O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova

Transcrição

O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de
Monsieur Nova
Uma coletânea de Rafael Nova.
Este livro não possui fins comerciais sua distribuição é gratuita!
Dedicatória
Ofereço esta incrível obra, como forma de apreço e símbolo
de minha cordialidade, a você,
_____________________________________
(insira o nome da vítima)
que é objeto de meu total bem querer e devoção!
Com este pequeno regalo, espero eu, sua vida se torne mais
aprazível e colorida, ao passo que o felicito pelo
_____________________________________
(insira a data comemorativa ou ocasião imaginária)
no qual só posso agradecer pela sua notável presença em
minha vida.
Aproveito a ocasião para confessar humildemente meu
apreço pela suas maravilhosas qualidades de
_____________________________________
(hora de assoprar e passar a mão no ego alheio)
- ah se todos as tivessem! O mundo seria muito melhor!
Como encerramento deste breve, porém sincero dizer,
peço-lhe gentilmente caso seja de seu desejo, retribuir-me
do seguinte modo:
_____________________________________
(hora da facada! aproveite! valorize seu investimento!)
Com o carinho infinito e incondicional,
_____________________________________
(insira seu nome e título de nobreza)
___________________, ____/____/____
(local e data! dica: passe corretivo nos parênteses)
O Delicioso Livro de
Histórias Coloridas de
Monsieur Nova
À memória de Gustavo.
Que aí no céu, amigo, você possa saboreá-lo!
Obrigado por alimentar meus sonhos.
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ENTRADA
Introdução ______________________________________ 7
Oração ao leitor desconhecido. Que assim seja.
PRATOS QUENTES
A Última Oração _________________________________ 9
Todo mundo já sofreu (e até ficou sem tomar banho) por um amor perdido. E quase todo
mundo pensou em recorrer a Deus, mesmo sem saber direito como fazer isso.
Por Elise _______________________________________ 13
Elise não precisou morrer para que sua vida anterior fosse totalmente desfigurada. As
lembranças de uma amiga especial lhe acompanham diante da possível morte real.
O Gordo Profeta ________________________________ 17
O gordo das nossas vidas sempre está à espreita para nos detonar ou trazer bons
momentos. Voltar das férias de trabalho nunca é fácil, especialmente quando o gordo em
questão é seu colega "querido".
Garoto do Mercado ______________________________ 21
Algo um pouquinho diferente pode acontecer na sua vida e te fazer sentir um milionário.
Mesmo quando você é um professor numa pequena cidade, o inusitado pode surpreender.
Ponte de Vidro __________________________________ 26
Ele nunca soube escrever, mas ele devia isso a ela. O nome dela era Leandro.
A Fantástica Lésbica de Taba-K ____________________ 35
Num planeta não muito distante os homens foram extintos e uma raça inteira de mulheres
espaciais corre perigo. Sua última esperança é Mika, do setor K, encarregada de uma
missão nada confortável no planeta Terra.
Diário de Camila ________________________________ 43
Ser adolescente nunca foi fácil, ainda mais agora quando tudo parece conspirar contra
você para lhe afastar do seu grande amor. Camila, contudo, não deixará barato!
A Batalha de Campos ____________________________ 49
A chapa esquenta nessa tremenda luta entre fanchonas no Mercado Público.
Presentes Sob a Árvore ___________________________ 56
Não há neve no Brasil, mas o Natal pode ser mágico. No caos de Florianópolis em véspera
da Boa Festa, Luan espera ansiosamente por Cauê.
Um Pássaro ____________________________________ 63
Quando um gay idoso perde seu companheiro de uma vida, vê-se tentando conseguir um
meio de se comunicar com ele. Uma doce e espiritual história onde nada parece fazer
sentido.
Reencontrado Minha Cidade ______________________ 74
Um futuro alternativo onde Anjo, personagem principal de Cidade do Anjo, e André, se
defrontam com as consequências de suas escolhas num dia tempestuoso ao casarão da
Praça da Consolação.
Vento Triste ____________________________________ 82
Um mundo alternativo onde Anjo, personagem principal de Cidade do Anjo, e André, vivem
como personagens de uma aventura de fantasia e tentam sobreviver aos ameaçadores
dragões de areia.
A Noite Histórica ________________________________ 94
Quando você pensa que já passou por tudo na vida, o gordo da sua vida pode te botar
numa noite maluca, da segurança do RPG de mesa atirado à pista de uma boate gay .
Pequenos e Curtos ______________________________ 103
O caminhoneiro. Alerta. Conselhos de Shangri-la. A Mansão Ideal. Faroeste Brilhante.
SOBREMESAS
Desintrodução _________________________________ 107
Um singelo "até breve" aos desbravadores.
Extras #1 _____________________________________ 108
Autoentrevista com o Autor.
Extras #2 _____________________________________ 112
Guia rápido de frases de Monsieur Nova.
Extras #3 _____________________________________ 117
Certificado de leitura.
O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Introdução
Oração ao Leitor Desconhecido
Ao deitar tua gorda mão sobre as páginas deste livro, que
elas estejam puras e livres de vestígios de alimentos
hipercalóricos ou saborosas bebidas gasosas; que manuseiem e
folheiem avidamente seu conteúdo em busca de entretenimento
total e orgástico.
Se tiverdes pedido emprestado o poderoso trabalho, que
tua consciência seja lembrada de devolvê-lo e jamais passar
adiante; se assim ocorrer, teus dias serão curtos diante das
maldições lançadas pelo teu credor bibliográfico.
Quando te puseres diante de relatos cômicos, que tua boca
gargalheie sem censuras, a despeito dos olhares que te
perseguirão em locais públicos ou ambientes familiares. Que tu
possas chorar de rir, fazer xixi de tanto rir, e finalmente ter um
troço de tanto rir e cair de alma lavada sobre o editado
camalhaço.
Se por acaso encarardes o mistério, o drama ou o romance,
brote de teu coração inspirações doidivanas de sair a passo pelas
ruas gritando e proclamando a excelência deste autor. E que
serenatas e declamações inspiradas por ele abrilhantem tua
jornada profissional e pessoal nas rodinhas de conversação.
Mas se porventura a ira se apoderar de ti e desejardes
queimar e destruir tudo que aqui está contido, possa esta
fogueira servir para o mais nobre dos fins: um belo churrasco
gaúcho, acompanhado de polentas fritas e salada. Que seja
fotografado o ritual e compartilhado em redes sociais, onde
amigos sádicos curtirão a tortura literária.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Possa tua jornada ser leve, e teu voo sobre as páginas
acolher vosso coração em alegria e boa companhia. Mas ai
daquele que dormir, levando para a cama este livro, pois sobre
ele recairá a minha cólera e seu sono será recheado de atividades
oníricas insanas e torturantes!
Sentado sobre vossas nádegas, guardai estas palavras e
proclamai esta obra a revolução do entretenimento do novo
tempo!
Que Assim Seja.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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A Última Oração
Quando dei por mim eu estava sentado na rede da minha
casa. Uma rede azul, um tanto quanto surrada, pendurada em
dois ganchos que me custaram alguns machucados nas mãos.
Eu levei muito tempo até chegar a esse momento que
parece pateticamente simples, mas estava testando minha
paciência há anos. Vinha lutando contra uma série de marés
turbulentas que teimavam me arrastar, e eu, náufrago, me
agarrei a tudo o que pude. Boiei dias sem comida, bebida, ou bola
de vôlei com quem conversar. Era apenas eu lutando contra o
inevitável.
Então eu respirei fundo, olhei o céu da tarde nublada e
quente pra caralho, e acendi um delicioso cigarro Eu tinha
prometido que ia parar, mas era só mais um, e afinal eu merecia.
Fazia tempo que eu precisava ter essa conversa, e eu já estava
nervoso pelo desespero ou por parecer meio ridículo.
Sabe como é.
Um tipo como eu, sei lá, não está acostumado a “rezar”.
Porém, diante das três noites maldormidas, do cinzeiro cheio, do
monte de lixo espalhado pelo meu quarto, eu sabia que eu tinha
que fazer alguma coisa! Não podia ser encontrado morto pelos
meus amigos idiotas, ou pela minha mãe uma semana depois (ou
quando quer que ela resolvesse vir me ver), por afogamento em
cerveja ou qualquer outra coisa ainda mais bizarra.
Daí eu traguei mais uma vez o meu santo cigarro, olhei pra
ele, apaguei – porque parecia um tanto infame falar com Deus
fumando cigarro. E daí eu simplesmente parei tudo.
Tem muita coisa que acontece na vida da gente, isso é fato.
Mas pouca coisa é tão tenebrosa quanto encarar um pé na bunda
que acerta em cheio onde você não quer. Não é como a pobreza,
a fome, ou essas tragédias medonhas... E eu sei, sei que tem um
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monte de gente em situações piores do que a minha, blá blá blá e
etc. Só que a minha dignidade de homem precisava ser mantida
enquanto eu ia defender perante o Criador alguma coisa que eu
ainda precisava que Ele – se Ele existisse – podia me dar.
Igual a um furacão ruidoso, soprando sem parar, vi os olhos
escuros e selvagens dele em minha mente mais uma vez.
O modo como saiu da minha casa, dois anos depois,
dizendo que não me amava mais e que estava gostando de outro
cara. Aquela falta de sentimento... As sobrancelhas arqueadas e
desenhadas emoldurando um olhar vazio. Era impossível dizer
que ele um dia tinha sequer me amado, que tinha sequer me
conhecido... E o mais odioso é que eu tinha caído nisso, eu tinha
me apaixonado de novo e me fodido de novo.
De repente tô sendo meio injusto, na real eu não tinha
vivido nada assim antes. Esse trauma foi o meu primeiro. Já tinha
desistido de ficar com alguém, mas porra, esse era o primeiro
cara que eu quis mesmo namorar!
Por um segundo antes de abrir a boca e cruzar as mãos
(pode rir, só lembrava do meu pai fazendo isso, não tive outra
referência), daí me veio uma coisa: Deus podia não gostar dos
homossexuais. Provavelmente tinha um desprezo ainda maior
pelos que de vez em quando tinham tesão por mulher, igual eu.
Se era assim, tava muito claro que antes de morrer eu já estava
saboreando uma amostra grátis do inferno.
Na dúvida, resolvi acender outro cigarro e ponderar melhor
sobre o assunto.
Confesso aqui uma coisa um tanto nojenta: eu estava
precisando tomar um banho.
E desse pensamento tolo, logo lembrei dele, de novo. O
destino parece que tinha feito a coisa bem armada pra me ferrar.
Ele era daquele jeitinho, aquele jeito de moleque de cursinho
pré-vestibular e da puta que pariu, com uma plaquinha de “me
coma” pendurada no pescoço. Eu até me senti meio leão quando
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pus o olho nele... A calça apertada, unhas pintadas, franjinha
preta descendo pelo rosto, e o principal: ele era pequeno. Um
corpinho branco, liso, pequeninho e perigoso como um frasco de
veneno.
Só sei que o que magoou mesmo é que quando olhei pra
trás, eu vi que no fundo ele realmente nunca tinha gostado de
mim. E isso me apertava o peito... Eu tinha sido muito burro!
Ajeitei meu calção cinza de dormir, e me alonguei pra trás.
Soltei a fumaça, observando o movimento dela em cima de mim.
O gato miou lá na cozinha, pedindo comida. Eu devia ter confiado
nele – o gato, que era só um gato, nunca chegou nem perto do
meu “ex”.
Pelo sim e pelo não, levantei... Pedi licença a Deus como se
ele fosse um cliente parado diante da minha mesa no trabalho,
cocei o saco, e fui até o banheiro. Precisava mijar, olhar pra
minha cara de trinta e dois anos com aparência de sessenta, pro
meu cabelo já num comprimento inaceitável pedindo pra voltar a
ser raspado, e pra cor esquisita na minha pele. Um lixo humano.
Mexi na barba (é, eu esqueci de lavar a mão)... Os pelos
castanhos e claros espalhados pelo rosto, peito, pernas. Eu
costumava me achar razoável.
Voltei à rede, joguei o cigarro longe. Bastava de me sentir
assim! Eu tava sozinho já há mais de meio ano, cada vez pior. Não
ia pras boates, faltei quase todos os aniversários dos meus
amigos, comecei a deixar de treinar, e ainda por cima não podia
suportar ir a shopping e ver aquele bando de jovenzinhos quase
iguais ao “outro”. Se era pra acabar sozinho, nessa merda, ia ser
com a cabeça erguida e de banho tomado!
- Deus... – falei, sussurrando de dor, meio cortado – Se tem
algum cara legal por aí, eu nem sei. Não quero mais saber! Só
quero que você me ajude a sair dessa... Me ajuda a esquecer! Se
você me quer sozinho, tá beleza. Se me quer com alguém, me
traz alguém que vale a pena.
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Porque se fosse pra ter alguém de novo... O gato ia ter que
gostar da pessoa.
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Por Elise
O sangue escorre à frente do meu rosto formando uma
pequena poça.
- Abra os olhos, Elise!
Meus olhos estão abertos.
Apenas estou deitada, e não tenho mais a noção do
espaço... Eu recém havia chegado à cozinha de casa quando o
ladrão me viu, e assustado me atingiu com algo que nem sei o
que era. O barulho seco do objeto sobre meu ouvido direito e a
tontura, pá! Eu ali já caindo e ficando até onde estou agora, uma
dor lancinante em meu canal auditivo. É horrível, mas não tenho
medo. Estou apenas esperando.
Nessa vida sou uma dona de casa, tenho quase 43 anos.
Não me cuido como deveria, não pareço uma das moças de Sex
And The City, nem de Desperate Housewives. Visto-me mal, sem
vaidade alguma, cumpro meu dever.
Na vida anterior eu era uma moça, os cabelos
avermelhados me cobriam as costas - generosos. Minha pele era
branca como porcelana... As meninas tinham inveja de mim e
inveja do meu dom de tocar piano como ninguém. E foi durante
uma das aulas no conservatório que a conheci, uma amiga
especial, do tipo rebelde.
Naquele outro tempo eu usava roupas adequadas à moda
e não sobreviveria sem sorvete de pistache. Não imaginaria meu
mundo sem saber o nome de todas as cores da estação, nem dos
filmes e peças de teatro em cartaz. Já no tempo atual, não tenho
qualquer cultura. Debruço-me apenas sobre os deveres de casa
da minha pequena, ou então dos relatos de noticiário que meu
marido geralmente me traz a conhecer.
Meu marido me ama, e isso parece bastar a ele.
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Em outra vida meu sonho era ser uma grande musicista.
Cheguei a dar aulas... Morava com meus pais e tinha outras
irmãs. E havia Beth, a amiga. A que andava de motocicleta e
fumava como os garotos, parecendo-se uma versão atrevida e
imortal de James Dean. Um doce de pessoa, a quem os meus
rejeitavam veementemente.
Nesta vida casei com Gerard, um contabilista. Homem
sério, afeito a suspensórios e de hábitos modestos. Um senso de
organização nato. Um tipo de homem que traz flores no
aniversário de casamento, e ainda é capaz de lembrar-se do
aniversário de namoro. O que cuida da casa, dos filhos, que troca
o carro, que dá dinheiro para as roupas e sorri. E ainda um tipo
que não se importa de não acontecer sexo entre ele e a esposa,
pelo menos na maior parte do tempo.
Em ambas as vidas já muito cedo eu sofri nos períodos que
antecediam a menstruação. Doía-me o ventre... Tive muitos
problemas ao longo dos anos. Fui acometida de síndrome do
ovário policístico. Tratamentos longos, eu cheguei a perder uma
gestação com três meses, quase quatro. Até hoje me pergunto
como seria a menina de 9 anos, a qual nem pude conhecer.
Meu ouvido dói, o sangue forma um pequeno mar
vermelho.
Espalho-me pelo chão nesta gloriosa manhã.
- Abra os olhos, Elise!
Meus olhos estão abertos.
Recordo-me um verão onde Beth e eu tocamos num
festival. Foi lindo... Ela era exímia no violino. Seu talento talvez
fosse um dos motivos pelo qual a respeitassem tanto, enquanto
outras como ela recebiam apenas os olhares de reprovação, nojo,
afastamento, da sociedade. Íamos a festas que as famílias ricas
organizavam para as celebridades locais... Ríamos, nós, o grupo.
Seu sorriso era encantador.
Mas sou injusta.
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Lamento-me pela vida de agora... Queria voltar no tempo.
Tão cedo conheci Gerard, e logo do namoro veio os filhos. Beth se
afastou... Foi um alívio para todos, exceto para mim. E eu já não
podia dar conta do piano. Minha amiga foi ficando distante e
todas as coisas foram perdendo sua razão de ser... Já não me
importava tanto. Minha falecida mãe me dizia que estraguei meu
casamento e minha família porque eu simplesmente só pensava
em mim. Agora, de olhos abertos, consigo enxergar que ela tinha
absoluta razão.
Quase posso ver - paradas à sala de jantar - as imagens da
menina e de Beth. A minha filha que eu perdi, suas mãos ao
alcance dos meus cabelos. E Beth, escorada próxima ao relógio
antigo. Permanece tão jovem como na época em que a vi pela
última vez.
Se ainda tivesse meu útero, eu tentaria novamente dar
uma chance a esta menininha vir ao mundo. Isto é, se eu já não
estivesse indo de encontro a ela.
Gostaria de ser tão forte como Moisés, para abrir este Mar
Vermelho.
Passam pela minha mente os encontros de família aos
domingos. Já não reconhecia meus pais nem irmãs, nem
ninguém. Parada à beira da piscina, olhando as crianças,
limitando-me a fumar um cigarro, beber um pouco de uísque...
Ouvindo os risos de satisfação, as gargalhadas, as vozes
incessantes. Naqueles momentos, tudo o que eu desejava eram
os aplausos das salas de concerto. Quisera também sentir a mão
de minha amiga sobre a minha. Trocaria tudo por isso.
Nosso tempo foi tão curto...
O que é uma vida?
O estranho é que fui perdendo tantas coisas e partes de
mim. Você se adapta ao fim da carreira, à perda da filha, ao
inexistente útero e ovários, à amada amizade que se foi... Você
aceita como manda a Bíblia, e passa pelas provações. E no final
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vai sobrando uma coisa, que não é mais você. Um retrato
desfigurado.
Quem teria sido Elisabeth?
Se eu tivesse a coragem de confessar a ela meu desejo, e
ela para mim, teria tido a coragem para estar com ela? Ela nunca
disse nada a mim, e eu nunca disse a ela, ainda que nossos
olhares de cumplicidade o esfregassem não apenas na cara uma
da outra, mas na cara de toda a sociedade. Nas noites com meu
marido, ele mesmo às vezes evocava a presença de Beth em
nossa cama, imaginando nós duas juntas... E eu negava, mas no
íntimo imaginava-me com ela. Sem ele. Ele teria aceitado
qualquer situação para continuar comigo.
Uma mãe assim, uma esposa assim, uma filha assim. Eu
não aceitaria.
- Abra os olhos, Elise!
Meus olhos estão abertos.
Quase posso imaginar meus dedos tocando uma sonata de
Beethoven: Moonlight. Meus lábios não se movem, mas eu estou
sorrindo. A dor em meu ouvido, essa fonte se derramando, e eu
ali pensando em mim mesma jovem, tocando. Eu poderia tocar
ainda, se quisesse. Apenas estou velha e magoada... E já não
tenho mais o que eu quero. Como disse, sou injusta; escolhi por
mim mesma o caminho da amargura.
Pensei nos acordes, meus dedos se movimentaram. A mão
de minha filha não nascida mexeu e brincou com eles... E Beth
pôs suas mãos sobre meus ombros.
- Você acordou, Elise, você acordou!
Por Beth, por Elise. Finalmente fechei meus olhos e toquei
como nunca o havia feito.
Ouça a Moonlight Sonata de Beethoven: clique aqui.
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O Gordo Profeta
Eu tenho um azar que me acompanha desde moleque:
quando o relógio tá quase despertando, eu me acordo antes. Às
vezes uns 10 minutos antes, às vezes cinco, e na maioria das
vezes uns dois ou três. É uma droga... Fico meio aflito olhando
pras horas, desligo o alarme, e sei que não posso mais dormir. Na
noite antes de voltar para o trabalho, pós-final de merecidas
férias, eu bati meu recorde: acordei uma hora antes.
Daí eu escovei os dentes, aparei a barba (e me cortei no
pescoço - caralho), tomei um banho frio pra acordar bem. E pra
passar o tempo passei a minha camisa e a minha gravata de um
jeito tão meticuloso que pareciam folhas gigantes de papel
recortadas em formato de roupa. Achei isso um pouco veado da
minha parte, mas que se foda.
Peguei o carro, que tá sempre com o tanque na reserva,
mas que pelo menos é meu, e cheguei cedo. Fiquei ali: olhando
apavorado pra pilha de planilhas feias que eu tinha que passar
pra relatórios estúpidos e transformar em gráficos... E quis
invadir a sala do meu chefe, encher a cadeira dele de tachinhas,
pra quando ele fosse sentar eu pudesse ouvir o berro e depois
sorrir na tranquilidade maliciosa da minha estação de trabalho.
Se eu tivesse um dom paranormal, isso certamente teria sido
arranjado com a força do ódio brotando ali no meu pensamento.
De qualquer jeito eu nem podia reclamar muito. Tinha
tirado férias no pior mês de movimento da empresa, e ainda por
cima férias que eu nem pude aproveitar porque eu estava
ocupado demais lembrando o meu ex e sujando todas as louças e
roupas que tinha no apartamento.
O engraçado de trabalhar com números é que eles são
legais com você. Eles estão ali, supostamente corretos. Acontece
que uma vez ou outra, por culpa de um imbecil do setor lá de
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baixo eles até venham errados, nada fecha, eu levo uma mijada e
depois dou outra nos estagiários filhos da puta. Por sinal, um
grande prazer na minha vida era arruinar a vida deles sempre que
possível. Nada na vida se compara à visão de um estagiário
recolhendo dinheiro, todo atrapalhado, pra comprar um monte
de coisas na rua, e depois voltando e sendo achincalhado porque
não conseguiu se lembrar dos trocos corretos e nem acertar o
que cada um pediu pro café.
Todos já passamos por isso, todos passaremos.
É a lei da selva.
Soquei meus fones no ouvido e enfiei um Linkin Park pra
quebrar tudo.
É impressionante a merda que é voltar pro trabalho porque
não basta os colegas te verem, eles simplesmente têm que
comentar com boca mole: “apareceu!”, “oh, sumido!”, “e aí
turista!”. Vontade de pegar os clipes coloridos da minha frente e
enfiar no rabo deles.
Quando foi por perto das onze meu celular vibrou. Cheguei
a gelar. Peguei-o, olhei pras outras mesas ao redor e atendi
discretamente, usando ainda os fones.
- Fala...
- Ressuscitou, hein, Rodrigo. Abre teu e-mail.
- Vai se foder gordo, tô cheio de trabalho aqui. Não vou
ficar vendo tuas fotos escrotas...
- Não desliga!
Como ele sabia que eu ia desligar?!
Desconfiado, olhei ao redor.
No canto do bebedouro, do lado do vaso de samambaia
mais feio do mundo, Fábio Capetão estava me encarando. Ele é
alto, com uma eterna barriga de grávida de nove meses, barba
preta, entradas proeminentes, e cara de sonso... A camisa xadrez
desvalorizando o quanto podia sua já falta de beleza. O nariz
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pontudo pra baixo, no conjunto, parecia um daqueles óculos de
disfarce que vendem em loja de fantasia.
- Estou olhando pra você... Que delícia de gravata... – ele
forçou a voz pra ficar grave e rouca, imitando o telessexo que ele
com certeza muito aproveitou durante a adolescência.
- Vai se foder, já falei... – mostrei o dedo só pra ele ver.
- Olha seu e-mail, agora. E se prepara.
Balancei a cabeça em dúvida... Bom, já tava quase na hora
do almoço mesmo. Fiquei puto.
Era uma tirinha de Memes.
O gordo tava sempre com aquilo, eu até gostava, mas
porra, vinte e-mails por dia de tirinhas! Olhei pra ele com cara de
quem ia pegar o grampeador e enfiar no rabo dele (porque era
maior que os clipes). Ele fez sinal com as sobrancelhas pra eu
olhar de novo.
Assunto: “seu cu”.
Meu cu?
Nada a ver. Era um folder de festa... Uma festa gay, que ele
sabia muito bem que eu não frequentava há pelo menos um ano.
Festas que ele avacalhava porque dizia que ele não era gay.
Festas que meus outros amigos idiotas frequentavam porque
precisavam catar alguém pra comer, ou pra comer eles (no caso
do Tales), ou os dois.
Respirei fundo...
Daí eu ouvi a voz sacana soprando quase profética:
- “Open”... “Bar”...
O gordo sabia das coisas.
Eu ergui as costas como se uma força mística e misteriosa
tivesse entrado em mim e reestruturado meu corpo. Eu era o rei
do trago, desde a época da faculdade! Eu ainda tinha esse dom
em algum lugar dentro de mim, no meio de todas as batidinhas
de fruta irritantes que o meu ex me fez tomar. Com expressão de
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vitória em meu rosto, girei a cadeira e abri os braços para ele,
saudando o mestre.
O Fábio Capetão só fez uma mesura com a cabeça e
deslizou para o elevador atrás dele, desaparecendo como
apareceu, lembrando uma versão tamanho elefante do Mestre
dos Magos.
No meio do almoço, enquanto eu ainda lutava com o bife,
ele disse:
- Você tem que dar esse rabo, Rodrigo.
- Vai se foder, capeta... Você sabe que eu nunca dei o meu
rabo, e nunca vou dar, e ainda vou comer o seu um dia.
Ele riu. As risadas do Fábio eram de dar vergonha em
qualquer um... Diz a lenda que a mãe dele colocou ele por um
ano numa fonoaudióloga quando ele tinha dezesseis, pra ver se
ele melhorava. Não funcionou, e ele ainda perdeu a virgindade
com ela.
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Rafael Nova, 2013.
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Garoto do Mercado
Faz muitos anos que vou ao mesmo mercado.
Moro numa cidade pequena, então quase todo mundo se
conhece. Sabem que eu sou Pedagogo, sabem que eu trabalho
numa das duas escolas do (mini) município litorâneo, e conhecem
toda a história de quando me pegaram beijando o “amigo” do
colégio - foi assunto de todas as fofocas e burburinhos na época.
Durou o natal, o ano novo, e por pouco não chegou ao carnaval
se não fosse o flagra de um marido em sua mulher cometendo
um adultério lésbico (e até segundo versões pouco ortodoxas,
zoófilo). Eu devia ter aproveitado meus 15 minutos de fama e
criado um livro ou uma franquia de produtos, teria sido um
sucesso comercial.
E isso que eu nem dava pinta na época!
Agora nem me importo. Moro sozinho, pago minhas
contas. Só não imaginava que a minha vida ia ser passar num
concurso pra ficar morando no mesmo lugar de onde eu saí.
No fim de tudo, é a grana que fala mais alto mesmo. Vida
de gado.
Agora um aviso: se você um dia tiver o “prazer” de virar
professor, vai descobrir que o buraco é bem mais embaixo.
Quando você é aluno você estuda, vai às aulas, conversa
com as amigas, passa bilhetinho, come o lanche no recreio. Ou
então faz o trabalho de faculdade uma madrugada antes (como
sempre), e paga pro colega inteligente formatar o artigo nas
normas da ABNT.
O caldo engrossa é quando de repente você passa é pro
lado de lá - aí sim o bicho pega. Pega de jeito, pega firme, pega
pelas ancas!
No começo tudo é ótimo, você inventa as aulas mais
criativas... Imagina que vai ser igual àqueles filmes americanos
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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onde o professor muda a vida da comunidade e todo mundo
chora no final. Mas a realidade é que depois a rotina te deixa
igual àquela sua professora vaca de matemática. Isso é a mesma
coisa quando dizem que você tem filhos e faz com eles a mesma
coisa que os seus pais fizeram com você. (Só acho que no meu
caso não vestiria meu filho de Elvis pro carnaval – dificilmente
vou me recuperar desse trauma, e até hoje não consigo usar
costeletas).
Foi num dia de sol desses que o calor chega a embaçar os
óculos da gente, que eu saí pra comprar tomate. Nada mais
tropical... Eu, raquítico e branco, do tamanho de um anão quase,
de regata e bermudas, passando pela rua das figueiras e entrando
no mercado que tinha a duas quadras da minha casa.
Gastei dez minutos olhando as tintas de cabelo e depois
pegando pelo menos uns quatro tipos de chocolate diferentes.
Sozinho e cheio de provas e trabalhos pra corrigir, além dos
cadernos de classe pra pôr em dia, tudo o que eu queria era a
companhia fiel do sempre amável chocolate pra me ajudar a
enfrentar essa labuta.
Pensando no molho vermelho que eu ia fazer no almoço - e
também no meu crediário da televisão nova - nem percebi que a
seção de frutas e verduras estava uma confusão dos infernos! Eu
ia levar horas pra conseguir pesar as coisas. E o tempo passou...
Estava ali eu e meu saquinho plástico, olhando distraídos
para trás, esperando a nossa vez, quando comecei a reparar no
menino que estava trabalhando na balança. Ele estava
conversando com a velha na minha frente, e tinha um maço de
cebolinha verde nas mãos... E vi ele me olhar. Não daquele jeito
de olhar desejando o outro. Simplesmente passou os olhos por
mim, só isso.
Uma vez eu lembro que tava saindo do dentista e a van de
entrega do mercado passou por mim. E esse mesmo menino tava
dirigindo e olhando pra alguma coisa. Eu fiquei curioso e olhei,
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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né, em volta pra ver o que era (tenho crédito de sobra pra
comentar a vida dos outros depois que a minha se esgotou na
boca do povo). Não tinha nada. Fiquei decepcionado.
Não sei por que cargas d’água justamente ali com o tomate
na mão eu fui querer pensar em ver ele com outros olhos. Ele não
tinha o menor jeito de gay!
Então esperei a minha vez, secando o rapazote.
Ele era o típico alemão: cabelo loiro arrepiadinho meio
moicano, pele branca e aparentemente carnuda; ele era um
tanto mais alto que eu e usava o uniforme medonho verde que
era impossível ser mais brega. Com aquelas calças de ginástica e
conjunto de camiseta, ele mostrava uma barriguinha leve e
convidativa que me chamou muito a atenção.
Todavia, na minha vez de pesar ele praticamente nem me
olhou, não disse uma só palavra, e em seguida já foi pegando as
coisas da outra pessoa na fila. De longe quando fui pegar pão,
pareceu que ele tinha olhado – só pareceu. Mas nessa hora já não
dei a menor bola e fui pro caixa, pra casa, e pro meu trabalho que
não me pagava as horas extras de escravidão fora da escola.
No dia seguinte dei as aulas das malditas sextas séries,
confiscando pelo menos seis celulares durante os períodos da
tarde. E antes de ir pra casa, exausto, fui pegar um suco ali no
“meu” mercado (me senti a atacadista agora) porque essa vida de
mestre tava acabando comigo. Encontrei umas aluninhas no
caixa, e tive que explicar pela centésima vez que o tema de casa
ia valer um ponto na prova, e finalmente fui lá nas geladeiras
catar a minha caixinha de marca. O menino não tava na fruteira
(conferi por curiosidade).
Assim que coloquei as coisas na passada pra pagar,
comecei logo a contar as moedas, pois sou quase pobre (salário
de professor né). Minha vontade seria derramar ali mesmo um
cardume de garoupas de notas de cem, mas... Na falta iam as
moedas de dez e vinte e cinco se somando até dar o valor que
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precisava. Eu devia estar com uma cara muito horrível porque a
menina abriu um pouco a boca e até bocejou, meio desgostosa
em me ver - isso que a pequena piranha foi praticamente minha
colega de aula quando na ocasião dos meus 15 minutos de (má)
fama.
Olhei o recibo porque tenho mania de sempre ver, dobrei e
guardei na carteira, e daí vi a mão larga com dobrinhas meio
rosadas colocando minha caixinha de suco na sacola plástica
verde. Era o garoto, aquele... Por sinal tão garoto quanto eu
exceto pelo fato de eu parecer senil uma vez que cada turma de
sexta série e cada TCC te acrescentam 1 e 5 anos de
envelhecimento precoce à sua aparência, respectivamente.
Voltei pela parte da praia pra ver o sol indo embora e
depois desse momento de bucolismo despropositado entrei na
minha humilde residência. Ali eu botei minha Katy Perry pra tocar
no computador e dei graças a Deus por ter corrigido todos os
acúmulos na noite anterior. Ia poder respirar um pouco e quem
sabe usar o Facebook como sonífero.
Tomei meu banho, botei meu shortinho de ficar em casa,
minha tradicional camiseta velha de escravo, e fui levar o lixo na
rua. A noite tava linda! Todas as estrelas do mundo estavam
aparecendo por cima da figueira gigante que tinha logo em
frente. Achei graça daquilo tudo... Lá fora não tinha som de nada.
Os quatro mil habitantes já deviam estar olhando novela ou
fornicando.
Nisso, parado e sonhador (fazendo a princesa), esqueci da
vida. Quando dei por mim, o garoto do mercado tava vindo pela
rua. Estampei na cara meu descontentamento e não saí dali na
hora pra justamente não parecer o antipático que sai na hora que
alguém passa. Revirei meus olhos.
Assim que ele chegou perto da minha casa, veio na direção
da grade do portão onde eu estava escorado.
- Oi... – ele falou.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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- Oi? – eu perguntei. Tipo... “Alô? O que você quer aqui?!”.
- Você esqueceu o troco! – ele deu um sorrisinho sem
graça.
Puta que pariu, de novo! Eu devia ter recebido um diploma
extra de bacharel em esquecer coisas em lugares públicos. Isso
uma vez me custou um celular recém-comprado com fotos
comprometedoras. Sorte que foi na cidade que me formei se não
ia ter outro momento de apreciação pública por ali.
- Bah... – eu falei – Que bom que você trouxe. Como sabe
que eu moro aqui?
- Eu não sabia.
- Como não? Então... – eu quis começar a saber.
Tarde demais!
Ele me puxou pelos ombros e me deu um beijo. Um beijo
quente e molhado, sem língua. Inesperado, surpreendente, um
acontecimento digno de uma cena de filme. A respiração
ofegante varrendo meu rosto.
Naquele momento, senti dentro de mim todas as garoupas
do mundo nadando desvairadas – notas de cem se derramando
num mar de valiosidade. Não precisava de mais nada...
Eu estava rico.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Ponte de Vidro
Eu não sei escrever, eu nunca soube.
Mas eu devo isso a ela.
O nome dela era Leandro. Eu era moleque de 13 anos
quando meus pais se mudaram pro Bairro dos Jardins, na Zona
Leste. Na época ela era um menino. Vivia com a avó, a mãe e uma
tia, todas com aspecto de pessoas transtornadas e grandes
olheiras hereditárias e escuras sob os olhos. Elas diziam que o
menino era parecido com o pai, que cresceria e seria um canalha
como ele, que tinha abandonado a namorada de três meses,
grávida, sem nunca ter dado um tostão a ela.
Pra nós, que ainda éramos quase crianças, tudo era ainda
pouco relevante.
Como sempre fui amigável, logo me enturmei na rua de
chão batido e muitas árvores. Naquela época tinham surgido os
primeiros videogames que eram ruins o suficiente pra enjoar
fácil. O negócio era brincar de esconder, polícia e ladrão,
futebol... E não sei se foi porque a gente era vizinho de casa, mas
eu fiquei bem mais amigo dela.
Às vezes os meninos zoavam o Leandro, comentando que
ela brincava de boneca com as meninas. Eu não me importava
com isso... E ela também não, tanto que continuava com a gente
e assim como zoavam dela, assim ela zoava deles, e no fim do dia
estava tudo bem.
Foi só no colégio que as coisas começaram a complicar.
O espaço entre o final do primeiro grau e do segundo (que
hoje são ensino médio e fundamental), deixou uma marca pesada
na vida dela. E nesse tempo de adolescentes já dava pra começar
a enxergar o mundo com outros olhos.
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A avó de Leandro era realmente a única mulher que tinha
alguma sensatez. Recebia uma aposentadoria e costurava pra
fora, junto com a filha mais velha. A mais nova - mãe da minha
amiga - não parava em emprego nenhum porque vivia bêbada.
Porres de dar pena do estado em que ficava. Porém, o mesmo
talento para vítima, ela tinha pra ser carrasca. Teve tardes de
estudo, que via várias vezes Leandro apanhar, ser chamada de
frouxo, de bonequinha, e levar cintadas.
Ela se defendia, dormia na minha casa. Uma vez ficou uma
semana inteira comigo e com minha família. O conselho tutelar
era uma realidade distante, e por isso ela estava presa às
dificuldades de sua casa. Não havia o que se fazer.
Meu pai aconselhou que ela estudasse, e que relevasse.
Um dia ia passar.
E afinal, os homens tinham que ser fortes.
Mas enquanto eu e a turma começávamos a sair, ir pras
festinhas, e eu ficar com as meninas, Leandro começou a ser mais
quieta e se isolar mais. Nunca ficava com ninguém. E os caras do
colégio detonavam a voz fina dela, o rebolado, o gestual. E eu
que nunca me importei com nada disso, realmente então me dei
conta do que nunca tinha percebido muito bem: Leandro tinha
mesmo jeito de mulher. Isso me pesou.
Comecei a evitar ser visto com ela, apesar de ainda
estudarmos juntos e sermos amigos fora do tempo de aula.
A avó de Leandro morreu de um infarto fulminante no
terceiro ano. O dinheiro dela não ficou pra ninguém, e daí a coisa
piorou porque a tia não tinha paciência com a irmã, e não admitia
o que falavam do sobrinho nas ruas. Tentou castigar, não
adiantou. Em seguida, como a mãe tinha se entregado pra vida
meio fácil, Leandro logo arranjou um emprego, e nessas andanças
foi parar de office boy pra um salão de beleza importante.
Num curto espaço de tempo ela começou a fazer as unhas,
comprar roupas mais justas e deixou o cabelo preto crescer. Às
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vezes eu tinha impressão que ela estava de maquiagem. Entrou
em uma aula de canto, que eu acho foi seu melhor investimento:
de fato, desde pequeno, lembro que Leandro cantava muito e
tinha um dom ali. Sua mãe batia na boca dela sempre que estava
cantando, porque o pai era um boêmio, e ela não podia vir a ser
igual ao cara que arruinou a vida dela com “um filho inútil”.
Na época em que eu perdi a virgindade e estávamos já no
fim do colégio, Leandro me visitou chorando numa noite. Contou
que na verdade o pai não era tão desaparecido assim, e um
punhado de vezes a mãe o obrigou a ir junto “visita-lo”.
Mesmo dizendo pras outras em casa que o odiava, ela dizia
que “precisava” dele e que o amava. Ele era casado agora, e se
encontravam num hotelzinho barato da cidade baixa. Leandro
cantava dentro do banheiro pra tentar não ouvir o que faziam no
quarto, com as mãos nos ouvidos, enquanto esperava aquilo
terminar. Em uma dessas vezes a mãe saiu porta a fora depois de
mais uma briga, e foi aí que o próprio pai abusou dela. Foram
cinco vezes em dias diferentes... Ela não tinha coragem de falar
pra ninguém, mas agora a mãe estava batendo nela pra tentar
obriga-la a visitar o pai de novo e ela queria sair de casa.
Aos soluços, confessou-me o que no fundo eu já imaginava:
“ele” era uma mulher por dentro. E contou que a cada ano que
passava, sentia-se como uma, e sofria porque estava no corpo
errado. Engoli a seco.
Ofereci um abraço.
Na época da universidade, eu entrei para o curso de
Engenharia Civil. Leandro saiu de casa e foi morar com uma amiga
do salão. Mesmo assim, como se sentisse dever alguma coisa, às
vezes ia até a Zona Leste e levava dinheiro pra ajudar a tia e
aproveitava para ver a mãe.
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A cada visita, embora eu também estivesse morando fora,
nas poucas vezes em que pude conversar com ela naquele ano,
vi-a se transformando devagar.
Nos raros encontros entre nós, contou-me das roupas
novas, das cartelas de anticoncepcional indicada por travestis na
noite, e de como os hormônios iam ajudar ela. Falava-me
animada do curso de francês e do amor pelos livros e discos
antigos. E me doía um pouco saber que ela não entraria no curso
de música, sua paixão, porque não tinha dinheiro e nem existia
possibilidade de bolsa na época para a instituição particular - na
universidade federal que eu estudava, não tinha esta área de
artes. Mesmo assim ela sorria, um sorriso raso.
Eu confesso aqui que apesar do apoio dos meus pais e
irmãos, Leandro era a única pessoa que realmente olhava meus
projetos da faculdade com olhos de admiração. Diferente de
todos, parecia que ela via em mim coisas que as outras pessoas
não viam.
Nas ocasiões em que eu contava das minhas namoradas,
mostrava algum novo trabalho, ou até ideias de trabalho, eu via o
sorriso que na infância era fácil, reaparecer ali em meio à sua
expressão crescentemente melancólica de agora. Chegava a
apontar e dizer o que achava dos detalhes, comentar o que
julgava poderia me ajudar e inspirar, sempre sem graça por se
achar ignorante ou inferior. Eu ria, porque não via as coisas desse
modo. Minha família não comentava nada sobre o fato de eu ser
amigo da falada “bicha da rua”, e tive sorte por minhas
namoradas nunca se importaram também, pois eu não a deixaria.
Leandro me contou que seu maior sonho era viver numa
casa de praia, igual vira num filme dos anos 80 na televisão. Era
uma família que morava em um tipo de ilha ao lado da cidade,
cheia de pontes numa vila charmosa e bastante europeia. Eu dizia
que ela ia precisar de mim, do meu serviço, se quisesse construir
todas aquelas pontes cafonas.
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E enquanto eu ia às festas da turma, tomava porres,
passava noites em claro estudando, ou viajava a congressos, eu
via em minha amiga um universo parado que de certo modo me
tranquilizava. Esse pensamento egoísta gostava de saber que ela
estava sempre lá, quando eu precisasse “voltar”.
No final do curso de Engenharia Civil perdemos bastante o
contato. Só sabia que agora tinha um nome novo: “Laila”, e que
estava se apresentando como cantora em boates alternativas.
Havia ficado com uns caras, que nunca passaram de alguns. E
certa vez que tocamos neste assunto, ela me disse chorando que
não tinha direito de enganá-los. Eles esperavam que ela fosse
apenas um homem travestido que transaria com eles ou então
realmente se iludiam achando que fosse uma mulher “de
verdade”. Não era uma coisa nem outra. Pra ela, sua vida era
amaldiçoada.
Quando me formei, ela não foi à minha formatura porque
não queria estragar a festa. Porém, foi dela que recebi o cartão
mais bonito de felicidades, e o mais sincero.
Da minha parte, eu também nunca fui vê-la se apresentar.
Sobre diversos assuntos mantínhamos um silêncio
respeitoso e de entendimento mútuo. Este era um deles.
Quando a tia de Laila morreu, em virtude de um
atropelamento, eu estava viajando e não acompanhei nada.
Estava formado há dois anos e tinha amigos do escritório de
construção que inclusive eram bi/homossexuais. Ouvia alguns
falando sobre Laila e sua música maravilhosa... Que ela se
apresentava em vestidos elegantes e sempre pretos, os cabelos
presos e luvas longas e escuras. Cantava ao vivo, nunca
“dublava”, com instrumental de fundo. Comentavam que era
fascinante. Quando eu disse que era amigo de infância dela, me
fizeram prometer de um dia leva-la a um de nossos churrascos e
encontros.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Infelizmente, em questão de meses, sua luz foi se
apagando.
Ela mantinha um pequeno apartamento no centro, que eu
não conhecia, e agora se esforçava para sustentar a casa em que
a mãe ainda vivia - aquela que a essa altura já nem saía senão
para comprar cigarros e bebidas. Do pai jamais quis ter qualquer
ajuda ou novo contato além daqueles, os quais tinham sido
suficientes para carregar marcas e decepção pelo resto da vida.
Era difícil saber que Laila não era mesmo uma mulher. Os
seios pequenos, o cabelo longo e preto bastante volumoso... Até
um pouco de quadril a natureza lhe tinha dado de nascença. E
ainda assim, por mais que tentasse, não conseguia ser feliz.
Os hormônios, as roupas, a música, não a libertaram.
Na época em que terminei meu noivado, afastei-me das
pessoas e me joguei no mundo do cálculo estrutural, da
resistência dos materiais, tipos de fundações, armaduras,
concreto armado. E só depois de semanas, meses, saindo do
mergulho total em meu serviço, lentamente comecei a pensar em
minha família, amigos, e em especial na minha amiga, notando
sua ausência... Sentia sua falta, por isso a convidei para ir comigo
ao cinema numa certa noite. Estava precisando esquecer os
problemas e relembrar os velhos tempos... Não com colegas e
conhecidos, e sim com quem realmente acompanhou minha vida
e sabia, por exemplo, que eu tinha mania de tomar café sem
açúcar, fechar a torneira duas vezes, ou tinha quebrado um galho
com meu peso e com isso ganho uma fratura no braço esquerdo.
Diferente das outras vezes que saiu comigo em público,
Laila estava usando suas roupas femininas – sempre pretas. Tinha
os olhos curiosamente molhados e, durante o filme, chorou
talvez mais do que o suficiente diante das cenas. Imerso na
história, eu não esperava que quando Laila saísse para ir ao
banheiro ela não voltaria mais. Constatei que algo estava mesmo
errado quando virei no acender da luz e em seu lugar havia um
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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pequeno pingente de vidro, o qual costumava usar preso a um
brinco – o item de “menina” que foi a primeira coisa realmente
de mulher que tinha usado na vida, aos quatorze anos.
Meu irmão mais velho contou que um dia “a vizinha louca”
tinha sido removida para um leito hospitalar num hospital
psiquiátrico. Doeu bastante ver que a placa de “aluga-se” estava
fixada ali em frente ao muro baixo onde comíamos laranja na
época em que a fruta aparecia pra nos alegrar. E sabia que
quando fosse à casa de meus pais, ali não seria mais o lugar de
Laila. Era passado agora, como o nome Leandro e as bonecas das
amigas; como o chão de terra da rua, sepultado sob a manta de
asfalto escuro. Eu não tinha mais para onde voltar.
Sem conseguir parar de pensar nela, eu fui ao tal
apartamento. Abriu-me a porta espantada e fechou-a no mesmo
instante em que me viu. Pedi que abrisse... Insisti, na verdade.
O local estava virado num amontoado de coisas antigas,
maquiagens e peças de roupa. Fazia mais ou menos duas
semanas que ela não conseguia sair de casa. Havia cortado por si
mesma os próprios cabelos bem curtos. As roupas de “homem”
que estava tentando usar pareciam realmente impossíveis de
combinar com seu corpo. Estava tentando voltar a ser Leandro,
ou melhor, a virar um Leandro que nunca existiu, e estava ridícula
daquele jeito... Nunca, em todo o tempo que convivemos, senti
tanta aversão instintiva quanto naquele momento em que a vi
tão distante do que realmente era. Acho que ela entendeu isso
somente pelo meu jeito de olhar, pois começou a chorar. Oferecilhe o abraço de sempre.
Laila confessou que queria morrer porque tinha certeza
absoluta que jamais seria capaz de ter uma vida normal, de ser
feliz como as outras pessoas conseguiam ser mesmo por breves
instantes. Confessou que não conseguia mais cantar. E que
naquele dia no cinema só aceitara me ver porque queria se
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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despedir, porém não teve coragem e deixou o pingente como
uma recordação, um presente de despedida.
Levantei seu rosto... E sem querer meu coração bateu mais
rápido. Não sei o que deu em mim, mas simplesmente limpei
suas lágrimas, como fiz algumas vezes às meninas e mulheres que
tive. Fiz menção de beijar o rosto dela, do meu melhor amigo de
infância, a mulher mais delicada que conhecera até ali. Ela,
assustada, afastou-me com força. Olhamo-nos surpresos por
alguns instantes, e depois pedi perdão. Esquecemos.
O meu coração não.
E isso começou a me perturbar nos dias seguintes.
Três semanas depois, quando fui resolver um problema no
escritório da filial, passei por acaso diante de uma famosa boate
LGBT da minha cidade. Naquela noite, fiquei na fila enorme só
para poder ver a moça anunciada no cartaz... Meus amigos
estavam genuinamente felizes por acompanha-los, e pra ser
sincero eu não me incomodei como pensava que iria, com o
ambiente ou em ver caras se beijando, ou meninas. Preferi ficar
de costas no bar, escorado ao balcão, separado do palco por uma
multidão de gente dançando e depois aguardando na escuridão
em expectativa. Vi quando a luz iluminou-a e tudo ficou em
silêncio. Laila ia cantar, mas sua voz não saiu, embargada pela
emoção. Anunciaram antes que entrasse no palco, que esta seria
sua última apresentação. Se cantasse, seria o canto do cisne. Eu
queria enormemente vê-la cantar, mas diante disso eu bem no
fundo torci para que não conseguisse, por ela, porque não queria
que fosse a última vez.
Contudo, ela conseguiu, e cantou...
De uma maneira que jamais vi igual, impressionante!
Fui embora sem que ela soubesse que eu estive lá.
Laila se mudou no outro dia, e rompeu o contato comigo.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Um dia ao sair do trabalho, parei no sinal fechado. A luz do
fim de tarde refletiu em algo no console do carro, atingindo
minha visão em cheio... Franzi a testa e logo localizei o pingente,
que eu carregava sempre comigo. Peguei-o, brilhando em minhas
mãos, e por um minuto eu não estava no trânsito e sim na nossa
vizinhança, brincando de esconder. Ouvi as buzinas reclamando e
logo acelerei de novo. Eu, que só havia chorado poucas vezes
quando era pequeno, tinha uma lágrima escorrendo pelo meu
rosto.
O mundo em meu lugar havia construído pontes para Laila,
pontes de vidro, finas demais e incapazes de suportar sem
quebrar o peso de sua vida. Em sua ilha, estava sozinha, sem ter
como sair, sem ter como alguém entrar.
Numa chuvosa tarde de inverno no ano seguinte eu saía da
casa dos meus pais depois de uma visita, quando vi uma mulher
parada olhando para a casa velha do lado. Parei e pus a mão em
seu ombro. Ela olhou para mim com seus longos cílios, seus olhos
imaculados, e sem dizer nada me concedeu um sorriso triste. Sua
mãe tinha morrido e o preto estava finalmente justificado.
Conforme busquei sua mão, entrelaçando meus dedos aos
seus, frios, ela baixou o rosto e em silêncio a puxei para ir comigo
até o meu carro. Então a beijei. Se Laila descobrira ser mulher
ainda cedo, foi apenas naquele instante que eu tive certeza de
me sentir homem.
Descobri o que era o amor naquele sábado de chuva.
E depois, Leandro e Laila desapareceram.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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A Fantástica Lésbica de Taba-K
Planeta Taba. Setor K. Mika.
Cabelos curtos e roxos, roupa espacial colada em branco
numa minissaia interessante, pistola para emergências, e
maquiagem (claro). Mika nasceu com o destino de se tornar uma
exploradora - uma das complexas ocupações niveladas pelo setor
K do planeta. Aquele era um mundo peculiar onde apenas
mulheres existiam e conviviam em harmonia sob o comando
daquela conhecida como “Orientadora”.
Tudo corria tranquilamente: naves indo e vindo, cuidados
com os campos, desenvolvimento de novas tecnologias. No
planeta Taba todos os setores trabalhavam pelo contínuo
aprimoramento da tecnologia e da natureza. Exímias cientistas,
as engenheiras do setor E há muito dominaram todo o processo
de mapeamento e manipulação genética. Por esse motivo, em
algum momento já há grandes idos dos milênios, os homens
foram condenados à extinção – não que isso tenha gerado um
genocídio; por argumentação lógica aceitaram, e foi uma questão
de tempo até que eles se desmaterializassem por desgaste
natural do corpo (um modo muito saudável de morrer: indolor,
eficiente e tranquilo).
Mas numa manhã do décimo mês, o alarme mundial soou.
Esse alarme só havia tocado uma vez em toda sua história.
Mulheres de todos os setores, e mesmo aquelas em viagens
exploratórias, diplomáticas e de estudo, pararam imediatamente
suas atividades à espera de comandos do setor A – responsável
em repassar os pedidos da Orientadora.
Acontecera uma tragédia que se intercruzaria à vida de
Mika!
Os nascimentos em Taba eram produzidos por efeito de
um processo chamado “combinação gênica”. O material genético
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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das duas mães, às vezes três ou mais, eram combinados e mais
tarde produziam um embrião gerado artificialmente. Por efeito
de avançada tecnologia, o equipamento conseguia não só gerir o
feto, mas sintonizar a consciência que o animaria e assim as mães
podiam conversar com as futuras filhas, antes que nascessem.
Claro, apenas em algumas ocasiões que não prejudicassem o
desenvolvimento do pequeno ser. A geração de filhas era uma
tradição familiar em Taba.
Porém, a Orientadora atual havia entrado em processo de
desmaterialização. Isolada em uma câmara especial para retardar
isso ao máximo, o alarme foi ativado porque era preciso
encontrar uma possibilidade genética equivalente ao corpo da
atual líder, para iniciar a rematerialização de seu envoltório físico.
Uma vez que não havia sido gerado um novo embrião passível de
vir a ser Orientadora, e pelo Banco Mundial de Genes, não seria
possível gerar um com base na população atual, essa era a única
solução temporária possível. Até porque as mães originais da
Orientadora já não existiam mais e o DNA sintético não
sustentava energia vital suficiente para criar um corpo.
Logicamente, as engenheiras não brincavam em serviço:
elas já haviam pesquisado e os resultados indicaram Mika e sua
companheira Mina para a honra de perpetuar a existência da
líder. Era a única possibilidade.
Todas ficaram aliviadas ao cubo.
Não durou muito.
Enquanto tudo isso acontecia, Mina – que era loira e
pesquisadora do setor F - estava trabalhando na exploração de
minérios de um planeta afastado e acabou se expondo por
acidente a uma pesada radiação. Isto produziu alterações
profundas instantâneas em ligações-chave de seu material
genético que o inviabilizariam de ser suficiente para contornar a
tragédia planetária. Aquela porção danificada do código
precisaria ser encontrada em algum lugar!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Mika foi chamada em missão ao Alfa-Ômega, a capital, e lá
lhe foi confiado sua destinação, até então desconhecida.
Intrigada, ordenaram-lhe então que partisse em direção à Terra,
um planeta no sistema solar vizinho a elas e cujos dados
indicavam abundância de material orgânico símile aos de seu
planeta – isto é, humanos. Mika ficou irritadíssima!
O planeta Terra era conhecido nas aulas de exploração
como a “lixeira da via láctea”.
Qualquer criança do setor K sabia e fazia piadas sobre isso,
e a situação dos seres da Terra era tão pouco evoluída e precária
que a Aliança da Galáxia impediu que os terráqueos pudessem se
comunicar ou visualizar quaisquer formas de vida fora de seu
mundo – inclusive nos planetas próximos. Com isso, não raro as
engenheiras de Taba se deliciavam em adulterar todas as
informações captadas pelos rudimentares equipamentos
espaciais dos terráqueos que eram lançados em órbita, tudo para
isolar “a lixeira” de qualquer recepção de sinais de via
extraterrena.
Aqui ou ali, timidamente, ainda se permitia que
recebessem visitas de reavaliação e então aconteciam
avistamentos. Normalmente sinais nas plantações eram enviados
como testes de inteligência e receptividade, todos sempre
burramente interpretados e calorosamente atestados como
fraude. Não houvesse misericórdia no Universo a Terra já teria
sido varrida. Mas se sabia que isso já estava encaminhado... Seria
mais fácil limpar a atmosfera depois do fim da civilização terrena
do que educar um bando de ignorantes.
E afinal, ordens eram ordens.
Mina ficou preocupadíssima com a partida de Mika, mas
poderiam ainda se comunicar pelos dispositivos portáteis. E
revirando os olhos, a moça de cabelos roxos embarcou em sua
nave e se dirigiu à Terra, onde localizou uma cidade apta à
descida. Preparou-se para a noite, pesquisou um pouco sobre a
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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arquitetura local, deixou a nave oculta no céu e desceu. Tão logo
respirou o ar do planeta, sentiu o peso da poluição. Mas até que
enfim uma boa notícia: matéria orgânica abundante que
praticamente entupia o ar e as lixeiras que existiam na cidade.
Localizou um lote vago e implantou ali uma pequena
caixinha, o famoso “organizador de matéria programável”. É
claro, programado para criar uma bela casa de paredes amarelas
e um jardim viçoso. Com espantável rapidez, o aparelhinho
“imprimiu” o pedido em questão de meia hora – móveis inclusos.
A noite foi dura, com pouco tempo para estudar o
comportamento dos cidadãos. O localizador gênico foi ativado e
sua varredura confirmou a excelente investigação prévia: um
rapaz de dezessete anos, estudante do secundário. Ele era o alvo.
Na manhã seguinte, como aluna disfarçada, Mika estava
matriculada e pronta para frequentar as aulas de Gustavo.
Seguiu-o por toda parte antes do início dos períodos. Assim que o
sinal foi dado, e o professor entrou em sala, por instinto Mika se
ergueu com a mão posta para frente e fez a “Saudação à Aliança
da Galáxia”! Todos riram e ela ficou imediatamente conhecida
como nerd da turma.
O que mais provocou o ódio dela era não apenas que
ninguém conhecesse a saudação, mas a terem achado ridícula.
Teve vontade de abrir sua mochila e atirar em todos, mas ficou
quieta. Os presunçosos da Terra acreditavam mesmo que não
existia vida fora dali e isso era insuportável. Uns metidos!
O dia todo Mika procurou fazer contato com Gustavo, que
se esquivou da pessoa mais esquisita que ele já tinha visto.
Porém, com satisfação, ela começou a notar que as garotas
terráqueas eram muito bonitas. Também pôde observar de perto
dois fenômenos que só conhecera na teoria: o envelhecimento
celular, impossível de não acontecer nas condições atmosféricas
dali, e a gravidez natural – algo do qual sentiu uma absoluta
repulsa, mas parecia comum entre adolescentes incautos.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Conversando com a equipe de saúde do setor N, foi
resolvido que Mika deveria seduzir Gustavo. Porém - e sempre
havia um maldito porém - ele era apaixonado e estava prestes a
namorar com Vica, uma rapariga ruiva do último ano. Era preciso
separá-los e convencer Gustavo a participar de uma viagem para
coleta... Ou então, precisaria de um Plano B bem menos louvável
que passou por sua genial, e maliciosa, mente.
Na saída da escola, a moça espacial o esperou. Ele
concordara em conversar e ela revelou toda a história pra ele.
Coçando a cabeça (oca) de cabelos cor de amêndoa, ele riu e
perguntou se Mika fazia algum tipo de tratamento psiquiátrico ou
estava treinando para eventos de cosplay (ela teve de procurar o
termo no comunicador). Ao entender a ironia, puniu o audacioso
idiota com um belo tapa na cara. Desnecessário dizer que as
tentativas de soluções diplomáticas estavam oficialmente
encerradas ali.
Na mesma noite, Mika entrou pela janela do quarto de
Gustavo. Era madrugada... Certificou-se de trancar a porta, e
depois se dirigiu ao menino que dormia. O quarto era organizado,
mas o cheiro de homem era repugnante. Ela já havia visto
modelos deles, mas nunca um de perto, nem em outros planetas
que visitara onde existiam criaturas afins. Aquele ali, certamente
era um dos piores exemplares.
Pegou a pistola, apontou à cabeça de Gustavo e puxou o
gatilho. “Fu!”, fez a arma. Um pó azul e cintilante caiu e
imediatamente foi aspirado por ele.
Alguns minutos, e ela então retirou o cobertor e virou-o de
barriga para cima. Arriou as calças, puxou a cueca e olhou para a
parte que o sol não costuma tocar. Era com imenso desgosto que
iria fazer aquilo, mas repetiu a si mesma que era em nome da
salvação de seu planeta. Seria a masturbação que impediria toda
sua raça de ir à decadência!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Sem a luva, tocou o órgão genital movimentando-o de cima
para baixo (encontrou instruções sobre isso no Manual do
Homem, um arquivo que foi obrigada a consultar). Gustavo
gemeu e Mika revirou os olhos... Conforme foi ficando em ponto
de bala, pegou um tubo transparente que armazenaria o
esperma. Para sua surpresa, o órgão não mudou muito no
tamanho. Conforme o rapaz dopado suava e seu corpo produzia
espasmos, ele abriu a boca, a expectativa no ar, gemidos mais e
mais fortes!
- Porra! O que é isso?! – ele gritou de repente.
Deu um pontapé instintivo que jogou Mika na cadeira do
computador.
- Eu quero seu esperma! – ela gritou.
- Você tá louca, vou chamar a polícia agora! De novo com
isso! Como entrou aqui?
Ela foi até ele e apontou sua arma.
- Fica quieto... Podemos fazer isso do jeito mais difícil ou
mais fácil. O mais fácil é eu pegar seu material genético, e dar o
fora daqui. E é isso.
- Por que não podia ser um fio de cabelo, saliva? Por que tá
fazendo isso? – ele escondeu o órgão genital.
- Seu burro! Vocês são todos uns burros! Não são só
elementos químicos que compõem o melhor material para dar
origem à vida... Nesse seu esperma há elementos próprios
organizados numa vibração específica pela sua alma estúpida,
que precisa ser usado para gerar ela. Então se você preferir, faz
você mesmo logo isso nesse seu trocinho ultrapassado!
- Nunca! Sai daqui! Mãe, pai! – ele começou gritar, e
depois falou baixo e com raiva – Meu pau não é ultrapassado e
você estava gostando de mexer nele, eu vi!
- O quê?! Ora seu moleque!
Mika não se segurou, avançou e lhe deu um tapa... Gustavo
atônito com tudo aquilo devolveu o tapa e começaram uma
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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lutinha patética. As batidas na porta começaram. Pararam ao
mesmo tempo olhando na direção do som.
- Você vai se ferrar, sua louca! – ele falou baixinho,
tentando se arrastar enquanto ela o prendia pelos pés e desviava
dos chutes.
- Se você abrir a porta, eu conto que você tirou zero na
prova de inglês e levou uma assinatura falsificada para o
professor.
Bingo.
- Como sabe...
- Eu filmei, homenzinho! – ela falou e fez sinal para o órgão
genital do menino.
- Sua... – não completou a frase.
A moça se levantou, saiu correndo e pulou pela janela. Um
clarão fez com que desaparecesse dos olhos dele. Mika voltou à
nave e comunicou todo o ocorrido para suas superioras, que
lamentaram o incidente. A despeito da boa intenção dela, era
preciso que o terráqueo produzisse material genético consentido
com as oscilações energéticas próprias do prazer, ou tudo aquilo
seria em vão. Até o momento, apesar do exaustivo rastreamento,
nenhum outro planeta com humanos oferecia material específico
de que precisavam, e a Organizadora já estava ficando com o
corpo translúcido. Ademais, a burocracia era clara, portanto sem
autorização da alma terráquea doadora, não seria mesmo
possível transportar aquilo para Taba – era uma lei da Aliança e
ainda mais forte em se tratando do plano físico da Terra. O
respeito à integridade não podia ser rompido nem pela melhor
das intenções.
Mika tinha se esquecido desse detalhe no seu plano B.
Simplesmente não acreditava que isso estava acontecendo.
Ela foi pra sua casa base, deitou na cama e deu socos no
colchão. Se não era possível seduzir Gustavo, então ela seduziria
sua namorada, e aí seria mais fácil conquistar a simpatia de
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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ambos. E também, se conseguisse gerar um momento de
provocação sexual entre os três, deixaria o rapaz mais propício a
concordar e até mesmo realizar o ato por si mesmo. Quer ele a
achasse louca, ou não.
É claro, Mina aprovou a ideia em nome da continuidade de
sua nação e ficou muito animada. Então a exploradora uniria o
útil ao agradável, exceto pela parte masculina da equação.
Mas isso é uma outra e fantástica história.
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Diário de Camila
Segunda-feira, 13 de fevereiro.
Querido diário! Hoje as aulas começaram e eu tive que ir
pro colégio com a falsa da Karine (eu não suporto ela)! Ela se
acha muito só porque usa calça 36. Um dia vou enforcar ela com
minha bandeira 42. Ela vai ver só! Puta! Odeio a oitava série,
odeio!
Terça-feira, 14 de fevereiro.
Não aguentava mais de vontade de escrever porque
quando cheguei no colégio dei de cara com o Bernardo, o menino
novo da turma. Ele é loirinho e parece o Justin Bieber! Fiquei
louca pra conversar com ele, mas eu nunca tenho assunto! A
Jéssica minha BFF finalmente voltou das férias na Disney e eu fiz
ela prometer que vai me ajudar. Tiramos fotos fazendo beicinho
usando o chapeuzinho com orelha do Mickey que ela trouxe pra
mim! Tô doida pra postar no Face! Todo mundo vai se rasgar de
inveja! Huahuahua!
Sexta-feira, 17 de fevereiro.
Tô tão irritada que eu podia partir esse computador no
meio. Porra, tá todo mundo me chamando de rata no colégio
agora por causa da foto no Face! Vai tomar no cu! E ainda por
cima a Karine foi fazer trabalho de dupla com o Bê! Ele não
conhece ela! Ele vai se dar muito mal eu tenho certeza! Já pedi
pra Jé abrir os olhos dele!
Quinta-feira, 23 de fevereiro.
Não tinha quase ninguém no colégio porque todo mundo
foi pro carnaval. Eu odeio carnaval! Mentira! Gosto tanto que me
pintei de têmpera antes de tomar banho e fiquei sambando pra
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imitar a vinheta da Globeleza! Meu pai chutou a porta e me
xingou de louca. Aqui nessa casa a gente não pode fazer nada que
sempre tem um recalcado pra estragar tudo! Mas a notícia boa
foi que o Bê tava sozinho e eu tomei coragem e fui falar com ele.
A notícia ruim é que eu tava tão envergonhada que eu fiquei
vermelha e me engasguei, ele começou a bater nas minhas costas
e todo mundo riu de mim perguntando se eu tinha me entalado
com um tijolo de queijo só porque acham que eu sou gorda e
porque agora sou rata também! Saco!!!
Sábado, 25 de fevereiro.
Eu e a Jé saímos pra ir no shopping porque eu precisava
muito comprar a Capricho desse mês. Aproveitei e olhei 32 cores
de esmaltes diferentes e não comprei nenhuma. Quando a gente
tava indo pro Mac, eu vi ele! PERFEITO! Tava conversando com os
menininhos emos que devem ser amiguinhos dele. Eles tavam
tomando Coca-Cola Zero! Eu acho Zero muito ruim, mas se for
pra ficar com o Bê eu tomo até Fanta Uva!
Domingo, 26 de fevereiro.
Notícia urgente! A Jé conversou com a Karine puta pelo
Skype e ela falou que tinha ficado com o Bê. Tô super
desapontada, mas não vou deixar aquela desgraçada me ganhar.
Quarta que vem de tarde ela vai ver só na educação física. Vaca!
Quarta-feira, 29 de fevereiro.
Assinei uma advertência. Tudo porque na hora que a gente
tava jogando vôlei eu fui dar uma cortada e acabei acertando a
Karine (adoro!). Ela chorou, e eu ri tanto que acabei peidando
sem querer! Vergonha! Sorte que ninguém ouviu... Ainda fiz
questão de passar por ela e abanar a minha calça pra ela ficar
intoxicada. Tô muito poderosa! PRE-PA-RA!
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Segunda-feira, 5 de março.
Na hora da saída o Bê falou comigo... Tô louca por ele!
Fiquei pensando na gente casado e eu acho que ele gosta de
mim. Ele disse que o meu esmalte cereja é o mais bonito que ele
já viu. Falou que a gente tipo precisa muito estudar junto essa
semana! Eu já tô pronta pra pegar aquele corpo! Segura peão! A
rata vai fazer a festa! No final da aula a falsa voltou comigo.
Sexta-feira, 9 de março.
Cacete, hoje na aula fizeram a gente assistir um filme idiota
porque a professora de português faltou porque de certo passou
a noite dando a pomba e esqueceu da hora! Sentei do lado do Bê
antes que a Karine sentasse e eu tivesse que sentar em cima dela
e quebrar ela toda. Odeio ela, agora todo dia ela acha de vir
comigo pro colégio. O Bê chegou a chorar vendo o filme. A Jéssica
disse que é só eu querer que ele já é meu!
Domingo, 11 de março.
Minha mãe não podia inventar reunião de parente aqui em
casa num dia pior! Era hoje que o Bê vinha aqui em casa, e agora
tenho que aguentar meus primos chatos mexendo nas minha
coisas e no meu computador. Eu juro que eu vou sair de casa e
nunca mais vou voltar, eles vão se arrepender de ter feito isso
comigo!
Terça-feira, 14 de março.
Já anunciaram o show de talentos e eu tô cheia de ideias
porque sou MUITO artística. Tô pensando de convidar o Bê pra
encenar uma cena do Crepúsculo comigo. Só não sei se quero ele
de Edward ou de Jacob! Eu sou muito a Bella, nossa! A Jéssica
disse que me ajuda porque ela conhece tudo da saga! Eu amo
ela!!!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Quarta-feira, 15 de março.
O Bê me ligou e pediu se o Roberto podia participar, ele
ficou de fora de todos os outros grupos e é o melhor amigo dele.
Eu deixei, claro! Já pensei de ajeitar ele pra Jéssica, e daí a gente
pode casar os quatro juntos. Minha madrinha hoje teve aqui em
casa e falou que eu tô comendo muito... Fiquei triste, mas depois
eu vim pro meu quarto e devorei a barra de chocolate que eu
tinha escondido na minha gaveta das calcinhas. Homem gosta é
de carne!
Sexta-feira, 17 de março.
Hoje eles vieram e a gente ensaiou. O Bê quis ser o Edward
porque ele é mais bonito e deu a ideia de usar purpurina na pele
no dia. Ele é artístico que nem eu! Já o Rô tava tímido... Ele pediu
se podia ficar sozinho com o Bê no meu quarto pra se acalmar.
Não perdi tempo e fui na locadora tirar Amanhecer pra gente
assistir junto.
Sábado, 18 de março.
Os meninos não vieram aqui em casa. Fui descer a escada
correndo e a minha calça rasgou atrás... Meu irmão ficou me
chamando de cu de canhão. Peguei uma fôrma de gelo e saí
correndo atrás e enfiei na calça dele. Ele chorou muito e meu pai
me botou de castigo. Não consigo parar de rir! Sou uma diaba!
P.S.: Fui atualizar meu relacionamento no Face pra
“amizade colorida” e vi que o Bê tava postando umas fotos dele
do book que a minha sogra deu pra ele. LINDO!
Sexta-feira, 23 de março.
Caralho! O nosso teatro foi o melhor e mesmo assim a
gente perdeu pra Karine que fez a gaiola das popozudas com as
amigas dela. O Rô disse pra mim não chorar e me deu um abraço,
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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e depois abraçou muito o Bê que não se aguentou e chorou.
Aquela putinha falsa vai ver só na próxima educação física!
Quinta-feira, 1 de abril.
Hoje é dia da mentira. Aproveitei pra falar pro Bê que eu
era a fim dele porque se ele não quisesse nada eu dizia que era
mentira porque sou esperta. O Rô chegou antes e fez a mesma
brincadeira, quase morri de rir. O Bê disse que vai pensar no que
eu falei, mas que ele tem uma coisa pra me contar amanhã.
Convidei ele pra tomar banho de piscina na minha casa!
Sexta-feira, 2 de abril.
Veio o Bê, o Rô e a Jé. O Bê me chamou no quarto e eu
achei que ele ia me beijar, mas ele ficou louco quando viu minha
Barbie Daphne do Scooby Doo. Ficamos brincando e ele pegou na
minha mão várias vezes. Depois a gente desceu pra piscina. O Rô
precisou ir no banheiro e pediu pro Bê levar ele, e a Jé me contou
que viu o pinto do Rô sem querer! Morri!
Quarta-feira, 2 de maio.
Jurei que nunca mais ia escrever! O Bê me convidou pra ir
na casa dele umas semanas atrás e começou muito mal: ele me
ofereceu Fanta Uva. Mas meu amor por ele era tão forte que eu
tomei. Depois ele me levou pro quarto e mostrou o DVD da Lady
GaGa que recém tinha chego pra ele. Eu tava curtindo tanto,
quando ele virou pra mim e disse que ele é gay. Eu fiquei muito
puta! Fui pra casa correndo e rasguei a foto dele, e depois excluí
ele do Skype e bloqueei no Face e não segui mais no Twitter e
apaguei o Instagram dele dos meus favoritos. A gente ficou sem
falar! Super NÃO CURTI isso! Daí depois de um tempo ele me
disse que era mentira da Karine que eles tinham ficado. Hoje eu
na educação física fui chutar a bola e torci o pé. Odeio educação
física! Odeio os frios, esses vampiros gays malditos!!!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Quinta-feira, 3 de maio.
Tô super feliz. Fiz as pazes com o Bê e ele saiu depois da
aula comigo e com a Jé pra ir no shopping. O Rô apareceu, e o Bê
me falou no ouvido que o Rô é super a fim de mim. Eu sempre
soube que a Bella tinha que ficar com o Jacob! No final da tarde
ele me deu um sorvete e eu falei obrigada e ele falou que queria
uma coisa em troca e me pediu um beijo!
Sexta-feira, 4 de maio.
A Karine apareceu com um moletom de pelúcia preto e a
bandida da Jéssica apelidou ela de macaca (adoro)! LOL! (6)
Sábado, 6 de maio.
Querido diário! De tardezinha eu tava comendo sorvete e
daí abri o Face e o Rô disse que tava com saudade. Oin! Ele me
confessou que é bi e quis saber se eu queria namorar com ele, e
se eu deixava o Bê namorar com a gente... Aceitei na hora!
Sempre achei que a Bella tinha mais era que aproveitar e pegar
geral, passar muito o rodo. BFF gay foi a melhor coisa que
aconteceu na minha vida! O Bê disse que a Karine macaca mora
num cabaré-árvore do Avatar! Eu AMO os gays!!!
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Rafael Nova, 2013.
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A Batalha de Campos
Jeito de mulher arrogante, prepotente, com direito a faixa
de Miss Vaca Universo.
A preocupação maior de Paula era se manter com as unhas
aparadas para não ferir as parceiras num momento de maior
emoção, e pelo mesmo motivo portar sempre dentro da bolsa
algum objeto passível de ser utilizado como arma. Era como se
diz por aí, uma “fancha de respeito”... Dessas lésbicas de
categoria com quem não se deve mexer e nem brincar,
espirrando fogo pelas ventas quando fosse necessário.
Ela namorava uma mocinha mais feminina e considerada
de pouca confiança. Neila, como era conhecida, já gozava em sua
curta vida de 18 anos de uma fama quase internacional de
corrimão de escada – todos colocavam a mão (entre outros) nela.
Porém, na manhã em que estava saindo de uma loja, Paula
passou um lenço em sua pele negra para retirar um pouco do
suor e sentiu um tipo de intuição nefasta. Imediatamente o
aparelho celular tocando mostrou “Fernanda Chamando”. Não
pensou duas vezes e atendeu, enquanto desfilava seu terninho
feminino embalado pelos estalos do salto agulha Dolce &
Gabanna sobre a calçada de nobre região no centro.
- Paula? É a Nandona. Senta.
- Que foi, Nandona? O que manda?
- Tua mina recém entrou com a Vera no motelzinho que
tem aqui no mercado público de Campos. Se eu fosse você vinha
agora pra cá – falou, a voz grossa em tom de alerta.
- Contou isso pra mais alguém? – queria se certificar.
- Claro.
- Ótimo. Em 10 minutos eu tô chegando aí.
Enterrou o pé no Renault quase saído da fábrica, e
ziguezagueou atrevida pelas ruas da cidade. Os palavrões que
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ouvia por trás dos vidros escuros eram música nos seus ouvidos
gelados pela força do ar condicionado. Contudo, seu sangue
estava fervendo!
Vera era sua pior inimiga. Executiva rival, desafeto das
saídas nas melhores boates... Havia uma constante luta contra
essa vagaranha venenosa, cujo nome provocava revirar de olhos
e torcidas de boca em pelo menos metade da comunidade lésbica
local. Sua (má) reputação lhe precedia onde quer que fosse, mas
ela tinha seus contatos. Era dura na queda.
Estacionou, saiu com seus óculos escuros e se misturou na
multidão como se isso fosse possível. O longo rabo de cavalo caía
liso sobre suas costas.
Em pouco tempo chegou à barraca de verduras e legumes
de Nandona. A amiga era gorda e usava um colete curto de brim
sobre a camiseta branca desgastada. O suor lhe corria pelos
braços brancos e inchados, recheado com tatuagens sugestivas
no lado esquerdo. Os cabelos caídos e lisos lhe deixavam com um
ar de Patty Pimentinha das tirinhas do Snoopy, contudo com
consideráveis quilos e anos a mais.
Espiaram ao mesmo tempo para os lados.
Tânia Perigo chegou com ar decidido... Ladeada por
Claudete Trovão (caminhoneira das antigas), e até mesmo pela
pequena, porém eficaz, Ladina Dedos. Paula assentiu com
semblante grave, a banca foi fechada, e se encaminharam para a
pocilga de 20 reais a hora. Era nauseante saber que a cadelinha
que esteve ainda ontem em sua cama de lençóis de linho egípcio,
agora devia estar rolando no algodão vagabundo daquele antro.
A sorte estava com elas: a boa e velha travesti Sheila
estava de turno na recepção. Ela entendeu a jogada e logo fez
que nada viu, distraída com sua Fazenda Feliz no falecido Orkut.
No corredor estreito e cheirando a mofo a única porta
fechada era a de número 6.
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Nandona abriu os braços como se fosse uma águia pronta
para o voo e depois num grito agudo digno da ave de fato voou e
arrebentou a porta ao meio com a destreza de uma artista
marcial. Cacos de madeira voaram por todo lado, enquanto o
esquadrão entrou chefiado por Paula, que logo berrou “que porra
é essa?!”.
A porra era Neila com cara de chapada, provavelmente de
tanto dar todas as suas partes à tutela orgástica de Vera, que
deitada de barriga pra cima, exibia sua falta de seios e o cabelo
curto suado grudado na testa, enquanto ainda gemia e usava
seus braços para fazer sua vadiazinha gemer sem sentir dor. Uma
cena digna de um belo filme ou site pornô, capaz de render
milhões de acessos, dinheiro, e inveja.
Mas aquilo era nada perto da astúcia da ousada Paula.
Os olhos arregalados das duas traidoras foram pouco perto
da fincada de salto agulha que meteu na perna estirada e
musculosa de Vera. O esguicho de sangue foi instantâneo assim
como seu curvar de corpo e o modo como jogou Neila – por
reflexo, porém merecidamente - sobre a mesinha de canto, onde
quebrou um vaso de planta e arrebentou levando ao chão
consigo a frágil peça de madeira.
- Agora você vai saber com quantos paus se faz uma canoa!
– Paula rugiu ameaçadora.
Tânia Perigo, com seu cabelo escuro trabalhado no
permanente, mascava um chiclete quando caçou Neila pelos
cabelos loiros oxigenados e lisos, e a arrastou pelo corredor
jogando-a escada abaixo diante do sorriso cínico da invejosa
Sheila (também loira). Nunca tivera apreço pela namoradinha
nova da melhor amiga, e foi ela quem ardilosamente interceptou
uma série de mensagens de celular, as quais foram explicadas de
modo objetivo, sem entrar na sordidez dos termos (o que poupou
Paula de algum sofrimento). Infelizmente, a amiga à época estava
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ocupada demais com os executivos chineses e não tinha tempo
para pensar em acreditar que podia ser traída.
O povo na rua fez um círculo ao redor da mulher nua que
gemia no chão, tentando se levantar.
A segunda a voar foi Vera, que caiu com mais dignidade e
ares de lutadora, usando uma cueca feminina cinza. O grito atraiu
a atenção de suas comparsas as quais eram tão antipáticas que
não merecem ter seus nomes mencionados. Elas estavam de
tocaia já esperando o pior.
Nandona veio deslizando pelo ar e acertou um chute
giratório que também serviu para atingir o pasteleiro Fred, antigo
desafeto, um cara por quem nutria certo nojo sem motivo. A
banca do pastel por pouco não veio ao chão, e o povo aproveitou
para furtar uma revoada de pasteis fresquinhos de carne – o que
tapou a boca da multidão e os distraiu da ação.
Nisso, Paula foi imobilizada por duas das piranhas amigas
de Vera. Contudo, o ato durou pouco... A habilidosa Ladina fez jus
ao codinome Dedos e acertou uma dedilhada fatal na chavasca
das algozes que não a tinham visto chegar devido à extrema baixa
estatura. Enquanto apertavam as xanas de dor, Paula deu um
joelhaço aprendido na literatura do Analista de Bagé que pôs
uma delas no chão, e a outra foi derrubada pelo braço sempre
bronzeado de Claudete Trovão – admiradora eterna de Paula
Fernandes, sua musa (“vai se entregar pra mim...”).
Vera recuou, sacando um canivete...
Ouviu-se “oh!” na multidão.
Uma das piranhas de guarda veio correndo e gritando de
modo exótico (talvez oriental) para desferir um golpe em Paula,
mas não viu quando Tânia Perigo usou Neila de taco de beisebol
arremessando as duas sobre a venda de peixes. Não conseguiu
com isso descarregar sua ira (que por sinal andava tentando
manter sob controle à custa de um grupo de apoio), e aproveitou
aquele momento em que seus dois dias limpa sem violência
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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estavam mesmo ferrados para pegar o maior peixe que achou –
um bacalhau – e começar a golpeá-las, espalhando um odor
infame ao seu redor. O peixeiro estava tão atônito que
simplesmente começou a anotar apostas e ali mesmo fazer uma
fezinha, acreditando que no fim da luta arrecadaria o suficiente
para pagar sua puta preferida na casa de Tia Roma.
Na confusão as mulheres da igreja aproveitaram para
também achincalhar as mulheres da outra igreja... A puxação de
cabelo começou. Uma cotovelada errada despertou o moto boy
do Fluminense, e este achou que tinha sido acertado pelo ex de
sua namorada. Instaurou-se um verdadeiro circo e numa série de
enganos o povo caiu numa pancadaria tão profissional que faria
inveja a Kill Bill.
Vera, muito matreira, já ia lá adiante ligando de seu celular
para a imprensa, a fim de denunciar Paula – uma manobra
inteligente. Foi quando o impensável aconteceu!
Paula havia corrido por dentro da galeria e chegado antes à
esquina. Fabulosamente atirou seu salto agulha em direção à
mão calejada da inimiga, o que fez o iPhone de última geração
voar e cair no colo de um mendigo que o pegou e saiu batendo
canelas de feliz. Agora, mexer nos gadgets era tocar na ferida de
Vera! Ela franziu a cara de tal modo que se fosse pintada de
verde ficaria igual ao Incrível Hulk. Desferiu um soco que acertou
a barriga torneada de Paula, fazendo-a encolher-se... E outro em
gancho que a jogou por cima de dois meninos meio afetados.
Não satisfeita, ajoelhou-se sobre a vítima:
- Quem mandou não dar conta do recado? Macho aqui
você sabe que sou eu, sua desgraçada!
Paula cruzou os braços. Os golpes atingiam seus músculos
trabalhados com ardor na academia do prédio de alto padrão no
qual morava às vezes – quando não estava passeando no
pequeno iate pela baía.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Do nada, e muito alto, começou a tocar o som do anúncio
de alguma cantora de MPB de sexualidade duvidosa. Era a
distração perfeita! Todas as fanchas num raio de 100 metros
viraram automaticamente o rosto na direção do carro de som,
saindo todas de seus esconderijos para saber a data do show e o
horário.
Lutando contra seu instinto, Paula resistiu ao encanto, e
aproveitou para meter uma canhota na cara de Vera.
Num pulo, logo ficou em pé e emendou um chute com a
ponta do salto bico fino de metal, arrancando o piercing de
sobrancelha da inimiga. Sem se fazer de rogada, quis enfim dar o
golpe de misericórdia: agarrou sua vítima e correu com ela na
direção da lata de lixo mais próxima. Vera conheceu de perto o
significado de reaproveitamento de recursos naturais.
A fim de fechar com chave de ouro, Nandona trouxe a
bolsa Valentino da amiga de onde ela tirou um pequeno vibrador
com controle remoto e em formato oval. Paula o deixou ali na
lixeira, devidamente acoplado à sapata abatida, e deu o controle
aos moleques de rua que brincavam de carrinho. Ela disse: “quem
apertar mais ganha”, balançando uma nota de 100 reais de sua
rica carteira. A diversão foi garantida.
Cansadas de rir e fatigadas da luta, Paula, Nandona, Tânia
Perigo, Claudete Trovão e Ladina Dedos, reuniram-se no meio da
destruição no mercado público de Santos. As sirenes já soando ao
fundo... Elas se abraçaram em círculo e riram por alguns minutos.
- A cobra vai fumar, negada... – Sheila retocou o batom.
Achou por bem fechar o motel antes que algum animadinho lhe
danificasse o patrimônio.
- Como você adivinhou? – Paula piscou e tirou um isqueiro
do bolso pra acender um cigarro.
Todas riram.
À noite, no bar com música ao vivo, Paula fumegava um
gostoso charuto cubano, degustando conhaque e comendo
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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petiscos de boteco com as companheiras. Ao longe, Leninha
surgiu e foi se aproximando: ela era a fancha mais velha, no alto
da posição hierárquica. Se alguém podia dar a palavra de ordem
era ela... Com seu terno branco e os cabelos brancos tingidos de
prata besuntados de gel e colados para trás, aproximou-se da
mesa com Sheila a tiracolo (enrolada num marabu). A música
parou e todos gelaram. Ela escorou o corpo na bengala, e sua
expressão carrancuda provavelmente condenava o episódio da
tarde que arriscara o nome de toda sua comunidade na região.
Ela franziu a testa – péssimo sinal... E depois gargalhou, riu,
riu tanto que chegou a pôr a mão na barriga.
- Boa luta meninas! – ela ergueu a bengala e todas riram
erguendo copos e canecos, estalando brindes.
Mais tarde, Ladina Dedos escreveria um hino (em voz e
violão obviamente) que eternizou aquela memorável tarde: “A
Batalha de Campos”. E Paula... Bem, Paula encontraria um novo
amor. Porque antes de tudo, sua paixão era o calor da conquista
e da vitória. Levantou-se da cadeira e foi até lá, à mesa da
vergonha ao canto, e estendeu a mão e cumprimentou (o que
sobrou de) Vera. Naquele momento as duas tinham a certeza de
que outros dias de fortes emoções ainda viriam. Elas sorriram e
fizeram um brinde de tequila.
Inimigas para sempre. Amém.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Presentes Sob a Árvore
No Brasil não tem neve no Natal. Faz calor, e muito.
Em Florianópolis, por exemplo, há uma correria intensa de
carros e pedestres, preenchendo as grandes vias da ilha como a
Avenida Beira Mar Norte. Uma maré de carros indo e vindo ao
lado das águas tranquilas do oceano. O barulho do tráfego,
passos, vozes. Pessoas que estão indo para casa, ou em busca do
presente de última hora, ou ainda viajando para aproveitar as
Festas em um lugar diferente.
Pouco atento aos especiais de fim de ano na televisão,
Luan se sentiu mais desanimado ao perceber que já eram quase
nove horas da noite. Saiu de perto da sacada e sentou.
- Filho, você tem que ver o forno, eu já terminei a salada.
Tá quase tudo pronto...
- Eu sei, mãe – respondeu olhando para o céu noturno,
através do vidro da janela - Tô tentando ligar pro Cauê desde
cedo da tarde, ele não responde. As mensagens não vão... Não
sei o que fazer. Eu avisei ele que a gente sempre janta antes da
meia-noite, não entendo!
Ela balançou a cabeça e limpou as mãos sobre um avental
que cobria apenas o colo. Pôs a mão no ombro do filho e o
abraçou.
- Quem sabe ele não quis vir, filho. Ficou sem graça...
O ano tinha sido particularmente próspero para Luan.
Tinha finalmente terminado de ajeitar o apartamento próprio,
estava num emprego estável com pouco tempo de formado, e
além de tudo tinha conhecido Cauê.
A história dos dois remontava a uma noite de carnaval de
Floripa, o famoso Pop Gay.
Luan na época estava com os cabelos bem curtos, pretos, e
andava com seus amigos um pouco bêbados pela tarde de folia.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Tinham saído da avenida e da concentração para ir à Concorde –
uma boate gay do centro, e assim continuar a noite. Entre gringos
e tanta gente de fora, logo na rua, perto do posto de gasolina
enquanto aguardava na fila, ele viu o outro grupo.
Um amigo acenou pra um dos caras que era seu conhecido,
todos se aproximaram. Sorrisos, apertos de mão, alguns num
abraço tímido, um comentário, uma olhada sem querer... Todos
se conhecendo, e, no entanto, quem chamou sua atenção
permanecia retraído, quase destoando totalmente daquele
cenário com seu boné preto pra trás, bermudão, camisa grande
demais, mãos nos bolsos. Simpático até, mas completamente
mudo, inaudível. Apenas os olhos, aqui e ali, às vezes
encontrando com os seus.
Cauê era assim.
Não era gente de fora, ele era dali mesmo, do morro do
mocotó, manezinho da ilha. Não era gringo, e nem branco. Tinha
a pele num tom mulato provocante, e nos seus vinte e alguma
coisa anos, já trazia no corpo as marcas de quem começou a ralar
muito cedo. Os braços fortes não à custa da série tripla na
academia, e sim aos exercícios inerentes ao dia a dia. Estudou
com muito custo até terminar o colégio, e em relação a estudos
estava fechado este capítulo da sua vida.
Não fosse a insistência dos amigos, não teria ido. Aliás,
nunca teria ido – ele não gostava de boates. Preferia as rodas de
samba, ou o pagode e o funk das festinhas no morro. E de gays,
conheceu só algumas pessoas que moravam aqui e ali, todas de
sua comunidade, nenhuma experiência relevante – poucas aliás.
- Filho?
Ele não ouviu, continuava pensando.
Luan era o menino branco que estudou no Colégio Energia,
passou no vestibular, subiu aos céus da Universidade Federal de
Santa Catarina. Formou-se sem muito sofrimento, estagiou e
trabalhou já durante o curso e com isso ganhava para si, e mais
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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tarde, para o apartamento. Tinha um carro, pai e mãe, irmãos,
além de um generoso número de tios, tias, primos. Os avós ainda
vivos. No final de semana curtia as baladas, ou viajava para
alguma das praias, especialmente a Mole – sua preferida.
Namorou algumas vezes, todas sem muito sucesso.
Quando, contudo, seus olhos castanhos se encontraram
com os olhos negros do rapaz mulato, parecia que havia sofrido
um choque. Uma deliciosa sensação de atração mútua... E em
alguns gestos, cuidadosas perguntas, danças, logo a mão de Cauê
esbarrou e pegou a sua, e depois foi parar em sua cintura –
segurando-o igual segurasse um bibelô e ao mesmo tempo
estivesse marcando território. Aquele contraste entre o cara sério
e o cara divertido, aquela provocação, aquele entendimento
mútuo dos iguais e diferentes, tudo isso antes do primeiro e
incrível beijo – podia senti-lo, luminoso, até hoje.
Naquelas desculpas para continuar mais tempo perto, Luan
cedeu caronas para alguns amigos chegarem ao terminal central
de ônibus, o TICEN... E então a sós, parados quase na Praça XV,
perto da Catedral e do Mercado Público, beijaram-se de novo, e
dessa vez transbordando carinho, afeto.
- Luan!
O rapaz deu um pulo.
- Vamos, filho... Volta pra Terra e vamos pra cozinha, a mãe
tem que se arrumar ainda.
- Mãe... – ele falou enquanto caminhava com ela de mãos
dadas, passando pela árvore de Natal, o pisca-pisca, o presépio
com todos os seus personagens – Obrigado por a senhora ter
vindo. Será que a senhora não quer mesmo ir pra lá com o meu
pai, e toda família?
Ela se virou para ele, e dessa vez foi sua vez de pensar.
Diante dos olhos meio tristes de Luan, pôs a mão em seu rosto.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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- Filho, eu estou adorando vir passar o primeiro Natal aqui
contigo, na tua casinha. Mas acho que você também queria que a
gente tivesse lá, não queria? Eu te conheço, filho...
Ele baixou a cabeça.
- Queria, mãe... Mas eu tô feliz! Ano que vem quem sabe?
Márcia não sabia. O pai de Luan não aceitou a
homossexualidade do filho, e quanto menos se falasse nisso
melhor... Os irmãos também não levaram da melhor maneira
possível, e com isso só sobrou a mãe. Não que o resto da família
não soubesse, porém o ideal para eles era que não se
comentasse o assunto. Receber um estranho então, para as
Festas, e quem sabe ainda ter de testemunhar um beijo gay, isso
estava fora de cogitação.
Mas ela não podia mentir... Seu coração de mãe também
apertou diante da revelação que veio logo após a saída do filho
de casa. Não veria os netos imaginários, nem as noras... E ainda
assim, por mais que isso fosse novidade, em seu íntimo ela sabia.
Desde que ele era um menino pequeno, desde tudo... Alguma
coisa a tinha dito, só não queria pensar na hipótese, mesmo
quando os namoros não duravam com as meninas, ou mesmo
quando o jeito dele não era nem de perto parecido com o do pai
ou dos manos. Ademais, sentia medo da violência e da maldade
do mundo.
Claro que era estranho também para ela passar um
primeiro Natal longe de todos... Ainda assim, ali ela estava se
sentindo mais à vontade. Sem obrigações diante dos parentes,
que alívio! E pelas poucas vezes que viu Cauê, percebia que ele
era mesmo uma pessoa incrível, apesar de bastante fechado e
cuidadoso, e da origem diferente.
Respirou fundo. Lavaram a louça, colocaram os pratos na
mesa... Espiaram a televisão, e o tempo ia passando. E os
ponteiros foram lentamente se arrastando até que já era quase
onze e quinze.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Sentindo-se derrotado, Luan pegou um prato e se serviu.
Não conseguia parar de pensar em Cauê.
Ao pegar a colher do arroz, o interfone tocou. Num pulo
ele foi tão rápido atender que a mãe não pôde deixar de sorrir.
Em minutos, o namorado apareceu, constrangido, sorrindo
desajeitadamente... Luan o abraçou com força, e sentiu seu
perfume.
- Desculpa, amor, hoje aconteceu de tudo... – ele
confessou num sussurro.
- Tudo bem, o importante é que você chegou...
Foram à cozinha, “boa noite, Dona Márcia”.
- Boa noite, Cauê! A gente estava preocupado, mas que
bom que você veio!
- A senhora me desculpa, eu me atrasei muito. Mas isso é
pra senhora – ele retirou da mochila um pequeno arranjo de
flores com um bombom junto.
A vida de auxiliar de serviços gerais não era fácil... Saiu
super tarde do Shopping Iguatemi. O trânsito terrível... Depois
até chegar em casa, até conseguir tomar banho, tudo estava
demorando demais. Uma ligação da mãe e do pai, que não
conseguia ver há tanto tempo, ambos morando no interior de
São Paulo há dois anos. Saudade, choro, solidão. Depois o sinal
começou a falhar, nem tinha como avisar Luan que ia se atrasar –
e pelo visto, muito. Os irmãos menores, a avó paciente
arrumando a pequena mesa... Ele percebeu que estavam faltando
coisas, que ele podia ajudar: foi ao mercado, uma fila gigante.
Refrigerantes, um pote de sorvete, carrinhos pra molecada.
Ele não costumava expressar sentimentos, manifestar.
Porém, por trás de seu rosto sério, ele estava contente de estar
ali! É claro, era um pouco difícil se sentir à vontade numa
realidade tão diferente. Dona Márcia era tão linda! Ela e Luan
pareciam artistas... O apartamento tão arrumado, tão legal, que
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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ele tinha até vergonha de estar ali no meio. Gostava mais quando
Luan ia na casa dele, era mais fácil.
À meia-noite, abraçaram-se todos e comemoraram.
Márcia deu uma camiseta muito bonita, de marca, para o
genro. Para o filho ela decidiu dar uma coletânea de livros. Luan
presentou a mãe com o show da Adele, e ao namorado com um
perfume que ele um dia experimentou numa loja – uma destas
tardes preguiçosas de feriado, passeando perto do cinema. E aí,
Cauê se sentiu de novo um tanto embaraçado: seu presente para
a sogra foi só as flores mesmo. Ele também tinha avisado antes a
Luan que, se ele não se importasse, ia dar algo a ele mais adiante,
algo bom.
O namorado e a mãe não tinham o mínimo problema com
essas coisas, se importavam mais com a presença e a atenção
dele. Fizeram de tudo para fazê-lo rir, e ela até pediu ajuda para
ver uma música do show que gostava... E depois, com muito
carinho, despediu-se do casal e pegou seu carro para ir então à
festa de família para juntar-se aos demais. Como gostaria que
estivessem todos indo juntos, mas não podia forçar ninguém.
Melhor que fosse assim... Com tudo a seu tempo, quem sabe esse
dia ainda ia chegar? Quem sabe...
Cauê e Luan se beijaram próximos à Árvore de Natal.
O sorriso de Luan era sincero e feliz.
Enquanto estava no banheiro, escovando os dentes, Luan
se sentiu grato demais por tudo aquilo. Entrou no quarto e se
enfiou sob o lençol, aconchegando-se ao corpo conhecido de seu
amor – o ar condicionado despejando o inverno ao redor. As
luzes já estavam apagadas, e mesmo assim uma certa
luminosidade vinha dos postes lá embaixo, da rua, se fazendo
presente. Um novo beijo mais intenso veio, e se continuasse,
sabiam onde aquilo iria parar.
- Espera... – Cauê pediu, acendeu a luminária, levantou.
- Que foi?
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Ele sentou na cama.
- Me desculpa por não ter trazido um presente de verdade
pra tua mãe. Eu tive muito gasto nesse final de ano, ficou
apertado lá em casa também. Cê sabe, minha avó, os moleques.
- Cauê, não precisa falar nisso... A minha mãe ama flores! E
ela adorou que você veio, tolo! Ela tava super alegre aqui com a
gente, isso que foi o melhor presente pra ela.
- Eu sei, mas... – ele fez uma pausa – E... Eu trouxe algo pra
ti, que eu queria te dar faz muito tempo.
Os olhos incrédulos de Luan acompanharam o movimento
da mão de Cauê, tirando do bolso da bermuda de dormir uma
caixinha preta. Se fosse apenas uma caixinha inofensiva, nada
demais, mas era um tipo de caixinha específico. Daquelas que
guardam algumas das promessas mais bonitas e sinceras que às
vezes embalam os corações da humanidade.
- Eu já te pedi em namoro... Mas tô pedindo de novo, me
aceita? – Cauê pediu, os olhos negros um tanto quanto
apreensivos.
Tinha economizado um bocado praquilo.
Luan derramou algumas lágrimas de emoção depois do
“sim”, enquanto a aliança de prata ia morar em sua mão e na
mão do namorado. Aí então aquele beijo pôde continuar e se
prolongar na melhor noite de amor que eles haviam tido até
então.
Se isso não era celebrar o amor, não sabiam o que seria.
Mas aquela certamente era a melhor noite para isso. Com a
bênção do aniversariante da Festa e da ilha da magia.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Um Pássaro
- Pai, o senhor vai ficar bem mesmo?
- Vou, filho... – pronunciou sem ânimo – Pega a Celinha, as
crianças, e vão pra casa. Vocês já fizeram demais, e a viagem de
vocês ainda é longa. Tá bom?
- Então qualquer coisa o senhor já sabe.
Sim, ele sabia. A qualquer momento a contar deste
primeiro dia, estava convidado a fazer parte da casa da família do
filho. Quase duas horas dali.
Ele deu um abraço forte no rapaz, mantendo suas emoções
sob controle para não chorar. Não havia necessidade de
intensificar o que já estava difícil o suficiente. Limitou-se a dar um
beijo na nora e se ajoelhar para abraçar o corpo pequeno de seus
dois netinhos. Todos trajavam roupas em preto e isso lhe pareceu
uma pena, quase o aborreceu.
Assim que fechou a porta e acompanhou com os olhos o
carro vermelho virar a esquina da despedida naquele dia
cinzento, por pouco não perdeu o fôlego: estava só.
Era a primeira vez que via sozinho o filho indo embora, e a
primeira vez em longos quarenta e três anos de casamento em
que enfrentaria a certeza, definitiva, de que não haveria alguém
com quem dividiria a cama... Em que a companhia de brigas e
risadas não lhe facilitaria a rotina pelo simples fato de existir.
Fosse há só uma semana atrás, estaria agora ali naquela mesma
janela a consolar o companheiro - ele sempre chorava a cada vez
que o filho deles voltava pra sua casa na outra cidade.
Passou a mão pela testa fria e enrugada, e depois olhou ao
redor. Nada além de um berrante vazio.
Seria possível continuar morando ali?
Michel, o filho, achava que não. Que se o pai não quisesse
ficar com ele e Celinha, Eduardo deveria vender o apartamento e
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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ir pra um lugar menor, de preferência mais perto deles. Talvez,
apenas talvez, fosse a coisa mais sensata a ser feita, mas nesse
momento a perspectiva era a de muitas decisões duras a serem
tomadas ainda. Se fosse mais jovem isso seria mais fácil, tinha
certeza.
Buscou conforto na poltrona da televisão.
Sentou-se e suspirou longamente.
- Boris... – chamou com a voz embargada – Estamos só nós,
meu velho!
O cachorro de orelhas caídas e pesadas não se demorou a
sentar ao lado das pernas de seu dono, apoiando a cabeça em
seu colo. Os olhos vermelhos e caídos do cãozinho queriam dizer
que era claro que ele também sabia: Adriel tinha ido embora.
Não iria mais voltar.
Então sem precisar mais parecer forte e seguro diante do
que o destino havia lhe reservado, Eduardo chorou abraçado ao
corpo de manchas marrons do sabujo de estimação. Passou as
mãos pela pelagem áspera e esbranquiçada, pensando na
intragável morte.
Embora isso passasse pela sua cabeça, com cada vez mais
frequência desde o aniversário de setenta anos há quase um ano
e meio atrás, ele não acreditava que o dia em que um deles
morresse, seu marido seria o primeiro. Para ele, Adriel era a parte
boa da relação; no ônibus, se os bancos reservados pra idosos
estivessem ocupados, ele não diria nada em protesto. Quando
lhe sobrasse algum troco de qualquer compra, e alguém pedisse
na rua, ele daria sem hesitar e ainda sorriria. Se os antigos alunos
da universidade surgissem, ele não se preocuparia em gastar
parte de seu tempo, não importa o que estivesse prestes a fazer,
para saber do rumo de suas vidas e lhes encorajar a seguir
adiante. Se as crianças ficassem doentes, lá iria ele ajudar
Celinha... E se ele estivesse num dia bom, faria o almoço nos
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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domingos com um tradicional cuidado que chegava a ser
comovente. Ao menos para Eduardo, era.
Nas paredes, os quadros dele estavam pendurados por
tudo... Obras que retratavam cenas do campo ou então do
cotidiano. E enfim, quando a artrose começou a machucar as
articulações dele, um tipo de impressionismo que surgiu como
improviso, virou estilo, e renovou seu ânimo na arte... Ainda que
nas demais tarefas de casa, a doença lhe alternasse dias melhores
e piores.
Eduardo ergueu a vista às fotos emolduradas das viagens
pelo mundo: Itália, França, Alemanha, Austrália, México, Canadá,
Chile, entre outros. Nelas era possível verificar as pegadas através
do tempo, o caminho que seus pés percorreram juntos.
Adriel ia querer que em seu enterro todos tivessem usado
roupas coloridas. Ele era amante das cores.
Quase seis meses depois, Eduardo estava habituado ao
novo clima silencioso do apartamento. Teve de aprender a regar
as plantas. Mesmo assim tinha dado crédito ao pensamento de
seu filho: o apartamento estava devidamente avaliado e colocado
na imobiliária. Disseram que não tardaria surgir algum jovem
casal interessado porque o bairro era ótimo e o espaço muito
amplo, do tipo que não se faz mais hoje em dia.
“Algum jovem casal”.
Um pensamento, porém, às vezes martelava a mente do
idoso. Sua irmã Francisca dizia que conseguia sentir nitidamente
a presença do marido, já falecido. A ferrenha crença católica que
mantinha, contudo, não era flexível o suficiente pra fazê-lo
acreditar nela. Já havia sido uma abnegação grande demais e às
vezes ainda sofrida, ter finalmente se assumido homossexual e
depois realizado o casamento civil com um homem. Contudo,
agora ele até queria acreditar que alguma coisa nesse misterioso
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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mundo vazio das partidas pro além poderia querer dizer alguma
coisa – que palavras pudessem florescer do puro invisível.
Afinal...
O que dizer da morte da pessoa que você amou tanto?
Que compartilhou sua cama; com quem você criou um
filho, netos; discutiu e quase se divorciou por coisas estúpidas;
teve a grandeza de perdoar sem quase pensar, quando nada além
da separação era previsível diante de um suposto caso; que te viu
nu em todas as posições possíveis, compartilhou prazer e vitórias,
amargou derrotas; esteve presente, testemunhando sua
existência como ninguém. Palavras aqui são só palavras.
O maior desejo agora era que Michel ou qualquer neto, e a
nora, não morressem antes dele. Isso seria ainda pior.
Foi por indicação de um conhecido, da época em que
cuidou da Biblioteca do Museu Municipal, que chegou a um
prédio meio descuidado e suspeito. Estacionou o carro e ajeitou o
boné azul-marinho sobre os cabelos brancos. Seus olhos azuis
estavam completamente incertos por trás das lentes dos óculos.
A mulher que atendeu no interfone e depois abriu a porta
do apartamento 309 era tão velha quanto ele: os cabelos
curtinhos e brancos, e um irritante sorrisinho constante.
- O senhor nunca fez nada disso, não é... Seu Edivaldo?
- Eduardo – ele corrigiu. Tinha agendado antecipadamente
sua hora, mas pelo visto ela não se dera o trabalho de anotar ou
verificar seu nome.
- Sim, sim... Sente-se.
Ela explicou que tentaria um contato com o espírito de
Adriel. Depois fechou os olhos, e puxou um maço de cartas
esquisitas. Eduardo teve o primeiro ímpeto de fugir dali - ele
tinha total aversão a adivinhações desse tipo. E antes que
pudesse começar sua fuga, ela puxou algumas das cartas e as
colocou viradas para cima. Depois levou um bom tempo ora
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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gemendo e balançando a cabeça, ora fechando os olhos e
respirando fundo e soltando o ar devagar.
- Você perdeu alguém há muito tempo... – ela disse, em
tom mais de dúvida do que de afirmação – E essa mulher, ela foi
muito importante na sua vida!
Segundo ímpeto de fugir, e agora o primeiro de não pagar
por nada aquilo. Velha trambiqueira!
- Você parou de atuar muito cedo...
- Chega – ok, agora tinha ultrapassado o limite da irritação.
Ele tinha trabalhado duro até depois de se aposentar, e
faltado ao serviço apenas em casos de extrema necessidade.
Tinha paixão por se ocupar, e se tivesse parado cedo, ele estaria
morto bem antes de ter perdido o marido. Sentiu seu rosto
vermelho, e se não fosse seu remédio para o controle da pressão
arterial, já teria tido um colapso nervoso. Ele não devia ter sequer
cogitado acreditar que seria possível contatar uma pessoa morta!
- A senhora me desculpe, não vou pagar por isso. Isso é
uma invenção estúpida, um desrespeito com a dor das pessoas.
Tenha uma boa tarde!
A mulher ficou visivelmente perturbada enquanto ele se
ergueu num rompante, vestiu seus sobretudo bege e disparou
porta a fora. Desceu as escadas apressado embora os joelhos lhe
doessem. Assim que chegou à rua ouviu seu nome ser chamado,
e virou-se para se deparar com a vidente. Que raios aquela louca
ainda queria dele? O dinheiro, é claro.
Começou a abrir a carteira, enquanto a figura miúda de
passos curtos se aproximava rapidamente a galope.
- Tem um homem se comunicando! – ela teve de gritar, até
que chegou ao lado dele já sem fôlego – Ele diz que você tem que
voltar a ser feliz e que se preocupa com você. E ele mostra um
pássaro guardado... Que você precisa deixar sair! Deve ser algum
bichinho – ela sorriu sem graça – pra você libertar?
Eduardo revirou os olhos.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Retirou uma quantia de notas de dinheiro acima do valor
do pagamento e pôs na mão dela.
- Adriel ia querer que eu pagasse a senhora, porque ele ia
ter pena de uma velha desonesta que ganha a vida falando
mentiras. Espero que a sua consciência esteja sempre tranquila
porque eu não ia conseguir dormir depois de ter inventado tanta
sandice. Estou pagando duas sessões, a minha e outra pra poupar
um infeliz de ter que vir até aqui para se decepcionar. Pegue sua
criatividade e escreva um livro. Passar bem!
O companheiro tinha pavor de pássaros enjaulados e ficava
horrorizado com o hábito de quem os colecionava. Jamais seria
possível que tivessem um, e o basset hound só entrou no
apartamento depois de muita insistência – Eduardo sempre fora
pouco afeito à ideia de ter animais em casa. Entretanto, quem
diria que justamente o cachorro indesejado o salvaria de não ter
qualquer outra forma de vida circulando em seu lar?
A única coisa que realmente poderia ajuda-lo neste
instante era sua religião.
Saiu da missa, cumprimentou os conhecidos. Fazia questão
de que o nome de Adriel estivesse sempre nas intenções.
Alguns colegas de igreja não aceitavam a ideia do casal
homossexual. Todavia, até mesmo o padre estava ciente e fazia
vista grossa, e costumava incluí-los dentro do possível nos
eventos. Adriel não era tão religioso, talvez se pudesse defini-lo
como espiritualista, porém participava das atividades e gostava
de ajudar pelo amor que tinha ao companheiro.
Já para Eduardo a ideia de não poderem ter se casado
diante do altar, recebendo o sacramento do matrimônio, e nem
participado como casal dos encontros e outros projetos era uma
vergonha, e uma mágoa. Tentava confiar em Deus diante dessas
injustiças, já que porventura Ele o tinha feito um homem singular
em seus desejos diversos.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Àquela altura, já estava prestes a fechar a venda do
apartamento. Conseguiu deixar mais ou menos esquematizada a
compra de uma casinha próxima à de Michel. Ia ter de se
habituar a uma nova vizinhança, novos bancos, novos rostos...
Deixar pra trás o mundo em que tinha vivido. Se isso não dava
uma boa ideia do que era morrer, ele não sabia o que mais daria.
Apesar da terrível experiência que lhe dera ainda mais
certeza de que nada dessas coisas de adivinhação funcionavam,
ele continuava a ter uma pontada de inveja quando ouvia alguém
se gabar de ter sentido a presença de fulano ou cicrana. Ou pior:
dizer que receberam uma mensagem. Procurava se convencer de
que isso era uma coisa do diabo, ou do que quer que exista por aí
entre mundos, além de charlatanismo misturado a muita vontade
de se enganar com pouco.
Caminhou pela calçada arborizada.
Tentava gravar consigo os detalhes de tudo, para levar.
Podia ver como se fosse ontem: seu falecido marido, ainda
vivo, com seus vinte e alguns anos, jogando folhas secas nele... Os
dias de verão em que corriam atrás da carrocinha de sorvetes. E
se forçasse um pouquinho, daria até pra sentir o cheiro de tinta
fresca na entrada do apartamento recém-comprado.
Respirou fundo, voltando à realidade no giro da maçaneta.
Passou pelo amontoado de caixas organizadas e foi para o
quarto. Queria guardar os objetos pessoais ele mesmo... O resto
ia ficar por conta do pessoal da mudança. O que o sono curto da
idade lhe liberou de tempo livre, ironicamente tirou na disposição
pra poder aproveitar. E pelo visto, na companhia também.
O sabujo entrou no quarto abanando o rabo e latindo.
- Quietinho, Neco... – pediu em tom sério – Já vou lá pôr
tua comida.
O cachorro deitou na porta e ganiu, apoiando a cabeça nas
patas.
Eduardo foi até ele e afagou sua cabeça.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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- Eu sei, eu sei... Mas a gente vai se adaptar.
Depois começou a arrumar malas, separar alguns livros de
cabeceira indispensáveis, e enfim a remexer no armário de canto
pra pegar os documentos importantes. Foi exatamente então que
sentiu uma pressão forte na cabeça, igual como se estivesse
prestes a desmaiar. Apoiou-se na parede e sentou-se depressa,
ainda trêmulo, ao banco da escrivaninha de madeira mogno.
Aos poucos a visão foi recuperando o foco e ele arfou. Sob
a dura realidade do medo sobreveio uma pergunta: quanto
tempo ainda ele poderia morar sozinho? Adriel se foi aos oitenta,
sem poder fazer muita coisa devido à sua saúde frágil perto do
fim, mas ao menos ele teve sua companhia todo o tempo.
Não se entregaria nessas divagações.
Tratou logo de afastar a ideia sombria.
E por falar nela, tinha esquecido o que estava procurando.
Olhou para o cachorro e foi à porta do roupeiro do lado
que era de Adriel, puxou seu casaco preferido e o cheirou – ainda
tinha o cheiro dele. Neco latiu novamente, talvez por ter sentido
o perfume do outro dono, e lacrimejou. Eduardo também.
Assim que pegou a caixa das fotos de viagem, não
imaginava que seria peso demais para seus braços: elas caíram
esparramando-se num jardim de imagens e com isso derrubando
também a caixa com materiais dos cursos de pintura do falecido
esposo. Um amontoado caótico de revistas e anotações surgiu, o
que fazia parecer que um furacão havia estado por ali. Levaria
uma eternidade pra arrumar aquilo tudo, lamentou.
Horas mais tarde finalmente acabou, estava prestes a pôr a
tampa estampada para fechar a caixa quando uma pequena
palavra lhe chamou atenção. Não era uma palavra qualquer, era
um nome... “Eduardo”. Tampouco era uma caligrafia qualquer.
Assuou o nariz, fungando, e limpou os olhos visivelmente
cansados de ter chorado tanto no passeio pelas recordações, o
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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casaco vermelho-escuro de lã ainda jazia sobre seu colo
querendo que seu amor ali estivesse em seu lugar. Afastou
cuidadosamente a tampa e puxou o papel meio amarelado,
intitulado com seu nome, onde uma série de linhas formava um
pequeno poema:
Os olhos azuis de Eduardo,
Lembram-me sempre do céu.
Quando sinto falta do sol,
Encosto-me a seu coração.
Se perco as horas e não sei quais são,
Seu abraço me ajuda a esquecê-las de novo.
Mas se fico triste,
Porque não posso voar,
Meu homem pássaro me ergue.
E faço parte do infinito.
- Adriel Lopes Rosenberg
12 de Junho de 1979
Eduardo nunca tinha lido aquilo!
Seus olhos se encheram de lágrimas embora isso parecesse
improvável depois da quantidade que havia derramado só nos
últimos momentos ali. Virou a folha e em seu verso estava o
croqui para a pintura de um quadro com a revoada de um
pássaro, a qual nunca foi executada. Era muito bonito e tocante –
um oceano de fundo, com um casal de mãos dadas na praia.
Inevitavelmente relembrou as noites em que o marido,
acanhado, buscava seu peito para adormecer. Sentia-se pleno ao
ofertar-lhe isso, era sua realização, e sequer poderia desconfiar
que aquele simples gesto pudesse representar tanto para o
outro, como todas as pequenas coisas ali descritas: a cor de seus
olhos, seu coração.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Subitamente, o maldito telefone toca: é Tereza, a irmã
mais velha. Ela distrai (entedia) um pouco o irmão, e depois
começa a comentar coisas alheias:
- Você se lembra quando mamãe preparava as tortas de
ação de graças? Este ano quero fazer uma parecida. No seu
primeiro dia de trabalho, nunca vou esquecer, ela fez uma
especialmente pra comemorar... Como era mesmo aquele lugar
que você trabalhou? O nome?
- O nome... – forçou a memória, tinha esquecido
completamente disso – Editora Gráfica Mundo?
- Sim... Olha só. Quem diria que depois você ia virar
historiador! Mas no fundo, mamãe sempre pensou que você ia
virar um escritor famoso. Até antes de falecer, coitada, ela
guardava suas historinhas... Eram lindas! Uma fofura! Acho que o
neto teu e do Adriel puxou mais por ti do que por ele, porque ele
também inventa coisas que são uma gracinha!
- Preciso desligar... – ele engasgou.
Mais claro, impossível!
Um ano depois, Eduardo bateu à porta da vidente.
Antes que ela pudesse abrir a boca, ele tirou de sua bolsa
um livro - “O Mundo Colorido” era o título, e depositou-o nas
mãos dela. Curiosa, ela o abriu, revelando uma longa história que
em alguns momentos era ilustrada por imagens em cores de
quadros pintados por Adriel e fotos de viagens. Era um livro que
estava alcançando relativo sucesso de crítica e encantando os
amigos, familiares, e todos aqueles que conheciam o casal, assim
como tantos outros gays que não acreditavam fosse possível ter
existido uma história de amor tão longa como aquela, de modo
sincero e tocante, entre dois homens.
Ela apenas sorriu, imóvel, e depois balançou a cabeça
afirmativamente.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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O fato é que Eduardo tinha encontrado o pássaro guardado
- era ele na figura do croqui, teve total certeza quando o viu, e
podia se arrepiar só de lembrar. Igualmente, na época em que
esteve ali ele não pensou além da dor da perda de seu marido,
por isso esquecera momentaneamente o quanto sofrera pela
morte de sua mãe, aquela que sempre o incentivou, e o aceitou
antes de todos, às vezes mais do que ele próprio. Assim também,
não fosse a ligação de sua irmã, nem teria recordado do maior
prazer de sua juventude: inventar histórias, o que trocou pelo
ingresso na vida profissional e posteriormente pela bem-sucedida
carreira como historiador no mundo dos adultos.
Em resumi, perdera uma mulher muito importante, deixara
de “atuar” muito cedo (na literatura), encontrara o pássaro e o
deixara sair de sua caixa, libertando-o.
A idosa fez um sinal com a mão, contendo as lágrimas.
Foi-se até o interior do apartamento e voltou com um
outro livro bem mais simples, sem fotos. Tratava-se de um relato
sobre suas experiências como psíquica. Dentro dele estava uma
mensagem de dedicatória escrita à mão para Eduardo, e as
mesmas notas de dinheiro que lhe foram entregues naquele
encontro anterior. Ele não pôde deixar de soltar uma risada
sonora, e ficar sem graça. Eles tomaram um chá, conversaram,
trocaram números de telefone e praticamente ficaram amigos.
Ao final ele agradeceu com um abraço e depois já estava se
despedindo quando ela falou, depois de olhar para o nada:
- Naquele dia... – ela tornou a fita-lo - Ele disse que deu um
tapa na sua cabeça, pra você encontrar a... Caixa.
Duas horas depois, na nova casa, quando fechou os olhos
para dormir ainda escutando o ronco de Neco a seu lado no chão,
Eduardo teve uma deliciosa sensação: a de que seus cabelos
eram alisados tal qual como Adriel fazia nele até dormir. Ele
estava lá. Seu sono chegou em paz com um sorriso de satisfação.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Reencontrado Minha Cidade
Os raios riscavam o céu em incomuns matizes
avermelhados.
Estacionei o carro na parte mais alta, próxima ao farol, para
poder ver melhor.
A confusão que o vento provocava jogando água nas
pessoas desprevenidas era familiar, o som tormentoso dos
trovões inundando os ouvidos sem pedir licença. Os pedaços de
galhos secos brincando de bater em tamborins invisíveis, e eu
parado. Estava tão tranquilo que sentia ter desaparecido. O ar
frio soprava violento contra a massa de ar quente, que até então
havia feito de nossa região sua morada.
Tornei a acelerar e virei a esquina, precisava ir para casa.
Não a casa do meu pai, que a esta hora devia estar no trabalho
ou em vias de pensar no que seria sua janta. Eu queria ir para o
casarão... Aquele deixado a mim por Dona Glória, o qual fora
primorosamente reformado por Diego e seus amigos. O qual me
serviu de lar e ainda me serve a todos os momentos em que
simplesmente sinto a falta de algo... De uma substância
emocional que preencha as lacunas dolorosas que vez ou outra
despertam em meu peito, tais quais pequeninos vazios
adormecidos. Era isso.
Enquanto as pesadas gotas se chocavam contra o vidro do
para-brisa, tornando impossível distinguir qualquer coisa além de
manchas coloridas à frente, dirigi o suficiente para parar em
frente à Praça da Consolação. Peguei meu casaco, a mochila, as
chaves... Passei a mão pelo vidro molhado, tentando desembaçar
a ponto de calcular o trajeto (como se fosse preciso).
Num golpe abri a porta e corri. Corri até sentir frio e uma
manta pesada cobrindo meu corpo em um molhado gradativo,
inundando minhas calças, minha cabeça.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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O barulho da grade ficou para trás enquanto me esforcei
para subir na entrada, ganhando os degraus em pulos.
A salvo no átrio, virei para trás e contemplei aquele
espetáculo: a cidade coberta por uma grossa tempestade. Um
tipo especial de chuva que só conseguia encontrar ali e que servia
não só para preencher a terra de vida, nutrindo, mas também
purificar tudo que encontrasse em seu caminho. Incluindo a mim.
Abracei meu próprio corpo... Estava tremendo!
Peguei a chave e abri a porta verde, revelando a entrada e
o charmoso tema de art déco que se espalhava na decoração.
Aspirei o ar o quanto pude e agradeci por estar ali... Então tirei o
celular de dentro da mochila e enviei uma mensagem para ele.
Precisava vê-lo. Ir até ali e não o ver seria como ter atravessado
toda aquela chuva sem ter me molhado. Era vital, natural.
Subi depressa as escadas, fui até meu quarto, apanhei
toalhas e depois entrei no banheiro... O banho não poderia ser
longo, mas o contato da água quente fez meu corpo relaxar e
minhas dores diminuírem. Elas eram flutuantes, como pétalas ao
sabor do vento, sem nunca saber onde vão parar ou quando
chegarão. E hoje era meu dia de sorte: eu estava livre.
Torci meus cabelos loiros e examinei o espelho
rapidamente. Ainda sentia um relativo desconforto diante da
minha imagem... O corpo que sempre achei muito magro, os
quadris largos demais. Foi inevitável observar as cicatrizes nos
meus pulsos, um atestado de que um dia eu tivera dezesseis
anos.
Coloquei o pijama de algodão mais leve que eu tinha, calcei
minhas sandálias brancas, e enfim me pus a descer. Nessa época,
já quase não tinha mais fome.
Senti um desejo de ir até a porta – isso era comum: eu
adivinhava quando André estava próximo. Abri a janelinha e seu
carro estacionou na calçada... Tratei logo de liberar o portão. Seu
corpo alto, grande, músculos proeminentes, cabelos pretos...
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Moveu-se abrindo caminho na parede d’água entre nós, e enfim
parou diante da porta que a esta altura eu já tinha aberto.
- Anjo... – falou meu nome. Música para mim.
- André... – sorri, sem querer, sem pensar.
Ele sorriu também. Os olhos cinzentos que sempre admirei,
sob suas sobrancelhas pretas e grossas, vieram de encontro aos
meus... Azuis. Eu não poderia descrever o que meus próprios
olhos estariam manifestando, mas senti que estavam úmidos.
Em silêncio, peguei a maleta dele, de médico. Ele estava
saindo do hospital.
- Como tu conseguiu chegar sozinho aqui? – ele riu – Só
com muita chuva mesmo, né? Ultimamente ninguém te deixa
mais em paz.
Sim. Nem me fale, eu estou cansado, pensei.
Entrevistas, matérias, documentários, os militares... Em
alguns momentos eu não queria ser nada daquilo. Para o mundo
eu era o curador, o médium, o rapaz das fotos. Aquele cuja cruz
era ser visto através dos efeitos que eu nem podia controlar. Ser
pedido, suplicado... Ser perseguido. Ouvir as críticas, ficar quieto.
- Eu tava precisando vir aqui... – respondi.
Ele se aproximou e deu um beijo em minha testa, seus
lábios mornos. Demorou-se por alguns instantes. Era suficiente
para fazer meu corpo recuperar a vitalidade, tornar-se ainda mais
quente, disposto. André era minha cura. Aquilo que eu tanto
ajudava a entregar aos outros, eu encontrava na presença deste
antigo amigo. Deste antigo amor.
Ele se afastou um pouco e colocou a mão em meu rosto,
tão sério.
- Toma um banho... – pedi – Logo vai estar escuro.
Seu sorriso torto surgiu, e então ele desapareceu –
conhecia o caminho.
Eu fui para o quarto, terminando de retirar minhas roupas
da mochila... Pensando em quando fomos colegas de ensino
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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médio, em suas vitórias no time do futebol, em nossas
aventuras... Em todo tempo que se passou aqui, e quando fui
embora para Sagrado Coração... Quando a vida nos tirou pessoas
importantes... O momento que ele estava separado de sua noiva,
e eu separado de meu quase marido... Quando enfim
confessamos a nós mesmos que nos amávamos.
E ainda assim, diante de todo esse amor, era difícil. Para
ele, por ser “homem”... Para mim, por nunca ter dado chance a
esta entrega. No fundo, sempre tive medo de entregar meu
coração e meu corpo. E isso doía. Literalmente... Em meus
músculos, em meus ossos, em minha alma.
Não tinha aprendido a me deixar tocar.
Aguardei pacientemente, ouvindo as trovoadas... A
interessante presença da chuva sempre que eu e André
acabávamos muito próximos de algo importante. Era assim.
Ele voltou, com sua calça de moletom cinza, logo fazendo
peso sobre o lado direito da cama de casal... Eu sorri de novo sem
querer, olhando em sua direção. Ele deitou apoiado ao cotovelo,
e olhou para meu corpo... Enfim pôs a mão sobre minha perna e
eu sabia o que isso queria dizer: fiquei de costas e esperei. Ele
veio por trás, abraçando-me tão forte que senti seu coração bater
em minhas costas, acelerado.
- Tu faz falta nessa cidade, Anjo...
- Eu queria poder ficar mais. Mas não posso. Tenho o
trabalho.
Precisava olhar em seu rosto, e por isso apoiei a cabeça em
seu ombro. Ficamos próximos um do outro, o lençol sobre nós.
Até quando seria assim? Tão próximos, tão distantes, sempre
trocando posições como sol e lua, encontrando-se raramente.
André suspirou.
Então tão logo o fez, beijou novamente minha testa...
Depois meu rosto... Depois meus lábios. Senti um frio na barriga,
e timidamente toquei seu ombro, seu peito tão largo e bem
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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maior que o meu. A sua mão por sua vez deslizou sobre mim,
indo parar em minha cintura.
Não era suficiente, claro que não era. Não aquela noite.
Precisávamos de mais... Sempre era preciso mais e cada vez o
mais ficava insuficiente. Um passo adiante. Ele tirou o que nos
cobria, e puxou a camiseta, revelando seu tórax. Virei o rosto.
- Anjo... – ele suplicou – Me olha.
Eu olhei. Era perfeito pra mim. Os pelos sob o umbigo, o
desenho de seu corpo. Ele era tudo o que eu admirava num
homem... E ainda não entendia como depois de todas as meninas
e mulheres, que eu sabia ele havia amado, o seu amor por mim
era capaz de existir, de sobreviver, ou mesmo de ter nascido. Por
mais que ele me explicasse várias vezes, por algum defeito,
alguma parte quebrada na minha estima, era sempre preciso
ouvir de novo, confirmar que ainda era verdade.
Ele avançou em minha direção, pondo-me de joelhos
diante dele, e tirou minha camiseta. Levei logo os braços ao
peito, escondendo meu corpo... Ele balançou a cabeça.
- A gente já se viu pelado antes... Por que tem tanta
vergonha?
- Não sei... – respondi com honestidade – Eu tenho
vergonha do meu corpo. E eu não sou...
Mulher.
Ele se deitou um pouco e tirou as calças, a cueca preta.
Desviei meu olhar de novo.
- Tu também já viu isso – a voz jocosa me tranquilizou.
Sim, eu já tinha visto.
Sob o jeans, sob o calção de jogador, sob suas mãos... E
quando transamos pela primeira vez – o momento que dividimos
um com o outro, que marcou o final de nossa adolescência antes
que seguíssemos outros caminhos. Ainda assim, eu tremi. Porque
apesar de ter vivido com outro homem por anos, diante de André
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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eu me sentia um menino. Meu corpo era sempre virgem do amor
que ele podia me dar.
Ele diminuiu a luz, eu tirei o resto de minha roupa.
Começamos a nos beijar... Aquela primeira e única vez que
transamos passou pela minha mente. Dormimos juntos noutras
vezes, abraçados ali neste casarão, mas sem jamais atravessar
esse limite que estávamos prestes a cruzar de novo. O sangue
correu acelerado por minhas veias.
O toque firme e seguro de André me trouxe de novo ao
presente. Seu beijo me envolveu... Seus braços. Rolamos sobre o
colchão, deixando escapar sopros... O vento lá fora, a chuva
batendo contra as janelas. Seu rosto estampava um tipo de dor,
como se a qualquer momento eu pudesse desaparecer dali.
Como se quisesse me fazer ficar para sempre... E em mim eu
também sentia essa dor, essa ressonância.
Em pouco tempo, pela pressa, pelo desejo, ele colocou a
proteção... Veio sobre mim, entre minhas pernas, e se pôs dentro
de mim. Cada vez mais fundo. Seus olhos atentos em mim a todo
o tempo... Meus lábios abertos, e seus dedos apertando meu
mamilo. Ele beijou meu pescoço, sentiu meu cheiro, forçou mais.
Fechei meus olhos, abraçando suas costas.
E conforme moveu seus quadris e eu os meu, as sensações
tomavam conta do meu corpo, e ele – tenho certeza – sentia o
mesmo. Quisera eu durasse para sempre o prazer de tê-lo em
mim, de sentir o modo como me tocou num carinho quase
devocional, onde sou necessário por mim mesmo.
Quando tudo acabou, e enfim eu senti cada centímetro de
minha pele formigando... Comecei a chorar. Desejava que
tivéssemos tido mais... Houvéssemos percorrido um caminho
sem que tantos obstáculos nos ferissem. E ele também derramou
lágrimas.
- Eu preciso de ti... – ele falou baixo – É mais forte que eu.
Eu não sinto isso com ninguém... Eu já falei... Eu gosto de
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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mulheres, não sinto nada por outros caras, só contigo. É uma
necessidade. Tu é diferente... Eu preciso te cuidar, estar contigo.
Por que tu não vem de uma vez? Não aguento mais... Essa
ausência.
Não tinha resposta para aquilo.
Em seguida dormimos.
Na manhã seguinte quando entrei no carro, sentia como se
fosse um condenado. Era maior que eu, do que minha vontade:
eu precisava voltar a meu trabalho, a ajudar aquelas pessoas.
Seriam mais semanas assim, percorrendo a região, o mundo...
Fotos, testemunhos, palavras sem fim. Apertos de mão, hotéis e
o pôr-do-sol em tantos lugares diferentes.
Cruzei os braços sobre a direção e apoiei a cabeça.
Batidas no vidro.
Olhei e abri a porta do carro... André em sua roupa branca
se abaixou para me juntar num abraço apertado. Ele sabia que eu
não queria sair dali. Eu ainda visitaria meu pai, claro, mas logo
ganharia a estrada, partiria.
Em seus braços eu era o Anjo, aquele Anjo. O menino que
perdera a mãe no acidente de carro... O que apanhava do pai
bêbado. O que havia sido salvo por ele. Aquele que amava comer
bolo, e que era preguiçoso. O garoto que escrevia num diário, e
cuidava de seu gato Momo. O menino dos olhos que ele
comparava a lagos. O simples e bobo Anjo.
Ainda recostado em seu ombro, pude ver a cidade
despertando com uma fina garoa sobre ela. E a glória com a qual
as pessoas não sonham: poder viver em sua anônima rotina. Para
mim, isso seria tudo. Os raios de sol procurando brechas entre as
nuvens e o ar maravilhoso, úmido, exalando o perfume de
plantas e pedras.
Ele beijou minha testa.
Eu sorri. Ele sorriu.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Anjo e André são personagens do livro Cidade do Anjo (Editora Escândalo, 2012)
– uma história gay adolescente. Clique aqui e conheça!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Vento Triste
Caminhamos durante dias encarando a claridade do
deserto. A luminosidade intensa das areias machucou e queimou
nossos rostos; meus olhos e minha boca secavam diante do sol
implacável, e não encontravam alívio no frio congelante da noite.
Estávamos assim há muitos dias, perdidos do grupo, sem
esperança de que ainda conseguíssemos cumprir nossa missão.
Tudo dera errado, e não sei se poderia dizer que era “sorte” o
fato de termos encontrado aquela caverna. As pedras ao redor
cheiravam a couro de réptil, e provavelmente amanheceria em
algumas poucas horas. A luz das luas era suficiente para trazer
uma claridade suave e angustiante: não tínhamos água, nem
comida, meu estômago doía e minha garganta já estava
arranhada. Não duraríamos por muito mais, é claro.
Contudo, eu morreria com honra, do modo como sempre
fui: um guerreiro.
Anjo tossiu.
Quando meu clã me enviou pra tomar a liderança da
missão eu logo bati o olho nele e meu instinto gritou que ele
causaria problemas. Ali estava ele, obviamente, em condição bem
pior do que a minha. Eu treinei árduo, encarei batalhas, aprendi a
usar armas, a sobreviver até o último minuto. Ele não... Ele era a
escória da sociedade, tão reles quanto um escravo.
- Seus pensamentos estão altos... – ele murmurou e se
virou para mim; seus olhos brilhavam, acompanhando o tremor
do seu corpo. Não podia culpa-lo disso: o deserto em que nos
enfiamos era um dos mais perigosos do nosso mundo porque
durante o dia era terrivelmente quente, e à noite se você
caminhasse lá fora, congelaria. Nas noites anteriores, foi a única
vez que vi uma magia da Luz ser útil, pois ela serviu pra nos
aquecer um pouco (bem pouco, pra ser sincero). Pra variar os
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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clérigos da Luz sempre conseguiam ferrar com tudo o que eles
tocassem, e graças àquilo fomos emboscados por mariposas
gigantes.
- Vá se ferrar, Anjo – grunhi trincando os dentes, eu estava
puto.
- Vá você... – ele teve coragem de responder.
Se eu pudesse eu teria cortado a cabeça dele já, mas pior
do que caminhar com um clérigo da Luz é matar um. Dizem que
até mesmo eles são proibidos de se matarem. Uma lenda antiga
conta de uma cidade inteira que se dissipou porque um deles foi
martirizado, e com isso foi amaldiçoada e toda a vida nela se
extinguiu. Lógico, isso era só uma lenda, mas nunca se sabe.
Algumas lendas são mais do que mitos: são avisos.
Eu estava resistindo ao sono porque estava com medo de
ficar inconsciente. A água tinha terminado no dia anterior, a
comida também. Os animais desse deserto, em específico,
possuem sangue venenoso, por isso nem bebê-lo nos afastaria da
morte. Tomar urina não era um panorama animador.
Comecei, então, a tentar lembrar onde tudo aquilo tinha
começado.
Um cara misterioso veio em nome da Velha Cinzenta. Ele
reuniu um grupo, pagou bem pelas pessoas que iam participar,
nos mandou recuperar um suposto artefato. A princípio se
tratava de uma ruína além da Floresta Escura, mas quando
chegamos nas proximidades fomos atacados por criaturas das
sombras. Foi impossível que não nos dividíssemos, e logo com
quem fui parar? Nos dias que seguimos, tivemos que fugir, e além
de tudo descobri observando das montanhas, que os bárbaros
estavam se reunindo de novo com os trolls, o que significava uma
guerra no porvir. Nuvens espessas de fumaça estavam atingindo
nossas terras há semanas já, e então ali eu percebi que eram eles.
As tribos estavam bem mais organizadas do que antese e como
se não bastasse, caímos numa armadilha besta de ladrões
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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iniciantes, tivemos nossos pertences roubados, e cercados de
inimigos por todos os lados, só nos restou o deserto.
Termos colocado o pé naquela areia foi um modo
politicamente correto de concordarmos que estávamos
condenados à morte, porque até aquele momento não existiu um
ser humano que tivesse saído de lá que não fosse invenção de
histórias pra agradar crianças antes de dormir.
Lá fora uma brisa começou a soprar.
- É verdade que vocês não fodem? – eu precisava me
distrair com algo, pois ouvi um som de metal arranhando e isso
era sinal de que minha sanidade morreria antes de mim.
- O quê? – Anjo franziu os olhos.
- Os seguidores da Luz... – murmurei – Que vocês não
fodem. São virgens.
Achei que não teria resposta, mas ela veio do amontoado
de roupas brancas, manchadas de terra preta e sangue seco.
- É... – ele desviou o rosto.
- Que merda. Não tem nada como uma noite num bordel,
com muita cerveja e mulher.
- Que bom pra você, André. Eu não sinto falta de nada
disso.
- Vocês são loucos. Por que raios tu foi se meter nessa
ordem? Todo mundo sabe que não tem nada mais vergonhoso
pra um macho do que vestir o branco. Tu com certeza manchou a
honra da tua família.
Anjo encontrou forças pra erguer um pouco o corpo. Ele
estava cansado... Sem o amuleto e sem um templo ou oratório,
ele não conseguiria recuperar naturalmente a graça da Luz.
Restava-lhe bem pouco, e era possível ver em seu rosto magro as
olheiras fundas. Seus cabelos eram completamente brancos
como os de um idoso, e os olhos, quando os vi, eram violáceos.
Era bem estranho pra falar a verdade, eles eram todos assim, não
parecia natural – parecia que eram todos cópias uns dos outros.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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- Eu quase não lembro deles mais... – falou em tom de
tristeza – Quando a gente veste o branco, a gente muda. Eu não
fui sempre assim... – apontou pra si mesmo – Meu cabelo era da
cor do trigo, e meus olhos eram da cor do céu da primavera. Eu
escrevi pra não esquecer, todos escrevemos... Que eu estava ali
porque eu havia trazido desgraça à minha gente. Eu ainda sei... –
hesitou – Na verdade eu acho... Que tinha um pai, uma mãe, uma
avó, e uma irmã. Eu não sei o que eu fiz... Só sei que lembro da
palavra “diferente”. E eu tenho escrito que eu era diferente, e
tinha amaldiçoado a minha família por causa disso.
- Isso é... – eu refleti por um instante – Horrível. O que tu
fez?
- Não sei... E cada dia que passar vou lembrar menos deles,
e vou esquecer. Um dia, se eu tiver sorte, vou me esquecer do
meu nome também. Na verdade, eu não sei se Anjo é o meu
nome. Mas pra mim... Eu sempre penso que é uma sorte ter
encontrado um lugar.
Sorte, de novo. O conceito de sorte não andava muito
confiável por esses tempos.
As virgens da Luz eram as mulheres mais bonitas do
mundo, mas não podiam casar. Quem deitasse com uma,
morreria. Não se sabe se antes ou depois de consumar o ato... E
ela também. Os poderes dos homens nunca são como os das
mulheres... Eles são bem mais fracos. Portanto, se ser uma
seguidora da Luz já não era lá bom negócio, ser homem nisso...
Porra, era pra servir de chacota! Eles não eram aceitos, exceto se
fossem doados... O que quer dizer, Anjo era diferente e
vergonhoso pra família dele muito antes de ele mesmo entender
quem era.
- É um fardo lembrar de certas coisas – ele ponderou – mas
a Sacerdotisa diz que quando eu tiver cumprido meu aprendizado
a Luz vai me abençoar com o esquecimento. Meu papel vai ser
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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rasgado, junto com meu nome... – ele se encolheu – Não sei o
que fiz, só sei que dói.
Balancei a cabeça. Anjo era outro mundo.
Olhei meus braços: eu tinha cicatrizes, grandes, pequenas.
Tinha lutado pela minha vida desde cedo pra honrar meus
ancestrais. De onde eu vinha, a história e a sua vida eram os bens
mais preciosos, o maior orgulho de um homem. Esquecer,
mesmo que fosse uma tragédia, era considerado fraqueza. Não
ter uma história... Era impensável, ela era tão preciosa quanto o
ouro para nós. Mas uma coisa eu entendia: a dor de ser doado.
- Eu... – demorei algum tempo para recobrar as forças e
falar – Minha tribo me doou pro clã de guerreiros do leste.
- Por que, André? – foi a vez dele querer saber.
- Quando nasci matei meu irmão gêmeo. Um xamã previu
que eu traria a morte pra tudo que me amasse... E que eu
amasse. Então eu fui criado pra ser um guerreiro... Porque a
morte sempre ia me acompanhar. E quanto mais aprender a ser
forte, e não sentir... – demorei um novo tempo pra dizer –
Amor... Eu vou vencer ela.
Aliás, iria vencer. Agora eu ia morrer de qualquer jeito,
mesmo sem ter amado.
Por um segundo, achei que o clérigo da Luz tinha
derramado uma lágrima, mas ele passou a mão sobre o rosto
rápido demais pra que eu pudesse ter certeza. Isso era ridículo.
Eu nunca chorei, nem de dor.
- Sabe o que eu queria agora? – ele deitou e pareceu
relaxar – Uma boa comida, e um litro de vinho.
- Tu deseja pouco... – eu deitei também, ao lado – Eu
queria duas dançarinas de Tulipa, elas são as mais sensuais. Ia
tomar cerveja até vomitar... E comer elas até o fim da noite.
- Você é desprezível – a voz dele falou.
- Eu... – meu pensamento falhou.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Confesso que eu achei que tinha morrido, porque pra mim
morrer era isso: um estalo e o nada. Não acreditava muito nessas
coisas de fantasma ou de mundo dos mortos, apesar de que
depois do encontro com as criaturas da floresta eu comecei a
duvidar um pouco disso. Tudo ficou preto e abafado... E então
um estrondo forte fez tremer as pedras e um ganido agudo me
alertou. Meu corpo não respondia direito, e lá fora já era dia alto.
Eu estava suado e Anjo também. Levei a mão ao cinto e puxei a
adaga que tinha encontrado na entrada do deserto, era uma
arma de mulheres e ladrões, mas teria que servir.
- Socorro! – Anjo me assustou, ele acordou num salto.
- Quieto... – eu pedi.
- Eu tive um sonho... – ele estava aterrorizado – O mesmo
pesadelo. Eu estava no corredor de vidro e metal, com vários
tronos alinhados... Eu usava roupas diferentes, calças... E eu
estava arrependido de alguma coisa. E aí depois eu lembro do
vidro... A minha mão estendida num vidro, e do outro lado eu
não podia ver, não podia! - balbuciou – Tinha alguém lá, e eu não
conseguia tirar a mão.
Era só o que me faltava agora, mais uma vez essa droga de
história de pesadelo.
- Se acalma, é só um sonho estúpido... – disse perto dele.
- Dessa vez foi diferente...
Ele me mostrou a mão direita: ela estava vermelha,
queimada.
- Que bruxaria é essa? – me afastei cauteloso.
- Eu tenho alergia a vidro – ele parecia estar tão assustado
quanto eu, depois se tornou distante – eu não posso tocar vidros
ou espelhos. Eles queimam a minha pele. Eu acho que isso é uma
maldição e que esse sonho tem a ver com isso...
- A Luz não te cura dessas coisas? – estranhei.
Um novo estrondo e agora outro ganido alto. Fiz sinal que
ele não se movesse. A conversa teria de esperar.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Respirei fundo e me movi cautelosamente até a entrada da
caverna.
Quando vi a sombra desenhando círculos nas dunas eu
pensei que aquilo era fantástico. Em outras épocas, a visão de um
dragão de areia teria sido um fato e tanto pra contar nas rodas de
fogueira à noite. Mas a proximidade com um era perigosa, ainda
mais ali – ele devia estar tão faminto quanto nós. Seu voo circular
significava que ele já nos tinha farejado e logo desceria para nos
espreitar e devorar o quanto antes.
- André, o que foi isso? – ouvi a voz perguntar baixinho,
vinda de trás.
- Um dragão de areia – respondi, e voltei ao interior.
- O que faremos?
Eu não sabia nem como a gente continuava vivo. Eu sentei
e olhei ao redor, o furor e o reflexo de sair e caçar o dragão era
muito forte pra mim. Meus olhos estavam dilatados e eu ouvia os
ganidos com raiva. Não tínhamos uma arma decente, não tinha
outro guerreiro com quem contar pra uma estratégia. Eu tinha
comigo apenas um fracote, e uma lâmina de má qualidade que eu
nem sabia se chegaria a arranhar a pele do animal.
- Tu fica aqui, e eu vou lá fora enfrenta-lo.
Anjo pareceu inconformado... Percebi seu olhar alarmado à
procura de algo, a mesmo ação que eu tinha feito em poucos
segundos. Ele sabia que era limitado e que não ia ter como
ajudar. Meu coração já pulsava e minha mão apertava a bainha
da adaga. Que se fodesse tudo, eu ia morrer lutando, eu ia honrar
meu clã.
- Vou lutar com você. Eu tenho que te ajudar.
- Tu já ajudou. Além disso, tu está com pouca graça –
respondi.
Isso significava que qualquer bobagem de Luz que ele
tentasse poderia sugar a energia vital do corpo dele pra
funcionar. Eu não estava disposto a contar com a morte de um
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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inútil pra me ajudar, até porque não me ajudaria em nada.
Duvido muito que uma faísca ou uma oração de cura de
arranhões leves ia explodir a besta. E além disso, eu era o líder, e
o líder nunca pode sacrificar ninguém além de si mesmo.
Lembrei-me das lições do Pai Velho – nosso chefe. Dragões
de areia respondem rápido se você sibilar como cobra – eles
amam devorar serpentes do deserto, o que era um pouco irônico
porque é como comer seus primos.
Na entrada imitei o som, lento e baixo, mas o suficiente pra
alertar o inimigo. Ele abanou as longas asas e desceu
rapidamente de sua dancinha aérea. Quando o vi, majestoso,
queria logo pular nele e tentar mata-lo do jeito que fosse. Seus
olhos espertos e dourados me observaram enquanto fungava, ele
parecia sorrir (se isso fosse possível). Sem alimento ele não usaria
o sopro de areia porque estava visivelmente fraco. Sem um
escudo, e mesmo com um, um sopro de areia seria como ser
varrido por lâminas.
Tratei de correr e ele automaticamente mudou de posição,
mantendo contato visual comigo. Ele parecia um filhote porque
suas garras afiadas ainda eram curtas... Ele abriu a boca, o hálito
de pântano me nauseou no mesmo instante. Quando ele tentou
me morder, pulei sobre sua cauda, desviando do ataque e de
suas garras implacáveis me perseguindo. Por pouco seus dentes
não me fizeram perder a perna direita e eu tentava a todo custo
encontrar a abertura no peito onde eu pudesse lhe apunhalar o
coração – tarefa impossível.
Ao longe na entrada da caverna, Anjo, em sua túnica
branca curta me observava lutar. Meus cabelos pretos se
cobriram de poeira, e a falta da armadura me trouxe novos cortes
que com “sorte” iriam virar cicatrizes. Eu sentia urgência em
matar o dragão, e não sei exatamente como, mas quando ele
tentou se lançar sobre mim, eu girei no ar e enfiei metade da
adaga no peito da fera. O dragão de areia recuou e gritou, urrou –
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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isso foi apavorante - e então rapidamente ergue-se num voo para
longe, em fuga.
Exausto, revirei os olhos, arrastei os pés até a entrada da
caverna e caí de olhos fechados. Já desidratado, eu suava e
sangrava, então, isso era péssimo. Senti que a mão do clérigo se
colocou sobre meu cabelo... Meus olhos cinzentos deviam estar
sem direção, porque eu não conseguia ver direito, só ouvia o som
da voz de Anjo ao longe. Eu estava sentindo um sono diferente, e
agora sim eu simplesmente sabia que assim que ele parasse de
me chamar eu iria dormir para sempre.
Ele me balançou e eu vi como uma luz tenra passar por
mim.
Lutei comigo mesmo, abri os olhos.
Precisava ser forte mais uma vez.
- André, eles estão vindo... – Anjo estava fraco, exausto. O
desgraçado tinha usado o resto de graça pra me acordar. Eu não
queria agradecer isso, parecia errado. Quando fitei o horizonte,
foi então que visualizei uma revoada de dragões de areia,
provavelmente a família daquele a quem eu havia ferido. Ok, já
estava cansativo adivinhar qual seria o momento em que iríamos
morrer, mas isso agora era demais. Eu apenas estiquei a mão
ferida, com sangue escorrendo, formando uma mistura com a
areia.
O pequeno clérigo olhou angustiado para as sombras se
aproximando no chão à frente.
- Vamos morrer, Anjo... – murmurei - Obrigado.
- Não, André, você viverá! – ele derramou uma lágrima –
Você esqueceu que precisa dominar três armas pra ter distinção
de guerreiro chefe?
Que bobagem!
Eu não sei como ele sabia disso, mas esse era mesmo meu
sonho. Quando eu contei? Será que antes do meu pensamento
apagar na madrugada? Eu não sei... Só sei que não consegui ficar
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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em pé. E inesperadamente, Anjo me tocou e beijou meu rosto.
Em circunstâncias normais um homem teria morrido por muito
menos, mas aquilo foi diferente. Aqueles lábios... Era como se os
conhecesse, algo familiar, misterioso e errado ao mesmo tempo.
Antes de correr até o círculo de sombras, o clérigo olhou
pra trás e estava chorando e sorrindo. Quando chegou ao centro,
pôs logo as mãos sobre o peito.
Entre os sons dos dragões, ouvi sua voz bradando:
- Luz da Vida, conceda-me o Favor! Vinde a mim, pela força
da minha ordem – ergueu o braço – Seu poder a meu comando,
traga-me sua fúria...
Ele estava conjurando um Favor, ele não podia fazer isso!
Um Favor é uma das técnicas mais poderosas que um clérigo
pode usar, e todos aqueles os quais conheci e a executaram, em
situações extremas, haviam morrido. Eu não sei exatamente
como, porém eu corri, com os joelhos falhando, mesmo caindo, 4
fui em sua direção. Era meu instinto de novo.
- Anjo, não!
Ele me viu e esticou um dos braços com a mão aberta para
mim, sua força de intenção me paralisou – isso era ruim também
porque lhe exigia uma carga ainda maior de energia.
- Não, André... Se tiver que te parar não vou ter força
suficiente, fique aí!
Ele olhou pra cima, eu estava vendo que ele estava com
medo, e o círculo estava se fechando acima dele. Era insuportável
vê-lo com medo e não fazer nada, esse não era eu! Sua mão
queimada que me barrava cedeu, mas eu não consegui recuar.
Os dragões começaram a ficar revoltados e atiçados pela
presa logo abaixo. Percebi quando o maior, o líder da serpentária,
fez menção de mergulhar. Eu não ia deixar isso acontecer! Eu
corri, mesmo sabendo que nada nos salvaria... E meus joelhos de
novo falhavam. A quase cinquenta metros, era lindo e terrível
assistir os dragões de areia dançando para baixo em direção à
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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terra, à Anjo. Porém, tão logo o envolveram e eu gritei, buscando
minha adaga, um estrondo novo foi ouvido, muito maior, como
se a ponte de ferro do rio de lama tivesse sido rasgada ao meio.
Um raio vindo sabe-se lá de onde atingiu cinco deles, que
caíram espalhados. Um tornado surgiu e começou a causar
problemas às asas dos dragões – ele vinha de baixo para cima.
Trovões ressoaram, e numa explosão branca que eu sei que
nunca vou esquecer mesmo que viva até a velhice, clareou o céu
e se refletiu na areia abaixo. Se eu não tivesse tapado os olhos,
eu estaria cego. Com o estrondo, corpos de dragões despencaram
inertes... Era incrível a magia que o preço de uma vida podia
realizar em conjunto à graça.
Anjo caiu, e a poeira formou uma nuvem ao seu redor.
Fui até ele, ele não devia ter feito aquilo! Eu morreria com
ele ali, era o mínimo que eu podia fazer.
- Você vai viver... – ouvi ele soprando, a poeira ainda no ar,
branca.
Seus olhos se fecharam, e eu entendi.
Assim que ele expirou uma gota de água caiu em sua
testa... Depois outra, mais outra... E na boca semiaberta. Olhei
para cima e vi as nuvens grossas e brancas, cinzas como meu
olhar, despejando água. De tranquila, ela se tornou forte, feroz...
O céu estava chorando porque Anjo morrera. A Luz iria me
amaldiçoar por isso? Eu bebi, juntei as mãos e bebi, arfando. Eu
estava bebendo e me salvando na morte de Anjo, isso era uma
covardia brutal. Eu nem podia imaginar como seria viver
carregando essa vergonha.
E era impossível que estivesse chovendo naquele deserto.
Eu puxei Anjo, e o abracei.
Com um solavanco, coloquei-o sobre meus ombros, e
marchei para o sudoeste, sabendo que ali teríamos chance de
chegar até a cidade de onde saíramos. As forças me faltavam,
mas a chuva me acompanhava, e por ser água abençoada, estava
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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me curando. Eu honraria o sacrifício dele, ele teria o enterro de
um herói, mesmo sendo um clérigo da Luz.
Então, tardiamente, percebi que de algum modo incômodo
eu me importava com ele.
Caminhei sem parar com a ajuda da natureza. Um vento
triste se espalhou pela campina ao entardecer assim que cheguei
ao posto vazio da fronteira e ali parei... A força das águas
diminuíra e eu me sentia mais e mais cansado. Depositei o corpo
no chão e sentei a seu lado, escondendo o rosto com as mãos.
Meus olhos estavam úmidos... Por quê?
Num pulo saquei minha adaga em direção à velha que me
olhava. Ela surgira vinda do nada, e se escondia na sombra do
prédio abandonado. As tradicionais vestes negras falavam por si:
era uma necromante. Estava à espera, como um corvo.
- Eu ouvi um coração batendo na porta da morte – ela
sorriu, os dentes podres.
- Do que está falando?
- O menino da Luz ainda vive... Eu posso tirá-lo das mãos da
morte, eu tenho esse poder.
“Você está disposto a dar sua vida pela dele?” – seus olhos
brilharam, maliciosos. Olhei o rosto sem cor de Anjo. Só então,
consegui me sentir aliviado; mesmo com os dragões de areia
trucidados eu não senti o alívio que senti ali. Eu assenti com a
cabeça, sério. Um negócio com uma necromante, contudo, nunca
era o que parecia; seguidores da morte sempre querem algo de
nós. Ela entrou na sombra, e uma porta surgiu na parede. “Está
pronto para viajar?”. Eu estava.
Anjo e André são personagens do livro Cidade do Anjo (Editora Escândalo, 2012)
– uma história gay adolescente. Clique aqui e conheça!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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A Noite Histórica
Os guris sabem que eu sou passivo, que eu não como, que
eu não gosto de comer. E por isso mesmo eles me infernizam,
ficam fazendo piadinha o tempo todo. O pior de todos é o Fábio,
que vive como se um dia tivesse sofrido uma overdose de drogas
e nunca mais tivesse voltado da viagem. E o que eles fizeram pra
mim naquela noite eu tenho anotado na minha lista negra.
Estava eu em minha casa, descompromissadamente
jogando RPG com meus amigos da rua, num seleto grupo que se
reúne todo sábado pra tomar Coca-Cola e interpretar
personagens medievais. Eu sempre sou o guerreiro. Não sei por
quê. As pessoas quando acham que eu sou gay logo esperam que
eu vá ser uma elfa prostituta nível 100. Engano delas.
O maldito me ligou uma vez, duas vezes, vinte e duas vezes
no celular.
Todo mundo já começou me xingar e eu tive que sair do
meio da batalha contra o dragão zumbi pra atender a porra do
telefone de casa, porque minha mãe invadiu o quarto e disse que
se eu não falasse com o Fábio ela ia denunciar ele pra polícia. E
por um minuto eu fiquei com vontade de ver a polícia levando
ele, colocando ele num camburão (se coubesse ali dentro), mas
eu fiquei com pena dos outros presos. Pedi licença, fiz a egípcia,
fechei a porta e deslizei com toda a minha educação até a sala.
- Que é? Não me diz que você tá sem carro e precisa de
carona porque eu não vou sair de novo!
Eu prometi a mim mesmo que nunca mais ia dar qualquer
tipo de carona pra ele depois que numa madrugada ele mentiu
que precisava de remédio pra asma e eu era a pessoa que ele
mais amava no mundo. E na verdade o remédio dele foi um
lanche do Drive-Thru que levou uma hora pra ficar pronto porque
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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todos os gordos desgraçados dessa cidade resolveram comer ao
mesmo tempo.
- Sossega, biba.
- Não me chama de biba!
- Bora balada de bicha. Hoje vai todo mundo. E você
também.
- Não, eu não vou! – falei com firmeza.
- Vai sim, tem esquema. Um amigo meu de São Paulo tá
aqui, ele tá louco pra te conhecer.
Aí a coisa muda de figura.
- Amigo? – perguntei, já deixando amolecer um pouco meu
vigor.
- É... Ele é advogado, sabe. Tá vindo pra cá, é gay bem do
teu tipo. Meio oriental.
É aí que eu me refiro.
- Às onze e meia tô passando aí – sentenciei.
Voltei pro quarto, ainda tinha quinze minutos de jogo antes
da sessão de filmes. Como eu ainda tinha opção de usar duas
espadas fiz uma chacina rápida, contei meus pontos de
experiência e pedi desculpa pro pessoal por encerrar ali. A
maratona do Senhor dos Anéis ia ter que ficar pra outro dia
porque naquela noite o precioso era só meu.
Tomei banho, gritei umas duas vezes fazendo a porra da
sobrancelha, passei lápis no olho e na porra da sobrancelha,
coloquei um pouco de corretivo, vesti a camiseta xadrez, uma
calça apertada (que o Rodrigo uma vez apelidou de “clausura”),
penteei a porra da sobrancelha, me lavei de perfume. Estava no
melhor possível praquele momento memorável aonde eu ia com
certeza conhecer o futuro pai dos meus filhos. Eu estava digno de
atualizar minha foto do perfil!
Cheguei na frente da casa do Fábio, buzinei uma vez. Duas.
Ansioso enfiei a mão na buzina, caralho! Ô gordo filho da puta
esse, cara!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Ele saiu sozinho e aí eu entendi: aquilo só podia ser mais
uma artimanha do obeso pra me fazer sair. Na mesma hora
pensei em Frodo e pedi perdão mentalmente. Se voltasse
naquele instante pra casa eu ainda podia ligar o computador e
passar uma bela noite jogando MMORPG.
- Tô aqui! – ele cantarolou imitando uma menininha e
depois me deu um beijinho melado no rosto que limpei com a
mão na mesma hora. Afundou com gosto o banco do carona.
- Era mentira, né? – fulminei-o.
- Bora pegar Rodrigo e o Alexandre?
- Não acredito que eles vão! Sério? – isso era histórico.
Bom... Vou pular a parte em que passamos na avenida e o
Fábio TEVE que colocar a bunda na janela.
Daí todo mundo se encontrou, aquela merda toda.
Chegamos na boate e eu, como sempre, sou o mais rejeitado. O
Fábio tirou uma travesti pra dançar que ainda passava a mão na
barriga dele como se fosse um pote de ouro. E nisso outra
travesti que parecia uma pirata com perna de pau porque tinha
uma perna mais fina que a outra, se esfregava nele e ele nem aí.
Revirei os olhos.
- Tem um cara te olhando! – o Rodrigo falou.
- Sério? Deve ser engano!
- Não é, olha ali discretamente pro lado do banheiro.
Que discretamente o quê, cacete. Se tá me olhando eu vou
ficar fazendo fita? O mar já não tá pra peixe. Olhei na cara dura e
o Rodrigo quis se enfiar pro outro lado do balcão do bar.
O “cara” era um menino que aparentava doze anos de
idade, com cabelo loiro e tão cacheado que parecia um ninho de
pombo. A calça dele era ainda mais apertada que a minha e se
alguém não fosse lá e cortasse aquilo, tenho certeza que a
circulação dele parava em questão de minutos. Fiz o carão pra ele
e o apelidei mentalmente de “mini biba”.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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- Que foi? Não gostou? – o Rodrigo ainda teve a cara de
pau de perguntar!
Fingi não ter ouvido. Peguei o celular. Twittei.
Começou a tocar a Rainha Madonna e eu fui correndo pra
pista. Na hora que toca Madonna, ou uma diva qualquer, as bicha
vira tudo amiga! Eu mesmo viro a supersociável! Até aceitei subir
no pole dance com o Fábio e a pirata. Só não topei o beijo triplo
porque isso é muito anos 2000, e Give Me All Your Luvin’ não
pede esse tipo de coisa. E do alto do meu posto, matreira como
sou, no meio da luz negra enxerguei o Alexandre, que nunca
dança, socializando com um grupinho suspeito de
pseudointelectuais que parecem aqueles estudantes de filosofia,
que sempre resolvem se enfiar sabe-se lá por qual motivo em
festas LGBT.
Fui até lá e já um pouco alto que estava de ter bebido do
copo do Fábio (inconsequência total isso), abracei o Alexandre
pela cintura e dei um oi como se estivesse chegando no auge da
animação em quadra de escola de samba. Só não ouvi os grilos
cantando porque estava tocando um remix podre, mas vi que a
conversa cessou na mesma hora.
- Ah... Esse é o Tales... – o Alexandre me apresentou.
Todos levantaram as sobrancelhas. Porém, tinha um ali
com potencial! Ele era da minha altura e tinha uma cara de
inexperiente que me seduziu!
Fazendo o tímido, voltei pra pista, e encontrei Rodrigo
voltando com um copo amigo. Virei o copo amigo na minha boca.
Ele me xingou de uma dúzia de nomes. Com raiva, peguei uma
nota de vinte e coloquei na mão dele dando um tapa em cima:
- Tá aqui, meu bem! Sou rica, tá? Vai comprar teu leite
neném. Exu! Avarento.
Aquilo tudo tava me dando uma loucura, uma vontade de
tudo!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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De repente eu estava dançando igual Britney até o mundo
acabar, e nisso eu via os olhares cravando em mim. Eu estava
grudado na barra que separava a pista do bar, rebolando até o
chão. Foi quando meu baixinho inexperiente veio pro meu lado
sem saber dançar porra nenhuma, e eu virei pra ele e grudei ele
já no beijo.
- Ai, eu tava muito a fim de ti! – escutei.
Quando ele disse isso eu juro que nunca tinha ouvido uma
voz tão de pintosa como aquela! Na hora me deu um nojo, que
eu nem dei desculpa, só larguei fora o mais rápido que pude. Só
vi de longe o Alexandre rindo com aquela boca cheia de dentes, e
mostrei o dedo médio pra ele. Tava virando aprendiz do Fábio,
né? Deixa que o que era dele tava guardado.
Fui pro banheiro, meio tonto, e lá o gordo estava
conversando e fumando com uma rodinha de “amigas”.
- Ai, a gente não é lésbica! – uma falou.
- Que pena... – ele riu – E vocês são o quê?
- A gente estuda! Psicologia!
- Eu também!
O quê?! Eu não acreditei naquilo. Só se fosse Psicologia na
universidade do meu cu!
Tive que esperar alguém se foder dentro do banheiro e
depois sair pra eu poder usar. O vaso entupido de papel como
sempre, a porta sem trava como sempre, e eu lutando com o
zíper como sempre. E quando eu finalmente consigo mijar, a
porta abre.
- Aproveita povo, que tá 10 reais esse rabo moreno! – o
Fábio gritou.
Os caras no mictório riram de mim, e as meninas
amiguinhas dele também.
Quando eu acabei, passei e meti um soco em sua barriga
obscena. Avistei o Alexandre no bar, fui lá e roubei a bebida que
ele tava segurando.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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- Por que você tá pegando a minha? Hoje é open bar cara!
– ele respondeu já indignado.
- Ah é? – retribuí antipático.
O garçom repôs a dele então a roubei na mesma hora e saí
me sentindo a Rainha da Antipatia. Só aí lembrei que eu tinha
dado vinte na mão do puto do Rodrigo.
Eu juro que até hoje eu não entendi e nunca vi isso
acontecer outra vez: algum dos DJs deve ter se enganado, eu não
sei! Começou do nada a rolar um remix daquela, pasmem, exapresentadora infantil do Xis! Aquela boate parecia que ia vir
abaixo... Eu só vi o Fábio jogando bicha pra tudo que era lado
igual pino de boliche, abrindo caminho pra chegar na pista. E até
o Alexandre veio com nós, e o Rodrigo, e a gente se abraçou e foi
um vuco vuco... Passei a mão na bunda de uns cinco caras
enquanto tava na parte do nheco-nheco, xique-xique, balancê!
Já suado, tive de recorrer à área dos fumantes onde um
pessoal muito estranho com cara de chapado estava divagando.
Fui ali, tentei me secar na frente de um ventilador, e depois
voltei. Nessa volta a mini biba vinha na minha direção pra falar
comigo, então prontamente desviei o caminho - foi quando
aconteceu. Um holofote branco veio em cima de mim e foi igual
tivessem me dado um soco na cara.
- Pessoal, meu amigo tá de aniversário hoje!
O Fábio tinha aprontado essa comigo.
Toda a boate cantou parabéns pra mim... Eu bêbado, com
o olho borrado, a cara tão suada que minha chapinha já tinha ido
pra puta que pariu, não ia dar pra ser simpático, ah não ia. E no
fim o Fábio ainda trocou o verso: “muitas felicidades / muitos
anos de passiva!”.
- Passiva, passiva, passiva! Tales! Tales! Tales!
E quem disse que eu conseguia andar depois? Todo mundo
veio me dar parabéns. E como eu ia explicar que meu aniversário
era no outro mês ainda? Ah que se fodesse. Comecei a beijar,
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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abraçar, imaginei que todo mundo era íntimo. Tirei foto, bebi do
copo da bicharada toda, e no final ainda passei pelo barman que
eu sempre achei um gato e dei um selinho na boca dele, antes de
sair correndo.
A essa altura vejo um cara que eu ficava há eras, ficando
com a mini biba! Eu sabia que o cabeça de ninho tinha uma
energia ruim, eu senti que ele era perigoso!
- A gente tava te procurando! – o Rodrigo me puxou.
- Que foi? Não me diz que você viu aquele teu ex também?
O das frutinhas? – debochei com classe.
- Ah cala boca. O Alexandre que ir embora, ele tá bêbado,
passando mal...
- Ai não, não me diz que ele tá chorando de novo.
Apertei “Esc” e fui lá. Consolamos o Alexandre e o Fábio
voltou com uma meia-calça nos ombros (don’t ask, don’t tell).
Nisso fomos pra rua. Agradeci aos deuses LGBT por voltar a
respirar ar puro. E nisso, um cara chegou perto de mim, pegando
na minha mão.
- Ei, parabéns... – ele disse – Não te dei um abraço.
- Tudo bem, amor. Meu aniversário não é hoje mesmo...
Virei: de terno preto, olhinho puxado, pouco mais alto que
eu. Só pela voz grossa já valia a pena, mas ele conseguia ser
estupidamente lindo e oriental (meu ponto fraco). Olhei pro
Fábio que fez carinha de Ursinho Pooh (ele tinha mesmo um
amigo advogado!), um sinal de positivo (curti), e na mesma hora
respondi de novo pro cara:
- Mas você pode me dar os parabéns agora, é claro!
Ele abriu um sorriso perfeito e me abraçou. E depois ele
me beijou. E depois a gente ficou enquanto o Alexandre vomitava
e o Fábio oferecia um copo de vodca pra ele, pra ele melhorar. O
Rodrigo discutia com o ex (o emo-das-frutinhas como nós o
chamávamos), e eu ali pairando nas nuvens. Fiquei imaginando se
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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no RPG o oriental advogado seria meu parceiro, desbravando
masmorras, correndo pelas montanhas.
Mais faceiro que o Gollum, tomei posse do meu precioso.
- Eu tenho que ir – ele falou, rápido demais.
- Mas já? Você não vai com nós?
- Não posso. Não sou daqui, e daqui a pouco quase pego o
avião já. Sabe como é, né?
“Sim, eu sei”. Ali naquela hora eu saberia tudo o que ele
quisesse. Imaginava nossos filhotes de olhos puxados. Imaginava
aquilo na cama, que só pela pegada devia ser um espécime ativo
perfeito. Ouvi o Alexandre regurgitar mais uma vez. Um táxi
chegou e notei que ele estava realmente com pressa.
- Anota meu número? – ele pediu.
- Capaz, vai lá, eu sou amigo do teu amigo!
- Sério? – ele fez cara de dúvida, tão fofo.
“Lógico que vou te add e curtir todas as tuas fotos”, pensei.
Ele balançou a cabeça, feliz. Me deu um último beijo e
depois entrou no carro com outro carinha que me acenou muito
simpático, e eu suspirei.
Fui até o Fábio, bebi a vodca num gole só e abracei aquela
imitação de Hagrid do Harry Potter. Ele me abraçou também e o
Rodrigo também nos abraçou chorando, dizendo que nunca mais
ia falar com o ex das frutinhas, e o Alexandre que estava sentado
na calçada só conseguiu se escorar em nós pra ser solidário. Era
um momento de regozijo, algo quase bíblico, como se o Senhor
tivesse nos dado toda a nossa merecida Vitória.
Depois do ritual do lanche cheguei em casa e dormi.
No dia seguinte minha cabeça doía, e alguns fatos eram
inexplicáveis: por que eu estava usando uma camisa branca? Por
que eu estava com três notas de dez e uma de cinco enroladas
dentro da minha cueca? E por que meu celular tinha um papel de
parede da Hannah Montana? Puro mistério.
O dia todo o puto gordo não me atendeu.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Quando foi segunda-feira, subi no departamento de
publicidade e encontrei ele com os pés pra cima e a mão enfiada
dentro da calça, mexendo no saco. Ele parecia um leão marinho.
Com as mãos na cintura, avancei toda diva e dei um soco na
mesa, que ele chegou pular.
- Quero o número do teu amigo advogado. Agora! –
intimidei.
- Que amigo?
- O amigo advogado oriental, de outra cidade, que ficou
comigo, seu burro!
- O do terno preto?
- É.
- Eu nunca vi aquele cara na minha vida! – riu.
E riu, riu tanto que chegou a pôr as mãos no pinto pra
segurar o xixi. Eu não acreditava naquilo... As pessoas ao redor
começaram a rir também, e eu me senti um idiota, ainda
tentando tirar o refrão da Xuxa da cabeça, vendo meu kamikaze
explodindo levando junto com ele nossos filhos de olhos puxados.
Fosse teatro a cortina fechava ali mesmo. As lágrimas escorriam
pelo rosto rechonchudo e vermelho na minha frente!
Com vontade de matar alguém, cruzei o corredor ao som
mental da festa do estica e puxa e fui ver as fotos da minha falsa
festa de aniversário.
“Parabéns” pra mim!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Pequenos e Curtos
O Caminhoneiro
Talvez eu vire um caminhoneiro heterossexual que aparece
de vez em quando em casa e é traído pela mulher, e tem um filho
com inclinações afeminadas. Ficarei obeso também e terei um
braço mais bronzeado que o outro. Usarei calças jeans
resistentes... Um lado do zíper terá o tecido mais gasto pelas
mexidas e pegadas que darei quase todo o tempo.
Algumas vezes irei para a boleia do caminhão com travestis
exóticos asiáticos. Já pensei em escrever minhas aventuras, mas
não teria tempo. Sempre tenho prazos a cumprir na estrada.
Infelizmente.
Meu filho é quem gosta muito de escrever, está sempre no
computador. Gosta tanto que às vezes vai para a casa do nosso
vizinho que está na faculdade, só para ter aulas extras de
matemática e passa a noite lá. Volta sempre sorridente - o
menino adora aprender!
Eu acho graça dele, meu filho é muito divertido. Às vezes
imita cantoras... Ele falou que as meninas adoram isso. Ele é
muito pegador. Puxou o papai ursão.
Eu adoro os travestis exóticos asiáticos. Especialmente
quando usam roupa de baixo imitando pele de onça. Não sei se
existem onças na Ásia, mas deveria existir, porque caem muito
bem naqueles corpos.
Alerta
As imagens do satélite mostram uma onda de tédio que se
movimenta com velocidade e deve chegar na tarde deste
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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domingo. Os meteorologistas alertam para que a população se
prepare estocando filmes, seriados, amigos engraçados e
alimentos calóricos. A massa de tédio deve se dissipar no início da
segunda-feira com a chegada de uma nova frente fresca com
risco de festas gay open bar.
Conselhos de Shangri-La
Não pareça que está pedindo um encontro. Já chega
largando a barbada pronta, tipo: “Vamos no Shangri-La amanhã à
noite” (inventei um nome de restaurante temático psicodélico).
Dizem que eles servem caldos ótimos com pitadas de LSD.
Eu acho que sempre é bom manter a pose pra pessoa não
ficar se achando. Vai que ela não te quer – seria loucura isso, não
te querer, mas vai que não te quer. Se você parecer que tá
pedindo um encontro ela vai ainda sair com a impressão: “ai,
coitado, ele tá requisitando uma saída, quer meu corpo nu.”
Quando na verdade ela tem que sair pensando: “ele quer meu
corpo nu e eu não quis, sou tão idiota”, e depois te ligar às seis da
manhã após uma noite chorando e pensando no seu cheiro de
macho-alfa.
É porque eu conheço a psicologia dos passivos e
semipassivos. Aliás, eu detesto os semipassivos. Especialmente
quando eles tentam parecer que são semiativos ou ativos. E na
hora H lançam aquela bunda na sua direção, igual a uma voadora.
Isso é sempre uma surpresa muito desagradável.
A Mansão Ideal
Perguntei pra ele: por que você não namora com dois
passivos?
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Ele respondeu: seria uma boa para mim porque eles iam se
odiar nas noites que tivessem que se revezar!
Eu acho deliciosas estas cenas dantescas e já fico a me
imaginar supervisionando tudo, como se eu fosse um tipo de
fiscal da casa usando espartilho de couro e com uma chibata na
mão. Lógico, eu ia puxar os cabelos do primeiro passivo
indisciplinado ou revoltado com sua sina bígama involuntária.
- Você não tá ouvindo que o seu macho quer comer o outro
agora?!
Como castigo, ele seria obrigado e manipular e satisfazer o
segundo passivo, de modo a pagar pela petulância. Consideraria
também privá-lo de alguns seriados favoritos, ou mesmo de
refrigerantes de baixa caloria.
Nessas doces divagações descobri minha verdadeira
vocação: governanta erótica.
- Eu daria uma ótima governanta erótica! – sugeri,
tentando imaginar que tipo de salário receberia. Claro,
provavelmente incluiria insalubridade.
- Ah daria sim, daria... – meu amigo riu – Você tem noção
de que eu consigo imaginar tudo o que você fala?
Certamente eu seria odiado.
- Mas com você nas rédeas eu poderia finalmente montar o
meu harém – admitiu.
Por algum motivo obscuro, sem nem o conhecer, eu já
detestava o primeiro passivo imaginário. Fiquei pensando eu
adentrando seu quarto, machucando-o com tortura psicológica:
“Hoje o mestre não vai usar você, pode ir tomar seu banho logo,
e dormir. Ele vai jantar com o segundo na cozinha. Se eu ouvir
qualquer barulho vindo daqui – qualquer barulho – você sabe o
que o espera, vou trancar a porta agora.”
- Vou jantar na cozinha? Não podia ser um café colonial na
sala de inverno?
- É pra isso que eu sou sua governanta, bebê. Eu organizo.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Suspirei satisfeito e já realizado por antecipação com o
sucesso do meu desempenho no hipotético cargo.
Faroeste Brilhante
Algum dia ainda serei internado por causa das minhas
ideias mirabolantes, mas antes disso hei de viajar no tempo e
pelo menos uma vez irei a um Saloon – um autêntico reduto de
baristas, antigos e másculos cowboys, cavalos puro-sangue, muita
música, tiros e bebida! Quiçá até mesmo uma bola de feno
rolando no meio da rua... Eu seria capaz de correr atrás de uma
para trazer como souvenir ao século XXI.
Quase vejo a mim mesmo com colete, camisa com
franjinhas, chapéu, lindas botas e esporas brilhantes, adentrando
aquela portinha vai-e-vem clássica. Daria um soco sobre o balcão
e ordenaria que me fosse servido um copo da digna Coca-Cola!
Na falta dela, uma Smirnoff. A seguir olharia a todos com cara de
mau, e na primeira oportunidade de olhada feia, não pensaria
duas vezes em arrebentar uma garrafa na cabeça do meu algoz.
Para mim, não bastaria só isso... Seria necessária também
ao menos 01 (uma) briga daquelas de atirar o camarada no local
onde os animais tomam água! E depois eu sapatearia com minhas
esporas lindas, antes de ser levado por um bandido com cara de
Alejandro. Vejo a mim mesmo entrando para as lendas da história
americana ao fazer contato com uma tribo perdida de índios
homossexuais bonitos e carentes. Os ensinaria a plantar e amar, e
então largaria a vida de cowboy para virar algum tipo de
divindade xamã.
Mas jamais abandonaria as botas com pequenos diamantes
incrustados! Isso, jamais!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Desintrodução
Aos bravos exploradores que ao final deste livro chegarem,
recebam minhas graças e venham comigo para o Reino dos
Satisfeitos – o lugar destinado a todos os que conseguem
desbravar até mesmo as maiores nabas da literatura! Bemaventurados todos vós, e que um dia possamos celebrar este
feito ao som do estalar da abertura de garrafas e de música ruim
de bares suspeitos, com sua comida decididamente venenosa.
Convido-o a compartilhar esta saga com todos aqueles que
tiverem forte o coração, sem esquecer-se de tirar todas as
crianças da sala! De modo subversivo e secreto, passai a obra de
mão a mão, como modo de conquistar galanteios, simpatia, e
favores daqueles a quem teus desejos íntimos quiserem tocar.
Escrevei uma cartinha, uma mensagem, enviai um sinal de
fumaça... Fazei um desenho colorido, e celebrai a diversidade e a
alegria, postando-os para mim e para todos aqueles que ainda
não descobriram a dádiva de sair de um mundo pequeno e
cinzento, para um delicioso e colorido além. Dê asas à tua arte.
E quando a noite chegar, ou o momento de nossos
encontros, e nada de inédito houver para ler, ganhes tu a fama
de mentalmente desequilibrado por traçar entusiásticas
representações e interpretações destas histórias. Sede corajoso e
não choramingai agora, no triste momento de nossa separação.
Porém, se o coração apertar e a saudade ameaçar matarte, preencha um copo de refrigerante, sirva uma travessa de
salgados e coloquei boa música pop atual a tocar. Eu estarei
entre vós.
O acima descrito é verdade e dou Fé!
Rafael, Monsieur Nova
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Extras #1
Autoentrevista com o Autor
Numa gloriosa manhã de sol a equipe parou diante da casa de
praia em Arambaré – Rio Grande do Sul, na expectativa de
conversar com o badalado e megalomaníaco autor Rafael Nova.
Num lugar exótico rodeado de figueiras, eucalipto, e o doce som
das ondas da verde praia da Lagoa dos Patos, ele concordou em
dispor de um pouco de seu tempo para conversar conosco e fazer
revelações bombásticas. A seguir, o estranho fruto deste adorável
encontro que se antecipou ao lançamento de “O Delicioso Livro de
Histórias Coloridas de Monsieur Nova”.
Bom dia, Rafael. As pessoas o conhecem como Rafael Nova.
Qual a origem deste sobrenome?
(silêncio) Bem, Nova não é meu sobrenome oficial. Na
realidade “Rafael Nova” é um tipo de nome artístico que eu
adotei como modo de parecer mais interessante e
impactante. Creio que meu nome completo como está em
meu documento de nascença não se prestaria a tal feito.
Além disso, foi em 2006 que utilizei pela primeira vez - e
com sucesso - o pseudônimo na criação de um endereço de
mensagens instantâneas, que a bem da verdade não trouxe
êxito nem nas mensagens e nem no instantâneo.
Você acaba de escrever mais um livro, certo?
(beberica um pouco de chá) Há alguns meses eu fiz uma
grande amizade, cujo nome desejo preservar, mas que me
inspirou a escrever as primeiras histórias rápidas via um
endereço de mensagens instantâneas (não o mesmo da
outra vez, e sim um mais frutífero). Nunca havia pensado
em compor algo do gênero seleção de contos ou pequenas
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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histórias, e foi ali que tive um vislumbre. Mas logo
abandonei a ideia. Em meados do ano de 2012, retomei por
hobby a escrita, pois já fazia muito tempo que tinha
terminado o último trabalho, havia acabado de revisar
Cidade do Anjo e precisava sair dessa atmosfera; então
decidi experimentar esse mundo das histórias curtas.
O que o inspirou?
Em primeiro lugar foi a conversa com o amigo. Em
segundo, conforme estava já escrevendo, travei contato
com o livro “Homossilábicas” da Editora Escândalo, que
reunia uma série de contos de autores diferentes sob a
temática homoafetiva. Era muito parecido com o tipo de
trabalho que eu estava com vontade de realizar, e isso só
me incentivou. Criar as histórias foi diferente dos grandes
romances, porque me permitiu trilhar entre paisagens,
temas, personagens e narrativas diversas. Foi muito
gostoso experimentar (beberica e sorri de modo suspeito).
A quem não está familiarizado com seu trabalho, quais seriam
estes “grandes romances” os quais você acabou de citar?
(risos irônicos) Bom, querido, como é seu nome mesmo?
(pausa) Esqueci. (silêncio e ponderação) Acho muito difícil
que alguém realmente não tenha lido ou ouvido falar na
série Cidade do Anjo, por exemplo, que é um grande bestseller, um hit. Mas sendo sincero, criei algumas séries que
exploram universos diferentes. A série do Anjo onde os
livros envolvem drama, espiritualidade, e são sempre muito
desgastantes pra escrever, no sentido emocional. A série da
Imperatriz e do Cavalheiro que se passa em outro mundo e
tem elementos de fantasia e se foca na aventura. E por fim
a série Sem Nome que explora jornadas de cura e muita
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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ironia com a vida de um famoso colunista de jornal que é
gay. Sem falar no curto, e profundo, A Rainha Branca.
O que este novo trabalho traz ao seu “grande” (entonação de
voz irônica) público?
Meu “grande público” (inflexão de raiva) vai poder
conhecer situações novas e algumas vezes hilárias, outras
tristes, outras misteriosas, outras reflexivas. Como eu disse
antes, foi muito gostoso experimentar vários ângulos e
possibilidades... É por isso que o livro tem “delicioso” no
título. A experiência que eu quero que meu “grande
público” (nova inflexão de raiva) tenha é a mesma que eu
tive... Um delicioso momento de parar e pensar, se divertir,
sair da zona de conforto, ou mesmo presentear estas linhas
a alguém por quem tenha alguma afeição.
Por que a temática homoafetiva?
Esta temática já esteve presente nos meus trabalhos
anteriores, mas nunca de modo tão aberto. Eu queria falar
direto ao público LGBT e simpatizante. Além disso, eu
queria um tipo de texto que também pudesse divertir e
emocionar, e tocar o coração destas pessoas... Levar a elas
um livro diferenciado, uma produção literária diferenciada,
criativa e sem ser vulgar. Como gay e leitor eu sentia falta
de mais trabalhos assim, e como escritor eu comecei a
sentir vontade de também construir a minha colaboração.
Como é o seu processo criativo?
Muitas vezes os elementos iniciais de uma história vêm por
inspiração ou sonhos. Outro meio que tenho de criar é
através dos desenhos: quando desenho personagens e
lugares das histórias, começo a ter tipos de insights que me
ajudam a desenvolver a trama e as personalidades
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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presentes ali. Ultimamente, contudo, tenho desenhado
pouco e por isso não tenho feito tantas ilustrações sobre as
histórias como fazia antes.
Algum conto ou história curta teve de ficar de fora deste novo
livro?
Não exatamente. O que aconteceram foram algumas ideias
não-aproveitadas. (engasga-se com uma bolachinha) É...
(tosses e minutos depois) Desculpe. Sim, não cheguei a
escrever a versão gay de Chapeuzinho Vermelho. Também
não desenvolvi “Ciranda de Emoções” que era um poema
de amor feminino... Ficou de fora também uma pequena
história divertida envolvendo um casal gay aceitando seu
filho hétero. E também algo relacionado a um Naturólogo
em assistência social ajudando um jovem gay da alta
sociedade que é expulso de casa, para as ruas. (tosse).
Qual a sua mensagem final aos jovens escritores que desejam
chegar ao ponto de ter um “grande público” (desdém) como
você?
(olhar de ódio) Bom... Não exatamente aos jovens
escritores, mas a todos que identificam em si um talento e
um sonho. Exercite-o, busque inspirações e referências, e
pratique até desenvolver um estilo próprio. Acima de tudo,
compartilhe seu talento onde você estiver; isso te dará o
sentimento de realização que traz energia para continuar.
Não leve as críticas pro lado pessoal, tire o bom delas. E
esteja aberto a crescer e se renovar, as oportunidades vêm
e a vida te prepara para elas se você estiver disposto a isso.
Obrigado, “Monsieur” Nova (levanta as sobrancelhas com ar de
estafa).
Obrigado “você” (faz cara de cu).
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Extras #2
Guia rápido de frases de Monsieur Nova
Sabe quando você precisa desesperadamente de uma frase?
Às vezes você quer escrever um cartão e está sem
criatividade e aí tem aquela brilhante ideia de copiar uma
frase ou mensagem da internet e assinar seu nome
embaixo, sentindo-se um gênio! Ou então, no meio daquela
noite solitária regada a sorvete você precisa escrever algo
no seu Twitter mais uma vez. Isso sem falar quando é
questão de honra dar aquela indireta mortal nas redes
sociais como resposta aos seus desafetos!
Só quem já passou por estas provações sabe como é difícil
encontrar à mão alguma coisa substancial e “parruda” para
dar conta do recado. Pensando nisso, decidi reunir o melhor
e o pior do meu Twitter que atende pelo nome de
@NovaRafael. Delicie-se e não esqueça de acrescentar meu
nome entre parênteses no final – isso vai fazer toda
diferença ao mostrar que você faz parte do meu pequeno e
seleto grupo de mafiosos vingadores.
Modo de usar: Escolha a frase mais adequada à sua
intenção. Copie-a e coloque de modo que o alvo da
comunicação possa vê-la com absoluta certeza. Os mais
ousados podem agregar uma imagem ou emoticon que
represente seu estado de espírito. Reze durante alguns
minutos. Observe a repercussão. Se o resultado for positivo
comemore, se for negativo, ligue para o Serviço de
Atendimento ao Cliente da máfia vingadora.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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“É bom fazer faxina na vida, nas relações. Tem dois
produtos detergentes e alvejantes ótimos: ‘verdade’ e
‘honestidade’. Mantenha limpo.”
“O estranho é um convite à compreensão atenta.”
“Quando um amigo se entristece, meu coração veste cinza.”
“Da capacidade de estar atento ao outro, nasce aos poucos
uma compreensão que é assombrosamente luminosa e
compassiva. Isto é um tipo de milagre.”
“Faz tempo que eu não vejo um tapa de luva - aquele tecido
macio e branco, estalando no rosto de outrem. Ah...
Saudade.”
“Parem as máquinas! (sempre quis falar isso).”
“Hoje a noite não tem luar, e o rio não reflete nada além de
escuridão morna e secreta. O silêncio vela os desejos
contidos, em si.”
“Morri de sunga na beira da praia. Logo surgem curiosos,
crianças brincam, adultos tiram fotos comigo. o IBAMA
surge, tentam me desencalhar.”
“Admiro as pessoas corajosas, compreendo as que têm
medo, mas não aguento as covardes - nunca.”
“Conheci amor. Desnudo na alma luz. Gracioso dia. #Haikai”
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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“Viaduto - via pública destinada à locomoção de viados.
#FuckYeah”
“Preguiça: índice atualizado frequentemente, o qual indica a
falta de vontade de realizar atividades geralmente
necessárias ou importantes.”
“Aquele sentimento de solidão veio me visitar de novo...
Hoje vou oferecer um lanche, sentar com ele, e ouvir a
história que ele me conta.”
“Este frio que persiste, insiste em invadir, por debaixo de
minhas roupas, entrando pela camiseta, descendo às calças,
roubando-me arrepios.”
“Nossa Senhora do Cup Cake, estende teu manto de
mostruário à minha frente e me traz teus doces bolinhos.
Recheai. #amém”
“Quando foi que o espaço entre nós ficou preenchido com
um amontoado de silêncios?”
“O último a chegar é a mulher do Padre! Ele retrucou:
‘Padre não tem mulher’. Mesmo assim, desacelerou o passo,
foi devagar.”
“O sexo desperta os sentidos, o amor desperta a alma. Os
dois juntos conduzem à transcendência.”
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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“Me vesti de cor-de-rosa laminado e fui no mercado.
Quando passei no caixa queriam me comprar - acharam que
eu era um sonho de valsa gigante.”
“Seis horas: vou lá tomar uma taça de coca-cola e rezar o
terço.”
“O poder corrompe esses pequenos idolozinhos de barro.
Conheci vários, que não aguentaram o sol. Racharam e
quebraram.”
“Eu adoro tocar. Sinto que o toque me informa do outro, e
sinto que o informa de mim. É quando encontro uma ponte,
nas minhas mãos.”
“Sempre guardo um sorriso educado para situações como
essa, em que o coração ameaça dar lugar a um vazio
melancólico.”
“Eu poderia abrir um Secos & Molhados e enchê-lo só com
as minhas esquisitices.”
“A superficialidade é um jogo interessante, exceto pelo fato
de que nunca satisfaz. A realidade da alma sempre torna o
tombo inevitável.”
“Flocos de sono se acumulando sobre mim... Como neve
branca e fofa formando um tapete de sonhos.”
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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“Olho para minhas mãos trêmulas cheias de tempo. Marcas
de memórias estampadas em mim. Guias de tudo que
desejei, de tudo que fiz. O que sou.”
“Existem muitas possibilidades por aí, mas a melhor é
sempre ser você. Quando a alma brilha, o caminho se
revela.”
“Como se preparar pra uma despedida? Que roupa usar,
que expressão fazer... Qual a melhor maneira de tocar e
olhar pela última vez...”
“Estas grandes perdas humanas são as estrelas voltando
para o céu.”
“Quando o coração aperta não é sangue que sai dele, são
lágrimas que se derramam.”
“Aquela casinha que todos desenham / Uma portinha, uma
janela e o telhado / Todos são hipoteticamente felizes /
Vivendo num simples sobrado”
“Hoje não irei a festa alguma. Hoje, eu sou a festa.”
“Hoje, muito provavelmente, sem ninguém anunciar,
decretou-se silenciosamente que era o dia da saudade, de
ter um rosto para recordar.”
“Quando eu estou muito quieto é sinal que estou
conversando muito comigo.”
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Extras #3
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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O Autor: Rafael Nova
www.rafaelnova.com | twitter.com/novarafael | fb.com/rafaelnova0
(WHO THE FUCK IS RAFAEL NOVA?!)
Meu nome é Rafael, gaúcho, nascido a 11 de maio de 1985. Sou
graduado em Naturologia Aplicada (UNISUL), estudante de
especialização em Arteterapia no Contexto Social e Institucional
(INFAPA), e autor do livro Cidade do Anjo (Editora Escândalo). Desde
cedo tive muito interesse pela arte, espiritualidade e cura, e esses
assuntos orientam minha atividade profissional.
Aprecio o canto, a escrita, o desenho, e todos os meios onde posso
expressar minha sensibilidade. Gosto de criar histórias, personagens,
universos, e falar sobre eles. Sou fascinado pela fantasia e por todas as
coisas encantadoras do mundo. Além disso, estudo constantemente
como usar a energia para aconselhar, harmonizar e melhorar a saúde de
pessoas, lugares, negócios.
Sou sensitivo e um artista de coração.
E carente de todo seu amor.
(ZzZzZzZz...)
(Não é foto de santinho eleitoral, favor não riscar!)
(Gato, me liga!)
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Anjo é um garoto solitário e diferente. No início do segundo ano do
Ensino Médio acaba ficando distanciado de sua antiga turma, e em meio
a um ambiente novo, os olhos intensos e cinzentos de André o fazem
sentir hostilizado e perseguido. No entanto, é ao enfrentar a dura
realidade da morte de sua mãe em um acidente de carro, e o alcoolismo
do pai, que encontra nesta jornada a sua redenção. Este livro marca o
início de amizades e laços ambiguamente fortes o suficiente para se
tornarem inesquecíveis. Seja bem-vindo à Cidade do Anjo!
Livros da Série:
Cidade do Anjo (2012, Editora Escândalo)
Sagrado Coração (2013, não publicado)
Cálice do Sul (2014, não publicado)
Curta no Facebook:
Fb.com/CidadeDoAnjo
Conheça o Site da Editora:
EditoraEscandalo.com
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
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Outras Obras Não Publicadas:
Série A Imperatriz
A Imperatriz & As Rosas
O Cavalheiro e A Primavera
Uma outra vida, um outro mundo. Conheça o povo dos claros, uma raça de
seres que foi exilada do continente em que viviam. Ao longo de eras e guiados
pelas filhas das estrelas elas prosperaram e se multiplicaram. Agora, uma
sombra ameaça acabar com sua paz, e apenas um Cavalheiro e A Imperatriz
esquecida sabem a extensão desse perigo. Sem a crença de todos, será que
conseguirão reunir forças para salvar seu planeta?
Série Sem Nome
Sem Nome
Sem Rumo
Tudo ia bem para Valentino, um colunista e crítico em ascensão no principal
jornal de seu Estado. O que ninguém sabe é que ele está gravemente doente, e
sua jornada de cura o levará a abrir as portas do passado para lidar com o
fantasma do namorado Léon. Com a ajuda de Robi, seu inseparável (e único)
amigo, ele vai se comprometer com um tratamento natural enquanto tenta lidar
com as pressões do editor. Surpresas, ironias, riqueza e badalação nessa história
adulta e contemporânea.
Histórias Curtas
A Rainha Branca
Acostume-se a viver sozinho. Acorde, durma, não precise de ninguém. Vá para o
trabalho e depois para a escola. Não tenha família. Não tenha sentimentos. Dia
após dia ele tenta agir como uma pessoa normal, e em reflexões que misturam
desânimo e matérias do colégio, tenta entender e se situar diante do mundo lá
fora. A casa no subúrbio, o trabalho no mercadinho, a visão sobre as pessoas
que vivem suas vidas normais. As coisas mudam a partir de misteriosos e
recorrentes sonhos onde uma mulher vestida de branco pede sua ajuda.
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Copyright © Rafael Nova, 2013.
Contate o Autor em [email protected]
Ilustrações e Formatação do Autor.
Espere!
Ainda não vá embora...
Garanta já sua vaga no Céu!
Todos os anos, escritores de todo o mundo ficam à espera de recursos que às
vezes nunca chegam. Se você gostou desse livro, faça uma doação!
Monsieur Nova agradecerá eternamente sua nobre atitude de valorizar a Arte.
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