Pierre Janet and Raymond Roussel

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Pierre Janet and Raymond Roussel
 Latusa Digital Ano 9 – N. 48 – Março de 2012.
Pierre Janet e Raymond Roussel
Vera Davet Pazos1
Em 1926, Pierre Janet, filósofo, psicólogo e psiquiatra francês (1859-1947),
publica o livro De l’angoisse à l’extase, em dois volumes, como uma primeira tentativa de
sistematização de suas ideias, quando apresenta, de forma pontual, o episódio de
fulguração de luz e glória do caso Raymond Roussel, ocorrido aos 19 anos do paciente. A
primeira parte do volume I é dedicada ao estudo de um delírio religioso de uma paciente
atendida na Salpetrière, cujo pseudônimo, Madeleine, fora escolhido por ela própria e cujo
caso fora estudado por Janet durante 22 anos. Raymond Roussel, poeta e escritor,
considerado por alguns um precursor do surrealismo, inicia o tratamento com Janet aos 19
anos (em 1897), seguindo até os 55 anos, quando se suicida num hotel em Palermo, Itália,
em 14 de julho de 1933, por excesso de barbitúricos.
Observações sobre a questão diagnóstica em Janet
Observamos que Janet descreve o caso fora da transferência, digamos assim,
sem pistas da relação médico-paciente e sem se aperceber de que o esforço de escrita de
seu paciente teria algum sentido ou função, para além da repetição do episódio de
fulguração de si mesmo, parecendo, à época, interessado na quantificação de algumas
manifestações sintomáticas de Madeleine.
Madeleine, por exemplo, escrevia cartas a Janet nas quais o chamava de “mon
père”. A transferência aí dava sinais em ambas as direções, considerando-se a influência da
paciente no trabalho escrito por ele. No caso Roussel, no entanto, as falas de Janet sobre
Martial nos deixam antever no médico um observador do comportamento, talvez perplexo
diante de seu paciente.
Ele apresenta Martial (o pseudônimo escolhido é personagem do livro de
Roussel, Locus Solus) como um neurótico psicastênico, tímido e escrupuloso, facilmente
deprimido, cujo estado às vezes se aproximava singularmente da melancolia. Menciona um
delírio de perseguição, tomando a forma de obsessão e da ideia delirante de desvalorização
1
Psicanalista, coordenadora do Núcleo de Saúde Mental e Trabalho - NUSAMT e correspondente da
Seção Rio.
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universal dos homens uns pelos outros, e uma longa depressão, difícil de curar, logo após o
fracasso das publicações.
A neurose psicastênica, para Janet, seria caracterizada por obsessões, fobias e
impulsos, acompanhados de consciência, mas que, em certos casos, determinariam
verídicos e graves delírios.2
Sobre o episódio hipomaníaco de luz e glória — o êxtase de Roussel — Janet
escreve:
[...] existe um grupo de fenômenos que podemos chamar de êxtases
laicos, menos perfeitos que os êxtases religiosos, mas com formas
muito parecidas. Se consideramos esses êxtases laicos, encontramos
as mesmas transformações da crença. Martial fala da glória como os
místicos falam de Deus, a certeza que ele possuiu a glória não tolera
nenhuma dúvida e não se funda sobre nenhuma razão: é uma
inspiração verdadeira, é mais verdadeiro que uma percepção, é um tipo
de percepção luminosa, porque essa glória explode, se manifesta pelos
raios luminosos que saem de sua caneta, de seu papel, de toda a sua
3
pessoa.
Janet considera essa glória inverossímil e muito pouco lógica, pois ela está em
toda parte, nele e fora dele; é uma ideia e um ser, como ele é ele mesmo e Napoleão, Victor
Hugo, todos sendo sempre ele mesmo.4
Jean-Claude Maleval aponta que uma experiência de gozo Outro por um sujeito
não seria suficiente para que disso se inferisse sua estrutura psicótica: o misticismo e as
técnicas arcaicas do êxtase bastariam para fazer objeção.5 Serge Cottet observa que, ao
passo que os sintomas neuróticos atestam a insistência de um gozo que retorna sempre ao
mesmo lugar, “para o psicótico, os distúrbios têm alguma coisa de imprevisível, de mutável;
eles aparecem regidos mais por acontecimentos fortuitos do que por uma necessidade”.6
2
Janet, P. De l’angoisse à l’extase. Édition élétronique, Université Quebéc à Chicoutimi/UQAC, 1926.
v. I, cap.3.7: “Les caractères psychologiques de l’extase”, p.98.
3
Ibidem, p.112.
4
Janet, loc. cit.
5
Maleval, J.-C. “La elaboración de una suplencia por un processo de escritura – Raymond Roussel.”
Em: Psicosis actualis: hacia um programa de investigación acerca de las psicosis ordinárias. Buenos
Aires: Grama, 2008, p.115-124. Na discussão do caso no Núcleo de Topologia, interrogou-se a
possibilidade de um episódio alucinatório, com certa imanência do objeto dentro da própria imagem
do sujeito. A tradução deste texto está nesta mesma edição de Latusa Digital.
6
Cremniter, D.; Maleval, J.-C. “Contribuition au diagnostic de psychose” apud Cottet, S. Ensaios de
clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011. p.44. (Coleção Opção Lacaniana, v.8).
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Os fatos são notáveis: êxtases inesperados e atos imotivados são índices de
uma falha no enodamento correlato à carência de uma fantasia fundamental, reveladora de
uma tendência de o real ser emancipado de seus laços simbólicos ou imaginários.7
Sobre as obras literárias de Roussel, Janet relata não saber avaliar o seu valor,
pois até ali elas não tinham obtido sucesso; tendo sido louvadas apenas por alguns
iniciados, eram consideradas insignificantes. Mas seu autor, diz Janet, conserva a respeito
uma atitude singular: não somente continua seu trabalho com incansável perseverança,
como tem a convicção absoluta e inquebrantável sobre seu incomensurável valor artístico.
Continua Janet:
[...] a confiança de um autor sobre o valor de suas obras e o apelo à
posteridade pela injustiça dos contemporâneos são coisas naturais e
dentro de certa medida legítimas, mas me parece, entretanto, que a
convicção de Martial se apresenta de maneira anormal. Ele atribui às
suas obras uma importância desmesurada, ele jamais se abala com o
insucesso flagrante, e não admite nem por um instante o menor
conselho; ele tem uma fé absoluta no destino que lhe foi reservado: ”eu
chegarei aos mais altos píncaros, nasci para uma glória fulgurante.
Pode demorar, mas eu terei uma glória maior que a de Victor Hugo ou
de Napoleão. Wagner morreu muito cedo, aos 25 anos, e não
conheceu sua glória, eu espero viver muito tempo para contemplar a
minha... Há em mim uma glória imensa em potência, como um obus
formidável, que ainda não explodiu... Essa glória alcançará todas as
obras, sem exceção, recairá sobre todos os atos da minha vida; todos
os atos de minha infância serão investigados e todos se admirarão com
a minha maneira de brincar nas barras... Nenhum autor foi e, não pode
ser, superior a mim. As pessoas não se apercebem disso hoje: o que
querem, existem obus que dificilmente explodem, mas quando
explodem!... o que querem, existem predestinados! [...] Sim eu senti
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uma vez que eu tinha a estrela na fronte e não a esquecerei jamais”.
Pelo relato de seu médico, Roussel deprime após o insucesso das publicações,
o que leva a crer que há abalo, há oscilações.
A megalomania sustentaria a imagem até certo ponto, assim como a escrita,
cuja beleza se compõe de combinações imaginárias e procedimentos especulares, fazendo
função de suplência simbólica.
Janet considera que, de maneira geral, os delírios determinam os diagnósticos
de psicose, mas que na psicastenia encontramos delírios de intensidade menor, sem que
caracterizem uma psicose.
7
Cottet, S. Ensaios de clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011, p.44. (Coleção Opção
Lacaniana, v.8).
8
Janet, P. De l’angoisse à l’extase. Édition élétronique. Université Quebéc à Chicoutimi/UQAC, 1926.
v. I, p.33-34.
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Não podemos classificar essas doenças entre os alienados e declarar
que seu problema é uma verdadeira loucura, e por outro lado
hesitamos falar de simples neurose, porque constatamos verdadeiros
problemas mentais. É que, sem falar da incerteza da palavra “louco”,
nos dispomos a caracterizar a verdadeira loucura pelo delírio, pelas
ideias propriamente delirantes e não podemos constatar ideias desse
tipo nessas doenças. [...] Na realidade os problemas dos psicastênicos
são intermediários entre os erros e os delírios: não podemos dizer que
se trata de fenômenos normais e fáceis de corrigir como os erros, mas
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não podemos dizer que se trata de delírios e de loucura.
A psicose, para Janet, seria uma intensificação da psicastenia?
Miller nos diz que, de qualquer forma, um delírio é simbólico. Um delírio é um
conto simbólico. É também capaz de ordenar um mundo. No caso, o mundo de Roussel se
ordenava em torno da grandeza literária.
Para Miller,
[...] a neurose é uma estrutura muito precisa. Se há dúvida durante
anos podem apostar que se trata de uma psicose dissimulada, de uma
psicose velada. [...] Uma psicose difícil de reconhecer como tal, mas
que deduzo de pequenos indícios variados. Trata-se de uma categoria
10
mais epistêmica do que objetiva. Fala de uma clínica da tonalidade.
(2010, p. 06-08)
Ainda hoje, na França, o debate em torno da origem orgânica ou psíquica da
depressão, assim como a hipótese continuísta entre neurose e psicose encontram
argumentação na psicastenia de Janet.
Serge Cottet aponta, inclusive, que há um afastamento da clínica das psicoses
reforçada pela corrente psicológica, e que, em torno de Pierre Janet e George Dumas,
formula-se o princípio de uma continuidade entre o normal e o patológico.11
Miller nos lembra de que, no Lacan ‘clássico’, a base comum entre neurose e
psicose é o imaginário.
Nos Escritos, Lacan constrói a dimensão fundamental do sujeito como
pertencendo à dimensão imaginária. Trata-se, portanto, do nascimento
supostamente comum — seja de um futuro neurótico, um futuro
normal, um futuro perverso, um futuro psicótico — naquele que habita,
9
Janet, P. De l’angoisse à l’extase. Édition élétronique, Université Quebéc à Chicoutimi/UQAC, 1926.
v. II, p.98.
10
Miller, J.-A. “Efeito de retorno à psicose ordinária”. Em: Opção Lacaniana on-line, São Paulo, ano 1,
n.8, nov. 2010.
11
Cottet, S. Ensaios de clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011, p.12. (Coleção Opção
Lacaniana, v.8).
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poderíamos dizer, o estádio do espelho. Um mundo instável, um
mundo de areias movediças, sem consistência, de sombras. É também
o mundo da mãe, cuja força pulsional é o desejo da mãe, o desejo
12
desordenado da mãe em relação ao filho-sujeito.
Roussel nomeava-se ‘puro imaginário’: “Em mim a imaginação é tudo.” De onde
partia, no esforço de criação, a escrita que o impulsionava em busca da glória.13
Na predominância do imaginário, as palavras funcionariam como instrumentos
de extração de gozo “eu sangro a cada frase”, diz ele, fazendo com a escrita, uma tentativa
de amarração do simbólico, como pontua Maleval
12
Cottet, loc. cit.
Em Madri, muito recentemente, a exposição Locus Solus – Impressões de Raymond Roussel
aconteceu no Museu Reina Sofia, encontrando-se, hoje, no Museu Serralves, Porto, Portugal. 13
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