II — Representações de deuses em posição de combate
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II — Representações de deuses em posição de combate
1 Iconografia de Canaã e Literatura Bíblica1 Célio Silva2 Introdução Este estudo tem por objetivo compreender as idéias e práticas religiosas presentes na literatura bíblica através da iconografia do Antigo Oriente Médio. Acreditamos que as imagens têm muito que revelar da cosmovisão nele existente e, de forma específica, dos atributos de Yahweh. Este tema é importante por desenvolver a concepção da religião como experiência cotidiana, que se constrói no imaginário coletivo como produto da dinâmica social. A religião bíblica traz essas raízes e se mantém por elas, como podemos perceber ao lidar com as idéias representadas na iconografia médio oriental. Talvez isso nos leve a respeitar mais as outras formas de manifestação da busca que os seres humanos fazem pelo mistério da vida. As imagens são usadas como veículos pelos quais nos comunicamos com o sagrado. Os sinais distintivos de uma divindade nos elevam para determinados aspectos da vida considerados fundamentais para a criação de sentido de estar no mundo. Reshef e Ba‗al, os deuses abordados nestas páginas, deixaram suas marcas na cultura da antiga SíriaPalestina, e por que não dizer, nas páginas da literatura bíblica, quando seus atributos foram incorporados a Yahweh, o deus de Israel. O presente texto se divide em quatro capítulos: no primeiro, refletiremos a respeito do aniconismo em Israel, no segundo, apresentaremos a iconografia de Reshef e Ba‗al em relevo, no terceiro, idem, porém em imagens de metal e, no quarto, ensaiaremos uma possível relação de características atribuídas a esses deuses e representadas na iconografia, com a literatura bíblica e o deus Yahweh. 1 Texto apresentado, originalmente, em novembro de 2008, no Seminário Interdisciplinar realizado na Universidade Metodista de São Paulo e na Semana Teológica da Faculdade de Teologia Metodista Livre (FTML), ocorrida no período de 11 a 15 de maio de 2009. 2 Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia Evangélica (ESTE), com a integralização do curso pela Escola Superior de Teologia (EST), licenciado em História pelo Centro Universitário Assunção (UniFAI), mestre e doutorando em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). É professor na Faculdade de Teologia Metodista Livre (FTML). 2 I — A Representação do sagrado e a proibição do uso de imagens no Antigo Israel É comum olharmos a religião bíblica como iconoclasta, ou seja, contrária ao uso de imagens no culto ou na devoção. Conhecemos os mandamentos: ―não terás outros deuses diante de mim‖ e ―não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra‖ (Êx 20,3-4). Em outras palavras, a proibição de seguir outras divindades relaciona-se com a de fazer imagens. O livro do Deuteronômio também deixa isso bem claro ao recomendar: 15 Ficai muito atentos a vós mesmos! Uma vez que nenhuma forma vistes no dia em que Iahweh vos falou no Horeb, do meio do fogo, 16não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem esculpida em forma de ídolo: uma figura de homem ou mulher, 17figura de algum animal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, 18de algum réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas que estão sob a terra. 19Levantando teus olhos ao céu e vendo o sol, a lua, as estrelas e todo o exército do céu, não te deixes seduzir para adorá-los e servi-los! São coisas que Iahweh teu Deus repartiu entre todos os povos que vivem sob o céu. 20Quanto a vós, porém, Iahweh vos tomou e vos fez sair do Egito, daquela fornalha de ferro, para que fôsseis o povo da sua herança, como hoje se vê (Deuteronômio 4,15-20). A imagem, que deveria expressar os atributos da divindade em outras religiões, aqui é entendida como reprodução da sua ―forma‖ (v.15); portanto, Yahweh não se assemelha a nenhuma criatura, seja ser humano (―homem ou mulher‖, v.16), seja animal (v.17-18), ou astro (v.19). Poderíamos dizer que temos aqui a influência dos profetas que polemizaram contra a idolatria presente nos cultos hebreus a partir do século 9º a.C. Ainda se discute qual seja a época de procedência do Deuteronômio. Não obstante persistir em muitos autores a crença de que ele é de origem mosaica,3 a pesquisa tem nos dado material suficiente para negarmos tal assertiva. O livro é, provavelmente, oriundo de tempos posteriores, provavelmente do século 8º a. C. em suas partes mais 3 Ver ARCHER, Gleason L. Merece confiança o Antigo Testamento? São Paulo: Vida Nova, 1979, p.280293; e J. H. Walton, que afirma: ―não vemos motivo para negar que o livro realmente é registro preciso das palavras de Moisés. Não é necessário que Moisés as tenha escrito pessoalmente, mas a natureza do livro e sua unidade sugerem sua composição bem próxima da época em que os discursos foram proferidos‖ (HILL, Andrew E.; WALTON, J. H. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2006, p.146). E também LASOR, William; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2002, p.127: ―Se Deuteronômio não for um registro das próprias palavras de Moisés, é pelo menos uma tradição que representa Moisés com precisão e reflete com fidelidade a aplicação por ele dada às leis e aos estatutos da aliança de Javé de acordo com as necessidades dos israelitas prestes a entrar em Canaã‖. 3 antigas, e já reflete tendências que encontramos nos profetas literários, como Oséias. 4 Como obra acabada, ele é de tempos pós-exílicos (o que nos mostram passagens como 29,21-30,10). De qualquer forma, a iconoclastia que nele se apresenta parece o resultado de acontecimentos que interferiram na vida religiosa dos hebreus, bem como de movimentos teológicos (―deuteronomismo‖) e políticos (ressaltemos a reforma de Josias em 621 a.C., conforme podemos conhecê-la através de 2Reis 22,1-23,30). A oposição ao uso de imagens parece não refletir o costume que vinha de tempos anteriores.5 Exemplos como o ídolo de Micas (Juízes 17) e o ―efod‖ de Gideão (Juízes 8,27) no-lo indicam. Está certo que a Obra Historiográfica Deuteronomista (OHD) admite que Israel, no passado, dedicara-se à idolatria, entendendo que ele abandonara a religião pura, o javismo instituído nos tempos mosaicos e da ―conquista‖ da terra, considerados ―tempos de origem‖ da formação do povo (ver, por exemplo, Juízes 2,614). Mas parece que, historicamente, se deu o contrário: em seus inícios, Israel cultivava a religião de viés politeísta; poderíamos até pensar que Yahweh fora introduzido gradativamente e, dessa forma, assimilado pelos primeiros hebreus, cujos aldeamentos se formaram nas montanhas centrais da Palestina a partir do século 13 a.C., como produto de convulsões sociais acontecidas na região durante a última parte do Período do Bronze Recente, e que talvez tivesse relações, não apenas com movimentos sóciopolíticos locais, porém, mais abrangentes, já que por essa mesma época estaria por ocorrer a invasão dos povos do mar e migrações de populações não autóctones para a região.6 4 Ver SELLIN, Ernst; FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1977, v.1, p.227-247. William S. Lasor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush fazem a seguinte afirmação: ―com certeza há mais probabilidade de Deuteronômio ter exercido grande influência sobre os profetas que de os profetas o terem produzido (op. cit., p.127). Mas não convencem. 5 Para que o leitor tenha uma visão geral da história da religião israelita no que toca à questão da iconografia, recomendamos a leitura de REIMER, Haroldo; REIMER, Ivoni R. Inefável e sem forma: sobre o segundo mandamento bíblico (Êx 20,4-6; Dt 5,8-10). Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes, n.97, p.36-48. 6 GRABBE, Lester L. Ancient Israel: what do we know and how do we know it? Londres: T & T Clark, 2007, p.100-107. Ver também GOTTWALD, Norman K. As tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto – 1250-1050 a.C. São Paulo: Paulinas, 1986, que defende a tese de que a formação de Israel se deve à sublevação de camponeses e pessoas ―marginalizadas‖ em relação aos sistemas de cidades estados cananeias. Autores como Jorge Pixley (A História de Israel a Partir dos Pobres. Petrópolis: Vozes, 1990, p.17-18) e Milton Schwantes (Breve história de Israel. São Leopoldo: Oikos, 2008, p.11) concordam com Norman K. Gottwald. Para uma exposição dos problemas relacionados aos estudos sobre a origem de Israel, ver FARIA, Jaci de Freitas (org.). História de Israel e as pesquisas mais recentes. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p.33-87. 4 O nome ―Israel‖ poderia aludir ao fato de que o deus principal dessa entidade sociológica fosse ’el (correspondente ao ’ilu ugarítico), o Pai dos deuses e da humanidade, o seu ―Progenitor‖.7 Mark Smith é um dos autores que defendem essa teoria: Se Yahweh fosse o deus original de Israel, então o seu nome poderia ter sido *yiśrā-yahweh, ou talvez melhor *yiśrā-yāh, de acordo com outros nomes próprios hebreus que contêm o nome divino. Esse fato sugere que El, não Yahweh, era o deus chefe original do grupo chamado Israel. 8 Em outra obra sua, ele afirma a mesma coisa: ―o deus original de Israel era El‖. 9 A mesma posição compartilham autores como Martin Metzger10 e Antonius H. J. Gunneweg.11 Inicialmente, portanto, Yahweh teria sido incorporado a um conjunto de divindades adoradas pelos habitantes das montanhas centrais da Palestina e, posteriormente, teria ascendido ao status de deus principal. Já percebemos alusão clara à atuação de Yahweh como deus guerreiro no cântico de Débora (Juízes 5). Ali se menciona de onde ele veio: ―de Seir‖ (Juízes 5,4). Aos poucos foi se adaptando à realidade sedentária da agricultura e assumindo as características de deuses locais. Dificilmente o caráter monoteísta e anicônico de seu culto, conforme aparece nas páginas da Bíblia, teria lugar nesses tempos primitivos. No entanto, como já vimos no início deste texto, parece que a representação de divindades através de imagens (incluindo aqui Yahweh) era possível, como os dados arqueológicos parecem comprovar. 7 Ler a reflexão sobre ’el e o epíteto ―Procriador de céus e terra‖ em SILVA, Célio. Melquisedec, sacerdote de ’el ‘elyon: Uma exegese de Gênesis 14,18-20. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2006 (Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião), p.90-112. 8 SMITH, Mark S. The origins of biblical monotheism: Israel1s polytheistic background and the Ugaritic texts. Oxford: Oxford University Press, 2001, p.142-145. 9 SMITH, Mark S. The early history of God: Yahweh and the other deities in ancient Israel. 2ª ed. Grand Rapids/Michigan: William B. Eerdmans; Dearborn/Michigan: Dove Booksellers, 2002, p.32. Ver também, do mesmo autor: O memorial de Deus: história, memória e experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006, p.155 (Coleção Biblioteca de Estudos Bíblicos). 10 METZGER, Martin. História de Israel. 3ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 1989, p.38-46. 11 GUNNEWEG, Antonius, H. J. História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até nossos dias. São Paulo: Teológica; Loyola, 2005, p.92 (Série Biblioteca de Estudos do Antigo Testamento, 2). Esse autor aceita a teoria de Martin Noth, que dizia que o Israel pré-monárquico se compunha de uma anfictionia, ou seja, uma liga de doze tribos centralizadas no culto a Yahweh. Essa tese, porém, tem sido alvo de inúmeros ataques atualmente, e com razão (ver FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Paulinas, 1982, p.101-108; GOTTWALD, Norman K., op. cit., p.353365). 5 Richard S. Hess observa que, do período do Bronze Recente II B (ca. 1300-1200 a.C.), a iconografia é abundante. Ela se apresenta em selos, que trazem imagens de caprinos, leões e deusas nuas, entre outros motivos.12 Esse autor observa que, a partir do século 10º a.C., existe ―um desaparecimento gradual de representações antropomórficas de divindades‖,13 e que, em Judá, no período do Ferro II B (c.925- c.722 a.C.), as representações tendem a se reduzir a umas poucas figuras relacionadas a símbolos reais (estilo egípcio) e outros temas locais. Não obstante haver um incremento de imagens de Ishtar e do deus lua, mostrando a influência assíria no período que correu de 722 a 586 a.C., em Judá o uso de imagens gravadas em selos tendeu a diminuir, até desaparecer no período final da monarquia,14 o que poderia refletir o impacto da reforma de Josias. Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman também observam que os selos datados da segunda metade do século 7º a.C. carecem de imagens.15 Também tem sido encontrada uma variedade de figurinhas conhecidas como ―estatuetas judaítas de pilar‖, abundantes no Reino de Judá, talvez representando Asherá, 16 umas poucas figurinhas masculinas17 e outras, o que aponta para uma religiosidade em Israel e Judá a qual Ephraim Stern denominou de ―javismo pagão‖. 18 O profetismo desenvolveu gradualmente um discurso anti-iconográfico, como se percebe de textos como o de Oséias, Isaías, Jeremias e Ezequiel, para citar alguns. Porém, ao prestarmos mais atenção aos detalhes, notamos que a imagem não está desprovida de outros aspectos da realidade que ela representa, como é o caso de opressão dos pobres, conforme encontramos em Amós: 6 Assim falou Iahweh: Pelos três crimes de Israel, e pelos quatro não o revogarei! 12 HESS, Richard S. Israelite Religions: an archaeological and biblical survey. Grand Rapids, Michigan: Baker Academic; Nottingham, Inglaterra: Apollos, 2007, p.137-138. Em relação aos selos do Bronze Recente, também ler MAZAR, Amihai. Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000-586 a.C. São Paulo: Paulinas, 2003, p.266-268. 13 HESS, Richard S., op. cit., p.315. 14 Idem, p.316-317. 15 FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The Bible Unearthed: archaeology‘s new vision of ancient Israel and the origin of its sacred texts. Nova Iorque: Touchstone Book, 2002, p.288. 16 Ver detalhes em HESS, Richard S., op. cit., p.308-311. Também MAZAR, Amihai, op. cit., p.476. Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman observam que, a despeito da reforma centralizadora de Josias, parece que o culto doméstico relacionado a estas divindades persistiu. Cf. FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher, op. cit., p.288. 17 HESS, Richard S., op. cit., p.312. 18 STERN, Ephraim. Pagan yahwism: the folk religion of ancient Israel. Biblical Archaeology Review, Washington: Biblical Archaeology Society, v.27, n.3, p.21-29, 2001. 6 Porque vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. 7 Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e tornam torto o caminho dos pobres; um homem e seu pai vão à mesma jovem para profanar meu santo nome. 8 Eles se estendem sobre vestes penhoradas, ao lado de qualquer altar, e bebem vinho daqueles que estão sujeitos a multa na casa de seu deus (Am 2,6-8). Nesse contexto social, político e religioso, faz sentido a declaração do profeta Oséias: ―Efraim multiplicou os altares para fazer expiação, mas os altares foram para ele ocasião de pecar‖ (Oséias 8,11); e tais ofertas são para Yahweh, agora transformado em um ídolo (Oséias 8,13). Posicionamentos contrários ao uso de imagens tornaram-se mais radicais, graças à política religiosa de Ezequias (716-687 a.C.) e Josias (640-609 a.C.) e à influência dos profetas. E será com o Segundo Isaías, já no período do Exílio (século 6º a.C.), que o monoteísmo teórico se desenvolverá com toda a sua carga anti-iconográfica (Isaías 40,12-26). O que é muito interessante nos estudos da iconografia e sua relação com a religião hebraica é que, mesmo não havendo imagens de Yahweh, o estudo das representações religiosas presentes no Antigo Oriente Médio evoca características e atributos similares entre esse deus e outras divindades. Já o trabalho de Othmar Keel, La iconografia del Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento, 19 é um excelente marco nesse tipo de estudo. Também vale o texto de Othmar keel e Christoph Uehlinger, Gods, goddesses, and images of god in Ancient Israel,20 já clássico nesta área de pesquisa. Por isso, neste estudo, vamos expor algumas representações de divindades que, mesmo não estando diretamente ligadas à religião dos antigos israelitas, relacionam-se com ela no que toca à cosmovisão e à concepção do divino. Escolhemos, porém, abordar imagens de deuses em posição de combate e analisar sua correlação com o imaginário javista, como expresso na documentação que compõe o Antigo Testamento. 19 KEEL, Othmar. La iconografia del Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento. Madri: Trotta, 2007. KEEL, Othmar (autor); UEHLINGER, Christoph (colaborador). Gods, goddesses, and images of god in Ancient Israel. Continuum International Publishing Group, 2001. 20 7 II — Representações em relevo de deuses em posição de combate Representações de divindades em pé, em posição de combate, são comuns na iconografia do Antigo Oriente Médio. Um grande número delas nos proporciona material para entendermos o modo como aquelas populações pensavam a respeito de seus deuses no cotidiano. Elas aparecem em relevos, estelas, sinetes e estatuetas votivas; porém, neste estudo, focaremos alguns relevos e estatuetas de metais. 1 — O deus Reshef Izak Cornelius realizou um excelente trabalho a respeito das representações de Reshef e Ba‗al. Ele apresenta ilustrações desses deuses feitas em estelas comemorativas, oriundas do Egito e da Síria-Palestina. São inúmeras as representações iconográficas dessas divindades em posição de combate que se encontram em relevos. O primeiro que mencionaremos é um relevo egípcio oriundo de Athribis e datado de cerca de 13001100 a.C. Está em uma Estela que tem 25 x 17 cm e uma inscrição. Atualmente, encontra-se no Oriental Institute, na Universidade de Chicago. A figura central está vestida com saia estilo egípcio, cinto, um colar grosso, a coroa branca do Egito na qual está atada uma fita que pende até a altura da coxa, dividindo-se em duas partes na altura do ombro. Também traz uma barba estilo asiático, uma lança na mão esquerda, um escudo no braço esquerdo e, na mão direita, um machado de guerra, tendo os braços levantados. A inscrição associa a imagem com o deus Reshef. 21 De fato, a iconografia segue padrões estabelecidos, que nos possibilitam identificar determinadas divindades. Porém, a identificação se torna difícil quando eles faltam. Um exemplo pode ser dado por certas estatuetas que já não trazem mais determinadas armas ou sinais. Elas não podem ser nomeadas com certeza. No caso do deus Reshef, geralmente ele porta uma maça ou uma machadinha na mão direita, em posição de golpear, um escudo e uma lança na mão esquerda; e com frequência está em pé. É o caso do relevo acima mencionado, bem como muitos outros. É comum vir associado a um animal, por exemplo, a uma gazela. Não obstante esses traços parecerem comuns na representação 21 Ver CORNELIUS, Izak. The iconography of the Canaanite gods Reshef and Ba‘al: Late Bronze and Iron Age I periods (c. 1500-1000 BCE). Friburgo, Suíça: University Press; Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1994 (Orbis Biblicus et Orientalis, 140), p.32-33, lâmina 5, RR7. 8 do deus (ocorre com certa frequência),22 os relevos de Reshef classificados por Izak Cornelius como RR28, RR29, RR30, RR31 e RR32 (lâminas 20-24) não trazem as características de um combatente, mas a cabeça de gazela em sua fronte. Todas essas estelas trazem inscrições que mencionam ―Reshef‖ (RR32), ―Reshef, o grande deus, senhor do céu‖ (RR28, RR30, RR31) e ―Reshef, o grande deus, senhor da eternidade‖ (RR29).23 Devemos tomar cuidado para não confundirmos as imagens de Reshef com as de Ba‗al. A iconografia de ambos é muito semelhante, o que geralmente nos coloca em dúvidas em relação à identificação de certas imagens, por faltarem nelas detalhes característicos de um ou de outro, por se encontrarem fragmentadas devido o tempo ou qualquer outro fator. Com as estelas, quando essas ainda possuem certa integridade ou, na melhor das hipóteses, quando conservam certos traços característicos e inscrições, a identificação se torna mais fácil. E que características distintivas são essas? Normalmente ambos, Reshef e Ba‗al, são representados de pé, portando uma arma na mão direita, geralmente levantada acima da cabeça, em posição de golpear, tendo uma perna à frente da outra. Também utilizam coroa estilo egípcio (o que, no entanto, pode não ser ocorrer, já que o modelo pode ser anatólio). Mas a diferença entre eles está no fato de Reshef portar um escudo e, geralmente, uma lança, e estar acompanhado da figura de uma gazela. Esses traços do deus, no entanto, nem sempre aparecem em seu conjunto, como é o caso de um relevo em que é simbolizado pela figura desse animal na fronte, sem as armas, ou outro em que ele está assentado em um trono, mas com escudo e a arma em posição de combate.24 Ba‗al não porta o escudo e nem está associado a uma gazela. As representações de Reshef são comuns em relevos egípcios, nos quais ele aparece como parte de encantamentos que tinham o objetivo de garantir a vitória sobre os inimigos dos faraós. 22 CORNELIUS, Izak, op. cit., laminas 1-19. As figuras presentes nas representações de números 16-19 estão sentadas, não em pé, mas trazem o escudo e o braço direito levantado, segurando uma arma. 23 Idem, p.60, 61, 63,64 e 65. 24 Idem, laminas 1-19. As figuras presentes nas lâminas de números 16-19 estão sentadas, não em pé, mas trazem o escudo e o braço direito levantado, segurando uma arma. 9 2 — O deus Ba‘al De inúmeros relevos que representam Ba‗al, podemos destacar uma estela que se encontra no Museu do Louvre. Ela está classificada sob o número AO 15775 e foi encontrada por Shaeffer em 1932. É de calcário e mede 142 cm de altura x 47-50 cm de largura x 28 cm de espessura. Segundo Izak Cornelius, ela deve datar de cerca de 17001400 a.C.,25 não obstante a variedade de propostas existentes, como atesta o mesmo autor.26 Ela mostra um deus em pé, em posição de ataque, com seu braço direito levantado, segurando uma arma (maça), enquanto traz uma espécie de ―árvore-lança‖ com a mão esquerda. Ele traz uma bainha presa a seu lado esquerdo. Na cabeça, cinge uma espécie de capacete ou coroa (?), tem cabelos longos que lhe caem, formando caracóis e uma barba comprida. E possui dois chifres. Sob seus pés existem ondulações que lembram o Mar.27 Identificou-se o deus nela representado com Ba‗al, e isso por causa de algumas características que parecem próprias na iconografia dessa divindade. A sua postura, com o braço levantado, golpeando os seus inimigos; posição essa que corresponde à descrição que encontramos nos textos ugaríticos. Assim, a imagem da estela parece não deixar muitas dúvidas quanto à identificação do personagem: o deus segura tanto a maça mágica com a qual abateu Yam (o Mar) quanto a ―lança-árvore‖, com a qual fere seus inimigos. Neste aspecto é significativo que a representação inclua a arma de combate e a ―lança-árvore‖, que aponta para a fertilidade como atributo de Ba‗al. Figura semelhante aparece em outra estela, oriunda de Ras Shamra (Ugarit). Segundo Izak Cornelius, deve datar de cerca de 1500-1100 a.C. Apresenta uma figura voltada para a esquerda de quem olha o objeto, tem sua mão esquerda levantada e, com a direita, segura uma lança cuja base repousa no solo. Traz ainda uma coroa estilo egípcio e, de acordo com a opinião do autor mencionado, uma barba do tipo asiático. Não obstante não haver plena certeza, é possível que se trate de Ba‗al.28 25 Informações extraídas de CORNELIUS, Izak, op. cit., p.135. Pode-se ver a imagem na lâmina nº32, figura BR1. 26 Idem, p.139. 27 Idem, lamina 32, BR1. 28 Idem, p.138-139, lâmina 33, BR2. 10 Mas ocorre com a iconografia de Ba‗al o que já pudemos observar no caso de Reshef. Ele também pode ser representado sem essa posição, ou seja, sentado ou de pé, mas não em pose de combate. Para ilustrar, podemos citar um primeiro exemplo, uma estela de granito proveniente do Médio Império egípcio, mas com retoques do Novo Império. Nela, podemos ver um deus em pé, recebendo oferendas das mãos do faraó Merneptá. A inscrição o identifica com Set, mas, segundo Izak Cornelius pode se referir a Ba‗al, o que nos mostra a realidade religiosa existente no Egito e na Síria-Palestina, caracterizada pelo sincretismo.29 No segundo caso, nos reportamos a uma estela na qual a inscrição identifica uma figura divina que está em pé, à esquerda, como ―Set, senhor do poder‖.30 O personagem possui o ankh e cinge a coroa branca do Alto Egito, com uma longa fita que sai dela até a altura do calcanhar; e tem dois chifres. Ele segue Knum, Sobek e Ptá. Segundo Izak Cornelius, a divindade aqui identificada como Set pode aludir a Ba‗al. O Antigo Oriente Médio foi o cenário do encontro de diversas religiões que moldaram concepções de mundo formadoras da cosmovisão bíblica. O sincretismo foi uma característica básica desse universo mítico no qual os deuses se fundiam adotando nomes mistos. Foi o caso de Ba‗al, que no Egito foi associado a Set. E que a influência egípcia também se fez sentir nas representações de divindades, notamos pela coroa que elas trazem, a saia curta e, nos relevos, estilos pictóricos semelhantes aos daquele país. Por outro lado, os egípcios representaram deuses cananeus. Uma Estela que se encontra no Museu do Cairo, Egito, que fora descoberta em Qantir e que é datada de cerca de 1194-1163 a.C., apresenta o faraó Ramsés III golpeando dois inimigos. O rei se encontra no gesto de Reshef, golpeando os adversários, tendo uma fita longa e dupla anexada à sua coroa. Ele está diante de um deus que segura um cetro com a mão esquerda e uma espada com a direita. Izak Cornelius acredita se tratar de Ba‗al pelo motivo de que, no período dos raméssidas, esse deus substituiu Reshef,31 embora não haja tanta certeza dessa identificação. Em todo caso, notemos que os próprios egípcios 29 Idem, p.151; lâmina 38, BR 10. Idem, p.150; lamina 37, BR 9. 31 Idem, p.145-146; lâmina 3, BR 3. 30 11 haviam inserido essas divindades cananéias em seu culto, relacionando-as com seus próprios deuses. Os relevos formam parte fundamental do que podemos conhecer do imaginário religioso médio oriental; porém, outros elementos que também nos auxiliam nesse estudo são as estatuetas de metal, sobre as quais discorreremos no próximo capítulo. III — Estatuetas de metal de deuses em posição de combate Uma importante fonte para estudarmos as mentalidades religiosas da cultura cananeia e, como conseqüência, também da cultura hebraica antiga, compõe-se de figurinhas votivas de metal, encontradas em várias partes da Síria e da Palestina. A seguir, vamos tratar delas mais de perto. 1 — Classificação Ora Negbi classifica as estatuetas de metal em três grupos: a) o ―siro-palestino‖, b) o ―siro-anatólio‖ e c) o fenício.32 O primeiro grupo porta coroas do modelo egípcio (por exemplo, a coroa branca, do Alto Egito e o atef de Osíris); também aparecem normalmente vestidas com uma saia de modelo egípcio (umas poucas, porém, vestindo roupa típica da Anatólia). São evidências da influência egípcia na região. Essas estatuetas geralmente portam algo, seja uma espada, uma lança, uma machadinha e, algumas, um escudo de estilo egípcio. Segunda a autora citada, a maioria das estatuetas desse grupo são do período do Bronze Recente, com algumas exceções que poderiam pertencer ao Bronze Médio ou ao Período do Ferro I, de Israel.33 O segundo grupo se compõe de estatuetas vinculadas à Síria e à Anatólia. Elas geralmente trazem chapéus ou coroas em forma de cone, saias curtas, do estilo hitita, 32 NEGBI, Ora. Canaanite gods in metal. Tel Aviv: Tel Aviv University Institute of Archaeology, 1976, p.30. 33 Idem, p.33. 12 com cinturões metálicos, e, às vezes, um manto sobre a saia; também seguram uma clava na mão direita, um arco na esquerda, uma aljava nas costas e um punhal na cintura. Ora Negbi também menciona duas figurinhas que trazem ―altos gorros cônicos, pontudos, com vários pares de chifres (1387, 1390)‖.34 A influência hitita na composição dessas imagens é claramente perceptível na forma de tais chapéus ou coroas, roupas e indumentárias. O terceiro grupo se compõe de vinte e três estatuetas encontradas fora do Oriente Médio, ou seja, em Chipre, Creta, Sicília, Itália, Sardenha, Espanha e outros países da Europa. 2 — Identificação das divindades Nem sempre é fácil identificar as divindades representadas nas estatuetas, pois estão sem os apetrechos que, com certeza, as caracterizavam. Mas algumas parecem corresponder à descrição de Reshef, como as classificadas por Ora Negbi pelos números 1311, 1361 e, talvez, 1405,35 embora essa pesquisadora não faça tal identificação. A primeira, de número 1311 em seu livro, é proveniente da Síria, mas de lugar desconhecido, mede 15,8 cm de altura e, atualmente, está no Museu do Louvre sob a classificação AO20205. Porta um escudo no braço esquerdo e uma espada presa à cinta; sua mão direita, a tem na altura da orelha, como se estivesse segurando uma arma que já se perdeu. Os lóbulos das orelhas possuem furos para brincos. A segunda, de número 1361, mantém o braço direito erguido e, com a mão direita, segura uma arma e, com a esquerda, um escudo do tipo hitita; tem a perna esquerda à frente da direita. Mede cerca de 15 cm, foi descoberta em Megido, no estrato VB, e atualmente está no Oriental Institute Museum da Universidade de Chicago, sob o nº 34 35 Idem, p.34. Idem, p.29, 33, 39; também na lâmina 20 e 24. 13 A18331.36 A camada onde foi encontrada data do século 10º a.C. Segundo Graham L. Davies, ela ―mantém plenamente a tradição cananeia‖.37 Ba‗al pode estar representado em uma figura descoberta em Ugarit, classificada no livro de Ora Negbi pelo número 1311.38 Descoberta por Claude Shaeffer em 1929, encontrase atualmente no museu do Louvre sob o nº AO11598. O deus está em pé, com a perna esquerda à frente, o braço esquerdo também estendido para frente e o direito levantado. Provavelmente segurava uma arma, que se perdeu. Seu ar é sereno e imponente, usa uma coroa egípcia, saia curta e um bracelete de prata em cada braço. A cabeça é revestida de ouro e o peito, de prata. Deve datar de entre os séculos 15 e 13 a.C.39 Está incluído por Ora Negbi no grupo ―sírio-palestino‖.40 IV — Imagem e texto: a relação entre iconografia de Canaã e Antigo Testamento Se no capítulo I abrimos este estudo com algumas considerações a respeito de culto e imagens no Antigo Israel, e chegamos à conclusão de que o uso de imagens não parece ser uma proibição para os hebreus em estágios mais antigos de sua história religiosa; e se nos capítulos II e III apresentamos elementos materiais que representavam e expressavam o imaginário religioso dos antigos cananeus, marcando, dessa forma, o contexto das mentalidades que perduraram pela história a fora e que, com certeza, influenciaram o modo de pensar e de cultuar em Israel, resta agora argumentar como os conteúdos dessas três partes desembocam no texto bíblico de maneira a deixarem suas marcas na religião que se formou posteriormente e que está amparada pelos mesmos textos. E faremos isso evocando novamente os atributos das duas divindades acima estudadas e como eles se aplicam a Yahweh. 1 — Reshef 36 Ver nº1361 in NEGBI, Ora, op. cit., p.165. Cf. também CORNELIUS, Izak, op. cit., p.130-131, lamina 32, RB2. 37 DAVIES, Graham L. Megiddo. Cambridge: Lutterworth Press; Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans, 1986 (Cities of the Biblical World), p.77. 38 NEGBI, Ora, op. cit., fig.128, p.112, lamina 22 e descrição p.163. 39 Idem, p.114. 40 Idem, p.32. 14 Reshef é considerado o deus da guerra e da pestilência. Segundo Othmar Keel, ele ―encarna o aspecto mais obscuro da guerra histórica‖.41 Citado no poema ugarítico de Kirta,42 esse deus é associado à peste e assim é mencionado também em Habacuc 3,5: Diante dele caminha a peste (Daber ), E a febre (Reshef) segue os seus passos. Mark Smith vê Reshef como ―um membro do séqüito teofânico de Yahweh‖. Para ele, o deus está associado à peste, que provoca em seus inimigos com seus raios e flechas. 43 Esse autor pensa que Reshef poderia ser uma divindade astral e estar associado ao planeta marte.44 Othmar Keel o relaciona, e sua flecha certeira, às figuras que aparecem no Salmo 76,4: Ali quebrou os relâmpagos do arco, O escudo, a espada e a guerra. Ele também cita os Salmos 38,3 (que poderia se referir a uma das flechas de Reshef); 78,49 (a doença como emissária de Yahweh) e 91,5-6.45 Este último torna-se muito interessante porque ―a flecha que voa de dia‖ poderia aludir à seta de Reshef, aqui ―reduzido à condição de demônio‖.46 Ršp (lê-se rašpu) é mencionado nos poemas ugaríticos. No início da Epopéia de Kirta, canta o texto que a família desse rei foi totalmente destruída: 15 tar. um. tkn. lh Parentela da madre houve para ele, 16 mtltt. ktrm. tmt um terço [pereceu], quando se alimentava [em] boa situação, mrb‘t. zblnm um quarto, de enfermidade, 17 mhmšt. yitsp 19ršp um quinto, colheu 19Rašpu [Reshef], 18 41 KEEL, Othmar. La iconografia del Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento. Madri: Trotta, 2007, p.213. 42 KTU 1.14 I 19. In: OLMO LETE, Gregorio del. Mitos y leyendas de Canaan según la tradición de Ugarit. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1981, p.290. 43 SMITH, Mark. The origins of biblical monotheism: Israel‘s polytheistic background and the Ugaritic texts. Nova Iorque: Oxford University, 2001, p.68. Ver também HESS, Richard, op. cit., 2007, p.101. 44 SMITH, Mark. The origins of biblical monotheism, p.62. 45 KEEL, Othmar. La iconografia del Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento, p.81. 46 Idem, p.81. 15 mtdtt. ğlm. 20ym. um sexto, cobriu 20o mar, mšb‘t hn. bšlh 21ttpl. um sétimo, por Šalhu 21foi abatido.47 Neste trecho, o rei Kirta, qual Jó, perde toda a sua família. A linha 19 menciona ršp, que pode ser traduzido por ―pestilência‖ ou ter o termo ugarítico mantido como nome do deus. A peste é personificada. Ele ocupou papel importante na religiosidade e na iconografia médio oriental. 2 — Ba‘al O deus Ba‗al é amplamente mencionado e conhecido nos textos poéticos de Ugarit. Aparece como o personagem principal no ciclo de Ba‗al e Anate, que se compõe de três poemas complementares: a luta de Ba‗al com Yam, o palácio de Ba‗al e a luta de Ba‗al com Môtu. Também é protagonista em outros textos, como os amores de Ba‗al e Anate e a luta de Ba‗al contra os deuses do deserto. É bem representado na iconografia da antiguidade e um dos deuses mais conhecidos no Antigo Testamento. Em ―a luta de Ba‗al com Yam‖, esse, a personificação do Mar, é declarado rei dos deuses por ’ilu, o Pai dos deuses; mas, Ba‗al se opõe à decisão e enfrenta o deus muito maior do que ele. Auxiliado pelas armas mágicas que Khotar-wa-Khasis, o artesão divino, lhe entrega, ele derruba Yam e assume a realeza. Segue um trecho do poema em que ocorre a luta: b Saltou a maça da mão de Ba‗al, como uma águia de seus dedos, golpeou na moleira o príncipe 25Yam, entre os olhos o Juiz Naharu. Tombou Yam, caiu por 26terra.48 23 24 O Príncipe Yam cai diante de Ba‗al como Golias diante de Davi! Provavelmente a representação que se encontra na estela AO 15775 mencionada acima deve-se a este evento mítico, se considerarmos que as ondulações sob os pés da imagem representem o 47 KTU 1. 14 I 15-21a. In: OLMO LETE, Gregorio del. Mitos y leyendas de Canaan según la tradición de Ugarit. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1981, p.290. 48 KTU 1.2 IV, 23b-26a. In: OLMO LETE, Gregório del, op. cit., p.176. 16 Mar. Também percebemos que a figura porta duas armas, uma em forma de árvore e uma maça. Os poemas ugaríticos mencionam a ―maça‖ e o ―cedro‖. Este último equivale a lança ou dardo: os olhos de Ba‗al precedem sua mão quando se dispara o cedro de sua destra. 49 40 O Mar é sinônimo do Caos. Ele ameaça a vida e a ordem existentes na civilização. É a concepção oriunda da Mesopotâmia e do Egito. Porém, ali, na Babilônia, o deus que vence o Mar e seus monstros torna-se o criador do cosmos, o ordenador da vida. No poema Enuma elish, que traz uma versão babilônica da criação, Marduk, ao matar Tiamat (personificação do Caos), realiza a obra criadora: O Senhor repousou, para observar o seu corpo inanimado (para ver) como ele poderia dividir o colosso (e) criar cousas maravilhosas com ele. Abriu-a em duas partes como um mexilhão; metade dela, colocou no lugar e formou o céu, fixou os limites e postou guardas.50 Então ele fixa os deuses em seus respectivos lugares e faz emergir a porção seca, a terra: Ele ordenou-lhe [aos guardas mencionados na citação anterior] que não deixassem escapar a sua água. Ele atravessou os céus e examinou as (suas) regiões. Colocou-se em posição oposta a Apsu... O senhor mediu as dimensões de Apsu... E uma grande estrutura, correspondente dele, ele estabeleceu: Esharra, A grande estrutura Esharra, que ele fez como uma canópia, Anu, Enlil e Ea, ele (então) fez com que estabelecessem a sua residência. 51 Não é o caso de Ba‗al, embora haja motivos semelhantes, pois ele não aparece em Ugarit como criador, que é atributo de ’ilu, chamado ―criador das criaturas‖ (bny bnwt),52 ―o que nos gerou‖ (Knqyn, aqui Ba‗al dirige-se a Anate)53 e ―o Pai do Homem‖ (ou ―Pai da Humanidade?‖ — ab. adm).54 Assim, temos uma nova compreensão do mito a partir da realidade da cidade de Ugarit. Ba‗al torna-se rei, domina o Mar e mantém a 49 KTU 1.4 VII, 40-41. In: OLMO LETE, Gregório del, op. cit., p.209. Tábua IV. In: UNGER, Merril F. Arqueologia do Velho Testamento. São Paulo: Batista Regular, 1980, p.12. 51 Tábua IV. In: UNGER, Merril F., op. cit., p.12. 52 KTU 1.4 II 11. In: OLMO LETE, Gregório del, op.cCit., p.195. 53 KTU 1.10 III 5. In: Idem, p.472. Para um estudo a respeito do verbo qny (hebraico qnh) ver SILVA, Célio. Melquisedec, sacerdote de ’el ‘elyon: Uma exegese de Gênesis 14,18-20. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2006 (Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião), p.102112. 54 KTU 1.14 I 37. In: OLMO LETE, Gregório del, op. cit., p.291. 50 17 ordem cósmica, como faz Marduk na narrativa babilônica, mas não é o criador do mundo. Percebemos como o lugar determina o modo como se contam e recontam as histórias... Em sua magnífica obra, La iconografia del Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento, Othmar Keel apresenta a relação dessas imagens com textos extraídos do livro de Salmos. Ele apresenta muitas ilustrações da batalha de Marduk com Tiamat, representada por uma serpente ou um monstro de sete cabeças.55 Aliás, a literatura bíblica é riquíssima nessa temática, estando muito próxima da ugarítica. Em Jó 26,12-13 está escrito: 12 Com o teu poder aquietou o Mar, Com sua destreza aniquilou Raab. 13 O seu sopro clareou os Céus e sua mão traspassou a serpente fugitiva. Tema semelhante ocorre, por exemplo, em Salmo 74,14; 89,10-11; 93,1-4 e Isaías 27,1. Esta última referência é interessante pelo paralelo que possui com um texto ugarítico. Vejamos: Naquele dia, punirá Iahweh, Com a sua espada dura, grande e forte, A Leviatã, serpente escorregadia, A Leviatã, serpente tortuosa, E matará o monstro que habita o Mar. Em ―o mito da luta entre Ba‗al e Môtu‖, existem os seguintes versos: 1 Quando mataste Lotânu, serpente fugidia, destruíste a serpente tortuosa, 3 o Tirano de sete cabeças. 56 2 Não obstante as representações em relevo mencionadas no capítulo II, item 2, não trazerem figuras da serpente mítica, mostram ondulações sob os pés de Ba‗al que podem representar o Mar. De alguma maneira, temos ali, e nas estatuetas das quais falamos neste estudo, representações do deus vencendo as forças impetuosas do Mar e impondo a possibilidade da civilização. 55 56 KEEL, Othmar. La iconografia del Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento, p.42-50. KTU 1.5 I 1-3. In: OLMO LETE, Gregório del, op. cit., p.213. 18 Daí podermos relacionar as características de Ba‗al, como estão estampadas nos relevos, com a sua descrição oriunda dos textos ugaríticos. E mais, como o deus Yahweh acaba assumindo esses traços e atributos divinos, como lemos nos textos bíblicos acima mencionados. No poema que versa sobre o Palácio de Ba‗al, que pertence ao mesmo ciclo do qual faz parte o que narra a luta desse deus com Yam, conta-se que, após a construção de seu palácio, símbolo concreto de seu poder real, o deus procede à conquista de seus inimigos e à anexação de cidades: 9 Sessenta e seis cidades tomou, setenta e sete vilas.57 E algumas linhas mais adiante: E respondeu 38Ba‗al, o Vitorioso: ―inimigos de Ba‗al, por que vos assustais, 39 por que temeis a arma do Poderoso?‖ 40 Os olhos de Ba‗al precedem sua mão quando se dispara o cedro de sua destra. 58 37b Aqui Ba‗al consolida o seu reinado e submete a todos os seus adversários. Como Reshef, também ele é deus guerreiro; com exceção, porém, de que ―representa o combate nobre, de caráter cósmico, contra o Caos e a morte‖.59 Ele é o ―auriga das nuvens‖, ou seja, ―o que cavalga as nuvens‖ (rkb ‘rpt),60 semelhante a Yahweh, que ―montou sobre o kerub‖ (yrkb ‘l-krb) no Salmo 18,11 e ―cavalga nas nuvens‖ (rkb b‘rpt), segundo o Salmo 68,5. O deus lança raios e o trovão é a sua voz. Semelhante a Yahweh em vários Salmos; citaremos o de número 29,3: A voz de Iahweh sobre as águas, O Deus glorioso troveja, Iahweh sobre as águas torrenciais. 57 KTU 1.4 VII, 9-10. In: OLMO LETE, Gregório del, op. cit., p.208. KTU 1.4 VII, 37b-41. In: OLMO LETE, Gregório del, op. cit., p.209. 59 KEEL, Othmar. La iconografia del Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento, p.213. Porém, talvez esses adversários cósmicos pudessem ser vistos encarnados em inimigos concretos, históricos. Ver, por exemplo, o Salmo 18,8-17, onde as características de Yahweh parecem possuir traços de Ba‗al. Sobre a relação desse poema com as concepções cananeias representadas pela literatura ugarítica, ver SILVA, Célio, op. cit., p.124-126. 60 Particípio ativo rkb, da raiz rkb: ―montar‖. 58 19 Percebemos uma relação muito estreita entre as imagens de Ba‗al apresentadas acima, os textos ugaríticos que podem ser relacionados com elas e as concepções de Yahweh cultivadas na literatura bíblica. Sinal de como a iconografia do Antigo Oriente Médio nos ajuda a compreender o mundo das representações religiosas que estão nas camadas inferiores da Bíblia Hebraica. Considerações gerais Este texto tem procurado demonstrar a importância da iconografia do Antigo Oriente Médio no estudo da religião dos antigos hebreus, de suas cosmovisões e dos atributos de seu deus Yahweh. No capítulo I, refletimos a respeito do caráter anicônico do mandamento bíblico (Êx 20,4) e sua relação com a história do monoteísmo presente nas páginas do Antigo Testamento, de maneira que chegamos à conclusão que, nos estágios mais primitivos da história de Israel, parece que não havia proibição expressa do uso de imagens. No capítulo II, abordamos o tema das imagens dos deuses Reshef e Ba‗al em relevos, suas características e símbolos. Pudemos observar que ambos são descritos iconograficamente de forma muito semelhante, mas possuem sinais peculiares que nos auxiliam em sua identificação. No capítulo III, baseamos nossas observações, sobretudo, no estudo publicado por Ora Negbi a respeito das estatuetas de metal que refletem a religião cananéia. A mesma problemática se impõe na identificação das figuras, já que a maioria, em estado fragmentário, há muito perderam os elementos que nos possibilitariam fazer tal relação entre elas e o deus que representam. Mas existem casos em que podemos ter quase certeza, como a estátua de Ba‗al descoberta em Ugarit e referida no item 2. No capítulo IV, procuramos tecer uma relação entre os deuses Reshef e Ba‗al, representados pelos relevos e estátuas a que aludimos nos capítulos precedentes, e seus atributos, agora colocados, de maneira direta ou indireta, em Yahweh. Com isso, pudemos observar o caráter de dependência da religião bíblica em relação ao ―chão‖ cultural e religioso no qual ela se desenvolveu. 20 O estudo das imagens é um campo fértil e muito significativo para o pesquisador das religiões bíblicas. Ele nos remete à visão de como as pessoas da antiguidade (em nosso caso, do Oriente Médio) pensavam o mundo, e a si mesmas nele, através das práticas e dos conceitos religiosos. Bibliografia ARCHER, Gleason L. Merece confiança o Antigo Testamento? São Paulo: Vida Nova, 1979. DAVIES, Graham L. Megiddo. Cambridge: Lutterworth Press; Grand Rapids, Michigan: William B. 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