Lispector um sopro de plenitude1 Bella Josef A morte de Clarice

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Lispector um sopro de plenitude1 Bella Josef A morte de Clarice
Lispector um sopro de plenitude1
Bella Josef
A morte de Clarice Lispector – e o dizemos sem relativismos valorativos
– foi um rude golpe para as letras nacionais e universais. Em pleno auge de sua
criatividade, muito se poderia esperar ainda desta artista consciente de seu
fazer literário que, com sua arte inconformista, experimental, ao lado de
Guimarães Rosa, abriu novos rumos à literatura brasileira, incrementando o
processo de desestruturação da narrativa tradicional.
Contemplando “a face sem rugas da eternidade” (p. 88), enfrentando o
abismo eterno do infinito, Clarice deixou-nos em Um sopro de vida uma história
que dinamiza seu universo interior, onde reitera suas obsessões numa
linguagem bela e persuasiva, rica em imagens, visionária, dialógica e
conotativa, com um potencial simbólico, em que introduz um ar de
naturalidade, criando um mundo poético paralelo ao da natureza. É esta a sua
maneira de entender o mundo: expressá-lo até as últimas consequências. O
mistério estabelece-se e cada imagem encerra um enigma, o que as faz
reconduzir ao significado originário. A ficção recupera, assim, uma realidade
perdida e rompe com uma existência massificada. O século xx, com seu
progresso técnico, criando uma sociedade despersonalizada, não resolveu os
problemas do homem; este angustia-se cada vez mais. A noção de
racionalidade, de um real convencionado, passa a ser questionada nas relações
humanas contraditórias, um clima de dúvida e perplexidade se forma, donde a
crise da linguagem da obra que, ao contestar-se, contesta as convenções que a
possibilitaram, relacionando os elementos constitutivos da narrativa de
maneira nova. A literatura se quer também realidade. Busca os valores de um
mundo axiológico real deslocado e oculto pela irrealidade do oficial. O
1
In: Jornal do Brasil, 16.12.1978.
estereotipado e o aparente o presidem. A institucionalidade oculta o “rumor de
vida”.
O critério de redução do conhecimento ao estritamente empírico alienou
o homem. O ser humano foi separado de um mundo que sente e intui ligado à
sua existência, mas irredutível a fórmulas científicas. Os que percebem outra
alternativa devem persegui-la, alcançá-la e possuí-la para poder ser. Daí que,
para Clarice, “ser é o princípio unificador de tudo” (p. 20). Um sopro de vida é a
luta entre o ser e o existir. Clarice possuía uma visão de algo mais além de sua
natureza humana, intuindo outro estrato de realidade diferente do limitado
pela unidade e a finitude. Quer captar a intuição e submetê-la ao controle da
razão. O iminente (ou realidade) transcendentaliza-se em termos de
significação. Sofre o dilema platônico entre aparência e essência, buscando
esta pelas aparências reveladoras. Seu esforço por alcançar a essência traduz-se
no intento de decifrar o enigma da vida, encoberta pelas convenções. Esta
busca da realidade total, o desejo do absoluto dentro das condições do relativo,
determina o acúmulo de contrários, a não causalidade. Entre racional e
instintiva, quer entender o próprio entendimento (p. 49), em plena comunhão
com o mundo, fusão de corpo e alma que institui a ambiguidade. Assim como é
livre para sentir, quer ser livre para raciocinar (p. 50). Mas, ao pensar, esvaziase (p. 5l), a intimidade esvazia-se com as ideias (p.53). A “fusão de corpo e
alma”, síntese intuitiva, a aspiração surrealista que se contrapõe, em Clarice, a
um distanciamento crítico que aniquila e anula essa síntese.
A intuição de “algo” que escapa ao empírico causará na escritora um
sentimento de estranhamento diante do cotidiano. Possui-o e transcende-o. A
transcendência é liberdade e libertação, realizada e conseguida a cada instante,
num eterno devir. Detectando as contradições crescentes da sociedade atual,
volta-se para o passado ou futuro como possibilidade de salvação. “O futuro é
um passado que ainda não se realizou” (p. 50). Nesse sentido, aproxima-se do
que Walter Benjamin afirmou de Breton: “A obra de arte não tem valor senão
na medida em que ela é atravessada pelos reflexos do futuro”. A dimensão
temporal é reduzida ao efeito momentâneo da palavra. As palavras, em Um
sopro de vida, prenhes de sentido, geram novas significações sob formas
antigas. Os clichês são empregados como ponto de partida (“o pão nosso de
cada dia” (p. 12), “em mares nunca dantes revelados” (p. 15), “sem aviso
prévio” (p. 24), “beco sem saída” (p. 25), “higiene mental” (p. 40), e tantos
outros. Revitaliza formas inertes, aludindo a uma cultura, embora renegando-a.
Situa-se no espaço intertextual de outros discursos ou o seu próprio (em outras
obras), o que supõe a existência de um código que é questionado, criando-se
um espaço textual múltiplo.
Tudo já está no cotidiano que nos cerca e se impõe, é necessária a
intuição para descobrir novas realidades, “um enigma intangível em seu núcleo
mais íntimo”, o que é, sendo. Constata que “já está gasto o pensamento da
palavra” (p. 70), quer começar de um começo em que não haja resquícios de
qualquer hábito, cacoetes ou habilidades” (p. 70). Diante da insuficiência do
mundo conhecido pela lógica e por ela regida, as palavras fundam nova
realidade: na ironia do texto, fica implícita a crítica à realidade transfigurada,
restitui os mecanismos lógicos de um pensamento que, ao mesmo tempo, sabe
descobrir as licenças da imaginação. A ironia implica, ainda, a participação em
determinado código, uma conformação mental similar do leitor, cujas
estruturas dependem de um conhecimento comum.
As palavras de Um sopro de vida não informam, aludem, são instrumento
de sugestão, o que as valoriza e enriquece a significação conceitual do signo.
Mas para conhecer, a linguagem faz-se lúdica. O jogo é confirmação da
característica supralógica da natureza humana, e a literatura é um jogo. Na
tessitura do imaginário, além dos limites da racionalidade, é onde a realidade
cobra significado. A compreensão do irracional se faz pelo avesso (“a sombra é
o avesso do ‘certo’”), possibilidade de proposta de novas convenções que se
afastam do nível aparência! O mundo é descoberto pelos seus avessos, o irreal e
o mágico o reelaboram. A apropriação dos dados da realidade dá-se pouco a
pouco, como o fluir do sangue nas veias, o tempo desvelando um universo
ilimitado onde realidade e imaginação não são contraditórias. A irrealidade
quer conter o real transfigurado.
Mas “uma palavra é a mentira de outra” (p. 87) e para que ela exista,
salva do congelamento racional e nomeando o mundo, outra deixou de existir.
Além disso, é incapaz de esgotar a expressão da realidade. A literatura pode ser
considerada uma recriação que o escritor faz de si mesmo, das memórias gratas
e cruéis que pesam tanto na recordação e que são pesadelo e consciência
dolorosamente mesclados. O artista vive em suas obras que são seu reflexo e
espelho.
Este, em Clarice Lispector, é mediador do desdobramento da consciência
de si, quando a identidade se transforma em alteridade. Despojando-se das
palavras, “o encontro do eu com o eu” (p. 65). A personagem Ângela constata
“o encontro da vida com a minha identidade” (p. 68). O Autor desdobra-se em
Autor e Ângela (p. 47), vendo-se e vendo-a alter ego que divide as angústias
(“eu te respiro-me”, “ela me é eu”, “de mim para si mesma”). A personalidade
do narrador é o princípio da unificação dinâmica, um confronto de experiências
vitais, de preferências, a consciência que concebeu determinados conjuntos
semânticos em determinadas relações, utilizando-os em uma atividade
criadora premeditada, criando uma pluralidade de mundos habitados,
significativos de per si. A visão da realidade internalizada pelo Autor (ou
Ideologia) codifica a realidade e a linguagem de maneira nova.
Nesta última e definitiva obra de Clarice Lispector há um desnudamento
total (“o difícil é ficar com a alma nua” (p. 67), nessa espécie de diário de uma
criação, onde anotou impressões, definições, descrições. O motivo principal é o
escrever, ato mágico e misterioso, que detona novas realidades. A necessidade
de escrever, “para fazer existir e existir-me” (p. 94). Classifica-o como “não
memórias”, agarrou o ato de criar no próprio momento da criação. Ninguém o
soube expressar tão bem como Clarice: a centelha mágica, “o relâmpago da
inspiração”, não em palavras, mas pelo silêncio. A conscientização da realidade
produz-se através da linguagem. Por meio desta, célula propulsora da
experiência imaginária, o discurso do silêncio se produz. A palavra secreta,
“como uma despedida de adeus”, o momento em que nada existe, antes de ser
aprisionada pelo pensamento, “quase à beira de não ter sentido” (p. 92), algo
como recuperar as ressonâncias originais para adquirir toda a potencialidade de
sugestões.
Podemos considerar, nessa obra, dois aspectos que sintetizam e
englobam os demais: a solidão e a questão do ser, do sujeito que a atividade
literária implica e a relação entre o ato de escrever, a linguagem ou realidade e
o imaginário. São os eixos conformadores.
Uma nova conceituação da função da linguagem faz com que o
significante se converta em função primordial na produção de sentido, com
novas possibilidades de significação. Como símbolo representativo de uma
herança cultural pertencente a uma coletividade, a linguagem é questionada
em seu caráter convencional enquanto instrumento expressivo, assim como a
convenção do que se aceita sendo a realidade. Para isso, na desintegração da
estrutura da ficcão mimética (na descrição dos objetos, por exemplo, “Biombo”
(p. 108), “Estado de coisa” (p.109), “O Indescritível” (p. 111), “A Casa” (p. 112)
e outros, através da carga emocional do irracional. Há relações inesgotáveis
entre as coisas: a única realidade é a convenção (dado o caráter convencional
da linguagem). A unidade é conseguida enquanto significação e não enquanto
representação. São possibilidades combinatórias para uma síntese abrangente
(ou visão totalizante) em contraposição à fragmentação de uma época e à
sucessão da linguagem.
Estabelecendo nova ordem, a artista impõe sua liberdade afiançando seu
papel de gerador livre dentro da realidade coercitiva, como dona de suas
próprias iniciativas.
A personagem Ângela é um ser forjado pela palavra. Luta por sua
realização individual e leva às últimas consequências uma atitude que é
resultado de uma escolha mais submetida às forças irracionais. Não prevalece a
hierarquia que separa Autor e criatura da sua própria indagação existencial. A
obra de arte repete, assim, o ato criador, na tentativa do encontro entre o
criador (Autor) e sua criatura (Ângela), o instituidor e a coisa instituída. O
leitor, cúmplice e aliado, por sua leitura decifra a escritura e também a realiza.
A participação do leitor é despertada para que sua passiva função receptora
tradicional fique implicada uma atividade de características dialógicas para
senti-lo como interlocutor, próximo de sua criação. Clarice estabelece relação
mais direta entre Autor e leitor, observando o narrador ironicamente debaixo
de sua máscara. O narrador passa a ser um eu fictício, comprometido com a
obra como um personagem a mais. Embora o foco narrativo seja definido, o
clima é de indefinição: a primeira pessoa contribuir para maior envolvimento,
ao mesmo tempo que é questionadora pela ironia empregada. A objetividade
(ou objetivação de um espírito individual) e conseguida pela distância crítica
em oposição ao subjetivismo da primeira pessoa. Logo nas primeiras páginas,
ao exibir sua posição diante do mundo, o Autor não faz concessões, tem
constante intervenção na ordenação do caos. Afasta-se dos padrões
estabelecidos, indo de encontro à essência do homo fictus. O leitor abandona as
convenções captando a maravilha da criação que é esta invenção com palavras.
Um sopro de vida é a metáfora do ser em seu desejo de transcendência que, para
a escritora, é o escrever, já que a criatividade é a única maneira de salvar a
realidade: “Não consigo imaginar uma vida sem a arte de escrever ou de pintar
ou de fazer música” (p. 82). Emancipou o Autor de sua identidade num
empreendimento de autenticidade criativa, se o núcleo gerador é o
questionamento do escrever, a obra não termina nele: hálito, sopro, alento que
permanece palpitante nos seres e objetos, envolvendo o existir dos homens:
“Quando acabardes este livro, chorai por mim um aleluia”. Sim, Clarice.
Paixão da linguagem segundo Clarice2
Carlos Ernesto de Godoy
Muitos roteiros poderiam ser tentados na obra caleidoscópica de Clarice
Lispector que morreu anteontem. Como num jogo de combinações, os
resultados representariam, por certo, sugestões de uma leitura geral e jamais a
busca de uma ordenação estática. A procura de uma coluna vertebral em seus
escritos não iria mal centrar-se em numerosos aspectos e, com uma análise
paciente, o pesquisador conseguiria documentar seus argumentos, estribado
naquele universo de colocações que vão desde as indagações ontológicas da
relação homem/mundo até as preocupações com os seres, enquanto objetos,
enquanto vivos, enquanto aquém ou além da vida. A práxis de Clarice,
entretanto, se nos avulta importante à medida em que focaliza o ser humano
em seu esforço para compreender-se, na sua busca contínua por relacionar-se
com seus semelhantes e as coisas que o cercam, na ênfase que ele chega a pôr
na impossibilidade de comunicar-se. A linguagem é para esse homem uma
pedra de toque: às vezes ele a teme como máscara sem sentido, que lhe
esconde o eu e lhe impede de se mostrar na verdadeira nudez; outras vezes, ela
se lhe avulta opressora, trazendo em seus ferros o monstro social com todas as
regras da convenção; outras ainda, ela é o fruto proibido e ambicionado para
saciar-lhe a sede de uma expressão original e sem amarras. Daí parecer-nos
viável a procura de uma certa Clarice através da linguagem, do embate que ela
própria travou para uma explicação do estar no mundo.
A prisão
Quando se explicou que os “jogos de linguagem” são processos
linguísticos a partir dos quais um contexto verbal já conhecido adquire novo
2
In: O Estado de S. Paulo, 11.12.1977.
significado, os críticos puderam compreender melhor as cartas de Schiller e a
afirmação de Heidegger segundo a qual a poesia de Hölderlin é ação verbal
reveladora do mundo. Assim, ficou patente que uma obra literária pode ter essa
propriedade reveladora, desde que o material de ficção constitua também, de
certo modo, o seu objeto. Em Clarice, a linguagem tematizada envolve o
próprio objeto da narrativa, abrangendo, com o problema da existência, a
questão da expressão e da comunicação.
Já em Perto do coração selvagem vemos delinear-se uma íntima união
entre a existência e a linguagem, no choque representado pelo entrelaçamento
de identidade pessoal e ser social. Uma parte do que somos é formada por
conceitos, advindos de nossa herança cultural, socialmente transmitida,
através de clichês verbais, palavras-chave, construções tradicionais que
utilizamos para o entendimento cotidiano (a “existência inautêntica”).
Enquanto membro de uma sociedade, o indivíduo aceita essa linguagem, mas,
quando sente a necessidade de expressar-se como pessoa, como ser uno e
pensante, essa mesma linguagem é uma barreira, não conseguindo revelá-lo:
“É curioso como não sei dizer quem sou”, pensa Joana. “Quer dizer, sei-o bem
mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em
que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma
lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu
sinto mas o que eu digo.” (Perto do coração selvagem, p. 17). Ali, como nos
demais romances de Clarice, a inquietação que tortura o indivíduo é o desejo de
ser com inteireza, a vontade de superar a aparência, de ir além da expressão
possível. O impulso para uma realidade pré-linguística, assim como o enfoque
existencial airada são frágeis nesse primeiro livro, mas já chegam a definir o
personagem clariciano como um prisioneiro da linguagem: “Presa. Onde está a
imaginação? Ando sobre trilhas invisíveis. Prisão, liberdade. São estas as
palavras que me ocorrem. No entanto, não são as verdadeiras, únicas e
insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O desejo ainda não tem nome.”
(PCS. p. 61).
Relações
Em Laços de família Clarice Lispector retratou visceralmente a sociedade
e seus processos de coerção, representados através de toda uma linguagem que
vai além das palavras, gestos, hábitos, cacoetes, modismos, maneiras
desgastadas, utilizando para tal dissecação seu núcleo mais representativo: a
família. Ali estão as aparências mantidas, de familiares que na verdade se
hostilizam, o falso respeito aos velhos, a esposa exemplar desempenhando o
papel que a tradição lhe ensinou, assim como os desvarios que em geral
ocorrem nas pessoas quando se enfastiam do convencional e procuram a fuga.
Contos que se inscrevem entre os mais perfeitos da língua, obedecem a uma
estreita coerência com a obra da autora ao colocarem em xeque conceitos já
usados e velhas opções de vida.
A certa altura de sua obra, Clarice decide assumir, de uma vez por todas,
a linguagem palavra como elemento gerador da ação; seu personagem Martim,
de A maçã no escuro, tem uma tarefa a cumprir: descobrir-se a si mesmo e aos
outros. Tal descoberta se concretizará na medida em que “organize sua alma
em linguagem” e se exprima para aí mesmo e para os demais. Esse ponto-chave
da proposta aproxima-a do pensamento de linguistas e filósofos como Sapir e
Heidegger, que conferem ao simples ato da prolação o sinônimo de criação.
Antes, porém, de conseguir o grande ponto que o levaria ao fundo de si
mesmo e ao conhecimento dos outros, Martim optou por um rompimento com
a sociedade. E, rompendo com ela, rompeu também com o mundo das palavras;
tentou o silêncio, procurando substituir os vocábulos pelo esquecimento, numa
espécie de eliminação do passado. Seu aprendizado, longo, envolveu um
contato estreito com a natureza e os seres, na mais absoluta contemplação.
Até que, sentindo certo dia a necessidade de expressar-se, de criar uma
modalidade de fala, para reunir a nova experiência, só conseguiu escrever a
palavra “aquilo”. Recuado ao mundo pré-verbal, divisara a existência do
universo que precede o pensamento e seus símbolos, as relações sociais e a
cultura. Martim reconhece que a nossa compreensão das coisas é “feita através
das palavras perdidas e das palavras sem sentidos” (A maçã no escuro, p. 298). A
palavra “aquilo”, somada a alguns acessórios, continha tudo para que o
personagem se reencontrasse e renovasse sua ótica do mundo. Aquele homem
rejeitava a linguagem dos outros e não tinha sequer o começo da linguagem
própria. E no entanto, oco, mudo, rejubilava-se. E de tal modo, com perverso
gosto, o homem se sentia agora longe da linguagem dos outros que, por um
atrevimento que lhe veio da segurança, tentou usá-la de novo e estranhou-a
como um homem que escovando sóbrio os dentes não reconhece o bêbado da
noite anterior” (A maçã escuro, p. 136).
O silêncio
Se n’A maçã no escuro a experiência do personagem central
desenvolveu-se em lances dramáticos que conduziram a ação a uma
reconciliação com a vida, dentro de verdadeira crença no esforço do homem, A
paixão segundo G.H. tem uma trajetória diversa: parte de um impacto inicial,
que desencadeia a ação, e esta vai crescendo até atingir os foros da tragédia, de
modo que, pela linguagem o personagem vai em “via-crúcis” até o gesto final
da desistência. É o ponto de estrangulamento da obra de Clarice: G.H., uma
escultora, que se abala certo dia por um fato insólito (a atração que a obriga a
degustar massa branca de uma barata), põe-se a escrever para destinatários que
imagina fragmentos de sua personalidade, numa tentativa de explicar seu gesto
e, paralelamente, seu íntimo caótico. Pelo longo exercício apaixona-se pelo
subjetivismo da atitude e mergulha numa ascese a conduzi-la sempre mais
longe na descoberta de uma linguagem que a exprime em seu todo. Entretanto,
no momento exato em que o personagem parece ter atingido a sua expressão
exata,
G.H.
desiste, optando pelo mais estranho silêncio: “A realidade é a
matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho.
Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que
instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu reforço humano. Por
destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto
como indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha
linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não
conseguiu.” (A paixão segundo G.H., p. 178.)
Euforia
Depois da insólita experiência da Paixão, Clarice dava a impressão de
nada mais ter a acrescentar a seus escritos: tudo parecia estar dito naquela
estranha obra-prima, que deixara atônito até mesmo o público já habituado a
seus espaços abissais. Dois livros vieram, contudo, e foram recebidos com a
frieza habitual dos que já assistiram o ponto culminante de uma obra, fazendo
crer que o silêncio final do G.H. lhe estava sendo exigido.
A certa altura, entretanto surge um pequeno volume, de cento e poucas
páginas, trazendo, afinal, a nova Clarice Lispector: Água viva, um longo
monólogo cheio de amor e desespero – incongruente, terno, agressivo e
desvairado. Era o grito de libertação de uma mulher que se dera muito, que
vivera toda uma existência dentro das letras e chegara à conclusão de que o
cotidiano é mais importante que as láureas, que caminhar a esmo é melhor que
seguir um rumo: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que
mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria,
improviso diante da plateia”. (Água viva, p. 87); “Escrevo-te em desordem, bem
sei. Mas é como vivo” (A.V., p. 87). Era igualmente o desabafo da escritora maior
que se reconhece transformada pelas circunstâncias em objeto consumo: “O
que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas
secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente. Quiseram que
eu fosse um objeto. Sou um objeto. Objeto sujo de sangue. Sou um objeto que
cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige. O mecanismo exige
a minha vida. Mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que
seja um objeto que grita. Há uma coisa dentro de mim que dói. Ah como dói e
como grita pedindo socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um
objeto sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem? tal e o meu destino
humano o que me salva é o grito. Eu protesto em nome do que está dentro do
objeto atrás do atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto urgente.” (AV,
p. 104)
Indagação final
Livre, agora, movida apenas pelos impulsos do momento, podendo
escrever à revelia das intenções e dos policiamentos, Clarice publicou mais
contos, obedecendo ao próprio aviso que fizera em Água viva: “De vez em
quando te darei uma leve história – área melódica e cantabile para quebrar este
meu quarteto de cordas; um trecho figurativo para abrir uma clareira na minha
nutridora seiva” (AV, pag. 39). Falou-se numa Clarice ao alcance de todos e
quem falou caiu em erro, pois que a linha de seu pensamento se manteve
elevada, apesar da facilidade aparente. Quem se detiver nas páginas finais de
sua obra poderá detectar a ironia tênue das colocações, conseguindo apreender
a grande indagação que emana d’A Hora da estrela, a última publicação. Mas
lerá melhor quem tiver em mente a trajetória magnífica que ela deixou, como
um halo de flores à margem de um abismo; “Para me refazer e te refazer volto a
meu estado de jardim e sombra, fresca realidade, mal existo e se existe é com
delicado cuidado. Em redor da sombra faz calor de suor abundante. Estou cheia
de acácias balançando amarelas e eu que mal e mal comecei a minha jornada.”
(AV)
Clarice pergunta para viver3
Nogueira Moutinho
Ao cabo da leitura, esta breve novela, A hora da estrela, de Clarice
Lispector, levou-me a relembrar o episódio de Getrude Stein na hora da morte.
A autora de Alice Toklas entreolha os circunstantes e indaga: “Qual é a
resposta?”. Como todos se mantivessem calados reabriu os olhos pela última
vez e ajuntou: “Então qual é a pergunta?”.
No início do livro a nossa escritora afirma: “Enquanto eu tiver perguntas
e não houver resposta continuarei a escrever”. E ao depois, apresentando sua
lamentável personagem: “Não fazia perguntas. Adivinhava que não há
respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um não na cara? Talvez a
pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela
nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela mesma
parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra
resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se apresente e a diga, estou há
anos esperando. Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul”. E
mais além: “Este livro é uma pergunta”.
Não haverá relato mais cruamente pungente na obra de Clarice, talvez
em toda a moderna literatura brasileira, do que a da vida, paixão e morte de
Macabéa, desprezada até pelo namorado, Olímpico de Jesus, paraibano e
metalúrgico. Alagoana mal transplantada ao Rio, insofrível datilografa, subalimentada inquilina de um cubículo partilhado com quatro outras criaturas de
sua laia numa casa de cômodos da rua do Acre, seu próprio nome é grotesco
como seu destino e mais ainda risível se torna abreviado para “Maca”, que é
como lhe chamam as conhecidas. “Assoava o nariz na barra da combinação.
Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo
3
In: Folha de S. Paulo, 9.12.1977.
encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. Essa moça não sabia que
ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro”. Não pode
haver maior abismo desidentificante. No longo processo de redução ao
essencial, de geometrismo cubista que imprime a meu ver o caráter básico da
novelística clariciana, o extremo limite da simplificação encontra-se aqui
atingido. Após o traçado deste ângulo raso não lhe será facultado abstrair mais,
elidir mais, amputar mais para chegar ao cerne, ao nervo, ao osso; a redução
aqui chegou ao absurdo. Um passo além e nos encontraremos em pleno
universo lunar, mineral, sem sopro de vida, sem hálito. Não é possível eliminar
outros acidentes para atingir a essência mais despojada, a criatura nua e
desabrigada, “lamentable victime á son destin offerte”.
Macabéa é realmente a mônada elementar, massacrada, espoliada,
inconsciente, na qual, todavia, insiste em manter-se acesa a “pequena flama
indispensável” que dignifica o humano e o distingue da total passividade da
coisa. É esse íntimo sopro que Clarice persegue e é sobre esse mínimo
permissível que constrói a história desse destino até o atropelamento e a
morte. Macabéa é um ente desvalido e inerte, é uma criatura que apenas se
pode denominar assim, mente fronteiriça da inanidade, mas a humilde chama
que nela arde encontra uma via tortuosa e abscôndita para iluminar-lhe o
paupérrimo ser: Macabéa possui sensibilidade musical. No radinho de pilha que
uma companheira de quarto lhe emprestava para ligar, em surdina, de
madrugada, ouviu uma vez um homem chamado Caruso cantando certa música
identificada como Una furtiva lacrima. Essa melodia “fora a única coisa
belíssima na sua vida. Quando ouviu começou a chorar. Era a primeira vez que
chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos”.
Por isso, no âmago, este também é um livro musical, “uma melodia
sincopada e estridente”, como diz a escritora, que dedica o texto a Schumann e
sua Clara, a Beethoven, a Bach, a Chopin, a Stravinsky, a Richard Strauss, a
Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a Schoenberg, aos
dodecafônicos, aos eletrônicos, que nela atingiram zonas assustadoramente
inesperadas, profetas do presente que a vaticinaram a ponto de fazê-la explodir
em seu próprio eu. Pode ser que não se percebam as sutilezas do relato, pois,
como ela mesma diz, “existe a quem falte o delicado essencial”.
Essa dedicatória Clarice a assume plenamente, conquanto a narração d’A
hora da estrela esteja delegada a um dos personagens do relato, Rodrigo S.M.,
que um só momento se impacienta: “Mas porque trato dessa moça quando o
que mais desejo é trigo puramente maduro e ouro no estio?”. O autor dessa
história, verdadeira embora inventada, serve porém como pretexto para
algumas das mais secretas e veementes confidências da escritora sobre seu
ofício.
Clarice, na introdução do livro, efetivamente deixa as pegadas do que se
chamaria sua estética, se não se devesse com mais propriedade denominá-la
sua ética, pois “no fim talvez se entenda a necessidade do delimitado”. Sob o
pseudônimo de Rodrigo é ela quem fala: “Que ninguém se engane, só consigo a
simplicidade através de muito trabalho”. Em seguida: “Eu não sou um
intelectual, escrevo com o corpo”. Mais adiante: “Por que escrevo? Antes de
tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz
conteúdo”. Ainda: “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas
voam faíscas e lascas como aços espelhados”. E concluindo: “Escrevo por não
ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos
homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto
mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me
morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair
discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo,
inclusive a paixão e o desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e
não fui”.
A mim me parecem crucialmente importantes os fragmentos desse
dilacerante depoimento que a grande criadora só se permitiu prestar com a
ajuda de um “tertius”, afivelando a máscara que na tragédia ocultava o ator:
Rodrigo S.M. é sua “persona” e através dele confessa a romancista o grave
drama que lhe significa a escrita, a passional aderência íntima ao destino das
personagens suscitadas no papel, a angústia flaubertiana expressa na apóstrofe
famosa, que ela poderia parodiar, talvez com mais ampla literalidade: “Rodrigo
sou eu!”. Por isso assevera com patética resignação: “Queiram os deuses que eu
nunca descreva o lázaro parque senão eu me cobriria de lepra”.
Eduardo Portella no magnífico ensaio “O grito do silêncio”, introdutório
ao romance, afirma agudamente que para Clarice a linguagem é o verdadeiro
lugar da existência, mas que suas frases encerram “um sentido secreto” que é
mais do que elas, e que só se dá por inteiro ao nível do silêncio: “Não a mudez
opaca e doente, porém a forma dilacerada do grito. É preciso que se ouça o
grito contido no interior do silêncio; que se perceba o destino sisifiano da
palavra”. É inegavelmente nessa direção que nos devemos encaminhar a fim de
apreender o profundo significado deste livro, sem temer o que há nele de
abandono, sem temer sua solidão, pois como afirma Clarice: “Minha força está
na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes
ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”. O despojamento não
está só nas criaturas, está também no criador e como o caráter é o destino,
segundo a lição heracliteana, o único livro que perpassa fugazmente pela vida
de Macabéa, por acaso entrevisto sobre a mesa do chefe, chama-se Humilhados
e ofendidos. Este romance, A hora da estrela, contém exemplarmente em seu
contido silêncio, na “tábula rasa” em que se tornou Macabéa expungida de
todas as aderências, o estertor supremo desse grito. “A maior parte do tempo
tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos” – afirma Rodrigo S.M., o
narrador hipotético. Não será esse vazio o supremo significado de toda a
criação de Clarice Lispector, esse magnífico e áspero movimento de linguagem
que como o planejamento num mármore clássico constitui sua forma e seu
conteúdo?
Que mistérios tem Clarice?4
Vilma Arêas
Desde A via-crúcis do corpo, que mereceu resenhas tão apressadas e
equivocadas na época, a ficção de Clarice Lispector dá uma “virada”. O tom
novo (de uma dor sem rebuços e também de uma alegria feroz) chocou os
apreciadores da “grande literatura”, comprometida com temas, técnicas e
estilos adequados.
Na realidade, A via-crúcis resolvia em termos concretos a tensão entre a
“desorganização profunda” e A cidade sitiada. E a contradição foi trabalhada
em termos de contestação desaforada das estruturas, inclusive da própria
literatura.
Agora, seu último livro cintila (afinal, é A hora da estrela) confirmando o
caminho apontado.
O prefaciador da novela, crítico Eduardo Portella, pergunta de saída se
nos é permitido falar de uma nova Clarice Lispector “exterior e explícita”.
Estaria o “coração selvagem” comprometido nordestinamente com o projeto
brasileiro? Na realidade, o enredo nos informa da destruição de uma jovem
nordestina nas engrenagens de uma cidade “toda feita contra ela”: sua
pobreza, sua tuberculose, sua tolice, seu amor perdido e, após o vaticínio da
felicidade, seu atropelamento por um dourado Mercedes. Eis o enredo que cabe
exatamente em um dos 13 títulos da novela: “história lacrimogênica de cordel”.
Entretanto, o livro também levanta uma discussão da maior importância
sobre literatura, a partir da postura da própria escritora diante do que escreve e
diante do tema que a ela se impôs persecutoriamente (“Preciso falar dessa
nordestina senão sufoco”). Este é um outro enredo que podemos seguir com o
4
In: Folha de S. Paulo, 29.11.1977.
mesmo sobressalto e que, realmente, assegura a Clarice um lugar ímpar na
moderna literatura engajada brasileira.
Vejamos por que: em primeiro lugar, pela recusa dos recursos já
conhecidos, das táticas esgotadas do “dizer bem” e do “escrever bonito” ou
“moderno”: “…como todo escritor, tenho a tentação de usar termos
suculentos: conheço adjetivos esplendorosos carnudos substantivos e verbos
tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação,
concordais? Mas não vou enfeitar a palavra…” – p. 19. Em vez disso, a aventura
de “escrever com o corpo” uma história “ao deus-dará”: “Com mãos de dedos
duros enlameados apalpar o invisível na própria lama” – a p. 24.
Em segundo lugar, pela relação que a autora estabelece com a realidade
que vai descrever; realidade que observa com nojo e amor e que, ao ser tocada,
vira inevitavelmente “outra”: “… se eu tocar no pão da moça esse pão se
tornará em ouro”, p. 19. Portanto, o que observamos é a não mistificação do
real, compreendido como relações sociais (leitores, povo, o escritor a inventar
histórias “em estado de emergência e de calamidade pública”, mas patrocinado
pela coca-cola, a função da literatura em nossa sociedade etc.): “Se o leitor
possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às
vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para
quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de
escape e da vida massacrante da média burguesia” – p. 38.
Ao contrário de uma moderna vertente da literatura brasileira, Clarice
não propõe soluções, escreve justamente para fazer perguntas, “porque deve
haver um réu”:
“Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a
reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza” – p. 24.
Portanto, para falar do oprimido Clarice não se fantasia dele, para com
isso mistificar a diferença (e por que não a luta?) de classes e a relação
autoritária de quem tem a palavra e discorre não a favor, mas no lugar de quem
a não tem.
A Clarice é impossível a ilusão de tal estratégia, pois ela destrói as
proteções do palco no mais puro distanciamento brechtiano. O nosso
deslumbramento diante do rufar dos tambores que antecedem instantes fatais,
diante do brilho do malabarista, da moça que amestrava pulgas (porque não
podia alimentar um cão), diante da loura oxigenada que prometia à classe
operária o paraíso do açougue de seu pai, diante da pitonisa enxudiosa recémsaída do Mangue e, sobretudo, diante do espelho mágico (barato) que punha
um nariz de palhaço na cara faminta da datilógrafa, enquanto esta sonhava
lamber os potes de cremes de beleza dos anúncios e ouvia a Rádio Relógio (que
“diz que dá a hora certa, cultura e anúncio”), o nosso deslumbramento não
ofusca o sangue derramado. Porque o luxo da história em tecnicolor (não é só
você, Clarice, nós todos precisamos) com “começo, meio e gran finale seguido
de silêncio e de chuva caindo” significa a resistência de qualquer fato real a ser
descrito, a ser transformado em “arte”, embora também não haja outro
caminho (cf. “Como é chato lidar com fatos, o cotidiano me aniquila” e “muito
antes de sentir ‘arte’ senti a beleza profunda da luta”).
Do mesmo modo que Clarice (ela mesma) resiste e tem de ser travestida
no narrador Rodrigo
S . M.
(e isso nos é dito antes do pano subir). Este
comentário não é isento nem “puro”. Acho mesmo que estou escrevendo sobre
o livro para me livrar dele, da dor de dentes fulgurante, “coisa de dentina
exposta”, que o autor quis desdobrada em chão de sua ribalta.
Como a cara da nordestina em Rodrigo
S . M.
(na verdade Clarice
Lispector) ele deixou em mim um oco sem perdão.
Clarice Lispector, A hora da estrela.
Livraria José Olympio ed., 1977. 104 pg. – Cr$ 40,00.
Vilma Arêas é livre-docente em literatura portuguesa e professora de
pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio e da
Universidade Federal Fluminense.
Clarice Lispector mais um livro. E a mesma solidão5
O questionário foi antes pelo correio. Depois, ela nos recebeu, dizendo:
– Tinha resolvido não dar mais entrevistas para ninguém, mas como gostei
muito de sua carta resolvi abrir uma exceção. Pediu para guardar o gravador e
respondeu as perguntas praticamente ditando. Estava sozinha na imensa sala
de seu apartamento no Leme. Clarice Lispector está com seu novo livro pronto.
A hora da estrela, uma novela que será lançada breve pela José Olympio. Que
momento é esse a que você chama de A hora da estrela?
– Nada posso informar sobre o conteúdo de A hora da estrela.
Posso lhe dizer que é uma novela de cerca de cem páginas e que escrevi durante
dois anos e meio. Porque eu só escrevia uma frase quando esta já toda pronta
me vinha à cabeça. Este livro foi de grande inspiração e sofrimento para mim.
– Seus escritos estão diminuindo em extensão. Já vai longe o
tempo de textos longos como A maçã no escuro e O lustre. Você teria alguma
coisa a dizer a respeito disso?
– Aprendi que a coragem é falar menos. Embora seja muito difícil
falar pouco.
– Nos trabalhos mais recentemente publicados, como A via-crúcis do
corpo e Visão do esplendor, parece que o cotidiano está cada vez mais presente
na sua literatura. Isso significa alguma opção, alguma escolha?
– Meus temas se impõem em mim. Eu nunca os escolhi. Se fosse para
escolher, eu jamais escolheria coisas tão difíceis de fazer.
– Depois de tudo o que você produziu, ganhou e perdeu com a literatura,
eu queria saber: por que você ainda escreve? Vale a pena escrever?
5
In: O Globo, 25.8.1977.
– A sua pergunta – por que ainda escreve? – me insulta, apesar de você
não querer me insultar. O que quer dizer ela? Que chega de escrever bobagens?
Ou significa que você acha que eu já tenha dado tudo o que tinha pura dar?
Por que escrevo? Pergunto a você: por que você ainda bebe água?
Responda. Estou esperando. Mas me dê uma resposta que seja inspirativa. Já
ouvi me dizerem, para me agradar: você não precisa mais escrever, você já faz
parte da literatura brasileira. Mas que inferno, e eu lá desejo entrar em alguma
literatura do mundo? O futuro já é passado, não me interessa mais. Ou você
pensava que eu escrevia para criar alguma notoriedade? Eu lhe juro que nunca
bajulei críticos a fim deter deles uma interpretação elogiosa. Minha relação
com os críticos é essa: eu não agradeço elogios, para deixá-los livres para falar
mal de meus outros livros. E nunca – mas nunca – me defendi por carta ou
telefone quando me atacam. A grande maioria dos que me interpretam eu não
conheço nem de nome. Todos estão livres de mim. Esse seu “ainda escreve”:
pergunto se com os meus escritos duramente humildes estou incomodando a
alguém? A quem? Se você sabe de pessoas que eu esteja atrapalhando o
caminho “literário”, me diga os nomes e eu juro que guardarei segredo.
Recuso-me a ser importante. O “sucesso” jamais me subiu à cabeça. Continuo
sendo uma escrivã paciente. O grande Alceu Amoroso Lima, que me deu a
honra de escrever sobre mim desde meu primeiro livro, vaticinou, meu Deus,
há muitos anos: que eu ia estar numa trágica solidão nas letras brasileiras. Até
um tempo atrás eu não o entendi. Mas agora sinto isso na carne. Olhe, eu
escrevo por nenhum motivo especial, e se existe algum motivo surgiu quando
eu tinha um pouco menos de sete anos de idade e comecei a escrever.
– A literatura nunca lhe deu muito dinheiro. Para sobreviver, você é
obrigada a fazer traduções. Você gosta de traduzir?
– Um senhor de uma editora me procurou para eu traduzir um livro do
francês para o português. E disse que me pagaria Cr$ 20 por lauda. Quando o
dono de outra editora soube, lhe disse: eu só pago dezoito por lauda, não pague
vinte senão você vai inflacionar o mercado.
Estou isolada. Realmente, não me querem
– Muita gente acha que você faz uma literatura “mística” ou mesmo
“mágica”.
– Interiormente eu sou mágica, eu acredito em tudo, até em macumba.
A gente não sabe nem explicar o nascimento de uma criança. Eu tenho dois
filhos e não entendo como. Eu entendo por que, mas não entendo como.
– Seria justamente essa “magia” interior o que deixa você tão isolada na
literatura brasileira?
– Eu não sei te explicar, mas eu sinto que estou isolada. Eu não pertenço
a nenhum grupo, nenhum grupo me convidou até hoje para fazer parte dele.
Realmente não me querem. Mas eu não faço questão. Que assim seja. Eu não
me alimento de literatura. Meus amigos, eu os escolho em qualquer profissão,
ou nenhuma profissão, e isso me garante satisfeita a necessidade gregária que a
gente tem.
– Aproveitando a distância deixada pelos anos, o que você diria sobre
seus livros passados? Por exemplo, Água viva e A paixão segundo G.H..
– Eu trabalhei três anos em Água viva. Antes ele tinha 280 páginas. E
nesses três anos eu fui podando, podando, para que nenhuma palavra fosse
vazia, para que toda palavra tivesse alguma coisa a dizer. Por isso ele é denso.
Foi muito difícil de escrever. Fui reescrevendo, reescrevendo. Então, um dia, o
Alberto Dines me perguntou pelo livro. Eu disse: ainda não está pronto. Ele
respondeu: quem sabe se já não está? Pediu para ler, leu e depois me
confirmou: o livro é esse, está pronto. Então vi que estava mesmo e resolvi
publicar. Já a Paixão é uma coisa para ser subliminarmente entendida. Um
professor de literatura do Pedro
II
veio a minha casa e disse: li quatro vezes a
Paixão e não sei do que se trata, eu não entendo o que você quis dizer. No dia
seguinte, uma universitária de 16 anos me visitou e disse: meu livro de
cabeceira é a Paixão. A menina pegou tudo, o professor de Literatura não pegou
nada. Afinal, sou um ser humano. Não sou uma intelectual; sou mais saudável
do que muita gente pensa. Sou uma intuitiva, uma sentidora. E também, uma
amadora. Só escrevo quando impulsionada pela vontade.
À via-crúcis de Clarice6
Emanuel de Moraes
Negando-se que conto seja aquilo a que seu autor chame de conto
(observação irônica, e muitas vezes mal-entendida, de Mário de Andrade),
negar-se-á essa classificação tipológica à série de histórias reunidas por Clarice
Lispector em A via-crúcis do corpo (1). Não se haveria sequer mencionado o
gênero, não fosse o fato de a própria autora as haver chamado, em mais de uma
ocasião, de contos. Faltando aos escritos – salvo uma exceção abaixo destacada
– a circularidade formal caracterizadora do conto, mais adequado seria dizer-se
histórias inomadas, pela apropriação do vocabulário jurídico, usado nas
oportunidades em que os contratos não podem ser precisados através de um
determinado nome genérico. Assim são as pequenas narrativas de Clarice
Lispector, impressas em letras grandes para fazer o volume de um livro;
narrativas que ela procura definir como “histórias que… realmente
aconteceram” (p. 9), não disfarçando, no contexto, a que dá ares de realidade,
tratar-se de particularidades secretas da vida íntima de pessoas, definição que
se extrai, dos bons dicionários, para anedota.
Narrativas de fundo anedótico, portanto. Através dessa via – numa só e
suficiente referência – Gogol realizou contos, verdadeiros contos, e não se
precisaria dizer: de boa qualidade. Isto, porém, não acontece em A via-crúcis do
corpo. Nele, o anedótico é supliciado, conforme o título sugere. É dos livros que
não deveriam ter sido escritos. Não se tratasse de uma autora já consagrada
pelas suas realizações anteriores, ele passaria despercebido no entulho das más
edições. No entanto, é dito, foi feito, ao menos em parte, de encomenda…
Como se está distante de “Mistério em São Cristóvão”, para citar-se apenas
uma das obras-primas da mesma autora. E, estranhamente, ela demonstra ter
6
In: Jornal do Brasil, 17.8.1974.
consciência da má qualidade, quando se antecipa no julgamento desses seus
escritos: “Uma pessoa leu meus contos (sic) e disse que aquilo não era
literatura, era lixo. Concordo. Mas há hora para tudo. Há […]
Da arte de mexer no lixo7
Hélio Pólvora
De Clarice Lispector sairam três livros de ficção em curto espaço de
tempo: Água viva, Onde estivestes de noite e A via-crúcis do corpo. O primeiro,
um monólogo algo abstrato, um texto; os outros, coletâneas de contos. A
Clarice dos textos longos – novela ou romance – é diferente da Clarice das
histórias curtas: nestas, pratica uma literatura mais aberta, ligada a estruturas
narrativas conhecidas, admitindo realidades outras que não o mistério fechado
da personalidade.
No conto, Clarice dá vida às palavras, introduzindo no texto um sistema
sanguíneo. E é justamente no conto que a escritora se renova em relação à sua
obra importante. Apesar de dar mostras, pelo visto, de intensa atividade
criadora, e de, com isso, prejudicar a qualidade dos seus escritos, ela tende, nos
seus dois últimos livros, a ser mais direta, mais explícita, mais agressiva.
Vejamos o caso de A via-crúcis do corpo.8
Em prefácio, Clarice explica que três das peças do volume lhe foram
sugeridas por seu editor. Fala, até, em encomenda. E se justifica, pois os temas
lhe parecem contundentes. No Brasil, a vaidade do escritor não permite, em
geral, interferências do editor no seu texto.
Nos Estados Unidos – e por que não em outros países de sólida tradição
literária? – é comum o editor sugerir cortes, revisões, mudanças, funcionando
como uma espécie de conselheiro. Aqui, essa forma de colaboração parece
insólita, sobretudo se as sugestões fogem, como no caso de Clarice Lispector,
ao universo muito pessoal, muito próprio, de sua obra de ficção.
7
In: Jornal do Brasil, 13.8.1974. (nota de pesquisa)
Clarice Lispector – A via-crúcis do corpo, ficção. Editora Artenova, Rio de Janeiro, 1974, 100 páginas,
Cr$ 18,00. (nota original)
8
Teme Clarice haver feito literatura pornográfica, ou coisa que o valha.
“Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo.
Concordo.” E faz questão de frisar que é “mulher séria”. A explicação é
ingênua. De uma ingenuidade nascida da pureza. Eu gostaria de dizer a Clarice
– se é que outros não se anteciparam – que suas ficções nada têm de
pornográfico se comparadas às ousadias da permissividade absorvida também
pela literatura. Clarice sempre foi contundente. Este, aliás, é um dos seus
méritos: sobrevoar superfícies aparentemente plácidas e, de súbito, bicar;
trazer de um rápido mergulho verdades estonteantes, que ferem com a
instantaneidade cruel do relâmpago. Que importa venha também o lixo na
frase reveladora? O lixo não pertence só a quem escreve. É consequência de
nossa geral precariedade. Posso aqui parodiar Hemingway, dizendo que o
escritor, o escritor de verdade, tem de conviver com o lixo.
O prefácio de Clarice, com suas tentativas canhestras de justificação, é
dispensável, como dispensável será o debate, todo ele dubitativo, na peça “Dia
após dia”, sobre se estes novos contos comprometem a imagem literária que ela
montou com muita dignidade. O mau gosto ressalta de contos em que a
alegoria não se ajusta à intenção, como por exemplo, Via-crúcis. E em contos
ficcionalmente irrealizados, que não passam de esboços ou de crônicas. Outras
vezes, Clarice, descarnada demais, esquece o halo que imprime ao seu texto
uma atmosfera a bem dizer purificadora; fica, então, o relato nu e cru,
meramente expositivo. Ver, a propósito, “Mas vai chover” – os amores de uma
senhora de 60 anos por um rapaz de 19. Clarice Lispector tem obra mais do que
satisfatória e consciência aguda para não querer imitar o estilo de Dalton
Trevisan.
Afinal, não é o tema que mais importa, senão o seu tratamento. Vale
repetir o truísmo, pois a escritora, que é “mulher séria”, sai do seu mundo
habitual – o mundo de personagens que se interrogam e se auscultam, em
tormentoso jogo de inteligência – para descrever cenas do baixo-mundo. Ver o
conto “Praça Mauá”. Figuras e situações da maior verossimilhança. Neste caso,
Clarice tem razão, no prefácio, quando diz que “artistas sabem de coisas”.
A via-crúcis do corpo vale por três ou quatro textos de alta categoria,
entre os quais “Miss Algrave” e “O homem que apareceu”. O primeiro ilustra
bem o universo ficcional da autora. Descreve alguém que está na fímbria de
uma revelação. Uma inglesa virgem, ruiva, puritana, datilógrafa, que escreve
cartas ao Times, contra os maus costumes – e, de repente, descobre o amor. A
frase de Clarice – aquela frase que penetra como verruma – clareia tudo: “Ela
parecia um uivo”. Já antes, observara, a respeito dessa personagem: “O manto
que cobria o seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura
coagulada”. A escritora não diz, mas sentimos então que a vida de Miss Algrave
fora até ali um longo grito, só que abafado.
Retornam neste livro alguns temas prediletos de Clarice Lispector:
solidão, velhice, morte, incomunicabilidade. Para ressaltá-los melhor, ela
despe os paramentos literários. Está de uma simplicidade quase infantil – ou
melhor, de quem escreve para crianças. Um dos contos começa assim: “Xavier
era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse homem. Adorava
tangos”. O fecho de “O homem que apareceu” – relato supostamente verídico
– deixa a ressonância de uma quase insuportável pungência: “Hoje é domingo,
12 de maio, Dia das mães. Como é que posso ser mãe para este homem?
pergunto-me e não há resposta. Não há resposta para nada. Fui-me deitar. Eu
tinha morrido”.
Com seus acertos e fraquezas, A via-crúcis do corpo significa, na obra de
Clarice, uma abertura – uma renovação que Onde estivestes de noite já
prenunciava. Só tenho receio de que ela se desgaste rapidamente com a
repetição de pequenos livros. Quanto ao mais, quanto à sua nova maneira de
aceitar desafios, não tem por que se penitenciar. Sua obra é um atestado
liberatório, justifica buscas.
Clarice9
Há exatamente quatro anos, véspera da Copa do México, Luís Lobo,
então redator-chefe da extinta revista Setenta (editora Abril), me pediu que
fizesse um perfil de Clarice Lispector. A missão foi cumprida, o texto elogiado
mas nunca publicado. Explicação do Lobo: “O pessoal achou fossento demais,
para o espírito da revista”. Não me ocorreu perguntar na bucha se o pessoal
sabia qual a diferença entre Clarice Lispector e Chico Anísio. O perfil, parece,
perdeu-se. Pena porque me deu algum trabalho. Clarice detesta dar entrevistas,
sobretudo se para falar de literatura; pior ainda se de seus livros. Levei quase
meia hora para relaxá-la a meu gosto e então extrair dela o que de básico me
interessava para o perfil. O abre-te-sésamo veio por acaso. Clarice também
torce pelo Botafogo e deixou escapar que estava excitadíssima com a Copa do
Mundo. De repente, sem que ela percebesse (ou percebesse até demais) a
conversa partiu de Jairzinho para o meio da zona do agrião.
E não mais voltou para as laterais. (Sérgio Augusto)
Ziraldo – Clarice, conta a história de Lispector no seu sobrenome.
CLARICE LISPECTOR – Lispector é meu nome de nascimento. Na Rússia
deve ter se transformado nesse nome.
Ziraldo – Você é de descendência russa?
CLARICE
– Sou. Vim com dois meses para o Brasil. Nasci na Ucrânia.
Numa aldeia que não existe no mapa. Tchetchelnik.
Ziraldo – Você falava russo em casa?
CLARICE
– Nada. A minha primeira língua foi o português.
Sérgio Augusto – Aquele filme que você foi ver, Cavalos de fogo, é
passado na Ucrânia.
9
In: O Pasquim, 9.6.1974.
CLARICE
– Na terra onde eu nasci. Mas eu sou naturalizada.
Sérgio – Você veio para o Brasil com dois meses.
Ivan Lessa – Pra Recife, né?
CLARICE
– Fiquei em Recife até os 12 anos.
Ivan – Você tem uma musicalidade nordestina.
CLARICE
– Muitas pessoas pensam que eu falo desta maneira por causa de
um sotaque russo. Mas eu tenho a língua presa. Há a possibilidade de cortar,
mas meu médico falou que dói muito. Tem uma palavra que eu não posso falar,
senão todo mundo cai pra trás: aurora.
Sérgio – Com 12 anos você veio para o Rio de Janeiro?
CLARICE
(irriquieta) – Olha gente, eu vou lá dentro mudar de roupa que
eu estou morrendo de calor. Só se eu ligar o ar condicionado…
CLARICE
(de volta) – Não gosto de ser fotografada nem de dar entrevista.
Ziraldo – Entrevista mesmo é um negócio muito chato. Mas você está
bonita, como sempre foi, e devia ser fotografada todo dia.
CLARICE
– Obrigada. Mas não sou bonita não. Posso ser interessante.
Ivan – Fotografia leva a alma da gente.
CLARICE
– Isso mesmo, uma amiga minha foi tirar retrato de uma baiana,
e ela não deixou: “Minha alma você não tira”.
Ivan – Chinês não gosta que tirem fotografia dele.
CLARICE
– Eu vou ligar o ar condicionado. Estou morrendo de calor
(retorna). Eu não gosto de entrevista… (pausa). Parece que me mitificaram. Eu
sou uma mulher simples. Não tenha nada de sofisticação. As entrevistas que eu
dou são para explicar que não sou um mito. Sou uma pessoa como outra
qualquer.
Ivan – Mas entrevista d’O Pasquim não existe. A gente faz um batepapo.
Ziraldo – Noel Nutels também veio da Rússia e foi para Recife. Vocês se
conheceram lá?
CLARICE
– Eu o vi quando ele era um rapaz e eu era uma criança.
Ziraldo – Chegou a haver uma relação maior, uma amizade?
CLARICE
– Só a possibilidade.
(Ivan canta: “I’ll be seeing you in all/ the old familiar pleasures/in the
small café/ the crowd…”)
Ziraldo – Me parece que essa possibilidade é a principal tônica de
sua literatura. CLARICE (enigmaticamente) – Talvez, talvez.
Ziraldo – Tem um conto da Clarice que é um cara no Jardim Zoológico
vendo um búfalo.
CLARICE
– É “Búfalo”.
Jaguar – Foi publicado na Senhor.
Ziraldo – Ela narrava não o que estava acontecendo com o búfalo ou
com o personagem, mas o que estava havendo no espaço entre os dois. Eu me
lembro que você estava conversando sobre isso com o Moravia, no Pen Club.
Você lembra, Clarice, que ele ficou te beliscando debaixo da mesa?
CLARICE
– Horrível! Alberto Moravia.
Ziraldo – Eu sou testemunha ocular de coisas maravilhosas.
CLARICE
– E batendo com a faca no meu relógio o tempo todo.
Nélida Piñon – Ele estava querendo matar o tempo.
Ziraldo – Eu não quero falar epistemologicamente. Mas eu acho que
você escreve muito mais sobre as possibilidades do que sobre o fato em si.
CLARICE
– Eu não sei julgar o que eu escrevo. Depois de muito tempo,
nem reconheço o que eu escrevo. Parece que é de outra pessoa. Nunca releio
livro meu.
Ziraldo – Nem quando você está trabalhando nele?
CLARICE
– Quando trabalho, estou trabalhando. Mas depois de publicado
não releio.
Sérgio – E prova? Você tem um sofrimento por ver as vírgulas fora de
lugar?
CLARICE
– Sofro. Mas morro de preguiça de fazer prova.
Ziraldo – Posso te perguntar qual foi o teu primeiro contato com as
letras?
CLARICE
– Antes dos sete anos eu fabulava. Eu ensinei a uma amiga um
modo de contar histórias. Eu contava uma história, e quando ficava impossível
de continuar, ela começava. Ela então continuava, e quando chegava em um
ponto impossível, por exemplo, todos os personagens mortos, eu pegava. E
dizia: “Não estavam bem mortos”. E continuava. Com sete anos eu aprendi a
ler.
Ziraldo – Você teria aprendido a ler tão cedo por uma necessidade de
escrever essas histórias?
CLARICE
– Quando eu comecei a ler, eu lia muito livro de histórias. Eu
pensava que livro era uma coisa que nasce. Eu não sabia que era coisa que se
escrevia. Quando eu soube que livro tinha autor, eu disse: “Também quero ser
autor”. Mandava contos pruma página infantil de um jornal de Recife. Nunca
foram publicados. E eu sei por quê. As outras histórias publicadas contavam
fatos. Eu contava impressões.
Ziraldo – Você só descobriu isso mais tarde, né?
CLARICE
– Percebi na época. Com 9 anos escrevi uma peça de teatro, uma
história de amor. (Sorri). Eu escondia atrás de uma estante. Não sei como, mas
os três atos da peça cabiam em duas folhas de papel.
Ziraldo – Você tem algum original dessas coisas antigas com você?
CLARICE
– Não.
Sérgio – Você perdeu ou destruiu?
CLARICE
– Perdi, não sei o que foi feito deles.
Ziraldo – E quando você publicou o seu primeiro trabalho?
CLARICE
– Deixa eu pensar. (Pensa por um longo tempo, respira fundo)
Com 15 anos. Eu estava com uma influência tremenda do Hermann Hesse.
Escrevi um conto que não acabava nunca, e que me torturava horrivelmente. Eu
o destruí. Então eu escrevi outro conto que foi publicado.
Ziraldo – Aonde?
CLARICE
– Não me lembro.
Olga Savary – Clarice, você prefere escrever conto a romance? Ou é
indiferente,
sendo apenas importante o ato de criar?
CLARICE
– Pra mim o que interessa é trabalhar.
Sérgio – A concisão do conto não é de certa forma um desafio?
CLARICE
– É um desafio. Mas o romance é outro desafio.
Nélida – E um desafio com 300 páginas.
CLARICE
– Eu escrevi um livro, que, datilografado, dava 500 páginas. Eu
copiei esse livro onze vezes.
Ziraldo – Esse está editado?
CLARICE
– Está. A maçã no escuro.
Ziraldo – Por que você copiou 11 vezes?
CLARICE
– Cada vez que eu copiava ia me entendendo mais. Eu não me
entendo logo no que eu quero dizer.
Ivan – Você, quando copiava, acrescentava ou tirava?
CLARICE
– As duas coisas.
Sérgio – Truman Capote pegava laudas amarelas e fazia o primeiro
tratamento à lápis. Depois ele bate à máquina, no colo, como Max Nunes. E
depois corrige. Finalmente, passa a limpo numa lauda em branco. Você é
metódica no seu trabalho?
CLARICE
– Eu trabalho do modo mais esquisito do mundo. Eu trabalho
sentada numa poltrona com a máquina no colo. Por causa de meus filhos.
Quando eles eram pequenos, eu não queria que eles tivessem uma mãe fechada
num quarto a que não pudessem ter acesso. Então eu sentava no sofá, com a
máquina no colo, e escrevia. Foi assim que meu filho pediu pra eu escrever uma
história pra ele. Essa história eu escrevi em inglês. Aos poucos ele ia levando
pra cozinheira ler, voltava, sentava, esperava.
Ziraldo – Por que você escreveu a história em inglês?
CLARICE
– Naquela ocasião ele entendia melhor inglês. Nós estávamos
morando em Washington.
Ivan – Era de lá que você mandava os contos para a Senhor, né?
CLARICE
– Era.
Ziraldo – Você tem quantos filhos?
CLARICE
– Dois. Um tem 21, outro tem 22.
Ziraldo – Em que medida a mistificação de que você falou te incomoda?
Em que você foi mistificada?
CLARICE
– Eu sou atingida na minha veracidade. E depois, é muito
incômodo. Eu fui receber uns livros que vieram da Argentina, traduções de
livros meus, que chegaram no correio. Quando o senhor viu o meu nome e disse
que eu era escritora, fiquei danada da vida.
Ziraldo – Mas você era escritora.
CLARICE
– Mas eu não quero ser popular.
Ziraldo – Isso não é uma incoerência?
CLARICE
– Não. Eu tenho a impressão que se gostam de mim é porque
estou sendo fácil.
Ziraldo – Você é complicada pra danar, Clarice.
Sérgio – O sucesso popular não te é gratificante psicologicamente?
CLARICE –
Eu acho que não, porque a gente estaria fazendo concessões.
Ziraldo – Mas em não se comunicar, em fugir da comunicação, você se
realiza mais quando escreve?
CLARICE
– Quando eu escrevo não penso no leitor nem em mim. Só
depois que o livro é publicado que eu tomo conhecimento dos leitores.
Ivan – Claro. Escrever pensando em leitor é bobagem. Leitor não existe.
Ziraldo – Então te saiu tudo ao contrário. Você é uma escritora de
sucesso.
Sérgio – Mas de certa forma deve haver algumas pessoas cujo elogio
você preza. Há coisas que te gratificam.
CLARICE
– Hoje eu recebi um bilhete do Drummond.
Ziraldo – É bom receber uns bilhetinhos assim, né?
CLARICE
– Tem elogios que eu prezo muito.
Ziraldo – Você é uma escritora classista?
CLARICE
– Sei lá o que sou. Mas há elogios que eu gosto. Uma vez uma
menina que não sabia ler pediu pra avó dela ler O mistério do coelho pensante.
Quando a avó acabou de ler pra menina, perguntou: “Você gostou, minha
filha?”. Ela respondeu: “Deus me livre que eu não tivesse gostado”. Outro
elogio: uma moça veio aqui, sem avisar que vinha. Me perguntou se eu gostava
de um fuminho? Eu disse: “Não. Por quê?”. “Você quando escreve parece…”
Então ela disse: “Quer?”. “Não, não quero.” Depois eu disse: “Por que você
gosta do que eu escrevo?”. “Quando a gente lê parece que é a gente que está
escrevendo.”
Ziraldo – Quando eu leio você não tenho a impressão de ler eu estou
escrevendo aquilo, mas sinto que é exatamente aquilo que eu gostaria de ter
escrito. Principalmente os contos.
Nélida – Eu sou muito fã de A maçã no escuro.
Ziraldo – Quanto tempo você gasta em cada livro?
CLARICE
– Depende. O meu primeiro livro foi de 9 meses. Como uma
gravidez.
Ziraldo – Você é não gosta de ser fotografada. Mas você gosta de ser
retratada?
CLARICE
– Não gosto muito. Só quando eu posso falar. Não gosto de ficar
imóvel.
Ziraldo – Vejo que há pelo menos 10 retratos seus, de muitos pintores
famosos. Qual é o mais importante, o De Chirico?
CLARICE
– O De Chirico está ali.
Ziraldo – Você posou pra Di Cavalcanti quantas vezes?
CLARICE
– Três poses. Não ficou muito bom. Ele me disse que ainda
poderia
continuar trabalhando, mas que poderia estragar tudo. Que é preciso
saber parar.
Ziraldo – Isso você aplica em seu trabalho também?
CLARICE
– Aplico na vida toda.
Ziraldo – Por que o retrato que ele fez não está aqui?
CLARICE
– Ele começou a me fazer com duas asas verdes, lindas. Me
parece que a mulher dele teve uma crise de cólera e rasgou o quadro.
Ziraldo – E De Chirico, onde você o conheceu?
CLARICE
– Em Roma.
(Ivan canta: “Arriverderci Roma! So long, farewell, adios”.)
Ziraldo – Você pode não querer a mitificação, mas eu acho que você tem
uma aura de mistério. O que é bom. Clarice Lispector a gente não sabe de onde
vem nem de onde vai. Você tem uma aparência um leito, misterioso. Isso tudo
ajuda a mi(s)tificação.
(Ivan canta: “Three coins in the fountain…”.)
Ziraldo – Você escreveu um livro para o seu filho em Washington, posou
para De Chirico em Roma. Então vamos contar a sua vida.
CLARICE
– Eu era casada com um diplomata brasileiro, que hoje é
embaixador.
Ziraldo – No Uruguai.
CLARICE
– Tive um filho em Berna, na Suíça, e outro em Washington.
Ziraldo – Quanto anos você passou viajando?
CLARICE
– Uns 16 anos.
Ziraldo – E depois que você voltou pro Brasil nunca mais saiu?
CLARICE
– Eu fui à Europa o ano passado. Fui ao Texas pra fazer uma
conferência.
Sérgio – Sobre?
CLARICE
– Vanguarda literária brasileira.
Ziraldo – Mas você gosta de conferências?
CLARICE
– Olha, eu, em geral, fico tão aflita que leio muito depressa,
parece que ninguém entende (risos).
(Ivan canta: “The eyes of Texas are upon you/ Deep in the heart of
Texas/ The moon shines bright/ The stars shine light/ Deep in the heart of
Texas”)
CLARICE
– Espere um pouquinho que eu vou buscar mais coca-cola para
nós.
(E agora, vocês terão, na voz de Ivan Lessa, os mais belos momentos do
cancioneiro brasileiro (canta): “Somos dois.…”. Clarice volta)
Sérgio – Você, muito cedo, descobriu Hermann Hesse. Qual outro autor
você descobriu?
CLARICE
– Eu não tive gula nenhuma. Eu era sócia de uma biblioteca de
aluguel. E eu escolhia pelos nomes.
Sérgio – Como você chegou até Hermann Hesse?
CLARICE
– O lobo das estepes. Com o meu primeiro ordenado eu entrei
numa livraria, orgulhosa, e olhei alguns livros. Abri um, vi que era diferente. Eu
não sabia quem era Katherine Mansfield. Aí comprei. Custou 10 cruzeiros o
livro.
Ivan – E o seu primeiro dinheiro veio de onde?
CLARICE
– Do trabalho em jornal.
Ivan – Em que jornal você trabalhou?
CLARICE
– Bom, acabo de trabalhar sete anos no Jornal do Brasil, de onde
fui expulsa.
Jaguar – Por quê?
CLARICE
– E eu sei?
Ivan – Conta pra gente como é que foi.
CLARICE
– Eu não sei. No dia 2 de janeiro eu recebi um envelope, e dentro
tinha as minhas crônicas. E uma carta seca, sem nem agradecer os serviços
prestados durante sete anos, dizendo que daí em diante eu estava dispensada
de trabalhar. Então eu movi uma ação. Mas parece que eu vou perder.
Ziraldo – Porque você era colaboradora.
CLARICE
– Eu era colaboradora mas eu ganhava por mês, e recebia
13° salário. Ivan – Mas o colaborador fixo [é] por lei obrigado a isso.
CLARICE
– O juiz foi muito simpático disse que era muito meu admirador,
mas deu a sentença contra…
Ivan – Vai ver que ele queria uma coluna no Jornal do Brasil.
CLARICE
– Meu advogado é o Dr. Viveiros de Castro, o maior advogado
trabalhista do Brasil.
(Ligeira confusão porque Ulysses rouba cigarro da mão do Ziraldo
distraído.)
Sérgio – Fica quieto aí que eu te dou guimba.
Ziraldo – Mas quando você era mocinha também trabalhava em
jornal, né? CLARICE – Eu era repórter. Eu entrevistava.
Ziraldo – Quer dizer que você começou fazendo entrevistas,
aborrecendo os outros como nós estamos te aborrecendo agora (riso). Em que
jornal?
CLARICE
– Eu trabalhei na Agência Nacional.
Olga – E na Manchete.
Sérgio – Na Manchete parece que você também não saiu de bem.
CLARICE
– Eu estava numa fase muito ruim.
Olga – Eu queria saber o que você pensa da realidade na literatura. Ou é
mais importante a realidade interior?
CLARICE
(pausa bem longa) – Eu não sei responder isso não (risos).
Olga – Qual o seu livro que você considera mais importante?
CLARICE
– Não sei… Sempre o que estou fazendo.
Olga – Clarice, pra mim você é uma escritora tão maravilhosa que chega
a ser intemporal. Mas você se considera uma escritora brasileira?
CLARICE
– Evidentemente, sou uma brasileira. E não admito que se pense
o contrário.
Ivan – O que é o escritor “brasileiro”?
CLARICE
– É aquele que vive a realidade brasileira.
Ivan – E a realidade brasileira é difícil para o escritor.
Nélida – Pra mim o que torna o escritor brasileiro é a língua. E quem
manipula a língua como Clarice Lispector, levando-a a um paroxismo
extraordinário, é uma escritora brasileira. Naturalidade é língua.
Ivan – Independente de condições adversas, é muito difícil definir o que
seja realidade. Mesmo em Portugal, de clima propício…
Sérgio – Essa frase é histórica. E a primeira vez em que Portugal é citado
como sendo um lugar de bom clima para o escritor.
CLARICE
– Em qualquer lugar escrever é difícil.
Ziraldo – Nélida disse que a nacionalidade de um romance está na
língua.
Ivan – E eu discordo profundamente.
Nélida – Não vamos deixar as coisas pendentes.
Ivan – Deixa cair.
Nélida – Eu disse isso respondendo àquela pergunta sobre Clarice. Eu
respondi dizendo que, para mim, brasileiro é aquele escritor que manipula a
língua. A língua é a expressão mais profunda do sentimento de nacionalidade.
Sérgio – Atualmente o maior escritor de língua inglesa é um
russo: Nabokov. Nélida – Nabokov é extraordinário.
Sérgio – Você o considera o maior escritor russo ou o maior escritor
inglês?
Nélida – Ele é um grande escritor na língua em que escreve, o inglês.
Ivan – Os grandes escritores, hoje em dia, são bi senão trilíngues. Você
pega
Beckett, Borges, Nabokov.
Nélida – Borges não cria em inglês.
Lessa – Cria em espanhol.
Ivan – Mas é absolutamente europeu.
Sérgio – Isso virou grêmio literário agora?
Ziraldo – Aquele conto da festa de aniversário, por exemplo. Clarice ali é
brasileira porque os personagens são bem brasileiros. Fantástico na Clarice não
é só o fato dela manipular a língua, mas é muito mais a sua manipulação da
ideia.
Ivan – Clarice joga as palavras pra cima e caem no lugar que ela quer.
Aquele conto da portuguesinha é uma coisa impressionante. O problema não é
de língua, mas sim de linguagem.
Sérgio – Clarice, você já leu algum livro seu traduzido? Apple in
the Dark… CLARICE – Nunca li.
Sérgio – Porque assusta?
CLARICE
– Eu detesto me reler. Coisa feita já tá morta (sorri). Só leio se
for uma tradução para o tcheco. Não entendo uma palavra.
Ivan – Isso é que é ler nas entrelinhas.
Olga – Em quantas línguas você foi traduzida?
CLARICE
– Tcheco, alemão, inglês, espanhol, francês, italiano… na Itália
vão traduzir agora.
Ziraldo (folheando um livro que apanhara da estante, uma tradução da
Clarice para o tcheco) – Blizko Divokeho Srdce Zivota. O que quer dizer isso?
Sérgio – Ah, Ziraldo! Poxa, tá na cara!
CLARICE
– Perto do Coração Selvagem.
Ivan – Pois é, Ziraldo, uma tradução literal. Zivota – selvagem.
Ziraldo – Mas essa palavra aqui “SRDCE” de cinco letras com uma só
vogal?
Sérgio – Isso é a sigla da editora.
Olga – Clarice, fala-se muito em massificação, cultura de massa, por aí.
Num país como o nosso, onde as pessoas ainda leem tão pouco, onde uma
tiragem de 10.000 exemplares (que é ridícula comparada a de outros países) é
considerada boa, você acha que a literatura é necessária, para influir como fator
de civilização?
CLARICE
(pausa) – Sei não.
Ziraldo – Pergunta técnica ela não responde.
Ivan – A literatura é necessária?
CLARICE
– Olha, outro dia me pediram que eu escrevesse uma crônica
para o Mobral. Tinha que ser sobre uma cidade. Eu escrevi sobre Recife. “Recife
dos meus Amores”. Li para a minha cozinheira e ela entendeu perfeitamente.
Ziraldo – E você gostou disso?
CLARICE
– Gostei.
Ziraldo – Então quando você escreve com o propósito de ser entendida,
você gosta que as pessoas te entendam. Mas quando você escreve um
romance…
CLARICE
– … eu pouco me importo.
Ivan – Isso está certo. Quando você escreve para o Mobral, você tem que
levar em conta o leitor.
Nélida – Clarice, eu acho interessante você definir essa posição. Porque
você não é uma pessoa propositadamente elitista. Eu acho interessante pros
seus leitores uma revelação de você, que você está é desligada da repercussão
do seu texto nos leitores. Você é uma pessoa discreta que quer ter uma vida
reservada. Você não é uma pessoa alijada dos problemas humanos, fechada
numa torre de marfim. Isso você deve explicar.
Sérgio – Inclusive a literatura de Clarice é muito feita em cima de
observações de pessoas.
Ziraldo – Mas há uma incoerência aí…
Ivan – Graças a Deus há incoerências em muitos lugares.
CLARICE
– Um dia desses eu anotei uma frase assim: “Deus é tão ilógico
que eu acredito nele.”
Sérgio – Ela deu três exemplos diferentes de pessoas que gostaram do
que ela escreve, o que lhe deu satisfação: Drummond de Andrade, uma menina
sem informação cultural, e sua cozinheira. Acusá-la de elitismo é muito
estranho.
Ziraldo – Ela não gostou quando a moça na alfândega falou que ela era
escritora.
Nélida – Aí é uma invasão na privacidade dela.
Sérgio – Ela não gosta é da fama.
Ziraldo – Você não ficaria feliz se aquela moça tivesse realmente
entendido o seu livro?
CLARICE
– Ela não. Os do Mobral, sim. Fico feliz porque os ajuda a ler.
Sérgio – Aquela mulher da alfândega não devia conhecer a Clarice
escritora e queria conhecer a Clarice personalidade.
Ivan – Olha, eu quando leio alguém que não entenda, me sinto muito
sozinho.
CLARICE
– É por isso que eu tenho um cachorro.
Ivan – E você e os bichos, Clarice?
CLARICE
– Ah!
Sérgio – Você concorda em que bicho é melhor do que gente?
CLARICE
– Domingo eu fui ao Jardim Zoológico. É uma coisa maravilhosa!
Comprei essa bola que está ali. (Uma bola preta e branca com a estrela
solitária.) Porque eu sou Botafogo.
Ivan – Opa! Então tem uma linha média. (Clarice, Ivan, Lessa e Sérgio
Augusto, que estão sentados em linha.)
Ziraldo – Você foi sozinha?
CLARICE
– Não, fui com uma amiga.
Jaguar – Qual é o bicho que você curtiu mais?
CLARICE
– A girafa.
Ivan – Mas ao mesmo tempo o Jardim Zoológico é uma coisa
monstruosa. Aqui no Rio foi constatado… como é que chama gente que
frequenta zoológico?
Sérgio – Zoófilos.
Ivan – Aqui existem os zoófilos mais agressivos do mundo. Jogam pedra
etc. O que morre de bicho aqui no Rio é impressionante.
Sérgio – Os elefantes aqui se suicidam.
Ivan – O povo vai domingo não é pra ver bicho. É pra jogar pedra. Levam
de casa comidinha envenenada pra dar pros bichos. Isso é verdade, o dono do
zoológico já deu entrevista dizendo isso.
Nélida – Como é que eles explicam isso?
Ivan – Eu acho que é o fato de não entender. Se você não entender
bicho, não vê que bicho é igual a gente…
CLARICE
– É a mesma coisa de quem estraga a Pietá. É o mesmo impulso
de destruir uma coisa bonita.
Sérgio – Eu acho que Clarice tem uma visão muito poética de destruição.
Jaguar – Daí a frase: “Mata que é bicho”.
Ivan – Você viu a elefoa, Susy, que morreu lá, em que posição ela ficou?
CLARICE
– Ficou tão emperrada que não conseguiram tirá-la do fosso.
Ivan – O que se faz com o cadáver de uma elefanta? É um problema.
Podiam enterrar o elefante, tocar hino e tal. Mas não fizeram isso. Jogaram o
elefante em pezinho lá na Avenida Brasil. Na altura do Jornal do Brasil.
Sérgio – Na Pesquisa ou na Reportagem Geral?
Olga – Como foi a experiência de aparecimento dos seus dois livros
infantis?
CLARICE
– Muito boa. Eu testei com crianças e a reação foi maravilhosa.
Sérgio – Você fazia um teste com as pessoas antes de publicar?
CLARICE
E – Fiz. Vou publicar agora no José Olympio. A vida íntima de
Laura.
Laura é uma galinha (risos).
Olga – É o seu terceiro livro para crianças, né?
CLARICE
– É.
Ziraldo – O que você pretende com essa experiência?
CLARICE
– Não pretendo nada. Não sei de nada.
Ziraldo – E as críticas.
CLARICE
– A maioria eu não entendo (risos).
Olga – Mas, Clarice, há pessoas que dizem que o escritor escreve para ser
amado.
CLARICE
– Eu não escrevo para ser amada.
Ivan – Pode deixar que vou te comprar um maço de Havaí. Você vai ser
um cachorro de decisão.
CLARICE
– O nome dele é Ulysses Lispector.
Ziraldo – Vivem só você e ele nesse apartamento?
CLARICE
– Não. Eu, uma senhora que mora comigo, e que me faz
companhia, meu filho, que vem almoçar ou jantar, só.
Sérgio – Quer dizer que hoje está dando uma boa renda na sua casa.
Ziraldo – Você assiste televisão, Clarice?
CLARICE
– Assisto. Novela.
Ivan – Quais novelas você vê?
CLARICE
– Eu via “O semideus”, vejo a novela das sete (“Supermanoela”).
Não estou interessada nessa que vem agora.
Ivan – “Fogo sobre terra”.
CLARICE
– O começo é um saco.
Ivan - O que você achou d’“O Semideus”,
CLARICE
– Ah, é bom mesmo! (Risos). Ótimo, eu não perdia.
Sérgio – Por quê?
CLARICE
– Me interesso, me desperta uma curiosidade doida. Uma coisa
que não admito é que me telefonem na hora da novela.
Ziraldo – Além de novela, você vê mais alguma coisa na televisão?
CLARICE
– Nada. Mas às vezes eu vejo o “Fantástico”. Vi uma história
formidável domingo passado.
Ivan – Da planta que reage e emite sons?
CLARICE
– Sabe o que aconteceu com Ulysses? Ele estava distraído,
quando
houve o barulho das plantas. Ele ficou de focinho em pé, olhando. O som
é supersônico pra gente, pra ele não é. Agora a gente tem que chegar juntinho
da planta, alisá-la um pouquinho e dizer: “Eu te amo” (risos).
Ziraldo – Clarice, você, sozinha, já teve sensação de estar ficando louca?
CLARICE
– Não. Eu acho que diferença entre os doidos e os não doidos é
que o não doido não diz nem faz as coisas que o doido faz. E só essa.
Olga – Você já escreveu poesia, Clarice?
CLARICE
– Não.
Olga – Nem tentou?
CLARICE
– Nunca.
Sérgio – Nem quando adolescente?
Olga – Porque o teu texto é muito poético.
CLARICE
– Mas não sou poética.
Jaguar – Você lê muito, Clarice?
CLARICE
– Quando eu trabalho, leio quase nada. Não sou grande leitora.
Jaguar – Diz o nome de um livro pelo qual você se interessou
ultimamente. Por
exemplo, você gosta de Agatha Christie?
CLARICE
– Não, prefiro Simenon. Sou doida com Simenon.
Sérgio – Você disse que não lê quando está trabalhando. Você não lê por
que não tem tempo ou por que tem receio de ser diretamente influenciada por
aquilo que você está lendo naquela hora?
CLARICE
– É porque fico multo tomada pelo o que estou escrevendo.
(Ulysses rouba agora a caixa de fósforos de Ziraldo.)
Sérgio – Simenon tem uma encucação, um método de trabalho, que
pode ser o mesmo que o seu. Ao invés dele criar vários personagens, cria um:
Maigret. Tudo gira em torno de Maigret. Simenon se tranca durante os 10, 11
dias que leva pra escrever um livro, e não recebe telefonema nem nada. Porque
ele fica com todas as angústias do Maigret.
Quando ele acaba o livro, vai ao médico fazer um check-up, porque baixa
a sua pressão sanguínea. Você fica sofrendo assim também?
CLARICE
– Eu fico uma coisa. Um bicho selvagem.
Ziraldo – Você se isola?
CLARICE
– Não. Tanto que eu escrevia com os filhos brincando em volta,
me perguntando, me pedindo coisas, cachorro entrando e saindo.
Ziraldo – Mas você fica angustiada com o livro, né?
CLARICE
– Às vezes. Com Água viva passei três anos cortando e tirando,
lutando, lutando, até que saiu o livro.
Jaguar – Você trabalha como quem está fazendo tricô.
CLARICE
– Atendo telefone, respondo, vou conversar com a empregada.
Só
trabalho sob inspiração. Não sei me encomendar uma coisa.
Ivan – Quando você senta na máquina você já sabe o que vai escrever?
CLARICE
– Não sei quase nada. De repente me vem uma frase inteira.
Sérgio – Eu acho que deve ser terrível ter que fazer crônicas, ficar
garimpando
assunto.
CLARICE
– Não quem falar disso, porque quero ver se trabalho fazendo
crônicas. Mas que é chato é. (Ulysses sobe no sofá e abocanha Jaguar.) Ulysses!
(Ele desce.)
Sérgio – É um gênero estranho. Não é conto, não é romance, não é
poesia.
Jaguar – E cinema, você vai?
CLARICE
– Vou.
Jaguar – Gosta de cinema brasileiro?
CLARICE
– Depende, né. Não aguento chanchada.
Jaguar – Você não gosta de comédia?
CLARICE
– Me chateia.
Sérgio – Você gosta muito de Ingmar Bergman, não gosta?
CLARICE
– Gosto! E não vi “Gritos e sussurros” na França…
Sérgio – Mas esse vem ao Brasil.
CLARICE
– Vi a “Laranja mecânica” na Itália, “La grande bouffe” em Paris,
e em Londres eu vi “O último tango”.
Sérgio – Você gostou de todos ou não gostou de algum?
CLARICE
– Gostei. Deviam passar aqui. “O último tango em Paris” não é
uma história de sexo, é a história de um homem desesperado. Em matéria de
sexo “La grand bouffe” é muito pior.
Sérgio – Vamos falar de escritor morto? Faça uma lista dos escritores ou
livros que marcaram você.
CLARICE
– Não me lembro.
Ziraldo – Com quem você aprendeu a escrever?
CLARICE
– No grupo escolar João Barbalho, em Recife (risos).
Ziraldo – Não, mas com que pessoa?
CLARICE
– Comigo mesma. Isso não se aprende não.
(Ivan canta “You don't learn that in school”.)
Ziraldo – Você tem alguma admiração literária?
CLARICE
– Eu tenho uma afinidade com Nélida.
Sérgio – Clarice, até que ponto você se identifica com seus personagens
(essa pergunta, hein? hein? originalíssima!) Até que ponto você é a Joana de
Perto do coração selvagem, uma pessoa lúcida que não se encontra?
CLARICE
– Flaubert disse certa vez: “Madame Bovary c’est moi.”
Ivan – E Madame Bovary disse: “Flaubert c’est moi” (risos).
Sérgio – Pior seria se o Zola dissesse isso.
Nélida – Clarice, eu sei que você gosta muito pouco de falar de
literatura, né? CLARICE – É, não gosto.
Nélida – Você gosta de conversar de gente pra gente.
Jaguar – Você lê suplemento literário, essas coisas assim?
CLARICE
– Alguns artigos.
Ivan – E essa onda de erotismo que assola o país?
CLARICE
– É desespero.
Sérgio – Já que o Millôr não está presente, vamos fazer perguntas sobre
Woman’s Lib.
Ivan – O que você tem a dizer dessa empulhação, esse mal entendido,
esse equívoco, a que chamam de Woman’s Lib?
CLARICE
– Olha… (pausa). A mulher tem que ser mulher. E tem que ter
direitos como gente. É ser humano.
Ivan – Você acha isso aplicável na maneira como foi traduzida no Brasil,
em termos de fenômeno? Eu acharia que em primeiro lugar vamos por os
direitos humanos, depois uma discriminação por sexo.
CLARICE
– Claro. Você tem razão.
Ziraldo – E o ingresso da mulher na Academia Brasileira de Letras?
CLARICE
– Pouco me interessa.
Sérgio – A você e ao Drummond.
Jaguar – Você vai ao teatro?
CLARICE
– Raramente. Tenho um pouco de preguiça, sou muito caseira.
Sérgio – Você gosta de música?
CLARICE –
Eu trabalho com música. Eu gosto da chamada música erudita,
e gosto de Chico Buarque, Tom Jobim, Egberto Gismonti, Marlos Nobre,
Caetano.
Jaguar – Você é uma boa dona de casa? Ou a literatura é incompatível
com o fogão de quatro bocas?
CLARICE
– Não, eu fazia feira, depois enjoei. Mas me interesso muito pela
alimentação da casa.
Jaguar – Você cozinha?
CLARICE
– Eu sei fazer omelete.
Nélida – Aparentemente, essa é uma pergunta técnica. Mas não é. Todos
nós que executamos e fazemos a arte, somos muito perseguidos por um
problema, que é de certo modo uma obsessão: o fenômeno da criação. Você é
uma das pessoas que mais atingiram a matriz da criação. Você acha que o texto
é precedido, ou você admite a presença daqueles fatores que vão entrando, e
cuja origem o autor não sabe explicar.
CLARICE
– São mistérios permanentes.
Jaguar (ri) – Eu estou rindo da diferença entre o tamanho da pergunta e
o da resposta.
Sérgio – Parece tradução de filme japonês.
Nélida – Você tem uma armadura inicial a qual você vai adicionando
elementos. E todos nós temos certas muletas, certos truques, para escrever.
CLARICE
– Eu me apoio muito no travessão.
Nélida – Você é um ser fecundo, tem produzido muito, já está indo pro
13° ou 14° livro. E a gente imagina a inspiração como algo de tempo limitado.
CLARICE
– Mas entre um livro e outro eu já parei por seis anos, depois de
A maçã no escuro.
Jaguar – Aí você fica achando que acabou, que não tem mais nada a
dizer. De repente: pumba! E agora?
CLARICE
– Eu tenho tido umas ideias.
Sérgio – Você nunca sentiu necessidade de uma fuga, um
enclausuramento, para produzir alguma coisa
– Na Aprendizagem, eu passei 9 dias num motel. Dei meu
CLARICE
telefone a
todas as pessoas que precisavam saber, e fiquei lá trabalhando.
Jaguar – Você disse que está tendo algumas ideias. Trata-se de quê?
CLARICE
– Trata-se de um romance chamado Sete semanas.
Jaguar – Em primeira mão para O Pasquim.
Olga – O título vem logo no começo?
CLARICE
– Enquanto estou trabalhando vem o título.
Olga – O título vem depois do esqueleto do livro.
Jaguar – Você está em que fase de trabalho com o livro?
CLARICE
– Estou tomando nota.
Ziraldo – Você já jogou alguma vez na loteria esportiva?
CLARICE
– Cheguei a fazer 10 pontos. Mas foi um jogo que uma amiga fez
pra mim.
Ziraldo – Você não gosta muito de fazer novos amigos, não é,
Clarice?
CLARICE
– Eu tenho um pouco de reserva.
Ziraldo – O que é amigo pra você?
CLARICE
– Uma pessoa que me veja como eu sou. Que não me mistifique.
Que me trate de igual para igual. Que me permita ser humilde.
Ziraldo – Te incomoda ser tratada como uma pessoa ilustre, né?
CLARICE
– Muito elogio é como botar água demais na flor. Ela apodrece.
Ziraldo – Assusta?
CLARICE – Morre.
Tempestade cerebral10
Hélio Pólvora
Em um dos textos de seu último livro,11 Clarice Lispector escreve: “O
meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura. Este relatório
é a antiliteratura da coisa”. Trata-se de um exercício de prosa em torno de um
relógio. Na sua introspecção, Clarice é capaz de descrever cavalos sem apelar
para os traços que os distinguem, apenas atenta à ideia de forca elástica e
liberdade lírica que eles transmitem. Da mesma forma, pode varar o contorno
palpável de um objeto, o que esse objeto representa para os grosseiros sentidos
condicionados pela rotina do tempo: um relógio.
Em poucas palavras, Clarice atinge, no outro lado da ilusória aparência
das coisas, um conhecimento íntimo, perfeito, de repente concedido pelo toque
da magia. A antiliteratura da escritora que agora nos dá Onde estivestes de noite
é o seu desdém às palavras enquanto representação. Ela depura uma arte de
escrever em que as palavras se imaterializam e tentam ser forças essenciais, e
não complementares, do pensamento. Em Clarice, a palavra, devolvida ao seu
estado poético rudimentar, aproxima-se o mais possível da ideia. Ela pretende,
talvez, transformá-la em ideia força em satisfeita ressonância do que seria, em
mãos de outro prosador, um relato circunstanciado.
Assistimos, nos últimos textos da autora, a esse esforço de síntese
expressional absurda. Por isso, num dos últimos textos do seu novo livro,
Clarice fala em coisas “que não se usam publicar em jornais”. Exercícios de
virtuosismo estilístico. Estudos sobre a lucidez da incoerência. Aquela agonia
de perseguir o indizível, acuá-lo a um canto da página e, finalmente, em
10
In: Jornal do Brasil, 5.6.1974. (nota de pesquisa)
Clarice Lispector – Onde estivestes de noite. Artenova. Rio de Janeiro, 1974, 132 páginas, Cr$ 22.00.
(nota original)
11
instante de aguda penetração, traduzi-lo em palavras. É certo que esta ânsia e o
empenho de expressá-la não se ajustam à prosa instantaneamente
comunicante do jornal. Clarice é o anticronista, a negação dos faits divers. Não
admira, pois, que a parte menos satisfatória de Onde estivestes de noite sejam os
textos compilados de uma coluna que assinou em jornal. Clarice insiste aí em
conciliar sua visão muito pessoal e fechada com os fatos em aberto que
requerem, por sua circunstancialidade mão leve. O produto híbrido desmerece
a crônica e deforma o texto ficcional. Uma das supostas crônicas traz um
bilhete final a Erico Verissimo que nada tem a ver com o corpo da matéria.
Ligeirezas assim não casam bem com uma escritora que pode ter em sua
prosa outros defeitos, menos o de ser superficial e leviana. E também a
repetição de imagens e achados verbais de que guardamos o eco, a exemplo de
Dalton Trevisan (ver O pássaro de cinco asas, editora Civilização Brasileira), que
parece ter uma fábrica de contos em produção plena, todos eles sobre as
mesmas personagens e as mesmas situações da noite curitibana. Clarice
empurra a sua obra na medida em que desata a tempestade cerebral.
Encontramos este processo em três textos ficcionais, pelo menos, de
Onde estivestes de noite. Uma personagem diz, em um deles: “Como viver
magoava. Viver era uma ferida aberta”. E o leitor é levado a pensar diante das
penosas e profundas escavações de Clarice: “Como é difícil escrever. Escrever é
abrir feridas”. A escritora é hábil em lavrar flagrantes. Surpreende suas
personagens no instante em que estas se consultam, se olham, se flagelam ou
se redimem. O relato adquire um ritmo de pensamento que não hesita em
embarafustar pelos meandros da ambiguidade. O mecanismo mental uma vez
desfechado, predomina. Pouco lhe importam os exteriores ou as palavras que
costumam entrar como recheio. O pensamento é uma força livre que a escritora
se esforça sempre por captar e seguir – e isto se patenteia, principalmente, nas
duas primeiras peças do volume – “A procura de uma dignidade” e “A partida
do trem”, embora haja outros textos de bonita prosa abstrata.
Velhice e morte são dois temas que Clarice Lispector conduz com
mestria. Em anterior volume de contos, Felicidade clandestina, há o relato
muito pungente sobre uma anciã a quem não queriam. Largada, afinal, numa
cidade serrana, caminha por uma estrada e morre. A velha é frágil como uma
criancinha, mas, apesar do seu desamparo, continua enfeitiçada pela vida.
Aqui, em Onde estivestes de noite, há duas histórias de velhas que formam a
peça de resistência do livro.
Em “A partida do trem”, a escritora exerce melhor um dos aspectos mais
positivos de seu estilo peculiaríssimo: certas frases iluminadas que estremecem
de súbito a superfície enganosamente calma do relato, desvelando uma verdade
até então insuspeitada. Em viagem que é uma fuga de si mesma e para si
mesma, uma mulher aproveitava o apito gritado do trem para que ele fosse o
seu próprio grito. “Essa mulher tem uma revelação: ia morrer um dia, então
não teve mais medo da vida, e por causa da morte, tinha direitos totais:
arriscava tudo.” Quanto à outra mulher, uma anciã, sentada em frente, esta não
estava “à altura do ato de morte, pois nunca lhe acontecera até agora nada de
extraordinário na vida que viesse justificar, de repente, outro fato
extraordinário”.
No texto anterior, que inaugura o volume, a velhice de outra mulher está
penetrada por um sentimento de náusea que a faz desentranhar-se para melhor
justificar o seu estado: ela é um ser único e, ao mesmo tempo, ninguém. As
frases que Clarice larga no instante mais aguçado de sua inspiração são
punhaladas traiçoeiras. São frases que marcam, sínteses poderosas. E
representam, na prosa de Clarice, outra dimensão. Uma prosa transportada,
naturalmente, nas palavras, mas que se embebe nas palavras, a ponto de estas,
vibrando sozinhas, restarem como signos.
Água viva: um solilóquio de Clarice Lispector sobre o ser12
Haroldo Bruno
Meditação sobre o ser em suas relações com o tempo, ou melhor, com o
durée interior – o ser constituindo a essência metafísica do homem e o tempo
configurando situações existenciais acima das condições exteriores em seu
livre e, algumas vezes, arbitrário fluir em perseguição a um símbolo ou um
sentido definitivo para o universo – tal seria em linhas gerais o significado
desse relato despojado e igualmente crispado por unia angústia vital. Sob uma
espécie de canto genesíaco, de exaltação dum impulso cósmico de criação e de
um renascimento individual, traduzido, entre outras coisas, pelo emprego
reiterativo de vocábulos como aleluia, Água viva,13 equivalente antes de tudo a
uma transubstanciação poética do indivíduo em sua fecunda solidão, tentando
escapar à tirania do eu pela projeção de um tu imaginário, hipotético,
indefinido, que poderia fundamentar-se na própria concepção de um
incognoscível absoluto.
O personagem-narrador desse monólogo, onde se concentra todo o
poder de abstração, de fixação metafórica da matéria vivencial e do conteúdo
de pensamento da ficção de Clarice Lispector, essa figura atuante de
interlocutor, que a autora soube transformar em elemento de comunicação
insubstituível entre o texto e o leitor, pretende, partindo de si mesmo, redefinir
e restaurar a vida numa suma o mais possível lúcida, íntima e universal. Terá a
escritora obtido esse resultado? Em termos puros de literatura e de uma
divagação pelo território das inquirições, diríamos que sim. Clarice Lispector,
de modo mais radical do que aquele que vinha praticando até agora, preferiu
sacrificar a fabulação, os elementos narrativos pelo valor de um depoimento
12
13
In: O Estado de S. Paulo, 3.2.1974. (nota de pesquisa)
Clarice Lispector. Água viva, editora Artenova, Rio de Janeiro, 1973, 115 págs. (nota original)
psicológico e estético bastante aproximado de uma digressão ensaísta,
realidades artesanais e a intensidade de percepção que ela trouxe para o
romance e o conto desde o seu aparecimento há trinta anos com Perto do
coração selvagem. Embora desenhe frequentemente uma parábola demasiado
ampla ou labiríntica, a automeditação não chega a se constituir em visão
solipsista. Nem por um momento parece-nos gratuita, falso ou hedonista a
busca envolvendo um trabalho de subjetivação da realidade, pela absorção
crescente do tu pelo eu, em contraposição ao esforço de submeter a linguagem,
a expressão geral a um crivo de objetividade, que não invalida mas, ao
contrário, legitima uma prosa intencionalmente marcada por um tom
grandiloquente à sua maneira.
Prosa estética
Em Água viva, a introspecção, que é de natureza ao mesmo tempo
conceitual e lírica, elimina o tempo cronológico, substituindo-o não por uma
intemporalidade difusa, mas por uma temporalidade nada abstrata ou neutra;
por um tempo inferior que forja sua própria concretude ao fundir-se ao espaço
do texto, ao fazer dele uma dimensão objetiva em si mesma e onde a palavra
assume o relevo de objeto, uma vez que o espaço exterior, contendo o real
cotidiano, é também abolido. Longe dos efeitos prolixos provocados por uma
sondagem hermética na consciência, nesse desvio da percepção da realidade
comum convertida em ação dramática, que alguns autores levam além da
fronte o do verossímil, a posição de CL corresponde sem dúvida a um método: a
intromissão do circunstancial como o da continuidade, deve decorrer dos
valores estéticos, da textura vocabular, densa e extrapolada, e da estrutura
mental do processo criativo posto a descoberto. O texto passa a significar a
história mesma da elaboração desse texto, vemos o discurso desenvolver-se,
nascer de elementos informes (“uma seta que se finca no ponto tenro e
nevrálgico da palavra”) e tomar, à proporção que a meditação se diversifica e
aprofunda, a feição da obra literária construída com admirável senso da arte. O
universo exultante, jubiloso, enigmático e clarividente, se compõe de uma
cadeia de metáforas onde a espontaneidade é a determinante essencial, embora
não deixe de ser uma cadeia tortuosa. “E antes de mais nada te escrevo dura
escrita.” Penetramos em pleno campo de experimentação da pesquisa formal,
sem o caráter de exercício no qual se notasse o escritor empenhado antes num
projeto deliberado, com propósitos friamente programáticos do que voltado
para a sua aventura criadora, abandonada a tirania do autocensura, a inibição
das regras convencionais do gênero e utilizando-se, numa medida exata, o
automatismo psíquico e uma singular liberdade de manifestar-se. O
procedimento de Clarice Lispector, em Água viva, entre outras características
ressalta a necessidade de se restituir a prosa narrativa, e de um modo geral toda
forma estilística, à dignidade da obra literária mais ligada a um conceito
erudito, mediante a valorização (realizada aqui com um apuro ostensivo,
segundo estaria a exigir a grau de lucubração e de aguçamento dos sentidos
atingido por esse solilóquio, que é simultaneamente uma investigação
ontológica e um cântico de hosana da moderna ficção brasileira) de
contribuições definitivas trazidas pelo romance de base sociológico e
regionalista. Destacando-se entre eles a moralidade, o qual é necessário
despojar de um gasto acentuado prejudicando toda a obra de José Cândido de
Carvalho posterior a O coronel e o lobisomem, essa relação irônica e imaginosa
de aventuras repassadas do mais cativante sabor humano, feita com engenho e
arte, para qual lembramos há algum tempo um paradigma histórico: a D.
Quixote. (Assemelha-se a biografia literária de
JCC
à de García Márquez, autor
de um só livro – Cem anos de solidão, sendo os restantes simples variações
temáticas – até a publicação da sua obra mais recente. Os leitores esperam,
com justificável ansiedade, que o grande romancista brasileiro ressurja com a
sua Candida Erêndira).
Num paralelo entre a prosa utilizada em Água viva e a dos melhores
romances pertencentes à tradição oral e narrativo, assinale-se que ambas,
tendo como um dos seus aspectos mais importantes a achega estilística,
divergem no fato da primeira centrar-se principalmente em categorias
estéticas, e o segunda em dados estruturas linguísticos. Dificilmente contamos
com exemplos onde se consuma a conciliação dos dois atributos. O sentido
artístico ganha, na estilo geral da obra de Clarice Lispector, um traço de
erudição e de sensibilidade que torna preponderante o incitamento a reações
intelectuais. Água viva é sem dúvida um texto, compacto e fragmentário que,
pela sua matéria ideativa e pela proposta de uma construção retórica,
sobretudo com relação à recorrência dos recursos metonímicas e ao
delineamento poético da frase, se dirige mais à inteligência raramente ao
sensualismo do leitor, e este, quando se impõe, aparece associado ao mais
envolvente ludismo estético.
Em suas páginas, que propõem assim um estilo de retórica, válido como
reação da consciência artística contra o abuso do coloquialimo e as facilidades
duma literatura de consumo, contém-se um conhece-te a ti mesmo, um
mergulho do homem dentro do eu através da razão, que disciplina as explosões
do instinto. Sem cor no psicologismo, numa síntese surrealista da vida interior,
a escrita da autora alcança em alguns passos uma precisão, uma acuidade
lógica, na exteriorização simbólica da formação e fim das ideias, que lembra de
longe o rigor dos critérios científicos, quando busca refletir o desdobramento
do raciocínio até em sua ordenação de conceitos. E torna-se evidente que o
ficcionista cede lugar, nesses casos, ao ensaísta, ou à cronista cuja atividade
jornalística tem produzido páginas bastante originais. Mas o curioso é que o
seu processo de introversão, sendo primacionalmente de cunho racional,
adquire um extraordinário poder imagístico, proporcionando uma visão
poética, cosmogônica, ao tornar-se consciência do mundo, ser total.
O absoluto transitório
Essa concepção múltipla apresenta-se com um arraigado sentido de
unidade, não se exerce por meio de planos semânticos e técnicos isolados,
ainda menos divergentes. Por todo o livro se unem o pensamento e a imagem, a
observação concreta (em geral extremamente sucinta) e o devaneio poético,
resultando uma linguagem por vezes desconcerte, tal a carga de expressão, tal
a sua plurivalência: “Estou transfigurando a realidade”, diz o narrador ponto.
Mas ele não nos revela nenhuma concepção mágica do mundo virtual,
conjectural, sobre o qual se debruça, já que o livro nada tem a ver com o
realismo fantástico. É uma transfiguração quase sempre admiravelmente
grafada por palavras, num texto onde o discurso lógico, como já observamos, é
quebrado a todo momento pelo frisson de imagens oníricas, insólitas, cósmicas,
“o sol é a tensão mágica da silêncio”. Trata-se de um texto que se fraciona
numa infinidade de notações contrapontísticas em variações estilísticas de
certo virtuosismo como na composição musical, e que termina, pela sugestão
poderosa da sua coerência interna, se constituindo numa escritura em si
mesma, um labor artesanal indissolúvel do significado psicológico e
especulativa. Em Água viva, portanto, o real, o logos se converte em signos
verbais, ao mesmo tempo em que a autora deixa entremostrar a propósito de
revitalizar a continuidade do discurso, pelo menos em sua forma de monólogo,
ou de uma palavra através da qual o personagem se dirige a um protagonista
incógnito.
Quem é essa pessoa ou entidade não declarada? Em suas várias
metamorfoses pode encarnar a figura do amante, e o tema do livro será o da
fuga à solidão pela promessa de uma plenitude desejada mas não conquistada,
ou a exaltação do amor durante o afastamento do objeto amado. A
transcendência dos sentimentos, das associações reflexivas, de uma funda
insatisfação vital, pode levar, no entanto, a uma segunda interpretação: a
preparação do encontro com uma essência não humana, com Deus. Toda a
exposição se cifraria, deste modo, na busca de um absoluto dentro da
transitoriedade da entrega ao aqui e ao agora. Esse aspecto místico, essa
profunda inquietação espiritual que está subjacente e às vezes explícita talvez
se explique em função das raízes culturais e raciais da escritora, as quais,
integradas à realidade de uma cultura nova dominada por um quadro de forças
naturais, gerariam a terceira interpretação. Água viva também pode significar a
descoberta da existência em termos quase elementares, uma espécie de
identificação orgiástica com as fontes da vida, o deslumbramento, o êxtase do
nascer para um universo de verdades pressentidas, sempre através do
aproveitamento plástico, cromático, gustativo da palavra. Para captar a
essência em perpétua variação, num vir a ser que jamais se conclui, o narrador
empreende uma linha ascendente, de um estado larvar “quero me alimentar
diretamente
da
placenta”
à
confissão
definitiva:
“enquanto
dura
a
improvisação eu nasço”. A única maneira de reter o absoluto é a rendição ao
presente e ao instante, em forma de um canto vário, antitético ora melopeia
ora ditirambo, ora contemplação ora dissolução no vórtice, ora impulsão ora
regresso, e um erotismo por assim dizer telúrico em cujo fascínio se inclui a
natureza, as coisas tanto quanto as criaturas e o próprio narrador, que se
transfigura para obter seu retrato integral.
O discurso indireto livre, a linguagem do monólogo elevado à categoria
de autognose, descarta praticamente o elemento descritivo; paisagem e
ambiente são meras referências para o récit. O tempo da realidade objetiva se
cumpre na projeção verbal dos estados de espírito, não em presença fatual.
Água viva não é apenas uma ficção introspectiva mais densa, incorporada à
corrente em que a autora se situa com extraordinário relevo, a ponto de
influenciar escritores mais novos, como por exemplo no tocante à Nélida
Piñon.
Valor de renovação
É uma obra de fermentação renovadora, que participa da melhor
vanguarda brasileira, aquela que está isenta do sensacionalismo iconoclasta
que lhe infundiram alguns falsos detentores da revolução literária. Pode-se
questionar, a despeito da importância e da maneira como foram, se a
experiência tentada, como em tantos exemplos de inovação, encerra um valor
universal se o nível de investigação do espírito, que reduziu ao máximo o veio
imaginativo dentro do qual a escrita poética e conceitual asfixiou o reflexo da
ação episódica, não faz deste livro uma peça virtuosística na obra de Clarice
Lispector. Ou se, ao contrário, não confirma e amplia uma abertura para a
ficção brasileira, a que a vem tornando mais flexível, mais densa em substância
intelectual, mais rica em contribuição estilística e menos sujeita à precariedade
de um real aparente, inclusive em sua recusa a duvidosas aspirações de
modernidade. Dimensão, aliás, em que se constrói, sem grande alarde, quase
toda a obra da autora. Aqui se aprimoram tanto as suas qualidades quanto,
possivelmente, os seus defeitos.
Mas o que no restante de Clarice Lispector pode ser desvirtuamento –
precisamente sua alheação da realidade, das fontes imediatas e concretas da
vida numa transposição mais direta, como também a ausência do social – aqui
se transforma em virtude. Se em Água viva não existe descrição, rigorosamente,
é porque só é possível descrever o palpável, o estático ou o pretérito, o enredo,
o plot, que tende a se fixar numa moldura de espaço, não o fluxo interior ou o
instante que, ao fazer-se na consciência e lançar-se no mundo exterior, em
estado permanente de lucidez, mais do que isto, de exultação, pretende fixar o
absoluto. E a busca é incessantemente retomada, porque esse absoluto é
inapreensível, e o panta rei heraclítico, em algumas passagens e, em outras, as
forças da natureza ou da divindade. Transitoriedade e permanência constituem
o binômio existencial e filosófico em que se divide o narrador na operação do
seu cogito. Essa ambivalência, assegurando um mínimo de atmosfera metafísica
e de crispação sensorial ao sentimento de procura da integridade ou do simples
reconhecimento do ser na evanescência, nessa espécie de delírio da passagem
dos momentos.
Clarice Lispector fez bem em não recear a incomunicação: sua alta
qualidade artística não representou um empecilho ao êxito de Água viva. Não
teve medo de usar o vocabulário erudito, a sintaxe construída com apuro, os
tropos mais ambíguos. A esse respeito, o pequeno volume vale por um desafio
ao esquematismo elementar na técnica da composição e a um coloquialismo
nem sempre justificável como forma de expressão literária, grosseiras
simplificações do patrimônio folclórico. É tempo – e felizmente há inúmeros
exemplos que poderiam ser perfilados – de insistirmos em colocar a nossa
ficção a um nível de elaboração fabular e de escrita como arte, evitando as
contrafações popularescas ou, num caminho diametralmente oposto, o mero
jogo de palavras e um experimentalismo esotérico, que a nada conduzem.
Numa exata colocação do estilo de Água viva, é preciso não confundir a
densidade por vezes hesitante dessa narrativa-digressão, o apelo a
interpolações de efeito poético, com a anfibologia em que muito ficcionista se
perde, por um falso entendimento da complexidade criadora de um texto que
não faz concessões à vulgaridade. Do mesmo modo, não nos parece verdadeiro
defender
o
estilo
aqui
utilizado
como
um
modelo
geral,
a
ser
indiscriminadamente aplicado a todo e qualquer tipo de estrutura e concepção
ficcionais. Sua autenticidade está em corresponder a uma determinada e
peculiar forma de mentação e de exposição narrativa, podendo resultar
inteiramente inadequado, como um farfalhante ornamento, quando fora dos
fins o que se propôs a romancista. Não fosse Água viva o testemunho humano e
estético que é, e todo o seu arcabouço verbal, sua tendência para instaurar uma
nova retórica da narrativa, teria ficado nos limites da verborragia e de uma
pretensiosa dissertação. Acreditamos o bastante na consciência literária da
autora para não temer mais que sua obra futura possa anular-se com os riscos
da técnica e da expressão empregadas nesse modelo de ensaio-ficção.
Tudo o que dissemos poderia talvez ser resumido numa dupla definição
do título. As duas palavras, tomadas isoladamente, simbolizariam o
movimento, o projeto para o futuro, a fluência pela qual o indivíduo quer
identificar-se ao ser universal, e, quando unidos por um hífen formando um
termo composto, por uma conotação inevitável com a medusa, expressariam o
mistério, a sensação de estranheza e causticidade, presentes em todo esforço
de compreender ou decifrar a vida.
Autocrítica de Clarice Lispector, no momento exato14
“Eu não sou a melhor contista do Brasil; meu novo livro não será
publicado porque não atingiu seu objetivo; a nova Clarice não chegará nunca:
com a morte da antiga, morrerá um estilo.” Clarice Lispector responde a 11
perguntas de Telmo Martino.
Anunciaram um novo livro de Clarice Lispector. O objeto gritante, com a
Sabiá identificada como editora. A Sabiá não entendeu a notícia. Não tinha
recebido nem os originais. Clarice Lispector entendeu a notícia, sabendo que
houvera apenas uma divulgação apressada. O livro existe mas não será
publicado. Não era o momento exato. O momento de um livro nem sempre
coincide com o momento do autor. Não se pode saber qual será o momento
exato para O objeto gritante. Mas pode-se tentar descobrir qual é o momento
exato de Clarice Lispector.
– A velha Clarice Lispector acabou. A nova ainda não começou. Quem
está de interina?
– Penso que apesar de não estar na moda ou ultrapassada, ainda não
acabei. O fim é a perda de um estilo, o esquecimento do leitor, a pausa imposta,
diferente do descanso de trabalho. Clarice pode estar velha, mas continua
produzindo, sem saber se ainda é Clarice Lispector ou uma contadora de
contos. Vive para transmitir o que pensa, sem estar vinculada ao Leitor. Existe
um público certo que prestigia Clarice, criticando, descobrindo e renovando. O
escritor precisa acompanhar a evolução dos seus leitores, dentro de um estilo
próprio, sem se preocupar com a moda. A nova Clarice não chegará nunca. Com
a morte da antiga, morrerá um estilo. A não ser que sobreviva.
14
In: Jornal da Tarde, 22.7.1972.
– Por que foi que, de repente, você passou a ser seu assunto preferido e
mais importante?
– Essa pergunta é novidade para mim. Deve haver algum relacionamento
com o fato de eu estar escrevendo para jornal. A capacidade de assunto é
ilimitada. Se resolvesse explorar um tema, escolheria um assunto que não seria
eu mesma. E qualquer assunto é importante. Não existe o mais nem o menos.
– O objeto gritante seria um livro feito por você ou apenas e outra vez um
livro reunido pelo editor?
– O livro não será publicado. Não atingiu seu objetivo. O escritor sente
quando deve ou não publicar uma coisa sua. Quanto à segunda parte da
pergunta, fica sem resposta. A editora responde por mim. Estranha suposição.
– O romance acabou para todo mundo ou só para você?
– O romance não acabou. Está enquadrado na literatura clássica e
popular.
– Já notaram que há um renascimento do conto, como gênero preferido
dos escritores brasileiros de agora. Você, como melhor contista, teve alguma
coisa a ver com isso?
– Não sou a melhor contista. Nunca houve estatística que provasse, o
conto não está renascendo. É uma continuidade. Está sempre na moda.
Participo com meus textos. Não creio que isso traga influência para os
escritores de agora. Esse renascimento pode ser interpretado como auge do
conto, o gênero em evidência.
– Comunicação é uma palavra nova com significado novo?
– Comunicar é viver. Deram outro sentido à palavra. Como aquela frase:
quem não comunica se trumbica. É o oposto. Muita gente está se trumbicando
pelo excesso de comunicação. Existe uma medida nas palavras. Permite a
explicação dos fatos sem o uso de um vocabulário enorme. Comunicação é um
sentido a mais. Uma expressão falada. Está presente no homem. Completa sua
visão geral.
– É bom para o escritor ficar na moda?
– Desde meu primeiro livro, notei que estava na moda. E isso não
passou. Hoje escrevo sem me preocupar em saber se estou ou não na moda.
– Depois de mil entrevistas como repórter, você acha que o entrevistado
tem
obrigação de falar a verdade?
– Não. Ele não é obrigado a dizer aquilo que é contra a sua vontade. Mas
também não deve falar do assunto de um outro ângulo, para que não haja
ambiguidade e
muitas interpretações diferentes. Sempre quis ouvir de um entrevistado
o fato como se passou, para não contar a história com interpretação própria.
Certas interpretações contam o riposto do que foi dito.
– Você se orgulha de sua coluna no Jornal do Brasil?
– Eu me orgulho de tudo o que faço e fiz. O Jornal do Brasil é mais um
trabalho de rotina. Faço textos enquanto o tempo permite. É um grande jornal.
Me dá essa chance de um emprego que me satisfaz. Além disso, não existe o
problema de adaptação. Meus textos para o jornal são variados, sem esquema,
livres. Tenho liberdade de escolha. Estou muito satisfeita. Mas isso não me
impede de parar a qualquer dia. Minha vida se resume nos momentos de cada
dia. Não tracei um futuro com planos. O futuro virá por si mesmo.
– Você escreveria suas memórias ou acha que já está escrevendo seu
diário?
– O que eu escrevo de mim é o que sai naturalmente. Escrever memórias
não faz meu estilo. É levar ao público passagens de uma vida. A minha é muito
pessoal.
– Há muito tempo não surge um escritor novo e importante na literatura
brasileira. Isso é natural ou é mistério?
– Não estou muito a par do que tem saído. Há, por exemplo, o Rubem
Fonseca, ótimo contista. Sérgio Santana, Luis Vilela, maravilhosos. Tenho lido
pouco. Mas o que leio de gente nova está me interessando. Não há mistério. Os
valores aparecem. Só que precisam ser mais divulgados. A literatura brasileira
atravessa uma boa fase.
Clarice Lispector esconde um objeto gritante15
Germana de Lamare
Pensei que o Leme ia acabar antes que eu chegasse a casa de Clarice
Lispector. Os números andavam muito altos para o endereço escrito no papel.
Já estava disposta até a galgar o morro, a pedreira. Sou daquelas que ainda
acreditam que um poeta sempre mora debaixo de uma laranjeira ou de um cajámanga. Clarice, ao contrário, mora num apartamento formal, como tantos
outros em Copacabana onde suas origens só aparecem através de uma rede
pendurada numa pequena varanda.
As paredes estão atapetadas de quadros. Todos bons. Um painel de
Francheschi, da Floresta da Tijuca, intitula-se “O açude da solidão”. Às vezes,
entre os móveis há espaços vazios, como os silêncios nos seus livros. Uma égua
solta corre livre por um prado. Também é uma foto entre Scliar e Bonomis.
Descubro num desenho de Cheschiatti o segredo de Clarice. O seu rosto é
linear, mas econômico de linhas, ela não é feita para rugas, suas maçãs são
salientes, como se estivessem ali justamente para apoiar seus olhos, às vezes
tristes, e sua testa quase sempre preocupada.
Atraso
Fui até o Leme atrás de sua Felicidade clandestina, mas devo ter me
atrasado um pouco, porque logo descubro O objeto gritante sobre a mesa. Seu
décimo terceiro livro.
– Ele já está pronto, sim, mas acho que só vou editá-lo o ano que vem.
Sabe, eu estou muito sensível ultimamente. Tudo o que dizem de mim me
magoa. O objeto gritante é um livro que deverá ser muito criticado, ele não é
conto, nem romance, nem biografia, nem tampouco livro de viagens. E, no
15
In: Correio da Manhã, 5.3.1972. (nota de pesquisa)
momento, não estou disposta a ouvir desaforos. Sabe, Objeto gritante é uma
pessoa falando o tempo todo…
– Me diz uma coisa Clarice, você mudaria uma linha do seu livro por
causa dos críticos?
O pulo vem imediato. Claro que não. Sua resposta é decidida, como eu
tivesse feito uma pergunta absurda…
– E então? O que importa o dia que ele vai ser editado?
Clarice dá de ombros e olha ao seu redor. Parece pensar sozinha. Depois
me oferece um cigarro e responde: “É, você tem razão, eu posso editar este ano
mesmo. Mas você sabe, eu sou um pouco supersticiosa e acho que o número
treze ou vai me dar muita sorte ou um azar tremendo”.
A tarde começa a cair dentro da casa e Clarice, descalça, começa a andar
pela sala me mostrando seus objetos menos gritantes. Dois santos numa
redoma, algumas conchas sob uma mesinha. O retrato dos filhos quando
tinham um ano, ou mesmo meses.
– A gente deve aproveitar muito as crianças quando elas são bebês.
Depois dá uma vontade danada da gente colocá-los no colo, e aí eles não
deixam mais.
É normal, hoje, que os filhos de Clarice não deixem mais mesmo. Um
está com vinte anos e o outro com dezenove.
– Clarice, por que você escreve?
– Engraçado, eu fiz essa mesma pergunta a Robbe-Grillet quando ele
veio ao Brasil. Me respondeu: “Eu escrevo para saber porque escrevo”. Minha
resposta é diferente. Eu escrevo para entender melhor o mundo. E acho que
escrevendo a gente entende mais um pouquinho do que não escrevendo. É uma
lucidez meia nebulosa porque a gente não tem direito consciência dela.
– Você que mergulha tanto dentro de você quando escreve, ler tudo
depois não lhe amedronta?
– Opa! É por isso que eu não releio livro meu. Às vezes, vou lhe
confessar uma coisa, nem corrijo as provas. Peço alguém para reler. As coisas
uma vez feitas não me interessam mais. Objeto gritante, por exemplo, não vou
nem passar a limpo…
– Quer dizer que você não tem aquele prazer de tirar um livro antigo da
prateleira, folhear, e depois confessar baixinho: “Como é que eu consegui
escrever isso tão bem?”.
– Não. Eu nunca acho que eu escrevi bem. As vezes que eu me forcei a
ler algo meu, tive uma grande sensação de imperfeição. Tudo ali era muito
sofrido, muito conhecido.
Clarice passeia mais pela sala. Acende um cigarro:
– Imagine que um repórter veio aqui me entrevistar e, além de dizer que
eu estava gorda, disse que minhas mãos tremem. Deve ter sido coincidência.
Você acha que eu estou gorda?
Como toda mulher, Clarice é vaidosa. E seu próximo regime alimentar
está na ordem do dia. Fala dele volta e meia.
Observando
– Onde mesmo eu estava? Ah, sim, mas tive uma experiência engraçada
com A paixão segundo G.H. Tive que reler algum trechos, por obrigação, porque
o livro ia ser dramatizado. E [?] de [?] eu descubro que podia aprender algumas
coisas com aquele livro.
Neste momento, entretanto Clarice descobre que pode descobrir coisas
na expressão do meu rosto. E começa a analisar minha expressão:
– Sabe, você tem uma boa ossatura. Ela é muito importante para a
beleza do rosto.
Antes que eu começasse a ser entrevistada (Clarice tem prática do
assunto) fiz, rápido, a primeira pergunta que me passou pela cabeça:
– Você é daquelas escritoras que acreditam em inspiração?
– Precisamente. Eu só escrevo inspirada. Sai tudo já feito Não sei
planejar nada. Me encomendar uma obra. Se eu fizer isso, não sai nada certo.
– Você tem medo de começar um livro. Uma sensação, por exemplo, de
quem vai viajar de avião…
Clarice me olha espantadíssima. Sua expressão combinaria mais com a
frase “como é que você descobriu?”, mas a resposta veio pronta e definitiva:
– Mas eu sempre começo tudo como se fosse pelo meio. Deus me livre de
começar a escrever um livro da primeira linha. Eu vou juntando notas. E depois
vejo que umas têm conexão com as outras, e aí descubro que o livro já está pelo
meio.
– Você era capaz de se definir para mim?
– Talvez. Sou ignorante demais para ser uma intelectual. Não sou uma
literata. Não vivo no meio dos livros, nem tampouco de flores e de aves, como
me acusam às vezes… Sou uma intuitiva, quer dizer, eu sinto mais do que
penso…
Sensação
– Já que você se apoia na sensibilidade, você já experimentou alguma
vez alguma droga?
– Não, nunca fiz esta experiência. E, para falar a verdade, nunca senti
necessidade dela. Acho até que teria medo. Imagine, procurar alguma coisa que
estimulasse mais ainda as minhas sensações. Acho que eu explodiria…
O quanto é possível alguém com os olhos amendoados arregalá-los,
Clarice os arregalou, exatamente como alguém que já estivesse sentindo toda a
explosão interior.
– Sabe, sou uma mulher simples e complexa ao mesmo tempo. Como
toda a mulher, afinal de contas, Minha vida é dirigir a casa, participar da vida
dos meus filhos, o quanto eles permitem, é claro, porque às vezes eles até
proíbem participar da vida de meus amigos. Sabe, é uma besteira dizerem que
eu sou uma mulher solitária. Têm a mania de escrever isso a meu respeito. É
cretino, mesmo. Eu detesto ficar só. Não gosto nem de ir a cinema sozinha. Por
exemplo, quando eu era embaixatriz, eu vivi na Itália, nos Estados Unidos, na
Suíça, no Egito. Na Grécia, só de passagem, por meia hora… Entre almoçar e
visitar a Acrópole, eu optei pelos deuses. Não me arrependi. Agora, tenho
vontade de recomeçar tudo outra vez. Mas eu não gostaria de viajar sozinha.
Gosto de repartir minhas emoções com outras pessoas. Dividir tudo o que é
bom…
Trabalho
Tiro logo o pensamento de Clarice da Grécia, porque pressinto que ela
vai mergulhar por aquelas vielas de Atenas entulhadas de ruínas, e mudo o
assunto para os problemas da profissão.
– Eu não me considero uma profissional, sou uma amadora. Não faço
contratos nem escrevo livros por encomenda ou prazo fixo. Nada disso. Escrevo
uma crônica por semana e assim mesmo acho algumas muito fracas. Sou muito
exigente comigo mesmo… Sou meia misteriosa, também. Eu escrevo uma coisa
e anos depois é que vou vivenciar, realmente, aquela coisa. Aí já está escrito faz
muito tempo… Não sei explicar porquê… Você me acha hermética? Perto do
coração selvagem, quando foi editado em 44, foi considerado um livro muito
hermético. Hoje é texto de escola. Vai ver, acontecerá a mesma coisa com
Objeto gritante.
A preocupação de Clarice com o seu último livro é evidente. Ele não sai
do seu pensamento.
– Cada vez que escrevo um livro acho que ele vai ser o último. Que eu
acabei ali. Mas agora já estou com um conto na cabeça… Eu não queria escrevê-
lo, aliás. Por isso contei a história para todo mundo que encontrava. Mas assim
mesmo, ele não me sai da cabeça. Chama-se Senhora Jorge B. Xavier. Sabe de
uma coisa que eu tenho curiosidade é saber como os outros escrevem.
Simenon, por exemplo me fascina. Ele escreve com hora marcada, das 7 às 5h, e
tem uma produtividade espantosa...
– Você escreve de manhã ou de noite?
– De manhã. Quando escrevi A maçã no escuro, nos EUA, eu só conseguia
ter vida social se eu escrevesse de manhã. Se não, me dava um mau humor
tremendo. Aqui, agora, eu também escrevo sempre cedo.
– O que você chama cedo?
– Bem, eu acordo às quatro da manhã. Quando estou trabalhando é
ótimo. Aproveito a madrugada para escrever. Mas quando eu não estou fazendo
nada me chateio brutalmente. Não encontro nada para fazer. E todo mundo
dorme.
– Há alguma coisa de que você tenha medo? Avião, por exemplo.
– Não, não tenho medo de avião. Mas há algo que eu tenho medo. Acho
que eu tenho medo do futuro. Sempre tive, realmente. Acho que eu vou cortar o
cabelo, o que é que você acha?
A noite já vinha descendo completamente. E as luzes da casa já estavam
todas acesas, iluminando o retrato pendurado na parede de uma menina de
uniforme de colégio chamada Clarice. Me despedi e desci. Lá embaixo, por
volta das sete, o tráfego era intenso, e um objeto gritante quase me atropela
quando atravessei a rua.
“E eis que não entendo o ovo. Só entendo ovo quebrado: quebro-o na
frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu
sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor
o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida, é para quem já viu o ovo,
um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa,
servindo sem a glória de fusão maior, meu trabalho é o de viver os meus
prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.” (Do
conto “O ovo”, livro: Felicidade clandestina)
“O ovo vive foragido pó estar sempre adiantado demais para a sua época.
– Ovo por enquanto sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para
que não chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado
de branco, não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de
branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar branco aquilo que é branco
pode destruir humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele
era, e foi chamado Aquele Homem. A lei geral para continuarmos vivos: podese dizer ‘um rosto bonito’, mas quem disser ‘o rosto’, morre, por ter esgotado o
assunto.” (Do conto “O ovo“, livro: Felicidade clandestina)
Clarice e o seu toque de condão16
Hélio Polvora
Um novo livro de Clarice Lispector é mais que uma aprendizagem, é um
livro dos prazeres. Felicidade clandestina,17 reunindo contos conhecidos e
novos, alguns bem curtos, justifica a fama da prosadora e repete o seu peculiar
temperamento artístico.
São 25 peças tocadas todas por uma aguda sensibilidade, uma emoção de
nervo exposto. Mesmo os contos de menor apelo ficcional, realizados em forma
de crônica, com a ligeireza e o à vontade de uma conversa inteligente,
impressionam sempre por um detalhe qualquer: uma observação, uma frase,
uma definição instantânea mas de profundo conteúdo existencial. Há pelo
menos cinco pequenas obras-primas, entre as quais destaco a que mais de
perto me tocou por sua pungência exemplar: “O grande passeio”. São alguns
flagrantes sobre a vida de uma anciã, chamada Mocinha, para quem o
conhecimento
íntimo
da
cidade
constitui
uma
aventura
diária
de
encantamento.
Recolhida a uma casa de Botafogo, por caridade, consegue passar
desapercebida, até o momento em que sua presença silenciosa se torna
incômoda. Resolvem, então, transferi-la para Petrópolis. Mocinha não é aceita
pelos novos hospedeiros, recebe o dinheiro da passagem de volta e,
desorientada, ganha a estrada. Morre silenciosamente, como deve ter vivido,
sem causar mal, sem provocar distúrbios: “O céu estava altíssimo, sem
nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a
estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então,
como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu”.
16
In: Jornal do Brasil, 29.1.1972. (nota de pesquisa)
Clarice Lispector - Felicidade clandestina: contos, editora Sabiá, Rio de Janeiro, 1971. 161 páginas,
Cr$ 17,00. (nota original)
17
A prosa de Clarice Lispector tem uma densidade diáfana, uma transparência de
cristal nobre, uma compaixão pelos humildes que me faz lembrar Katherine
Mansfield – por sinal, a suave Katherine de “A vida da velha Parker”. A arte da
Clarice Lispector para tocar o núcleo das emoções legítimas, sem calcar a mão,
mas apenas roçando-o com a frase lúcida, é realmente qualquer coisa de
singular na ficção brasileira.
O conto de Clarice Lispector me impressiona mais que o seu romance,
sobretudo os primeiros, onde ela se entrega a um jogo por vezes enigmático de
palavras. Além disso, o romance, no seu vasto território, elide, pela
necessidade de montar situações, aquilo que na prosa da autora de Felicidade
clandestina me parece mais transcendental: a sua capacidade de fazer
descobertas impressionistas, de trespassar de luz as consciências de suas
criaturas, como se elas fossem vitrais. Na instantaneidade do conto, essa arte
impressionista encontra a oportunidade de se exercer com plenitude.
A própria Clarice Lispector definiu outro dia, em crônica neste jornal, e
talvez sem intenção preconcebida, o seu jeito de ser escritora: referiu-se à arte
de escrever às entrelinhas. Note-se a diferença: escrever nas entrelinhas é
sugerir, edificar um segundo plano que compete ao leitor investigar e decifrar.
Escrever às entrelinhas, como faz Clarice Lispector, é ir diretamente ao fundo
das essencialidades, fornecendo em primeira mão o esquivo sedimento das
almas.
Os contos de Felicidade clandestina se limitam ao que é rigorosamente
essencial, dispensando acessórios descritivos. A escritora os surpreende em seu
andamento dinâmico, no instante exato das revelações, quando há alguma
coisa a transmitir – alguma coisa que engrandece quem a lê, dando-lhe a
impressão de que a leitura o deixou enriquecido. Na literatura contemporânea
escrita por mulheres eu só encontro paralelo para esses exercícios de
percuciência em Carson McCullers, a Carson de Heart is a lonely hunter.
Esta arte de expor as consciências e desvelar os corações deve ter origem
mágica. E Clarice Lispector, em nossa prosa de ficção, é a boa fada que encanta
as palavras com o toque do seu humano condão.
A carta de agradecimento a Clarice, por um novo livro18
Nosso crítico de literatura, que trabalha com livros há 20 anos, preferiu
escrever uma carta a Clarice Lispector dizendo muito obrigado pelo seu novo
livro de contos Felicidade clandestina (Sabiá, Cr$ 17). Ele conta por que o livro é,
realmente, um atestado de felicidade: a dos leitores.
Clarice Lispector,
Você talvez não saiba, por isso venho lhe dar a notícia que torna este
ano recém-iniciado um ano extraordinário: você subverteu tudo com Felicidade
clandestina, seu livro novíssimo. Já não há mais temporadas mortas de
lançamento de livros no Brasil. Os 25 contos enfeixados nesse volume esguio
negam o verão escaldante para florescer numa primavera sempre viva. E,
sobretudo, Clarice, o que os coveiros gratuitos proclamavam não é verdade: a
literatura brasileira não está mais órfã! Todos diziam: a Clarice não faz mais
nada; contos? Só os do início da carreira dela. E assim obliquamente, como os
seus personagens costumam agir, você simplesmente transmite um telex de
argúcia, de sensibilidade vulnerável e de lirismo que provam que a nossa
literatura é, dentro de uma grande literatura – a hispano-americana – uma das
mais vitais e interessantes do mundo.
Já se disse que você criou, com Felicidade clandestina, o conto confissão.
Em “Restos do Carnaval” você consegue em 4 páginas apenas resumir a
infância pobre em Recife da menina que se fantasia de rosa com restos de papel
crepom e fica poupando ao máximo o lança-perfume e o saco de confete que
tinham lhe dado. E aquela expectativa infantil do Carnaval! A transformação
das pessoas comuns em princesas, em leões, em palhaços, em rosas! Enquanto
isso, sua alegria e sua fantasia cerceadas, policiadas pela doença da mãe, que
18
In: Jornal da Tarde, 20.1.1972.
tinha que se agravar justamente quando você sonhava com aquela etapa em
que é permitido disfarçar e até negar a realidade. E quando você acha difícil
escrever, o coração e a memória contritos pela recordação penosa:
“Porque sinto como ficarei de coração ao constatar que, mesmo me
agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada
já me tornava uma menina feliz.”
Com a piora do estado de saúde da mãe, os preparativos da sua
felicidade clandestina ficam adiados e é só no final, quando tudo se acalma, que
sua irmã penteia e pinta você:
“Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu
havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora
desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci
até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios
encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre
mas com remorsos lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu
morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é
porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim
significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa
mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos
já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem
falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que
enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”
Mas não é só no conto lírico confessional, em que você confia partes da
sua vida, dos seus temores, da sua angústia ao leitor, que você inova o conto no
Brasil, Clarice. O despojamento já quase oriental de “O grande passeio” é
inédito entre nós. Como contar sem pieguismo a história de “uma velhinha
sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no
mundo”? É um conto que tem muito dos poemas haikais do Japão: um mínimo
de palavras contendo um mundo explosivo de significados, de sutis sugestões,
as reticências significando tanto ou mais do que os adjetivos descritivos:
“Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido
preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido
encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia
agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que
comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre
onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome,
dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa
educação:
– Mocinha.
As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:
– Nome, nome mesmo, é Margarida!
Com essa contenção, só certos trechos de Tchekov, Clarice; como se uma
parte da essência dele saísse da Rússia e florescesse em Pernambuco, como foi
o seu itinerário, aliás, em menina: de Tchetchelnik para o Recife.
Há muitas excelências mais nos seus contos: aquela pesquisa sobre o
ovo na mesa da cozinha: o ovo foi elaborado minuciosamente na Macedônia? É
através do ovo que se chega a Deus? O ovo é uma demonstração da intensidade
da vida interior da galinha? E aquele conto sobre as baratas que morrem na sua
casa comendo uma mistura de açúcar e gesso e se desvendam a você como
estátuas no alvorecer de Pompeia? E aquelas criadas que têm tristezas antigas,
sem rugas, indefinidas, como se visitassem uma floresta primitiva interior e
voltassem com uma fome que herdaram da parte selvagem de si mesmas? E
aquelas crianças solitárias que deveriam ter recebido um cachorro determinado
como preenchimento de suas vidas e que cruzam com ele na rua sem poder
adotá-lo só o amando e sendo correspondidas intensamente?
Ler seus contos é como estar à beira de um precipício. Clarice. Há uma
paisagem desolada à espera de uma ternura que deve brotar da própria espera
angustiada. E acima de tudo, há uma poesia que se exprime sempre de forma
inesperada: pelo estouvamento humorístico de uma “trouvaille”, como a
empregada com sua explicação patética: “Trivial, não, senhora só sei fazer
comida de pobre ou pelas frases de crianças e de velhos” – esses seus
personagens prediletos ao lado dos bichos, Clarice.
Eu leio livros por gosto e por profissão há mais de vinte anos. E não
podia deixar de lhe participar o que você na sua modéstia, talvez só intua
confusamente: seu livro é uma obra-prima, maravilhosa, admirável de lucidez,
de força, de descoberta, de estilo, de surpresa.
A felicidade agora, com a publicação destes seus contos, não é mais
clandestina, é de todos no Brasil, que amam a literatura madura que você, José
Cândido de Carvalho, Ariano Suassuna, Hilda Hilst, Nélida Piñon e André de
Figueiredo criam.
Quando outros se empolgam com realizações técnicas, eu me exalto com
todos esses recordes que você conseguiu com escassas 159 páginas: dar-nos, de
sopetão, uma clareira de inteligência sensível que corresponde literariamente a
uma Transamazônica e a mais de duzentas milhas de civilização. Por tudo isso,
que é tanto, obrigado, Clarice.
Leo Gibson Ribeiro
Os outros livros de Clarice
Clarice Lispector apareceu de modo quase inesperado no mundo
literário brasileiro, em 1944. Seu romance Perto do coração selvagem foi
considerado uma ponta de lança do romance moderno, em relação ao
conformismo que havia na ficção brasileira. Filha de imigrantes, Clarice viveu
até 12 anos em Recife. Formou-se em direito, casou-se em 1944 e tem dois
filhos. Depois de seu livro de estreia publicou O lustre, Alguns contos, A maçã no
escuro, Laços de família, A paixão segundo G.H., Uma aprendizado ou o livro dos
prazeres, A mulher que matou os peixes e Felicidade clandestina. Segundo Clarice,
o primeiro crítico a elogiar sua obra foi Sérgio Milliet. Alguns dos livros de
Clarice Lispector estão esgotados. Mas ainda é possível comprar Perto do
coração selvagem na 3a. edição, ed. Sabiá, 198 páginas. Cr$ 14,00; Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, de 1969, em 2a. edição da Sabiá, 175
páginas, custa Cr$ 14,00. O livro infantil que Clarice publicou em 1968. A
mulher que matou os peixes tem ilustrações de Carlos Scliar, 62 páginas. Custa
Cr$ 8,00. Esses três livros podem ser comprados na livraria Siciliano – R. Dom
José de Barros, 323. Ali também há Felicidade clandestina, por Cr$ 17,00. Na
Livraria Brasiliense – R. Barão de Itapetininga, 99 –, há A legião estrangeira,
editora do Autor, 257 pgs. Cr$ 17,00 e A cidade sitiada, da Sabiá, 196 pgs. por
Cr$ 8,00.
Fracasso e triunfo de Clarice Lispector19
Heitor Martins
Clarice Lispector é o melhor representante no Brasil do romance lírico,
uma forma híbrida que tenta misturar o desenho formal – típico da lírica – com
a preocupação por seres humanos e ações – típica da narrativa romanesca. O
resultado de tal tentativa, como já o disse Ralph Freedman, é que o “cenário
comum da ficção torna-se uma tessitura imagética e os personagens surgem
como personae do ego”.20 A obra adquire então duas características básicas: 1. o
padrão de símbolos recorrentes é extenso, ou seja, há uma extrema
complexidade na matriz de imagens em que se apoia a obra, exigindo uma
interpretação acurada; 2. o aspecto mais saliente do tema e o seu
confessionalismo, não como referência pessoal à vida privada do autor (assunto
que não tem interesse crítico) mas como exibição de uma máscara atual, ou da
máscara que, à maneira do teatro grego, é colocada para explicitação de uma
determinada ideia.
A última obra de Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres (Rio: Sabiá, 1969) é um excelente exemplo das qualidades, percalços e
vitórias do gênero. Porque há de tudo num livro deste tipo.
Mesmo considerando a caracterização peculiar deste gênero híbrido, não
se pode propriamente afirmar que Uma aprendizagem seja um romance, a
despeito de que isto se diga na capa do livro.21 Embora a narração seja na
terceira pessoa e haja um levíssimo arcabouço estórico (uma mulher que se
entrega a um homem, depois de uma longa série de reflexões metafísicas, por
sinal capazes de apagar a chama de qualquer desejo realmente masculino),
nada ficamos sabendo destes personagens enquanto seres humanos. Na
19
In: O Estado de S. Paulo, 15.8.1970.
Halph Freedman. The Lyrical Novel, Princeton Princeton University Press. 1963. p. 1.
21
E Clarice Lispector se considera realmente uma “romancista” como confessa noutro livro: “Escrevo
histórias para gente grande” (A mulher que matou os peixes. Rio: Sabiá. 1968, p. 61). (nota original)
20
realidade, não há seres humanos neste livro mas apenas duas atitudes
confrontadas, uma mais avançada que a outra e finalmente atingindo um ponto
comum. Metaforicamente, Lóri e Ulisses, a partir da transparente simbologia de
seus nomes, são o homem e a mulher em abstrato. Um romance, entretanto,
exige enredo – isto é, tanto os acontecimentos numa história quanto o
princípio que os une22 – quer como ação aberta (os romances de Jorge Amado),
quer como florescimento interno (os romances de Cornélio Pena, mas sempre
dentro de uma realidade que provoque ao leitor qualificado una experiência
imaginativa unitária intensa e de magnitude considerável. A série de
lucubrações de Lóri, “personagem” central deste Uma aprendizagem, tem às
vezes a função de um ensaio, às vezes a de um poema, mas nunca, pelo enredo
do livro podemos fruir uma experiência imaginativa do mesmo tipo que a si
apreende na maravilhosa vitalidade carnal de uma Dona Flor e seus dois maridos
(e há muito de comum na temática abstrata destes dois livros) ou na profunda
revelação de um Bentinho em Dom Casmurro (que é o antípoda temático do
livro de Clarice Lispector).
A falta fundamental deste livro enquanto romance é que ele defende
uma ideia, a partir do título. E, tradicionalmente, nada há de pior que uma obra
de arte com ideias. Mas nisto reside também sua grande qualidade, aquela que
faz dele a obra mais significativa desta autora.
Mas, antes, tornemos atrás aos problemas puramente romanescos que
Uma aprendizagem nos oferece. A sua mera publicação e aceitação como
“romance” é uma prova de que o gênero, se não morreu ainda, está na última
agonia. Aliás, desde Coleridge, que o descrédito do romance é significativo.
Não fosse o pai da moderna crítica que, em nota de pé de página, classificando
o “gênero perda de tempo”, tenha dito: “Além de romances histórias de
22
Unimos aqui aquilo que, dentro do jargão do New Criticism seriam dois conceitos distintos: materiais
do enredo e forma do enredo (Vide E. S. Crane. Critics and criticism: ancient and modern – Chicago:
University of Chicago Press, 1952, p. 622). (nota original)
cavalaria em prosa e verso, o gênero compreende como suas espécies: brincar,
balançar-se numa cadeira ou num cuspir de uma ponte, fumar, tomar rapé, as
brigas tête-à-tête entre marido e mulher depois do jantar, ler cuidadosamente
todos os anúncios de um jornal numa repartição pública num dia de chuva etc.
etc. etc.23
E um autor contemporâneo, Ernst Erich Noth, afirma: “Não podemos
deixar de notar o abandono do romance como a grande forma convencional da
expressão literária, e mais que isto sua transição da forma clássica e tradicional
para um gênero heterogêneo e indeterminado, onde elementos de lirismo,
ensaio, panfleto, monólogo e muitos outros são cada vez mais prevalentes
sobre estória sólida, enredo central e personagens definidamente perfilados”.24
Melhor descrição não se poderia dar deste Uma aprendizagem. Mas a
companhia em que Clarice Lispector se encontra é das melhores: o mesmo se
poderia dizer de O lobo da estepe, de Hermann Hesse; Nightwood, de Djuna
Barne; Os alimentos terrestres, de André Gide; Orlando, de Virgínia Woolf;
Retrato de um artista quando jovem, de James Joyce; além de obras de Novalis e
Hermann Broch.
Uma aprendizagem é de leitura extremamente penosa e poucos leitores
não se sentirão, em certos momentos, com desejo de jogá-lo fora. Certas
reflexões de Lóri, além de perfuntorias e irrelevantes (até mesmo para o
desenvolvimento da ideia expressa pelo livro), são monotonamente repetitivas.
O diálogo, em sua pretensiosa ingenuidade, é piedosamente “camp”:
“ – Que é que eu faço? Não estou aguentando viver. A vida é tão curta e
eu não estou aguentando viver.
– Mas há muitas coisas, Lóri, que você ainda desconhece. E há um ponto
em que o desespero é uma luz e um amor.
23
Samuel T. Coleridge. Biographia literaria and asthetics essays (ed. J. Shawcross). Oxford: Clarendon
Press, 1907, vol. I. p. 34. (nota original)
24
Ernst Erich Noth. The novel today: death or transmutation? Books Abroad, 32 (1958). p. 117. (nota
original)
– E depois?
– Depois vem a Natureza.
– Você está chamando a morte de Natureza.
– Não, Lóri, estou chamando a nós de Natureza.
– Será que todas as vidas foram isso?
– Não sei, Lóri.” (p. 144)
“– Você tinha me dito que, quando me perguntassem meu nome eu não
dissesse Lóri, mas ‘Eu’. Pois só agora eu me chamo ‘Eu’. E digo: eu está
apaixonada pelo teu eu. Então nós é. Ulisses, nós é original”. (p. 168)
Há uma qualidade constante: a sensação de que a autora tentou um alvo
acima de suas possibilidades artísticas (ou que tenha estado muito confundida
com seu próprio tema: “ele está muito acima de mim”, diz ela na nota
introdutória) e não conseguiu atingi-lo. Esta intenção superior à realização é
que lhe dá o lúrido vulto de um fracasso que merece o respeito e a admiração de
quem quer que se aproxime de Uma aprendizagem com olhos críticos.
Mas há um aspecto extremamente positivo nesta obra e que, como
dissemos antes, faz dela a mais significativa de quantas já escreveu Clarice
Lispector. Esta qualidade está ligada de maneira íntima à ideia guia do livro,
embora não seja propriamente sua temática – a ideia que Clarice Lispector
defende relaciona-se com o direito feminino à liberdade e participação sexual.25
A “aprendizagem”, que se tem compreendido de maneira mais dignificada
como “aprendizagem do amor” (e “amor” considerado como um valor
espiritual), é, na realidade, aprendizagem pura e simples do prazer físico (aliás,
claramente indicado no título). Esta afirmação de que “prazer” é “amor” está
no centro da ideia defendida pelo livro. Toda a filosofante e rococó
personalidade de Lóri reduz-se, no fundo, a uma mulher em busca de um
25
Rachel de Queiroz, outra romancista de ideias, a quem devemos mais do que confessamos, já tratara do
problema com uma visão mais tradicional em O Quinze .
homem. Embora se afirme que Lóri já tivera “cinco amantes” (p. 51), a cena
final desmente claramente esta possível promiscuidade anterior. O livro, em
seu nível temático, não só afirma o direito feminino à fruição de seu próprio
corpo, mas, pela primeira vez na literatura brasileira, trata-o de uma maneira
condizente com a humanidade e sensibilidade feminina.
O naturalismo de um Aluísio Azevedo – repugnante em sua
consideração da mulher como besta de cama – repetido com novas cores em
certos autores modernos – a pitoresca carnalidade mestiça das heroínas de
Jorge Amado, degradou a personalidade feminina é uma posição de objeto de
prazer ou, quando muita, a um elemento cuja única função é reproduzir a
espécie. Neste sentido, a despeito das Iracemas, Inocências, escravas Isauras,
Divas, e até o romance brasileiro é povoado quase apenas por homens. Talvez
Machado de Assis tenha sido o único a criar personagens femininas válidas,
embora mesmo em suas obras, a preponderância masculina seja significativa. O
ponto de vista segundo o qual estas personagens agem, até mesmo naqueles
romances escritos por mulheres, é sempre masculino.26
Clarice Lispector, com Uma aprendizagem muda a posição das cartas no
jogo. E produz o primeiro romance brasileiro em que a sensibilidade feminina
encontra uma forma de expressão.
Um crítico27 já chamou a atenção de Clarice Lispector para a completa
impossibilidade que uma mulher romancista encontra para exprimir a busca de
identidade de um homem (causa da fraqueza maior de A maçã no escuro), como
é impossível a um homem romancista descrever a experiência espiritual que a
concepção de um filho representa – agora, entretanto, a autora de Laços de
família avança pelo caminho que revela seja a única capaz de percorrer neste
26
E mesmo na literatura universal, pois outra não é a razão para os pseudônimos masculinos (que seriam
ridículos se não fossem dolorosos) de certas romancistas: George Sand, George Elliot, João Falco etc.
27
C.D.B. Bryan na resenha da tradução americana de A maçã no escuro no The New York Times. Boolt
Review, 3-9-1967. p. 22.
momento. O resultado é um fracasso romanesco mas triunfo de um esplêndido
livro, cuja importância não se pode realmente aquilatar ainda.
A oportunidade do livro de Clarice Lispector também não pode ser
miniminizada: ele representa uma renovação consciente e a aplicação de uma
metodologia já testada a um novo sistema de valores. Se examinamos a
produção anterior da autora veremos uma preocupação constante com a
solução de uma série de problemas através da afirmação de valores intuitivos. A
inteligência enquanto apreensão lógica do mundo é de importância secundária;
a sapiência deve vir de um contato sensual com os problemas.28 O mesmo
método é aplicado a um problema básico que o homem ocidental enfrenta no
momento presente a chamada “revolução sexual”. O fato de que a obra
provenha da mão de uma mulher e mais de que seu tratamento se mantenha
num nível de bom gosto e sensibilidade inequívocos acrescenta sua
importância temporal.
O
confessionalismo
de
Uma
aprendizagem,
pelo
seu
caráter
demasiadamente saliente, desequilibrante, prejudica o sentido ficcional da
obra. Exige-se, num romance lírico, um tratamento balanceado da confissão
pessoal (da máscara) e estrutura das imagens empregadas. Didaticamente,
poderíamos dizer que a inchação da matéria empobrece a tessitura. O
resultado, entretanto, se formalmente é menos válido, tem um caráter de
autenticidade que torna este livro mais significativo pelas suas fraquezas que
pela sua qualidade artística. E o deixa na tradição literária a língua portuguesa
quase solitário, talvez apenas levemente rememorativo de O Ateneu, de Raul
Pompeia, ou As folhas caídas, de Almeida Garrett, livros também carregados de
uma romântica sinceridade westheriana que os faz de difícil manuseio crítico.
28
É curioso notar ainda que a parte que Clarice Lispector cortou na citação de Augusto dos Anjos usada
em epígrafe refere-se exatamente à maneira, ao método “sentimental”, alógico pelo qual se atinge a
prova: “Provo desta maneira ao mundo odiento/ Pelas grandes razões do sentimento,/ Sem os métodos da
abstrusa ciência fria/ E os trovões gritadores da dialética (…)”.
A escolha do gênero híbrido – romance rico – e as jaças mais que
aparentes em sua tessitura, a matéria, são suficientemente equilibradas por seu
significado presente. E talvez a única exigência que se deva fazer ao crítico que
o leia seja aquela “humildade” de que Clarice Lispector, em nota à guisa de
prefácio, se confessa imbuída para escrevê-lo. Pois só assim se poderá efetuar
esta difícil, penosa e necessária leitura.
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres: editora Sabiá29
Clarice Lispector no seu último romance organiza a narrativa quase sem
enunciado próprio, isto é do autor. A opção entre os diferentes sistemas
estilísticos usados depende do plano do personagem.
A seleção de grande parte das expressões, das construções, das
estruturas frasais são dados do estilo da personagem Lóri, do seu romantismo
sentimental que vai se despojando dos chavões do pieguismo ou os vai
restaurando na plenitude vital, para atingir outros lugares-comuns bíblicos que
são redimensionados à proporção que a personagem caminha na sua
aprendizagem. Progressão equivalente à passagem das expressões clichês da
estatística da língua para a dinâmica da fala. Do repertório das convenções do
páthos sentimental romântico academizado em fórmulas, os lugares-comuns
vão passando, ao correr da narrativa, por uma revitalização de danificados.
O mau gosto e o óbvio têm aqui função literária. Conduzindo várias
situações do romance, articulam o tema central – a “identificação do eu” de
Lóri, a sua luta para se habituar a viver, para resistir à “consciência de existir”,
a sua busca de uma solução para esse absurdo que se chama “eu existo”. De
signos de convenção passam a signos de uso, quando a personagem progride na
aprendizagem. Ou melhor, o tema do romance vai sendo articulado à medida
que se incorporam o plano linguístico de Lóri e ao personagem Ulisses e à
medida que a intersecção desses dois planos de discurso se aproxima do plano
do discurso do autor. A intersecção dos planos de discurso de Lóri e Ulisses
instaura a fusão de duas vidas, organizando o clímax da narrativa e
encaminhando a sua solução.
Como acusa Mikhail Bakhtin, a maior parte dos trabalhos que analisam a
linguagem e o estilo do romance se desviam das condições específicas da vida
29
In: Jornal do Brasil, 15.11.1969.
do discurso na narrativa. Examinam a linguagem e o estilo do romancista não
como linguagem e estilo do romance, mas como expressão de determinada
personalidade artística, de determinada corrente estilística, ou como fenômeno
de linguagem política em geral. A personalidade artística do autor, a corrente
literária, as particularidades gerais da linguagem literária de uma época
ocultam as exigências próprias do gênero em relação às possibilidades
específicas que o romance abre à língua.
Nas condições do romance, o discurso tem uma vida especial. Todo
romance contém representações das linguagens, dos estilos e das concepções
concretas da linguagem. O enunciado não exprime apenas, serve ele próprio de
objeto de expressão, o que torna sempre autocrítico todo discurso de romance.
E é por tal aspecto que este se distingue fundamentalmente de todos os
gêneros literários – épico, lírico, dramático. Todos os meios diretos de
expressão desses gêneros e os próprios gêneros entram na composição de um
romance, tornam-se nele objetos de expressão.30
A leitura das “partes do discurso” é o que propõe Tzvetan Todorov nas
suas investigações sobre a gramática da narrativa. Dada a necessidade da
elaboração de um aparelho descritivo para identificar os fatos da narrativa,
antes de explicá-los, podem ser utilizadas categorias do aparelho conceitual
dos estudos sobre as línguas. No entanto, não convém seguir docilmente as
teorias correntes sobre a linguagem. Pode bem ser que o estudo da narrativa
nos faça corrigir a imagem da língua como a encontramos nas gramáticas.31
É que na obra literária podemos ler várias linguagens. As palavras do
escritor-artista são outros signos (não necessariamente outras palavras) em
relação às palavras que servem a outras funções da linguagem, que não à
30
Mikhail Bakhtin, O enunciado no romance, ensaio publicado na revista russa Voprosy Literatoury
(Quetões de Literatura), n° 8, 1965, e reproduzido no n° 12, da revista Langages, Didier/Larousse,
dezembro, 1968. No Brasil Anatol Rosenfeld propõe o estudo dos enunciados no relatório apresentado ao
Congresso de Crítica de Assis (São Paulo).
31
Tzvetan Todorov, A gramática da narrativa, Langages, n° 12, Paris, Didier, dezembro, 1968.
poética. Por sua vez, os signos de que se serve a arte da ficção são os signos dos
seus signos. Esta arte e, ala também, uma linguagem dentro de outra
linguagem.32
No seu romance, Clarice trabalha criticamente com discursos literários
prévios, atingindo, pela paródia, as tendências da técnica de construção e
consequentemente da linguagem da literatura da sua época (um pouco à
maneira de Oswald de Andrade). São paródias que se integram no plano dos
personagens e têm o tom do seu discurso.
É o neobarroquismo da literatura atual nos seus ritmos paralelísticos
assonânticos, aliterantes e coliterantes – a exploração dos “infinitesimais do
verbo poético”.
Ou a libertação da palavra no seu valor como objeto (cf. o momento em
que Ulisses ensina a Lóri o nome que revela a parte carnosa das folhas e a moça
acha “lindo” dizer e pegar em: sarcofila).
Ou a dimensão temporal como consciência humana (cf. o espetacular e
melodramático início do capítulo – “haviam-se passado momentos ou 3 mil
anos? Momentos pelo relógio em que se divide o tempo, 3 mil anos pelo que
Lóri sentiu quando, com pesada angústia, toda vestida e pintada, chegou à
janela. Era uma velha de quatro milênios.”).
Ou o realismo objetivo e as investigações niilistas da literatura que se
propõe filosófica (“naquele instante era apenas uma das mulheres do mundo, e
não um eu, e integrava-se como para uma marcha eterna e sem objetivo de
homens e mulheres em peregrinação para o Nada. O que era um Nada era
exatamente o Tudo”).
Ou a verbosidade sentimentaloide das “chaves de ouro” (cf. esse final de
capitulo “Lóri não percebe que o tremor é seu, como não percebera que aquilo
32
Ver Wladimir Weidlé, Art et langage, Diogéne, n° 66, Paris, Gallimard, 1969.
que a queimava não era o fim de tarde encalorada, e sim o seu calor humano.
(...) e antes da chuva cair, o diamante dos olhos se liquefaz em duas lágrimas”).
Ou os ingredientes da armação do suspense nas novelas policiais (cf. o
fim de capítulo da p. 26. Aliás, quase todo final de capítulo é paródia de estilos
e linguagens.)
Ou os clichês da poesia declamada nas escolas (cf. o início de capítulo da
p. 111, em que o elemento desmitificado pela crítica da linguagem está inscrito
no enunciado do romance como parte integrante da didática oficial, da
professorinha primária – é um enunciado do discurso da personagem, no qual o
uso dos adjetivos chavões faz do mau gosto um elemento com função na
narrativa: “Seguiu-se um longo e tenebroso inverno”).
Quase sempre, como as imagens poéticas não têm um sentido poético
direto, não são destacadas gramaticalmente do enunciado do autor. É o caso do
início do romance, em que Lóri é apresentada ao leitor através de cortes
transversais e em profundidade na rotina do cotidiano.
A narrativa iniciada por uma vírgula (,) e terminada por dois pontos (:) é
toda ela como um só período. Não há ruptura gramatical porque se aproximam
o ponto de vista do autor, de fora da narrativa, e o dos personagens (e muito
raramente se recorre ao discurso indireto livre). É que as pessoas gramaticais se
comunicam e se deslocam, para cobrir lacunas da gramática. A terceira pessoa
da narrativa é um pronome complexo que se desloca a cada momento para a
primeira pessoa dos personagens, sobretudo de Lóri. A complexidade dessa
terceira pessoa revela a relação entre Lóri e o autor e Lóri e Ulisses, na medida
da intersecção dos planos linguísticos. E isto porque as funções pronominais na
narrativa do romance supõem uma noção que deve ser dissociada do indivíduo
físico e interpretada como uma função que se produz no interior de um meio –
mental e social, num “espaço de diálogo”.33
Apesar da narrativa onisciente, e sem narrador, Lóri se descreve a si
própria na sua própria linguagens, com todos os ingredientes românticos a que
ela tenta opor retificações de verismo realista imagens poéticas que não são
meios primeiros de expressão mas objetos de expressão, muitas vezes aquela
atitude de paródia e ironia, maneira pela qual o autor penetra no enunciado do
personagem (“[…] em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque
o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de
ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje; […] precisava no meio
do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz
de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta
que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma
transparente da mão de Deus, faz de conta que tudo o que não tinha era faz de
conta […])
A desmitificação da donzela romântica se faz com a contribuição dos
clichês dos cenários românticos (“Lóri preferia a luz fresca e tímica que
precedia o dia ou a quase penumbra luminosa que precede a noite.”/“A melhor
luz de se viver era na madrugada, leve tão leve promessa de manhãzinha.”)
A própria personagem vai corrigindo a imagem romântica sensibilista e
imergindo num romantismo lúcido, uma espécie de releitura dos mistérios
gregos e, sobretudo, da Bíblia (“[…] viver era ter um véu cobrindo os cabelos.
Então com ternura aceitou estar no mistério de ser viva. Antes de se deitar foi
ao terraço: uma lua cheia estava sinistra no céu. Então ela se banhou nos raios
lunares e se sentiu profundamente límpida e tranquila. Pouco a pouco foi
adormecendo de doçura, e a noite era bem dentro.”).
33
Cf. Michel Mutor, L'usage des pronoms personnels dans le Roman, Répertoire II, Paris, Les
Editions de Minuit, 1964.
Os elementos do cenário romântico vão ganhando outra função. A
solidão do mar deixa de ser evasão, motivo de lamúrias e suspiros de amor,
para ser parte integrante e ativa da aprendizagens do amor. Lóri evolui
resistindo à consciência de existir e o mar passa a ser uma das redescobertas da
tradição mais antiga – leva ao desconhecido, realiza o sonho, não é “mistério
vivo que não se indaga”. A criatura pode “abrir as águas do mundo pelo meio”
quando a sua entrada no mar não é um “simples jogo leviano de viver”, quando
ela própria passa a ser um “anteparo compacto”. O mistério romântico é
decifrado pela razão poética que produz um novo sentido para a simbologia do
mar. Lóri pode “caminhar dentro das águas”. “Ela e o mar”. “O mais
ininteligível dos seres vivos”, que “fizera um dia uma pergunta sobre si
mesmo”, e “a mais ininteligível das existências não humanas”.
Na desmitificação de termos e conceitos eleitos, a personagem se
consola da “sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar”, da “sua
incapacidade humana de ver a curvatura da Terra”. “É a exiguidade do corpo
que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre
gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no
ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada.”
Para Lóri a entrada no mar não é “jogo leviano de viver”. É um “ritual”
que “agride”. É uma “alegria fatal” que a deixa “muito séria”, porque “o cheiro
é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono
secular”, uma alegria que a deixa “alerta sem pensar”, (“A mulher é agora uma
compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez que, líquida, se
opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode
ser um pedido secreto.”). O mar a fertiliza e ela “abre as águas do mundo pelo
meio”, retornando um ritual que “abandonara há milênios”. O mar, que ela
bebe “em goles grandes'”, era “o que lhe estava faltando: “O mar por dentro
como o líquido espesso de um homem”. E Lóri é um “anteparo compacto”, “a
amante que não teme pois que sabe que terá tudo de novo”, a mulher que “sabe
que fez um perigo”. “Um perigo tão antigo quanto o ser humano.” Mas
ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas” (“depois que há milênios já
haviam andado sobre as águas”).
Quando se vão revelando as origens milenares, nessa redimensão de
mitos e símbolos, vai diminuindo cada vez mais a distância entre o plano
linguístico do personagem e o centro unificador da narrativa, o plano
linguístico do autor. Este vai deixando de apresentar apenas o discurso da
personagem na proporção em que esta vai achando uma solução para o absurdo
ao existir. Já aí a romancista, de certa maneira, fala também de si próprio. É o
que Bakhtin chama discurso-concepção do mundo de um outro, o qual
representa, ao mesmo tempo que é representado. O autor – que como operador
da unidade da narrativa, não está situado em nenhum dos planos linguísticos,
mas no centro do romance, onde se manipulam as interseções dos planos –
diminui a distância em relação ao plano linguístico de Lóri. É que “as
representações do discurso são inseparáveis das representações das concepções
do mundo dos seus proprietários, homens que pensam, falam e agem em
circunstâncias sociais e históricas concretas”.34
O romancista vai ficando como que solidário com o personagem a
medida que vai se dissolvendo no discurso desse personagem. “Ela” – aparente
ponto de vista externo à narrativa – passa a ser igual a “eu” do personagem
(Lóri) mais “eu” do autor.
O personagem Ulisses (o professor de filosofia que não acreditava em
fórmulas) é um homem que “sabe menos do que parece, apesar de ter vivido
muito e estudado muito”. Lóri é a “verdadeira mulher” para ele. (“Porque na
minha aprendizagem falta alguém que me diga o óbvio com um ar tão
extraordinário. O óbvio, Lóri, é a verdade mais difícil de se enxergar”). Na
34
V. nota 2.
reinterpretação de símbolos primitivos e universais, os diálogos parecem às
vezes numa releitura do Cântico dos Cânticos (“Comigo você falará sua alma
toda, mesmo em silêncio. Eu falarei um dia minha alma toda, e nós não nos
esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso temos dois corpos que nos
será um prazer alegre, mudo, profundo.”).
Lóri, que se entregara a vários homens e não se identificará em nenhum,
sente que é uma “super mulher” quando chega a dificilmente ser o que
realmente é. Como todos, ela também era “um deus em potencial”. Mas essas
expressões da análise da “aprendizagem” de Lóri já pertencem ao tipo de
enunciado da representação do discurso de Ulisses (“existir é tão
completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais
de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se
chama ‘eu existo’, a solução é amar um outro ser que, este, nós
compreendemos que exista”).
Na restauração do óbvio, solidarizam-se, no fim do romance, o discurso
de Lóri, o de Ulisses e o do centro unificador do romancista.
Discurso direto de Lóri:
“–(...) profundamente sou aquela que tem a própria vida e também a tua
vida. Eu bebi a nossa vida.”
“– (...) sei que meu caminho chegou ao fim: quer dizer que cheguei à
porta de um começo.”
Discurso direto de Ulisses:
“– Nós dois sabemos que estamos à soleira de uma porta aberta a uma
vida nova. É a porta, Lóri. E sabemos que só a morte de um de nós há de nos
separar.”
“– Tudo me parece um sonho. Mas não é, disse ele, a realidade é que é
inacreditável.”
“– Joguei fora as duas dúzias de rosas porque tenho você, rosa grande e
de pétalas úmidas e espessas.”
Discurso do autor:
“… eles se haviam possuído além do que parecia ser possível e
permitido, e no entanto ele e ela estavam inteiros.”
“… ele estava perdido num mar de alegria de ameaça de dor. (...) E ela de
novo caiu na vertigem que a tomou, e era de novo feliz como um ser pode
morrer de felicidade.”
“Não havia nesse momento sensualidade entre ambos. Embora ela
estivesse cheia de maravilhas, como cheia de estrelas.”

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