GóticoIN: olhar e recriar o traje medieval

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GóticoIN: olhar e recriar o traje medieval
GóticoIN: olhar e recriar o traje medieval
Como já não és um bebé pequenino não precisas de te preocupar com a forma como os vestiam na Idade Média,
completamente enfaixados, sem quase se poderem mover. Possivelmente esta era a única altura em que, naquele
tempo, crianças e jovens não se vestiam como adultos. A ideia que a sociedade tinha deles é que eram como os
adultos só que em ponto pequeno.
Apesar do termo GóticoIN poder ser sugestivo, terás ficado surpreendido com esta forma de abordagem. Mas
muitas pessoas não têm em conta algumas raízes fundadoras do movimento cultural alternativo surgido nos anos
70, o da subcultura gótica (também apelidada Dark). Esta está associado a perspectivas, estéticas e sonoridade
alternativas que perduram entre os jovens.
Quando se fala de “cultura gótica”, isso reporta-se ao movimento artístico e cultural surgido na Idade Média (séc.
XII) que significou uma ruptura com a cultura e a estética do Românico. O Renascimento (séc. XV-XVI) fez uma
avaliação estética muito negativa sobre o gótico. Consideraram-no uma coisa feia e imperfeita, digna de bárbaros.
Dai o termo gótico inspirar-se em Godos, o povo que conquistou Roma, o que se associa ao fim da cultura clássica
e dos seus valores. Será já no séc. XIX que o Romantismo projectou uma imagem fascinante sobre uma Idade
Média gótica sedutora e ambiguamente sombria.
Os actuais góticos, que não aderem a este movimento apenas para apropriação dos sinais visuais, inspiraram-se
nesta perspectiva pois, tal como o Romantismo procurou uma refundação cultural inspirada na Idade Média,
rejeitam não só a estética e os gostos comuns mas também a forma de estar do mundo contemporâneo.
Tomaram o termo gótico como bandeira, assumindo o pejorativo que, até ao séc. XIX, se tinha pelo que era
medieval. Uma incompreensão que, por algum desconhecimento, continua a rodear os actuais góticos. O seu
gosto, estética e estilo de vida tão criticados, no fundo, expressam desencanto e insatisfação com a sociedade e
afirmam posturas alternativas. Os góticos recuperam uma estética do belo tenebroso, tão em voga no séc. XIX,
rejeitam cultural e artisticamente o normativo e o banal da cultura burguesa e do seu gosto.
Talvez por isso as críticas aos góticos se centrem no seu gosto por roupas estranhas e extravagantes, no seu
visual corporal, nas lendas negras em torno de um universo fantástico povoado por criaturas inquietantes.
Também se expressam reservas à sua postura sombria associada a estados depressivos. Alguns deles podem
acentuar esta impressão de tristeza e obscuridade poética com alguma teatralidade, mas no seu estilo de vida
transparece a insatisfação. Esta é socialmente preocupante por, ao existir, questionar valores dominantes da
sociedade.
Se o gótico, ontem e hoje, corresponde a uma ruptura e a uma nova afirmação, talvez possas fazer uma
experiência de design de moda, o GóticoIN, genuinamente inspirada no gótico medieval original. Pesquisa um
bocadinho e podes dar um pouco de autenticidade e originalidade à roupa e adereços que desenhes. Precisas logo
de começar por fazer uma grande ruptura: acabar com o império da cor preta. Uma idade média sombria, um
período de trevas, um atraso de vida, são ideias que se colaram à Idade Média e que não correspondem
exactamente à sua realidade. Inspira-te pois nas fontes que investigues para não citares apenas as ideias do
cinema e dos estúdios da Disney para vestir personagens.
O gosto gótico pela solidão desenvolve o individualismo, e expressa um desejo de genuinidade e originalidade que
marca o movimento gótico. Começando pelas texturas dos tecidos, deves pensar usar um tecido pesado. Nada de
uma coisa vaporosa, senão as linhas estruturais que concebes no desenho não terão no tecido firmeza para
sustentar a definição estrutural da forma e densidade do movimento que desejas projectar na roupa. Apesar
destes modelos se centrarem em vestuário de pessoas ricas da nobreza, lembra-te que não eram produzidos
localmente tecidos leves como a seda, ou luxuosos como os veludos e brocados de qualidade. Como o comércio
também era muito reduzido o preço dos tecidos importados de qualidade era proibitivo.
É necessário que penses num modelo que leve bastante tecido, pois a roupa que vais conceber deve de ser solta e
comprida. Os decotes não devem ser fundos para se equilibrarem com o rosto e para se harmonizarem com o
corte de cabelo. Não sobrecarregues muito as tuas criações com acessórios. Pedras e metais preciosos eram
caríssimos e o metal comum não abundava para ser usado no não essencial. Impunha-se até bastante rigor com
leis que impediam as pessoas de grupos sociais mais baixos usarem alguns tecidos de luxo, mesmo as poucas
que, para isso, tinham posses. Estas leis até limitavam o uso de adereços e jóias que cada um podia usar. O
vestuário, como vês, servia também para sublinhar uma diferenciação nos grupos sociais.
Vê-se, no vestido verde da mulher e na túnica cor de açafrão do homem, que eram usados tecidos com padrões
de riscas. Não abuses da cor preta. As cores eram fortes e vistosas, quer usadas por homens ou por mulheres.
Nestas os modelos não sublinhavam cintura e ancas, antes elevavam os seios e avolumavam a barriga. Parecia
que estavam sempre grávidas. Nessa altura a mortalidade era tão alta que a imagem de uma mulher fértil devia
ser muito valorizada.
O mesmo se passava com o pudor e o recato, muito apreciados pela moral daquele tempo. Por isso, para não
estimularem olhares e desejos impróprios, nada de roupa justa e coleante que fizesse adivinhar as formas do
corpo. Como elas usavam o cabelo comprido (já as freiras usavam-no rapado) tapavam-no frequentemente para
não acentuar muito este aspecto tão feminino e sedutor a que era atribuída uma conotação erótica. Era
impensável qualquer mulher ir à missa com a cabeça descoberta. Robert de Blois dizia: «Uma Dama adquire uma
má reputação se não se mantiver limpa – uma postura cuidada e agradável vale mais do que uma beleza
negligenciada», ou, diríamos nós, muito exibida pois tal poderia levar ao pecado. Depois de cometido um pecado,
então se ele fosse dos grandes, o perdão para se salvar a alma obrigava a uma expiação era muito dura que,
levada a rigor, podia ser uns 5 ou 7 anos de vida com muitas limitações.
A roupa interior para usar debaixo do vestuário, de linho, era muito simples. Possivelmente também não usavam
muito roupa para dormir. Por isso, na tua criação, não podes procurar que seja a lingerie a dar um efeito ao
modelo do vestido que se vista por cima. Nada de pensar em cintas, soutiens e outros artifícios para delinear
formas. Nesta altura, até os músicos eram simples, nada extravagantes e pouco imaginativos no vestuário.
Maior ostentação devia de ser reservada para festas e bailes. Este tipo de momentos era um óptimo pretexto para
ostentar e exibir o que se tinha de valioso, pois isso enaltecia a própria pessoa perante os outros. As pessoas
deviam gostar de padrões florais e geométricos nos tecidos de brocado e veludo. Alguns apreciavam muito as
mangas compridas e largas, e sapatos longos e bicudos. Se antes esteve na moda os homens usarem túnicas
compridas, a partir de certa altura começaram a preferir gibões e calças muito justas. Usar uma meia de cada cor
também esteve na moda. Homens e mulheres gostavam de usar peles.
O vestuário das pessoas do povo não ditava a moda. As roupas eram de um corte muito simples, os tecidos de
linho e de lã, fiados, tecidos e feitos em casa, eram grosseiros e sem padrões. Não tinham dinheiro para ter muita
roupa como se vê pelas meias rasgadas do camponês. O que era mesmo comum a ricos e pobres era o gosto
pelas cores fortes.
Nas imagens em baixo podes ver as diferenças entre a recriação de um vestido de festa de uma camponesa (com
poucas pregas para poupar tecido), os sapatos com sola de madeira e a roupa de uma dama nobre.
A condessa Uta, parece ostentar o que seria vestuário de alta-costura da época. Lindíssima, envolve-se numa
capa muito bonita cujo requinte desafia qualquer designer de moda. E fá-lo no séc. XIII com uma elegância e
porte de fazer inveja a uma modelo dos nossos dias. Atentem na forma como a mão aconchega a capa, nos
detalhes da gola do manto e no pormenor do decote da roupa junto do pescoço.
Com base nas imagens apresentadas e outras que pesquisem podem desenhar peças de vestuário com uma
inspiração genuinamente gótica Se estiverem atentos às texturas, cores e padrões dos tecidos, aos cortes e
detalhes, vocês podem reformular e fazer uma nova síntese criativa e alternativa sobre o design do vestuário
gótico. Preferencialmente com tecidos e materiais artesanais e não nos que são de produção industrializada. Esta
oferece propostas massificadas e banais, aspectos que são rejeitados pelo movimento gótico contemporâneo.
Se quiserem desenhar uma roupa muito in e algo inspirada nestas figuras, rapazes e raparigas devem optar por
vestidos, túnicas e casacos relativamente compridos e soltos, nada que seja a pegar-se muito ao corpo. As
meninas podem repensar nos seus desenhos o uso de lenços e toucados e os rapazes, inspirados no conde
Ekkehard, devem conceber a sua roupa para modelos com o cabelo um pouco crescido junto das orelhas. Quanto
a acessórios, gorros, luvas e cintos são peças que devem consideradas e os anéis são mais para usar no dedo
indicador.
Só por curiosidade, não para usar, uns detalhes sobre cosmética medieval. Naquela altura, para aveludar a pele
utilizavam clara de ovo e vinagre. Como uma pele branca era muito apreciada (significava que não se era um
simples camponês com a pele escura por andar todo o dia a trabalhar ao sol, e também afastava a ideia de se ser
mouro ou seu descendente), pintavam a cara de branco, com uma mistura de cal (a alvaiade). Como isto não
faria muito bem à pele, à noite, colocavam sobre a cara pachos de carne crua de vitela molhada em leite (as
pessoas abastadas, claro; as outras eram tão pobres que nem muita carne comiam). Era usado como hidratante
azeite e óleo de amêndoas. Alguns produtos cosméticos tinham nos ingredientes excrementos de pássaros,
sangue de animais, cobras trituradas (como este animal, todos os anos, renova a pele talvez pensassem que esse
atributo passasse para a sua). Para maquilharem os lábios usavam açafrão e carmim (um corante extraído dos
pulgões). Este também dava cor às maçãs do rosto. O negro da fuligem evidenciava as pestanas. Por influência
árabe, usavam khol para realçar o olhar. Os banhos não eram frequentes e os perfumes, pouco usados, eram
feitos à base de ervas aromáticas maceradas com cera, gorduras e resinas.
Se quiserem saber mais coisas sobre a ambiência mental e cultural da Idade Média existem muitos livros e
informações interessantes sobre o tema, quer em estudos, quer nas ficções imaginadas com bases mais ou menos
sólidas. As Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano, muito interessantes, são baseadas em documentos
históricos. Já as histórias de Edgar Allan Poe são clássicos de uma imagética medieval absolutamente fantástica,
muito gore e bem ao gosto da sensibilidade dos góticos contemporâneos.