O DÚBIO DO AMOR
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O DÚBIO DO AMOR
Zé Gertrudes/ O dúbio do amor E-book O Dúbio do amor Zé Gertrudes 1 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Índice 03- Prefacio 07- Augusto e o segredo 34- O Juiz filosófico 44- Manto da embriaguez 60- Falsos amores 92- Os homônimos do Zé 109- Parte1- A verdade 134- Parte2- O abismo 2 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Prefacio O amor é o tema mais importante na historia da humanidade nos seguimentos artísticos, sociais e psicológicos. Quantas foram às guerras travadas no âmbito geral, geradas por falta do amor ou pelo excesso dele. O amor é uma linha imaginaria que tem seu inicio no descaso passando pela humilde atenção, tendo no gráfico seu ápice a dedicação, entrando em declínio na paixão, acentuando-se ate a veneração e chegando ao extremo que é a obsessão. Viver sobre esse equilíbrio na linha do amor parece ser a grande dificuldade da nossa espécie desde quando iniciamos os primeiros passos sobre a terra. O amor é um elemento tão singelo, porem, fundamental mecanismo para que todos sem exceção tenham uma condição melhor para completar seu ciclo com dignidade. Diante deste vasto tema debrucei meus pensamentos por varias décadas da minha vida e as dissertações que nunca as ignorei transformei as em historias fictícias que trago a tona sem muitos termos técnicos. 3 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Por muitas vezes perguntei-me, se talvez o amor não fosse uma doença agravada na espécie humana que vem ganhando ascensão ou se desenvolvendo nos últimos trinta séculos. Por que nada é estático, tratando-se das espécies como promete a ciência desde Charles Darwin. Mesmo antes da primeira carta aos Coríntios do novo testamento o amor era dúbio. 1coríntios 13,1-13 Ainda que eu falasse línguas, as do homem e dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria como um sino ruidoso ou como címbalo estridente. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda ciência; ainda que tivesse toda fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, e não tivesse o amor, nada disso adiantaria. O amor é paciente, o amor é prestativo; não é invejoso, não se ostenta não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura 4 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade, tudo desculpa tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará. As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência também desaparecerá. Pois o nosso conhecimento é limitado; limitada também é nossa profecia, mas quando vier à perfeição, desaparecerá o que é limitado. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto deixei o que era próprio de criança. Agora vemos como em espelho e de maneira confusa; mas depois veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas depois conhecerei como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor. A maior delas, porem, é o amor. Mesmo sendo singelo e sublime, o amor é emblemático em nossa cultura que sofreu agregações étnicas no decorrer dos tempos, e 5 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor tais fatos, não poderia deixar de citá-los nestes contos. Assim sendo este vocábulo complexo de apenas quatro letras cause um absurdo de duvidas, e vem assim derivar o titulo: (O Dúbio do Amor). Só espero que consiga ser compreendido pelos leitores com este modo simples de escrever. 6 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Augusto e o segredo O que aconteceu com nosso personagem, no decorrer dos fatos que serão aqui citados, fica declarado que ninguém deva levar como verdadeiros, embora muitos dos fatos, de fato ocorreram, todavia há um exagero por parte de quem nos contou a historia. Mesmo trocando os nomes para sutilmente despistar quem vai ler, mas queremos que se torne publico e assim escrevemos. Augusto recentemente completou seus trinta e dois anos, mas não teve motivos para comemorar, apesar de ter saído na noite com alguns amigos para comer pizza e tomar alguns chopps. Amigos dos bons que lhe estenderam as mãos quando mais precisou durante sua recente separação dolorosa. Não porque seja um divorcio, mas, porque sua esposa desapareceu sem deixar apenas um pequeno bilhete. Depois de tantas investigações descobriu que fora para Londres com um amigo da agencia de turismo onde trabalhavam. E foi o mesmo amigo que 7 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor conseguiu o visto de permanência junto à embaixada da Inglaterra. O que mais deixou o Augusto depressivo foi o fato de sua esposa ter providenciado o passaporte, comprado à passagem e quando ela apareceu com duas malas novas em casa e lhe dito que estava antecipando para uma viagem que fariam para visitar sua mãe no final do ano, para o Maranhão. Augusto ate delirou com os prospectos que Carmem lhe trouxera. Sonhava com o rio preguiças num passeio de barco num final de tarde, com o sol se escondendo no mar em Mandacaru, delirava caminhando nos Lençóis e banhando-se nas lagoas multicores de águas cristalinas, sonhava em conhecer o terceiro maior delta do mundo, o maior das Américas. Ate que ele achou estranho e perguntou a ela. _Você não acha um pouco exagerado o tamanho destas malas? Com estas malas tão grandes da ate para levar todos os moveis do apartamento, se você quiser. Meu amor. Pois bem. Carmem sua esposa foi embora, e outro motivo que deixou Augusto aborrecido, foi que nas suas malas, Carmem levou também sua coleção de DVDs. Claro que não eram originais, mas, Augusto tinha-os como uma 8 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor relíquia, um bem muito estimado. Não se cansava de vê-los! Os favoritos : Floyd, Creedence, Dire Straite, Beach Boys, etc. No total eram vinte três bons motivos para que Augusto se esticasse no sofá vermelho com um copo de refrigerante nos finais de tarde, enquanto Carmem cuidava de seu delineado corpo na academia quatro vezes por semana. Enfim os DVDs se foram! Por vezes, Augusto entrava em paranóia porque achava estranho uma esposa abandonar o marido quatro vezes por semana, ainda a noite quando ambos estavam em casa e poderiam namorar, como antigamente. Carmem alegava que as gorduras lhe deixavam em um estado de depressão só de Apalpá-las. E ele foi conformando-se com a idéia que talvez isso de fato fosse à tão difamada pobre da rotina e que Carmem por ser vaidosa ao extremo se preocupasse com sua silhueta, e achou melhor não incomodá-la por ir quatro vezes por semana na academia. Augusto dividia seu ocioso tempo em um trabalho mal remunerado de assistente de redação para um jornal de media circulação. Alias, decidiu fazer o curso de jornalismo após 9 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor repetir o teste vocacional por três vezes. Sendo que em dois os resultados foram jornalismo, e um o resultado foi letras, e que no momento achou muito profundo para o seu médio entendimento. Augusto dirigia-se ao trabalho por obrigação social de se cumprir um currículo, porque no seu trabalho era subordinado a idéias da criação divina e de limitação pragmática, e não como as suas, que descambavam para o evolucionismo assistido. Certa noite de insônia, Augusto se levantou foi ate a sacada do seu apartamento que ficava no décimo andar, sentiu aquele frio de final de inverno com um leve vento sobre seu rosto que indicava, que logo chegaria às chuvas e em breve a primavera ira cobrir de flores e cores toda superfície. Mas mesmo assim não foram suficientes para que deixasse de surgir o emaranhado de segredos e todas as suas angustias em seus pensamentos. Debruçou sobre a grade. Veio ao seu pensamento à vontade de se atirar. Pensou no pai que tomou a mesma e estranha decisão. O suicídio. Olhou para baixo no escuro da noite, que passava das nove horas, e disse para si mesmo. 10 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _ Vou me esborrachar naquele cimento. Meus pedaços vão se dividir em fragmentos, meu sangue irá manchar todo aquele chão. Mas por outro lado não terei que conviver com a dor da solidão a saudade de Carmem, e também o ódio do seu amigo que providenciará todos os papéis. Não teria mais que se preocupar com o Maranhão, o rio preguiças, os Lençóis, Barreirinhas, nem com o delta das Américas. Também não se preocuparia com os olhares de piedade dos amigos, dos vizinhos, com as contas que de agora em diante não tinha com que dividir. Depois de um tempo imaginou uma multidão de pessoas ao redor do seu corpo em frangalhos, viu nelas o olhar de pavor, algumas afastavam as crianças para que não olhassem a cena de horror e não lhes causassem traumas. Viu também seu velório e novamente uma multidão, muitos arranjos de flores espalhados por todos os cantos e corredores. Viu sua mãe e seus irmãos que choravam desesperados, mas não o viu no caixão porque estava lacrado. Neste exato instante sentiu muita pena de sua mãe e seus irmãos e pensou. Pobres pessoas que me amam não merecem que eu faça isso. Lembrou 11 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor que um dos seus quatro irmãos lhe disse como incentivo, há uns anos atrás após ler um conto que ele havia escrito. _Porque que você não escreve? Vai te ajudar a não ficar com caraminholas na cabeça. Nota-se neste conto que você tem muito talento para escrever. Não mais olhou para baixo e focou seu olhar para a rua e os transeuntes no seu campo de visão o que fez diluir seus pensamentos de suicida. Na manha seguinte, voltou à sacada, lembrou-se da noite anterior e não olhou para baixo, e mais uma vez pensou no irmão incentivador. Também onde poderia ter guardado um caderno de duzentas folhas que havia comprado. Relembrou que para escrever teria que ser um observador de prontidão das cenas do cotidiano. Ainda na sacada, olhou daquela altura, do décimo andar, viu há uns cem metros de distancia, um carro vermelho que passava lentamente naquele momento com a lanterna acesa e se aproximava de um semáforo que estava fechado. No interior do veiculo, dois casais de jovens. Percebeu que iriam para algum lugar do litoral porque no suporte sobre o teto 12 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor do veiculo havia duas pranchas de surfe. Na esquina uma banca de jornal e algumas manchetes dos matutinos consumiam a atenção de um homem pardo. Ali, ereto e estável. O traje revelava um uniforme de portaria de condomínio. Atrás deste homem imóvel caminhava uma adolescente com seu cachorro de estimação. Mais à frente dois prédios recém construídos recebiam todos os acabamentos necessários para cada um dos dezenove andares. Alguns pombos se alimentavam dos detritos de um lado da calçada, do outro lado da rua uma mãe segurava seu filho pelas mãos, e davam os primeiros passos para atravessar a rua. De repente Augusto olhou para as nuvens e um helicóptero cruzou ligeiramente rumo ao Campo de Marte. Quando retornou seu olhar as ruas, o semáforo estava aberto o carro e seus quatro ocupantes desapareceram, o homem que lia as manchetes deu lugar a outro sem uniforme, a menina e o cachorro desapareceram, a mãe e seu filho já haviam atravessado a rua e os pombos voavam espantados pela criança que não mais segurava a mão da mãe. Voltou para o interior do apartamento, tomou seu café acompanhado de queijo branco, 13 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor metade de mamão papaia que sobrara do dia anterior, um pão francês dividido ao meio que aqueceu na tostadeira. Enquanto fazia sua primeira refeição, percebeu que seus hábitos mais simples e rotineiros poderiam fazer parte das suas anotações desde que os recheasse de teor, conteúdo e informações. Durante o café tentou imaginar outra mulher a sua frente, fazendo-lhe companhia neste e nos outros desjejuns, e com quem também pudesse dividir o apartamento, as tolhas, os travesseiros, as escovas de dente e os sabonetes, o condomínio, o aluguel, a diarista que fazia faxina nas sextas, o telefone, a conta de energia. Alguém para ouvir seus segredos, saborear seus pratos, alguém de fato para que as vizinhas não lhe perguntassem mais o paradeiro de Carmem. Resolveu interferir em seus devaneios quando surgiu a lembrança da esposa fujona em seus pensamentos. Na cozinha, lavou o pouco de louça do jantar que restava sobre a pia e caminhou ate o banheiro. Entrou debaixo do chuveiro depois de se barbear e se despir. Enquanto a água quente caia sobre seu corpo já ensaboado, deu inicio a uma sessão de massagens com as duas mãos 14 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor em seu pênis e testículos. Totalmente brancos de espumas, Augusto sentiu o principio de ereção e começou a se masturbar, o que deixou mais enrijecido o membro. Lembrou-se de Lourdes, uma amiga que trabalha com ele na redação. Que tem um corpo bem torneado, uma bela bunda arrebitada, loira de um metro setenta, cabelos lisos e compridos. Imaginou ele e ela a sós na sua sala. Com os olhos fechados e o prazer te consumindo, foi aumentando os movimentos da mão que envolvia seu pênis cada vez mais duro. Tirou cada peça de roupa na sua imaginação, virou a de costas num movimento brusco de desejo, fantasiou sobre a bunda só de calcinha preta sobre a pele branca, fez com que ela debruçasse sobre a mesa, afastou a calcinha para um dos lados e penetrou com força. No vai e vem dos movimentos chegou à ejaculação. Quando abriu os olhos, ainda deu tempo de notar o restante do esperma sendo diluído na água quente do chuveiro, esvaindo no ralo do esgoto. Tranqüilamente, se vestiu para o trabalho com uma camisa de micro fibra creme, um casaco marrom de couro de antílope, uma calça marrom do mesmo tecido da camisa, nos pés um 15 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor sapato confortável da mesma cor da camisa. Mas, quando escolheu a cueca lembrou-se de momentos atrás no chuveiro e boa parte da formidável nudez de Lourdes voltou ao seu pensamento fazendo com que escolhesse a cueca que estivesse em melhor estado. E disse consigo mesmo. _Tenho que transar com ela, de qualquer jeito. Porem, antes de sair recolheu todos os porta retratos espalhados pela casa e nas gavetas, todas as fotos que Carmem estava em close, também alguns relicários. Pensou em destruí-los, queimá-los ou jogá-los no lixo, mas não o fez. Refletiu com sensatez que tomando esta decisão poderia alimentar um ódio que também não te ajudaria a limpar dos seus pensamentos, alguém que lhe omitiu muitos fatos da sua personalidade. Colocou-os em uma caixa. Estava decidido a enviar para o endereço da mãe, em São Luis no Maranhão. Um lugar que certamente um dia visitaria quando retornasse a colocar os pés em território brasileiro. Augusto abriu a porta do apartamento para o saguão dos elevadores. Sua vizinha, dona Elza 16 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor ouviu o barulho das chaves ao fechar a porta, e saiu de prontidão. Ela trajava um hobe de algodão lilás totalmente desbotado com algumas flores indecifráveis quase do mesmo tom, na cabeça um lenço multicor de seda javanesa cobrindo os bobes. Para disfarçar um saco de lixo nas mãos como que por coincidência estava ela ali no mesmo momento quase que todos os dias e com a mesma pergunta: _Como vai a Carmem sua esposa? Senhor Augusto. Augusto sempre dava a mesma resposta. Já dentro do elevador riu com ele mesmo numa inesperada gargalhada, ao pensar que necessitava aparecer com outra mulher para que dona Elza mudasse de pergunta e que também deixaria a cabeça dela mais perturbada com tamanha bisbilhotice. Do prédio ate o ponto de ônibus não tinha mais que duzentos metros de caminhada, um curto caminho que fazia com muita atenção, pois o que não faltava era fezes de cachorro espalhadas estrategicamente pelas calçadas. No meio do caminho Augusto se deteve às manchetes dos jornais na mesma banca onde o homem de uniforme de condomínio estava há 17 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor horas atrás. No jornal da empresa que trabalha e que colaborou para que esses exemplares estivessem agora em circulação, não continha nenhuma matéria que havia trabalhado no dia anterior pelo menos na capa, o que obrigou a comprar um exemplar para ler os cadernos, se no ônibus tivesse um lugar para sentar-se. No ponto de ônibus em pé deu uma folheada e leu no caderno de ciências a matéria que publicaram com a reportagem que havia feito com um professor de biologia marinha da universidade federal do Rio de Janeiro, sobre a degradação ambiental da costa brasileira. O ônibus parou. E Augusto subiu, passou pela catraca e estacionou, próxima a porta de saída. O veiculo não estava completamente lotado como lata de sardinha, mas não deu para ler seu jornal como havia planejado, a não ser que algum passageiro descesse nos pontos seguintes. De repente do nada um perfume feminino de tirar o fôlego de qualquer homem, adentra pelas narinas. Ergueu o nariz como um cão que fareja sua caça no meio da floresta. Augusto se deparou com uma mulher que usava um vestido (tomara que caia) branco de crepe. Muito bem cortado, para aquele corpo da cor 18 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor jambo caprichosamente delineado. Os seios e as nádegas esculpidos pelos deuses, mas o melhor daquela fascinante imagem era a transparência do vestido que denotava uma calcinha fio dental creme. Com o balanço do ônibus nas ruas esburacadas e remendadas foram se aproximando como um magnetismo carnal. Augusto recebeu como um leve choque, o primeiro toque da região lombar da moça, com a região pubiana dele, que consideravelmente aceitou os toques que se tornaram repetitivos. Que por sua vez sentiu as vibrações receptivas do maior órgão de seu corpo. A tristeza o consumiu quando a bela mulher desceu do ônibus em alguns pontos depois. Surpreendeu-se com o amor ao primeiro toque e por não ter visto a fisionomia que com toda certeza ficaria impressa no seu córtex detalhadamente. Porem o que restou foi o que ele deixou anotado, e o seu olhar dando tchau para aquele perfil magistral que se distanciava lentamente em meio à multidão próximo ao metro. Augusto terminou seu percurso em um profundo transe, meio embriagado pelo êxtase de ilusão, em um momento tão exclusivo que 19 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor talvez jamais se repetisse com tanta riqueza de detalhes. Iniciando pelo aroma do perfume feminino indescritível, passando pelo tato nos toques do sensível corpo, chegando ate a profunda visão totalmente minuciosa. Ate pensou que se voltasse a viver com outra mulher teria que ter todas estas qualidades que do nada surgiu em sua frente como um trovão no meio da tempestade ou mesmo um sol depois dela devastar uma cidade inteira. Mas uma excelente surpresa que tinha absoluta certeza de merecer como um admirador totalmente profano da beleza feminina. Quando chegou à redação do jornal pensou em Lourdes, no banho matinal, a espuma do sabonete, o delírio sobre o lingerie minúsculo, mas quando se defrontou com ela percebeu em seu olhar que não estava em um dos seus melhores dias. Algo lhe deixara de mau humor e que fez com que Augusto refletisse, e que manter certa distancia era o mais sensato a fazer naquele momento. Lourdes usava um conjunto muito bem justo ao corpo de tailler caqui, a saia que se estendia abaixo do joelho tinha uma fenda na frente que misteriosamente terminava 20 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor no meio das coxas, coberta por uma meia calça cor da pele. À tarde se foi ligeira e metade da noite de trabalho também e a coragem não despontava no homem necessitado, quase a beira da loucura. Quase no final do expediente o redator chefe mais o editor chefe saíram para uma reunião com o diretor do jornal no prédio da central, num conjunto em frente. Augusto rapidamente percebeu que era sua grande chance de descobrir todos os segredos de Lourdes, e que talvez oportunidade como aquela não acontecesse nos próximos meses. Porem, enquanto decidia em fazer um convite e abrir caminho para o seu objetivo maior, o interfone tocou anunciando para a sua frustração o namorado de Lourdes, que veio buscá-la. Augusto em desespero deu um tapa na mesa e vociferou três vezes. _Não acredito. A jovem moça se assustou. Percebendo em sua face tamanha decepção, ela perguntou o que estava acontecendo, mas despistando-a disse que depois falaria a respeito. O que acionou nela uma intensa curiosidade. 21 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Quando Augusto terminou de redigir um extenso texto tão explorado pelo jornalismo sobre (a influencia da tv na sociedade), Lourdes não mais se encontrava no escritório. Colocou sua mesa em ordem, desligou seu computador e as luzes, e saiu rumo a um bar encontrar os amigos, pois a noite era propicia a um bom papo acompanhado de um gelado chopps. Nos dias de Augusto, as horas eram cronometradas como uma disputa esportiva. Só que de um lado, estava ele, completamente desorientado e do outro, a dura solidão querendo derrotá-lo ao menor vacilo de sua parte. E nesse momento mal resolvido que atravessava, o sexo era o único subterfúgio para este guerreiro despreparado. Despreparado, porque jamais em sua vida ficara sozinho, longe da família, e rejeitado pela mulher que realmente amava. As horas lhes consumiam, minuto a minuto não dando lhe um instante de trégua. Porem, depois que em determinados intervalos fazia suas anotações no caderno ou no computador percebeu que poderia manipular neste jogo que estava envolvido ate o pescoço, e que poderia inverter este quadro que ate então acontecia em sua vida. Ele era constantemente 22 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor manipulado pelo chefe no jornal, pela esposa omissa, pela mãe, quando exigia dele um bom comportamento e que fosse a missa todos os domingos. Augusto começava a gostar de jogar com a vida e estava disposto como um barco sem rumo, consertar seu leme e traçar ele mesmo sua carta náutica. O que estava por traz desta mudança tão repentina, depois de longas décadas de submissão? Eram os poucos momentos de anotações, com suas crônicas, seus contos e os belos romances que eram expulsos do seu criativo cérebro, como fogos de artifício colorido em meio à escuridão que a solidão o submetera por negligencia dele próprio. Os momentos criativos de anotações foram crescendo por necessidade instintiva do simples prazer. O prazer de ser Deus. Criar personagens torná-los forte ou fraco, podia matá-los ou transformá-los em assassinos se bem quisesse, poderia criá-lo gentil e cavalheiro, ou canalha e covarde, poderia colocá-lo numa casa, num castelo, num presídio, num jardim, num navio e em qualquer oceano, país ou cidade. Os momentos criativos foram tomando intensamente seu tempo, mas não só acresceram em sua personalidade frágil, também 23 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor estava completamente envolvido e inebriado pelo prazer que só os autores têm o privilégio de sentir o que escreve. Da madrugada silenciosa, emergia lapidado o mais brilhante e criativo do seu dom em todos os gêneros que estavam embutidos e vivendo na esfera dos personagens que criava. Da mente fértil como terra cuidada brotavam interessantes textos e colhia no final excelente historias. A madrugada já se ia. Passava-se das duas horas quando o telefone tocou. Extremamente curioso ao atender, Augusto ficou surpreso ao ouvir do outro lado da linha à voz de Lourdes, questionando o que houve no trabalho que lhe deixara tão frustrado. Foi preciso e direto ao assunto, dizendo que ia convidá-la para jantarem em um lugar que serviam ostras frescas, camarão rosa flambado com aspargos ao molho de manga, com arroz cosido no marisco. Lourdes deixou-o infinitamente ansioso ao dizer que poderia ir à noite seguinte, e complementando que seu namorado viajaria para um intercambio em Nova York durante sessenta dias. Mas o que deixou ela de mau humor na tarde anterior, fora que ele só deu o parecer da viagem três dias antes da partida e que isso não era uma atitude 24 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor que esperava de um homem que mereça sua fidelidade. Sobre a palavra fidelidade refletiu por minutos e o que ficou foi o convite antecipado que ela fizera acintosamente. Antes de se deitar Augusto foi ate a sacada, enquanto fumava um cigarro olhou as ruas próximas e tentou encontrar cenas na madrugada vazia. E apenas viu gatos que perambulavam pelos telhados e ate testemunhou uma estridente copulação entre eles. Os gemidos ecoavam no silencio da madrugada erma de transeuntes, que de vez em quando um carro cruzava seu atento olhar ou um vôo internacional no céu estrelado preparava seu trem de pouso para aterrissagem no aeroporto internacional de Guarulhos. No dia seguinte, Augusto não tomou seu café em casa como habitualmente. Saiu antes das dez para fazer uma caminhada no horto florestal por uma hora. Respirou um pouco de ar puro da serra da Cantareira, alimentou os macacos viciados em bananas. Depois tomou seu café expresso próximo ao seu apartamento, mas muito ansioso pelo que vinha pela frente. A manhã estava terminando, porem restava à tarde inteira e o encontro com Lourdes no final 25 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor da noite lhe dava a esperança que no momento era o mais esperado depois da repentina partida de Carmem. Talvez fosse sua noite mais intensa sexualmente, pensou ele. E durante o banho não pensou em lingerie, nem sabonete, nem espuma. Tentou lembrar letras de canções da infância para desviar seu pensamento para que ansiedade não o transformasse em uma vitima vulnerável e deixasse escapar uma chance tão formidável. Ele havia aprendido num curso de estratégia de comercio que qualquer espécie de necessidade faz com que cometemos erros grotescos nos precipitando. Pensava incessantemente num plano de abordagem convincente para não assustar sua presa que também sofria de outra necessidade diferente da sua. O que, todavia estava vulnerável e sensível com o modo desonesto que o namorado havia demonstrado. Talvez honestidade não seja coerente com o fato e sim o segredo que manteve ate três dias antes de viajar. O mesmo segredo que Carmem manteve da sua vigem para Londres com o amigo de trabalho. O segredo mais expressivo que rondava o cérebro de Augusto era o que envolvia o suicídio de seu pai e que levou junto consigo ao tumulo, 26 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor pois ninguém descobriu o verdadeiro motivo desta extrema atitude. E se alguém sabe guarda esse segredo com ele a sete chaves. Um mês antes seu pai havia feito vários exames que seu medico requisitou e todos os resultados foram normais. Pagou suas dividas, transferiu seu dinheiro para as contas da sua mãe e os três imóveis também transferiu para nome dela para não ter despesas com o inventario. Apenas o terreno no cemitério que havia comprado uns sete anos antes do episodio. Quando todos os pendentes estavam resolvidos amarrou uma corda no galho do pé de manga antigo no fundo do quintal e se enforcou. Os amigos nada sabiam e os irmãos do seu pai também questionados não tinham nenhuma informação que indicasse um pequeno caminho para desvendar o que teria levado um homem de trinta e cinco anos, saudável, sem dividas, uma família perfeita a tomar estranha e extrema decisão. Planejada sem esquecer nenhum detalhe. Augusto tentou descobrir o que aconteceu com seu pai. Suas investigações se basearam em fatos relatados a ele por sua mãe e os tios, pois quando ocorreu à tragédia era apenas uma criança de sete anos. Que o tio irmão da sua mãe e vizinho, o primeiro 27 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor a encontrar o corpo cuidou para que não traumatizasse as crianças. A cena do homem pendurado no galho do pé de manga. Uma parte do segredo Augusto descobriu no final da adolescência, quando amarrou uma corda no mesmo galho do pé de manga, sua mãe quando viu a cena saiu desesperada na direção dele, e gritando. _Não faça isso pelo amor de Deus. Ela só se acalmou quando lhe disse que era para fazer um balanço e brincar com os amigos. Também na adolescência sua mãe mantinha segredo do seu novo namorado, com quem depois passou a morar na mesma casa tornando-se seu padrasto o que Augusto nunca o aceitou para tomar o lugar de seu pai em seu frágil coração envolvido de mistérios insolúveis. Outro segredo misterioso nem tanto expressivo, mas de cunho pré-conceituoso por parte de Augusto que assim via a relação do editor chefe e o redator chefe: chegavam juntos no mesmo carro pela manha no trabalho, saiam para almoçar a mesma hora, viajavam juntos e usavam a mesma sala para trabalhar. Só não tinham o mesmo sobrenome, porem um 28 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor entendimento na relação de causar inveja a muitos casais heterossexuais. Para Augusto o segredo das pessoas que te cercavam lhe transformou em um homem, sobretudo reflexivo: todas as vezes que conhecia alguém passava horas pensando quais seriam os segredos possíveis de existir naquele determinado tipo de personalidade. Na personalidade de Lourdes descobriu sua doutrina religiosa imposta, talvez pela família ou o namorado, porque deixava pequenos indícios, como: chegar ao trabalho de cabelos presos e na face nenhum vestígio de maquilagem, a calcinha colocada normalmente cobrindo mais da metade dos glúteos. Porem, depois que ia a primeira vez ao banheiro, começavam as transformações: a calcinha era primeira a ser introduzido nas nádegas, talvez aquele pequeno volume de pano enrolado lhe desse algum tipo de êxtase sentada em sua cadeira. Depois soltava os cabelos que ficavam esvoaçantes, e bem escovados lhe deixava com aquele ar de mulher fatal; por ultimo após o almoço notava-se os olhos castanhos e expressivos maquiados com delineador e sombra, e nos lábios carnudos um batom dourado terminava a metamorfose e 29 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor assim mostrando a verdadeira mulher que estava aprisionada dentro de Lourdes. O fato é que os segredos sempre fizeram, dele ao mesmo tempo um expectador implacável e vitima passiva nesta brincadeira de escondeesconde. O que talvez ele não esperasse, porque não direcionou seus pensamentos para esta determinada pessoa que também imaginou ou supunha haver segredos que o envolviam. Este homem, também como ele, passava horas tentando descobrir os segredos das pessoas que o cercavam; porem, para este ser em especial, não havia suposições, por ter problemas crônicos neurológicos obsessivos; ele era convicto de haver degredos entre as pessoas para destruí-lo ou enganá-lo. Sua neurose de perseguição transformava sua personalidade em monstro em momentos de insensatez. O pior estava prestes acontecer, e Augusto nunca imaginou ou passou por sua minuciosa cabeça pesquisadora, que outra pessoa estava tentando descobrir seus bem guardados segredos. A noite chegou suave e sem ventos, não havia nuvens no céu e as estrelas cintilavam no infinito misterioso. O expediente na redação terminou sem muitas atribulações e chateações; 30 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor apenas as transformações na parte visual de Lourdes acompanhada pelo olhar atento de Augusto, que por sua vez se certificou do encontro para o jantar entre eles no final da noite. Augusto foi caminhando os doze quarteirões que separavam a redação ate o restaurante; também foi ele o primeiro a chegar ao restaurante de especialidade em pratos do mediterrâneo. Escolheu uma mesa não muito longe da porta de entrada, e nem escondida ao fundo do amplo salão forrado por um piso de madeira nobre e escura bem encerado. O lugar, um cheiro de cozinha limpa e comida bem feita no ar, aumentava a confiança e o apetite. O grande salão era iluminado por quatro lustres na forma de timão de madeira, deitado e pendurado por correntes, com seis castiçais. Nas paredes: coloridas aquarelas de vila de pescadores tecendo suas redes sobre a orla deslumbrante e rústica do litoral brasileiro. Os garçons trajavam um avental branco que cobria as calças azuis; a camisa, os botões, corte e cor no estilo uniforme de marinheiro. Quando Lourdes chegou, um dos garçons acompanhou-a ate a mesa que se encontrava 31 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Augusto, que radiante deixou seu belo sorriso de contentamento, por ver como estava linda fora daquele ambiente de trabalho. A mulher que estava aprisionada naquela redoma ficou mais transparente ao retribuir com um enorme sorriso. Sentaram-se em cadeiras de madeira, com almofadas, revestidas com tecido de algodão azul céu. Em seguida o garçom serviu o vinho branco italiano em estilo clássico: primeiro o homem degusta uma pequena dose. Aprovando o bom vinho, Augusto autorizou-o a prosseguir completando as taças. Quando brindavam, após o garçom se retirar, de repente apareceu com uma pistola automática em punho, o namorado de Lourdes completamente enlouquecido; antes de efetuar vários disparos na direção do casal, gritou por duas vezes a mesma frase. _Vou acabar com os seus segredos. Seus mentirosos. Lourdes não resistiu aos ferimentos causados pelos tiros e veio falecer dentro do restaurante; porem, Augusto foi socorrido e teve um pouco mais de sorte; os dois tiros que o atingiram não afetaram nenhum órgão importante. 32 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Recuperando-se em três semanas voltou a escrever com mais sensibilidade que antes do fato ocorrido, muito mais envolvido no que diz a respeito sobre os segredos alheios. 33 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor O juiz filosófico Após bater varias vezes o martelo sobre a mesa, o Meritíssimo juiz da comarca da cidade de Albuquerque, Clemente Soares Sobrinho se pronuncia. _Silêncio, por favor... Silêncio, por favor... Vamos dar inicio a este julgamento. Deu aquele olhar panorâmico habitual a todos os presentes do auditório e mexeu nos papeis sobre a bancada e começou o julgamento mais filosófico que se tem noticia na historia. _Ao refletir sobre o amor. Senhores e senhoras, presentes. Descobri que é quase impossível escrever deste amor, que é demagogo, é egoísta e possessivo. Parece-me que as palavras mudaram de rumo ao longo dos tempos, é claro que falo dos termos técnicos da palavra obviamente bem escrita. Pegou o copo de água sobre a bancada, deu um pequeno gole e continuou. _Senhores e senhoras presentes. Os cidadãos comuns, os promotores, os advogados, as testemunhas e os jurados. Peço 34 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor profundamente que analisem tudo que for dito a respeito dos laudos do processo do réu, senhor Adamastor Alves para que possam tirar justas conclusões. O juiz fez uma breve pausa focando seus olhos para o réu, em seguida perguntou ao mesmo. _Senhor Adamastor Alves foi o senhor o autor dos disparos contra a senhora Doralice Castro Alves e ocasionou a morte da mesma? Enquanto respondia as lagrimas desceram pelas pálpebras, atravessando o rosto e sumiu pelo colarinho da camisa mostarda de casimira que o réu trajava. _Sim. Eu a matei senhor juiz. O juiz observando o réu sobre as lentes dos óculos de leitura que usava deu seqüência à bateria de perguntas. _Qual motivo que levou o senhor atirar em sua esposa? _Foi tudo pelo amor extremamente forte que sinto por ela. O meritíssimo juiz passando uma das mãos sobre vasta barba grisalha que cobria toda face alva, seqüência gastando seu nobre e vasto vocabulário, e pergunta ao réu. 35 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Senhor Adamastor me responda. Como o senhor irá amá-la, sendo que sua esposa está morta? Adamastor omitiu a resposta, abaixou a cabeça, mas não conseguiu segurar os soluços do choro reprimido. O juiz comovido com a extensão do sacrilégio que a mente insana de Adamastor o submeteu e filosofou para os presentes do plenário. _O amor não é soberania, nem supremacia, nem exclusividade. O amor pode ser fragrância ou feromonio se assim quiser. O amor não pode ser desejo porque desejo é exclusivista, é egoísta. O meritíssimo juiz fez uma pausa, tomou mais um gole de água e indagou sobre o tema mal entendido por vários presentes que estavam ali. _De que maneira era esse amor, que o senhor sentia pela sua esposa? Responda-me seu Adamastor. Adamastor levantou rapidamente sua cabeça, olhou para o juiz e abaixou novamente antes de responder. 36 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Eu sentia aquele cheiro bom em Doralice, me dava uma vontade forte de estar do lado dela. Também me matava de angustia o medo de perdê-la para sempre. O juiz continua usando em vão seu índice convencional de perguntas como que brincando com as palavras num circo de tristeza. _Se o senhor tinha tanto medo de perdê-la para sempre, porque então fez esta atrocidade com sua mulher? Adamastor enxugou as lagrimas que desciam sobre a face, com as duas mãos que estavam algemadas e murmurou. _Porque ela destruiu todos os meus sonhos, simplesmente por algumas noites de delírio e devaneio. Eu sonhava com os nossos filhos que iríamos ter, correndo pelos corredores da casa que estou construindo; sonhava com eles brincando no quintal, ate projetei uma gangorra ao lado do muro próximo ao caramanchão, havia também escolhido o galho do abacateiro que amarraria as cordas do balanço. Mais uma vez o silencio de Adamastor ecoou no plenário em meio ao murmúrio dos presentes que estavam no julgamento. Mais uma 37 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor vez o juiz proliferou sua filosofia sobre o genuíno amor. _O amor pode ser sonho porque está na alma e na inconsciência, pois ela não é racional e o racional é curioso e a curiosidade é incerta, e onde há incerteza não reside o amor. O amor que declamamos não é o amor com o qual nascemos, o amor com o qual operamos é o mesmo amor com o qual fomos fecundados. De repente se postou de pé o advogado de defesa e pediu licença ao meritíssimo para fazer direito de seu cliente alguém para defendê-lo. _Senhor meritíssimo, e jurados presentes. Quero dizer que induzidamente, meu cliente foi torturado emocionalmente pela esposa antes de cometer este erro brutal. Há mais de quatro anos sua esposa observava o vizinho pela janela do seu quarto. E não se incomodava que seu Adamastor a flagrasse desta traição psicológica. Há quatro anos, senhores e senhoras! Há quatro anos! A esposa estava torturando meu cliente. Do lado direito da bancado do seu juiz o advogado de acusação se colocou de pé rapidamente e pediu o direito de falar e o juiz o autorizou de prontidão. 38 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Senhores e senhoras. Quero deixar bem evidente que não há nenhuma prova de adultério, sendo que apenas era um desejo virtual da vitima. Eu pergunto a todos os presentes neste plenário. Existe algum pecado achar uma pessoa bela e atraente? Por este ato tão sublime, alguém se acha no direito de tirar a vida de alguém que apenas observa uma pessoa? Neste momento todos resolveram falar ao mesmo tempo o que fez o meritíssimo bater seu martelo varias vezes e dizer. _Silencio, por favor. Silencio por favor. Aguardou uns instantes para que o falatório chegasse ao fim e depois prosseguiu com suas sabias palavras. _O amor não é flerte porque flerte é imagem. E imagem é matéria ou corpo. O corpo não é essência! O amor não pode ser projetado ou dissipado em palavras, porque o amor é pura ação instintiva e as palavras são desejos do racional. O racional também é qualitativo e quantitativo. O amor pode ser trabalho se o trabalho for dom, mas se o trabalho for induzido provocará conflitos, onde há conflitos não há paz. 39 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Novamente o advogado de defesa pediu licença e se expôs de maneira pausada ao falar para o publico presente no plenário completamente lotado. _Como disse Descartes, certo filosofo gregoriano: penso logo existo. O simples fato, mas complexo de pensar, fez com que descobríssemos que o maior problema da humanidade ao longo da historia: seja a falta de impressão, expressão, coerência e inteligência do interior, da alma, do ego como se diz em psicologia. Vou tentar ser mais claro possível. Penso que: quando o interior é agredido ou quando nascemos com defeitos genéticos, erramos em nosso comportamento externo e muitas vezes nossas atitudes podem ser extremistas, como aconteceu com meu cliente. Por ultimo quero dizer que meu cliente foi agredido, aterrorizado no seu interior, na sua alma, no seu ego. Senhoras e senhores, jurados, meritíssimo não quero transparecer a vocês que meu cliente seja vitima, mas quero deixar bem evidente que também não é somente culpado por seu ato. Acredito que o conduziram, o induziram a este ato repugnante. Obrigado. 40 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Mais uma vez o juiz foi obrigado a intervir sobre o falatório que se prosseguiu ao termino dos argumentos do advogado de defesa e seu martelo ressoou na sala do plenário. O advogado de acusação levantou pediu licença ao juiz, este lhe concedeu e com veemência nos argumentos vociferou. _O amigo defensor quer que acreditemos que existam duas pessoas dentro de nós: uma que é agredida; e outra quem realmente agride. Uma pessoa que sonha e a outra que se realiza. Uma pessoa que é visível de corpo real, e outra pessoa da qual não enxergamos nem a cor dos seus cabelos. O amigo de trabalho e defensor quer que acreditemos, que se uma pessoa se queimar será a outra quem ira sofrer. Se uma pessoa for dura e resistente protegerá a outra oculta dentro de nós que é frágil e indefesa. O advogado caminhou ate a tribuna dos jurados e fixando o olhar em um deles, concluiu, questionando. _Como agora. Neste instante. Estou olhando para você ou supostamente para esta pessoa que existe dentro de você? 41 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Olhou para outro jurado desta vez uma mulher loira sentada na primeira fileira. Mais uma vez questionou. _Eu estou falando e olhando para a senhorita ou para esta pessoa que o meu amigo de trabalho quer que acreditem existir dentro de você? Enquanto voltava ao seu lugar reservado respirou profundamente, porem antes de sentarse concluiu. _Senhores e senhoras, jurados e senhor meritíssimo. Pergunto como leigo que sou deste profundo assunto: estamos aqui julgando substancialmente uma pessoa que exista ou algo que não possamos nunca aprisionar pelos seus atos? Obrigado. Mais uma vez o juiz e seu martelo entraram em cena e mais uma vez conteve o murmúrio ecoante do plenário e filosofou _O Amor pode ser duro como a pedra, quente como fogo, líquido como água, invisível como ar, o amor não pode ser aprisionado ou retido, transformado, porque não é conteúdo e conteúdo é substância, sendo que substâncias são matérias. 42 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor O amor não é fraco nem forte, nem feio tão pouco bonito, porque ele simplesmente nos alimenta a alma. O amor é escravo da burrice racional de todo aquele, que se julga ser um ser humano. O ser humano é sensível como a poesia. Poesia são palavras, palavras é literatura. 43 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Manto da embriaguez Enquanto caminhávamos pela rua de paralelepípedos mais antiga da pequena cidade dos Alpes dos Mendonças, que fica no extremo da zona leste na grande São Paulo. Eu e meu amigo Lutero conversávamos sobre diversos assuntos num dialogo fluente como sempre acontecia em nossos encontros depois da saída do trabalho. Lutero tinha a capacidade de domínio sobre a inteligência privilegiada, herdada do pai farmacêutico pioneiro na cidade. O pai de Lutero havia adquirido certo prestigio no município, decidindo assim concorrer ao cargo de prefeito depois de ter ocupado uma cadeira na câmara de vereadores. Seu oponente era um candidato forte; um imigrante francês que tinha a má reputação entre os moralistas por gostar de garotos. Porem, o que uns vêem, outros não têm este mesmo ponto de vista. O pai de Lutero perdeu nas urnas uma eleição que pensou que estava ganha, e para piorar, por um numero expressivo de votos. Lutero e eu: sentados na 44 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor sarjeta, enquanto fumávamos um cigarro brincávamos com nossas idéias que com o tempo não se consumiu. Dizia em tom irônico: que seu pai nunca mais foi o mesmo, depois de ser derrotado por um homossexual. Eu acredito, mesmo que ele esquecesse os homens da minúscula cidade de onze mil habitantes, que gostavam de ver o circo pegar fogo, não deixariam esquecer, com chacotas. Depois de acender outro cigarro, Lutero continuou com suas declarações ironizadas, dizendo. _Como um homem honesto, pai de família, católico e devoto de nossa Senhora, em plena década de setenta pode perder uma eleição ao cargo mais respeitável dentro do município para uma bicha francesa? E porque os eleitores confiaram na bicha francesa, para ser o representante mais importante daquela cidade? Saímos daquela sarjeta que o esgoto exalava um odor nada bom; e para que no dialogo não associasse o cheiro de dejetos que fluía pelo meio fio. Sentamos no banco da praça da matriz bem enfrente a porta da igreja. Era final de tarde e nada atrapalhava a seqüência do papo, apenas os pardais numa algazarra em 45 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor coro, que procuravam abrigo nas arvores. Tentei esclarecer algo que em minhas ideais borbulhavam há anos, sem ter coragem de dizer a alguém com receio de associarem o conceito à loucura. _Eu nunca li nada a respeito dentro da historia de quando surgiu o homossexualismo; temos apenas relatos folclóricos de que o imperador romano Nero, o imperador Napoleão Bonaparte e o pintor Leonardo da Vinci eram homossexuais. A ciência nada nos explica a respeito, o que me leva crer que seja uma mutação genética. O caminho que os genes decidiu seguir para poder se salvar, enquanto estiver usando a espécie humana como hospedeiro. Lutero arregalou seus olhos vermelhos de tanta fumaça e quase caiu do banco, dizendo que de fato eu estava ficando louco, mas me pediu para dar seqüência ao raciocínio quando salientei, que o que estava por vir era muito mais fora da capacidade do pensamento da mente humana. E assim continuei o raciocínio que despertou sua vasta sabedoria, dentro do contemporâneo. 46 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Alguns fatos também me levam crer que no futuro bem distante, nos transformaremos em hermafroditas. _Pode continuar que sou seu ouvidor de plantão. Antes de continuar pude ver em Lutero seu olhar de sarcasmo e curiosidade por cutucar o machismo da masculinidade pré-potente humana. _O numero acentuado de gays vem numa crescente nos últimos séculos. Não me venha dizer que o pré-conceito diminuiu e que milhões deles decidiram colocar a cara para baterem. Estou cansado deste discurso sem embasamento das pesquisas. Meu amigo ouvidor concordou, mas não deixou de rir. Também um simples detalhe que eu evidentemente esperava, diante do seu emblemático passado paternal do catastrófico da politicagem. _Fique sabendo o senhor que há um acompanhamento minucioso de pesquisadores na área da genética preocupados com desenvolvimento sexual humano, mas por viverem sobre o manto da cultura não estabelecem a união dos fatos. As mulheres 47 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor descobriram nas ultimas décadas que têm orgasmos, também que em ambos os sexos existem a produção de hormônios masculinos e femininos (testosteronas e progesteronas) respectivamente. _Mas, isso o mundo inteiro sabe. Meu caro amigo! _Porem, muita gente no mundo não sabe que nos gays há um inverso na produção destes hormônios. Os gays do sexo feminino há uma produção maior de testosterona masculino, e os gays do sexo masculino a produção de progesterona é acentuada. _Isso é um fato novo para os meus ouvidos. _Ao mesmo tempo, que existe um acompanhamento do desenvolvimento sexual por parte da ciência, os genes também vem direcionando e interferindo no nosso desenvolvimento orgânico sexual. Os genes sempre deixaram indícios de que eles são os sistemas centrais da matéria orgânica e as síndromes são esses exercícios ou placas de informações para qual o caminho que vamos seguir. 48 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Meu amigo, realmente era simplesmente ouvido, não tinha realmente o que falar sobre o tema que venho estudando há muitos anos alem do que é um assunto que pelo qual me interesso profundamente. E assim prossegui em minha dissertação. _Amigo Lutero. De tantas noites bebendo e conversando! Direciono-me na suposição que chegará um tempo: que um determinado ser do sexo masculino poderá ovular, e um ser do sexo feminino poderá produzir espermatozóides. Enfim nos defrontaremos com um enigma que ate então as possibilidades de ocorrer eram mínimas. Um ser do sexo masculino não necessitará do sexo oposto para dar seqüência à espécie, sendo que o ser do sexo feminino também não necessitará do sexo masculino para o mesmo intuito. _Você não acha utopia para os nossos simples conceitos? Esse mundo que você vive está completamente fora da realidade. Lutero discordou deste começo de explicações, com total certeza em suas palavras que não me restou alternativa em marcar um novo encontro para o dia seguinte e continuar com minha ideologia futurísticas. Lutero se 49 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor postou de pé na minha frente, quase que se despedindo. Bocejou numa ressonância aguda e falou. _Vou para casa dormir. Quem sabe, com meu travesseiro consigo entender parte desta explicação. Amanhã eu não vou trabalhar, vou resolver alguns problemas em São Paulo. Mas, passe na minha casa depois que você sair. No dia seguinte, depois do trabalho corri na direção da casa de Lutero entusiasmado pela paciência do amigo. Fui recebido com uma garrafa de vinho tinto seco. Sua mãe nos fazia companhia no dialogo convencional durante a primeira garrafa e a segunda da boa safra da merlot. A sala era o antigo escritório do seu pai. Varias prateleiras de madeira de lei repleta de livros empoeirados de excelente encadernação, muitas pipetas e balanças: para pequenas quantidades; uma rica cristaleira do começo do século, com desenhos de rostos angelicais esculpidos nas laterais e pés. A mãe de Lutero anestesiada devido ao consumo do álcool logo se despediu retirando-se para o seu quarto. Sempre achei que ela sofria de prosopagnosia, pois nunca foi capaz de dizer meu nome em tantos anos de amizade com Lutero. Fizemos um ritual 50 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor antes de começar aquele assunto tão complicado e mal explicado. Acendemos um cigarro enquanto comentávamos sobre os efeitos de um bom vinho nas reuniões, festas e um dialogo inteligente. E foi assim que prossegui. _ Nos tornaremos um só, como um elo na cadeia de força que alimenta a vida. Parecemosnos com células, nos multiplicamos e temos um padrão simétrico. E como organismo existem falhas, principalmente no sistema de comunicação por completo entre eles. Lutero acendia outro cigarro, quando decidi em ir, na direção do banheiro. Sentia-me completamente tonto parado de pé. Quando andei, o chão parecia mover-se para cima e para baixo. Quando retornei continuei na emblemática. _ Os genes exigem que os neurônios executem suas funções acima do normal. O fato de haver excesso de informações, os neurônios primeiro organizam-nas e de maneira sintetizada e as armazenam nos genes. De forma bruta há uma necessidade orgânica de ser expelida através das artes como um todo. _ Por este motivo é que muitos enlouquecem? 51 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _ É evidente, Lutero. Os genes são muito exigentes no comportamento dos órgãos e seu perfeito funcionamento, e se algum deles tiver um mínimo defeito ele se destrói. _Existem evidencias concretas a respeito disto? _Sim, senhor. O câncer é um exemplo clássico. _Nós os homo-sapiens, somos hospedeiros dos genes que adquiriram o melhor desempenho no desenvolvimento dentre as espécies de genes, nos faz de escudo, de espada e de cavalo de tróia nesta batalha incessante no mundo que ficou invisível por milhares de anos. Mesmo ainda acharmos que somos independentes e auto-suficientes, mas sem duvidas são os genes que nos direcionam na rota da perfeição e do desenvolvimento. Eles eliminam os ineficientes e frágeis, une os inteligentes e fortes, os bonitos e perfeitos nesta guerra genética, visível somente aos microscópios. _Por este motivo o pré-conceito é inevitável em todos os seguimentos da sociedade humana? _Não só humana, mas, organicamente também. Sempre acreditei desde pequeno haver 52 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor algo determinante em nosso desenvolvimento, hoje isto me leva crer que esta determinação que os genes exercem sobre nós, criando um estado de insatisfação. Como se nos faltasse algo muito importante. Essa insatisfação que nos faz trilhar no caminho das crenças, religiões e rituais e a viver sobre (o manto da cultura). _O que realmente você tem escrito a respeito sobre (o manto da cultura)? É um tema que me atrai, mesmo estando embriagado. _O que tenho escrito e ainda estou escrevendo. Como a humanidade passou a viver sobre o manto da cultura é uma idéia que amadurece como uma fruta à sombra de uma árvore. O manto da cultura nos protege em muitas circunstancias. Mas ao mesmo tempo em que nos protege nos limita a ter idéias novas e ver alem do horizonte. Alem do que nos separa por classe, cor, etnias e comportamento, também por paredes, muros, ruas, quarteirões, bairros, cidades e países. Há mais ou menos dois mil anos atrás nasceu um homem chamado Jesus, nascido na cidade de Belém. Dizia Jesus aos quatro ventos que havíamos entrado na era do amor. Que o amor pelos outros deveria ser maior que aquele que sentimos por nós mesmos, 53 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor e que o amor nos daria direito à entrada ao reino do paraíso. _Não venha me dizer que você não acredita que existiu Jesus? _Claro que acredito! Mas, houve uma fusão, entre a submissão dos egípcios pelos faraós, a adoração dos gregos pelos deuses do Olimpo, com o amor que Jesus tentou nos direcionar. E ao longo destes séculos vivemos nesta confusão sem entender realmente o sentido do amor. O fato de vivermos sobre o manto das culturas, não nos permite desagregar estes valores tão enraizados em nossa vida social. Lutero não soltava sua taça, que de momentos em momentos transbordava ao colocar o vinho deixando manchas num tapete persa desgastado. E dei seqüência as minhas idéias. _Quero dizer que aliado ao medo vamos à busca da felicidade plena, do desenvolvimento e resistindo aos ataques daqueles que querem nos destruir. E individualmente, usamos as palavras e nossas histórias que brotam da imaginação contra estes ataques que estamos expostos. Alguns anos atrás, notei que quando escrevo a 54 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor paranóia e a neurose é amenizada. Meu convívio social tem uma melhora acentuada, conseqüentemente o diálogo flui naturalmente. Há um equilíbrio geral e que faz sentir-me muito mais importante que sou. _É como se você recebesse um empurrão na estima morro acima? Respondi com certa afirmação, e Lutero tinha vontade de falar sob o efeito do fermentado. Não o interrompi, pois suas idéias evocavam as minhas, como engodo da vara de pescar. _ Quantas e quantas noites, quase estreladas ou nubladas, povoadas ou no total solitárias, que vaguei sem saber ao certo qual o melhor caminho a seguir... Algumas vezes penso em ter escolhido a trilha ideal. Porem, noutras vezes acredito que escolhi cegamente lugares estranhos e que ainda vou equivocar-me em excesso no seu longo decorrer. _Quer dizer que enquanto o ser homem segue seu destino, rumo ao desenvolvimento, por vezes ele se defronta com varias bifurcações neste longo trajeto? Foi isso que você quis dizer anteriormente? 55 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Mais ou menos isso. Enquanto uma pequena parte segue o caminho do puro amor, a grande maioria continua no caminho da arte, da devoção, veneração e idolatria. E isso tem sido o grande problema ao longo da vida da espécie. O amor que sentimos pelos filhos, pais, amigos deveria ser o mesmo nas relações afetivas, no cotidiano e na relação de um ser para com outro. Porem no decorrer ele se transforma em idolatria; ajoelhamos-nos diante de uma imagem, a devoção é inevitável. A imagem passa ser maior que a do próprio admirador. Lutero sorvia com prazer e rápido o restante do vinho da quarta garrafa, o que dava a ele um delírio poético no instante de extrair mais informações sobre as minhas teorias, que iam criando dimensões antes inexploradas pelo meu pensamento fictício. Fiquei contemplativo ao ouvir seus devaneios. _É um fato inexplicável! Que no cair da noite a nossa personalidade que nós dá a doce impressão de que está camuflada, dá o ar da sua graça e nos expõe a transparência da sua exorbitante força. Como se desprendesse do corpo material sem no mínimo analisar que dele simplesmente provêm. O mistério só as noites 56 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor pertencem. Dela vem os lúdicos poetas, pintores visionários, cantores afônicos, imersos atores, semideuses ou escritores e infratores que desenvolvem com maestria o dom de iludir ou definir se deve subir a um nível acima dos demais. Sempre focando um olhar (clinico) sobre a amplidão. Porque individualmente só à noite o mistério pertence? _Talvez seja por estar sobre a proteção da terra, dos efeitos dos raios solares. Talvez também diminua a pressão atmosférica, assim os neurônios fluem na sua total capacidade ou também alguma espécie de energia do cosmo que o sol nos limita a receber. Fiquei calado, enquanto o silencio reinou na sua ausência quando cambaleando, também foi ao banheiro. Mas, refleti que se não fosse à escuridão da noite não perceberíamos a importância do silêncio da terra que consome o medo, também à necessidade fugaz do fogo, o poder de mutação dos ventos, a capacidade essencial da água. Ou como de um olhar pessimista, a terra mostrasse a nós a sujeira, o fogo incinerasse esterilizando, o vento varresse e a água lavando de todos os equívocos. Ou também de um olhar racional, a terra 57 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor demonstrasse a sua exuberância de germinar, o fogo de acionar e transformar, o vento de misturar e adicionar e a água vital de estar sempre nutrindo. São os quatros elementos essenciais que conhecemos, porem nos esquecemos de dois outros elementos que ainda são fundamentais para o desenvolvimento: o dia e a noite. A claridade do dia nos faz ver o que a sombra da noite esconde, e a noite nos faz sentir o que durante o dia enxergamos, mas não nos é permitido sentir. Fica mais fácil entender se pensarmos como se fossemos micro organismos. No principio da espécie humana, quando ainda não tínhamos desenvolvido a visão e tudo era uma eterna escuridão e só podíamos sentir. E é evidente que entre os sentidos o primeiro a se desenvolver foi o paladar, depois o tato e por ultimo a visão. Quando Lutero retornava, usava os moveis como escora para não cair. Próximo à poltrona se jogou sobre as almofadas que diminuíram o impacto do corpo mórbido. Mas, ainda teve o ultimo vestígio de lucidez ao se manifestar sobre o raciocínio que desprendera, talvez no momento que usava o vaso sanitário. 58 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Jesus Cristo não morreu por nós como dizem nos sermões repetidamente. Quem matou Jesus foi exatamente o fato de vivermos sobre (O Manto da cultura). Criaram esta cultura de veneração a milhares de anos. Como um rio de mentiras, somos arrastados pela correnteza do iludir até os dias de hoje. O amor não é dar esmolas ou dízimos, é doar a si mesmo transmitindo inteligência, coragem, dignidade, respeito, paciência e paz. Enfim o vinho nos venceu naquela madrugada. 59 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Falsos amores Estamos em principio de inverno na capital paulista, mais pra ser exato dia doze de julho do ano de mil novecentos e noventa e sete. Um... Apenas um... Daqueles finais de tarde que só quem já esteve em São Paulo sabe o frio que acontece nesta época do ano. De uma sextafeira que indicava que o final de semana chegou; hora de sair da cidade. O paulistano sai em busca de descanso em algum lugar que o faça esquecer a loucura do transito e o estresse do trabalho. Os que ainda não saíram, e os que não vão viajar começam a chegar a suas casas e apartamentos. Nas ruas e avenidas o congestionamento é algo monstruoso, buzinas, sirenes, indicam que é hora do rush. Na gigante São Paulo com seus néons, painéis, outdoors, os espigões de concreto e suas janelas começam a mostrar seus coloridos, ao se acenderem... De repente no apartamento o telefone tocou. Na sala Márcia atendeu no momento que passava saindo da cozinha para o quarto. Ao ouvir a musica do serviço de chamada a cobrar; 60 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor nem aguardou o termino e esticou o braço com o fone em mãos na direção de Breno, dizendo. _Toma que o filho é seu. Breno fez uma careta, pelo toma que o filho é seu, depois deu um sorriso e atendeu. _Alo? Do outro lado da linha o filho que mora em outra cidade com a mãe, respondeu. _Fala ai o paizão. Anda sumido. O pai sentiu a verdade na cobrança e tentou ir fundo no sentimento do filho. _Como você está? A sua cabeça como anda, Luli? Luli é a síntese dos nomes Luis Lima, dado carinhosamente pelos pais ainda bebê. Filho único muito mimado pelos pais e avós andava meio cansado de tanta proteção e bajulação; respondeu com ironia. _Estou indo bem. Quanto a minha cabeça, está sobre o meu tronco que está sendo arrastada neste momento pelos meus membros inferiores. E você quando vai aparecer por aqui? Na cabeça de um homem divorciado há tantos problemas como na cabeça de um matemático da NASA, fazendo cálculos antes se lançar um sonda a júpiter. Breno se sentia um 61 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor pai tão ausente como um ex-marido deficiente e um atual esposo inoperante. Mas com ele mesmo dizia: (vou empurrando com barriga) _Acho que vou, no seu aniversario. Talvez no mundo não exista pai e filho com tantas semelhanças; a única diferença é que o filho tem uma bicicleta e uma prancha, o pai só uma luneta e uma corneta. E o dialogo de cobranças flui ao telefone. _Já que você vem pro meu aniversario, poderia trazer uma roupa pra mim. O cobrado se confundi com os detalhes do presente, perguntou. _Por quê? Está nu? _Não. É roupa de neoprene. Você sabe, o inverno está chegando e não dá para cair na água sem roupa de neoprene. _É só não entrar, e esperar o calor do verão chegar. _Já que você não quer dar o neoprene, então me dá duas passagens de avião; uma de ida, uma de volta e três meses de estadia no Havaí, ou Califórnia, Noronha, Indonésia, Austrália, África do sul, quer mais. 62 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Pensando bem, o neoprene está com um preço bom. Você venceu. Surfista calhorda. Tua mãe e teus avôs estão bem? _Quando eu fugi de casa estavam bem. Breno com uma leve preocupação perguntou. _Quando e porque, você fugiu de casa? Rindo, Luli respondeu. _Calma, faz quinze minutos, só vim ligar pra você. _Pensei que você tinha fugido mesmo. Falou então Luli ate o dia doze, um beijo. _Um beijo, não vai furar paizão. Ah! Já ia me esquecendo de desejar boa viagem pra elas. Fui. _Fui. Breno acabava de colocar o fone na base quando ouviu e viu; Manoela sua enteada sair gritando da porta do quarto, num minúsculo corredor em direção a sala. _Breno, você sabe onde está o meu livro? O diário de Tati? O Nilo quer ler em Curitiba. Quando Breno foi morar no apartamento de Márcia, ela havia ficado viúva recentemente; seu marido morrera intoxicado e pouco se falava qual foi a substancia encontrada em seu 63 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor organismo. Manoela tinha na ocasião quase sete anos; e recentemente ela fizera dezoito no mês de fevereiro. Breno se explicava com autoridade no assunto. _Esqueceu que você emprestou pra Bia. _Qual Bia, a do colégio? _Não, a Bia daqui do prédio. _Não me deixe esquecer de ligar pra ela, ouviu Breno. Esse “ouviu Breno” no final saiu um pouco mais alto. _Você acha que sou seu empregado. Vai-te catar menininha. _Acho não, tenho certeza. Manoela deixou a sala fazendo careta e mostrando a língua. E Breno foi ao seu quarto, onde Márcia preparava as malas. Antes de sentar a cama olhou-se no espelho. _Que horas as feias pretendem pegar a estrada amanhã? _Feia é sua avó. Márcia deu um sorriso e continuou. _Acho que saindo às sete horas, da pra chegar pro almoço na casa da Verinha. 64 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Se eu fosse você comeria no caminho, é um dia a menos a passar fome na casa da sua prima. É muito pão duro a Verinha. _Chegando lá, será a primeira coisa que eu vou falar pra ela. Balançando as mãos fingindo tremer, ele ironizou. _Estou morrendo de medo. É pão duro mesmo. Depois deu uma pausa em silencio, ele em seguida perguntou. _Você pretende ficar todos os quinze dias? Márcia apertou um dos lados da bochecha do Breno carinhosamente, e brincou com as palavras. _Porque, já está com saudades da mamãe bebezinho? Você não está com essa bola toda. Oh perua. É que dia vinte sete é o aniversario do Luli. _Fala que eu mandei os parabéns pra ele. Ah! Diz também que eu enviarei um postal do lugar mais lindo que tiver. _Ele desejou boa viagem pra vocês. 65 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Ai! Obrigado... Breno, não fica triste; vou te pedir mais uma vez. Cuide-se cara... Você sabe que eu te amo! _Eu também te amo. Que você faça uma boa viagem. Abraçaram-se na cama, e deram um longo beijo. Estávamos no ano de mil novecentos e oitenta e sete, foi quando Breno havia se separado de sua primeira esposa. A pequena cidade de Arujá a quarenta quilômetros de São Paulo estava completamente pequena, para tantas desilusões que o atormentavam. Do convívio com o filho, durante os cinco anos, que fora casado só lhe traziam boas recordações, mas as saudades foram determinantes na decisão de deixar a pequena cidade. Ir para onde? Perguntava-se Breno. Fazer o que? Se a profissão de torneiro mecânico que havia escolhido quando adolescente e fizera o curso não mais lhe agradava. Dizia ele que nunca gostou de ficar entre quatro paredes. Depois de muito pensar, Breno se submeteu a trabalhar de fazer sanduíches, em um café na capital paulista. Profissão que aprendeu ajudando um amigo que tinha uma 66 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor lanchonete em Arujá. Uma parte do que recebia pagava à pensão que dormia, outra parte a pensão para o filho e o pouco que restava com despesas pessoais. Os proprietários do café, Márcia e o primo Tadeu tinham uma sociedade com algumas divergências: Tadeu queria investir na ampliação do café, Márcia cautelosamente em conter gasto, dizia ser um problema de nascença. Porém, se olhasse para uma vitrine de roupas, calçados, bolsa ou bijuteria, tinha uma forte recaída, e a compulsão te levava a falência. Márcia fizera o curso de assistente social e nunca foi necessário exercer a profissão. Ao contrario de Tadeu que fez direito criminal e muito custou para pagar as mensalidades da faculdade, só conseguiu obter o diploma após pagar seis meses de mensalidades atrasadas. Tadeu usava os piores meios para conseguir seus objetivos. Breno comprovou seus métodos na primeira vez que o viu. Tadeu e o proprietário da primeira lanchonete que Breno trabalhava eram amigos. Ao ver a competência do Breno para preparar os sanduíches e também a simpatia com que tratava os fregueses, Tadeu chamou o Breno de lado entregando um bilhete 67 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor com seu telefone e o nome. Falando ao seu ouvido. _Se quiser trabalhar em São Paulo, é só me ligar. Com Márcia o primeiro contato foi bem diferente. Breno no seu segundo dia de trabalho estava desentupindo um cano de esgoto, ajoelhado com uma das mãos enfiada na crosta de sujeira e gordura, Márcia chegou perto e disse. _Credo! Que nojo! Breno subiu seus olhos de indignação na sua direção e salientou. _Alguém tem que fazer o serviço sujo. Alguns meses passaram, Márcia se apaixonou loucamente por Breno, mas o Breno vivia dizendo aos amigos: livrei-me de uma apareceu outra, eu realmente joguei pedra na cruz, estou pagando todos os pecados. Isso era apenas brincadeira porque no fundo, Breno também estava completamente louco por Márcia; inclusive havia melhorado e muito sua depressão, o bom humor voltara de tanta felicidade. Na segunda-feira dia quinze no bar e restaurante, o telefone tocou por volta das duas 68 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor horas da tarde. Breno foi chamado para atender ao telefone. Do outro lado da linha, Márcia dissera que fizera uma viagem tranqüila, também já estavam hospedados na casa da prima Verinha. Breno desligou o telefone, ao voltar para cozinha foi abordado por Tadeu que almoçava em uma das mesas com Narciso; um amigo de infância. Quase duas vezes por semana os dois se reuniam. Narciso é médico cardiologista que cuida dos corações de toda a família. _A Márcia chegou bem em Curitiba, Breno? Breno sempre com bom humor, brincou. _Acabaram de chegar no SPA. Ambos surpresos quase que ao mesmo tempo perguntam. _SPA! Elas não iam pra casa da Vera? _Mais do jeito que a Verinha é pão duro, na certa vai passar fome. Depois de rirem por alguns instantes, Tadeu anuncia que irá organizar uma festa no restaurante na quarta feira, para oito amigos executivos depois do expediente; aproveitou também para convidar Breno que jamais recusou um escocês de primeira linha. 69 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Todos os homens têm seus defeitos, em certos momentos são profundas suas recaídas. Uns se apaixonam obsessivamente por uma mulher, e não medem esforços para consegui-la, como se a mulher fosse um objeto; outros não podem ver um jogo de futebol na tv, esquecem tudo que existe ao seu redor; outros gostam mais do carro do que da própria mulher; existem homens que o dinheiro é tão importante que por ele é capaz de fazer monstruosidades, o que não faltam são historias nesse sentido. Na quarta-feira, tudo foi preparado nos mínimos detalhes sem deixar faltar nada por Tadeu e Breno, para a festa que aconteceria depois do expediente. Meia hora antes de a festa começar, Tadeu saiu dizendo que tomaria um banho e que logo voltaria, e pediu para que Breno recebesse os convidados que na sua maioria, ele os conhecia. Foram chegando os primeiros convidados, bem recepcionados e servidos por Breno que também contava suas piadas. _Vocês sabem qual a única coisa que o ser humano não pode escolher? Quando somos pequenos podemos escolher nossas bicicletas, nossos patins, as rodas dos nossos skates, ate a 70 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor cor dos nossos cabelos; quando adolescentes podemos escolher se vamos ser homossexuais, bissexuais ou heterossexuais; quando adultos podemos escolher os cursos na faculdade, a cor e a marca dos carros, o apartamento, com quem vamos casar; hoje podemos ate escolher o sexo do filho, a cor dos olhos e cabelos que eles vão ter quando nascerem. Mas, a única coisa que não podemos escolher, é a sogra. Uns riram, outros nem ouviram. Mais mesmo assim ele prosseguiu. _Um homem encontra com um amigo no meio da rua, notando que ele estava com rosto todo arranhado, ficou com um olhar de curioso e fez uma pergunta. _A onde você estava? O outro respondeu. _ No enterro da minha sogra. _No enterro da sua sogra; e todo arranhado assim? _Ela não queria de maneira alguma ser enterrada viva. Ao que ficou evidente é que muitos já conheciam essa piada, porque diminuiu número de pessoas que riram, más mesmo assim ele prosseguiu. 71 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Vocês saberiam me dizer o que mais se parece com o casamento? Uns falaram algo, outros bulhufas... Ai, respondeu ele todo feliz. O que mais se parece com o casamento é a avenida paulista. Sabem por quê? Porque começa no paraíso e termina na consolação. A festa estava quase na sua metade, quando Tadeu chegou acompanhado de duas mulheres desconhecidas. Algumas garrafas de uísque foram esvaziadas ate as duas da madrugada; quase todos se foram, exceto Tadeu, as duas mulheres desconhecidas e Breno. Os quatros em uma mesa conversavam, de repente, Tadeu força um alto bocejo sonoro, levanta e interrompeu. _ Bom, a conversa está boa, mas vou embora com a Selma. Você Breno, fica com a Leila mais um pouco. Em seguida tirou uma garrafa pequena de uísque oito anos de sua pasta e serviu os copos do casal, dizendo. _Essa é especialmente para os meus eternos amigos, Breno e Leila. Saúde e paz...Vamos Selma, temos uma noite longa pela frente. 72 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor No dia seguinte Breno foi despertando aos poucos. Quando estava completamente consciente percebeu que envolta dele de pé, alguns indivíduos estranhos rindo sarcasticamente. Colocou-se de pé, também ainda tonto e assustado, colocou as duas mãos a cabeça e deixando no rosto a expressão de dor. E falou. _A onde estou, que lugar é esse? Um dos sujeitos brincando respondeu. _Você está no castelo, princesa. Acordou bela adormecida, seu covarde assassino de prostituta. Breno olhou ao seu redor. Percebeu que tinha grades de ferro. Não quis acreditar no que estava vendo, e falou indignado. _Isso dever ser um sonho, eu não matei ninguém. O sujeito ainda rindo, ascendeu um cigarro com fósforos e falou. _Isso é o que todo mundo diz, quando vem parar aqui. Breno olhou para o vazio tentando recordar o que poderia ter ocorrido com ele, mas nada pareceu vir à mente que o medo agora o envolvia de modo profundo. Sentou-se em um 73 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor dos cantos da cela, e automaticamente encolheu o corpo. Os oito homens na cela de cinco metros quadrados, todos o olharam naquele instante, mas apenas alguns deram risadas do novo companheiro. Depois de alguns minutos, Breno se levantou, segurou as grades tentou chacoalhar. E berrou. _Tem alguém ai? Eu preciso telefonar. Após repetir por quatro vezes, apareceu um homem em trajes comuns, tentando acalmálo. _Por favor, senhor Breno Alves Cunha, acalme-se. Seu advogado, doutor Tadeu Luis Silva já ligou e está a caminho. _Me responda, por favor. O que eu fiz para estar aqui preso? Com a mesma educação o homem concluiu. _Infelizmente senhor Breno, aqui não nos dão essas informações. Seu advogado com certeza tem todas as repostas e lhe deixara a par de todos os fatos. A fisionomia de Breno era de completo pavor e indignação, mas resolveu sentar no mesmo lugar. Novamente colocou as mãos a 74 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor cabeça que latejava, as lagrimas desceram a face de consternação. A noite estava caindo naquela cela gelada que lhes doíam todos os ossos do corpo deitado sobre um fino colchão. Apareceu novamente o carcereiro, desta vez acompanhado de um policial; pediu educadamente que colocasse as mãos do lado de fora das grades para algemálas, disse que seu advogado o aguardava numa sala especial. Ao entrar na sala desesperado, Breno nem cumprimentou Tadeu, e perguntou. _Por favor, Tadeu me tira daqui? O que está acontecendo? _Acalme-se Breno. Eu vou te explicar. Tadeu com olhos mostrou os dois homens que deixavam a sala. _A Ana, a faxineira chegou pela manhã, entrou pelos fundos do restaurante. Viu você, e a Leila; estavam caídos pelo chão e muito sangue. Saiu correndo desesperada e ligou para policia; a policia por sua vez, ligou para minha casa e quando cheguei já haviam trazido você para delegacia. Neste instante Breno ansioso o interrompeu. _Fala logo o que eu fiz. 75 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Não me deixaram entrar. O legista terminava os seus trabalhos de perícia. O sargento me disse que Leila fora assassinada com três tiros; você desacordado e uma arma do seu lado; copos e garrafas quebrados pelo chão. Tudo indica ter ocorrido uma briga entre você e ela. _Eu não briguei com ninguém, eu não matei nenhuma mulher. Isso é uma brincadeira, não é Tadeu? O que está acontecendo? _Parece que não Breno; você bebeu demais. Vamos esperar pelos exames da perícia, para começar a trabalhar na sua defesa. Isso se você me quiser como seu advogado, é claro. _Por favor, Tadeu, me tire daqui o mais urgente se possível. _Neste momento na sala do delegado, encontra-se o medico legista. O Dr. Álvaro depois vem para cá, fará alguns exames em você para podermos te livrar dessa enrascada que você se meteu. Ok? _Tudo bem. _Fique calmo, não vá se meter em confusão. Depois eu apareço. _Por enquanto obrigado Tadeu. 76 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Não precisa me agradecer. Alias para que serviriam os amigos se não fossem para uma ocasião tão difícil como esta. Alguns dias se passaram e o restaurante funcionava normalmente, apesar do crime brutal que ali acontecera. Márcia não presenciara a cena, o que talvez tenha influenciado para retornar ao trabalho duas semanas depois, mas o choque, da maneira como aconteceu e quem fora o causador, ainda abalava e muito seus dias. Ao telefone com a mãe Sonia, o assunto ainda era o mesmo. _Para ser sincera filha, desconfiávamos e muito do caráter deste moço, desde a primeira vez quando você nos apresentou. Ele não tem uma profissão digna. _Todos nós temos o direito de errar um dia, mamãe. Meu relacionamento foi um equivoco do começo ao fim. _Eu e seu pai estamos muito preocupados com a sua segurança e da Manoela. _Mamãe, não tem com que se preocupar, agora ele está preso. _Filha, você conhece as leis brasileiras, existem muitas brechas; logo ele pode estar solto. Porque você não vende sua parte no 77 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor restaurante, troca de apartamento. Com o dinheiro do seguro e os bens que teu pai passou em seu nome, dá pra vocês viverem muito bem. _Eu prometo pensar seriamente nisso. Agora me deixe trabalhar um pouco, mamãe. _Não se esqueça que estamos muito preocupados. _Está bem mamãe. Um beijo. _À noite eu te ligo. Um beijo. No dia vinte sete de julho em Arujá seria a festa de aniversario de Luli, mas devido ao fato foi cancelada. Na casa, Luli estava trancado em seu quarto revendo algumas fotos tiradas junto ao pai, quando o avô bate a porta, e Luli autorizou sua entrada. _Boa tarde aniversariante. Luli levantou-se da cadeira, onde estava à frente do computador, e cumprimentou seu avô. _Tudo bem vô? O avô com um embrulho nas mãos estendeu-as ao jovem. _Trouxe um presentinho pra você. Não vai abrir? Seguindo o conselho do avô, abriu o presente. 78 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Me desculpe, estou com cabeça em outro lugar. Seu avô fazendo das tripas ao coração, para agradar o neto; perguntou? _É a cor que você queria? Se o seu pai estivesse por aqui, era o que ele te daria. Muito satisfeito o neto agradeceu. _Muito obrigado vô. Foi isso que eu pedi pra ele. _Tua mãe me contou. É a única coisa que posso fazer nesse momento por você, Luiz. Enquanto o rapaz esticava a roupa de neopreme, relembrou. _Você se lembra vô, há um tempo você me perguntou que curso pretendia fazer na faculdade? _Claro que sim. Você falou biologia marinha. _Mudei de idéia. Vou fazer direito criminal, para tirar meu pai daquele lugar horrível. Os seus olhos encheram de lagrimas ao falar. Seu avô percebeu e tentou deixar o neto ciente que ele estava preocupado com situação complicada que estava passando. E argumentou, questionando. 79 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Tua mãe também me contou que você foi visitá-lo na cadeia. Como ele está? _Por nenhum momento, pareceu com aquele cara que eu conheço. Ele está muito deprimido. O seu avô mais uma vez deixou indícios de cuidados. Concluindo. _Eu liguei para o advogado do seu pai. _E o que ele falou? _Você precisa ser forte filho. Os indícios contra ele são muitos. O teste residual de pólvora na mão direita deu positivo, como também o de sangue. Foram encontradas substancias químicas. _Quais tipos de substâncias? _ A mais complicada é a cocaína. Luli interpelou, como não gostando da verdade do momento. _ Mesmo assim eu confio na inocência dele. _Bom Luiz! Tenho uma tarde cheia pele frente. Preciso trabalhar um pouco. _Mais uma vez, obrigado vô. Ao se despedirem abraçaram-se, com muito afeto; habito comum entre eles. Haja vista que quando seu pai separou de sua mãe, Luli 80 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor tinha apenas cinco anos. E o seu avô foi obrigado a ter um contato maior com ele e a filha. _Se for fazer direito criminal, eu ajudo você nas mensalidades da faculdade. E foi sorrindo que o jovem despediu do seu amigo e avô _Valeu vô! No distrito policial o movimento é intenso nos sábados. Principalmente no horário de visitas. Na sua maioria mulheres, mães, irmãs, companheiras tristes destes presos. Elas sonham: com a regeneração destes homens, quase impossível. Breno á muito tempo não recebia visita; a ultima vez foi de seu filho há um mês. Mas naquele sábado o carcereiro acompanhado de um policial, chamou por Breno. _Vamos rapaz, visita pra você. Ao entrar na sala reservada para visitas, dona Carmem e Breno tiveram uma crise de choro ao mesmo tempo, e se abraçam por um longo tempo. Quando a crise amenizou, sua mãe começa falar ainda enxugando as lagrimas com um lenço. _Como vai sua saúde filho? 81 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Ate agora estou resistindo bem. Eu fico mais preocupo com você e o Luli, enfim todos que se preocupam comigo. _Não está sendo fácil pra mim, saber que você está vivendo nestas condições. Breno, sobre uma forte emoção, desabafou. _Tem dias que penso antes de dormir, que vou acordar em casa... Uma cama quente... Um banho quente e cheiroso... Que vou ver televisão ou andar a toa pelas ruas, ver os amigos, conversar com toda liberdade; como se tudo fosse um grande pesadelo... Estes últimos dias têm sido os mais horríveis em toda minha vida. Nunca senti tanta solidão e angustia; a tristeza parece não ter fim. Tudo que vejo, são paredes e mais paredes, muros altos e grades por todos os lugares. O silencio habita o mais profundo dos meus instantes que são infindáveis; desde quando acordo, ate a hora que o sono me carrega no final da noite, para um descanso que não se consome. Entre tantos e tantos pesadelos horríveis, de vez em quando tenho um sonho que se repete; e quando acontece, mesmo assim me da um pouco de alegria. Vejo-me caminhando descalço, sem camisas, de 82 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor bermudas, pela areia fina e branca de uma praia que ainda não estive. Vários coqueiros na orla de uns quinhentos metros de extensão, uma pequena ilha a cem metros, bem enfrente da praia fazendo o quebra mar, (evidenciando ao lugar o aspecto de serenidade com águas transparentes). Porem, o resto é só pesadelo: daqueles de acordar suado e assustado. Às vezes, me vejo rodeado de cada brutamonte que começam me espancar e tentam espetar-me com facas artesanais. O medo nos acompanha, aqui dentro como nossa sombra, por raros momentos esquecemos dela como esquecemos que ainda estamos vivos. Apesar dos pesares, o medo nos impõe limites, nos faz respeitar ao extremo a hierarquia que nos submetem. Para ser mais claro o medo calcula cada passo, cada gesto e cada palavra neste inferno aqui na terra. Enquanto o silêncio tentava dizer algo, dona Carmem consolava o filho passando a mão sobre sua cabeça. Em seguida Breno reiniciou seu desabafo. _A maior parte do tempo passo pensando que a minha vida se transformou em um enorme buraco... Penso também que não sei mais quem sou... Um homem ou um monstro... Porque 83 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor aquela mulher colocou droga em minha bebida e na dela? Quem colocou esta mulher em meu caminho? Eu estava tão feliz com a Márcia. _Tente esquecer... Tire o ódio do seu coração, pense em coisas boas. _Você tem toda razão. Isso só irá piorar o meu estado... Você falou com a Márcia? _Ainda não conversamos. Fiquei com receio dela dizer algo ao seu respeito que talvez eu não quisesse ouvir. De mãos dadas, o silêncio parecia dizer à dor que ambos estavam sentindo. O destino de muitas pessoas pode num piscar de olhos se transformar num imenso vazio, ou talvez um poço sem fundo no qual só caímos. De repente um policial interrompeu. _Infelizmente terminou o horário da visita senhora. Mesmo com um semblante triste que lhe molhava os olhos, agradeceu o policial. _Você está precisando de algo, filho? _Sim. Fala pra Márcia que eu estou com muitas saudades. _Tchau filho fica com Deus. Ele sempre vai iluminar o seu caminho. Tenha muita fé, é só o que neste difícil momento eu posso te oferecer. 84 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Obrigado. Mãe. Tente, não ficar tão preocupada comigo. Se conseguir, evidentemente. No letreiro iluminado da fachada estava escrito: (clinica cardiovascular Rastelli). Na porta do consultório, doutor Narciso Rastelli. Dentro da sala, o doutor Narciso atendia Márcia, sentada a sua frente sempre com muita elegância e simpatia. _Você está muito bem Márcia. Pelo menos na aparência. É muito bonito seu cachecol. _Obrigada. Na medida do possível, tirando os mortos e os feridos, vou indo muito bem. _Trouxe os exames que lhe pedi? _Estão aqui na minha pasta. _Como está Manoela? Márcia entregou o envelope com os exames. _Às vezes diz que sente saudades do Flavio às vezes do Breno. Mas não pergunta nada sobre a prisão. São duas perdas recentes para alguém muito pequena. Estou levando ela a um terapeuta uma vez por semana. Talvez de algum resultado. _Bom Márcia está idêntico ao exame anterior, o colesterol e as triglicérides. Pelo que 85 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor eu pude notar você não seguiu a dieta que passei. _Estes três meses foram, muito complicados. _Você está precisando de algum tipo de ajuda? _Não, neste momento. Penso que o tempo é a única ajuda que necessito. _Porque você não faz uma terapia ou uma viagem. Estou indo para África do Sul visitar alguns parques. Não gostaria de ir comigo? Seria uma companhia muito agradável. Alem de me fazer muito feliz. Você sabe o quanto eu a admiro. Enquanto falava, Narciso tentava pegar as mãos de Márcia que estão sobre a mesa, porem ela se esquivou, mudando de assunto. _Vamos ao que me interessa, por favor, Narciso. Eu continuo com o medicamento? _Sim, a mesma dosagem. Todos estes anos, eu sempre fui apaixonado por você. Desculpe-me dizer isso assim. Quer jantar comigo hoje? _Hoje eu não posso, vou jantar com meus pais. _Então amanhã? 86 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Não. Eu te ligo pra combinar. Boa tarde, Narciso. _Fico aguardando o seu telefonema. Boa tarde Márcia. Quando Márcia saiu do consultório foi direto para casa de uma amiga para um chá, enquanto Manoela estava no colégio. Estava evitando deixar a filha sozinha, tentando suprir as perdas do pai e a prisão do padrasto que tinha aprendido a admirá-lo. Márcia também sofria de profundas depressões no seu intimo ultimamente, mas só confidenciava isso, a sua amiga Lucia de tantas décadas. Enquanto tomavam o chá conversavam... _Quer saber de uma coisa Lucia? Talvez eu nunca entenderei o egoísmo brutal masculino. Antes de dar uma mordida na torrada. Lucia incitou à amiga. _Continue minha amiga. Fale tudo que necessitar. O e que está te preocupando tanto? Depois que deu um gole no chá quente, Márcia seguiu o desabafo. _Como já te falei; está paixão doente do Narciso por mim desde a adolescência. Ele nunca se preocupou se existe algum sentimento da minha parte por ele. Todo o respeito que eu 87 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor tinha por ele, está indo pelo o ralo do esgoto. Ele nunca se preocupou se eu amava o Flavio e o Breno. Sempre desrespeitando a mim, o Breno e o Flavio. Lucia serviu um pouco mais de chá, e interferiu. _Eu tenho certeza que não é só isso que te perturba. É uma obsessão tão antiga essa do Narciso e já conversamos sobre isso. _Claro que não. Depois o Flavio empenhado em seu trabalho, no seu desenvolvimento profissional. Por nenhum momento pensou em mim ou na Manoela. Como ficaríamos sem ele. Se ele não se cuidasse. Apesar de ir com certa freqüência ao consultório do Narciso, fazer todos os exames necessários, tomar todos aqueles remédios. Também foi por tomar todas essas drogas e encontrarem uma quantidade substancial de mercúrio em seu fígado, é que demorou tanto para a seguradora liberar o dinheiro. Já tinha comentado isto com você? _É um fato novo e muito estranho. _Ele deveria procurar um tratamento alternativo, ter outras opiniões. Mas não, era Deus no céu e Narciso na terra. 88 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _A morte Márcia é algo que ainda não sabemos como lidar. Só nos resta aceitá-la. _Com o Breno, todo sentimento que nos unia, ele jogou dentro de alguns copos de uísque, algumas carreiras de cocaína e uma prostituta da pior espécie numa noite estúpida... Um amor, tão verdadeiro, carinhoso, completamente sem ambição... De todos os relacionamentos que tive, este me ultimo fez crescer muito como mulher... Todos os outros eu queria e conquistei... Com o Breno foi diferente... Ele apareceu como fumaça e impregnou em meus cabelos, em meu corpo, penetrou em meu nariz e na minha boca... Quando dei por mim, queimava-me como fogo... Eu penso muito que o egoísmo, nunca me deixará realmente ser feliz. Porque os meus pés estão acorrentados ao egoísmo masculino. _A única coisa que eu posso dizer pra você neste momento difícil, é pra não perder a coragem e a força. Porque pior que isso não da pra ficar. Quase seis meses se passaram, desde a prisão de Breno. Nenhum novo indício, nenhuma prova concreta que pudesse ajudar na absolvição. Assim dizia Tadeu aos familiares que 89 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor desejassem saber do andamento do processo. Tadeu almoçava com Narciso num determinado dia no restaurante, onde ocorrera o homicídio e dava as ultimas noticias a respeito do processo. Narciso também quer noticias e pergunta. _Quando vai ser o julgamento daquele infeliz. Tadeu cortava o bife acebolado enquanto esclarecia os fatos. _Está marcado para o dia quinze de dezembro. Como se a noticia trouxesse alguma felicidade, Narciso continua. _Está tão perto assim? _Ainda tenho certeza que será condenado em primeira estância. Breno estava cercado por pessoas que diziam ser seus amigos, mas que jamais moveriam uma palha para conseguir provas contra os fortes indícios de que realmente fora ele o autor daquele homicídio. Realmente ele foi condenado em primeira instancia e deveria cumprir pena no presídio em regime fechado por vinte sete anos. A tristeza de sua mãe foi algo tão profundo que muitos presentes se comoveram, principalmente quando ela abraçou 90 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor seu neto e choraram por vários minutos, no final do julgamento quando o juiz deu o veredicto, e os guardas retiraram Breno do plenário. 91 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Os homônimos do Zé Pra começo de conversa vou deixar bem claro que esta história é quase verídica, só não é por inteira porque são relatos de um grande amigo desesperado e de longas datas e muitas farras e bebedeiras, e sei perfeitamente que a verdade é algo que lhe faz falta. José é seu nome de batismo e pelo que também sei, só o padre na cerimônia e as professoras do primário o chamaram de José; porque de lá pra cá é só Zé mesmo e alguns adjetivos. Hoje se alguém chamá-lo de José ele pensa que não é com ele e nem se manifesta, por sua vez, ele só irá atender se gritar bem alto e repetir por duas vezes. _Senhor José de Souza. _Senhor José de Souza. O Zé sempre diz nas rodas de amigos e nas mesas dos bares que por três vezes nestes serviços de alto-falantes anunciaram seu nome. _Senhor José de Souza queira se apresentar ao balcão de informações. Quando o Zé se aproximou do balcão ficou assustado: havia mais de quinze marmanjos, 92 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor respondendo ao mesmo chamado. O que mais o impressionou, é que alguns estavam exaltados ao extremo, e reivindicavam o direito ao nome. Com a mão espalmada um homem moreno de quase dois metros de altura batia repetidas vezes com estupidez no peito. _Vai todo o mundo à merda! José de Souza; sou eu. Porra! Outro homem um pouco menor no tamanho, mais tão grande na estupidez verbal, o Zé disse que logo percebeu que era nordestino pelo sotaque, e revidou no saguão já quente de ignorância. _Não me venha com besteiras. José de Souza; não és tu. Sou eu. Seu cabra da peste, filho duma jumenta. Ta ruim dos ouvido. Os ânimos só se acalmaram e mudou da água pro vinho profundamente, quando um gay assumido na afetação, resolveu falar com aquela língua presa característica. _Por isso! Por isso mesmo que estou louca pra trocar meu nome pra Mirela. Mesmo a lei não me dando este direito, eu vou ate fim do mundo, porem um dia não me chamarão mais de José de Souza, e assim serei anunciada por Mirela lady de Souza. 93 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Não preciso nem dizer o que aconteceu depois, a gargalhada ecoou no recinto do órgão publico. O Zé disse, que este episodio aconteceu no poupa-tempo da estação da luz, no setor de requisição do RG. No caso do meu amigo, ele estava tirando a segunda via, pois perdera o seu numa destas noites em que ele saiu, pra afogar o ganso ou trocar o óleo. Estes são alguns dos nomes que ele usa para: coito e relação sexual. Ele nem gosta de falar deste respectivo dia, porque neste fatídico dia sua ereção não ocorreu. Alem de perder seu documento, sua parceira de atividade ainda nua sobre o leito, se decepcionou profundamente com o desanimo do órgão enrugado. E ironizando a cena de crueldade, falando. _É tudo isso que você têm entre as pernas pra me mostrar! Alias só me confidenciou este episodio em um determinado momento que estava meio embriagado de vinho tinto chileno. Falando em bebidas, antes que me esqueça tenho outro caso a respeito. Zé tem feito me rir muito ao longo de nossa amizade e este ensinamento do seu nobre e filosofo pai, não poderia deixar de contar da mesma maneira que foi dito. 94 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Quando Zé ainda entrava na puberdade e as espinhas estouravam pelo seu rosto. Ele estava nos fundos do quintal da casa que morava, sobre a sombra de um imenso abacateiro, seu pai enquanto cuidava da pequena horta de couves e alfaces, fez um pedido a ele. _Zequinha. _O que quer, pai. _Pega uma cerveja na geladeira e um copo. Menino. _Estou indo. Seu pai viu que o Zequinha não se mexia porque estava com uma varinha brincando com as formigas, ai gritou mais alto ainda. _Anda logo, seu moleque. Zequinha saiu que nem foguete atender o pedido. Quando entregou a cerveja e o copo, o pai filosofou. _Filho! Direi a você uma das maiores verdades contemporânea que aprendi na labuta desta vida que é ferrenha e tinhosa. Com as pontas dos dedos se encontrando, cada um com seu respectivo par: indicador com indicador, polegar com polegar e assim por diante ate o mindinho, acabou por fazer um 95 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor formato de um globo, e deu seqüência a sua louca teoria alcoólatra. _No planeta inteiro, filho, só existe dois lados. Você saberia me dizer quais são? Zequinha. O Zequinha ate que tentou uma resposta e fazendo aquela cara feliz de quem matou uma charada, arriscou. _Essa é fácil; claro que sei! O lado de dentro e lado de fora. O pai balançou a cabeça negativamente varias vezes. E prosseguiu. _Filho! No mundo só existe destilado e fermentado. O pai após dar a resposta certa não lhe dirigiu uma se quer palavra ate o fim do dia. Meu amigo disse-me com muito orgulho na voz, que tem de seu pai filosofo e agora mestre e guru; que o modo de pensar mudou. Refletiu muito sobre a resposta e foi pesquisar nos livros o significado de destilado e fermentado. Diz ele que começou pelo dicionário, passou para os livros de ciência, química, biologia e historia. Diz que em um livro de historia descobriu que os egípcios, alguns séculos antes de cristo já produziam os 96 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor fermentados, mas o destilado é uma descoberta mais recente. Nos livros de geografia foi procurar onde ficava o tal do Egito e por coincidência descobriu que teve um rei e por isso ele vive se vangloriando. E sempre diz. _Eu gosto do meu nome porque José foi rei no Egito, outro José carpinteiro foi pai de Jesus, outro José Sarney foi presidente do Brasil e José de Saramago é um dos melhores escritores contemporâneos que conheço. O meu amigo, o Zé que não é presidente, nem rei, nem pai de ninguém famoso e não escreve nem carta pra namorada, nasceu na periferia de São Paulo; mais precisamente no extremo da zona leste. Mesmo assim ainda empina o nariz e comenta sobre o lugar que nasceu, com a força de um romano levantando uma espada imaginaria. _Nasci na periferia, porem meu bairro é nobre, tem nome de conde Italiano. Ermelino Matarazzo alem do mais estudei em um colégio que tem nome condessa. Filomena Matarazzo. Existe um fato muito importante que deixa o meu amigo Zé em determinados momentos com ar de tristeza; ele quando toca neste 97 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor assunto abaixa a cabeça e o silêncio lhe consome, alem do mais sua voz sai embargada. _Apesar de ter estudado um pouco, não consegui terminar o ginásio. Hoje, vocês não têm a noção de quanto isso me faz falta. Penso que poderia rir um pouco mais no dia a dia, mas não dá ficar chorando sobre o leite derramado e vamos em frente que a fila está andando. Numa destas noites, no auge da filosofia nas mesas de bar, o Zé apareceu com um fato novo que deixou muitos de nós com alta estima e massageou nosso ego com certo comentário que havia lido numa matéria em uma revista mensal, que não me lembro o nome agora. _Eu que sempre acreditei que pobre quando não gosta de trabalhar, recebe o nome de vagabundo e o rico quando não trabalha, simplesmente sofre de ócio. Confesso que fiquei surpreso com o que li esta semana. Imaginem vocês ao descobrir que na Grécia antes de cristo os homens tinham suas horas de ociosidade diariamente para refletir sobre a vida. Por esse grande motivo deu inicio a filosofia e nasceu então os grandes filósofos. Isso é extremamente bárbaro, saber que o meu vagabundear é uma filosofia paupérrima! 98 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor O Zé obviamente herdou geneticamente do pai esse sangue de filosofo da classe desfavorecida. Eu no meu estado normal jamais duvidei das suas capacidades de ir alem do pensamento humano, porém há outros amigos que debatem suas teorias e por trás comentam que ele necessita de um tratamento psiquiátrico. Numa outra ocasião, o Zé como conhecedor expôs uma de suas teorias e a contradição pelo que pude perceber foi quase unânime no bar. _Percebi ao longo destes anos de pesquisas minuciosas que nós, os seres humanos somos apenas hospedeiros dos genes. Muitos de vocês neste exato momento deve estar perguntando por que cheguei a essa estranha conclusão. Os exemplos estão expostos em todo linear da vida orgânica; desde a fecundação que é o nascimento da seqüência da matéria, ate a morte que é inatividade de reprodução em seqüência das células. Pra ser mais claro digo que o nosso corpo nada mais é que um meio de reprodução e escudo de proteção dos genes nesta guerra biológica. Obviamente, nesta guerra invisível e inatingível pela inteligência humana, os nossos protegidos genes, são os 99 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor mais desenvolvidos e ate então e se mantém soberano no topo da cadeia hierárquica. O que mais devo dizer desse amigo cheio de historias, teses e filosofias que busca integralmente a verdade onde ela estiver? Para todos os seres deste planeta meu amigo se chama Zé, mas nunca Zé ninguém ou Zé das quantas e sim Super Zé, protetor dos Zes que estão pelo mundo afora e os Zes que estão por vir para um futuro misterioso. Alguns anos atrás: mais para ser exato, em mil novecentos noventa e oito o nosso amigo Zé trabalhou com um espanhol de noventa e cinco anos; nascido na Galícia: em um povoado chamado de Trepa, do vilarejo de Jaira, da província de Orense. O espanhol, assim todos o chamavam: observava tudo de modo silencioso, quase não falava e pouco mostrava seu sorriso. Por esse motivo diziam: que era um homem taciturno, frio, chato, rigoroso, e que não gostava do barulho e a bagunça que os netos faziam, quando ia a sua casa visitá-lo. O Zé sempre deixava evidente a enorme admiração pelo espanhol. E exclamava. _Apreendi muito sobre varias coisas, nestes cinco anos trabalhando com o espanhol. Fez-me 100 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor ler com mais atenção a respeito da península ibérica, o estreito de Gibraltar, a cultura e a culinária espanhola e ate um pouco da língua. Entre nossos passeios matinais, para tomar sol ou respirar um pouco de ar puro e sair daquele ambiente de confinamento, no jardim bem cuidado no prédio onde o espanhol morava; tinha como habito: retirar as folhas velhas de uma pequena arvore de fícus. Aquilo detinha meus leigos pensamentos. Porque apenas uma arvore e não duas ou três? E perguntei o porquê deste ritual. Respondeu-me sob o efeito agudo da depressão que absorvia suas horas que lhe restavam. _ Não tenho como cuidar de ninguém ou de mim mesmo, por isso me restam ainda forças para cuidar desta simples planta; que faço assiduamente desde que a plantaram aqui. Os olhos pequenos, atrás daquelas lentes dos óculos espessos, brilharam ao relatar sobre o imóvel vegetal prematuro ao sol claro daquela manha frívola de outono, que prenunciava um inverno bem mais rigoroso do alto de Santana, aos pés da serra da Cantareira. Depois chegou sua terceira esposa perguntando por pessoas que há décadas descansavam em seus túmulos e jazigos. Confidenciou-me: fatos que ate então 101 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor não havia mencionado a ninguém: como as proezas, as injurias e tristezas que habitavam o mais profundo do seu intimo. Meu amigo também deixava evidente a sutil emoção ao se referir do patrão galego. Talvez neste período que trabalhou com espanhol tenha aprendido muito mais que a sua consciência possa ter percebido todo o conteúdo, e que talvez no futuro não muito distante os exemplos vão ficando mais evidentes e com muita inteligência, cavalgar sobre esta vasta sabedoria exemplar, e porque não dizer secular. E assim, Zé dizia aos quatro ventos a quem quisesse ouvir. _O velho tempo, carinhosamente abraça um numero reservado de pessoas. Pessoas privilegiadas que são arrastadas a sucumbir a media de expectativa de vida. O espanhol foi um destes escolhido a dedo pela mão divina, sobre o olhar fraterno da nobreza de Deus, que qualifica indivíduos com esta imensa capacidade de suportar tanto peso e chicotadas sobre as costas. Ouvia atento, seus ricos ensinamentos e suas historias carregadas de cultura. Também ouvia pacientemente suas reclamações rotineiras, alem de incentivá-lo a fazer leves exercícios para 102 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor fortalecer os músculos que atrofiavam lentamente. Também proporcionava muitos melindres que exigia com seu sotaque portunhol. Ainda posso ouvir o eco da sua voz quando me disse com lagrimas naqueles pequenos olhos negros e amedrontados, atrás daquelas espessas lentes dos óculos. _Tu sabes, Zé! Quando seguimos adiante, em busca dos objetivos, como vencer na vida ou sair à procura da grande paixão, deixamos para trás coisas importantes: os pais, os amigos, os parentes, o lugar onde nascemos e crescemos. Com uma das mãos arrumava os óculos e com a outra, balançava sua bengala de madeira e prosseguia o ancião no relato histórico de sua saga. _Vim para este Brasil em busca, primeiramente da minha prima e grande paixão. Nos primeiros anos (por volta mil novecentos e trinta três) casei-me, pois estava trabalhando no comercio de bananas. Os anos passaram, meus dois filhos nasceram e tornei-me um dos maiores compradores de bananas de toda baixada santista, destinadas para São Paulo. Consegui um bom capital e construí uma ótima casa para minha família. Neste ínterim meus pais morreram 103 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor na Espanha e não havia como chegar a tempo para os velórios. Momentos difíceis foram aqueles. Naquela época não era tão fácil viajar como hoje, aviões turbinados e vôos diários. Deu um gole no vinho do porto que haviam lhe servido, e continuou o homem de quase um século. _Doze anos depois que havia chegado ao Brasil, realizei um sonho, o de voltar para Espanha para passear com a família. Ficando aproximadamente seis meses. Conheci vários lugares da Europa e da Espanha que ainda não conhecia. Parte das terras que me sobraram, na herança dos meus pais, doei para que fizessem uma escola no vilarejo da Trepa, onde nasci. Lá, com uns Trinta anos de casados aproximadamente e vários patrimônios espalhados por Pão Paulo. Um câncer diagnosticado em minha esposa o leva a morte. É como se o mundo fosse cair sobre minha cabeça. Mas os meses passaram, ergui a cabeça e trabalhei duro, mais para esquecer do que necessidade. Pensei e pensei muito e decidi-me por casar-me outra vez; e foi o que fiz. Deu outro gole na pequena taça de vinho e deslizou a língua pelos lábios para aproveitar os 104 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor últimos vestígios do bom fermentado, antes de prosseguir. _Fiquei com a segunda esposa, aproximadamente, uns vinte anos casado. Só que desta vez decidi viver um pouco mais, e aproveitar a vida. Viajei muitas vezes por todo Brasil e fora dele, (o Chile é muito bonito) se assemelha com a Galicia na Espanha. Quando a diabetes da minha segunda esposa se agravou, ficou alguns meses, deitada sobre a cama e veio a falecer. Eu estava com uns oitenta e cinco anos, quando meus filhos arranjaram-me uma terceira esposa. Desta vez foi à sogra do meu filho com quem me casei. Aproveitamos uns cinco anos lúcidos, ate que a esclerose deixou a terceira esposa difícil de nos relacionarmos. Fazia muitas confusões com roupas, o almoço, e com as empregadas vivias aos socos por causa do ciúme. Com o auxilio da bengala fez os movimentos característicos para se levantar da poltrona que estava sentado, e concluiu. _O resto da historia você já conhece. Agora vamos almoçar que estou com muito apetite, pois o cheiro deste cosido está de dar água na boca. 105 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Ouvindo estes relatos o que posso concluir, é que o patrão do meu amigo Zé não tinha motivos para sorrir a não ser se fosse para rir da própria desgraça. Tenho certeza absoluta que se: um homem rir da própria desgraça, o chamaram de louco. Então, novamente eu me pergunto. Quais os motivos que este homem tinha para viver sorrindo? De fato nenhum aparentemente, apenas as glorias de ter conquistado seus bens materiais com o suor do seu amor ao trabalho e ter sobrevivido um século, após tantas perdas no lado afetivo. Como este espanhol ruminou durante anos estas injurias? Como teria suportado tantos rompimentos tão agressivos para qualquer mortal? Talvez o que mais se aproxime de todas as homenagens que este homem recebeu no decorrer de sua vida com tantas pedras pelo tortuoso caminho, seja esta carta que meu amigo Zé escreveu. Enviou-me alguns anos atrás e foi esta carta que despertou em mim o interesse no restante: da saga histórica; deste imigrante, que muito contribuiu para São Paulo ser hoje uma das maiores cidades do mundo. 106 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Eis aqui tantas palavras entre essa enorme quantidade de linhas em branco, tentando descrever uma digna homenagem a um soberano monárquico, que enquanto reinou este alicerçado castelo chamado família, honrou a coroa de espinhos que o destino trançou e que o fez usar sem que manifestasse a imensa dor. A dor que só os grandes homens suportam com a majestosa sabedoria. As palavras, não justificam este gigantesco empenho, mas propagam sua soberania, para que o mundo além das suas fronteiras saiba que existiu um ser supremo entre nós. Deixando-nos também evidências concretas, que para ser forte e feliz tem que saber que com a dor não se lamenta ou chora, mas se nutre da necessária bagagem a infinita experiência. O mundo real que se manifesta através da vida, todavia ficará triste por alguns tempos com a morte de um dos seus reis. Porém Deus o criador de todo o universo encontra-se muito mais forte, porque resgatou uma das suas energias elementares que empresta aos seres vivos, desse fantástico planeta. Agora também me encontro enriquecido com sua sabedoria energética, a ponto de começar a escrever sobre 107 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor esta década de aproximação e quase cinco anos de convivência diária. São poucos diante de cem anos e seis meses vividos intensamente por ele. Sou imensamente grato a Deus, por ter me cedido esse imenso prazer de ter conhecido o espanhol. Um homem do bem e que não há limites para a minha admiração. Também me fez crer que o ódio e a ira não existem, que são criações da ilusão psíquica que destrói a coragem e enfraquece o fundamental equilíbrio, essencial para uma vida longa e inteligente. Dizia-me também que Deus criou o mundo e nos deu com tudo que é de bom e ruim, que caberia a nós aceitarmos ou não. E que entre aceitar ou não, existe uma profunda distância: como ganhar ou perder, amar ou odiar, falar ou calar, sorrir ou chorar, parar ou seguir. Seguir sempre em frente sem nunca olhar para trás. Pensar sempre que a vida é como uma estrada de chão seco, depois que você passar, fique imaginando a poeira voltando ao solo de onde saiu bem lentamente! 108 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Parte l - A verdade Meu nome é Stefano de Paula e esta historia começa numa bela manhã de segundafeira, mais exatamente dia vinte quatro de junho, quando Marinalva não chegou no horário de costume para trabalhar em nossa casa. Nalva como é chamada carinhosamente por toda minha família; a nossa milagrosa secretaria que auxilia minha esposa Stella há quase trinta anos nos rotineiros trabalhos domésticos, viu meus filhos crescerem, se formarem e se casarem. Stella e eu, ainda sentado à mesa do café quando o telefone tocou; antes que eu manifestasse em atender, ela me pediu para abrir a janela do nosso quarto que fica no andar de cima do sobrado, para que a brisa fresca daquela manhã, fria de outono pudesse invadir nosso quarto. Ao subir os primeiros degraus da escada que me levam ao andar de cima, pude ouvir Stella ao telefone falando com Henrique; nosso filho mais velho. Quando abri a janela, deixei-me por alguns instantes a observar os primeiros raios solares de um outono magnífico. Defronte a janela uma praça com suas arvores, plantas e flores; uma 109 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor paisagem que nunca canso de apreciar e que só se modifica dependendo das estações do ano. Vi as folhas caindo lentamente... Como se o tempo desse uma pequena parada naquele minúsculo lugar... Que denomino “minha praça“. Sei identificar ate o pássaro que tem seu ninho na quaresmeira, o brilhante azulão, o sabia que pula de galho em galho a procura dos insetos nos dois salgueiros, na paineira de quase vinte metros, dois casais de bem-te-vis construíram seus ninhos e daqui pode-se ver os filhotes procurando o que comer, e três palmeiras com vários ninhos muito bem tecidos por beija flor. Posso dizer que é meu particular espetáculo diário, onde extravaso boa parte do meu estresse, ao longo destes anos bem vividos. Porém, uma cena em especial chamoume a atenção: a primeira vista parecia um mendigo com uma velha vassoura muito gasta, estava juntando as folhas próximo onde estavam seus poucos e destruídos pertences. Seria um ato banal se não fosse feito com perfeição e total apego pelas mãos daquele individuo que trajava restos de roupas. Aparentando uns cinqüenta e poucos anos, nele também continha sinais de uma pessoa de suave beleza, seu olhar era profundo e atento, seu nariz de uma perfeição 110 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor que me invejava, seus lábios ressaltavam naquela barba grisalha há muitos meses sem fazer. Não demonstrava falta de equilíbrio ou agressividade naquele um metro e oitenta de altura, nem que passasse fome ou algum tipo de necessidade. Estava completamente compenetrado neste quadro, quando de repente Stella entrou, me surpreendera perguntando por que estava tanto tempo debruçado na janela. Contei lhe com todos os detalhes que aqui escrevi. Sem ao menos raciocinar um mínimo possível, Stella disse que realmente estava ficando velho, porque a sensibilidade estava à flor da pele. _Stella, minha doce Stella e companheira! Disse eu passando a mão em seus cabelos cinza encaracolados com um profundo prazer em ter extraído daquele momento tudo que vi. Realmente ela tinha razão eu tinha um dia inteiro pela frente e alguns compromissos que não podiam de nenhuma forma, serem adiados. Antes que pudesse lembrar do telefonema que o tempo fez questão de consumir, Stella deu-me o recado de Henrique que necessitava da planta do prédio onde temos nossa padaria, ate salientei a ela, desejando não ser uma nova reforma; pois ainda não havíamos se recuperado dos gastos da 111 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor anterior. O desenvolvimento faz parte do negocio, porém mexer com a estrutura daquele prédio que está impregnada com o meu passado, modifica e apaga um pouco da minha alma que tanto trabalhou entre aquelas paredes. Sai à rua seguindo em direção a padaria que fica a dois quarteirões e não pude deixar de olhar a praça para ver o que fazia aquele pobre homem naquele instante. Ate dei uma breve parada ao notar que alimentava com pedaços de pão velho alguns pombos e pardais famintos da praça, que tem o nome em homenagem ao meu falecido pai: praça “Giuseppe de Paula”. Quando meus pais chegaram, há setenta anos, este lugar era uma fazenda onde o cafezal mais parecia um mar que se perdia de vista. Com passar dos tempos o cafezal se acabou; o dono da fazenda foi vendendo em lotes e meu pai comprou um pequeno pedaço, onde hoje está situada à padaria. Mais antes de começar produzir seus pães, papai exerceu por muitos anos a função de para-medico que aprendeu na primeira grande guerra; não tinha boas recordações dos meses de sofrimento no front. Aqui em São Sebastião do Paraíso: ele curou muitas feridas horríveis. Salvou muitas vidas e ate ajudava algumas mulheres 112 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor durante o parto; e assim lhe coube a justa homenagem. Conheci as façanhas do seu “Pepe” através da boca do povo e seus amigos antigos. O respeito por ele cruzava os limites do município... Sinto muito orgulho de ter sido filho de um grande Homem... Hoje estou com sessenta anos, ando devagar, muito mais observo e tento resgatar boas imagens do fundo da minha memória de como tudo era antes, mas que o presente faz questão de nos roubar. Memórias dos bons exemplos e a educação sem ambição que recebi; seguindo sempre o caminho da dignidade, evitando sempre o confronto com o desconhecido, não deixando que os meus desejos fossem maiores que a razão. Partindo deste principio também tentei transmitir esses grandes valores aos meus dois filhos; Henrique que nos presenteou com dois netos: Mateus e Tiago em quase dez anos de um estável casamento. Flavia a outra filha também nos deu de presente uma neta; que comemorou seu segundo, aniversario no ultimo dia vinte sete. Flavia é casada com um engenheiro e amigo de profissão. Meu filho Henrique fez administração na faculdade e está à frente dos negócios que envolvem a padaria. 113 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Enfim chego à padaria com a pasta de documentos que contem a planta do prédio e entrego sem muitas perguntas ao meu filho. Cumprimentei o confeiteiro Luis que está conosco há uns dois anos e meio, fui ate o Antonio o panificador e amigo que já o conheço há vinte anos e conversamos um pouco a respeito de futebol, assunto que lhe interessa como corintiano doente de ir aos estádios; também não deixei de cumprimentar os três rapazes da copa, um recém contratado há uns dois dias, alias muito esperto e ativo nos seus afazeres. Carlos Eduardo. Esse ultimo foi para quem pedi que colocasse em um saquinho alguns pãezinhos salgados e doces, pois não havia esquecido do homem da praça. Atendi alguns clientes rotineiros com quem converso dando-lhes a devida atenção de um bom comerciante que os longos anos deram-me de experiência. Quando já havia despedido de todos e estava a caminho da rua que me leva de volta para casa, chegava nesse mesmo instante dona Olga. Olga é minha vizinha do lado direito da praça. Cumprimentamos-nos com toda educação e cordialidade que sempre tivemos um pelo outro, mas fui surpreendido por um apelo de dona Olga, que encabeçava uma 114 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor manifestação para a retirada do infeliz que ocupava a praça. Não disse nem sim e nem que não, apenas sugestionei que deveríamos esperar pelo menos uma semana. Salientei que normalmente pessoas assim, são como nômades, não tem lugar fixo para morar e sem que percebêssemos sairia dali. Desta vez sem encontrar com nenhum conhecido fiz meu caminho lentamente de volta. Em frente da praça, parei. Caminhei mais lentamente em direção aquele homem grande em farrapos. O banho era algo que lhe faltava, isso era nítido aos meus olhos, mas o odor não chegava ao meu nariz que estava congestionado pela rinite alérgica, comum nessa época do ano. Disse bom dia, como que esperando uma resposta de um louco com algum problema mental, porem não foi isso que meus bons ouvidos escutaram, daquela boca que da arcada estavam todos os dentes aparentemente saudáveis, um preocupado, mas em bom som. _Bom dia. Aceitou os pães que lhe ofereci, agradeceu e continuou a escrever em um caderno velho sentado ao banco da minha praça. Perguntei seu nome, disse Mario sem ao menos 115 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor erguer seu olhar na direção do meu. Quando estava me retirando agradeceu o que o ofertei num breve obrigado. Retirei-me dali, rumo às obrigações que o cotidiano inferiu-me com rigor, porem meus pensamentos inclinavam a tentar descobrir: que motivos haveria de ter aquele homem para encontrar-se naquelas condições tão precárias e subumanas. Por mais que me esforçasse em direcionar o pensamento, as opções eram muitas e todas tão degenerativas ao extremo, e o destino para qualquer homem não poderia ser outro. Tentando colocar-me em seu lugar segui para casa. A porta foi aberta por Nalva que explicou os motivos do seu atraso: um assalto no ônibus. E todos tiveram que ir a delegacia para dar depoimento, pois o cobrador havia sido baleado no ombro. Também disse que Stella havia ido a drogaria e que não demoraria e o almoço sairia em breve. Embora nos sentimos e agimos sempre de maneira individual e egoísta, os rumos dos nossos destinos estão sempre dependendo de atitudes inesperadas de outras pessoas, mesmo que a honestidade seja uma constante na maioria dos nossos dias. Stella e eu, sempre na hora do almoço conversamos muito. Afinal são trinta e 116 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor sete anos de união; com muitas dificuldades para educar estes filhos sem perder o padrão. Tenho orgulho em dizer aos quatro cantos que nunca tivemos uma briga porque sempre discutimos o assunto em questão. Stella é uma excelente pessoa e uma grande amiga antes de ser minha esposa; nunca me deu qualquer tipo de motivo para que desconfiasse do seu caráter. Comuniquei-a neste dia em especial que desejava fazer um prato de comida para levar ao morador solitário da praça, porem antes que concluísse: Stella me fez saber o quanto o telefone havia tocado na minha ausência. Contou-me sobre a insatisfação e preocupação das mulheres da vizinhança em relação à família e combinaram entre elas que quanto menos o ajudassem mais rápido ele sumiria dali, dando de volta a tranqüilidade que o lugar sempre teve. Os homens tiveram a inteligência de inventar o telefone, mas as mulheres fazem o melhor uso deste aparelho. Isso não me sobram duvidas. Agora estou eu proibido por uma facção feminina de ajudar um ser em completa dificuldade. Teria que pensar em outra maneira de colaborar com Mario sem desencadear a ira destas mulheres que mais se parecem com onças se tratando de 117 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor proteger sua ninhada. Por nenhum momento meus pensamentos cogitaram em desistir de socorrê-lo. Por varias vezes perguntei a mim mesmo. Será que este homem faz parte do meu destino? À tarde já se ia fria como começou, à noite estava chegando sorrateira e as primeiras estrelas se faziam brilhar na imensidão do nada em um silencio retido. Foi isso que vi, ao dar uma ultima olhadela naquele individuo ao relento pela janelinha da porta da sala de televisão. Não pude deixar de notar que, com a mesma maestria repetia com a vassoura sua faxina. No outro dia pela manhã, após o café fiz questão de abrir novamente a janela do quarto, na expectativa de não mais encontrar meu vizinho sofredor da praça e que todos repudiavam. Mais lá estava ele, desta vez escrevendo em seu caderno mal conservado. Sai á rua em meu destino habitual, mas antes de seguir gostaria de cumprimentá-lo, e o fiz passando o olhar rapidamente pelas janelas vizinhas. Aproximei-me, cumprimentei-o e perguntei por que gostava tanto de varrer aquele local. Como que não gostando da pergunta que havia lhe feito, com movimentos bruscos, 118 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor levantou rapidamente, pegou a vassoura e começou a varrição acelerada e dizendo três vezes a mesma frase. _Eu preciso limpar tudo que sujei. Fui me afastando daquele local que para aquele pobre individuo era o lugar mais sujo do bairro. Neste determinado momento confesso que pensei em se tratar de um ser com problemas mentais profundos e que de fato todos ali corríamos total perigo com ele por perto. Com toda estas incertezas sobre seu caráter, o que havia de preocupação por parte das mulheres ganhou forças em meus pensamentos. Durante meu curto percurso ate a padaria, aquela frase repetida três vezes, retumbava como um tambor determinando o ritmo dos passos que me restavam. (Preciso limpar tudo que sujei). Fiquei por três horas na padaria como de costume, e desta vez não pedi a ninguém que preparasse algo para aquele senhor desequilibrado que invadiu o meu jardim. Também já estava decidido a ligar para um destes órgãos de amparo as pessoas carentes, para que o retirassem de lá, e dessem a ele um tratamento que só os loucos necessitam, antes que o pior viesse acontecer para algum dos moradores. Com esse turbilhão de idéias 119 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor completamente contra ele, segui o meu caminho de volta. Desta vez nem pensei em parar ou olhar o que poderia estar fazendo aquele ilustre cidadão. O portão já estava sendo aberto pelas minhas cansadas mãos quando ouço uma voz conhecida aos meus ouvidos. Virei e vi do outro lado da rua enfrente, o mendigo chamando-me pelo nome e acenando com uma das mãos, já que a outra segurava uma caneta. Atravessei a rua em sua direção e antes que falasse algo, me disse. _Bom dia. No rosto enrugado como o meu, um leve sorriso. Perguntei assustado como sabia meu nome se eu não havia lhe falado. Respondeu-me dizendo que tinha conversado com varias pessoas nestes dois dias e que no mundo não existia somente eu, que um deles havia dito a ele meu nome e que sou o dono da padaria; em seguida pediu-me uma caneta mostrando a sua toda destruída. Cheguei em casa, abri a gaveta do meu escritório e peguei quatro canetas enquanto, meu cérebro tentava desvendar o mistério que fez com que Mario se desestruturasse daquela maneira. Seria ele um escritor, frustrado, que não 120 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor teve nenhuma oportunidade de publicar seus livros? Ou seriam somente cartas, a um antigo amor não correspondido? E porque precisava ele limpar tudo que sujou? Quando lhes entreguei as canetas agradeceu cordialmente. Olhei ao redor para unir mais peças ao quebra-cabeça; vi muitas revistas velhas e uma pequena pilha de jornais de números anteriores, que acredito ter recolhido dos lixos, dois cobertores sujos, uma mala de viagem destas de rodinhas toda esbugalhada, uma trouxa de roupas, caixas de papelão abertas que com certeza serviam-lhe de colchão, e um grande saco plástico dobrado; isto deve ser útil para quando chover. Foi o que pensei. Contei-lhe que havia nascido naquele lugar há sessenta anos e alguns fatos sobre minha família, quando ainda vivia com meus pais e recentemente com minha esposa e filhos. Também fiz varias perguntas sem obter respostas, após quase vinte minutos que só eu falava, finalmente fiz uma pergunta e Mario emitiu uma simples resposta. A pergunta foi curta e grossa. _Para onde pretendia ir depois que deixasse a praça? 121 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Sem muito pensar sobre a resposta que também saiu curta e grossa. _Esta é a ultima parada. Em seguida, levantou e voltou a varrer ao seu redor e não emitiu mais nenhuma palavra. Quando me afastava agradeceu as quatro canetas. O passado de certas pessoas se parece com um novelo emaranhado, que no presente parece algo difícil de desmembrar e passa a ser rejeitado a todo custo para o futuro. Os poucos fatos que ate então eu tinha deste pobre homem não me dava sustentação para poder ajudá-lo. O conhecia há quase dois dias e apenas ouvira dele três frases e nada mais. Assim sendo decidi não ligar aos órgãos para retirá-lo dali, pelo menos por enquanto, também durante o almoço e o jantar nada comentei a Stella sobre ele. Na quarta-feira dia vinte e seis, aquele velho e bom ritual aguardava-me sempre sem muitas novidades, apenas o sol que resolvera esconder-se atrás de algumas nuvens carregadas de chuva, que ameaçavam desmoronar sobre a pacata São Sebastião do Paraíso. Meu amigo varria seu apossado jardim, que de longe acenou ao meu bom dia, também 122 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor não parecia preocupado com que os céus pretendiam nos presentear e assim segui o meu nobre caminho desta vez com um guarda chuvas que me servia de bengala. Nos afazeres da padaria as horas vão passando sem que perceba de tão grande o envolvimento. Às vezes é alguma maquina que precisa de limpeza ou manutenção, noutras mercadorias com validade vencida que necessitam trocar; receber os fornecedores e conferir mercadorias que chegam quase o dia inteiro. Só fui perceber que estava caindo àquele temporal porque o barulho era assustador e a cidade escureceu apesar de ser onze horas da manhã. Também percebi que Mario protegia-se embaixo do toldo, pedi ao funcionário da copa que levasse um copo de café com leite e dois pãezinhos com manteiga, lá onde se encontrava. Enquanto tomava seu café pude notar que de momentos e momentos colocava seus olhos sobre Carlos Eduardo; nosso novo funcionário. Para ser sincero. Achei esta cena normal; partindo de um ser no estado que se encontrava o Mario, sem suas faculdades normais. Enfim quarenta minutos de chuva foram suficientes 123 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor para o dia voltar a sua cor e os raios do sol brilharam por todos os telhados das casas vizinhas. E com a chuva ainda por parar o pobre homem voltou, acredito que para o seu jardim agora alagado. No final da tarde sentei-me junto a ele no banco enquanto escrevia em seu sujo caderno, mas que parecia haver aproximadamente duzentas paginas. De inicio tentei conversar sobre a chuva daquela manhã, ele pouco manifestou interesse sobre o fenômeno climático. Também perguntei se havia molhado seus poucos pertences, balançou a cabeça de forma negativa sem ao menos levantar seu olhar em direção aos meus. Percebi novamente que não estava disposto a falar, mas eu continuei relatando sobre meu passado que o tempo foi tão bondoso. Falei muito sobre o quanto fora grandioso os gestos de meu pai para os que necessitavam, o trabalho duro nos cafezais e qual a magnitude da herança do seu caráter como marido. Confiei-lhe assuntos de todos estes anos de relacionamento com Stella, como só se relata no consultório de um psicanalista e deitado no divã. Mencionei um fato marcante ocorrido quando ainda tinha quarenta anos aproximadamente, no auge da virilidade; 124 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor uma freguesa que persistia em corromper-me. Muito formidável e simpática por sinal; um corpo que deixava todas as mulheres da cidade preocupadas. Foi neste exato momento que notei mesmo com sua cabeça abaixada como que olhando o chão, as lagrimas corriam sobre sua face que naquele instante demonstravam extrema tristeza. Logo em seguida levantou do banco e outra vez pegou a vassoura e pronunciou a antiga frase com movimentos acelerados. Na cama antes do sono levar-me ao descanso tentei refletir sobre estes últimos contatos que tivemos. O pouco que me aproximei do que podia ter afetado aquele infeliz, poderia ser relacionamento ou perda de algum filho. Esta ultima conclusão retirei dos olhares sobre Carlos Eduardo naquela manhã na padaria. Mais simplesmente eram conclusões de um ser humano sem experiência neste assunto, que desesperado tentava ajudar alguém que atravessava uma fase complicada. No quarto dia ou quinta feira, vinte sete de junho os compromissos me aguardavam como sempre. Desta vez necessitava ir ao fórum trabalhista, em uma audiência movida por um exfuncionário insatisfeito com que fora indenizado. 125 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Ao sair neste dia notei que meu amigo não se encontrava nas proximidades, apenas seus pertences amontoados sobre a sombra do salgueiro. Ate pensei em ter despertado nele a lucidez, ou mesmo a saudade deste suposto alguém que lhe roubara a insensatez. Pensando assim com pura satisfação administrei meus compromissos daquela manhã. Confesso que fiquei um pouco surpreso e desiludido à tarde quando retornei, e lá estava Mario sentado novamente escrevendo. O prazer é algo exclusivo a espécie humana. O prazer em comer bem, dormir e vestir com certo conforto, viajar e não permitir a exclusões e privações. Perguntava-me a todo instante, porque então certas pessoas perdem o essencial prazer em um determinado momento da vida? Talvez o único companheiro deste homem seja o passado e nele guardado todos os mistérios e que com ele serão enterrados sem que eu pudesse saber. Foi o que pensei numa determinada época de incertezas. As comemorações juninas de São João e os fogos de artifícios despertaram-me durante aquela noite que com certeza foi a mais fria do mês. A insônia que perdurou aproximadamente 126 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor duas horas, e fizera com que os meus pensamentos em toda estas questões não me dessem trégua. O que também contribui a deixarme irritado com tamanha intromissão. No dia vinte e oito, sexta feira; lutei com todas as forças que tenho, tentando ficar alheio. Evitei olhar para a praça quando sai de casa. No trabalho procurei fazer ate o que, (alguns anos havia deixado de lado), como subir em escadas para limpar as luminárias as prateleiras mais altas. Liguei a Stella dizendo que não viria almoçar em casa. Pintei o deposito que estava mofo de tanta umidade. Por fim no final da tarde fui ao banco fazer os depósitos e os pagamentos no lugar do meu filho. Quando voltei para casa já era noite e agi da mesma maneira daquela manhã, evitei o olhar na direção da praça. Após um excelente jantar no qual Stella preparou um creme de palmito com pão italiano, aproveitei abri um vinho tinto chileno Santa, “meu favorito” safra de noventa e sete. Assisti um pouco de televisão, logo em seguida fui para cama, li algumas paginas de: Quem matou Palomino Molero do Mario Vargas Loosa, ate não resistir ao cansaço do dia adormeci como uma 127 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor criança que gastou toda sua energia divertindose. Na manhã seguinte tomava o café quando Stella alertou-me do jantar que teríamos para comemorar o aniversario de casamento da nossa filha em sua casa que fica no centro da cidade. Também que não trabalhasse tanto porque a noite iria ser longa e que principalmente não me queria vereu dormindo no sofá da filha. Quando realmente coloquei os pés fora de casa, estava determinado a fazer no sábado o mesmo que fiz na sexta: faria o impossível para esquecer de tentar solucionar os problemas daquele desconhecido. Também porque o movimento na padaria triplica no final de semana. Dirigia-me no rotineiro caminho, porem do outro lado Mario gritou uma frase que no devido instante teria entendido assim: “hoje será um grande dia”, e continuou varrendo com satisfação. Agora refletindo melhor depois do que ocorreu, penso que a frase dita por ele eu tenha confundido; realmente ele disse: “hoje será o grande dia”. Na padaria o movimento foi o esperado por mim. Gente entrando e saindo a todo instante, no final da tarde tudo ficou mais calmo e pude assim sair do caixa onde fiquei quase o 128 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor dia inteiro. Era quase seis horas da tarde quando meu filho parou seu carro na porta de casa e entrei correndo para tomar um banho, fazer a barba e vestir-me adequadamente. Primeiramente, tirei o carro da garagem e fomos à missa na capela de Santa Rita de Cássia, rezada especialmente aos casais que faziam aniversario naquele dia. A missa se estendeu ate às oito horas da noite e de lá seguimos em direção a residência da minha filha onde se realizou o jantar. Havia trinta e cinco convidados: amigos do casal, familiares do meu genro e minha família. A festa foi uma maravilha, nada faltou, muito menos alegria. Há muito tempo não me divertia tanto assim. Como é bom estar entre pessoas que realmente estão de bem com a vida, sem contas a pagar com a consciência. Quando decidimos ir para casa já se passavam da uma da madrugada. O bom vinho branco português servido me fez relaxar um pouco, pois quando chegamos em casa nem me preocupei em olhar para a praça enquanto guardava o carro na garagem. Stella e eu ainda ficamos um longo tempo rindo e conversando. Relembrando a primeira aula de balé de Claudia. Quando caíram seus dentes de leite da frente. Na formatura e 129 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor quando fez quinze anos pisei no seu pé na hora da valsa, e assim adormecemos. Já se passavam das nove horas da manhã quando fui despertado pela campainha da porta principal. Coloquei o roupão, desci a escada, um pouco preocupado, ansioso em saber quem poderia ser naquele domingo frio, no qual desejava muito ficar de pijama sobre os cobertores o dia inteiro. Quando abri a porta o susto foi grande, ao ver meu filho acompanhado com um homem de fardas da policia militar. Mais do que depressa perguntei o que estava acontecendo. Henrique notando toda minha ansiedade pediu-me para se acalmar que o sargento Bismark explicaria. O sargento calmamente foi relatando tudo o que eu queria saber. Que a central recebeu um chamado de um dos nossos vizinhos: que ao levar seu cachorro para um passeio e suas necessidades na grama da praça, encontrou dois corpos de homens, estirados ao chão e poças de sangue por todos os lados. Um dos corpos não fora identificado, pois não havia documentos, também salientou tratar-se de um mendigo e que talvez seria enterrado como indigente. O sargento Bismarck segurando uma identidade leu o 130 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor seguinte: o outro homem era Carlos Eduardo Xavier, vinte quatro anos, brasileiro, natural da cidade de São Paulo. Perguntou também se eu tinha alguma informação que pudesse lhe ajudar nas investigações. Respondi que não tinha a menor idéia do que havia acontecido. Fez-me duas ultimas perguntas, que uma delas no momento optei por omitir a mais pura verdade. Perguntou-me se eu saberia o que o funcionário da padaria fazia junto daquele mendigo. Como a outra respondi que nada sabia e que não tinha a menor idéia do que aconteceu naquela praça. A outra foi se eu tinha ouvido barulhos de tiros durante a noite. Disse que havia chegado de madrugada e que ouvi muitos barulhos, mas de fogos de artifícios. O sargento se despediu agradecendo e desejando se assim conseguisse em ter um bom domingo. Desejei o mesmo e no final um bom trabalho nas investigações. Meu filho pediu para não me preocupar e tentar descansar, que resolveria toda burocracia ele mesmo e depois ligaria. Acompanhei meu filho ate o portão e pude notar alguns carros de policia, inclusive aquele de transportar defuntos do instituto medico legal. Ao voltar na direção da porta, notei que havia um 131 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor caderno grosso embalado num saco plástico transparente debaixo do carro; peguei-o e levei para dentro de casa. Antes de guardá-lo na gaveta do escritório notei a semelhança daquele que Mario passava a maior parte do tempo a escrevê-lo. Realmente não consegui abrir aquele caderno, naquele momento sentia um peso de consciência enorme. Não por mentir as autoridades informações que poderiam chegar à verdade daqueles fatos. Eu realmente sentia-me o culpado pela morte do funcionário. Porque eu havia na tarde anterior pedido um favor a ele: que quando saísse da padaria para pensão onde se alojava, que passasse na praça e entregasse ao Mario dez reais para comer algo no domingo e que não comentasse nada com ninguém. O que de fato teria ocorrido naquela praça? O porquê e o que levaria a tamanha monstruosidade? Eram perguntas que bombardeavam meu cérebro incessantemente. Subi para o quarto tentei dividir um pouco da minha culpa com Stella, mas enquanto relatava os fatos me senti envergonhado de ser cúmplice de cabeças de extrema insanidade. Sentados à mesa, enquanto eu tentava comer algo o telefone tocou; desta vez fui mais 132 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor rápido que Stella e atendi. Do outro lado da linha meu filho deu-me algumas conclusões antecipadas do perito em criminalística, que o sargento Bismarck lhe confidenciara. Por alguns segundos fiquei sem dizer uma palavra, parado e mudo, quando me disse tratar de homicídio seguido de suicídio; que o mendigo atirou na nuca de Carlos Eduardo e depois fez um disparo em seu próprio ouvido esquerdo. Por fim ouvi depois que conseguiram encontrar os pais de Carlos e que na segunda apresentaria as despesas com os papeis e o transporte do corpo para São Paulo. Só comecei a livrar-me daquele peso de consciência, quando abri o caderno na primeira pagina, e lá estava escrito em letras muito legíveis. 133 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Parte II - O abismo São Sebastião do Paraíso, 29 de junho de 2001. Os homens nascem com seus destinos traçados, por alguém muito especial e meticuloso. O seu destino caro amigo Stefano, me faz lembrar este jardim muito bem cuidado: com belas arvores, vários tipos de flores, um ótimo gramado que me serviu de cama e me acolheu nesses últimos dias difíceis de minha vida; peço perdão por manchá-lo de tristeza e ódio e se pudesse de joelhos o faria. No meu jardim foram semeados espinhos e pedras, tenho certeza absoluta que por minhas mentiras, quando em frente às encruzilhadas da vida, não soube como você escolher a direção correta da verdade. Só espero que deste dia em diante, os pássaros que freqüentam o seu jardim pulando de galho em galho cantem mais alto que a minha dor e que não fujam diante da cor do meu inferno que vejo agora. Que Deus esteja com sua família. Virei à próxima pagina do velho caderno com lagrimas que escorriam sobre o rosto, porem 134 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor as expectativas de elucidar esse mistério me fez continuar a leitura. São Paulo, 23 de fevereiro de 1950. Foi perfeitamente nesta data que desembarcamos na estação Julio Prestes, vindos da cidade de Piracicaba. Meu pai Luis Gomes do Prado, minha mãe Carmem Prudente do Prado e meus dois irmãos: Luis Gomes do Prado Filho, Antonio Gomes do Prado Neto. Mario Gomes do Prado Sobrinho é meu nome de batismo, homenagem que meu pai fez ao seu irmão morto na segunda guerra, precisamente em Monte Castelo na Itália. Nesta época São Paulo crescia a todo vapor, construções por todos as partes: viadutos, pontes, ruas, prédios, e varias indústrias; o comercio também era algo muito atrativo. Por estes motivos recebia imigrantes de todas as partes do mundo. Meu pai vendeu sua fazenda de setenta alqueires e veio atrás de um sonho que se realizou. Dizia ele com muito 135 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor orgulho. “Eu consegui realizar os meus sonhos e vocês devem lutar por isso também”. A principio nos estalamos em uma modesta casa no bairro do Bom Retiro, uma rua tranqüila e calma, daquela São Paulo antiga e da garoa. A nostalgia que me sinto da ainda algum prazer! Eu tinha onze anos, fui matriculado na sexta serie do primeiro grau no colégio Sagrado Coração de Maria, onde também terminei o segundo grau sem ser reprovado, depois fui para faculdade São Francisco, quando sai estava com o diploma de advogado nas mãos. Meu pai comprou um belo terreno de esquina na rua Galvão Bueno com Barão de Iguape, construiu um posto de gasolina. Os dois primeiros anos foram complicados ate adaptar-se ao novo tipo de atividade comercial. O homem sabia como ninguém fazer seus negócios, após quinze anos tinha dez postos de gasolinas e vinte imóveis espalhados pela cidade. Meu pai foi um homem muito trabalhador, totalmente empenhado nos negócios. Quando adolescentes, pouco nos víamos; ele saia de casa muito cedo, pois quando voltava nos encontrava dormindo; também tinha o péssimo habito de fumar em excesso. Há de se dizer que nos deu uma vida muito regrada, nos vestíamos com boas roupas 136 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor dos melhores alfaiates, recebemos uma educação muito rígida, e pouco carinho por parte dele. Meu irmão mais velho, o Luis formou-se em medicina na Escola Paulista de Medicina, montou uma clinica e hoje é acionista de uma gigante na área de assistência à saúde. Tem viajado constantemente ao exterior e ao Brasil inteiro fazendo turismo e participando de congressos dentro da sua área de trabalho. Pra ser sincero tenho muitas saudades dele; a ultima vez que nos vimos, foi quando me internaram em sua clinica, após uma profunda depressão. Já se passaram dois anos. Quando eu tinha dezoito anos aproximadamente, uns amigos da faculdade me convidaram para uma festa no bairro da Lapa, disseram que teria belas mulheres, que não faltariam bebidas de todos os tipos. Convidei meu irmão Antonio com quem mais me identificava para irmos juntos, por duas vezes ele disse que não poderia, porque tinha muitos trabalhos atrasados da faculdade onde cursava o segundo ano de jornalismo. Pela terceira tentativa consegui arrastá-lo para aquela que seria a grande festa do ano. Fomos de carona com amigos que os pais não eram tão rigorosos com 137 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor as economias. Realmente a festa tinha tudo que eles prometeram. Conheci uma bela jovem daquelas bem atrevidas, morena de curvas perfeita pra uma noite de orgia, sensual ao extremo. Que se chamava (Cristina Lessa Lemos). Quando a vi assim que cheguei, disse ao Antonio e dois amigos que estavam do meu lado. _Daria a minha vida para transar com esta mulher. Engraçado, me lembro como se fosse hoje, porque não foi difícil de conquistá-la. Em um determinado momento em que nos beijávamos freneticamente, surgiu meu irmão dizendo que um amigo ia embora, que ele aproveitaria a carona. Voltou a explicar dos trabalhos atrasados que necessitava fazer para a faculdade; despedimos-nos e continuei agarrado ao fogo da (Cristina Lessa Lemos) por quase toda noite. Três horas depois que meu irmão e o amigo se foram, nós também deixávamos à festa. No meio do caminho uma multidão se aglomerava perto de um caminhão e quatro viaturas da policia; quando cheguei mais próximo, pude ver melhor que havia um automóvel azul destruído debaixo do caminhão. Estacionamos o 138 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor carro e fomos ver bem de perto, como todos os curiosos que ali estavam. Olhei e vi que eram dois jovens esmagados, totalmente ensangüentados. Cheguei mais perto e vi, mortos pelo acidente com o caminhão, meu irmão e o amigo. Que cena horrível que nunca saiu da minha mente. Dia primeiro de abril de mil novecentos e cinqüenta e sete, tudo parecia uma grande mentira. O velório foi um dos dias mais tristes da minha vida. Eu não queria acreditar que era o responsável indireto, a tristeza tão grande que meus pais sentiam naquele momento. A angustia cortava meu coração como faca afiada e aquecida em fogo; pensei em sumir pelo mundo como um andarilho porque ao suicídio me faltava à coragem. Meu pai nunca mais sorriu diante dos meus olhos, mesmo sem saber que eu havia insistido tanto para Antonio ir aquela maldita festa. Minha mãe mostrou-se bastante forte, tentava de todas as maneiras erguer o astral da família, mas mesmo assim ficava evidente que aquilo era só fachada, porque a tristeza aos poucos lhe venceu e a insanidade fez o restante do trabalho. Morreu internada no manicômio municipal de tuberculose onze anos depois do acidente de Antonio. Durante o ano que minha 139 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor mãe passou internada no manicômio, meu pai passou a trabalhar muito mais do que antes, alem de fumar, também passou a beber nos finais de semana; ficava completamente embriagado. Transformou-se de tal maneira em um homem que ate então não tinha conhecido. Dividiu boa parte de seus bens entre eu e Luis, com que sobrou voltou para Piracicaba dois anos depois da morte da minha mãe. Casou novamente, teve mais dois filhos e veio a falecer de infarto do miocárdio em 1982 aos sessenta seis anos. Sua ex-esposa nos confirmou no velório que estava trabalhando no momento do golpe fatal. Tenho certeza que era um grande homem, não mereço ser nem a sombra que lhe acompanhava. Morreu na vertical, de pé como um bravo lutador. Luis foi o primeiro a dizer para sairmos daquela casa. Ela tinha ficado muito grande faltavam pessoas importantes. O silêncio ecoava no vazio da eterna solidão que nos acompanhava por todos os cantos, as noites eram mais longas que de costume. Nunca mais ninguém ouviu uma gargalhada entre aquelas paredes, a não ser algum programa no aparelho de televisão. Assim decidimos vendê-la para tentar enterrarmos o passado num buraco bem fundo que talvez o 140 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor tempo nos ajudasse a esquecer. Meu irmão comprou um apartamento pequeno no largo do Arouche, o trabalho exigia uma carga horária altíssima, os amigos que tinha eram médicos e profissionais da área. Quando uma pessoa escolhe ser medico sabe que não terá finais de semana, ate a própria família é sacrificada; talvez seja este motivo que médicos casam com médicas e vice-versa e foi o que aconteceu com Luis. Comprei uma casa em Pinheiros, próximo a um dos postos que herdei, optei por esta região porque tinha vários amigos no bairro, pensei que pudesse amenizar a solidão que insistia em me entediar. Organizava algumas festas tentando manter a noite o mais ocupado possível, mas a única coisa que consegui foi gastar parte do meu dinheiro. Após pensar muito e ouvir conselhos de amigos achei que deveria casar; aproveitei que estava namorando a filha de um amigo que distribuía gasolina com seu caminhão. Conheci Andréa numa festa de confraternização de final de ano; ate hoje e uma mulher muito elegante, as belas jóias escolhidas com requinte, seus cabelos pretos e lisos cortados na altura dos ombros brilhavam a distancia. A sua simpatia é o seu charme e ainda fala francês muito fluente. 141 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Casamos-nos em mil novecentos e setenta e cinco e a todo custo Andréa queria ir para a Europa, especialmente Paris passar a lua de mel. Implorou-me dizendo ser um sonho de menina, em troca eu queria uma criança correndo pela casa o mais rápido possível; ela disse sim e depois de nove meses nasceu Pedro Antonio. E, diga-se de passagem, trouxe-me a alegria perdida, era tudo que eu precisava naquele momento da minha vida. _Agora a minha família está completa! Dizia eu aos quatro ventos. Pedro Antonio tinha quase um ano quando teve uma infecção intestinal e tivemos que levar ao hospital, quando Andréa me ligou estava trabalhando. No hospital o medico fez os exames necessários e colocou nele o soro; alegou estar desidratado. Ainda prescreveu em seu receituário e entregou-me uma folha. Andréa ficou ao lado de Pedro Antonio no ambulatório enquanto sai na direção da farmácia, porem no corredor encontrei com Cristina Lessa Lemos trabalhando de chefe das enfermeiras. Conversamos um pouco sobre tudo, mas sentimos principalmente à vontade de nos beijar outra vez. Pedro Henrique se recuperou rapidamente, fiquei excessivamente feliz, 142 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor principalmente porque Cristina Lessa estava morando a três quadras de casa. Porque ela continuava com os mesmos contornos e a sensualidade saindo por todos os poros. A loucura em carne e osso novamente a minha disposição. Dia dezenove de novembro o calor do verão sufocava os paulistanos naquele fantástico fim tarde. Foi quando me encontrei depois de tantos anos com Cristina Lessa; ate então não tinha cometido nenhum adultério. Como sempre suas roupas muito insinuantes, um lindo decote convidava-me a esquecer de Andréa por muitos e muitos anos. O seu perfume me embriagava de tal maneira que não enxergava mais nada na minha frente. Somente seus lábios, seu pescoço, suas orelhas, enfim seu corpo todo; sentia como se o mundo fosse acabar perdidos sobre aquele desejo insaciável. Os nossos encontros sucederam por dois meses aproximadamente, no total foram sete encontros sempre com a mesma intensidade. Porém, na quinta vez notei em seu rosto certa preocupação; não demonstrava aquela grande excitação. Perguntei o que estava acontecendo, insistentemente e somente no ultimo minuto, quando estávamos nos despedindo que resolveu dizer que achava estar 143 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor grávida, pois a sua menstruação estava muito atrasada. Perguntei se havia feito o teste, apenas respondeu que estava com medo do resultado, mas que providenciaria na semana seguinte. No sexto encontro o mesmo ar de preocupação apagava seu brilho sensual, que me fizera transbordar em êxtase de prazer e desejo. Não esperou que eu perguntasse e antes que pudesse dar um abraço ou beijo, revelou que realmente estava grávida. Disse a ela que a melhor saída era casar com o pai da criança; ela se atirou nos meus braços sorrindo e falou. _Serio, você se casaria comigo Mario? No momento pensei que Cristina quisesse usar da minha frágil devoção por aquelas perigosas curvas, e sem o mínimo de raciocínio ironizei-a, e disse. _Você não quer que eu acredite que este filho seja meu? Cristina saiu chorando pela rua e não olhou para trás nenhuma vez, após dar-me um tapa no rosto. Após quinze dias ela me ligou e queria se encontrar comigo, marcamos o horário e fui eu carregado de duvidas e um pouco de esperança, que talvez ela estivesse blefando em relação à gravidez. Estava com o carro parado 144 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor sentado ao volante quando ela chegou. Disse-me uma boa tarde formal e colocou em minhas mãos uma caixa revestida de papel de presente. Perguntei o que era. Ela no momento sorria, quando respondeu. _ Presentes pra você meu amigo. Depois se retirou, também nunca mais me ligou. Segurava a caixa com receio, dei uma leve chacoalhada e não ouvia nada de estranho ou que pudesse identificar, fui abrir do lado de fora do carro. Quando abri, vi as jóias que havia lhe presenteado. Um colar de perolas, três braceletes em ouro branco italiano, um anel de diamantes e alguns brincos de ouro dezoito quilates. Confesso que naquele momento fiquei sem entender. Hoje, uma vez ou outra a vejo trabalhando no açougue com seu marido e ainda mora no mesmo bairro. Fiquei sabendo de amigos que tem dois filhos, um rapaz e uma moça. Vinte e poucos anos se passaram no começo foi difícil de esquecê-la. Também foram vinte anos gastando dinheiro em festas e viagens; conheci a miséria da África, mas os exóticos animais, as misteriosas pirâmides do Egito, o deserto do Saara, fui a Cuba ouvir Fidel Castro em seu memorável discurso de quase quatro horas, fui ao Chile e conheci Isla Negra de 145 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Pablo Neruda. Vendi meus imóveis e o posto de gasolina que me sobrara, investi em salas comerciais e montei uma agencia de turismo pra não ficar sem o que fazer. Pensava que com aquilo dava para terminar os meus dias sem pedir esmolas a ninguém. _Puro engano. Voltando a nossa historia. Meu filho Pedro Antonio cresceu forte. A sua inteligência o colocava sempre à frente dos outros da mesma idade; o companheirismo nunca lhe faltou. No ginasial e colegial: nunca recebemos algum tipo de reclamação, alias o que não faltaram foram elogios de todos os lugares que passava. Pela primeira vez na minha vida estava sentindo orgulho de algo que tinha feito. Empenhamos-nos em dar o melhor da educação, carinho e atenção sempre primordial a ele. Quando perguntei a ele que curso faria na faculdade, com muita autoridade e convicção, respondeu-me: jornalismo. Deu-me uma alegria exagerada que ate tive uma crise de choro e conclui dizendo ser o mesmo curso, que o tio Antonio não terminara. Nunca tínhamos conversado a respeito disso. E demonstrando toda sua sensibilidade fez uma referencia 146 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor _Você deve sentir muitas saudades do seu irmão falecido. Apenas consegui balançar a cabeça afirmando. Depois de uma breve pausa, perguntou. _Porque você e mamãe não quiseram ter outro filho? Minha voz ainda embargada, respondi. _Infelizmente não tenho respostas pra sua pergunta. Porque, você se sentiu muito sozinho nesta casa? _É evidente que não, mas outro irmão poderia ser mais divertido. Não tive coragem de dizer a ele que sua mãe simplesmente havia colaborado para tentar curar uma ferida em minha alma, e que essa ferida, ainda ardia nas noites de insônia; como o vulcão Etna na Itália não fora extinto, que em determinadas épocas ameaça entrar em erupção. Dizer a ele que sua mãe simplesmente fora uma barriga de aluguel, poderia magoá-lo de forma definitiva. Alias, sempre pensei, que todos estes anos estivesse interpretado o bom marido e um bom pai. Andréa, nos primeiros anos de casados, pediu-me autorização para abrir uma loja de roupas em sociedade com sua mãe; dei a quantia 147 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor do dinheiro que solicitou e nunca quis saber o que acontecia em seus negócios, também não me pedia informações e opiniões a respeito. Pedro Antonio ficou sobre os cuidados de varias babás que eram trocadas quase de quatro em quatro meses. Na época não entendia e também não queria pensar nesses pequenos detalhes da vida. Um motorista particular ficava a disposição de ambos; este sim durou anos a serviço da família. Quando Pedro Antonio estava cursando o quarto ano da faculdade, Andréa ligou-me no final da manhã de uma segunda-feira, que não faço nenhuma questão de lembrar a data, dizendo que queria o divorcio; que seu advogado ia procurarme para assinar os papeis para dar entrada no litígio. Fiz algumas pesquisas na junta comercial e constatei: que em nome de sua mãe haviam cinco lojas espalhadas pelos shoppings da cidade. Depois pedi ao meu gerente um balanço da minha conta corrente dos últimos dez anos e fiquei horrorizado com o que vi. Todas as semanas fazia pequenos saques e durante estes anos levou-me uma razoável quantia. Outra exigência de Andréa quando nos casamos, era com comunhão parcial de bens. Não preciso nem dizer o que houve com o restante do que ainda 148 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor tinha de bens. Penso que a separação foi muito mais traumática para Pedro Antonio do que para mim, mesmo com todo prejuízo financeiro; porque o seu comportamento mudou desde então. Andréa não quis ficar com a casa em que morávamos; depois de algum tempo soube pelas más línguas que estava morando com o motorista em um bom apartamento de três dormitórios nos jardins. Também acredito que Pedro Antonio ficou muito magoado com a mãe, não quis sair da casa para morar com ela. Os meses foram passando, nós tentando nos adaptar a nova vida. Para mim, tendo a companhia de meu filho me bastava. Agora tenho certeza que para ele faltavam muitas coisas. Com todos os problemas conseguiu concluir a faculdade e começou a trabalhar de assistente de redação para a editora de uma revista semanal de grande circulação. Realmente o seu talento para escrever estava em evidencia, todos na redação admiravam o seu desempenho; no futuro bem próximo se transformaria em um grande profissional. Pedro Antonio tinha sua vida muita atribulada, compromissos que deixavam sua agenda completamente lotada; grande número de amigos aos quais se encontravam todas as noites e finais 149 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor de semana. Quando eu perguntava se estava namorando; sempre respondia que namorava, com varias para não ter tempo de se apaixonar por uma só. Lindas garotas não poderiam lhe faltar se assim desejasse. Cabelos pretos, lisos e brilhantes, semelhantes ao da mãe. Um metro e oitenta e dois de altura e um corpo atlético adquirido: nas piscinas do clube Pinheiros. Pedro Antonio por mais incrível que pareça, foi vitima de dois assaltos em datas muito próximas, porém o ultimo foi fatal. Um homem desconhecido deu três tiros à queima-roupa e um deles no ouvido do lado esquerdo. Passei dias e dias alucinado à base de calmantes que não foram suficientes para diminuir o impacto. Esvaziava garrafas e garrafas de tudo que era álcool, não conseguia ficar fora daquela podridão que se transformara minhas horas. Liguei varias vezes ao delegado responsável pelo caso que sempre dizia a mesma historia: que não havia nenhuma pista ainda sobre o culpado, apenas que o porteiro do edifício que ficava a quase cem metros do local, viu um homem em uma moto fugir do local, que dificilmente seria identificado, pois estava muito escuro. Pensei ate que eles tinham arquivado o caso, porque eles não sabiam do primeiro 150 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor assalto; lembrei-me que meu filho não havia feito boletim de ocorrência. Foi deste dia em diante que decidi tentar descobrir: “Quem fora o responsável e o porquê”. Para ser sincero não sabia por onde começar. Parei e pensei. Se tivesse que investigar a vida de alguém começaria onde mora. Certo? Entrei no quarto de Pedro Antonio, não deixei a emoção vencer-me aos detalhes que meus olhos iam focando. Vasculhei os armários, esvaziei todas as gavetas, caixas de sapatos, seus blazers, seus cabides com camisas e calças joguei tudo sobre a cama; apenas achei dentro do bolso da jaqueta de couro que mais usava, um disquete e na sua etiqueta escrito seu e-mail e uma frase: “Irmão, ter ou não ter, eis a questão!”. Rapidamente liguei seu computador e introduzindo o disquete e para a minha surpresa, o que estava lá ficou do jeito que ele escreveu. Campos do Jordão - inverno de 2001 A única coisa que não posso reclamar neste mundo, é que me faltem amigos! Por onde ando fica para trás uma trilha de bons amigos que me enriquecem. No colégio, na faculdade, no 151 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor trabalho, nas baladas e os da infância. E foi com os amigos do bairro que vim parar em Campos. Chegamos aqui à noite e o frio está o esperado. Já estive aqui algumas vezes e a única coisa que senti foi calor de vinte graus em media. Nos chalés que estamos hospedados são incrustados no ermo da serra da Mantiqueira. O lugar é lindo e já sei que tem boas trilhas, banho de ôfuro, vários cavalos a disposição dos hospedes. Convidei todos para uma corrida pela manhã, mas ninguém se manifestou; alegaram que dormiriam a manhã inteira, anestesiados de vinho quente e cerveja escura. No dia seguinte acordei às sete horas da manhã, comi uma banana que estava à disposição dos hospedes em uma fruteira; da geladeira uma caixa de suco longa vida, tomei um copo, e sai. Do lado de fora da porta, minha visão era ofuscada pela claridade do sol daquela manhã, com os raios atravessando um ipê todo amarelo; no chão um tapete da mesma cor formava um circulo em torno do tronco, onde um casal de pardais alimentava-se de alguns insetos que com as flores caíram. Caminhei ate o portão de saída; ao pegá-lo pude sentir a umidade do orvalho que deixava o ferro mais frio. Abri, passei, em seguida dei meus 152 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor primeiros passos à corrida matinal. Também pude sentir o impacto do meu peso sobre os músculos inferiores, que corria pela alameda de ipês e angicos, o chão todo forrado de paralelepípedos. Mais ao longe à esquerda da alameda, um vale que escorria entre duas serras decrescentes; uma fenda sinuosa, ao fundo um rio que mais parecia uma gigantesca cobra prata. Um fantástico efeito dos raios solares desta manhã de outono. O som do vento era suave quase absorvido por meus movimentos e o dos pássaros que acabaram de despertar com a alvorada. Sinto o tempo sendo absorvido bem lentamente com todos os aromas, sons e imagens, que a natureza com seu estupendo capricho exigisse que eu os aproveitasse como um todo. Desde de pequeno ela me convida aos mínimos detalhes, mas ricos detalhes e sinto esta ligação indireta. Em certos instantes de tão profunda que é essa absorção, que sinto o corpo arrepiar; é como se ela a (nobre natureza) me induzisse por esta trilha sem fim. Estes profundos fatos ocorriam com certa freqüência, principalmente na infância, após a um bom almoço preparado pelas mãos das carinhosas babás que tive. Quando os dias estavam quentes deitava-me nas sombras das 153 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor arvores de abacate, ameixa e um velho limoeiro na casa que moro no bairro de Pinheiros São Paulo. Ainda posso sentir o breve, mas consumado descanso. Também ainda ouço os sons dos ventos sobre os galhos e folhas; tudo era uma grande melodia aos meus ouvidos. Os raios solares atravessando o conjunto de galhos e folhas transformavam em focos coloridos que iluminavam meus sonhos, durante o curto sono. A contemplação durava horas e se estendia por toda tarde; sendo só despertado pelo frio ou algum amigo que desejasse minha companhia para algum tipo de brincadeira. Corri por quase uma hora entre a serra e caminhei mais uma hora ate chegar aos chalés. Muitos dos meus amigos já estavam tomando seu café, aproveitei e fiz o mesmo. Convidaram-me para uma cavalgada, mas não demonstrei interesse eles não insistiram. Cheguei ao quarto, fui direto ao notebook, para dar continuidade ao devaneio. O mundo da imaginação e os sonhos consomem a infância dos seres de forma angelical e gratificante; com o passar dos anos vem o triste crescimento. A imaginação se transforma em atitudes de criação e os sonhos 154 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor em objetivos e metas; do irreal para o real mundo dos negócios e assim deixamos de ser crianças, deixamos de desejar e passamos a querer custe o que custar. E fica evidente que querer só não basta, temos que ter sempre mais. Todos os inventos nascem da imaginação, que também é fonte geradora de tudo que é construído no mundo; acredito que a imaginação é a forma mais clara e evidente de comunicação entre os genes e o celebro. Era quase hora do almoço quando fechei o notebook, mas, antes passei alguns e-mails; fiz umas ligações necessárias. Primeiramente ao Paulo que é o redator chefe; pediu para que ligasse ao Otavio diretor da revista, este havia agendado uma reportagem com o cientista britânico Oliver J. Browsing de passagem pelo Brasil, palestrando por toda América Latina. À tarde descansei um pouco num gostoso cochilo, porque a noite ia ser longa no centrinho; muitos fondues, vinhos, as cervejas do BadenBaden. O burburinho das ruas próximas, excelentíssimo frio, pois sem ele Campos do Jordão perde um pouco do charme. Dois dias depois, preparava as malas rumo a São Paulo para os compromissos agendados. Despedia-me 155 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor do pessoal quando o irmão de Vânia, uma amiga, que solicitou uma carona que jamais negaria a ninguém; a não ser que desconfiasse de sua índole. Durante o caminho conversamos muito, sobre assuntos diversos; confesso que fiquei ate admirado por seus conhecimentos em biologia e química. Parei no posto da rodovia Airton Senna; abasteci o tanque de gasolina e fui ao banheiro. Finalmente chegamos em Pinheiros, deixei o Cadú na esquina da Artur de Azevedo com Capote Valente que é a rua que moro; antes de descer e despedir falou que morava a dois quarteirões na mesma rua Paulo 27 de julho de 2001 Os genes através da imaginação exigem que o cérebro evolua incessantemente durante a idade da consciência. A idade da consciência principia quando começamos a assumir responsabilidades e só termina quando não estamos mais capacitados para assumi-las. No começo da minha idade da consciência, empinar papagaio era algo que me fascinava. Observava os pássaros por horas invejando sua liberdade de 156 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor longitude e altitude, admirava o vôo tranqüilo quase sem esforço dos urubus ao céu. Os anos foram passando e a minha admiração por asas aumentava; os aviões, os helicópteros me chamavam a atenção freqüentemente, mesmo tendo medo de altura. Em certa época da adolescência, fiz algumas pinturas em telas e papel; por mais que me esforçasse em pintar ou desenhar outras figuras, sempre terminava por fazer asas, aves e aviões. Cheguei em certos momentos lúdicos a pensar seriamente, que deveria ser ornitólogo ou piloto de avião. Parei de pintar e pensar nessas tendências, mas o pensamento não deixava de me convidar; o turbilhão de idéias fervilhava meu inexplorável cérebro. As convicções cresceram paralelas a minha idade; finalmente decidi quase que intuitivamente a escrever o que do cérebro provem. Não foi difícil notar a incrível diferença dos meus conceitos e teorias se abrindo diante dos meus olhos, como uma imensa janela de conhecimentos e entendimento. Três dias depois sentado à mesa de um restaurante, num almoço com amigos da redação, notei que faltava um dos cartões de créditos da minha carteira. Tentei lembrar-me 157 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor onde poderia ter esquecido, por mais que esforçasse não conseguia pensar em nada; a única lembrança que me veio foi à volta de Campos de Jordão, a parada no posto quando entrei no sanitário. Cadú havia ficado no carro, também minha pasta com a carteira dentro; apenas isso não era indicio para desconfiar do irmão da Vânia amiga de tantos anos e tantas baladas. Não queria acreditar que ele faria tamanha burrice com uma pessoa conhecida. Engano meu; fiquei sem saber o que fazer ao conferir o talão de cheques e detectar que faltavam quatro folhas. Procurei o telefone da Vânia na agenda, disse que precisa conversar, pedir umas opiniões femininas para uma matéria, passaria em sua casa se pudesse me receber; marcamos para noite que seria o horário que ela estava disponível. Deixei o carro em casa para não afugentar o canalha. Sempre muito linda e amável. Vânia recebeu-me com um vestido preto básico, um sensual decote, que deixava evidente que não necessitava de soutien aquele belo par de seios; de costas era excitante ver o maravilhoso fio dental que lhe penetrava as nádegas. Convidou-me para entrar, dizendo que seus pais não estavam e seu irmão estava pela 158 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor noite sem rumo. No meio da sala agarrei-a pela pequena cintura, que salientava ainda mais aquele perfeito quadril. Não precisei dar uma palavra, pois percebi em seu olhar que tanto queria. Beijamos-nos loucamente, enquanto minhas mãos erguiam seu vestido. Não percebendo nenhuma resistência cheguei ate até a vagina quente e úmida. Interrompeu-me com aquela voz de mamãe quero mais, convidandome para o quarto. Aquele corpo moreno parecia pequeno para as minhas mãos que investigavam todas as entranhas. Joguei-a na cama e fui de língua no seu clitóris que tinha o doce néctar do prazer; Vânia neste momento gemia alto como uma gata no cio, enfiei o indicador e o médio da mão esquerda em sua boca para que chupasse, enquanto o indicador da mão direita, acariciava o ânus. Percebi seu globo ocular ficar todo branco de tesão. Vânia estava em meu colo de frente para mim, meu pênis duro penetrado em sua vagina; quando um barulho nos interrompeu. Tive que ler seus lábios que me pedia silêncio e dizendo ser o irmão; assim podemos ouvir que o irmão havia entrado em seu quarto e trancado a porta. Saímos de pontas de pés sem fazer 159 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor barulho, depois voltamos a entrar na casa após alguns minutos se passarem. Do quarto Cadú gritando, perguntou. _É você Vânia? Vânia respondeu. Em seguida ele fez uma nova pergunta. _Tem alguém com você? Ela disse sim, mas antes que dissesse meu nome, coloquei a mão na sua boca; desta vez fiz ler os meus lábios, que diziam: um amigo. Queria que a surpresa revelasse alguma resposta em seu olhar. Foi justamente isso que aconteceu quando o ladrão veio ate a sala; tentou disfarçar desviando o olhar e mal pode cumprimentar-me. Pedi a Vânia que nos deixasse a sós por um instante. Disse ela que ia ao banheiro e saiu. Fui direto ao assunto e perguntei. _Porque que você fez isso? Muito tenso Cadú respondeu, segurando a voz para não gritar. _ Do que você está querendo dizer? Estava bem longe daquele cara que dei carona, parecia estar sobre o efeito de alguma droga. E disse, já sobre o efeito da fúria. _Você roubou-me. Seu vigarista de merda! 160 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Sem esperar deu-me um forte soco no queixo, onde dei alguns passos atrás para não cair. Fui em sua direção disposto a revidar a agressão. No exato momento abriu a jaqueta, mostrando o cabo de um revolver. Em seguida pronunciou, serrando os dentes. _Se você me caguetar, te mando pro inferno. Burguês de merda. Sai daquela casa sem despedir-me daquele monumento feminino, que ate hoje não entendeu nada que aconteceu naquela sala. Passei uma triste fase pensando ter uma personalidade problemática: com desvios de comportamento e muitas dificuldades nos relacionamentos por não ver interesse na maioria das questões; alias são poucas as pessoas com quem tenho afinidades e o dialogo flui de maneira normal. Na plenitude da solidão a felicidade se incorpora sem alarde ao flexível amor, a doce saudade, a infinita compaixão solidária. As amizades não podem ser ouvidas, somente sentidas no intimo. Na solidão o externo é um enorme silêncio, o interno uma enorme ebulição feita um vulcão. A minha crise de solidão é literária e contemplativa, também pode ser auxiliativa ou destrutiva ao extremo, isto depende 161 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor dos termos de projeção das carências afetivas do momento em questão. Houve época que sem ter consciência odiava minha mãe por ter me expelido da acolhedora solidão intra-uterina. A confusão do desprendimento se estendeu ate por toda adolescência. Hoje ainda posso-me ver olhando entre as grades de ferro e concreto do portão de casa, minha mãe distanciando-se lentamente no seu primeiro dia de trabalho. O choro daquela criança ainda ecoa dentro deste homem de vinte e seis anos. O mundo dos pensadores sempre associou a solidão e o medo à insignificância do flagelo. Não podemos esquecer que o medo nos manteve vivos e soberanos entre tantas espécies que existiram e que ainda resistem a nos destruir. Quando cheguei em casa naquela mesma noite. Meu pai estava na sala de televisão, vendo o hematoma em meu maxilar não se conteve em perguntar o que havia acontecido. Disse que fora assaltado e espancado pelo ladrão; Também perguntou sobre o boletim de ocorrência, respondi que teria que fazê-lo, porque me roubaram folhas de cheque. Pensei em determinado momento, comprar uma arma sem registro para proteger-me mais não o fiz. Três 162 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor dias depois recebi na editora a visita inesperada de um homem, aparentando uns cinqüenta anos; reclamando de um cheque que eu havia sustado. Comuniquei-lhe que fora assaltado por um sujeito no farol. A sós na minha sala, o homem sacou uma arma, encostou-a na minha testa dizendo. _Olha bem rapaz, estou aqui trabalhando como você; meu negocio é trafico de drogas. Não estou aqui pra brincar com quem está o meu dinheiro. Sentia o frio do silenciador da arma apertar em minha testa, as pernas tremiam de medo. Continuou o seu discurso inflamado. _O frouxo do Cadú disse que a droga era pra você. Não sei como consegui perguntar o valor. Ele falou a quantia, que não era muito; por sorte naquele dia estava com dinheiro, devido aos transtornos bancários que estava atravessando. O homem se acalmou, ainda mostrei o boletim de ocorrência, contei-lhe toda historia da volta de Campos do Jordão. Antes de sair-me mandoueu cobrar do ladrãozinho viciado. Do medo intensificado, nasceu o respeito por todas as qualidades de inteligência; porque assim podemos ver a vulnerabilidade de ambas 163 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor às partes, bem definidas. Também acredito que o sexo, o beijo, a amizade, a família, as palavras, a comunicação nasceram por medo da solidão instintiva, que também é algo enraizado em nossos genes. A solidão arrasta-me ou guia-me de maneira equilibrada por trilhas intoleráveis do cotidiano, hoje posso dizer que estou adequado a ela de modo convincente e sustentável, pois o tempo às duras formas me fez amadurecer. Hoje tenho plena convicção, que errei em muitas decisões ao longo de minha vida, por afrontar o destino que é instintivo e discreto. Porem por outros fatores que já mencionei, restou-me escrever e escrever; por dez anos aproximadamente tenho certeza absoluta que nasci para este fim. Uma semana depois da visita inesperada do traficante, quando saia para o trabalho com o carro do lado de fora da garagem. O portão automático ainda descia. De repente uma moto para do meu lado; pensando tratar de alguma informação, esperei-o retirar o capacete. Era o ladrãozinho, viciado; gritando palavras de baixo calão. Talvez a minha sorte naquele momento foi a surgimento de um carro da policia; dei ré e 164 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor parti na mesma direção da viatura, para ter certeza que não seria seguido. Ainda no final da frágil adolescência, sem pensar decidi entrar de frente com a solidão. Aos vinte anos fui morar em uma república com mais quatro amigos de curso vindo do Rio de janeiro. Suportei pouco tempo, mas acredito que aprendi muito viver em grupo; lavar roupas e louças, arrumar a cama, fazer café e cozinhar, principalmente a respeitar os espaços e os limites de cada um. Também aprendi a pensar muito, porque à distância da família quando se tem esta idade é um grande abismo que por vezes não enxergamos o fundo, de tão intensa que é a solidão. Dentre todas as etapas de confronto com a solidão, esta foi uma das mais divertidas; porque não tinha muitas preocupações no que se refere a responsabilidades. Também foi a fase que o mundo ocultado pelos adultos apresentou sua face com todas as cores e formatos. E para ser sincero. Em certos momentos ela assustoume de tal modo que gostaria, que ninguém olhasse dentro dos olhos dela porque foi horrível vê-la; digo isso a quem quer ouvir. A face cruel do mundo que reside entre o sim e o não; porque são respostas que temos, que dar no fio da 165 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor navalha ou a ferro e fogo. Pelas explosões dos hormônios, o sim nos parece sensato. A face cruel do mundo nos engana em ser inofensiva, diante de tantos descobrimentos da flor da idade. Porque o medo se identifica como algo a vencer. O medo fútil que é útil na faixa etária; também são as primeiras manifestações da indução dos genes, para proteger a espécie tão vulnerável. Viver é essencial e deslumbrante para todas as espécies. Muito mais para nós os homo-sapiens, que foi inoculado o prazer. Os genes obrigam o nosso metabolismo a produzir adrenalina, endorfina, serotonina e outras substâncias químicas. Assim nos tornamos dependentes químicos; porque viver organicamente é química do principio ao fim. Nesta mesma fase o organismo também principia a produção dos hormônios sexuais masculinos e femininos; uma exigência dos genes para a manutenção da espécie, para dar seqüência à vida eterna no desenvolvimento do código genético. Acho que não tenho outra saída. Vou jogar a toalha como herói solitário desta guerra covarde, herói que lutou contra a força mais poderosa que é o amor. Do amor nasce o mais duro dos sentimentos que possuímos: a imperdoável solidão. A solidão 166 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor quando carregada de desejo se traduz em delírio à beira da loucura. A solidão derrama em meu corpo o mais quente dos líquidos, que queima minha triste alma. Solidão injusta que mói como maquina os sonhos dos homens; os sonhos de criança fantasiosa, os sonhos dos jovens hiper potentes, os sonhos dos homens que lutam contra impotência certa. Por fim, os sonhos que faz dormir e acontecer, os sonhos acordados e não realizados. Os eremitas, os nômades, os filósofos, os poetas, os escritores, os artistas, os inventores, os pensadores sempre usaram a solidão como chave de entrada, para saber o que está nos registros do código genético. Muitos de nós já lemos a respeito de Jesus Cristo, Buda, Shiva, Gandhi, Moises, Maomé, que tiveram momentos de solidão antes de tornarem-se grandes personagens para seus seguidores. Acredito na comunicação perfeita sem nenhuma interferência, entre os genes e o cérebro durante momento em que estamos a sós e concentrados. Mas, as conseqüências dessa explosão de hormônios dentro deste organismo em formação principalmente cerebral, por muitas vezes são catastróficas. Nesta fase, o cérebro é incapaz de atender as exigências dos minuciosos genes, que 167 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor são incansáveis em sua luta pela sobrevivência. Eles são estrategistas, preconceituosos e seleciona os seres humanos no qual serão seus hospedeiros. Isto vem acontecendo com freqüência ao longo da historia. Todos estes desenvolvimentos tecnológicos, poluições, guerras, proliferações de doenças, são processos de seleção; se o organismo não suportar, nunca servirá para ser hospedeiro e automaticamente ele se destrói. Por estes fatores é que adoecemos, seja fisicamente ou psicologicamente e nossa seqüência é interrompida. Esta foi a historia deixada por Pedro Henrique gravada no disquete. Andei a rua Artur de Azevedo que nem um louco à procura de tal de Cadú, que tem uma irmã chamada Vânia. Quase desmaiei quando um jovem despreocupado me disse. _Claro que eu conheço, Carlos Eduardo e a Vânia, são os filhos da dona Cristina Lessa, do açougue ali na esquina. 168 Zé Gertrudes/ O dúbio do amor Fim 169