AS IMAGENS NO JUDAÍSMO E NO CATOLICISMO IMAGES

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AS IMAGENS NO JUDAÍSMO E NO CATOLICISMO IMAGES
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AS IMAGENS NO JUDAÍSMO E NO CATOLICISMO
IMAGES IN JUDAISM AND CATHOLICISM
Karina Santos de Oliveira1
RESUMO
Este artigo apresenta um estudo comparativo entre judaísmo e catolicismo em relação à
interpretação do segundo mandamento bíblico do Decálogo, que proíbe a confecção de
imagens, durante a Antiguidade e a Idade Média.
Palavras Chaves: arte e religião, arte e catolicismo, arte e judaísmo.
ABSTRACT
This article presents a comparative study between Judaism and Catholicism concerning
the interpretation of the second biblical commandment of the Decalogue, which forbids
manufactureimages, during Antiquity and Middle Age.
Key Words: art and religion, Catholicism and art, Judaism and art.
INTRODUÇÃO
O objeto deste artigo é a influência do segundo mandamento bíblico do
Decálogo, que proíbe a confecção de imagens, no judaísmo e no catolicismo, desde a
Antiguidade até a Idade Média.
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Karina Santos de Oliveira. Mestranda Universidade de São Paulo. [email protected]
ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013, p. 22-36.
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Como o judaísmo e o catolicismo interpretaram historicamente este mandamento
bíblico do Decálogo descrito no Livro do Êxodo e do Deuteronômio, já que as duas
religiões se fundamentam no mesmo livro sagrado?
A questão central é examinar como o monoteísmo foi da proibição das imagens
de culto no judaísmo ao pluralismo das imagens no catolicismo, comparando o processo
de rejeição e aceitação das imagens nas duas religiões ao longo do tempo, buscando
primeiramente os fundamentos da proibição bíblica em Israel, em seguida os motivos
para novas interpretações a esta passagem bíblica no seio do judaísmo e concluindo com
os motivos para a aceitação das imagens no catolicismo, a construção dos dogmas a
favor do uso das imagens pela Igreja Católica e as funções adquiridas pelas imagens no
catolicismo medieval.
A ideia é mostrar como a proibição bíblica das imagens foi considerada por estas
duas religiões desde os seus primórdios até sua constituição enquanto religiões
consolidadas e também o período em que as duas religiões tiveram contatos e
influências culturais recíprocas.
AS IMAGENS NO JUDAÍSMO
Os mandamentos foram os meios pelos quais Deus firmou os princípios
religiosos, culturais, rituais, morais e sociais de sua aliança com o povo de Israel. O
Decálogo foi a base do pacto divino com Deus, feito pelo povo inteiro. O pacto mosaico
é único por ser, não um tratado entre estados, mas uma aliança Deus-povo. Como
afirma Paul Johnson, “nele a antiga sociedade israelita fundiu seus interesses com os de
Deus e O aceitou, em troca de proteção e prosperidade, como um agente totalitarista
cujos desejos governassem todo aspecto de suas vidas” (JOHNSON, [s.d.], p.45).
Os Dez Mandamentos ou Decálogo significam “dez palavras” (Ex 34,28; Dt
4,13; 10,4), e resumem a Lei, que teria sido dada por Deus ao povo de Israel, no
contexto da Aliança, por intermédio de Moisés. Seria pelo cumprimento da Lei que o
povo de Israel preservaria a aliança com seu Deus e receberia suas bênçãos.
Esta aliança entre o Deus YHWH e o povo de Israel, de acordo com o relato
bíblico, tinha como condição essencial o culto exclusivo a Ele, exposto no primeiro
mandamento “Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,3; Dt 5,7).
Os relatos bíblicos mostram que inicialmente os hebreus tinham consciência que
para outros povos existiam outros deuses. Mas para eles, YHWH era o criador de todo
ser e de todas as coisas e o único ao qual Israel deveria prestar culto.
Concomitantemente à instituição do culto a um único Deus, a Lei determinou o
que para os judeus é o segundo mandamento, “Não farás para ti imagem esculpida de
nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas
águas que estão debaixo da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não os
servirás...” (Ex 20,4-6; Dt 5, 8-10).Além de proibir o culto a outros deuses,YHWH
também proibia que deles se confeccionassem imagens, parte essencial dos cultos
pagãos, e também que fosse feita uma imagem Dele.
Essa proibição é recorrente nos livros da Torah. No Livro do Levítico, YHWH
estipula as condições para a sua benção sobre Israel: “Não fareis ídolos, não levantareis
imagem ou estela, e não colocareis em vossa terra pedras trabalhadas para vos
inclinardes diante delas, pois eu sou Iahweh vosso Deus” (Lv 26,1).As “dez palavras”
ou mandamentos primeiramente expostos no livro do Êxodo, são repetidos no Livro do
Deuteronômio (Dt 5, 6-22), que também contém a justificativa para esta proibição:
“Ficai muito atentos a vós mesmos! Uma vez que nenhuma forma vistes no dia em que
Iahweh vos falou no Horeb, do meio do fogo, não vos pervertais, fazendo para vós uma
imagem esculpida em forma de ídolo: uma figura de homem ou de mulher, figura de
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algum animal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, de algum réptil que rasteja
sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas, que estão sob a terra.
Levantando teus olhos aos céus e vendo o sol, a lua, as estrelas e todo o exército do céu,
não te deixes seduzir para adorá-los e servi-los!” (Dt 4,15-20).
O texto do Deuteronômio explicita, assim, que não foi vista nenhuma forma na
teofania sobre o Monte Horeb. Não faz, portanto, sentido representar e adorar qualquer
forma de Deus, porque o povo não viu nenhuma forma Dele no mundo. A religião
bíblica concebeu progressivamente um Deus que é transcendente, abstrato, incorpóreo,
invisível e inacessível. Apesar de a Bíblia também dizer que o homem foi criado à
imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27; 2,7).O Deus judeu deveria manter-se
inimaginável e abstrato, caracterizado pela transcendência espiritual.
O segundo mandamento se refere, desta maneira, à proibição da representação
da imagem de Deus, por Ele ser inimaginável e, portanto, não representável. E refere-se
também à proibição da representação de imagens humanas e de animais imbuídas de
qualquer conotação devocional, na forma de ídolo como os pagãos faziam, e também ao
culto de seres celestiais, considerados criação do próprio Deus.
Isto porque os textos mostram que os autores bíblicos não negavam, num
primeiro momento, a existência dos deuses pagãos, porém, consideravam YHWH como
“o único ser divino ativo” (KAUFMANN, 1989, p.15) capaz de criar e agir na vida do
homem e na natureza.
Apesar de uma influência pagã nos seus primórdios, Israel foi capaz de construir
uma concepção diferente de seu Deus e ir se afastando do paganismo, mesmo que os
relatos bíblicos mostrem que isso nunca ocorreu completamente, pois são constantes as
passagens que falam num retorno à idolatria em Israel. Apesar de algumas atitudes
idolátricas do povo de Israel, os fundamentos da religião israelita presente nos textos
bíblicos negavam qualquer tipo de poder a outros deuses que não o Deus de Israel. Para
Israel somente um deus era Deus, já que somente ele tinha o poder de criar. “Aos outros
deuses não se concedia nem participação na criação, nem função no cosmos, nem poder
sobre os acontecimentos” (BRIGHT, 1978, p.159).
Existem passagens bíblicas, especialmente nos textos proféticos, em que se
observa que quando se menciona os deuses pagãos eles são vistos como deuses
impotentes, que não tem nenhum poder sobrenatural ou capacidade de criação.
Diferentemente da concepção do Deus de Israel.YHWH é descrito na Bíblia Hebraica
como um Deus supremo, com domínio cósmico. O criador de todas as coisas, sem
intermediários ou ajuda. Tendo o controle sobre todos os acontecimentos terrestres.
A ideia de monoteísmo concebida em Israel gerou uma consequência doutrinal
extrema: “a proibição da adoração de quaisquer outros seres ou objetos”
(KAUFMANN, 1989, p. 138). O fato da religião mosaica não possuir imagens de
YHWH não se deve a uma rejeição radical de imagens, mas sim a uma proibição de ter
outros deuses, e isto decorre do fato de que a religião israelita desenvolve a ideia de que
somente YHWH tem poderes sobrenaturais, sendo os deuses pagãos considerados
inúteis ou falsos em sua divindade.
O conceito de idolatria que existia nos primórdios em Israel combatia não a
existência de outros deuses, mas o fetichismo, ou seja, o culto a deuses falsos esculpidos
pelas mãos do homem. Para os pagãos a imagem não representava um deus, mas era o
próprio deus. E um dos aspectos essenciais da crença na existência de deuses
corporificados na natureza ou ligados de algum modo à natureza era a homenagem
prestada a eles através do cuidado dedicado à sua imagem.
Os autores bíblicos dedicaram boa parte de seus escritos ao combate à idolatria,
esforçando-se para desacreditá-la perante aqueles que a praticavam e assim conseguir
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acabar com qualquer vestígio de idolatria em Israel. Porém, ao se examinarem os textos
bíblicos, vê-se que o combate à idolatria em Israel não tinha como pressuposto
questionar a existência dos deuses pagãos, mas de ridicularizar a adoração fetichista de
imagens. A Bíblia combatia os deuses pagãos através de suas imagens, tentando
demonstrar ser uma loucura acreditar que ídolos de madeira e pedra possam ser deuses.
Portanto, o problema não era a crença em outros deuses, mas a crença de que objetos
inanimados sejam deuses.
Para os israelitas, a imagem era a corporificação do deus e o ato de esculpir sua
imagem era já uma forma de cultuá-lo. Para os redatores bíblicos a loucura da idolatria
era substituir o Deus único e verdadeiro por um deus falso feito de qualquer matéria
criada por Ele.
A negação da existência de outros deuses veio mais tarde, principalmente a
partir dos textos proféticos.
Para Alain Besançon, a proibição bíblica presente na Torah bastaria para
explicar a condenação da representação das imagens de outros deuses, mas não a das
imagens que pudessem representar seu próprio Deus. Para o autor de A imagem
proibida, a transcendência divina de YHWH não parece uma explicação satisfatória
para justificar esta proibição da representação de Deus. Besançon afirma que “a
iconofobia bíblica não é filosófica” (BESANÇON, 1997, p.116), ou seja, que os
redatores da Lei não se preocuparam em elaborar uma justificativa filosófica para a
proibição bíblica das imagens, porque não se trata de proibir a representação de Deus
por causa de sua transcendência, mas que o próprio Deus YHWH foi responsável por
esta proibição, por causa da relação que este Deus determinou e se propôs a manter com
o povo de Israel.
Cultuar a YHWH de uma maneira que não foi estabelecida por Ele na Lei
também é uma forma de idolatria, pois é uma afronta a sua soberania e onipotência, pois
somente Ele tem autoridade para estabelecer a maneira como quer ser cultuado e se
relacionar com o povo de Israel. Portanto, nenhum culto pode influenciar a relação de
Deus com o homem a não ser que tenha sido explicitamente ordenado por Ele. Deus não
pode estar condicionado ao homem, e nem pode ser circunscrito a uma forma que o
homem crie Dele, pois é muito superior ao homem. E foi YHWH que escolheu se
manifestar ao homem através de palavras. Daí o sentido Dele ter entregado tábuas com
leis escritas para o povo escolhido por ele cumprir.
YHWH tinha um meio primordial de estar em contato com o povo de Israel, que
não era pela vista, pela visão de sua imagem, mas pelo ouvido e pela escrita (dos Dez
Mandamentos), ao transmitir suas mensagens através dos profetas. Enquanto para os
povos pagãos a imagem era um aspecto essencial de sua religião, entre os israelitas a
palavra, especialmente a escrita, adquiriu proporcionalmente a mesma importância.
São inúmeros os relatos bíblicos em que aparece YHWH falando para o povo de
Israel através dos profetas. Além das narrativas bíblicas, existe uma tradição judaica que
afirma que todos os mandamentos, tanto os dez mais conhecidos (Decálogo) como os
outros, totalizando seiscentos e treze a serem seguidos pelo povo judeu, foram ditados
por Deus e escritos em pergaminho por Moisés e ambos falados diretamente ao povo de
Israel.
A representação de Deus para o povo de Israel deveria estar circunscrita ao
campo do ouvido e do escrito, porque na Lei está contida a descrição detalhada do modo
de ser divino e a única imagem que é lícita formar-se dele. E também da maneira lícita
de se cultuá-Lo. Deus se revela e se faz visível ao povo de Israel através da palavra. As
imagens de Deus são construídas através de uma estilística, de metáforas e outras
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figuras de linguagens que estão presentes nos textos bíblicos. É através das palavras que
Deus propõe ao povo de Israel sua própria imagem.
Todo o pensamento religioso formulado em Israel foi transferido para a palavra
escrita, tendo esta se transformado em parte fundamental da religião e da cultura
hebraica. Segundo Eliana Malanga, “a concepção de um Deus abstrato corresponde à
formulação de um pensamento abstrato decorrente do desenvolvimento da escrita”
(MALANGA, 2005, p.184).
A escrita foi elemento fundamental para o monoteísmo israelita também porque
foi um elemento que permitiu sua aglutinação. A escrita permitiu a transmissão de
geração em geração da Lei a ser seguida e de todos os pressupostos que compõem o
monoteísmo na religião israelita, inclusive a imagem permitida a se fazer do Deus de
Israel, através das figuras de linguagem.
Em conformidade com esta ideia, Alain Besançon afirma que em toda a história
de Israel somente existem duas encarnações do Eterno, “primeiro a Lei, continuamente
estudada e escrutada, fornece não só a regra de vida, mas a descrição detalhada do modo
de ser divino e a única imagem que é lícito formar-se dele; e depois, o povo, “detentor”
da Lei e que, meditando seriamente sobre ela e “murmurando-a dia e noite” é por ela
informado” (BENSANÇON, 1997, p. 118).
Portanto, a escrita é um elemento fundamental no judaísmo, pois permitiu a
reprodução da imagem de Deus, da única maneira que Ele se permitiu ver e reproduzir,
e também porque é o meio primordial de comunicação de YHWH com o povo judeu em
todos os momentos da sua história.
Entretanto, a proibição bíblica não restringiu completamente a produção de
imagens em Israel, pois não era todo o tipo de imagem que estava proibido. Algumas
imagens eram prescritas pela Lei. Sendo assim, surge a necessidade de questionar que
tipos de imagens eram permitidas em Israel e com que objetivo foram produzidas.
Existem muitas passagens bíblicas que ilustram o fato de que os israelitas
fizeram imagens nos diversos momentos de sua história e a confecção destas imagens
era autorizada por Deus. Por exemplo, os relatos bíblicos contam que Moisés fez uma
serpente de bronze a mando de Deus (Nm 21, 8) e também os querubins da arca da
aliança (Ex 37,7; Dt 10,5).
O apogeu dessa evolução teria sido a construção do Templo em Jerusalém sob o
reinado de Salomão, que pela primeira vez na história judaica criou um local central
para a religião e para os rituais. Os textos bíblicos relatam também a presença de objetos
cultuais e figuras decorativas no Templo de Salomão, com imagens de plantas, animais
e querubins (1Rs 6,1-37; 2Cr 3,1-15; 2Cr 4,1-22). Não há descrição da presença de
figuras humanas, porém, as imagens eram entalhadas e esculpidas, o que mostra que o
mandamento bíblico não era encarado como uma proibição a todo tipo de escultura,
somente àquelas que tinham um sentido idolátrico, ou seja, que podiam ser cultuadas
como deuses.
Em geral, até o período do Segundo Templo as imagens produzidas pelo povo
judeu se restringiam aos objetos de culto e de decoração sem a reprodução da figura
humana. Uma posterior transformação desta realidade aconteceu a partir da influência
da cultura helenística na Palestina e em todo o mundo oriental. Na era helenística
“Grécia e Ásia casam-se para dar à luz o helenismo, a civilização dos povos orientais
que assimilaram o idioma, o pensamento, e a maneira de viver dos gregos” (AZRIA,
2000, p.55).
Porém, é na era cristã, sob o domínio romano, e posteriormente parta e
sassânida, que se observa entre os judeus uma maior reprodução de imagens humanas.
Os judeus adotam, então, alguns aspectos da arte produzida por estes povos gerando
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uma mudança na posição relativa à ornamentação das sinagogas. São deste período as
sinagogas de Dura Europos (século III d.C.) e Beth Alpha (século VI d.C.).
Nestas sinagogas foram encontrados mosaicos de solo e afrescos com
representações figurativas de temas bíblicos, com a presença de figuras humanas, além
de animais, círculos do zodíaco e símbolos judaicos como a menorá. A função destas
imagens era a ilustração e a explicação, em imagens, do significado para o povo judeu
das histórias da Bíblia Hebraica com o objetivo de fazer lembrar aos que contemplavam
a figura a ocasião em que Deus manifestara seu poder.
Foram encontradas pelos arqueólogos uma centena de sinagogas construídas na
Galiléia e na Judéia entre os séculos IV e VI d.C. As figuras humanas e outros motivos
anteriormente não vistas nas sinagogas e no Templo de Salomão agora compunham a
maior parte da decoração das sinagogas. Uma das explicações possíveis para essa
mudança na forma de ornamentação das sinagogas judaicas é que a importância dos
cultos pagãos havia diminuído consideravelmente com o advento do cristianismo e os
motivos clássicos haviam perdido seu significado religioso, permanecendo apenas como
valores estéticos aceitáveis de serem utilizados pelos judeus.
Sendo assim, a proibição bíblica de imagens tinha o objetivo principal de
combater a idolatria, e desta maneira durante bastante tempo contribuiu para o
cerceamento da produção de imagens que reproduzissem animais e principalmente a
figura humana no judaísmo, porém, não totalmente. Achados arqueológicos do final do
período bíblico na Antiguidade e da Idade Média mostram que apesar da restrição
bíblica, encarada na maior parte do tempo literalmente pelo povo de Israel, houve arte
figurativa em sinagogas e objetos de ritualística. A proibição das imagens restringiu
muito mais a produção de esculturas, já que o mandamento utiliza a palavra “esculpir”
ou a expressão “imagem esculpida” em sua redação. O historiador da arte Ernest Hans
Gombrich afirma que “na realidade, a Lei Judaica proibiu a realização de imagens por
temor à idolatria. Não obstante, as colônias judaicas nas cidades da fronteira leste
dedicaram-se à decoração das paredes de suas sinagogas com histórias do Antigo
Testamento” (GOMBRICH, 1993, p.89).
Além disso, na Idade Média no Ocidente, assimilando características da arte
islâmica e cristã, os judeus realizavam escritos ilustrados mais conhecidos como
iluminuras, especialmente nas agadás de Pesach, o texto utilizado para os serviços da
noite da Páscoa judaica, contendo a história da libertação do povo de Israel do Egito. A
agadá contém a narrativa dessa libertação, as orações, canções e provérbios judaicos que
acompanham esta festividade. Nas agadás medievais eram ilustrados temas bíblicos,
inclusive com a presença de figuras humanas. O que havia de especificamente judaico
nessas iluminuras era a forma da escrita em hebraico, da direita para a esquerda. E
enquanto nas iluminuras cristãs decorava-se apenas a primeira letra do texto, nas
iluminuras judaicas decorava-se a primeira palavra do texto.
A conclusão a que se pode chegar analisando a história do desenvolvimento da
arte no judaísmo é que existiu produção artística entre os judeus, apesar da proibição
bíblica das imagens ter contribuído para isso ser algo bem restrito. Porém, ainda há
controvérsias quanto ao fato de ter existido uma arte judaica. Pois, se existiu uma arte
judaica esta nunca teve um estilo próprio, sempre sofrendo a interferência e a influência
de outras culturas. Especialmente na Diáspora, onde os judeus sempre foram uma
minoria nos países onde se estabeleceram. Nesses locais, os judeus assimilavam o estilo
predominante localmente.
AS IMAGENS NO CRISTIANISMO
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Em seus primórdios, o cristianismo era apenas uma das seitas surgidas no seio
do judaísmo não se diferenciando muito em relação às crenças e práticas. Porém, à
medida que o tempo foi passando, era cada vez maior o número de conversos cristãos de
origem não judaica. Isso foi levando a uma reestruturação do grupo religioso cristão,
que já em seu primeiro concílio dispensou uma serie de práticas essenciais na religião
judaica, como a circuncisão. Isso marcou um gradual rompimento entre os cristãos e os
antigos seguidores do judaísmo. A aceitação do cristianismo como religião oficial do
Império Romano no século IV e a reestruturação da Igreja no I Concílio Ecumênico de
Nicéia em 325 marcaram uma profunda separação das duas religiões e a consolidação
de uma nova concepção de Deus por parte da Igreja através dos dogmas que foram
estabelecidos a partir de passagens dos evangelhos e das cartas apostólicas do Novo
Testamento.
Em relação às imagens, três passagens do Novo Testamento foram fundamentais
para a Igreja. No Evangelho de João está escrito: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). A
mesma ideia está descrita nas cartas apostólicas. A Carta aos Filipenses diz que: “Ele
(Jesus), estando na forma de Deus...” (Fl 2,6). Enquanto na carta aos Colossenses a
mesma ideia foi escrita mais claramente desta maneira: “Ele (Jesus) é a Imagem do
Deus invisível...” (Cl 1,15).
O cristianismo aceitou que Jesus Cristo era o Messias, o qual YHWH prometera
enviar para libertar o povo de Israel. Utilizando-se especialmente dessas passagens
bíblicas a Igreja instituiu como dogma que Jesus Cristo além de ser o Messias, ou seja,
o enviado de Deus, é o próprio Deus, a encarnação humana de Deus. Isto é a essência da
fé cristã: o mistério da Encarnação de Deus.
A crença em um Deus único desenvolvida pelo judaísmo ganha com o
cristianismo a partir do I Concílio Ecumênico de Nicéia uma complexa e paradoxal
representação. Um Deus ao mesmo tempo uno por essência (porque só existe um Deus)
e trino (porque está personalizado pelas pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo). O
I Concílio de Nicéia também professou a divindade de Jesus, que seria a segunda pessoa
da Trindade.
Se na Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento aparece um Deus invisível,
abstrato, incorpóreo e inacessível, a interpretação do Novo Testamento pela Igreja traz a
concepção de um Deus que se encarnou em uma forma humana e, portanto, se fez
visível.
De acordo com os ensinamentos da Igreja Católica, Deus foi se revelando ao
homem em etapas e a última etapa desta revelação foi através de Jesus Cristo, o
mediador e a plenitude de toda a revelação. Jesus Cristo é para os cristãos o símbolo da
aliança definitiva de Deus com o povo de Israel.
Segundo os evangelhos, o Deus que se manifestava por palavras se encarnou e
assumiu uma forma humana. Jesus é apresentado como o Verbo de Deus: “E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos sua glória, glória
como unigênito do Pai” (Jo 1, 14).
Para a doutrina da Igreja Católica, Cristo não é apenas o Filho de Deus ou sua
última revelação aos homens. Ele é definido, principalmente, como a encarnação do
próprio Deus, tendo assumido uma natureza humana. “Podemos crer em Jesus Cristo
porque ele mesmo é Deus, o Verbo feito carne...” (Catecismo da Igreja Católica, 2000,
p.50, item 151).
Ao aceitar que Jesus Cristo é o próprio Deus encarnado e que, por isso, ele
assumiu uma verdadeira humanidade, a Igreja também aceitou, desde o VII Concílio
Ecumênico, ou seja, o II Concílio de Nicéia,realizado no ano 787, que o rosto humano
de Jesus pudesse ser “desenhado”, representado em uma imagem sagrada. Pois Deus,
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que no Antigo Testamento era invisível e abstrato, tomou uma forma humana para si, e
agora se tornou visível, portanto passível de ser representado por uma imagem sagrada.
Para Besançon “a Igreja liga a imagem à Encarnação. O que autoriza a imagem na Nova
Aliança é justamente sua proibição na Antiga.” (BESANÇON, 1997, p.198).
Em Israel a representação da imagem de YHWH era proibida porque ninguém
tinha visto forma alguma da divindade. Aceitando que Jesus seja Filho e ao mesmo
tempo é o próprio Deus, pois os dois são consubstanciais, a Igreja Católica aceitou que
Deus se fez visível para os homens e, portanto, passível de ser representado por meio de
uma imagem a ser contemplada e venerada por todos. “Com efeito, as particularidades
individuais do corpo de Cristo exprimem a pessoa divina do Filho de Deus. Este fez
seus os traços de seu corpo humano a ponto de, pintados em uma imagem sagrada,
poderem ser venerados, pois o crente que venera sua imagem venera nela a pessoa que
está pintada” (Catecismo da Igreja Católica, 2000, p. 135, item 477).
Esta ideia fez com que a Igreja assumisse uma postura em relação às imagens e,
consequentemente, em relação à arte diferente daquela que os judeus tinham.A imagem
ganha no cristianismo católico uma importância jamais observada no judaísmo,
suplantando a relevância da palavra escrita, ao menos para os fiéis, que não tinham
acesso aos textos bíblicos.
Para o catolicismo “a iconografia cristã transcreve pela imagem a mensagem
evangélica que a Sagrada Escritura transmite pela palavra. Imagem e palavra iluminamse mutuamente” (Catecismo da Igreja Católica, 2000, p.326, item 1160).
A imagem sagrada adquire, na doutrina da Igreja Católica, uma importância tão
grande quanto a que exercia nas religiões pagãs, porém, com um sentido diverso do que
era praticado no paganismo. A Igreja Católica defende tratar-se de um culto de
veneração.
Sem ignorar o perigo de um ressurgimento das práticas idolátricas do
paganismo, a Igreja admitia que não somente Jesus, mas também Maria, os mártires, os
anjos e santos fossem representados em formas pictóricas ou plásticas para favorecer a
oração e a devoção dos fiéis. A representação dos “seguidores de Cristo” é aceita pela
Igreja, pois afirma que o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus” (Gn
1,26) e que a encarnação do Verbo tornou o homem “participante da natureza divina”
(2Pd, 1,4).
Segundo Alain Besançon, a posição da Igreja em relação às imagens está
totalmente embasada na ideia da encarnação de Deus através de Jesus Cristo, criando-se
uma oposição com o que aconteceu no Horeb e é relatado no Antigo Testamento. “A
proibição do Horeb já não é valida, do momento em que Deus se manifestou na carne, e
pôde ser percebido, portanto, não apenas pelo ouvido, mas pela vista também”
(BESANÇON, 1997, p. 206).
Ao estabelecer sua doutrina a Igreja se preocupou em incluir os escritos da
Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento dentro de um processo histórico, a história da
revelação divina aos homens, na qual os acontecimentos do Êxodo e a entrega do
Decálogo são uma etapa intermediária. O Antigo Testamento passou a ser lido “à luz de
Cristo morto e ressuscitado” (Catecismo da Igreja Católica, 2000, p.45, item 129).
Segundo sua doutrina, os evangelhos do Novo Testamento mostram que Jesus
Cristo não aboliu a Lei do Decálogo, mas veio levá-la à perfeição pelo amor ou
caridade. A Igreja defende que o Decálogo, ao apresentar os mandamentos do amor a
Deus (os quatro primeiros mandamentos) na primeira tábua e ao próximo (os outros seis
mandamentos) na segunda tábua traça para o povo eleito e para cada um em particular,
o caminho de uma vida liberta da escravidão do pecado.
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Sobre os Dez Mandamentos é importante esclarecer que a Igreja Católica os
organiza de maneira diferente em relação ao judaísmo. Seguindo a divisão feita por
Santo Agostinho, na Idade Média, a Igreja considera os versículos de 3 a 6 (primeiro e
segundo mandamento no judaísmo) do capítulo 20 do Livro do Êxodo como sendo o
primeiro mandamento resumido nas seguintes palavras: “Amar a Deus sobre todas as
coisas”.
O Decálogo em sua fórmula catequética ditada pela Igreja Católica deixou de
falar explicitamente sobre a proibição de se confeccionar imagens. O processo de
exclusão desta passagem foi acompanhado da aceitação e desenvolvimento da arte sacra
nas Igrejas Católicas durante a Idade Média.
Ao explicar o ponto de vista da Igreja Católica sobre cada um dos Dez
Mandamentos, o Catecismo afirma em relação ao “primeiro” mandamento que seu
significado está relacionado à obrigatoriedade de louvar e adorar ao único e verdadeiro
Deus, proibindo-se prestar honra a outros afora o único Senhor que se revelou a seu
povo. Para o catolicismo, o primeiro mandamento condena principalmente o politeísmo,
exigindo que o homem não acredite em outros deuses e que não venere outras
divindades, pois ao contrário do Deus vivo estas divindades são “ídolos, ouro e prata,
obras das mãos dos homens” conforme está escrito no Antigo Testamento e em
conformidade com o conceito de ídolos-fetiches defendido por Yehezkel Kaufmann.
A Igreja define a idolatria como o ato de “divinizar o que não é Deus. Existe
idolatria quando o homem presta honra e veneração a uma criatura em lugar de Deus...”
(Catecismo da Igreja Católica, item 2113, p.556).
A Igreja Católica julga que o primeiro mandamento estava proibindo a
representação de Deus por mão do homem porque até aquele momento não se tinha
visto sua forma. Mas que ao se encarnar, o Filho de Deus inaugurou uma nova
“economia” das imagens. Isto para a Igreja justifica o culto dos ícones de Cristo, da mãe
de Deus, dos anjos e de todos os santos. Neste sentido, de forma alguma as imagens
sagradas contrariam o primeiro mandamento, pois “desde o Antigo Testamento que
Deus ordenou ou permitiu a instituição de imagens que conduziriam simbolicamente à
salvação por meio do Verbo encarnado, como são a serpente de bronze, a Arca da
Aliança e os querubins” (Catecismo da Igreja Católica, p.560, item 2130).
E para aqueles que a acusam de práticas idolátricas por causa das inúmeras
imagens sagradas em seus templos, a Igreja Católica rebate dizendo que a honra
prestada às santas imagens é apenas uma “veneração respeitosa” e não uma adoração,
que só compete a Deus, não interpretando esta prática como uma forma de idolatria,
pois de forma alguma os santos e os anjos tomam o lugar do culto ao Deus único.
Já do ponto de vista histórico, no início do cristianismo não havia uma unidade
em torno da aceitação das imagens. Uma visão unitária a ser seguida por todos os
cristãos só foi possível a partir da organização dos concílios ecumênicos quando o
cristianismo se tornou religião oficial do Império Romano. Estes concílios só tinham
validade se deles participassem o Bispo de Roma e os Patriarcas do Oriente já que a
Igreja estava dividida em duas sedes, Ocidente e Oriente, assim como o Império
Romano. O último concílio plenamente reconhecido pelas duas Igrejas foi o II Concílio
Ecumênico de Nicéia,em 787, aquele que discutiu e aprovou a legitimidade da
veneração dos ícones (imagens). Anteriormente à realização do concílio estava havendo
divergências entre os padres e doutores da Igreja quanto à aceitação das imagens. No
Oriente, o movimento iconoclasta iniciado pelo imperador Leão III, em 726, era motivo
de constantes embates e destruição dos ícones. E mesmo após este concílio a discussão
iconoclasta continuou neste território. No Ocidente, a Igreja de Roma seguiu sem
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rupturas sua ação a favor das imagens, pois não estava subordinada à autoridade do
imperador bizantino.
O II Concílio de Nicéia determinou que uma das funções da arte sacra é a
realização do culto de veneração da Cruz de Cristo, de Maria e dos anjos e santos,
devido à concepção da encarnação do Verbo e santificação da carne. A veneração é uma
forma respeitosa de homenagear aqueles que fizeram parte da história da salvação junto
com Jesus Cristo.
A imagem sagrada, de acordo com esta doutrina, não é vista como um ídolo
porque a honra prestada a uma imagem se dirige ao modelo original e quem venera uma
imagem venera a pessoa que nela está pintada. Porém, ao adotar este ponto de vista, o
catolicismo se aproximou, de certa forma, das práticas religiosas pagãs, pois
historicamente no judaísmo não há veneração de imagens. Mas enquanto para algumas
religiões pagãs da Antiguidade a imagem era vista como a portadora do deus e a ela era
atribuído algum tipo de poder mágico, no catolicismo, não é atribuído nenhum tipo de
poder às imagens, que são vistas como meros instrumentos de veneração, ou seja,
admiração e respeito à pessoa que está nela representada, servindo como uma forma de
incentivo ao fervor religioso.
De acordo com a doutrina da Igreja Católica os santos, de forma alguma,
possuem o status de deuses ou semideuses. Eles são considerados “coparticipantes da
história da salvação” e “exemplos de santidade para os cristãos” (Catecismo da Igreja
Católica, 2000, p.534, item 2030).Apesar disso, as imagens religiosas católicas fizeram
com que a religião cristã fosse mais facilmente aceita pelos povos bárbaros, pois estes
faziam relações entre seus antigos deuses e os santos católicos.
De qualquer modo, a veneração deveria servir para lembrar ao cristão a história
sagrada e despertar seu lado emotivo para assim suscitar o arrependimento dos pecados
e levar aquele que contempla a imagem a se aproximar cada vez mais de Deus, o único
a quem se deve o culto de adoração.
Ao aceitar plenamente as decisões do II Concílio de Nicéia, na Idade Média, a
Igreja de Roma assumiu consequentemente uma visão positiva em relação às artes
plásticas, atividade inerente à natureza humana. A Igreja, em seu Catecismo (2000,
p.644, item 2502), afirma que a arte é uma forma de expressão propriamente humana
nascida de um talento dado pelo Criador e do esforço do próprio homem, tendo uma
forte semelhança com a atividade de Deus na criação. A arte vista assim é uma maneira
do homem se aproximar de Deus, através de sua criação ou da meditação e veneração de
obras criadas por outras pessoas.
Esta ideia levou a Igreja Católica a incentivar as artes durante a Idade Média, em
suas manifestações na arquitetura das igrejas e na realização de esculturas e pinturas de
caráter sagrado. Além de ter um sentido contemplativo a arte nas igrejas tinha também
uma função decorativa servindo também para ornamentar ou embelezar a “Casa de
Deus”.
Porém, além da questão doutrinária, resolvida pela Igreja Católica da maneira
como foi exposta acima, e da decoração, havia uma questão muito mais prática para a
Igreja de Roma relacionada à confecção das imagens: a conversão e evangelização dos
povos que passaram a habitar o antigo território do Império Romano do Ocidente.
Neste sentido, vemos historicamente que em seus três primeiros séculos de
existência o cristianismo era uma religião perseguida e praticada às escondidas, nas
casas dos membros mais ricos e, principalmente, nas catacumbas, galerias subterrâneas
onde os cristãos romanos enterravam seus mortos e, local em que os cristãos
conseguiam se reunir em paz, longe de perseguições, torturas e assassinatos
transformados em espetáculos públicos.
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Foram nas catacumbas em Roma que apareceram as primeiras imagens feitas
pelos cristãos. No início, os cristãos ainda eram, na maior parte, judeus da Diáspora que
haviam aceitado que Jesus era o Messias enviado por Deus. Os judeus já vinham
reproduzindo em sinagogas e em objetos de ritualística algumas imagens, inclusive de
figuras humanas, apesar da proibição bíblica. Esses judeus que se converteram ao
cristianismo começaram a reproduzir nas catacumbas a mesma espécie de “arte” que
realizavam nas sinagogas e objetos, com apenas uma diferença, além de reproduzir
passagens do Antigo Testamento as imagens reproduziam também cenas da vida de
Jesus e de outras figuras importantes na história do cristianismo.
Inicialmente, não havia no cristianismo uma total aceitação das imagens como se
deu posteriormente com a definição da ortodoxia e da doutrina da Igreja Católica
através dos Pais da Igreja. Por influência do judaísmo ainda havia um respeito à
proibição bíblica de se reproduzir imagens. Porém, a cultura helenística provocou uma
abertura nos costumes e práticas da religião judaica que se repetiram também no
cristianismo. As imagens nas catacumbas estavam ligadas diretamente à importância
dos ritos fúnebres e à proteção dos túmulos para os cristãos, pois sua fé se assentava na
esperança de uma vida eterna no Paraíso.
Da mesma forma que no judaísmo, evitava-se a realização de esculturas, já que o
mandamento bíblico fala na proibição de se esculpir imagens, preferindo-se as pinturas
afrescos, mosaicos ou esculturas com pouco relevo.
Até o século I essas imagens nas catacumbas eram basicamente a reprodução de
símbolos pagãos com um novo significado à luz do cristianismo e muitas cenas ou
passagens do Antigo Testamento, sendo uma arte muito simples e rudimentar. No fim
do século II começam a aparecer nestas imagens os símbolos propriamente cristãos e
cenas descritas nos evangelhos, mas não se manifestou uma especialização no processo
de confecção dessas imagens.
Essas imagens ainda não tinham uma conotação contemplativa, não eram
imagens de culto, e também não tinham a função de evangelizar, apenas procuravam
manter viva a lembrança de alguns momentos ou passagens importantes para os cristãos
num processo de representação visível de sua história sagrada.
Seguindo o argumento bíblico de que Deus era invisível e, portanto,
irrepresentável por meio de uma imagem humana, as primeiras imagens cristãs não
representavam propriamente a imagem de Jesus, apenas símbolos relacionados a ele
como monogramas ou metáforas. Mas conforme foi sendo aceito entre os cristãos o fato
de que Jesus era a encarnação visível de Deus, Ele passou a aparecer representado nas
imagens nas catacumbas. Inicialmente na forma de um jovem sereno de cabelos
cacheados, quando se valorizava mais o seu poder de nos redimir da morte, e
posteriormente, por volta do século V, na forma adulta e barbada e com aspecto
sofredor ou severo, quando se passou a valorizar mais os tormentos pelos quais Ele
passou quando se fez carne.
No século IV, o cristianismo passou por uma grande transformação e o
responsável por isso foi Constantino, o primeiro imperador romano a se converter ao
cristianismo. A partir dele, Roma passa a ser o centro oficial da fé cristã com a
concessão da liberdade de culto aos cristãos através do Edito de Milão. O cristianismo,
com um número cada vez maior de fiéis entre os pagãos em suas diversas comunidades,
poderia a partir do Édito de Milão, em 312, se reunir abertamente e era preciso então
construir locais de culto. Adotou-se o modelo das “basílicas” romanas, amplos locais de
reunião, para a construção das primeiras igrejas, para comportar o grande número de
cristãos, que já superavam os pagãos em quantidade. Surge a questão de como decorar
as basílicas e um ponto comum, apesar das controvérsias sobre as imagens, era a de
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evitar as esculturas ou estátuas de Jesus ou dos santos, pois isso poderia causar confusão
entre os pagãos recém-convertidos, mas não se estabeleceu restrição em relação à
pintura, mosaicos e baixos relevos.
No ano 380, o imperador Teodósio, através do Édito de Constantinopla, tornou o
cristianismo a religião oficial do Império Romano. A igreja cristã caminhava num
crescente processo de estruturação e hierarquização. A transferência da capital para
Bizâncio e a posterior divisão do Império Romano em duas sedes influenciaram no
estabelecimento de diferenças notáveis entre A Igreja do Oriente e a do Ocidente,
processo que culminou na separação total entre as duas no ano de 1054.
Em maio de 330, Constantino transferiu a capital do Império de Roma para a
cidade grega de Bizâncio, posteriormente denominada Constantinopla em sua
homenagem, reconhecendo a importância econômica e política do lado oriental do
Império Romano, enquanto uma crise econômica, política e militar tomava conta do
lado ocidental. Em 395, Teodósio, sucessor de Constantino, reorganizou o Império com
duas capitais, Roma no Ocidente e Constantinopla no Oriente. Isso influenciou o
posterior desenvolvimento do cristianismo e o cisma da Igreja Cristã também em duas
Igrejas, a Católica no Ocidente a Ortodoxa no Oriente.
A divisão em duas sedes, em contextos políticos e sociais diferentes, contribuiu
para uma diferenciação no estilo arquitetônico das igrejas e na adoção de pontos de vista
muitas vezes contrários em relação ao uso das imagens nas igrejas. No Oriente, a Igreja
Cristã estava subordinada ao Império e eram os imperadores bizantinos que
patrocinavam a construção de igrejas. No Ocidente, com o declínio e queda do Império
Romano, a Igreja se sobressaiu como a instituição sucessora deste Império e os papas
passaram a ter imenso poder temporal e espiritual sobre a cristandade, determinando
como seriam construídas e decoradas as igrejas.
No Oriente, os imperadores durante alguns séculos encorajaram a veneração das
imagens religiosas, os ícones, à semelhança do culto que era prestado às imagens
imperiais no tempo do paganismo no Império Romano. As imagens de Cristo e da
Virgem Maria ocuparam o espaço antes ocupado pelas estátuas dos imperadores,
recebendo um culto semelhante ou igual àquele que era realizado pelos pagãos na
Antiguidade. Porém, a questão iconoclasta, iniciada em 726 e que durou mais de cem
anos, e que envolvia, no plano teológico, a discussão entre o humano e o divino na
pessoa de Jesus e, no plano social, uma luta pelo poder entre Estado e Igreja, provocou
uma acentuada queda na produção de imagens religiosas, sem nunca conseguir eliminálas completamente. Pouco tempo após a vitória dos iconófilos, em 843, os ícones,
especialidade da arte religiosa bizantina, se espalharam novamente nas igrejas, palácios
e casas bizantinas.
A Igreja no Ocidente jamais enfrentou um debate tão profundo em relação à
iconoclastia como enfrentou a Igreja do Oriente, tendo produzido durante a Idade Média
um grande número de imagens de diversos tipos. De acordo com Alain Besançon
“jamais houve no Ocidente debate sobre a imagem que se comparasse em profundidade,
em amplitude, em precisão e em violência àquele que ocupou por muito tempo o
Oriente” (BESANÇON, 1997, p.242), sendo a questão das imagens tratada muito mais
do ponto de vista retórico do que filosófico, teológico ou metafísico. Tanto que a Igreja
de Roma aceitou plenamente as decisões do II Concílio Ecumênico de Nicéia, de 787,
que aprovou o uso e a veneração das imagens sagradas.
A história do Ocidente pode ser uma das causas dessa superficialidade no debate
em relação às imagens. A desintegração do Império Romano do Ocidente devido às
invasões das tribos bárbaras germânicas e o isolamento em que mergulhou a Europa
Ocidental, no século VIII, devido às invasões dos árabes muçulmanos levaram a um
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declínio da cultura ocidental e, um consequente afastamento do Império Bizantino. A
Igreja de Roma caminhava para o rompimento de seus laços com a Igreja do Oriente.
Sob o caos e a degradação cultural que se instalaram na Europa Ocidental a
Igreja soube utilizar seu papel de única organização cosmopolita e centralizada no
Ocidente para adquirir o monopólio da cultura intelectual, inclusive no tocante às artes.
A Igreja se preocupava com a conversão dos povos bárbaros que estavam
habitando os territórios do antigo Império Romano do Ocidente. Inicialmente estes
povos constituíram diversos reinos bárbaros, aceitando a estrutura da fase final da
civilização romana cristã. Destes reinos o mais importante foi o Reino Franco ao qual a
Igreja se aliou ao coroar Carlos Magno, rei dos francos, no Natal do ano 800, como
imperador. Assim, a Igreja buscava apoio político e econômico, sem se subordinar ao
imperador carolíngio, e ao mesmo tempo, subordinava o poder temporal ao poder
espiritual chefiado por ela. Neste processo, a conversão desses povos era essencial para
o fortalecimento espiritual e material da Igreja. As conversões em massa foram o
resultado da conversão forçada de seus povos por parte dos reis bárbaros. A Igreja se
preocupava em encontrar meios de atrair e ao mesmo tempo instruir na fé cristã estas
pessoas sem que isso colocasse em risco o seu domínio exclusivo sobre a interpretação
da Bíblia.
Como nos informa Eliana Malanga, com a “conversão das massas pagas à nova
religião, uma grande massa de analfabetos teve contato com o texto bíblico” o que
acabou sendo um problema para a Igreja, pois isso abria possibilidades para
interpretações diferentes daquela que “fundamentava sua doutrina e seus dogmas”
(MALANGA, 2005, p.236). De acordo com a autora não houve por parte da Igreja um
grande empenho para que o texto bíblico fosse acessível a todos, justamente por esta
preocupação em fechar uma interpretação única e impô-la como verdade indiscutível, e
como a maior parte da população era analfabeta recorria-se às imagens para a sua
conversão e evangelização. A Igreja precisava subordinar uma multidão de fiéis que
falavam mal o latim e não sabiam ler.
O Papa Gregório Magno defendeu, no século VI, que as imagens eram úteis
porque ajudavam a congregação a recordar os ensinamentos que haviam recebido e
mantinham viva a memória dos episódios sagrados do Antigo e do Novo Testamento,
servindo para o analfabeto da mesma maneira que o livro para o que sabe ler. Neste
sentido a imagem adquiria uma função pastoral e didática, da mesma maneira que o
livro teria para alguém alfabetizado.
Sobre o uso das imagens para a instrução dos iletrados na Idade Média disse São
Basílio Magno: “o que o relato oferece ao ouvido, o quadro revela silenciosamente pela
imitação” (BESANÇON, 1997, p. 244). E também Gregório de Nissa: “A imagem é um
livro portador de linguagem” (BESANÇON, 1997, p.244). E posteriormente São
Boaventura: “As imagens foram introduzidas na igreja por causa da incultura dos
simples, da mornidão dos afetos, da impermanência da memória” (BESANÇON, 1997,
p.256).
Ao afastar o povo da leitura direta da Bíblia, a Igreja precisava investir em outro
meio que motivasse a fé dos cristãos, de um modo que resultasse sensível,
principalmente para aqueles que não sabiam ler. Assim as igrejas e catedrais eram como
livros escritos em pedra, por meio de imagens pelas quais se podiam conhecer
passagens bíblicas e histórias da vida dos santos que a Igreja visasse difundir sem a
necessidade de saber ler.
Este processo foi sendo concretizando ao longo de todo o período denominado
pelos historiadores de Alta Idade Média. Posteriormente, na Idade Média Central e
Baixa Idade Média, surgiram os estilos artísticos conhecidos como românico e gótico,
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estritamente relacionados à arquitetura e ornamentação de igrejas e catedrais, e que
mantiveram essa tendência do uso retórico das imagens pela Igreja Católica no
Ocidente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo apresentou um estudo sobre como o judaísmo e o cristianismo
católico, durante a Antiguidade e a Idade Média, interpretaram o mandamento bíblico
do Decálogo ou Lei do Monte Sinai que proíbe confeccionar imagens. As duas religiões
são inspiradas pelo mesmo livro sagrado, porém, devido às suas especificidades
históricas e teológicas deram interpretações diferentes para este mandamento bíblico.
No judaísmo, durante a Antiguidade, o mandamento foi interpretado como uma
proibição da idolatria, ou seja, da confecção e, consequentemente, adoração dos deuses
pagãos devido à visão que Israel tinha dos deuses pagãos como ídolos fetiches. Também
era visto como uma proibição da representação de Deus, pois o Deus de Israel era
invisível e abstrato e incapaz de ser alcançado pela compreensão humana. A palavra era
o meio primordial de comunicação de Iahweh com o povo de Israel, pois Ele assim
determinara. Já a Igreja de Roma ou Católica Apostólica Romana afirmou na Idade
Média o dogma da encarnação do Verbo, isto é, Jesus consubstancial ao Pai é o próprio
Deus que se fez carne e foi visto enquanto imagem na Terra. Se Deus não era mais
invisível foi permitido, então, a reprodução de sua feição humana, bem como a daqueles
que sempre estiveram em comunhão com Ele como Maria, a Mãe de Deus, os anjos, os
santos e os mártires. A partir da realidade da encarnação do Verbo o catolicismo
interpretou o mandamento bíblico como uma proibição apenas da idolatria. Apesar da
proibição bíblica das imagens, o judaísmo não se colocava contra a confecção de
imagens que não se destinassem a culto de adoração. Em objetos rituais, na decoração
do Templo de Salomão e sinagogas, imagens eram feitas, porém, sem a reprodução de
figuras humanas. Somente no final da Antiguidade e início da Idade Média, por
influência da cultura helenística, romana e parta-sassânida surgem as figuras humanas
na decoração de sinagogas com o objetivo de ilustrar e explicar através de imagens as
histórias da Bíblia Hebraica. No catolicismo as imagens adquiriram na Idade Média três
significados. Primeiramente serviam para a veneração da pessoa representada pela
imagem. Também tinham a função de decorar as igrejas, mosteiros e casas. E,numa
Europa dominada por pessoas analfabetas após as invasões dos povos bárbaros que
eram ágrafos, as imagens que retratavam cenas do Velho e do Novo Testamento eram
uma forma de evangelizar e instruir estes povos incultos nos princípios essenciais da fé
cristã.
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