Contos Africanos - Programa de Pós
Transcrição
Contos Africanos - Programa de Pós
Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL CONTOS AFRICANOS Reijane Maria de Jesus Oliveira1 Introdução Dentre os contos de origem africanas Clyde Ford, no livro “O Herói com Rosto Africano” trabalha com mitos da região da áfrica subsaariana, abordando algumas discussões acerca dos mitos africanos, apresentando a importância destes para o processo de constituição inicial das sociedades africanas. Sabemos que o conhecimento mitológico, um dos saberes que perderam espaço no paradigma atual é cada vez menos utilizado, por muitas vezes ser interpretado como algo destituído de racionalidade, uma vez que não possui reconhecidamente valor científico. É inquestionável que o conhecimento cientifico e seu desenvolvimento foram fatores indispensáveis para o progresso socioeconômico da humanidade. Contudo, queremos ressaltar a importância de outras formas de conhecimento, uma vez que antes do modelo cartesiano existia um conhecimento mitológico que está num processo constante de desprestigio por parte das instituições de ensino. A Lei 10.639/03 alterando a Lei de Diretrizes e Bases – Lei 9.934/96 – tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as áreas e níveis da educação. A obrigatoriedade da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no ensino surgiu como forma de reparação à discriminação racial e ao etnocentrismo europeu em que o sistema educacional brasileiro está imerso desde seu primeiro momento, uma vez que após a chegada dos portugueses, foi iniciada uma educação em que foi imposta através do processo de aculturação a forma de vida dos europeus que colonizaram o Brasil. Nas escolas muito nos informaram sobre a história européia, antes de colonizarem o Brasil, mas pouco nos é passado historicamente sobre a riqueza cultural dos povos negros, ainda no continente africano, uma vez que sabemos que o propalado continente era constituído por inúmeros grupos étnicos, apresentando diversificadas formas de manifestar sua cultura. 1 Graduanda em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Iniciação Científica UNEB| SEPROMI E-mail: [email protected] Anais Eletrônicos | 338 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL Neste contexto, os mitos africanos, contemplando a Lei 10.639\03, surgem como um mecanismo de resgate da cultura africana, uma vez que eles permitem compreender a forma de vida destes povos, ao apresentar a língua, a religião, e os valores culturais, bem como suas origens, que encontramos muitas vezes de forma implícita em sua mitologia. Por meio dos mitos, acreditamos ser possível conhecer a cultura de um povo. Tais narrativas nos permitem conhecer as cantigas, danças e línguas de um grupo étnico, a geografia local, os valores culturais, suas percepções sobre o mundo e histórias de vida dos habitantes, dentre outros aspectos. È com o intuito de contemplar a diversidade cultural presente no Brasil, que nos propomos a discutir a importância dos mitos africanos, visando contribuir para a construção de identidades negras dentro da sala de aula. Os mitos africanos na sala de aula [...] a mitologia tem sido tradicionalmente um meio de tornar saudável o indivíduo e a sociedade ajudando as pessoas a harmonizar as circunstancias da vida [...] (FORD, 1999. P. 32) Os mitos possuem muita importância para a cultura de um povo, pois através deles nos é permitido conhecer sua concepção de mundo, uma vez que ele carrega muitas informações sobre os seus valores e expectativas. Bárbara Carvalho (1982) informa que: O mito é a epopéia da humanidade; é a própria história existencial do homem. Ele contém a presença das origens místico-religiosas e éticas, criando arquétipos ou paradigmas, e revelando cultos e rituais secretos. O mito não é apenas uma revelação, mas uma fixação de valores paradigmáticos, na busca de padrões de comportamento. (CARVALHO, 1982, p.24) Sendo assim, através de um mito e da compreensão de suas metáforas podemos perceber se estamos mantendo os padrões de comportamento que nele aparecem muitas vezes de forma implícita, funcionando como mecanismo de controle social. Com o intuito de fortalecer abordagens acerca da afirmação da identidade dos afro-brasileiros no cotidiano escolar, nos propomos a trabalhar com os mitos e africanos Anais Eletrônicos | 339 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL na sala de aula, uma vez que a escola consiste num espaço de socialização comprometida com a formação dos indivíduos. Adotamos aqui o termo identidade nos referindo ás características próprias dos povos afro-brasileiros e africanos herdada de seus antepassados como as religiões, as danças, as cantigas, as relações entre eles, as línguas, dentre outros aspectos, como sugere Lopes (2008): País onde convivem várias culturas, no Brasil, os africanos deixaram fortes traços de sua identidade na religião, na história, nas tradições, no modo de ver o mundo e de agir perante ele, nas formas de arte, nas técnicas de trabalho, fabricação e utilização de objetos, no modo de falar, na medicina popular e em muitos outros aspectos. Esses traços, recriados pelos afrobrasileiros de uma forma inconsciente ou não, são o que melhor define a identidade nacional. (LOPES, 2008, p 203) Os mitos são narrativas que visam explicar a origem das coisas presentes no mundo: Nos mitos, denuncia-se o fecundo elã inicial do homem em direção à ciência (desejo de explicar o que o rodeia); em direção à religião (desejo de explicar a si próprio, sua origem, seu destino); em direção à poesia (desejo de expressar seus sentimentos e atingir sensações irreprimíveis). Pelo mito, o homem, que não sabia nada, senão que vivia, tornou vivas todas as maravilhas ao alcance de seus olhos ou de suas mãos. (...) Cada povo da antiguidade tem seus mitos característicos, intimamente relacionados com sua religião ancestral e com sua alma poética. (...) o homem primitivo Fez de cada verdade (por não sabê-la tal, por não saber prová-la como tal) um mito. Ao homem moderno corresponde fazer de cada mito uma verdade, por que o mito a encerra indiscutivelmente. (COELHO, 2003, 86) De acordo com as informações de Coelho (2003), ao analisarmos a mitologia existente, percebemos que temos um mito que explica a origem do mar; outro mito informa sobre a origem dos seres humanos; outro mito apresenta como surgiram os planetas, todos amparados por justificativas imaginárias, não comprovadas pela ciência, mas que num dado momento das sociedades, foram bastante informativos acerca da origem dos homens e das paisagens que os rodeiam. Idéia também compartilhada por Ford (1999) que afirma que: ”[...] numa outra leitura, os mitos são absolutamente verdadeiros – não como fatos, mas como metáforas; não como física, mas como metafísica. Porque a reflexão mitológica começa onde pára a investigação científica.” (FORD, 1999, p.32). Sendo assim, podemos afirmar que os mitos possuem certa veracidade, uma vez que funcionam como modelo para a sociedade, no que diz respeito ás suas simbologias. Anais Eletrônicos | 340 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL Na sala de aula, os mitos africanos podem ser utilizados como metodologia para se trabalhar a diversidade cultural presente no Brasil, ao passo que informa aos alunos através das interpretações destes sobre um determinado mito a forma de compreensão de mundo e do comportamento dos povos do qual origina-se a história contada. Conforme Clyde Ford (1999): Lidos apropriadamente, os mitos nos deixam harmonizados com os eternos mistérios do ser, nos ajudam a lidar com as inevitáveis transições da vida e fornecem modelos para o nosso relacionamento dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida. (FORD, 1999, p.9). Em sua obra “O Herói com Rosto Africano”, Clyde Ford (1999) informa que um mito geralmente apresenta a figura de um herói, que costuma livrar a humanidade ou apenas um povo de uma determinada região de um mal comum a todos. Os mitos africanos surgem na sala de aula como uma forma de resgate á autoestima dos alunos – em referencia ao público afro-brasileiro – uma vez que estes terão contato com os heróis, com aqueles que fisicamente seriam bastante semelhantes aos ouvintes das histórias, auxiliando estes a conhecerem seus libertadores, os grandes homens ou deuses que realizaram grandes feitos para a humanidade. Referindo-se aos mitos, Clyde Ford (1999) afirma que: Conhecemos muito bem esses contos sobrenaturais de seres descomunais. Eles sempre nos entretêm e inspiram, mas devem ser sempre levados a sério? Ao analisá-las, vemos que essas aventuras de heróis são mais do que o enredo da história; elas falam, por metáforas, da aventura humana pela vida. Os desafios do herói são os nossos, as inevitáveis transições que cada um de nós enfrenta na vida: nascimento, amadurecimento, entraves, conquistas, dor, prazer, casamento, envelhecimento e morte. (FORD, 1999, p.31) Essas etapas pelas quais passam os heróis, nós os ouvintes da história também vivenciamos e esta identificação com o herói negro funciona como um mecanismo de afirmação da identidade negra, que será desenvolvida por meio das abordagens realizadas frente ás problematizações discutidas. Devendo está presente a autoafirmação de um povo negro que aparece de forma positiva, senhor de si, que alimenta sua auto-estima, livre do preconceito e do racismo. Os mitos permitem abordar discussões acerca das relações hierárquicas existentes nas narrativas, da presença ou ausência de música, da valorização da beleza, Anais Eletrônicos | 341 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL da preservação do meio ambiente, dentre outros aspectos. Todas as abordagens que permitam a promoção de análises relativas aos mitos podem contribuir para a valorização da cultura popular, possibilitando a construção de imagens positivas sobre a história e Cultura afro-brasileira e africana. Amparados pela Lei 10.639 os mitos africanos possuem grande importância para a construção da identidade negra na sala de aula, uma vez que as histórias contadas apresentaram os personagens negros a partir de um lugar de destaque, assumindo o papel de protagonista da história. A partir dos símbolos presentes nos mitos, podemos abordar importantes aspectos da cultura africana. Vejamos então, um mito presente em “O Herói com Rosto Africano” (FORD, 1999) que nos informa sobre a criação dos homens, que se deu a partir da modelagem da terra por uma deusa, estabelecendo entre os homens e sua criadora, uma relação de livre arbítrio, afetividade e acordos: Houve uma vez um campo imenso, e nesse campo se erguia uma enorme árvore iroko com raízes esparramadas. Um dia, o céu escureceu e de lá desceu sobre o campo uma mesa grande e uma imensa “pedra da criação”. E sobre a mesa havia uma grande quantidade de terra. Então houve relâmpagos e trovões, e Woyengi, a Mãe, desceu. Ela sentou-as na cadeira e colocou os pés sobre a “pedra da criação”. Com a terra sobre a mesa Woyengi moldou os seres humanos. Mas eles não tinham vida, não eram nem homens nem mulheres, Woyengi, abraçando um por um, soprou dentro de cada um deles que se tornaram seres vivos. Mas, como ainda não eram nem homens nem mulheres, Woyengi perguntou a cada um de qual sexo queria ser. Assim ela os fez, de acordo com a escolha deles. Em seguida, Woyengi perguntou-lhes, um por um, que tipo de vida queria ter na terra. Alguns pediram riquezas, outros pediram filhos, outros, ainda, vidas curtas, e coisas de todo tipo. E Woyengi concedeu essas coisas a cada um, conforme o desejo deles. Então Woyengi perguntou a cada um com que tipo de morte eles retornariam a ela. E, dentre as doenças que afligem a terra, cada um escolheu a sua. A todos esses desejos Woyengi disse: “Assim seja”. (FORD, 1999, p, 180). No presente conto, podemos perceber alguns aspectos da cultura africana, dentre os quais podemos ressaltar: O primeiro aspecto que pode ser destacado do texto e que está presente na forma de vida dos povos africanos é o respeito á natureza, uma vez que a morada da deusa localiza-se acima de uma árvore, mas uma árvore sagrada, uma Iroco, árvore que compartilha o mesmo nome com o Orixá que possui o domínio sobre as folhas. Podemos então trabalhar na sala de aula este conto, utilizando para iniciar as discussões acerca das relações estabelecidas entre os africanos e a natureza, abrindo grande leque Anais Eletrônicos | 342 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL para se trabalhar as religiões, uma vez que nas religiões de matrizes africanas os deuses presentes, são representados por elementos da natureza, já que apresentam tais elementos – água, terra, fogo e ar - como seus domínios. Outro importante ponto é a representação da figura feminina, aqui apresentada como líder espiritual, assumindo o papel de deusa, de mãe. Entretanto, esta mãe cuida mas não super protege. Este comportamento da deusa, da mãe, mais uma vez apresenta a forma de vida dos povos africanos, uma vez que os filhos, apesar de serem mais protegidos pelas mães, são filhos também de toda a comunidade, n está necessariamente presa apenas á mãe, herança africana que podemos perceber em comunidades de terreiros, quando todos da comunidade são responsáveis pela educação das crianças. Por fim, outra característica importante é a consciência da morte como processo de transformação e não de finitude, pois as religiões de matrizes africanas trabalham com a idéia da imortalidade da energia, que se transforma, se modifica, sendo reverenciada quanto nossos ancestrais. Considerações finais Os mitos africanos ao serem trabalhados em sala de aula contribuem para a construção da identidade positiva dos afro-brasileiros, uma vez que apresenta aspectos culturais repletos de simbologias e significados que refletem as crenças de um povo dotado de conhecimento não reconhecidos pela ciência, mas que rege a vida de muitos dos povos africanos. Os mitos africanos, ao serem trabalhados na sala de aula, nos permitem contemplar a diversidade cultural destes povos até pouco tempo silenciada de forma positiva. A mitologia permite que os alunos se envolvam com a cultura popular dentro da sala de aula a fim de trazer para o cotidiano dos espaços escolares as representações culturais dos diversos povos que possuem relevância para a formação do povo brasileiro. A educação formal das instituições de ensino ao trazer para seus espaços os mitos africanos contribuem para a afirmação da identidade negra dos afro-brasileiros, a construção da auto-estima e valorização da história e cultura afro-brasileira e africana, auxiliando na formação de cidadãos conhecedores de sua história. Anais Eletrônicos | 343 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL Os mitos permitem abordar discussões acerca das relações hierárquicas existentes nas narrativas, da presença ou ausência de música, da valorização da beleza, da preservação do meio ambiente, dentre outros aspectos. Todas as abordagens que permitam a promoção de análises relativas aos mitos podem contribuir para a valorização da cultura popular, possibilitando aos alunos a construção de imagens positivas sobre a história e Cultura afro-brasileira e africana. Amparados pela Lei 10.639 os mitos afro-brasileiros e africanos possuem grande importância para a construção da identidade negra na sala de aula, uma vez que as histórias contadas apresentaram os personagens negros a partir de um lugar de destaque, assumindo o papel de protagonista da história. REFERÊNCIAS: ABIMBOLA, Wande. Ifá Divination Poetry. Nova York, Londres e Ibadan, Nok Publishers, 1977. BRASIL, Lei nº 10.639 – 09 de janeiro de 2003. Brasília: Ministério da Educação, 2003. BRASÍLIA. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Superando o racismo na escola. Org. Kabengele Munanga. 2ª Ed. 2005. 204p. CANCLINI, Néstor García (1983). As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense. COELHO, Nelly Novais. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 2003. FORD, Clyde W. O herói com rosto africano: mitos da África, Trad. Carlls Mendes Rosa. São Paulo, Summus, 1999. LÉPINE, Claude. As metamorfoses de Sakpatá, deus da varíola. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Leopardo dos olhos de fogo. São Paulo, Ateliê Editorial, 1998. LOPES, Nei. Bantos, Malês e identidade negra. Belo Horizonte. Autentica editora, 2008. 224 p. Anais Eletrônicos | 344 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL MARCUSCHI, Luiz Antônio. Oralidade e ensino, uma questão pouco ‘falada’. In: DIONÍSIO, Angela Paiva e BEZERRA, Maria Auxiliadora (Orgs.). O livro didático de português. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. MUNANGA, Kabenguele. Negritude – Usos e Sentidos. São Paulo: Editora Ática. 1988. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Companhia da Letras, 2001. REIS, Alcides Manoel dos. Candomblé: a panela do segredo. Org. Rdnei William Eugênio. São Paulo. Mandarim,2000. UNESCO – Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Tradução portuguesa. Rio Tin. Anais Eletrônicos | 345