Revista Vocare 2014

Transcrição

Revista Vocare 2014
VOCARE
4ª Edição / 2014
ISSN 2358-8608
Revista do Programa Vocacional
Pesquisa-ação em arte
nos territórios da cidade
Prefeitura de São Paulo
Fernando Haddad
Secretaria Municipal de Cultura
Secretário
João Luiz Silva Ferreira - Juca Ferreira
Secretário Adjunto
Alfredo Manevy
Chefe de Gabinete
Guilherme Varella
Coordenação de Assessoria Técnica
João Brant
Revista do Programa Vocacional
Uma publicação da Divisão de Formação
Artística e Cultural
Projeto da Secretaria Municipal de Cultura
em parceira com a Secretaria Municipal de Educação
Ano 4 - número 4
São Paulo, novembro de 2014
Impressão
Windgraf Gráfica e Editora
Esta revista foi impressa no papel Off Set 90g
nas fontes Akzidenz-Grotesk e Adobe Garamond
Formato 25 cm x 33 cm
72 páginas
Tiragem: 3 mil
Periodicidade: Anual
Programa Vocacional
Av. São João, 473 - 6ºandar
01035-000 - São Paulo - SP
Tel. 11 33970166 / 11 33970167
[email protected]
www.cultura.prefeitura.sp.gov.br
As publicações da Divisão de Formação Artística e Cultural são um
canal democrático e plural de ideias e pensamentos de agentes
culturais. As opiniões e conteúdos expressos nesta revista e nos links
que levam a sites externos são de total responsabilidade de seus
autores e administradores.
Assessores
Aurélio Nascimento
Airton Marangon
Gabriel Portela
Laura Belles de Moraes
Luciana Piazzon Barbosa de Lima
Paulo Roberto Tadeu Menechelli Filho
Thais Ruiz
Assessoria Jurídica
Thomas Américo De Almeida Ross
Assessoria de Comunicação
Giovanna Longo
VOCARE
Revista do Programa Vocacional
Departamento Pessoal
Luiz Peres
Informática
Lorelei Gabriela Castro Lourenço
Manutenção
Cid Carlos de Souza
Protocolo
Egydio Bottura Junior
Divisão de Formação Artística e Cultural
Diretor de Formação
Mica Farina
Coordenador Administrativo
Ilton Toshiaki Hanashiro Yogi
Departamento de Expansão Cultural
Coordenação de Ação Cultural
Priscila Tamis
Flávia Giacomini Costa
Assistência Técnica
Rodrigo Marx Matias Cardoso
Equipe
Mercedes Cristina Rocha Sandoval
Gilmar China Kane Bueno de Souza Leite
Isabella de Souza Rodrigues
Diretor Geral
Eduardo Augusto Sena
Assistência Jurídica
Silvia Gomes da Rocha di Blasi
Erika Maren Motta
Divisão Administrativa
Marcelo Rugério Bianchi
Divisão de Formação Artística e Cultural
Mica Farina
Divisão de Produção
Sulla Andreato
Divisão de Programação
Rafael Nascimento da Cunha
Núcleo de Contratação de Natureza Artística
Giovanna de Oliveira Gobbo
Secretaria Municipal de Educação
Secretário
Antonio Cesar Russi Callegari
Assessoria Especial / Sala CEU
Marta de Betânia Juliano
Assistente Técnico de Educação
Daniela do Nascimento Rodrigues
Equipe Editorial
Comissão Editorial
Andréa Tavares, Cintia Campolina, Flávio Camargo,
Ilma Guideroli, Mariana Galender, Sérgio Segal,
Suzana Schmidt e Talita Caselato.
Contabilidade
Walter da Rocha Lima
Design gráfico
Editora Mínimas
Compras
Fabio Enéas Magri
Revisão
Elaine Cuencas Santos
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
1
ÍNDICE
Editorial......................................................................................... 4
A formação no centro da agenda cultural............................ 6
Juca Ferreira
EMIA, Vocacional e PIÁ:
Trajetórias, singularidades e desafios.................................... 7
Eduardo Augusto Sena
O agente público artesão
e a cidade em formação........................................................... 8
Mica Farina
Ensaio para políticas intersetoriais
ou Sobre cultura, saúde
e outras políticas de fronteira.................................................. 9
Priscila Tamis
REFLEXÕES
EXPERIÊNCIAS
MEMÓRIA
Vocar...........................................................................................11
Você me Entende? ............................................................... 35
Pensar a partir da distância ............................................... 55
Leonel Dias
Herbert Henrique
Luiz Pimentel
POP Performance..................................................................... 12
A escuta como processo cartográfico:
pela experiência do corpo como
lugar de passagem................................................................. 38
Encontro com o Público........................................................ 58
Vanderlei Lucentini
Ateliê contemporâneo e público:
espaço/tempo de trabalho...................................................... 16
Andréa Tavares
Escrita à deriva: paisagens
do Programa Vocacional...........................................................19
Luiz Claudio Cândido
Traçando caminhos para as práticas
artístico-pedagógicas no Vocacional Música...................... 23
Carolini Lucci
Entrevista com MariaTendlau................................................ 62
Reflexões acerca do ensino da arte ................................. 40
Conversa entre grupos........................................................... 64
Ângela Coltri
Notas sobre vazios ou um breve relato
sobre o elefante branco.......................................................... 42
Ilma Guiderolli
A matéria do invisível...............................................................43
André Luiz Martinez Sant’Anna
Daniela Schittini
Entre ilhas e naufrágios
práticas de deriva na Cracolândia........................................25
Ensaio sobre uma trajetória - as danças
urbanas no programa vocacional ........................................45
Rafael Presto
Ivo Alcântara
Questões recorrentes, martelando na mesma
tecla ou é possivel ampliar o programa
sem resolver pendências anteriores?.....................................28
Traçando Limites ......................................................................47
Pedro Campanha
O projeto vocacional sob a perspectiva
da autorregulação na aprendizagem musical.................... 30
Claudia Polastre
Celso Frateschi
Murilo Gaulês
Arte e política, potência criativa .......................................... 49
Banda Bellize – registro de memória................................. 65
Luis Reys
Ensaios virtuais..........................................................................66
Vários autores
Processos artísticos, tempos e espaços:
Encontro sobre formação artístico-cultural
na cidade de São Paulo...........................................................67
Andrea Fraga, Cintia Campolina, Fafi Prado,
Flávia Giacomini, Priscila Tamis, Priscilla Vilas-Boas,
Suzana Schmidt e Zina Filler
Equipe Vocacional 2014..........................................................68
Lígia Botelho
Dance para ser desenhado ..................................................52
Lara Dau Vieira
O homem cachorro em:
o enigma do mestre ignorante..............................................32
Leonardo Moreira e Stefano Noelli
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VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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EDITORIAL
A
revista Vocare traz em sua quarta edição um panorama
acerca das reflexões e práticas em andamento do Programa Vocacional focalizado em duas vertentes: pesquisa-ação e memória.
Compreendendo o trabalho dos artistas orientadores
e coordenadores como possibilidade de investigação constante, a
equipe do Programa contou com a escrita ensaística como procedimento para impulsionar a reflexão criativa sobre o que se
experimenta na prática, nas suas relações com os equipamentos
culturais nos quais atuam e com a própria cidade e no empreendimento de seus processos artístico-pedagógicos.
A pesquisa-ação tem como característica a investigação participativa, é o pesquisador atuando lado a lado com seu objeto de
pesquisa e, por isso, constantemente se questionando a respeito
da sua própria intervenção, observação e ação. Assim, essa atitude
de pesquisa também pressupõe um envolvimento não apenas com
as questões artísticas, mas também socioculturais que norteiam o
todo o trabalho da equipe do programa.
Dessa maneira, os ensaios apresentados nesta edição demonstram a apreciação da própria experiência junto aos artistas vocacionados, abordam questões e descobertas na criação de materialidades artísticas e processos pedagógicos e trazem a atitude crítica
como característica marcante proporcionando o questionamento
do próprio trabalho e muitas vezes apontando para novas possibilidades na investigação artística.
O foco na memória do Programa é inaugurado nesta edição, a
partir de uma iniciativa de artistas orientadores que se preocuparam em avaliar a construção e evolução do Programa Vocacional,
suas bases artístico-pedagógicas, avanços, desacertos e conquistas.
Notamos que esse é um foco relevante para a pesquisa dentro
do Programa e esperamos dar prosseguimento a este trabalho nas
próximas edições.
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VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
A parceria com os artistas do Projeto Artes Visuais também se
faz marcante nesta edição. Os artistas propõem um projeto gráfico
com a intenção de transmitir visualmente o afeto, o ser afetado e
o afetar tratando a experiência no Programa como a exposição ao
conjunto de fatos que ocorrem na cidade. Através de conectivos símbolos que representam conceitos e linguagens – há a proposta
da leitura dos artigos como a entrega à experiência e à memória
como seleção e não simplesmente sedimentação de conteúdos.
Percebe-se a fragmentação como possibilidade de mapeamento e
reunião dos afetos, daí a preferência por detalhes de imagens e não
por privilegiar imagens mais descritivas das ações. Os conceitos
utilizados nessa navegação são os seis princípios norteadores do
Programa Vocacional, assim como as cinco linguagens como campos expandidos de ação e atração. Há proposta nesta edição de
que o leitor/pesquisador marque os tags/conectivos como forma
de criar seus próprios caminhos por entre as sessões apresentadas. O encarte da revista também é proposto como um material
investigativo e é apresentado como um dispositivo poético, um
portolano de pequisa-ação para a revista e que pode ser expandido
como ação para o espaço da cidade.
Esperamos que, desta maneira, nossos leitores sejam instigados
pelo prazer, pela reflexão e pelos desafios que os artistas têm em
sua complexa tarefa de se defrontar com a proposição e o desvelamento de processos criativos emancipatórios por entre a amplitude socioeconômica e cultural da cidade de São Paulo.
Cintia Campolina
Suzana Schmidt
Equipe Vocacional Artes Visuais
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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EMIA, Vocacional e PIÁ:
trajetórias, singularidades e desafios
A
S
ão Paulo se consolida como uma das principais capitais
culturais do mundo. Nos últimos anos, cresceu a oferta
de programação e outras iniciativas artísticas, com forte
atuação do poder público na produção, financiamento
direto e fomento dessas atividades.
A Prefeitura de São Paulo conta hoje com uma ampla rede de
equipamentos culturais. São mais de 200 espaços, como teatros,
bibliotecas, centros culturais, CEUs e Casas de Cultura, que aliam
programação diversa e de qualidade com atividades de formação
artística.
No âmbito das ações de formação da Secretaria Municipal de
Cultura, o papel dos programas PIÁ, Vocacional e a Escola Municipal de Iniciação Artística é estratégico. Esses programas de
formação estão em franco crescimento e têm sido fortalecidos,
aliando objetivos de iniciação artística com formação de novos
públicos. Em 2014, 84 espaços da cidade ofereceram mais de 8
mil vagas para crianças, jovens, adultos e idosos.
Por meio da parceria entre as Secretarias de Educação e Cultura, o PIÁ e o Vocacional vêm ampliando sua rede de atuação, e
ganharam força com a retomada, neste ano, da gestão compartilhada dos CEUs. A Secretaria também investiu na reflexão sobre
esses processos com a realização do Seminário ‘Processos Artísticos, Tempos e Espaços’.
Ainda no âmbito das novas políticas que estão em fase de implantação, a recente incorporação da primeira infância e da terceira idade são estratégicas para atuar efetivamente no campo da
inclusão. Em parceria com o São Paulo Carinhosa, programa da
Prefeitura de São Paulo com foco na primeira infância, as ações
para este público devem ser incrementadas no próximo ano. Está
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VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
prevista também para o ano de 2015 a ampliação das linguagens
oferecidas, incluindo literatura, circo, fotografia, moda e cultura
digital.
Além de seu objetivo primordial, tais programas de formação
ajudam também a identificar e apontar demandas e necessidades
culturais em diversos pontos da cidade, pois são ações capilarizadas nos territórios, que quando incorporadas e transformadas em
políticas públicas contribuem para a valorização da pluralidade de
manifestações.
A Secretaria Municipal de Cultura pretende seguir no aprimoramento e ampliação de suas atividades de formação, garantindo
também reflexão qualificada e avaliação permanente de suas iniciativas.
Juca Ferreira
Secretário Municipal de Cultura de São Paulo
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo realiza
continuadamente diferentes ações que tem por objetivo
fomentar o fazer artístico e cultural, propiciar a experimentação estética e o desenvolvimento de processos
criativos emancipatórios. Realizadas em uma rede de
equipamentos públicos espraiada por todas as regiões da cidade,
oferecem a um público bastante diversificado vivências e meios
que potencializam o desenvolvimento autônomo de seus universos simbólicos. Nesse cenário, o Departamento de Expansão
Cultural (DEC), através de sua Divisão de Formação Artística e
Cultural, é responsável pela gestão de três importantes iniciativas,
portadoras de características distintas, mas que compartilham esses propósitos e cujas ações se direcionam para o seu alcance.
Com uma trajetória que completa 35 anos em 2015, a Escola
Municipal de Iniciação Artística (EMIA) se consolidou, ao longo
desses anos, como umas das mais importantes instituições destinadas ao público infantil na cidade. Desenvolvida a partir de
uma inovadora metodologia, fundamentada na integração das
linguagens de música, dança, teatro e artes visuais, e concebida
para atuar junto à faixa etária compreendida entre os 5 e 12 anos,
a EMIA ofereceu, em 2014, um total de 1.800 vagas. Durante a
gestão da Prefeita Marta Suplicy, em reconhecimento dessa trajetória, e com o objetivo de estender para um público mais amplo
o acúmulo de vivências que tem palco na EMIA, foi realizado nos
Centros Educacionais Unificados o Programa “EMIA nos CEUs”.
Em 2008, a partir dessa experiência, e da atualização de seus
princípios conceituais e metodológicos, nasce o Programa de
Iniciação Artística – PIÁ, que vem construindo uma trajetória
e identidade próprias. Gradualmente implementado em diferentes equipamentos públicos desde então, o programa atende atualmente 1.800 crianças em 18 equipamentos públicos (Centros
Educacionais Unificados, Bibliotecas, Centros Culturais), além
do projeto piloto desenvolvido em parceria com a EMEF Brigadeiro Henrique Fontenelle.
Com um percurso singular, que contou com a participação ativa de artistas e atores culturais na sua formulação e desenvolvimento, o Programa Vocacional, que completou 13 anos em 2014,
realiza suas atividades em mais de 70 equipamentos, localizados
em todas as regiões da cidade e responsáveis pelo oferecimento
de mais de 4.600 vagas, distribuídas nas linguagens de música,
dança, teatro, artes visuais e artes integradas. Resultado dessa
INSTITUCIONAIS
A formação no centro
da agenda cultural
capilaridade e alcance, o programa vem se afirmando como um
importante agente articulador das dinâmicas culturais locais, envolvendo tanto indivíduos quanto grupos e coletivos artísticos.
Em conjunto, a atuação dos quase 350 artistas, que anualmente tomam parte dessas iniciativas, é responsável pelo florescer de
novas vocações, vivências e percepções e, importante ressaltar, de
uma memória cultural viva da cidade.
Contudo, essa formidável estrutura, reconhecidamente bem
avaliada como estratégia de implementação de políticas públicas com foco na iniciação e formação cultural, também precisa
enfrentar desafios e lacunas importantes. Primeiramente, se faz
necessário reconhecer que o alcance desses programas ainda é insuficiente para atender a demanda observada pela Secretaria Municipal de Cultura.
A inclusão de novas linguagens, notadamente nas áreas de livro e leitura, bem como a expansão das ações para atendimento
específico do público de terceira idade e da primeira infância nos
programas, projetos e ações da Divisão de Formação Artística e
Cultural, conformam tópicos que tem sido reiteradamente solicitados nas escutas e diálogos públicos realizados pela Pasta.
É igualmente imperativa a necessidade de formulação e desenvolvimento de novos marcos operacionais, aptos a captar a multiplicidade dos atores culturais e as novas formas de organização
que as dinâmicas culturais contemporâneas admitem, bem como
adequar os programas à modos mais adequados de gestão, que
permitam aos artistas e profissionais envolvidos lograr melhores
condições de trabalho.
O método adequado para romper esses obstáculos e vencer esses
desafios, acreditamos, deve estar assente no diálogo constante entre os diferentes atores interessados (artistas, usuários, Poder Público) e na criação de estratégias que consideram as premissas que
orientam as ações (e aspirações) de cada parte.
Desse modo, é possível admitir que do embate de ideias e proposições seja possível emergir as bases que irão orientar as ações
futuras dessas iniciativas que, desde sempre e então, se fortaleceram a partir de uma plataforma que tem como força motriz a ação
coletiva e colaborativa, e a interação entre o público e o artista.
Eduardo Augusto Sena
Diretor do Departamento de Expansão Cultural
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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artesão
e a cidade em formação
U
m luthier é um artesão. Busca sonoridades. Pesquisa madeiras, materiais, formatos e fluxos. Cria e constrói exoesqueletos - prolongamentos dos dedos, dos punhos, do
coração que percutem, amplificam, filtram e modulam
vibrações no mundo. É também um esteta da pólis. Todos, fundamentalmente, o são.
Podemos definir o cidadão cultural como um esteta da pólis.
Um agente público é também um artesão. Que cidade estará
construindo o artesão agente público?
Diferença como expressão, igualdade como razão
A diferença é matéria prima da expressão cultural. Da diferença,
identidade e de suas relações nascem as culturas. Diferença não
é sinônimo de desigualdade como poderíamos imaginar. E igualdade não é massificação. Na vida urbana, cada vez mais urbana e
menos vivida, esta pseudo-igualdade, não a de direitos e oportunidades, mas aquela reduzida à hegemonia cultural, sustenta para
todos e tudo que é preciso aniquilar para assim, consumir mais.
Uma criança de doze anos já assistiu mais de 20 mil assassinatos
reproduzidos em telas. Sem perceber, extenuados e excitados, nós
adultos capturamos o tempo expressivo das crianças. Nosso filho
sonhou com uma heroína com asas de borboleta, ela tinha uma
cicatriz no queixo e não vendia doces e balas nos faróis.
O tema da formação em evolução
Retorno ao artesão agente público. Quais serão os instrumentos
do amanhã? Michel Serres afirma que o “mundo mudou tanto
que os jovens precisam reinventar a roda”. Missão compartilhada pela formação cultural. Ouvimos, ao mesmo tempo, ecos do
pensador italiano Umberto - “algumas invenções não podem ser
melhoradas”.
Um francês pensou o mundo enquanto raízes, um alemão pensou com espinhos, nós, queremos folhas, flores, odores e cores.
Há cidades dentro da cidade: imensas, invisíveis, um mapa da
exclusão. Uma política redistributiva não significa dividir mentes
e espíritos. Significa outra coisa. Não significa reforçar ou levantar
novos muros. Significa conviver. Parece inexistir um único problema público que possa ser tratado individualmente, isolado ou
segregado. Precisamos de todos.
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VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Ensaio para políticas intersetoriais
ou Sobre cultura, saúde
e outras políticas de fronteira
INSTITUCIONAIS
O agente público
Cidadania cultural, saberes e convivência
A atualidade da cidade de São Paulo aponta de um lado, para
a ampliação dos tempos e espaços formadores, com mais acesso,
participação e diversidade, e do outro, para a insistente manutenção da capitalização dos indivíduos submetidos ao jogo mercadológico.
São Paulo se revê nesta gestão que busca avançar superando
paradigmas culturais opressivos e excludentes que levaram seus
habitantes a se enclausurarem em seus domínios privados, nos habitáculos de seus carros, e territórios que reforçam guetos e muros.
As políticas culturais do município se revestem de estratégias
para reverter esta lógica com o resgate e a valorização do espaço
público; o fortalecimento do diálogo na construção das políticas
públicas e no seu reconhecimento como elemento democrático
por excelência; na atualização e na recuperação de iniciativas criativas para a cidade; e na busca de sinergias para o enfrentamento
de problemas públicos que emperram a construção de uma cidade
mais inclusiva e humana. Mais festiva, alegre e feliz.
Práxis - diretrizes da formação artística
e cultural para a cidade
Finalizamos assim, recomeçando. Seguimos caminhando em
direção diversa daquelas que reduzem a experiência artística e a
vivência cultural a seus valores mercadológicos e a sua dimensão
eventual. Reafirmamos as diretrizes das nossas políticas de formação com a radicalidade de uma produção artística e cultural para
toda e qualquer idade, para todo e qualquer tempo, em todo e
qualquer espaço:
Promover a formação artística e cultural livre e emancipadora;
Fortalecer as políticas de cidadania cultural;
Democratizar o acesso à formação artística e cultural para todos;
Contribuir para as políticas setoriais de formação cultural;
Contribuir para a memória cultural da cidade e de suas políticas
de formação;
Estabelecer projetos de formação para formadores.
2014, é primavera em São Paulo.
Mica Farina
Diretor da Divisão de Formação Artística e Cultural
A
ideia é a integralidade dos indivíduos e populações, alcance, articulação e garantia de direitos fundamentais.
A ação é a política de agenciamentos na qual os atores
são cada um e todos - agentes públicos na construção
coletiva dos espaços, sejam estes equipamentos, ruas,
trens, ônibus, praças ou avenidas. O método é cartográfico - diálogo, agenciamento de forças e afetos, escrita, planos, ato. O que
nos acompanha - experiência e experimentação, sustentadas pela
emancipação e voz de seus compositores.
Não se alcança integralidade sem a ousadia da disposição e disponibilidade em criar junto ritmo, espaço, tempo, contratempo.
Quando integralizamos nossas práticas conceituais e atitudinais
nos comprometemos com a diversidade de forças que atravessam
um campo e essa é a aposta das políticas intersetoriais. Política de
fronteira, que não despedaça nem fragmenta, borra os especialismos, arranja e desarranja, movimenta e sacode as linhas, alinhavando qualidade intensiva nas parcerias. Afirmamos a transversalização das vidas em acontecimento e do cotidiano da cidade.
Tensionar as certezas é um desvício do olhar de grande utilidade. Articular proposições macropolíticas pede uma constante
complexificação micropolítica de posturas e olhares. E é assim
que a intersetorialidade potencializa nossas ações, tornando-as
mais engajadas com as singularidades territoriais, com as vozes
que constantemente nos alcançam e fazem passagem. Abrimos
interstícios oxigenadores e tornamos o diálogo uma força ativa
de relação para fazer-inventar o que desconhecemos: novas linguagens, novos caminhos e caminhares, novos discursos, novo
corpo... deslocar fronteiras de percepção e afecção.
Tecnologia relacional que dá visibilidade e dizibilidade às diferenças, produzindo responsabilização ética pelos efeitos que constantemente somos capazes e pelas variações de estilísticas que afirmamos. É a produção de subjetividades e subjetivações, as quais
nos implicam histórica e coletivamente aos ambientes, às propostas de cuidado, às dimensões democráticas de organização social.
Aqui subjetividade não é compreendida como propriedade intimista de um sujeito ou por determinações sociais, mas em conexão rizomática com processos sociais, culturais, tecnológicos,
midiáticos, ecológicos, urbanos. Pensamos a subjetividade como
processo e não como estrutura: a ideia de interioridade identitária
cede lugar à de processualidade e pluralidade em constante transmutação e relação com exterioridades, sendo assim processos de
subjetivação.
Em 1986 aconteceu no Brasil a 8ª Conferência Nacional de
Saúde que, de modo complementar e colaborativo à Organização
Mundial de Saúde (OMS), define saúde como “a resultante das
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra
e acesso a serviços de saúde”. Neste sentido, a relação dicotômica saúde/doença do paradigma hegemônico do saber biomédico
(com o fim ideal de conservação funcional do corpo orgânico),
patologizante e quimicoterapêutico, dá lugar ao corpo associado
à mente, às emoções, relações socioeconômicas e coletividades.
Saúde, portanto, que não é da unicidade de um órgão, mas da
trama também rizomática na qual este estabelece suas relações e
funcionalidades, desnaturalizando procedimentos que transformam problemas sociais em problemas de saúde.
É neste sentido criativo e ampliado que as políticas de cultura e
formação artística e cultural estão implicadas com as políticas do
corpo, políticas de narratividades, de produção de saúde, subjetividades e territórios geográficos e existenciais. Está aí nosso desafio
e compromisso, enquanto agentes públicos, enquanto cidadãos.
Este é o intento de uma narrativa dos atravessamentos, da transversalidade das práticas e conceitos - o movimento de uma abertura comunicacional.
Priscila Tamis
Coordenadora de Ação Cultural
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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REFLEXÕES
REFLEXÕES
VOCAR
Leonel Dias
Vocar: tender, escolher, chamar, pender.
Coletivos, bandas, trupes, coros de cena, de corpo, performers, facilitadores e multiplicadores, espíritos e almas em movimento.
Interessados e descompromissados, frequentes e esporádicos, conscientes e alienados desenham o mundo do Vocacional.
Olhando, escutando, dividindo ou distraidamente presentes, artistas pensam se relacionar através de infinitas possibilidades
de protocolos e assuntos: determinação e engano.
Encontros, processos, produtos, papos-cabeça, formas, conteúdos, estudos, pensamentos, vivências, dinâmicas, interlocuções
e explicações fazem par a propostas politicamente corretas e indiscretas: interlocuções e deslumbres por viagens em busca de
um ideal simplesmente próximo e irreal.
O enigmático mundo da imagem, fantasia e realização, permeia o colorido timbrístico das mentes e assola artisticamente
a incômoda proposta da cultura em prol do movimento: transgressão, sem agressão.
Deslocamento: vocação como vontade, manifestação de instinto, reação não passiva a partir de um exemplo sedutor, prazer
pela virtude. Ideia: contrapartida de uma pré-aposta, consciência do inconsistente, a sorte em memória.
Espaço. Verbo, verba, verso. Versão do universo inverso…
Vozes, sussurros, ruídos alternados de agonia e euforia; ansiedade passada e depressão futura. Ritmos, intensidades, durações,
tonalidades súbitas e infinitas: objetos íntimos e não identificados, sujeitos imperceptíveis e assombrosos, criatividade sem imaginação.
Quantos elementos para uma substância idêntica, pura e desconhecida, ardente e degradável. Meio sonoramente poluído
por linguagens recém-ignoradas, gestos indeterminados, conceitos e seitas impregnados de satisfação e dúvida.
Tempo. Arte aplicada à cultura: de graça.
Na prática plástica e messiânica grupos e indivíduos se confundem e identificam figurinos, figuras e configurações através
de realidade ilusória, pesquisa lúdica, difusa: ação sem intensão, padrão sem produção, perdão sem profusão.
Conforme se combinam: espaço se dilui no tempo, a persona em público, atuação disseminada. Ideia permeia a ilusão.
Vocar: querer, ter, gostar.
Leonel Dias é violoncelista, regente e professor. Doutor em
Musicologia pela ECA – USP. Coordenador do Projeto Vocacional
Música.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 11
Vanderlei Lucentini
A
POP Performance surge de uma iniciativa conjunta entre o COLABOR da ECA-USP, o PGEHA-USP, Streaming Museum de Nova York, Espaço Cultural Tendal
da Lapa e o Projeto Vocacional. O evento fez parte do
lançamento internacional simultâneo do videoclipe
Mutual Core da cantora islandesa Björk ocorrido no dia 10 de
agosto de 2013. Além do lançamento do clip, houve um outro
em queforam tratados alguns procedimentos de artistas da cena
pop que transitam pela mixagem da performance art e música
pop como Lady Gaga, Alice Cooper, Björk, Laurie Anderson, entre outros.
A concepção de pop adotada no evento foge ao convencionalismo midiático em relação à questão do, exaustivamente vinculado,
culto da celebridade instantânea e ao hiperconsumo do entretenimento. Para fugir desse estereótipo utilizamos a abordagem de
Nicolas Bouriaud (2011:182) sobre as raízes do pop como uma
forma pura de explosão imagética:
[…] para a qual, mais ainda que como alusões literais de Roy
Lichtenstein como explosões da história em quadrinhos, uma
ampliação (blowup) e a multiplicação representam equivalentes
plásticos da deflagração. A serialidade pop não é uma tradução
apenas da produção de massa, mas também da reação em cadeia
da explosão atômica, uma imagem de um mundo decomponível
ao infinito pela fissão nuclear.
Ao contextualizarmos a relação música e performance art,
percebemos que há poucos estudos na fronteira entre essas duas
linguagens. Contudo, tem proliferado uma quantidade de nomenclaturas que definem essa relação a partir dos anos 50 até
12 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
hoje. No decorrer do processo histórico, esse encontro ficou distribuído em uma pluralidade de rótulos, dos quais podemos citar: gesamtkunstwerk em Richard Wagner, happening em John
Cage, intermedia dos compositores do movimento Fluxus, ópera
multimídia em Jocy de Oliveira e Conrado Silva, teatro musical
em Gilberto Mendes, performance multimídia em Laurie Anderson, brain opera em TodMachover, CNN Opera em John Adams,
teatro total e instrumental em Mauricio Kagel, ópera televisiva
em Robert Ashley, teatrical-performance musicem Steve Reich e
BerylKorot, performance sônica em TrevorWishart, new opera
em Philip Glass e Robert Wilson, electropera de Vanderlei Lucentini e a electro metal rock opera em Lady Gaga.
Performance Art e PerformingArts
Em termos práticos, no campo do estudo da performance, a
palavra designa uma plêiade de trabalhos cujo ponto seminal é a
atuação. Mesmo convivendo amistosamente, esses territórios são
ambíguos e agrupam manifestações atuantes em dois modelos:
performingart e performance art. Assim, torna-se necessário traçar
uma abordagem conceitual que afaste a nebulosidade, apontando
as diferenças entre esses dois enfoques artísticos. Dessa forma, podemos notar a existência de elementos comuns na configuração
das linguagens tradicionais como o teatro, a dança e a música,
rotuladas de performingarts e performance art.
Erwing Goffman (1959:22) propôs quatro fatores comuns na
configuração de qualquer padrão de performance nas linguagens
tradicionais (performingarts) e também na performance art, quais
sejam: o material (som na música, texto no teatro, movimento
Rodrigo Munhoz
REFLEXÕES
PERFORMANCE
na dança), os agentes (os músicos, os dançarinos, os atores), as
obras (uma composição musical, uma coreografia, um espetáculo
teatral) e o público. Contudo, para que esse processo ocorra está
implícita a necessidade da presença física de seres humanos para
desempenharem certas habilidades, por meio de treinamento ou
especialização, atendendo ao requisito da especificidade de cada
linguagem. Segundo Patrice Pavis (2011:27), as artes da cena, o
equivalente inglês para performingarts “são performadas, criadas
diretamente para um público que assiste a representação materializada através do teatro falado, cantado, dançado ou mimicado
(gestual), como exemplos mais conhecidos o balé, a pantomima,
a ópera”.
Performance Art e Vanguardas Históricas
A relação histórica e conceitual da performance arttem, em
grande parte, suporte no trabalho de teóricos como RoseLee Goldberg, Jacob Glusberg e Renato Cohen. Esses autores associam o
surgimento da performance art com as atividades de artistas dos
movimentos vanguardistas do século XX, em particular aqueles
vinculados aos movimentos futurista, cubo-futurista, agitprop,
dadaísta, surrealista e Bauhaus. A historiadora da linguagem, Rose
Lee Goldberg aplica o termo performance a todas as manifestações artísticas precedentes à performance art, tratando as diversas
manifestações anteriores a ela, principalmente as ações surgidas
no seio das vanguardas artísticas europeias, como gêneros da performance.
Como linguagem artística, a performance art não apresenta
uma definição fácil e precisa, pois tem uma agenda ampla e sin-
gular, permitindo aos performers realizarem os mais diversos processos de criação, execução e trânsito entre as linguagens. Além
do uso do corpo em situações inauditas em apresentações ao vivo,
Goldberg (2006: IX) afirma que os praticantes da performance
utilizam também ao seu modo “quaisquer disciplinas e quaisquer
meios como material – literatura, poesia, teatro, música, dança,
arquitetura e pintura, assim como vídeo, cinema, slides e narrações, empregando-as nas mais diversas combinações”.
De uma forma provocativa, a editora Bonnie Maranca (1981:62)
afirma que a maior parte da nova geração que faz performance
está mais em sintonia com os mundos da arte e da música do que
o mundo do teatro. Indo ao encontro dessa afirmação e voltando
aos pré-requisitos determinantes explicitados por Goffman para
a realização de qualquer modelo de performance – o material, o
agente, a obra e o público - nota-se que essa estrutura também
figura na maioria das performances musicais ao vivo. Na esfera
musical, esses quatro componentes estruturantes se materializam
por meio de uma cadeia formada pelo som, compositores/intérpretes, peças musicais e audiência. Em síntese, o padrão da performance musical/sonora consiste de sons/ruídos feitos por músicos
que apresentam essa resultante para uma plateia.
Dessa forma, rumaremos em direção à criação de subsídios teóricos e conceituais nos estudos realizados da performance art em
relação aos campos musicais e sônicos. Em nosso ponto de vista,
músicos são artistas e mostram as suas inquietações estéticas, através de performances, como os artistas da cena e das visualidades.
Similarmente ao que ocorreu, tanto no campo cênico como
nas artes visuais; na música, alguns compositores representativos
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 13
Música como Performance Art
situados na Europa, com mais força, a partir dos anos 60, praticaram procedimentos similares aos de dramaturgos, coreógrafos e
artistas visuais, contudo não adotaram, então, conscientemente,
a nomenclatura performance art. Ao falar da inter-relação entre
teatro (chamado de total) e multimídia, Elliott Schwartz e Daniel
Godfey (1993:137) listam uma série de características que identificam essa vertente da música contemporânea em relação às outras
abordagens, elas são:
•estímulo visual como a iluminação, o filme, slides ou vídeo;
•movimento e fala por parte dos dançarinos, atores ou dos próprios performers musicais;
•objetos físicos ou props, englobando desde objetos domésticos
a esculturas, pinturas e outras formas de artes visuais;
•uso criativo do espaço físico, tal como o posicionamento ou
movimento incomum das fontes sonoras – performers ou alto-falantes – por toda a área da performance;
•participação da audiência na performance e/ou na composição
de uma obra.
Essas abordagens foram colocadas por Schwartz e Godfey, sintetizando a postura de uma nova geração de compositores de vanguarda que colocaram a figura do intérprete musical, na mesma
hierarquia musical dos criadores
14 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Simon Frith foi um dos primeiros pensadores a defender a relação da música com a performance art. A contribuição de Frith para esse debate é transferir esses pontos para além das artes
plásticas e cênicas e relacioná-lo ao campo da música, em que
o músico também opera como um performer, especialmente no
contexto da música popular. Para desenvolver essa afirmação, Frith faz alguns questionamentos importantes que são fundamentais
para qualquer discussão sobre a performance dentro da cultura.
A performance art é uma forma retórica, uma retórica dos
gestos, em que geralmente os movimentos corporais e gestuais
- incluindo o uso da voz - dominam as outras formas de signos
comunicativos, como a linguagem e a iconografia. Para entender
a performance art na música, é fundamental realçar o papel do
corpo e a sua articulação como um objeto (um objeto erótico,
um objeto de atração, um objeto de repulsão, um objeto social) e
entender como um sujeito, que molda o objeto pelo desejo e pela
vontade do performer, cria um objeto com significado. Retoricamente, a performance art não é uma forma de representação,
mas uma postura: ela tem a capacidade de submeter o público aos
movimentos corporais dos performers, como o caso das cantoras
pop Madonna e Lady Gaga.
Frith conceitua esse envolvimento dos artistas pop em um processo classificado de doubleenactment [dupla atuação]:em que se
configura tanto uma star personality (a imagem, idiossincrasias e
as habilidades do performer) e uma songpersonality(a personalidade do narrador da canção). Para Frith o papel requerido do
performer de música pop é ter a habilidade de conduzir as duas
personalidades, atuando simultaneamente em cada canção e fazendo com que o público reconheça esses indícios. Segundo Frith
(1996:171), o movimento interior e exterior dessas “personalidades” no ato de cantar é sempre contextualizado pela ação performática no decorrer de uma série de canções em um concerto para
uma audiência.
volvidas na performance de um músico. Auslander (2006:102)
parte do conceito de personagem para chegar à persona musical
da seguinte maneira:
O conceito de personagem requer uma outra tradução quando
aplicado aos músicos, ao contrário dos atores, obviamente porque
os músicos não costumam retratar personagens fictícios. Eu argumento que quando vemos um músico tocar ou cantar, não estamos simplesmente vendo a pessoa real tocando, como acontece
aos atores, há uma entidade que faz a mediação entre os músicos e
o ato de performance. Quando ouvimos o músico tocar, a origem
do som é uma versão daquela pessoa construída com uma finalidade específica de tocar a música sob circunstâncias especiais. [...]
O que os músicos performam, em primeiro lugar, não é música,
mas suas próprias identidades como músicos, as suas personas
musicais.
Ele utiliza o termo persona para descrever a presença performática, distante de um caráter abertamente ficcional e sem uma
simples equivalência com a identidade real do artista. O autor já
havia previamente colocado o termo persona nas discussões sobre
a performance art, teatro experimental e comédia stand-up. Além
de Auslander, outros teóricos da performance art também utilizaram a palavra persona para designar o modo como o performer se
coloca durante a ação performática.
Mesmo em um enfoque direcionado para a música popular, similarmente adotado por Frith, Auslander enfatiza que o conceito
de persona musical pode, em princípio, ser aplicado a uma ampla
maioria dos músicos – cantores, instrumentistas e regente. E também, independentemente dos gêneros musicais, o termo pode ser
aplicado ao rock contemporâneo, ao jazz, à música erudita, entre
outros.
Partindo desses procedimentos conceituais, obtivemos nas últimas três edições da Pop Performance uma série de construções
performáticas que absorveram e colocaram em cena a resultante
desses procedimentos. Qualitativamente, dentro do evento, tivemos a criação de diversas performances que foram apresentadas
por coletivos, artistas vocacionados e convidados. Os artistas e
vocacionados participantes dos eventos foram: Amor Experimental, Descompanhia Teatral, Loop B, Opera Vlu, Re(c)organize,
Christian Lins, Pedro Klavier, Robson Ferraz, Vitoria Elisabeth,
Alea N, Milena Araújo, Pacheles dos Teclados, Chorões da Freguesia, Amalgamados, M’Bóle, Plataforma Desvio, Aglomerados,
Pedro “Dega” Nazaré, Grupo Olho d’Água, Dona Candinha Trio
e Cantaris. Enfim, o momento tardio da performance na música
chegou e a Pop Performance é a ponta de lança desse processo.
Vanderlei Lucentini é compositor e Mestre em Estética e História da arte pelo PGEHA-USP. A sua área de estudo se direciona
para a convergência entre música, performance art e tecnologia
digital. Atualmente é coordenador regional de ação do Programa
Vocacional na região Norte e Centro-Oeste.
Persona Musical
Philip Auslander (2006:105) acredita que é “difícil imaginar as
diversas modalidades de teatro, ópera, dança ou até mesmo a música de concerto estejam integradas ao cotidiano como a música
popular parece estar e, na performance art, a vida é muitas vezes
integrada à arte e não o contrário”. Diferentes atores, cantores de
ópera e musicais ou até mesmo dançarinos de balé, os músicos
normalmente não retratam claramente personagens ficcionais em
suas performances. Parece, portanto, razoável analisar a performance musical como uma espécie de performance de identidade. Com o intuito de tornar clara a relação entre as identidades
musicais e fugir do termo personagem mais próximo ao teatro
do que da música, Auslander procurou uma nova terminologia
para atender às necessidades e ao funcionamento das camadas en-
Referências bibliográficas
AUSLANDER, Philip. Musical Personae. TDR: The Drama Review, MIT Press, Vol. 50, Nº 1 (T189), Spring 2006, p. 100-119, 2006.
BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989
DIXON, Steve. Digital Performance: a history of new media in theater, dance, performance art, and installation. Cambrigde: MIT Press, 2007.
FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Havard University Press, 1996.
GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. New York: Garden City, 1959.
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Last Gasp Press and Contemporary Arts Press, 1989.
SCHWARTZ, Elliott e GODFEY, Daniel. Music since 1945 issues, materials, and literature. Belmont: Schrimmer, 1993.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 15
REFLEXÕES
Ateliê
contemporâneo e público:
Andréa Tavares
U
m ateliê é um espaço de trabalho. O espaço de trabalho do artista. Um artista se forma e trabalha em um
ateliê. O espaço da pesquisa e da experimentação é um
lugar de trabalho onde se guardam instrumentos e tempo. É um território onde materialidades sugerem ideias
e pensamentos se tornam materiais. O ateliê é um centro social,
uma célula revolucionária, a igreja de uma nova religião, a sala de
trabalho de um comerciante, um continente convencional para
ideias pré-estabelecidas, o lar de um culto, uma fábrica de produtos, uma clínica, uma cozinha limpa, um sótão caótico, um lugar
de experimentação, o covil do artista solitário. Segundo o artista e
crítico Brian O´Doherty desde o século XIX o ateliê é tudo isso,
e posso acrescentar que também é um local de formação, uma
vez que é o espaço privilegiado do fazer e da reflexão artística. O
trabalho do artista conjuga fazer e reflexão muitas vezes de modo
indistinto, não podendo ser percebido com clareza a diferença entre ambas; o fazer considerado como ação transformadora na matéria é reflexão sobre sentidos possíveis enquanto a (re)significa, o
ato de refletir, ainda que mentalmente, por sua vez modificaria o
modo de pensar e o modo de agir sobre ela. O artista norte americano Robert Smithson escreveu certa vez que o artista é capaz de
fazer arte apenas com o olhar. Seria a cabeça do produtor de arte
o seu primeiro ateliê? Talvez.
Na prática artística contemporânea podemos pensar em artistas e mesmos coletivos de arte que não precisam de bases físicas,
como galpões ou salas, o trabalho que antes acontecia desta forma
pode se pulverizar na interação digital, o celular, o tablete ou o
computador podem fazer as vezes do ateliê. Mas o que quero discutir aqui, apesar desta primeira divagação, é um contexto de trabalho e produção artística específico, os ateliês instaurados pelo
Programa Vocacional de Artes Visuais. Digo instaurados porque
16 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
espaço-tempo de trabalho
antes da ação do programa, dos encontros entre artista-orientador
e vocacionados, os ateliês não existiam como tal são instauradas
na prática cotidiana pelos interesses dos artistas vocacionados.
O presente texto parte da hipótese de que o ateliê no Programa
Vocacional é um lugar físico configurado por um desejo. Assim
necessitamos de salas e equipamentos para a experimentação das
linguagens da mesma forma que necessitamos de desejos, artistas
vocacionados.
O objetivo geral do Programa Vocacional segundo o “Material
Norteador” é “a instauração de processos criativos emancipatórios
por meio de práticas artístico-pedagógicas” e o especifico de artes
visuais ode “provocar ações do pensamento criador e imaginativo,
fornecendo meios para a realização de pesquisas que levem a experimentar novas linguagens e novos procedimentos de criação”.
São encontros de 3hs por semana com cada turma e um artista-orientador em equipamentos culturais do munícipio da cidade
de São Paulo. O programa organiza tempo, orientação e espaço
para que os sujeitos interessados em desenvolver uma produção
em artes visuais o possam fazer. Considerando os objetivos podemos concluir que se privilegia a produção individual de sujeitos
que pensam por si mesmos, que podem produzir segundo as suas
necessidades, mas para os quais fornecemos a possibilidade de
experimentar linguagens e procedimentos que talvez desconhecessem. O papel do artista-orientador, relacionado no Material
Norteador do Programa, ao do “mestre ignorante” defendido pelo
filósofo Jacques Ranciere é de provocar uma produção criando
encontros. Na prática o artista orientador questiona e provoca
questionamentos através de proposições práticas e dialógicas e o
modelo de espaço de trabalho que cabe na nossa proposta é o de
um espaço de experimentação e risco, um lugar para a descoberta
de mundos possíveis. Um lugar de encontro onde a criação indi-
vidual é estimulada através do diálogo coletivo que acontece em
equipamentos públicos; assim temos como espaço de trabalho um
ateliê coletivo e público.
Cabe discorrer sobre o que consideramos trabalho. Produção
de pensamento, compartilhamento de ideias, experimentação técnica tudo isso configura trabalho. Não estamos falando simplesmente do exercício de um ofício técnico, o Programa Vocacional
não é profissionalizante, o que não exclui a discussão do exercício
da arte profissionalmente. O filósofo Nicolas Borriaud em seu livro “Estética Relacional” define o artista como um produtor de
tempo, no desenvolvimento de seu argumento o autor aponta a
importância das proposições artísticas suspenderem o tempo organizado da lógica capitalista utilitarista, como uma situação que
fornece meios para a existência de um pensamento crítico sobre
a sociedade, um tempo suspenso como um lugar onde podemos
nos ver em contexto e em outras funções. Embora Jacques Ranciere tenha criticado muitas vezes seu conterrâneo, Borriaud, ele
também defende que as artes potencializam a capacidade dos sujeitos driblarem os papéis que lhes foram outorgados pela sociedade utilitarista, assim o metalúrgico pode ser cantor, o cobrador de
ônibus um poeta, a dona de casa uma vídeo-maker, o padeiro um
pintor. Uma proposta artística suspende este tempo e abre mundos possíveis. Assim também a produção artística possibilita esta
suspensão, para Borriaud a produção e a fruição da obra de arte
são coincidentes, uma vez que a proposição artística só se realiza
no encontro com o outro. Artista, produtor, espectador, fruidor
se encontram em uma proposição, seja ela performance ou cartaz,
vídeo ou instalação, pintura ou desenho, e o tempo está suspenso,
novos mundos podem se configurar. Novos mundos são novas
possibilidades, ou possibilidades até mesmo imprevistas, segundo
Ranciére de agir no mundo este seria para ele o “regime estético”
da arte. O trabalho nos encontros do Programa Vocacional de
Artes Visuais é suspender o tempo para perceber outras possibilidades de ação através da experimentação das linguagens.
Lembrando que a experimentação das linguagens acontece em
espaços públicos: Casas de Cultura, CEUS, Bibliotecas, Centros
Culturais. Cada equipamento determina um espaço físico para
nossos encontros. Uma parceria é estabelecida entre artista-orientador e seu grupo de artistas vocacionados e a gestão dos equipamentos. O Artes Visuais existe há 3 anos dentro do programa
Vocacional, é um projeto recente. Saliento isso porque acredito
que esta parceria entre programa e equipamentos leve tempo para
acontecer, para que as necessidades de todos sejam identificadas e
os desejos reconhecidos. No cotidiano o equipamento nos fornece
uma sala, com mesas e cadeiras. Este espaço muitas vezes é usado
também para outras atividades, a princípio não temos um ateliê
de artes desenhado como tal. Como seria um ateliê de artes desenhado por um projeto de arquitetura? Como o ateliê pressupõe
exercícios práticos com materiais diversos teríamos bancadas de
trabalho fixas e fortes, pias, armários, boa iluminação, boa ventilação. Podemos estender isso e pensar que a experimentação com
linguagens demanda ferramentas e materiais, que muitas vezes
também não encontramos nos equipamentos. Assim, os artistas-orientadores disponibilizam suas ferramentas e materiais pessoais, pedem que os vocacionados também contribuam. Daí a necessidade de buscar parcerias estreitas com os equipamentos que
auxiliam na instauração dos processos de trabalho. Coisas simples
como a necessidade de usar um martelo, uma fita crepe, ou de
ter um armário na sala são resolvidas nestas parcerias. Um papel
diferente fora do padrão sulfite e canson, um lápis integral, uma
caneta com ponta pincel, uma aquarela, tudo isso instiga o vocacionado a testar sua produção e ver possibilidades para ela que
antes não percebia.
Várias maneiras de contornar as dificuldades materiais tem sido
encontradas, aqui gostaria de citar duas, as soluções encontradas
na Casa de Cultura do Itaim Paulista e na Biblioteca Nuto Santanna. Na Casa de Cultura Itaim Paulista o Programa de Artes
Visuais está em seu terceiro ano, e com o mesmo artista-orientador há dois anos, Flávio Camargo. Esta situação possibilitou que
pudesse ser instaurado ali um ateliê somente para o Vocacional
onde temos espaço para experimentar linguagens como o grafite,
o stencil e a xilogravura, pintando e colando papéis nas paredes.
O grupo de vocacionados que se reúne ali, já se configura como
coletivo de arte e contribui também ao levar seu próprio material.
As intervenções urbanas com grafite instigaram o grupo a utilizar
outras formas de criação de imagens e intervenções, estão agora
pesquisando vídeo mapping. Foi importante ali a persistência, três
anos consecutivos com a mesma linguagem. Conseguiram instaurar ali um ateliê onde os participantes administram seu tempo. Os
vocacionados se organizam para criar ações de intervenção fora
do horário dos encontros, que são percebidos por eles como um
momento de experimentação, planejamento, pesquisa e reflexão
sobre estas ações na rua.
Em outra parte da cidade na Biblioteca Nuto Santanna outra
parceria bem sucedida está no seu segundo ano. A artista orientadora Talita Caselato com os vocacionados juntamente com a
administração da Biblioteca instauraram um verdadeiro espaço
de trabalho. A sala que poderíamos chamar de ateliê, guarda os
materiais e ferramentas, mas o espaço todo do jardim e as salas de
leitura são usados pelos vocacionados. O trabalho iniciado no ano
passado com o grupo de vocacionados resultou em um projeto
aprovado pelo VAI “Confessa uma história pra mim?”, de BruRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 17
na Edilamar e Isabella Carvalho. Agora a AO também as orienta
neste projeto e o ateliê se tornou um pouco um escritório de
produção, na medida em que elas precisam fazer a divulgação, a
produção, o registro e o relatório do projeto que envolve performance, fotografia, vídeo, desenho, xilogravura. A administração
do equipamento, diante do comprometimento das vocacionadas,
permitiu a utilização da sala fora dos horários dos encontros do
vocacional, assim um exercício verdadeiro de emancipação se põe
em processo. Tudo aconteceu porque um tempo/espaço de trabalho foi instaurado. Um ateliê não é simplesmente um lugar físico,
ele precisa de produtores de tempo, mas os produtores de tempo
também precisam de um lugar físico que possibilite uma situação
de encontro.
O artista Ricardo Basbaum defende“ a noção de artista como
‘dispositivo de atuação’ – ainda que só possa ser inerente à própria
condição de invenção e autonomia da arte a partir do Renascimento e da modernidade, com a ênfase de sua atuação sendo gradativamente deslocada do virtuosismo artesanal para a produção
de dispositivos sensíveis de pensamento.” (BASBAUM, Ricardo.
Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico. IN: 27ª Bienal de São Paulo – Seminários.
LAGNADO, Lisette. (org.). São Paulo, Cobogó e Fundação Bienal de São Paulo, 2006. p. 57). O artista como “dispositivo de
atuação” tem posição mutante, é agenciador de propostas, não
apenas produtor de objetos, em suas diversas manifestações compõe o campo da arte. Essa noção contemporânea é exercida na
prática dentro do programa, tanto na figura do AO quanto no
vocacionado. No entanto o local de trabalho, como local de encontro e experimentação se faz necessário como lugar de atrito
entre matéria e pensamento. No contexto da cidade a população pode se apropriar dos espaços da cultura como produtores, e
não apenas espectadores representados em números de visitantes.
Instaurar ateliês e equipa-los é potencializar as possibilidades de
apropriação do espaço público na ação dos cidadãos percebidos
como produtores emancipados.
Andréa Tavares é coordenadora de pesquisa-ação do programa Vocacional Artes Visuais. Professora de gravura em metal e
litografia na FAAP. Artista plástica com mestrado em Poéticas
Visuais pela ECA USP onde atualmente desenvolve sua pesquisa
de doutorado.
Referências bibliográficas
BASBAUM, Ricardo. Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico. IN: 27ª Bienal de São Paulo – Seminários. LAGNADO, Lisette. (org.). São Paulo, Cobogó e Fundação
Bienal de São Paulo, 2006).
BORRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Buenos Aires, Adriana
Hidalgo editora, 2006.
O´DOHERTY, Brian. Studio and Cube. New York, Columbia University, 2009.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo, editora 34,
2005.
SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra.
IN: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília. Escritos de Artistas: anos
60/70. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006.
18 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
REFLEXÕES
Escrita à deriva:
paisagens do Programa Vocacional
Luiz Claudio Cândido
P
asso zero: De repente, salta de dentro de um livro palavras que juntas se agarram ao meu corpo. Elas dançam
em mim como em um assalto, em um ato violento, e faz
com que, momentaneamente, o tempo se eternize. Danço com estas palavras, envoltas em mim até me deparar
diante de um enorme despertador que me sacode e diz:
“O ensaio não é a articulação de um pensamento apenas, mas de um pensamento como ponta de lança de
uma existência empenhada. O ensaio vibra com a tensão
daquela luta entre pensamento e vida, e entre vida e
morte que Unamuno chamava de ‘agonia’. Por isso, o
ensaio não resolve, como o faz o tratado, o seu assunto.
Não explica o seu assunto, e neste sentido não informa
aos seus leitores. Pelo contrário, transforma o seu assunto em enigma. Implica-se no assunto, e implica nele seus
leitores. Este é o seu atrativo.” (FLUSSER, p. 86).
Eis-me aqui, disposto a (me) ensaiar. Ponho-me à deriva no ato
da escrita que será tecida por meio do meu caminhar, deslocar por
algumas paisagens do Programa Vocacional.
Primeira paisagem de onde parto, foco aberto, o Programa Vocacional: O Programa Vocacional é constituído, atualmente, por
cinco projetos distintos, a saber, Vocacional Teatro, Vocacional
Dança, Vocacional Música, Vocacional Artes Visuais e Vocacional Artes Integradas. Embora sejam todos regidos pelo material
norteador, cada um destes projetos, de acordo com seu contexto
e experiências históricas, tem uma lida sui generis com este, eclo-
dindo em cada um deles um processo de singularização. Tal processo de singularização gera uma multiplicidade de olhares sobre
o Programa Vocacional, que passa a ser visto não como um todo
homogêneo, mas como heterogêneo, composto por perspectivas
distintas que ora são consonantes ora dissonantes entre si. De
braços dados com Deleuze e Guattari, atribuirei ao Programa Vocacional o epíteto de esquizofrênico e, sob a minha perspectiva de
andarilho, de flaneur, não há conotação negativa alguma, por que:
O esquizofrênico se mantém no limite do capitalismo:
ele é a tendência desenvolvida, o subproduto, o proletário e o anjo exterminador. Ele embaralha todos os códigos e carrega os fluxos decodificados do desejo. O real
flui. Os dois aspectos do processo se reúnem: o processo
metafísico que nos põe em contato com o ‘demoníaco’
na natureza ou no coração da terra, o processo histórico
da produção social que restitui às máquinas desejantes
uma autonomia em relação à máquina social desterritorializada. (DELEUZE; GUATTARI, p. 53).
Neste meu perpassar por esta primeira paisagem, observei que os
artistas (coordenadores e AOs) reagem diferentemente diante da
esquizofrenia. Assim, a mesma frase, com construção gramatical
idêntica, que muitas vezes circula em conversas, reflexões, etc., a
saber, “O Programa Vocacional é esquizofrênico’’, tem sentidos
completamente distintos para uns e para outros. A partir desta
minha observação e para conseguir alinhavar meus escritos vagueantes, se fez necessário, para mim, criar uma tipologia, momenRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 19
tânea, inconclusa, somente com a intenção de conseguir compartilhar o que vejo neste deslocamento: dois tipos, o primeiro
corresponde àquele que vê a esquizofrenia como reativa e o segundo como afirmativa. Se, em uma licença poética, pudéssemos antropomorfizar o Programa Vocacional, de sua boca seria proferida
uma multiplicidade de discursos e, às vezes, divergentes entre si. A
esta boca ‘’Torre de Babel contemporânea’’, na qual ‘’cada um diz
uma coisa’’, incomoda o primeiro tipo, para quem e cada um dizer uma coisa é um problema. É necessário intervir para que haja
uma unidade discursiva, identitária - aqui a diferença é vista quase
sempre como negativa - o mal - e pretende-se a sua supressão (ou
confinamento). Para o segundo tipo, a esquizofrenia é vista, metaforicamente, como uma patologia, um desvio da normalidade,
deve ser diagnosticada, tratada, remediada. Em geral, este tipo
busca a afirmação cada vez maior da identidade/essência de cada
linguagem/projeto. Mas será que esta tentativa de preservação da
identidade não acaba gerando um isolamento excludente ou uma
‘’xenofobia’’, evitando o contato com os demais projetos, que são
vistos, sob as lentes sartreana, como ‘’o inferno são os outros’’?
O ‘’outro’’ aqui não seria visto como um ‘’perigo’’ à manutenção
desta identidade? Um argumento corrente para este tipo é a defesa
da objetividade e pragmatismo, ou seja, se não houvesse tanta discussão, em virtude das múltiplas vozes que se manifestam, seríamos mais eficientes. Então, calar as vozes dissonantes ou ao menos
minimizá-las ao quase silêncio, de maneira sutil ou explícita, é um
ponto fundamental da estratégia de atuação. Primam pela síntese
e vivem em busca de um líder, um pastor, alguém que os guie. Para
o segundo tipo, que podemos chamar de não reativos, a polifonia
discursiva, as várias perspectivas concomitantes, não geram um
mal estar, um incômodo, mas ao contrário fomenta o embate de
ideias. Sendo assim, não busca a supressão de vozes dissonantes,
mas o embate entre elas, o embate das ideias. A esquizofrenia aqui
tende a ser vista como algo potencializador, porque busca agenciar
múltiplos pontos de vistas, criando sentidos, às vezes, não usuais.
Nestes casos, os processos de subjetivação são mais evidentes, não
se tem o foco absoluto na objetividade, nem descamba para uma
subjetividade absoluta, mas trafega entre os dois. O ato de pensar,
discutir, refletir, colocar em xeque o senso comum parece ser uma
20 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
atitude deste tipo que tende a buscar um maior diálogo entre os
projetos e linguagens artísticas e as fronteiras entre elas tornam-se mais tênues. Buscam enveredar pela seara da experimentação,
do risco, do impossível. Para eles a heterogeneidade não é um
problema, assim como a noção de identidade perde seu sentido,
uma vez que não se pensa em um ‘’eu fixo’’, mas um ‘’eu em constante transformação’’, sendo reinventado a cada encontro, embora
guarde uma tendência de si. Primam pelo transbordamento e não
buscam um salvador, um líder; buscam talvez lideranças móveis,
temporárias, que não se cristalizam em uma única figura.
Evidentemente, que estes dois tipos são extremos de uma reta que
tem inúmeras diferenças.
Segunda paisagem, fechando um pouco mais o foco, o Projeto
Vocacional Teatro: Adentro agora a paisagem dos coordenadores
do Vocacional Teatro, que se encontram semanalmente na galeria
Olido. Ela é composta por dez coordenadores artístico-pedagógicos de equipes em que cada um atua em uma microrregião da
cidade e um coordenador de Projeto com pensamentos e perspectivas distintos em relação ao Programa Vocacional. Em outras palavras, se levarmos em consideração somente os coordenadores do
Projeto Vocacional Teatro, este não é um todo homogêneo, um
coro uníssono de vozes e pensamentos em comum. Além disso,
nele a tipologia descrita acima permanece e os dois tipos coexistem. Qualquer tentativa de homogeneização esta fadada à generalização, muitas vezes realizada à custa da necessidade de síntese
e representatividade, que acaba por abafar, desprezar outras vozes
que coexistem no mesmo projeto. Mas por que, embora seja heterogêneo, há uma persistência em se afirmar uma homogeneidade?
A quem interessa que o Projeto Vocacional Teatro seja visto como
homogêneo? Será que a função, coordenador de projeto, cativa
do conceito de representação, consegue ‘’representar a voz’’ dos
coordenadores de equipe e, consequentemente, do Projeto Vocacional Teatro?
As reflexões sobre os processos criativos instaurados nas orientações aos artistas vocacionados não conseguem adentrar esta paisagem e nem tampouco os processos de investigação das equipes.
Em geral, aqui nos deparamos com informes e demandas institucionais, reclamações sobre a estrutura do Programa Vocacional e
estratégias de mudança desta. Embora sejamos regidos pelo material norteador, há uma tensão entre este e a prática encontrada
aqui: a ignorância não é bem vinda e avançamos, pouco a pouco,
rumo a um pragmatismo, calcado na eficiência e objetividade.
Pude observar a presença de um discurso nesta coletividade que
afirma a grande dificuldade desta em se relacionar com os demais
projetos do Programa Vocacional. Pergunto-me: será que ela não
está criando uma situação de falta de abertura ao diálogo, um
fechamento, claustrofóbico, em si mesmo? Será que os 12 anos de
existência do Projeto Vocacional Teatro, nascedouro do Programa
Vocacional, se tornou um fardo por demais pesado e a vasta acumulação de experiência no campo artístico-pedagógico, bastante
alinhado com as proposições do retorno do teatro de grupo de
meados da década de 1990, não foram potentes o suficiente para
escapar de uma cristalização deste projeto, que beira a insularidade ou autismo, nos momentos mais agudos?
Embora nesta coletividade dos coordenadores do Vocacional Teatro, sejam tecidos olhares bastante críticos em relação aos demais
projetos falta-lhe fôlego para lançar olhares para si mesmo e problematizar suas escolhas e atitudes e apontar suas contradições/
incoerências.
Paisagens periféricas, fechando ainda mais o foco, a equipe Leste 3/Vocacional Teatro: Aqui espacialmente saímos do centro, da
Galeria Olido, onde são realizados os encontros das paisagens anteriormente descritas e rumamos para a periferia da cidade: nossas
reuniões de pesquisa-ação, conhecidas como, reunião de equipe,
são realizadas, semanalmente, no extremo leste, em Guaianases,
no CEU Jambeiro. Na equipe Leste 3/Vocacional Teatro, sob minha coordenação, também reina a mesma heterogeneidade presente nas coletividades anteriores e os mesmos tipos já citados: os
AOs tem experiências distintas no Programa Vocacional e cada
um tem uma relação com nossas reuniões de pesquisa-ação. Grosso modo, nos encontros semanais com a equipe Leste 3/Vocacional Teatro, buscamos a instauração de uma dinâmica de feitura
de ensaios para refletir sobre as orientações dos processos criativos
dos artistas vocacionados e as práticas artístico-pedagógicas. Para
isso, adotamos como um procedimento que alimenta, em nossos
encontros semanais, a materialização das experiências que os processos criativos emancipatórios geram em algum suporte (textual,
vídeo-gráfico, cênico, fotográfico, performativo, verbal, etc.). O
ensaio não pretende ser um ponto final, a conclusão de uma investigação, mas um entre, um meio para que o pensamento escape
da fixidez, do senso comum, da perspectiva única, superficial: seria uma tentativa de experimentação do pensamento, do pensar e
se pensar. Com isso, a reunião de pesquisa-ação não é um espaço
de solução, mas de fomento de problemas, que assume para si
contornos artístico-pedagógicos: alimentados pelas proposições
do mestre ignorante, a partir da obra de Jacques Ranciere, ela não
é um espaço para ‘’clarificar’’, ‘’iluminar’’, para que o coordenador
de equipe ‘’ensine’’ o AO, mas sim para que pense coletivamente
os problemas, para lançar olhares sobre o que ambos desconhecem, ignoram. Ela se propõe uma zona de interferências, de fluxo
que comporta o ir e vir das questões da Equipe e das orientações,
de lá para cá e de cá para lá, num movimento ininterrupto e de
contaminação mútua, esquizofrênica, dos artistas orientadores
que perdem sua identidade fixa e se deixam “serem muitos” no
ato de sua orientação ao ‘ouvir outras vozes’ que o compõe – vozes estas que foram ouvidas durante as reuniões de pesquisa-ação,
a partir dos estudos e reflexões sobre os processos criativos em
andamento.
Sob a minha perspectiva, quando falo ensaio, não me refiro somente à produção de uma materialidade escrita, textual (ou em
outro suporte qualquer), mas de uma atitude ensaística, Como se
lançar nas orientações/coordenações no desconhecido, na experimentação do rabiscar, riscar, escrever, apagar, reescrever, rasurar,
voltar a escrever, voltar a rasurar e apagar e escrever novamente e
assim sucessivamente e ad infinitum? Embora reine a heterogeneidade entre os artistas orientadores da equipe Leste 3/Vocacional
Teatro, este fato estimula e não coíbe o diálogo entre eles. Eles
realizam visitas entre si e neste intercâmbio têm a possibilidade de
lançar olhares para sua prática e do outro, num processo de alteridade: o diálogo não busca valorar, mas encontrar as diferenças
entre as práticas artístico-pedagógicas. Quais são as questões que
o Artista Orientador formula ao realizar esta visita, tanto para si
quanto para o outro?
Estas visitas não se restringem somente aos Artistas orientadores
da equipe Leste 3/Vocacional Teatro, mas aos artistas orientadores
de outros projetos do Programa Vocacional1. Se há dificuldade de
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 21
tador, que terá que rever sua prática constantemente, acertando,
errando, avançando, recuando, experimentando os desafios-perguntas que cada processo criativo lança. Não que a tradição teatral, com sua história erigida, não tenha espaço nestes processos
criativos, entretanto nem sempre ela se mostra suficiente para
abarcar ‘’a voz’’ dos artistas vocacionados. Ao enveredar pela seara
da construção de materialidades estéticas que dialoguem diretamente com as inquietações dos artistas vocacionados - inquietações estas que vão eclodindo, paulatinamente, por meio de um
tatear constante e que vão dando forma àquilo que eles pretendem
‘’falar’’ - ou simplesmente falam -, os meios e modos de produção
comumente conhecidos no meio teatral sofrem um processo de
desnaturalização e cada coletividade vai confeccionando coletivamente a sua forma de organização. Nesta paisagem podemos
ver irromper novas formas de relação, de existência, nas quais a
produção de sentido não está mais centralizada nas mãos de um
-pseudo - detentor do saber, em um mestre que lança perguntas
socráticas, delimitando o campo das respostas possíveis. Nela somos pegos pelo colarinho, muitas vezes, de súbito, e ficamos cara
a cara com tudo aquilo que a experiência artística tem de mais
temível e sublime: o impossível, o indizível, o imponderável.
Luiz Claudio Cândido participa do Programa Vocacional desde
2007, no Projeto Vocacional Teatro, desempenhou as função de
Artista Orientador e atualmente é Coordenador Artístico-pedagógico de Equipe atuando na região da zona leste da cidade.
Referências bibliográficas
DELEUZE e GUATTARI, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998.
Notas
1
Sobretudo do Vocacional Dança, equipe Leste 3, sob a coordenação de Nininha Araújo.
22 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Traçando caminhos
para as práticas
REFLEXÕES
abertura no Projeto Vocacional Teatro, na paisagem dos coordenadores, o mesmo não podemos afirmar em relação aos artistas
orientadores nos equipamentos. Eles tendem a estabelecer um
diálogo maior entre os projetos do Programa Vocacional, desde
que seja uma necessidade dos processos criativos orientados. Pude
observar que esta troca entre os artistas orientadores do Programa Vocacional fomenta o trânsito dos artistas vocacionados pelos projetos que atuam em um mesmo equipamento e também
a ampliação do olhar deles sobre o seu processo criativo, meios
e modos de produção. Estas parcerias fomentam também o coordenador de equipe com relação à percepção das singularidades
de cada Projeto do Programa Vocacional e, consequentemente, a
abertura dos canais de comunicação entre eles.
Paisagem micro, foco maximamente fechado, as orientações dos
processos criativos: Nesta paisagem o elemento fundamental é o
processo criativo dos artistas vocacionados, alicerçado pela prática
artístico-pedagógica proposta pelo material norteador. Em cada
grupo ou turma orientada na equipe Leste 3/vocacional Teatro
reina a heterogeneidade: as características e contextos específicos
tornam múltiplos os meios e modos de produção e as formas e
conteúdos das materialidades artísticas produzidas. Assim, cada
artista orientador tem diante de si o desafio de lidar com a instauração de processos criativos que, muitas vezes, fogem/escapam
daqueles a quem a prática contempla plenamente. Sem mesuras,
os processos criativos dos artistas vocacionados derrubam os monumentos erguidos pela formação do artista orientador: aqueles
preceitos que eram caros e inestimáveis, imprescindíveis para a
realização de uma experiência artística, soçobram e forçam que ele
descubra junto com aqueles o trajeto a ser percorrido e o que dele
resultará. Faz-se imprescindível uma atitude ensaística do orien-
artístico-pedagógicas no Vocacional Música
André Luiz Martinez Sant’Anna
O
Programa Vocacional, segundo seu Material Norteador, pretende criar processos emancipatórios por meio
de práticas artístico-pedagógicas. A premissa é instaurar
processos criativos a partir da pesquisa e da formulação
de perguntas, prescindindo, em um primeiro momento,
da aquisição de técnicas e habilidades específicas como prerrogativa para a experiência e a expressão artística. O artista orientador
realizaria, então, a condução e apoio a esse processo de geração de
consciência, de novas subjetividades e de autonomia que, como
práxis coletiva e social, levaria os artistas vocacionados à emancipação. Nesse sentido, o orientador não é o responsável direto
pela emancipação do vocacionado, mas propõe formas de convivência e de aprendizado que transformam tanto o último quanto
o primeiro. O estudo do Material Norteador nos aproxima da
pedagogia de Paulo Freire e de algumas teorias dos filósofos Félix
Guattari, Jacques Rancière e Walter Benjamin, para citar apenas
alguns pensadores que dialogam com a proposta do Programa.
É um material vasto, interessante e que, se aprofundado, pode
produzir um denso embasamento teórico.
No entanto, seria o Material Norteador, com seu amplo vocabulário próprio, suficiente para direcionar a prática do artista
orientador em suas orientações dentro do Programa Vocacional?
São muitas as questões suscitadas durante as reuniões de equipe
sobre como proceder durante os encontros com os vocacionados
e quais as possibilidades e ferramentas a serem utilizadas. Na linguagem musical, especificamente, quais são as teorias que podem
servir para apoiar as práticas artístico-pedagógicas a serem desenvolvidas e que se posicionam em consonância com a proposta do
Programa?
As atividades de pesquisa e criação do fazer humano acontecem
por meio da observação e experimentação de conhecimentos previamente existentes nas mais diversas áreas. Assim, para responder a essas questões e embasar minhas reflexões pessoais, procurei
ir além do Material Norteador. Busquei um aprofundamento na
pedagogia de Paulo Freire, de modo que pudesse me apropriar de
suas ideias, ao mesmo tempo em que me debrucei sobre os trabalhos do educador musical inglês Keith Swanwick, cuja investigação envolve, entre outros elementos, o desenvolvimento musical
a partir de processos metafóricos. Imbuído pelo pensamento dos
dois autores, vislumbrei direções e possibilidades para os encontros semanais do Vocacional.
Para Paulo Freire (1987), o diálogo é o componente-chave para
a transformação do mundo e da construção do conhecimento.
Ainda, por meio do diálogo haverá conscientização, pois como
consequência dele, é possível a visão ampla das situações. É possível o conhecer e é necessário o escutar. E escutar é saber, é conhecer previamente, sem fazer conjeturas, para então diagnosticar
os fatores que influenciam situações problemáticas do processo
pedagógico. “Que o pensar do educador só ganha autenticidade
na autenticidade do pensar dos educandos, mediados ambos pela
realidade, portanto, na intercomunicação. Por isso, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes impostos”
(ibidem, p. 63). Portanto, o diálogo estabelece uma igualdade em
que os interlocutores são sujeitos atuantes e em que todos procuram pensar e agir criticamente.
Por meio do diálogo, prática essencial da pedagogia freireana,
foi possível construir um modo de ir ao encontro das necessidades
e anseios dos vocacionados. Dar voz e ouvidos faz parte da pesquisa e da reflexão proposta pelo Programa. Pesquisa no sentido de
descobrir as demandas individuais, coletivas e do indivíduo inserido no contexto coletivo, que são instâncias diferentes. Ao vocacionado se abriu um canal permanente de intercomunicação entre
os objetivos do grupo e os pessoais, de modo que se conquistasse
autonomia para propor e participar das escolhas e das práticas artísticas. Que se conquistasse reflexão, quando discutimos sobre as
nossas práticas, desconstruímos procedimentos técnico-musicais
e processos criativos coletivamente. Impregnamos de sentido nossas atividades ao transformar a reflexão em um instrumental não
só do artista orientador, mas também do vocacionado.
Já entre as ferramentas que podem servir de base para as práticas artístico-pedagógicas na área musical, posso citar os Três Princípios da Educação Musical, desenvolvidos por Keith Swanwick
(2003) cujo diálogo com o Material Norteador e com Paulo Freire
é evidente. Com ênfase nos pontos de contato entre as teorias, os
princípios, resumidamente, são:
Considerar a música como discurso: Transformar sons e meloRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 23
24 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
andamento, nos níveis de acentuação, nas mudanças de dinâmica
e na articulação – como o movimento de um som ao outro está
organizado”. A busca pela expressão derivada da composição de
uma música autoral direcionou o desenvolvimento técnico-musical dos vocacionados. Foi a partir da vontade de se comunicar, de
construir uma experiência significativa para si e para os outros que
eles se empenharam em aprimorar suas habilidades, conhecimentos e iniciaram a conquista da fluência musical.
A canção Eu vou esperar é uma materialidade artística em que
acredito que os princípios de Swanwick, as premissas do Material
Norteador e o conceito de diálogo proposto por Paulo Freire estabeleceram pontos de intersecção. Juntas, possibilitaram a visualização de um caminho a ser delineado durante as orientações do
Programa de modo a embasar não só a teoria, mas principalmente
a prática, um dos pilares da emancipação dos artistas vocacionados.
André Sant’Anna é artista orientador do Programa Vocacional
Música no CEU Alto Alegre. Regente coral e cantor graduado em
Regência pela UNESP pesquisa a construção da sensibilização
musical por meio da experimentação sensorial e corporal.
Referências bibliográficas
DELMANTO, I. et al. As premissas pedagógicas: o material norteador.
Revista Vocare: Revista do Programa Vocacional, São Paulo, n. 3, 2013.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GUATTARI, F. & ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo.
Petrópolis: Vozes, 1996.
SWANWICK, K. Ensinando música musicalmente. São Paulo: Moderna, 2003.
REFLEXÕES
dias em estruturas que dão origem a experiências significativas e
processos metafóricos;
Considerar o discurso do aluno: Integrar as experiências musicais e repertórios pessoais, propor a interação entre diferentes
culturas, e;
Fluência musical no início e no final: Permite a liberdade de
escolha e a tomada de decisões que leva à autonomia.
O autor defende que seus princípios se retroalimentam. Assim,
procurei fomentar estratégias que os contemplassem de maneira intuitiva. Uma delas foi a composição de uma canção com o
grupo da tarde do CEU Alto Alegre. A atividade obteve como
resultado a descoberta e apreciação da experiência musical dos vocacionados, o exercício da ação coletiva geradora de significados e
o desenvolvimento técnico pela necessidade da expressão criativa.
O processo começou com a proposta de que trouxéssemos um
texto em prosa ou poesia e uma música instrumental ou canção
(ambos poderiam ser de autoria própria ou de terceiros) com as
quais nos identificássemos e que dissessem um pouco sobre cada
um de nós. Após lermos e ouvirmos o material de todos, interagindo diferentes preferências e tendências, conversamos sobre
os aspectos que mais nos chamaram a atenção em cada um dos
exemplos. Destacamos palavras e versos dos textos assim como
apontamos trechos das músicas nos quais os elementos da linguagem musical e características de interpretação enfatizavam seu
caráter e expressão. Aproveitamos para discutir sobre as formas
poéticas e suas ligações com as formas da canção. Dessa maneira,
pude considerar o discurso dos vocacionados e me aproximar do
que eles traziam como experiência artística, musical e do universo
poético de cada um.
A próxima etapa foi usar o processo anterior como motriz. O
material poético e musical revelado ao longo de nossos encontros
deu origem, com base em diversos jogos de improvisação, a um
conjunto de palavras, ritmos e pequenos motivos melódicos. Foram devidamente organizados em melodias que se transformaram
em um refrão. O refrão foi “adotado” pelos vocacionados e, ao
mesmo tempo, propiciou unidade ao grupo que se engajou na
composição de uma introdução e das estrofes, criando uma estrutura maior para aquela pequena ideia musical original, agora
a canção Eu vou esperar. A ação criativa coletiva desde a improvisação até a composição da canção preencheu de significado e
de processos metafóricos a experiência musical dos vocacionados.
Nesse momento pudemos adentrar um pouco mais nas questões técnicas e musicais, devido à abertura sucedida pela necessidade da execução das ideias que foram surgindo. Conversamos
sobre a aplicação dos efeitos expressivos proporcionados por variações de dinâmica, andamento, timbre e textura, pois, como
sugere Swanwick (2003, p. 62), “O caráter expressivo está implícito em muitos tipos de decisões de performance, na escolha do
Entre ilhas
e naufrágios
práticas de deriva na Cracolândia
Rafael Presto
P
rograma De Braços Abertos
Segundo a própria Prefeitura de São Paulo: “O princípio
do Programa De Braços Abertos é o resgate social dos
usuários de crack a partir do trabalho remunerado, alimentação e moradia digna, com a diretriz de intervenção
não violenta”. “Iniciado no dia 14 de janeiro, projeto oferece vagas em hotéis, três refeições diárias, participação em uma frente
de trabalho de varrição por quatro horas diárias, duas horas de
capacitação e renda de R$ 15 por dia.”1
O acerto do Programa De Braços Abertos parte de sua radicalidade: adotar o método clínico-político da Redução de Danos
como norte essencial em suas ações. Partindo desta premissa, existem três recortes fundamentais na produção desta empreitada: o
diálogo constante com os usuários do programa; articulação de
diversas secretarias municipais para sua realização2 e a mudança
de paradigma para abordar a questão das substâncias psicoativas.
Enquanto Artistas Orientadores do Programa Vocacional, fizemos questão de habitar os diversos espaços do De Braços Abertos: acompanhamos as varrições da Frente de Trabalho durante
algumas semanas; visitamos as pensões onde moram os beneficiários; percorremos cotidianamente a cena de uso, o fluxo da
cracolândia; e, acima de tudo, habitamos o Centro Integrado de
Reinserção Social “De Braços Abertos”, espaço localizado na rua
Helvetia, Campos Elíseos, chamada por usuários e profissionais,
coloquialmente, de Tenda De Braços Abertos.
A Tenda cumpre uma função de porta de entrada para o Programa, além de um digno princípio de redução da miséria: quando
sentem a necessidade de uma ilha de descanso, quando precisam
se proteger da chuva, os moradores das ruas da Luz buscam abrigo
no espaço seco da tenda. A organização dos usuários do equipamento tem seu costume. Sob cobertores, colchonetes, caixas de
papelões, os corpos em descanso se organizam a partir de uma
perspectiva, a do aparelho de televisão, elemento organizador
central do espaço, praticamente o deus da tenda.
O Programa, em um curto espaço de tempo3, ganhou muita
visibilidade na mídia, tanto nacional como internacional. Isso
implicou uma mudança na rotina da Tenda, que passou a receber
diariamente a visita de todos os tipos de atores sociais: ministros,
secretários, deputados, cinegrafistas, fotógrafos, pastores, tudo
com ampla cobertura midiática. É preciso tomar cuidado com
esta prática de exposição excessiva. As ações do programa não podem se preocupar em manter o saldo positivo na esfera global das
representações e com isso prejudicar a estratégia de produção de
cuidado, pautado na prática micropolítica de vínculo e cogestão.
Como um projeto com tão pouco tempo de vida pode ser colocado nesse lugar tão importante, praticamente uma tábua de salvação política? Serão esses atravessamentos externos os principais
agentes de fragilização do projeto? Onde posicionar nossa ação
artístico-pedagógica vocacional em meio a todo este furacão?
Provocações Primeiras
Programa De Braços Abertos: avançado empreendimento de redução de danos ou caça níquel eleitoreiro? Qual o limite entre o
assistencialismo e a produção de vínculos? Como agir no sentido
contrário da espetacularização?
Atuar na região dos Campos Elíseos é estar lado a lado com o
peso de uma construção simbólica: nomear, oficialmente, uma
região da cidade como ‘cracolândia’ define muito de suas possibilidades de composição, seus fluxos possíveis de construção. Crackeiro é um termo que nivela o humano e a droga, mais uma das
muitas violências simbólicas que atravessam o bairro da Luz. Essa
usinagem simbólica parece ser o norte das ações do Vocacional
nesse território bastante singular.
Quais as significações possíveis para os Campos Elíseos? Quem
opera essas significações? Qual afeto atravessa o território? Como
produzir canais de diálogo e experiência pela tangente? Quem
envolver com nossas ações: usuários do programa, moradores do
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 25
Metodologia e Instrumental em Funcionamento
bairro, pessoas do fluxo? Quais qualidades possíveis de ação direta
em um contexto como esse? Qual nosso amparo para atuar na
Tenda De Braços Abertos? Como faremos nossa guerrilha vocacional?
Chegar devagar: cartografar o terreno, seus campos de potência,
possibilidades de composição, urgências vitais. Como partir de
um dispositivo artístico para construção do encontro, do vínculo,
em um local em que a pretensão do vínculo é premissa de atuação para diversos profissionais (saúde, assistência social, direitos
humanos, religiosos)? Como aplicar linhas de diferença na composição desses vínculos a partir da experiência estética? A emancipação pode ser entendida enquanto um processo de produção
de cuidado?
Última provocação. Habito, literalmente, o espaço onde as
fronteiras se borram: Artista Orientador do Programa Vocacional,
oficineiro do CAPS; território em ruínas, potência dos modos de
existir não hegemônicos. Existe uma urgência da ignorância na
orientação que faremos por este território. Ou nos vestimos com
nossos dessaberes, nos debruçamos radicalmente sobre a alteridade do outro neste contexto, ou corremos o risco de ser mais
um dos muitos atores sociais que capitalizam a miséria aguda que
compõe esse território. Na singularidade extrema deste espaço
afirmam-se os nortes do Programa Vocacional. A emancipação
enquanto bomba política.
A micropolítica como princípio no limite da invisibilidade
Depois de colecionarmos diversos naufrágios no início de nossa
empreitada, todos vinculados a não possibilidade de demarcar um
espaço coletivo institucional de experiência artística, restou-nos os
vínculos singulares que acabamos compondo com os usuários que
conhecemos nas ações realizadas junto a Tenda e ao Programa De
Braços Abertos. Em nossas incursões pelo estigmatizado território
da cracolândia, já conhecemos muitas pessoas que, de uma maneira ou outra, transitaram por territórios artísticos.
O que nos fez pensar: não seria o caso de arriscarmos então uma
atuação vocacional pautada nesse encontro singular, nesse vínculo direto, atuar culturalmente aí, nesse agenciamento do corpo a
corpo? Investir radicalmente na micropolítica do encontro, longe
dos agenciamentos institucionais?
Partindo desses questionamentos, decidimos adotar uma estratégia de encontros diretos, de conversas e projetos artísticos inventados e praticados pessoa por pessoa, cada um singularmente
compreendido como um artista vocacionado.
Assim, inventamos uma metodologia de trabalho para planejar, produzir e cartografar esses agenciamentos estéticos micropolíticos, chamada PAS (Projeto Artístico Singular). O termo é
inspirado no PTS (Projeto Terapêutico Singular), conceito chave
26 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
dentro das práticas emancipatórias que compõe a saúde mental
atualmente, muito presente no território multidisciplinar e intersetorial que é o De Braços Abertos. As relações que tecemos com
todos os sujeitos únicos que conhecemos dentro do programa são
o ponto de partida do PAS.
Essa metodologia é apoiada em um instrumental pedagógico:
uma ficha cartográfica do PAS. Esta ficha cartográfica, além de
proporcionar um registro, serve de ponto de apoio para a elaboração das próximas ações realizadas pelos artistas orientadores.
Este instrumental, no entanto, não deve ser preenchido durante o
encontro; deve sempre ser preenchida depois, garantindo à ficha
cartográfica seu lugar de reflexão.
Como funciona essa metodologia de trabalho?
Dividimos em duas etapas essa metodologia de ação e registro.
A primeira etapa é a de Vínculo e Mapeamento, na qual, através
dos encontros singulares produzidos por nossas vivências no Programa De Braços Abertos, começamos a cartografar o que determinada pessoa compreende por cultura, arte, produção simbólica,
e quais as linguagens/habilidades ela já tem.
Assim, dentro da etapa de Vínculo e Mapeamento, dois campos
devem ser preenchidos no instrumental de trabalho. O primeiro
deles chama-se Referências Culturais, em que se registram os muitos campos culturais que atravessam aquele determinado artista
vocacionado. O segundo campo é o de Afinidades Artísticas, as
especificidades de práticas e acúmulos que aquela pessoa carrega, seja tocar um instrumento, pintar telas, escrever contos, atuar,
compor rimas, enfim, qualquer afinidade com alguma ação artística concreta que aquela pessoa tenha realizado ou simplesmente
tenha desejo.
Passada esta etapa de Vínculo e Mapeamento, entramos na etapa do Projeto Artístico Singular propriamente. Aqui são planejadas ações, sempre em conjunto com o artista vocacionado, que
ocuparão os encontros do Vocacional. Também aqui, o Projeto
Artístico Singular se divide em dois eixos complementares. O primeiro chama-se Processos de Apreciação, em que se partilham
idas às experiências estéticas que alimentem o campo cultural desejante do artista vocacionado, seja uma ida ao museu, a uma
peça de teatro, um parque, um círculo de meditação, um sarau
de poesia, tudo aquilo que sirva para a composição de um campo
referencial estético singular. O segundo eixo do Projeto Artístico
Singular chama-se Processos de Elaboração, em que uma experiência de produção estética é realizada através de um processo
continuado de criação: a materialização artística dos encontros
micropolíticos desta metodologia. Um dos objetivos é sim tecer,
nos encontro e agenciamentos únicos, acontecimentos concretos.
Fazer um pouco de arte.
Este instrumental não tem a intenção de se solidificar. Ao contrário, ele deve ser poroso e quebradiço, sempre modificado de
acordo com o processo desenvolvido com cada pessoa. A ideia é
potencializar as ações que estamos realizando que, acreditamos,
localizam-se no lado oposto de uma política cultural baseada em
eventos e em dados quantitativos. Não nos interessa hiperpublicizar nenhuma experiência, fazer nenhuma grande operação artística. Esses acontecimentos, aliás, fragilizam de uma maneira geral
o Programa De Braços Abertos. É preciso calma, paciência e uma
relação direta com os beneficiários dessa iniciativa ousada, neste
momento. Essa é a nossa aposta como artistas orientadores: a radicalidade da possibilidade micropolítica do encontro artístico.
No momento que escrevo este artigo, estamos em pleno vapor
com a experimentação desta metodologia. O primeiro resultado
concreto foi um vídeo-ensaio intitulado Como Fazer um Didgeridoo?, Concebido por José Abreu, Xamã Urbano, figura sensacional que tivemos o imenso prazer de encontrar em nosso cotidiano
e vocacional trabalho. O vídeo pode ser conferido no link:
“https://www.youtube.com/watch?v=ph_kld5ptVA”.
Não sabemos onde tudo isso vai dar, se colecionaremos mais
outros (infinitos) naufrágios ou se achamos alguma ilha escondida. Entre ilha e naufrágios, seguimos tecendo nossas derivas.
Rafael Presto é teatrista e percussionista do Coletivo de
Galochas, oficineiro do CAPS Infantil Sé e Artista Orientador do
Vocacional no Programa De Braços Abertos. É membro do DAR
(Desentorpecendo a Razão) e Arteiro da Rede dos Fazedores de
Arte na Atenção Psicossocial.
Referências bibliográficas
AMARANTE, Paulo e NOCAM, Fernanda (orgs.). Saúde Mental e Arte: Práticas, Saberes e Debates.Zagodini, São Paulo, 2012.
AUGÉ, Marc. Não Lugares. Papirus, Campinas, 1994.
BEY, Hakin. TAZ: Zonas Autônomas Temporárias. 3ª Ed. Conrad Editora do Brasil, São Paulo, 2011.
CARREIRA, André. Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade in Evelyn Furquim Werneck Lima (org.) Espaço e Teatro: do edifício teatral
a cidade como palco. 7Letras, Rio de Janeiro, 2008.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 24ª edição. Graal, São Paulo, 2007.
GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Papirus, Campinas, 1990.
JACQUES, Paola Berenstein e BRITTO, Fabiana Dultra. Corpografia Urbanas: Relações entre o Corpo e a Cidade. EDUFBA, Salvador, 2010.
RAUTER, Cristina. Oficinas para Quê? Uma Proposta Ético-Estético-Político para oficinas terapêuticas in Ensaios: subjetividade, saúde mental,
sociedade. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2000.
SCARCELLI, I. R. Entre o hospício e a cidade: dilemas no campo da saúde mental. Zagodoni Editora, São Paulo, 2011.
TAMIS, Priscila. Trajetos na cidade – cartografias de saúde e subjetividade. Dissertação (Mestrado) – Escola de Artes, Ciências e Humanidades,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
Notas
http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/3377
http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/2118#ad-image-0
acessado no dia 29/07/2014.
1
As seguintes secretarias estão envolvidas no Programa De Braços Abertos: Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Assistência e Desenvolvimento
Social (Smads), Trabalho e Empreendedorismo (SDTE), Segurança Urbana
(SMSU), Desenvolvimento Urbano (SMDU) e Direitos Humanos e Cidadania
(SMDHC). Além, é claro, por isso o Vocacional atuando dentro do Programa,
da Secretaria Municipal de Cultural (SMC).
2
O Programa De Braços Abertos tem pouco mais de seis meses no momento
que este artigo foi escrito.
3
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 27
28 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 29
REFLEXÕES
O projeto vocacional
sob a perspectiva
da autorregulação na aprendizagem musical
Claudia Polastre
“O
cenário não era diferente do das inúmeras orientações
que ocorrem toda semana no projeto Música Vocacional.
Pessoas reunidas para aprender-fazer música e estabelecer sentidos no que sabe - observa - faz. Formaram uma
roda e o AO coloca o instrumento metalofone no meio
dela e passa uma sequência de acordes para os vocacionados que
já tocam um pouco de violão – Am-Dm-G7-C. Eles poderiam
tocar em qualquer nota da parte de baixo do metafolone, como
se estivessem tocando nas teclas brancas do piano. E ao se arriscarem no improviso percebiam que as melodias combinavam com a
sequência harmônica dos violões: culminaram nas notas da escala
do maior assimilando a sequência harmônica.”1
Na tentativa de estabelecer uma teia de relações entre o artista
orientador e sua expertise musical para realização de suas práticas,
como a descrita acima com os vocacionados, reflito sobre uma
metodologia que, empiricamente, percebo que ocorre nas práticas
dos artistas-orientadores do projeto música vocacional: o processo
da autorregulação na criação musical.
Pela observação das práticas utilizadas no meu trabalho no
vocacional, primeiro como AO, depois como coordenadora, entendo que elas podem ser observadas sob um sistema que está
compreendido por diferentes autores que estudam o processo de
aprendizagem, dentre eles Zimmermam2 e Bandura. O sistema
ao qual me refiro é o da autorregulação na perspectiva cognitiva.
Nesse sistema o que se destaca é o exercício do homem em intervir intencionalmente em seu ambiente. Diz respeito aos mecanismos que as pessoas usam para controlar o seu próprio processo
de aprendizagem. Implica estabelecer um objetivo, ou norma de
estudo, e controlar o próprio progresso através de estratégias tais
30 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
como monitoração, elaboração e gerenciamento de esforço. Antecipar cenários construídos por ações e seus efeitos e, pela observação, escolher cursos de ação que julgarem mais convenientes
ou necessários para uma aprendizagem mais efetiva, perpassa os
meios de produção de muitas orientações dos AOs e condiz com
os princípios da autorregulação.
O tema da autorregulação vem sendo investigado por diversas
abordagens da psicologia e pedagogia3. Em todo o processo da
autorregulação ocorrem três etapas: a auto-observação, o processo
de julgamento e a autorreação. As três etapas, segundo Bandura
(1991), devem ser ativadas de forma integrada e atuam em interação com o ambiente na determinação do comportamento do
individuo. Essas etapas nos fornecem subsídios para estabelecer
conexões com o processo pedagógico criativo dos AOs.
Num primeiro momento, pela auto-observação, se conseguiria
verificar as dimensões de desempenho e qualidade do monitoramento da atividade sugerida. Nessa etapa se estabelece a proposta
em que a amplitude das varias dimensões do artista orientador é
potencializada por meio do seu desempenho: qualidade, quantidade, originalidade e sociabilidade estão no contexto.
Num segundo momento, acontece a fase do processo de julgamento. Nela os padrões pessoais e as dificuldades que o AO tem
em propor alguma atividade que “foge” do sua expertise, sobressaem e o AO vai à busca de estratégias e conteúdos necessários
para conectar a vontade do vocacionado com o seu entendimento.
Nesse momento todas as referências sob o seu desempenho e o
valor da atividade são determinantes para a efetivação da proposta
oferecida.
Na última etapa, temos a autorreação. Nesse momento faz-se
necessário uma autorreação avaliativa para que o AO tenha o entendimento sobre sua ação: se ela foi tangível e se houve, ou não,
reações por parte das pessoas integrantes da orientação.
Em geral, estudantes podem ser descritos como aprendizes autorregulados devido à ativa participação que têm em seu próprio
processo de aprendizagem em termos de metacognição, comportamento e motivação. Com o processo de pesquisa do artista-orientador não ocorre diferente. Nele observamos como se faz
necessário planejar a orientação e suas ações, como controlar e
avaliar seus processos cognitivos, motivacionais e suas possibilidades e limitação e, ainda, como se necessita do autoconhecimento
sobre o próprio modo de aprender. Todo esse cenário se amplifica,
quando pensamos nas ações culturais propostas pelos AOs. Elas
potencializam o processo criativo, abstraem o cognitivo, estabelecem objetivos e buscam padrões facilitadores que conectem a
expertise do artista com as vontades do vocacionado.
“Pedro, animado com o resultado de sua apresentação numa
mostra, chegou com uma nova composição. Era um samba que
queria harmonizar. A AO resolveu pensar a situação sob uma condição que não tinha feito anteriormente: interferir o mínimo no
processo criativo do criador. Se automonitorou. Resolveu esperar,
estimular o vocacionado. Ele além de não ter o conhecimento suficiente harmônico do violão para executar a tarefa, também não
sabia se fazer entender, porém tinha a vontade. A AO procurou
escutar a vontade do rapaz, destituída do seu expertise num processo de autoavaliação. Ao final da orientação, após ela ter percor-
rido o “processo de desconstrução”, como o chamou, reconstruiu
seu conhecimento. A vontade do vocacionado fora atingida e uma
primeira versão da música estava pronta. Chamou-se Não quero
mais aspargos.”4
No procedimento adotado pela artista orientadora observamos a
utilização da metodologia da autorregulação, mesmo ela não sendo ciente disto. Da auto-observação da sua estratégia de ação, ela
transitou para a reflexão sobre o que poderia auxiliar, para atender
o interesse do vocacionado, e avaliou como o desdobramento da
ação realizada foi efetivado. A materialidade artística conquistada
pelo grupo foi uma das comprovações dessa efetivação.
Claudia Polastre participa do Programa Vocacional desde 2008.
Atualmente é coordenadora da equipe norte do Projeto Vocacional Música. Fez doutorado em História da cultura na USP e
mestrado em Música na UNESP.
Referências bibliográficas
BANDURA, A. Self-regulation of motivation through anticipatory and self- reactive mechanisms. In: Dienstbier, R.A. (Ed.) Perspectives on motivation: Nebraska symposium on motivation.
Lincoln, University of Nebraska Press, vol. 38, pp. 69-164, 1991
ZIMMERMAN, B. A social cognitive view of self-regulated academic learning. Journal of Educational Psychology, 81(3), 329-339, 1989.
Notas
1
Orientação realizada em maio de 2014 no Tendal da Lapa pelo artista orientador Ricardo Valverde.
2
Zimmerman, B. (1989). A social cognitive view of self-regulated academic learning .Journal of Educational Psychology, 81(3), 329-339.
3
Na teoria social cognitiva Bandura tem trabalhado a construção da autorregulação ao longo de sua trajetória investigativa, sendo um dos processos bem marcados no livro Social foundations of thought and action: a social cognitive
theory, 1986. A autorregulação é um processo consciente e voluntário de governo, pelo qual possibilita a gerência dos
próprios comportamentos, pensamentos e sentimentos voltados e adaptados para obtenção de metas pessoais e guiados
por padrões gerais de conduta. Trata-se um fenômeno multifacetado que opera por meio de processos cognitivos subsidiários, incluindo automonitoramento, julgamentos autoavaliativos e autorreações. BANDURA, A. Self-regulation of
motivation through anticipatory and self- reactive mechanisms. In: Dienstbier, R.A. (Ed.) Perspectives on motivation:
Nebraska symposium on motivation. Lincoln, University of Nebraska Press, vol. 38, pp. 69-164. , 1991.
4
Orientação realizada em julho de 2014 na Casa de Cultura Salvador Ligabue pela artista orientadora Angela Coltri
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 31
Leonardo Moreira é formado em artes plásticas, Mestre em Filosofia e estudante de filosofia na USP; é artista orientador do Projeto
Artes Visuais do Vocacional no Centro Cultural da Penha.
Stefano Noelli é desenhista e quadrinista e artista vocacionado do
32 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Projeto Artes Visuais no Centro Cultural da Penha,
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 33
EXPERIÊNCIAS
Você
me entende?
EXPERIÊNCIAS
Herbert Henrique
Equipe Leste 3 Teatro
F
ragmento: A estética do ensaio
Nesse ensaio, tentarei realizar a difícil tarefa do compartilhamento da pesquisação e processo artístico vivenciado
junto à turma de artistas vocacionados do Vocacional Teatro CEU Água Azul, em sua edição de 2013. Difícil, pois
diante de uma complexa cadeia de encontros, relações, desejos,
olhares, entre outras complexidades inerentes de uma coletividade, meu olhar é apenas uma possibilidade das múltiplas que
eclodem de tal fenômeno polifônico, do qual capturo aquilo que
me salta aos olhos e dessa constelação de fragmentos atribuo um
sentido arbitrário, que poderia ser rearticulado infinitas vezes dependendo de seu observador. Ou melhor, a realidade ali posta
pode ser vista como uma obra de arte a qual, dependendo do
artista, poderia compô-la dentro de sua poética: quais as possíveis
dramaturgias escritas, pinturas compostas, danças ou cenas encenadas para se compartilhar a experiência vivenciada? Esta foi uma
de minhas primeiras inquietações lançadas no início de minha
pesquisação, a qual culminou em uma experiência artística processual com a eclosão de múltiplos conteúdos e formas estéticas
dos artistas vocacionados e que foi batizada por eles como VOCÊ
ME ENTENDE?. Desta maneira, a própria forma estética desse
ensaio não poderia trair o processo que ele pretende compartilhar,
sendo seu próprio aspecto formal uma reflexão ensaística em si.
Múltiplas são as possibilidades estéticas de relação com este texto:
a forma mais conhecida, linear, seguindo a trajetória sequencial
com começo, meio e fim; a criação de diferentes trilhas, relacionando seus fragmentos; a criação de relação entre um ou mais
fragmentos com algum repertório do leitor. Além destas, o leitor
pode ficar à vontade para descobrir outras formas de passear pelo
texto. Cada fragmento, inclusive esse denominado A estética do
ensaio, pode ser visto como um microensaio que “Não explica o
seu assunto,... transforma o seu assunto em enigma.” (FLUSSER,
Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 96). Dessa
forma, sua conclusão transborda suas páginas e propõe ao leitor,
caso queira, finalizar seu próprio quebra cabeças com as possíveis
relações acima citadas. Proponho aqui outra possível chave de entrada que o leitor pode utilizar para adentra-lo, chave essa que o
intitula: VOCÊ ME ENTENDE?
Fragmento: A pesquisação do artista orientador:
O artista orientador é o detentor do conhecimento?
Tendo como disparo as provocações do Material Norteador e a
ferramenta pesquisação propostos pelo programa, me lancei a seguinte inquietação inicial para os encontros e, consequentemente,
o processo artístico: fomentar em suas composições a eclosão das
múltiplas vozes, desejos e formas estéticas dos artistas vocacionados, despertando nesses o ato de suas coproponências e conduções
compartilhadas.
Na prática surge uma problemática. Romper a relação professoral incutida nos imaginários meu e dos artistas vocacionados e os
estereótipos sobre o teatro. Conforme os encontros aconteciam,
múltiplos eram os discursos e formas lançadas pelos artistas em
suas experimentações propostas, mas percebia que a relação de
poder estabelecida, a qual eu era o detentor do conhecimento e
iria ensiná-los a fazer “O Teatro”, acabava por constranger e tornar menor as potencialidades proeminentes daquela coletividade.
Seria eu tão esclarecido sobre tal assunto? Existe uma verdade sobre o que é ou não arte? Será que as formas e conteúdos propostos
pelos artistas vocacionados são menos artísticas que as minhas?
Fragmento: A pesquisação dos artistas vocacionados
em parceria com a pesquisação do artista orientador
Em um dos encontros a partir de uma conversa, surge o desejo
dos artistas vocacionados em estreitar diálogo com os coordenadores do CEU e com a comunidade do entorno. Esse desejo
aparece das seguintes inquietações ali trazidas pelos artistas vocaRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 35
cionados: “antes de participar do Vocacional eu via o CEU como
uma escola grande aonde se vai, às vezes, para jogar bola... quando
eu passava enfrente e via o guarda na porta ficava com receio de
entrar. Para mim aqui parecia um clube... hoje tenho outro olhar
sobre o CEU, mas será que a comunidade sabe que o CEU é
espaço de cultura e arte também?”. Percebo ali que não é uma,
mas duas pesquisações que compuseram o processo, uma é a do
artista orientador, a supracitada, e outra a do artista orientador em
parceria com os artistas vocacionados na constituição do processo
artístico a partir das inquietações e desejos proeminentes dos encontros daquela coletividade.
Neste encontro é lançado um desafio, realizar o compartilhamento das produções e questões do processo, através de um encontro aberto com a comunidade do entorno e os coordenadores
do equipamento. Outro objetivo era fomentar na comunidade o
olhar para o CEU como um espaço de produção e compartilhamento artístico e cultural.
Até então o processo artístico caminhava para uma polifonia de
formas estéticas e conteúdos. O diálogo desejado com o entorno
já acontecia entre os participantes nos encontros e, ao invés de
sintetizar a experiência em uma única forma e conteúdo, optou-se
por manter essa polifonia e compartilhar essas múltiplas vozes que
habitavam o processo.
Fragmento: O encontro VOCÊ ME ENTENDE?
Abaixo uma possível definição do VOCÊ ME ENTENDE?, nas
palavras da artista vocacionada Jenniffer Sofia, a partir de uma
resposta dada a uma postagem em um evento criado no Facebook
para o encontro aberto:
Fragmento: O processo como ação cultural:
ação artística e/é ação cultural
As propostas artísticas, a condução dos encontros e processos, o
planejamento, divulgação e condução do encontro VOCÊ ME
ENTENDE? foram de responsabilidade dos próprios artistas
vocacionados, sob a orientação do artista orientador. Eles dialogavam com a coordenação para o agendamento das atividades
e ensaios extras no encontro do vocacional; pensavam em estratégias de aproximação com a comunidade, etc. O nome VOCÊ
ME ENTENDE? surgiu em um encontro de planejamento do
encontro aberto. Vimos que o nome sintetizava conteudística e
formalmente o desejo de diálogo, lançado inicialmente e, por ser
uma pergunta, convidava o interlocutor ao diálogo.
O fato dos artistas vocacionados assumirem a autoria e condução do processo/encontro fez com que eles se apropriassem cada
vez mais não só do processo artístico, mas do próprio espaço do
CEU como um espaço público. O diálogo com a coordenação
do espaço se estabeleceu e não se tornava mais uma incógnita.
Buscava-se tornar a divulgação já um ato artístico e poético em
que a comunidade poderia ter acesso às questões do processo vi36 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
venciado. Questionava-se que tipo de estética teriam os cartazes
e foram feitas intervenções e instalações poéticas dentro do CEU
e em espaços públicos que tinham essa dupla função, de ser um
compartilhamento e a divulgação do encontro aberto. Para os cartazes, pensando em evidenciar o caráter polifônico e estético foi
proposto que cada artista produzisse um cartaz em que ele evidenciaria de forma estética sua visão sobre o VOCÊ ME ENTENDE?
como se fosse um depoimento pessoal. Os cartazes tornavam-se
obras plásticas. Como ação-poética, realizamos em um feriado a
ação Picnic Poético. Nessa, foi proposto que no dia trouxéssemos
comidas e bebidas para a realização de um piquenique. Antes do
evento, realizamos formas de intervenção do espaço público dentro e fora do CEU, e após essa experiência o piquenique tornou-se
um espaço tanto de alimento literal, como poético, nos alimentando das trocas de impressões sobre a experiência vivenciada. Foram
propostas também duas instalações: uma tinha o intuito de criar
no CEU a relação de ambiente familiar, como em um lar. Para
isso, foram desenhadas com fitas crepe casas no chão de passagem;
outra de propor uma relação de diálogo e troca de pensamentos
com a comunidade. Nesta foram desenhadas árvores nas paredes
com papéis que formavam os frutos. Nestes papéis, era permitido
a quem quisesse deixar algum pensamento para compartilhar com
alguém. Neste processo de feitura os artistas vocacionados acabavam se tornando os próprios agentes e multiplicadores culturais
da região e o processo artístico um processo de ação cultural em si.
Foram realizados no ano dois encontros abertos em que o primeiro trouxe novos participantes que compuseram as criações do
segundo encontro VOCÊ ME ENTENDE?.
Fragmento: Encontros Estéticos:
Arte é/gera conhecimento?
Com o passar do tempo das orientações, comecei a perceber que
o encontro em si era uma composição estética que ditava um tipo
de imaginário, de modo de organização, produção e produto estético do coletivo: era a própria forma como eu me relacionava
com os artistas vocacionados, minha presença corporal, o tom de
voz, o tipo e a sequência de exercícios escolhido, a forma como
eles eram passados, as palavras escolhidas na hora de propor ou
dialogar com os vocacionados, etc. Enfim, a construção do encontro era tal como a construção de uma dramaturgia, de uma
materialidade estética.
Com o intuito de colocar em movimento e compartilhar essa reflexão com os artistas vocacionados experimentei a subversão total
do formato mais tradicional do encontro, (aquecimento, improvisação em grupos, apreciação final em roda), propondo o que
chamei de Encontros Estéticos. O objetivo desses encontros era
tentar instaurar uma experiência estética, na qual fosse pensado
detalhadamente o ‘’desenho’’ do encontro (ritmos, iluminação,
espaço, etc.). Neles, forma e conteúdo serviam como disparadores
de reflexões práticas e teóricas sobre o processo vivenciado, com
possíveis desdobramentos dessas experiências estéticas em produções dos seus participantes.
Em um desses encontros, a proposta foi vivenciar uma experiência
de silêncio e de trajetória no escuro. Neste, em um determinado momento, colávamos na boca um papel escrito VOCÊ ME
ENTENDE?, permanecíamos com ele durante um tempo e, em
seguida, escrevíamos uma carta sobre o vivenciado. Após o termino desse encontro três artistas vocacionados, Jeniffer Sofia, Denis
Xavier e Beatriz Cazetta, desdobraram essa em uma proposta: resolveram ir embora juntos com os papéis ainda colados na boca.
No encontro seguinte, compartilharam essa experiência, citando
as diferentes reações das pessoas que eles encontravam no caminho, a partir do estranhamento gerado por aquela forma estética
que eles compunham. Nas palavras de uma senhora que encontraram pelo caminho, que ao ver aquela imagem disse: “Nem eu
me entendo meu filho...”.
Os encontros estéticos alargaram as percepções e proposições estéticas dos artistas vocacionados: possibilitaram um diálogo mais
intenso entre os diferentes processos criativos daquela coletividade e uma experimentação formal que borrava as fronteiras das
linguagens artísticas. O que importava era a tentativa de gerar
uma experiência e não se manter na linguagem teatral exclusivamente: Henrique Macinni e Hingrid Araújo faziam criações com
movimentos coreografados em espaços diversos; Airton Alves propôs pensar o desenho estético de recepção do público, Silvana
Aparecida e Jady Aparecida propuseram a criação das árvores nas
paredes de entrada do teatro, onde o público poderia escrever em
retângulos coloridos que formavam suas folhas e o coletivo propôs desenhar com fitas crepe casas no chão de passagem do CEU
externo ao teatro.
Estabeleci um link entre os Encontros Estéticos e as relações que
os artistas vocacionados tinham com o espaço do CEU. A arquitetura do CEU como um todo ou até a arquitetura do teatro do
CEU, um palco semiarena, eram formas estéticas que ditavam
um imaginário e uma forma de relação. Os artistas vocacionados
propuseram à comunidade e aos coordenadores do CEU outras
relações estéticas com o espaço do CEU, por meio das instalações
e intervenções realizadas como divulgação e compartilhamento
do processo e encontro VOCÊ ME ENTENDE?, que geravam
estranhamentos e possíveis reflexões sobre a utilização daquele espaço público. Na instalação da casa, as faxineiras do equipamento
ficaram na dúvida se removiam ou não as fitas crepes que estavam
no chão do CEU formando as casas. Ao consultar a gestora do
CEU, Maria Elisa, esta se utilizou da instalação para discutir com
os funcionários do CEU sobre arte e ação cultural e, consequentemente, a importância da permanência daquela intervenção criada
no espaço pelos artistas vocacionados. A partir de então os funcionários se tornaram mais próximos de nossas criações e, muitas
vezes, explicaram-nas para os visitantes do CEU.
Herbert Henrique Jesus de Souza é artista orientador do
Programa Vocacional, no Projeto Vocacional Teatro, desde 2013.
É também artista performer da Descompan(h)ia Demo_Lições
Artística iLTDAs desde 2008.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 37
EXPERIÊNCIAS
Acomoescuta
processo cartográfico
Pela experiência do corpo como lugar de passagem
Carolini Lucci
Equipe Sul 2A Dança
aquele momento, na impossibilidade material de ir mais longe, eu teria sido obrigado a
deter-me, sem dúvida, pronto, a rigor, para voltar a partir em sentido inverso, imediatamente ou muito mais tarde, quando, de algum modo, eu me desatarraxasse de mim mesmo
depois de ter me bloqueado. Isso teria constituído uma experiência rica em interesse e
novidade, se é verdade, como fui levado a dizer sem que pudesse fazê-lo do outro modo, que
mesmo o mais pálido caminho comporta um andamento totalmente distinto, uma outra
palidez, tanto ao redor quanto ao ir, e inversamente.
Samuel Beckett.1
T
ransitar é condição primeira para atuar na coordenação
de uma equipe de artistas no Programa Vocacional. O
que o corpo experimenta quando transita? Viajo aos
equipamentos e escolho ir de transporte público para que
a atenção do meu corpo esteja no ato de transitar pelo
caminho, no ambiente da cidade. Observo que o estado de um
corpo em trânsito nasce de um mundo visto em movimento. Paisagens, corpos, situações, diálogos, pensamentos, apenas passam
por mim e isto quer dizer que não me fixo a nada.
Nasce a minha primeira constatação: transitar é “deixar passar”,
permitir-se ser atravessado continuamente. Assim como experimentar processos de criação, o corpo que dança pode tornar-se
passagem de estados, memórias, sensações, imagens. O corpo,
lugar de passagem, escolhe caminhos, vai, volta pelo sentido inverso, busca novas direções, às vezes fica parado no mesmo lugar,
busca despadronizar caminhos... Este corpo-via se identifica com
a constatação de Beckett em sua afirmação: “mesmo o mais pálido
caminho comporta um andamento totalmente distinto”. Identifico neste processo um agenciamento de desejos pela criação de
um corpo como lugar de passagem. Na tentativa de dar voz a
este desejo, coloco-me em movimento a partir da criação de um
“corpo-via”, “corpo-veia”, corpo que liga ou religa espaços, lugares, estações internas, falas presas, interditadas.
Em cada visita a equipamentos, em cada encontro com
artistas, estudo a minha escuta, de modo a observar e cartogra38 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
far, em que aspectos dos processos artísticos pedagógicos posso
me tornar este corpo-lugar. Pergunto-me: Como posso ser “meio”
neste espaço de encontros? Como posso ser o “entre” de um encontro? O que precisa ser religado no cruzamento dos corpos?
Sendo tarefa de o cartógrafo dar língua para afetos que
pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja
mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento
‘as linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem
elementos possíveis para a composição das cartografias que
se fazem necessárias. O cartógrafo é, antes de tudo, um
antropófago (ROLNIK, 2011).
Investigar a escuta para o artista contemporâneo, talvez esteja
intimamente vinculado a esta proposição de Rolnik sobre o papel
do cartógrafo. O artista cartógrafo, interessado em acompanhar
os movimentos de transformação da paisagem; artista que cria e
recria constantemente para si um corpo poroso e permeável ‘a
passagem de falas mais profundas, talvez inconscientes, aos afetos
e intensidades que pedem passagem’. O artista do Programa pode
experimentar o corpo em estado de escuta aos afetos que pedem
passagem, o corpo em estado cartográfico/ antropófago, e isto
gera em mim novos agenciamentos de desejos.2
Tenho sido movida pela possibilidade de buscar novas vias de
passagem a falas que não estão explícitas, falas que não estão sen-
do escutadas entre coordenadores do NAC e os princípios do Programa Vocacional; desvelar passagens entre a fala de um artista
e de um coordenador de cultura e vice-versa; encontrar pontes
possíveis das propostas e processos de criação entre vocacionados
e artistas.
Observo que há processo de criação no ato de escutar na medida
em que fazemos escolhas e que a escuta interfere diretamente na
construção da própria fala. Neste sentido, percebo a escuta como
um ato antropofágico3 no qual somos necessariamente desterritorializados e convidados a reorganizar continuamente os princípios
que nos movem. A escuta, como estratégia de produzir desejo, faz
com que nunca sejamos os mesmos, e sim um corpo que ao silenciar a cada ato de escutar ‘experimenta uma sucessão ilimitada de
singularidades finitas’ (ROLNIK, 2011).
Carolini Lucci é artista, coordenadora da equipe sul 2a no Programa Vocacional Dança. Graduada em Comunicação das Artes
do Corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Atualmente é criadora – intérprete no grupo dirigido por Marta
Soares.
Referências Bibliográficas
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo/Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011.
DELEUZE, Gilles, & GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976;
LAPOUJADE, David. O Corpo que não aguenta mais. Tradução:
Tiago Seixas Themudo. Revisão: Daniel Lins.
Notas
As citações de Beckett foram traduzidas por Luiz Orland em “O Corpo que não aguenta mais”.
A palavra desejo é utilizada aqui na concepção trabalhada por Deleuze e Guattari.
Esses autores partem do pressuposto que a realidade é pura produção, composta por singularidades e sustentada pelo desejo, sendo assim,
desejo aqui é produtor de realidades, processo de produção de universos psicossociais. O desejo cria a possibilidade de produção, criação,
invenção de modos e formas vitais. A realidade é produção desejante e o desejo é a força motriz que impulsiona a máquina subjetiva, ou
seja, que impulsiona o ser humano a produzir, a imergir num devir criador e impulsiona a subjetividade em múltiplas direções. (Deleuze,
G., & GuattariI, F. (1976) O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago).
3
O sentido etimológico original da palavra “antropófago” (do anthropos, “homem” e phagein, “comer”). O Manifesto Antropófago (ou
Manifesto Antropofágico) foi um Manifesto Literário escrito por , principal agitador cultural do início do Modernismo no Brasil.
1
2
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 39
EXPERIÊNCIAS
Reflexões acerca
do ensino da Arte
Angela Coltri
Equipe Norte Música
O
texto de Regina Machado é sobre o ensino da arte, uma
reflexão sobre o ato de ensinar do professor de artes. E
acima de tudo, o texto tem como linguagem a arte. Sem
nunca ser metodológico ou sistemático, sem deixar de ser
saboroso. E é sobre isso que o texto nos atenta, sobre a
presença da arte no ensino, sobre aproximar o processo de ensino
e aprendizado ao processo de criação.
Três elementos metaforizam o encontro que o professor deve
propiciar entre os alunos e a arte. O horizonte, no conto “O espelho” de Machado de Assis e o conto “A sopa de pedra”, no qual o
personagem principal é Pedro Malasartes. Do conto de Machado
de Assis, o mais importante está no final:
Resumindo o assunto: numa sala pequena, à noite, quatro homens de idade madura discutiam “questões de alta transcendência” enquanto um quinto personagem permanecia calado. Depois de muito tempo de falações metafísicas, solicitado a dar sua
opinião, o homem quieto conta um caso que aconteceu com ele
quando era jovem.
Lembro-me da última frase do texto de Machado de Assis:
Quando os outros voltaram a si, o narrador havia descido as escadas. Nesse final, Machado de Assis fala da falta de necessidade
de dar uma explicação racional, um final à obra, do valor que a
arte tem por si só, já que ela não se propôs a explicar nada, mas a
tocar as pessoas, ou mesmo a fazê-las se “tocarem”, entrarem em
contato com seu íntimo, seu “outro lado”. Como diria Regina
Machado: Já pensou se Machado de Assis resolvesse explicar que
o caso do Jacobina foi tão bem contado que deixou os outros sem
palavras?
O conto de Pedro Malasartes é muito clássico, resumidamente,
Malasartes resolve convencer uma velha avarenta a lhe dar ingredientes para sua sopa, de uma maneira inusitada: despertando a
sua curiosidade. Ele diz que vai fazer uma sopa de pedras e pede-lhe somente a panela emprestada. A confiança de Malasartes é
tamanha que a curiosidade da velha é despertada de tal modo
que, só para ver onde vai dar, que sabor terá sua sopa de pedras,
ela lhe dá todos os ingredientes que tem pouco a pouco.
40 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Regina faz uma leitura “subversiva” do texto, colocando Pedro
Malasartes como o artista educador e a velha avarenta como o
aluno de arte. A avareza é comparada por Regina ao resguardo do
aluno: um gesto cauteloso de abrir a cortina para ver o que está
acontecendo lá fora. Como se a velha/aluno dissesse: no que isso
me diz respeito? De modo que a sopa só conterá os ingredientes
do aluno se o professor se utilizar da arte, da curiosidade do aluno
para cozinhá-la. Se Malasartes dissesse à velha “você tem que me
dar a batata” ela nunca daria. Assim é com o aluno de arte.
Levar Gabriel, Pablo, Manuel, jovens de cerca de quinze anos a
dizerem, após muitas reticências que “curtiram” uma música que
eu gosto de tocar com certeza tem a ver com essa condição do
silêncio. Eles gostaram não porque eu disse a eles que eles tinham
que gostar, (mesmo porque eu não disse) mas porque a minha
paixão por aquilo despertou algum tipo de curiosidade dentro das
cabeças deles.
As composições que surgiram a partir de certas orientações também ilustram curiosamente essa reflexão. Numa semana, a prática
que eu fiz exigia deles que cada um contribuísse com um trecho
da melodia. Essa exigência os obrigou a tentar, e o resultado da
obrigação foi colocá-los em contato com barreiras: (medo/timidez). O resultado, porém foi muito pouco artístico, tinha muito
pouco deles ali.
Sem que eu pedisse, na semana seguinte Pedro chegou com
uma composição, que por motivos pessoais ele se sentiu inspirado a fazer. Ali estava simplesmente “ele”, suas referências, talentos, sentimentos, angustias. Durante a orientação finalizamos
sua composição e a maior certeza que eu tenho é de que ele saiu
de lá satisfeito, porque ficou realmente bom. O clima de inspiração, efervescência, foi lindo e os outros vocacionados presentes
participando da composição se sentiram inspirados a escrever e
produzir a arte deles. Como eles viam a arte de Pedro nascer ali,
em sua frente, eu era apenas o médico fazendo o parto. Manuel
como Pedro comentou que parecia o Chico Xavier, escrevendo
compulsivamente e essa será a próxima obra a ajudarmos a nascer.
O ensaio Porque arte: entre a regra e a exceção, de Teixeira Co-
elho discute de maneira intempestiva e “agulhada”, as diferenças
entre cultura e arte, e o uso social que faz delas. O texto traz um
historicismo inerente a um crítico de arte, carregado de fatos e
citações. A frase de Godard “a cultura é a regra e a arte, a exceção”
carrega em si o conceito básico desdobrado no texto. A arte traz
em si um potencial destrutivo, de morte, de questionamento, de
perigo, de negatividade. Enquanto que a cultura é o positivismo,
o hábito, o conforto, a construção.
A arte deve ser um pensamento sobre o mundo, não somente
sobre a própria arte, a arte deve insistir em ser modo de pensar.
Em uma passagem interessante, o autor promove uma argumentação em defesa da audaciosa afirmação do compositor alemão
Karlheinz Stockhausen [1928-2007], que considerou o atentado
ao World Trade Center uma obra de arte insuperável. Nesta afirmação estão contidos os conceitos que diferenciam a arte da cultura. São estes: transcendência; perigo (a exemplo da perseguição
que sofreram os artistas durante as ditaduras), a metáfora da morte: a entrega que os músicos devem ter perante seu compromisso
com a arte.
Então, de maneira quase cômica, é tratado o ressentimento que
a cultura carrega em relação à arte. Por quê? A arte não está preocupada com o nós, com o coletivo, e sim somente com o próprio
artista. Seu compromisso não é com mais ninguém além de si
mesma. Basicamente, a arte não estando a serviço de ninguém
não carrega em si obrigatoriedade de ser duradoura, convergente,
séria, politicamente correta. A máxima é: A cultura é uma necessidade, mas a arte é questão de desejo. A arte não é necessária.
Após esta nova leitura, reflito: Será que estou impulsionando
meus alunos (do Vocacional e outros) a fazerem arte? Unindo o
pensamento do crítico de arte Teixeira Coelho ao da professora
doutora de arte e genial contadora de histórias Regina Machado,
penso se o silêncio ao qual se referia Regina Machado. Não seria a
essa atitude egoica da arte citada por Teixeira Coelho, essa falta de
vontade de se explicar, de ser clara, objetiva. Mais: essa vontade de
ser subjetiva, misteriosa.
Chego a um paradoxo do ofício de professor de arte: como conciliar esse antagonismo retórico, como ser ao mesmo tempo herói
e bandido? Como ser aquele que “esconde o ouro” e aquele que
“entrega o ouro”? Como ser ao mesmo tempo aquele que esclarece e a aquele que confunde? O ensino é uma ação, então penso
em ações que possam levar a um fazer artístico. Um ponto que é
preciso despertar dentro destes potenciais artistas é a curiosidade,
a gana de fazer algo. A gana de tocar o som que você ouve; aprova,
mas não consegue reproduzir. De transportar para o instrumento
ideias que eles realmente queiram dizer ao mundo, seja lá porque
for. De criar novos sons, músicas com os próprios recursos.
Numa última orientação o vocacionado Pedro logo disse “Já
compus mais uma”. Mexendo o mínimo possível em sua melodia, a encaixei numa harmonia e mais uma música foi composta,
tudo em comum acordo. O título da música é “Não quero mais
aspargos”. Este revela o total descompromisso com qualquer tipo
de causa. Não pretende “pensar mundo”, como sugere Teixeira
Coelho. No entanto, o resultado que o trabalho provoca é extremamente progressivo. Ele, Pedro, está extremamente empolgado
em adquirir as ferramentas para fazer aquilo sozinho, ou seja, em
aprender música. Pensando que a arte, diferente da cultura, e mesmo na vida de Pedro, não é obrigatória, e deve vir do desejo, a
missão de despertá-lo, aqui, foi cumprida.
A maneira como guiar esta criação também deve ser muito cuidadosa. Definir e harmonizar uma melodia alheia é algo muito
perigoso. Deve ser feito livre de preconceitos, de olhos fechados,
afinal de contas, não sou eu quem está criando. Procurei compreender o mais fielmente possível a melodia que estava no ouvido
interno dele. Muito mais difícil assim, pois não sendo eu quem
guia os caminhos da melodia, acabo pisando em harmonias menos familiares para mim. É um processo de desconstrução, para a
reconstrução do meu conhecimento. Parafraseando Teixeira Coelho, nessa construção procurei ser mais arte e menos cultura.
Angela Coltri do Amaral é artista-orientadora de música pelo
projeto Vocacional na Casa de Cultura Salvador Ligabue,
Freguesia do Ó.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 41
Notas sobre vazios
ou um breve relato sobre o elefante branco
do invisível
EXPERIÊNCIAS
EXPERIÊNCIAS
A matéria
Daniela Schitini
Equipe Região Leste - Teatro
Ilma Guideroli (texto e foto)
Equipe Lesta Artes Visuais
A
lotação de prefixo 3.26 avança pela Rua Inácio Monteiro já depois de quase 30 minutos desde que deixara
o Terminal Guaianazes. É possível avistar um grande
edifício que contrasta com a paisagem local na mesma
proporção de sua escala. Desço no ponto indicado pelo
cobrador: estranhamento imediato. Todo branco, poderia tranquilamente se passar por hospital. Imponente e ao mesmo tempo
melancólico. De frente, um campo de futebol amador. Terra batida, imensidão. Atrás do campo, um mar de casas acompanha a
topografia do terreno: estou na Vila Yolanda, Cidade Tiradentes.
Extremo da Zona Leste de São Paulo.
Ainda com certo receio, entro no prédio. Tudo muito limpo.
Asséptico. Polido. Esterilizado. Conforme subo a grande rampa
de acesso aos três andares, minha angústia aumenta. Não há indícios, registros, pegadas, marcas, vestígios, pistas: o crime perfeito.
Nunca descobrirão! Conforme avanço, percebo que existem mais
seguranças e funcionários da limpeza que frequentadores. Entristeço.
Logo sou tomada por uma sensação de vazio inexplicável. O
que fazer, como fazer, por onde começar? Onde estão as pessoas?
Quero ver gente, conversar, conhecer, trocar, ocupar. Quero entender. Ao longo das semanas, minha angústia abranda-se. Aos
poucos, pessoas aparecem, desenhos vão surgindo junto com relatos. Tento mapear através dos depoimentos que tipo de relação
cada um tem com o Elefante Branco – apelido dado ao Centro
Cultural pelos moradores do entorno. “Você se sente pertencente
a este espaço?” Um riso tímido e sem graça é a resposta que recebo.
O processo tem sido longo e árduo, porém gratificante. Percebi
que antes de orientar qualquer tipo de projeto artístico, é preciso
fazer com que elas sintam-se seguras e capazes. Isso leva tempo, é
uma construção lenta e diária. É preciso primeiro ganhar a con42 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
fiança, mostrar que estou lá para ajudar, para fazer junto, para
apontar caminhos e numa relação de igualdade.
Os próximos meses prometem reflexões oportunas e férteis. Aos
poucos, os espaços vão sendo ocupados, a seu tempo, da maneira
que é possível fazê-lo. E eu pacientemente aprendo a lidar com os
vazios em suas diversas nuances e densidades. De repente o vazio
de outrora já não é assim tão vazio... em meio ao cinza-concreto-frio, ainda existe pulso. E potência.
Ilma Guideroli é artista-orientadora do Programa Vocacional
Artes Visuais no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes,
região leste. Mestre em Artes Visuais pela Universidade Estadual
de Campinas. Desenvolve pesquisas em espaços urbanos através
da fotografia.
“O
caminho é da não matéria para a matéria.” Ouvi essa
frase numa das nossas reuniões do vocacional, quando
falávamos de uma referência: do artista Joseph Beuys.
Depois vi uma frase desse próprio artista que diz: “Pega-se um material indeterminado e que é levado a um lugar preciso para que ali seja feita uma forma determinada. Um
é indeterminado, o outro determinado. É um processo que faz
com que algo indeterminado assuma uma forma determinada,
por meio do movimento.” Assim que terminei de ler, pensei em
como é difícil provocar ou descobrir esse processo que abarca o
misterioso, o desconhecido e em como temos de trabalhar e investigar essa possibilidade de transformação da não matéria para
a matéria, do invisível para o visível, ou nas palavras de Beuys, do
indeterminado para o determinado. Uma alquimia que é como
uma provocação, um desafio, uma inversão, como se a evolução
estivesse nesse caminho invertido, da não matéria, do invisível, do
indeterminado para a matéria, visível, determinada e o mais alto
grau de evolução fosse então se tornar matéria visível que traz em
si o invisível.
“Trazer corpos às almas”. Outra frase presente no livro sobre Beuys. Senti uma alegria por essa frase estar presente em um livro sobre o pensamento e sentimento de um artista, pois penso que esse
processo que ele descreve do indeterminado para o determinado
revela em certo sentido o caminho de todo artista, que tem como
material muitas vezes algo invisível ou mesmo algo concreto que
não significa e nem existe sem uma relação com outro material ou
com outro ser, sem um movimento. O artista precisa dar forma,
tornar visível a sua leitura do invisível, estabelecer relações que
transformem um material, seja concreto ou invisível, em material
artístico. Agora, lembro-me de uma imagem presente numa frase
de Rodin, quando ele diz que a escultura já estava presente naquele material, já existia, mas não era visível, ele apenas a revelou,
tornou visível.
Quando estamos diante de uma obra de arte, geralmente ela nos
escapa, ela não cabe em palavras apenas, nem em imagens somente, nem pode ser totalmente definida, as suas possibilidades
permanecem infinitas e a nossa percepção em movimento constante. Uma obra de arte é viva, a cada instante transformada pelos
diferentes olhares que atuam sobre ela, e apesar disso não perde a
sua integridade. Em um trecho do livro “O Poder do Mito”, Bill
Moyers pergunta para Joseph Campbell: Quem hoje interpreta,
para nós, as coisas que não são vistas? Campbell responde: Essa é
a função do artista. Portanto para chegar a esse grau máximo de
evolução do indeterminado para o determinado é necessário trabalhar com o que não é visto, mas existe. Trabalhar com a sutileza,
a percepção de entrelinhas, dos silêncios, dos vazios, dos olhares,
do desconhecido.
Sei que esse início de texto talvez esteja um pouco fantasmagórico
demais, invisível demais, ainda num caminho inicial, longe da
evolução talvez pretendida por Beuys. Sei também que o Vocacional é um projeto artístico-pedagógico. Pedagógico. O que pode
significar que muitas vezes precisa de explicação, de métodos, de
formatos. Pois bem, não é só o projeto que precisa, nós também
precisamos de um mínimo grau de segurança para trabalhar, de
disciplina e planejamento. Temos os nossos caminhos, os nossos
procedimentos, aqueles que consideramos que funcionam. Não é
preciso dispensar totalmente a nossa bagagem, as nossas muletas,
mas é preciso saber transformá-las, saber conduzir e nos deixar
conduzir quando elas começam a se deslocar. Existe um momento
em que o processo artístico também passa a conduzir o condutor
e nesse momento é que geralmente precisamos decidir se assumimos o risco de tentar uma alquimia, de transformar o invisível
em visível, de perder o controle absoluto sobre o nosso objeto de
pesquisa, de não saber exatamente o caminho e ainda assim se
deixar caminhar.
Percebo depois de alguns anos conduzindo os chamados procesRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 43
44 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
diz Shakespeare: “Nossos festejos terminaram. Como eu os avisei,
eram espíritos todos esses nossos atores; dissiparam-se no ar, no
ar impalpável... Somos feitos da matéria dos sonhos e nossa vida
pequenina é cercada pelo sono.” Por alguns instantes, conseguimos despertar do nosso sono. Algumas vezes, no palco, a alquimia
acontece e a não matéria passa a ser matéria, elas – as pessoas - se
tornam uma coisa só, o invisível passa a ser visto, o indeterminado
passa a ser determinado. Quando isso realmente acontece o artista
sente que chegou perto da sua mais evoluída capacidade de criação. O artista sente que está absolutamente desperto e em relação,
reverenciando a matéria dos sonhos de que é feito. Mas não podemos esquecer que estamos no teatro, num palco, e sabemos que
dali a algum tempo o palco volta a estar vazio. Vazio. O invisível
volta a reinar. E precisamos recomeçar a caminhar, recomeçar a
despertar. Inventar um novo caminho.
Daniela Schitini é artista orientadora do projeto Vocacional Teatro
nos anos de 2004, 2006, 2007, 2008, 2012 e coordenadora de
equipe nos anos de 2009, 2010 e 2011.
Ensaio sobre uma trajetória
EXPERIÊNCIAS
sos artísticos pedagógicos que um elemento fundamental e muito
presente nos procedimentos que proponho é a escolha. A escolha
dificulta: exige reflexão, intuição, escuta, decisão. A escolha é dolorida, envolve uma responsabilidade e um desapego. A escolha
é um elemento fundamental para transformar a não matéria em
matéria, aquilo que existia como potência passa a ser visível. A
partir do momento em que sentimos que podemos escolher, agir
sobre o nosso próprio material, sentimos também os limites e as
surpresas que a nossa escolha e ação revela. Começamos a sentir a
fagulha da criação, a nossa capacidade de invenção.
Relato alguns acontecimentos em uma das turmas que orientei
em 2012 com a turma da Casa Chico Science, que trouxe questões que dialogam com essas reflexões. Levei ao grupo propostas
de textos para servir como material de improvisação e de investigação, para que experimentassem criar a partir deles. E depois de
alguns encontros e tentativas, eles disseram não para esse material.
E surpreendentemente esse não, me alegrou. A escolha começou
a acontecer, a relação começou a revelar os quereres e as dúvidas.
O invisível começou a se transformar, a querer aparecer. Começamos então a realizar alguns exercícios e improvisos a partir de um
livro que uma das vocacionadas trouxe sobre Shakespeare. Levei
para casa o livro, li alguns trechos e percebi que ali tínhamos o
relato bem humorado de uma vida cheia de lacunas e de dúvidas e de fatos desconhecidos. Notei que talvez trabalhando com
alguns aspectos dessa vida desconhecida, indeterminada, trabalhando com as lacunas, os artistas vocacionados poderiam criar
as suas próprias hipóteses, inventar uma vida para Shakespeare,
fazendo dele também um personagem e não só um autor. Agora
eles seriam os autores. E eles começaram a criar essa vida imaginária, embarcaram nessa tentativa e foram construindo essa vida
do autor mais conhecido e desconhecido do planeta e assim continuaram dizendo sim a esse processo de criação. Pressinto que eles
disseram sim porque começaram a sentir que podem ser autores,
podem brincar de ser como Shakespeare, esse gênio tão distante,
que eles podem ser artistas, realizar escolhas, que podem conduzir
esse material e serem conduzidos por ele. O que me faz voltar a
Joseph Beuys, e a sua afirmação de que a separação entre vida e
arte talvez não exista. “Todo homem é um artista,” diz ele.
Fiquei surpresa ao observar a alegria deles de trabalhar sobre esse
ponto de partida que é a vida do Shakespeare, um mestre em criar
pontes unindo o invisível e visível. Percebi que esse era um caminho naquele momento para o surgimento do material artístico do
grupo. O material que surgia na cena era o que mantinha aquelas pessoas juntas, criando. Claro que eu sabia que, a qualquer
momento, aquilo poderia se desfazer, desaparecer. Como diria e
As danças urbanas no Programa Vocacional
Ivo Alcântara
Colaboração:
Ana Maria Krein, Duda Moreno, Lenilson P. Rodriguês, Pedro Peu, Rodrigo Cândido, Urubatan Miranda.
I
nicio esta escrita a partir das minhas experiências adquiridas
desde agosto de 2007, quando fui o único contratado com
a formação em Danças Urbanas, na função de artista orientador pelo Programa. Agrego também toda a bagagem que
carrego desde 1992, quando me vi envolvido com a cultura
urbana, iniciando os meus primeiros passos de dança. Este esboço
tem o objetivo de desmistificar alguns (pre)conceitos relativos às
danças urbanas, contribuindo assim com a pesquisa em desenvolver processos artísticos emancipatórios a partir da estética proposta por este tipo de dança e o material norteador do Programa
Vocacional.
Naquele momento, nas reuniões artístico pedagógicas entraram em cena os grandes nomes e pensadores da dança moderna e
contemporânea: Rudolf Laban, Merce Cunningham, Pina Bausch Martha Graham, William Forsythe. Percebi que apesar da
minha formação não ser acadêmica, eu tinha as minhas próprias
referências advindas das Danças Urbanas. Vi que os pensamentos
artísticos se cruzam em momentos diferentes e atualmente consigo identificar semelhanças entre as técnicas e conceitos dos pesquisadores citados anteriormente nas propostas de Dom Campbell, Gregory Campbellock Jr, Boogaloo Sam, Ken Swift, Buddah
Stretch, entre outros tantos.
Abaixo, apresento a de ilustração em que apresento a utilização
deste material como ferramenta pedagógica em minhas orientações. Destaco as principais características das danças em questão
e traço um paralelo com os princípios do Programa Vocacional.
Oficina x orientação
Vale compreender que Danças Urbanas, mais conhecidas como
Street Dance ou, na tradução literal, Dança de Rua, por ter quase
seis décadas de existência, representa cultura viva, em constante
movimento que está sempre se atualizando, se reinventando e se
reorganizando. Este seguimento surgiu nos Estados Unidos no
final da década de 60, e chegou ao Brasil no início dos anos 80,
tendo como principais referências de aprendizado imagens em
videoclipes, filmes no cinema e em VHS. Motivo este pelo qual a
maioria dos dançarinos era autodidata e dava importância apenas
para a reprodução do movimento pelo movimento.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 45
O Movimento Soul/Funk tendo como grandes precursores os
intérpretes norte-americanos James Brown, Aretha Franklin, Rufus Thomas, entre outros, foi o responsável direto pelo surgimento
das Danças Sociais, conhecidas como “Social Dances”, danças que
se caracterizam por não possuir um vocabulário tão complexo, e
por serem pequenas sequências de movimento que normalmente
são executadas repetidamente de forma cíclica. Esta manifestação
tinha o caráter de aproximação entre pessoas, proporcionando
momentos de celebração entre os participantes e apreciadores.
Características estas que se relacionam com os princípios do programa Vocacional e que utilizo como ponto de partida em meus
encontros e ações culturais.
A dança Locking, de Don Campbell, criada no final da década
de 60, é considerada a dança clássica entre as Street Dances norte-americanas. Apresenta movimentos dinâmicos e em seu principal
passo, o Lock traz a “pausa” como qualidade indispensável. Além
desta característica, destaco ainda que a maioria dos passos pertencentes ao seu vocabulário de movimentos parte da execução
e do trabalho com os membros superiores, concentrando-se em
dedos, punhos, cotovelos e ombros.
Ivo Alcântara é artista orientador do Vocacional Dança no CEU
Jaçanã, equipe norte. É pesquisador das danças urbanas e arte-educador na Fábrica de Cultura Jaçanã.
Referências bibliográficas
46 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
DIAS, Raul e MOTTA, Fábio. HIP HOP – Cultura de Rua. São Paulo:
HHB Studio, 2011.
GLITZ, Nathalia. DANÇAS URBANAS – Histórico e Possibilidades.
TCC - Universidade FMU. São Paulo, 2012.
GUARATO, Rafael. DANÇA DE RUA - Corpos para além do movimento. Uberlândia: EDUFU, 2008.
PIMENTEL, Spensy. O LIVRO VERMELHO DO HIP HOP. TCC
- Fac. de Jornalismo da USP. São Paulo, 1997.
RIBEIRO, Ana Claudia e CARDOSO, Ricardo. DANÇA DE RUA.
Campinas: Editora Átomo, 2011.
Traçando limites
Murilo Gaulês
Equipe Região Norte 2 - Teatro
C
artografia (do grego chartis = mapa e graphein = escrita)
é a ciência que trata da concepção, produção, difusão,
utilização e estudo dos mapas. É um desenho que acompanha e que se faz ao mesmo tempo dos movimentos
de transformação da paisagem (ROLNIK, 1989, p.2),
como uma minuciosa arte de registro daquilo que é observado, da
criação de linhas, cores e formas a fim de prover a visualização de
dados espaciais. Dessa forma, torna-se possível analisar um todo
espacial muito grande e complexo, em uma forma de escala reduzida e palpável, em que se materializam informações que ajudam
a entender o objeto de análise com maior clareza e concretude.
O cartógrafo é um criador de limites, que planeja, organiza,
projeta, orienta, direciona e fiscaliza as diversas modalidades de
levantamento, por meio do processo e análise de dados coletados,
bem como pela visualização e reprodução de informações. É um
articulador de limites que traça no espaço todos os atravessamentos que dele emergem.
O artista-orientador no Programa Vocacional se propõe a agir
como um cartógrafo. Vai a campo quando atua em seu equipamento e coleta informações. Observa com olhar atento e receptivo cada detalhe no encontro a fim de poder traçar seu mapa
processual. Mapa este que é planejado em conjunto durante as
reuniões de pesquisa-ação com uma equipe que trabalha com
estes materiais coletados e delicadamente vai esboçando linhas,
traçando limites.
Vai descobrindo as potências e fragilidades, desbravando he-
EXPERIÊNCIAS
Já a dança Breaking de 1973, uma das danças mais populares
entre os jovens do mundo todo, traz em seu histórico a superação,
resistência, disputa ou demarcação de território. Para fazer parte
ou representar uma Crew, para ganhar o seu espaço na Cyper, é
preciso ser e estar no espaço, afirmar a sua identidade. A orientação no vocacional não se dá apenas ao trabalho físico, pois o
orientador enxerga o indivíduo de uma maneira integral, trazendo
à tona outras questões pertinentes ao artista, como desenvolvimento da identidade e da autoafirmação.
Os estilos Popping e Boogaloo, assim como alguns de seus derivados, Roboting, Scarecrow, Toy Man, Puppet, Waving, Tutting, entre outros, são técnicas que estimulam seus praticantes a
se transportarem a uma situação diferente do real, que vão desde
a ilusão de ótica, até a caracterização de um personagem. Entre
as técnicas citadas acima, alguns princípios básicos como, fluência, torção, rotação, contração muscular, isolamento das partes do
corpo e a exploração dos ângulos, são recorrentes.
O Freestyle Hip Hop Dance de Nova Iorque surgiu em 84,
mas ganhou popularidade a partir de 92, através dos videoclipes
de Michael Jackson, Mariah Carey, Will Smith e TLC, com coreografias assinadas por Buddha Stretch, trazendo a força e energia
dos dançarinos em movimentos sincronizados.
Seguindo uma linha cronológica, observamos que a evolução
musical contribuiu para o surgimento de outros estilos de dança,
pois quando um novo gênero surge, a partir da mescla ou da inserção de recursos, o corpo responde e se manifesta. Não tenho a
finalidade de passar uma metodologia a ser seguida, este é o relato
de uma trajetória que está em constante movimentação, que pode
e deve ser contaminada a cada instante, a fim de que eu possa oferecer um trabalho adequado aos princípios do programa.
Limites são impostos para criar diferenças: diferenças entre um lugar e outro
(por exemplo, a casa e o “fora”), entre uma extensão de tempo e o resto do
tempo (por exemplo, infância e idade adulta), entre uma categoria de criaturas
humanas e o resto da humanidade (por exemplo, as categorias de “nós” e “eles”).
Pela criação de “diferenças que fazem diferença”, diferenças que reclamam a
aplicação de diversos padrões de comportamento, torna-se possível manipular
probabilidades: deste ou daquele lado do limite ou fronteira, determinados
eventos se tornam prováveis, enquanto outros são menos prováveis e inclusive
impossíveis. A massa informe passa a ser “estruturada” – tende a ter uma
estrutura. Assim, podemos saber agora onde estamos, o que esperar e o que fazer.
Fronteiras proporcionam confiança. Elas nos permitem saber como, onde e
quando agir. Capacitam-nos a atuar de modo confiante.
Zygmunt Bauman
misférios opostos, calculando distâncias e vivendo seus traçados
virtuais na prática do fazer artístico, tanto nos encontros quando
nas reuniões de equipe. Na ponta está o objeto a ser cartografado:
o processo, a relação, os contextos, as memórias. No encontro
com a equipe dá-se a forma a esta análise com a teoria, a troca, o
experimento.
Munidos de um glossário mínimo comum proveniente de um
Material Norteador, o artista-orientador usa do seu próprio mapa
pessoal para registrar o momento efêmero da criação emergente
do vocacionado. Ele revisita suas trajetórias, os ângulos vislumbrados, as legendas de identificação antes definidas para reinventar o espaço, reentender suas percepções.
Sim, o artista-orientador reinventa sua própria percepção, porque este tem como meta a construção de um mapa que parte do
olhar do outro. Como dizia Moreno: Olho no olho. Cara a cara.
E quando estiveres perto, eu arrancarei os seus olhos e os colocarei
no lugar dos meus. E tu arrancara os meus olhos e os colocara no
lugar dos teus. Então, eu te olharei com teus olhos e tu me olharas
com os meus.” (MORENO, 1984, p.70).
Essa troca de olhares, feita de forma sensível e delicada, perpassa por uma série de instâncias. Os olhos dos vocacionados são
trocados com os olhos do AO que troca estes com os olhos dos
artistas de sua equipe e com seu coordenador, que por sua vez,
troca de olhos com outros coordenadores nas reuniões de coordenação para que depois estes olhos trocados sejam repassados até
retornarem ao seu primeiro emissor. Sendo assim, com que olhos
vemos aquilo que precisamos cartografar?
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 47
48 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Aqui os limites são traçados pela relação, no ato efêmero do
contato e da troca, na vida daquilo que acontece, no debate de
mestres ignorantes que trocam seus (não)saberes até encontrar a
forma que contém este espaço. O espaço da relação! Que nasce do
choque, do conflito, da horizontalidade, da potência individual e
coletiva. Um espaço desenhado no caos.
Como presumiu Gilles Deleuze: O que define o pensamento, as
três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia,
é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano
sobre o caos. [...] Pedimos somente um pouco de ordem para nos
proteger do caos (DELEUZE & GUATARI, 1992, p.53). Discordo um pouco de Deleuze, quando o assunto é o Programa
Vocacional. Viva o caos e a sua potência criativa de inventar o
novo do cruzamento de olhares, toques, percepções, vontades...
Viva a delicada ordem que naturalmente está contida em todo o
caos. Comecemos nosso mapa caótico!
Murilo Gaulês é Ator, diretor e professor. Formado em Artes Cênicas pela Faculdade Paulista de Artes e pós-graduado em Psicopedagogia e Arteterapia pela (FPA). Artista-orientador do Programa
Vocacional de Teatro. Atualmente é diretor artístico do Coletivo
Anônimo de Atuadores e integra o Núcleo Adega de Teatro.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. 2. ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
DELEUZE, G., & GUATARI, F. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992.
MORENO, Jacob Levi. O Teatro da Espontaneidade São Paulo: Summus, 1984.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989.
Arte e política:
potência criativa
EXPERIÊNCIAS
Com estes mesmos olhos míticos das parcas que ora dão vida,
ora cortam o fio. Este olho trocado que muda de opinião quando
realocado, pois traz consigo a contaminação da experiência. Um
olho que cria e ama num ato e que, quando volta para a obra,
mais reflexivo, destrói o objeto amado para dar lugar ao novo.
Criar e destruir sem medo de se afogar no apego. Porque mesmo
aquilo que foi destruído deixa sua poeira de cinzas que sedimenta
na matéria nova erigida. É como a vida e a morte – a gente não
consegue pensar na vida sem pensar na morte - e assim também
acontece quando se vive o trabalho.
Entendido o caminho do olhar agora se arriscam os primeiros traços sobre a folha branca (que nunca é totalmente branca,
pois traz consigo resquícios provindos daquele que a carregou até
aqui). Começamos a esboçar sobre o tempo, sobre a história, sobre a ação, sobre a relação, sobre o espaço. Os traços representam
limites, mas não limitam a criação. É papel fundamental do artista/cartógrafo reconhecer os limites envolvidos para assim poder
explorá-los, dilatá-los, expandi-los ou simplesmente ignorá-los
por enquanto.
Essa tensão limítrofe é esboçada também em várias instâncias.
O mapa vocacional é constituído de várias camadas sobrepostas
que apontam sinuosidades no processo com margem para a reinvenção destas. Por isso mesmo que se trata de um mapa em movimento, em que suas erupções, alfandegas, construções, condições
climáticas, densidade demográfica e qualquer outro dado registrado pode ser facilmente modificado a fim de entender a potência
efêmera que a arte exige para poder ser.
Por se tratar de uma cartografia coletiva, o processo de revelação
destes limites é também potencializado no vocacionado que, tendo pertencimento deste ofício de olhar para além dos seus olhos,
consegue diagnosticar em seu próprio procedimento características particulares que traçam um norte possível de ser seguido para
algum ponto deste atlas desconhecido.
Dessa forma ele se orienta e passa a ser autônomo no processo de investigação artística e de fruição de suas próprias criações.
Neste momento, as linhas saem do papel e passam a penetrar o espaço que, deformado pelo traço, passa a ter sua própria constituição de tempo, linguagem, organização, regras, gravidade. O mapa
explode para fora da folha e torna-se uma abertura, uma passagem para outra dimensão que, aos poucos, vai se materializando
de forma mais familiar àqueles que a (re)visitam. Trata-se de um
fenômeno mutante e de movimento contínuo. Elabora e reelaborado a todo o momento por vocacionados, artistas orientadores e
coordenadores em uma rede de olhares e práticas que configuram
novas formas, diferenciando completamente o que é o Programa
Vocacional, de outro projeto de Oficinas de Formação.
Escrever é pois “mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer
o rosto próprio junto ao outro.
Michel Focault - A escrita de si
Ensaio - experiência modificadora de si no jogo da verdade
Michel Focault - História da sexualidade II
Lígia Botelho
Equipe Sul 1 Teatro
E
screver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro, pesquisar, propor, instaurar processos criativos. As pesquisas
nos regem!
Quais são as perguntas que revelam possíveis caminhos?
Quais os caminhos para nossas pesquisas? Compreender,
vivenciar o processo de modo que a realidade me mova e conduza
a pesquisa.
Dialogar... Diálogo não significa estar em conformidade. As
contradições, as ambiguidades também provocam, mas diferem
da negação, que exclui.
Início. Coletivos. Continuidade. Pesquisa. Processo. Construção de subjetividades. Criação. Emancipação.
A história do programa se faz na história-trajetória e na potência criativa de cada artista-orientador e de cada artista-vocacionado, envolvidos nos processos artísticos. As políticas públicas
parecem estar também em processo de diálogo com o Programa.
O programa tem história. Tem corpo, alma e já gerou frutos. Mas
a cidade conhece esta trajetória? E o tempo para a construção de
processos artísticos emancipatórios? A política de regionalização
promove de fato o trânsito entre artistas vocacionados? As perguntas de pesquisa, inevitavelmente, se mesclam a estas intrinsicamente ligadas às nossas ações artístico-político-pedagógicas.
Não se trata de indicar questões já conhecidas, tampouco de se
debruçar em lamentações, mas sim revelar arestas, contradições e
instaurar proposições.
A construção de processos artísticos emancipatórios precisa de
tempo. De experiências. De vivências. Larrosa analisa a dificuldade de viver experiências na contemporaneidade e enfatiza a importância da suspensão do tempo para vivenciá-las:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos
toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar
para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar
sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço. (LAROSSA, 2002, p.24)
Acreditar, se entregar artisticamente a esta cidade, carregada de
potência criativa, me preenche, me seduz. Me intriga a possibilidade de revolucionar e de transpor limites, por meio da arte. Vontade, caos criativo, pesquisa e garra se mesclam e me impulsionam
a desenvolver pesquisas, novamente, em solo árido.
Retorno. Retomo. Inicio esta jornada em novo espaço; lindo,
solo rico em histórias, túneis irrigados por suor e sangue de negros escravos. E a árvore que “sangrou” quando foi feito o aterro
para a construção do metrô Jabaquara? Seria uma manifestação
dos nossos antepassados mediante a cobertura de tantos utensílios
arqueológicos esquecidos naquele solo? E conheço um dos túneis,
rota de fuga de escravos que pretendiam chegar até o porto de
Santos e de lá seguir, rumo à África. E conheço a casa antiga,
chamada de Sítio da Ressaca. Me encanto com a história daquele
lugar: grande, lindo e vazio.
O vocacional desenvolveu um rico trabalho de, 2006 a 2009,
no antigo Centro Cultural Jabaquara, hoje chamado de Acervo da
Memória e do Viver Afro-Brasileiro Caio Egydio de Souza AraRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 49
nha. Um grupo nasceu, se consolidou, se emancipou, foi contemplado pelo VAI e ainda conserva a característica de pesquisa,
de investigação teatral, tão difundidas pelo Programa. O coletivo
aceitou meu convite e passou a receber minhas orientações.
Primeira pergunta-provocação: Porque um texto que parece ter
raízes no teatro do absurdo apresenta estética tão realista em certos
momentos? Em que medida a fisicalidade e os “estados corporais”
poderiam provocar novas tensões, novas metáforas na encenação?
Certo dia, chego e presencio jogo de aquecimento pautado no
“platô”, exercício que privilegia o equilíbrio do espaço por meio
dos corpos, fisicalidades, ações físicas e verbais. Ao jogo, o coletivo
alia texto de uma das cenas da peça. Ao término, perguntei se se
tratava de uma nova proposta para a cena. Eles negaram e disseram que era apenas um jogo de aquecimento. Nova provocação
se instala: E porque não aliar o jogo à cena? O jogo parece revelar
uma tensão, vida, relação tão forte entre vocês e tão entrelaçada
ao contexto da cena? Juntos investigamos palavras, que parecem
reger a cena: medo, tensão, disfarce, jogo, entre outras. Aliamos
ao platô, estas palavras que provocaram novas relações com o espaço, com objetos, com os “estados” físicos. As novas fisicalidades
revelaram novas relações, novos jogos entre os atores. Nesta perspectiva, continuamos a pesquisa investigando, a cada encontro,
possibilidades de encenação. Ao subir no palco, o coletivo parece
se aprisionar. Como transportar para o palco o jogo criado no
chão com o mesmo frescor? E segue a investigação cênica.
Instaurar processos que dialoguem com um possível produto,
de modo que este trabalho leve em conta não o aprendizado e a
repetição em direção ao virtuosismo, mas a utilização de estratégias que mobilizem os diversos tipos de relação do participante,
tornando-o sensível e ampliando sua capacidade de jogo. O terreno é movediço e delicioso, porque abala as estruturas das certezas.
Atrai e provoca temor. Como fazer com que os atuantes desejosos
daquilo que lhes parece “novo”, acreditem que podem desenvolver um processo de encenação? E vem mais uma vez a questão do
“novo”. Provocar, estimular a busca incessante pelo “novo”. Mas
seria mesmo possível conquistar o “novo”, no mundo contemporâneo? Providencial o reencontro, por estes dias, com Mirian
Celeste, Docente de Pós-Graduação e palestrante em evento sobre
pedagogia em instituição de ensino das artes. Por que buscamos
sempre o novo? Rejeitamos o velho? O que é velho? O que é o
novo? O novo não significa o inusitado, mas a retomada de algo
que se perdeu, que pode gerar novo olhar. Porque o jogo dá prazer
e ao mesmo tempo abala estruturas? Recorro a Huizinga:
50 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Jogo: atividade livre, conscientemente tomada como “não séria”
e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver
o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de
todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter
qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais
próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a
formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo
por meio de disfarces ou outros meios semelhantes (HUIZINGA,
2004, p. 16).
O jogo instaura, de algum modo, a luta por alguma coisa ou a
representação de alguma coisa. Nesta perspectiva, o produto também pode ser elemento de jogo, na medida em que catalisa as
experiências, as sensações, signos descobertos na intersecção entre
jogo, corpo, texto, sonoridades e demais elementos de composição da cena por meio de processo criativo. Neste sentido, Márcia
Pompeo Nogueira desenvolve:
Uma proposta de superação da polêmica “Processo x produto”
hoje não pode ser nem a Escola Tradicional, que nega o processo,
nem a Escola Nova, que nega o produto. Hoje a parceria com o
teatro deve ser vista como desejável (...). Não se deve procurar a
perfeição formal, mas processos ricos que incluam as apresentações como mais um elemento do jogo. (NOGUEIRA, 1994, p.
76).
E nós artistas-orientadores, em que medida nos colocamos, de
fato, em estado de jogo? Tarefa desafiadora e delicada, mas necessária. Jogar com o artista vocacionado, não apenas literalmente, somente quando temos um ou dois vocacionados presentes.
Improvisar, respirar, perceber quando um procedimento instaura
processo criativo, provoca, desestabiliza. Parece-me necessário se
colocar em estado de jogo principalmente no sentido de permitir
a escuta/ a recepção sem omitir nossa responsabilidade, enquanto
provocadores, assumindo o trânsito constante de referências de
todos os artistas envolvidos: vocacionados e orientadores. Parafraseando Priscila Gontijo, em seu ensaio-publicação: Ser mestre
ignorante não pode ser oposição, e sim complementação enredada pelo paradoxo. E completo; trânsito constante de fluxos, discurso polifônico em direção ao ato criativo.
Procuro transpor os próprios limites. Ora criando processos
criativos advindos do encontro, ora coletivos, ora individuais.
Como o revezamento nas turmas se faz presente, às vezes é quase
um ato de heroísmo conquistar alguém para participar do encontro. Então este alguém se mescla a algum vocacionado que já veio
algumas poucas vezes e construímos o processo do “encontro”.
E continuo esta trajetória movida pela força artístico-político-pedagógica, própria da natureza do ofício do artista-orientador.
Recorro a Ranciere (Editora 34, 2005): Arte e política fazem parte
da vida e se enredam, constantemente, retratando a sociedade e
ampliando a compreensão do mundo.
Fazer teatro, conduzir a criação de processos artísticos emancipatórios é escolha que implica em entrega e, parafraseando minha
parceira de equipe, Monica Rodrigues, em urgência poética militante. Existem muitos artistas dispostos a não fazer arte apenas
para um pequeno círculo de iniciados. Isso soa democrático, mas
em minha opinião, não é totalmente democrático. Democrático é
transformar o pequeno círculo de iniciados em um grande círculo
de iniciados. Pois a arte necessita de conhecimentos. A observação
da arte só poderá levar a um prazer verdadeiro, se houver uma arte
da observação. Assim como é verdade que em todo homem existe
um artista, que o homem é o mais artista dentre todos os animais,
também é certo que essa inclinação pode ser desenvolvida ou perecer. Subjaz à arte um saber que é um saber conquistado através
do trabalho (BRECHT, citado por KOUDELA, p. 110).
Lígia Botelho é graduada em Arquitetura e Mestre em Artes Cênicas pela Unesp. Atriz do Núcleo Urbanos de Teatro, professora
de Artes Cênicas no Senac e artista-orientadora do Programa Vocacional Teatro no Acervo de Memória e do Viver Afro-brasileiro
Caio Egydio de Souza Aranha.
Notas
1
2
Ocupação Zuzu- Itaú Cultural - 2014
Diálogos e práticas 17, Senac Lapa Scipião.
Referências bibliográficas
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Conferencia proferida no I seminário internacional de Educação
de Campinas, Revista Brasileira de Educação, 2002. Departamento
de Expansão Cultural, Projeto Teatro Vocacional, SMC/PMSP, 2008.
Disponível em: http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/
RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf. Acesso em: 25 set.
2008, 11:47:20
BOTELHO, Lígia Rodrigues. O teatro como meio e fim para um
processo de instrumentalização do indivíduo na leitura da realidade.
Dissertação de Mestrado IA UNESP 2008.
GONTIJO, Priscila. Referências Artistas Orientadores x Referências
Artistas Vocacionados. Revista Vocare 2013.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 5 ed. São Paulo. Perspectiva.
2004
MARTINS, Mirian Celeste Ferreira Dias. Palestra Diálogos e Práticas
17. Senac Scipião. 2014
NOGUEIRA, Márcia Pompeo, Teatro na Educação: uma proposta
de superação da dicotomia entre processo e produto, in Alve, Jocélia
Maria (org.) Ensino da Arte em Foco. Florianópolis, SC: Editora da
UFSC, 1994.
RANCIERI, Jacques . A Partilha do Sensível – Estética e Política.
Editora 34, 2005
KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São
Paulo: Perspectiva, 2007.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 51
EXPERIÊNCIAS
Dance
para ser desenhado
Lara Dau Vieira
Equipe Região Sul 2 - Dança
D
entro deste contexto, a realidade social do CEU Paraisópolis, encrustado entre a sociedade alto padrão do Morumbi e a segunda cidade informal de 56.000 habitantes
da metrópole de São Paulo, a favela Paraisópolis, me instigou como artista-orientadora do Programa Vocacional,
muitas perguntas: Quem são seus frequentadores? Como eles se
apresentam? Quem são os interessados em desenvolver atividades
artísticas, esportivas e intelectuais ali? Quem habita este espaço?
E como?
Dentro de um universo desconhecido, a escolha foi mapear os
frequentadores do CEU, através de registros em desenho, unindo as linguagens da Dança e das Artes Plásticas. O interesse em
desenhar corpos em movimento no espaço que o homem habita
e transita.
A Intervenção/Instalação “Dance para ser Desenhado”, propõe
um jogo de estímulos aos transeuntes/vocacionados instantâneos
do CEU Paraisópolis. Eles são convidados a pausar/dançar, para a
artista orientadora-desenhista, que registra o movimento de cada
um, em traços rápidos em folhas de papel de seda. Os desenhos
são apresentados aos dançantes, que podem deixar neles sua assinatura e alguma impressão do encontro.
A ação para os vocacionados instantâneos: “Dance para ser Desenhado”, propõe um diálogo silencioso com corpos de crianças
da piscina, dos adolescentes que dançam pop, dos grupos da capoeira, do boxe, do hip hop, de copeiras, faxineiras, guardas, gestão, técnicos e coordenadoras da Cultura e da Educação. O grupo
de teatro “Topeiras de Boina” é o grupo orientado pela artista.
Os desenhos dos vocacionados trazem diferentes corpos, diferentes texturas que falam a que vieram. São suas escolhas das
poses e da gestualidade que deixam transparecer seu universo individual e coletivo. Como trabalhar com aqueles que transitam
52 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Nos nossos dias, existem numerosos exemplos de culturas exageradamente
rígidas ou exageradamente insensatas. As pequenas sociedades atrasadas,
completamente dominadas por pesadíssimos tabus e costumes antigos,
são exemplo das primeiras. Estas mesmas sociedades tornam-se rapidamente exemplos do segundo tipo, quando “ajudadas” pelas civilizações
avançadas.
O Impacto súbito de novidade social e de hesitação exploratória submerge
as forças estabilizadoras da incitação ancestral e desequilibra a balança
para o lado oposto.
Daí resultam confusão e desintegração social. Feliz seria a sociedade que
adquirisse,
gradativamente, um equilíbrio perfeito entre imitação e a curiosidade,
entre a escravatura da aceitação cega de imitação e experimentação
progressiva e racional.
Desmond Morris.
entre a imitação cega de uma sociedade fragilizada e a força da
curiosidade de novas experimentações? Como dialogar com este
contexto?
A Proposta da Instalação é reunir todos os desenhos, formando
uma única caligrafia, coreografia, em painéis e caixas revestidas
dos desenhos suspensas no BEC e na biblioteca do CEU, revelando diversidade de memórias corporais, rastros de expressões e uma
busca silenciosa da artista orientadora. 59 vocacionados foram
desenhados até 20 de julho de 2014. A intenção é desenhar até
novembro de 2014 e deixar os desenhos já executados expostos
para serem reconhecidos pelos retratados e pelos outros frequentadores do CEU, trazendo a questão do pertencimento dentro
deste espaço público.
Entre a imitação e a curiosidade, entre a fortuna e a pobreza,
construímos algo “entre” que nos faz refletir. O que temos que
escutar de nós mesmos dentro sociedade contaminada por padrões e ilusões? Quais os nossos desejos? Na Biblioteca do CEU
Paraisópolis, os desenhos ficaram expostos por quase dois meses e
as crianças, que ali passaram, colocaram olhos e bocas nos rostos
dos desenhos, talvez seja esse um dos nossos anseios, “ter olhos
para ver e bocas para falar”.
Lara Dau Vieira é formada em Dança na New Dance Development School de Amsterdam e Arquitetura na EESC-USP. Atuou
no Programa Vocacional como coordenadora em 2008 e 2009 e
artista–orientadora em 2011, 2012 e 2014.
Referência Bibliográfica:
MORRIS, Desmond. O Macaco Nu. Editora Edibolso 1975.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 53
MEMÓRIA
MEMÓRIA
VOCACIONAL E MEMÓRIA:TRABALHO EM PROCESSO
Pensar a partir da distância
Luiz Pimentel
A
ação de investigar a memória pode tanto resultar em
conforto lírico de um ser consigo mesmo e com seu
tempo, quanto na convocatória do pensamento para
uma imersão vertiginosa. Sabemos que a primeira possibilidade da memória tornou-se recorrente em celebrações: festas de aniversários, de debutantes, de casamento, bodas,
etc. É o que se vê, por exemplo, em quadros de programas de
auditório em que são relembradas as trajetórias de grandes estrelas e nos quais a ação da pesquisa serve tão somente para colher
depoimentos de queridos conhecidos e familiares que, em alguns
casos, disparam uma comoção generalizada. É o que acontece
também em premiações de determinadas categorias - dentre elas,
a teatral -, em notas fúnebres nos jornais e em discursos emocionados com os quais nos presenteamos. Memória praticada como
homenagem: passagem em revista dos eventos de uma vida que
servem para sublinhar e legitimar seus sentidos, seus sucessos e
relevância. Campo familiar, conhecido e, portanto, quase sempre reiterativo. Entretanto, há um outro gesto que se contenta
em permanecer contemplando o opaco das coisas e funda-se no
prazer de perspectivar um passado sem aura. Esse gesto não se
pretende mais verdadeiro ou legítimo que o anterior, mas recusa
propositadamente o excesso de positividade do mundo e parte
para um questionamento de suas verdades implícitas. Dedicado
a escavar dessemelhanças, a memória assim perspectivada anseia
pelo espanto do estranho. Tem algo a ver com montar nas costas
do hipopótamo do qual nos fala Brás Cubas e, topando permanecer em seus elementos, a água e a lama, movimentar-se por terra
nos vestígios do passado, sem pretender ou esperar qualquer re-
Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou
confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou
vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse
que a viagem me parecia sem destino.
- Engana-se – replicou o animal – nós vamos à origem dos séculos.
(...) Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora
não se me dá a confessar que sentia umas tais cócegas ou quais cócegas
de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão
misteriosa quanto a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa
mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de
cérebro enfermo.
Memórias póstumas de Brás Cubas
denção final. A história entendida como um quebra-cabeça cruel
(MOUAWAAD, p. 118) e a memória praticada como trabalho
anônimo de escriba, arqueólogo, investigador à sombra.
Partindo desses pressupostos, perguntamos a nós mesmos: qual
o sentido, hoje, de propor um trabalho sobre a memória do Programa Vocacional? Ora, para respondermos essa questão, tal ação
deveria se relacionar à importância de entendermos o Programa
na sua configuração sociopolítica atual a partir das aproximações,
distanciamentos e transformações em relação à sua implantação
na cidade desde 2001. Assim, o Vocacional Memória1 consiste
em uma ação que quer se experimentar dentro dessa investigação,
aqui presente em seus primeiros esboços.
Duas ações tornam-se comuns nessa proposta: poder dialogar
mais de perto com a cidade sobre os conceitos e delineamentos
do Programa e analisá-lo criticamente, por via de suas transformações. O interesse ou necessidade nossa em empreender este
trabalho de memória do Vocacional lida com a dificuldade que
ainda temos de falar sobre ele, narrá-lo historicamente - como,
por exemplo, para os novos artistas orientadores contratados nesse
ano que nunca haviam participado de edições anteriores do Programa -, assim como com nosso desejo de torná-lo mais próximo
das pessoas que ainda não tem conhecimento sobre sua atuação
na cidade. Existe também a vontade de manter em vista as constantes reivindicações e crises pelas quais o Programa passou ao
longo de sua existência, como as que tomaram força no ano de
2013, por meio da organização de assembleias de artistas orientadores que buscavam entender qual a proposta cultural da nova
gestão da Secretaria Municipal de Cultura.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 55
Assim, a memória nada teria a ver com uma perspectiva nostálgica que se dedicaria a mirar os “velhos bons tempos” para desmerecer as atuais circunstâncias, algo como agir de forma a “resgatar”
os conceitos originais ou se debruçar em direção a algum fundamento inicial e, portanto, mais verdadeiro que o atual. Tampouco
teria a ver com celebrar o presente, festejando um Programa que
se encontra morto - nota fúnebre - ou em pleno vigor e coerência.
Muito pelo contrário, aqui a memória teria de ser pensada como
uma mirada seca para trás, para nossas costas, para um momento
em que éramos distintos e, talvez, por meio dessa retrospectiva,
indagarmos: “como pudemos nos tornar o que vimos sendo ao
longo dos últimos anos?”.
A recusa pela história pensada como resgate da essência perdida,
fundada no eterno do mundo, interessa-nos de forma parecida
àquela que interessou o professor francês Michel Foucault:
O que faz com que eu não seja filósofo, no sentido
clássico do termo – talvez eu não seja filósofo de jeito
nenhum –, é o fato de eu não me interessar pelo
eterno, não me interesso pelo que não se mexe, pelo
que permanece estável sob o furta-cor das aparências;
interesso-me pelo acontecimento. (...) Com efeito,
trata-se, de certo modo, de retomar pelo viés da
filosofia aquilo de que o teatro se ocupa, pois o teatro
sempre se ocupa de um acontecimento. (...) Procuro,
então, apreender qual é o acontecimento sob cujo
signo nascemos e qual o que continua a nos atravessar. (FOUCAULT, 2011, p. 225)
Na esteira do professor Foucault, cabe distinguir essa seção dedicada à memória de um trabalho estritamente historiográfico.
Não somos historiadores e não nos pensamos assim. O que guia
nosso movimento provém de um impulso afetivo de nossa ação
como artistas dentro do Vocacional. É a partir de nossas perguntas artísticas, de seu diálogo com a cidade e nosso contexto atual
que falamos. Logo, a analogia proposta por Foucault entre teatro
e pensamento filosófico, também nos é pertinente: teatro pensado como a prática que se ocupa justamente do acontecimento e
a memória como inflexão dedicada a flagrar, no passado, nossas
mutações, dessemelhanças e debates silenciados. O gesto filosófico análogo ao teatro, que fascinava Michel Foucault, seria poder
descrever a maneira como os homens do Ocidente viram as coisas
sem nunca perguntarem se eram verdadeiras ou não e como fo56 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
ram construindo, aos poucos e por jogos do olhar, o espetáculo
do mundo (FOUCAULT, 2011, p. 223). Parafraseamos Foucault,
a partir de sua metáfora da cena da filosofia, e insistimos: gostaríamos de tentar descrever a maneira como se encenou e como
seguimos encenando o Programa Vocacional, ou seja, como o
percebemos, qual valor atribuímos a ele e como o Programa desempenhou seu papel (FOUCAULT, 2011, p. 223). E, a partir
dessa ligeira tomada de distância do nosso presente, esperamos
poder tomar fôlego e seguir atuando com algum vigor em nossas
práticas cotidianas.
Nossa participação na Revista Vocare, a princípio, seria organizada no formato de um dossiê. Porém, como ficam evidenciados
pelos pressupostos que guiam o conceito de memória aqui proposto, a ideia do dossiê, com sua forma fechada e alguma coerência
interna, não nos pareceu a mais apropriada. Propomos, então, o
nome de seção para expor partes da pesquisa feita até o momento.
Os significados de seção como parte, trecho, divisão, interessam-nos mais, pois entram em diálogo com o caráter processual da
investigação, que jamais se propõe aqui como encerrado. O que
nos instiga é pensar que tal espaço possa permanecer aberto para
as futuras edições da publicação e que possa seguir prenhe de debates que façam sentido para o pensamento e movimento por vir
do Programa.
A seção começa com a transcrição de um encontro público
realizado no Tendal da Lapa com o ex-secretário municipal de
cultura, Celso Frateschi. Responsável pela implantação do projeto Teatro Vocacional em 2001, Frateschi retoma os princípios
de sua construção e sublinha algumas de suas singularidades. Seguindo o papo com Celso, segue uma entrevista com a primeira
coordenadora do projeto, Maria Tendlau. Em sua análise crítica
e questionadora, Tendlau sai da situação do projeto para pensar
as possibilidades de relação entre arte e política e questiona sobre
a presença ou ausência de sentidos para um trabalho como o do
Vocacional. Encerrando a seção, transcrevemos uma conversa realizada com sete grupos que estão ou já passaram pelo Vocacional,
justamente em um ano em que a relação orientação de grupos
está sendo questionada. Para além de alguns traços comuns como
problemas de espaço e relação complicada com seus respectivos
equipamentos, o encontro pôde também servir como troca de experiências artísticas e de modos distintos de organização.
É notável que tenhamos nos detido na investigação dos momentos iniciais de formulação do Programa (arco 2001-2004).
Tal fato se deve à impossibilidade de dedicarmos mais tempo para
este trabalho no curto tempo em que nos envolvemos com a proposta. Reiteramos que é nosso desejo disparar uma ação e não encerrá-la, e que são bem vindas futuras contribuições, depoimentos
e pontos de vista distintos dos que aqui formulados. O trabalho
seguirá sendo ampliado numa plataforma virtual e seguirá sendo
desenvolvido após essa publicação (ver http://vocacionalmemoria.wordpress.com).
É importante agradecermos aos parceiros que foram fundamentais na arquitetura do material presente nesta seção. Agradecemos
à equipe de coordenadores do Tendal da Lapa, Carla e Marco; a
Maria Tendlau e Celso Frateschi, pela gentileza de se disporem publicamente; Paulo Fabiano; Suzana Schmidt; Cíntia Campolina;
Ipojucan Pereira; Valeria Lauand; Veronica Mello; aos coletivos e
grupos Família Justa Causa, Improvis´Art, Pandora, Humbalada,
Bastarda, Jovens Amadores e Palco para toda obra; e a todos os
artistas orientadores e vocacionados do Programa Vocacional.
E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que
vinham chegando e passando, já então tranquilo e
resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia
e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo
de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; cada
um deles rebentavam as verduras de uma primavera,
e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. (...)
Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o
século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha
ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso,
audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os
primeiros, e assim passou e assim passaram os outros,
com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de
atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago
seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a
trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros
perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo,
— menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que,
aliás, começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até
ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um
gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
(Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 27)
Referências bibliográficas
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.
São Paulo: Abril Cultural, 1978.
FOUCAULT, Michel. O saber como crime; A cena da filosofia In:
______. Arte, epistemologia, filosofia e história da medicina. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 62-69; p. 222-247. (Ditos &
Escritos VII)
MOUAWAD, Wajdi. Incêndios. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.
Notas
O Vocacional Memória é um trabalho inicialmente desenvolvido por um
núcleo de artistas orientadores do Programa Vocacional que se reuniu no
começo da edição de 2014. O núcleo é composto pelos AOs Andrea Tedesco,
Livia Piccolo, Luiz Pimentel, Marcio Castro, Maria Emília Faganello, Marina
Corazza, Priscila Carbone e Priscila Gontijo.
1
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 57
MEMÓRIA
Encontro público com
Celso Frateschi
P
AULO FABIANO: Antes de começar a conversa com o
Celso, eu gostaria de falar que este encontro e esta mobilização fazem parte de uma retomada das discussões políticas, propostas pelos artistas dentro do Programa Vocacional. Uma discussão política porque tem a ver com
a luta pela existência e permanência desse Programa na cidade de
São Paulo. E que essa permanência possa manter suas propostas
conceituais. Essa luta, que dura mais de dois anos e que tenta reestruturar e garantir o orçamento e ir contra a precarização dos Programas na cidade. É uma resistência que não deseja apenas obter
soluções pontuais para um projeto específico. Ela tem a ver com
um envolvimento histórico dos artistas do nosso país, talvez do
mundo, pela criação de políticas públicas para as artes. E políticas
que levem em consideração e que incorporem em sua estrutura o
risco. Que assumam, portanto, esses movimentos tão importantes
para o fazer artístico que são o risco e a crítica. E é nosso desejo
que as distâncias que separam a instituição política e os conceitos
de projetos como o Vocacional, que contém elementos de crítica e
de risco, sejam cada vez mais diminuídas. No momento, estamos
batalhando nas instituições pela continuidade do Programa, para
que ele seja mais adequado às realidades que nós encontramos nos
bairros com os artistas vocacionados. Mas acho muito importante
que entendamos que essa batalha faz parte desse corpo histórico
muito maior, que é o de construção de políticas públicas. Tendo
isso em vista, vou apresentar o Celso, pra que a gente comece o
nosso papo. Celso Frateschi é ator, diretor, dramaturgo e coordenador do Teatro Ágora. Em 2001, pelo Partido dos Trabalhadores (Prefeitura Marta Suplicy 2001-2004), assumiu a direção
do extinto Departamento de Teatro e veio a se tornar Secretário
Municipal de Cultura (SMC). Na SMC, implantou o projeto Teatro Vocacional (hoje Programa Vocacional) e o projeto Formação
de público. Acho que é a partir da necessidade de criação desses
Programas que podemos começar nossa conversa.
58 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
CELSO FRATESCHI: Obrigado pelo convite para estar aqui. É
um prazer enorme estar especificamente no Tendal da Lapa. Esse
espaço, na verdade, só existe por conta de um grupo vocacional.
Antigamente, em 1988, o Tendal era um lugar completamente
abandonado. Nesse último galpão, havia carros de um clube que
colecionava automóveis antigos. Era simplesmente uma garagem.
O resto era abandonado e ermo. Para vocês terem uma ideia, na
semana em que a gente invadiu, foram encontrados dois cadáveres
aqui neste terreno. Também era um lugar onde a prefeitura guardava materiais apreendidos de camelôs. E foi nessa parte que conseguimos autorização para começar a desenvolver um trabalho de
teatro. O material apreendido ficava de um lado, a gente do outro.
E foi juntando gente para participar. Lembro que na primeira
chamada do grupo, nós éramos em 15, 20. Quatro meses depois,
a gente já estava trabalhando com 200 pessoas, num happening
maravilhoso que fazíamos todo sábado e domingo aqui. Foi essa
força que garantiu a energia pra gente invadir o espaço todo. Eu
me lembro muito bem do dia em que a gente invadiu e quebrou
com marreta o muro e as paredes que separavam a rua Constança
do Tendal. E acho que foi uma invasão que deu certo. Na época
a gente chamava de ocupação, porque era mais bonito chamar
assim. Mas foi uma invasão mesmo (risos). Era um espaço que
estava privatizado de uma forma que a gente considera irregular.
E foi um exercício de invasão nosso, de 200 artistas vocacionados
que invadimos à marretada. E fomos tomando conta do espaço.
Nem tínhamos ideia de como fazer isso e do que era esse espaço.
Foi uma festa muito grande essa invasão e que gerou um primeiro espetáculo vocacional. Era um espetáculo de rua com mais de
200 atores e 1500 pessoas assistindo por dia. Isso foi muito prazeroso. E voltar aqui é muito legal. Só depois que o Tendal foi
incorporado a uma Casa de Cultura da cidade. É bom lembrar
que isso tudo só foi possível porque, na época, fazíamos parte
do Núcleo de Cultura aqui da Lapa e a nossa prefeita era a Luiza
Erundina, que tinha muita sensibilidade em relação à ação cultural. E a Secretária de Cultura era a professora Marilena Chauí. As
discussões eram todas muito fortes. Voltar aqui me lembra uma
experiência de vida vibrante. Muito obrigado por terem marcado
esse encontro aqui. Contei essa história porque éramos um grupo
de amadores, um grupo vocacional. E essa história foi uma das
inspiradoras para que criássemos o projeto na prefeitura da Marta.
Em 2002, eu me tornei Secretário de Cultura e isso foi importante para a ampliação e solidificação do projeto Vocacional. Na
época, eu fazia parte de um projeto de governo, e um projeto
para a área de cultura da cidade de São Paulo. Isso significa que
não havia ações isoladas e nada do que foi feito era fruto de um
interesse meu, particular, pelo teatro. Não era um interesse isolado, era um projeto de governo, que pressupunha uma concepção de cidade, de um jeito de encarar a cidade em que vivíamos
e construíamos. Geralmente, quando a gente vota na eleição, a
gente não percebe esses projetos que estão por trás da propaganda televisiva, que é muito superficial. As propagandas tendem a
pegar o nosso coração e fazer com que a gente se identifique com
um ou outro candidato. Mais pelo viés emocional, do que pelo
projeto de cidade apresentado. O nosso projeto para a cidade era
de privilégio do cidadão e das relações de cidadania. Privilegiando
o indivíduo, sua potencialidade e dando brechas para que ela se
realizasse da maneira mais plena possível. A gente acreditava que
a cidade, apesar de ser o caos que é hoje, era a maior invenção da
humanidade. Se fosse tão ruim, já haveria aparecido outra forma
de organização. Mas segue sendo a cidade, aquela que a gente busca para viver, pois é uma forma sofisticada de relações políticas,
sociais, humanas. Acho que os projetos políticos deveriam estar
interessados em aperfeiçoar a vida nessas formas. Portanto, o que
a nossa visão de mundo defendia, era tomar o cidadão em primeiro plano. Isso não tinha nada a ver com querer desenvolvê-lo para
ser útil para a engrenagem. Não, ele estava em primeiro plano
para fazer com que a engrenagem funcionasse para deixá-lo feliz.
Para que ele exercesse plenamente sua humanidade, cidadania e
civilidade. Portanto, o projeto Teatro Vocacional nasceu muito
próximo dessa ideia, de ver o cidadão dessa maneira, assim como
muitas outras ações do governo Marta. Na área da Cultura havia
um tripé para isso: formar um cidadão, apresentando conteúdos
culturais criados pela humanidade ao longo da história, portanto, uma função de socialização das formas artísticas; um segundo
ponto tratava de favorecer os meios de produção artística, permitir que o cidadão praticasse a arte não somente como consumidor,
mas como produtor; e terceiro, dar a possibilidade da produção
artística oculta da cidade, aquela que não tinha interesse de mercado, poder se manifestar. Esse tripé gerou uma série de ações.
Talvez a grande realização do governo da Marta tenha sido a construção dos CEUs, onde a Cultura tinha uma participação efetiva.
Os CEUs entendiam a educação da forma com que ela deveria
sempre ter sido entendida. Hoje a gente escuta o tempo todo - e
o pior é que o cidadão, às vezes, aceita - que a educação serve para
possibilitar que se consiga um emprego em determinada área. Ou
seja, a educação serve para formar mão de obra e quanto mais mão
de obra houver, mais barata ela se torna e sempre estará a serviço
de outro que não o próprio cidadão. Nós entendemos a educação
de uma maneira totalmente diferente. Ela teria de servir, de alguma forma, à emancipação desse ser humano e não ao aproveitamento de sua força de trabalho para uma forma mais restrita. Para
nós, o processo de construção do conhecimento não se limitava à
sala de aula. A sala de aula deveria organizar, talvez, esse processo.
Mas sabíamos que grande parte dele acontece sempre na rua. Os
saberes existem e são construídos pelo cidadão no seu dia a dia,
em casa, no trabalho. E eles são tão importantes quanto a leitura
e a escritura. E isso precisava ser estimulado.
Digo tudo isso para lembrar que o projeto Teatro Vocacional
faz parte de um conjunto de políticas para o teatro paulistano,
que era formado por muitas outras ações. O Paulo Fabiano citou
o Formação de público. Além desse, havia a ocupação dos espaços
públicos. Não só a ocupação dos espaços teatrais, também muitas
bibliotecas foram ocupadas por grupos de teatro. Espaços históricos e tombados também foram ocupados: o Teatro da Vertigem
ficou mais de um ano na Casa Número 1, o Grupo XIX ficou
dois anos no sítio Morrinhos. Isso fazia com que esses grupos
conseguissem desenvolver suas propostas estéticas, como nunca
tinham podido desenvolver antes. Os próprios teatros distritais
eram ocupados por grupos. No Cacilda Becker se formalizou a
Cia do Latão, por exemplo. Não havia somente a ocupação desses
teatros, mas a proposição de uma direção artística para eles por
parte dos grupos. Antes da prefeitura da Marta, a SMC funcionava como uma espécie de imobiliária: alugava o teatro por dois
meses sem nenhum tipo de critério. Com a proposta de ocupação,
a gente cedia o espaço por dois meses ao ano, com possibilidade
de renovação, mais uma verba para que o grupo pudesse se manter
e gerir o espaço.
Então, chegamos ao Vocacional. O que fundamentou a formação do Vocacional era certa complexidade, como podem ver. Vou
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 59
tentar ser simples na explicação, porque envolve um pouco a ideia
de um pensamento para a produção teatral nacional. Sabemos
que as leis que regem a produção cultural, especialmente a teatral, são leis que privilegiam o mercado. Só na época da Marta foi
aprovada, por exemplo, a Lei de Fomento ao Teatro.
O Teatro Vocacional não entendia o teatro como uma atividade
comercial. E a gente entendia, na Prefeitura, que, uma vez que a
atividade comercial existia, era importante que ela acontecesse e
se desenvolvesse. Mas que não era essa a função principal do Estado. O foco deveria ser o desenvolvimento do cidadão. Quando
a gente pensou o Vocacional, ele estava dentro desse contexto,
invertendo um pouco a moeda do jogo que acontecia. A relação
entre o cidadão e o teatro pensada e tornada, como dizia o Brecht,
tão necessária quanto respirar e comer. Será que o teatro deveria se
fundar somente pela relação custo-benefício? Dos ingressos vendidos ou cadeiras ocupadas? Ou o teatro seria uma necessidade
humana de manifestação e autoconstrução de conhecimento de
si e do próprio humano? Se a gente pensa o teatro ao longo da
história, podemos perceber que todo o tempo ele foi construído a
partir dessa necessidade vital da gente de se entender. Da Grécia
até agora, nossos grandes autores se preocuparam em entender as
relações humanas, as relações sociais e suas transformações ao longo das épocas. E o teatro funciona de uma maneira brilhante pra
isso. Daí que, no meu modo de entender, o teatro é uma atividade
vital para o ser humano.
Eu acredito que o Vocacional tem a colaborar e muito com essa
necessidade de renovação que permanece no teatro. Acho que até
a fraqueza do nosso teatro comercial é resultante da fragilidade do
teatro amador. Essa desgraça do pensamento neoliberal, implantado pelo golpe e radicalizado pelo Fernando Henrique Cardoso
e o PSDB, pensa na cultura como atividade econômica. O que
a gente colocava como contraponto era inverter completamente
essa equação. O que interessava não era atender o consumidor,
mas o cidadão. Isso norteou a base do projeto.
O Vocacional surge dentro dessa política. Uma equipe foi formada a partir da parceria com a Maria Tendlau, que foi quem
me ajudou a organizar todo o setor do Teatro Vocacional na prefeitura. A ideia que a gente tinha não era formar núcleos teatrais
60 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
pela cidade que montassem as peças já consagradas. Nem formar
grupos de teatro amadores pura e simplesmente. Também não era
a obrigatoriedade de realizar uma produção para mostrar depois.
Tínhamos a necessidade de que, a partir do teatro, fosse desenvolvido um processo de conhecimento criativo com a população de
São Paulo. Não tínhamos a preocupação de repetir o que, à época,
o decadente teatro amador fazia, que era reproduzir as características de grupos profissionais.
Na fundação do Teatro Vocacional, a gente partia justamente
das diferenças que existiam entre o teatro profissional e o não profissional. Nos ajudou muito o estudo teórico do alemão Manfred
Wekerth, que trabalhava com Brecht e escreveu o livro interessantíssimo Diálogos sobre a encenação. Para o Teatro Vocacional, sentíamos a necessidade de nos debruçarmos sobre os pontos
positivos tanto do teatro amador quanto do profissional. A gente percebe que várias coisas consideradas negativas para o teatro
profissional podem ser consideradas positivas para o amador, ou
vocacional. A longevidade do trabalho do teatro amador, por
exemplo, pode levar à necessidade não de se apresentar, mas de
aprofundar o trabalho sobre um tema. O corpo do ator também
é uma questão fundamental. Se a gente vê a televisão hoje em dia,
você não consegue ver nenhum daqueles corpos na rua. A favela
do Rio de Janeiro apresentada na novela das oito não tem nada a
ver com a favela do Rio de Janeiro. Uma pessoa quando entra no
metrô na novela das sete não tem nada a ver com a situação do
metrô que vivemos. Tudo passa por um padrão de beleza que é
impositivo. Para a televisão interessa vender produto. A gente vai
comprar determinada roupinha para tentar parecer igual. O que
era interessante para a gente que coordenava o Teatro Vocacional,
então? Tínhamos que aproveitar a beleza de cada um. Porque, se a
pessoa não se adequa ao padrão de beleza da televisão, ela tem um
padrão que pode ser muito mais vivo e mais real do que aquele
outro. O jeito de andar dela é singular, não é aquele jeito que faz
escola de balé desde os sete anos. Não tem determinado quadril
moldado e normatizado. Talvez esse ser fora da norma seja muito
mais bonito teatralmente do que aquela coisa forjada dos modelos
padrão. Até porque nós nunca seremos daquele jeito. Então, interessava pra gente pegar as características das pessoas que faziam o
Vocacional e tentar construir o belo a partir delas.
PAULO FABIANO: Eu gostaria que você refletisse sobre duas
questões, Celso. Uma delas é sobre o pensamento do teatro como
uma prática na vida, uma prática mais comum e menos reservada
para poucos. Nessa direção, eu insisto em relacionar o Vocacional com o projeto Formação de público, porque me parece que
ampliava a possibilidade disso acontecer com mais eficiência. O
Formação de público possibilitava que houvesse uma circulação
de produção o ano inteiro. Ampliava a possibilidade de se ter uma
relação com a arte na vida cotidianamente. A outra questão que
acho importante tem a ver com essas lutas cotidianas colocadas
pela presença dos artistas orientadores em espaços públicos, como
reguladores entre a comunidade e a instituição. Aqui entramos
numa contradição, talvez histórica, da necessidade constante do
artista ter uma relação com instituições públicas para que seus
projetos e ele mesmo possam permanecer. Queria saber o que
você pensa disso.
Por que a gente acreditava no Vocacional? Porque ele é uma
revolução justamente nesse ponto. Ele buscava desenvolver o espírito crítico do cidadão a partir de seu processo criativo. Instaurava
a possibilidade de lidar com uma informação que se recebia de
uma maneira criativa. Fosse ela qual fosse. E tentava-se ampliar o
universo de informação que se tinha no horizonte.
Sobre sua segunda questão, tenho que dizer que sempre foi muito difícil o diálogo dos artistas com os equipamentos. A Maria
Tendlau pode falar mais sobre isso. São demandas e ritmos de trabalho diferentes. Existe uma questão da cultura política brasileira
que são os micropoderes. E isso sempre foi terrível.
(continua...)
Confira a entrevista na íntegra no site:
http://vocacionalmemoria.wordpress.com
CELSO FRATESCHI: O projeto Formação de público fazia
parte dessa política que pensava o teatro para o município. Na
gestão seguinte, do Serra, isso se rompeu. Os CEUs deixaram de
fazer parte da Cultura, romperam com o Formação de público e
com as ocupações dos teatros e tentaram terminar com o Vocacional e com o Fomento. Nós tínhamos terminado o mandato tendo
feito com que, pelo menos, dois milhões de pessoas assistissem o
mínimo de quatro espetáculos por ano. Isso acabou. A nova política preferiu fazer uma apresentação da Nicete Bruno e do Paulo
Goulart no ano inteiro e divulgar isso pra caramba. São dois atores fantásticos, mas isso não pode destituir a outra coisa. Eu estava
lendo aqui a primeira revista produzida pelo projeto Vocacional e
estava lá o Peter Brook, o Yoshi Oida e o Sotigui Kouyaté na periferia de São Paulo, discutindo com vocacionados e orientadores.
Trabalhando junto. Era um projeto que se pensava de uma forma
sólida e não simplesmente propagandista. Além disso, o Formação de público convidada o cidadão a participar do Vocacional.
E ainda era a ação que mais lidava com professores, nossa eterna
dificuldade. Na época, os professores tinham quase vergonha de
participar do projeto, pelo medo de que o aluno pudesse ler a obra
melhor do que eles. A gente queria abrir um pouco a cabeça do
professor, porque ele é o grande formador de opinião que a gente
tem. Se ele tem sua formação artística pequena é um problema.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 61
MEMÓRIA
Entrevista com
Maria Tendlau
N
uma terça feira de julho, fizemos uma ponte virtual entre São Paulo e Piracicaba para conversarmos com Maria
Tendlau. Atriz, encenadora e educadora, Maria fez parte
da implantação do Programa Vocacional (à época, projeto Teatro Vocacional) na cidade de São Paulo e atuou
como sua coordenadora entre 2001 e 2004. Atualmente morando
na cidade de Piracicaba, atuando como orientadora de arte dramática pelo TUSP, Maria topou papear conosco sobre o Vocacional, sua atuação no projeto e as possibilidades de seu sentido
no presente. Inquietos que somos, entrevistada e entrevistadores,
fomos derivando para outros assuntos e acabamos também falando sobre o cenário político nacional e a cultura, de forma geral,
em São Paulo.
Como você definiria o que é o Programa Vocacional?
O plano original era o seguinte: criar uma ação, na cidade, de
incentivo, qualificação e fortalecimento do teatro amador. Essa
era a missão do projeto. Isso se ajustava a uma política daquela
época que propunha que o teatro tomasse a cidade e pudesse trabalhar com uma ideia de “cidadania cultural”, para usar o termo
da Marilena Chauí, embora o Celso Frateschi nunca tenha usado
esse termo. Trabalhar com a possibilidade da cultura, no caso específico da arte, de forma a potencializar o pensamento crítico e
uma apropriação de território na cidade. Isso era o plano.
O que não era o plano?
Não era o plano dar aula de teatro. Esses são os dois extremos,
do que era e do que não. Resposta curta (risos).
O projeto Teatro Vocacional (tornado Programa Vocacional
nos anos subsequentes) apareceu em 2001, junto ao Formação de público e a ocupação dos teatros distritais. Essas
três ações eram pensadas como complementares e tinham a
ver com um pensamento específico da Secretaria de Cultura
na gestão de 2001, que visava o fazer teatral, sua difusão e
62 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
apreciação crítica. O que parece impossível ser feito só pelo
Vocacional? Por que só o Vocacional sobrevive até hoje?
Eu fico pensando nisso. A forma de ação do Vocacional, como
era com o teatro e foi se tornando com as outras linguagens, é
muito facilmente cooptada, muito adepta à mercadoria. Toda
forma pode ser cooptada pela forma mercadoria, mas essa, talvez, seja muito mais fácil. Eu explico. Como foi conformado o
projeto, num processo muito coletivo de investigação - em que
cada orientador tentava transpor sua experiência de criação, conforme ocorria nos seus respectivos grupos teatrais profissionais e
compartilhava suas descobertas, conquistas e malogros, com uma
equipe de orientadores bastante interessada na descoberta de procedimentos que garantissem um aprendizado a partir da experiência da criação – era muito difícil estabelecer a priori um rol
de práticas comuns. O que regia esta investigação era a avaliação
sistemática de seus resultados e a disposição para a correção dos
desvios, mirando um princípio único: o teatro pode ser compreendido, como conformação, tradução estética, de um olhar crítico para a realidade, através da prática da criação. O que facilita,
a meu ver, a tradução mercadológica deste enunciado são duas
características de seu modo de ação: primeiro o fato de o Teatro
Vocacional atender um público que é alvo para ações de inclusão
social e de controle de “risco social”; e segundo, por utilizar a
forma pedagógica, ou seja, estabelecer processos de aprendizado,
numa relação orientador-orientado, indivíduo-grupo. Cria-se assim um projeto que pode ser simplesmente traduzido numa relação de atendimento (e não de coinvestigação, de cocriação) a
uma população especialmente relevante para as diversas ações de
controle social.
Tanto que o Vocacional foi o único projeto defendido para
permanecer na virada da gestão, em detrimento dos outros. Essa
própria dificuldade de explicar o que é o Programa e seus conceitos, já mostra que ele não é uma forma protegida, “blindada”, em
relação às possibilidades de leituras equivocadas e até contrárias
aos seus princípios de ação. A inexistência de um pensamento
para cidade que proteja essa forma faz com que ela seja muito
facilmente deturpada. Existem dois fatores que eram fortes, na
época: o primeiro, por ação da política cultural implantada e o
segundo, pela própria conformação do cenário cultural relativo
ao teatro, que fazia com que a primeira proposta de tripé de ações
do Departamento de Teatro funcionasse e que hoje não funcionaria sem as outras. Primeiro porque, na época, existia esse pensamento de complementaridade, ou seja, não havia ações apenas
no Departamento de Teatro. Acho que o Celso Frateschi, talvez,
foi quem melhor tenha traduzido na ação e na linguagem dele,
que é o teatro, o pensamento da gestão, tanto que virou Secretário
de Cultura. Segundo, havia a força do teatro de grupo, que pode
ser questionada hoje justamente na sua forma mais inicial. Foi à
época do fortalecimento da Cooperativa Paulista de Teatro, da
criação da Lei Municipal de Fomento ao Teatro e tudo isso foi um
movimento que legitimava e dialogava com a ação da prefeitura.
Existia uma ideia de teatro de grupo tomando a cidade e isso fortalecia a ideia que o Vocacional propunha.
Da parte das bibliotecas, havia uma compreensão bastante careta
e engessada de ação cultural e no caso das Casas de Cultura, uma
politização intensa interna. É sempre muito difícil você ter uma
equipe toda com um entendimento único. Quando se criaram as
subprefeituras e os CEUs, que considero um grande avanço da
gestão, a coisa se complicou muito mais. Com o surgimento das
subprefeituras, os equipamentos da prefeitura foram divididos,
mas eram coordenados pela SMC. Com isso, os funcionários ficavam meio esquizofrênicos por terem dois chefes. Houve também
o aparecimento dos CEUs, que era um projeto imenso e, mesmo
com todos os possíveis equívocos de uma ação muito inovadora,
fez a coisa impressionante de juntar três secretarias (esporte, cultura e educação) e, em um ano, erguer um monte de equipamentos descentralizados. Então, a gente vivia um exercício de política,
no bom sentido. De uma busca de entendimento, de movimento.
Seja com a comunidade, com seus representantes, com os espaços
públicos... Isso já criava, em si, várias dificuldades, mas que estavam dentro do parâmetro normal.
(continua...)
Confira a entrevista na íntegra no site:
http://vocacionalmemoria.wordpress.com
Quais transformações da missão inicial do Programa você
percebia durante a gestão do Celso Frateschi ou no momento da transição de gestão?
Houve um problema evidente no ano de virada da gestão, com
o questionamento da legalidade da Lei de Fomento e com o fim
do Programa de Formação de Público, que culminou, inclusive,
na saída de grande parte da equipe que havia criado o Vocacional.
Mas antes, já havia dificuldades. Existe, na verdade, uma grande
dificuldade em qualquer institucionalização. A nossa tinha a ver
em como a Secretaria de Cultura havia sido organizada durante
um tempo, como era pensada a cada gestão e como os poderes se
organizavam dentro dela. Então, por exemplo, existia o Departamento de Casas de Cultura que era ligado ao gabinete. No momento em que se cria o Departamento de Teatro, ele se organiza
para atuar dentro das bibliotecas (que eram coordenadas por dois
departamentos diferentes) e Casas de Cultura. Tudo isso já era
uma grande complicação, justamente porque entrava no quintal
dos outros, com todos os entendimentos equivocados possíveis.
Notas
Mudança de gestão da prefeitura de São Paulo em 2005, com a eleição de José
Serra pelo PSDB.
2
Ex-secretário de Cultura, responsável pela implantação do projeto Teatro
Vocacional e também presente nesta seção de memória.
1
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 63
MEMÓRIA
Conversa entre grupos
Banda Bellize
registro da memória
Luís Reys
N
uma terça à noite, o interfone de um apartamento alugado na Santa Cecília não parava de tocar. Era gente e mais
gente chegando, trazendo bebidas, pães, bolos, salgados
e sua presença para o encontro de grupos de artistas vocacionados e ex-vocacionados. A sala pareceu pequena de
repente e, com muito entusiasmo, começamos a conversa com
os que ali estavam. Ouvimos representantes dos grupos ou coletivos Família Justa Causa (música), Improvis´Art (dança), Pandora, Humbalada, Bastarda, Jovens Amadores e Palco para toda
obra (teatro) que com muita gentileza compareceram ao chamado
dos AOs. A transcrição da conversa pode ser lida a seguir e cabe
pensar o quanto encontros de trocas entre artistas vocacionados
e orientadores de regiões distintas podem evocar a ampliação de
nossas questões comuns e divergentes.
JHOW, Família Justa Causa: Eu sempre cantei rap. Mas era dentro de outra linguagem, que tinha mais a ver com protesto. Na
época, eu pensava que gostaria de fazer uma música diferenciada
e que todo mundo pudesse curtir. Em 2008, foi quando ficamos sabendo do Vocacional e tivemos nosso primeiro artista-orientador, no CEU Lajeado, em Guaianazes. Ficamos com ele
um ano, aprendemos algumas coisas e em 2009 tivemos outra
artista-orientadora e começamos a desenvolver mais nosso canto, nosso comportamento e nossa fala. O rap tem muita gíria e,
dependendo do lugar, não faz muito sentido falar tanta. Na televisão, por exemplo, você não fala a gíria “malandragem” e tudo
mais. Não é legal. Isso foi bacana, pois a gente começou a fazer
várias coisas diferentes em termos de música, comportamento,
pesquisa. Começamos a pesquisar MPB, samba e não ficamos só
no rap. Porque o rap a gente já tinha nascido escutando. A artista-orientadora propôs novas coisas e acabou enriquecendo nosso
trabalho. A Família Justa Causa é formada por mim, pelo meu
cunhado, meu sobrinho... somos uma família mesmo, em seis
pessoas (risos). Passou o ano de 2009, a gente viu que estava num
patamar legal e decidiu fazer shows. Aí entramos no Vocacional
Apresenta. Era muito legal esse projeto, porque íamos para vários
equipamentos aqui em São Paulo. Eu sei que o Vocacional e o
Vocacional Apresenta são projetos diferentes, mas foi no Apresenta que vimos a dificuldade do Programa. Nós não tínhamos
nenhuma ajuda de custo e colocávamos tudo do próprio bolso. E
64 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
também tinha o problema da divulgação. Não havia. Não tinha
público. Às vezes, tinha público no CEU porque a gente fechava
com o pessoal do EJA, mas quando não tinha a gente apresentava
para duas pessoas... Lógico que o legal não é, necessariamente, a
quantidade de gente vendo, mas sim a evolução do nosso trabalho (...) A gente gravou nosso primeiro disco, chamado É aquilo e fizemos um espetáculo com o mesmo nome. No primeiro
não temos a participação de ninguém porque queríamos dar foco
para o nosso trabalho. No segundo convidamos o Rapin´Hood, o
DMN, grupo antigo de rap, Lindomar 3L, que era braço direito
do GOG e um pessoal de backing vocal que canta R&B.
TATIANA, Cia. Humbalada: Eu comecei a fazer Vocacional em
2001 e os outros membros da companhia começaram a fazer em
2003. Em 2005, formamos o grupo. Estávamos na Casa de Cultura de Interlagos, que não existe mais.
BRUNO, Cia. Humbalada: Em 2003, quando a gente começou,
havia um momento histórico na cidade de São Paulo muito peculiar: os CEUs estavam surgindo; havia o movimento Arte Contra
Barbárie, que era proposto por muitos artistas que queriam discutir a situação do teatro na cidade; havia o surgimento do Programa VAI e do Vocacional; e tinha o Projeto Formação de público.
Tudo estava fervendo na cidade. A gente sentia que essa discussão
que havia na cidade sobre teatro e, mais especificamente, teatro
de grupo, interferia na nossa orientação. A gente tinha orientação,
depois via um espetáculo apresentando-se no CEU, que também
era uma novidade, via um grupo conhecido ganhando o VAI... estava tudo começando. E tinha a gestão do PT, da Marta Suplicy.
(continua...)
Confira a entrevista na íntegra no site:
http://vocacionalmemoria.wordpress.com
S
eguir pela contramão. Esta foi a opção da Banda Bellize,
grupo originado nos primórdios do Música Vocacional e
que continua trilhando seu caminho no difícil mercado
da música independente. Quando fui Artista Orientador,
tive contato com meninos de quatro bandas diferentes,
que tinham conhecimento do projeto e foram buscar orientações
para seus grupos, coisa muito bem-vinda no programa Música
Vocacional. Combinamos uma agenda para as bandas, algo como
encontros quinzenais para cada grupo e um encontro geral no final do mês, sempre nos domingos em que eu orientava. Também
precisariam vir ao CEU, que não dispunha de equipamentos para
que eles ligassem os instrumentos.
Domingo de manhã, por volta das 8h, Gu, baixista do Bellize,
pegava emprestado o carro de um familiar para levar ao CEU
todo o equipamento que a banda tinha. Uma viagem não bastava, fazia duas. Na terceira viagem pegava os colegas da banda
e às 10h estavam no teatro, fazendo o aquecimento junto com o
Coral. Ao meio-dia finalmente montavam a aparelhagem própria
no teatro do CEU para começarmos as orientações, que passaram
a ser semanais já que as outras bandas não toparam participar.
Às 14h desmontavam tudo e se preparavam para a orientação de
violão. Após isso, mais três viagens de volta para levar o equipamento e devolver o carro emprestado. Todo domingo. Já dava
para perceber que ali tinha algo diferente. Aquela vontade de ir
atrás do conhecimento, de fazer tudo pela música me lembrava muito o meu próprio início. Após um tempo, os meninos da
Bellize decidiram não mais participar das orientações de violão
que estavam voltadas para o público iniciante. Era um momento
quando falávamos muito sobre a sustentabilidade do programa,
os estímulos e condições que daríamos para que as atividades artísticas continuassem a acontecer de forma autônoma nos meses
de ausência do Vocacional. Convidei-os então para que frequentassem as orientações de violão, mas como orientadores. Acreditava que seria uma boa oportunidade para testar e compartilhar
o seu conhecimento, além de prepará-los para a possível função
de professor de música, desejo manifestado por Pedro, vocalista e
compositor da banda.
Em 2010 as orientações voluntárias continuavam acontecendo.
E o resultado? A turma cresceu. Os músicos da Bellize estavam
confiantes, seguros. Os vocacionados e alunos viraram fãs incondicionais da banda, tanto pela qualidade de suas canções, quanto
pela entrega e disposição de passar seus conhecimentos para sua
comunidade.
No meu primeiro dia de trabalho daquele ano, fui recebido pelos meninos da Banda entregando a grande turma para a minha
orientação. Respondi com uma proposta indecente: “Por que não
continuam o ótimo trabalho mais este ano?” Com toda essa entrega e a confiança da comunidade e dos coordenadores do CEU, os
projetos começaram a aparecer. Aqui, transcrevo a entrevista que
fiz recentemente com o grupo:
O que foi o Programa Vocacional para a banda Bellize?
Participar do Programa Vocacional foi um grande presente e
mudou totalmente o rumo da nossa carreira e diria até das nossas
personalidades. A Bellize nasceu junto do Projeto Música Vocacional, em 2008, e acreditamos que por isso a banda sempre teve
no programa um grande amigo. Nele aprendemos desde como
nos comportarmos em cima de um palco, até a importância das
outras linguagens artísticas dentro da música. Foram anos valiosos
para nós.
Qual foi a relação com a coordenação do Equipamento (CEU
Guarapiranga) e o quanto isso foi importante para o desenvolvimento do grupo?
Desde o início das orientações no CEU Guarapiranga, nós tivemos uma relação muito próxima com toda a equipe de coordenação e até nos dias de hoje (mesmo não sendo mais as mesmas
pessoas). Essa relação é fundamental, e abriu mais portas para nós,
ela melhorou o aproveitamento da banda no Vocacional e nos deu
mais espaço e autonomia para trabalhar em nossa região e até fora
dela.
Confira a entrevista na íntegra no blog:
www.formacaoartecultura.blogspot.com
Luís Reys é Músico, atuou como artista orientador no Programa
Vocacional Música de 2009 a 2011 e atualmente é Coordenador
de Equipe.
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 65
MEMÓRIA
Ensaios
Processos artísticos, tempos e espaços:
Virtuais
Encontro sobre formação
artístico-cultural
na cidade de São Paulo
Deslocamento
Para viver a contradição
José Romero
Experiência e música
Fabrício Gonçalez Zavanella
Deslocamentos, itinerância, nomadismo
-o espaço ENTRE– uma observação
sobre o vocacional dança
O corpo como atualidade da existência
Em busca da música evocada
por um texto literário
Um processo e uma canção
Andrea Cavinato
Nininha Araujo
PIÁ, Vocacional, continuidade...
Sebastião Bazotti
Alejandro López Jericó
Ana Eliza Colomar
Grande Viagem
Violeca & Rabelino
A pesquisa-ação nos espaços de atuação
Rosana Massuela
Marcus Simon
Rosana Antunes
66 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
C
omo um dos marcos da Coordenação de Formação e Pesquisa no Programa de Iniciação Artística (PIÁ) e no Programa Vocacional o encontro Processos Artísticos, Tempos e Espaços, veio configurar-se como um espaço de
conexão, discussão e novos apontamentos, implicados
com as diretrizes de formação da Secretaria Municipal de Cultura.
A esta proposta somou-se a participação da Escola Municipal de
Iniciação Artística (EMIA) para a construção de um eixo comum.
Para a efetivação do encontro, a parceria com o Centro Cultural
São Paulo foi de fundamental importância.
O acontecimento teve a oportunidade de fazer importantes
articulações entre os programas do Departamento de Expansão
Cultural (DEC) - Vocacional, PIÁ e EMIA - bem como as aproximações e interlocuções com as Coordenadorias de Bibliotecas,
Centros Educacionais Unificados (CEUs) , Centros Culturais e
Secretaria Municipal de Educação através dos Departamentos de
Orientação Técnica (DOT) de São Paulo.
Realizado entre os dias 5 e 19 de setembro de 2014, o encontro
estruturou-se em diversos momentos.
As Rodas de Conversa “Territórios de Atuação e Cartografias
Artísticas”, com a Profa. Dra. Lilian Amaral e Rodrigo Munhoz
(PIÁ); “Tempos e Espaços da Experiência”, com a Profa. Dra.
Lucia Maciel Barbosa de Oliveira e Tatiana Guimarães (Programa
Vocacional) e “Infância e Construção Compartilhada de Saberes”,
com o Prof. Dr. Marcos Ferreira e Sandra Cunha (EMIA) foram
abertas à participação do público. Com a finalidade de abordar o
tema do encontro sob distintas perspectivas pelos pesquisadores
convidados, artistas educadores e representantes de equipamentos
públicos de cultura, as rodas acompanharam os perfis dos convidados que expuseram suas dinâmicas próprias em diálogo com
proposições artísticas dos programas.
Vivências Artísticas e Compartilhamentos de Processos foram
oferecidos pelos artistas dos Programas Vocacional, PIÁ e EMIA
em alguns equipamentos públicos da Cultura apresentando as
pesquisas-ação efetuadas nos respectivos programas e as abordagens artístico-pedagógicas da EMIA. Além disso, aconteceram
conversas com os artistas Roberto André e Guto Lacaz e com a
Profa. Dra. Patrícia Prado que, por meio de suas experiências,
estabeleceram um diálogo com as práticas dos programas e da
escola.
Com o intuito de dar voz aos participantes dos programas PIÁ
e Vocacional e aos alunos da EMIA, o encontro ofereceu um Espaço Expositivo no Centro Cultural São Paulo que abrigou uma
instalação áudio visual, performances e outras materialidades dos
processos desenvolvidos pelos seus participantes.
Como síntese e memória do encontro Processos Artísticos,
Tempos e Espaços está prevista uma publicação em parceria com
o CCSP contendo textos reflexivos e registros fotográficos. A distribuição será feita em equipamentos da Secretaria Municipal de
Cultura e Secretaria Municipal de Educação, além de outras instituições culturais da cidade de São Paulo.
Na certeza de termos inaugurado novos tempos e espaços de
diálogo entre os programas e as diretrizes das Secretarias de Cultura e de Educação, esperamos ter colaborado de maneira efetiva
com a discussão sobre formação artístico-cultural na cidade de
São Paulo.
Concepção e Organização do Encontro:
Andrea Fraga, Cintia Campolina, Fafi Prado,
Flávia Giacomini, Priscila Tamis, Priscilla Vilas-Boas,
Suzana Schmidt e Zina Filler
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 67
Divisão de Formação
Artística e Cultural
Diretor
MICA FARINA
Coordenador Administrativo
ILTON TOSHIAKI HANASHIRO YOGI
Coordenação de Ação Cultural
PRISCILA TAMIS
FLÁVIA GIACOMINI COSTA
Equipe
MERCEDES CRISTINA R. SANDOVAL
GILMAR CHINA K. BUENO DE S. LEITE
ISABELLA DE SOUZA RODRIGUES
Equipe Vocacional 2014
Coordenadores de Formação
CINTIA CAMPOLINA DE ONOFRE
SUZANA SCHMIDT VIGANÓ
Coordenadores Regionais
IRLAINY REGINA MADAZZIO
MARA HELENO FERNANDES
VANDERLEI BAEZA LUCENTINI
Coordenadores de Projeto
IPOJUCAN PEREIRA DA SILVA
JOSÉ DA SILVA ROMERO
JOSÉ LEONEL GONÇALVES DIAS
LUCIANA BORTOLETTO
ODINO FINEO DE ANDRADE PIZZINGRILLI
Coordenadores Artístico Pedagógicos
ADRIANA AMARAL DOS SANTOS
ALEJANDRO JAVIER LÓPEZ JERICÓ
ANA CRISTINA CURVELLO DE ARAÚJO PETERSEN
ANDRÉA PAULA PEREIRA TAVARES
ANDREA TEDESCO CANALES ROCHA
CAROLINI LUCCI
CLAUDIA APARECIDA POLASTRE
CLAUDIA PALMA DA FONSECA
DOUGLAS CLEMENTE DE SOUZA
ELENITA BORGEaS DE QUEIRÓZ BERNARDI
GABRIELA FLORES NUNES
IELTXU MARTINEZ ORTUETA
JUDSON FORLAN GONZAGA CABRAL
LUCIANA ABEL ARCURI
LUCIANO GENTILE
LUIS FERNANDO CERVEIRA REYS
LUIZ CLAUDIO CANDIDO
MARCELO FRANCISCO DO NASCIMENTO
MARCIO DE CASTRO
MARGARETH MAIELLO MENDES
MARINA CORAZZA PADOVANI
MAYKI FABIANI OLMEDO
MELISSA MIGUELES PANZUTTI
PAULO SERGIO FABIANO DE OLIVEIRA
PETICIA CARVALHO DE MORAES
PRISCILA LUZ GONTIJO SOARES
ROBSON ALFIERI
SEBASTIÃO BAZOTTI
TATIANA LEME GUIMARÃES
YASKARA DONIZETI MANZINI
Artistas Orientadores
ADRIANO LIMA MATOS
ALAN ALBERT SCHERK
ALDA MARIA SOARES ABREU ALVES
ALENCAR MARTINS NETO
ALEXANDRE ANDREAS ACHCAR TRIPICIANO
ALEXANDRE RIBEIRO DE OLIVEIRA
ALLYSON MENDES DO AMARAL
ANA ELISA TORRES COLOMAR
ANA MARIA DE ANDRADE
ANA MARIA KREIN
ANDERSON MARQUES DA SILVA
68 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
ANDERSON MAURICIO DOS SANTOS
ANDRÉ LUIZ MARTINEZ SANT’ANNA
ANDRE RICARDO DE OLIVEIRA
ANDREA APARECIDA CAVINATO
ANDREA COSTA SOARES
ANDRESSA FERRAREZI
ANGELA COLTRI DO AMARAL
ANGELA MARIA DE BARROS
ANGÉLICA RENY GUIMARÃES ROVIDA
ANIE WELTER DE OLIVEIRA
ANTONIO CASSIO CASTELAN
ANTONIO DE MATTOS CABRAL
BEATRIZ SILVA CRUZ
BRUNO ALEXANDER PEREIRA DE MACEDO
CAIO MARINHO MAIMONE
CARLA TIEMI TANIGUCHI
CARLOS ALBERTO PONTES JUNIOR
CARLOS EDUARDO CANHAMEIRO
CARLOS GUSTAVO RIBAS BALI
CAROLINA GOMES MOREIRA
CAROLINA NÓBREGA SILVA
CRISTINA D’AVILA MELLO KEHDY
DANIELA SCHITINI
DANILO CAPUTO DORTA
EDSON DOS SANTOS SILVA
EDUARDO LUIZ FRAGA
EDUARDO PEREIRA MAFALDA
ENOQUE DOS SANTOS SOBRINHO
ERNANDES ALVES DE ARAUJO
EVANISE FIGUEIREDO DE OLIVEIRA
FABIO RESENDE
FABRÍCIO GONÇALVES ZAVANELLA
FERNANDA DE OLIVEIRA PAIROL
FERNANDA MARTIN BAPTISTA DE FARIA
FERNANDO DE BRITO MACHADO
FERNANDO SILVA ALVES
FLAVIO DA COSTA CAMARGO
FRANCISCA DA PENHA SANTOS
FRANK ROBERTO AGUILLAR
GABRIEL PINHEIRO MACHADO MILLIET
GABRIELA SILVEIRA DE ANDRADE
GISELE PENAFIERI
GLAUCIA RIBEIRO FELIPE CABRAL
GUSTAVO LEMOS PICANÇO
HERBERT HENRIQUE JESUS DE SOUZA
HERCULES ZACHARIAS LIMA DE MORAIS
IGOR GASPARINI
ILMA CARLA ZAROTTI GUIDEROLI
IVO THADEU BATISTA DE ALCANTARA
JANAINA BRIZOLLA DE OLIVEIRA
JARDELIO SANTOS ALVES
JEFFERSON PAULO MOREIRA
JONATÃ PUENTE VIEIRA
JORDANA DOLORES PEIXOTO
JOSÉ EDSON DE LIMA
JOSEFA PEREIRA DA SILVA
JULIMARI PAMPLONA DA SILVA
JUNIOR CLEITON GONÇALVES
KALONI SCHARNOVSKI
KÁTIA DA SILVA SANTOS
KLEBER LUIZ DE PAULA
LAIS MARQUES SILVA
LARA PINHEIRO VIEIRA
LARISSA VERBISCK ALCÂNTARA BONFIM
LEANDRO DE SOUZA
LEANDRO GARCIA E GARCIA H. P. POLATO
LENILSON PEREIRA RODRIGUES
LEONARDO OLIVEIRA MOREIRA
LEONARDO ROGÉRIO MUSSI DE SOUZA
LIGIA HELENA DE ALMEIDA
LIGIA RODRIGUES BOTELHO
LINA PAOLA GOMEZ ARIAS
LIVIA PICCOLO
LOURENÇO PRADO BRASIL
LOURIVAL MIRANDA
LUCÉLIA COELHO BARBOSA
LUCIA YUMIKO KAKAZU
LUCIANA PONCE MENDES DE ALMEIDA
LUIS FERNANDO DINIZ LEITE
LUIS PAULO DE ALMEIDA MAEDA
LUIZ PAULO PIMENTEL DE SOUZA
LUIZA SOUSA ROMÃO
MAERCIO MAIA ALVES
MAINÁ FERNANDES YAMACHI
MARCELO DE ANDRADE MELO
MARCIA NEMER JENTZSCH
MARCIO DANTAS SILVA
MARCUS HENRIQUE SIMON
MARIA EMILIA FAGANELLO
MARIA EUGENIA BLANQUES DE GUSMÃO
MARIA LUCIA TOME BRANCO
MARIA STELA TOBAR MARIUCCI
MARIA TATIANA DO MONTE OLIVEIRA ASSIS
MARIANA DE OLIVEIRA COSTA
MARIANA DUARTE SILVEIRA
MARIANA MIFANO GALENDER
MARINA VECCHIONE UNGARO
MARTHA LUIZA MACEDO COSTA BERNARDO
MAURICIO DIOGO DA SILVA
MIGUEL ATTICCIATI PRATA
MONICA RODRIGUES
MORGANA SILVA DE SOUSA
MURILO DE PAULA SOUZA
MURILO MORAES GAULES
NALOANA DE LIMA COSTA
NATACHA DIAS
NATÁLIA SIUFI RIZZO
NATHALIA BIAVASCHI GLITZ
OSMAR TADEU FARIA
OSVALDO PINHEIRO DA SILVA
PAULA BELLAGUARDA DE CASTRO SEPULVIDA
PAULO VITOR GIRCYS
PEDRO DOS SANTOS
PEDRO FELICIO DE OLIVEIRA
PEDRO LUIS DE CASTRO CAMPANHA
PÉRICLES MARTINS DA SILVA
PRISCILLA CARBONE
RAFAEL TADEU MIRANDA
RAFAEL VICENTE FERREIRA
RAFAELA LIMA CARNEIRO
RAIMUNDA MARIA MOURA DA SILVA
RAONI FELIPPE GARCIA
RAPHAEL DE PAULA RIBEIRO
RAQUEL ANASTÁSIA SIMONI
REGINA KUTKA
RENATO FAGUNDES VASCONCELOS
RICARDO CORREA LIMA DOS SANTOS
RICARDO DE ALMEIDA VALVERDE
RITA TATIANA GUALBERTO DE ALMEIDA
ROBERTA DA SILVA SANTOS
ROBERTO CARLOS MORETTO
RODRIGO DOS SANTOS CÂNDIDO
ROGERIO DIAS DA SILVA
ROGES DOGLAS LEAL DA CONCEIÇÃO
RONALDE MONEZZI FILHO
ROSANA ANTUNES
ROSANA TONHOLI MASSUELA
RUBIA CRISLAINE MAURA BRAGA
SERGIO SEGAL CARDOSO DA SILVA
SHEILA DE SOUZA LEANDRO
TALITA CASELATO
TATIANA MELITELLO WASHIYA
TELMO RODRIGUES ROCHA
THAIANNY ESTEFANATO GOUVEA
THAÍS CAROLINE PÓVOA BALATON
THAIS OLIVEIRA PINTO
THAIS PONZONI DOS SANTOS
URUBATAN MIRANDA DA SILVA
VALÉRIA RAMOS LAUAND
VALTER NUNES DE SANT ANNA
VANESSA DE OLIVEIRA CORREA
VÂNIA DE OLIVEIRA
VERONICA PEREIRA PINTO
VICENTE LATORRE FILHO
WAGNER MAZZINI BRANCACCIO
WELLERSON MINUZ CAMARGOS
WILHELM ARAÚJO DA SILVA
Pontos de Atuação
Biblioteca Adelpha Figueiredo
Biblioteca Affonso Taunay
Biblioteca Afonso Schmidt
Biblioteca Alceu Amoroso Lima
Biblioteca Álvares de Azevedo
Biblioteca Belmonte
Biblioteca Cassiano Ricardo
Biblioteca Cora Coralina
Biblioteca Monteiro Lobato
Biblioteca Narbal Fontes
Biblioteca Nuto Sant’Anna
Biblioteca Pedro Nava
Casa de Cultura Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro
Casa de Cultura Butantã
Casa de Cultura Casa Amarela - Júlio Guerra
Casa de Cultura Cora Coralina
Casa de Cultura Espaço Cultural Tendal da Lapa
Casa de Cultura Itaim Paulista
Casa de Cultura Palhaço Carequinha
Casa de Cultura Popular do M’Boi Mirim
Casa de Cultura Raul Seixas
Casa de Cultura Salvador Ligabue
Casa de Cultura Santo Amaro - Manoel Cardoso de Mendonça
Casa de Cultura São Mateus
Casa de Cultura Tremembé
Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso
Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes
Centro Cultural da Penha
CEU Água Azul
CEU Alto Alegre
CEU Alvarenga
CEU Aricanduva
CEU Azul da Cor do Mar
CEU Butantã
CEU Caminho do Mar
CEU Campo Limpo
CEU Cantos do Amanhecer
CEU Capão Redondo
CEU Casablanca
CEU Cidade Dutra
CEU Feitiço da Vila
CEU Formosa
CEU Guarapiranga
CEU Inácio Monteiro
CEU Jaçanã
CEU Jaguaré
CEU Jambeiro
CEU Jardim Paulistano
CEU Lajeado
CEU Meninos
CEU Navegantes
CEU Paraisópolis
CEU Parelheiros
CEU Parque Anhanguera
CEU Parque Bristol
CEU Parque São Carlos
CEU Parque Veredas
CEU Paz
CEU Pera e Marmelo
CEU Perus
CEU Quinta do Sol
CEU Rosa da China
CEU São Mateus
CEU São Rafael
CEU Sapopemba
CEU Tiquatira
CEU Três Lagos
CEU Três Pontes
CEU Uirapuru
CEU Vila Atlântica
CEU Vila Curuçá
CEU Vila do Sol
CEU Vila Rubi
Galeria Olido
Programa de Braços Abertos
Teatro Alfredo Mesquita
Teatro Cacilda Becker
Teatro Leopoldo Fróes
Teatro Zanoni Ferrite
Vocacional