Vocação cristã e espiritualidade a partir do conceito de discipulado

Transcrição

Vocação cristã e espiritualidade a partir do conceito de discipulado
MÁRCIO ROLDAN DE ARAUJO
VOCAÇÃO CRISTÃ E ESPIRITUALIDADE A PARTIR DO CONCEITO DE
DISCIPULADO DE DIETRICH BONHOEFFER
SÃO PAULO
2007
1
MÁRCIO ROLDAN DE ARAUJO
VOCAÇÃO CRISTÃ E ESPIRITUALIDADE A PARTIR DO CONCEITO DE
DISCIPULADO DE DIETRICH BONHOEFFER
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como requisito final no curso de Bacharel em
Teologia da Faculdade Teológica Batista de São
Paulo.
Orientador: Profº. Marcelo dos Santos Oliveira.
SÃO PAULO
2007
2
Araujo, Marcio Roldan de
Vocação cristã e espiritualidade a partir do conceito de
discipulado de Dietrich Bonhoeffer. Marcio Roldan de Araújo. – São
Paulo, 2007.
84 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Teologia)
– Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 2007.
1. Espiritualidade. 2. Discipulado. 3. Vocação Cristã.
CDD 226.6
3
MÁRCIO ROLDAN DE ARAUJO
VOCAÇÃO CRISTÃ E ESPIRITUALIDADE A PARTIR DO CONCEITO DE
DISCIPULADO DE DIETRICH BONHOEFFER
BANCA EXAMINADORA
Prof. Marcelo dos Santos Oliveira - Orientador
Prof. Alberto Kenji Yamabuchi
Profa. Madalena de Oliveira Molochenco
SÃO PAULO
2007
4
DEDICATÓRIA
Aos irmãos e irmãs seminaristas que, como eu, tendo um dia entendido o sentimento de um
chamado específico para o ministério cristão, trilham hoje os caminhos da espiritualidade a
procura de si mesmos, do outro, de Jesus Cristo na realidade concreta do mundo.
5
Agradeço de coração:
A Izequiel ( papai ) e Rosecler ( mamãe ), por me iniciarem e ensinarem a dar os primeiros
passos na fé, testemunho e caminhos da espiritualidade cristã.
A Ligia ( amada esposa ), que me acompanha no seguimento dos passos de Jesus Cristo na
realidade concreta de nosso dia-a dia no mundo.
Aos amigos ( as ) e irmãos ( ãs ) do Pensionato Masculino e Feminino da Teológica ( 2003 –
2007 ), com quem experimentamos as angústias e contradições, bem como alegrias e milagres
da possibilidade de se trilhar juntos os caminhos da espiritualidade cristã diante de nossas
diferenças, origens e ideais.
A Ester e Rafael, pelo carinho, apoio e ajuda nas pesquisas e nos preciosos momentos que
convivemos e desenvolvemos nossa espiritualidade na Biblioteca Dirce Rodrigues Kaschel.
Ao professor, pastor e amigo Marcelo dos Santos Oliveira, por me orientar e direcionar neste
trabalho de amadurecimento de idéias e reflexões acerca da espiritualidade e vocação cristã.
A nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, cuja graça e misericórdia nos permite hoje chamá-lo
de amigo e segui-lo dia-a-dia na realidade concreta de nossa existência no mundo, para o
louvor de Deus-Pai, no amor e poder de Deus-Espírito Santo.
6
“O Reino tem que ser estabelecido em meio aos teus inimigos. Quem
não quiser se sujeitar a isso não quer ter parte no Reino de Cristo,
mas quer viver cercado de amigos, viver em um mar de rosas, na
companhia de gente piedosa, jamais de gente má. Ó blasfemadores e
traidores de Cristo ! Se Cristo tivesse agido como vocês, quem teria
se salvo ?”. ( Lutero )
“O ser humano se torna humano, porque Deus se fez humano. Porém
o ser humano não se torna Deus”. ( Bonhoeffer )
“O discipulado consiste em olhar para o Senhor e Mestre da nossa
existência, assumindo a vida nos momentos concretos [...] O mundo
precisa de gente humana, que busca sua humanidade no Cristo e a
revela no dia-a-dia, no mundo. Deus não quer e não precisa de
pequenos deuses que se refugiam fora do mundo, porque ele mesmo
entrou no mundo em Cristo”. ( Malschitzky )
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RESUMO
O objetivo do presente trabalho é demonstrar a relevância que o conceito de 'discipulado' do
teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, bem como seu testemunho e martírio, tem para repensar
a vocação cristã a partir de uma nova forma de encarar o que entendemos por espiritualidade
na realidade do mundo e, especificamente, apontando para uma reflexão a partir da realidade
brasileira. Esta abordagem está direcionada para o objetivo de contribuir de forma decisiva e
reflexiva na formação vocacional específica do ministério cristão, bem como teológica, na
vida comunitária e individual, tendo como ponto de partida, congruência e convergência o
seguimento de Jesus Cristo na realidade do mundo.
Palavras-chave: Espiritualidade. Discipulado. Vocação Cristã.
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SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................................10
I. Dietrich Bonhoeffer: Contexto Histórico, Vida e Obra
1.1 – Contexto Histórico...........................................................................................................15
1.2 – Vida e Obra......................................................................................................................17
II. Discipulado: Repensando os Paradigmas da Vocação Cristã em Bonhoeffer
2.1 – Discipulado......................................................................................................................26
2.2 – Vocação Cristã.................................................................................................................31
2.3 – A Doutrina dos Quatro Mandatos....................................................................................36
2.4 – Dualismo Antropológico: Pseudo-dicotomias da esfera existencial................................40
III. Espiritualidade: A Concretização da Vocação Cristã e do Discipulado na AltaModernidade
3.1 – Conceitos e Abrangência da Espiritualidade...................................................................47
3.2 – Um Conceito de Espiritualidade a partir de Bonhoeffer..................................................50
3.3 – Modernidade e Alta-Modernidade: Estabelecendo os Conceitos....................................54
3.4 – Protestantismo Brasileiro e Modernidade: Fundamentando uma Cosmovisão...............59
3.5 - Espiritualidade e Alta-Modernidade: Quebra de Paradigmas, Desafios e
Oportunidades..........................................................................................................................64
Considerações Finais................................................................................................................69
Referência Bibliográfica...........................................................................................................73
Anexo.......................................................................................................................................79
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Introdução
A atual sociedade capitalista ocidental vive uma indefinição e ausência de identidade
que altera o seu modo de perceber o tempo, o espaço e as coisas de um modo geral, tornando
sua própria vida algo indecifrável, constituídas de pequenas experiências que se sucedem,
vivências fragmentárias onde não cabem mais idéias de totalidade como Céu, Libertação,
Pecado, Deus, etc.
Porém, não podemos deixar de salientar seus aspectos heurísticos, ou seja, de
descoberta de novos temas ou ênfases em outros ora esquecidos e marginalizados na
modernidade, que são atualmente trabalhados na literatura da alta modernidade, modernidade
tardia, ou , pós-modernidade, conforme discussão ainda inconclusa e aberta por parte dos
teóricos que discutem esta temática, constituindo uma gama de possibilidades em vários
aspectos do saber e da vida.
Até poucas décadas atrás, em nome da ciência e do cientificismo, declarava-se a
“morte de Deus” e coroava-se a ciência como portadora do estatuto de verdade e legitimadora
da verificação e interpretação do real, contrapondo-se aos aspectos relacionados aos discursos
e práticas religiosas, bem como aos aspectos de uma espiritualidade que embasava tal
cosmovisão.
Contraditoriamente, a alta modernidade lança o indivíduo a uma longa perda de
sentido e continuação de um processo histórico ( identidade ), fundamentando seu viver e
cosmovisão em princípios existenciais e imediatistas. Aqui, há uma reabertura a discussão da
espiritualidade como busca do sentido de ser no mundo por parte do indivíduo.
Assim, a alta modernidade permite a abertura ou reabertura à discussão de temas até
então dogmatizados ou contrariados pela modernidade, temas inclusive nascidos por causa
das contradições que marcaram o delineamento do breve século XX.
Neste contexto, o Brasil tem se desenvolvido na margem deste processo de quem
recebe influencia direta na cultura. Porém, nosso povo ainda é profundamente marcado por
uma formação histórico-mental constituída a partir de três matrizes formadoras da cultura
brasileira, a saber: indígena, negra e portuguesa.
Há toda uma peculiaridade cultural múltipla e multifacetada que nos define, sendo
também definida por nossa espiritualidade, cosmovisão que alimenta o imaginário e irrompe
no real a partir de nossos traços característicos como a alegria, sentimento de esperança e
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otimismo, misticismo, bem como a postura relacional experimentada nas festas ( carnaval ) e
eventos esportivos ( futebol ), o que define nossa brasilidade.
Diante destes fatos, podemos definir a igreja brasileira como uma igreja mestiça,
porém, afetada pelo espírito da alta modernidade, onde o mercado acaba decidindo a agenda
da igreja e esta acaba se reduzindo a uma experiência individual, utilitária, desconectada da
ética, da moral, da alma e do coração do indivíduo, o que acaba por influenciar hábitos,
comportamentos e a espiritualidade. A pessoa acaba valendo mais pelo que possui e pode
oferecer do que por quem é, assim sendo, a partir do momento em que o ter define o ser,
estabelece uma nova base para o significado da pessoa, comprometendo seu universo
relacional e espiritual, verificável através do ativismo religioso que nos aliena das relações
pessoais, criando um mundo onde o fazer determina o significado do ser.
Temos que reconhecer que a prerrogativa do individualismo, carro chefe da alta
modernidade, associado com outros fenômenos presentes nesta mesma esfera, traz um dos
maiores desafios à espiritualidade cristã que se tem visto, o desafio do encontro, dos
relacionamentos, do discipulado e vocação ministerial na vida cristã, da descoberta do outro
não pelo que tem ou representa, mas por quem é.
Diante disto, o caráter de vocação e discipulado acabam necessariamente tendo que
sofrer todo um processo de contextualização e adequação à nossa realidade histórico-cultural,
bem como diante da perspectiva bíblica e profética que somos desafiados cotidianamente a
nos posicionarmos devido ao pecado e ao mal que também emergem e proliferam a partir da
cultura.
Em seu contexto, Dietrich Bonhoeffer compreendeu muitas destas prerrogativas, razão
que o levou a tomar a postura que tomou diante da vida e do destino, tornando-se um dos
mais importantes mártires do século XX que ousou pregar e viver a verdade em que cria. Seu
conceito de discipulado emerge então de toda uma reformulação de pensamento e prática ética
diante da vida e dos desafios e contradições de seu tempo, envolto na alienação e dura
perspectiva de uma Alemanha nazista que tinha como forte ponto de apoio a
institucionalizada e hierarquizada igreja cristã luterana.
O tema deste projeto é “repensando a espiritualidade na vocação cristã a partir do
conceito de discipulado de Dietrich Bonhoeffer”, abrangendo a área de espiritualidade,
vocação e vida cristã.
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Assim, o tema surgiu a partir de discussões, reflexões e debates sobre novos
paradigmas de espiritualidade e vocação na vida cristã diante da presente reestruturação
mental de nossa época, a chamada era pós-moderna, alta modernidade ou modernidade tardia.
Durante o processo de formação acadêmica, tal crítica de paradigmas levou-me a
crises pessoais existenciais diante do questionamento de minha vocação pessoal e sua relação
com o sentimento de chamado no viver cotidiano, quer no ambiente de trabalho ministerial na
igreja, quer no relacionamento direto com a sociedade de uma forma geral.
Sendo relevante na pesquisa acadêmica por tratar de uma forma mais direta da vida
cristã e espiritualidade do discente, temática infelizmente marginal nas discussões da
academia, ainda coloca em pauta a análise de uma forma inclusiva da igreja “no mundo” a
partir da vida e obra de um dos mais respeitados e importantes teólogos neo-ortodoxos
alemães do século XX, bem como também mártir, Dietrich Bonhoeffer.
Desta forma, vem contribuir para a reflexão e abertura de novos cursos e seminários
diante do escasso quadro de docentes específicos desta área na teologia confessional
evangélica batista, apontando para uma formação ministerial de caráter integral e
contextualizado do discente.
Sendo fundamental para uma releitura de aspectos relacionados à mentalidade e
espiritualidade analisada e criticada a partir de uma contextualização cultural brasileira de
formação, desenvolvimento vocacional e docência acadêmica, também traz apontamentos
para novas possíveis propostas de desenvolvimento de um discurso voltado à uma
espiritualidade contextualizada e integrada a nossa cultura ( brasilidade ) no que se refere à
igreja local como um local de desenvolvimento de espiritualidade no mundo e para a vida.
O referencial teórico será desenvolvido a partir de três importantes conceitos para a
análise da temática proposta, a saber: discipulado, vocação e espiritualidade.
Segundo Bonhoeffer ( 2004 ), o discipulado de Jesus proclama a libertação do ser
humano de todos os preceitos humanos, de tudo aquilo que oprime e sobrecarrega, provoca
preocupações e tormentos à consciência. Discipulado caracteriza-se a partir da imitação de
Cristo sem restrições, o que torna a pessoa liberta para viver uma vida de comunhão e
responsabilidade com Deus, consigo mesma, com o próxima e com a criação ( natureza ). O
que difere completamente das propostas e práticas vistas e adotadas na atual igreja evangélica
brasileira, que também vive o “espírito de tempo” na presente alta modernidade, referindo-se
apenas a estudos e reflexões literárias conforme o mercado de literatura evangélica nos
apresenta.
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Conforme analisado no Caderno de Estudos da CNBB ( 2005 ), Rúbio afirma que a
vocação pessoal cristã supõe uma visão integrada da pessoa e a superação da perspectiva
dualista de cosmovisão. Afirma que o projeto do Deus da Vida é que a pessoa desenvolva, de
maneira inclusiva, as relações de interiorização e abertura, ou seja, que a pessoa seja mesmo
uma pessoa que é criada e existe para viver a salvação oferecida por Deus de uma forma
integral, incluindo as dimensões biológica, psíquica e espiritual.
Tais apontamentos nos dão subsídios para definirmos espiritualidade como vida, viver,
ou, segundo Sousa ( 2004 ), a relação, o desejo do encontro, da descoberta do outro não pelo
que tem ou representa, mas por quem é, a partir de uma relação objetiva, íntima e pessoal no
mundo.
Assim, procuraremos refletir e responder os seguintes questionamentos:
•
o pensamento e conceito de Bonhoeffer sobre o papel do discipulado na vida cristã
pode contribuir de forma decisiva na formação teológica e vocacional, bem como em
suas respectivas possíveis influências na vida cristã individual e comunitária do
discente ?
•
é possível conciliar um novo paradigma de espiritualidade na vida cristã a partir do
conceito de discipulado de Bonhoeffer e os aspectos gerais da cultura e realidade
brasileira ? É possível ser discípulo de Cristo e ser brasileiro ?
Pretendemos demonstrar que na alta modernidade houve a possibilidade de uma
abertura ou reabertura em direção a uma espiritualidade que parte de uma necessidade
existencial concreta do ser humano em busca de sentido e respostas no viver cotidiano.
Nisto, o conceito de discipulado de Bonhoeffer é fundamental no preparo vocacional e
espiritual de um vocacionado ao ministério cristão pois o insere na realidade contextual do
mundo no qual é um sujeito histórico que interage com sua realidade.
Esta mentalidade quando vivida na vida pessoal, na formação ministerial e aplicada de
forma prática na comunidade local, levando-se em conta os paradigmas da estrutura mental
que chamamos de brasilidade, ou seja, a partir de nosso contexto e vivência, nos torna capazes
de viver de forma mais coerente a imitação de Cristo em nossa cultura de uma forma profética
e engajada no mundo ( nossa realidade ).
O objetivo geral do trabalho será discutir a relevância que o conceito de discipulado de
Bonhoeffer tem para repensar a vocação cristã a partir de uma nova forma de encarar o que
entendemos por espiritualidade não apenas no preparo ministerial, mas, principalmente, no
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cumprimento engajado do ministério cristão, tendo como contexto o ambiente em que
desenvolvemos e vivemos este princípio, nossa brasilidade.
No capítulo 1, traçaremos o perfil biográfico e o contexto histórico de Dietrich
Bonhoeffer, procurando compreender e analisar os aspectos que influenciaram e deram base
para a construção de seu pensamento teológico.
No capítulo 2, apresentaremos o sentido e amplitude do conceito de discipulado de
Bonhoeffer, bem como sua relação com a vocação cristã-integral.
No capítulo 3, desenvolveremos os conceitos de espiritualidade e vocação cristã dentro
de uma perspectiva coerente no que entendemos por alta modernidade ( pós-modernidade ) e
sua relação, sentido e alcance a partir de uma breve análise do protestantismo brasileiro.
Após, faremos as considerações finais sobre caminhos, perspectivas e apontamentos
que acreditamos tornar possível um aprofundamento de estudos e pesquisas nesta temática
frente à realidade cultural brasileira.
Para isso, a pesquisa será desenvolvida a partir de consultas bibliográficas, boletins e
artigos impressos pela Sociedade Internacional Bonhoeffer - Seção Língua Portuguesa, bem
como sites especializados de consulta e pesquisas referentes ao tema.
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Capítulo I – Dietrich Bonhoeffer: Contexto Histórico, Vida e Obra
“De toda a forma, não é possível que uma pessoa que tenha vivido este século
extraordinário se abstenha de julgar. O difícil é compreender.” ( Hobsbawn –
sobre o século XX )
1.1 – Contexto Histórico
Analisar a vida e obra de Bonhoeffer sem levar em conta a realidade e contexto de
mundo em que foi gerado, cresceu, desenvolveu sua vocação, fundamentação teológica e
espiritualidade, é cometer um anacronismo subjacente a sua realidade vivida, querendo definila e enxergá-la tão somente a partir do olhar do presente, de uma forma retrospectiva mas sem
levar em conta o desenvolvimento do processo histórico que dá legitimação às factualidades e
nos ajudam a compreendê-las melhor.
Mendonça ( 1994 ) nos adverte que as obras de um teólogo sempre mostram estreita
relação com os desafios do seu tempo e lugar, indicando que não se deve estudar a teologia
inteiramente desvinculada de seus autores no seu tempo e lugar historicamente constituídos.
“A biografia do teólogo traz o componente espiritual do seu pensamento, isto é, as
motivações do Espírito que o levaram a aceitar os desafios do seu tempo tendo em vista
as necessidades da religião e da Igreja (...) foram movidos na sua reflexão teológica
pelas circunstâncias sócio-históricas em que se achavam envolvidos e pela intensa fé que
tinham no Evangelho” ( MENDONÇA: 1994, p. 108, 110 ).
Sendo assim, já a partir da segunda metade do século XIX, o Imperialismo1 foi
responsável pelas disputas travadas entre grandes potências pela dominação e exploração de
territórios colonizados na Ásia e na África com o objetivo de expandir suas indústrias,
mercado consumidor e influências políticas. Já aqui, a Alemanha, que teve um rápido
desenvolvimento econômico após sua unificação ( 1870 ), passa a pressionar a comunidade
internacional com o objetivo de aumentar sua área de dominação, o que a coloca em conflito
direto com a maior potência mundial da época, a Inglaterra.
1
Formação e expansão do capitalismo monopolista caracterizada pela formação e expansão de grandes
conglomerados econômicos que dominam determinadas áreas da produção sem necessariamente exercer controle
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Vários conflitos e interesses levaram à criação de um sistema de alianças entre os
paises europeus e de formação de grupos ou blocos que tinham um compromisso de ajuda
mútua em caso de agressão. Neste contexto, é deflagrada a I Guerra Mundial a partir do
incidente ocorrido em Sarajevo ( Bósnia ) em 28 de junho de 1914, o assassinato do
Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro.
Conforme HOBSBAWM ( 1995 ), as décadas que vão da eclosão da I Guerra Mundial
aos resultados da II Guerra são marcadas pelo que define como uma “Era de Catástrofe”, um
período de quarenta anos marcado por calamidades que geraram um profundo colapso
econômico na economia mundial, o que definiu a chamada Grande Depressão.
Conforme PETTA e OJEDA, para a Alemanha, este colapso teve início com o
chamado Tratado de Versalhes2, que considerou a Alemanha culpada pela I Guerra e impôelhe punições como: multa por prejuízos causados pela guerra ( 230 trilhões de dólares );
devolução dos territórios da Alsácia e Lorena à França; criação de uma estreita faixa de terra
que ligava a Polônia ao porto de Dantzig, que cortava o território alemão ( Corredor
Polonês ); impedimento para reorganização de seus exércitos; foram obrigados a abrir mão de
suas áreas coloniais.
Assim, a Alemanha é condenada ao empobrecimento e enfraquecimento de seu poder
militar, o que levou o povo alemão aos poucos a optar por ideologias nacionalistas que irão
desenvolver-se em governos totalitários, pois, toda a década de 1920 será marcada por
desemprego em massa e uma constante alta do custo de vida que levará à queda do
liberalismo e dos valores democráticos.
O fim da I Guerra Mundial significou o fim do poder do Kaiser e a criação da
República de Weimar ( 1918 – 1933 )3, de orientação social-democrata. Porém, esta não teve
meios de recuperar a economia devido aos pagamentos de divisas às nações vencedoras da
Guerra, as greves e os conflitos sociais, bem como o rápido processo inflacionário que
inviabilizou a economia gerando uma hiperinflação que provocou uma severa concentração de
rendas e o empobrecimento das classes médias e trabalhadoras a condição de miséria.
político direto, uma vez que os Estados colonizados, em sua grande maioria, puderam manter seus governos
nacionais ( PETTA: sd. ).
2 Documento assinado em 28 de junho de 1919 no Palácio de Versalhes, em Paris, por representantes de 32
países vencedores, sendo encabeçados pelos presidentes Thomas Woodrow Wilson ( EUA ), Georges
Clemanceau ( França ) e o primeiro-ministro David Lloyd Georges ( Inglaterra ) ( PETTA: sd., p.222 ).
3
República de Weimar Ao final da Primeira Guerra Mundial, instaurou-se na Alemanha a
República de Weimar, tendo como sistema de governo o modelo parlamentarista democrático. O
presidente da república nomeava um chanceler, que seria responsável pelo poder Executivo. Quanto
ao poder Legislativo, era constituído por um parlamento ( PETTA: sd, p. 221 ).
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Neste contexto, cresce o apoio ao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães, com idéias semelhantes ao Partido Fascista italiano, em que as camadas médias e a
burguesia vão procurar apoio para criar um governo forte que reprimisse as revoltas sociais e
trouxesse ordem ao caos econômico e político.
Em 29 de julho de 1921, Adolf Hitler tornou-se o chefe do Partido Nacional-Socialista
( Partido Nazista ), e em seguida começou um programa através do qual o Partido Nazista se
transformou numa organização radical e revolucionária.
Em 1933, Hitler é nomeado para o cargo de Chanceler, correspondente à chefia do
governo, e organizará várias emendas constitucionais e golpes que o tornarão em Chefe de
Estado, sendo chefe do governo e presidente do partido nazista em um só posto, instalando
um governo totalitário com total liberdade de ação.
Sendo isto após a morte do presidente Paul von Hindenburg, em agosto de 1934, Hitler adota
o título de Führer4 e funda o III Reich5 ( Império ).
Os anos que cobrem o período compreendido pelo III Reich ( 1933 – 1945 ),
encontram-se no Anexo I deste trabalho, desenvolvido pela Profª. Dra. Izabela Maria Furtado
Kestle6 ( UFRJ ).
É neste contexto que desenvolve-se a vida e história da família Bonhoeffer.
1.2 – Vida e Obra
“Muitos teólogos neste século ficaram famosos por suas teologias, mas pouco se
sabe sobre suas vidas. Bonhoeffer ficou conhecido pela maneira que viveu sua
teologia”. ( Paulo D. Siepierski )
4
Em alemão, “o condutor”, “guia” ou “líder”. É adotado por Hitler para designar o chefe máximo de todas as
organizações militares e políticas. Disponível em : http://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%BChrer > acesso em
04/01/07.
5 O I Reich teria sido o Sacro Império Romano-Germânico ou Santo Império Romano da Nação Germânica,
sendo um reagrupamento político das terras da Europa Ocidental e Central promovidas na Idade Média e
dissolvida por Napoleão Bonaparte em 1806; o II Reich teria sido fundado com a Unificação Alemã em 1871.
( PETTA: sd, p. 222 ).
6www.apario.com.br/index/boletim36/CRONOLOGIA%20DO&20III%20REICHEspecial2.pdf > acesso em
05/01/07.
17
“A compreensão da obra de qualquer teólogo parte do entendimento da parcela
de espiritualidade que envolve sua vida, seu tempo e sua fé”. ( Antonio Gouvêa
Mendonça ).
Dietrich Bonhoeffer, nasceu no dia 04 de fevereiro de 1906 na cidade de Breslau
( Wroclaw ), Alemanha, “mesma cidade que Schleiermacher ( 1978 )” ( CÂMARA: 2003,
p.53 ). Conforme nos aponta MILSTEIN ( 2006 ), é o sexto filho da família Bonhoeffer e
gêmeo de sua irmã Sabine. Seus irmãos e irmãs, com as respectivas profissões, são: Karl
Friedrich ( psiquiatra ), Klaus ( carreira jurídica ), Walter ( botânico ), Ursula ( pedagoga
social ), Christine ( biologa ), Sabine ( modelagem ), Susanne ( questões religiosas ).
Seu pai, Karl Ludwig Bonhoeffer, foi professor de psiquiatria e neurologia nos
hospitais, direcionado pelo estudo e pesquisa nas ciências naturais. Sua mãe, Paula
Bonhoeffer, era professora e escelente pianista de ascendência nobre, família von Hase.
Diante destas informações fica claro que a família Bonhoeffer era de origem burguesa
e possuía uma autêntica influência e ação na sociedade, haja vistas suas formações e
profissões, bem como aqueles que frequentavam sua casa “como Adolf von Harnack, Ernest
Troeltsch, Ferdinand Tönnies, Max Weber, entre outros” (SIEPIERSKI: 1995, p. 181 ).
Tendo vivido sua infância em Breslau até 1912 ( 06 anos ), Bonhoeffer7 e toda a
família mudam-se para Berlim, pois seu pai assume a cadeira de psiquiatria e neurologia, bem
como o cargo de diretor no hospital universitário de caridade em Berlim.
Tendo iniciado a I Guerra Mundial, em 1914, a família Bonhoeffer sofre com a
convocação de Walter para o exército, sendo que, em 23 de abril de 1918 é ferido e morre
cinco dias depois. Conforme os apontamentos de MILSTEIN ( 2006 ), Dietrich Bonhoeffer é
impactado e marcado pela morte de seu irmão, o que influenciará profundamente em seus
questionamentos existenciais.
Mesmo com seu grande talento como músico ( pianista ), Bonhoeffer decide iniciar
seus estudos na área de teologia em Tübingen ( 1923 ). Aos 18 anos vai para um período de
estudos em Roma e é marcado por uma missa na Basílica de São Pedro, na qual percebe a
multiplicidade e pluralidade etnica diante da unidade da pregação, devoção e fé, razão pela
qual afirma que “Igreja é universal e concreta” ( MILSTEIN: 2006, p.19 ), conceito que
marcará toda sua fundamentação teológica. Além disso, como nos apresenta OLIVEIRA
( 1997 ), Bonhoeffer leu cuidadosamente toda a obra de Nietzsche, que fizera um apelo
18
tremendo pelo mundo e a lealdade a suas criaturas, razão pela qual nunca deixou sua mente e
influenciou sua construção teológica.
É instruido em Berlim pelo teólogo Adolf von Harnack, cuja teologia era
fundamentada na relação entre Igreja e Estado, teologia tão atacada pelo até então jovem
pastor Karl Barth, que concentrava toda sua teologia e pensar na Palavra de Deus e em Jesus
Cristo, como afirma: “A Igreja não pode depender do Estado, mas também não deve ser
apolítica” ( MILSTEIN: 2006, p.21 ).
“...estudou com eruditos frequentemente considerados liberais, como Lietzmann,
Harnack, Seeberg ( aquele que o influenciou a se tornar um especialista na filosofia
de Hegel – grifo meu ), Deissmann ( líder do movimento ecumênico
jovem ), e Holl,
sendo que este último lhe introduziu ao cristianismo russo ortodoxo e levou-o a estudar o
russo, para ler Dostoiévski, Tolstói e Berdiaiev, em particular [...] a maior influência na
formação teológica de Bonhoeffer veio de Karl Barth, com quem nunca estudara...”
( SIEPIERSKI: 1995, p.181 ).
Em 1927, aos 21 anos, Bonhoeffer desenvolve uma pesquisa dogmática sobre a
sociologia da Igreja e escreve sua tese de doutorado em filosofia intitulada “Igreja –
Comunhão dos Santos”, onde afirma que “a Igreja é o Cristo que existe como comunidade”
( MILSTEIN: 2006, p.21 ). Assim, ele afirma que Cristo é a Palavra de Deus e não é apenas
pregado na Igreja, mas a Igreja em si, é este corpo de Cristo. “O título SANCTORUM
COMMUNIO mostrou a direção de pensamento dele. A comunhão dos santos é estudada não
objetivamente – de fora – mas subjetivamente – de dentro – com um compromisso ativo”
( SPURLOCK: 1987, p.09 ).
Entre os anos de 1928 e 1929, Bonhoeffer vai para uma comunidade alemã em
Barcelona desenvolver seu estágio prático para a formação pastoral, sendo que consegue uma
grande afeição das crianças, com quem começa seu ministério antes da ordenação. Volta em
1929 a Universidade de Berlim onde leciona teologia sistemática.
Em 31 de julho de 1930, aos 24 anos, proferiu sua preleção inaugural que acabou
levando seu superintendente superior, Max Diestch, a intermediar-lhe uma bolsa de estudos
de pós-doutorado por um ano no Union Theological Seminary, em New York ( EUA ).
7
Assumiremos o segundo nome Bonhoeffer como referência ao autor em todo o trabalho.
19
“... Union Seminary, em New York, um seminário liberal e academicamente de primeiro
grau. Bonhoeffer criticou a falta de seriedade teológica e a superficialidade de
pensamento do Union, em comparação com as escolas teológicas alemãs, mas gostou do
espírito de comunidade dos estudantes. Também envolveu-se com as igrejas “negras” de
Nova York e saiu de lá com um profundo senso de solidariedade com os negros dos
Estados Unidos” ( SPURLOCK: 1987, p.10 ).
Nestes estudos, será fortemente influenciado por três importantes fatores, sendo que o
primeiro foi as aulas que teve com Reinhold Niebuhr sobre teologia e atuação social, onde
havia um forte questionamento de como era possível correlacionar a fé cristã com uma
atuação social.
A segunda influência foi sua amizade com o francês Jean Lasserre, que era
representante dos ideais pacifistas com base nos mandamentos do Sermão do Monte,
influenciando profundamente Bonhoeffer.
Assim, a terceira influência foram os cultos e músicas spiritual negra, cuja temática
era a esperança por libertação e justiça.
Sendo assim, Jesus Cristo era o centro da reflexão de Bonhoeffer, sendo que poderia
ser experimentado concretamente e de forma viva na igreja, conforme afirma: “Comunhão
cristã é comunhão através de e em Jesus Cristo. Nessa pressuposição baseia-se todos os
ensinamentos e regras da Escritura acerca da vida em comunhão da cristandade”
( BONHOEFFER – Vida em Comunhão: 2003, p.15 ).
Justamente com o movimento ecumênico, trabalhou também em Cuba e México,
sendo que “em 1931 é ordenado pastor para St. Matthias Church em Berlim” (CÂMARA:
2003, p.53 ).
“Depois de sua volta a Berlim, no outono de 1931, ele iniciou suas atividades como Livre
Docente na Universidade, e aceitou três outras funções: capelão de estudantes em um
Colégio Técnico de Berlim, líder de uma classe de confirmação para um grupo de
meninos de uma área de favela, e Secretário da Comissão de Jovens da Aliança Mundial
para Amizade Internacional através das Igrejas e do Concílio Cristão Universal para a
Vida e Trabalho” (OLIVEIRA: 1997, p.11 ).
Em 1932 a Alemanha passa por uma profunda depressão econômica e o Partido
Nacional-Socialista começa a desenvolver sua ascensão ao poder por intermédio de Adolf
20
Hitler. No dia 1 de Abril de 1933 o Partido Nacional-Socialista conclama toda a população
alemã a boicotar as lojas dos judeus, inclusive usando as tropas da SS (abreviatura de
Schutztafel, “escudo de protecção” - organização paramilitar pertencente ao partido nazista
alemão ) e SA (Sturmabteilung , sinônimo em alemão de "Seção Tormenta", na prática
reconhecida como "Tropas de Assalto", foi a milícia paramilitar nazista durante o período em
que o Nacional Socialismo exercia o poder na Alemanha ).
“Retornado à Alemanha, foi como representante da delegação da juventude alemã
participar da reunião da Aliança Mundial de Igrejas em Cambridge, onde foi eleito
secretário da juventude para a Alemanha e Europa Central. Seu envolvimento no mundo
ecumênico foi crucial para seu alinhamento na oposição evangélica a Hitler quando os
nazistas ganharam as eleições de 1932. Negando a cláusula ariana e questionando o
conceito de Führer, Bonhoeffer encontrou-se incapaz de permanecer no meio eclesiástico
oficial. Após um semestre repleto de conflitos devido a pressão do socialismo nacional
sobre as igrejas, Bonhoeffer pediu licença da Universidade e no final de 1933 foi para
Londres pastorear igrejas alemãs, onde passou um ano e meio. Lá aprofundou se
conhecimento sobre o pacifismo de Gandhi, além de fortalecer seu vínculo com o
movimento ecumênico, especialmente através do bispo de Chichester, George Bell, o que
o colocou mais e mais em oposição a política do Reich” ( SIEPIERSKI: 1995, p.182 ).
Neste mesmo ano, Bonhoeffer foi um dos primeiros teólogos a falar sobre o tema “A
Igreja e a questão dos judeus”, onde destaca a necessidade do compromisso da Igreja para
com as vítimas e do questionamento da ação do Estado.
Na Igreja Evangélica Luterana havia um grande número de partidários do NacionalSocialismo e de Hitler, aqueles que incorporaram o “Princípio do Lider” ( Führerprinzip ) à
Igreja, os chamados “teuto-cristãos”.
De 29 a 31 de maio de 1934 ocorreu uma assembléia em Barmen, perto de Wuppertal,
onde foi criada a Igreja Confessante ou Igreja da Confissão, que opunha-se decididamente
contra os “teuto-cristãos”, seguidores de Hitler.
A Igreja Confessante, que desenvolvia-se na ilegalidade, desvinculada da Igreja oficial
e do Estado, criou cinco seminários de pregadores para os teólogos que haviam passado pela
formação oficial.
21
“Estas igrejas foram cortadas dos orçamentos da Igreja Nacional, pois não se curvaram
à nova teologia. Os pastores ou saiam para encontrar igrejas com este novo pensamento
ou ficavam, mas sem remuneração. As igrejas ligaram-se ao “Bruderrat”, um concílio de
irmãos, secreto, que sustentava aos pastores para o ministério fiel do Evangelho.Eles
formaram um seminário secreto em Finkenwalde e convidaram Dietrich Bonhoeffer para
ser reitor e professor” ( SPURLOCK: 1987, p.11 ).
Ainda em 1934 é membro do Concílio Cristão Universal para a Vida e o Trabalho,
onde trabalhou rigorosamente em prol de desafiar as igrejas ao movimento ecumênico e para
uma responsabilidade pela paz ( CÂMARA: 2003 ).
Vindo dirigir o seminário da Pomerânia, em Finkenwalde, este tinha como prioridade
uma vida de reflexão e devoção através da oração e leitura de textos bíblicos, bem como o
cantar hinos, mesmo canto gregoriano, e o meditar, ou seja, procuravam a máxima
concentração interna para poderem servir para fora, onde desenvolvem uma teologia prática
com base no discipulado.
“Seu primeiro livro popular foi publicado em 1937. Nele, um estudo do sermão do
monte, O Preço do Discipulado, Bonhoeffer critica profundamente a graça barata e
lança um desafio para um discipulado exigente, caro” ( SIEPIERSKI: 1995, p.182 ).
Friedrich Weissler, protestante de descendência judaica, foi o primeiro martir da Igreja
Confessante, morrendo sob tortura da SS no campo de concentração de Sachenhausen em 19
de fevereiro de 1937. Em 29 de abril de 1937, o seminário de Finkenwalde é fechado pela
Gestapo ( sigla em alemão de Geheime Staatspolizei, significando polícia secreta do Estado ),
“por ordem de Himmler, o chefe da temida SS de Hitler” ( WIESE: 1995, p.221 ) e
Bonhoeffer dá a cada um de seus discípulos um exemplar de sua obra “Discipulado”.
No dia 20 de abril de 1939, celebração do 50º aniversário de Hitler, a Igreja Nacional
Luterana, oficial alemã, programa um presente de aniversário onde todos os pastores
deveriam fazer um juramento de fidelidade ao Führer. Os teólogos da Igreja Confessante se
negam e isto lhes custa a demissão e ilegalidade, conforme MILSTEIN ( 2006 ).
A pedido e preocupação de seus amigos Reinhold Niebuhr e Paul Lehmann,
Bonhoeffer parte para os EUA em 02 de junho de 1939 e chega em New York no dia 12. Mas,
motivado por sua convicção de pastor e princípios cristãos, bem como teológicos, volta para a
22
Alemanha no dia 25 de julho e chega em agosto, um mês antes da invasão alemã na Polônia e
início da II Guerra Mundial.
Em 1 de setembro de 1939 eclode a II Guerra Mundial com a invasão da Polônia pelo
exército alemão e a Igreja oficial luterana alemã celebra um culto de ações de graças em
virtude das vitórias do exército alemão e por considerar Hitler o maior estrategista de todos os
tempos, como nos aponta MILSTEIN ( 2006 ).
Diante desta situação, uma ética teológica que excluia a ação política era inimaginável
para Bonhoeffer, razão pela qual se alia a seus cunhados Hans von Dohnanyi ( secretário
pessoal do Ministro da Justiça ), Rüdiger Schleicher e seu irmão Klaus Bonhoeffer num
círculo de resistência aos ideais de Hitler, pois, como perguntava constantemente a seus
alunos:
“... como os cristãos devem se comportar diante de um governo tirânico, quando a
necessária resistência deve começar, o que deve ser feito para mudar a situação ? A
resposta encontrada é que sua tarefa não era apenas socorrer as vítimas de loucos que
dirigem nas ruas cheias de gente, mas fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para
impedí-los de dirigir” ( SIEPIERSKI: 1995, p. 182-183 ).
Em setembro de 1940, Bonhoeffer é acusado de atividade subversiva e proibido de
fazer qualquer discurso em público, além de ser obrigado a relatar seus movimentos
regularmente à polícia. Nesse período, ele se retira para o mosteiro católico de Ettal e dedicase a escrever o que viria a ser sua obra “Ética”.
Em 1942, em sua ida para Berlim numa curta visita em Klein-Krössin, para o encontro
da resistência, Bonhoeffer se encontra com Maria von Wedemeyer, uma jovem de 18 anos
que veio da tradicional região agrícola de Neumark, por quem se apaixona e ambos vivem um
noivado e romantismo por cartas, devido a real situação de Bonhoeffer, sendo inclusive
investigado pela Gestapo.
Em cinco de abril de 1943, Bonhoeffer é detido e levado para a prisão militar de
Tegel, enquanto sua irmã Christine foi encarcerada em Charlottenburg e seu marido Hans von
Dohnanyi foi levado à prisão do Estado Maior , em Lehrte.
Neste momento, Paul von Hase, tio de Bonhoeffer, era general-de-brigada e
comandante da cidade e da prisão militar de Tegel, razão pela qual Bonhoeffer teve menos
perseguições e sofreu menos o impacto durante os dezoito meses que ficou preso e escreveu o
que posteriormente ficou conhecido como “Cartas e Textos da Prisão”. “Da prisão,
23
Bonhoeffer foi capaz de manter uma extensa correspondencia com seus pais, sua noiva e seu
amigo íntimo Eberhard Bethge” ( OLIVEIRA: 1997, p.12 ).
Em 08 de outubro de 1944 é transferido de Tegel para o quartel general da Gestapo e
em 07 de fevereiro de 1945 é levado para o campo de concentração Buchenwald (localizado
no atual estado da Turíngia – Thüringen - no leste da Alemanha ).
“Com o fracasso de Stauffenberg e seus oficiais na tentativa de assassinar Hitler em 20
de julho de 1944, o exército alemão ficou sob total controle da Gestapo. Em 22 de
setembro documentos secretos do ABWEHR ( “Contra Espionagem” – grifo meu ) foram
encontrados pela Gestapo em Zossem. Uma semana depois o general von Hase é
enforcado. Bonhoeffer trama então um plano para escapar, mas o plano é abandonado
pois seu irmão também é preso. Em 08 de outubro ele é transferido para a prisão central
da Gestapo na Prinz-Albrecht-strasse, onde é submetido a intenso interrogatório e em
fevereiro é levado secretamente para o campo de concentração de Buchenwald”
( SIEPIERSKI: 1995, p.184 ).
Sendo recolhido em um ônibus e indo rumo ao sul, este quebra e abrigam-se em uma
escola em Schönberg.
No domingo, após a Páscoa, Bonhoeffer é solicitado a fazer uma meditação ( Is 53:05;
I Pe 1:03 – Senhas Diárias ), onde após é levado por dois homens ao temido campo de
concentração de Flossenbürg por ordem expressa de Hitler ( SIEPIERSKI: 1995 ).
Neste campo, foi enforcado no dia 09 de abril de 1945, aos 39 anos, sendo que seu
corpo foi incinerado com milhares de outros e enterrado a apenas uma semana antes da
ofensiva soviética sobre a cidade de Berlim ( 16 de abril de 1945 ) e “dois dias antes da
libertação de seu campo de concentração” ( SPURLOCK: 1987, p.13 ).
Conforme nos aponta Camara ( CÂMARA: 2003, p.54-55 ), “é nitida a impressão de
que Bonhoeffer intercala em seus escritos a sua própria vivência, como se fosse um constante
diálogo... Eberhard Bethge, seu cunhado e aluno, publica postumamente seus escritos a
partir de cartas, fragmentos de idéias nos mais diversos tamanhos e estilos de papéis”.
“ Bethge apresentou uma série de preleções em Chicago, nas quais ele distinguiu três
períodos na teologia de Bonhoeffer: Fundação, 1927 – 1933; concentração, 1933 –
1940; e liberação, 1940 – 1945. Estes períodos correspondem às atividades teóricas,
24
práticas e políticas de Bonhoeffer. Teológicamente estes mesmos períodos podem ser
chamados de dogmático, exegético e ético” ( OLIVEIRA: 1997, p.13 – 14 ).
Assim, podemos elencar as obras de Bonhoeffer a partir da seguinte ordem
cronológica:
- 1927 – Sanctorum Communio ( Comunhão dos Santos – uma contribuição dogmática
à sociologia da Igreja );
- 1931 – Ato e Ser ( uma análise da filosofia transcendental e ontologia na teologia
sistemática );
- 1934 – Criação e Queda;
- 1937 – Discipulado;
- 1938 – Vida em Comunão;
- 1949 – Ética ( póstuma );
- 1953 – Tentação ( póstuma );
- 1958 – Coletânea de Obras ( póstuma ).
25
Capítulo II – Discipulado – Repensando os Paradigmas da Vocação Cristã em
Bonhoeffer
2.1 – Discipulado
“Quando as Escrituras Sagradas falam do discipulado de Jesus, proclamam a
libertação do ser humano de todos os preceitos humanos, de tudo quanto oprime,
sobrecarrega, provoca preocupações e tormentos à consciência”. ( Bonhoeffer )
Para que possamos compreender a idéia que Bonhoeffer tinha a respeito de uma
espiritualidade totalmente voltada para o desenvolvimento de uma vocação cristã autêntica,
faz-se necessário compreender a construção teológica do conceito que formulou sobre o
discipulado.
De acordo com o pensamento de Bonhoeffer, o mundo não existe e subsite
independente da vontade soberana de Deus ( FILHO: 1977 ).
Deus manifestou sua vontade soberana por intermédio da encarnação de Jesus Cristo,
revelando o próprio Deus e o verdadeiro ser humano, ou seja, na encarnação, Deus entra na
realidade humana, física, temporal.
Sendo o discípulo um seguidor, imitador, aquele que tem um compromisso
incondicional com Cristo, busca no seu viver descobrir a totalidade ( plenitude ) da realidade
do mundo a partir da realidade divina. Assim, não se pode ser utenticamente discípulo de
Cristo fora da realidade do mundo.
“Somente em Cristo o verdadeiro relacionamento pode ser estabelecido: em sua
encarnação, Deus entra na realidade humana; em sua crucificação, o julgamento divino
se estende sobre toda a realidade humana; em sua ressurreição, Deus manifesta a sua
disposição de criar uma nova realidade” ( FILHO: 1977, p.38 ).
Desta forma, o viver e agir do discípulo diante de uma ética cristã autêntica, deve levar
em conta que isolar Cristo do mundo é negar sua encarnação, ou seja, ele deve expressar a
realidade de Deus na realidade humana, sempre evitando uma postura apenas centralizada na
cruz, o que nos leva a uma ética baseada em um relacionamento radical, bem como evitar uma
26
ética centralizada na ressurreição, o que poderia-nos conduzir a um relacionamento
triunfalista, conforme FILHO ( 1977 ).
Biéler ( 1969 ) nos afirma que como origem e fim da história dos seres humanos, o
alfa e o ômega, Jesus Cristo é também a origem e o fim de toda a criação que dá à história o
início e o contexto para seu cumprimento. Na sua divindade, Cristo é o autor dessa história e
dessa criação ( Jo 1; Cl 1; Hb 1 ), mas na sua humanidade, é também o seu acabamento final.
Sendo assim, a originalidade e ênfase de Bonhoeffer está no fato de que a teologia não
pode falar “de” ou “sobre” Deus sem falar, ao mesmo tempo, da realidade do ser humano
inserido na realidade do mundo, pois a realidade de Deus expressa-se na realidade humana.
“Obviamente, todo discurso teológico cristão sobre o homem supõe a cristologia. Jesus
Cristo, para a fé cristã, é o protótipo do humano, o modelo do que significa ser humano.
É alguém plenamente aberto a Deus e os seres humanos, alguém que vive intensamente e
com toda radicalidade o amor-serviço. Alguém que vive uma liberdade plenamente
adulta, como um serviço real, especialmente em relação aos mais fracos e
marginalizados; alguém que vive uma intensa, profunda e única experiência de Deus;
alguém que se entrega pelos outros até as últimas consequências. Para ser realmente
humano, segundo a fé cristã, o homem deverá seguir o caminho percorrido por Jesus
Cristo, vivendo a existência da “nova criatura”. O homem verdadeiro – e o Deus
verdadeiro – é revelado na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo” ( RUBIO:
2001, p. 85 – 86 ).
Em Cristo, o discípulo não temerá em participar da realidade humana e,
consequentemente, da vida do próximo, pois tal ética cristã baseia-se na realização da vontade
de Deus na realidade humana, tendo o discípulo a consciência liberta da escravidão da Lei,
“liberta de preceitos humanos, de tudo quanto oprime, sobrecarrega, provoca preocupações
e tormentos à consciência” ( BONHOEFFER: 2004, p.06 – 07 ).
Toda a Teologia e Cristologia de Bonhoeffer estão ligados à criação e,
consequentemente, vão em direção ao mundo. Cabe aqui lembrar que Bonhoeffer vivia numa
realidade de mundo baseada num ateísmo promovido pelos próprios cristãos, onde apenas o
testemunho, o viver muito mais que o falar, podia anunciar Cristo e denunciar a realidade
corrompida pelo pecado, mesmo que isso significasse martírio.
27
O chamado de Jesus Cristo ao discipulado é um apelo à obediência, sendo uma
resposta e consequência da graça divina, onde o discípulo vive uma mudança de direção em
sua vida e é colocado por Cristo e a partir de Cristo em uma situação em que pode crer.
“No confronto com Jesus Cristo o ser humano ouve o chamado de Deus e nele o
chamamento para uma vida na comunhão de Jesus Cristo. O ser humano experimenta a
graça divina que o reivindica. Não é o ser humano que procura a graça em seu lugar –
Deus “habita numa luz inacessível” ( I Tm 6:16 ) - , mas é a graça que procura e acha o
ser humano em seu lugar – “O verbo se fez carne” ( Jo 1:14 ) – e o reivindica-o
exatamente aqui [...] A visitação da graça ao ser humano aconteceu na encarnação de
Jesus Cristo e ela continua acontecendo na Palavra de Jesus Cristo trazida pelo Espírito
Santo. O chamamento atinge o ser humano na condição de pagão ou judeu, escravo ou
livre, homem ou mulher, casado ou solteiro. Ele deve ouvir e atender o chamado lá onde
estiver” ( BONHOEFFER: 2005, p.141 – 142 ).
O caminho da obediência não é uma conquista isolada de alguns ou por caráter
meritório ( como se quer o paradigma monástico ), mas é para todos os cristãos.
“Muitos dos mandamentos de Jesus ligam a revelação com a obediência. “Se vocês
obedecerem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor” ( Jo 15:10 ). “Se
vocês permanecerem firmes na minha palavra, verdadeiramente serão meus discípulos”
( 8:31 ). “Se alguém obedecer a minha palavra, jamais verá a morte” ( 8:51 ). Jesus
convidava algumas vezes o povo a “crer nisto”; com mais frequência, porém, disse
“Faça isso, e viverá ( Lc 10:28; veja também Mt 19:21 )”. ( STEVENS: 2005,
p. 206 ).
Para Bonhoeffer, na realidade de seu tempo, a obediência a Cristo e seus princípios só
poderiam expressar-se de duas formas: entrar em um mosteiro e isolar-se da realidade do
mundo, ou, participar ativamente dos acontecimentos políticos, “... atirar-se nos raios da
roda” ( MILSTEIN: 2006, p. 38 ).
Assim, obediência significa engajar-se na obra que Deus faz no mundo, submissão à
sua vontade, , a qual pode expressar-se em rompimento com o mundo ou no estabelecimento
do santuário de Deus em meio ao mundo, através da comunhão e na participação dos
sofrimentos de Cristo, lutando por um lugar para Cristo no mundo, sendo um discípulo.
28
Neste ponto, cabe ressaltar que há uma profunda relação entre justificação e
santificação para Bonhoeffer, pois ambas, apesar de não serem idênticas, têm como
fundamento a comunhão com Cristo.
A justificação propicia ao ser humano um benefício já realizado por Deus, coloca o ser
humano em comunhão com Jesus Cristo; coloca em relevo o relacionamento do ser humano
com a Lei; incorpora o indivíduo na Igreja; é a participação do ser humano na nova criação de
Deus.
Já a santificação, promove uma ação presente e futura de Deus; mantém o cristão em
Cristo e na Igreja ( no seu lugar ); coloca o ser humano numa relação de ruptura com o mundo
e, ao mesmo tempo, engajamento na realidade; incorpora o cristão na comunhão com todos os
seres humanos; é a continuação da permanência do cristão na nova criação de Deus.
Portanto, a partir desta distinção fica claro que a ética social tem sua base na
santificação e não na justificação, ou seja, a igreja e o mundo estão separados, não se
confundem. Mas, é a partir da Igreja que a Palavra de Deus é anunciada ao mundo,
proclamando que a terra inteira pertence a Deus ( FILHO: 1977 ).
Diante da diferenciação destes dosi conceitos, Bonhoeffer diferencia o que entende por
“graça barata” e “graça preciosa”.
A “graça barata” é a graça como um sistema de leis e doutrinas, a justificação do
pecado e não do pecador, a pregação do perdão sem arrependimento. Ou seja, uma vez
entendendo-se que estou justificado por Deus ( salvo ), meu compromisso ético e social com a
realidade passa a ser relativo às minhas vontades e decisões pessoais arbitrárias.
Contrariamente, a “graça preciosa” é justamente preciosa no sentido de ter um alto
custo, ou seja, é baseada no sacrifício de Cristo, o alto preço do Evangelho baseado no negarse a si mesmo, tomar a cruz e seguir a Cristo.
Não resistindo ao chamado da graça preciosa, o verdadeiro discípulo de Cristo é
aquele que fundamenta sua vida na prática de uma obediência simples e sincera a Cristo
( santificação), obediência como submissão à vontade de Deus e em conformidade com os
sofrimentos de Cristo. Deve participar dos sofrimentos com Cristo, uma vez que são
justamente estes sofrimentos que o caracterizam como discípulo de Cristo de acordo com a
paradoxal realidade da cruz ( Mt 8:31-38 ).
Nisto, o chamado de Jesus ao discipulado faz do discípulo um indivíduo que tem que
tomar sua decisão sozinho, ou seja, pode ter uma livre decisão de romper sua relação imediata
com o mundo para que, a partir de então, sua relação com a realidade do mundo seja mediada
29
por Cristo, que se faz não apenas mediador entre eus e os homens, mas também entre os
homens entre si.
Bonhoeffer deixa claro que Cristo é
a concretização do mandamento divino e
mediador entre Deus e a realidade, razão pela qual ele é a manifestação visível do “Sermão do
Monte” e o único que pode concretizar seus altos ideais e princípios na vida do discípulo,
constituindo-se o fundamento de sua ética cristã, baseada na vontade de Deus que se fará
conhecida em relação ao conhecimento de Cristo, testemunhando de sua presença e senhorio
no mundo.
“A partir do sermão do monte, Bonhoeffer ilustra a concretude do discipulado e a função
mediadora de Cristo, que abrange todas as esferas do relacionamento humano. Aqui
encontramos uma das afirmações cristológicas centrais em Discipulado. A mediação de
Cristo é uma categoria histórica que mantém o aspecto pessoal do compromisso com o
mundo” ( WIESE: 1995, p.222 – 223 ).
A vontade divina não é uma idéia a ser concretizada, mas é uma realidade que está
sempre se tornando nova, embora já tenha sido cumprida integralmente por Jesus Cristo, que
reconciliou o mundo com Deus – Pai.
“Conhecer a vontade de Deus implica, necessariamente, conhecer a realidade. E não se
pode conhecer a vontade divina, nem a realidade humana, sem o conhecimento de Cristo.
Se conhecermos verdeiramente a Cristo e somos-lhe obedientes, ele vive em nós. Então,
vivemos em amor sempre crescente, vivendo a vida de reconciliação com Deus e o
próximo. A origem, essência e alvo de nossa existência é Deus e o próximo, na medida
em que eles se encontram conosco em Jesus Cristo. [...] Conhecer a vontade divina é
discernir aquilo que já foi revelado e cumprido em Cristo” ( FILHO: 1977, p. 49 -50;
56 ).
Para Bonhoeffer, em síntese, todo critério do conceito de discipulado parte de uma
teologia bíblica que procura fundamentar a humanidade de Cristo estando diretamente
relacionada a uma participação integral na vida da realidade do mundo, uma humanidade que
comporta em si a humanidade de todos os homens. Por outro lado, se Cristo é o homem para
os outros, não se pode crer nele sem ser seu discípulo, sem obedecer-lhe, sem atender ao
chamado da graça preciosa, sem viver para os outros, sem segui-lo. “Para isso vocês foram
30
chamados, pois também Cristo sofreu no lugar de vocês, deixando-lhes exemplo, para que
sigam os seus passos” ( I Pe. 2:21 ).
“O grito de Bonhoeffer é contra a religião institucionalizada, na qual o ‘ato religioso’ é
sempre algo parcial; ‘fé’ é alguma coisa completa, envolvendo o todo da vida de alguém.
Jesus chama homens, não para uma nova religião, mas para a vida. [...] A teologia de
Bonhoeffer era de envolvimento. Ser cristão era estar envolvido em uma forma de vida
no mundo. Esta era a própria maneira de Deus através de Jesus Cristo. O cristão não é
um homo religiosus, mas simplesmente um homem como Jesus foi um homem”
( OLIVEIRA: 1997, p. 16 – 17 ).
2.2 – Vocação Cristã
“Viver em conformidade com Jesus Cristo, nisso se resume a vivência da nossa
vocação humano-cristã integral”. ( Pe. Rubio )
A partir da análise do conceito de discipulado, fica evidente qual o conceito de
vocação cristã para Bonhoeffer, estando diretamente relacionado ao poder criador de Deus no
mundo, em Jesus Cristo, a partir do que chamará de os “Quatro Mandatos”: trabalho,
matrimônio, autoridade e a Igreja.
“Deus quer que haja neste mundo trabalho, matrimônio, autoridade e Igreja, e ele deseja
tudo isso por intermédio de Cristo, em função de Cristo e em Cristo, cada qual à sua
maneira. Deus colocou os seres humanos sob todos estes mandatos; não colocou cada
um sob um desses mandatos, mas todos os seres humanos sob todos os quatro. Não
existe, portanto, uma retirada de uma ‘esfera mundana’ para uma ‘espiritual’; existe,
apenas, o aprendizado da vida cristã sob os quatro mandatos de Deus. [...] Trabalho,
matrimônio, autoridade e Igreja não são ordenados por Deus porque existem, pelo
contrário: existem porque são ordenados por Deus, e só são mandatos divinos na
medidas em que sua existência se submete – consciente ou inconscientemente – à
incumbência divina” ( BONHOEFFER: 1995, p. 117 ).
31
Desta forma, Bonhoeffer coloca a forma como o discípulo agirá e desenvolverá sua
ética cristã inserido na realidade concreta do mundo, a partir da não dicotomização do ser
humano, mas de sua integralidade.
“A realidade de Deus não permite mais a reflexão em duas esferas, uma sacra e outra
profana. Ela envolve o mundo humano integralmente: trabalho, matrimônio, autoridade
e igreja, os quais devem existir por intermédio de Cristo, em função de Cristo e em
Cristo” ( WIESE: 1995, p. 224 – 225 ).
Para que possamos compreender a importância dos ‘Quatro Mandatos’, faz-se
necessário conceituar-mos vocação a partir de seus pressupostos etimológicos e bíblicoteológicos.
Etimológicamente, ou seja, a partir de sua raiz semântica, a palavra vocação deriva do
verbo latino vocare, que significa “chamar”. É a tradução do termo ‘vocatione’, que quer dizer
chamado, chamada, convite, apelo. Por detrás destes termos está a raiz ‘vox’, ‘vocis’, isto é,
voz.
Sendo assim, vocação quer dizer chamamento ou chamado, conforme nos especifica
Oliveira ( 1999 ).
No conceito de vocação o que aparece em primeiro lugar é o ato de chamar, o
chamado. Por outro lado, a aptidão e a inclinação natural são secundários, pois vêm como
resposta à proposta recebida. Assim, antes da inclinação encontra-se algo muito mais
essencial, algo que fundamenta e dá sentido ao gosto pessoal e à tendência.
Porém, do ponto de vista teológico, a vocação é o chamado de Deus dirigido a toda
pessoa humana, seja em particular ou em grupo, em vista da realização de uma missão ou
serviço em favor da comunidade e da criação de uma forma geral. Nisto,“(...) podemos definir
a pessoa como um indivíduo dotado de autonomia quanto ao ser, de autoconsciência, de
comunicação e de autotranscendência” ( MONDIN: 1980, p. 297 )8.
Desta forma, atinge todos os seres humanos pois todos são convocados por Deus, uma
vez que deseja que todos os seres humanos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da
8 Conforme Mondin ( 1980 ), estas características principais da personalidade foram reconhecidas pelos
seguintes filósofos da antiguidade e modernidade: a autonomia quanto ao ser ( Boécio, Tomás de Aquino,
Guardini ), a autoconsciência ( Descartes, Fichte, Hegel ), a comunicação ( Buber, Marcel, Nédoncelle ), a
autotranscendência ( Blodel, Heidegger, Brightman ).
32
Verdade. Todo ser humano tem o chamado superior daquele que o criou e chamou à
existência.
“Desde a eternidade, Deus fez seu plano divino sobre todas as criaturas. A vocação de
toda a criatura, especialmente a do homem ( ‘sentido antropológico’ – grifo meu ),
consiste em realizar o plano de Deus delineado por aqueles dons que o criador depositou
nele” ( OLIVEIRA: 1999, p. 21 ).
Assim, a vocação não é algo criado pelo ser humano, mas é iniciativa de Deus em
chamar e cabe ao ser humano apenas responder a esse chamado. Ou seja, ao ser humano
cabe apenas aceitar o convite do apelo divino: “Vocês não me escolheram, mas eu os
escolhi para irem e darem fruto, fruto que permaneça...” ( Jo 15:16 – NVI ).
“Toda vida é vocação. No desígnio de Deus, todo homem tem um chamado. Chamado a
responder ao desígnio de Deus para a sua vida e para a de seus irmãos; em outras
palavras, a seguir o traçado de desenvolvimento previsto por Deus para sua vida e a de
seus irmãos. E esse desenvolvimento é global ... é do homem todo e de todos os homens,
de cada homem integralmente e da humanidade inteira” ( BIÉLER: 1969, p. 09 – 10 ).
Por isso, não podemos reduzir a vocação à uma simples inclinação ou aptidão pessoal,
ela é muito mais que isso. A vocação não é algo limitado apenas ao campo do
relacionamento com Deus, mas permeia todo o ser da pessoa humana, desde sua realização
como homem e como mulher até a escolha concreta daquele serviço específico que lhe
permitirá participar da vida plena do Reino de Deus.
Tal chamamento deve ser vivido na história, no cotidiano, no dia-a-dia da vida, ou
seja, a vocação em si não é algo abstrato, teórico, hipotético, mas na realidade da
existência concreta do homem e da mulher, onde para ser imagem e semelhança de Deus é
vocação para a relação, para a autêntica vivência das relações interpessoais, sempre em
busca de comunhão.
É importante que leve-se em consideração a dimensão antropológica do ser humano, pois...
33
“pensa-se que seja suficiente a preocupação com a dimensão espiritual. Com certa
frequência tende-se a esquecer as exigências da natureza humana, assim como foi criada
por Deus. Mas o ‘Deus do diálogo’, da eleição e da aliança não aniquila a história
humana. Pelo contrário, é nos fatos e acontecimentos que formam a sua trama que Ele
manifesta seus desígnios e propósitos salvíficos” ( OLIVEIRA: 1999, p. 121 ).
Conforme nos aponta Rubio ( 2005 ), a vocação pessoal cristã tem seu fundamento
bíblico-teológico no conceito de “imagem de Deus” ( Gn 1:26 – Imago Dei ), como sendo a
pessoa humana criada homem e mulher, dotados de capacidades e possibilidades de
desenvolverem sua personalidade.
Este sentido de vocação parte de uma visão integrada do ser humano, tendo justamente
no projeto de Deus o desejo de que se desenvolva de forma inclusiva, ou seja, consigo próprio
( relações de interiorização ) e com o próximo e a realidade do mundo no qual esta inserido
( abertura ).
Para que o ser humano seja realmente uma pessoa, tal desenvolvimento só é possível a
partir de sua relação com Deus, com o mundo criado ( criação ) e com os outros seres
humanos. Ou seja, o ser humano é um ser relacional e não é possível abordar os aspectos
relativos à vocação humano cristã da pessoa sem levar em conta seu contexto cultural,
econômico, político, social, linguístico, ecológico, religioso, eclesial, etc, pois, todos os
significados organizados dentro de uma mentalidade cultural é o que define sua identidade,
como fonte de significados e experiências específicas de um povo e de sua realidade cultural.
A finalidade última da vocação pessoal cristã é que vivamos um relacionamento de
participação “da autocomunicação da Vida mesma de Deus” ( RUBIO: 2005, p.09 ), sendo
salvos e libertos da escravidão do pecado.
“Seu divino poder nos deu tudo de que necessitamos para a vida e para a piedade, por
meio do pleno conhecimento daquele que nos chamou para sua própria glória e virtude.
Dessa maneira, ele nos deu suas grandiosas e preciosas promessas, para que por elas
vocês se tornassem participantes da natureza divina e fugissem da corrupção que há no
mundo, causada pela cobiça” ( II Pe 1:03-04, NVI ).
Sendo assim, distinguiremos dois aspectos básicos constitutivos do ser pessoal: a
interiorização ( imanência ) e a abertura ( transcendência ).
34
Na interiorização ou imanência, a pessoa deve estar centrada em si própria, orientada
para a própria interioridade, podendo desdobrar-se da seguinte maneira:
- Autopossessão: a pessoa possui autonomia própria ao nível ôntico ( dona da própria
vida ), sendo que qualquer tipo de escravidão torna-se um atentado direto à sua dignidade.
- Liberdade e responsabilidade: a pessoa é capaz de escolher determinados valores por
si e a partir de si mesma, assumindo a responsabilidade do que foi decidido e das opções
feitas. Assim, todo e qualquer tipo de manipulação causa repulsa à sua dignidade
( autoresponsabilidade ).
- Perseidade: tendo a pessoa em si mesma a sua própria finalidade, procura autorealizar-se em seu agir. Assim, não deve ser medida por critérios meramente utilitários. Sendo
Deus a finalidade última do ser humano, sendo revelado por Jesus Cristo, fundamento do ser
pessoal do ser humano, longe de instrumentalizá-lo, o impulsiona a auto-realizar-se conforme
sua realidade pessoal ( autofinalidade ).
“Viver puramente em função do outro ( pessoas, ideologias, sistemas,... ), descuidando
sua autofinalidade, aliena a pessoa, desumanizando-a. Viver em função do Deus-Ágape,
faz com que a pessoa seja mais ela mesma, realizando a sua própria finalidade”
( RUBIO: 2001, p.308 ).
Já a dimensão de transcendência ou abertura comporta os seguintes aspectos
fundamentais:
- Abertura ao mundo: sendo o ser humano imagem de Deus e criatura entre as
criaturas, é chamado a trabalhar o mundo para transformá-lo em moradia digna de forma
responsável.
- Abertura aos outros: o ser humano como pessoa constitui-se a partir do sair de si para
o encontro em diversos níveis. “A liberdade, autonomia e autofinalidade da pessoa se realiza
na relação, no diálogo, no encontro, na abertura aos outros seres pessoais” ( RUBIO: 2001,
p.310 ).
- Abertura a Deus: esta é a dimensão mais íntima e radical de toda a criatura, pois,
sendo um ser pessoal como imagem de Deus, o ser humano é chamado a assumir e a viver
consciente e livremente a relação com Deus, sendo uma relação dialógica. Contudo, não
podemos ignorar o fato de que a relação ser humano-Deus não deve ser mal compreendida,
35
pois a abertura a Deus implica sempre compromisso com a justiça e com o amor e serviço
solidário ( “graça preciosa” ).
Sendo assim, “é o sujeito ou pessoa humana ( “pessoa concreta” – grifo meu ) quem,
no concreto, se realiza só nas relações, consigo mesma, com o mundo da natureza, com os
outros seres pessoais e, na dimensão mais profunda, com Deus” ( RUBIO: 2001, p.312 ), e é
no dinamismo de sua existência que devera articular de forma satisfatória as duas dimensões,
transcendente e imanente, sendo que, o amadurecimento do ser humano ( pessoa ) não poderá
ser realizado sacrificando uma dimensão em razão da outra.
O crescimento só se realiza no dinâmico inter-relacionamento entre as dimensões de
imanência e abertura, pois, justamente por ser pessoa é que o ser humano é chamado a se abrir
ao encontro com outras pessoas, seja nas relações familiares, comunitárias e sociopolíticas. É
na relação que o ser humano descobre e aprofunda a própria identidade na história concreta,
através de todas as estruturas que a constituem, seja política, religiosa, social, etc.
Bonhoeffer
compreendeu
que
se
estas
estruturas
oprimem,
massificam,
despersonalizam ou impedem o ser humano de se desenvolver como pessoa, o cristão
( discipulo ) não pode ficar indiferente, limitando-se a invocar tais princípios de liberdade e
dignidade da pessoa humana de forma abstrata. “Se o valor de cada pessoa humana for
levado a sério ( tal como têm feito os santos em toda a história da Igreja ), é mais do que
evidente que a sociedade não poderia continuar como está” ( RUBIO: 2001, p.315 ).
2.3 – A Doutrina dos Quatro Mandatos
Para compreendermos o significado da doutrina dos quatro mandatos de Bonhoeffer, é
necessário compreender o que o autor entende por “mandato”.
Sob o termo ‘mandato’, Bonhoeffer ( 2005 ) entende que é uma incumbência divina
concreta que está fundamentada na revelação de Cristo e testemunhada pela Escritura, sendo a
autorização e legitimação para o desempenho de um determinado mandamento divino, bem
como a concessão de autoridade divina a uma instância terrena, ou seja, a forma como Deus
continua exercendo o seu poder criativo no mundo. Deve ser entendida, ao mesmo tempo, a
requisição, a ocupação e a estruturação de uma determinada área terrena pelo mandamento
divino, onde o detentor do mandato age como representante do mandante.
36
Nisto, como representantes de Deus, o ser humano recebede de Deus mandamentos
que estão conectados entre si e formam um conjunto que, em Deus, dão sentido à real
existência do homem e da mulher na realidade do mundo, caracterizando-se a partir do
trabalho, do matrimônio, da autoridade e da Igreja.
Quando Adão recebe a tarefa de “cultivar e guardar” o jardim do Éden ( Gn 2:15 ), já
encontramos aqui o mandato do trabalho.
O trabalho, em si, é uma atividade humana que participa da criação no qual são criadas
coisas e valores que devem ser destinadas à glorificação e o serviço de Jesus Cristo, um criar
e transformar em coisas novas os elementos baseados na primeira criação de Deus.
Biéler ( 1969 ) afirma que todos os seres humanos têm o direito de se desenvolver a
fim de entrar em comunidade com outros seres humanos. Todas as vezes que tomamos parte
nessa obra, nosso trabalho passa a fazer parte da criação contínua do mundo por Deus, de seu
plano para todos os seres humanos.
A ordem dada ao ser humano em Gn 1:28 ( “enchei a terra e dominai-a” ), ensina que
toda a criação é para o ser humano e que este deve valorizá-la com o esforço de sua
inteligência e torná-la, por assim dizer, mais completamente útil pelo seu trabalho.
Na submissão a Deus todo espírito humano de invenção e inovação, de ciência e de
pesquisa, passam a ser aspectos de autêntica vocação e obediência humana.
E neste aspecto, não somos responsáveis apenas por nossas atitudes pessoais, mas
também pelas instituições políticas e econômicas pelas quais se regulam e se exercem a boa
gestão e a justa distribuição dos bens da terra ( criação ).
“O trabalho é a atividade pela qual, por disposição do criador, a pessoa marca sua
presença no universo e projeta sobre ele a senhoria de Deus. Ele permite que a criatura
transforme a criação, com inteligência e esforço, prolongando a ação criadora divina.
Com o trabalho a pessoa atinge a realização de sua dignidade, modifica o meio em que
vive e, se isso acontece de forma humanizante, realiza o desígnio do criador”
( OLIVEIRA: 1999, p. 125-126 ).
Sendo assim, o trabalho é a fonte de riqueza e de desenvolvimento humano, que
contribui para o aperfeiçoamento da pessoa em sua totalidade e é fonte de profundas relações
no seio da comunidade e sociedade.
37
Ainda, logo após a criação dos seres humanos, temos o mandato divino do
matrimônio, onde homem e mulher se tornam um perante Deus com o objetivo de gerar e
irradiar vida sendo participantes na criação. Da mesma forma como no trabalho são criados
novos valores, no matrimônio são gerados seres humanos através da benção da fertilidade e
geração de nova vida.
“O matrimônio já existiu antes que quaisquer outras estruturas da comunidade humana
se desenvolvessem. Ele foi constituído com a criação do primeiro ser humano. Seu direito
jaz nos primórdios da humanidade” ( BONHOEFFER: 2005, p. 99 ).
Porém, o matrimônio não é apenas um lugar para gerar, mas também para educar e
compartilhar sobre a obediência à Deus por intermédio de Jesus Cristo, sendo co-participantes
da criação. Ou seja, os pais tornam-se não apenas progenitores e educadores, mas, também,
representantes do próprio Deus na vida de seus filhos.
Sendo representantes do próprio Deus, pai e mãe, em unidade apesar da complexidade
que envolve a integridade pessoal da vida íntima de cada um, sendo um ser pessoal e ambos
uma só carne, refletem a analogia que se tem entre Cristo e a Igreja formando um só corpo,
uma só carne. Aqui está implícito o caráter relacional e dialogal que traz a
complementariedade existencial que dá sentido, em Cristo Jesus, a serem participantes da
criação de Deus e responsáveis no seu viver a atenderem ao chamado divino para serem o que
realmente devem ser: seres humanos criados a imagem de Deus.
Já o mandato divino da autoridade parte do princípio que esta autoridade não pode em
si produzir pessoas ou valores, ou seja, não é criadora, mas, é justamente ela que mantém as
coisas criadas na ordem que receberam por incumbência de Deus. Assim, ela deve proteger o
que foi criado, estabelecendo leis em reconhecimento aos mandatos divinos e fazendo valer
essas leis, se preciso, através da coerção, ou nas palavras de Bonhoeffer ( 2005 ), fazendo
valer estas leis com o poder da espada.
“O matrimônio não é constituído através da autoridade, mas diante dela. Economia,
ciência e arte não são cultivadas pela própria autoridade, mas estão sob sua supervisão
e, dentro de certos limites que não vamos detalhar aqui, sob sua orientação. Jamais,
porém, autoridade poderá tornar-se sujeito dessas áreas de trabalho. Onde ela exorbitar
38
de sua competência, com o tempo perderá sua legítima autoridade” ( BONHOEFFER:
2005, p. 191 )
Por fim, o mandato da Igreja trata-se da tarefa de se concretizar a realidade de Jesus
Cristo através da pregação e ordem eclesiástica ( forma pública ), bem como através da vida
cristã pessoal e da confissão ( forma sigilosa ), ou seja, dirigindo-se à comunidade que ouve e
ao ser humano individualmente, proclamando a revelação divina.
Deus deseja que sua palavra sempre seja dita novamente, proclamada, comunicada,
interpretada e divulgada até o fim dos tempos.
Aqui, o que a Igreja proclama é a palavra da revelação de Deus em Jesus Cristo.
“A Igreja é o lugar onde se testemunha e se leva a sério que em Cristo, Deus reconciliou
o mundo consigo, que Deus amou o mundo de tal maneira que por ele deu o seu Filho. O
espaço da Igreja não existe para disputar uma parte do território do mundo, mas para
testemunhar a este que pode ser o que é: o mundo amado e reconciliado por Deus”
( BONHOEFFER: 2005, p. 114 ).
Ainda, conforme Stevens ( 2005 ), servimos a Deus e a seus propósitos no mundo
mediante a Igreja, como seres humanos salvos e que são chamados para a totalidade da vida
diária.
Assim, os mandatos divinos no mundo não têm o objetivo ou função de desgastar o ser
humano em intermináveis conflitos, mas, eles visam justamente o ser humano como um todo,
como na realidade ele está diante de Deus, colocando-o diante de uma realidade una
( inteira ), como nos é revelada em Jesus Cristo, em quem a vontade de Deus se expressa e
abrange o todo da realidade.
Por isso, Bonhoeffer ( 2005 ) afirma que independentemente das mudanças de todas as
ordenanças históricas, estes mandatos divinos vão subsistir até o fim dos tempos pois têm o
objetivo de preservar o mundo ( criação ) por causa de Jesus Cristo e em sua função, razão
pela qual faz um paralelo destes como sendo um protótipo do mundo celestial, a saber:
- matrimônio = Cristo e a comunidade;
- família = Deus Pai em fraternidade com os seres humanos por intermédio de Jesus
Cristo e do Espírito Santo;
39
- trabalho = o serviço criador de Deus e de Cristo para o mundo, e dos seres humanos
para Deus;
- governo, autoridade = senhorio de Cristo em eternidade.
2.4 – Dualismo Antropológico: pseudo-dicotomias da esfera existencial
Diante destas análises e compreensões, existe uma grande complexidade quando
abordamos o ser humano de uma forma integrada pois ainda é forte os traços de uma
cosmovisão dualista e conflitante entre corporeidade ( corpo, matéria ) e a espiritualidade
( alma ), legada pelo racionalismo da modernidade.
Todo este enfoque baseado num dualismo antropológico tem suas raízes estruturais na
visão neoplatônica dualista do ser humano, partindo da distinção entre ‘idéia’ e ‘coisa’, onde
as ‘coisas’ pertencem ao mundo sensível ( mutável, temporal, ilusório ) e as ‘idéias’ a um
outro mundo, o da realidade divina ( eterna, imutável ). Nisto, a verdadeira realidade
encontra-se apenas nas aparências sensíveis, no mundo das idéias.
Ambos os mundos estão presentes no ser humano: na alma ( mundo das idéias ) e no
corpo ( mundo das coisas ), coexistindo em permanente conflito, pois a alma é considerada a
realidade que define o ser próprio do ser humano, enquanto o corpo pertence a um mundo
enganoso dos sentidos e das coisas sensíveis.
Rubio propõe o seguinte esquema para resumir esta contraposição:
IDÉIAS
MUNDO INVISÍVEL
IMUTÁVEL
ETERNO
DISTINTO E TRANSPARENTE
coisas
mundo sensível
transitório
temporal
confuso e opaco
ORDENADO
VERDADEIRO SER
CIÊNCIA (“EPISTEME”)
ALMA
caótico
ser participado
opinião (“doxa”)
corpo
•
•
Relação predominante de oposição.
Estrutura mental predominante de oposição – exclusão.
( RUBIO: 2001, p. 100 )
40
Além de Platão, Descartes também desenvolveu uma visão dualista do ser humano,
onde o corpo é considerado apenas como uma matéria espacial, uma mera extensão
mensurável matematicamente, uma substância extensa ( “res extensa” ). Por outro lado, a
alma, espírito ou consciência é uma substância pensante ( “res cogitans” ).
Assim, o corpo, como uma máquina, pode funcionar independentemente da alma, pois
esta última, não interfere na vida biológica do ser humano pois sua finalidade única é pensar.
Nisto, tanto o pensamento ( espírito ) quanto a vida biológica ( corpo ) são substâncias
totalmente separadas que podem substituir uma sem a outra, encontrando-se no ser humano de
forma puramente extrínseca.
“... o sujeito ( a consciência humana ) está cortado da própria corporeidade e vice-versa.
Ora, se o sujeito entra em contato com os outros sujeitos mediante o corpo, uma vez
separado deste, fica igualmente isolado dos outros sujeitos. Está, assim, aberta a porta
para o individualismo moderno com suas sequelas de dominação e opressão dos outros
( pessoa concreta, classe, raça, sexo, povos... ). O sujeito também se encontra separado
radicalmente do mundo da natureza e vice-versa” ( RUBIO: 2001, p. 101 ).
Estas são fundamentações teóricas e mentais que irão influenciar a teologia ocidental,
bem como toda mentalidade de uma forma geral, onde o corpo será desvalorizado na mesma
medida em que se valorizam a alma, o espírito e a consciência.
Rubio nos afirma que não existe aspecto algum da experiência e da reflexão cristã que
não tenha sido afetado, em diversos graus, por esta cosmovisão do ser humano. Nisto, propõe
o seguinte esquema:
ALMA
ORAÇÃO
TEORIA
corpo
ação
práxis
VIDA RELIGIOSA
vida profana
FÉ CRISTÃ
IGREJA
VIDA NO CÉU
opções sociopolíticas
mundo
vida terrestre
Correlativamente: DEUS
homem
JESUS CRISTO
DIVINO etc.
humano
Predomina a relação de oposição-exclusão.
( RUBIO: 2001, p. 102 )
“Com essa divisão da realidade global em uma área sacral e outra profana, uma cristã e
outra mundana, cria-se a possibilidade de existência em uma só delas: uma existência
espiritual, portanto, que não participa da existência mundana e uma existência mundana
41
que pode reivindicar autonomia para si e que a faz valer contra a esfera sacral”
( BONHOEFFER: 2005, p. 111 ).
Conforme o pensamento de Bonhoeffer ( 2005 ) não há duas realidades que
constituem a existência humana, mas apenas uma única realidade, a realidade de Deus
revelada em Jesus Cristo. Uma vez que o ser humano esta em Cristo, ele participa
simultâneamente da realidade de Deus e do mundo, pois, a realidade de Cristo engloba a
realidade do mundo.
O mundo não possui em si uma realidade independente da revelação de Deus em Jesus
Cristo, razão pela qual Bonhoeffer considera que “querer ser ‘cristão’ sem ver e reconhecer o
mundo em Cristo equivale a uma negação da revelação de Deus em Jesus Cristo”
( BONHOEFFER: 2005, p. 112 ).
As esferas da existência humana não estão lado a lado e disputando entre si seus
limites, como se a questão destes limites fosse decisiva da história, mas a realidade global do
mundo já esta incorporada em Cristo e nele resumida, razão pela qual todo movimento da
história tem Cristo como centro e marcha para sua concretização Nele.
“Assim como em Cristo a realidade de Deus entrou na realidade do mundo, da mesma
forma o cristão só existe no mundano, o ‘sobrenatural’ só no natural, o sagrado só no
profano e o revelacional apenas no racional. A unidade da realidade de Deus e do
mundo estabelecida em Cristo repete-se, ou, para ser mais preciso, concretiza-se sempre
de novo nos seres humanos” ( BONHOEFFER: 2005, p. 112 ).
Sendo assim, Bonhoeffer nos aponta que não há duas esferas de existência humana,
mas só uma única esfera da realização de Cristo em que a realidade de Deus e a do mundo se
fundem.
Porém, esta unicidade e interioridade engloba toda a realidade ao nível da existência,
mas, ao nível ético e moral, não podemos deixar de considerar que a própria Escritura nos
aponta a dualidade ou oposição-exclusão entre a ‘velha criação’ e a ‘nova criação’, o ‘velho
homem’ e o ‘novo homem’ em Cristo, o ‘já’ e o ‘ainda não’, como enfatiza Rubio ( 2001 ).
Contudo, esta dualidade ao nível ético e moral ( contradição ética ) não é a regra
estabelecida por Deus, mas a excessão causada pela entrada do pecado na raça humana, razão
42
pela qual em Cristo, o objetivo de Deus é fazer valer a regra estabelecida por sua ‘graça
preciosa’ como na criação.
O que a visão cristã do ser humano não aceita é a passagem deste dualismo existente
na vontade humana para um dualismo metafísico, ou seja, um dualismo que é constitutivo do
ser em sua essência, em seus fundamentos, em eterno conflito de oposição-exclusão.
“(...) a unidade do ser humano não anula a dualidade ( espiritualidade-corporeidade ) e
vice-versa. Antes, pelo contrário, a pluralidade ou não identidade de alma e corpo
consiste justamente na unidade de ‘espírito’ e ‘matéria’ no homem. Ou ainda: a
espiritualidade e a corporeidade do homem têm a sua pluralidade em sua unidade e sua
unidade em sua pluralidade” ( RUBIO: 2001, p. 349 ).
A percepção da unidade realizada tão profundamente em Jesus Cristo entre criação e
salvação pode ser de grande ajuda na superação das dicotomias e justaposições dualistas entre
“espiritual” e “material”.
Existem vários textos no Novo Testamento referentes a função mediadora de Cristo
tanto na salvação quanto na criação, sempre numa mutua relação de integração-inclusão,
testificando a função mediadora universal de Jesus Cristo.
Como exemplo, citamos Cl 1:15-20 como texto que parte de uma perspectiva
cristocêntrica paulina a respeito da criação, assim como Jo 1:01-14, apontando o Senhor Jesus
também como mediador da criação.
Jesus Cristo é a imagem do Deus invisível, segundo a qual o mundo foi criado. Com
muito maior razão, o ser humano é criado segundo a imagem de Deus que é Jesus Cristo; “o
Adão verdadeiro é o segundo Adão ( Cristo ), o modelo do homem que o cristão é chamado a
imitar no seu comportamento e atitudes” ( RUBIO: 2001, p. 201 ).
Assim, ele é fonte de uma nova vida, sendo caracterizada pela abertura com toda a
radicalidade à comunhão com Deus, com os seres humanos e com o mundo todo criado, ou
seja, toda existência ‘espiritual’ é em si mesma comunitária e universalizante, incluindo não
apenas a abertura a Deus e aos seres humanos, mas igualmente a todo o mundo da criação.
Não podemos ignorar o fato de que o antigo Adão era imagem de Deus, porém, uma
imagem incompleta e deturpada por sua decisão negativa de não assumir sua vocação de
criatura responsável. É esta imagem de Adão, de traços desfigurados, que o cristão vai
superando para se revestir da imagem plena e completa que é Jesus Cristo, aquele que
43
percorreu o caminho da obediência ao Pai e no amor e serviço aos irmãos realizou o
verdadeiro senhorio sobre todo o ‘kosmos’ ( I Co 15:24-28 ), constituindo-se real mediador
entre os seres humanos e as coisas criadas.
Entretanto, não podemos deixar de evidenciar que este senhorio é sempre entendido
como serviço, não como dominação ( Fp 3:20-21; 2:06-11 ), estabelecido através da paz e da
reconciliação ( Ef 2:16-18 ).
Desta forma o Novo Testamento nos testifica que Jesus Cristo é o mediador tanto da
criação quanto da salvação9, sendo o ser humano verdadeiro, a verdadeira Imagem de Deus e
cabeça de uma nova humanidade ( II Co 5:18-21 ), o fiel modelo do que significa ser humano
conforme o projeto de Deus. Assim, as Escrituras afirmam que o projeto de Deus relaciona-se
diretamente com a humanização integral, onde o ser humano é visto como unidade ( Mt 7:2427; Jo 13:17 ).
“De fato, o encontro com Cristo plenifica a vida das pessoas e as ajudam a perseverar
na vocação e na missão. Mas, para que se dê esse encontro, é indispensável reconhecê-lo
na história, nas Escrituras, nos desafios do mundo e no próximo, especialmente por
sofredores, com os quais Ele se identificou” ( ESTUDOS DA CNBB: 2005, p. 134 –
135 ).
No seguimento de Jesus Crito, o cristão ( discípulo ), pela ação do Espírito Santo, vai
se conformando à imagem de Cristo, amadurecendo para a plenitude ( Cl 3:12-15 ). Sendo um
novo ser humano, aprende a incluir um novo relacionamento com o mundo e com os seres
criados na sua abertura confiante a Deus-Pai e na sua abertura de amor e serviço solidário aos
irmãos.
“O processo de libertação vivido pelo ‘homem novo’ ( vivência fortemente comunitária )
leva consigo a libertação das criaturas, sempre em conexão com a reconciliação
conseguida por Jesus Cristo. Á medida que, a partir de Jesus Cristo, o ser humano vai se
tornando ‘homem novo’, a velha criação se transforma em nova criação” ( RUBIO:
2001, p. 209 ).
9
(Cl 1:15-20; Jo 1:01-03; I Co 8:06 )
44
Contudo, a beleza do conteúdo da nova vida já iniciada não elimina a dureza dos
enfrentamentos que o cristão ( discípulo ) deve assumir na história concreta do mundo. Não
que aprioristicamente o cristão goste de sofrer, mas, a fidelidade ao Reino no chamado da
“graça preciosa” acaba levando à oposição dos que amam mais as trevas do que a luz ( Jo
3:19-21 ).
A perspectiva bíblico-cristã nos aponta que o verdadeiro sentido de ser humano é ser
um ser de diálogo e de relação com Deus, de amor, serviço e solidariedade com o próximo,
bem como o viver uma liberdade responsável diante do mundo criado. “Tanto a teologia da
salvação quanto a teologia da criação apresentam [...] a relação Deus-homem de maneira
dialógica” ( RUBIO: 2001, p.305 ).
Porém, é também um ser de decisão que pode aceitar ou rejeitar o dom de Deus.
Afastado de Deus, o ser humano fica alienado e mutilado no profundo de seu ser, sendo
incapaz de encontrar por si mesmo o caminho da superação da não-salvação. Mas, esta
possibilidade é oferecida por Deus sempre com total gratuidade em Jesus Cristo.
A verdade do ser humano é a pessoa de Jesus Cristo, a verdadeira imagem de Deus. O
ser humano é chamado a tornar-se um novo ser na união e no seguimento de Jesus Cristo.
Para que isso ocorra é indispensável percorrer o caminho da passagem da ‘velha
criação’ para viver a vida da ‘nova criação’, ou seja, o ser humano é chamado à conversão.
Assim, o novo ser humano, guiado pelo Espírito Santo, é chamado na história e
realidade atual a viver uma existência espiritual, vivificadora, existência de abertura
comunitária, de universalização e comunhão, sendo em relação a Deus, aos outros seres
humanos e a toda criação.
Biéler ( 1969 ) nos afirma que o ser humano é chamado para a vida, para a ação e para
o desenvolvimento com todo o seu ser, integralmente e sem reserva: alma, corpo e espírito.
Da mesma forma, que a Bíblia não conhece o dualismo pagão que opõem alma e espírito a
corpo e matéria. Mas, o ser humano é uno e sua existência está inserida na natureza. Nisto,
concepção dualista do ser humano e de sua estrutura constitui na realidade uma amputação do
ser humano, uma alienação de sua pessoa, sendo que, a Bíblia se opõe tanto aos materialistas
quanto aos espiritualistas ( Gn 2:07; I Co 15:47 ).
Concluindo, a cosmovisão integrada ou unitária considera a realidade da pessoa
humana a partir de uma relação direta com as dimensões básicas da vida, pressupondo que
tais dimensões se relacionam entre si de uma forma inclusiva, onde uma dimensão sempre
45
esta aberta à uma complementação crítica da outra, com a qual se encontra em tensão ( corpo
e alma ), onde podemos também acrescentar as dimensões biológicas, psíquicas e espiritual.
Foi o próprio Deus que nos criou com essa estrutura antropológica e por isso quer que
estejamos preparados e capacitados para o exercício da missão que por ele nos foi confiada
como vocação.
“O ser humano é um todo indivisível, não só como indivíduo em sua pessoa e obra, mas
também como membro da coletividade dos seres humanos e das criaturas na qual está
inserido” ( BONHOEFFER: 2005, p. 109 ).
Assim, a desvalorização do corpo pode significar uma verdadeira mutilação do sentido
verdadeiro da vocação e contribuir para o esvaziamento de sua dimensão antropológica, pois,
a comunhão manifesta-se na corporalidade que, uma vez integrada à totalidade das dimensões
que constituem o ser humano, torna-se comunicação, possibilidade de expressão e,
consequentemente, encontro com Deus. E é justamente neste encontro com Deus que a pessoa
torna-se realmente um ser humano, tendo sua dignidade, valor e liberdade restaurados no
seguimento de Jesus Cristo, ou seja, no ser discipulo, no discipulado.
46
Capítulo III – Espiritualidade: a concretização da vocação cristã e do discipulado na
alta modernidade.
“Toda essência da Religião não é um objeto, mas uma relação”.
( Rubem Alves )
“Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça,
Cristo. Dele todo o corpo, ajustado e unido pelo auxílio de todas as juntas, cresce
e edifica-se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza a sua
função”. ( Efésios 4:15-16 – NVI )
3.1 – Conceitos e abrangência da espiritualidade
Conceituar e definir espiritualidade na atualidade é uma tarefa muito difícil, uma vez
que na cultura moderna tornou-se um conceito totalmente vago e abstrato ( SOUZA: 2005 )
que passa a ser enfatizado, discutido e buscado na alta-modernidade10, caracterizada por um
momento de abertura e crise espiritual.
De uma forma mais ampla, a espiritualidade não significa necessariamente uma fuga
da realidade do mundo para um local ou estágio de tranqüilidade da alma, mas, representa
uma certa experiência, atitude prática, que inicialmente acaba sendo experimentada de uma
forma subjetiva e emocional, razão pela qual tornou-se difícil defini-la tão somente a partir de
pressuposições objetivas e racionais.
É um conceito cristão cuja definição quase sempre é formulada em termos teológicos,
incluindo exatamente as pressuposições avaliadoras sobre verdades e objetivos que as
ciências da religião querem evitar nas suas descrições ( DROOGERS: 1983 )11.
Diante da complexidade de se definir um conceito de espiritualidade, observamos que
a partir do senso comum, este conceito também sofre uma interpretação dualista de oposiçãoexclusão, sendo oposto ao mundo, a matéria, ao corpo, ou seja, ao ‘profano’.
10
Usaremos o termo alta-modernidade ao invés de pós-modernidade por entendermos que é um estágio
avançado de desenvolvimento da cultura capitalista, bem como do capital e sua subsequente tecnologia, e não
sua superação.
11 As Ciências da Religião têm como primado epistemológico o estudo das religiões e da religião em geral de
maneira objetiva, de forma descritiva e analítica, evitando pressuposições, conforme Droogers ( 1983 ).
47
Sendo contrário a uma atitude de engajamento no real, mesmo que social e político, é
enfatizada tão somente a partir de uma atitude interior que se distingue de um comportamento
exterior. Ou seja, desenvolve-se a partir de uma prática individual, privada, praticada por
pessoas ‘eleitas’ ou sacerdotes, religiosos, místicos, ascetas, ‘heróis da fé’, representando o
lado vertical e subjetivo da fé ( transcendente ), em contraposição às ligações e movimentos
horizontais dos cristãos ( imanente ).
Outra forma como o senso comum aborda e conceitua espiritualidade é justamente
relacionando-a a vida cúltica, litúrgica e meditativa, incluindo a oração, contemplação,
conversão pessoal, devoção, êxtase, entre outros, seja na constante prática religiosa ou seja na
ausência, ou até mesmo anseio por esta, numa época de mudanças de paradigmas e evidente
crise espiritual.
Porém, independente das formas que possamos elencar sobre como se expressa a
espiritualidade em si, a priori, ela pressupõe uma relação concreta entre o ser humano e Deus,
onde a totalidade e integridade da pessoa participam na relação ( HOCH: 2001 ). Aqui, Deus
não se torna um objeto distante de nosso conhecimento, mas torna-se um parceiro que se
aproxima de nós desejando que o acompanhemos e que desenvolvamos toda nossa
potencialidade, personalidade e humanidade.
“Deus e o mundo são diferentes (...) mas estão abertos um ao outro. Encontram-se
sempre mutuamente implicados. Se são diferentes é para poderem se comunicar e
estarem unidos pela comunhão e mútua presença. Por causa desta mútua presença,
supera-se a simples transcendência e a pura imanência. Surge uma categoria
intermediária, a transparência, que é exatamente a presença da transcendência dentro
da imanência” ( BOFF: 1995, p. 236 ).
Neste ponto, Droogers ( 1983 ) elenca três aspectos essenciais da espiritualidade a
partir de uma abordagem cristã:
-
O papel do espírito Santo: é quem nos permite conhecer de forma progressiva à
Deus em nosso viver, sendo a base da renovação e da criatividade na prática da
espiritualidade, a força de Deus presente na história, aquele que arquiteta a
comunhão do ser humano com Deus, consigo mesmo, com o próximo e a criação.
Conforme a vontade de Deus, toda a criação é sua livre área de atuação.
48
-
A autocompreensão do ser humano: este entende que a espiritualidade se expressa
através de sua essência existencial fundamentada no fato de ser um ser ético e
religioso, englobando a pessoa de forma integral. Tal autocompreensão é inspirada
pelo Espírito Santo que leva-o à comunhão contextualizada e de forma crítica em
sua atitude diante da realidade.
-
O caráter relacional: por intermédio do Espírito Santo o ser humano pode viver em
comunhão com Deus, sendo participante da natureza divina ( II Pe 1:04 ), tendo
resgatado o sentido de seu relacionamento consigo mesmo, o próximo e a criação,
ou seja, realizando-se como pessoa na essência de sua existência. “No cristianismo
Deus é um Deus da Aliança, que expressamente quer manter uma relação com o
homem, mesmo se este homem não procura esta relação” ( DROOGERS: 1983, p.
123 ).
Higuet ( 2001 ), no mesmo sentido, adota a noção de espiritualidade como vida da
pessoa, com sentido em todas as suas dimensões, significando a vida de fé por inteira e
mesmo a vida da pessoa no seu conjunto, incluindo as dimensões corporais, psicológicas,
sociais e políticas.
Para isso, parte do pressuposto de que tendo a origem da palavra espiritualidade em
‘espírito’, este não pode ser pensado em oposição ao corpo, mas, ao contrário, o espírito é
justamente a dimensão de sentido da própria existência corporal do indivíduo, princípio das
funções práticas e teóricas da cultura, síntese do pensamento e do ser.
Com a mesma ênfase, Boff ( 2000 ) afirma que a espiritualidade é aquela atitude pela
qual o ser humano se sente ligado ao todo, que coloca a vida no centro, que defende e
promove a vida contra todos os mecanismos de diminuição, de estancamento e morte. Sendo
assim, a espiritualidade nasce da gratuidade do mundo, da relação inclusiva, da comoção
profunda, do sentido de comunhão que todas as coisas guardam entre si, da percepção do
grande organismo que compreende todo o kosmos.
Pode-se afirmar que, em si, é a dignificação de toda a vida, sua promoção e defesa, a
partir daquelas vidas mais originárias e daquelas mais ameaçadas; o esforço por manter todos
os sistemas abertos e potencializar todo o tipo de relacionamento e comunhão, donde nascem
os processos de comunicação, comunhão e as comunidades em si.
49
“(...) a vida espiritual não é um compartimento especial dentro da pessoa. A vida pessoal
está radicada, está diluída no todo da pessoa humana (...) é uma forma de ser e de viver
(...) faz parte intrínseca de todo o ser da pessoa. (...) Uma é a espiritualidade na infância,
outra a espiritualidade na adolescência, ainda uma outra é a espiritualidade na velhice”
( HOCH:2001, p.162 ).
Neste ponto, não podemos deixar de destacar que tal processo de desenvolvimento
integral, bem como espiritual da pessoa humana, está intimamente relacionado e identificado
a fase de desenvolvimento cognitivo, físico e emocional desse ser, seja na infância,
adolescência, jovem, adulto ou idoso, bem como suas peculiaridades em relação a gênero, o
que por hora deixamos para futura análise.
3.2 – Um conceito de espiritualidade a partir de Bonhoeffer
“Um homem não se torna teólogo por compreender, ler e especular, mas por
viver, morrer e ser sacrificado”. ( Lutero )
Partindo da idéia de que espiritualidade é definida a partir de um relacionamento do
ser humano com Deus, abrangendo toda a esfera do real, ou seja, a totalidade da vida, que
engloba toda a criação, fica a questão de como podemos definir isto de forma prática e
concreta no processo cotidiano de desenvolvimento e maturação da pessoa.
Quando nos voltamos ao sentido que Bonhoeffer dá ao conceito de discipulado e o
entendemos como o padrão máximo do processo de desenvolvimento da vocação humanocristã integral, fica claro o que, de forma concreta, entende por espiritualidade.
Para Bonhoeffer, espiritualidade é a concretização e o desenvolvimento da vocaçãocristã de uma forma integral ( total ) no mundo a partir da aceitação e vivência em obediência
no discipulado. Ou seja, toda a humanidade é chamada por Deus para aceitar a obra redentora
de seu Filho Jesus Cristo, bem como seguí-lo e viver em obediência à seus princípios e
vontade na realidade concreta do mundo, a partir do desenvolvimento de todas as nossas
potencialidades como pessoas recriadas ( ‘nova criação’ ) à imagem e semelhança de Deus em
Cristo Jesus de forma integral e responsável.
50
De uma forma prática e concreta, conforme Bonhoeffer, esta espiritualidade
manifesta-se a partir da ‘doutrina dos quatro mandatos’, onde por intermédio do trabalho,
matrimônio, autoridade e Igreja, o discípulo de Cristo vive o processo do discipulado
desenvolvendo sua vocação cristã-integral, sendo este o desejo de Deus para todo o ser
humano, para toda a humanidade.
Em síntese, espiritualidade é vida, a verdadeira vida. Porém, esta vida é a vida
presencial e real de Cristo no mundo por intermédio de seus seguidores, que disseminam a
implantação e a manutenção do Reino de Deus na criação.
“(...) o cristianismo é uma vida para ser vivida. A fé deve ser traduzida em ação, não
num sentido estreitamente pietista mas, sim, de uma maneira que influencia todas as
repartições da vida” ( BROWN: 2001, p. 136 ).
Esta espiritualidade é marcada pelo conjunto das relações presentes no ser humano,
sejam técnicas, sexuais, intersubjetivas, sociais, estéticas, religiosas, envolvendo todos os seus
sentidos, gestos e emoções, como o olhar, escutar, tocar, comer, beber, sentir e contemplar a
beleza, abraçar, beijar, apertar a mão, carregar a criança no colo, brincar, orar, conversar,
celebrar, festejar, dançar, cuidar da saúde, encontrar e cuidar do outro, do meio ambiente,
estudar, sofrer, crescer, amadurecer, enfim, entre tantas outras qualidades que caracterizam o
viver.
Espiritualidade é viver plenamente a vida cheia de significados e sentidos no mundo a
partir de Cristo, em Cristo e por Cristo, seja na infância, adolescência, fase adulta e velhice.
Sendo a espiritualidade a maneira concreta como uma pessoa vive sua fé cristã, não
podemos entendê-la sem levar em consideração todos os fatores biográficos, culturais,
sociológicos, biológicos, psicológicos e teológicos que convergem na constituição do ser
humano. Negar isso, seria negar a historicidade, a identidade e a dinâmica da vida do ser
humano, bem como a do próprio Cristo. “Negar que a fé tem algo a ver com o contexto,
dentro do qual ela se articula e se expressa, seria negar totalmente a responsabilidade
humana de reagir e se decidir frente ao Evangelho” ( HOCH: 2001, p. 155 ).
A partir disso, quando tomamos por base a trajetória e o processo de desenvolvimento
da vida e construção teológica de Bonhoeffer, dentro de seu contexto histórico e mental,
entendemos a razão do surgimento de uma nova espiritualidade que brota e desenvolve-se nas
margens da religião institucionalizada ( como sua negação e superação ), uma espiritualidade
51
espontânea que se manifesta diante da crise espiritual vivida na Europa e, particularmente,
numa Alemanha dominada pela ideologia nazista que promovia a alienação do ser humano,
principalmente no que se refere aos ‘quatro mandatos divinos’, em defesa e disseminação do
que Bonhoeffer conceituou de ‘graça barata’.
“Não há dúvida, portanto, de que as teologias surgem da necessidade de adequar a
mensagem cristã à perspectiva de um determinado ambiente cultural, perspectiva essa
que, como já vimos, encontra expressão refletida na filosofia desenvolvida naquele
ambiente” ( MONDIN: 1986, p. 22 )
Todo o desenvolvimento do que entendemos por ‘graça barata’ compreende em si uma
‘espiritualidade barata’, ou seja, uma espiritualidade religiosa usada como meio de se adquirir
riqueza econômica e saúde física ( prosperidade ) como se fosse um poder mágico.
Amirtham ( 1988 ) nos aponta que esta ‘espiritualidade barata’ não é afetada pelas
necessidades dos outros e, em contrapartida, gera a religião de consumo que já vem pronta e
confia em si mesma, dualista, separando este mundo de um outro superior e dividindo o ser
humano em corpo e espírito, sendo uma espiritualidade auto-gratificante que reforça e
solidifica o status quo.
Sendo assim, esta nova espiritualidade que tem como fundamento a ‘graça preciosa’,
indica o chamamento do Senhor Jesus Cristo a sermos discípulos na concreta realidade do
mundo, que deve evidenciar-se como “algo dinâmico que deve permanecer aberto à ação
criadora do Espírito Santo, que constantemente faz novas todas as cousas” ( HOCH: 2001, p.
161 ).
“A espiritualidade cristã, do discipulado, é sempre bíblica, informada e inspirada no
testemunho das Escrituras. (...) já está definida no grande mandamento: amar a Deus de
todo o coração, alma e entendimento, e ao próximo como a nós mesmos. A
espiritualidade cristã se fez ao mesmo tempo contemplativa e ativa em obediência às
duas partes desse mandamento; (...) é um modo de aprofundamento da experiência da
ativa presença de Deus na vida das pessoas, da Igreja e na história do mundo; (...) inclui
toda a criação divina, desde a areia e os seixos, dos gramados, das árvores e dos
gorgeios dos pássaros, até a ciência e a poesia, das lágrimas e alegrias de nossos
semelhantes até o chamado de seguirmos o Cristo em situações históricas específicas (...)
abrange todas as dimensões da vida (...) a pessoa inteira e a comunidade toda; (...) se
52
relaciona com os fatos concretos deste mundo. Faz parte de sua essência como se vê em
Jesus que seguiu o caminho da cruz estando no meio da vida e dos sofrimentos e lutas do
mundo. Centraliza-se sempre em Deus ao mesmo tempo em que se baseia na terra. Abrese aos desafios da História e se mantém atenta aos clamores ainda não respondidos por
justiça e paz” ( AMIRTHAM: 1988, p. 281 ).
Ainda, Amirtham ( 1988 ) nos mostra o resultado do relatório de consulta do CMI
( Conselho Mundial de Igrejas ), do ano de 1984, sobre a temática “Uma espiritualidade para
o nosso tempo”, onde conclui que a espiritualidade no mundo atual deve estar sendo
desenvolvida a partir dos seguintes pressupostos:
-
ser reconciliadora e integradora, dirigindo-se à plenitude das pessoas e das
comunidades;
-
ser de cunho encarnacional, ou seja, inserir-se no aqui e agora, nas palavras que
ouvimos e falamos, nas pessoas com que convivemos e nas situações de vida que
enfrentamos, sendo sensíveis à cultura e à linguagem, levando em consideração os
símbolos e a história específica do povo, bem como envolvendo-se em suas lutas,
aspirações e esperanças;
-
fundamentada nas Escrituras e alimentada na prática da oração, ou seja, mergulhar
na Palavra de Deus, ouvida e interpretada no meio de nossa realidade histórica, e
mergulhar também no mundo criado por Deus, com suas complexidades e
ambiguidades;
-
que leve a sério a realidade da cruz de Jesus em nosso mundo e na vida das
pessoas, opondo-se à ‘espiritualidade barata’;
-
que seja doadora de vida e libertadora, a exemplo de Jesus Cristo ( Lc 4:18-19 );
-
baseada na comunidade, comunhão e a mesma preocupação e amor pelos outros
que também teve Jesus Cristo;
-
que expressa-se em serviço e testemunho de acordo com as necessidades humanas;
-
que não tenha o ideal e prática de querer manipular Deus em busca de benefícios,
forçando-o a entrar em nossos esquemas;
-
que esteja relacionada com a manifestação dos propósitos de Deus aqui na terra,
lembrando que as dimensões transcendentais e imanentes de Deus são
inseparáveis, baseando-se na história e ao mesmo tempo voltando-se para uma
vida sob a orientação da transcendência;
53
-
que seja sempre desafiada à nova consciência e a novos riscos, enriquecendo-se no
processo do encontro mútuo.
Desta forma, o objetivo é ir sendo formado à imagem de Deus em Jesus Cristo no
meio da realidade ( vida ) deste mundo, identificando-se com a vocação divina através de um
processo constante de discipulado.
3.3 – Modernidade e Alta-Modernidade: estabelecendo os conceitos
Para que possamos abordar os desafios e oportunidades diante do paradigma de
espiritualidade proposto a partir de Bonhoeffer, tendo em vista a alta-modernidade, faz-se
necessário conceituarmos a alta-modernidade a partir de sua diferenciação com a
modernidade.
Tanto o conceito modernidade como alta-modernidade ( “pós-modernidade” ),
caracteriza-se como duas maneiras distintas de se ver e interpretar a realidade do mundo, ou
seja, duas diferentes cosmovisões.
A modernidade, iniciada no século XV através do surgimento dos Estados Nacionais
Modernos, é impulsionada e desenvolve-se a partir do pensamento desencadeado pela
Renascença12 e a Reforma Protestante13 na Europa, bem como pelo desenvolvimento do
pensamento iluminista14 no século XVIII, sendo marcada pelo ideal de se estabelecer a paz
social e de melhorar as condições de vida do ser humano através do desenvolvimento das
ciências, tecnologia e progresso.
12
O termo Renascimento ou Renascensa é comumente aplicado à civilização européia que se desenvolveu entre
1300 e 1650. Além de reviver a antiga cultura greco-romana, ocorreram nesse período muitos progressos e
incontáveis realizações no campo das artes, da literatura e das ciências, que superaram a herança clássica. O
ideal do humanismo foi sem duvida o móvel desse progresso e tornou-se o próprio espírito do Renascimento.
Trata-se de uma volta deliberada, que propunha a ressurreição consciente (o re-nascimento) do passado,
considerado agora como fonte de inspiração e modelo de civilização. Num sentido amplo, esse ideal pode ser
entendido como a valorização do ser humano ( Humanismo ) e da natureza, em oposição ao divino e o
sobrenatural. - http://pt.wikipedia.org/wiki/Renascimento_%28movimento_cultural%29 > acesso em 23/03/07.
13
Movimento que começou no século XVI com uma série de tentativas de reformar a Igreja Católica Romana e
levou subsequentemente ao estabelecimento do Protestantismo-http://pt.wikipedia.org/wiki/Reforma_protestante
> acesso em 23/03/07.
14 Movimento e uma revolta ao mesmo tempo intelectual surgido na segunda metade do século XVIII (o
chamado "século das luzes") que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo. Foi um dos
movimentos impulsionadores do capitalismo e da sociedade moderna - http://pt.wikipedia.org/wiki/Iluminismo >
acesso em 23/03/07.
54
Todo este ideal ou projeto da modernidade entra em declínio em meados do século
XIX e início do século XX, principalmente como consequência do desencadeamento de duas
guerras mundiais ( 1914 – 1918; 1939 – 1945 ), com proporções catastróficas até então não
experimentadas pela humanidade. Um período marcado pelo surgimento de um forte
sentimento de falta de sentido e alienação diante da queda do projeto da modernidade, que até
então vinha em um processo desenfreado de expansão e desenvolvimento com base em uma
ideologia globalizante da economia e cultura burguesa ( capitalismo )15.
Grenz ( 1997 ) nos aponta que o pensamento da alta-modernidade foi antecedido por
certos movimentos intelectuais que acabaram desafiando os sustentáculos da mentalidade
moderna, a saber:
- critica do pensamento cartesiano ( René Descartes, 1596 - 1650 ), gerado a partir do
movimento romântico do século XIX que se opunha a seu dualismo das substâncias materiais
e imateriais. Foi também duramente combatido por Martin Heidegger ( 1889 – 1976 ), que
afirmava que o ser humano não esta apenas envolvido em atos de cognição, mas que também
esta envolvido nas diversas redes sociais que compõe a sociedade em que esta inserido;
- crítica do pensamento de Kant, que estabeleceu que o conhecimento se dá a partir da
razão pura ( o mundo da percepção sensorial ). Foi combatido por Fischte ( 1762 – 1814 ),
que afirma que se é possível conhecer pelo exercício da razão prática e que os objetos
situados fora da possibilidade de apreensão do sujeito conhecedor já não tem mais nenhum
significado filosófico;
- a rejeição do conceito de verdade e de valores ( moral ) por Friedrich Nietzsche
( 1844 – 1900 );
- o problema hermenêutico a partir de Friedrich Schleiermacher ( 1768 – 1834 ); a
hermenêutica e o historicismo de Wilhelm Dilthey ( 1833 – 1911 ); a hermenêutica da
diferença de Martin Heidegger ( 1884 – 1976 ); o renascimento da hermenêutica de HansGeorg Gadamer ( 1900 – 2002 );
- o problema da linguagem como jogo em Ludwig Joseph Johann Wittgenstein ( 1889
– 1951 ); a linguagem como convenção social e estruturalismo de Ferdinand Saussure ( 1857
– 1913 ).
15
Sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e propriedade intelectual, na
obtenção de lucro através do risco do investimento, nas decisões quanto ao investimento de capital feitas pela
iniciativa privada, e com a produção, distribuição e preços dos bens, serviços e recursos-humanos afetados pelas
forças da oferta e da procura. -http://pt.wikipedia.org/wiki/Capitalismo > acesso em 23/03/07.
55
Para se ter uma visão abrangente do desencadeamento destes sistemas de pensamento
filosófico que colocaram em cheque o pensamento moderno e começaram a desenvolver a
mentalidade da alta-modernidade, faz-se necessário estabelecermos uma comparação entre
ambas cosmovisões para que compreendamos suas diferenças e peculiaridades.
Martins ( 2002 ) afirma que a passagem da modernidade para a alta-modernidade é
marcada e caracterizada pela passagem da:
- fé → descrença: da certeza da fé em quase todas as empresas e instituições humanas
para a incerteza e descrença;
- sacralização → secularização: de um dogmatismo das idéias e das crenças
( conceitos de liberdade, tecnologia, ciência, etc ) para a secularização e o realismo diante dos
mesmos;
- absoluto → relativo: as verdades absolutas centradas no desenvolvimento da razão,
progresso científico, cristianismo, entre outros, sendo descartados e tidos como pequenas
verdades relativas;
- objetividade → subjetividade: não há mais o interesse de se conhecer a realidade
total do mundo e das coisas. Toda realidade passa a ser parcial e momentânea, o que dá
margem a um pensamento fragmentado;
- razão → sentimento: a razão não foi capaz de explicar e dar respostas às calamidades
no desenvolver do século XX, motivo pelo qual o centro da moral e da pessoa passa a ser o
“eu” ( sentimentos e gostos individuais );
- ética → estética: um padrão ético acaba dando lugar a uma estetização da vida,
marcada pela eliminação de toda a norma, o relativismo dos conceitos e os vários e
contrastantes valores;
- culpabilidade → aculpabilidade: tornando-se a moral subjetiva, tudo depende do
momento e critério de cada indivíduo, o que torna relativo os sentimentos de culpa ou até
mesmo de pecado;
- passado / futuro → presente: o passado já passou e o futuro é obscuro, restando
apenas o presente, onde os indivíduos vivem em torno de uma gratificação imediata de seus
desejos ( carpem diem );
- história → histórias: a história como única, absoluta e universal é substituída pelas
micro-histórias individuais. Neste sentido, há um rompimento com o passado ( identidade ) e
não se aspira à um futuro pois não há utopia;
56
- unidade → diversidade: a modernidade procurou unificar e centralizar todas as
culturas. Já na alta-modernidade há o reconhecimento pela diversidade e descentralização da
cultura;
- coletivismo → individualismo: o ideal de coletividade focado no papel do Estado e
das instituições como organismos de distribuição de riqueza e desenvolvimento são trocados
pelo individualismo em virtude de seu fracasso, ou seja, a sociedade passa a se subordinar à
pessoa.
- progressismo → neoconservadorismo: tendo o progresso da modernidade não dado
respostas às necessidades da sociedade ao longo do século XX, surgem novas atitudes
tradicionalistas que passam a controlar o trabalho e exaltar o mérito da família e da religião;
- inconformismo → conformismo: o inconformismo evidenciado através das
revoluções em face do desejo de se melhorar a condição humana cede lugar a um
conformismo que aceita a impossibilidade de mudar a realidade;
- idealismo → realismo: os projetos idealistas não correspondem mais à realidade pois
quase todos os idealismos modernos tem sido aniquilados por factualidades históricas
realistas, como as guerras mundiais, nazismo, guerras do Vietnã e Golfo Pérsico, entre outras;
- humanismo → anti-humanismo: o florescimento das tendências intelectuais e
filosóficas que pretendiam desenvolver as qualidades essenciais do ser humano projetando-os
para o futuro ( positivismo, marxismo, estruturalismo, socialismo, etc ), dá lugar a um antihumanismo que concentra-se exclusivamente no presente que “não imita a nada, vive e deixa
viver”;
- segurança → desencanto: a época em que o ser humano estava seguro naquilo que
cria dá espaço para um desencanto e fragmentação de todas as crenças, o que lhe produz
desinteresse e desconfiança;
- forte → light: a forte razão ( progresso moral, justiça social e felicidade universal )
dá lugar à um pensamento ‘light’, relativo, inseguro e desiludido;
- esforço → prazer: o trabalho como virtude fundamental será substituído pela cultura
do prazer, onde o saber se busca através do prazer;
- prometeísmo → narcisismo: o ideal do progresso ( ‘Prometeu’ – personagem da
mitologia grega que traz o fogo dos deuses para que os mortais pudessem progredir ) é
substituído pela realização individual da pessoa ( ‘Narciso’ – personagem da mitologia grega
a quem não interessa o progresso, mas a contemplação da auto imagem e o orgulho );
57
- seriedade → humor: a realidade do mundo que tem abandonado as sólidas crenças do
passado, banaliza o real por meio da máscara do humor, ou seja, o humor desenvolve-se como
terapia contra o desengano;
- fundamental → superficial: os pilares ideológicos da modernidade vieram abaixo, só
sobrando as ruínas superficiais de ‘telhados doutrinais’;
- intolerância → tolerância: aqueles que detinham o conceito de verdade absoluta
procuraram impô-la aos demais, gerando um clima de tensão e intolerância, que vai acabar
cedendo lugar à um pensamento mais compreensivo e tolerante;
- formalidade → informalidade: os princípios morais que sedimentavam a seriedade e
a compostura dará lugar a uma informalidade baseada em uma desnecessária necessidade de
se manter as aparências, pois dissociou-se a moralidade das ações humanas;
- necessário → absoluto: a busca de se atingir aquilo que se acredita ser imprescindível
dará lugar a busca pelo efêmero, a sedução pelo acessório.
Assim, a atual sociedade é marcada por um deslocamento cultural de proporções
grandiosas.
“O pós-modernismo é, portanto, uma TENDÊNCIA; é uma época emergente que tem a
ver com uma atitude intelectual e com uma série de expressões culturais que colocam em
cheque os ideais, os princípios e os valores que se acham no centro da estrutura mental
moderna. (...) um fenômeno cultural que acontece em nível mundial, de modo especial no
Ocidente, o que se apresenta como questionador da modernidade que caracterizou a
cultura até agora” ( MARTINS: 2002, p. 46-47 ).
Diante da impossibilidade da construção de uma cosmovisão única, tendo uma
elaboração de múltiplas visões e mundos ( pluralismo ), a alta-modernidade substitui o
conhecimento pela interpretação, tendo como base o ‘método crítico de desconstrução’, sendo
sua medula-epistemológica, que parte do campo da linguística e disseminasse para todas as
áreas do conhecimento, relativisando-os.
58
Podemos destacar Jacques Derrida16, Michel Foucault17 e Richard Rorty18 como os
principais filósofos da alta-modernidade, que aplicaram as teorias do desconstrucionismo
literário ao mundo como um todo.
“Assim como um texto terá uma leitura diferente conforme o leitor, dizem eles, da mesma
maneira a realidade será’lida’ diferentemente por todo o ser dotado de conhecimento
que com ele depare. Isto significa que o mundo não tem apenas um significado, ele não
tem nenhum centro transcendente para a realidade como um todo. (...) No fim das contas,
o mundo pós-moderno não passa de um palco onde se assiste a um duelo de textos”
( GRENZ: 1997, p. 22, 24 ).
Sendo assim, todo este processo históricamente constituído cria e recria mentalidades
que fundamentam rupturas e permanências na atualidade, razão pela qual não podemos deixar
de citar e demonstrar, em linhas gerais, qual a cosmovisão e o legado deixado pelo
protestantismo brasileiro desenvolvido na modernidade ( séc. XIX ) e como relacioná-lo com
a emergente alta-modernidade, com o objetivo de se fundamentar uma nova proposta de
espiritualidade.
3.4 – Protestantismo brasileiro e Modernidade: fundamentando uma cosmovisão.
“A fé bíblica exige a proclamação do Cristo vivo para as necessidades atuais,
mas não exige necessariamente a rejeição dos traços culturais da modernidade “
( John Landers – Teologia dos Princípios Batistas )
16 (El Biar, Argélia, 15 de julho de 1930 — Paris, 8 de outubro de 2004) foi um importante filósofo
francês. Criador do método filosófico chamado desconstrução. O seu trabalho é frequentemente
associado com o pós-estruturalismo e o pós-modernismo (esta última associação encontra-se presente
tanto quanto Jean-François Lyotard é a relação mais próxima entre a desconstrução e o pósmodernismo, propondo uma significação filosófica deste último). Entre as principais influências de
Derrida encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. - http://pt.wikipedia.org/wiki/Derrida >
acesso em 25/03/07.
17 (Poitiers, 15 de outubro de 1926 — Paris, 26 de junho de 1984) foi um filósofo e professor da cátedra
de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France desde 1970 a 1984. Suas teorias sobre o
saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções modernas destes termos, motivo pelo qual é
considerado por certos autores, contrariando a sua própria opinião de si mesmo, um pós-moderno. http://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_foucault > acesso em 25/03/07 )
18 Nascido em New York em 04 de outubro de 1931, Rorty segue a filosofia contemporânea na sua
tendência de desinflacionar a noção de verdade. A filosofia, para Rorty, não tem mais razão de se
circunscrever à atividade de encontrar fundamentos últimos ou primeiros, de caráter metafísico e/ou
epistemológico,
para
toda
a
cultura,
para
toda
a
ação
humana.
http://www.filosofia.pro.br/modules.php?name=News&file=article&sid=61#_ftn5 > acesso em
25/03/07
59
Mendonça ( 1990 ) nos esclarece como é difícil falarmos em protestantismo brasileiro
diante de sua diversidade, razão pela qual nos fala em protestantismos brasileiro que
inseriram-se no Brasil, inicialmente, como resultado de um movimento migratório no início
do século XIX ( 1810 – abertura dos portos no Brasil e incentivo governamental à imigração
européia ) e em decorrência da expansão missionária ocorrida a partir de 1850, com o objetivo
de propagação da fé.
A partir disso, identifica-se dois importantes momentos do desenvolvimento e inserção
dos ‘protestantismos’ no Brasil, a saber:
-
Protestantismo de Imigração: ligado à cultura religiosa européia mais estável e
com tendência crescente para um ajustamento à cultura brasileira;
-
Protestantismo de Missão: ligado à cultura religiosa estadunidense, menos estável
e em constante ebulição, com tendência para manter o confronto com a cultura
brasileira. “Surgiu a vocação norte-americana de transferir para a América
Latina os benefícios do ‘sonho americano’ ou do ‘estilo americano de vida’, cujos
componentes são patriotismo, racismo e protestantismo. Tem sido comum a tese
de que foi esse caldo de cultura o ponto de partida das missões protestantes na
América Latina” ( MENDONÇA: 1990, p. 31 )
Sendo assim, são apontados os seguintes ramos que formaram a configuração
institucional do protestantismo de missão no Brasil: congregacionais, presbiterianos,
metodistas, episcopais e batistas.
Estas igrejas tradicionais de origem missionária não conseguiram inserir-se na
sociedade brasileira, mesmo depois de algumas terem se afastado das missões estrangeiras.
Neste ponto, analisaremos como se dá a conversão no pensamento e na prática do
protestantismo tradicional brasileiro.
A partir de uma perspectiva histórica e teológica, Filho e Maraschim ( 1986 ) nos
informam que o protestantismo brasileiro caracterizou-se por uma forte doutrinação e rigor da
disciplina que impõe a seus membros.
É marcado por teologias e práticas tidas como absolutamente verdadeiras, sendo
herança do pietismo alemão, puritanismo inglês e do avivalismo e religião civil
estadunidense, desenvolvendo-se aqui como uma espécie de sincretismo oficial, porém, não
tendo a pretensão de adaptar-se à cultura ou à problemática do meio em que se inseriram.
60
Nestas, a verdadeira conversão se dá através do ingresso do indivíduo na igreja
figurando a passagem do mundo dos homens e de Satanás para o Reino de Deus, o que
acentua e exacerba o dualismo ( platônico e cartesiano ) e afirma as duas realidades opostas e
excludentes.
Assim, a conversão é vista como fuga do mundo e do maligno diante da expectativa do
discurso sobre o fim do mundo e a ação fulminante da justiça de Deus, o que acaba por
ofuscar a idéia de ‘parousia’ ( volta de Cristo ), tornando sua esperança frustrada.
Isto acaba por reforçar a idéia de igreja institucional como agência do Reino de Deus,
sendo mediadora da conversão e marcada por uma rígida disciplina, pois, só ela detém os
meios de conversão: pregação, testemunho pessoal, leitura da Bíblia ou algum outro escrito
“inspirado”.
Diante destas questões evidecia-se dois passos para o caminho da salvação e entrada
na ‘comunidade do Espírito’:
-
Resultado de uma experiência mística ( choro, desmaios, visões, etc );
-
Resultado de uma educação religiosa ( escola dominical ).
No primeiro caso, há uma profunda inversão de cultura e valores causada por uma
ruptura brusca e imediata da cultura e valores éticos existentes até então, gerando uma
aceitação incondicional da doutrina e dos costumes da comunidade religiosa, de uma forma
radical.
Já no segundo caso, há uma ruptura gradual, pois geralmente são indivíduos que
nasceram em famílias onde esta educação religiosa está presente e recebida desde a infância.
Em ambas, a chamada ‘ santificação’ será considerado um longo processo que durará a
vida toda do indivíduo, marcado pelo aprofundamento da verdade doutrinária e total
submissão à disciplina da comunidade, caracterizada pela inversão cultural e de valores éticos
que, em última análise, significa a inserção cada vez mais na cultura e nos valores éticos do
protestantismo anglo-saxão, o que vai se expressar nas músicas, vestuário, sistema políticoeconômico ( capitalismo ), etc.
Sendo assim, ser protestante é estar pleno da ‘verdade’, uma verdade que acaba
definindo e condicionando todos os outros aspectos do saber e do viver a partir de uma
‘doutrina correta’, que impõe uma maneira de viver e constituir-se como visão de mundo
estabelecida ( ideologia ). Desta forma, é evidente que é pelo seu comportamento que o
indivíduo vai demonstrar à sua comunidade e à toda sociedade que ele pertence à comunidade
61
dos verdadeiros convertidos, na medida em que sua maneira de pensar e comportamento
tornam-se idênticos às doutrinas e às disciplinas de sua comunidade, o que dará ao indivíduo
o sentimento de segurança de sua salvação pessoal ( viver segundo a “LEI” – Gl 3:10-12 ).
“Sendo individualista, a ética protestante gerou um comportamento submisso à fatores e
normas externas. (...) Quem estabelece o que é lícito ou não, é a comunidade religiosa.
Aos membros dessa comunidade cabe apenas submeter-se à disciplina. A alternativa, em
caso de não submissão, é ser penalizado pela comunidade. A penalização formal vai da
advertência até a exclusão, passando pela suspensão de votos ou do acesso à mesa de
comunhão. A penalização informal ( a mais frequente ) acontece no isolamento
progressivo do infrator. Nesse caso, ele vai deixando de ser confiável à comunidade,
perdendo seus cargos e posições, até o seu afastamento total, quando então é eliminado
do rol da igreja” ( FILHO: 1986, p. 57 ).
No entanto, todo este bem estar do indivíduo na comunidade é vivido sobre o
estabelecimento de um código disciplinar, onde qualquer conduta contrária é caracterizada
como pegado e logo catalogada, para que fique claro à comunidade o que pode e o que não
pode se fazer.
Nisto, o que se deve fazer é frequentar os cultos, escola dominical, reuniões sociais da
comunidade, participar da burocracia administrativa ( caso convidado ), dar o dízimo e
contribuir periódicamente para a “obra do Senhor”, ser submisso à ortodoxia e disciplina, ser
bom pai ou mãe, bem como bom marido ou esposa, ser trabalhador, disciplinado, honesto, ser
bom cidadão, patriota, submisso às autoridades constituídas e às leis da nação
Na relação do que não se deve fazer, em síntese, não se deve pecar. Não se deve
quebrar a lei de Moisés ( Decálogo ), fumar, beber bebidas alcoólicas, dançar, dar-se à vícios
ou banalidades.
“Ora, o templo do Espírito não tem chaminé ( para a fumaça produzida pelo fumo ), nem
anda cambaleante ( sob o efeito da bebida ) e tampouco ainda saracoteando ( bailando ).
(...) O ócio é visto como perigo, pois conduz ao deboche e à preguiça. E ‘mente vazia é
oficina do diabo’. Assim, a programação semanal das igrejas prevêm que, especialmente
os jovens e juvenis, devem ter todo o seu tempo consumido em atividades religiosas e
recreativas desenvolvidas nas dependências da Igreja e sob o olhar atento de algum
adulto que se responsabilize por eles. (...) a banalidade é outro perigo que deve ser
62
combatido. Ela assume muitas formas: as ‘fofocas’ das sociedades femininas; os
‘arranjos ou conchavos’ das sociedades de homens; as roupas, pinturas, bijuterias
‘mundanas’ dos jovens e juvenis” ( FILHO: 1986, p. 57 )
Em síntese, a disciplina exercida na comunidade religiosa ( igreja ) cumpre um papel
fiscalizador, onde cada indivíduo tem a responsabilidade de cuidar do seu comportamento,
porém, deve vigiar os passos de todos os outros membros. A disciplina possui dupla função:
estabelece o que é certo ou errado ( pecado ou não ) na prática da cosmovisão da comunidade,
e, para separar os bons dos maus, o “trigo do joio” ( o bom é aquele que segue a vida nesta
disciplina, o mau é aquele que a quebra ).
Caso haja exclusão da comunidade, o arrependimento e as penalizações servem para
trazer de volta a “ovelha desgarrada” ou o “filho pródigo”, desde que as formalidades sejam
observadas.
Neste ponto, nota-se que o critério de julgamento do protestantismo tradicional passa
de uma forma direta para a aparência do comportamento, sem um juízo psicológico de suas
motivações.
Assim, toda a disciplina do protestantismo tradicional visa o controle da mente e do
corpo. Uma vez que a mente dirige o corpo, controla-se a mente através da doutrinação e
apenas se fiscaliza as ações do corpo para saber se está ajustado e agindo de forma coesa com
a ‘doutrina’.
Este domínio ideológico não pode ser vencido com a libertação do corpo, mas, com a
libertação da mente. “(...) qualquer teologia que pretenda ser voltada para a libertação do
corpo deve, antes de mais nada, reconhecer que a escravidão que a cultura cristã impôs ao
corpo é consequência da dominação ideológica” ( FILHO: 1986, p. 62 ).
Tendo fundamentado, mesmo que de uma forma geral, sintética e específica, a
cosmovisão da ideologia do protestantismo brasileiro na modernidade, podemos situar a
proposta de uma nova espiritualidade a partir da alta-modernidade neste mesmo contexto
protestante.
63
3.5 – Espiritualidade e alta-modernidade: quebra de paradigmas, desafios e
oportunidades.
“Gostaria de saber apenas uma coisa: foi pela prática da Lei que vocês
receberam o Espírito, ou pela fé naquilo que ouviram ? (...) É evidente que diante
de Deus ninguém é justificado pela Lei, pois o justo viverá pela fé (...) em Cristo
Jesus “ ( Galátas 3:02, 11, 26 – NVI )
“O fato de que um resistente político como Dietrich Bonhoeffer possa ser citado
como um profeta da espiritualidade pós-moderna é reconfortante” ( Philip
Sheldrake )
Aos olhos da alta-modernidade, apesar de vários aspectos contraditórios e até mesmo
negativos que ela nos apresenta, como nos apontam vários autores, vemos que o
protestantismo tradicional brasileiro vivia ( ou vive ? ) imerso num controle ideológico da
mente, uma escravidão mental transcendentalista e totalmente desconectada da realidade
cultural do mundo em que está inserido, com o objetivo de formatar os indivíduos dentro de
aspectos doutrinários e denominacionais ( institucionais ) por intermédio da fiscalização e da
disciplina do corpo, que vem tentando se atualizar, flexibilizar e adaptar-se durante o século
XX com o objetivo de manter-se no cenário histórico, bem como suas instituições.
Tendo a modernidade favorecido um protestantismo exacerbadamente racional, faz-se
necessário a luz da alta-modernidade o discernimento de como é possível viver de uma
melhor forma a fé cristã neste novo contexto, partindo-se da valorização da experiência do
indivíduo em sua cultura, bem como respeitando a multiplicidade de crenças em seu contexto
de existência. Inclusive, vale lembrar neste ponto, mesmo que contraditóriamente e
paradoxalmente à realidade vivida e experienciada na prática, que um dos princípios da
teologia batista, que é filha da modernidade, é o da liberdade de consciência e competência do
indivíduo, inclusive na interpretação pessoal das Escrituras, conforme Landers ( 1987 ).
Olhando por este prisma, a alta-modernidade constitui-se como oportunidade de
reavaliação, readaptação e abertura para o desenvolvimento de uma espiritualidade sadia,
baseada a partir da possibilidade e oportunidade de libertação da consciência de todos os
64
aspectos opressores que o indivíduo vivia dentro dos quadros disciplinares e doutrinários do
protestantismo tradicional brasileiro da modernidade.
Paul Tillich ( 1992 ) afirma que todas as vezes que a Igreja não responde
satisfatóriamente aos anseios espirituais e existenciais do mundo na sua realidade histórica
concreta, este mundo cria para si respostas e caminhos que procuram sanar suas necessidades
e angústias existenciais.
Assim, na impossibilidade do protestantismo tradicional brasileiro prover respostas às
necessidades da sociedade em que está inserido, por estar mais preocupado com a salvação da
alma e do espírito, bem como em manter a hegemonia de seu estatuto de verdade absoluta e
de seu patrimônio, é que a própria sociedade começará a formular ou criar respostas que,
numa realidade futura posterior ( alta-modernidade ), poderá se tornar a resposta para as
próprias contradições internas e externas deste protestantismo alienado.
Podemos até mesmo considerar que, partindo-se das contradições internas do próprio
protestantismo no início do século XX, os grupos pentecostais, pára-eclesiásticos e,
posteriormente, os neopentecostais, sejam as respostas desejadas ou caminhos para o
atendimento de uma necessidade emergencial de se viver ou resgatar uma espiritualidade
( reforma ? ) que estava sendo negligenciada, diante das factualidades históricas concretas
vividas diante das reais necessidades daquele contexto histórico, político e social. Porém, esta
é uma discussão que por hora não nos interessa aprofundar neste trabalho.
Bonhoeffer ( 2004 ) afirma que o princípio do discipulado está diretamente
relacionado à proclamação da libertação do ser humano de todos os preceitos humanos e de
tudo quanto oprime, sobrecarrega e provoca preocupações e tormentos à consciência, ou seja,
a libertação da mente, e, consequentemente, da disciplina e alienação do corpo, como
enfatizado no que entendemos ser o lado negativo do protestantismo tradicional moderno.
Martins ( 2003 ), citando Castañera19, diz que a alta-modernidade permite que o
cristão re-simbolize novamente o testemunho da revelação, que está tradicionalmente
envolvido em uma metafísica moderna e de conceitualismos, e o redescubra na linguagem do
amor e do perdão, no coração da vida, no caminho privilegiado da experiência humana.
“Uma atitude, ao meu ver, mais sensata, de início, consistirá em considerar o momento
não como uma ameaça ou tentação, mas como uma grande oportunidade. A crítica pósmoderna leva-nos a uma autocrítica do nosso cristianismo” ( MARTINS: 2003, p. 90 )
19
CASTAÑERA, Angel. La Experiencia de Dios en la Postmodernidad. Madri: PPC, 1992 ( p. 160 ).
65
Sendo assim, na cultura da alta-modernidade, o cristão pode se expressar com um forte
predomínio da experiência sobre a razão e sobre a própria explicação e experiência da fé,
contrariamente ao princípio do protestantismo tradicional brasileiro na modernidade que,
lamentavelmente, minimizou a experiência do indivíduo considerando-a quase nula diante do
texto das Escrituras e, porque não, da Lei.
Assim,
“alguns observadores cristãos vêem no pós-modernismo o potencial para libertar a
religião das noções de respeitabilidade determinada com bases puramente racionais. (...)
As raízes da espiritualidade contemporânea encontram-se em uma ênfase na experiência
humana” ( SHELDRAKE: 2005, p. 24-25 ).
Não podemos omitir o fato de que na alta-modernidade todo o critério que valida a
experiência é o bem-estar pessoal, baseado nos julgamento das emoções e dos sentimentos,
que acabam reforçando um espírito e postura individualista.
É a revolta do espírito humano em razão do aprisionamento que a cultura racional
( modernidade ) impôs sobre a civilização ocidental.
Nisto, a temática espiritualidade tem uma estreita relação com o espírito humano na
alta-modernidade com seu protesto contra o racionalismo alienante, porém, acabou por
desenvolver novas formas de alienação e superficialidade, valorizando mais o ‘fazer’ que o
‘ser’, invertendo a necessidade de contemplação pela ação e trocando a sabedoria pela
tecnologia, conforme Souza ( 2005 ). É uma forma de espiritualismo marcadamente narcisista
e fundamentado na psicologia moderna e numa antropologia egocêntrica.
Desta forma,
“ o grande desafio que o cristianismo tem de enfrentar é o de afirmar a centralidade da
morte e da ressurreição de Cristo na reconciliação com Deus e na experiência espiritual,
assim como a autoridade das Escrituras Sagradas tanto para a teologia como para a
antropologia” ( SOUZA: 2005, p. 32 )
Conforme afirma Sheldrake ( 2005 ), alguns teólogos desacreditam as teorias da altamodernidade como base para o aprofundamento da fé, alegando que a alta-modernidade não
66
oferece nenhuma profundidade espiritual, pois desconstrói o sentido de verdade absoluta, põe
em suspeita a linguagem religiosa tradicional e as necessidades de realidades transcendentais,
bem como não possui uma ética definida.
Contudo, há a necessidade de uma espiritualidade voltada para a conversão integral, e
não somente a conversão de convicções, que valorize mais o processo de santidade, a
sabedoria e a contemplação, bem como uma linguagem que fale mais ao coração do que a
mente.
Neste sentido, a alta-modernidade, apesar de todas contradições e paradoxos, permite
o surgimento e abertura de um ambiente de graça pautado numa cultura relacional que cria e
recria uma identidade centrada na pessoa, mesmo no meio do protestantismo tradicional
brasileiro, levando as várias denominações e igrejas a repensarem e reavaliarem seu papel,
significância e importância de fato no contexto da sociedade em que esta inserida.
Contrariamente ao período marcado pela modernidade, atualmente, a experiência
individual e/ou coletiva da fé, da conversão, tem toda a relevância para a legitimação de uma
espiritualidade tida como autêntica, o que, de uma forma mais abrangente, é influenciada e
impulsionada pela cultura de uma forma geral.
Esta é a ponte que nos permite um diálogo efetivo com a cultura e a sociedade de uma
forma geral, um inserir-se no mundo, na realidade, onde a verdadeira mensagem do evangelho
pode ser pregada e ouvida, tendo na pessoa de Jesus Cristo, no ‘lógos’ eterno ( Jo 1:01 ) sua
centralidade e chave hermenêutica. Pois, em síntese, o evangelho não é pautado no texto da
Lei, como compreendia a teologia moderna, mas é pautado no conhecimento do Espírito do
texto, o Senhor Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, a si mesmo e a realidade do mundo. Ou seja,
é uma experiência, a priori, relacional, da ordem da fé.
“Amar é conhecer. Não se pode conhecer a Deus simplesmente com boas informações
sobre ele. O conhecimento de Deus e a comunicação deste conhecimento requerem um
relacionamento pessoal com ele e com aqueles a quem esta verdade é comunicada”
( SOUZA: 2005, p. 25 ).
Não basta conhecer ( saber ), é necessário relacionar-se ( viver ), ou seja, não existe
conhecimento dissociado de relacionamento, pois, havendo, ambos tornam-se alienados.
A partir do princípio do discipulado e da vocação cristã proposta por Bonhoeffer, há a
possibilidade de se entender uma nova espiritualidade para a alta-modernidade, sendo
67
cristocêntrica, comunitária, pautada na graça preciosa, centrada no testemunho das Escrituras,
totalmente comprometida com a realidade do mundo, vivida na experiência de fé dos
indivíduos e, de uma forma mais específica, comprometida com nossa realidade brasileira,
abrindo a oportunidade para o diálogo, a relação, o respeito e o posicionamento social e
político, pois, nossa cultura também é serva de Cristo.
Conforme nos aponta Sheldrake ( 2005 ), uma das lições mais importantes que a altamodernidade pode ensinar à espiritualidade é a necessidade de rejeitar essa dicotomização
platônico-cartesiana da realidade, entre o sagrado e o secular, abrindo-se para uma
espiritualidade equilibrada que leve a sério a ordem ‘secular’ como um ingrediente essencial
da fé e práticas cristãs.
68
Considerações Finais
“A Boa Nova significa que podemos parar de mentir a nós mesmos” ( Brennan
Manning ).
O objetivo deste trabalho foi demonstrar a relevância que a vida, testemunho e
pensamento de Dietrich Bonhoeffer têm para o viver cristão no século XXI, em particular
para a realidade da espiritualidade e teologia brasileira.
A pesquisa bibliográfica aponta para muitos matizes a serem explorados, pois, como
vimos, incluem aspectos históricos, sociais, políticos, teológicos e filosóficos que permitem
uma dilatação da temática proposta, bem como a abertura de novos questionamentos,
apontamentos e perspectivas de pesquisa que contribuam para a discussão em torno da
espiritualidade e vida cristã na contemporaneidade.
Porém, partindo-se do contexto histórico, vida e obra, e, especificamente do conceito
de discipulado de Bonhoeffer, todo trabalho desenvolveu-se a partir da construção e análise
deste conceito e sua relação com os conceitos de vocação cristã e espiritualidade na altamodernidade.
O conceito e pensamento de Bonhoeffer sobre o papel do discipulado na vida cristã
pode ser aplicado e contribuir de forma decisiva na formação vocacional específica, bem
como teológica, e na vida comunitária e individual dos cristãos na alta-modernidade, por
estabelecer um ponto de congruência e convergência, mesmo uma chave hermenêutica de
interpretação e relação diante da realidade, a saber, Jesus Cristo na realidade do mundo.
A ação do discípulo na realidade concreta do mundo parte de sua integralidade como
ser humano feito imagem e semelhança de Deus restaurada e reconciliada em Jesus Cristo,
rompendo-se com o princípio da dicotomização existencial platônica e cartesiana.
O discípulo é aquele que, no seguimento e imitação de Jesus Cristo, acaba
desenvolvendo a sua vocação humano-cristã integral no mundo e a concretização deste
desenvolvimento é o que caracterizamos por espiritualidade.
Sendo assim, a partir de Bonhoeffer, espiritualidade cristã é o desenvolvimento de
todas as nossas potencialidades como pessoas recriadas a imagem e semelhança de Deus a
partir de Jesus Cristo, de uma forma integral e responsável na realidade concreta da
existência no mundo e na cultura.
69
Esta espiritualidade manifesta-se a partir da ‘doutrina dos quatro mandatos’, onde por
intermédio do trabalho, matrimônio, autoridade e Igreja, o discípulo de Cristo vive o
processo do discipulado desenvolvendo uma vocação cristã integral na cultura em que está
inserido, vivendo plenamente uma vida cheia de significados e sentido a partir de Cristo, em
Cristo e por Cristo, seja na infância, adolescência, fase adulta e velhice, sendo este o desejo
de Deus para toda a humanidade.
Nisto, é possível ser discípulo de Cristo e ser brasileiro ? Há relação entre discipulado
e brasilidade ?
Sim, só se é possível ser um autêntico discípulo de Cristo se for autenticamente um
brasileiro consciente de sua realidade cultural, sócio-política e econômica.
É possível ser discípulo de Cristo e ser autenticamente um brasileiro quando
verdadeiramente nos abrimos à uma autêntica espiritualidade a partir ‘de Cristo’, ‘por
Cristo’ e ‘em Cristo’ na realidade do mundo, ou seja, na realidade da cultura brasileira,
procurando compreende-la, avaliando e reavaliando as ‘patologias psíquicas’ ( OLIVEIRA
– Cuidando de quem cuida: 2005 ) criadas pela modernidade e reatualizadas na altamodernidade por nosso ‘protestantismo’ evangélico brasileiro.
Uma espiritualidade que pregue e priorize a
mensagem e o viver do evangelho
autêntico da ‘graça preciosa’ e incondicional de Deus, o evangelho do encontro da imagem
e semelhança de Deus com seu real sentido, sua vocação, sua espiritualidade, sua não
alienação da realidade.
Neste sentido, como cristãos, desenvolver nossa brasilidade significa caminhar em
direção de nossa vocação, o desenvolvimento de uma espiritualidade autêntica que siga em
direção e função da restauração e reconciliação da cultura com Cristo, ou seja, agindo como
agentes da reconciliação, ‘agentes da graça’.
Pinheiro ( 2001 ) afirma que a cultura popular brasileira é uma cultura mestiça que
expressa sua identidade a partir do gosto pelo viver a vida, pelas festas, pela música, a
dança, pela comida e pelo sexo. Porém, tal identidade não é algo dado, mas vai sendo
construído também a partir dos elementos externos e das pressões da globalização no
presente que se vive.
Sendo assim, o brasileiro realiza-se a partir do relacionar-se, onde a liberdade, a
amizade e a solidariedade acontecem na comunidade, onde sua pessoalidade e criatividade
atingem os níveis mais altos.
70
“Para o brasileiro a religião não pode ser vivida individualmente (...) É um ser
que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para
enfrentar os desejos impostos por elementos e realidades alheias a seu cotidiano.
A esse processo de alianças, o brasileiro chama de amizade e companheirismo”
( PINHEIRO: 2001, p. 99 – 101 ).
Nisto, quando afirmamos a cultura à qual pertencemos, através da busca de
compreensão da identidade de nosso povo, bem como sua busca de felicidade e
transcendência ( busca inclusive visível a partir do tempo do acontecimental, do evento, como
no caso do carnaval, do futebol, da roda de choro e de samba, etc ), criamos uma abertura e
damos um primeiro passo que nos possibilita o dialogo entre espiritualidade e brasilidade.
O conviver com as diferenças a partir de uma cultura relacional, mestiça e
aglutinadora, alegre e aberta para o novo, bem como a busca de uma espiritualidade e de uma
transcendência na realidade concreta da existência, foi o perfil e caráter justamente negado
pelo protestantismo de missão de uma realidade imersa em aspectos culturais que, muito antes
de se pensar em alta-modernidade, já era uma forte marca de identidade de nosso povo,
forjada pelas contradições do desenvolvimento de nossa cultura e historicidade.
É justamente a restauração do diálogo e busca de compreensão de nossa identidade
cultural que a alta-modernidade veio favorecer para o ‘protestantismo’ evangélico brasileiro,
possibilitando à este a oportunidade do desenvolvimento de um ambiente de graça onde seja
possível viver, conviver, restaurar e interagir com a cultura, procurando reconcilia-la com
Cristo nos seus aspectos negativos e afirma-la nos seus aspectos positivos pois, em última
análise, apontam para nossa vocação, a saber, ser discípulo de Jesus Cristo e ser brasileiro na
realidade concreta de nossa brasilidade, de nossa existência.
Tudo isto com o objetivo de sermos porta-vozes e agentes da reconciliação em defesa
da criação, do direito do ser humano como imagem e semelhança de Deus a desenvolver todas
suas potencialidades, da justiça social e o combate a opressão política, econômica e
psicológica, do resgate da dignidade dos excluídos, da fidelidade à Deus, da honestidade,
enfim, agentes da ‘graça preciosa’, incondicional e libertadora de Deus em Cristo Jesus na
realidade concreta de nossa brasilidade.
Por fim, só é possível sermos discípulos autênticos de Cristo se nossa vocação
humano-integral cristã e espiritualidade estão na direção daquilo que potencialmente somos
71
em essência pela ordem da criação e do mandato divino: imagem e semelhança de Deus em
Cristo Jesus e brasileiros.
Bonhoeffer entendeu este princípio em sua realidade contextual e, justamente por tê-lo
vivido até as últimas conseqüências, como discípulo de Jesus Cristo e alemão, seguiu as
pisaduras do Mestre e seu exemplo, experimentando o martírio e deixando-nos o exemplo de
como imitar o Mestre e viver como sua testemunha na realidade concreta do mundo.
72
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78
ANEXO
Cronologia do III Reich
Profa. Dra. Izabela Maria Furtado Kestler ( UFRJ ).
1933
- 30.01 – Hitler é indicado para assumir o cargo de Chanceler ( Primeiro-Ministro ) pelo
presidente General von Hindenburg.
- 01.02 – O Parlamento federal é dissolvido. São convocadas novas eleições para o dia 5 de
março.
- 27.02 – Incêndio criminoso do Parlamento ( Reichstag ). O governo nazista culpa os
comunistas e na mesma noite manda prender a oposição comunista e social-democrata. O
presidente promulga a lei de defesa do Estado, que instala o Estado de exceção na Alemanha.
Os direitos civis são cassados, os governadores dos estados da federação são substituídos por
Comissários ( Reichskommissare ). A partir desta lei a Alemanha permanece em Estado de
exceção permanente. O incêndio do Reichstagdá início à fuga em massa de alemães
( políticos, escritores, artistas, etc ) contrários ao nacional-socialismo. No total até pelo menos
1940, cerca de 500 mil alemães se tornam refugiados nos países vizinhos da Alemanha. Até
pelo menos 1940 a maioria deles estará nos países vizinhos da Alemanha: França,
Tchecoslováquia ( até 1939 ), Holanda, Suíça, Inglaterra e também na União Soviética.
- 05.03 – Eleições sem o partido comunista ( proibido ). Apesar da propaganda maciça, o
partido nacional-socialista não alcança a maioria de votos, somente 43%. Hitler precisa do
apoio da direita tradicional do general Hindenburg para ter a maioria do parlamento.
- 24.03 – Hitler consegue aprovar a lei de plenos poderes ( Ermächtigungsgesetz ) no
Parlamento que dá a se governo por 4 anos o poder de promulgar leis sem consulta ao
Parlamento. Esta lei é prorrogada sempre até 1945. Nos meses de maio e junho todos os
partidos restantes são fechados e postos na ilegalidade. O partido nacional-socialista torna-se
o único partido. Há a dissolução dos sindicatos e criação da organização Deutesche
Arbeitsfront ( Frente do Trabalho Alemão ). Os estados da federação perdem autonomia.
Principais ministros do governo nazista: Hermann Göring ( inicialmente Ministro do
Interior ), Joseph Goebbels ( Ministro da Propaganda – responsável pelo controle da
79
imprensa, vida cultural e pelo culto ao Führer ), Heinrich Himmler ( criador e dirigente da SS
– tropa de elite nazista e, a partir de 1936, Chefe da Polícia Alemã – responsável pela
repressão política e, desde 1933, responsável pelos campos de concentração ).
- 01.04 – Boicote a lojas pertencentes a judeus alemães. Havia na Alemanha na época cerca
de 400.000 judeus de nacionalidade alemã e 109.000 judeus de outras nacionalidades, um
total de cerca de meio milhão de pessoas. Eles eram portanto 0,76 % da população total.
- 02.04 – Judeus alemães são afastados dos cargos públicos ( juízes, professores, artistas,
jornalistas, etc ). Os judeus alemães foram proibidos de exercer suas profissões.
- 10.05 – Queima ritual de livros de autores alemães da oposição ao nazismo assim como de
autores de origem judaica. Este ritual aconteceu em todas as cidades universitárias alemãs e
na capital Berlim, por iniciativa das organizações estudantis e comandada por Joseph
Goebbels.
- 14.07 – Promulgação da lei de prevenção à prole com doenças hereditárias ( Gesetz zur
Verhütung erbkranken Nachwuchses ) que previa a esterilização forçada de deficientes
mentais, esquizofrênicos, maníacos-depressivos, cegos e surdos de nascença e deficientes
físicos. Esta lei e outras que vão se seguir visavam a proteção da pureza da “raça ariana”. Em
pouco tempo começa um programa de assassinato de indivíduos considerados “indignos de
continuar vivendo” ( doentes, deficientes mentais, etc ). Para este fim, foram instaladas
câmaras de gás e crematórios nos asilos. A mesma técnica vai ser utilizada mais tarde nos
campos de extermínio. Estima-se que o número de assassinados situa-se entre 80.000 a
100.000 pessoas.
- 23.08 – Primeiras listas de cassação de cidadania são publicadas nos jornais nazistas com
fotos de expatriados, denominados Traidores do Povo.
- 01.12 – Inauguração dos primeiros campos de concentração.
1934
- 14.06 – Encontro de Hitler com Mussolini em Veneza. Em 1936 Alemanha e Itália assinam
o pacto do Eixo, mais tarde o Japão se associa a estes.
- 30.06 – “Noite das longas facas” – Os líderes da tropa de choque nazista ( SA ) são mortos e
outros fuzilados. Com estes assassinatos, Hitler consegue o apoio do Exército Alemão, que
não aceitava a permanência da tropa de choque armada.
80
- 20.08 – Morte de Hindenburg. Hitler torna-se então “Führer e Chanceler”. Nos anos
seguintes até 1938, o partido nazista consolida seu poder ilimitado através do culto ao Führer,
da repressão política a qualquer tipo de oposição, da propaganda maciça ( rádio, jornais,
literatura nazista, filmes ) e das políticas bem sucedidas de pleno emprego ( obras públicas ).
O Exército aumenta o seu contingente e inicia-se o rearmamento da Alemanha. A
uniformização e militarização da sociedade são praticamente totais. As principais
organizações nazistas são: SS, SA, Hitlerjugend ( Juventude Nazista ), Bund deutscher Mädel
( Federação das Moças Alemãs ), DAF ( Deutsche Arbeitsfront ), etc. Todas as organizações
corporativas ( Justiça, Ensino Universitário, funcionalismo público, etc ) se tornam
organizações nazistas.
1935
- 15.09 – Promulgação da lei de proteção ao sangue alemão e à honra alemã ( Gesetz zum
Schutz des deutschen Blutes und deutschen Ehre ). Judeus alemães perdem os direitos civis e
políticos. Casamentos inter-raciais são proibidos.
1936
16.07 – Início da Guerra Civil Espanhola com a invasão do sul da Espanha pelas tropas do
general Francisco Franco. A Alemanha participa da guerra ao lado dos franquistas,
bombardeando cidades espanholas que estavam nas mãos do governo republicano espanhol.
Esta guerra é considerada o ensaio geral para a II Guerra Mundial. A Guerra Civil termina em
1939 com a vitória de Franco.
- 01.08 – Olimpíadas em Berlim.
1937
- 18.07 – Grande exposição em Munique de “Arte Degenerada” ( Arte Moderna,
expressionista ).
- 01.08 – propriedades pertencentes a judeus alemães são confiscadas e “arianizadas”.
1938
81
- 13.03 – Anexação da Áustria ( Anschlub ).
- 16.03 – Tropas alemãs invadem a Áustria. Hitler visita Viena e é festejado pela multidão em
seu país natal. Mais de 70.000 pessoas são presas logo depois da anexação.
- 17.08 – Judeus alemães e austríacos são obrigados a adotar os nomes de Sarah ( mulheres ) e
Israel ( homens ).
- 29.09 – Tratado de Munique entre Alemanha, França, Itália e Inglaterra ( sem participação
do governo da Tchecoslováquia ) cede região dos Sudetos na Tchecoslováquia ( Sudetenland
) com população majoritariamente alemã ( 3,5 milhões ) à Alemanha.
- 01.10 – O Exército Alemão invade e ocupa os Sudetos. O Tratado de Munique é o auge da
política de apaziguamento da Alemanha conduzida pelos governos inglês e francês para evitar
a eclosão de uma II Guerra Mundial.
- 09.11 – “Reichskristallnacht” ( Noite dos Cristais ) – Por ordem de Goebbels, na noite de 09
para 10 de novembro todas as sinagogas na Alemanha são incendiadas, lojas de judeus são
demolidas e mais de 26.000 judeus são presos e levados para campos de concentração.
Proprietários de lojas judeus, firmas e indústrias são forçados à transferir suas propriedades
para “arianos”.
1939
- 30.01 – Hitler anuncia no Parlamento a aniquilação da “raça” judaica na Europa durante a
futura guerra mundial.
- 14.03 – Eslováquia se desliga da Tchecoslováquia e torna-se um país independente, , mas
vassalo da Alemanha nazista.
- 15.03 – O resto da Tchecoslováquia ( Boêmia e Moravia ) é incorporado à Alemanha. O
Exército Alemão ocupa estas regiões. Com a anexação da Áustria e a ocupação destas regiões,
inicia-se a política de Conquista de Espaço Vital para o Povo Alemão ( Lebensraumpolitik ).
Esta política é parte fundamental do programa ideológico do nazismo. Parte integrante desta
política é também o incentivo ao aumento da população alemã com a condecoração, por
exemplo, de mães que tivessem muitos filhos ( Mutterkreuz ).
- 20.03 – Obras de arte moderna consideradas “degeneradas”, que já estavam fora dos
museus, são destruídas.
82
- 23.08 – Tratado de não-agressão entre Alemanha e União Soviética. Cláusula secreta: em
caso de uma invasão alemã na Polônia, a União Soviética ocuparia o leste da Polônia. A
Polônia é basicamente dividida entre ambos os países neste Tratado.
- 01.09 – A Alemanha invade a Polônia: inicia-se a II Guerra Mundial. A Polônia capitula no
dia 27.09.
- 03.09 – França e Inglaterra declaram guerra à Alemanha.
- 17.09 – União Soviética invade e ocupa o leste da Polônia como havia sido acordado no
Tratado de não-agressão.
- 12.10 – A Polônia ocupada é dividida em duas regiões: a região que faz fronteira com a
Alemanha é incorporada ao território alemão ( poloneses são expulsos nos meses seguintes
para dar lugar aos colonos alemães – “lebensraumpolitik” ) e o território do centro do país é
também ocupado pelo governo nazista. A população polonesa dos territórios incorporados à
Alemanha é forçada a se instalar nesse território do centro do país. Poloneses são obrigados a
prestar trabalho forçado por serem considerados “de uma raça inferior” e os judeus poloneses
são recenseados e forçados a se instalar em guetos nas cidades polonesas e a realizar trabalhos
forçados.
- 23.11 – A partir desta data é obrigatório o uso da Estrela de Davi pelos judeus poloneses.
1940
- 09.04 – Invasão da Dinamarca e da Noruega.
- 10.05 – Início da invasão da Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França.
- 14.06 – Exército nazista ocupa Paris.
- 22.06 – França assina tratado de rendição, cujo artigo 1º suspende o direito de asilo de
alemães, austríacos e tchecos refugiados na França.
- 10.07 – O governo colaboracionista francês está sob o comando do marechal Pétain e do
Primeiro-Ministro Laval, com sede na cidade de Vichy. Este governo só tem o controle do sul
da França, não ocupada pela Alemanha.
- 13.08 – Início do bombardeio aéreo da Inglaterra com o objetivo de possibilitar a invasão
deste país pela Alemanha. Os bombardeios causam grandes perdas humanas e materiais. No
entanto, a força aérea alemã também sofre muitas perdas. Com isso Hitler não consegue
atingir seu objetivo de alcançar a soberania sobre o espaço aéreo britânico. Em outubro de
83
1940 o plano de invasão da Inglaterra é abandonado, mas os bombardeios continuam pelo
menos até março de 1941.
1941
- 01.02 – No início de fevereiro a Alemanha se vê obrigada a socorrer a Itália ( aliada ) que
tentava invadir o Egito. As forças britânicas lutavam contra a Itália.
- 11.02 – Envio de tropas alemãs ao norte da África. A Itália, que havia invadido a Albânia
em 1940, estava também em dificuldades nesta região por causa do avanço de tropas gregas,
apoiadas pelo exército britânico. A esta altura, Romênia, Eslováquia e Hungria eram estados
aliados da Alemanha. Para garantir o flanco do sul da Europa, a Alemanha invade a Bulgária,
Grécia e Iugoslávia em abril de 1941. Em pouco tempo estes países se rendem.
- 25.02 – Ocorrem greves na Holanda sob domínio nazista em protesto contra a perseguição
aos judeus.
- 22.06 – Início da Operação Barbarossa: ataque à União Soviética. Objetivo: Conquista de
Espaço Vital, escravização do povo russo ( considerado como “raça” inferior ) e destruição do
comunismo. Até outubro de 1941 três exércitos alemães conseguem ocupar vastas áreas da
União Soviética e um deles chega até Moscou. A cidade de Leningrado é cercada por tropas
alemãs e a Ucrânia também é totalmente ocupada. No entanto, o avanço das tropas alemãs é
detida no início de dezembro pelo inverno rigoroso. Stalin proclama a contra-ofensiva e a
chama de “Grande Guerra Patriótica” em defesa da “Mãe Russa”. O exército soviético
começa a se reorganizar e a contra-atacar o exército alemão na Ofensiva de Inverno. Nas
regiões russas ocupadas pela Alemanha há o início dos assassinatos em massa de judeus
russos pelas tropas da SS.
- 31.07 – Início do planejamento da assim chamada “Solução Final” da questão judaica.
- 19.09 – Judeus alemães são obrigados a usar a Estrela de Davi. Até esta data mais de
270.000 haviam conseguido fugir da Alemanha. Havia ainda mais de 200.000 que não tinham
conseguido escapar.
- 29.09 – Massacre da população judia de Kiev, capital da Ucrânia.
- 01.10 – Proibida a imigração de judeus alemães.
- 16.10 – Início da deportação dos judeus alemães para os campos de concentração e
extermínio situados sobretudo na Polônia ocupada. Com o início da II Guerra, aumenta o
número de campos de concentração de 22 para 165, sendo que muitos foram construídos nas
84
regiões ocupadas da Polônia. Dentre eles estava o mais notório e todos: o campo de
concentração de Auschwitz. Inaugurado em 01.06.1940, Auschwitz se tornou em termos de
tamanho e de número de vítimas o maior de todos os campos de concentração por ser ao
mesmo tempo campo de trabalho escravo e campo de extermínio. Ligados aos campos de
concentração funcionavam indústrias químicas, de motores e sobretudo de material bélico.
Em Auschwitz, por exemplo, foi construído o campo anexo de Birkenau (Auschwitz II ) ainda
em 1941 que era campo de extermínio e em 1942 o campo de Monowitz (Auschwitz III ) no
qual se instalou o complexo químico da Ig-Farben. Surgiram também de 1942 a 1944 cerca de
40 campos anexos ao de Auschwitz nas proximidades de fundições, minas e fábricas, onde
trabalhavam como escravos os prisioneiros de Auschwitz. Estes trabalhadores escravos eram
selecionados na rampa da estação de trens dentro do campo de Auschwitz. Aqueles que eram
considerados aptos a trabalhar, ganhavam uma sobrevida nos campos de trabalho e aqueles
que não eram considerados aptos, eram imediatamente conduzidos à câmara de gás. Estima-se
que pelo menos 3 milhões de judeus foram assassinados nas câmaras de gás dos campos de
extermínio. Os campos de extermínio situavam-se quase todos na Polônia ocupada: Treblinka,
Sobibór, Majdanek, Belzéc, Stutthoff, Culm, Gross Rosen e Auschwitz-Birkenau. Para estes
campos eram enviados os trens com os deportados dos grandes guetos da Polônia assim como
os deportados da Alemanha, Áustria e de outros países europeus ocupados. Calcula-se que a
Alemanha nazista aprisionou em campos de concentração cerca de 7,2 milhões de pessoas,
dos quais só cerca de 500.000 sobreviveram.
- 07.12 – Ataque japonês a Pearl Harbor. EUA declara guerra ao Japão e logo a seguir a
Alemanha e Itália.
1942
- 20.01 – Conferência nazista à beira do lago Wannsee, próximo a Berlim. Lá é decidida a
implementação da “Solução Final” : extermínio dos judeus.
- 26.04 – Hitler passa a ser o Comandante e Chefe do Exército Alemão.
- 21.07 – Início da evacuação dos judeus do gueto de Varsóvia, que são levados para
Treblinka.
- 22.08 – Conferência dos Aliados em Moscou ( Stalin – Churchill – Harriman ).
- 07.11 – Exércitos aliados ( Inglaterra e EUA ) desembarcam no norte da África.
85
1943
- 02.02 – O Exército Alemão é vencido e se rende na Batalha de Stalingrado. 90.000 soldados
alemães são aprisionados pelas tropas soviéticas. Somente cerca de 6.000 retornam à
Alemanha muito tempo depois do fim da II Guerra. Cidades alemãs começam a ser
bombardeadas intensamente pela força aérea britânica e estadunidense.
- 18.02 – Goebbels proclama em Berlim, diante da multidão reunida no Palácio dos Esportes,
a “Guerra Total”.
- 19.04 – Início do levante de judeus no Gueto de Varsóvia, de onde já haviam sido
deportados até então cerca de 300.000.
- 16.05 – O levante é sufocado pelas tropas nazistas, o gueto é incendiado e os sobreviventes
do levante são deportados para Treblinka.
- 13.05 – As tropas alemãs no norte da África se rendem.
- 11.06 – Himmler ordena a liquidação dos guetos na Polônia e na Rússia.
- 10.07 – Exércitos aliados desembarcam na Sicília ( Itália ).
- 25.07 – Mussolini é demitido do cargo de Primeiro-Ministro da Itália e preso a seguir por
ordem do rei da Itália.
- 03.09 – Exércitos aliados desembarcam na Itália.
- 08.09 – A Itália se rende.
- 12.09 – Mussolini é retirado da prisão na Itália pelos alemães e levado para o norte da Itália,
onde proclama o retorno do governo fascista.
1944
- 18.03 – A Alemanha invade e ocupa a Hungria, depois que tropas soviéticas haviam
conseguido invadir a Romênia ( país vizinho da Hungria ). No mesmo dia da invasão alemã,
chega à capital Budapeste Adolf Eichmann, encarregado de realizar a deportação dos cerca de
750.000 judeus húngaros.
- 15.05 – Início das deportações de judeus húngaros para Auschwitz-Birkenau. As
deportações de judeus gregos também se iniciam neste mês.
- 06.06 – Desembarque das tropas aliadas na Normandia ( Dia-D ).
- 20.07 – O atentado contra Hitler fracassa. O autor do atentado, Coronel Claus Schenk von
Stauffenberg, e mais três conspiradores são presos e executados no mesmo dia. A Resistência
86
contra o nazismo, formada por oficiais do Exército, diplomatas e intelectuais é desbaratada.
Mais de 200 homens e mulheres são julgados no Tribunal do Povo ( Volksgerichtshof ) e
condenados à morte.
- 01.08 – Início do levante de Varsóvia contra os alemães.
- 15.08 – Desembarque aliado no sul da França.
- 19.08 – Início do levante em Paris contra os alemães.
- 25.08 – Os alemães se rendem em Paris e a cidade é liberada. A Romênia declara guerra à
Alemanha.
- 08.09 – A Bulgária declara guerra à Alemanha.
- 11.09 – As tropas estadunidenses chegam à fronteira da Alemanha.
- 02.10 – O levante em Varsóvia é sufocado e mais de 200.000 foram mortos. Antes de se
retirar da cidade, as tropas alemãs incendeiam Varsóvia e destroem sua canalização.
1945
- 12.01 – A ofensiva soviética força o recuo das tropas alemãs da Polônia e do território
alemão da Prússia Oriental.
- 30.01 – Último discurso de Hitler no rádio.
- 13.02 – Há o bombardeio da cidade de Dresden. Budapeste é libertada pelas tropas
soviéticas.
- 07.03 – O exército aliado atravessa o Rio Reno e chega à Alemanha.
- 11.04 – Os prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald ( Alemanha ) conseguem
se libertar.
- 13.04 – As tropas soviéticas conquistam Viena.
- 16.04 – Há a ofensiva soviética sobre a cidade de Berlim.
- 25.04 – As tropas estadunidense e soviética se encontram as margens do Rio Elba em
Torgau.
- 27.04 – A Áustria é declarada independente.
- 29.04 – Há a capitulação do Exército Alemão na Itália. Mussolini é preso e executado pelos
italianos.
- 30.04 – Hitler e sua esposa, assim como Goebbels e sua esposa, suicidam-se no bunker em
Berlim. A esposa de Goebbels envenena seus próprios filhos.
- 02.05 – Berlim se rende.
87
- 08.05 – Capitulação da Alemanha nazista.
- 05.06 – Os aliados assumem o controle sobre a Alemanha.
- 06.08 – EUA lança bomba atômica em Hiroshima ( Japão ).
- 09.08 – EUA lança bomba atômica sobre Nagasaki ( Japão ).
- 02.09 – Japão se rende incondicionalmente.
- 20.11 – Início do processo contra criminosos de guerra no Tribunal Militar Internacional de
Nürnberg ( Nuremberg ) na Alemanha.
Perdas humanas civis e militares na II Guerra Mundial: cerca de 40 milhões.
88