulos e possibilidades... É por isso que o livro tem “delicioso” no título. A experiência que eu quero que meu “grande público” (nova inflexão de raiva) tenha é a mesma que eu tive... Um delicioso momento de parar e pensar, se divertir, sair da zona de conforto, ou mesmo presentear estas linhas a alguém por quem tenha alguma afeição. Por que a temática homoafetiva? Esta temática já esteve presente nos meus trabalhos anteriores, mas nunca de modo tão aberto. Eu queria falar direto ao público LGBT e simpatizante. Além disso, eu queria um tipo de texto que também pudesse divertir e emocionar, e tocar o coração destas pessoas... Levar a elas um livro diferenciado, uma produção literária diferenciada, criativa e sem ser vulgar. Como gay e leitor eu sentia falta de mais trabalhos assim, e como escritor eu comecei a sentir vontade de também construir a minha colaboração. Como é o seu processo criativo? Muitas vezes os elementos iniciais de uma história vêm por inspiração ou sonhos. Outro meio que tenho de criar é através dos desenhos: quando desenho personagens e lugares das histórias, começo a ter tipos de insights que me ajudam a desenvolver a trama e as personalidades [110] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. presentes ali. Ultimamente, contudo, tenho desenhado pouco e por isso não tenho feito tantas ilustrações sobre as histórias como fazia antes. Algum conto ou história curta teve de ficar de fora deste novo livro? Não exatamente. O que aconteceram foram algumas ideias não-aproveitadas. (engasga-se com uma bolachinha) É... (tosses e minutos depois) Desculpe. Sim, não cheguei a escrever a versão gay de Chapeuzinho Vermelho. Também não desenvolvi “Ciranda de Emoções” que era um poema de amor feminino... Ficou de fora também uma pequena história divertida envolvendo um casal gay aceitando seu filho hétero. E também algo relacionado a um Naturólogo em assistência social ajudando um jovem gay da alta sociedade que é expulso de casa, para as ruas. (tosse). Qual a sua mensagem final aos jovens escritores que desejam chegar ao ponto de ter um “grande público” (desdém) como você? (olhar de ódio) Bom... Não exatamente aos jovens escritores, mas a todos que identificam em si um talento e um sonho. Exercite-o, busque inspirações e referências, e pratique até desenvolver um estilo próprio. Acima de tudo, compartilhe seu talento onde você estiver; isso te dará o sentimento de realização que traz energia para continuar. Não leve as críticas pro lado pessoal, tire o bom delas. E esteja aberto a crescer e se renovar, as oportunidades vêm e a vida te prepara para elas se você estiver disposto a isso. Obrigado, “Monsieur” Nova (levanta as sobrancelhas com ar de estafa). Obrigado “você” (faz cara de cu). [111] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Extras #2 Guia rápido de frases de Monsieur Nova Sabe quando você precisa desesperadamente de uma frase? Às vezes você quer escrever um cartão e está sem criatividade e aí tem aquela brilhante ideia de copiar uma frase ou mensagem da internet e assinar seu nome embaixo, sentindo-se um gênio! Ou então, no meio daquela noite solitária regada a sorvete você precisa escrever algo no seu Twitter mais uma vez. Isso sem falar quando é questão de honra dar aquela indireta mortal nas redes sociais como resposta aos seus desafetos! Só quem já passou por estas provações sabe como é difícil encontrar à mão alguma coisa substancial e “parruda” para dar conta do recado. Pensando nisso, decidi reunir o melhor e o pior do meu Twitter que atende pelo nome de @NovaRafael. Delicie-se e não esqueça de acrescentar meu nome entre parênteses no final – isso vai fazer toda diferença ao mostrar que você faz parte do meu pequeno e seleto grupo de mafiosos vingadores. Modo de usar: Escolha a frase mais adequada à sua intenção. Copie-a e coloque de modo que o alvo da comunicação possa vê-la com absoluta certeza. Os mais ousados podem agregar uma imagem ou emoticon que represente seu estado de espírito. Reze durante alguns minutos. Observe a repercussão. Se o resultado for positivo comemore, se for negativo, ligue para o Serviço de Atendimento ao Cliente da máfia vingadora. [112] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. “É bom fazer faxina na vida, nas relações. Tem dois produtos detergentes e alvejantes ótimos: ‘verdade’ e ‘honestidade’. Mantenha limpo.” “O estranho é um convite à compreensão atenta.” “Quando um amigo se entristece, meu coração veste cinza.” “Da capacidade de estar atento ao outro, nasce aos poucos uma compreensão que é assombrosamente luminosa e compassiva. Isto é um tipo de milagre.” “Faz tempo que eu não vejo um tapa de luva - aquele tecido macio e branco, estalando no rosto de outrem. Ah... Saudade.” “Parem as máquinas! (sempre quis falar isso).” “Hoje a noite não tem luar, e o rio não reflete nada além de escuridão morna e secreta. O silêncio vela os desejos contidos, em si.” “Morri de sunga na beira da praia. Logo surgem curiosos, crianças brincam, adultos tiram fotos comigo. o IBAMA surge, tentam me desencalhar.” “Admiro as pessoas corajosas, compreendo as que têm medo, mas não aguento as covardes - nunca.” “Conheci amor. Desnudo na alma luz. Gracioso dia. #Haikai” [113] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. “Viaduto - via pública destinada à locomoção de viados. #FuckYeah” “Preguiça: índice atualizado frequentemente, o qual indica a falta de vontade de realizar atividades geralmente necessárias ou importantes.” “Aquele sentimento de solidão veio me visitar de novo... Hoje vou oferecer um lanche, sentar com ele, e ouvir a história que ele me conta.” “Este frio que persiste, insiste em invadir, por debaixo de minhas roupas, entrando pela camiseta, descendo às calças, roubando-me arrepios.” “Nossa Senhora do Cup Cake, estende teu manto de mostruário à minha frente e me traz teus doces bolinhos. Recheai. #amém” “Quando foi que o espaço entre nós ficou preenchido com um amontoado de silêncios?” “O último a chegar é a mulher do Padre! Ele retrucou: ‘Padre não tem mulher’. Mesmo assim, desacelerou o passo, foi devagar.” “O sexo desperta os sentidos, o amor desperta a alma. Os dois juntos conduzem à transcendência.” [114] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. “Me vesti de cor-de-rosa laminado e fui no mercado. Quando passei no caixa queriam me comprar - acharam que eu era um sonho de valsa gigante.” “Seis horas: vou lá tomar uma taça de coca-cola e rezar o terço.” “O poder corrompe esses pequenos idolozinhos de barro. Conheci vários, que não aguentaram o sol. Racharam e quebraram.” “Eu adoro tocar. Sinto que o toque me informa do outro, e sinto que o informa de mim. É quando encontro uma ponte, nas minhas mãos.” “Sempre guardo um sorriso educado para situações como essa, em que o coração ameaça dar lugar a um vazio melancólico.” “Eu poderia abrir um Secos & Molhados e enchê-lo só com as minhas esquisitices.” “A superficialidade é um jogo interessante, exceto pelo fato de que nunca satisfaz. A realidade da alma sempre torna o tombo inevitável.” “Flocos de sono se acumulando sobre mim... Como neve branca e fofa formando um tapete de sonhos.” [115] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. “Olho para minhas mãos trêmulas cheias de tempo. Marcas de memórias estampadas em mim. Guias de tudo que desejei, de tudo que fiz. O que sou.” “Existem muitas possibilidades por aí, mas a melhor é sempre ser você. Quando a alma brilha, o caminho se revela.” “Como se preparar pra uma despedida? Que roupa usar, que expressão fazer... Qual a melhor maneira de tocar e olhar pela última vez...” “Estas grandes perdas humanas são as estrelas voltando para o céu.” “Quando o coração aperta não é sangue que sai dele, são lágrimas que se derramam.” “Aquela casinha que todos desenham / Uma portinha, uma janela e o telhado / Todos são hipoteticamente felizes / Vivendo num simples sobrado” “Hoje não irei a festa alguma. Hoje, eu sou a festa.” “Hoje, muito provavelmente, sem ninguém anunciar, decretou-se silenciosamente que era o dia da saudade, de ter um rosto para recordar.” “Quando eu estou muito quieto é sinal que estou conversando muito comigo.” [116] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Extras #3 [117] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. O Autor: Rafael Nova www.rafaelnova.com | twitter.com/novarafael | fb.com/rafaelnova0 (WHO THE FUCK IS RAFAEL NOVA?!) Meu nome é Rafael, gaúcho, nascido a 11 de maio de 1985. Sou graduado em Naturologia Aplicada (UNISUL), estudante de especialização em Arteterapia no Contexto Social e Institucional (INFAPA), e autor do livro Cidade do Anjo (Editora Escândalo). Desde cedo tive muito interesse pela arte, espiritualidade e cura, e esses assuntos orientam minha atividade profissional. Aprecio o canto, a escrita, o desenho, e todos os meios onde posso expressar minha sensibilidade. Gosto de criar histórias, personagens, universos, e falar sobre eles. Sou fascinado pela fantasia e por todas as coisas encantadoras do mundo. Além disso, estudo constantemente como usar a energia para aconselhar, harmonizar e melhorar a saúde de pessoas, lugares, negócios. Sou sensitivo e um artista de coração. E carente de todo seu amor. (ZzZzZzZz...) (Não é foto de santinho eleitoral, favor não riscar!) (Gato, me liga!) [118] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Anjo é um garoto solitário e diferente. No início do segundo ano do Ensino Médio acaba ficando distanciado de sua antiga turma, e em meio a um ambiente novo, os olhos intensos e cinzentos de André o fazem sentir hostilizado e perseguido. No entanto, é ao enfrentar a dura realidade da morte de sua mãe em um acidente de carro, e o alcoolismo do pai, que encontra nesta jornada a sua redenção. Este livro marca o início de amizades e laços ambiguamente fortes o suficiente para se tornarem inesquecíveis. Seja bem-vindo à Cidade do Anjo! Livros da Série: Cidade do Anjo (2012, Editora Escândalo) Sagrado Coração (2013, não publicado) Cálice do Sul (2014, não publicado) Curta no Facebook: Fb.com/CidadeDoAnjo Conheça o Site da Editora: EditoraEscandalo.com [119] O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova Rafael Nova, 2013. Outras Obras Não Publicadas: Série A Imperatriz A Imperatriz & As Rosas O Cavalheiro e A Primavera Uma outra vida, um outro mundo. Conheça o povo dos claros, uma raça de seres que foi exilada do continente em que viviam. Ao longo de eras e guiados pelas filhas das estrelas elas prosperaram e se multiplicaram. Agora, uma sombra ameaça acabar com sua paz, e apenas um Cavalheiro e A Imperatriz esquecida sabem a extensão desse perigo. Sem a crença de todos, será que conseguirão reunir forças para salvar seu planeta? Série Sem Nome Sem Nome Sem Rumo Tudo ia bem para Valentino, um colunista e crítico em ascensão no principal jornal de seu Estado. O que ninguém sabe é que ele está gravemente doente, e sua jornada de cura o levará a abrir as portas do passado para lidar com o fantasma do namorado Léon. Com a ajuda de Robi, seu inseparável (e único) amigo, ele vai se comprometer com um tratamento natural enquanto tenta lidar com as pressões do editor. Surpresas, ironias, riqueza e badalação nessa história adulta e contemporânea. Histórias Curtas A Rainha Branca Acostume-se a viver sozinho. Acorde, durma, não precise de ninguém. Vá para o trabalho e depois para a escola. Não tenha família. Não tenha sentimentos. Dia após dia ele tenta agir como uma pessoa normal, e em reflexões que misturam desânimo e matérias do colégio, tenta entender e se situar diante do mundo lá fora. A casa no subúrbio, o trabalho no mercadinho, a visão sobre as pessoas que vivem suas vidas normais. As coisas mudam a partir de misteriosos e recorrentes sonhos onde uma mulher vestida de branco pede sua ajuda. [120] Copyright © Rafael Nova, 2013. Contate o Autor em [email protected] Ilustrações e Formatação do Autor. Espere! Ainda não vá embora... Garanta já sua vaga no Céu! Todos os anos, escritores de todo o mundo ficam à espera de recursos que às vezes nunca chegam. Se você gostou desse livro, faça uma doação! Monsieur Nova agradecerá eternamente sua nobre atitude de valorizar a Arte. Clique Aqui! (lembre-se: generosidade atrai generosidade, por isso doe “qualquer” valor robusto)