O DÚBIO DO AMOR

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O DÚBIO DO AMOR
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
E-book
O Dúbio do amor
Zé Gertrudes
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Índice
03- Prefacio
07- Augusto e o segredo
34- O Juiz filosófico
44- Manto da embriaguez
60- Falsos amores
92- Os homônimos do Zé
109- Parte1- A verdade
134- Parte2- O abismo
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Prefacio
O amor é o tema mais importante na
historia da humanidade nos seguimentos
artísticos, sociais e psicológicos. Quantas foram
às guerras travadas no âmbito geral, geradas por
falta do amor ou pelo excesso dele.
O amor é uma linha imaginaria que tem
seu inicio no descaso passando pela humilde
atenção, tendo no gráfico seu ápice a dedicação,
entrando em declínio na paixão, acentuando-se
ate a veneração e chegando ao extremo que é a
obsessão.
Viver sobre esse equilíbrio na linha do amor
parece ser a grande dificuldade da nossa espécie
desde quando iniciamos os primeiros passos
sobre a terra. O amor é um elemento tão
singelo, porem, fundamental mecanismo para
que todos sem exceção tenham uma condição
melhor para completar seu ciclo com dignidade.
Diante deste vasto tema debrucei meus
pensamentos por varias décadas da minha vida e
as dissertações que nunca as ignorei transformei
as em historias fictícias que trago a tona sem
muitos termos técnicos.
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Por muitas vezes perguntei-me, se talvez o
amor não fosse uma doença agravada na espécie
humana que vem ganhando ascensão ou se
desenvolvendo nos últimos trinta séculos. Por
que nada é estático, tratando-se das espécies
como promete a ciência desde Charles Darwin.
Mesmo antes da primeira carta aos Coríntios do
novo testamento o amor era dúbio. 1coríntios
13,1-13
Ainda que eu falasse línguas, as do homem
e dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria
como um sino ruidoso ou como címbalo
estridente.
Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o
conhecimento de todos os mistérios e de toda
ciência; ainda que tivesse toda fé, a ponto de
transportar montanhas, se não tivesse o amor,
eu nada seria.
Ainda que eu distribuísse todos os meus
bens aos famintos, ainda que entregasse o meu
corpo às chamas, e não tivesse o amor, nada
disso adiantaria.
O amor é paciente, o amor é prestativo;
não é invejoso, não se ostenta não se incha de
orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
seu próprio interesse, não se irrita, não guarda
rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se
regozija com a verdade, tudo desculpa tudo crê,
tudo espera, tudo suporta.
O amor jamais passará. As profecias
desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência
também
desaparecerá.
Pois
o
nosso
conhecimento é limitado; limitada também é
nossa profecia, mas quando vier à perfeição,
desaparecerá o que é limitado.
Quando eu era criança, falava como
criança, pensava como criança, raciocinava como
criança. Depois que me tornei adulto deixei o
que era próprio de criança.
Agora vemos como em espelho e de
maneira confusa; mas depois veremos face a
face. Agora meu conhecimento é limitado, mas
depois conhecerei como sou conhecido. Agora,
portanto, permanecem estas três coisas: a fé, a
esperança e o amor. A maior delas, porem, é o
amor.
Mesmo sendo singelo e sublime, o amor é
emblemático em nossa cultura que sofreu
agregações étnicas no decorrer dos tempos, e
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
tais fatos, não poderia deixar de citá-los nestes
contos.
Assim sendo este vocábulo complexo de
apenas quatro letras cause um absurdo de
duvidas, e vem assim derivar o titulo: (O Dúbio
do Amor). Só espero que consiga ser
compreendido pelos leitores com este modo
simples de escrever.
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Augusto e o segredo
O que aconteceu com nosso personagem,
no decorrer dos fatos que serão aqui citados, fica
declarado que ninguém deva levar como
verdadeiros, embora muitos dos fatos, de fato
ocorreram, todavia há um exagero por parte de
quem nos contou a historia. Mesmo trocando os
nomes para sutilmente despistar quem vai ler,
mas queremos que se torne publico e assim
escrevemos.
Augusto recentemente completou seus
trinta e dois anos, mas não teve motivos para
comemorar, apesar de ter saído na noite com
alguns amigos para comer pizza e tomar alguns
chopps. Amigos dos bons que lhe estenderam as
mãos quando mais precisou durante sua recente
separação dolorosa. Não porque seja um
divorcio, mas, porque sua esposa desapareceu
sem deixar apenas um pequeno bilhete. Depois
de tantas investigações descobriu que fora para
Londres com um amigo da agencia de turismo
onde trabalhavam. E foi o mesmo amigo que
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
conseguiu o visto de permanência junto à
embaixada da Inglaterra.
O que mais deixou o Augusto depressivo
foi o fato de sua esposa ter providenciado o
passaporte, comprado à passagem e quando ela
apareceu com duas malas novas em casa e lhe
dito que estava antecipando para uma viagem
que fariam para visitar sua mãe no final do ano,
para o Maranhão. Augusto ate delirou com os
prospectos que Carmem lhe trouxera. Sonhava
com o rio preguiças num passeio de barco num
final de tarde, com o sol se escondendo no mar
em Mandacaru, delirava caminhando nos Lençóis
e banhando-se nas lagoas multicores de águas
cristalinas, sonhava em conhecer o terceiro
maior delta do mundo, o maior das Américas.
Ate que ele achou estranho e perguntou a ela.
_Você não acha um pouco exagerado o
tamanho destas malas? Com estas malas tão
grandes da ate para levar todos os moveis do
apartamento, se você quiser. Meu amor.
Pois bem. Carmem sua esposa foi embora,
e outro motivo que deixou Augusto aborrecido,
foi que nas suas malas, Carmem levou também
sua coleção de DVDs. Claro que não eram
originais, mas, Augusto tinha-os como uma
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
relíquia, um bem muito estimado. Não se
cansava de vê-los! Os favoritos : Floyd,
Creedence, Dire Straite, Beach Boys, etc. No
total eram vinte três bons motivos para que
Augusto se esticasse no sofá vermelho com um
copo de refrigerante nos finais de tarde,
enquanto Carmem cuidava de seu delineado
corpo na academia quatro vezes por semana.
Enfim os DVDs se foram!
Por vezes, Augusto entrava em paranóia
porque achava estranho uma esposa abandonar
o marido quatro vezes por semana, ainda a noite
quando ambos estavam em casa e poderiam
namorar, como antigamente. Carmem alegava
que as gorduras lhe deixavam em um estado de
depressão só de Apalpá-las. E ele foi
conformando-se com a idéia que talvez isso de
fato fosse à tão difamada pobre da rotina e que
Carmem por ser vaidosa ao extremo se
preocupasse com sua silhueta, e achou melhor
não incomodá-la por ir quatro vezes por semana
na academia.
Augusto dividia seu ocioso tempo em um
trabalho mal remunerado de assistente de
redação para um jornal de media circulação.
Alias, decidiu fazer o curso de jornalismo após
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
repetir o teste vocacional por três vezes. Sendo
que em dois os resultados foram jornalismo, e
um o resultado foi letras, e que no momento
achou muito profundo para o seu médio
entendimento.
Augusto dirigia-se ao trabalho por
obrigação social de se cumprir um currículo,
porque no seu trabalho era subordinado a idéias
da criação divina e de limitação pragmática, e
não como as suas, que descambavam para o
evolucionismo assistido.
Certa noite de insônia, Augusto se levantou
foi ate a sacada do seu apartamento que ficava
no décimo andar, sentiu aquele frio de final de
inverno com um leve vento sobre seu rosto que
indicava, que logo chegaria às chuvas e em
breve a primavera ira cobrir de flores e cores
toda superfície. Mas mesmo assim não foram
suficientes para que deixasse de surgir o
emaranhado de segredos e todas as suas
angustias em seus pensamentos. Debruçou
sobre a grade. Veio ao seu pensamento à
vontade de se atirar. Pensou no pai que tomou a
mesma e estranha decisão. O suicídio. Olhou
para baixo no escuro da noite, que passava das
nove horas, e disse para si mesmo.
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_ Vou me esborrachar naquele cimento.
Meus pedaços vão se dividir em fragmentos,
meu sangue irá manchar todo aquele chão. Mas
por outro lado não terei que conviver com a dor
da solidão a saudade de Carmem, e também o
ódio do seu amigo que providenciará todos os
papéis. Não teria mais que se preocupar com o
Maranhão, o rio preguiças, os Lençóis,
Barreirinhas, nem com o delta das Américas.
Também não se preocuparia com os olhares de
piedade dos amigos, dos vizinhos, com as contas
que de agora em diante não tinha com que
dividir.
Depois de um tempo imaginou uma
multidão de pessoas ao redor do seu corpo em
frangalhos, viu nelas o olhar de pavor, algumas
afastavam as crianças para que não olhassem a
cena de horror e não lhes causassem traumas.
Viu também seu velório e novamente uma
multidão, muitos arranjos de flores espalhados
por todos os cantos e corredores. Viu sua mãe e
seus irmãos que choravam desesperados, mas
não o viu no caixão porque estava lacrado. Neste
exato instante sentiu muita pena de sua mãe e
seus irmãos e pensou. Pobres pessoas que me
amam não merecem que eu faça isso. Lembrou
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
que um dos seus quatro irmãos lhe disse como
incentivo, há uns anos atrás após ler um conto
que ele havia escrito.
_Porque que você não escreve? Vai te
ajudar a não ficar com caraminholas na cabeça.
Nota-se neste conto que você tem muito talento
para escrever.
Não mais olhou para baixo e focou seu
olhar para a rua e os transeuntes no seu campo
de visão o que fez diluir seus pensamentos de
suicida.
Na manha seguinte, voltou à sacada,
lembrou-se da noite anterior e não olhou para
baixo, e mais uma vez pensou no irmão
incentivador. Também onde poderia ter
guardado um caderno de duzentas folhas que
havia comprado. Relembrou que para escrever
teria que ser um observador de prontidão das
cenas do cotidiano. Ainda na sacada, olhou
daquela altura, do décimo andar, viu há uns cem
metros de distancia, um carro vermelho que
passava lentamente naquele momento com a
lanterna acesa e se aproximava de um semáforo
que estava fechado. No interior do veiculo, dois
casais de jovens. Percebeu que iriam para algum
lugar do litoral porque no suporte sobre o teto
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
do veiculo havia duas pranchas de surfe. Na
esquina uma banca de jornal e algumas
manchetes dos matutinos consumiam a atenção
de um homem pardo. Ali, ereto e estável. O traje
revelava um uniforme de portaria de condomínio.
Atrás deste homem imóvel caminhava uma
adolescente com seu cachorro de estimação.
Mais à frente dois prédios recém construídos
recebiam todos os acabamentos necessários para
cada um dos dezenove andares. Alguns pombos
se alimentavam dos detritos de um lado da
calçada, do outro lado da rua uma mãe segurava
seu filho pelas mãos, e davam os primeiros
passos para atravessar a rua. De repente
Augusto olhou para as nuvens e um helicóptero
cruzou ligeiramente rumo ao Campo de Marte.
Quando retornou seu olhar as ruas, o semáforo
estava aberto o carro e seus quatro ocupantes
desapareceram, o homem que lia as manchetes
deu lugar a outro sem uniforme, a menina e o
cachorro desapareceram, a mãe e seu filho já
haviam atravessado a rua e os pombos voavam
espantados pela criança que não mais segurava
a mão da mãe.
Voltou para o interior do apartamento,
tomou seu café acompanhado de queijo branco,
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metade de mamão papaia que sobrara do dia
anterior, um pão francês dividido ao meio que
aqueceu na tostadeira. Enquanto fazia sua
primeira refeição, percebeu que seus hábitos
mais simples e rotineiros poderiam fazer parte
das suas anotações desde que os recheasse de
teor, conteúdo e informações.
Durante o café tentou imaginar outra
mulher a sua frente, fazendo-lhe companhia
neste e nos outros desjejuns, e com quem
também pudesse dividir o apartamento, as
tolhas, os travesseiros, as escovas de dente e os
sabonetes, o condomínio, o aluguel, a diarista
que fazia faxina nas sextas, o telefone, a conta
de energia. Alguém para ouvir seus segredos,
saborear seus pratos, alguém de fato para que
as vizinhas não lhe perguntassem mais o
paradeiro de Carmem. Resolveu interferir em
seus devaneios quando surgiu a lembrança da
esposa fujona em seus pensamentos. Na
cozinha, lavou o pouco de louça do jantar que
restava sobre a pia e caminhou ate o banheiro.
Entrou debaixo do chuveiro depois de se
barbear e se despir. Enquanto a água quente
caia sobre seu corpo já ensaboado, deu inicio a
uma sessão de massagens com as duas mãos
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
em seu pênis e testículos. Totalmente brancos de
espumas, Augusto sentiu o principio de ereção e
começou a se masturbar, o que deixou mais
enrijecido o membro. Lembrou-se de Lourdes,
uma amiga que trabalha com ele na redação.
Que tem um corpo bem torneado, uma bela
bunda arrebitada, loira de um metro setenta,
cabelos lisos e compridos. Imaginou ele e ela a
sós na sua sala. Com os olhos fechados e o
prazer te consumindo, foi aumentando os
movimentos da mão que envolvia seu pênis cada
vez mais duro. Tirou cada peça de roupa na sua
imaginação, virou a de costas num movimento
brusco de desejo, fantasiou sobre a bunda só de
calcinha preta sobre a pele branca, fez com que
ela debruçasse sobre a mesa, afastou a calcinha
para um dos lados e penetrou com força. No vai
e vem dos movimentos chegou à ejaculação.
Quando abriu os olhos, ainda deu tempo de
notar o restante do esperma sendo diluído na
água quente do chuveiro, esvaindo no ralo do
esgoto.
Tranqüilamente, se vestiu para o trabalho
com uma camisa de micro fibra creme, um
casaco marrom de couro de antílope, uma calça
marrom do mesmo tecido da camisa, nos pés um
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
sapato confortável da mesma cor da camisa.
Mas, quando escolheu a cueca lembrou-se de
momentos atrás no chuveiro e boa parte da
formidável nudez de Lourdes voltou ao seu
pensamento fazendo com que escolhesse a
cueca que estivesse em melhor estado. E disse
consigo mesmo.
_Tenho que transar com ela, de qualquer
jeito.
Porem, antes de sair recolheu todos os
porta retratos espalhados pela casa e nas
gavetas, todas as fotos que Carmem estava em
close, também alguns relicários. Pensou em
destruí-los, queimá-los ou jogá-los no lixo, mas
não o fez. Refletiu com sensatez que tomando
esta decisão poderia alimentar um ódio que
também não te ajudaria a limpar dos seus
pensamentos, alguém que lhe omitiu muitos
fatos da sua personalidade. Colocou-os em uma
caixa. Estava decidido a enviar para o endereço
da mãe, em São Luis no Maranhão. Um lugar
que certamente um dia visitaria quando
retornasse a colocar os pés em território
brasileiro.
Augusto abriu a porta do apartamento para
o saguão dos elevadores. Sua vizinha, dona Elza
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
ouviu o barulho das chaves ao fechar a porta, e
saiu de prontidão. Ela trajava um hobe de
algodão lilás totalmente desbotado com algumas
flores indecifráveis quase do mesmo tom, na
cabeça um lenço multicor de seda javanesa
cobrindo os bobes. Para disfarçar um saco de
lixo nas mãos como que por coincidência estava
ela ali no mesmo momento quase que todos os
dias e com a mesma pergunta:
_Como vai a Carmem sua esposa? Senhor
Augusto.
Augusto sempre dava a mesma resposta.
Já dentro do elevador riu com ele mesmo numa
inesperada
gargalhada,
ao
pensar
que
necessitava aparecer com outra mulher para que
dona Elza mudasse de pergunta e que também
deixaria a cabeça dela mais perturbada com
tamanha bisbilhotice.
Do prédio ate o ponto de ônibus não tinha
mais que duzentos metros de caminhada, um
curto caminho que fazia com muita atenção, pois
o que não faltava era fezes de cachorro
espalhadas estrategicamente pelas calçadas. No
meio do caminho Augusto se deteve às
manchetes dos jornais na mesma banca onde o
homem de uniforme de condomínio estava há
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
horas atrás. No jornal da empresa que trabalha e
que colaborou para que esses exemplares
estivessem agora em circulação, não continha
nenhuma matéria que havia trabalhado no dia
anterior pelo menos na capa, o que obrigou a
comprar um exemplar para ler os cadernos, se
no ônibus tivesse um lugar para sentar-se. No
ponto de ônibus em pé deu uma folheada e leu
no caderno de ciências a matéria que publicaram
com a reportagem que havia feito com um
professor de biologia marinha da universidade
federal do Rio de Janeiro, sobre a degradação
ambiental da costa brasileira.
O ônibus parou. E Augusto subiu, passou
pela catraca e estacionou, próxima a porta de
saída. O veiculo não estava completamente
lotado como lata de sardinha, mas não deu para
ler seu jornal como havia planejado, a não ser
que algum passageiro descesse nos pontos
seguintes. De repente do nada um perfume
feminino de tirar o fôlego de qualquer homem,
adentra pelas narinas. Ergueu o nariz como um
cão que fareja sua caça no meio da floresta.
Augusto se deparou com uma mulher que usava
um vestido (tomara que caia) branco de crepe.
Muito bem cortado, para aquele corpo da cor
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
jambo caprichosamente delineado. Os seios e as
nádegas esculpidos pelos deuses, mas o melhor
daquela fascinante imagem era a transparência
do vestido que denotava uma calcinha fio dental
creme. Com o balanço do ônibus nas ruas
esburacadas
e
remendadas
foram
se
aproximando como um magnetismo carnal.
Augusto recebeu como um leve choque, o
primeiro toque da região lombar da moça, com a
região pubiana dele, que consideravelmente
aceitou os toques que se tornaram repetitivos.
Que por sua vez sentiu as vibrações receptivas
do maior órgão de seu corpo.
A tristeza o consumiu quando a bela
mulher desceu do ônibus em alguns pontos
depois. Surpreendeu-se com o amor ao primeiro
toque e por não ter visto a fisionomia que com
toda certeza ficaria impressa no seu córtex
detalhadamente. Porem o que restou foi o que
ele deixou anotado, e o seu olhar dando tchau
para aquele perfil magistral que se distanciava
lentamente em meio à multidão próximo ao
metro.
Augusto terminou seu percurso em um
profundo transe, meio embriagado pelo êxtase
de ilusão, em um momento tão exclusivo que
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
talvez jamais se repetisse com tanta riqueza de
detalhes. Iniciando pelo aroma do perfume
feminino indescritível, passando pelo tato nos
toques do sensível corpo, chegando ate a
profunda visão totalmente minuciosa. Ate pensou
que se voltasse a viver com outra mulher teria
que ter todas estas qualidades que do nada
surgiu em sua frente como um trovão no meio
da tempestade ou mesmo um sol depois dela
devastar uma cidade inteira. Mas uma excelente
surpresa que tinha absoluta certeza de merecer
como um admirador totalmente profano da
beleza feminina.
Quando chegou à redação do jornal pensou
em Lourdes, no banho matinal, a espuma do
sabonete, o delírio sobre o lingerie minúsculo,
mas quando se defrontou com ela percebeu em
seu olhar que não estava em um dos seus
melhores dias. Algo lhe deixara de mau humor e
que fez com que Augusto refletisse, e que
manter certa distancia era o mais sensato a fazer
naquele momento. Lourdes usava um conjunto
muito bem justo ao corpo de tailler caqui, a saia
que se estendia abaixo do joelho tinha uma
fenda na frente que misteriosamente terminava
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
no meio das coxas, coberta por uma meia calça
cor da pele.
À tarde se foi ligeira e metade da noite de
trabalho também e a coragem não despontava
no homem necessitado, quase a beira da
loucura. Quase no final do expediente o redator
chefe mais o editor chefe saíram para uma
reunião com o diretor do jornal no prédio da
central, num conjunto em frente. Augusto
rapidamente percebeu que era sua grande
chance de descobrir todos os segredos de
Lourdes, e que talvez oportunidade como aquela
não acontecesse nos próximos meses. Porem,
enquanto decidia em fazer um convite e abrir
caminho para o seu objetivo maior, o interfone
tocou anunciando para a sua frustração o
namorado de Lourdes, que veio buscá-la.
Augusto em desespero deu um tapa na mesa e
vociferou três vezes.
_Não acredito.
A jovem moça se assustou. Percebendo em
sua face tamanha decepção, ela perguntou o que
estava acontecendo, mas despistando-a disse
que depois falaria a respeito. O que acionou nela
uma intensa curiosidade.
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Quando Augusto terminou de redigir um
extenso texto tão explorado pelo jornalismo
sobre (a influencia da tv na sociedade), Lourdes
não mais se encontrava no escritório. Colocou
sua mesa em ordem, desligou seu computador e
as luzes, e saiu rumo a um bar encontrar os
amigos, pois a noite era propicia a um bom papo
acompanhado de um gelado chopps.
Nos dias de Augusto, as horas eram
cronometradas como uma disputa esportiva. Só
que de um lado, estava ele, completamente
desorientado e do outro, a dura solidão
querendo derrotá-lo ao menor vacilo de sua
parte. E nesse momento mal resolvido que
atravessava, o sexo era o único subterfúgio para
este guerreiro despreparado. Despreparado,
porque jamais em sua vida ficara sozinho, longe
da família, e rejeitado pela mulher que realmente
amava. As horas lhes consumiam, minuto a
minuto não dando lhe um instante de trégua.
Porem, depois que em determinados intervalos
fazia suas anotações no caderno ou no
computador percebeu que poderia manipular
neste jogo que estava envolvido ate o pescoço, e
que poderia inverter este quadro que ate então
acontecia em sua vida. Ele era constantemente
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
manipulado pelo chefe no jornal, pela esposa
omissa, pela mãe, quando exigia dele um bom
comportamento e que fosse a missa todos os
domingos. Augusto começava a gostar de jogar
com a vida e estava disposto como um barco
sem rumo, consertar seu leme e traçar ele
mesmo sua carta náutica. O que estava por traz
desta mudança tão repentina, depois de longas
décadas de submissão? Eram os poucos
momentos de anotações, com suas crônicas,
seus contos e os belos romances que eram
expulsos do seu criativo cérebro, como fogos de
artifício colorido em meio à escuridão que a
solidão o submetera por negligencia dele próprio.
Os momentos criativos de anotações foram
crescendo por necessidade instintiva do simples
prazer. O prazer de ser Deus. Criar personagens
torná-los forte ou fraco, podia matá-los ou
transformá-los em assassinos se bem quisesse,
poderia criá-lo gentil e cavalheiro, ou canalha e
covarde, poderia colocá-lo numa casa, num
castelo, num presídio, num jardim, num navio e
em qualquer oceano, país ou cidade. Os
momentos
criativos
foram
tomando
intensamente seu tempo, mas não só
acresceram em sua personalidade frágil, também
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
estava completamente envolvido e inebriado pelo
prazer que só os autores têm o privilégio de
sentir o que escreve.
Da madrugada silenciosa, emergia lapidado
o mais brilhante e criativo do seu dom em todos
os gêneros que estavam embutidos e vivendo na
esfera dos personagens que criava. Da mente
fértil como terra cuidada brotavam interessantes
textos e colhia no final excelente historias.
A madrugada já se ia. Passava-se das duas
horas quando o telefone tocou. Extremamente
curioso ao atender, Augusto ficou surpreso ao
ouvir do outro lado da linha à voz de Lourdes,
questionando o que houve no trabalho que lhe
deixara tão frustrado. Foi preciso e direto ao
assunto, dizendo que ia convidá-la para jantarem
em um lugar que serviam ostras frescas,
camarão rosa flambado com aspargos ao molho
de manga, com arroz cosido no marisco. Lourdes
deixou-o infinitamente ansioso ao dizer que
poderia ir à noite seguinte, e complementando
que seu namorado viajaria para um intercambio
em Nova York durante sessenta dias. Mas o que
deixou ela de mau humor na tarde anterior, fora
que ele só deu o parecer da viagem três dias
antes da partida e que isso não era uma atitude
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
que esperava de um homem que mereça sua
fidelidade. Sobre a palavra fidelidade refletiu por
minutos e o que ficou foi o convite antecipado
que ela fizera acintosamente.
Antes de se deitar Augusto foi ate a
sacada, enquanto fumava um cigarro olhou as
ruas próximas e tentou encontrar cenas na
madrugada vazia. E apenas viu gatos que
perambulavam pelos telhados e ate testemunhou
uma estridente copulação entre eles. Os gemidos
ecoavam no silencio da madrugada erma de
transeuntes, que de vez em quando um carro
cruzava seu atento olhar ou um vôo internacional
no céu estrelado preparava seu trem de pouso
para aterrissagem no aeroporto internacional de
Guarulhos.
No dia seguinte, Augusto não tomou seu
café em casa como habitualmente. Saiu antes
das dez para fazer uma caminhada no horto
florestal por uma hora. Respirou um pouco de ar
puro da serra da Cantareira, alimentou os
macacos viciados em bananas. Depois tomou seu
café expresso próximo ao seu apartamento, mas
muito ansioso pelo que vinha pela frente. A
manhã estava terminando, porem restava à
tarde inteira e o encontro com Lourdes no final
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
da noite lhe dava a esperança que no momento
era o mais esperado depois da repentina partida
de Carmem. Talvez fosse sua noite mais intensa
sexualmente, pensou ele. E durante o banho não
pensou em lingerie, nem sabonete, nem espuma.
Tentou lembrar letras de canções da infância
para desviar seu pensamento para que
ansiedade não o transformasse em uma vitima
vulnerável e deixasse escapar uma chance tão
formidável. Ele havia aprendido num curso de
estratégia de comercio que qualquer espécie de
necessidade faz com que cometemos erros
grotescos
nos
precipitando.
Pensava
incessantemente num plano de abordagem
convincente para não assustar sua presa que
também sofria de outra necessidade diferente da
sua. O que, todavia estava vulnerável e sensível
com o modo desonesto que o namorado havia
demonstrado. Talvez honestidade não seja
coerente com o fato e sim o segredo que
manteve ate três dias antes de viajar. O mesmo
segredo que Carmem manteve da sua vigem
para Londres com o amigo de trabalho.
O segredo mais expressivo que rondava o
cérebro de Augusto era o que envolvia o suicídio
de seu pai e que levou junto consigo ao tumulo,
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
pois ninguém descobriu o verdadeiro motivo
desta extrema atitude. E se alguém sabe guarda
esse segredo com ele a sete chaves. Um mês
antes seu pai havia feito vários exames que seu
medico requisitou e todos os resultados foram
normais. Pagou suas dividas, transferiu seu
dinheiro para as contas da sua mãe e os três
imóveis também transferiu para nome dela para
não ter despesas com o inventario. Apenas o
terreno no cemitério que havia comprado uns
sete anos antes do episodio. Quando todos os
pendentes estavam resolvidos amarrou uma
corda no galho do pé de manga antigo no fundo
do quintal e se enforcou. Os amigos nada sabiam
e os irmãos do seu pai também questionados
não tinham nenhuma informação que indicasse
um pequeno caminho para desvendar o que teria
levado um homem de trinta e cinco anos,
saudável, sem dividas, uma família perfeita a
tomar estranha e extrema decisão. Planejada
sem esquecer nenhum detalhe. Augusto tentou
descobrir o que aconteceu com seu pai. Suas
investigações se basearam em fatos relatados a
ele por sua mãe e os tios, pois quando ocorreu à
tragédia era apenas uma criança de sete anos.
Que o tio irmão da sua mãe e vizinho, o primeiro
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
a encontrar o corpo cuidou para que não
traumatizasse as crianças. A cena do homem
pendurado no galho do pé de manga.
Uma parte do segredo Augusto descobriu
no final da adolescência, quando amarrou uma
corda no mesmo galho do pé de manga, sua
mãe quando viu a cena saiu desesperada na
direção dele, e gritando.
_Não faça isso pelo amor de Deus.
Ela só se acalmou quando lhe disse que era
para fazer um balanço e brincar com os amigos.
Também na adolescência sua mãe
mantinha segredo do seu novo namorado, com
quem depois passou a morar na mesma casa
tornando-se seu padrasto o que Augusto nunca o
aceitou para tomar o lugar de seu pai em seu
frágil coração envolvido de mistérios insolúveis.
Outro segredo misterioso nem tanto expressivo,
mas de cunho pré-conceituoso por parte de
Augusto que assim via a relação do editor chefe
e o redator chefe: chegavam juntos no mesmo
carro pela manha no trabalho, saiam para
almoçar a mesma hora, viajavam juntos e
usavam a mesma sala para trabalhar. Só não
tinham o mesmo sobrenome, porem um
28
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
entendimento na relação de causar inveja a
muitos casais heterossexuais.
Para Augusto o segredo das pessoas que te
cercavam lhe transformou em um homem,
sobretudo reflexivo: todas as vezes que conhecia
alguém passava horas pensando quais seriam os
segredos
possíveis
de
existir
naquele
determinado
tipo
de
personalidade.
Na
personalidade de Lourdes descobriu sua doutrina
religiosa imposta, talvez pela família ou o
namorado, porque deixava pequenos indícios,
como: chegar ao trabalho de cabelos presos e na
face nenhum vestígio de maquilagem, a calcinha
colocada normalmente cobrindo mais da metade
dos glúteos. Porem, depois que ia a primeira vez
ao banheiro, começavam as transformações: a
calcinha era primeira a ser introduzido nas
nádegas, talvez aquele pequeno volume de pano
enrolado lhe desse algum tipo de êxtase sentada
em sua cadeira. Depois soltava os cabelos que
ficavam esvoaçantes, e bem escovados lhe
deixava com aquele ar de mulher fatal; por
ultimo após o almoço notava-se os olhos
castanhos e expressivos maquiados com
delineador e sombra, e nos lábios carnudos um
batom dourado terminava a metamorfose e
29
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
assim mostrando a verdadeira mulher que estava
aprisionada dentro de Lourdes.
O fato é que os segredos sempre fizeram,
dele ao mesmo tempo um expectador implacável
e vitima passiva nesta brincadeira de escondeesconde. O que talvez ele não esperasse, porque
não direcionou seus pensamentos para esta
determinada pessoa que também imaginou ou
supunha haver segredos que o envolviam. Este
homem, também como ele, passava horas
tentando descobrir os segredos das pessoas que
o cercavam; porem, para este ser em especial,
não havia suposições, por ter problemas crônicos
neurológicos obsessivos; ele era convicto de
haver degredos entre as pessoas para destruí-lo
ou enganá-lo. Sua neurose de perseguição
transformava sua personalidade em monstro em
momentos de insensatez. O pior estava prestes
acontecer, e Augusto nunca imaginou ou passou
por sua minuciosa cabeça pesquisadora, que
outra pessoa estava tentando descobrir seus
bem guardados segredos.
A noite chegou suave e sem ventos, não
havia nuvens no céu e as estrelas cintilavam no
infinito misterioso. O expediente na redação
terminou sem muitas atribulações e chateações;
30
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
apenas as transformações na parte visual de
Lourdes acompanhada pelo olhar atento de
Augusto, que por sua vez se certificou do
encontro para o jantar entre eles no final da
noite.
Augusto
foi
caminhando
os
doze
quarteirões que separavam a redação ate o
restaurante; também foi ele o primeiro a chegar
ao restaurante de especialidade em pratos do
mediterrâneo. Escolheu uma mesa não muito
longe da porta de entrada, e nem escondida ao
fundo do amplo salão forrado por um piso de
madeira nobre e escura bem encerado. O lugar,
um cheiro de cozinha limpa e comida bem feita
no ar, aumentava a confiança e o apetite. O
grande salão era iluminado por quatro lustres na
forma de timão de madeira, deitado e pendurado
por correntes, com seis castiçais. Nas paredes:
coloridas aquarelas de vila de pescadores
tecendo suas redes sobre a orla deslumbrante e
rústica do litoral brasileiro. Os garçons trajavam
um avental branco que cobria as calças azuis; a
camisa, os botões, corte e cor no estilo uniforme
de marinheiro.
Quando Lourdes chegou, um dos garçons
acompanhou-a ate a mesa que se encontrava
31
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Augusto, que radiante deixou seu belo sorriso de
contentamento, por ver como estava linda fora
daquele ambiente de trabalho. A mulher que
estava aprisionada naquela redoma ficou mais
transparente ao retribuir com um enorme
sorriso. Sentaram-se em cadeiras de madeira,
com almofadas, revestidas com tecido de
algodão azul céu. Em seguida o garçom serviu o
vinho branco italiano em estilo clássico: primeiro
o homem degusta uma pequena dose.
Aprovando o bom vinho, Augusto autorizou-o a
prosseguir completando as taças. Quando
brindavam, após o garçom se retirar, de repente
apareceu com uma pistola automática em punho,
o namorado de Lourdes completamente
enlouquecido; antes de efetuar vários disparos
na direção do casal, gritou por duas vezes a
mesma frase.
_Vou acabar com os seus segredos. Seus
mentirosos.
Lourdes não resistiu aos ferimentos
causados pelos tiros e veio falecer dentro do
restaurante; porem, Augusto foi socorrido e teve
um pouco mais de sorte; os dois tiros que o
atingiram
não
afetaram
nenhum
órgão
importante.
32
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Recuperando-se em três semanas voltou a
escrever com mais sensibilidade que antes do
fato ocorrido, muito mais envolvido no que diz a
respeito sobre os segredos alheios.
33
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
O juiz filosófico
Após bater varias vezes o martelo sobre a
mesa, o Meritíssimo juiz da comarca da cidade
de Albuquerque, Clemente Soares Sobrinho se
pronuncia.
_Silêncio, por favor... Silêncio, por favor...
Vamos dar inicio a este julgamento.
Deu aquele olhar panorâmico habitual a
todos os presentes do auditório e mexeu nos
papeis sobre a bancada e começou o julgamento
mais filosófico que se tem noticia na historia.
_Ao refletir sobre o amor. Senhores e
senhoras, presentes. Descobri que é quase
impossível escrever deste amor, que é
demagogo, é egoísta e possessivo. Parece-me
que as palavras mudaram de rumo ao longo dos
tempos, é claro que falo dos termos técnicos da
palavra obviamente bem escrita.
Pegou o copo de água sobre a bancada,
deu um pequeno gole e continuou.
_Senhores e senhoras presentes. Os
cidadãos comuns, os promotores, os advogados,
as
testemunhas
e
os
jurados.
Peço
34
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
profundamente que analisem tudo que for dito a
respeito dos laudos do processo do réu, senhor
Adamastor Alves para que possam tirar justas
conclusões.
O juiz fez uma breve pausa focando seus
olhos para o réu, em seguida perguntou ao
mesmo.
_Senhor Adamastor Alves foi o senhor o
autor dos disparos contra a senhora Doralice
Castro Alves e ocasionou a morte da mesma?
Enquanto respondia as lagrimas desceram
pelas pálpebras, atravessando o rosto e sumiu
pelo colarinho da camisa mostarda de casimira
que o réu trajava.
_Sim. Eu a matei senhor juiz.
O juiz observando o réu sobre as lentes
dos óculos de leitura que usava deu seqüência à
bateria de perguntas.
_Qual motivo que levou o senhor atirar em
sua esposa?
_Foi tudo pelo amor extremamente forte
que sinto por ela.
O meritíssimo juiz passando uma das mãos
sobre vasta barba grisalha que cobria toda face
alva, seqüência gastando seu nobre e vasto
vocabulário, e pergunta ao réu.
35
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Senhor Adamastor me responda. Como o
senhor irá amá-la, sendo que sua esposa está
morta?
Adamastor omitiu a resposta, abaixou a
cabeça, mas não conseguiu segurar os soluços
do choro reprimido.
O juiz comovido com a extensão do
sacrilégio que a mente insana de Adamastor o
submeteu e filosofou para os presentes do
plenário.
_O amor não é soberania, nem
supremacia, nem exclusividade. O amor pode ser
fragrância ou feromonio se assim quiser. O amor
não pode ser desejo porque desejo é
exclusivista, é egoísta.
O meritíssimo juiz fez uma pausa, tomou
mais um gole de água e indagou sobre o tema
mal entendido por vários presentes que estavam
ali.
_De que maneira era esse amor, que o
senhor sentia pela sua esposa? Responda-me
seu Adamastor.
Adamastor levantou rapidamente sua
cabeça, olhou para o juiz e abaixou novamente
antes de responder.
36
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Eu sentia aquele cheiro bom em Doralice,
me dava uma vontade forte de estar do lado
dela. Também me matava de angustia o medo
de perdê-la para sempre.
O juiz continua usando em vão seu índice
convencional de perguntas como que brincando
com as palavras num circo de tristeza.
_Se o senhor tinha tanto medo de perdê-la
para sempre, porque então fez esta atrocidade
com sua mulher?
Adamastor enxugou as lagrimas que
desciam sobre a face, com as duas mãos que
estavam algemadas e murmurou.
_Porque ela destruiu todos os meus
sonhos, simplesmente por algumas noites de
delírio e devaneio. Eu sonhava com os nossos
filhos que iríamos ter, correndo pelos corredores
da casa que estou construindo; sonhava com
eles brincando no quintal, ate projetei uma
gangorra ao lado do muro próximo ao
caramanchão, havia também escolhido o galho
do abacateiro que amarraria as cordas do
balanço.
Mais uma vez o silencio de Adamastor
ecoou no plenário em meio ao murmúrio dos
presentes que estavam no julgamento. Mais uma
37
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
vez o juiz proliferou sua filosofia sobre o genuíno
amor.
_O amor pode ser sonho porque está na
alma e na inconsciência, pois ela não é racional e
o racional é curioso e a curiosidade é incerta, e
onde há incerteza não reside o amor. O amor
que declamamos não é o amor com o qual
nascemos, o amor com o qual operamos é o
mesmo amor com o qual fomos fecundados.
De repente se postou de pé o advogado de
defesa e pediu licença ao meritíssimo para fazer
direito de seu cliente alguém para defendê-lo.
_Senhor meritíssimo, e jurados presentes.
Quero dizer que induzidamente, meu cliente foi
torturado emocionalmente pela esposa antes de
cometer este erro brutal. Há mais de quatro anos
sua esposa observava o vizinho pela janela do
seu quarto. E não se incomodava que seu
Adamastor a flagrasse desta traição psicológica.
Há quatro anos, senhores e senhoras! Há quatro
anos! A esposa estava torturando meu cliente.
Do lado direito da bancado do seu juiz o
advogado de acusação se colocou de pé
rapidamente e pediu o direito de falar e o juiz o
autorizou de prontidão.
38
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Senhores e senhoras. Quero deixar bem
evidente que não há nenhuma prova de
adultério, sendo que apenas era um desejo
virtual da vitima. Eu pergunto a todos os
presentes neste plenário. Existe algum pecado
achar uma pessoa bela e atraente? Por este ato
tão sublime, alguém se acha no direito de tirar a
vida de alguém que apenas observa uma
pessoa?
Neste momento todos resolveram falar ao
mesmo tempo o que fez o meritíssimo bater seu
martelo varias vezes e dizer.
_Silencio, por favor. Silencio por favor.
Aguardou uns instantes para que o
falatório chegasse ao fim e depois prosseguiu
com suas sabias palavras.
_O amor não é flerte porque flerte é
imagem. E imagem é matéria ou corpo. O corpo
não é essência! O amor não pode ser projetado
ou dissipado em palavras, porque o amor é pura
ação instintiva e as palavras são desejos do
racional. O racional também é qualitativo e
quantitativo.
O amor pode ser trabalho se o trabalho for
dom, mas se o trabalho for induzido provocará
conflitos, onde há conflitos não há paz.
39
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Novamente o advogado de defesa pediu
licença e se expôs de maneira pausada ao falar
para
o
publico
presente
no
plenário
completamente lotado.
_Como disse Descartes, certo filosofo
gregoriano: penso logo existo. O simples fato,
mas complexo de pensar, fez com que
descobríssemos que o maior problema da
humanidade ao longo da historia: seja a falta de
impressão, expressão, coerência e inteligência do
interior, da alma, do ego como se diz em
psicologia. Vou tentar ser mais claro possível.
Penso que: quando o interior é agredido ou
quando nascemos com defeitos genéticos,
erramos em nosso comportamento externo e
muitas vezes nossas atitudes podem ser
extremistas, como aconteceu com meu cliente.
Por ultimo quero dizer que meu cliente foi
agredido, aterrorizado no seu interior, na sua
alma, no seu ego. Senhoras e senhores, jurados,
meritíssimo não quero transparecer a vocês que
meu cliente seja vitima, mas quero deixar bem
evidente que também não é somente culpado
por seu ato. Acredito que o conduziram, o
induziram a este ato repugnante. Obrigado.
40
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Mais uma vez o juiz foi obrigado a intervir
sobre o falatório que se prosseguiu ao termino
dos argumentos do advogado de defesa e seu
martelo ressoou na sala do plenário. O advogado
de acusação levantou pediu licença ao juiz, este
lhe concedeu e com veemência nos argumentos
vociferou.
_O amigo defensor quer que acreditemos
que existam duas pessoas dentro de nós: uma
que é agredida; e outra quem realmente agride.
Uma pessoa que sonha e a outra que se realiza.
Uma pessoa que é visível de corpo real, e outra
pessoa da qual não enxergamos nem a cor dos
seus cabelos. O amigo de trabalho e defensor
quer que acreditemos, que se uma pessoa se
queimar será a outra quem ira sofrer. Se uma
pessoa for dura e resistente protegerá a outra
oculta dentro de nós que é frágil e indefesa.
O advogado caminhou ate a tribuna dos
jurados e fixando o olhar em um deles, concluiu,
questionando.
_Como agora. Neste instante. Estou
olhando para você ou supostamente para esta
pessoa que existe dentro de você?
41
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Olhou para outro jurado desta vez uma
mulher loira sentada na primeira fileira. Mais
uma vez questionou.
_Eu estou falando e olhando para a
senhorita ou para esta pessoa que o meu amigo
de trabalho quer que acreditem existir dentro de
você?
Enquanto voltava ao seu lugar reservado
respirou profundamente, porem antes de sentarse concluiu.
_Senhores e senhoras, jurados e senhor
meritíssimo. Pergunto como leigo que sou deste
profundo assunto: estamos aqui julgando
substancialmente uma pessoa que exista ou algo
que não possamos nunca aprisionar pelos seus
atos? Obrigado.
Mais uma vez o juiz e seu martelo entraram
em cena e mais uma vez conteve o murmúrio
ecoante do plenário e filosofou
_O Amor pode ser duro como a pedra,
quente como fogo, líquido como água, invisível
como ar, o amor não pode ser aprisionado ou
retido, transformado, porque não é conteúdo e
conteúdo é substância, sendo que substâncias
são matérias.
42
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
O amor não é fraco nem forte, nem feio
tão pouco bonito, porque ele simplesmente nos
alimenta a alma. O amor é escravo da burrice
racional de todo aquele, que se julga ser um ser
humano. O ser humano é sensível como a
poesia. Poesia são palavras, palavras é literatura.
43
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Manto da embriaguez
Enquanto caminhávamos pela rua de
paralelepípedos mais antiga da pequena cidade
dos Alpes dos Mendonças, que fica no extremo
da zona leste na grande São Paulo. Eu e meu
amigo Lutero conversávamos sobre diversos
assuntos num dialogo fluente como sempre
acontecia em nossos encontros depois da saída
do trabalho. Lutero tinha a capacidade de
domínio sobre a inteligência privilegiada,
herdada do pai farmacêutico pioneiro na cidade.
O pai de Lutero havia adquirido certo prestigio
no município, decidindo assim concorrer ao cargo
de prefeito depois de ter ocupado uma cadeira
na câmara de vereadores. Seu oponente era um
candidato forte; um imigrante francês que tinha
a má reputação entre os moralistas por gostar de
garotos.
Porem, o que uns vêem, outros não têm
este mesmo ponto de vista. O pai de Lutero
perdeu nas urnas uma eleição que pensou que
estava ganha, e para piorar, por um numero
expressivo de votos. Lutero e eu: sentados na
44
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
sarjeta, enquanto fumávamos um cigarro
brincávamos com nossas idéias que com o tempo
não se consumiu. Dizia em tom irônico: que seu
pai nunca mais foi o mesmo, depois de ser
derrotado por um homossexual. Eu acredito,
mesmo que ele esquecesse os homens da
minúscula cidade de onze mil habitantes, que
gostavam de ver o circo pegar fogo, não
deixariam esquecer, com chacotas.
Depois de acender outro cigarro, Lutero
continuou com suas declarações ironizadas,
dizendo.
_Como um homem honesto, pai de família,
católico e devoto de nossa Senhora, em plena
década de setenta pode perder uma eleição ao
cargo mais respeitável dentro do município para
uma bicha francesa? E porque os eleitores
confiaram na bicha francesa, para ser o
representante mais importante daquela cidade?
Saímos daquela sarjeta que o esgoto
exalava um odor nada bom; e para que no
dialogo não associasse o cheiro de dejetos que
fluía pelo meio fio. Sentamos no banco da praça
da matriz bem enfrente a porta da igreja. Era
final de tarde e nada atrapalhava a seqüência do
papo, apenas os pardais numa algazarra em
45
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
coro, que procuravam abrigo nas arvores. Tentei
esclarecer algo que em minhas ideais
borbulhavam há anos, sem ter coragem de dizer
a alguém com receio de associarem o conceito à
loucura.
_Eu nunca li nada a respeito dentro da
historia de quando surgiu o homossexualismo;
temos apenas relatos folclóricos de que o
imperador romano Nero, o imperador Napoleão
Bonaparte e o pintor Leonardo da Vinci eram
homossexuais. A ciência nada nos explica a
respeito, o que me leva crer que seja uma
mutação genética. O caminho que os genes
decidiu seguir para poder se salvar, enquanto
estiver usando a espécie humana como
hospedeiro.
Lutero arregalou seus olhos vermelhos de
tanta fumaça e quase caiu do banco, dizendo
que de fato eu estava ficando louco, mas me
pediu para dar seqüência ao raciocínio quando
salientei, que o que estava por vir era muito
mais fora da capacidade do pensamento da
mente humana. E assim continuei o raciocínio
que despertou sua vasta sabedoria, dentro do
contemporâneo.
46
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Alguns fatos também me levam crer que
no futuro bem distante, nos transformaremos em
hermafroditas.
_Pode continuar que sou seu ouvidor de
plantão.
Antes de continuar pude ver em Lutero seu
olhar de sarcasmo e curiosidade por cutucar o
machismo
da
masculinidade
pré-potente
humana.
_O numero acentuado de gays vem numa
crescente nos últimos séculos. Não me venha
dizer que o pré-conceito diminuiu e que milhões
deles decidiram colocar a cara para baterem.
Estou cansado deste discurso sem embasamento
das pesquisas.
Meu amigo ouvidor concordou, mas não
deixou de rir. Também um simples detalhe que
eu evidentemente esperava, diante do seu
emblemático passado paternal do catastrófico da
politicagem.
_Fique sabendo o senhor que há um
acompanhamento minucioso de pesquisadores
na área da genética preocupados com
desenvolvimento sexual humano, mas por
viverem sobre o manto da cultura não
estabelecem a união dos fatos. As mulheres
47
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
descobriram nas ultimas décadas que têm
orgasmos, também que em ambos os sexos
existem a produção de hormônios masculinos e
femininos (testosteronas e progesteronas)
respectivamente.
_Mas, isso o mundo inteiro sabe. Meu caro
amigo!
_Porem, muita gente no mundo não sabe
que nos gays há um inverso na produção destes
hormônios. Os gays do sexo feminino há uma
produção maior de testosterona masculino, e os
gays do sexo masculino a produção de
progesterona é acentuada.
_Isso é um fato novo para os meus
ouvidos.
_Ao mesmo tempo, que existe um
acompanhamento do desenvolvimento sexual
por parte da ciência, os genes também vem
direcionando
e
interferindo
no
nosso
desenvolvimento orgânico sexual. Os genes
sempre deixaram indícios de que eles são os
sistemas centrais da matéria orgânica e as
síndromes são esses exercícios ou placas de
informações para qual o caminho que vamos
seguir.
48
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Meu amigo, realmente era simplesmente
ouvido, não tinha realmente o que falar sobre o
tema que venho estudando há muitos anos alem
do que é um assunto que pelo qual me interesso
profundamente. E assim prossegui em minha
dissertação.
_Amigo Lutero. De tantas noites bebendo e
conversando! Direciono-me na suposição que
chegará um tempo: que um determinado ser do
sexo masculino poderá ovular, e um ser do sexo
feminino poderá produzir espermatozóides.
Enfim nos defrontaremos com um enigma que
ate então as possibilidades de ocorrer eram
mínimas. Um ser do sexo masculino não
necessitará do sexo oposto para dar seqüência à
espécie, sendo que o ser do sexo feminino
também não necessitará do sexo masculino para
o mesmo intuito.
_Você não acha utopia para os nossos
simples conceitos? Esse mundo que você vive
está completamente fora da realidade.
Lutero discordou deste começo de
explicações, com total certeza em suas palavras
que não me restou alternativa em marcar um
novo encontro para o dia seguinte e continuar
com minha ideologia futurísticas. Lutero se
49
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
postou de pé na minha frente, quase que se
despedindo. Bocejou numa ressonância aguda e
falou.
_Vou para casa dormir. Quem sabe, com
meu travesseiro consigo entender parte desta
explicação. Amanhã eu não vou trabalhar, vou
resolver alguns problemas em São Paulo. Mas,
passe na minha casa depois que você sair.
No dia seguinte, depois do trabalho corri na
direção da casa de Lutero entusiasmado pela
paciência do amigo. Fui recebido com uma
garrafa de vinho tinto seco. Sua mãe nos fazia
companhia no dialogo convencional durante a
primeira garrafa e a segunda da boa safra da
merlot. A sala era o antigo escritório do seu pai.
Varias prateleiras de madeira de lei repleta de
livros empoeirados de excelente encadernação,
muitas pipetas e balanças: para pequenas
quantidades; uma rica cristaleira do começo do
século, com desenhos de rostos angelicais
esculpidos nas laterais e pés. A mãe de Lutero
anestesiada devido ao consumo do álcool logo se
despediu retirando-se para o seu quarto. Sempre
achei que ela sofria de prosopagnosia, pois
nunca foi capaz de dizer meu nome em tantos
anos de amizade com Lutero. Fizemos um ritual
50
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
antes de começar aquele assunto tão complicado
e mal explicado. Acendemos um cigarro
enquanto comentávamos sobre os efeitos de um
bom vinho nas reuniões, festas e um dialogo
inteligente. E foi assim que prossegui.
_ Nos tornaremos um só, como um elo na
cadeia de força que alimenta a vida. Parecemosnos com células, nos multiplicamos e temos um
padrão simétrico. E como organismo existem
falhas,
principalmente
no
sistema
de
comunicação por completo entre eles.
Lutero acendia outro cigarro, quando decidi
em ir, na direção do banheiro. Sentia-me
completamente tonto parado de pé. Quando
andei, o chão parecia mover-se para cima e para
baixo.
Quando
retornei
continuei
na
emblemática.
_ Os genes exigem que os neurônios
executem suas funções acima do normal. O fato
de haver excesso de informações, os neurônios
primeiro organizam-nas e de maneira sintetizada
e as armazenam nos genes. De forma bruta há
uma necessidade orgânica de ser expelida
através das artes como um todo.
_ Por este motivo é que muitos
enlouquecem?
51
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_ É evidente, Lutero. Os genes são muito
exigentes no comportamento dos órgãos e seu
perfeito funcionamento, e se algum deles tiver
um mínimo defeito ele se destrói.
_Existem evidencias concretas a respeito
disto?
_Sim, senhor. O câncer é um exemplo
clássico.
_Nós os homo-sapiens, somos hospedeiros
dos genes que adquiriram o melhor desempenho
no desenvolvimento dentre as espécies de
genes, nos faz de escudo, de espada e de cavalo
de tróia nesta batalha incessante no mundo que
ficou invisível por milhares de anos. Mesmo
ainda acharmos que somos independentes e
auto-suficientes, mas sem duvidas são os genes
que nos direcionam na rota da perfeição e do
desenvolvimento. Eles eliminam os ineficientes e
frágeis, une os inteligentes e fortes, os bonitos e
perfeitos nesta guerra genética, visível somente
aos microscópios.
_Por este motivo o pré-conceito é
inevitável em todos os seguimentos da sociedade
humana?
_Não só humana, mas, organicamente
também. Sempre acreditei desde pequeno haver
52
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
algo determinante em nosso desenvolvimento,
hoje isto me leva crer que esta determinação
que os genes exercem sobre nós, criando um
estado de insatisfação. Como se nos faltasse
algo muito importante. Essa insatisfação que nos
faz trilhar no caminho das crenças, religiões e
rituais e a viver sobre (o manto da cultura).
_O que realmente você tem escrito a
respeito sobre (o manto da cultura)? É um tema
que me atrai, mesmo estando embriagado.
_O que tenho escrito e ainda estou
escrevendo. Como a humanidade passou a viver
sobre o manto da cultura é uma idéia que
amadurece como uma fruta à sombra de uma
árvore. O manto da cultura nos protege em
muitas circunstancias. Mas ao mesmo tempo em
que nos protege nos limita a ter idéias novas e
ver alem do horizonte. Alem do que nos separa
por classe, cor, etnias e comportamento,
também por paredes, muros, ruas, quarteirões,
bairros, cidades e países. Há mais ou menos dois
mil anos atrás nasceu um homem chamado
Jesus, nascido na cidade de Belém. Dizia Jesus
aos quatro ventos que havíamos entrado na era
do amor. Que o amor pelos outros deveria ser
maior que aquele que sentimos por nós mesmos,
53
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
e que o amor nos daria direito à entrada ao reino
do paraíso.
_Não venha me dizer que você não
acredita que existiu Jesus?
_Claro que acredito! Mas, houve uma
fusão, entre a submissão dos egípcios pelos
faraós, a adoração dos gregos pelos deuses do
Olimpo, com o amor que Jesus tentou nos
direcionar. E ao longo destes séculos vivemos
nesta confusão sem entender realmente o
sentido do amor. O fato de vivermos sobre o
manto das culturas, não nos permite desagregar
estes valores tão enraizados em nossa vida
social.
Lutero não soltava sua taça, que de
momentos em momentos transbordava ao
colocar o vinho deixando manchas num tapete
persa desgastado. E dei seqüência as minhas
idéias.
_Quero dizer que aliado ao medo vamos à
busca da felicidade plena, do desenvolvimento e
resistindo aos ataques daqueles que querem nos
destruir. E individualmente, usamos as palavras e
nossas histórias que brotam da imaginação
contra estes ataques que estamos expostos.
Alguns anos atrás, notei que quando escrevo a
54
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
paranóia e a neurose é amenizada. Meu convívio
social
tem
uma
melhora
acentuada,
conseqüentemente o diálogo flui naturalmente.
Há um equilíbrio geral e que faz sentir-me muito
mais importante que sou.
_É como se você recebesse um empurrão
na estima morro acima?
Respondi com certa afirmação, e Lutero
tinha vontade de falar sob o efeito do
fermentado. Não o interrompi, pois suas idéias
evocavam as minhas, como engodo da vara de
pescar.
_ Quantas e quantas noites, quase
estreladas ou nubladas, povoadas ou no total
solitárias, que vaguei sem saber ao certo qual o
melhor caminho a seguir... Algumas vezes penso
em ter escolhido a trilha ideal. Porem, noutras
vezes acredito que escolhi cegamente lugares
estranhos e que ainda vou equivocar-me em
excesso no seu longo decorrer.
_Quer dizer que enquanto o ser homem
segue seu destino, rumo ao desenvolvimento,
por vezes ele se defronta com varias bifurcações
neste longo trajeto? Foi isso que você quis dizer
anteriormente?
55
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Mais ou menos isso. Enquanto uma
pequena parte segue o caminho do puro amor, a
grande maioria continua no caminho da arte, da
devoção, veneração e idolatria. E isso tem sido o
grande problema ao longo da vida da espécie. O
amor que sentimos pelos filhos, pais, amigos
deveria ser o mesmo nas relações afetivas, no
cotidiano e na relação de um ser para com outro.
Porem no decorrer ele se transforma em
idolatria; ajoelhamos-nos diante de uma
imagem, a devoção é inevitável. A imagem passa
ser maior que a do próprio admirador.
Lutero sorvia com prazer e rápido o
restante do vinho da quarta garrafa, o que dava
a ele um delírio poético no instante de extrair
mais informações sobre as minhas teorias, que
iam criando dimensões antes inexploradas pelo
meu pensamento fictício. Fiquei contemplativo ao
ouvir seus devaneios.
_É um fato inexplicável! Que no cair da
noite a nossa personalidade que nós dá a doce
impressão de que está camuflada, dá o ar da sua
graça e nos expõe a transparência da sua
exorbitante força. Como se desprendesse do
corpo material sem no mínimo analisar que dele
simplesmente provêm. O mistério só as noites
56
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
pertencem. Dela vem os lúdicos poetas, pintores
visionários, cantores afônicos, imersos atores,
semideuses ou escritores e infratores que
desenvolvem com maestria o dom de iludir ou
definir se deve subir a um nível acima dos
demais. Sempre focando um olhar (clinico) sobre
a amplidão. Porque individualmente só à noite o
mistério pertence?
_Talvez seja por estar sobre a proteção da
terra, dos efeitos dos raios solares. Talvez
também diminua a pressão atmosférica, assim os
neurônios fluem na sua total capacidade ou
também alguma espécie de energia do cosmo
que o sol nos limita a receber.
Fiquei calado, enquanto o silencio reinou
na sua ausência quando cambaleando, também
foi ao banheiro. Mas, refleti que se não fosse à
escuridão da noite não perceberíamos a
importância do silêncio da terra que consome o
medo, também à necessidade fugaz do fogo, o
poder de mutação dos ventos, a capacidade
essencial da água. Ou como de um olhar
pessimista, a terra mostrasse a nós a sujeira, o
fogo incinerasse esterilizando, o vento varresse e
a água lavando de todos os equívocos. Ou
também de um olhar racional, a terra
57
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
demonstrasse a sua exuberância de germinar, o
fogo de acionar e transformar, o vento de
misturar e adicionar e a água vital de estar
sempre nutrindo. São os quatros elementos
essenciais que conhecemos, porem nos
esquecemos de dois outros elementos que ainda
são fundamentais para o desenvolvimento: o dia
e a noite. A claridade do dia nos faz ver o que a
sombra da noite esconde, e a noite nos faz sentir
o que durante o dia enxergamos, mas não nos é
permitido sentir. Fica mais fácil entender se
pensarmos como se fossemos micro organismos.
No principio da espécie humana, quando ainda
não tínhamos desenvolvido a visão e tudo era
uma eterna escuridão e só podíamos sentir. E é
evidente que entre os sentidos o primeiro a se
desenvolver foi o paladar, depois o tato e por
ultimo a visão.
Quando Lutero retornava, usava os moveis
como escora para não cair. Próximo à poltrona
se jogou sobre as almofadas que diminuíram o
impacto do corpo mórbido. Mas, ainda teve o
ultimo vestígio de lucidez ao se manifestar sobre
o raciocínio que desprendera, talvez no momento
que usava o vaso sanitário.
58
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Jesus Cristo não morreu por nós como
dizem nos sermões repetidamente. Quem matou
Jesus foi exatamente o fato de vivermos sobre
(O Manto da cultura). Criaram esta cultura de
veneração a milhares de anos. Como um rio de
mentiras, somos arrastados pela correnteza do
iludir até os dias de hoje. O amor não é dar
esmolas ou dízimos, é doar a si mesmo
transmitindo inteligência, coragem, dignidade,
respeito, paciência e paz.
Enfim o vinho nos venceu naquela
madrugada.
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Falsos amores
Estamos em principio de inverno na capital
paulista, mais pra ser exato dia doze de julho do
ano de mil novecentos e noventa e sete. Um...
Apenas um... Daqueles finais de tarde que só
quem já esteve em São Paulo sabe o frio que
acontece nesta época do ano. De uma sextafeira que indicava que o final de semana chegou;
hora de sair da cidade. O paulistano sai em
busca de descanso em algum lugar que o faça
esquecer a loucura do transito e o estresse do
trabalho. Os que ainda não saíram, e os que não
vão viajar começam a chegar a suas casas e
apartamentos. Nas ruas e avenidas o
congestionamento é algo monstruoso, buzinas,
sirenes, indicam que é hora do rush. Na gigante
São Paulo com seus néons, painéis, outdoors, os
espigões de concreto e suas janelas começam a
mostrar seus coloridos, ao se acenderem...
De repente no apartamento o telefone
tocou. Na sala Márcia atendeu no momento que
passava saindo da cozinha para o quarto. Ao
ouvir a musica do serviço de chamada a cobrar;
60
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
nem aguardou o termino e esticou o braço com o
fone em mãos na direção de Breno, dizendo.
_Toma que o filho é seu.
Breno fez uma careta, pelo toma que o filho é
seu, depois deu um sorriso e atendeu.
_Alo?
Do outro lado da linha o filho que mora em outra
cidade com a mãe, respondeu.
_Fala ai o paizão. Anda sumido.
O pai sentiu a verdade na cobrança e
tentou ir fundo no sentimento do filho.
_Como você está? A sua cabeça como
anda, Luli?
Luli é a síntese dos nomes Luis Lima, dado
carinhosamente pelos pais ainda bebê. Filho
único muito mimado pelos pais e avós andava
meio cansado de tanta proteção e bajulação;
respondeu com ironia.
_Estou indo bem. Quanto a minha cabeça,
está sobre o meu tronco que está sendo
arrastada neste momento pelos meus membros
inferiores. E você quando vai aparecer por aqui?
Na cabeça de um homem divorciado há
tantos problemas como na cabeça de um
matemático da NASA, fazendo cálculos antes se
lançar um sonda a júpiter. Breno se sentia um
61
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
pai tão ausente como um ex-marido deficiente e
um atual esposo inoperante. Mas com ele
mesmo dizia: (vou empurrando com barriga)
_Acho que vou, no seu aniversario.
Talvez no mundo não exista pai e filho com
tantas semelhanças; a única diferença é que o
filho tem uma bicicleta e uma prancha, o pai só
uma luneta e uma corneta. E o dialogo de
cobranças flui ao telefone.
_Já que você vem pro meu aniversario,
poderia trazer uma roupa pra mim.
O cobrado se confundi com os detalhes do
presente, perguntou.
_Por quê? Está nu?
_Não. É roupa de neoprene. Você sabe, o
inverno está chegando e não dá para cair na
água sem roupa de neoprene.
_É só não entrar, e esperar o calor do
verão chegar.
_Já que você não quer dar o neoprene,
então me dá duas passagens de avião; uma de
ida, uma de volta e três meses de estadia no
Havaí, ou Califórnia, Noronha, Indonésia,
Austrália, África do sul, quer mais.
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Pensando bem, o neoprene está com um
preço bom. Você venceu. Surfista calhorda. Tua
mãe e teus avôs estão bem?
_Quando eu fugi de casa estavam bem.
Breno com uma leve preocupação
perguntou.
_Quando e porque, você fugiu de casa?
Rindo, Luli respondeu.
_Calma, faz quinze minutos, só vim ligar
pra você.
_Pensei que você tinha fugido mesmo.
Falou então Luli ate o dia doze, um beijo.
_Um beijo, não vai furar paizão. Ah! Já ia
me esquecendo de desejar boa viagem pra elas.
Fui.
_Fui.
Breno acabava de colocar o fone na base
quando ouviu e viu; Manoela sua enteada sair
gritando da porta do quarto, num minúsculo
corredor em direção a sala.
_Breno, você sabe onde está o meu livro?
O diário de Tati? O Nilo quer ler em Curitiba.
Quando Breno foi morar no apartamento
de Márcia, ela havia ficado viúva recentemente;
seu marido morrera intoxicado e pouco se falava
qual foi a substancia encontrada em seu
63
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
organismo. Manoela tinha na ocasião quase sete
anos; e recentemente ela fizera dezoito no mês
de fevereiro.
Breno se explicava com autoridade no
assunto.
_Esqueceu que você emprestou pra Bia.
_Qual Bia, a do colégio?
_Não, a Bia daqui do prédio.
_Não me deixe esquecer de ligar pra ela,
ouviu Breno.
Esse “ouviu Breno” no final saiu um pouco
mais alto.
_Você acha que sou seu empregado. Vai-te
catar menininha.
_Acho não, tenho certeza.
Manoela deixou a sala fazendo careta e
mostrando a língua. E Breno foi ao seu quarto,
onde Márcia preparava as malas. Antes de sentar
a cama olhou-se no espelho.
_Que horas as feias pretendem pegar a
estrada amanhã?
_Feia é sua avó.
Márcia deu um sorriso e continuou.
_Acho que saindo às sete horas, da pra
chegar pro almoço na casa da Verinha.
64
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Se eu fosse você comeria no caminho, é
um dia a menos a passar fome na casa da sua
prima. É muito pão duro a Verinha.
_Chegando lá, será a primeira coisa que eu
vou falar pra ela.
Balançando as mãos fingindo tremer, ele
ironizou.
_Estou morrendo de medo. É pão duro
mesmo.
Depois deu uma pausa em silencio, ele em
seguida perguntou.
_Você pretende ficar todos os quinze dias?
Márcia apertou um dos lados da bochecha
do Breno carinhosamente, e brincou com as
palavras.
_Porque, já está com saudades da mamãe
bebezinho?
Você não está com essa bola toda. Oh
perua. É que dia vinte sete é o aniversario do
Luli.
_Fala que eu mandei os parabéns pra ele.
Ah! Diz também que eu enviarei um postal do
lugar mais lindo que tiver.
_Ele desejou boa viagem pra vocês.
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Ai! Obrigado... Breno, não fica triste; vou
te pedir mais uma vez. Cuide-se cara... Você
sabe que eu te amo!
_Eu também te amo. Que você faça uma
boa viagem.
Abraçaram-se na cama, e deram um longo
beijo.
Estávamos no ano de mil novecentos e
oitenta e sete, foi quando Breno havia se
separado de sua primeira esposa. A pequena
cidade de Arujá a quarenta quilômetros de São
Paulo estava completamente pequena, para
tantas desilusões que o atormentavam. Do
convívio com o filho, durante os cinco anos, que
fora casado só lhe traziam boas recordações,
mas as saudades foram determinantes na
decisão de deixar a pequena cidade.
Ir para onde? Perguntava-se Breno. Fazer o
que? Se a profissão de torneiro mecânico que
havia escolhido quando adolescente e fizera o
curso não mais lhe agradava. Dizia ele que
nunca gostou de ficar entre quatro paredes.
Depois de muito pensar, Breno se
submeteu a trabalhar de fazer sanduíches, em
um café na capital paulista. Profissão que
aprendeu ajudando um amigo que tinha uma
66
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
lanchonete em Arujá. Uma parte do que recebia
pagava à pensão que dormia, outra parte a
pensão para o filho e o pouco que restava com
despesas pessoais.
Os proprietários do café, Márcia e o primo
Tadeu tinham uma sociedade com algumas
divergências: Tadeu queria investir na ampliação
do café, Márcia cautelosamente em conter gasto,
dizia ser um problema de nascença. Porém, se
olhasse para uma vitrine de roupas, calçados,
bolsa ou bijuteria, tinha uma forte recaída, e a
compulsão te levava a falência.
Márcia fizera o curso de assistente social e
nunca foi necessário exercer a profissão. Ao
contrario de Tadeu que fez direito criminal e
muito custou para pagar as mensalidades da
faculdade, só conseguiu obter o diploma após
pagar seis meses de mensalidades atrasadas.
Tadeu usava os piores meios para
conseguir seus objetivos. Breno comprovou seus
métodos na primeira vez que o viu. Tadeu e o
proprietário da primeira lanchonete que Breno
trabalhava eram amigos. Ao ver a competência
do Breno para preparar os sanduíches e também
a simpatia com que tratava os fregueses, Tadeu
chamou o Breno de lado entregando um bilhete
67
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
com seu telefone e o nome. Falando ao seu
ouvido.
_Se quiser trabalhar em São Paulo, é só me
ligar.
Com Márcia o primeiro contato foi bem
diferente. Breno no seu segundo dia de trabalho
estava desentupindo um cano de esgoto,
ajoelhado com uma das mãos enfiada na crosta
de sujeira e gordura, Márcia chegou perto e
disse.
_Credo! Que nojo!
Breno subiu seus olhos de indignação na
sua direção e salientou.
_Alguém tem que fazer o serviço sujo.
Alguns meses passaram, Márcia se
apaixonou loucamente por Breno, mas o Breno
vivia dizendo aos amigos: livrei-me de uma
apareceu outra, eu realmente joguei pedra na
cruz, estou pagando todos os pecados. Isso era
apenas brincadeira porque no fundo, Breno
também estava completamente louco por Márcia;
inclusive havia melhorado e muito sua
depressão, o bom humor voltara de tanta
felicidade.
Na segunda-feira dia quinze no bar e
restaurante, o telefone tocou por volta das duas
68
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
horas da tarde. Breno foi chamado para atender
ao telefone. Do outro lado da linha, Márcia
dissera que fizera uma viagem tranqüila,
também já estavam hospedados na casa da
prima Verinha. Breno desligou o telefone, ao
voltar para cozinha foi abordado por Tadeu que
almoçava em uma das mesas com Narciso; um
amigo de infância. Quase duas vezes por semana
os dois se reuniam. Narciso é médico
cardiologista que cuida dos corações de toda a
família.
_A Márcia chegou bem em Curitiba, Breno?
Breno sempre com bom humor, brincou.
_Acabaram de chegar no SPA.
Ambos surpresos quase que ao mesmo
tempo perguntam.
_SPA! Elas não iam pra casa da Vera?
_Mais do jeito que a Verinha é pão duro,
na certa vai passar fome.
Depois de rirem por alguns instantes,
Tadeu anuncia que irá organizar uma festa no
restaurante na quarta feira, para oito amigos
executivos depois do expediente; aproveitou
também para convidar Breno que jamais recusou
um escocês de primeira linha.
69
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Todos os homens têm seus defeitos, em
certos momentos são profundas suas recaídas.
Uns se apaixonam obsessivamente por uma
mulher, e não medem esforços para consegui-la,
como se a mulher fosse um objeto; outros não
podem ver um jogo de futebol na tv, esquecem
tudo que existe ao seu redor; outros gostam
mais do carro do que da própria mulher; existem
homens que o dinheiro é tão importante que por
ele é capaz de fazer monstruosidades, o que não
faltam são historias nesse sentido.
Na quarta-feira, tudo foi preparado nos
mínimos detalhes sem deixar faltar nada por
Tadeu e Breno, para a festa que aconteceria
depois do expediente.
Meia hora antes de a festa começar, Tadeu
saiu dizendo que tomaria um banho e que logo
voltaria, e pediu para que Breno recebesse os
convidados que na sua maioria, ele os conhecia.
Foram chegando os primeiros convidados,
bem recepcionados e servidos por Breno que
também contava suas piadas.
_Vocês sabem qual a única coisa que o ser
humano não pode escolher? Quando somos
pequenos podemos escolher nossas bicicletas,
nossos patins, as rodas dos nossos skates, ate a
70
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
cor dos nossos cabelos; quando adolescentes
podemos escolher se vamos ser homossexuais,
bissexuais ou heterossexuais; quando adultos
podemos escolher os cursos na faculdade, a cor
e a marca dos carros, o apartamento, com quem
vamos casar; hoje podemos ate escolher o sexo
do filho, a cor dos olhos e cabelos que eles vão
ter quando nascerem. Mas, a única coisa que
não podemos escolher, é a sogra.
Uns riram, outros nem ouviram. Mais
mesmo assim ele prosseguiu.
_Um homem encontra com um amigo no
meio da rua, notando que ele estava com rosto
todo arranhado, ficou com um olhar de curioso e
fez uma pergunta.
_A onde você estava?
O outro respondeu.
_ No enterro da minha sogra.
_No enterro da sua sogra; e todo
arranhado assim?
_Ela não queria de maneira alguma ser
enterrada viva.
Ao que ficou evidente é que muitos já
conheciam essa piada, porque diminuiu número
de pessoas que riram, más mesmo assim ele
prosseguiu.
71
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Vocês saberiam me dizer o que mais se
parece com o casamento?
Uns falaram algo, outros bulhufas...
Ai, respondeu ele todo feliz.
O que mais se parece com o casamento é a
avenida paulista. Sabem por quê? Porque
começa no paraíso e termina na consolação.
A festa estava quase na sua metade,
quando Tadeu chegou acompanhado de duas
mulheres desconhecidas. Algumas garrafas de
uísque foram esvaziadas ate as duas da
madrugada; quase todos se foram, exceto
Tadeu, as duas mulheres desconhecidas e Breno.
Os quatros em uma mesa conversavam, de
repente, Tadeu força um alto bocejo sonoro,
levanta e interrompeu.
_ Bom, a conversa está boa, mas vou
embora com a Selma. Você Breno, fica com a
Leila mais um pouco.
Em seguida tirou uma garrafa pequena de
uísque oito anos de sua pasta e serviu os copos
do casal, dizendo.
_Essa é especialmente para os meus
eternos amigos, Breno e Leila. Saúde e
paz...Vamos Selma, temos uma noite longa pela
frente.
72
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
No dia seguinte Breno foi despertando aos
poucos.
Quando
estava
completamente
consciente percebeu que envolta dele de pé,
alguns
indivíduos
estranhos
rindo
sarcasticamente. Colocou-se de pé, também
ainda tonto e assustado, colocou as duas mãos a
cabeça e deixando no rosto a expressão de dor.
E falou.
_A onde estou, que lugar é esse?
Um dos sujeitos brincando respondeu.
_Você está no castelo, princesa. Acordou
bela adormecida, seu covarde assassino de
prostituta.
Breno olhou ao seu redor. Percebeu que
tinha grades de ferro. Não quis acreditar no que
estava vendo, e falou indignado.
_Isso dever ser um sonho, eu não matei
ninguém.
O sujeito ainda rindo, ascendeu um cigarro
com fósforos e falou.
_Isso é o que todo mundo diz, quando vem
parar aqui.
Breno olhou para o vazio tentando recordar
o que poderia ter ocorrido com ele, mas nada
pareceu vir à mente que o medo agora o
envolvia de modo profundo. Sentou-se em um
73
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
dos cantos da cela, e automaticamente encolheu
o corpo. Os oito homens na cela de cinco metros
quadrados, todos o olharam naquele instante,
mas apenas alguns deram risadas do novo
companheiro. Depois de alguns minutos, Breno
se levantou, segurou as grades tentou
chacoalhar. E berrou.
_Tem alguém ai? Eu preciso telefonar.
Após repetir por quatro vezes, apareceu
um homem em trajes comuns, tentando acalmálo.
_Por favor, senhor Breno Alves Cunha,
acalme-se. Seu advogado, doutor Tadeu Luis
Silva já ligou e está a caminho.
_Me responda, por favor. O que eu fiz para
estar aqui preso?
Com a mesma educação o homem
concluiu.
_Infelizmente senhor Breno, aqui não nos
dão essas informações. Seu advogado com
certeza tem todas as repostas e lhe deixara a par
de todos os fatos.
A fisionomia de Breno era de completo
pavor e indignação, mas resolveu sentar no
mesmo lugar. Novamente colocou as mãos a
74
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
cabeça que latejava, as lagrimas desceram a
face de consternação.
A noite estava caindo naquela cela gelada
que lhes doíam todos os ossos do corpo deitado
sobre um fino colchão. Apareceu novamente o
carcereiro, desta vez acompanhado de um
policial; pediu educadamente que colocasse as
mãos do lado de fora das grades para algemálas, disse que seu advogado o aguardava numa
sala especial. Ao entrar na sala desesperado,
Breno nem cumprimentou Tadeu, e perguntou.
_Por favor, Tadeu me tira daqui? O que
está acontecendo?
_Acalme-se Breno. Eu vou te explicar.
Tadeu com olhos mostrou os dois homens
que deixavam a sala.
_A Ana, a faxineira chegou pela manhã,
entrou pelos fundos do restaurante. Viu você, e a
Leila; estavam caídos pelo chão e muito sangue.
Saiu correndo desesperada e ligou para policia; a
policia por sua vez, ligou para minha casa e
quando cheguei já haviam trazido você para
delegacia.
Neste
instante
Breno
ansioso
o
interrompeu.
_Fala logo o que eu fiz.
75
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Não me deixaram entrar. O legista
terminava os seus trabalhos de perícia. O
sargento me disse que Leila fora assassinada
com três tiros; você desacordado e uma arma do
seu lado; copos e garrafas quebrados pelo chão.
Tudo indica ter ocorrido uma briga entre você e
ela.
_Eu não briguei com ninguém, eu não
matei nenhuma mulher. Isso é uma brincadeira,
não é Tadeu? O que está acontecendo?
_Parece que não Breno; você bebeu
demais. Vamos esperar pelos exames da perícia,
para começar a trabalhar na sua defesa. Isso se
você me quiser como seu advogado, é claro.
_Por favor, Tadeu, me tire daqui o mais
urgente se possível.
_Neste momento na sala do delegado,
encontra-se o medico legista. O Dr. Álvaro
depois vem para cá, fará alguns exames em você
para podermos te livrar dessa enrascada que
você se meteu. Ok?
_Tudo bem.
_Fique calmo, não vá se meter em
confusão. Depois eu apareço.
_Por enquanto obrigado Tadeu.
76
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Não precisa me agradecer. Alias para que
serviriam os amigos se não fossem para uma
ocasião tão difícil como esta.
Alguns dias se passaram e o restaurante
funcionava normalmente, apesar do crime brutal
que ali acontecera. Márcia não presenciara a
cena, o que talvez tenha influenciado para
retornar ao trabalho duas semanas depois, mas
o choque, da maneira como aconteceu e quem
fora o causador, ainda abalava e muito seus
dias. Ao telefone com a mãe Sonia, o assunto
ainda era o mesmo.
_Para ser sincera filha, desconfiávamos e
muito do caráter deste moço, desde a primeira
vez quando você nos apresentou. Ele não tem
uma profissão digna.
_Todos nós temos o direito de errar um
dia, mamãe. Meu relacionamento foi um
equivoco do começo ao fim.
_Eu e seu pai estamos muito preocupados
com a sua segurança e da Manoela.
_Mamãe, não tem com que se preocupar,
agora ele está preso.
_Filha, você conhece as leis brasileiras,
existem muitas brechas; logo ele pode estar
solto. Porque você não vende sua parte no
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
restaurante, troca de apartamento. Com o
dinheiro do seguro e os bens que teu pai passou
em seu nome, dá pra vocês viverem muito bem.
_Eu prometo pensar seriamente nisso.
Agora me deixe trabalhar um pouco, mamãe.
_Não se esqueça que estamos muito
preocupados.
_Está bem mamãe. Um beijo.
_À noite eu te ligo. Um beijo.
No dia vinte sete de julho em Arujá seria a
festa de aniversario de Luli, mas devido ao fato
foi cancelada. Na casa, Luli estava trancado em
seu quarto revendo algumas fotos tiradas junto
ao pai, quando o avô bate a porta, e Luli
autorizou sua entrada.
_Boa tarde aniversariante.
Luli levantou-se da cadeira, onde estava à
frente do computador, e cumprimentou seu avô.
_Tudo bem vô?
O avô com um embrulho nas mãos
estendeu-as ao jovem.
_Trouxe um presentinho pra você. Não vai
abrir?
Seguindo o conselho do avô, abriu o
presente.
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Me desculpe, estou com cabeça em outro
lugar.
Seu avô fazendo das tripas ao coração,
para agradar o neto; perguntou?
_É a cor que você queria? Se o seu pai
estivesse por aqui, era o que ele te daria.
Muito satisfeito o neto agradeceu.
_Muito obrigado vô. Foi isso que eu pedi pra
ele.
_Tua mãe me contou. É a única coisa que
posso fazer nesse momento por você, Luiz.
Enquanto o rapaz esticava a roupa de
neopreme, relembrou.
_Você se lembra vô, há um tempo você me
perguntou que curso pretendia fazer na
faculdade?
_Claro que sim. Você falou biologia
marinha.
_Mudei de idéia. Vou fazer direito criminal,
para tirar meu pai daquele lugar horrível.
Os seus olhos encheram de lagrimas ao
falar. Seu avô percebeu e tentou deixar o neto
ciente que ele estava preocupado com situação
complicada que estava passando. E argumentou,
questionando.
79
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Tua mãe também me contou que você foi
visitá-lo na cadeia. Como ele está?
_Por nenhum momento, pareceu com
aquele cara que eu conheço. Ele está muito
deprimido.
O seu avô mais uma vez deixou indícios de
cuidados. Concluindo.
_Eu liguei para o advogado do seu pai.
_E o que ele falou?
_Você precisa ser forte filho. Os indícios
contra ele são muitos. O teste residual de
pólvora na mão direita deu positivo, como
também o de sangue. Foram encontradas
substancias químicas.
_Quais tipos de substâncias?
_ A mais complicada é a cocaína.
Luli interpelou, como não gostando da
verdade do momento.
_ Mesmo assim eu confio na inocência
dele.
_Bom Luiz! Tenho uma tarde cheia pele
frente. Preciso trabalhar um pouco.
_Mais uma vez, obrigado vô.
Ao se despedirem abraçaram-se, com
muito afeto; habito comum entre eles. Haja vista
que quando seu pai separou de sua mãe, Luli
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
tinha apenas cinco anos. E o seu avô foi
obrigado a ter um contato maior com ele e a
filha.
_Se for fazer direito criminal, eu ajudo você
nas mensalidades da faculdade.
E foi sorrindo que o jovem despediu do seu
amigo e avô
_Valeu vô!
No distrito policial o movimento é intenso
nos sábados. Principalmente no horário de
visitas. Na sua maioria mulheres, mães, irmãs,
companheiras tristes destes presos. Elas
sonham: com a regeneração destes homens,
quase impossível.
Breno á muito tempo não recebia visita; a
ultima vez foi de seu filho há um mês. Mas
naquele sábado o carcereiro acompanhado de
um policial, chamou por Breno.
_Vamos rapaz, visita pra você.
Ao entrar na sala reservada para visitas,
dona Carmem e Breno tiveram uma crise de
choro ao mesmo tempo, e se abraçam por um
longo tempo. Quando a crise amenizou, sua mãe
começa falar ainda enxugando as lagrimas com
um lenço.
_Como vai sua saúde filho?
81
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Ate agora estou resistindo bem. Eu fico
mais preocupo com você e o Luli, enfim todos
que se preocupam comigo.
_Não está sendo fácil pra mim, saber que
você está vivendo nestas condições.
Breno,
sobre
uma
forte
emoção,
desabafou.
_Tem dias que penso antes de dormir, que
vou acordar em casa... Uma cama quente... Um
banho quente e cheiroso... Que vou ver televisão
ou andar a toa pelas ruas, ver os amigos,
conversar com toda liberdade; como se tudo
fosse um grande pesadelo... Estes últimos dias
têm sido os mais horríveis em toda minha vida.
Nunca senti tanta solidão e angustia; a tristeza
parece não ter fim. Tudo que vejo, são paredes e
mais paredes, muros altos e grades por todos os
lugares. O silencio habita o mais profundo dos
meus instantes que são infindáveis; desde
quando acordo, ate a hora que o sono me
carrega no final da noite, para um descanso que
não se consome. Entre tantos e tantos pesadelos
horríveis, de vez em quando tenho um sonho
que se repete; e quando acontece, mesmo assim
me da um pouco de alegria. Vejo-me
caminhando descalço, sem camisas, de
82
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
bermudas, pela areia fina e branca de uma praia
que ainda não estive. Vários coqueiros na orla de
uns quinhentos metros de extensão, uma
pequena ilha a cem metros, bem enfrente da
praia fazendo o quebra mar, (evidenciando ao
lugar o aspecto de serenidade com águas
transparentes). Porem, o resto é só pesadelo:
daqueles de acordar suado e assustado. Às
vezes, me vejo rodeado de cada brutamonte que
começam me espancar e tentam espetar-me
com facas artesanais. O medo nos acompanha,
aqui dentro como nossa sombra, por raros
momentos esquecemos dela como esquecemos
que ainda estamos vivos. Apesar dos pesares, o
medo nos impõe limites, nos faz respeitar ao
extremo a hierarquia que nos submetem. Para
ser mais claro o medo calcula cada passo, cada
gesto e cada palavra neste inferno aqui na terra.
Enquanto o silêncio tentava dizer algo,
dona Carmem consolava o filho passando a mão
sobre sua cabeça. Em seguida Breno reiniciou
seu desabafo.
_A maior parte do tempo passo pensando
que a minha vida se transformou em um enorme
buraco... Penso também que não sei mais quem
sou... Um homem ou um monstro... Porque
83
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
aquela mulher colocou droga em minha bebida e
na dela? Quem colocou esta mulher em meu
caminho? Eu estava tão feliz com a Márcia.
_Tente esquecer... Tire o ódio do seu
coração, pense em coisas boas.
_Você tem toda razão. Isso só irá piorar o
meu estado... Você falou com a Márcia?
_Ainda não conversamos. Fiquei com receio
dela dizer algo ao seu respeito que talvez eu não
quisesse ouvir.
De mãos dadas, o silêncio parecia dizer à
dor que ambos estavam sentindo. O destino de
muitas pessoas pode num piscar de olhos se
transformar num imenso vazio, ou talvez um
poço sem fundo no qual só caímos.
De repente um policial interrompeu.
_Infelizmente terminou o horário da visita
senhora.
Mesmo com um semblante triste que lhe
molhava os olhos, agradeceu o policial.
_Você está precisando de algo, filho?
_Sim. Fala pra Márcia que eu estou com
muitas saudades.
_Tchau filho fica com Deus. Ele sempre vai
iluminar o seu caminho. Tenha muita fé, é só o
que neste difícil momento eu posso te oferecer.
84
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Obrigado. Mãe. Tente, não ficar tão
preocupada
comigo.
Se
conseguir,
evidentemente.
No letreiro iluminado da fachada estava
escrito: (clinica cardiovascular Rastelli). Na porta
do consultório, doutor Narciso Rastelli. Dentro da
sala, o doutor Narciso atendia Márcia, sentada a
sua frente sempre com muita elegância e
simpatia.
_Você está muito bem Márcia. Pelo menos
na aparência. É muito bonito seu cachecol.
_Obrigada. Na medida do possível, tirando
os mortos e os feridos, vou indo muito bem.
_Trouxe os exames que lhe pedi?
_Estão aqui na minha pasta.
_Como está Manoela?
Márcia entregou o envelope com os
exames.
_Às vezes diz que sente saudades do Flavio
às vezes do Breno. Mas não pergunta nada sobre
a prisão. São duas perdas recentes para alguém
muito pequena. Estou levando ela a um
terapeuta uma vez por semana. Talvez de algum
resultado.
_Bom Márcia está idêntico ao exame
anterior, o colesterol e as triglicérides. Pelo que
85
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
eu pude notar você não seguiu a dieta que
passei.
_Estes
três
meses
foram,
muito
complicados.
_Você está precisando de algum tipo de
ajuda?
_Não, neste momento. Penso que o tempo
é a única ajuda que necessito.
_Porque você não faz uma terapia ou uma
viagem. Estou indo para África do Sul visitar
alguns parques. Não gostaria de ir comigo? Seria
uma companhia muito agradável. Alem de me
fazer muito feliz. Você sabe o quanto eu a
admiro.
Enquanto falava, Narciso tentava pegar as
mãos de Márcia que estão sobre a mesa, porem
ela se esquivou, mudando de assunto.
_Vamos ao que me interessa, por favor,
Narciso. Eu continuo com o medicamento?
_Sim, a mesma dosagem. Todos estes
anos, eu sempre fui apaixonado por você.
Desculpe-me dizer isso assim. Quer jantar
comigo hoje?
_Hoje eu não posso, vou jantar com meus
pais.
_Então amanhã?
86
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Não. Eu te ligo pra combinar. Boa tarde,
Narciso.
_Fico aguardando o seu telefonema. Boa
tarde Márcia.
Quando Márcia saiu do consultório foi
direto para casa de uma amiga para um chá,
enquanto Manoela estava no colégio. Estava
evitando deixar a filha sozinha, tentando suprir
as perdas do pai e a prisão do padrasto que
tinha aprendido a admirá-lo. Márcia também
sofria de profundas depressões no seu intimo
ultimamente, mas só confidenciava isso, a sua
amiga Lucia de tantas décadas. Enquanto
tomavam o chá conversavam...
_Quer saber de uma coisa Lucia? Talvez eu
nunca entenderei o egoísmo brutal masculino.
Antes de dar uma mordida na torrada.
Lucia incitou à amiga.
_Continue minha amiga. Fale tudo que
necessitar. O e que está te preocupando tanto?
Depois que deu um gole no chá quente,
Márcia seguiu o desabafo.
_Como já te falei; está paixão doente do
Narciso por mim desde a adolescência. Ele nunca
se preocupou se existe algum sentimento da
minha parte por ele. Todo o respeito que eu
87
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
tinha por ele, está indo pelo o ralo do esgoto. Ele
nunca se preocupou se eu amava o Flavio e o
Breno. Sempre desrespeitando a mim, o Breno e
o Flavio.
Lucia serviu um pouco mais de chá, e
interferiu.
_Eu tenho certeza que não é só isso que te
perturba. É uma obsessão tão antiga essa do
Narciso e já conversamos sobre isso.
_Claro que não. Depois o Flavio
empenhado em seu trabalho, no seu
desenvolvimento profissional. Por nenhum
momento pensou em mim ou na Manoela. Como
ficaríamos sem ele. Se ele não se cuidasse.
Apesar de ir com certa freqüência ao consultório
do Narciso, fazer todos os exames necessários,
tomar todos aqueles remédios. Também foi por
tomar todas essas drogas e encontrarem uma
quantidade substancial de mercúrio em seu
fígado, é que demorou tanto para a seguradora
liberar o dinheiro. Já tinha comentado isto com
você?
_É um fato novo e muito estranho.
_Ele deveria procurar um tratamento
alternativo, ter outras opiniões. Mas não, era
Deus no céu e Narciso na terra.
88
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_A morte Márcia é algo que ainda não
sabemos como lidar. Só nos resta aceitá-la.
_Com o Breno, todo sentimento que nos
unia, ele jogou dentro de alguns copos de
uísque, algumas carreiras de cocaína e uma
prostituta da pior espécie numa noite estúpida...
Um
amor,
tão
verdadeiro,
carinhoso,
completamente sem ambição... De todos os
relacionamentos que tive, este me ultimo fez
crescer muito como mulher... Todos os outros eu
queria e conquistei... Com o Breno foi diferente...
Ele apareceu como fumaça e impregnou em
meus cabelos, em meu corpo, penetrou em meu
nariz e na minha boca... Quando dei por mim,
queimava-me como fogo... Eu penso muito que o
egoísmo, nunca me deixará realmente ser feliz.
Porque os meus pés estão acorrentados ao
egoísmo masculino.
_A única coisa que eu posso dizer pra você
neste momento difícil, é pra não perder a
coragem e a força. Porque pior que isso não da
pra ficar.
Quase seis meses se passaram, desde a
prisão de Breno. Nenhum novo indício, nenhuma
prova concreta que pudesse ajudar na
absolvição. Assim dizia Tadeu aos familiares que
89
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
desejassem saber do andamento do processo.
Tadeu almoçava com Narciso num determinado
dia no restaurante, onde ocorrera o homicídio e
dava as ultimas noticias a respeito do processo.
Narciso também quer noticias e pergunta.
_Quando vai ser o julgamento daquele
infeliz.
Tadeu cortava o bife acebolado enquanto
esclarecia os fatos.
_Está marcado para o dia quinze de
dezembro.
Como se a noticia trouxesse alguma
felicidade, Narciso continua.
_Está tão perto assim?
_Ainda tenho certeza que será condenado
em primeira estância.
Breno estava cercado por pessoas que
diziam ser seus amigos, mas que jamais
moveriam uma palha para conseguir provas
contra os fortes indícios de que realmente fora
ele o autor daquele homicídio. Realmente ele foi
condenado em primeira instancia e deveria
cumprir pena no presídio em regime fechado por
vinte sete anos. A tristeza de sua mãe foi algo
tão profundo que muitos presentes se
comoveram, principalmente quando ela abraçou
90
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
seu neto e choraram por vários minutos, no final
do julgamento quando o juiz deu o veredicto, e
os guardas retiraram Breno do plenário.
91
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Os homônimos do Zé
Pra começo de conversa vou deixar bem
claro que esta história é quase verídica, só não é
por inteira porque são relatos de um grande
amigo desesperado e de longas datas e muitas
farras e bebedeiras, e sei perfeitamente que a
verdade é algo que lhe faz falta.
José é seu nome de batismo e pelo que
também sei, só o padre na cerimônia e as
professoras do primário o chamaram de José;
porque de lá pra cá é só Zé mesmo e alguns
adjetivos. Hoje se alguém chamá-lo de José ele
pensa que não é com ele e nem se manifesta,
por sua vez, ele só irá atender se gritar bem alto
e repetir por duas vezes.
_Senhor José de Souza.
_Senhor José de Souza.
O Zé sempre diz nas rodas de amigos e nas
mesas dos bares que por três vezes nestes
serviços de alto-falantes anunciaram seu nome.
_Senhor José de Souza queira se
apresentar ao balcão de informações.
Quando o Zé se aproximou do balcão ficou
assustado: havia mais de quinze marmanjos,
92
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
respondendo ao mesmo chamado. O que mais o
impressionou, é que alguns estavam exaltados
ao extremo, e reivindicavam o direito ao nome.
Com a mão espalmada um homem moreno
de quase dois metros de altura batia repetidas
vezes com estupidez no peito.
_Vai todo o mundo à merda! José de
Souza; sou eu. Porra!
Outro homem um pouco menor no
tamanho, mais tão grande na estupidez verbal, o
Zé disse que logo percebeu que era nordestino
pelo sotaque, e revidou no saguão já quente de
ignorância.
_Não me venha com besteiras. José de
Souza; não és tu. Sou eu. Seu cabra da peste,
filho duma jumenta. Ta ruim dos ouvido.
Os ânimos só se acalmaram e mudou da
água pro vinho profundamente, quando um gay
assumido na afetação, resolveu falar com aquela
língua presa característica.
_Por isso! Por isso mesmo que estou louca
pra trocar meu nome pra Mirela. Mesmo a lei não
me dando este direito, eu vou ate fim do mundo,
porem um dia não me chamarão mais de José de
Souza, e assim serei anunciada por Mirela lady
de Souza.
93
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Não preciso nem dizer o que aconteceu
depois, a gargalhada ecoou no recinto do órgão
publico. O Zé disse, que este episodio aconteceu
no poupa-tempo da estação da luz, no setor de
requisição do RG. No caso do meu amigo, ele
estava tirando a segunda via, pois perdera o seu
numa destas noites em que ele saiu, pra afogar
o ganso ou trocar o óleo. Estes são alguns dos
nomes que ele usa para: coito e relação sexual.
Ele nem gosta de falar deste respectivo dia,
porque neste fatídico dia sua ereção não
ocorreu. Alem de perder seu documento, sua
parceira de atividade ainda nua sobre o leito, se
decepcionou profundamente com o desanimo do
órgão enrugado. E ironizando a cena de
crueldade, falando.
_É tudo isso que você têm entre as pernas
pra me mostrar!
Alias só me confidenciou este episodio em
um determinado momento que estava meio
embriagado de vinho tinto chileno. Falando em
bebidas, antes que me esqueça tenho outro caso
a respeito. Zé tem feito me rir muito ao longo de
nossa amizade e este ensinamento do seu nobre
e filosofo pai, não poderia deixar de contar da
mesma maneira que foi dito.
94
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Quando Zé ainda entrava na puberdade e
as espinhas estouravam pelo seu rosto. Ele
estava nos fundos do quintal da casa que
morava, sobre a sombra de um imenso
abacateiro, seu pai enquanto cuidava da
pequena horta de couves e alfaces, fez um
pedido a ele.
_Zequinha.
_O que quer, pai.
_Pega uma cerveja na geladeira e um
copo. Menino.
_Estou indo.
Seu pai viu que o Zequinha não se mexia
porque estava com uma varinha brincando com
as formigas, ai gritou mais alto ainda.
_Anda logo, seu moleque.
Zequinha saiu que nem foguete atender o
pedido. Quando entregou a cerveja e o copo, o
pai filosofou.
_Filho! Direi a você uma das maiores
verdades contemporânea que aprendi na labuta
desta vida que é ferrenha e tinhosa.
Com as pontas dos dedos se encontrando,
cada um com seu respectivo par: indicador com
indicador, polegar com polegar e assim por
diante ate o mindinho, acabou por fazer um
95
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
formato de um globo, e deu seqüência a sua
louca teoria alcoólatra.
_No planeta inteiro, filho, só existe dois
lados. Você saberia me dizer quais são?
Zequinha.
O Zequinha ate que tentou uma resposta e
fazendo aquela cara feliz de quem matou uma
charada, arriscou.
_Essa é fácil; claro que sei! O lado de
dentro e lado de fora.
O pai balançou a cabeça negativamente
varias vezes. E prosseguiu.
_Filho! No mundo só existe destilado e
fermentado.
O pai após dar a resposta certa não lhe
dirigiu uma se quer palavra ate o fim do dia.
Meu amigo disse-me com muito orgulho na
voz, que tem de seu pai filosofo e agora mestre
e guru; que o modo de pensar mudou. Refletiu
muito sobre a resposta e foi pesquisar nos livros
o significado de destilado e fermentado.
Diz ele que começou pelo dicionário,
passou para os livros de ciência, química,
biologia e historia. Diz que em um livro de
historia descobriu que os egípcios, alguns
séculos antes de cristo já produziam os
96
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
fermentados, mas o destilado é uma descoberta
mais recente. Nos livros de geografia foi procurar
onde ficava o tal do Egito e por coincidência
descobriu que teve um rei e por isso ele vive se
vangloriando. E sempre diz.
_Eu gosto do meu nome porque José foi rei
no Egito, outro José carpinteiro foi pai de Jesus,
outro José Sarney foi presidente do Brasil e José
de Saramago é um dos melhores escritores
contemporâneos que conheço.
O meu amigo, o Zé que não é presidente,
nem rei, nem pai de ninguém famoso e não
escreve nem carta pra namorada, nasceu na
periferia de São Paulo; mais precisamente no
extremo da zona leste. Mesmo assim ainda
empina o nariz e comenta sobre o lugar que
nasceu, com a força de um romano levantando
uma espada imaginaria.
_Nasci na periferia, porem meu bairro é
nobre, tem nome de conde Italiano. Ermelino
Matarazzo alem do mais estudei em um colégio
que tem nome condessa. Filomena Matarazzo.
Existe um fato muito importante que deixa
o meu amigo Zé em determinados momentos
com ar de tristeza; ele quando toca neste
97
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
assunto abaixa a cabeça e o silêncio lhe
consome, alem do mais sua voz sai embargada.
_Apesar de ter estudado um pouco, não
consegui terminar o ginásio. Hoje, vocês não têm
a noção de quanto isso me faz falta. Penso que
poderia rir um pouco mais no dia a dia, mas não
dá ficar chorando sobre o leite derramado e
vamos em frente que a fila está andando.
Numa destas noites, no auge da filosofia
nas mesas de bar, o Zé apareceu com um fato
novo que deixou muitos de nós com alta estima
e massageou nosso ego com certo comentário
que havia lido numa matéria em uma revista
mensal, que não me lembro o nome agora.
_Eu que sempre acreditei que pobre
quando não gosta de trabalhar, recebe o nome
de vagabundo e o rico quando não trabalha,
simplesmente sofre de ócio. Confesso que fiquei
surpreso com o que li esta semana. Imaginem
vocês ao descobrir que na Grécia antes de cristo
os homens tinham suas horas de ociosidade
diariamente para refletir sobre a vida. Por esse
grande motivo deu inicio a filosofia e nasceu
então os grandes filósofos. Isso é extremamente
bárbaro, saber que o meu vagabundear é uma
filosofia paupérrima!
98
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
O Zé obviamente herdou geneticamente do
pai esse sangue de filosofo da classe
desfavorecida. Eu no meu estado normal jamais
duvidei das suas capacidades de ir alem do
pensamento humano, porém há outros amigos
que debatem suas teorias e por trás comentam
que ele necessita de um tratamento psiquiátrico.
Numa outra ocasião, o Zé como
conhecedor expôs uma de suas teorias e a
contradição pelo que pude perceber foi quase
unânime no bar.
_Percebi ao longo destes anos de
pesquisas minuciosas que nós, os seres humanos
somos apenas hospedeiros dos genes. Muitos de
vocês neste exato momento deve estar
perguntando por que cheguei a essa estranha
conclusão. Os exemplos estão expostos em todo
linear da vida orgânica; desde a fecundação que
é o nascimento da seqüência da matéria, ate a
morte que é inatividade de reprodução em
seqüência das células. Pra ser mais claro digo
que o nosso corpo nada mais é que um meio de
reprodução e escudo de proteção dos genes
nesta guerra biológica. Obviamente, nesta
guerra invisível e inatingível pela inteligência
humana, os nossos protegidos genes, são os
99
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
mais desenvolvidos e ate então e se mantém
soberano no topo da cadeia hierárquica.
O que mais devo dizer desse amigo cheio
de historias, teses e filosofias que busca
integralmente a verdade onde ela estiver?
Para todos os seres deste planeta meu
amigo se chama Zé, mas nunca Zé ninguém ou
Zé das quantas e sim Super Zé, protetor dos Zes
que estão pelo mundo afora e os Zes que estão
por vir para um futuro misterioso.
Alguns anos atrás: mais para ser exato, em
mil novecentos noventa e oito o nosso amigo Zé
trabalhou com um espanhol de noventa e cinco
anos; nascido na Galícia: em um povoado
chamado de Trepa, do vilarejo de Jaira, da
província de Orense. O espanhol, assim todos o
chamavam: observava tudo de modo silencioso,
quase não falava e pouco mostrava seu sorriso.
Por esse motivo diziam: que era um homem
taciturno, frio, chato, rigoroso, e que não
gostava do barulho e a bagunça que os netos
faziam, quando ia a sua casa visitá-lo. O Zé
sempre deixava evidente a enorme admiração
pelo espanhol. E exclamava.
_Apreendi muito sobre varias coisas, nestes
cinco anos trabalhando com o espanhol. Fez-me
100
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
ler com mais atenção a respeito da península
ibérica, o estreito de Gibraltar, a cultura e a
culinária espanhola e ate um pouco da língua.
Entre nossos passeios matinais, para tomar sol
ou respirar um pouco de ar puro e sair daquele
ambiente de confinamento, no jardim bem
cuidado no prédio onde o espanhol morava;
tinha como habito: retirar as folhas velhas de
uma pequena arvore de fícus. Aquilo detinha
meus leigos pensamentos. Porque apenas uma
arvore e não duas ou três? E perguntei o porquê
deste ritual. Respondeu-me sob o efeito agudo
da depressão que absorvia suas horas que lhe
restavam. _ Não tenho como cuidar de ninguém
ou de mim mesmo, por isso me restam ainda
forças para cuidar desta simples planta; que faço
assiduamente desde que a plantaram aqui.
Os olhos pequenos, atrás daquelas lentes
dos óculos espessos, brilharam ao relatar sobre o
imóvel vegetal prematuro ao sol claro daquela
manha frívola de outono, que prenunciava um
inverno bem mais rigoroso do alto de Santana,
aos pés da serra da Cantareira. Depois chegou
sua terceira esposa perguntando por pessoas
que há décadas descansavam em seus túmulos e
jazigos. Confidenciou-me: fatos que ate então
101
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
não havia mencionado a ninguém: como as
proezas, as injurias e tristezas que habitavam o
mais profundo do seu intimo.
Meu amigo também deixava evidente a
sutil emoção ao se referir do patrão galego.
Talvez neste período que trabalhou com
espanhol tenha aprendido muito mais que a sua
consciência possa ter percebido todo o conteúdo,
e que talvez no futuro não muito distante os
exemplos vão ficando mais evidentes e com
muita inteligência, cavalgar sobre esta vasta
sabedoria exemplar, e porque não dizer secular.
E assim, Zé dizia aos quatro ventos a quem
quisesse ouvir.
_O velho tempo, carinhosamente abraça
um numero reservado de pessoas. Pessoas
privilegiadas que são arrastadas a sucumbir a
media de expectativa de vida. O espanhol foi um
destes escolhido a dedo pela mão divina, sobre o
olhar fraterno da nobreza de Deus, que qualifica
indivíduos com esta imensa capacidade de
suportar tanto peso e chicotadas sobre as costas.
Ouvia atento, seus ricos ensinamentos e suas
historias carregadas de cultura. Também ouvia
pacientemente suas reclamações rotineiras, alem
de incentivá-lo a fazer leves exercícios para
102
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
fortalecer
os
músculos
que
atrofiavam
lentamente. Também proporcionava muitos
melindres que exigia com seu sotaque portunhol.
Ainda posso ouvir o eco da sua voz quando me
disse com lagrimas naqueles pequenos olhos
negros e amedrontados, atrás daquelas espessas
lentes dos óculos.
_Tu sabes, Zé! Quando seguimos adiante,
em busca dos objetivos, como vencer na vida ou
sair à procura da grande paixão, deixamos para
trás coisas importantes: os pais, os amigos, os
parentes, o lugar onde nascemos e crescemos.
Com uma das mãos arrumava os óculos e
com a outra, balançava sua bengala de madeira
e prosseguia o ancião no relato histórico de sua
saga.
_Vim para este Brasil em busca,
primeiramente da minha prima e grande paixão.
Nos primeiros anos (por volta mil novecentos e
trinta três) casei-me, pois estava trabalhando no
comercio de bananas. Os anos passaram, meus
dois filhos nasceram e tornei-me um dos maiores
compradores de bananas de toda baixada
santista, destinadas para São Paulo. Consegui
um bom capital e construí uma ótima casa para
minha família. Neste ínterim meus pais morreram
103
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
na Espanha e não havia como chegar a tempo
para os velórios. Momentos difíceis foram
aqueles. Naquela época não era tão fácil viajar
como hoje, aviões turbinados e vôos diários.
Deu um gole no vinho do porto que haviam
lhe servido, e continuou o homem de quase um
século.
_Doze anos depois que havia chegado ao
Brasil, realizei um sonho, o de voltar para
Espanha para passear com a família. Ficando
aproximadamente seis meses. Conheci vários
lugares da Europa e da Espanha que ainda não
conhecia. Parte das terras que me sobraram, na
herança dos meus pais, doei para que fizessem
uma escola no vilarejo da Trepa, onde nasci. Lá,
com
uns
Trinta
anos
de
casados
aproximadamente
e
vários
patrimônios
espalhados por Pão Paulo. Um câncer
diagnosticado em minha esposa o leva a morte.
É como se o mundo fosse cair sobre minha
cabeça. Mas os meses passaram, ergui a cabeça
e trabalhei duro, mais para esquecer do que
necessidade. Pensei e pensei muito e decidi-me
por casar-me outra vez; e foi o que fiz.
Deu outro gole na pequena taça de vinho e
deslizou a língua pelos lábios para aproveitar os
104
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
últimos vestígios do bom fermentado, antes de
prosseguir.
_Fiquei
com
a
segunda
esposa,
aproximadamente, uns vinte anos casado. Só
que desta vez decidi viver um pouco mais, e
aproveitar a vida. Viajei muitas vezes por todo
Brasil e fora dele, (o Chile é muito bonito) se
assemelha com a Galicia na Espanha. Quando a
diabetes da minha segunda esposa se agravou,
ficou alguns meses, deitada sobre a cama e veio
a falecer. Eu estava com uns oitenta e cinco
anos, quando meus filhos arranjaram-me uma
terceira esposa. Desta vez foi à sogra do meu
filho com quem me casei. Aproveitamos uns
cinco anos lúcidos, ate que a esclerose deixou a
terceira esposa difícil de nos relacionarmos. Fazia
muitas confusões com roupas, o almoço, e com
as empregadas vivias aos socos por causa do
ciúme.
Com o auxilio da bengala fez os
movimentos característicos para se levantar da
poltrona que estava sentado, e concluiu.
_O resto da historia você já conhece. Agora
vamos almoçar que estou com muito apetite,
pois o cheiro deste cosido está de dar água na
boca.
105
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Ouvindo estes relatos o que posso concluir,
é que o patrão do meu amigo Zé não tinha
motivos para sorrir a não ser se fosse para rir da
própria desgraça. Tenho certeza absoluta que
se: um homem rir da própria desgraça, o
chamaram de louco. Então, novamente eu me
pergunto. Quais os motivos que este homem
tinha para viver sorrindo? De fato nenhum
aparentemente, apenas as glorias de ter
conquistado seus bens materiais com o suor do
seu amor ao trabalho e ter sobrevivido um
século, após tantas perdas no lado afetivo. Como
este espanhol ruminou durante anos estas
injurias?
Como
teria
suportado
tantos
rompimentos tão agressivos para qualquer
mortal?
Talvez o que mais se aproxime de todas as
homenagens que este homem recebeu no
decorrer de sua vida com tantas pedras pelo
tortuoso caminho, seja esta carta que meu
amigo Zé escreveu. Enviou-me alguns anos atrás
e foi esta carta que despertou em mim o
interesse no restante: da saga histórica; deste
imigrante, que muito contribuiu para São Paulo
ser hoje uma das maiores cidades do mundo.
106
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Eis aqui tantas palavras entre essa enorme
quantidade de linhas em branco, tentando
descrever uma digna homenagem a um
soberano monárquico, que enquanto reinou este
alicerçado castelo chamado família, honrou a
coroa de espinhos que o destino trançou e que o
fez usar sem que manifestasse a imensa dor. A
dor que só os grandes homens suportam com a
majestosa sabedoria.
As palavras, não justificam este gigantesco
empenho, mas propagam sua soberania, para
que o mundo além das suas fronteiras saiba que
existiu um ser supremo entre nós. Deixando-nos
também evidências concretas, que para ser forte
e feliz tem que saber que com a dor não se
lamenta ou chora, mas se nutre da necessária
bagagem a infinita experiência.
O mundo real que se manifesta através da
vida, todavia ficará triste por alguns tempos com
a morte de um dos seus reis. Porém Deus o
criador de todo o universo encontra-se muito
mais forte, porque resgatou uma das suas
energias elementares que empresta aos seres
vivos, desse fantástico planeta. Agora também
me encontro enriquecido com sua sabedoria
energética, a ponto de começar a escrever sobre
107
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
esta década de aproximação e quase cinco anos
de convivência diária. São poucos diante de cem
anos e seis meses vividos intensamente por ele.
Sou imensamente grato a Deus, por ter me
cedido esse imenso prazer de ter conhecido o
espanhol. Um homem do bem e que não há
limites para a minha admiração. Também me fez
crer que o ódio e a ira não existem, que são
criações da ilusão psíquica que destrói a coragem
e enfraquece o fundamental equilíbrio, essencial
para uma vida longa e inteligente.
Dizia-me também que Deus criou o mundo
e nos deu com tudo que é de bom e ruim, que
caberia a nós aceitarmos ou não. E que entre
aceitar ou não, existe uma profunda distância:
como ganhar ou perder, amar ou odiar, falar ou
calar, sorrir ou chorar, parar ou seguir. Seguir
sempre em frente sem nunca olhar para trás.
Pensar sempre que a vida é como uma estrada
de chão seco, depois que você passar, fique
imaginando a poeira voltando ao solo de onde
saiu bem lentamente!
108
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Parte l - A verdade
Meu nome é Stefano de Paula e esta
historia começa numa bela manhã de segundafeira, mais exatamente dia vinte quatro de junho,
quando Marinalva não chegou no horário de
costume para trabalhar em nossa casa. Nalva
como é chamada carinhosamente por toda minha
família; a nossa milagrosa secretaria que auxilia
minha esposa Stella há quase trinta anos nos
rotineiros trabalhos domésticos, viu meus filhos
crescerem, se formarem e se casarem. Stella e
eu, ainda sentado à mesa do café quando o
telefone tocou; antes que eu manifestasse em
atender, ela me pediu para abrir a janela do
nosso quarto que fica no andar de cima do
sobrado, para que a brisa fresca daquela manhã,
fria de outono pudesse invadir nosso quarto. Ao
subir os primeiros degraus da escada que me
levam ao andar de cima, pude ouvir Stella ao
telefone falando com Henrique; nosso filho mais
velho. Quando abri a janela, deixei-me por alguns
instantes a observar os primeiros raios solares de
um outono magnífico. Defronte a janela uma
praça com suas arvores, plantas e flores; uma
109
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
paisagem que nunca canso de apreciar e que só
se modifica dependendo das estações do ano. Vi
as folhas caindo lentamente... Como se o tempo
desse uma pequena parada naquele minúsculo
lugar... Que denomino “minha praça“. Sei
identificar ate o pássaro que tem seu ninho na
quaresmeira, o brilhante azulão, o sabia que pula
de galho em galho a procura dos insetos nos dois
salgueiros, na paineira de quase vinte metros,
dois casais de bem-te-vis construíram seus ninhos
e daqui pode-se ver os filhotes procurando o que
comer, e três palmeiras com vários ninhos muito
bem tecidos por beija flor. Posso dizer que é meu
particular espetáculo diário, onde extravaso boa
parte do meu estresse, ao longo destes anos bem
vividos. Porém, uma cena em especial chamoume a atenção: a primeira vista parecia um
mendigo com uma velha vassoura muito gasta,
estava juntando as folhas próximo onde estavam
seus poucos e destruídos pertences. Seria um ato
banal se não fosse feito com perfeição e total
apego pelas mãos daquele individuo que trajava
restos de roupas. Aparentando uns cinqüenta e
poucos anos, nele também continha sinais de
uma pessoa de suave beleza, seu olhar era
profundo e atento, seu nariz de uma perfeição
110
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
que me invejava, seus lábios ressaltavam naquela
barba grisalha há muitos meses sem fazer. Não
demonstrava falta de equilíbrio ou agressividade
naquele um metro e oitenta de altura, nem que
passasse fome ou algum tipo de necessidade.
Estava completamente compenetrado neste
quadro, quando de repente Stella entrou, me
surpreendera perguntando por que estava tanto
tempo debruçado na janela. Contei lhe com todos
os detalhes que aqui escrevi. Sem ao menos
raciocinar um mínimo possível, Stella disse que
realmente estava ficando velho, porque a
sensibilidade estava à flor da pele.
_Stella, minha doce Stella e companheira!
Disse eu passando a mão em seus cabelos cinza
encaracolados com um profundo prazer em ter
extraído daquele momento tudo que vi.
Realmente ela tinha razão eu tinha um dia inteiro
pela frente e alguns compromissos que não
podiam de nenhuma forma, serem adiados. Antes
que pudesse lembrar do telefonema que o tempo
fez questão de consumir, Stella deu-me o recado
de Henrique que necessitava da planta do prédio
onde temos nossa padaria, ate salientei a ela,
desejando não ser uma nova reforma; pois ainda
não havíamos se recuperado dos gastos da
111
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
anterior. O desenvolvimento faz parte do negocio,
porém mexer com a estrutura daquele prédio que
está impregnada com o meu passado, modifica e
apaga um pouco da minha alma que tanto
trabalhou entre aquelas paredes. Sai à rua
seguindo em direção a padaria que fica a dois
quarteirões e não pude deixar de olhar a praça
para ver o que fazia aquele pobre homem
naquele instante. Ate dei uma breve parada ao
notar que alimentava com pedaços de pão velho
alguns pombos e pardais famintos da praça, que
tem o nome em homenagem ao meu falecido pai:
praça “Giuseppe de Paula”. Quando meus pais
chegaram, há setenta anos, este lugar era uma
fazenda onde o cafezal mais parecia um mar que
se perdia de vista. Com passar dos tempos o
cafezal se acabou; o dono da fazenda foi
vendendo em lotes e meu pai comprou um
pequeno pedaço, onde hoje está situada à
padaria. Mais antes de começar produzir seus
pães, papai exerceu por muitos anos a função de
para-medico que aprendeu na primeira grande
guerra; não tinha boas recordações dos meses de
sofrimento no front. Aqui em São Sebastião do
Paraíso: ele curou muitas feridas horríveis. Salvou
muitas vidas e ate ajudava algumas mulheres
112
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
durante o parto; e assim lhe coube a justa
homenagem. Conheci as façanhas do seu “Pepe”
através da boca do povo e seus amigos antigos.
O respeito por ele cruzava os limites do
município... Sinto muito orgulho de ter sido filho
de um grande Homem...
Hoje estou com sessenta anos, ando
devagar, muito mais observo e tento resgatar
boas imagens do fundo da minha memória de
como tudo era antes, mas que o presente faz
questão de nos roubar. Memórias dos bons
exemplos e a educação sem ambição que recebi;
seguindo sempre o caminho da dignidade,
evitando
sempre
o
confronto
com
o
desconhecido, não deixando que os meus desejos
fossem maiores que a razão. Partindo deste
principio também tentei transmitir esses grandes
valores aos meus dois filhos; Henrique que nos
presenteou com dois netos: Mateus e Tiago em
quase dez anos de um estável casamento. Flavia
a outra filha também nos deu de presente uma
neta; que comemorou seu segundo, aniversario
no ultimo dia vinte sete. Flavia é casada com um
engenheiro e amigo de profissão. Meu filho
Henrique fez administração na faculdade e está à
frente dos negócios que envolvem a padaria.
113
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Enfim chego à padaria com a pasta de
documentos que contem a planta do prédio e
entrego sem muitas perguntas ao meu filho.
Cumprimentei o confeiteiro Luis que está conosco
há uns dois anos e meio, fui ate o Antonio o
panificador e amigo que já o conheço há vinte
anos e conversamos um pouco a respeito de
futebol, assunto que lhe interessa como
corintiano doente de ir aos estádios; também não
deixei de cumprimentar os três rapazes da copa,
um recém contratado há uns dois dias, alias
muito esperto e ativo nos seus afazeres. Carlos
Eduardo. Esse ultimo foi para quem pedi que
colocasse em um saquinho alguns pãezinhos
salgados e doces, pois não havia esquecido do
homem da praça. Atendi alguns clientes rotineiros
com quem converso dando-lhes a devida atenção
de um bom comerciante que os longos anos
deram-me de experiência. Quando já havia
despedido de todos e estava a caminho da rua
que me leva de volta para casa, chegava nesse
mesmo instante dona Olga. Olga é minha vizinha
do lado direito da praça. Cumprimentamos-nos
com toda educação e cordialidade que sempre
tivemos um pelo outro, mas fui surpreendido por
um apelo de dona Olga, que encabeçava uma
114
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
manifestação para a retirada do infeliz que
ocupava a praça. Não disse nem sim e nem que
não, apenas sugestionei que deveríamos esperar
pelo menos uma semana. Salientei que
normalmente pessoas assim, são como nômades,
não tem lugar fixo para morar e sem que
percebêssemos sairia dali. Desta vez sem
encontrar com nenhum conhecido fiz meu
caminho lentamente de volta. Em frente da
praça, parei. Caminhei mais lentamente em
direção aquele homem grande em farrapos. O
banho era algo que lhe faltava, isso era nítido aos
meus olhos, mas o odor não chegava ao meu
nariz que estava congestionado pela rinite
alérgica, comum nessa época do ano. Disse bom
dia, como que esperando uma resposta de um
louco com algum problema mental, porem não foi
isso que meus bons ouvidos escutaram, daquela
boca que da arcada estavam todos os dentes
aparentemente saudáveis, um preocupado, mas
em bom som.
_Bom dia.
Aceitou os pães que lhe ofereci,
agradeceu e continuou a escrever em um
caderno velho sentado ao banco da minha praça.
Perguntei seu nome, disse Mario sem ao menos
115
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
erguer seu olhar na direção do meu. Quando
estava me retirando agradeceu o que o ofertei
num breve obrigado. Retirei-me dali, rumo às
obrigações que o cotidiano inferiu-me com rigor,
porem meus pensamentos inclinavam a tentar
descobrir: que motivos haveria de ter aquele
homem para encontrar-se naquelas condições tão
precárias e subumanas. Por mais que me
esforçasse em direcionar o pensamento, as
opções eram muitas e todas tão degenerativas ao
extremo, e o destino para qualquer homem não
poderia ser outro. Tentando colocar-me em seu
lugar segui para casa.
A porta foi aberta por Nalva que explicou
os motivos do seu atraso: um assalto no ônibus.
E todos tiveram que ir a delegacia para dar
depoimento, pois o cobrador havia sido baleado
no ombro. Também disse que Stella havia ido a
drogaria e que não demoraria e o almoço sairia
em breve. Embora nos sentimos e agimos sempre
de maneira individual e egoísta, os rumos dos
nossos destinos estão sempre dependendo de
atitudes inesperadas de outras pessoas, mesmo
que a honestidade seja uma constante na maioria
dos nossos dias. Stella e eu, sempre na hora do
almoço conversamos muito. Afinal são trinta e
116
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
sete anos de união; com muitas dificuldades para
educar estes filhos sem perder o padrão. Tenho
orgulho em dizer aos quatro cantos que nunca
tivemos uma briga porque sempre discutimos o
assunto em questão. Stella é uma excelente
pessoa e uma grande amiga antes de ser minha
esposa; nunca me deu qualquer tipo de motivo
para que desconfiasse do seu caráter.
Comuniquei-a neste dia em especial que desejava
fazer um prato de comida para levar ao morador
solitário da praça, porem antes que concluísse:
Stella me fez saber o quanto o telefone havia
tocado na minha ausência. Contou-me sobre a
insatisfação e preocupação das mulheres da
vizinhança em relação à família e combinaram
entre elas que quanto menos o ajudassem mais
rápido ele sumiria dali, dando de volta a
tranqüilidade que o lugar sempre teve. Os
homens tiveram a inteligência de inventar o
telefone, mas as mulheres fazem o melhor uso
deste aparelho. Isso não me sobram duvidas.
Agora estou eu proibido por uma facção feminina
de ajudar um ser em completa dificuldade. Teria
que pensar em outra maneira de colaborar com
Mario sem desencadear a ira destas mulheres que
mais se parecem com onças se tratando de
117
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
proteger sua ninhada. Por nenhum momento
meus pensamentos cogitaram em desistir de
socorrê-lo. Por varias vezes perguntei a mim
mesmo. Será que este homem faz parte do meu
destino?
À tarde já se ia fria como começou, à
noite estava chegando sorrateira e as primeiras
estrelas se faziam brilhar na imensidão do nada
em um silencio retido. Foi isso que vi, ao dar uma
ultima olhadela naquele individuo ao relento pela
janelinha da porta da sala de televisão. Não pude
deixar de notar que, com a mesma maestria
repetia com a vassoura sua faxina.
No outro dia pela manhã, após o café fiz
questão de abrir novamente a janela do quarto,
na expectativa de não mais encontrar meu
vizinho sofredor da praça e que todos
repudiavam. Mais lá estava ele, desta vez
escrevendo em seu caderno mal conservado. Sai
á rua em meu destino habitual, mas antes de
seguir gostaria de cumprimentá-lo, e o fiz
passando o olhar rapidamente pelas janelas
vizinhas.
Aproximei-me,
cumprimentei-o
e
perguntei por que gostava tanto de varrer aquele
local. Como que não gostando da pergunta que
havia lhe feito, com movimentos bruscos,
118
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
levantou rapidamente, pegou a vassoura e
começou a varrição acelerada e dizendo três
vezes a mesma frase.
_Eu preciso limpar tudo que sujei.
Fui me afastando daquele local que para aquele
pobre individuo era o lugar mais sujo do bairro.
Neste determinado momento confesso que pensei
em se tratar de um ser com problemas mentais
profundos e que de fato todos ali corríamos total
perigo com ele por perto. Com toda estas
incertezas sobre seu caráter, o que havia de
preocupação por parte das mulheres ganhou
forças em meus pensamentos. Durante meu curto
percurso ate a padaria, aquela frase repetida três
vezes, retumbava como um tambor determinando
o ritmo dos passos que me restavam. (Preciso
limpar tudo que sujei). Fiquei por três horas na
padaria como de costume, e desta vez não pedi a
ninguém que preparasse algo para aquele senhor
desequilibrado que invadiu o meu jardim.
Também já estava decidido a ligar para um
destes órgãos de amparo as pessoas carentes,
para que o retirassem de lá, e dessem a ele um
tratamento que só os loucos necessitam, antes
que o pior viesse acontecer para algum dos
moradores. Com esse turbilhão de idéias
119
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
completamente contra ele, segui o meu caminho
de volta. Desta vez nem pensei em parar ou olhar
o que poderia estar fazendo aquele ilustre
cidadão. O portão já estava sendo aberto pelas
minhas cansadas mãos quando ouço uma voz
conhecida aos meus ouvidos. Virei e vi do outro
lado da rua enfrente, o mendigo chamando-me
pelo nome e acenando com uma das mãos, já
que a outra segurava uma caneta. Atravessei a
rua em sua direção e antes que falasse algo, me
disse.
_Bom dia.
No rosto enrugado como o meu, um leve
sorriso. Perguntei assustado como sabia meu
nome se eu não havia lhe falado. Respondeu-me
dizendo que tinha conversado com varias pessoas
nestes dois dias e que no mundo não existia
somente eu, que um deles havia dito a ele meu
nome e que sou o dono da padaria; em seguida
pediu-me uma caneta mostrando a sua toda
destruída.
Cheguei em casa, abri a gaveta do meu
escritório e peguei quatro canetas enquanto, meu
cérebro tentava desvendar o mistério que fez
com que Mario se desestruturasse daquela
maneira. Seria ele um escritor, frustrado, que não
120
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
teve nenhuma oportunidade de publicar seus
livros? Ou seriam somente cartas, a um antigo
amor não correspondido? E porque precisava ele
limpar tudo que sujou?
Quando lhes entreguei as canetas
agradeceu cordialmente. Olhei ao redor para unir
mais peças ao quebra-cabeça; vi muitas revistas
velhas e uma pequena pilha de jornais de
números anteriores, que acredito ter recolhido
dos lixos, dois cobertores sujos, uma mala de
viagem destas de rodinhas toda esbugalhada,
uma trouxa de roupas, caixas de papelão abertas
que com certeza serviam-lhe de colchão, e um
grande saco plástico dobrado; isto deve ser útil
para quando chover. Foi o que pensei.
Contei-lhe que havia nascido naquele
lugar há sessenta anos e alguns fatos sobre
minha família, quando ainda vivia com meus pais
e recentemente com minha esposa e filhos.
Também fiz varias perguntas sem obter
respostas, após quase vinte minutos que só eu
falava, finalmente fiz uma pergunta e Mario
emitiu uma simples resposta. A pergunta foi curta
e grossa.
_Para onde pretendia ir depois que
deixasse a praça?
121
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Sem muito pensar sobre a resposta que
também saiu curta e grossa.
_Esta é a ultima parada.
Em seguida, levantou e voltou a varrer ao
seu redor e não emitiu mais nenhuma palavra.
Quando me afastava agradeceu as quatro
canetas.
O passado de certas pessoas se parece
com um novelo emaranhado, que no presente
parece algo difícil de desmembrar e passa a ser
rejeitado a todo custo para o futuro. Os poucos
fatos que ate então eu tinha deste pobre homem
não me dava sustentação para poder ajudá-lo. O
conhecia há quase dois dias e apenas ouvira dele
três frases e nada mais. Assim sendo decidi não
ligar aos órgãos para retirá-lo dali, pelo menos
por enquanto, também durante o almoço e o
jantar nada comentei a Stella sobre ele.
Na quarta-feira dia vinte e seis, aquele
velho e bom ritual aguardava-me sempre sem
muitas novidades, apenas o sol que resolvera
esconder-se atrás de algumas nuvens carregadas
de chuva, que ameaçavam desmoronar sobre a
pacata São Sebastião do Paraíso.
Meu amigo varria seu apossado jardim,
que de longe acenou ao meu bom dia, também
122
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
não parecia preocupado com que os céus
pretendiam nos presentear e assim segui o meu
nobre caminho desta vez com um guarda chuvas
que me servia de bengala.
Nos afazeres da padaria as horas vão
passando sem que perceba de tão grande o
envolvimento. Às vezes é alguma maquina que
precisa de limpeza ou manutenção, noutras
mercadorias
com
validade
vencida
que
necessitam trocar; receber os fornecedores e
conferir mercadorias que chegam quase o dia
inteiro.
Só fui perceber que estava caindo àquele
temporal porque o barulho era assustador e a
cidade escureceu apesar de ser onze horas da
manhã. Também percebi que Mario protegia-se
embaixo do toldo, pedi ao funcionário da copa
que levasse um copo de café com leite e dois
pãezinhos com manteiga, lá onde se encontrava.
Enquanto tomava seu café pude notar que de
momentos e momentos colocava seus olhos
sobre Carlos Eduardo; nosso novo funcionário.
Para ser sincero. Achei esta cena normal;
partindo de um ser no estado que se encontrava
o Mario, sem suas faculdades normais. Enfim
quarenta minutos de chuva foram suficientes
123
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
para o dia voltar a sua cor e os raios do sol
brilharam por todos os telhados das casas
vizinhas. E com a chuva ainda por parar o pobre
homem voltou, acredito que para o seu jardim
agora alagado.
No final da tarde sentei-me junto a ele no
banco enquanto escrevia em seu sujo caderno,
mas que parecia haver aproximadamente
duzentas paginas. De inicio tentei conversar
sobre a chuva daquela manhã, ele pouco
manifestou interesse sobre o fenômeno climático.
Também perguntei se havia molhado seus poucos
pertences, balançou a cabeça de forma negativa
sem ao menos levantar seu olhar em direção aos
meus. Percebi novamente que não estava
disposto a falar, mas eu continuei relatando sobre
meu passado que o tempo foi tão bondoso. Falei
muito sobre o quanto fora grandioso os gestos de
meu pai para os que necessitavam, o trabalho
duro nos cafezais e qual a magnitude da herança
do seu caráter como marido. Confiei-lhe assuntos
de todos estes anos de relacionamento com
Stella, como só se relata no consultório de um
psicanalista e deitado no divã. Mencionei um fato
marcante ocorrido quando ainda tinha quarenta
anos aproximadamente, no auge da virilidade;
124
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
uma freguesa que persistia em corromper-me.
Muito formidável e simpática por sinal; um corpo
que deixava todas as mulheres da cidade
preocupadas. Foi neste exato momento que notei
mesmo com sua cabeça abaixada como que
olhando o chão, as lagrimas corriam sobre sua
face que naquele instante demonstravam
extrema tristeza. Logo em seguida levantou do
banco e outra vez pegou a vassoura e pronunciou
a antiga frase com movimentos acelerados.
Na cama antes do sono levar-me ao
descanso tentei refletir sobre estes últimos
contatos que tivemos. O pouco que me aproximei
do que podia ter afetado aquele infeliz, poderia
ser relacionamento ou perda de algum filho. Esta
ultima conclusão retirei dos olhares sobre Carlos
Eduardo naquela manhã na padaria. Mais
simplesmente eram conclusões de um ser
humano sem experiência neste assunto, que
desesperado tentava ajudar alguém que
atravessava uma fase complicada.
No quarto dia ou quinta feira, vinte sete
de junho os compromissos me aguardavam como
sempre. Desta vez necessitava ir ao fórum
trabalhista, em uma audiência movida por um exfuncionário insatisfeito com que fora indenizado.
125
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Ao sair neste dia notei que meu amigo não se
encontrava nas proximidades, apenas seus
pertences amontoados sobre a sombra do
salgueiro. Ate pensei em ter despertado nele a
lucidez, ou mesmo a saudade deste suposto
alguém que lhe roubara a insensatez. Pensando
assim com pura satisfação administrei meus
compromissos daquela manhã. Confesso que
fiquei um pouco surpreso e desiludido à tarde
quando retornei, e lá estava Mario sentado
novamente escrevendo.
O prazer é algo exclusivo a espécie
humana. O prazer em comer bem, dormir e vestir
com certo conforto, viajar e não permitir a
exclusões e privações. Perguntava-me a todo
instante, porque então certas pessoas perdem o
essencial prazer em um determinado momento
da vida? Talvez o único companheiro deste
homem seja o passado e nele guardado todos os
mistérios e que com ele serão enterrados sem
que eu pudesse saber. Foi o que pensei numa
determinada época de incertezas.
As comemorações juninas de São João e
os fogos de artifícios despertaram-me durante
aquela noite que com certeza foi a mais fria do
mês. A insônia que perdurou aproximadamente
126
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
duas horas, e fizera com que os meus
pensamentos em toda estas questões não me
dessem trégua. O que também contribui a deixarme irritado com tamanha intromissão.
No dia vinte e oito, sexta feira; lutei com
todas as forças que tenho, tentando ficar alheio.
Evitei olhar para a praça quando sai de casa. No
trabalho procurei fazer ate o que, (alguns anos
havia deixado de lado), como subir em escadas
para limpar as luminárias as prateleiras mais
altas. Liguei a Stella dizendo que não viria
almoçar em casa. Pintei o deposito que estava
mofo de tanta umidade. Por fim no final da tarde
fui ao banco fazer os depósitos e os pagamentos
no lugar do meu filho. Quando voltei para casa já
era noite e agi da mesma maneira daquela
manhã, evitei o olhar na direção da praça.
Após um excelente jantar no qual Stella
preparou um creme de palmito com pão italiano,
aproveitei abri um vinho tinto chileno Santa,
“meu favorito” safra de noventa e sete. Assisti
um pouco de televisão, logo em seguida fui para
cama, li algumas paginas de: Quem matou
Palomino Molero do Mario Vargas Loosa, ate não
resistir ao cansaço do dia adormeci como uma
127
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
criança que gastou toda sua energia divertindose.
Na manhã seguinte tomava o café quando
Stella alertou-me do jantar que teríamos para
comemorar o aniversario de casamento da nossa
filha em sua casa que fica no centro da cidade.
Também que não trabalhasse tanto porque a
noite iria ser longa e que principalmente não me
queria vereu dormindo no sofá da filha. Quando
realmente coloquei os pés fora de casa, estava
determinado a fazer no sábado o mesmo que fiz
na sexta: faria o impossível para esquecer de
tentar
solucionar
os
problemas
daquele
desconhecido. Também porque o movimento na
padaria triplica no final de semana. Dirigia-me no
rotineiro caminho, porem do outro lado Mario
gritou uma frase que no devido instante teria
entendido assim: “hoje será um grande dia”, e
continuou varrendo com satisfação. Agora
refletindo melhor depois do que ocorreu, penso
que a frase dita por ele eu tenha confundido;
realmente ele disse: “hoje será o grande dia”.
Na padaria o movimento foi o esperado
por mim. Gente entrando e saindo a todo
instante, no final da tarde tudo ficou mais calmo
e pude assim sair do caixa onde fiquei quase o
128
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
dia inteiro. Era quase seis horas da tarde quando
meu filho parou seu carro na porta de casa e
entrei correndo para tomar um banho, fazer a
barba
e
vestir-me
adequadamente.
Primeiramente, tirei o carro da garagem e fomos
à missa na capela de Santa Rita de Cássia, rezada
especialmente aos casais que faziam aniversario
naquele dia. A missa se estendeu ate às oito
horas da noite e de lá seguimos em direção a
residência da minha filha onde se realizou o
jantar. Havia trinta e cinco convidados: amigos do
casal, familiares do meu genro e minha família. A
festa foi uma maravilha, nada faltou, muito
menos alegria. Há muito tempo não me divertia
tanto assim. Como é bom estar entre pessoas
que realmente estão de bem com a vida, sem
contas a pagar com a consciência. Quando
decidimos ir para casa já se passavam da uma da
madrugada. O bom vinho branco português
servido me fez relaxar um pouco, pois quando
chegamos em casa nem me preocupei em olhar
para a praça enquanto guardava o carro na
garagem. Stella e eu ainda ficamos um longo
tempo rindo e conversando. Relembrando a
primeira aula de balé de Claudia. Quando caíram
seus dentes de leite da frente. Na formatura e
129
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
quando fez quinze anos pisei no seu pé na hora
da valsa, e assim adormecemos.
Já se passavam das nove horas da manhã
quando fui despertado pela campainha da porta
principal. Coloquei o roupão, desci a escada, um
pouco preocupado, ansioso em saber quem
poderia ser naquele domingo frio, no qual
desejava muito ficar de pijama sobre os
cobertores o dia inteiro. Quando abri a porta o
susto foi grande, ao ver meu filho acompanhado
com um homem de fardas da policia militar. Mais
do que depressa perguntei o que estava
acontecendo. Henrique notando toda minha
ansiedade pediu-me para se acalmar que o
sargento Bismark explicaria.
O sargento calmamente foi relatando tudo
o que eu queria saber. Que a central recebeu um
chamado de um dos nossos vizinhos: que ao
levar seu cachorro para um passeio e suas
necessidades na grama da praça, encontrou dois
corpos de homens, estirados ao chão e poças de
sangue por todos os lados. Um dos corpos não
fora identificado, pois não havia documentos,
também salientou tratar-se de um mendigo e que
talvez seria enterrado como indigente. O sargento
Bismarck segurando uma identidade leu o
130
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
seguinte: o outro homem era Carlos Eduardo
Xavier, vinte quatro anos, brasileiro, natural da
cidade de São Paulo. Perguntou também se eu
tinha alguma informação que pudesse lhe ajudar
nas investigações. Respondi que não tinha a
menor idéia do que havia acontecido. Fez-me
duas ultimas perguntas, que uma delas no
momento optei por omitir a mais pura verdade.
Perguntou-me se eu saberia o que o funcionário
da padaria fazia junto daquele mendigo. Como a
outra respondi que nada sabia e que não tinha a
menor idéia do que aconteceu naquela praça. A
outra foi se eu tinha ouvido barulhos de tiros
durante a noite. Disse que havia chegado de
madrugada e que ouvi muitos barulhos, mas de
fogos de artifícios.
O sargento se despediu agradecendo e
desejando se assim conseguisse em ter um bom
domingo. Desejei o mesmo e no final um bom
trabalho nas investigações. Meu filho pediu para
não me preocupar e tentar descansar, que
resolveria toda burocracia ele mesmo e depois
ligaria. Acompanhei meu filho ate o portão e pude
notar alguns carros de policia, inclusive aquele de
transportar defuntos do instituto medico legal. Ao
voltar na direção da porta, notei que havia um
131
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
caderno grosso embalado num saco plástico
transparente debaixo do carro; peguei-o e levei
para dentro de casa. Antes de guardá-lo na
gaveta do escritório notei a semelhança daquele
que Mario passava a maior parte do tempo a
escrevê-lo. Realmente não consegui abrir aquele
caderno, naquele momento sentia um peso de
consciência enorme. Não por mentir as
autoridades informações que poderiam chegar à
verdade daqueles fatos. Eu realmente sentia-me
o culpado pela morte do funcionário. Porque eu
havia na tarde anterior pedido um favor a ele:
que quando saísse da padaria para pensão onde
se alojava, que passasse na praça e entregasse
ao Mario dez reais para comer algo no domingo e
que não comentasse nada com ninguém.
O que de fato teria ocorrido naquela
praça? O porquê e o que levaria a tamanha
monstruosidade?
Eram
perguntas
que
bombardeavam meu cérebro incessantemente.
Subi para o quarto tentei dividir um pouco da
minha culpa com Stella, mas enquanto relatava
os fatos me senti envergonhado de ser cúmplice
de cabeças de extrema insanidade.
Sentados à mesa, enquanto eu tentava
comer algo o telefone tocou; desta vez fui mais
132
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
rápido que Stella e atendi. Do outro lado da linha
meu
filho
deu-me
algumas
conclusões
antecipadas do perito em criminalística, que o
sargento Bismarck lhe confidenciara. Por alguns
segundos fiquei sem dizer uma palavra, parado e
mudo, quando me disse tratar de homicídio
seguido de suicídio; que o mendigo atirou na
nuca de Carlos Eduardo e depois fez um disparo
em seu próprio ouvido esquerdo. Por fim ouvi
depois que conseguiram encontrar os pais de
Carlos e que na segunda apresentaria as
despesas com os papeis e o transporte do corpo
para São Paulo. Só comecei a livrar-me daquele
peso de consciência, quando abri o caderno na
primeira pagina, e lá estava escrito em letras
muito legíveis.
133
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Parte II - O abismo
São Sebastião do Paraíso, 29 de junho de
2001.
Os homens nascem com seus destinos
traçados, por alguém muito especial e meticuloso.
O seu destino caro amigo Stefano, me faz
lembrar este jardim muito bem cuidado: com
belas arvores, vários tipos de flores, um ótimo
gramado que me serviu de cama e me acolheu
nesses últimos dias difíceis de minha vida; peço
perdão por manchá-lo de tristeza e ódio e se
pudesse de joelhos o faria. No meu jardim foram
semeados espinhos e pedras, tenho certeza
absoluta que por minhas mentiras, quando em
frente às encruzilhadas da vida, não soube como
você escolher a direção correta da verdade. Só
espero que deste dia em diante, os pássaros que
freqüentam o seu jardim pulando de galho em
galho cantem mais alto que a minha dor e que
não fujam diante da cor do meu inferno que vejo
agora. Que Deus esteja com sua família.
Virei à próxima pagina do velho caderno
com lagrimas que escorriam sobre o rosto, porem
134
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
as expectativas de elucidar esse mistério me fez
continuar a leitura.
São Paulo, 23 de fevereiro de 1950.
Foi perfeitamente nesta data que
desembarcamos na estação Julio Prestes, vindos
da cidade de Piracicaba. Meu pai Luis Gomes do
Prado, minha mãe Carmem Prudente do Prado e
meus dois irmãos: Luis Gomes do Prado Filho,
Antonio Gomes do Prado Neto. Mario Gomes do
Prado Sobrinho é meu nome de batismo,
homenagem que meu pai fez ao seu irmão morto
na segunda guerra, precisamente em Monte
Castelo na Itália. Nesta época São Paulo crescia a
todo vapor, construções por todos as partes:
viadutos, pontes, ruas, prédios, e varias
indústrias; o comercio também era algo muito
atrativo. Por estes motivos recebia imigrantes de
todas as partes do mundo. Meu pai vendeu sua
fazenda de setenta alqueires e veio atrás de um
sonho que se realizou. Dizia ele com muito
135
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
orgulho. “Eu consegui realizar os meus sonhos e
vocês devem lutar por isso também”. A principio
nos estalamos em uma modesta casa no bairro
do Bom Retiro, uma rua tranqüila e calma,
daquela São Paulo antiga e da garoa. A nostalgia
que me sinto da ainda algum prazer! Eu tinha
onze anos, fui matriculado na sexta serie do
primeiro grau no colégio Sagrado Coração de
Maria, onde também terminei o segundo grau
sem ser reprovado, depois fui para faculdade São
Francisco, quando sai estava com o diploma de
advogado nas mãos. Meu pai comprou um belo
terreno de esquina na rua Galvão Bueno com
Barão de Iguape, construiu um posto de gasolina.
Os dois primeiros anos foram complicados ate
adaptar-se ao novo tipo de atividade comercial. O
homem sabia como ninguém fazer seus negócios,
após quinze anos tinha dez postos de gasolinas e
vinte imóveis espalhados pela cidade. Meu pai foi
um homem muito trabalhador, totalmente
empenhado nos negócios. Quando adolescentes,
pouco nos víamos; ele saia de casa muito cedo,
pois quando voltava nos encontrava dormindo;
também tinha o péssimo habito de fumar em
excesso. Há de se dizer que nos deu uma vida
muito regrada, nos vestíamos com boas roupas
136
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
dos melhores alfaiates, recebemos uma educação
muito rígida, e pouco carinho por parte dele. Meu
irmão mais velho, o Luis formou-se em medicina
na Escola Paulista de Medicina, montou uma
clinica e hoje é acionista de uma gigante na área
de
assistência
à
saúde.
Tem
viajado
constantemente ao exterior e ao Brasil inteiro
fazendo turismo e participando de congressos
dentro da sua área de trabalho. Pra ser sincero
tenho muitas saudades dele; a ultima vez que
nos vimos, foi quando me internaram em sua
clinica, após uma profunda depressão. Já se
passaram dois anos.
Quando
eu
tinha
dezoito
anos
aproximadamente, uns amigos da faculdade me
convidaram para uma festa no bairro da Lapa,
disseram que teria belas mulheres, que não
faltariam bebidas de todos os tipos. Convidei meu
irmão Antonio com quem mais me identificava
para irmos juntos, por duas vezes ele disse que
não poderia, porque tinha muitos trabalhos
atrasados da faculdade onde cursava o segundo
ano de jornalismo. Pela terceira tentativa
consegui arrastá-lo para aquela que seria a
grande festa do ano. Fomos de carona com
amigos que os pais não eram tão rigorosos com
137
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
as economias. Realmente a festa tinha tudo que
eles prometeram. Conheci uma bela jovem
daquelas bem atrevidas, morena de curvas
perfeita pra uma noite de orgia, sensual ao
extremo. Que se chamava (Cristina Lessa Lemos).
Quando a vi assim que cheguei, disse ao Antonio
e dois amigos que estavam do meu lado.
_Daria a minha vida para transar com esta
mulher.
Engraçado, me lembro como se fosse
hoje, porque não foi difícil de conquistá-la. Em
um determinado momento em que nos
beijávamos freneticamente, surgiu meu irmão
dizendo que um amigo ia embora, que ele
aproveitaria a carona. Voltou a explicar dos
trabalhos atrasados que necessitava fazer para a
faculdade; despedimos-nos e continuei agarrado
ao fogo da (Cristina Lessa Lemos) por quase toda
noite.
Três horas depois que meu irmão e o
amigo se foram, nós também deixávamos à festa.
No meio do caminho uma multidão se
aglomerava perto de um caminhão e quatro
viaturas da policia; quando cheguei mais próximo,
pude ver melhor que havia um automóvel azul
destruído debaixo do caminhão. Estacionamos o
138
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
carro e fomos ver bem de perto, como todos os
curiosos que ali estavam. Olhei e vi que eram
dois
jovens
esmagados,
totalmente
ensangüentados. Cheguei mais perto e vi, mortos
pelo acidente com o caminhão, meu irmão e o
amigo. Que cena horrível que nunca saiu da
minha mente.
Dia primeiro de abril de mil
novecentos e cinqüenta e sete, tudo parecia uma
grande mentira. O velório foi um dos dias mais
tristes da minha vida. Eu não queria acreditar que
era o responsável indireto, a tristeza tão grande
que meus pais sentiam naquele momento. A
angustia cortava meu coração como faca afiada e
aquecida em fogo; pensei em sumir pelo mundo
como um andarilho porque ao suicídio me faltava
à coragem. Meu pai nunca mais sorriu diante dos
meus olhos, mesmo sem saber que eu havia
insistido tanto para Antonio ir aquela maldita
festa. Minha mãe mostrou-se bastante forte,
tentava de todas as maneiras erguer o astral da
família, mas mesmo assim ficava evidente que
aquilo era só fachada, porque a tristeza aos
poucos lhe venceu e a insanidade fez o restante
do trabalho. Morreu internada no manicômio
municipal de tuberculose onze anos depois do
acidente de Antonio. Durante o ano que minha
139
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
mãe passou internada no manicômio, meu pai
passou a trabalhar muito mais do que antes, alem
de fumar, também passou a beber nos finais de
semana; ficava completamente embriagado.
Transformou-se de tal maneira em um homem
que ate então não tinha conhecido. Dividiu boa
parte de seus bens entre eu e Luis, com que
sobrou voltou para Piracicaba dois anos depois da
morte da minha mãe. Casou novamente, teve
mais dois filhos e veio a falecer de infarto do
miocárdio em 1982 aos sessenta seis anos. Sua
ex-esposa nos confirmou no velório que estava
trabalhando no momento do golpe fatal. Tenho
certeza que era um grande homem, não mereço
ser nem a sombra que lhe acompanhava. Morreu
na vertical, de pé como um bravo lutador. Luis foi
o primeiro a dizer para sairmos daquela casa. Ela
tinha ficado muito grande faltavam pessoas
importantes. O silêncio ecoava no vazio da eterna
solidão que nos acompanhava por todos os
cantos, as noites eram mais longas que de
costume. Nunca mais ninguém ouviu uma
gargalhada entre aquelas paredes, a não ser
algum programa no aparelho de televisão. Assim
decidimos vendê-la para tentar enterrarmos o
passado num buraco bem fundo que talvez o
140
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
tempo nos ajudasse a esquecer. Meu irmão
comprou um apartamento pequeno no largo do
Arouche, o trabalho exigia uma carga horária
altíssima, os amigos que tinha eram médicos e
profissionais da área. Quando uma pessoa
escolhe ser medico sabe que não terá finais de
semana, ate a própria família é sacrificada; talvez
seja este motivo que médicos casam com
médicas e vice-versa e foi o que aconteceu com
Luis. Comprei uma casa em Pinheiros, próximo a
um dos postos que herdei, optei por esta região
porque tinha vários amigos no bairro, pensei que
pudesse amenizar a solidão que insistia em me
entediar. Organizava algumas festas tentando
manter a noite o mais ocupado possível, mas a
única coisa que consegui foi gastar parte do meu
dinheiro. Após pensar muito e ouvir conselhos de
amigos achei que deveria casar; aproveitei que
estava namorando a filha de um amigo que
distribuía gasolina com seu caminhão. Conheci
Andréa numa festa de confraternização de final
de ano; ate hoje e uma mulher muito elegante,
as belas jóias escolhidas com requinte, seus
cabelos pretos e lisos cortados na altura dos
ombros brilhavam a distancia. A sua simpatia é o
seu charme e ainda fala francês muito fluente.
141
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Casamos-nos em mil novecentos e setenta e
cinco e a todo custo Andréa queria ir para a
Europa, especialmente Paris passar a lua de mel.
Implorou-me dizendo ser um sonho de menina,
em troca eu queria uma criança correndo pela
casa o mais rápido possível; ela disse sim e
depois de nove meses nasceu Pedro Antonio. E,
diga-se de passagem, trouxe-me a alegria
perdida, era tudo que eu precisava naquele
momento da minha vida.
_Agora a minha família está completa!
Dizia eu aos quatro ventos. Pedro Antonio
tinha quase um ano quando teve uma infecção
intestinal e tivemos que levar ao hospital, quando
Andréa me ligou estava trabalhando. No hospital
o medico fez os exames necessários e colocou
nele o soro; alegou estar desidratado. Ainda
prescreveu em seu receituário e entregou-me
uma folha. Andréa ficou ao lado de Pedro Antonio
no ambulatório enquanto sai na direção da
farmácia, porem no corredor encontrei com
Cristina Lessa Lemos trabalhando de chefe das
enfermeiras. Conversamos um pouco sobre tudo,
mas sentimos principalmente à vontade de nos
beijar outra vez. Pedro Henrique se recuperou
rapidamente,
fiquei
excessivamente
feliz,
142
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
principalmente porque Cristina Lessa estava
morando a três quadras de casa. Porque ela
continuava com os mesmos contornos e a
sensualidade saindo por todos os poros. A loucura
em carne e osso novamente a minha disposição.
Dia dezenove de novembro o calor do verão
sufocava os paulistanos naquele fantástico fim
tarde. Foi quando me encontrei depois de tantos
anos com Cristina Lessa; ate então não tinha
cometido nenhum adultério. Como sempre suas
roupas muito insinuantes, um lindo decote
convidava-me a esquecer de Andréa por muitos e
muitos anos. O seu perfume me embriagava de
tal maneira que não enxergava mais nada na
minha frente. Somente seus lábios, seu pescoço,
suas orelhas, enfim seu corpo todo; sentia como
se o mundo fosse acabar perdidos sobre aquele
desejo
insaciável.
Os
nossos
encontros
sucederam por dois meses aproximadamente, no
total foram sete encontros sempre com a mesma
intensidade. Porém, na quinta vez notei em seu
rosto certa preocupação; não demonstrava
aquela grande excitação. Perguntei o que estava
acontecendo, insistentemente e somente no
ultimo
minuto,
quando
estávamos
nos
despedindo que resolveu dizer que achava estar
143
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
grávida, pois a sua menstruação estava muito
atrasada. Perguntei se havia feito o teste, apenas
respondeu que estava com medo do resultado,
mas que providenciaria na semana seguinte. No
sexto encontro o mesmo ar de preocupação
apagava seu brilho sensual, que me fizera
transbordar em êxtase de prazer e desejo. Não
esperou que eu perguntasse e antes que pudesse
dar um abraço ou beijo, revelou que realmente
estava grávida. Disse a ela que a melhor saída
era casar com o pai da criança; ela se atirou nos
meus braços sorrindo e falou.
_Serio, você se casaria comigo Mario?
No momento pensei que Cristina quisesse
usar da minha frágil devoção por aquelas
perigosas curvas, e sem o mínimo de raciocínio
ironizei-a, e disse.
_Você não quer que eu acredite que este
filho seja meu?
Cristina saiu chorando pela rua e não
olhou para trás nenhuma vez, após dar-me um
tapa no rosto. Após quinze dias ela me ligou e
queria se encontrar comigo, marcamos o horário
e fui eu carregado de duvidas e um pouco de
esperança, que talvez ela estivesse blefando em
relação à gravidez. Estava com o carro parado
144
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
sentado ao volante quando ela chegou. Disse-me
uma boa tarde formal e colocou em minhas mãos
uma caixa revestida de papel de presente.
Perguntei o que era. Ela no momento sorria,
quando respondeu.
_ Presentes pra você meu amigo.
Depois se retirou, também nunca mais me
ligou. Segurava a caixa com receio, dei uma leve
chacoalhada e não ouvia nada de estranho ou
que pudesse identificar, fui abrir do lado de fora
do carro. Quando abri, vi as jóias que havia lhe
presenteado. Um colar de perolas, três braceletes
em ouro branco italiano, um anel de diamantes e
alguns brincos de ouro dezoito quilates. Confesso
que naquele momento fiquei sem entender. Hoje,
uma vez ou outra a vejo trabalhando no açougue
com seu marido e ainda mora no mesmo bairro.
Fiquei sabendo de amigos que tem dois filhos,
um rapaz e uma moça. Vinte e poucos anos se
passaram no começo foi difícil de esquecê-la.
Também foram vinte anos gastando dinheiro em
festas e viagens; conheci a miséria da África, mas
os exóticos animais, as misteriosas pirâmides do
Egito, o deserto do Saara, fui a Cuba ouvir Fidel
Castro em seu memorável discurso de quase
quatro horas, fui ao Chile e conheci Isla Negra de
145
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Pablo Neruda. Vendi meus imóveis e o posto de
gasolina que me sobrara, investi em salas
comerciais e montei uma agencia de turismo pra
não ficar sem o que fazer. Pensava que com
aquilo dava para terminar os meus dias sem pedir
esmolas a ninguém.
_Puro engano.
Voltando a nossa historia. Meu filho Pedro
Antonio cresceu forte. A sua inteligência o
colocava sempre à frente dos outros da mesma
idade; o companheirismo nunca lhe faltou. No
ginasial e colegial: nunca recebemos algum tipo
de reclamação, alias o que não faltaram foram
elogios de todos os lugares que passava. Pela
primeira vez na minha vida estava sentindo
orgulho de algo que tinha feito. Empenhamos-nos
em dar o melhor da educação, carinho e atenção
sempre primordial a ele. Quando perguntei a ele
que curso faria na faculdade, com muita
autoridade
e
convicção,
respondeu-me:
jornalismo. Deu-me uma alegria exagerada que
ate tive uma crise de choro e conclui dizendo ser
o mesmo curso, que o tio Antonio não terminara.
Nunca tínhamos conversado a respeito disso. E
demonstrando toda sua sensibilidade fez uma
referencia
146
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
_Você deve sentir muitas saudades do seu
irmão falecido.
Apenas consegui balançar a cabeça
afirmando. Depois de uma breve pausa,
perguntou.
_Porque você e mamãe não quiseram ter
outro filho?
Minha voz ainda embargada, respondi.
_Infelizmente não tenho respostas pra sua
pergunta. Porque, você se sentiu muito sozinho
nesta casa?
_É evidente que não, mas outro irmão
poderia ser mais divertido.
Não tive coragem de dizer a ele que sua
mãe simplesmente havia colaborado para tentar
curar uma ferida em minha alma, e que essa
ferida, ainda ardia nas noites de insônia; como o
vulcão Etna na Itália não fora extinto, que em
determinadas épocas ameaça entrar em erupção.
Dizer a ele que sua mãe simplesmente fora uma
barriga de aluguel, poderia magoá-lo de forma
definitiva. Alias, sempre pensei, que todos estes
anos estivesse interpretado o bom marido e um
bom pai. Andréa, nos primeiros anos de casados,
pediu-me autorização para abrir uma loja de
roupas em sociedade com sua mãe; dei a quantia
147
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
do dinheiro que solicitou e nunca quis saber o
que acontecia em seus negócios, também não me
pedia informações e opiniões a respeito. Pedro
Antonio ficou sobre os cuidados de varias babás
que eram trocadas quase de quatro em quatro
meses. Na época não entendia e também não
queria pensar nesses pequenos detalhes da vida.
Um motorista particular ficava a disposição de
ambos; este sim durou anos a serviço da família.
Quando Pedro Antonio estava cursando o quarto
ano da faculdade, Andréa ligou-me no final da
manhã de uma segunda-feira, que não faço
nenhuma questão de lembrar a data, dizendo que
queria o divorcio; que seu advogado ia procurarme para assinar os papeis para dar entrada no
litígio. Fiz algumas pesquisas na junta comercial e
constatei: que em nome de sua mãe haviam
cinco lojas espalhadas pelos shoppings da cidade.
Depois pedi ao meu gerente um balanço da
minha conta corrente dos últimos dez anos e
fiquei horrorizado com o que vi. Todas as
semanas fazia pequenos saques e durante estes
anos levou-me uma razoável quantia. Outra
exigência de Andréa quando nos casamos, era
com comunhão parcial de bens. Não preciso nem
dizer o que houve com o restante do que ainda
148
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
tinha de bens. Penso que a separação foi muito
mais traumática para Pedro Antonio do que para
mim, mesmo com todo prejuízo financeiro;
porque o seu comportamento mudou desde
então. Andréa não quis ficar com a casa em que
morávamos; depois de algum tempo soube pelas
más línguas que estava morando com o motorista
em um bom apartamento de três dormitórios nos
jardins. Também acredito que Pedro Antonio
ficou muito magoado com a mãe, não quis sair da
casa para morar com ela. Os meses foram
passando, nós tentando nos adaptar a nova vida.
Para mim, tendo a companhia de meu filho me
bastava. Agora tenho certeza que para ele
faltavam muitas coisas. Com todos os problemas
conseguiu concluir a faculdade e começou a
trabalhar de assistente de redação para a editora
de uma revista semanal de grande circulação.
Realmente o seu talento para escrever estava em
evidencia, todos na redação admiravam o seu
desempenho; no futuro bem próximo se
transformaria em um grande profissional. Pedro
Antonio tinha sua vida muita atribulada,
compromissos que deixavam sua agenda
completamente lotada; grande número de amigos
aos quais se encontravam todas as noites e finais
149
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
de semana. Quando eu perguntava se estava
namorando; sempre respondia que namorava,
com varias para não ter tempo de se apaixonar
por uma só. Lindas garotas não poderiam lhe
faltar se assim desejasse. Cabelos pretos, lisos e
brilhantes, semelhantes ao da mãe. Um metro e
oitenta e dois de altura e um corpo atlético
adquirido: nas piscinas do clube Pinheiros. Pedro
Antonio por mais incrível que pareça, foi vitima
de dois assaltos em datas muito próximas, porém
o ultimo foi fatal. Um homem desconhecido deu
três tiros à queima-roupa e um deles no ouvido
do lado esquerdo. Passei dias e dias alucinado à
base de calmantes que não foram suficientes
para diminuir o impacto. Esvaziava garrafas e
garrafas de tudo que era álcool, não conseguia
ficar fora daquela podridão que se transformara
minhas horas. Liguei varias vezes ao delegado
responsável pelo caso que sempre dizia a mesma
historia: que não havia nenhuma pista ainda
sobre o culpado, apenas que o porteiro do edifício
que ficava a quase cem metros do local, viu um
homem em uma moto fugir do local, que
dificilmente seria identificado, pois estava muito
escuro. Pensei ate que eles tinham arquivado o
caso, porque eles não sabiam do primeiro
150
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
assalto; lembrei-me que meu filho não havia feito
boletim de ocorrência. Foi deste dia em diante
que decidi tentar descobrir: “Quem fora o
responsável e o porquê”. Para ser sincero não
sabia por onde começar. Parei e pensei. Se
tivesse que investigar a vida de alguém
começaria onde mora. Certo? Entrei no quarto de
Pedro Antonio, não deixei a emoção vencer-me
aos detalhes que meus olhos iam focando.
Vasculhei os armários, esvaziei todas as gavetas,
caixas de sapatos, seus blazers, seus cabides com
camisas e calças joguei tudo sobre a cama;
apenas achei dentro do bolso da jaqueta de couro
que mais usava, um disquete e na sua etiqueta
escrito seu e-mail e uma frase:
“Irmão, ter ou não ter, eis a questão!”.
Rapidamente liguei seu computador e
introduzindo o disquete e para a minha surpresa,
o que estava lá ficou do jeito que ele escreveu.
Campos do Jordão - inverno de 2001
A única coisa que não posso reclamar
neste mundo, é que me faltem amigos! Por onde
ando fica para trás uma trilha de bons amigos
que me enriquecem. No colégio, na faculdade, no
151
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
trabalho, nas baladas e os da infância. E foi com
os amigos do bairro que vim parar em Campos.
Chegamos aqui à noite e o frio está o
esperado. Já estive aqui algumas vezes e a única
coisa que senti foi calor de vinte graus em media.
Nos chalés que estamos hospedados são
incrustados no ermo da serra da Mantiqueira. O
lugar é lindo e já sei que tem boas trilhas, banho
de ôfuro, vários cavalos a disposição dos
hospedes. Convidei todos para uma corrida pela
manhã, mas ninguém se manifestou; alegaram
que dormiriam a manhã inteira, anestesiados de
vinho quente e cerveja escura. No dia seguinte
acordei às sete horas da manhã, comi uma
banana que estava à disposição dos hospedes em
uma fruteira; da geladeira uma caixa de suco
longa vida, tomei um copo, e sai. Do lado de fora
da porta, minha visão era ofuscada pela claridade
do sol daquela manhã, com os raios atravessando
um ipê todo amarelo; no chão um tapete da
mesma cor formava um circulo em torno do
tronco, onde um casal de pardais alimentava-se
de alguns insetos que com as flores caíram.
Caminhei ate o portão de saída; ao pegá-lo pude
sentir a umidade do orvalho que deixava o ferro
mais frio. Abri, passei, em seguida dei meus
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
primeiros passos à corrida matinal. Também pude
sentir o impacto do meu peso sobre os músculos
inferiores, que corria pela alameda de ipês e
angicos, o chão todo forrado de paralelepípedos.
Mais ao longe à esquerda da alameda, um vale
que escorria entre duas serras decrescentes; uma
fenda sinuosa, ao fundo um rio que mais parecia
uma gigantesca cobra prata. Um fantástico efeito
dos raios solares desta manhã de outono. O som
do vento era suave quase absorvido por meus
movimentos e o dos pássaros que acabaram de
despertar com a alvorada. Sinto o tempo sendo
absorvido bem lentamente com todos os aromas,
sons e imagens, que a natureza com seu
estupendo capricho exigisse que eu os
aproveitasse como um todo. Desde de pequeno
ela me convida aos mínimos detalhes, mas ricos
detalhes e sinto esta ligação indireta. Em certos
instantes de tão profunda que é essa absorção,
que sinto o corpo arrepiar; é como se ela a
(nobre natureza) me induzisse por esta trilha sem
fim. Estes profundos fatos ocorriam com certa
freqüência, principalmente na infância, após a um
bom almoço preparado pelas mãos das
carinhosas babás que tive. Quando os dias
estavam quentes deitava-me nas sombras das
153
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
arvores de abacate, ameixa e um velho limoeiro
na casa que moro no bairro de Pinheiros São
Paulo. Ainda posso sentir o breve, mas
consumado descanso. Também ainda ouço os
sons dos ventos sobre os galhos e folhas; tudo
era uma grande melodia aos meus ouvidos. Os
raios solares atravessando o conjunto de galhos e
folhas transformavam em focos coloridos que
iluminavam meus sonhos, durante o curto sono.
A contemplação durava horas e se estendia por
toda tarde; sendo só despertado pelo frio ou
algum amigo que desejasse minha companhia
para algum tipo de brincadeira.
Corri por quase uma hora entre a serra e
caminhei mais uma hora ate chegar aos chalés.
Muitos dos meus amigos já estavam tomando seu
café, aproveitei e fiz o mesmo. Convidaram-me
para uma cavalgada, mas não demonstrei
interesse eles não insistiram. Cheguei ao quarto,
fui direto ao notebook, para dar continuidade ao
devaneio.
O mundo da imaginação e os sonhos
consomem a infância dos seres de forma
angelical e gratificante; com o passar dos anos
vem o triste crescimento. A imaginação se
transforma em atitudes de criação e os sonhos
154
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
em objetivos e metas; do irreal para o real
mundo dos negócios e assim deixamos de ser
crianças, deixamos de desejar e passamos a
querer custe o que custar. E fica evidente que
querer só não basta, temos que ter sempre mais.
Todos os inventos nascem da imaginação, que
também é fonte geradora de tudo que é
construído no mundo; acredito que a imaginação
é a forma mais clara e evidente de comunicação
entre os genes e o celebro.
Era quase hora do almoço quando fechei o
notebook, mas, antes passei alguns e-mails; fiz
umas ligações necessárias. Primeiramente ao
Paulo que é o redator chefe; pediu para que
ligasse ao Otavio diretor da revista, este havia
agendado uma reportagem com o cientista
britânico Oliver J. Browsing de passagem pelo
Brasil, palestrando por toda América Latina.
À tarde descansei um pouco num gostoso
cochilo, porque a noite ia ser longa no centrinho;
muitos fondues, vinhos, as cervejas do BadenBaden. O burburinho das ruas próximas,
excelentíssimo frio, pois sem ele Campos do
Jordão perde um pouco do charme. Dois dias
depois, preparava as malas rumo a São Paulo
para os compromissos agendados. Despedia-me
155
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
do pessoal quando o irmão de Vânia, uma amiga,
que solicitou uma carona que jamais negaria a
ninguém; a não ser que desconfiasse de sua
índole. Durante o caminho conversamos muito,
sobre assuntos diversos; confesso que fiquei ate
admirado por seus conhecimentos em biologia e
química. Parei no posto da rodovia Airton Senna;
abasteci o tanque de gasolina e fui ao banheiro.
Finalmente chegamos em Pinheiros, deixei o
Cadú na esquina da Artur de Azevedo com
Capote Valente que é a rua que moro; antes de
descer e despedir falou que morava a dois
quarteirões na mesma rua
Paulo 27 de julho de 2001
Os genes através da imaginação exigem
que o cérebro evolua incessantemente durante a
idade da consciência. A idade da consciência
principia
quando
começamos
a
assumir
responsabilidades e só termina quando não
estamos mais capacitados para assumi-las. No
começo da minha idade da consciência, empinar
papagaio era algo que me fascinava. Observava
os pássaros por horas invejando sua liberdade de
156
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
longitude e altitude, admirava o vôo tranqüilo
quase sem esforço dos urubus ao céu. Os anos
foram passando e a minha admiração por asas
aumentava; os aviões, os helicópteros me
chamavam a atenção freqüentemente, mesmo
tendo medo de altura. Em certa época da
adolescência, fiz algumas pinturas em telas e
papel; por mais que me esforçasse em pintar ou
desenhar outras figuras, sempre terminava por
fazer asas, aves e aviões. Cheguei em certos
momentos lúdicos a pensar seriamente, que
deveria ser ornitólogo ou piloto de avião. Parei de
pintar e pensar nessas tendências, mas o
pensamento não deixava de me convidar; o
turbilhão de idéias fervilhava meu inexplorável
cérebro. As convicções cresceram paralelas a
minha idade; finalmente decidi quase que
intuitivamente a escrever o que do cérebro
provem. Não foi difícil notar a incrível diferença
dos meus conceitos e teorias se abrindo diante
dos meus olhos, como uma imensa janela de
conhecimentos e entendimento.
Três dias depois sentado à mesa de um
restaurante, num almoço com amigos da
redação, notei que faltava um dos cartões de
créditos da minha carteira. Tentei lembrar-me
157
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
onde poderia ter esquecido, por mais que
esforçasse não conseguia pensar em nada; a
única lembrança que me veio foi à volta de
Campos de Jordão, a parada no posto quando
entrei no sanitário. Cadú havia ficado no carro,
também minha pasta com a carteira dentro;
apenas isso não era indicio para desconfiar do
irmão da Vânia amiga de tantos anos e tantas
baladas. Não queria acreditar que ele faria
tamanha burrice com uma pessoa conhecida.
Engano meu; fiquei sem saber o que fazer ao
conferir o talão de cheques e detectar que
faltavam quatro folhas. Procurei o telefone da
Vânia na agenda, disse que precisa conversar,
pedir umas opiniões femininas para uma matéria,
passaria em sua casa se pudesse me receber;
marcamos para noite que seria o horário que ela
estava disponível. Deixei o carro em casa para
não afugentar o canalha. Sempre muito linda e
amável. Vânia recebeu-me com um vestido preto
básico, um sensual decote, que deixava evidente
que não necessitava de soutien aquele belo par
de seios; de costas era excitante ver o
maravilhoso fio dental que lhe penetrava as
nádegas. Convidou-me para entrar, dizendo que
seus pais não estavam e seu irmão estava pela
158
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
noite sem rumo. No meio da sala agarrei-a pela
pequena cintura, que salientava ainda mais
aquele perfeito quadril. Não precisei dar uma
palavra, pois percebi em seu olhar que tanto
queria. Beijamos-nos loucamente, enquanto
minhas mãos erguiam seu vestido. Não
percebendo nenhuma resistência cheguei ate até
a vagina quente e úmida. Interrompeu-me com
aquela voz de mamãe quero mais, convidandome para o quarto.
Aquele corpo moreno parecia pequeno
para as minhas mãos que investigavam todas as
entranhas. Joguei-a na cama e fui de língua no
seu clitóris que tinha o doce néctar do prazer;
Vânia neste momento gemia alto como uma gata
no cio, enfiei o indicador e o médio da mão
esquerda em sua boca para que chupasse,
enquanto o indicador da mão direita, acariciava o
ânus. Percebi seu globo ocular ficar todo branco
de tesão. Vânia estava em meu colo de frente
para mim, meu pênis duro penetrado em sua
vagina; quando um barulho nos interrompeu.
Tive que ler seus lábios que me pedia silêncio e
dizendo ser o irmão; assim podemos ouvir que o
irmão havia entrado em seu quarto e trancado a
porta. Saímos de pontas de pés sem fazer
159
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
barulho, depois voltamos a entrar na casa após
alguns minutos se passarem.
Do quarto Cadú gritando, perguntou.
_É você Vânia?
Vânia respondeu. Em seguida ele fez uma
nova pergunta.
_Tem alguém com você?
Ela disse sim, mas antes que dissesse meu
nome, coloquei a mão na sua boca; desta vez fiz
ler os meus lábios, que diziam: um amigo. Queria
que a surpresa revelasse alguma resposta em seu
olhar. Foi justamente isso que aconteceu quando
o ladrão veio ate a sala; tentou disfarçar
desviando o olhar e mal pode cumprimentar-me.
Pedi a Vânia que nos deixasse a sós por um
instante. Disse ela que ia ao banheiro e saiu. Fui
direto ao assunto e perguntei.
_Porque que você fez isso?
Muito tenso Cadú respondeu, segurando a
voz para não gritar.
_ Do que você está querendo dizer?
Estava bem longe daquele cara que dei
carona, parecia estar sobre o efeito de alguma
droga. E disse, já sobre o efeito da fúria.
_Você roubou-me. Seu vigarista de merda!
160
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
Sem esperar deu-me um forte soco no
queixo, onde dei alguns passos atrás para não
cair. Fui em sua direção disposto a revidar a
agressão. No exato momento abriu a jaqueta,
mostrando o cabo de um revolver. Em seguida
pronunciou, serrando os dentes.
_Se você me caguetar, te mando pro
inferno. Burguês de merda.
Sai daquela casa sem despedir-me
daquele monumento feminino, que ate hoje não
entendeu nada que aconteceu naquela sala.
Passei uma triste fase pensando ter uma
personalidade problemática: com desvios de
comportamento e muitas dificuldades nos
relacionamentos por não ver interesse na maioria
das questões; alias são poucas as pessoas com
quem tenho afinidades e o dialogo flui de
maneira normal. Na plenitude da solidão a
felicidade se incorpora sem alarde ao flexível
amor, a doce saudade, a infinita compaixão
solidária. As amizades não podem ser ouvidas,
somente sentidas no intimo. Na solidão o externo
é um enorme silêncio, o interno uma enorme
ebulição feita um vulcão. A minha crise de solidão
é literária e contemplativa, também pode ser
auxiliativa ou destrutiva ao extremo, isto depende
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
dos termos de projeção das carências afetivas do
momento em questão. Houve época que sem ter
consciência odiava minha mãe por ter me
expelido da acolhedora solidão intra-uterina. A
confusão do desprendimento se estendeu ate por
toda adolescência. Hoje ainda posso-me ver
olhando entre as grades de ferro e concreto do
portão de casa, minha mãe distanciando-se
lentamente no seu primeiro dia de trabalho. O
choro daquela criança ainda ecoa dentro deste
homem de vinte e seis anos.
O mundo dos pensadores sempre associou
a solidão e o medo à insignificância do flagelo.
Não podemos esquecer que o medo nos manteve
vivos e soberanos entre tantas espécies que
existiram e que ainda resistem a nos destruir.
Quando cheguei em casa naquela mesma
noite. Meu pai estava na sala de televisão, vendo
o hematoma em meu maxilar não se conteve em
perguntar o que havia acontecido. Disse que fora
assaltado e espancado pelo ladrão; Também
perguntou sobre o boletim de ocorrência,
respondi que teria que fazê-lo, porque me
roubaram folhas de cheque. Pensei em
determinado momento, comprar uma arma sem
registro para proteger-me mais não o fiz. Três
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
dias depois recebi na editora a visita inesperada
de um homem, aparentando uns cinqüenta anos;
reclamando de um cheque que eu havia sustado.
Comuniquei-lhe que fora assaltado por um sujeito
no farol. A sós na minha sala, o homem sacou
uma arma, encostou-a na minha testa dizendo.
_Olha bem rapaz, estou aqui trabalhando
como você; meu negocio é trafico de drogas. Não
estou aqui pra brincar com quem está o meu
dinheiro.
Sentia o frio do silenciador da arma
apertar em minha testa, as pernas tremiam de
medo. Continuou o seu discurso inflamado.
_O frouxo do Cadú disse que a droga era
pra você.
Não sei como consegui perguntar o valor.
Ele falou a quantia, que não era muito; por sorte
naquele dia estava com dinheiro, devido aos
transtornos bancários que estava atravessando. O
homem se acalmou, ainda mostrei o boletim de
ocorrência, contei-lhe toda historia da volta de
Campos do Jordão. Antes de sair-me mandoueu
cobrar do ladrãozinho viciado.
Do medo intensificado, nasceu o respeito
por todas as qualidades de inteligência; porque
assim podemos ver a vulnerabilidade de ambas
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
às partes, bem definidas. Também acredito que o
sexo, o beijo, a amizade, a família, as palavras, a
comunicação nasceram por medo da solidão
instintiva, que também é algo enraizado em
nossos genes. A solidão arrasta-me ou guia-me
de maneira equilibrada por trilhas intoleráveis do
cotidiano, hoje posso dizer que estou adequado a
ela de modo convincente e sustentável, pois o
tempo às duras formas me fez amadurecer. Hoje
tenho plena convicção, que errei em muitas
decisões ao longo de minha vida, por afrontar o
destino que é instintivo e discreto. Porem por
outros fatores que já mencionei, restou-me
escrever
e
escrever;
por
dez
anos
aproximadamente tenho certeza absoluta que
nasci para este fim.
Uma semana depois da visita inesperada
do traficante, quando saia para o trabalho com o
carro do lado de fora da garagem. O portão
automático ainda descia. De repente uma moto
para do meu lado; pensando tratar de alguma
informação, esperei-o retirar o capacete. Era o
ladrãozinho, viciado; gritando palavras de baixo
calão. Talvez a minha sorte naquele momento foi
a surgimento de um carro da policia; dei ré e
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
parti na mesma direção da viatura, para ter
certeza que não seria seguido.
Ainda no final da frágil adolescência, sem
pensar decidi entrar de frente com a solidão. Aos
vinte anos fui morar em uma república com mais
quatro amigos de curso vindo do Rio de janeiro.
Suportei pouco tempo, mas acredito que aprendi
muito viver em grupo; lavar roupas e louças,
arrumar a cama, fazer café e cozinhar,
principalmente a respeitar os espaços e os limites
de cada um. Também aprendi a pensar muito,
porque à distância da família quando se tem esta
idade é um grande abismo que por vezes não
enxergamos o fundo, de tão intensa que é a
solidão. Dentre todas as etapas de confronto com
a solidão, esta foi uma das mais divertidas;
porque não tinha muitas preocupações no que se
refere a responsabilidades. Também foi a fase
que o mundo ocultado pelos adultos apresentou
sua face com todas as cores e formatos. E para
ser sincero. Em certos momentos ela assustoume de tal modo que gostaria, que ninguém
olhasse dentro dos olhos dela porque foi horrível
vê-la; digo isso a quem quer ouvir. A face cruel
do mundo que reside entre o sim e o não; porque
são respostas que temos, que dar no fio da
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
navalha ou a ferro e fogo. Pelas explosões dos
hormônios, o sim nos parece sensato. A face
cruel do mundo nos engana em ser inofensiva,
diante de tantos descobrimentos da flor da idade.
Porque o medo se identifica como algo a vencer.
O medo fútil que é útil na faixa etária; também
são as primeiras manifestações da indução dos
genes, para proteger a espécie tão vulnerável.
Viver é essencial e deslumbrante para todas as
espécies. Muito mais para nós os homo-sapiens,
que foi inoculado o prazer. Os genes obrigam o
nosso metabolismo a produzir adrenalina,
endorfina, serotonina e outras substâncias
químicas. Assim nos tornamos dependentes
químicos; porque viver organicamente é química
do principio ao fim. Nesta mesma fase o
organismo também principia a produção dos
hormônios sexuais masculinos e femininos; uma
exigência dos genes para a manutenção da
espécie, para dar seqüência à vida eterna no
desenvolvimento do código genético. Acho que
não tenho outra saída. Vou jogar a toalha como
herói solitário desta guerra covarde, herói que
lutou contra a força mais poderosa que é o amor.
Do amor nasce o mais duro dos sentimentos que
possuímos: a imperdoável solidão. A solidão
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
quando carregada de desejo se traduz em delírio
à beira da loucura. A solidão derrama em meu
corpo o mais quente dos líquidos, que queima
minha triste alma. Solidão injusta que mói como
maquina os sonhos dos homens; os sonhos de
criança fantasiosa, os sonhos dos jovens hiper
potentes, os sonhos dos homens que lutam
contra impotência certa. Por fim, os sonhos que
faz dormir e acontecer, os sonhos acordados e
não realizados. Os eremitas, os nômades, os
filósofos, os poetas, os escritores, os artistas, os
inventores, os pensadores sempre usaram a
solidão como chave de entrada, para saber o que
está nos registros do código genético. Muitos de
nós já lemos a respeito de Jesus Cristo, Buda,
Shiva, Gandhi, Moises, Maomé, que tiveram
momentos de solidão antes de tornarem-se
grandes personagens para seus seguidores.
Acredito na comunicação perfeita sem nenhuma
interferência, entre os genes e o cérebro durante
momento em que estamos a sós e concentrados.
Mas, as conseqüências dessa explosão de
hormônios dentro deste organismo em formação
principalmente cerebral, por muitas vezes são
catastróficas. Nesta fase, o cérebro é incapaz de
atender as exigências dos minuciosos genes, que
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Zé Gertrudes/ O dúbio do amor
são incansáveis em sua luta pela sobrevivência.
Eles são estrategistas, preconceituosos e
seleciona os seres humanos no qual serão seus
hospedeiros. Isto vem acontecendo com
freqüência ao longo da historia. Todos estes
desenvolvimentos
tecnológicos,
poluições,
guerras, proliferações de doenças, são processos
de seleção; se o organismo não suportar, nunca
servirá para ser hospedeiro e automaticamente
ele se destrói. Por estes fatores é que
adoecemos, seja fisicamente ou psicologicamente
e nossa seqüência é interrompida.
Esta foi a historia deixada por Pedro
Henrique gravada no disquete. Andei a rua Artur
de Azevedo que nem um louco à procura de tal
de Cadú, que tem uma irmã chamada Vânia.
Quase
desmaiei
quando
um
jovem
despreocupado me disse.
_Claro que eu conheço, Carlos Eduardo e
a Vânia, são os filhos da dona Cristina Lessa, do
açougue ali na esquina.
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Fim
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